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4 - Eclesiologia - Conceitos de Igreja

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CONCEITOS DE IGREJA

Neste capítulo iremos estudar a Igreja sob as três grandes figuras com que é
designada tanto no Novo Testamento como no Vaticano II: A Igreja 'Corpo de Cristo',
'Templo do Espírito' e 'Povo de Deus'. Ao final abordaremos a Igreja como lugar de
comunhão e como sociedade.

A IGREJA CORPO DE CRISTO

1. A Igreja Corpo de Cristo no Novo Testamento

"Alegro-me nos sofrimentos suportados por vossa causa e completo na


minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo pelo Seu Corpo, que é
a Igreja" (Col 1,24).

A expressão 'Corpo de Cristo' como designativo da Igreja, é a fórmula mais


corrente no Novo Testamento para definir a sua realidade e a sua relação com Cristo.
Esta expressão situa-nos na ordem das imagens, mas na máxima proximidade possível
da realidade existente entre Cristo e a Igreja.

"Quando se chama à Igreja 'Corpo de Cristo', não se trata simplesmente de uma imagem
ou metáfora. Na realidade, através dos sacramentos e pela esperança da ressurreição, os
cristãos estão unidos a Cristo de uma maneira real embora inexpressável. E a Igreja, na
sua natureza íntima, não é senão uma e mesma coisa com o Corpo de Cristo"30.

30 L. CERFAUX, Las imagenes simbólicas de la Iglesia en el NT, em: BARAÚNA, I, 318-319.

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A fórmula 'Corpo de Cristo' aparece em três contextos diferentes nas cartas


paulinas, que são as únicas que a utilizam.

1.1. Corpo de Cristo

Designa o Corpo de Cristo na cruz, que pela sua morte reconciliou judeus e
pagãos, fez deles um homem novo e, uma vez santificados, apresentou-os a Deus: "E a
vós que também outrora éreis estranhos e inimigos pelos vossos pensamentos e más
obras, reconciliou-vos agora pela morte de Seu Filho, no Seu corpo carnal, para vos
apresentar santos, imaculados e irrepreensíveis perante Ele" (Col 1,21-22)."Ele é a
nossa paz... anulando pela sua carne, a lei, os preceitos e as prescrições, a fim de, em si
mesmo, fazer de dois um só homem novo, estabelecendo a paz, e reconciliando com
Deus, pela cruz, uns e outros num só Corpo, levando em si próprio, a morte à inimizade"
(Ef 2,14-16).

Esse corpo entregue à morte, recreador da unidade dos homens divididos e


santificador de todos, abre para nova existência em si mesmo. Seu corpo, uma vez
ressuscitado e convertido em 'Corpo da glória' (Fil 1,22) é o âmbito em que vivem os
homens novos, como um único homem, isto é, como um único corpo. O corpo pessoal
de Jesus 'morto pelos nossos pecados e ressuscitado para a nossa justificação’ (Rom 4,25)
funda o novo corpo de Cristo, que são todos os homens incorporados a Cristo.

1.2. Corpo de Cristo

É a unidade formada por todos os membros numa comunidade local, que vivem
em solidariedade entre si, assumindo funções diversas e estabelecendo uma solidariedade
de acções e responsabilidades, tal como num corpo cada um dos membros trabalha para
a unidade de vida e de existência pessoal.

- "Pois, como em um só corpo temos muitos membros, e nem todos os membros têm a
mesma função, assim nós, que somos muitos, constituímos um só corpo em Cristo, sendo
individualmente membros uns dos outros" (Rom 12,4-5).
- "Não sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo? Iria eu, então, tomar os
membros de Cristo para os fazer membros de uma prostituta?" (1Cor 6,15).

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- "Uma vez que há um só pão, nós, embora sendo muitos, formamos um só corpo, porque
todos participamos do mesmo pão" (1Cor 10,17).

- "Foi num só Espírito que todos nós fomos baptizados, a fim de formarmos um só corpo"
(1Cor 12,13).

- "Vós sois corpo de Cristo e seus membros, cada um na parte que lhe toca" (1Cor 12,27).

- "Pois assim como o corpo é um só e tem muitos membros, e todos os membros do


corpo, embora sejam muitos, constituem um só corpo, assim também Cristo" (1Cor
12,12).

À luz de todos estes textos aparece a unidade profunda entre as três formas
de existência do único corpo de Cristo: na cruz, na Eucaristia e na Igreja. Na cruz,
rompe as divisões e supera as distâncias dos homens em relação a Deus e atrai-os todos
para si, identificando-se com o destino de todos e integrando-os em si mesmo para
oferecer-se diante de Deus e ser justificados por Deus na ressurreição. Esse corpo, assim
glorificado, justificado em si mesmo e justificador de muitos é o mesmo que se entrega
na Eucaristia, 'para vida do mundo' (Jo 6,51). E entregue, constitui os homens numa
unidade de vida pessoal, num corpo.

Nesta perspectiva aparece o carácter constituinte dos dois sacramentos


fundantes da Igreja: aqueles que nos integram no destino de Cristo. O Baptismo é
o símbolo, que cria e expressa a nossa inserção na morte e ressurreição de Cristo, para
participar delas. O destino de Cristo é o destino do homem baptizado. Rom 6 é a
exposição explícita da nossa incorporação ao destino de Cristo, como fundadora de uma
nova vida pessoal e de umas novas exigências morais. Quem foi baptizado tem diante de
si o destino de Cristo e a sua realização moral como pauta de existência. O Baptismo
confere o Espírito Santo, que torna possível ao baptizado ter os mesmos sentimentos que
Cristo Jesus (Fil 2,6-11).

A Eucaristia integra-nos no corpo pessoal de Cristo e constitui o Seu corpo


social. Os que vivem da mesma vida formam a mesma família. E o próprio Cristo vive

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em Si mesmo e naqueles que se unem a Ele participando do Seu corpo. A unidade entre
Eucaristia e Igreja é manifesta, porque é o mesmo Cristo que actua nas duas. Estes dois
sacramentos constituem, um a nível individual e o outro a nível social, a fundação da
Igreja. Há Igreja ali onde os homens se fundam em Cristo e se expressam em Cristo.
Cristo existe assim, em si mesmo e nos outros, que são o Seu corpo. Ele e eles formam
uma única realidade: a Igreja.

Toda a anterior série de textos tem um duplo horizonte de sentido.:

1 - O primeiro tende a mostrar a diversidade, ao mesmo tempo que a


solidariedade, dos membros que constituem a Igreja. Todos eles estão na relação em que
estão os membros do corpo entre si. Nenhum trabalha para si mesmo e nenhum escolheu
a sua função. Todos são importantes, mesmo quando a aparência faz sobressair uns mais
que outros. Assim, na Igreja há diversidade de ministérios, fundados pelo único Senhor,
para dar vida à única Igreja. A lei da igual dignidade, da única função suprema do corpo
como unidade superior, da solidariedade entre todos, de forma que se um sofre todos
sofrem e se um se alegra todos se alegram: eis aí os elementos essenciais que a imagem
do corpo oferece a Paulo. Como o corpo assim Cristo.

2- O segundo horizonte de sentido é soteriológico e cristológico. Antes de


falar da Igreja fala-se de Cristo, do prolongamento, presença e actuação de Cristo no
mundo para salvar os homens e introduzi-los no âmbito da realidade em que vive já o
Seu corpo. Para entender esta perspectiva há que recuperar a noção semítica de corpo.
Frente ao dualismo grego, o corpo não é a outra parte do homem mas o homem na
manifestação, visibilização e comunicação. O corpo é a pessoa na medida em que se
torna presente no mundo. O corpo é o lugar necessário da existência humana, de Sua
acção e de Sua presença no mundo.

O corpo de Cristo é Cristo no corpo. O corpo da Igreja não é a soma dos


membros mas o princípio unificador de todos. Isto significa que a Igreja é algo onde
Cristo se torna presente, actua e manifesta. É aquela alteridade pessoal, mediante a qual
Ele em si mesmo chega aos outros, integra-os e conforma-os a si mesmo na medida em
que se lhes dá a conhecer, os unifica pelo baptismo e os conforma pela Eucaristia. O
corpo de Cristo entregue é assim o princípio de uma nova criação. A Igreja é a nova

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criação, resultante da morte e da ressurreição de Cristo, que se converte em princípio de


vida pessoal e de exigência moral pelo Baptismo e Eucaristia. Da vida de Cristo surge
uma nova possibilidade de vida, que incita a uma nova maneira de viver.

"Em todos estes temas, Paulo passa continuamente da pessoa de Cristo para o seu corpo;
o corpo representa a pessoa; o corpo não é mais que a pessoa manifestada e tornada
visível, e acessível, e actuante. O corpo ressuscitado manifestou Cristo na Sua glória e
Sua actividade espiritual; a ressurreição devolveu ao corpo o espírito santificante, que
actua sobre os nossos corpos para os santificar e também sobre as nossas pessoas para as
unir a Ele.
A união dos nossos corpos ao corpo de Cristo está concebida de uma maneira realista;
nós somos os membros do corpo de Cristo, ligados a Ele com o realismo, com que se
unem os membros ao corpo. Paulo dirá que um cristão, que se une fisicamente a uma
prostituta, arranca um membro a Cristo (1Cor 6,15)"31.

1.3. Corpo de Cristo

Aparece nas cartas do cativeiro numa nova perspectiva: a relação cabeça-corpo


à luz da qual Cristo é cabeça da Igreja e enquanto tal é o salvador do corpo e ela é a
esposa a quem ama e regata com o Seu corpo. Nestas cartas aparecem com especial relevo
quatro afirmações: 1 somos corpo de Cristo, 2a exigência de unidade, 3a interrelação dos
membros e 4o crescimento para Cristo. Ressaltamos os textos em que Cristo aparece
como cabeça:

- "Ele é também a cabeça do corpo, Igreja" (Col 1,18).

- "E vós estais repletos d'Ele que é a cabeça de todo o principado e potestade" (Col
2,10).

31 L. CERFAUX, o.c., 320.

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- "Não se mantendo unido com a cabeça, pela qual todo o corpo, alimentado e unido
pelas junturas e articulações, se desenvolve com o crescimento dado por Deus" (Col
2,19).

- "Sob os seus pés sujeitou todas as coisas e constituiu-O cabeça de toda a Igreja que é
o Seu corpo e o complemento d'Aquele que preenche tudo em todos" (Ef 1,22-23).

- "Praticando a verdade, cresceremos em todas as coisas pela caridade n'Aquele que é


a cabeça, o Cristo. É por Ele que o corpo inteiro, coordenado e unido, por meio de todas
as junturas, opera o seu crescimento orgânico segundo a actividade de cada uma das
partes, a fim de se edificar na caridade" (Ef 4,15-16).

- "O marido é a cabeça da mulher, como Cristo é cabeça da Igreja, Seu corpo, do qual
Ele é o salvador" (Ef 5,23).

Estes textos têm em comum com os anteriores a ideia de que o corpo de Cristo
é Cristo em Seu corpo e que o corpo não é uma parte do homem mas o homem no seu
corpo. Por isso, também a ideia de presença, manifestação e actuação. O corpo é, assim,
o meio e o lugar da integração salvífica dos outros em si ou da extensão de si mesmo até
aos outros. Ao mesmo tempo está a ideia de frontalidade, de diversidade e de não
identificação. A Igreja já não é separável de Cristo mas não é sem mais identificável com
Ele. A relação cabeça corpo estabelece essa relação de diferença, de dependência e
coordenação entre Cristo e a Igreja.

Existe, portanto, uma correlação entre Cristo e a Igreja: Ele é superior a ela e
ela é inferior a Ele. Essa relação não é de domínio mas de vivificação. Aqui aparece
uma outra metáfora: esposo-esposa e Cristo-Igreja (Ef. 5,22-33). Cristo ama, alimenta e
abriga a Igreja como a Sua esposa: "... como Cristo amou a Igreja, e por ela se
entregou, para a santificar, purificando-a, no Baptismo da água pela palavra da vida,
para a apresentar a si mesmo como Igreja gloriosa sem mancha nem ruga, nem qualquer
coisa semelhante, mas santa e imaculada.... ninguém jamais aborreceu a Sua própria
carne; pelo contrário, nutre-a e cuida dela como também Cristo o faz à Sua Igreja, pois
somos membros do Seu corpo".

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H. Schlier, comenta numa das suas obras estes textos dizendo:

" Como cabeça do Corpo, Cristo é também Aquele de quem e para quem o corpo cresce
(Ef 4,15). Cristo é o fundamento permanente e a permanente meta da Igreja. Ela enquanto
seu corpo vem sempre d'Ele e caminha para Ele. Ele é a origem e o fim de todo o seu
movimento interior. Ele é o seu princípio (Col 1,18). Só que, não se deve com isto pensar
nada de abstracto, mas ao Senhor Jesus Cristo crucificado e glorificado. Há que pensar
ainda que este princípio, como por outro lado, todo o princípio, precisamente por ser o
desde e para onde, representa o poder interno que a move. Mas se Cristo é a cabeça do
corpo, expressa-se ainda outro aspecto: que o corpo na terra torna acessível a cabeça no
céu e, portanto, nesse sentido a cabeça deixa-se encontrar pelos homens no corpo. Todos
nós chegamos, diz Paulo ao homem perfeito que é Cristo não de outra forma, que
deixando-nos integrar e edificar no Seu corpo, a Igreja, até Ele. Mas com isto torna-se
patente, finalmente, que a cabeça estabeleceu em Seu corpo também um caminho para si
mesma".

Se os textos vistos anteriormente se concentram na Igreja local e na interrelação


dos seus membros, como num corpo, fazendo compreender todos esses membros unidos
com Cristo e solidários entre si como um corpo; nos textos desta segunda parte o seu
olhar centra-se na Igreja universal: ela é chamada corpo de Cristo. Ela é, assim, o lugar
a partir do qual se exerce o poder que Cristo adquiriu com a Sua ressurreição; é dentro
da Igreja que todos participam da plenitude de Jesus chegando a ser homens perfeitos à
medida da plenitude de Cristo. Paulo elaborou a sua teoria de Cristo cabeça em disputa
com especulações gnósticas de origem judaica, que viam em Cristo a cabeça do
macrocosmos mas não da Igreja. Enfrentando-se com eles afirma que Cristo é a origem
de tudo e cabeça de tudo (Col 1,16; 2,10; 1,17.24; 2,19).

2. A Igreja corpo de Cristo na história da Igreja

2.1. A teologia patrística

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Prolonga as afirmações paulinas oferecendo-lhes um fundamento metafísico.


Cristo forma um corpo, porque na encarnação assumiu toda a natureza humana na
unidade de pessoa. Ele assumiu consequentemente a natureza individual: a judaica e
galileia tomada de Maria; mas, dada a unidade e solidariedade com toda a natureza
humana, de alguma forma assumiu todos os homens. O assumir a natureza humana é
equivalente a assumir o homem. Esta ideia chega até ao Concílio Vaticano II que
escreve: "Já que n'Ele, a natureza humana foi assumida, e não destruída, por isso mesmo
também em nós foi ela elevada a sublime dignidade. Porque, pela Sua encarnação, Ele,
o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada homem" (GS 22,2).

A elevação de Cristo na cruz supõe a atracção de todos os homens para si, pela
solidariedade com eles no pecado e na morte. A ressurreição incorpora-os à Sua vida.
Esta nova ordem de existência é acessível aos homens mediante o Baptismo e a
Eucaristia. Neste sentido os Padres prolongam de forma especial as ideias do Evangelho
de João. Eucaristia e Igreja são realidades correlativas: nem há corpo de Cristo sem
corpo de Cristo que é a Igreja; nem se funda a Igreja sem o corpo de Jesus que lhe dá
fundamento. A Igreja é o corpo de Cristo, porque come o corpo de Cristo.

Santo Agostinho é o máximo expoente latino do que se pode chamar o realismo


soteriológico dos gregos (a redenção acontece fundamentalmente na encarnação) e do
realismo eucarístico prolongado no realismo eclesial. A sua teoria do Cristo total: do
Cristo completo, isto é, Cristo e a Igreja, enche todas as suas páginas.

Da compreensão da Eucaristia deriva uma compreensão da caridade eclesial: os


que comem o corpo entregue por eles, têm que entregar os seus corpos, os seus bens
pelos outros. A acção moral tem a sua raiz na realidade sacramental eucarística. O
indicativo da existência implica o imperativo da acção. Os que estão unidos pela
Eucaristia com a cabeça, têm que estar unidos pela caridade com os outros membros do
corpo.

2.2. A teologia medieval.

É necessário sublinhar que nem o Novo Testamento nem a patrística chamam


corpo místico de Cristo à Igreja. Originariamente este adjectivo aplica-se à Eucaristia.

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Místico neste sentido deriva de mysterion sacramentum. O corpo místico de Cristo é o


corpo entregue no sacramento. E era sinónimo, portanto, de corpo sacramental.

Nas discussões com Berengário a propósito da Eucaristia sublinha-se o valor


simbólico do sacramento, até pôr em dúvida a sua presença e realidade verdadeira. Para
evitar que se negasse a verdadeira realidade do corpo eucarístico, chama-se-lhe corpus
verum; e à Igreja corpus mysticum. H. de Lubac na sua obra clássica Corpus mysticum.
L'Eucharistie et l'Église eu Moyen Âge, Paris 1940, mostra como os teólogos Pascasio
Radberto, Rabano Mauro, Gotescolco de Orbais e os teólogos seguintes do século
XII-XIII fizeram esta transposição.

S. Tomás deixa encoberta a afirmação da Igreja como corpo místico para


centrar-se na análise de Cristo como cabeça e colocar o acento na dependência da graça
cristã, da graça de Cristo cabeça. Em vez de corpus mysticum utiliza a expressão persona
mystica: "Caput et membra sunt quasi una persona mystica".

A perspectiva central para ele é a graça, a vida divina que como princípio
comum une a Cristo e aos cristãos. O que é a cabeça no corpo humano é Cristo no corpo
místico. Esta tem em relação ao corpo: ordem, perfeição, eficácia. Aplicado a Cristo
quer dizer: "Estas três coisas correspondem a Cristo espiritualmente. Primeiro segundo
a proximidade de Deus, a sua graça é mais elevada e anterior, mesmo quando não na
ordem do tempo, porque todos os outros receberam a graça por relação à sua (Rom 8,29).
Em segundo lugar tem a perfeição porque tem a plenitude (Jo 1,14). E em terceiro lugar
tem a virtude de infundir a graça em todos os membros da Igreja (Jo 1,16).

Junto à concentração na Gratia Capitis aparece em S. Tomás a noção


corporativa, que será dominante na Idade Média. Para ele o corpo é ordenado, de alguma
maneira à multidão, e chega a contrapor o Corpus Christi, que abarca toda a criação,
anjos, e homens, ao Corpus diaboli, como corporação de todos os que obedecem a
Satanás. Depois passa a falar-se de Corpus ecclesiae, como ordem jurídica que no fundo
significa a cristandade ou o corpo social, com tudo o que de realidade social, jurídica e
política ele arrasta. Isto teve como primeira consequência, a separação da raiz
sacramental Eucarística e a transposição para a ordem jurídica. Nesta corporação

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passaram a primeiro plano as realidades de instituição e autoridade, em detrimento da


graça, da caridade e da dimensão sacramental.

2.3. Do protestantismo ao Vaticano I.

Perante a acentuação dos elementos exteriores e jurídicos da Idade Média, os


Protestantes tentam retomar a definição da Igreja como corpo místico, colocando sob
estas palavras os elementos espirituais e invisíveis, e orientando para a ideia da
invisibilidade da Igreja.

A orientação espiritualista da noção de corpo místico dos Protestantes, com


menosprezo das realidades visíveis e a recusa da autoridade, provocou na contra-
reforma católica um movimento contrário: a acentuação da visibilidade, da
exterioridade e da autoridade. Esta polémica está bem patente na definição clássica de
Belarmino, quando diz que a Igreja é uma realidade visível e tão palpável como a
república de Veneza e o reino de França. Esta ideia permanece ainda nos Padres do
Concílio Vaticano I, quando perante a proposta do conceito 'Corpo de Cristo'
suspeitam de influência protestante e preferem o termo 'sociedade perfeita.
2.4. O nosso século.

Nos anos que medeiam as duas guerras mundiais voltou a recuperar-se o


conceito 'corpo de Cristo', como forma de devolver à Igreja a sua dimensão teológica,
sobrenatural, cristológica e diminuir a característica jurídica, social e autoritária.
Perante uma eclesiologia vista como apologética em relação ao protestantismo e
racionalista com pretensões políticas pretende-se recuperar o outro lado da Igreja.
Dada a pobreza da Igreja visível reclama-se a glória e o poder da invisível. Esta tentativa
trazia o perigo de separar as duas realidade, de deixar cada um deles impossibilitado da
comunicação com o outro e finalmente fazer impossível a definição completa da Igreja.
Por esta razão ao mesmo tempo que se dá um renascimento deste conceito surgem fortes
críticas contra ele. No meio desta tensão surge a Encíclica Mystici Corporis Christi
(1943), que tenta esclarecer o valor da noção e purificá-la dos seus perigos.

3. O Corpo de Cristo no magistério da Igreja

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3.1. A Encíclica de Pio XII: 'Mystici Corporis'

Segundo a Encíclica propõem-se dois objectivos: 1 - seguindo Leão XIII, Pio


XII quer mostrar a identidade entre Igreja que como corpo social, Cristo fundou sobre

Pedro e Igreja que como corpo místico uniu a Ele na cruz. 2 - Que o Cristo glorioso e a
Igreja ou Cristo militante na terra formam em certo modo uma pessoa.

A Encíclica tem Três partes: a primeira explica o que significa afirmar que a
Igreja é o corpo místico de Cristo; a segunda expõe a união dos fieis com Cristo e a
terceira é uma exortação pastoral. É o seguinte o esquema da Encíclica:

A Igreja corpo
uno, indiviso, visível
orgânico e hierárquico
dotado de meios vivificadores de santificação, sacramentos
que consta de determinados membros sem que se excluam os pecadores
A Igreja corpo de Cristo
Cristo fundador
a) Pela pregação do Evangelho
b) Pelo sofrimento da cruz
c) Pela promulgação da Igreja em Pentecostes

Cristo Cabeça
a) Por razão de Sua excelência
b) Por razão de Seu governo
de maneira invisível e extraordinária
de maneira visível e ordinária através do Romano Pontífice e dos
Bispos em cada uma das Igrejas.
c) Por razão da necessidade mútua
d) por razão da conformidade
e) Por razão plenitude
f) Por razão do influxo: iluminando e santificando

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Cristo sustentador
Pela missão jurídica e comunicação do Espírito Santo.
O Espírito Santo é a alma do Corpo místico de Cristo Salvador.
A Igreja Corpo de Cristo 'místico'
O Corpo místico e o Corpo físico
O Corpo místico e o Corpo meramente moral
A Igreja do direito e a Igreja da caridade
Um epílogo situando a Virgem Maria dentro da Igreja

O ponto central da Encíclica radica na afirmação da dimensão teândrica


ou humano-divina da Igreja em analogia com Cristo. A parte visível é compreendida
como instrumento da parte invisível em analogia com o que o corpo é em relação à alma.
Prolongando as intuições de S. Tomás sobre a humanidade de Cristo como 'instrumento'
nas mãos de Deus em ordem à redenção humana, a Encíclica compreende a Igreja
como plenitude e complemento de Cristo.
A Encíclica entende por corpo o elemento material, social e o carácter histórico
da Igreja. A determinação de místico, em oposição a físico e a corpo moral põe em relevo
que a Igreja tem um conteúdo sobrenatural, um princípio divino que a anima. Esta é a
dimensão invisível. Uma das afirmações fundamentais da Encíclica é que esse
elemento diferenciante da Igreja, em relação aos outros, é a presença e acção do
Espírito Santo nela. O genitivo 'de Cristo' põe em relevo a origem, a dependência, a
sustentação, a salvação que a Igreja recebe de Cristo, isto é, a sua total dependência d'Ele.

Um dos aspectos mais acentuados é a identificação explícita da Igreja de


Cristo com a Igreja de Roma e a determinação dos elementos que são necessários para
ser membro dela: unidade de fé, participação nos mesmos sacramentos, obediência ao
Romano Pontífice e aos Bispos.

3.2. O Concílio Vaticano II: Lumen Gentium nº 7

O Concílio Vaticano II dedicou o nº 7 a esta questão. Está situado no capítulo


primeiro, que analisa a dimensão teológica da Igreja, enquanto que a dimensão histórica
e social aparecem no capítulo segundo. O primeiro tem como título 'O mistério da
Igreja. O segundo 'O povo de Deus'.

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O nº 7 tem várias partes e na estrutura interna faz-se eco da dualidade de sentidos


que tem o termo 'corpo' nas cartas de S. Paulo. Em Romanos e Corintios por um lado, e
em Efésios e Colocenses por outro. O primeiro refere-se à realidade da Igreja, onde os
membros funcionam, constituídos pelos sacramentos, como funcionam os membros de
um corpo, com diversidade de funções e solidariedade entre eles. O segundo refere-se à
relação: Cabeça - Corpo e à interacção entre a Cabeça e o Corpo. Veja-se a estrutura
interna dos oito parágrafos que formam o nº 7:

1. Cristo, pela Sua morte e ressurreição, redimiu o homem e constituiu uma nova
humanidade. Comunicando o Seu Espírito aos homens fez de todos 'como que o Seu
Corpo' Aqui reassume-se a perspectiva dos Padres gregos sobre a nova humanidade.
O texto sublinha o carácter simbólico da afirmação ao dizer que a Igreja é 'como
que o Seu corpo'; e não coloca o adjectivo 'místico' mas o advérbio 'misticamente'
que na tradução portuguesa aparece como 'misteriosamente'. O texto pretende
relativizar a afirmação para a orientar ao essencial: os cristãos pelo Espírito recebem
uma nova existência em Cristo. São Cristo. É a perspectiva paulina de Cristo vivendo
em nós.

2. A vida de Cristo difunde-se no Seu corpo pelos sacramentos. O Baptismo e a


Eucaristia são constituintes de Igreja. Já anteriormente se tinha estabelecido a
relação entre Eucaristia e Igreja no nº 3: "Sempre que no altar se celebra o sacrifício
da cruz, na qual "Cristo nossa Páscoa, foi imolado" (1Cor 5,7), realiza-se também a
obra da nossa redenção. Pelo sacramento do pão eucarístico, ao mesmo tempo é
representada e se realiza a unidade dos fieis, que constituem um só corpo em Cristo
(cf. 1Cor 10,17)".

3. No corpo há diversidade de funções correspondentes à diversidade de membros.


Todos eles têm a sua origem no Espírito. Entre todas as funções tem o primeiro lugar
a do Apóstolo, à qual estão submetidos os carismáticos. O próprio Espírito estabelece
uma relação entre todos os membros de modo que o que afecta a um afecta a todos.

4. Cristo é a Cabeça deste corpo. Ele é o princípio de tudo e tem a primazia em tudo:
na ordem da criação e na ordem da redenção, no cosmos e na Igreja.

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5. Todos os membros têm que chegar a conformar-se com Cristo, por uma espécie de
nascimento de Cristo neles. Há uma conformação com a Cabeça; há uma
configuração com os seus mistérios; há uma esperança de consumação com Ele.

6. No corpo dá-se um crescimento que se deve à influência de Cristo, por suscitar os


ministérios e pela acção caritativa. Há um crescimento para Cristo; para a plena
semelhança com Ele e participação na Sua plenitude.

7. O princípio de renovação permanente é o Espírito Santo. D'Ele diz-se que é o


mesmo em todos os membros e a todos vivifica, como acontece com a alma, que
anima o corpo. No entanto, não diz que o Espírito é a alma da Igreja como o fazia a
"Mystici Corporis".

8. Essa relação de amor entre Cristo e a Igreja explicita-se através de uma nova imagem:
A Igreja é a Sua esposa. A relação que Cristo tem com a Igreja funda a relação dos
esposos. O dogma funda, por sua vez, a moral. Cristo ama a Igreja e enche-a da Sua
plenitude para que ela chegue à plenitude de Deus.

A Igreja é o Corpo de Cristo vencedor da morte. Aqueles que estão unidos,


pelo Baptismo, ao corpo morto e ressuscitado de Jesus Cristo, e presente no corpo
eucarístico, formam um corpo de irmãos. Neste sentido pode definir-se a Igreja como
povo que vive do corpo de Cristo e na celebração da Eucaristia se converte em corpo de
Cristo, diz Ratzinger. “A participação no corpo e sangue de Cristo faz com que passemos
a ser aquilo que recebemos” (LG 26). A fraternidade fortalece-se ao tomar parte na mesa
do Senhor. Desde S. Paulo, que a relação entre o corpo eucarístico de Cristo e entre a
Igreja corpo solidário do Senhor, é estreita.

A Igreja é o corpo de Cristo realizado sacramentalmente pela Eucaristia.


Na invocação que se faz ao Pai depois da consagração, para que envie o Seu Espírito
sobre os que participam do corpo de Cristo, pede-se que os comungantes sejam
congregados na unidade de modo que sejam um só corpo. O fruto da Eucaristia é,
pois, a reunião de todos os santos, isto é, de todos os baptizados, reunião actual que é a
Igreja presente e reunião futura da qual a presente é antecipação. Para que tal aconteça é

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necessário que o Espírito santo seja enviado sobre a oblação eucarística. Desta forma, a
Eucaristia é o meio pelo qual o Espírito Santo actua na Igreja e a reúne, isto é, a faz ser
aquilo que é.

Em virtude desta estreita vinculação entre Eucaristia e Igreja, compreendemos


porquê toda a legítima comunidade eucarística é uma manifestação e realização da única
Igreja de Jesus Cristo. É por aqui que segue a linha teológica do Vaticano II. Ali onde,
em comunhão eclesial, se anuncia a Palavra de Deus e se celebra a Ceia do Senhor,
acontece a Igreja, a eclesiologia eucarística, a eclesiologia de comunhão, a eclesiologia
do corpo “místico” e a eclesiologia da comunidade local.

Isto significa que, num lugar determinado, entre pessoas cuja fragilidade e
esperança se conhece de perto, acontece o mistério impressionante da Igreja: “Onde
estão dois ou três reunidos em meu nome, ali estou Eu no meio deles” (Mt 18,20).

4. A teologia pós-conciliar

1. A teologia pós-conciliar deixou em silêncio esta definição bíblica, tradicional e


conciliar da Igreja. Foi o momento em que a Igreja reconheceu as suas tarefas no
mundo, o seu próprio lugar na história, as responsabilidades no meio de outros grupos
humanos e de outros projectos de transformação da sociedade. Por isso, centrou-se
na categoria de 'Povo de Deus', que acentua mais o elemento histórico, a liberdade
pessoal dos seus componentes, a igualdade fundamental e a responsabilidade que
desde a perspectiva de Deus tem que exercer para com os outros homens.

2. Frente a uma secularização da Igreja, a categoria 'Corpo de Cristo' põe em relevo a


nova forma de existência própria dos que foram baptizados em Cristo, recebem o Seu
corpo na Eucaristia e são alentados pelo Seu Espírito. Há uma comunhão de
existência entre Cristo, como homem plenificado por Deus, e os cristãos, até ao ponto
de S. Tomás poder falar de 'pessoa mística'. O adjectivo, no seu uso normal significa
o que transcende o físico e não é perceptível aos sentidos, o interior, o espiritual, o
invisível, a outra ordem da realidade. Originariamente há que fazê-lo derivar de
'mysterion'.

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A Igreja é o corpo místico de Cristo porque é a comunidade que se alimenta da


Eucaristia, mistério ou sacramento por antonomásia. Os que comemos o corpo de
Cristo somos esse corpo. A existência dos cristãos está escondida em Cristo. A nossa
vida tem outras raízes: está escondida com Cristo em Deus (Col 3,3). A união com a
Cabeça é o princípio da nova forma de vida. A ruptura com Ele é o fim da Igreja. A
medida da plenitude da Igreja não é concedida pela sua eficácia ou explendor externo
mas pela intensidade da fé, da esperança e da caridade.

3. A Igreja é a visibilidade de uma realidade invisível: a exterioridade da vida, que


surge da Eucaristia. Por isso, é sinal externo que remete a uma vida interna. E uma
vida interna que faz surgir uma corporeidade alimentada e sustentada por ela. Por
isso, nem é tão visível como a república de Veneza nem é uma pura comunidade
platónica. A categoria "Corpo místico" no fundo implica a categoria de
sacramentalidade. A Igreja nasce dos sacramentos e é sacramento. De facto o
Vaticano II reassumiu sob esta categoria, perspectivas que anteriormente apareciam
sob a de "Corpo místico". Isso explica que, na Lumen Gentium, esta passe a segundo
plano.

Passados os anos pós-conciliares, durante os quais uma certa euforia deu


primazia à categoria 'Povo de Deus', legítima pela sua raiz bíblica, mas propensa a
certos popularismos intra-eclesiais e a confundir história geral de um povo com a
história de Deus para todos os povos, a categoria de Igreja 'Corpo de Cristo' recupera
o seu lugar próprio, devolvendo à consciência eclesiológica o peso de relação com
Cristo: origem, fonte da vida, meta do dinamismo da Igreja. Agora estas duas
categorias complementam-se uma à outra.

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119

A IGREJA TEMPLO DO ESPÍRITO SANTO

1. Espírito e Igreja na tradição da fé

1.1. O Símbolo dos Apóstolos

A Igreja aparece no 'símbolo' ao princípio e ao final. Ela é o sujeito que entrega


a sua fé formulada em palavras, àqueles que, depois de um acto de conversão querem
entregar-se ao Deus revelado por Cristo e dado pelo Espírito Santo. Ela é quem nos
entrega a fé dos apóstolos por meio dessas palavras. Transmite-nos a fé e nós recebemo-
la dela. Com a palavra dá-nos o sacramento e com as fórmulas para crer as realidades
críveis. É por isso, que a Igreja é concebida como mãe: Sancta Madre Ecclesia. Do seu
seio sacramental e confessante renascemos para uma vida nova.

Ela é a que crê e que torna possível que nós creiamos. Cremos a partir dela e
com ela. A fé, o Baptismo e a Eucaristia são realidades constitutivamente eclesiais e
comunitárias. Não se crê sozinho nem a si mesmo; não administra cada um a si mesmo
o Baptismo; não se celebra só e só consigo a Eucaristia; não se perdoa cada um a si
mesmo os seus pecados.

A Igreja aparece também no símbolo de fé ao final, como uma consequência da


história da salvação que o Pai iniciou, que o Filho realizou, que o Espírito Santo levou
às suas consequências. A Igreja aparece assim, não como um artículo mais da fé, nem
em mera sequência depois do Espírito Santo, mas exactamente como uma
consequência, ou efeito do Espírito Santo. Por isso, no Credo, só professamos a fé nas
Pessoas divinas, em si mesmas e nos efeitos da Sua acção32. A Igreja é o lugar onde

32 A este propósito pode ver-se o que diz Juan Estrada, na sua obra Del misterio de la Iglesia al Pueblo de
Dios: "Creemos en Dios y sólo en Dios, de El nos fiamos incondicionalmente y en El ponemos nuestra
esperanza.
Esto no lo podemos decir de la Iglesia. Aunque haya en ella una dimensión divina (...) la Iglesia misma no
es divina. Ella es congregación de los fieles, humanidad elegida por Dios, grupo humano que proviene de
la vida y obra de Jesús de Nazaret y que se sabe dependiente de su Espíritu. Pero la Iglesia es humana, no
es objeto de nuestra fe como lo es Dios. Creer sólo podemos creer en Dios, y sólo de una forma derivada,
no incondicional y analógica, en el hombre y en la Iglesia. Por eso, el sentido del misterio eclesial, tal y
como lo entendía la Iglesia antigua, es "creo la Iglesia", es decir, creo que la Iglesia es obra de Dios, que
es algo querido y desarrollado por Dios, creo que en ella se hace presente el Espíritu y se conserva la
tradición y la herencia histórica de Dios con los hombres (...)

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120

desemboca a Trindade económica; isto é, o lugar concreto em que a revelação e a doação


de Deus à humanidade se realiza.

Um dos primeiros expoentes do actual Credo dos Apóstolos é o símbolo


baptismal, que nos transmite Hipólito de Roma na sua "Tradição Apostólica". Diz o P.
Nautin em sua obra:

"A menção do Espírito Santo no credo está acompanhada da menção da Igreja,


como lugar onde Ele reside; e da menção da ressurreição da carne, como seu efeito
último"33. Cremos, portanto, no Espírito Santo que habita e actua na Igreja, mediante os
sacramentos do Baptismo e da 'comunhão dos santos' (Eucaristia) e cujo efeito último é
recriar o homem mediante a ressurreição e conceder a todos uma nova existência
comunitária, revivificados todos em santidade.: 'comunhão dos santos'. Os sacramentos
e os seus frutos, são assim, situados como frutos da acção do Espírito Santo na Igreja.

1.2. O testemunho de S. Irineu.

A Igreja, é para a tradição o âmbito onde Deus realiza a Sua obra pelo Espírito
Santo. Obra de revelação, santificação, perdão dos pecados, unidade dos dispersos,
fortalecimento dos débeis, esperança dos que, sob a carne e o pecado temem a morte,
comunicação da Sua vida divina e dos seus dons a cada homem. Santo Irineu é o maior
expoente desta conecção profunda existente entre fé e Igreja, entre Espírito Santo e
comunidade eclesial. Segundo ele a acção de Deus na história da salvação continua viva
e vivificadora na Igreja.

À Igreja foi entregue o dom dessa vida para que o guarde. E, na verdade ela
pode guardá-lo, renová-lo e rejuvenescê-lo porque lhe foi dado também o Espírito Santo
como Aquele que anima o seu corpo. Esse Espírito derramado em plenitude vivifica, por
sua vez, a Igreja como o licor precioso que rejuvenesce e embeleza o vaso que o contém.

Creemos también "desde la Iglesia", es decir, somos conscientes de que la Iglesia nos transmite y nos pone
en contacto con la memoria histórica de Jesus. (...) Creemos "desde la Iglesia", o como también se dice
en algunas versiones del símbolo de la fe, "creemos por la Iglesia", la cual nos transmite y nos pone en
contacto con nuestras raíces cristianas, nos entrega su tradición, que arranca de la Escritura como el
lugar en el que se conserva su identidad histórica". Em J. ESTRADA, o.c., 27-28.
33 P. NAUTIN, Je crois à l'Esprit Saint dans la Saint Église pour la Résurrection de la chair, Paris, 1947,
67.

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Quem prefere cavar o seu próprio poço para beber a água e abandona as fontes vivas que
o Espírito faz fluir na Igreja, acaba por se afastar da vida, porque a sua sisterna não faz
brotar a água. Quem foge da Igreja recusa o Espírito Santo.

O Espírito Santo depositou na Igreja a fé, os sacramentos, os apóstolos, a


verdade, a vida. A Igreja é, por isso, mãe dos crentes porque por ela lhes vem a vida e a
comunicação do Espírito Santo:

"À Igreja foi confiado este dom de Deus, tal como foi entregue ao corpo o espírito
vivificador, com o fim de que todos os membros que o percebem sejam vivificados. E
nela foi depositada a comunicação do Espírito de Cristo, isto é, o Espírito Santo, garantia
da incorrupção, confirmação da nossa fé e escala da nossa ascensão até Deus. Pois, diz a
Escritura (1Cor 12,28): 'Na Igreja colocou Deus Apóstolos, profetas e doutores' e todo o
resto da acção do Espírito Santo, do qual não participam todos os que não buscam a Igreja
mas se privam a si mesmos da vida devido às suas falsas doutrinas e à sua depravada
forma de vida.
Porque onde está a Igreja aí está o Espírito de Deus; e onde está o Espírito de
Deus está a Igreja e toda a graça: porque o Espírito é a verdade. Por isso, os que não
tomam parte n'Ele, nem se alimentam dos peitos da Igreja para alcançar a vida não
recebem a limpíssima fonte que mana do corpo de Cristo, mas cavam cisternas vazias e
bebem água enquinada e podrida, evitando a fé da Igreja para não serem desmascarados,
recusando o Espírito Santo para não ser ensinados" (Santo Irineu).

Esta relação entre Espírito e Igreja foi explicitada numa frase da tradição: "A
Igreja é Templo do Espírito Santo". Com ela pretende dizer-se precisamente isso: que
a Igreja é o lugar da presença, revelação e acção do Espírito Santo. Não um templo
material, este é já o lugar da presença de Deus, mas cada crente, e o corpo dos crentes
em Cristo. Desta forma leva-se ao limite a lógica profunda da aproximação de Deus em
relação à Sua criação.

No livro do Génesis fala-se do 'Espírito de Jahvé que pairava sobre as águas'


(Gn 1,2); esse mesmo Espírito impulsionará os patriarcas, e inspirará e se revelará aos
profetas a partir da sua própria consciência; finalmente o Espírito será dado em plenitude

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em Jesus e fará surgir uma humanidade pessoal, na qual habita a plenitude da divindade
(Col 1,19); fazendo Sua essa humanidade, toma a nossa carne e habita entre os homens
(Jo 1,14).

Finalmente esse mesmo Espírito da criação e da encarnação dá-se aos Apóstolos


e a cada um dos membros da Igreja, chamando-os à vida, criando comunidade, inspirando
a missão. É a fase e forma suprema de comunicação, já que ela pressupõe o dom do
Espírito Santo ao Filho e d'Ele a cada um de nós na Igreja. A humanidade de Jesus é o
novo templo (Jo 1,21). Essa humanidade ou corpo morto, e ressuscitado de Jesus,
prolonga-se no corpo universal ou Igreja. Por isso, ela prolonga essa condição sagrada
da humanidade de Jesus: ser novo templo, tal como novo corpo e novo povo de Deus. O
Templo dos tempos messiânicos, o templo do Messias, é a Igreja. E, tal como se tinha
transferido para o corpo de Jesus tudo o que o Antigo Testamento dizia do templo, assim
se transferirá para a comunidade messiânica. Tudo o que dizia o Antigo Testamento do
templo dirá o Novo Testamento da Igreja.

2. A Igreja: edificação, casa, templo, morada de Deus no Espírito

S. Paulo faz uma dupla aplicação da ideia de templo: ao indivíduo e à


comunidade, sem que possamos dizer qual é a primeira e qual deriva da outra. S. Paulo
vê o indivíduo na comunidade e a comunidade constituída por membros. A Igreja uniu
sempre em si o colectivo e o pessoal; e nunca existiu nela a massa sem a pessoa nem a
pessoa em solidão. Ela existe como comunidade que é precisamente a superação da
massa por um lado e do indivíduo por outro; e está constituída por pessoas, que são
sempre sujeitos de liberdade e a exercitam em referência e solidariedade com o próximo.
Neste sentido se entende a frase clássica: "toda a alma é a Igreja". Ela refere a cada
membro da Igreja o que é (ontologia) e o que tem que chegar a ser a Igreja (moral). E faz
surgir a Igreja da apropriação pessoal desse ser e dessa missão, concedidos por Deus
mediante Cristo no Espírito.

2.1. O corpo do cristão templo do Espírito Santo

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"Não sabeis que sois templo de Deus e que o Espírito Santo habita em vós? Se
alguém destrói o templo de Deus, Deus o destruirá; porque o templo de Deus é sagrado
e vós sois esse templo" (1Cor 3,16).

Este versículo recebe uma dupla interpretação, conforme se entenda o plural


como uma maneira de designar a Igreja local de Corinto ou designe cada crente
individualmente. Enquanto Y. Congar34 o entende dirigido ao crente individual, H.
Küng35 entende-o referido à Igreja local. Como H. Küng interpreta-o a TOB 499: "A
comunidade cristã é o verdadeiro templo da nova aliança. Ela assume a continuidade do
templo de Jerusalém. Com efeito, o Espírito habita nela, realizando assim, de maneira
infinitamente mais perfeito o que realizava a presença da glória de Deus, habitando no
templo".

A interpretação individual podia apoiar-se neste outro texto: "Não sabeis,


porventura, que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que habita em vós, que
recebestes de Deus, e que não vos pertenceis a vós mesmos? É que fostes comprados por
um grande preço. Glorificai, pois, a Deus no vosso corpo" (1Cor 6,19-20).

O lugar da habitação de Deus é sempre designado: o corpo, o vosso corpo. Tanto


o pecado, como o Espírito habitam no corpo; e, por isso, é o corpo o que se converte em
instrumento do pecado com a injustiça ou a residência da vida com a justiça. Para os
semitas o corpo designa a pessoa toda na sua manifestação externa e na sua actividade
concreta. Por isso, em Rom. 12,1 se diz: "Oferecei os vossos corpos como hóstia viva,
santa, agradável a Deus; este é o culto racional que lhe deveis prestar". Em determinado
momento a Bíblia de Jerusalém traduziu por: "vossas pessoas".

As ideias que estão por detrás destes textos são duas: a pessoa do cristão é
habitação e propriedade de Deus. As duas negativas são: Não é vazio ontológico e não é
pertença a si mesmo. O cristão é habitado pela plenitude e santidade de Deus. Não se
pertence a si mesmo, tem dono, Senhor e vigia da sua existência. Não necessita de viver

34 Y: CONGAR, Le mystère du temple, Paris, 1963, 183-188)


35 H. KÜNG, La Iglesia, , 205-206.

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sob o peso de ter que guardar e assegurar a sua existência. A sua tarefa é a de vigiar para
que o pecado não suplante o Espírito.

2.2. A comunidade ou Igreja universal, templo de Deus

"Já não sois hóspedes nem peregrinos, mas sois concidadãos dos santos e
membros da família de Deus, edificados sobre o alicerce dos Apóstolos e dos profetas,
com Cristo por pedra angular. N'Ele qualquer construção, bem ajustada, cresce para
formar um templo santo do Senhor, em união com o qual também vós sois integrados na
construção, para vos tornardes, no Espírito, habitação de Deus" (Ef 2,19-22).

Este texto opera com toda uma série de referências simbólicas, que não é
possível reduzir à unidade. Ele pressupõe que a Igreja universal forma uma unidade, um
tecido, uma realidade formada por muitos elementos, uma vida em crescimento, um
plano orgânico que se realiza. Os termos aqui usados para designar a unidade, são os
seguintes: polis cidade; oikía edifício - família; oikodome edificação; naos templo -
santuário; Kataioketerion morada.

A ideia de casa, aplicada à comunidade aparece em Gal 6,10 (os que pertencem
à casa da mesma fé) e em 1Tim 3,15 (... saibas como deves portar-te na casa de Deus,
que é a Igreja de Deus vivo, coluna e sustentáculo da verdade) e 1Ped 2,5. O conceito de
casa em Gal 4,21s; Fil 3,20; Heb 11,10; 12,22; 13,14. A ideia de templo é inseparável
deste conjunto simbólico. É aplicada indiferentemente a Deus (1Cor 3,16), a Cristo o
Senhor ou ao Espírito /Ef 2,21-22). O espírito é o que aproxima, interioriza e personaliza
as realidades divinas; o que estabelece o laço de união entre Deus e os homens, porque
primeiro estabelece esse laço em Deus. É por isso, que a Igreja é o templo de Deus,
porque é o lugar onde o Espírito faz presente a Deus e deixa sentir a palavra e a pessoa
de Cristo, como pauta de comportamento e modelo de identificação.

3. Conteúdo teológico das afirmações bíblicas

A propósito do conteúdo teológico do conceito de Igreja como templo do


Espírito Santo pode dizer-se o seguinte:

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A. A Igreja é o templo messiânico ou escatológico

Anunciado pelos profetas. Lugar definitivo da presença de Deus, da Sua


revelação e onde o homem devolve a palavra em forma de louvor e em 'oferta dos
nossos corpos' (Rom 12,1). Que conciliação pode haver entre o templo de Deus e os
ídolos? Porque nós somos o templo de Deus vivo, como Deus diz: "Habitarei e
andarei entre eles, e serei o seu Deus, e eles serão o meu povo". Portanto, "saí do
meio deles e separai-vos", diz o Senhor. "Não toqueis no que é impuro, e Eu vos
receberei. Serei para vós um Pai e vós sereis para Mim filhos e filhas", diz o Senhor
todo poderoso" (2Cor 6,16-17).

B. A Igreja está tecida, estruturada, ajustada como uma edificação.

Não é, portanto, a união desorganizada de homens em monte ou em


sobreposição. A Igreja é antes de tudo, o edifício, que Deus edifica. Foi Ele quem fez
os planos, o que lhe imprime o crescimento definitivo. Todos os outros, somos os que
plantamos e regamos; mas só Ele lhe dá crescimento e consistência: "nós somos
cooperadores de Deus e vós sois cultura de Deus, sois edifício de Deus" (1Cor 3,6-
9).

Na Igreja há colaboração distinta na hora de edificar e funções permanentes


distintas no edifício. No edifício há fundamentos que sustentam as pedras e pedras
que fecham o edifício por cima. O fundamento da Igreja é a fé que pregaram os
Apóstolos que interpretaram os profetas ao situar na história da salvação o
acontecimento Cristo.

Mas a pedra fundamental, a que coroa o edifício e lhe dá coesão é o próprio


Cristo: "edificados sobre o alicerce dos Apóstolos e dos Profetas, com Cristo por
pedra angular" (Ef 2,20). Por isso, a edificação levanta-se 'bem ajustada' e porque
está bem ajustada mantém-se. Nela há diversas funções que lhe conferem
complexidade e plenitude: "A uns, Ele constituiu Apóstolos, a outros, Profetas, a
outros, Evangelistas, Pastores e doutores, para o aperfeiçoamento dos santos, para
a obra do ministério para a edificação do Corpo de Cristo" (Ef 4,11-12).

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A composição do edifício resulta da integração nele de materiais diferentes.


Todos estamos chamados a colaborar nele, colocando o melhor de nós mesmos. Há
quem contribua com ouro imperecível e há quem apenas contribua com palha e barra
que se desfazem. Cada um veja como está a edificar: "Segundo a graça de Deus que
me foi dada, eu, como sábio arquitecto, coloquei o alicerce mas outro edifica sobre
ele. Veja cada um, porém, como edifica sobre ele, porque ninguém pode pôr outro
fundamento diferente do que foi posto, isto é, Jesus Cristo" (1Cor 3,10-11).

De Jesus Cristo diz-se que é themelion - fundamento (1Cor 3,11) e em Ef 2,20


diz-se que é akrogonaion - pedra angular. Enquanto no primeiro se trata claramente
da primeira pedra, fundamento, no segundo caso discute-se se se trata da pedra que
fecha a abóbada dando consistência ao edifício ou se se trata da pedra de ângulo que
une as duas paredes e que por ela permanecem inseparáveis. O capítulo 2 de Efésios
orienta para este último sentido.

Jesus aparece como aquele que fez dos homens um homem novo e que uniu as
duas paredes ou povos: o judeu e os gentios, para fazer uma nova casa ou morada de
Deus (Ef 2,15-16), Deste templo, Cristo é a primeira pedra, a pedra angular. O templo
habitado pelo Espírito Santo tem forma de Corpo de Cristo. Não há acção nem
palavra do Espírito que não remeta ao fundamento de Cristo. Sem Ele não há início,
nem consistência, nem consumação da casa espiritual que é a Igreja.

Sintetizando os elementos essenciais desta imagem paulina e de outras


semelhantes escreve Y. Congar:

"A Igreja é comparada pelo Apóstolo, ou a um edifício que se constrói, ou a um


corpo que cresce, passando de uma para outra. retenhamos de seguida três elementos
essenciais desta imagem, que se encontram, também, noutras imagens clássicas da
eclesiologia neotestamentária: trata-se sempre de uma realidade colectiva; cuja
realização é progressiva até à consumação de um plano dado antecipadamente; realização
em que todos estão interessados; na qual alguns têm uma função ou responsabilidade
particular"36. Em nota diz o seguinte: "Todas as comparações nas quais a Escritura revela

36 Y. CONGAR,Le mystère du temple, 191.

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algo do mistério da Igreja, e que os Padres resumiram, têm em comum os quatro


elementos essenciais duma realidade: 1 - são relativas a uma pessoa e a uma Pessoa; 2 -
é colectiva, formada por muitos; 3 - em função da qual alguns têm uma função, uma
autoridade, um ministério; 4 - é dinâmica e implica crescimento e consumação".

C. A Igreja é o lugar da presença e acção de Deus no Espírito.

Se a imagem 'Povo de Deus' explicita antes de mais que a Igreja é suscitada,


convocada e, por isso, propriedade de Deus, esta, pelo contrário, salienta que é lugar
da presença de Deus. Quando S. Paulo afirma que 'somos templo do Deus vivo' (2Cor
6,16) remete aos textos clássicos dos profetas, que, por sua vez, remetem para o
futuro que Deus se revelará ao seu povo, será o Seu Deus e estará com eles (Lv 26,11-
13; Ez 37,26-28). A Igreja, portanto deve-se ao Espírito porque Ele chama-a à
existência, dá-lhe consistência e alenta-lhe a vida. Ela é fruto d'Ele, e Ele actua nela.
Ele é o princípio dos ministérios e dos dons concedidos a cada um:

 Confere o Espírito de vida, libertando-os da morte: Rom 8


 Dá a liberdade a cada crente, pelo que faz da comunidade a pátria da liberdade: 'onde
está o Espírito do Senhor aí está a liberdade' (2Cor 3,17)
 Santifica a oferta dos gentios (Rom 15,15)
 Revela ao crente as profundidades de Deus (2Cor 6,11)
 Lava-nos, santifica-nos e justifica-nos (1Cor 6,11)
 Reparte os dons e ministérios na Igreja para utilidade de todos (1Cor 12)
 Ele é a marca do futuro depositada no nosso coração (2Cor 1,22)
 Capacita os Apóstolos para o ministério do Evangelho (2Cor 3,6)
 Substitui a antiga lei e é a lei nova ou princípio de moralidade nova por configuração
com Cristo (Gal 5,18)
 Concede os seus frutos ao crente (Gal 5,22)
 Abre-nos o acesso ao Pai, ensina-nos a rezar, configura-nos com o Filho e dá-nos a
esperança da herança (Gal 4,4; Rom 8,15-16; Ef 2,18)
 É a promessa e último dom de Deus à história (Heb 1-2; Jl 2,28-32)
 Da diversidade de homens e povos suscita a unidade e comunidade apostólica,
alentando para a missão universal (Act 2)

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 Dá crédito a Jesus, recorda a sua palavra, defende as suas testemunhas e conduz à


verdade total (Jo 16)
 Ressuscitou Jesus e ressuscitará os que como Ele recebem o Seu Espírito e vivem
d'Ele (1Cor 15)

D. A Igreja impulsionada pelo Espírito, enriquecida pelos seus dons, é o lugar onde
se aprende a viver a fé e de atracção dos não crentes.

Para S. Paulo, quando alguém de fora se aproxima da assembleia dos cristão,


que com dons de línguas e profecias celebra a Eucaristia, teria que ficar convencido
de que Deus habita ali e teria que sentir-se convicto do pecado e atraído por Deus:
"Se, pois, toda a Igreja se reunir em assembleia e todos falarem línguas diversas, e
entrarem então pessoas ignorantes ou infiéis, não dirão que estais loucos? Se, porém,
todos profetizarem, e entrar ali um infiel ou um ignorante, por todos é convencido,
por todos julgado; os segredos do seu coração ficam patentes, e, prostrado com a
face por terra, adorará a Deus, proclamando que Deus está mesmo entre vós" (1Cor
14,23-25). A missão da Igreja é ser lugar onde se acredita em Deus pelo Espírito.

E. A Igreja como templo de Deus participa da santidade e tem uma vocação à


santidade.

O lugar da presença é o lugar da acção e da comunicação de Deus. Deus não


toca os homens por fora, comunica-se-lhes interiormente. Concede-lhes a Sua vida e
a Sua santidade. Todo aquele que entra em contacto com Deus fica transformado.
Todo o que viu Deus confessou-se pecador e sentiu-se impelido a uma forma de vida
nova. Tudo o que foi tocado por Deus ficou cheio da Sua glória: homens, lugares,
grupos. E o que foi santificado pertence a Deus e tem que corresponder a essa
santidade objectiva com uma existência pessoal santa.

Ao longo de toda a sua história, Israel estava convicto de que Jahvé não tinha
revelado a Sua santidade apenas aos homens mas tinha santificado também coisas,
lugares, tempos o que significa que as reclamava para Si. No Novo Testamento a
santidade de Deus está em relação com a humanidade de Jesus, com o Seu Espírito
Santo que é dado a todos os que crêem n'Ele para que, como Ele sejamos propriedade

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de Deus, santidade de Deus, consagração a Deus. Isto significa que não se terá nada
a ver com os ídolos, nem com os poderes deste mundo, que negam a Deus, Sua
santidade e Sua revelação:
"Não vos prendais ao mesmo jugo com os infiéis. Que união pode haver entre a
justiça e a iniquidade? Ou que há de comum entre a luz e as trevas? Que acordo há
entre Cristo e Belial? Ou que parte tem o fiel com o infiel? E que reconciliação há
entre o templo de Deus e os ídolos? Porque nós somos o templo do Deus vivo" (2Cor
6,14-16).

F. Cada membro na Igreja está chamado a realizar essa vocação moral de


santidade.

A vocação universal tem que ser personalizada e cada afirmação sobre a Igreja
é uma afirmação sobre o destino de graça e uma tarefa histórica do cristão. Este não
se pertence a si mesmo mas pertence a Deus. Nele, Deus quer morar e revelar-se ao
mundo. A pessoa é santa; o corpo está santificado porque é habitado pelo Espírito.
Por isso se diz que somos membros do corpo de Cristo e que pertencemos ao Espírito
Santo e não o podemos negar no nosso corpo:
"Fugi da imoralidade. Qualquer pecado que o homem comete é exterior ao seu
corpo; mas aquele que pratica a imoralidade, peca contra o seu próprio corpo. Não
sabeis, porventura, que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que habita em vós,
que recebestes de Deus e que não vos pertenceis a vós mesmos?" (1Cor 6,18-19).

4. O Espírito e a Igreja no Vaticano II

O Concílio Vaticano II centrou a Igreja em relação com o desígnio salvífico de


Deus na história. E, por isso, na chamada de Deus, na encarnação de Cristo, na acção do
Espírito Santo que suscitou, sustem e confere acção missionária à Igreja. Desta forma
sublinhou a dimensão pneumatocentrica da Igreja, a estrutura carismática, frente a outras
duas dimensões: a referida a Cristo histórico e místico e a que se centra sobre a autoridade
e o aspecto hierárquico. O Espírito é tão essencial como Cristo e os carismas tão
essenciais como a autoridade.

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A Lumen Gentium não dedicou um capítulo explicito sobre a acção do Espírito


Santo na Igreja, como o fez com o conceito 'Povo de Deus'. Fala do Espírito no capítulo
primeiro quando trata do mistério da Igreja. No nº 4 expõe a acção do Espírito Santo na
Igreja. É um mosaico de textos paulinos, junto com uma citação de Santo Irineu. Fecha
este número com uma citação que mostra como o Espírito e a Igreja com os continuadores
da obra de Cristo, vivem da Sua memória, em fidelidade, e à Sua espera: "O Espírito e a
esposa dizem: 'Vem'" (Ap 22,17).

Em 1935 o beneditino inglês Vomier escreveu um livro no qual expunha como


a Igreja é obra do Espírito e neste sentido um pentecostes continuado. Porque é obra do
Espírito é Igreja 'santa, sem mancha'; a esposa toda ela cheia da glória do seu Senhor, tal
como se expõe em Efésios 5,22-23. A vocação à santidade é-lhe essencial, mas a sua
realização plena, sendo uma meta a atingir, não se consegue aqui.. Por isso, Sto Agostinho
dizia: “a santidade da Igreja só será plena nos seus membros quando chegar à meta”.

A Lumen Gentium, ao final do nº 6 recolhe as afirmações bíblicas relativas ao


templo e à edificação. No nº 7 volta ao assunto com estas palavras:
"E para que sem cessar nos renovemos n'Ele, deu-nos do Seu espírito, o qual, sendo um
e o mesmo na cabeça e nos membros, unifica e move o corpo inteiro, a ponto de os Santos
Padres compararem a sua acção à que o princípio vital, ou alma, desempenha no corpo
humano".

O Espírito é o princípio que:

 Estabelece a unidade entre Cristo e os crentes, prolongando neles a comunidade de


vida divina que existe na trindade. Por isso se pode dizer que a Igreja é a unidade
resultante da doação da vida trinitária aos homens pelo Espírito, laço trinitário e laço
eclesial.

 Vivifica todo o corpo e confere a cada um dos seus membros a consciência da missão,
a capacidade para a realizar e a autoridade de cada um dentro da Igreja.

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 Unifica, fazendo que a diversidade convirja na unidade e que esta não seja idêntica a
uniformidade. Cada parte no corpo tem a sua acção própria e todas colaboram na
única vida da Igreja, que não é exactamente cada uma delas mas que não existe sem
cada uma delas.

 Leva cada um dos membros a descobrir a sua missão particular no corpo, a encontrar
a alegria nela e a descobrir que a sua autonomia e liberdade se concretizam
realizando-se como serviço dentro da comunidade eclesial.

No final do capítulo sobre o 'Povo de Deus” (17) aparece uma alusão ao Espírito
Santo e à Igreja como templo do Espírito Santo, fórmula que literalmente não se encontra
no Novo Testamento:

" É assim que a Igreja simultaneamente ora e trabalha para que toda a humanidade se
transforme em Povo de Deus, Corpo do Senhor e Templo do Espírito Santo, e em Cristo,
cabeça de todos, se dê ao Pai e criador de todas as coisas toda a honra e toda a glória"
(LG 17).

5. A autoridade do Apóstolo e os carismas do Espírito

A redescoberta da dimensão pneumatológica da Igreja trouxe consigo uma


releitura da anterior forma de realizar a vida cristã e o equilíbrio entre a liberdade do
Espírito e a lei. Falar da Igreja do Espírito é falar da Igreja da iniciativa individual, da lei
nova da liberdade tal como Romanos e Gálatas a propuseram frente ao legalismo judaico
e a toda a liberdade da carne, procedente de atitudes gnósticas. Ressuscitou-se, também,
o problema da relação entre comunidade inteira movida pelo Espírito e seus guias ou
cabeças; relação entre carismas individuais e autoridades constituídas.

Com razão se pode falar de estrutura carismática permanente, mas isso não
significa que a inovação permanente, que o Espírito realiza pelos carismas, negue ou se
ponha em contradição com a estrutura originária da Igreja e com a que foi sendo
estabelecida nos Concílios e mediante outras decisões da autoridade suprema. Surge
também o problema de, em que medida o Espírito está ligado às estruturas eclesiais e em

131
132

que medida as pode ultrapassar. Numa palavra, está em jogo a relação e interacção entre
o Espírito e o Apóstolo. H. Küng dedicou na sua obra "La Iglesia" uma larga reflexão a
estas perspectivas (182-245). A obra de L. Boff "Eclesiogénese" leva ao limite esta ideia,
desligando a acção do Espírito hoje da acção em situações anteriores da Igreja.

Na Igreja há carismas e autoridade. Ambas têm que ser vividas para a edificação
e não para destruição, como definia S. Paulo a autoridade apostólica (2Cor 10,8: "a
autoridade que me deu o Senhor para edificação e não para a vossa destruição"). O ponto
mais difícil é a relação entre iniciativa do apóstolo e iniciativa do carismático individual-
O apóstolo na comunidade é critério e garantia da autenticidade cristã dos carismas, por
isso, é juiz de cada um deles.

"E assim como todos os membros do corpo humano, apesar de serem muitos,
formam no entanto um só corpo, assim também os fiéis em Cristo. Também na edificação
do Corpo de Cristo existe diversidade de membros e funções. É um mesmo Espírito que
distribui os seus vários dons segundo a sua riqueza e as necessidades dos ministérios para
utilidade da Igreja. Entre esses dons, sobressai a graça dos apóstolos, a cuja autoridade o
mesmo Espírito submeteu também os carismas" (LG 7,3).

E falando da função dos carismas e dons extraordinários, do seu valor e limites


na Igreja diz:

"Os dons extraordinários não devem pedir-se temerariamente nem há que


esperar deles com presunção os frutos do trabalho apostólico. E além disso, o juízo da
sua autenticidade e do seu exercício pertence a quem tem a autoridade na Igreja, aos quais
compete antes de tudo não sufocar o Espírito". (Cf 1Tes 5,12. 19-21).

Aqui encontramo-nos com um desses problemas eclesiais, que não podem ser
resolvidos unicamente de forma jurídica nem apenas em análise conceptual. Esta posição
leva, por um lado ao autoritarismo e, por outro, ao iluminismo. Autoridade e indivíduo
têm que colocar-se sob a luz, a exigência, a autoridade e o impulso do único Espírito de
Cristo, que é comum a uns e a outros. Só nesse nível de religiosa conformação e
obediência ao Espírito será possível o exercício ou renúncia do carisma, o exercício ou

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renúncia da autoridade, e sobretudo se saberá como há-de ser o exercício concreto a fim
de que sirva para a edificação e não para a destruição do Corpo de Cristo.
O Espírito Santo dado a cada homem faz-nos perceber como real a Deus; a
revelação como declaração e como constituição de uma nova realidade para além da
palavra que anuncia; o Evangelho como criador e não só como declarador de salvação.
Esse Espírito actua no Apóstolo, que nos fala desde fora (instituição) e do impulso que
nos chama desde dentro (carisma). É o mesmo Espírito de Jesus, que habita na cabeça e
nos membros; em quem falam e em quem ovem. Por isso, Ele é a garantia última da
unidade da Igreja.
O nº4 citado anteriormente remete ao Espírito como origem de duas séries de
dons, tanto os hierárquicos como os carismáticos. Esta afirmação é chave, já que remete
ao único Espírito como fonte de todos os dons, e ao mesmo tempo mostra a Igreja como
destinatária deles. Uns e outros são um meio de instrução e direcção. Tanto os carismas
como a autoridade hierárquica são para a Igreja critério de orientação intelectual e de
orientação prática.

"Consumada a obra que o Pai confiou ao Filho para Ele cumprir na terra, foi
enviado o Espírito Santo no dia de Pentecostes, para que santificasse continuamente a
Igreja e deste modo os fiéis tivessem acesso ao Pai, por Cristo, num só Espírito. Ele é o
Espírito de vida, ou fonte de água que jorra para a vida eterna; por quem o Pai vivifica
os homens mortos pelo pecado, até que ressuscite em Cristo os seus corpos mortais. O
Espírito habita na Igreja e nos corações dos fiéis, como num templo, e dentro deles ora e
dá testemunho da adopção de filhos. A Igreja, que Ele conduz à verdade total e unifica
na comunhão e no ministério, enriquece-a Ele e guia-a com diversos dons hierárquicos e
carismáticos e adorna-a com os seus frutos. Pela força do Evangelho rejuvenesce a Igreja
e renova-a continuamente e leva-a à união perfeita com o seu Esposo. Porque o Espírito
e a Esposa dizem ao Senhor Jesus: "Vem"" (LG 4).

Os efeitos fundamentais do Espírito a respeito da Igreja são os seguintes:


 Santificação de cada um dos membros e do corpo inteiro
 Condução para a verdade de Cristo, recordando-a e completando-a
 Unificação, concessão de serviços e ministérios, carismas e frutos
 Renovação permanente

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A IGREJA POVO DE DEUS

1. A noção de Povo de Deus

1.1. Povo de Deus no Novo Testamento

Uma das convicções fundamentais do Novo Testamento é que a Igreja sucede


na sua função de sinal, testemunha e destinatário da Aliança, ao povo de Israel, a quem
Deus tinha escolhido e constituído como Seu Povo. Há uma continuidade na história da
salvação: essa continuidade refere-se aos fins e supõe uma descontinuidade nos meios.
Nenhum pecado nem infidelidade dos homens anula os planos nem a fidelidade de Deus.
Por isso, no seu propósito, já inerente à criação, de se entregar à humanidade, até existir
encarnativamente, não podia ser anulado por proposta dos homens a quem tinha
escolhido como mediação dessa entrega à humanidade.

A Igreja é assim vista na sucessão do povo de Israel, assumindo o seu posto,


participando da sua dignidade, ocupando o seu lugar. Daí que as expressões usuais no
Antigo Testamento para designar Israel sejam transferidas para a Igreja. Ela é agora o
verdadeiro 'Povo de Deus', 'sacerdócio santo', 'casa espiritual', 'Israel de Deus'. O termo
“Povo” é aplicado implicitamente repetidas vezes para designar a Igreja, e de maneira
explicita no clássico texto de 1 de Pedro 2,9-10:

"Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido, a fim de
anunciardes as virtudes (Ex 19,5-6; Is 43,20-21) d'Aquele que vos chamou das trevas a
Sua Luz admirável, vós, que outrora não éreis o Seu povo, mas que agora sois o povo de
Deus; vós que antes não tínheis alcançado misericórdia e agora a alcançasteis (alusão
aos nomes simbólicos dos filhos de Oseias: 1,6.9; 2,1.15)".

S. Paulo aplica os oráculos proféticos à nova comunidade: "Pois nós somos o


santuário de Deus vivo como Deus diz: “Habitarei e caminharei entre eles; serei o seu
Deus e eles serão o meu povo" (2Cor 6,16). E Tit 2,14: "Jesus Cristo deu-se a si mesmo
por nós, a fim de nos resgatar de toda a iniquidade e de adquirir para si, purificando-o,
um povo zeloso de boas obras".

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A Igreja, por conseguinte, deriva da vontade de Deus que constitui os homens


como seu património, sua propriedade, em ordem a cumprir uma missão. A origem deste
povo, portanto, é a eleição de Deus. A sua missão é proclamar no mundo os feitos
d'Aquele que nos chamou das trevas para a sua Luz admirável. Esta 'Luz admirável' pode
ser a Sua benevolência, reino ou pessoalmente Aquele que é a Luz, o logos, o Filho. Em
Colocenses fala-se e dá-se graças a "Deus Pai que nos fez capazes de participar da
herança dos santos no reino da luz; que nos livrou do poder das trevas e nos trouxe para
o reino do seu Filho amado" (Col 1,12-13).

Ser Povo de Deus significa (LG 9):


 Ter sido escolhido por Deus não individualmente mas como povo
 Ter sido destinatários da Aliança
 Ter recebido a revelação profética sucessivamente
 Ter experimentado a santidade de Deus e percebido a responsabilidade de ser santos
como Ele, reflectindo essa santidade no mundo
 Constituir uma unidade formada pela diversidade de gentes e raças
 Ter sido transformado por uma entrega de Deus, cujo conteúdo é o sacrifício de Cristo
e o dom do Espírito Santo
 Ser portador da salvação (povo messiânico)
 Ir surgindo na história e abri-la para o futuro no qual se consumará, para além da
fragmentaridade, dor e pecado actuais
 Viver da memória dos grandes feitos levados a cabo por Deus em favor dos homens
e viver da esperança de uma redenção definitiva
 Ter Deus como único absoluto frente a todos os ídolos deste mundo
 Viver a própria existência como resposta a Deus e serviço aos outros povos, para que
descubram o Reino de Deus em Cristo.

1.2. Povo de Deus na reflexão filosófico-teológica

Que é povo ou um povo? A teologia aplicou este conceito à Igreja, utilizando o


que Sto Agostinho recebe de Cícero e que depois oferece a S. Tomás. Na 'cidade de
Deus', Sto Agostinho repete literalmente a fórmula ciceroniana:

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"Povo não é qualquer tipo de gente, mas a associação de pessoas baseadas na


aceitação de umas leis e na comunhão de interesses".

São, portanto, três os elementos que constituem um povo: 1 - multidão reunida,

2 - aceitação de um direito que regula as relações, 3 - comunhão de interesses. Para Sto


Agostinho a adopção de comum acordo de um direito, pressupõe a justiça: "porque onde
não há justiça não pode haver um direito". Decisão para formar uma vida comum,
adopção de um direito e busca de um fim, são os elementos essenciais. Daí que, os povos
diferenciar-se-ão conforme forem esses três elementos. Por isso acrescenta:

" Povo é a associação de uns seres racionais em virtude de uma participação concorde
nuns interesses comuns. Se isto é assim, logicamente, para saber que classe de povo é,
devemos ver que classe de interesses tem. No entanto, sejam quais forem os interesses,
se se trata de um conjunto não de bestas mas de seres racionais e está associado em virtude
da participação amorosa dos bens que lhe interessam, pode-se chamar povo com todo o
direito. E, se se trata de um povo, será tanto melhor quanto mais o seu acordo é sobre
interesses mais nobres e tanto pior quanto mais baixos sejam estes".

Um povo supõe um direito e um direito supõe uma justiça. Por isso, onde não
há justiça não há direito e onde não há direito não há povo. Quando estas duas coisas
faltam temos uma multidão, um motím. João Paulo II dizia no discurso durante a sua
visita ao parlamento europeu (Outubro 1988): “Os antigos gregos tinham descoberto
já, que não há democracia sem a sujeição de todos a uma lei e que não há lei que
não esteja fundada na norma transcendente do verdadeiro e do bem".

Tertuliano, a propósito da acusação pagã reprovando os cristão e suas reuniões


e costumes, concluía a sua defesa: "Hoc sumus congregati quod et dispersi, hoc universi
quod singuli, naeminem laedentes, neminem contristantes. Cum proci, cum boni coeunt
cum pii, cum casti congregantur non est factio dicenda sed curia". "Somos o mesmo
quando nos reunimos que quando estamos separados; tal como somos todos juntos somos
cada um separado, não fazemos mal a ninguém e a ninguém contristamos. Quando se
reúnem os que são bons, castos, piedosos surge uma assembleia e não um motim".

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S. Tomás, referindo-se a isto define o Povo de Deus nos seguintes termos:


"Quando entre muitos se consente o direito e a lei divina, de forma que sejam úteis uns
aos outros e tendam para Deus, então existe o Povo de Deus".

Temos um povo de Deus, portanto, quando nele converge um duplo elemento:


o teológico descendente, que tem como sujeito Deus e se concretiza na eleição que Deus
faz de um grupo humano; e o sociológico ou ascendente, que tem como sujeito uns
homens que consentem na palavra e no direito divino; que tendem para ele como fim;
que o consideram como o valor supremo para a existência tanto do indivíduo como da
multidão. Povo de Deus significa, portanto, uma multidão sobre a qual Deus reina; e isto
significa que Ele deixa sentir a Sua soberania como graça e exigência sobre ele; e que
Ele o elege como Sua realidade determinante, por infinitamente valiosa e merecedora de
amor.

2. A introdução desta categoria na teologia contemporânea

2.1. Tempo e razões desta preferência

A categoria 'Povo de Deus' foi recuperada pela eclesiologia nos anos 1940 -
1960, durante os quais aparece uma espécie de saturação e insatisfação da categoria
'Corpo de Cristo'. Foi a que prevaleceu no Concílio Vaticano II e a que se constituiu em
categoria fundamental para compreender a Igreja. A Lumen Gentium depois de expor no
capítulo I a condição divina, a origem e o destino trinitário da Igreja e sua relação com
Cristo, isto é, a condição teológica e eterna da Igreja, tenta no capítulo II expor a sua
condição histórica, concreta, humana, temporal. Para isso utiliza o conceito 'Povo de
Deus'.

Que razões levaram a privilegiar esta categoria, que apenas aparece na Bíblia,
frente a outras que têm mais textos a seu favor, como por exemplo 'Corpo de Cristo?
Fundamentalmente diríamos que é uma reacção histórica frente a uma acentuação
excessivamente cristológica, que sublinhava a relação e quase identidade da Igreja com
Cristo.

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2.2. Valores desta categoria

Estas são as razões para esta eleição ou as vantagens que oferece a categoria
'povo de Deus' em relação a outras:

1. Salienta que a Igreja não é só instituição, estrutura e elemento anterior à vontade do


homem, como conjunto de meios objectivos de graça, mas que é também conjunto
de homens e resultado da actuação de liberdades.

2. Põe de relevo a continuidade entre as duas fases da revelação: o povo judeu e o povo
nascido de Cristo. Ambos são fruto de uma eleição, constituídos por uma Aliança,
consagrados a ser no mundo sinal e testemunho do amor de Deus, dotados com a
promessa de receber uma plenitude e redenção definitivas.

3. Acentua a historicidade da vida humana e também da Igreja. Isso significa que a


verdade e a vida têm que ver com o tempo; que a existência vai surgindo com a
duração e nas duas se realiza a liberdade, em resposta à novidade da vida. Que,
portanto, Deus também se vai revelando progressivamente; que a esperança e a
memória são inseparáveis e que das duas se alimenta o presente. Indule peregrina e
escatológica: LG 7.

4. Torrna mais fácil a compreensão da igual dignidade de todos os membros que


formam essa comunidade, uma vez que todos têm os mesmos direitos, estão
ordenados ao mesmo fim. e estão ligados pelas mesmas obrigações. Por cima de todas
as diferenças está a igualdade. Quando a Lumen Gentium antecede um capítulo sobre
o povo de Deus, ao estudo da estrutura hierárquica da Igreja está antecedendo o que
é comum e essencial na existência cristã ao que é determinação funcional que, sendo
legítima não pode alterar o que se pode chamar 'estatuto ontológico fundamental do
ser cristão'.

5. Diferentemente da categoria 'Corpo místico', que torna mais difícil resolver a questão
dos membros da Igreja, uma vez que só se pode resolver em alternativa (ou se é
membro de um corpo ou não se é), a categoria “povo” permite uma resposta mais
flexível: a integração no povo pode ter diferentes graus de intensidade.

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6. Ao mesmo tempo permite uma compreensão mais fácil da relação entre a Igreja e as
igrejas, formando uma unidade na catolicidade; onde aquela não significa
uniformidade mas plenitude nascida da diversidade. A catolicidade é assim algo mais
que a universalidade geográfica. A Igreja vive em e das igrejas LG 21.

7. Historicamente nasceu como reacção contra uma visão excessivamente hierárquica


da Igreja, na qual os fiéis apenas tinham relevo; contra uma visão centralizadora e
uniformizadora, que faz da autoridade da cabeça uma identificação com Cristo
excessivamente rápida e simples, e uma absolutização de Roma, em relação às outras
igrejas locais. Eclesiologia de comunhão.

8. Outro factor que acelerou e intensificou o seu uso foi a vontade de não separação,
solidariedade e colaboração com os outros povos da terra, partilhando uma história e
assumindo umas responsabilidades concretas, humaníssimas dos homens. Um certo
sentido do realismo e da exigência de tradução a este mundo dos ideais de Cristo,
frente à pura visão teológica ou escatológica, colaborou na introdução desta
categoria.

9. Finalmente ela torna mais compreensível a vida real da Igreja com o que tem de
limites, pecado e pobreza. Frente às grandes categorias de 'mistério', 'santidade',
'corpo de Cristo', 'templo do Espírito' esta põe o acento no humano e nos limites e
condicionamentos temporais dos cristãos.

2.3. Limites desta categoria

A categoria da Igreja como Povo de Deus tem também os seus limites, são eles:

 Não expressa a descontinuidade entre o povo da primeira Aliança e o da segunda.


Sublinha o que é comum e oculta o que é diferente: a realidade do Reino, a
encarnação, o dom do Espírito Santo, o mistério Pascal.

 Para o Novo Testamento o povo de Deus está qualificado em referência ao Reino de


Deus e ao Corpo de Cristo. A Igreja é isto.

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 Levou a uma fácil identificação da Igreja com o povo esquecendo que a qualificação
'de Deus' é constituinte: a Igreja é de Deus.

 Silencia as anteriores categorias e absolutiza esta.

3. A categoria 'Povo de Deus' na Lumen Gentium capítulo II

3.1. Povo de Deus na história da salvação

O nº 9 da Lumen Gentium apresenta a origem, constituição e missão do novo


Povo de Deus, a Igreja. Mostra como Deus se faz presente a todo o homem e como, no
Seu desígnio de salvação, pretende salvar os homens em comunidade. A Salvação
destina-se a todos os homens, é universal, e é uma oferta gratuita de Deus.

No primeiro parágrafo faz referência à eleição e aliança de Deus com o povo de


Israel; a revelação na história deste povo e o carácter prefigurativo desta aliança. Por fim
refere a nova aliança instituída por Cristo que chamou a formar parte do Seu povo a
judeus e gentios que acreditaram n'Ele e foram regenerados pela água do Baptismo.

No segundo parágrafo chama a este povo, povo messiânico, que tem, como

'instrumento de redenção universal' que é, 1 - por cabeça a Cristo; 2 - por condição ou


característica a 'dignidade e a liberdade dos filhos de Deus'; 3 - por lei 'o novo

mandamento, o de amar assim como o próprio Cristo nos amou'; 4 - e, 'tem por fim o
Reino de Deus, o qual, começado na terra pelo próprio Deus, se deve desenvolver até ser
também por Ele consumado no fim dos séculos'. Este povo messiânico, na sua realidade
de sinal, 'é para todo o género humano o mais firme germe de unidade, de esperança e de
salvação'.

O terceiro parágrafo abre luz sobre este povo messiânico dizendo que ele é o
novo Israel, é a 'Igreja de Cristo, que Ele adquiriu com o Seu próprio sangue, encheu com
o Seu Espírito e dotou de meios convenientes para a unidade visível e social'. A Igreja é
a congregação de todos os 'que se voltam com fé para Cristo' e que Ele chamou e

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constituiu como Igreja a fim de que sejam 'para todos e cada um sacramento visível desta
unidade salutar'. Tem um destino universal: 'Destinada a estender-se a todas as regiões,
ela entra na história dos homens, ao mesmo tempo que transcende os tempos e as
fronteiras dos povos. Enquanto caminha no tempo vive situações de tentação e tribulação,
mas em tudo é 'confortada pela graça de Deus' concedida por Cristo, para que, sob a
acção do Espírito se mantenha como esposa fiel e se renove 'até chegar à luz que não tem
ocaso'.

3.2. Elementos comuns e essenciais a todo o povo de Deus

O nº 10 apresenta os elementos essenciais e comuns a todos os elementos do


Povo de Deus. A participação neste povo inicia-se com o Baptismo, pela regeneração e
unção que confere o Espírito Santo.

O Baptismo constitui aqueles que o recebem em 1 - Povo santo, consagrado a


Deus; 2 - em casa espiritual e sacerdócio santo. Têm como missão 1 - a perseverança
na oração e o louvor a Deus; 2- a oferta de 'si mesmos como hóstias vivas, santas,

agradáveis a Deus'; 3 - dar testemunho da sua fé em Cristo e da esperança na vida eterna.

O mesmo número continua afirmando a existência de um sacerdócio comum e


de um sacerdócio ministerial que, embora se ordenem 'mutuamente um ao outro',
diferenciam-se 'essencialmente' e não apenas em 'grau'. O sacerdócio ministerial possui
um poder sagrado, pelo qual 'forma e conduz o povo sacerdotal, realiza o sacrifício
eucarístico' 'in persona Christi' e 'oferece-o a Deus em nome de todo o povo'. Os fieis,
pelo poder do sacerdócio que lhes corresponde, sacerdócio real, cooperam na oblação
eucarística. 'Exercem o seu sacerdócio na recepção dos sacramentos, na oração e acção
de graças, no testemunho de santidade de vida, na abnegação e na caridade operosa'.

Já no nº 11 o Concílio fala do exercício do sacerdócio comum nos sacramentos.

Pelo Baptismo os fieis são 1- 'incorporados na Igreja', 2- 'destinados pelo carácter

baptismal ao culto da religião cristã', 3 - 'regenerados para filhos de Deus' e 4 -


chamados a confessar diante dos homens a fé que de Deus receberam por meio da Igreja'.

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Pela Confirmação, 1 - 'são mais perfeitamente vinculados à Igreja, 2 -


enriquecidos com uma força especial do Espírito Santo e deste modo ficam obrigados a
difundir e defender a fé por palavras e obras como verdadeiras testemunhas de Cristo'.

Pela participação na Eucaristia, 'fonte e centro de toda a vida cristã, oferecem


a Deus a vítima divina e a si mesmos juntamente com ela. Desta forma, pela participação
na Eucaristia 'manifestam visivelmente a unidade do Povo de Deus.

No sacramento da Penitência 'obtêm o perdão dos pecados e reconciliam-se


com Deus e com a Igreja. Na Santa Unção 'associam-se à paixão e morte de Cristo' e
são 'entregues ao Senhor para que os salve'. O sacramento da Ordem constitui alguns
para em nome de Cristo 'para apascentar a Igreja com a Palavra e graça de Deus'. Pelo
sacramento do Matrimónio significam o amor de Cristo e da Igreja, ajudam-se
mutuamente em ordem à própria santificação, constituem uma nova família humana e
pelo Baptisno perpetuam o Povo de Deus, formam uma Igreja doméstica na qual têm
como missão ser arautos da fé pela palavra e pelo exemplo e ser cultivadores da vocação
dos filhos.

O nº 12 é dedicado à função profética dos fieis. Segundo o Concílio o 'Povo


santo de Deus participa também da função profética de Cristo'. No ministério de
anunciadores do Reino de Deus participam na sabedoria de Cristo. Esta participação
manifesta-se no “sentido sobrenatural da fé”37, que se apoia na unção do Espírito Santo
recebida no Baptismo e tem como objecto as realidades da fé e dos costumes e tem por
sujeito todo o povo de Deus: Bispos e leigos, de tal forma que, quando existe consenso
universal entre eles, o povo, ungido pelo Espírito, 'não pode enganar-se na fé”. Por outro
lado, 'o Povo de Deus, sob a direcção do sagrado magistério' recebe a palavra de Deus e
não somente como palavra humana, 'adere indefectivelmente à fé, penetra nela e aplica-
a à vida.

O Espírito Santo santifica e conduz o povo de Deus por meio dos sacramentos,
dos ministérios, das virtudes, e também através de 'graças especiais’, que distribui entre

37 'Sentido sobrenatural da fé' capacidade para discernir o conteúdo e exigências da fé.

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os fieis e que 'os tornam aptos e dispostos a tomar diversas obras e encargos, proveitosos
para a renovação e edificação da Igreja'. Estas graças especiais ou carismas, podem ser
elevados ou simples e comuns, devem ser recebidos 'com acção de graças e consolação'.
Os 'extraordinários não devem ser pedidos temerariamente, o juízo sobre eles pertence a
quem preside na Igreja, não devem ser extintos mas discernidos e mantidos.

3.3. Composição, unidade e universalidade do Povo de Deus

O nº 13 trata do Povo de Deus como um Povo uno, único e universal tanto no


tempo como no espaço. A Sua unidade baseia-se no facto de Deus ter criado uma só
natureza humana e na sua decisão de reunir todos os seus filhos que andavam dispersos.
A reunificação acontece pelo envio do Filho, constituído Cabeça do único e universal
povo de Deus e pelo envio do Espírito Santo, que é o princípio de unidade tanto da Igreja
inteira como de cada um dos fieis. Este povo, formado de homens e mulheres procedentes
de todas as regiões e povos destina-se a todos os tempos porque é um povo espiritual.
Como tal tem que integrar em Cristo todos os povos, suas qualidades, riquezas, costumes
e modo de ser e assume-os, fomenta-os, purifica-os, fortalece-os e eleva-os.

Graças a esta catolicidade cada uma das partes está chamada a partilhar com as
outras os seus 'dons particulares', de modo que 'o todo e cada uma das partes aumentem
pela comunicação mútua entre todos e pela aspiração comum à plenitude na unidade'.
'Pois os membros do Povo de Deus são chamados a repartir entre si os bens, valendo para
cada igreja as palavras do Apóstolo: “cada um ponha ao serviço dos outros o dom que
recebeu, como bons administradores da multiforme graça de Deus”. A catolicidade
concretiza-se na diversidade de povos que formam a Igreja e na diversidade de ordens ou
funções que nela se realizam: funções e ministérios: leigos e ministério ordenado; formas
de vida: vida religiosa e vida secular; diversidade de Igrejas: Igreja universal com o
Romano Pontífice e igrejas locais.

A catolicidade da Igreja participada de vários modos, pelos católicos, pelos


cristãos em geral e por todos os homens que pela graça de Deus são chamados à salvação.
Esta temática é desenvolvida nos nº 14, 15 e 16. Em relação aos primeiros (nº 14) diz
concretamente:

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"São plenamente incorporados à sociedade que é a Igreja aqueles que, tendo o Espírito
de Cristo, aceitam toda a sua organização e os meios de salvação nela instituídos, e que,
pelos laços da profissão da fé, dos sacramentos, do governo eclesiástico e da comunhão,
se unem, na sua estrutura visível, com Cristo, que a governa por meio do Sumo Pontífice
e dos Bispos".

Deste nº 14 conclui-se que, Cristo é o único mediador e caminho de salvação,


que Ele se torna presente na Igreja e pela Igreja aos homens e que, Cristo quis que o
homens se integrassem nela pelo Baptismo. A Igreja torna-se assim, condição necessária
para a salvação.

A incorporação na Igreja pode ser plena ou parcial. Para a incorporação plena

é necessário 1 - ter recebido o Espírito Santo, 2 - aceitar as instituições e meios

salvíficos de que ela dispõe, 3- união à estrutura visível presidida pelo Papa, 4-
aceitação dos vínculos concretos da realidade social: profissão de fé, sacramentos, regime
jurídico, comunhão eclesial. O facto de estar incorporado externamente não é, por si,
condição automática de salvação: "quem não persevera na caridade". Os catecúmenos
estão incorporados à Igreja e participam da sua salvação pela vontade explícita.

A propósito dos cristãos não católicos diz o seguinte (nº 15):


"A Igreja vê-se ainda unida, por muitos títulos, com os baptizados que têm o nome de
cristãos, embora não professem integralmente a fé ou não guardem a unidade de
comunhão com o sucessor de Pedro. Muitos há, com efeito, que têm e prezam a Sagrada
Escritura como norma de fé e de vida, manifestam sincero zelo religioso, crêem de
coração em Deus Pai omnipotente e em Cristo, Filho de Deus Salvador, são marcados
pelo Baptismo que os une a Cristo e reconhecem e recebem mesmo outros sacramentos
nas suas próprias Igrejas ou comunidades eclesiásticas. Muitos de entre eles têm mesmo
um episcopado, celebram a sagrada Eucaristia e cultivam a devoção para com a Virgem
Mãe de Deus. Acrescenta-se a isto a comunhão de orações e outros bens espirituais".

As comunidades eclesiais não católicas têm os seguintes elementos cristãos: 1

- A Sagrada Escritura como norma de fé, 2 - uma forma religiosa de vida, 3- fé em

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145

Deus Pai e em Seu Filho Jesus Cristo, 4 - o Baptismo e outros sacramentos. Em

comunhão com todos existem ainda estes elementos: 1 - comunhão na oração e

benefícios espirituais, 2- união no Espírito Santo e desejo de unidade suscitado pelo


Espírito. Com apenas algumas existe ainda um episcopado de plena sucessão apostólica,
celebração legítima da Eucaristia e devoção à Virgem Maria.

E em relação com os não cristãos refere o nº 16:


"Finalmente, aqueles que ainda não receberam o Evangelho, estão de uma forma ou outra
orientados para o Povo de Deus. Em primeiro lugar, aquele povo que recebeu a aliança e
as promessas, e do qual nasceu Cristo (...) Mas o desígnio de salvação estende-se também
áqueles que reconhecem o Criador, entre os quais vêm em primeiro lugar os muçulmanos,
que professam seguir a fé de Abraão, e connosco adoram o Deus único e
misericordioso...".

Entre os que não são cristãos contam-se em primeiro lugar o Povo Judeu e os
muçulmanos. Mas estão também unidos de alguma forma com a Igreja os que no meio
de sombras e dúvidas buscam a Deus, os que não conhecem nem buscam a Deus mas
levam uma vida recta, e os que servem os ídolos e vivem sem Deus no mundo, pois diante
deles a Igreja sente a urgência de anunciar o Evangelho salvador.

Ao final deste capítulo II, o nº 17 apresenta o carácter missionário da Igreja,


como servidora da salvação. A Igreja é missionária e “a todo o discípulo de Cristo
incumbe o encargo de difundir a fé, segundo a própria medida”. A Igreja é missionária,
uma vez que tem que levar o Evangelho a todos, integrando culturas e servindo ideais,
segundo o critério de que a Igreja assume e fomenta o que há de bom nos mundos com
que contacta. E ao assumi-lo purifica-o dos seus limites e erros e desta forma salva-os.

Fortalece os seus valores e ideais positivos afirmando-os na sua intenção,


dando-lhes a possibilidade de alcançar, com a graça do espírito Santo e a fortaleza de
Cristo o que eles conhecendo não tinham a força de alcançar, uma vez que uma coisa é
conhecer e outra poder. Finalmente abre esses valores a ideais que eles não tinham
suspeitado. A missão não é só confirmação da realidade conhecida, ou ilustração da

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146

realidade possível mas redenção e sobretudo oferta de uma realidade nova insuspeitável
à inteligência humana e irrealizável pela vontade do homem (LG 13.17).

Desta forma a missão cumpre três fins:

1. difundir a revelação e fazer que o conhecimento e o amor de Deus chegue aos homens,
pois é nisso que Deus é glorificado, e que, uma vez assumido volte em louvor
agradecido para Ele e também em agradecimento seja oferecido aos outros.
2. Para desmascarar os poderes negativos, desumanizadores, demoníacos que retêm o
homem sob o seu poder na injustiça, violentando a verdade e destroçando física, moral
ou espiritualmente o homem. A verdade evangélica revela o Deus vivo e identifica o
demónio em todas as suas expressões, desde a vontade pessoal tentadora aos poderes
e estruturas em que se expressa o poder do mal.

1 Para a plenitude e bem-aventurança do homem. A condição humana é tal que está


pensada por Deus para participar da Sua divina plenitude. O Concílio diz que a
vocação do homem é uma e esta é divina (GS 22). Que o homem descubra essa divina
vocação, receba as forças para se encaminhar para ela no amor, na esperança e pelas
obras e que finalmente a atinja, nisto consiste a bem-aventurança. À realização da
vocação divina, à bem-aventurança ordena-se a missão, que se realiza anunciando o
Evangelho e fundando igrejas ou comunidades que atingem a maturidade quando
celebra a Eucaristia e possui a sucessão apostólica com ministros do próprio lugar.

Resumidamente e tendo em conta o que diz o nº 17 pode dizer-se que, a Igreja


é missionária por explícito mandato de Cristo, a missão dos apóstolos é antes de mais o
Evangelho e fundar novas comunidades em toda a parte. A Igreja cumpre o seu destino
missionário pregando o Evangelho, fazendo o convite à fé e à sua confissão externa,
preparando para o Baptismo, iluminando a verdade e o erro pela catequese e assumindo,
purificando e elevando as culturas. Na Igreja todos são missionários, embora cada um da
maneira que lhe é própria, todo o cristão pode baptizar e só o sacerdote celebra a
Eucaristia. A Igreja reza e trabalha para dar a sua plenitude ao mundo, integrar a plenitude
do mundo em Cristo e em si mesma, plenificar o homem com a glória de Cristo e
glorificar a Deus, criador e Pai de todos.

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4. Indole escatológica da Igreja peregrina e a sua união com a Igreja celeste


(LG VII)

O capítulo VII da Lumen Gentium fala do Povo de Deus em perspectiva


histórica e numa dimensão de futuro. A Igreja de Jesus procede de uma história anterior
a Ele e desemboca na eternidade de Deus. Se o capítulo II está construído sobre as
categorias da memória e da contemporaneidade o capítulo VII está construído sobre as
categorias de escatologia e antecipação, por um lado, e pelas de peregrinação e
nomadismo, por outro e finalmente pela solidariedade e esperança.

A Igreja está pensada sob as categorias de povo que caminha para uma meta. É
a caravana que partindo de um lugar, atravessa uma extensão de terreno, deserto ou vales,
dirigindo-se para uma terra nova, que considera uma pátria definitiva, e guiada por um
pioneiro ou cabeça, que já chegou à meta desejada, e que, portanto, já goza de descanso.
Entrar no descanso de Deus, é a fórmula que orienta o acontecimento do Êxodo, até
chegar à terra prometida; que orientou o acontecimento Jesus até chegar ao seio de Deus
pela glorificação e que orienta o destino da Igreja, da comunidade e de cada cristão. A
pátria definitiva não é esta. A condição humana é militante, segundo a afirmação clássica
do humanismo: militia est vita hominis super terram" (Job 7,1) e itinerante. O homem
por definição é o Homo viator (G. Marcel).

A condição peregrina do cristão é muito diferente da mera condição nómada ou


errante. Este povo parte de um lugar e vai para outro que conhece, para o qual vai
conduzido por alguém que o conhece e já entrou. A terra já foi conquistada pela cabeça
da caravana e, por isso, de certo modo já lá entrou toda a caravana. É outra maneira de
descrever a condição escatológica da Igreja. Não é totalmente certo dizer que antes de
tudo se busca, que é mais importante procurar que encontrar, que se faz caminho ao
andar.

O crente confessa a Jesus como 'caminho', 'autor da vida', 'pioneiro da salvação',


'que entrou na terra dos vivos', e por isso deu vida à terra pela esperança. A ressurreição
de Cristo é a plenitude da história (1Cor 10,11). Com ela constitui-se como possibilidade
do homem novo a 'renovação do mundo', porque nos é dada a graça do Espírito Santo e
do que diz: "Eis que faço novas todas as coisas" (Ap 21,5).

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Há, portanto, uma escatologia consumada de maneira pessoal e plena em Jesus;


de maneira inicial em cada baptizado; e de maneira oferecida a todos os homens. É uma
consumação que não tem uma posse fácil nem segura. É só antecipação. Ainda vivemos
sob o pecado; ainda temos que purificar-nos e discernir entre pecado e santidade.
Vivemos sob a tensão do 'já' da salvação plena conseguida por Cristo e em Cristo e o
'ainda não' da salvação dos membros da Igreja Seu corpo.

Esta dialéctica reflecte-se na relação existente entre os membros da Igreja, que


estão situados em três fases ou momentos de sua realização. A categoria fundamental
para entender as relações que medeiam entre as três fases da Igreja: a que ainda peregrina
no meio das dificuldades do mundo, a que se purifica para poder ver o rosto de Deus e a
que já está definitivamente junto de Deus, é a categoria de família: "unam familiam in
Christo constituimos (LG 51,2). E entre a família a lei suprema é a da solidariedade, que
se manifesta como preocupação pelos outros membros, ajuda na necessidade,
participação e partilha de bens (communio sanctorum: participação de todos nos mesmos
bens da salvação oferecida por Cristo) e intercessão dos que ainda têm uma liberdade
aberta em favor dos que se purificam e dos que já estão glorificados em favor dos que
ainda estão longe do Senhor peregrinando (2Cor 5,6), vemos como num espelho, em
enigma.

O Concílio propôs este texto (já...ainda não):

a) para evitar todo o triunfalismo de uma Igreja que se considerasse já


'triunfante', como se o triunfo e a plenitude de Cristo fossem o seu triunfo e a sua
plenitude; como se o Reino já tivesse chegado e se identificasse com a sua vida, como se
a santidade própria de Cristo fosse a sua própria santidade e não necessitasse de reforma
permanente e de permanente purificação.

b) Para fundamentar a confiança e a esperança das igrejas e de cada um dos


membros que sofrem a tentação contrária: desesperar perante as dificuldades, pensar que
nada mudou na história, que tudo continua como estava, que nada é novo debaixo do sol
e que em última instância a morte e a ressurreição de Cristo deixaram o mundo como
estava.

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Ao reafirmar a lei do 'já - mas ainda não' descobriu-se a lógica mais profunda
do Novo Testamento. Aí encontramos a dupla tentação: os que afirmam que a
ressurreição já teve lugar, que estamos naturalmente santificados, que não é necessário o
esforço moral e que tudo é permitido. E, por outro lado, os rigoristas que continuam
mantendo a necessidade de atender à lei, como meio de justificação pelas obras. Há um
terceiro grupo de pessoas no Novo Testamento que sucumbe ao cepticismo, ao poder do
dia a dia normal e violento, isto é, à afirmação de que nada mudou, nem mudará porque
o supremo poder é a natureza e não a história, a necessidade e não a graça.

c) Para estabelecer os fundamentos e exigir uma atitude de solidariedade,


colaboração e proximidade com os outros povos da terra. A Igreja está neste mundo como
todos os outros grupos humanos, partilha as inseguranças do mundo, tem certezas acerca
da meta e do caminho aberto por Jesus, que nos serve de modelo e animador, mas tudo
isso não substitui o esforço, insegurança e perplexidade diante de tudo o que a história
oferece, com a sua violência e o seu pecado. Este capítulo fundamenta e exige uma ética
da humilde solidariedade e da generosa colaboração com todos. Ao mesmo tempo que
fundamenta uma ética da memória e da esperança eficaz. Quem sabe donde vem e sabe
que há uma meta de vida para a qual se pode caminhar sem medo à morte, esse é livre
neste mundo e cria liberdade para os outros.

O capítulo VII é pois uma continuação do capítulo II na medida em que explicíta


o sentido do Povo de Deus na sua relação com o tempo e na sua relação com a eternidade.
O próprio título implica três grandes afirmações sobre a Igreja: - A índole ou natureza
escatológica da Igreja. - Existência peregrinante dessa Igreja 'mas ainda não'. - União
desta Igreja, que peregrina no tempo, com a glorificada:

1. A Igreja está constituída por uma derivada não só da sua natureza mas também da sua
condição no tempo: ela partilha o 'já', por um lado, e o 'ainda não' deste entre tempo
da história da salvação que se estende desde a ressurreição até à parusia. Já está
afirmada e querida, sustentada e purificada pelo Senhor com um amor definitivo. Já
possui as primícias do Espírito Santo, mas ainda não o possui de maneira definitiva,
mas em perigo, em ameaça e em debilidade. Não pode apropriar-se d'Ele como se

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fosse seu e não pode gloriar-se d'Ele como se o não pudesse já perder. Tem os sinais
eficazes das realidades definitivas mas ainda não as possui definitivamente.

Por isso, a Igreja leva sobre si e reflecte no seu rosto a imagem do mundo que
há-de vir (condição escatológica) e não menos a imagem do mundo presente (condição
peregrina). Pelo primeiro é fundamentalmente santa e garantida por Deus. Pelo
segundo está, no entanto, sob a ameaça do pecado, na medida em que os pecados dos
seus membros a afectam, é pecadora. Vejam-se os textos chave do nº 48:

"Já chegou, pois, a nós, a plenitude dos tempos, a restauração do mundo foi já realizada
irrevogavelmente e, de certo modo, encontra-se já antecipada neste mundo: com efeito,
ainda aqui na terra, a Igreja está aureolada de verdadeira, embora imperfeita, santidade.
Enquanto não se estabelecem os novos céus e a nova terra em que habita a justiça, a Igreja
peregrina, nos seus sacramentos e nas suas instituições, que pertencem à presente ordem
temporal, leva a imagem passageira deste mundo e vive no meio das criaturas que gemem
e sofrem as dores de parto, esperando a manifestação dos filhos de Deus".

2. A Igreja, que é uma família, abarca todos os seus membros na mesma graça,
solidariedade e amor com independência da fase salvífica em que estão. Neste
sentido, o texto, evitando a terminologia clássica de Igreja militante, purgante e
triunfante, aceita, no entanto, que "dos seus discípulos uns peregrinam sobre a terra,
outros, passada esta vida, são purificados, outros, finalmente, são glorificados e
contemplam 'claramente Deus trino e uno, como Ele é'" (nº 49).

Não se interrompe a comunhão entre os membros da Igreja e existe entre eles


comunicação de bens espirituais. O texto fala mas não expõe teoria alguma sobre a
purificação dos que se purificam ("purgatório") para centrar-se na função que
cumprem os membros da Igreja já glorificados: desde a sua união definitiva com
Cristo consolidam a santidade da Igreja, unem-se ao culto e louvor da Igreja neste
mundo, colaboram para a sua edificação. Ao mesmo tempo, unindo a sua vida, amor
e sacrifício à vida, amor e sacrifício de Cristo intercedem por nós. "A nossa fraqueza
é assim grandemente ajudada pela sua solicitude de irmãos" (49). Os santos são assim

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exemplo de santidade, expoente da potência transformadora do Espírito de Jesus,


intercessão pelo resto dos homens.

3. Esta relação entre as três fases da Igreja leva o Concílio a situar aqui o fundamento
teológico e os critérios pastorais para fixar:

a) A relação da Igreja peregrina com os outros irmãos que já morreram: 'memória dos
defuntos'. Conteúdo, legitimidade e limites.

b) A relação da Igreja peregrina com os irmãos que já chegaram à meta. Aqui faz uma
pequena história da veneração dos santos e seu significado e exemplaridade e
intercessão para a Igreja ainda peregrina.

c) A referência aos santos faz-se sempre tendo diante Cristo cabeça da Igreja, fonte de
toda a santidade, origem de todo o martírio e virgindade, sabedoria e testemunho.
D'Ele dimana como fonte e cabeça, toda a graça e a vida do Povo de Deus.

d) Isto permite uma relação entre nós e os santos: amor, agradecimento, invocação
imitação.

e) O culto da Igreja na terra é união ao culto dos bem-aventurados. Unimo-nos uns aos
outros pois todos vivemos agradecidos, da mesma graça;

"Mas a nossa união com a Igreja celeste realiza-se de modo mais sublime quando,
sobretudo na sagrada liturgia, na qual a virtude do Espírito Santo actua sobre nós através
dos sinais sacramentais, concelebramos em comum exultação os louvores da divina
Majestade... Ao celebrar o sacrifício eucarístico, unimo-nos no mais alto grau ao culto
da Igreja celeste, comungando e venerando a memória, primeiramente da gloriosa sempre
Virgem Maria, de S. José, dos santos Apóstolos e mártires e de todos os santos".

Podia concluir-se dizendo que a Lumen Gentium devolve à Igreja a consciência


da sua identidade, e obriga-a a reviver a consciência de solidariedade. O Povo de Deus

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no meio dos povos do mundo, vive unido a eles o mesmo destino, e tem para com eles
uma obrigação que é a sua própria missão: ser testemunha da esperança aberta por Cristo
redentor. Desta forma, o Concílio torna a Igreja consciente dos muitos perigos que a
espreitam:

- Estacionar por ter já recebido a salvação, esquecendo a sua condição


escatológica e que essa esperança é possuída em esperança.

- Apropriação, como se a salvação fosse sua e não dada por Deus para ela e para
os outros. Ela é apenas mediadora e servidora.

- Esquecimento por verificar que tarda em chegar o final dos tempos. E perder
a consciência de que é sinal da redenção que é oferecida por Cristo.

- De automatização estrutural, fechando-se sobre a eficácia das suas instituições


e pessoas, como se não houvesse mais nada a esperar de Deus.

- O orgulho e fariseísmo. A Igreja não tem a sua razão de ser na fortaleza e


grandeza do homem, nem na dignidade dos que são escolhidos, mas na eleição libérrima
da vontade divina. Ela é sinal, sacramento, instrumento da salvação que é oferecida por
Deus.

5. Conclusão

Povo de Deus designa a comunidade de todos os fiéis, prévia a qualquer


diferença por razão de ministério, de condição, de carisma. Expressa o básico, o comum,
a fraternidade cristã, a igualdade diferenciada, a necessária recíprocidade. Esta
designação mostra a intenção do Concílio em falar da Igreja a partir da comum dignidade
de filhos de Deus e membros da Igreja, que sem descriminação afecta a todos.

Indica ainda a situação peregrinante da Igreja. A sua situação de Igreja na


história dos homens; as alegrias e esperanças, as tristezas e angústias dos homens, são
partilhadas pelos discípulos de Jesus.

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Esta expressão ajuda a compreender as diversas formas de pertença à Igreja e as


variadas maneiras de estar orientados para ela e conduz a uma atitude mais ecuménica
por parte da mesma Igreja.

Dizer “Povo de Deus” é relacionar a Igreja com Israel, o povo da antiga Aliança.
O povo surge da eleição divina através da Aliança. Israel é só figura, uma vez que a vinda
do Messias e a comunicação do Espírito prometido colocaram os fiéis numa situação
completamente nova.

Que é que faz com que um grupo de homens se torne um povo? O sangue? A
língua? Os costumes comuns? O território comum? A cultura? As leis? A religião? A
história? O destino comum?

O que determina a constituição do Povo de Deus é a fé. O Povo de Novo


Testamento está composto por Judeus e Gentios; e a fé em Jesus Cristo, acompanhada
pela conversão ao Deus vivo e verdadeiro, selada pelo Baptismo , é o único elemento
necessário e a condição suficiente para se ser Povo de Deus. Quaisquer outros elementos
, sejam a raça, a cultura, o grupo social, que se acrescentem a este é voltar ao judaísmo.

Esta expressão mostra com clareza a vontade divina de salvar os homens como
uma família, uma casa espiritual. A existência cristã possui uma estrutura comunitária.
Assim como a pessoa se realiza em sociedade e em comunidade, do mesmo modo o
cristão realiza-se em Igreja. Há uma dimensão eclesial que é constitutiva do ser cristão.
Simpliciano dizia muitas vezes ao filósofo Vitorino: “Não te contarei entre os cristãos,
enquanto não te vir na Igreja de Cristo”.

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A IGREJA LUGAR E FRUTO DE KOINONIA

1. A Igreja: estrutura e vida. A koinonia: comunhão-comunidade

A Igreja é ao mesmo tempo estrutura e vida. Tem uma história exterior e uma
consciência interior. Realiza-se mediante acções e instituições deste mundo e alimenta-
se de uma vida que lhe vem de Deus, que a faz comunicar com Ele na sua própria forma
de existência, não na ordem do ser, mas na ordem do viver e do actuar. Essa vida divina
que Deus comunica, na qual os fiéis participam, que, por conseguinte têm em comum
entre si e com Deus, é o elemento essencial da Igreja.

A Igreja foi, por isso, definida com estes termos: Koinonia - communio -
comunhão. Os três termos têm a mesma raiz. Koinonia significa comunidade, relação
estreita, participação. Comunio, derivada do adjectivo communis, significa também
colocar em comum, participação, carácter comum. O adjectivo 'comunis' pode fazer-se
derivar do adjectivo grego 'koinos', o que é comum a todos, o que é de todos.

Nesta perspectiva entendeu-se a Igreja como uma comunidade de vida oferecida


por Deus; e como comunidade de vida nascida dos seus membros. O que está na raiz da
Igreja é a realidade divina, manifestada gratuitamente e dada em participação aos
homens, com a consequente comunidade que de entre eles resulta por participarem em
algo que os unifica. Essa realidade, que é comum aos membros da Igreja, é a que
fundamenta de dentro para fora a sua identidade.

Essa vida que remete a outra ordem, e que os alimenta com uma força nova, é o
essencial e o que a torna diferente. É necessário perguntar por esta realidade divina, por
esta vida quando se compara a Igreja com outras instituições. Com outras instituições a
Igreja pode ter em comum a maneira de organizar-se, as instituições de convívio e de
acção, mas entre elas a diferença é este espírito de vida, que é, não só uma promessa mas
uma realidade presente e actuante em cada um e em todos os membros. Ela é princípio
de vida, critério de acção, fundamento da unidade.

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O P. Congar escrevia na sua juventude:


"À medida que, em meus estudos, fui avançando no conhecimento desta realidade que é
a Igreja, tornou-se claro para mim que só estudei nela a estrutura e não a vida.. O facto
de ter feito esta distinção entre estrutura e vida, creio que permite uma maior focagem e
uma maior claridade na análise de muitos problemas. A Igreja tem uma estrutura
procedente dos seus elementos constitutivos; mas uma vez estruturada vive e os fieis
vivem nela a unidade. A Igreja não é só um quadro, uma montagem, uma instituição: é
uma comunhão. Não há nada que possa destruir a unidade que existe nela: a unidade
gerada pelos próprios membros que a constituem. Mas há também uma unidade exercida
e vivida pelos homens, que tem que ver com a sua atitude e que por esta atitude se faz e
se desfaz, e é a comunhão. Por isso, não se pode conhecer a Igreja senão quando a par da
estrutura e da instituição se estuda o carácter desta comunhão, suas condições, suas
implicações, o modo como pode lesionar-se"38.

A Igreja aparece, portanto, referida a uma realidade dada, que a constitui na


unidade, porque é dada a todos e cada um dos seus membros. Unidade que desce
verticalmente de Deus sobre eles e que por sua vez se estende entre eles horizontalmente.
Comunhão, enquanto participação na vida de Deus, que se faz comunidade, na medida
em que é posta em comum entre os irmãos. Há portanto, 1 conteúdos da unidade e da
comunhão; 2 há meios para a realizar entre os crentes; 3 á instâncias que a garantem e a
defendem; 4 há sinais que a oferecem aos outros a fim de que a comunhão seja real entre
os membros da Igreja.

A Igreja, dissemos, tem a Trindade como origem, forma e meta. A sua vida
deriva d'Ela, conforma-se a ela, tende a consumar-se nela. Portanto, o conteúdo último
da Igreja é a vida trinitária, que se comunicou aos homens, mediante a encarnação do
Verbo e mediante o envio do Espírito Santo. A unidade e diversidade de pessoas em Deus
é o fundamento e o modelo do que na Igreja é a realização da unidade na pluralidade. Aí
existe 1 participação na única vida e diversidade pessoal; 2 hierarquia na igualdade de
essência; 3 colaboração na diversidade de relações. A Igreja, portanto, compreende-se a
partir desta referência trinitária: do dom de Deus em Cristo e no Espírito Santo.

38 Y. CONGAR, Falsas y verdaderas reformas en la Iglesia, Madrid, 1953, 5-6.

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2. Redescoberta da categoria de comunhão

Historicamente redescobriu-se uma eclesiologia de comunhão a meados do


século XIX como reacção contra uma eclesiologia que compreendia a Igreja como
sociedade em analogia com as outras agrupações, que o direito civil provia, dentro da
sociedade humana. E, também, como reacção contra uma eclesiologia que compreendia
a Igreja como sociedade perfeita em relação ao estado, que seria igualmente sociedade
perfeita noutra ordem, com outros fins e com outros meios. Entre os autores alemães
foram pioneiros neste tipo de eclesiologia J. A. Mohler e Pilgram.

Diante da tese que fazia surgir a Igreja de baixo, numa linha associativa, como
a reunião dos fieis (corporação); e diante de outra compreensão que a fazia surgir
puramente de cima como criação externa de Deus em Cristo, definindo-a como uma
instituição, eles procuraram um terceiro caminho. Preferiram defini-la a partir da relação
existente entre as pessoas, a partir da relação social, que surge como consequência da
participação numa nova ordem de realidade ou de vida, que é a vida divina, tal como
existiu na humanidade e na consciência de Cristo. A gratia Capitis Christi converte-se
em gratia membrorum. Noutro sentido o dom de Cristo por antonomásia: o Espírito
Santo.

"Por Igreja, entendemos os católicos, a comunidade visível de todos os fiéis, fundada por
Cristo; comunidade na qual, sob a direcção do seu Espírito e com a ajuda de um
apostolado ordenado por Ele, todas as acções desenvolvidas por Ele durante a Sua vida
terrena em ordem a reconciliar e a santificar os homens, são continuadas, de forma que
todos os povos são reorientados para Deus... Desta forma, a Igreja visível, é o Filho de
Deus que aparece continuamente em forma visível entre os homens, renovando-se e
rejuvenescendo-se continuamente. Ela é a encarnação continuada de Cristo, pelo que os
fieis na sagrada Escritura são chamados 'Corpo de Cristo'" (Mohler).

Por seu turno Pilgram definia a Igreja assim:


"A essência da Igreja consiste em ser uma cidade, uma politeia, surgida de uma comunhão
entre os homens e Deus"39.

39 PILGRAM, Filosofia de la Iglesia, Mainz, 1860.

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Ao elemento vertical, teologal da comunhão, acrescenta-se um segundo: o


elemento interpessoal, a vontade de aderir em liberdade, o consentimento à oferta de
Deus e a aceitação do próximo, que participa dessa mesma vida divina.

"O verdadeiro carácter da Igreja é o de ser sociedade por comunhão, que não se realiza
mais que por dentro, por adesão cordialmente consentida"40.

Com isto chegamos a uma noção da Igreja que a compreende a partir do interior:
a vida divina em que participam e que renova os seus membros; a liberdade humana que
consente essa vida divina e que vive dela: dimensão vertical e horizontal.

Definir a Igreja como koinonia significa colocar em primeiro lugar a questão do


seu conteúdo antes que a forma expressiva; sublinhar o elemento de vida divina e de
relação humana vivida, antes que o elemento de autoridade; centrar a vida da Igreja no
fundo cristológico e pneumatológico do qual se alimenta e compreender as suas
expressões como visibilização e concretização daquela vida, daquela comunidade e
daquela solidariedade resultante entre os membros que em última instância se concretiza
na partilha de bens. Aqui redescobriu-se a Igreja apostólica como realização deste ideal
de comunhão:

“O principal interesse da Igreja antiga foi o de realizar a sua vida como uma comunidade
de crentes. E fê-lo com a criação de comunidades locais, com a organização das suas
funções, com a celebração litúrgica dos mistérios da fé, com a formulação e actualidade
da profissão da fé e com a praxis ética do cristianismo"41.

3. A Igreja e a koinonia no Novo Testamento

Nunca no Novo Testamento é definida a Igreja como koinonia. No entanto, nos


Actos dos Apóstolos descreve-se-nos com estes termos a vida dos que tinham acreditado

40 L. LABERTHONIÈRE, La notion chrétienne de l'autorité, Paris, 1955, 248.


41 N. BROX, Historia de la Iglesia primitiva, Barcelona, 1986, 105.

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em Jesus: "Eram assíduos, ao ensino dos Apóstolos, à união fraterna, à fracção do pão,
e às orações. Todos os crentes viviam unidos e possuíam tudo em comum. Vendiam terras
e outros bens e distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada
um"(2,42-44). "A multidão dos que tinham abraçado a fé tinham um só coração e uma
só alma. Ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas, entre eles, tudo era em
comum" (4,32).

Os Actos dos Apóstolos têm interesse, em sublinhar a união, a unanimidade, a


comunhão fraterna, a partilha de bens, como notas características da primeira
comunidade. A unidade torna-se uma característica da própria essência e um exemplo
para os outros crentes e as outras igrejas. A partilha dos bens era voluntária e não
obrigatória como em Qumran. No entanto, a convicção inicial perdurará como sagrada.
S. Paulo designa com o termo 'koinonia' a colecta dos fiéis de Roma em favor dos cristãos
de Jerusalém.

Os conteúdos da comunhão, mais do que aqueles que foram colocados pelos


homens são os colocados por Deus. Por isso S. Paulo se remete à koinonia estabelecida
pelo Pai, dando-nos Seu Filho e o Seu Espírito: "Fiel é Deus, por quem fostes chamados
à koinonia com Seu Filho, Jesus Cristo, Nosso Senhor" (1Cor 1,9). Toda a compreensão
paulina do Corpo de Cristo há que situá-la aqui. Fomos chamados a ser seu corpo, a tomar
parte na vida do Filho, na Sua filiação divina. "O cálice de benção que abençoamos não
é a koinonia do sangue de Cristo? E o pão que partimos não é a koinonia do Corpo de
Cristo?" (1Cor 10,16).

A realidade pessoal do Filho, a Sua pessoa, é dada ao homem que assim participa
na vida entregue, na existência sacrificial, no corpo glorioso de Cristo. Cristo é o novo
Adão, e tal como Adão, Abraão e Moisés, constitui uma personalidade corporativa,
abarca em si mesmo os que procedem d'Ele ou se incorporam a Ele, formando o novo
corpo, a descendência, a nova família. O que é Seu é deles; o que Ele fez fizeram-no eles.
Por isso, identificados com Ele na dor e na esperança, gozarão, reinarão e ressuscitarão
com Ele (Fil 3,10).

S. João prolonga a convicção de que participamos na vida divina, para Deus e


para o irmão. A comunhão dos homens não se realiza primeiramente pela união entre os

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homens mas na união com o Pai. Mas essa comunhão com o Pai verifica-se a partir da
união com os irmãos: "O que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também
vós tenhais comunhão connosco. Quanto à nossa comunhão, ela é com o Pai e com Seu
Filho Jesus Cristo... Se dissermos que temos comunhão com Ele e andarmos nas trevas,
mentimos e não praticamos a verdade. Mas se andarmos na luz como Ele está na luz,
estamos em comunhão uns com os outros e o sangue de Jesus Cristo, Seu Filho, purifica-
nos de todo o pecado”.

Os elementos constituintes desta comunhão, deste corpo de Cristo são, o


Baptismo e o dom do Espírito Santo. Eles criam a comunidade com Cristo e a
comunidade entre os cristãos. A participação num mesmo pão constitui-nos num só
corpo. O corpo que comemos constitui-nos no corpo que formamos. A Eucaristia funda
a Igreja. Ela é a koinonia por antonomásia, que estabelece a conexão entre Cristo e os
cristão na unidade de vida, destino e esperança. "Porque o pão é um, somos todos um só
corpo, pois todos participamos do mesmo pão" (1Cor 12,17). "Foi num só Espírito que
todos nós fomos baptizados, a fim de formarmos um só corpo, quer judeus, quer gentios,
quer escravos, quer livres; e todos temos bebido de um só Espírito. Porque o corpo não
consta de um só membro, mas de muitos" (1Cor 12,13).

Essa participação (koinonia) em Cristo é participação nos seus sofrimentos e ao


mesmo tempo participação na natureza divina. Isso exige ter uma fé partilhada em
comum. Esta comunidade de existência traduz-se em solidariedade de vida; aquilo que
se recebeu de Deus partilha-se com os irmãos: união fraterna; partilha de bens; colecta
em favor de Jerusalém.

4. A comunhão dos santos no credo

A Igreja surgiu na história como uma possibilidade individual e comunitária


específica, porque trouxe consigo uma realidade à qual só se tem acesso dentro dela: a
comunhão com Deus, mediante a participação no corpo e sangue de Cristo e mediante a
recepção do Espírito no Baptismo, que suscitam uma comunidade de homens
santificados e entre os quais surge uma relação única, ou nova comunidade.

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1
Desta forma aparecem três níveis de realidade: Comunhão com as pessoas
divinas, 2 comunhão derivada dos sacramentos e 3 comunhão entre os fiés. Na Igreja dão-
se ao mesmo tempo estes três níveis de koinonia. Por isso, o Credo, a seguir à Igreja
insere uma formula complexa: "a comunhão dos Santos", que pode ser interpretada de

muitas maneiras. a) Participação nas realidades sagradas, isto é, nos sacramentos. b)


Comunidade formada por pessoas sagradas. Então a palavra santos designaria todos os

fieis. c) Comunidade de pessoas santas, entendendo por estas, aquelas que hoje
entendemos por 'santos'. Isso quereria dizer que a Igreja abarca os que vivem neste
mundo e os que já participam na visão de Deus, os pecadores e os santos e que entre eles
existe uma solidariedade pela qual nós podemos contar com a sua ajuda e intercessão
junto de Deus.

Segundo J. D. Kelly a expressão 'comunhão dos santos' pretende indicar aqueles


que foram santificados pela graça de Deus e já participam da sua vida e estão em
solidariedade connosco. Para H. de Lubac trata-se da 'comunidade das coisas santas'.
Estas no cristianismo são o Espírito Santificador e os sacramentos que com a sua força
santificam:

"No nosso Credo, a acção global do Espírito terminou por determinar-se em quatro
efeitos. O primeiro de entre eles é a 'comunhão dos santos'. Trata-se de uma formula
sintética, que não é simplesmente sinónima de Igreja, mas abarca todo um conjunto de
bens que se encontram nela. A formula primitiva é grega e o seu lugar de origem é a Ásia
Menor. Parece claro que o seu primeiro sentido é este: a comunicação, ou a participação
nos sacramentos, isto é, em todos os bens sagrados pelos quais se obtém a consumação,
a perfeição final; o principal destes bens é a Eucaristia. Por ela realiza-se a comunhão dos
santos; dito de outra maneira a união dos fieis entre si. Este sentido derivado aparece
muito cedo, até ao ponto de que se pensou que era o primitivo... No seu comentário do
Credo, Calvino, reúne de certo modo os dois sentidos dizendo que a ‘comunhão dos
santos’ consiste na comunicação mútua entre todos os membros de todos os bens
salvíficos no interior da Igreja"42.

42 H. LUBAC, La foi chrétienne, Paris, 1969, 214.

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5. A eclesiologia de comunhão no Vaticano II

O Vaticano II, saltando sobre concepções vigentes durante séculos, retomou a


experiência da primitiva Igreja e fez do conceito 'comunhão' a ideia chave de toda a sua
eclesiologia, embora não lhe tenha dedicado um capítulo explícito. É a ideia base, o
pressuposto, à luz do qual se tomaram decisões fundamentais e a partir do qual ganham
coerência as suas afirmações. Todos os autores: Ratzinger, Congar, Antón, R. Blazquez,
estão de acordo em que a novidade do Vaticano II está precisamente nesta eclesiologia
de comunhão:

"A inovação do Vaticano II de maior transcendência para a eclesiologia e para a vida da


Igreja foi o facto de ter centrado a teologia do mistério da Igreja sobre a noção de
comunhão"43.

"Esta eclesiologia de comunhão converteu-se no verdadeiro e próprio coração da


doutrina sobre a Igreja do Vaticano II, o elemento novo e ao mesmo tempo totalmente
vinculado às origens, que este concílio nos quis dar"44.

Antes de entrar no Concílio vamos citar as palavras do Sínodo Extraordinário de


1985, que é a interpretação autorizada daquele:

"A eclesiologia de comunhão é uma ideia central e fundamental nos documentos do


Concílio. Koinonia - comunhão, fundadas na Sagrada Escritura, são tidas em grande
honra na Igreja antiga e nas Igrejas orientais até aos nossos dias. Desde o Concílio
Vaticano II fez-se muito para que se entendesse mais claramente a Igreja como comunhão
e se levasse esta ideia mais concretamente à vida.
Que significa a palavra complexa 'comunhão'? Fundamentalmente trata-se da
comunhão com Deus por Jesus Cristo no Espírito Santo. Esta comunhão obtém-se na
palavra de Deus e nos sacramentos.... A eclesiologia de comunhão não se pode reduzir a
meras questões organizativas ou a questões que se referem a simples poderes. A

43 A. ANTON, Primado y colegialidad, Madrid, 1970, 34.


44 J. RATZINGER, La chiesa del Concilio, Milano, 1979,13.

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eclesiologia de comunhão é o fundamento para a ordem na Igreja e, em primeiro lugar,


para a recta relação entre unidade e pluralidade na Igreja" (Sínodo II C, 1).

O Concílio nunca define explicitamente a Igreja como comunhão. Esta é a


realidade que acontece dentro dela, é o seu conteúdo, a sua experiência mais profunda.
Num duplo sentido: - Objectivo - a participação que Deus nos oferece de Si mesmo. -
Subjectivo - A participação que nós podemos receber da vida divina, dada a todos e que
se converte em princípio de unidade e de comunidade entre nós.

A Igreja é, por conseguinte, o resultado da comunhão que Deus instaurou com


os homens, mediante a doação do Seu próprio mistério, realizado de uma vez para sempre
na encarnação do Verbo e no envio do Espírito Santo. A Trindade, é pois, o 'símbolo
primordial' enquanto causa e modelo permanente da Igreja. O que ali acontece é
comunicado aos homens para que aconteça como princípio de vida e de relação entre
todos. A comunhão trinitária é princípio, modelo e meta da comunhão eclesial. "Onde
estão os três, isto é, o Pai e o Filho e o Espírito Santo, ali está a Igreja, que é o Corpo dos
três"45. O decreto Ad Gentes explicita-o: "A Igreja peregrinante é, por sua natureza,
missionária, pois recebe a sua origem da missão do Filho e da missão do Espírito Santo,
segundo o propósito de Deus Pai" (AG 1).

Essa comunhão, que instaura a unidade na variedade e a diferença de cada um


no bem comum de todos, podemos situá-la nos seguintes níveis:

1. Comunhão de realidades.

Estas são fundamentalmente o Espírito Santo que é o princípio divino, interno,


supratemporal à história humana. Princípio de unidade e de comunhão; agente da
divinização dos homens e força para que a Igreja cumpra a sua vocação missionária.

"Para isto Deus enviou finalmente também o Espírito de Seu Filho, Senhor e fonte de
vida, o qual é para toda a Igreja e para cada um dos crentes princípio de agregação e de

45 TERTULIANO, De Baptismo VI.

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unidade na doutrina e na comunhão dos Apóstolos, na fracção do pão e na oração" (LG


13,1).

Junto a este princípio divino, estão os princípios humanos, históricos, visíveis da Igreja:

a) A palavra de Deus
b) Os sacramentos (Baptismo, Eucaristia)
c) O ministério apostólico
d) Os ministérios e carismas pessoais

Nesta perspectiva a Igreja é a congregação dos santos na qual se anuncia a palavra


de Deus e se celebram os sacramentos. Palavra, sacramentos, e ministério são os três
elementos constituintes da Igreja. Os dois primeiros não são apostólicamente válidos sem
um ministério apostólico que os exerça conforme a vontade de Cristo.

2. Comunhão de pessoas.

Congregação, comunidade, ajuntamento, igualdade de fiéis crentes em Cristo


que receberam todos o Seu Espírito, que vivem da Sua palavra, que revivem o Seu
exemplo e que esperam a ressurreição. A Igreja é, assim, a pátria da igualdade essencial,
dada por essas realidades santificantes iguais para todos. A Igreja, é essencialmente uma
fraternidade.

A unção pelo Baptismo, a recepção do Espírito, a participação na Eucaristia tudo


isso funda a ontologia sobrenatural, idêntica em todos. Todos na Igreja estão animados
pelo mesmo Espírito; todos são filhos de Deus (Rom 8,14). "A cada um é dada a
manifestação do Espírito em ordem ao bem comum" (1Cor 12,7).

Todo o cristão recebe o seu carisma peculiar no contexto da fraternidade. A


Lumen Gentium 7,3 analisa esta unidade sustentada pelo Espírito, e a diversidade dentro
da comunidade. O princípio essencial é o seguinte: "Existe na Igreja diversidade de
funções, mas unidade de missão" (AA 2,2). Na Igreja, portanto, coexistem unidade de
realidade fundante (que chamámos ontologia sobrenatural) e unidade de missão, que

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consiste em fazer ouvir e mostrar como real e realizável o Evangelho. E ao mesmo tempo
diversidade funcional, ministerial ou de carismas.

3. Comunhão de ministérios (comunio hierárquica).

Trata-se de fixar a relação entre os que sucedem aos apóstolos no ministério da


palavra, dos sacramentos e da edificação das comunidades. O fundamento para esta
comunhão é a colegialidade episcopal, o facto de que todos são constituídos Bispos pela
consagração sacramental, que os integra na sucessão apostólica. A sacramentalidade da
ordenação estabelece a igualdade fundamental entre todos. O sacramento da ordem é
comum a todos. Todos recebem a mesma qualificação para a comum missão: estender o
Evangelho, plantar as igrejas e levar os homens à plenitude da salvação.

Esse colégio tem uma cabeça, que preside na caridade antes de tudo, que
preserva a unidade e que ajuda nas necessidades, decidindo com autoridade. A expressão
suprema da autoridade como do colégio episcopal é o Concílio ecuménico. O Papa é o
garante da unidade na Igreja e, por isso, a comunhão com ele é essencial.

Essa comunidade de ordenação e essa diversidade de função dentro do


Colégio Episcopal estabelece os critérios para compreender a relação entre o Bispo de
Roma e os outros Bispos. Foi um ponto de fricção no Vaticano II, porque supõe uma
ressituição do Papa dentro do Colégio Episcopal, nivelando-o com os seus irmãos no
episcopado, não o separando deles, uma vez que possuem uma idêntica base sacramental
e uma idêntica missão, embora dentro do Colégio tenha uma missão essencial. Por esta
razão, junto ao que diz o nº 22 da Lumen Gentium, acrescenta-se a nota prévia, que
clarifica o conteúdo da comunhão hierárquica.

"Assim como, por instituição do Senhor, S. Pedro e os restantes Apóstolos formam um


Colégio apostólico, assim de igual modo estão unidos entre si o Romano Pontífice,
sucessor de Pedro, e os Bispos, sucessores dos Apóstolos. A natureza colegial da ordem
episcopal, claramente comprovada pelos Concílios ecuménicos celebrados no decurso
dos séculos, manifesta-se já na disciplina primitiva, segundo a qual os Bispos de todo o
orbe comunicavam entre si e com o Bispo de Roma no vínculo da unidade, da caridade e

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165

da paz; e também na reunião de Concílios, nos quais se decidiram em comum coisas


importantes, depois de ponderada a decisão pelo parecer de muitos. E o uso já muito
antigo de chamar vários Bispos a participarem na elevação do novo eleito ao ministério
do sumo sacerdócio insinua-a já também. É, pois, em virtude da sagração episcopal e pela
comunhão hierárquica com a cabeça e os membros do colégio que alguém é constituído
membro do corpo episcopal" (LG 22,1).

Por isto dirá o Sínodo II C 4:


"A eclesiologia de comunhão oferece o fundamento sacramental da colegialidade".

4. Comunhão de igrejas.

A Igreja, na verdade, é ao mesmo tempo a realidade teológica que antecede


a cada uma das comunidades num sentido; e noutro, pelo contrário, é a realidade
sociológica que resulta de cada uma delas. Por isso, pode dizer-se que a Igreja é 'o corpo
das igrejas' (Lg 23,2). O fundamento desta afirmação é que a Igreja acontece, é real,
existe ali onde se celebra a Eucaristia, presidida pelo Bispo e dá-se no lugar concreto do
anúncio e da realização da morte do Senhor.

A Igreja, por conseguinte não é uma organização universal, complexa,


existente como totalidade da qual seriam delegações, ou representações ou agências cada
uma das igrejas particulares. É exactamente o contrário: o ponto de partida, realidade e
realização da Igreja, são as igrejas locais. Estas evidentemente não são toda a Igreja no
sentido de que a esgotem e não necessitem das outras nem tenham que estar em
comunhão com elas. Mas são toda a Igreja na medida em que contam com os elementos
essenciais do cristianismo.

O Concílio definiu a igreja local como 'portio' (LG 23; 28; CD 11; 28). Este
termo ao contrário do termo 'pars', designa uma parte, que conserva todas as qualidades
e propriedades do conjunto. A Igreja de Jesus Cristo encarna e toma corpo em cada lugar
onde se celebra a Eucaristia sob a presidência do legítimo Bispo, onde se anuncia a
Palavra de Deus, se invoca o Espírito Santo e se constrói a comunidade em Seu nome.
"Cada um dos Bispos é princípio e fundamento visível da unidade nas suas respectivas

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igrejas, formadas à imagem da Igreja universal, das quais e pelas quais existe a Igreja
católica, una e única" (LG 23).

A Eucaristia e o Bispo são os dois elementos constituintes da igreja local.


A LG 26 expressa estas realidades com toda a nitidez:

"Revestido da plenitude do sacramento da Ordem, o Bispo é o 'administrador da graça do


supremo sacerdócio', principalmente na Eucaristia, que ele mesmo oferece ou providencia
para que seja oferecida, e pela qual vive e cresce a Igreja. Esta Igreja de Cristo está
verdadeiramente presente em todas as legítimas comunidades locais de fieis, as quais
aderindo aos seus pastores, são elas mesmas chamadas igrejas no Novo Testamento. Pois
elas são, no local em que se encontram, o novo Povo chamado por Deus, no Espírito Santo
e com plena segurança. Nelas se congregam os fieis pela pregação do Evangelho de Cristo
e se celebra o mistério da Ceia do Senhor 'para que o corpo da inteira fraternidade seja
unido por meio da carne e sangue do Senhor'".

A Igreja local tem a primazia numa eclesiologia de comunhão. Dela partem


as realidades cristãs, e a partir dela se instaura a fraternidade com as outras igrejas. Bispos
e Eucaristia são os dois elementos constituintes, que por se encontrarem em outras
comunidades também, tendem a encontrar-se, estabelecer relação e criar uma unidade
superior.

Na Igreja antiga existiram muitos orgãos, sinais e realizações dessa


unidade- comunhão: 1 a presença de todos os Bispos das proximidades na consagração
de um novo Bispo, 2 as visitas, 3 a hospitalidade oferecida aos membros de outras igrejas,
4
as cartas de recomendação dadas a um irmão da comunidade, 5 as cartas de comunicação
de um sínodo, 6 as cartas de exortação à fé e fidelidade no martírio, 7 os testemunhos de
solidariedade ou de ajuda económica em casos de necessidade, 8 a aceitação da comunhão
ou excomunhão dadas pela Igreja a um membro em todas as outras igrejas.

Concílios, cartas e cartas sinodais eram os três grandes modos de expressar


e realizar a comunhão entre as igrejas. Dentro de cada cidade a unidade manifestava-se
pela celebração da Eucaristia numa só Igreja, presidida pelo único Bispo. Aos que não

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podiam participar enviava-se-lhes as 'eulogias', pedaços de pão benzido na Eucaristia, ou


o 'fermentum' pedaços de pão consagrado.

Dentro desta eclesiologia de comunhão em que a Igreja é definida como


comunhão das diferentes igrejas locais, o Bispo de Roma ocupou sempre um lugar
especial. Ele era o guardião da unidade e o representante das suas exigências concretas.
O seu papel podia descrever-se com estas palavras: solicitudo et potestas. Nele se
reconhecia a instância última a que se podia apelar. Era o primado em honra, em caridade
e em solicitude pelos outros. Só com o tempo se começa a explicitar como o primado de
jurisdição. Esta explicitação é a que recusam as igrejas do Oriente e a reforma.

"O Bispo de Roma era o primeiro dos Bispos; o seu papel num direito público de
comunhão, era guardar superiormente a unidade, julgando os casos que a punham em
questão, segundo a tradição e os cânones que regulavam a vida das igrejas. Podia falar-
se neste sentido de um 'poder na Igreja', para o distinguir de um 'poder sobre' a Igreja.
Ou também de um poder executivo não constituído. Mas a história mostrou que o poder
em arrasta um certo poder sobre e que a dignidade do 'primeiro dos Bispos' se funda e se
consuma num primado jurisdicional fundado, não numa simples conveniência ou numa
exigência da unidade, mas numa instituição do Senhor"46.

5. Comunhão da Igreja católica com outras igrejas e comunidades.

O Concílio ao contemplar a Igreja, primeiro desde as realidades teologais


que a constituem e depois desde as pessoas que a formam, tornou possível uma nova
relação com os outros cristãos, justamente porque o aspecto real e pessoal, mais que o
aspecto jurídico e institucional, permite recuperar o que une a Igreja com os outros
cristãos da Igreja (ortodoxa) e das comunidade eclesiais (nascidas da reforma).

A LG 8,1 define a Igreja como 'comunidade de fé, esperança e caridade'. O


facto de ter começado por aqui, o que inclui dois elementos: as realidades teologais e a
sua função congregadora de pessoas, permite ao Concílio descobrir os elementos cristãos

46 Y. CONGAR, De la comunion des églises à une ecclésiologie de l'église universelle., 234-235.

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das outras comunidades. Com elas tem a Igreja elementos comuns. A LG 15 analisou
esses elementos comuns e o Decreto sobre o ecumenismo precisou cada um deles.

Com as Igrejas nascidas da ortodoxia temos quase tudo em comum, à


excepção do reconhecimento do Romano Pontífice como autoridade suprema. Por isso,
Paulo VI falou de 'Igrejas irmãs'. Os outros cristãos mantêm a fé trinitária, os
sacramentos, a Sagrada Escritura, os ideais evangélicos, a vontade missionária. Por isso
existe uma comunhão, que é base de uma nova relação e um impulso para a recuperação
da unidade:

"Acrescenta-se a isto a comunhão de orações e outros bens espirituais; mais ainda, existe
uma certa união verdadeira no Espírito, o qual neles actua com os dons e graças do Seu
poder santificador, chegando a fortalecer alguns deles até ao martírio. Deste modo, o
Espírito suscita em todos os discípulos de Cristo o desejo e a prática efectiva em vista de
que todos, segundo o modo estabelecido por Cristo, se unam pacificamente num só
rebanho sob um só pastor". (LG 15).

O Decreto sobre o ecumenismo 3,4,17,22 volta a enumerar os elementos


comuns e o que nos separa da 'plena comunhão'. A unidade católica encontra-se
reintegrando-se naquela que manteve fundamentalmente a totalidade dos dons e auxílios
com que Cristo quis dotar a Sua Igreja. "Porque unicamente por meio da Igreja católica
de Cristo que é o auxílio geral de salvação, pode alcançar-se a total plenitude dos meios
de salvação" (UR 3,5). Enquanto não se consegue a unidade a comunhão não será plena.

6. Comunhão da Igreja com todos os homens.

Se é verdade que falta o fundamento da comunhão entre os católicos e os


não cristãos, no entanto há unidade de destino, unidade de procedência e unidade de
história. A Igreja não recebeu os dons de Cristo para ela; a vida divina de que vive está
destinada a todos os homens. Mais ainda, com a sua própria vida está destinada a ser
'fermento de unidade' e 'sinal de fraternidade' à qual estão chamados todos os homens.
Por isso, a Igreja sabe-se destinada ao mundo, mediadora da soberania reconciliadora e

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libertadora de Cristo para o mundo e neste sentido, sacramento da graça de Deus para o
mundo.

Por isso, a Lumen Gentium 1 abre com esta afirmação central:


"A Igreja é em Cristo como um sacramento, isto é, sinal e instrumento da íntima união
com Deus e da unidade de todo o género humano...". E a Gaudium et Spes propõe-se
traduzir em concreto, como significa a Igreja essa salvação para o mundo, nos problemas
concretos que este vive. "Todo o bem que o Povo de Deus pode prestar à família dos
homens durante o tempo da sua peregrinação deriva do facto que a Igreja é o 'sacramento
universal da salvação' (LG 48), manifestando e actuando simultaneamente o mistério do
amor de Deus pelos homens" (GS 45).

A Igreja é 'sacramento de unidade' (SC 26) e esta unidade não se reduz aos
próprios membros nem nos cristãos, mas abarca todos os homens. A todos está destinada.
Por isso, é sacramento da unidade do mundo, que é possível quando o Reino de Deus
chega. Unidade que por sua vez os homens necessitam para ser humanos, isto é, fraternos
e solidários. Por isso, é sacramento do Reino para o mundo.

7. Conclusão: valores e limites de uma eclesiologia de comunhão

A eclesiologia de comunhão recuperou a dimensão teológica enquanto conteúdo


e dimensão pessoal, como forma da Igreja. É comunhão fundada pelo próprio Deus ao
tornar-nos participantes da Sua vida divina, pela missão do Filho e do Espírito, tornadas
acessíveis para nós pelo Baptismo e pela Eucaristia. É a comunidade resultante daqueles
que participaram desses dons. Desde este aspecto recupera-se o valor das igrejas locais,
nas quais existem os elementos constituintes da Igreja, como realidade teológica.
Sublinha-se o valor dos Bispos e a importância das encarnações locais, culturais e
geográficas do cristianismo. Uma integração de realidades múltiplas aparece possível e
necessária à luz da comunhão, como expressões da tensão dialéctica entre unidade e
pluralidade, entre centro e periferia, entre plenitude e participação deficiente (Papa e
Bispos, igreja de Roma e igrejas do mundo, entre igreja católica e outras formações
cristãs).

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Esta eclesiologia não acentua as expressões externas dessa comunhão. A par da


comunhão interior há comunidade exterior, que é necessário integrar e constituir. Ao
mesmo tempo que existe unidade eucarística há unidade católica, isto é, constituída pela
universalidade de todos os que celebram a Eucaristia. Ao mesmo tempo que existe uma
realidade interior, que constitui todas as comunidades dispersas pelo mundo, tem que
haver uma expressão social, católica, dessa unidade em visibilidade. Essa socialidade
católica tem que ter uma expressão da sua unidade na universalidade. E essa unidade tem
que ter os orgãos últimos para que seja eficaz.

No Oriente compreendeu-se essa unidade partindo de baixo, na linha de uma


comunhão das igrejas locais personalizadas no seu Bispo. No Ocidente realizou-se essa
comunhão noutra perspectiva: uma unidade de estrutura, de legislação, que reflecte a
Igreja única de extensão universal, que tem na sede de Roma um centro de consciência,
um ponto de referência, e uma autoridade normativa de última instância. São duas
perspectivas que têm que ser integradas. Sem a primeira não há unidade de comunidades,
que são desde si mesmas e por si igrejas; sem a segunda não há igreja universal. A linha
de evolução oriental tem a sua forma nas 'autocefalias', que se revelaram incapazes de
garantir a unidade, levando ao limite a posição de S. Cipriano, para quem o Bispo na sua
diocese é a última palavra irrevogável e para o qual não havia instância superior, nem
sequer o Concílio, que pudesse prevalecer sobre o Bispo. A linha romana tem a sua forma
extrema no centralismo.

O Bispo de Roma foi reconhecido como o orgão querido por Cristo para que
essa unidade da Igreja tenha o seu conteúdo e eficácia. Por isso a comunhão existe com
Pedro e sob Pedro. O Papa não é superbispo. É sem mais Bispo de Roma e sucessor de
Pedro e enquanto tal, cabeça do colégio. E enquanto cabeça do colégio é garantia
qualificada e autorizada da comunhão.

Ora bem, este dado teológico não decide as formas de exercício que tal
autoridade pode ter. Uma eclesiologia de comunhão põe em relevo a autonomia, a
primordialidade de cada Bispo na sua igreja. O Papa não pode ignorar, relegar ou colocar
em segundo plano os Bispos. A Igreja nasce de baixo para cima. A iniciativa e a primeira
responsabilidade está nas igrejas locais, presididas pelos seus Bispos. O Papa nesta
ordem é segunda instância.

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O princípio de subsidariedade confere a autonomia de gestão às primeiras


instâncias e faz intervir as segundas só quando as primeiras não se valem por si mesmas.
O Sínodo extraordinário II, C, 8 convidou a estudar como se aplica este princípio na
Igreja, para explicitar o que é próprio de cada instância: igreja local e Igreja universal,
responsáveis mutuamente umas das outras.

A Igreja actual está a recuperar as formas de realização da comunhão em todas


as ordens: Igreja universal, igreja de cada região, igreja diocesana. Os sínodos,
conferências episcopais, os presbitérios, conselhos pastorais, são explicitações dessa
comum dignidade, ao mesmo tempo que da necessária participação e
corresponsabilidade na Igreja.

1. Para os Padres dos primeiros séculos o termo 'Koinonia' usado no contexto religioso

indica preferentemente uma relação de carácter vital, que se estabelece: a) dentro do

âmbito trinitário; b) entre Deus e os homens; c) nas relações interhumanas.

2. A Igreja: mistério de comunhão é imagem da trindade:


"Hoc est unitatis Ecclesiae sacrum mysterium, in Christo et per Christum, Spiritu
Sancto munerum varietatem operante. Huius mysterii supremum exemplar et
principium est in Trinitate personarum unitatis unius Dei Patris et Filii et Spiritus
Sancti".

"Este é o sagrado mistério da unidade da Igreja, em Cristo e por Cristo, realizando o


Espírito Santo a variedade dos ministérios. Deste mistério o supremo modelo e
princípio é a unidade dum só Deus, o Pai e o Filho no Espírito Santo, na Trindade de
pessoas" (UR 2).

3. Paulo VI formulou esta expressão: 'Igrejas irmãs' referida às Igrejas Católica e


Ortodoxa.

4. "Pio XII utilizou frequentemente o conceito de 'subsidariedade'; conceito que tinha


recebido do P. Gundlach. Este conceito tem duas vertentes. Isto significa que a

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autoridade superior não deve fazer o trabalho da autoridade inferior; que se a


autoridade inferior não o faz, corresponde à autoridade superior obrigá-la a fazê-lo.
Este tema que Pio XII tinha aplicado formalmente à eclesiologia, continua em uso...
É um conceito sempre válido, com os dois aspectos enumerados"47.

"O conceito de 'comunhão' é um conceito chave para o ecumenismo do Vaticano II e


a partir de então Paulo VI utilizou-o continuamente. Permite desbloquear a situação
resultante da Mysticis Corporis e da estrita identidade estabelecida entre membros do
Corpo místico e membros da Igreja católica romana. Evita o tudo ou nada. Estamos
já em comunhão, embora esta seja imperfeita, com os cristãos não católicos romanos.
Com os ortodoxos esta comunhão é quase perfeita. Esta eclesiologia de comunhão
ainda não disse a sua última palavra"48.

47 Y. CONGAR, Situation ecclésiologique au moment de "Ecclesiam Suam", Brescia, 1982, 128.


48 Idem.

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A IGREJA SOCIEDADE

1. A única 'realidade complexa' da Igreja e a dupla leitura dessa complexidade

O conceito fundamental mais usado a partir da revolução francesa até às


vésperas do Concílio Vaticano II, para estabelecer a natureza da Igreja, foi a noção de
sociedade. A partir de meados do século passado uniu-se a esta, a noção de 'Corpo místico
de Cristo', que aparece como contrapeso daquela, para colocar em primeiro plano as
perspectivas interiores, que aquela deixava em silêncio. Ambas encontraram na Encíclica
de Pio XII 'Mystici Corporis' uma fusão, na medida em que reintroduz o aspecto de graça
e carisma na mesma realidade do corpo social. No Vaticano II passarão ambas para o
segundo plano para se afirmarem como fundamentais as noções de 'Povo de Deus',
'comunhão' e 'sacramento de salvação'.

Qual é o fundamento, a origem, o valor permanente e os limites deste conceito?


Toda a eclesiologia tem que ter um ponto de partida, um ponto de mira, um conceito
fundamental que lhe sirva como ponte de acesso à realidade que quer compreender e
como marco dentro do qual tem que enquadrar todos e cada um dos múltiples aspectos
dessa realidade. Ora bem, a Igreja é uma complexa realidade, na qual existem múltiples
elementos de diversa origem e natureza, que afectam à vida humana de muitas maneiras,
que reflectem o mistério de Deus e da salvação humana a partir de pontos de vista
diversos. A eleição de um ponto de partida, conceito e método fazem com que apareçam
em primeiro plano de consideração umas ou outras dimensões da Igreja.

1.1. Há uma compreensão da Igreja que acentua os elementos divinos que a constituem:
1
a convocação que Deus faz por graça e soberana liberdade; 2 a Sua acção na história
chamando um povo primeiro e depois congregando todos os crentes em Cristo, com
independência da sua origem racial, cultural ou religiosa previa; 3 a Sua vida comunicada
aos membros da Igreja como forma nova de existência e exigência nova de acção; 4 as
5
realidades sacramentais e pneumáticas; a própria pessoa de Cristo, como modelo e
realidade participada; 6 o Espírito Santo como princípio último de acção e operação na
Igreja; 7 os carismas com os quais esse Espírito qualifica os crentes para que realizem a
sua missão; 8 as virtudes teologais e morais que o Espírito suscita. Numa palavra, pode

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174

contemplar-se a Igreja a partir das realidades teológicas fundantes (teologia-


pneumatologia) e a partir das determinações antropológicas que essa vida nova suscita
(antropologia sobrenatural). É uma compreensão ab internis.

Há outra compreensão da Igreja que acentua os elementos humanos, históricos,


sociais e jurídicos, por meio dos quais essa Igreja, Corpo de Cristo, comunidade de fé,
esperança e caridade entre os seus membros, se manifesta no mundo. A realidade não é
nunca apenas ideia ou mero projecto; é consistência, estrutura, organização. De contrário
não alcança a verdade no mundo. E todas as afirmações ideais ou utópicas, que se querem
fazer ficam no vazio. A Igreja por conseguinte, tem que ter uma expressão corporal,
visível e discernível, através da qual mostra como acessível e verificável a sua afirmação
de realidades divinas, invisíveis e sobrenaturais. Desde esta perspectiva aparece o
conceito de sociedade, como a forma em que a Igreja se expressa neste mundo como real,
verificando na concretização de uns homens e umas instituições o que anuncia como
possibilidade para cada vida humana. A sociedade traduz a comunhão. Ecclesia ab
externis.

Com isto aparece a tensão entre o elemento externo e o interno; a realidade


espiritual de graça e a realidade social de corpo de homens actuando neste mundo; a
acção divinizadora do Espírito Santo e a acção da autoridade humana que dentro da Igreja
leva a cabo a triple dimensão de ensinar, santificar e governar; a realidade da santidade
e as estruturas colectivas que arrastam sobre si a pobreza e o pecado dos homens; a
dimensão de comunidade unida pelos laços afectivos, quase naturais e a dimensão de
sociedade, sustentada pela observância de umas leis e pelo respeito de uns direitos: a
dimensão de concórdia e o exercício da autoridade; a vida e a estrutura; a graça e o poder;
o que há de divino nela e o que há de humano e demasiado humano.

1.2. Tal como na vida individual existe uma tensão entre a ordem do espírito e a ordem
da carne, sem que sejam separáveis uma da outra, nem existam uma sem a outra, de
maneira semelhante acontece na Igreja. A revelação e santificação divinas têm que
articular-se com a acção, relações e poderes humanos. Ambas as ordens constituem a
Igreja. A Igreja é constituída pelas almas e os corpos; a ordem da graça e a instituição
humana. Cada geração e cada teologia se inclinarão a conferir a primazia a uma ordem

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ou outra. Na história do Ocidente há uma influência agustiniana permanente que acentua


o espiritual, o pessoal, o subjectivo, que escapa a toda a circunscripção humana e que é
superior à ordem externa e jurídica. Newman deixa-nos sentir essa dualidade e influxo
agustiniano:

"O que constitui a Igreja são as almas de que é composta e que foram congregadas num
corpo único pela graça secreta de Deus. Esta graça vem-lhes, sem dúvida, por meio de
instrumentos exteriores e visíveis e une-as a uma hierarquia, visivelmente constituída,
mas o que faz o corpo místico da Igreja não são os meios puramente exteriores, mas a
graça divina que deriva deles e por meio da qual se estabelece a comunhão das almas. O
que vemos não é o todo da Igreja; isto é só a parte visível"49

O conceito de sociedade articula precisamente os elementos exteriores que


conferem visibilidade, consistência e articulação à vida da Igreja como assembleia real
de homens que tornam manifesta na sua vida a graça e seu poder, a vida divina e suas
consequências morais, que a confrontam e diferenciam de outras formas de sociedade;
que, por conseguinte, conferem realidade, verificavel e próxima à Igreja, a fim de que os
homens possam encontrar nela a salvação.

O perigo de uma compreensão societária da Igreja é que se pode ficar nos


elementos puramente naturais, visíveis e hierárquicos. Pode esquecer que é uma teologia
e antropologia mais que uma sociologia; que nela é mais importante o tratado sobre a
acção do Espírito Santo (pneumatologia) que o tratado sobre o poder e responsabilidade
dos Bispos e do Papa (hierarcologia). Esse conceito é, no entanto, insubstituível, já que
caso contrário esqueceríamos uma das dimensões da Igreja: ser o corpo visível da nova
humanidade de Cristo, estar constituída por homens, ser o sinal visível do mundo
invisível, o instrumento material da graça espiritual.

2. O contexto histórico do nascimento desta categoria

A elaboração de uma eclesiologia com a categoria de sociedade foi o resultado


de um longo processo histórico, no qual a Igreja foi questionada pela sociedade na sua

49 NEWMAN, El poder secreto de la gracia, homilia na Igreja da universidade de Diblin 1856.

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existência, missão e características específicas, através do poder político e de grupos


espirituais. O primeiro problema foi sempre a sua distinção em relação à sociedade civil,
a sua integração dentro dela e a relação entre a autoridade própria dessa sociedade e a
autoridade própria da Igreja.

Quando o império romano se abre ao cristianismo e se reconhece a autoridade


do Bispo de Roma inclusivamente sobre os imperadores já cristãos, então surge a questão
da soberania espiritual e da soberania temporal. É a categoria 'autoridade', política e
eclesial a que vai dar ocasião para discernir o que são as duas ordens e indirectamente a
discernir o que são o poder temporal e espiritual dentro da Igreja.

Gelasio I (492-496) enunciou o princípio que estabelece a consistência e


diferença entre ambos: Existem dois poderes no mundo um sagrado outro real. O que
este papa diz sobre os que exercem autoridade suprema em relação ao mundo e em
relação à Igreja, dirá mais tarde o Vaticano II em relação às duas ordens autónomas da
realidade: "A autoridade política e a Igreja são no seu próprio campo independentes entre
si e autónomas" (GS 76,3).

2.1. A definição da Igreja como sociedade nasce num contexto de afirmação, de defesa
e de comparação da Igreja frente ao imperador primeiro, frente aos grupos espirituais
depois, frente ao estado e nações modernas. Há que entendê-la à luz do questionamento,
negação da autoridade, ou redução da Igreja ao poder político, negando-lhe auto-
suficiência na sua ordem e autonomia da sua própria vida, tanto na ordem do conteúdo
como na ordem da autoridade.

O primeiro contexto é a sociedade medieval unificada, na qual a comunidade de


fé e a cidadania formam um mundo completo, no qual a fé é o princípio de ordenação da
existência em todas as ordens. Nesse mundo único existem duas autoridades distintas: o
Papa e o imperador. Ambos reclamam ser autoridade máxima e soberania em relação aos
súbditos da cristandade.

O choque entre imperador e Papa, que tem o seu ponto alto na luta das
investiduras, faz surgir a questão da soberania da Igreja a respeito dos seus fins, meios e

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orgãos de autoridade. A luta de Gregório VII, Inocêncio III, Bonifácio VIII, João XXII,
com os respectivos soberanos é pela soberania da Igreja na sua própria ordem. O
resultado destas largas lutas foi a compreensão da Igreja como um sujeito de direitos,
como uma pessoa jurídica, como uma ordem própria que enquanto tal está subtraída ao
imperador e que tem no Papa a cabeça de uma autoridade, de origem divina que procede
de Cristo, Cabeça invisível.

Enquanto num momento a resposta à pretensão de soberania absoluta do


imperador é a autoridade do Papa, posteriores situações de cisma e degradação moral do
pontificado fazem surgir o tema do Concílio, como orgão supremo da autoridade eclesial.
Durante séculos o conciliarismo frente ao pontificado concentrou a consciência da Igreja
na questão dos poderes e de seus sujeitos. Nela misturavam-se o tema do episcopado
junto ao pontificado e o tema das nacionalidades com a unidade do império.

2.2. Um segundo facto histórico centra-se na realidade externa da Igreja e nos orgãos de
autoridade. Os movimentos reformadores e as heresias medievais questionam a Igreja
actual e negam-lhe o seu carácter cristão. A Igreja visível não pode ser a Igreja que Cristo
quis. A Igreja real não é a presidida pelos poderes eclesiásticos mas a dirigida pelo
Espírito Santo e que vive em santidade e pobreza, da graça do Evangelho, das bem-
aventuranças e não do poder.

Frente a uma Igreja visível apresenta-se como verdadeira outra que é invisível,
santa, pobre, de predestinados, que escapa ao controle e ao poder da hierarquia e que,
portanto, está para além de decisões e excomunhões. Os Cátaros, Valdenses, Wiclef, Hus
e finalmente Lutero representam um questionamento de visibilidade, autoridade e ordem
externa da Igreja, que como reacção vai produzir uma concentração precisamente nessas
ordens negadas.

Frente a uma Igreja de comunhão de santos e predestinados reclamar-se-à uma


Igreja sociedade visível, com orgãos de autoridade e decisão, que podem mostrar
claramente quais são os critérios de verdade do Evangelho e, portanto, de pertença à
Igreja. Ser cristão, pertencer à Igreja, ter as chaves da vida eterna não é algo etéreo mas

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concreto, que pode ser verificado externamente. A esperança da vida eterna não é
dissociável da pertença à Igreja externa.

O expoente máximo desta reacção, surgida depois de Trento na contra-reforma,


é Belarmino. Ele define a Igreja tomando posição frente às seguintes noções:

1. A Igreja é a congregação dos predestinados (Valdenses), Wiclif, Huss).


2. A Igreja é a multidão de homens, que não têm pecados (Pelagio, Anabaptistas).
3. A Igreja é a congregação dos justos, que nunca pecaram na ordem da fé, negando a
confissão cristã (Movacionistas, Donatistas, Cataros).

4. A Igreja é a congregação dos santos, que verdadeiramente crêem e obedecem a Deus


(Lutero, Confissão de Augsburg 7).

5. A Igreja consta só dos justos e dos predestinados. A verdadeira Igreja só é conhecível


por Deus, porque o seu fundamento é a eleição divina. Há uma Igreja visível na qual
estão os bons e os maus; e outra invisível na qual só estão os eleitos por Deus.

Belarmino define assim a Igreja:

"A Nossa sentença é que a Igreja é só uma, não duas e que esta única e verdadeira é a
reunião de homens unidos pela profissão da mesma fé cristã, pela comunhão dos mesmos
sacramentos, sob o regime dos legítimos pastores e principalmente do Romano Pontífice,
Vigário do único Cristo na terra" (Tomo II. Livro III. Cap. II. Pg. 98-99).

Depois distingue com Sto Agostimho os dois níveis da Igreja: a alma e o corpo,
que formam um corpo vivo. A alma são os dons internos do Espírito Santo, a fé, a
esperança e a caridade. O corpo são a profissão externa da fé e a comunicação nos
sacramentos. Por isso, haverá diversas formas de pertença à Igreja: à alma e ao corpo
(união a Cristo e união à Igreja nas suas mediações exteriores); à alma e não ao corpo (os
catecúmenos e os excomungados, se não perderam a fé e a caridade); ao corpo e não à
alma (os que sem virtude alguma permanecem unidos, pelo temor ou a esperança, na fé
e sacramentos comuns da Igreja, sob a autoridade dos pastores). A definição que ele dá
de Igreja refere-se a esta terceira ordem e abarca o mínimo exigido.

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Os dois elementos sublinhados, como principais nesta perspectiva, são a


visibilidade e a autoridade do Papa. Veja-se o seguinte texto:

"A Igreja não é uma sociedade qualquer, não é de anjos nem de almas mas de homens.
Ora bem, não se pode chamar-lhe sociedade de homens a não ser que esteja formada por
sinais externos e visíveis, pois não há sociedade se não se conhecem os que que se
chamam seus membros. Ora bem, não se podem conhecer os homens, a não ser que
existam vínculos sociais, externos e visíveis. E isto confirma-se pelo costume de todas as
sociedades humanas, pois ao exército, à cidadania, a um reino e a outras instituições
semelhantes não se pertence de outra forma que por meio de sinais visíveis" (Id. 132).

2.3. O terceiro contexto histórico em que aparece o conceito de sociedade, mais, de


'sociedade perfeita' como categoria fundamental para compreender a Igreja, é o
surgimento do Estado e nacionalidades modernas. Frente ao cristianismo medieval, no
qual a Igreja e comunidade política formam uma única sociedade perfeita, surge agora,
entre outras razões como resultado da divisão religiosa, o estado moderno, consciente da
sua soberania e independência em relação a dogmas ou verdades religiosas. E ao mesmo
tempo as nações, cada uma orgulhosa das suas características, orgãos de poder e
instituições próprias.

Frente ao império universal e ao pontificado de Roma surgem agora os


soberanos nacionais e o episcopado nacional. Os estados surgidos em território
protestante oferecerão uma compreensão nova da Igreja na linha corporativa ou
associativa. A Igreja é compreendida como um 'colegium' dentro do Estado e sob o
Estado. Ela não possui autoridade sobre si mesma para se governar mas é controlada
pelos orgãos do Estado. Samuel Pufendorf (1694) e Christopher Plaff (1760) são dois
dos grandes teóricos desta compreensão das 'igrejas estatais' ou do sistema colegial'.

No horizonte aparecem duas grandes concepções: a distinção entre a ordem


pública (segundo a qual tudo pertence ao Estado) e a ordem privada (em que o indivíduo
pode actuar livremente). A religião e a Igreja, desde o momento em que são públicas,

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ficam sob a competência do Estado. O que é privado e subjectivo é insignificante,


irracional, intansmissível.

O segundo princípio é o da soberania nacional em todas as ordens, também a


religiosa e, por conseguinte, a sujeição das igrejas nacionais às autoridades estatais de
cada país. Esta mistura de pressupostos filosóficos, reclamações políticas e consciência
nacional frente ao centralismo romano, exigências absolutas frente à fé, exigências das
igrejas locais e bispados frente à supremacia do Papa e à sua intervenção nas igrejas
nacionais, vai-se articular em cinco grandes movimentos históricos:

- Galicanismo
- Febronianismo
- Josefismo
- Revolução francesa

Em todos eles, sob distintas componentes nacionais e políticas, está uma questão
nova: a integração da pessoa e liberdade nas diferentes ordens da vida: política e
religiosa. O público pertence todo ao Estado? Como se realiza a pessoa e sob que
autoridade cai quando crê e quando realiza a sua fé mediante actos de culto, organização
pública da fé, instituições sociais e culturais derivadas dela? Qual é a autoridade do
Romano Pontífice em relação a essas articulações sociais, culturais e nacionais da fé?
Nesta problemática o Estado vai questionar a autoridade da Igreja e a sua liberdade para
organizar a vida dos crentes, considerando-a submetida ao Estado, dependente dele. A
soberania do Estado em todas as ordens da vida humana é a resposta do pensamento
moderno. A isso chama-se liberalismo ou laicismo.

2.4. Sobre este fundo de questionamento da autoridade, liberdade e independência da


Igreja surge a noção de Igreja como sociedade perfeita. Para isso os teólogos clarificaram
a distinção entre ambas as ordens e reconheceram a cada um deles competência no seu
campo próprio. Vejam-se três testemunhos sucessivos desta afirmação da perfeição
interna da Igreja em relação ao seu fim próprio:

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- "A república eclesiástica deve ser perfeita e por si suficiente em ordem ao seu fim".
(Belarmino, Controv I. Liv. V. Cap.7).

- "A sociedade perfeita é dupla, eclesiástica e civil" (B. Fragoso, Jesuita português (1559-
1639).

- “A sociedade cristã é de origem divina. É sociedade perfeita" F. Rautenstrauch (1776).

A teologia católica elabora-se a partir da refutação da noção protestante de


'colegium' na recusa das pretensões absolutistas dos governos, na afirmação da
autoridade episcopal do Papa frente às tendências conciliaristas, galicanas ou nacionais
dos distintos episcopados. Com isso vai-se elaborando uma eclesiologia sob o sinal da
instituição, da autoridade, do centralismo pontifício e da romanidade. Na medida em que
esses ataques exteriores se intensificam concentra-se a consciência eclesial nesses
elementos próprios, como garantia de auto-afirmação. O Papa é no século XIX o símbolo
da autoridade, da ordem, da fidelidade à verdade revelada, frente às revoluções, à
desordem, às pretensões absolutas da razão, frente às divisões e submissão dos católicos
aos poderes nacionais.

Todos os Papas do século XIX e XX, os textos preparatórios do Concílio


Vaticano I e as Encíclicas da época sustentaram essa concepção da Igreja como sociedade
perfeita, em referência a essa dupla noção: concepção colegial do protestantismo,
concepção absolutista do Estado. A elas unem-se depois as noções reducionistas
subjectivistas e vivenciais, que o modernismo faz da Igreja, contrapondo a consciência
religiosa individual à autoridade externa e jurídica.

Ao longo da segunda parte do século XIX e primeira do século XX, tentam


impor-se duas perspectivas: a que considera que a verdadeira definição da Igreja é "Corpo
místico de Cristo" e a que considera que é "sociedade perfeita". Curiosamente esta
alternativa é a que está no centro do Vaticano I, enquanto que no Vaticano II se contrapõe
entre Povo de Deus, por um lado e Corpo de Cristo e sociedade perfeita, por outro.

No século XIX atinge o ponto mais alto um movimento de concentração da


autoridade eclesial no Bispo de Roma e, por conseguinte, uma compreensão da Igreja,

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centrada à volta de sociedade hierárquica. O Vaticano I, com a definição da supremacia


e da infalibilidade, constitui o final dessa evolução.

Vejam-se três formulações do magistério pontifício ao longo de um século a


propósito do conceito 'sociedade perfeita':

- “A Igreja não é uma verdadeira e perfeita sociedade, completamente livre, nem está
provida de direitos próprios e constantes, que lhe conferiu o seu divino fundador; pelo
contrário, corresponde ao poder civil definir quais são os direitos da Igreja e os limites
dentro dos quais pode exercê-los" (Syllabus. Proposição condenada nº 19, por Pio IX.
1864).

- A Igreja é "uma sociedade distinta de toda a reunião de homens, que se dirige para o
seu próprio fim e por seus próprios meios e razões, a qual é absoluta, completa e
suficiente em si mesma para alcançar aquelas coisas que lhe pertencem, e que não está
submetida nem unida como parte, nem misturada, nem confundida com nenhuma outra
sociedade" (Esquema preparatório do Vaticano I)

- Os modernistas negam que Cristo tenha querido fundar a Igreja como sociedade, mais
ainda, que tenha querido fundar uma Igreja. (Decreto Lamentabili 1907). Proposição
condenada nº 52: "Foi alheio à mente de Cristo constituir a Igreja como uma sociedade
que duraria na terra por largos séculos; mais ainda, na mente de Cristo o reino dos céus
estava a ponto de chegar junto com o fim do mundo"

Encíclica 'Pascendi' (8 Setem. 1907). Os modernistas "afirmam que a Igreja na


origem surge por uma dupla necessidade: uma, existente em qualquer crente,
especialmente naquele que adquiriu uma experiência primigénea e singular, para
comunicar a sua fé com os outros; Outra, uma vez que a fé se tornou comum entre vários,
na colectividade, para ir crescendo em sociedade e para defender, aumentar e propagar o
bem comum. Que é, portanto, a Igreja? É o parto da consciência colectiva ou da comum
associação das consciências singulares, que pela força do princípio vital dependem de
um primeiro princípio crente, isto é, para católicos, de Cristo" (DS 2091).

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Portanto a Igreja é sociedade: perfeita, livre, não dependente do poder político


e a sua origem não é a consciência do homem na sua experiência religiosa mas a
instituição positiva de Cristo. O Vaticano I tinha resumido a tese num esquema
distribuído em 21 de Janeiro de 1870, mas não discutido. Leão XIII no seu magistério
fará da Igreja 'sociedade perfeita' uma tese constante e elaborada com toda detenção e
aplicação concreta. Entre os muitos documentos contamos um, a Encíclica 'Immortale
Dei' (1885):

"Esta sociedade, embora formada de homens como a comunidade civil, no entanto, pelo
fim que se estabeleceu e pelos meios que possui para atingir esse fim, é sobrenatural e
espiritual e, por isto, distingue-se e difere da sociedade civil. E, o que é mais interessante,
é no seu género e por direito perfeita, já que possui em si e por si mesma todos os auxílios
necessários para a sua acção, e isto por vontade e benefício do Seu fundador. Assim como
o fim para que tende a Igreja é muito mais nobre, assim o seu poder é muito mais elevado
que os outros, nem pode ser considerada inferior ao poder civil nem de maneira nenhuma
pode ser-lhe prejudicial" (DS 3167).

Esta doutrina é uma constante em Pio X, Bento XIV e Pio XI. Este fala de três
sociedades necessárias: duas naturais (família e comunidade civil) e uma sobrenatural: a
Igreja (Divini illius Magistri: 1929. DS 3685). Pio XII tenta fundir as duas noções: corpo
místico e sociedade, mostrando que a Igreja é sociedade visível e que essa sociedade
enquanto tal é o corpo de Cristo; e que por sua vez este não se refere a uma magnitude
espiritual invisível, mas a essa mesma realidade social, identificável no mundo como tal
Igreja.

3. Conteúdo teórico desta definição da Igreja

3.1. Sociedade - comunidade

Qual é o conteúdo teórico desta afirmação aplicada à Igreja? Ela tende


primordialmente a colocar em primeiro plano a dimensão social, isto é, a sua realidade
deste mundo, formada por sujeitos, instituições visíveis. Uma sociedade comporta

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consigo a união de homens, que se propõem um fim, que fixam uns meios para os
conseguir, e que se unem entre si com uns vínculos, ao mesmo tempo que estabelecem
uma autoridade, que regula os direitos e deveres que existem entre eles.

A sociedade (ao contrário da comunidade que se refere mais a realidades que


procedem da natureza e da história vividas em comum e que geram elementos que
unificam e religam diferentes grupos de homens) refere-se a agrupações nascidas de uma
decisão da vontade, de um acto fundacional , de uma organização estruturada segundo
umas leis que se fixaram positivamente, de uma eleição pela qual cada um se integra
nela, de uns direitos que fixam a liberdade de uns em relação aos outros. As comunidades
remetem à ordem da natureza e as sociedades à ordem da vontade.

A comunidade tem na origem uma vida, uma história ou experiência comum


que religa as vontades com anterioridade à sua decisão. A sociedade nasce da reflexão,
decisão e eleição. É fruto da liberdade que prefere e da vontade que escolhe. No entanto,
a distinção não pode forçar-se já que em toda a comunidade há elementos societários e
em toda a sociedade há elementos comunitários. As comunidades são produtos naturais,
enquanto que as sociedades são produtos artificiais. Às primeiras (família, tribo, grupo
rural...) pertence-se por origem natural, às segundas pertence-se por um contrato social.
Nas primeiras existem leis de sangue, de terra e de pão, nas segundas as relações do
direito, a independência, a autonomia.

Normalmente a teologia partiu da noção filosófica de sociedade e foi aplicando


cada um dos elementos à Igreja. Sociedade é a união moral e estável de diversos homens
em ordem a conseguir um fim por meio de uma acção comum. Estabelece-se então a sua
origem que pode ser natural ou sobrenatural. E aqui aparece a acção de Cristo como
fundador.

3.2. Elementos constituintes da sociedade

Os elementos que entram na noção de sociedade são os seguintes:

a) Origem ou instituição
b) Constituição ou estrutura

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c) Fim que se há-de perseguir


d) Autoridade ou poder como força moral para obrigar os elementos
e) Meios para conseguir o fim
f) Relação ou coordenação entre os membros
g) Leis ou direito que fixa a ordenação entre todos

Sobre este esquema de fundo afirma-se que a Igreja é a união estável de homens,
fundada por Cristo para conseguir um fim sobrenatural (a salvação), perseguem este fim
com a ajuda dos sacramentos e sob a direcção dos pastores que a regem.

Há uma causa eficiente divina que é Cristo como fundador e fundamento; há


uma causa final sobrenatural, que é a participação na vida divina, como redenção e
divinização; há uma causa material que são os homens que em liberdade aderem a ela
pelo Baptismo e permanecem como seus membros, no exercício da vida cristã e na
obediência aos legítimos pastores; há uma causa formal que é a nova forma de vida,
derivada da acção do Espírito Santo no coração dos crentes e que se concretiza na fé,
esperança e caridade.

Origem, fim e meios, são específicos da Igreja e a diferenciam de outras


sociedades como o Estado, que é natural e a família, e daquelas nascidas da livre
iniciativa dos homens. A definição do Cardeal Gasparri no seu 'Catecismo Católico'
sintetiza assim estes elementos: "A Igreja instituída por Jesus Cristo é a sociedade visível
composta de homens que receberam o Baptismo e que unidos entre eles pela profissão
da mesma fé e o laço de uma mútua comunhão, tendem ao mesmo fim espiritual, sob a
autoridade do Pontífice romano e dos Bispos, em comunhão com ele".

3.3. As propriedades da sociedade Igreja

Junto aos elementos comuns a todas as sociedades (género) enumeram-se os


próprios da Igreja (espécie). A origem, o fim, a constituição e os meios derivam da
vontade fundadora de Cristo. Sobre a constituição, a teologia clássica ficava quase
sempre na determinação de um poder conferido aos Apóstolos e transmitido aos Bispo:
"Cristo entregou aos Apóstolos o poder de reger, ensinar e santificar, aos quais obrigou
todos os homens a submeter-se. Por isso, é o autor da sociedade hierárquica que

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chamamos Igreja". Desta perspectiva são três as qualidades que se sublinharam com
especial interesse. A Igreja é uma sociedade:

a) Sobrenatural: seu fundador é Cristo


b) Hierárquica ou desigual: por direito divino existe uma diferença
c) Perfeita: provida de poder para legislar, governar e obrigar.

À luz destes três dados vão ficar em primeiro plano a dimensão externa e
hierarquizada, de forma que a distinção entre governantes e governados passa a primeiro
plano. Esse poder, que fundamenta a distinção pode ser situado no episcopado, como seu
lugar próprio, dele participando outros, ou pode ser situado no Papa. Quando se faz isto
e se absolutiza até ao ponto de considerá-lo como supremo, único e fazendo derivar dele
todo o poder na Igreja, temos uma compreensão monárquica.

A Igreja não é uma monarquia, porque o Papa não é o único poder do qual
derivaria todo o outro poder, de que poderia prescindir ou subjugar, uma vez que os
Bispos são igualmente de direito divino. Nem sequer a infalibilidade permite uma
compreensão monárquica da Igreja: que seja a autoridade suprema não quer dizer que
seja a única nem absoluta, enquanto que possa anular as outras. Quando se compreendeu
a Igreja equiparando-a a uma monarquia política e ao Papa como um monarca
constitucional ou hereditário desnaturalizou-se a Igreja (Cf. Karl Rahner, L'Episcopat,
541-564).

O adjectivo 'perfeita' aplicado à Igreja não se refere à sua perfeição moral ou


religiosa. Significa que é uma sociedade original, autónoma, que possui em si mesma
todos os meios necessários para conseguir o seu fim próprio e que na sua organização e
funcionamento é independente do Estado e de qualquer poder deste mundo. Indica,
portanto, a autosuficiência e autonomia da Igreja.

De facto na história vivida da Igreja esse conceito teve tendência a significar


outra coisa: a criação de uma vida eclesial, que oferecesse para os crentes um mundo
completo, determinado pela fé e que respondesse a todas as necessidades do homem. Um
mundo completo dentro da Igreja. A Igreja distanciava-se do mundo e alheava os seus
membros do mundo, porque lhes oferecia dentro de si tudo o que em todas as ordens

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necessitava: cultura, saúde, desporto. Numa palavra a Igreja como sociedade perfeita
acabou por significar um mundo cristão, ao lado do mundo pagão.

3.4. Releitura desta categoria pelo Vaticano II

A definição da Igreja como sociedade tem uma origem polémica e ficou


afectada por ela: a defesa da autoridade do Papa frente ao Imperador, a defesa da
autoridade hierárquica frente a uma compreensão espiritualista da Igreja, a afirmação da
independência da Igreja frente à autoridade do Estado. O que foi uma provocação exterior
e suscitou umas afirmações parciais e polémicas acabou por converter-se no instrumento
normal para definir a essência da Igreja. Junto a elementos válidos deu-se a absolutização
de elementos que rompiam o equilíbrio do conjunto. Isto significou uma
sobrevalorização da visibilidade da Igreja, da sua autoridade, hierarquia, magistério,
poder supremo, direito.

O Concílio Vaticano II ao final desta evolução de dez séculos reassumiu os elementos


válidos e decantou as parcialidades ou absolutizações, integrando estas perspectivas
numa visão mais completa e mais próxima à experiência bíblica e à tradição eclesial do
primeiro milénio, ao mesmo tempo que à teologia missionária.

1. O Vaticano II manteve o termo 'societas' mas sem fazer dele o centro de compreensão
da Igreja. Este centro é o termo 'mysterium' 'comunio' 'populus messianicus'.
Algumas situações:
"Esta Igreja, constituída e organizada neste mundo como sociedade' (LG 8).
"São plenamente incorporados à sociedade que é a Igreja" (LG 14).
"Os Apóstolos trataram de estabelecer sucessores, nesta sociedade hierarquicamente
constituída" (LG 20).
"constituiu dentre os fiéis, alguns como ministros que, na sociedade dos crentes,
possuíssem o sagrado poder da Ordem" (PO 2).

2. Reconheceu a natureza societária da Igreja, dotada de um poder próprio nos seus


ministros para realizar uma função específica. No entanto, essa afirmação da natureza
hierárquica foi situada num contexto muito mais amplo. A desigualdade não é da

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ordem ontológica, mas da ordem da funcionalidade. O capítulo segundo da Lumen


Gentium pôs de relevo a igual dignidade cristã de todos os que formam a Igreja, a
igual participação nos bens messiânicos, a única missão servida com diferentes
ministérios. Frente a uma eclesiologia juridicamente determinada prevaleceu uma
eclesiologia de comunhão, na qual os elementos positivos do cristianismo na ordem
sacramental e espiritual determinam a existência cristã.

3. Essa dimensão societária não está absolutizada nem é considerada em si mesma. A


unidade visível querida explicitamente pelo seu fundador está destinada a ser meio
pelo qual Ele difunde a graça e a verdade a todos. Não é, portanto, objecto directo de
consideração e de valorização. A autoridade, por conseguinte, está ao serviço da
caridade . O direito ordena-se ao amor. A sociedade de meios à comunidade de
virtudes. "Cristo, o único mediador, instituiu e mamtem continuamente na terra a sua
Igreja santa, comunidade de fé, esperança e caridade como uma estrutura visível,
comunicando mediante ela a verdade e a graça a todos" (LG 8).

4. O Vaticano II reconheceu a origem sobrenatural da Igreja em Cristo seu fundador,


mas sublinhou com igual interesse o facto de que Cristo não fica fora da Igreja, como
qualquer outro fundador de uma sociedade, mas é princípio permanente e inerente de
vida. Por essa presença permanente de Cristo, dando o seu Espírito à Igreja confere-
lhe os meios necessários para conseguir o seu fim. A Igreja tem na palavra, nos
sacramentos, no ministério apostólico, nos carismas permanentes e nas graças
sucessivas, o fundamento suficiente para realizar a sua missão e conseguir o seu fim.

5. Neste sentido reconhece implicitamente que a Igreja é uma sociedade perfeita na sua
ordem própria, mas com isso não ratifica a concepção fechada da Igreja sobre si
mesma, como um mundo suficiente, que oferecia ao cristão todas as possibilidades
necessárias à sua humanidade em todas as ordens. A Constituição pastoral Gaudium
et Spes abriu a Igreja à situação histórica, convidando-a a partilhar em solidariedade
todas as necessidades e alegrias da história humana. A Igreja já não tem como
primeira tarefa as suas obras mas a obra única e comum da humanidade.

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6. O conceito de sociedade não pareceu ao Concílio apto para explicitar descobertas que
na consciência conciliar eram decisivas: a igreja local e o ecumenismo. A categoria
de sociedade perfeita era referida à Igreja universal, com o seu centro em Roma, a
única que tinha capacidade de legislar, reger e obrigar definitivamente e para todos.
As Dioceses neste sentido não seriam Igreja, porque não seriam sociedade perfeita.
Toda a teologia da Igreja local, exposta na Lumen Gentium vai contra esta orientação,
ao fazer da Igreja local o lugar de realidade e de realização da Igreja como plenitude
de graça.

A noção de sociedade não facilitava a compreensão da pertença à Igreja. Com


esta categoria não havia solução possível: o pertencer ou não pertencer à Igreja de
forma externa e visível. Participar do 'mistério' ou realidade sobrenatural constituinte
da Igreja pode dar-se em plenitude ou em parte. Assim pode compreender-se a
pertença plena ou não plena, a comunhão plena ou não plena na Igreja.

7. O Concílio sublinhou com toda a nitidez a diferença entre a sociedade política e a


sociedade cristã, entre Igreja e Estado, reclamando ao mesmo tempo a liberdade para
levar a cabo a sua missão, recusando toda a influência estatal, e conferindo autonomia
absoluta aos respectivos Estados na sua ordem própria. Mas aqui variou a perspectiva
em relação à posição anterior. A Igreja pede agora liberdade para o indivíduo e para
os grupos, religiosos e não religiosos.

A liberdade que pede para ela é a que pede para todos. Os pontos de partida são
os direitos da pessoa humana e a liberdade de agrupação num mundo pluralista. A
Igreja não reclama do Estado uma liberdade para ela como grupo privilegiado, mas
reclama para as pessoas o âmbito da sua afirmação plena, como indivíduos e como
grupos, na ordem eclesial e noutras ordens. Por isso, reclama liberdade para a missão;
liberdade para os seus ministros e suas instituições.

8. O Concílio integrou o aspecto que sublinhava a ideia de Igreja sociedade na categoria


de sacramento. Este assume o externo, material e visível, mas fá-lo passar para a
ordem da realidade ao qual serve e do qual recebe o seu sentido. A unidade visível,
como a humanidade de Cristo está chamada a ser orgão de salvação (LG 8).

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9. Uma compreensão da Igreja como sociedade tinha o perigo de compreender a


autoridade da Igreja em igualdade com a autoridade na sociedade civil. Na Igreja a
autoridade é concedida por Cristo, é qualificada pelo Seu Espírito mediante o
sacramento e deve realizar-se como serviço. Equivalentemente a obediência tem
outro sentido: é a Cristo o Senhor a quem se obedece, mediante o seguimento das
normas estabelecidas pelos Apóstolos. Com isto aparece a especificidade do direito
e dos direitos na Igreja. O direito canónico é, por conseguinte de natureza teológica.
A comunhão no amor tem que se explicar mediante o direito.

VI

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A IGREJA SACRAMENTO DE SALVAÇÃO

1. Origem e sentido desta categoria aplicada à Igreja

O Concílio Vaticano II abriu a Lumen Gentium com uma descrição da Igreja


afirmando que ela é "sacramento de salvação". Esta compreensão sacramental da Igreja
tem as suas origens no século XIX e alcançou plena utilização na teologia durante o
decénio 1950-1960. Möhler definia a Igreja como uma manifestação e perduração ou
prolongamento do Verbo encarnado, que consta de um elemento divino e de um elemento
humano. E deste elemento humano dizia que era 'orgão manifestativo do elemento
divino'. Scheeben, por seu lado, atribui explicitamente o termo “sacramento” à Igreja, e
compreende-a a partir das duas realidades essenciais do cristianismo: a encarnação e a
Eucaristia.

A Igreja nasce da vontade explícita do Verbo encarnado e nasce da celebração


permanente da Eucaristia. Num e noutra há um elemento humano assumido por uma
potência divina. E neste sentido é sacramento. Por isso Scheeben define a Igreja assim:
"Em sintonia com a encarnação e com a Eucaristia, também a Igreja se converte num
grande sacramento". Finalmente Pio XII, na Mystici Corporis, ao diferenciar a realidade
espiritual da estrutura jurídica da Igreja, e ao acentuar a unidade entre ambas, orientava
também para esta compreensão sacramental que foi elaborada por teólogos como Lubac,
Schillebeeckx, Rahner, e que mediante a intervenção da Conferência Episcopal alemã
penetrou no Concílio.

Esta definição podia chamar-se funcional já que fundamentalmente compreende


a Igreja à luz da missão que tem que cumprir para os outros, mais além de si mesma. A
palavra 'sacramento' refere-se à estrutura constitutiva da Igreja. O genitivo salvação
refere-se à eficiência dessa realidade e a quem está destinada. Desta forma põe-se de
manifesto como a realidade da Igreja é relativa àquele de quem vem a salvação e àqueles
a quem a salvação se dirige.

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A Igreja está situada como ponto de inserção de uma realidade divina e como
ponto de efusão ou comunicação dessa realidade divina aos homens. Essa é, portanto a
sua essência: a sua missão. Ontologia e funcionalismo aqui coincidem. A Igreja é aquilo
para o que existe: realidade cuja consistência consiste na disponibilidade nas mãos de
Deus para o serviço dos homens. Ser e serviço, realidade e missão coincidem.

2. O termo nos textos do Concílio

O Concílio utilizou o termo 'sacramento' referido à Igreja em três Constituições.


Vejamos os textos e contextos desta ideia:

SC 2: "A Liturgia, pela qual, especialmente no sacrifício eucarístico, «se opera o fruto
da nossa Redenção», contribui em sumo grau para que os fiéis exprimam na vida e
manifestem aos outros o mistério de Cristo e a autêntica natureza da verdadeira Igreja,
que é simultaneamente humana e divina, visível e dotada de elementos invisíveis,
empenhada na acção e dada à contemplação, presente no mundo e, todavia, peregrina,
mas de forma que o que nela é humano se deve ordenar e subordinar ao divino, o invisível
, a acção à contemplação, e o presente à cidade futura que buscamos. A Liturgia ... mostra
a Igreja aos que estão fora, como sinal erguido entre as nações".

SC 5: "Foi do lado de Cristo adormecido na cruz que nasceu o sacramento admirável de


toda a Igreja".

SC 26: "As acções litúrgicas não são acções privadas, mas celebrações da Igreja, que é
"sacramento de unidade", isto é, Povo Santo reunido e ordenado sob a direcção dos
Bispos".

LG 1: "A Igreja, em Cristo, é como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima


união com Deus e da unidade de todo o género humano".

LG 8: "Assim como a natureza assumida serve ao Verbo divino de instrumento vivo de


salvação, a Ele indissoluvelmente unido, de modo semelhante a estrutura social da Igreja
serve ao Espírito de Cristo, que a vivifica, para o crescimento do corpo".

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LG 9: "Aos que se voltam com fé para Cristo, autor de salvação e princípio de unidade
e de paz, Deus chamou-os e constituiu-os em Igreja, a fim de que ela seja para todos e
cada um sacramento visível desta unidade salutar".

LG 48: "Na verdade, Cristo, elevado sobre a terra, atraiu todos a si; ressuscitado de entre
os mortos, infundiu nos discípulos o Seu Espírito vivificador e por Ele constituiu a Igreja,
Seu corpo, como universal sacramento da salvação".

LG 59: "Tendo sido do agrado de Deus não manifestar solenemente o mistério


(sacramento) da salvação humana antes que viesse o Espírito prometido por Cristo, ...".

GS 45: "Ao ajudar o mundo e recebendo dele ao mesmo tempo muitas coisas, o único
fim da Igreja é o advento do reino de Deus e o estabelecimento da salvação de todo o
género humano. E todo o bem que o Povo de Deus pode prestar à família dos homens
durante o tempo da sua peregrinação deriva do facto que a Igreja é o «sacramento
universal da salvação», manifestando e actuando simultaneamente o mistério do amor de
Deus pelos homens".

GS 43: "Ainda que a Igreja, pela virtude do Espírito Santo, se tenha mantido esposa fiel
do Senhor e nunca tenha deixado de ser um sinal de salvação no mundo".
AG 1: "A Igreja, enviada por Deus a todas as gentes para ser «sacramento universal de
salvação»".

3. Raízes históricas desta terminologia

A aplicação deste termo à Igreja situa-se entre outros dois termos, à luz dos
quais recebe o seu sentido: O 'mistério' e os 'sacramentos'. A Lumen Gentium tem este
significativo título: "Sobre o mistério da Igreja" e ao longo do capítulo chama à Igreja
'mistério'. O termo designa originariamente o plano de salvação de Deus realizado em
Cristo; depois designa a própria pessoa de Cristo; depois os momentos fundamentais da

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sua existência, nos quais se manifesta e se realiza o plano de salvação e temos os


mistérios da vida de Cristo.

Mais tarde designará o Antigo Testamento e as profecias, como presença


antecipada e oculta desse plano; posteriormente significa os sacramentos, em especial o
Baptismo e a Eucaristia como configuradores do homem com o destino de vida e morte
(Rom 6) de Cristo e de identificação com a Sua pessoa (1Cor 10,12). O singular converte-
se em plural e acabará por significar os sete sacramentos. Finalmente o termo perde a sua
conexão com a história salvífica e com a liturgia, para designar a realidade e vontade
divina na medida em que ultrapassam a capacidade compreensiva do homem: mistério
no sentido de verdade que não pode ser conhecida antes da revelação nem explicada com
evidência depois dela.

A Igreja é designada neste contexto como mistério. A Comissão teológica do


Concílio explica-o assim:
"A palavra 'mistério' não indica simplesmente o incognoscível ou abstruso, mas como
muitos reconhecem já hoje em dia, designa a realidade divina transcendente e salvífica,
que se manifesta e revela de algum modo visível. Portanto, o vocábulo, que é bíblico,
aparece como muito apto para designar a Igreja".

Designa-se assim, a Igreja como o âmbito em que a realidade divina, que é


transcendente, se revela de maneira perceptível e como salvadora para os homens. E neste
sentido a Igreja é mistério.

Paulo VI afirmava numa intervenção durante o Concílio:


"A Igreja, na verdade, é um mistério, isto é, uma realidade secreta impregnada de
presença divina e que pode, portanto, ser o objecto de novas e mais profundas
investigações"50.

Um Bispo maronita de Beirute, I. Ziadé:

50Em: I. CONGAR, Discours au Concile Vatican II, Paris 1964, 28.

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"Segundo a tradição da Escritura e a tradição constante da Igreja do Oriente, não há


teologia da Igreja que não seja pneumatologia, isto é, que a igreja é um mistério da efusão
do Espírito nos últimos tempos. O tempo da Igreja , na história da salvação, é chamado
pelos Padres, a economia do Espírito"51.

Estamos, portanto, diante de dois sentidos diferentes do termo sacramento: um


estrito e restringido, tal como na Escolástica o entendeu, aos sete sacramentos, como
sinais visíveis e eficazes da graça invisível e constituídos por Cristo; e um sentido amplo,
que é o sentido patrístico. A própria Comissão esclareceu estes dois níveis de sentido:

"Sacramento no sentido amplo ou mistério ou sinal eficaz de salvação aplica-se


normalmente a Jesus Cristo (Sto Agostinho). Nos Santos Padres esta palavra designa
muitas vezes toda a economia da salvação, que inclui os diferentes ritos culturais da
Igreja. Por esta razão a Igreja mesma é chamada 'sacrammentum-mysterium' (Santo
Irineu; S. Cipriano; Sto Agostinho). Em sentido estrito só pode aplicar-se aos sete
sacramentos da Igreja instituídos por Jesus Cristo".

Aparecem aqui duas cosmovisões que vão ser decisivas para compreender a
afirmação da Igreja como 'sacrammentum'. A compreensão grega da realidade e da
encarnação que vê o mundo como 'símbolo' 'presença' 'manifestação' de outra ordem de
realidade, que se torna presente e acessível no mundo. Compreensão, portanto, 'epifânica
- monstrativa'. Frente a ela temos a compreensão que podíamos chamar aristotélica
ocidental, que vê a relação entre este mundo e o outro com categorias de causalidade, de
eficiência. Frente ao mistério grego está a causa latina.

O outro mundo não se aproxima deste na ordem da causa formal, ou formando


parte dele, na ordem da inhabitação ou participação, mas na ordem da eficiência. Para a
mentalidade latina e ocidental não há unidade substancial nem ser, entre o invisível e o
visível, mas há unidade de causalidade. Uma relação intermédia é a significação. O termo
sacramento nos textos do Concílio integra estes dois aspectos: significação e causalidade,
revelação e actualização, manifestação e realização.

51 Em: I. CONGAR, Discours au Concile Vatican II, Paris 1964, 37.

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4. Sentido literal da definição

A fórmula tem duas partes: uma descreve a estrutura da Igreja ordenada a uma
função; a outra descreve o conteúdo dessa funcionalidade histórica: Os termos:

A) Sinal B) Salvação
Instrumento Unidade com Deus
Orgão Unidade entre os homens
Sacramento Graça
Encontro com Deus
Transcendência do homem

As primeiras palavras designam o que é a Igreja em si mesma. As segundas pelo


contrário designam o que ela realiza, o que acontece através dela; o que a sua realidade
humano-divina produz na história humana, sua finalidade e serviço.

1. Antes de colocar qualquer substantivo, o Concílio coloca Cristo como ponto de


partida, isto é, origem e referência permanente de tudo o que sobre ela se diga. Ela
existe a partir d'Ele. Precisamente uma compreensão sacramental da Igreja o que faz
é descentrar a Igreja de si mesma e referi-la a Cristo como centro de que provem e
no qual se apoia toda a realidade e vida da Igreja. Ele é origem permanente e é forma
paradigmática da Igreja. Ele é o sacramento primordial, a suprema conjunção do
divino e humano em unidade pessoal, a respeito da qual a unidade entre o humano e
o divino na Igreja é um reflexo.

Cristo revelou a realidade salvadora (sacrammentum) na sua existência pessoal,


que é a própria vida de Deus partilhada connosco para a regeneração do homem
(mysterium). A Igreja reflecte e actualiza a estrutura humano-divina de Cristo e torna
eficaz para cada homem a salvação que Ele trouxe com a morte.

2. 'À maneira de' 'Veluti'. Com esta palavra pretende diferenciar-se a Igreja de cada
um dos sinais sacramentais, dos sete sacramentos. Não é, que agora haja mais um
sacramento junto aos sete. A Igreja é a realidade anterior, fundante e matriz de que
fluem os sacramentos e por meio dos quais se actualiza a sua virtude salvífica. A

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Igreja, portanto, situa-se entre Cristo como sacramento primordial, radical,


primigenio e os sete sacramentos que são derivações da potência salvífica, que Cristo
depositou na Igreja. Esses sacramentos são assim, auto realizações da Igreja como
comunidade de salvação, como sinal revelador e actualizador da graça de Cristo.

K. Rahner, Semmelroth, Schillebeeckx partiram desta base: Cristo põe


em marcha a Igreja como instituição de salvação, dotada dos poderes, sinais e
palavras necessárias para realizar para si mesma e para os outros essa salvação. Fica
a vontade de ela ir encontrando os sinais concretos, que medeiam essa graça para a
vida humana. Ela encontrará a matéria e a forma da graça, e aplicá-la-à aos momentos
decisivos da existência: nascimento, maturidade, enraizamento da existência no
mistério, opções fundamentais de vida, aproximação à morte. Por isso, falarão de
fundação directa da Igreja por Cristo e de fundação indirecta ou imediata dos
sacramentos:

"A primeira coisa que se reflecte de maneira sempre variada, de sete maneiras
especificamente diferentes, na recepção de cada sacramento, é o contacto vivo com
a Igreja visível nas suas acções características de Igreja, as quais representam Cristo.
Isto implica já que a ordem fundamental dos sete sacramentos teve que ser
estabelecida por Cristo na fundação da Igreja. Pela fundação da Igreja, a plenitude da
graça redentora está ligada com o grande sinal externo, com a Igreja como facto
histórico e representativo da redenção cumprida. Desta maneira, a fundação da Igreja
como sacramento primeiro por Cristo significa também fundamentalmente a
instituição dos sete sacramentos. Os sete sacramentos não são mais que a
concretização e actualização do que a Igreja é essencialmente" (Schillebeeckx).

A Igreja é o fundamento donde surgem e que sustém cada uma dessas


actualizações privilegiadas da graça. Tudo nela é sacramental, isto é, vem de longe
(Deus) e remete para além dela mesma (Deus), e ao mesmo tempo oferece a graça.
Mas nem tudo nela tem a mesma força actualizadora e santificadora. Os sacramentos
são neste sentido 'posições' de Igreja nas quais o Espírito Santo ao mesmo tempo que
oferece ao mundo a graça de Deus 'realiza' a Igreja, isto é, constitui-a nela mesma.

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3. Signum. O Ponto de partida é uma compreensão metafísica e antropológica, segundo


as quais a realidade verdadeira e completa não se esgota no que a constatação e
verificação sensível e quantitativa nos podem oferecer. Este mundo transmite, remete
e confere presença a outra ordem de realidade, que não é menos verdadeira que esta,
e sem a qual esta se fundiria no nada. O abismo do nada não é o suporte do nosso
mundo. Há um fundamento que ultrapassa este mundo e se comunica por meio dele.

O homem tem a capacidade de transcender a realidade visível e ouvir essa voz


da transcendência que chama através do visível , para se encontrar com o homem.
Um pensamento absolutamente racionalista e fisicista nega às coisas esta dimensão.
A poesia, a ética, a arte, a religião fundamentam-se nesta visão.

Realidade, figura visível, que remete para outra invisível é o sinal. O nível
específico do sinal é a notificação e a apelação. Não se situa, no entanto, na pura
ordem da inteligência. O sinal é pessoal, enquanto que apela para a totalidade
perceptiva do homem e faz que este vá ao encontro dessa realidade. No nosso caso,
a visibilidade da Igreja, com toda a complexa realidade das suas formas de vida e
homens, torna possível que Deus os encontre, por meios conaturais à vida.

"O sinal sacramental - neste caso a Igreja visível - é o ponto de contacto onde
se há-de encontrar Deus com a sua graça e o homem com a sua entrega a Deus"
(Semmelroth). É, portanto, a totalidade histórica e a realização vivida o que se
converte em ocasião do encontro do homem com Deus. Este é resultado da iniciativa
divina que, quis fazer da Igreja o caminho para Ele chegar aos homens.

O sinal, é natural num sentido (uma vez que todo o homem é caminho para que
o próximo se encontre consigo mesmo, com o mundo e com Deus) mas é sobretudo
positivo, responde à vontade concreta de Cristo de querer que seja essa instituição,
esses sinais e esses homens, os que o tornem presente. De forma semelhante, Cristo
é o sacramento do encontro com Deus. É um homem (aspecto natural), mas é um
homem concreto e não outro através do qual Deus se nos dá (aspecto positivo).

4. Instrumento. Unida à anterior, esta palavra qualifica a Igreja de maneira mais


profunda. Ela não é só uma voz que fala de coisas que estão longe dela. Ela manifesta

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coisas que transporta dentro de si; que pode oferecer àqueles que nela se incorporam.
O mistério da salvação de que fala está presente no meio dela. O Reino de Deus já
começou a existir no seu seio, fazendo dela lugar de revelação e de doação e mediação
para os outros. O Reino de Deus não se identifica com a Igreja, mas não se pode
separar absolutamente a Igreja do Reino.

A Lumen Gentium 3 diz: "A Igreja, que é o reino de Deus já presente


misteriosamente". Há, portanto, na Igreja uma causalidade específica, que prolonga
e actualiza a causalidade salvífica de Cristo. Não é uma causalidade nascida das suas
próprias forças, mas da pessoa de Cristo que é o seu fundamento último. Da mesma
forma que um orgão humano está ao serviço da pessoa humana, assim a humanidade
de Cristo está ao serviço do Verbo e assim, também a Igreja está ao serviço de Cristo
Redentor. É orgão de salvação. Orgão vivo, pessoal, liberto pela graça de Cristo e,
por isso, livre. A Igreja é mediadora da salvação, que só Cristo nos trouxe. A sua
causalidade é instrumental, derivada.

A Mystici Corporis tinha já adiantado a formula da Lumen Gentium 1: "A Igreja


é instrumento do Verbo encarnado na distribuição dos frutos da redenção, um
instrumento indeficiente".

E no discurso da abertura da segunda sessão do Concílio, dizia Paulo VI: "A


Igreja é... e entretanto aparece como um fermento vivificador e como instrumento de
salvação da mesma sociedade humana".

5. Intimae cum Deo unionis. O sinal abre a realidade de um mundo divino; o


instrumento realiza-o eficazmente para quem , com disposições pessoais, se abre ao
oferecimento pessoal. Sinal e instrumento não são duas realidades separadas nem
separáveis. Não são duas coisas: são dois níveis da mesma realidade Igreja, que
através de si mesma permite que aconteça a presença e a acção divina.

Por ser sinal, não primariamente intelectual mas pessoal, a Igreja torna possível
o encontro interpessoal com Deus. E é nesse encontro de pessoa a pessoa que tem
lugar a união com Deus e como resultado dela a salvação. É aí que o homem atinge

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200

a sua plenitude, isto é, a sua redenção. Esta é, por conseguinte, fruto do encontro com
Deus, do acolhimento da sua vida, da resposta em liberdade e da exercitação da
existência em conformidade com essa vida resultante da união com Deus.

A Igreja está no mundo para isso: para tornar possível o encontro de Deus que
se abre ao mundo e o encontro do homem que procura Deus. Os textos conciliares
põem a Igreja em relação com o Espírito Santo: "pelo Espírito Santo" é sacramento
universal de salvação. Ele é o agente que, por meio dos sinais e acções da Igreja leva
a cabo a união com Deus e a salvação. Não os homens por si mesmos.

6. Totius generis humani unitatis. A partir de Cristo, homem novo, em quem a


humanidade redescobre a sua origem divina e as suas divinas possibilidades de
regeneração, a Igreja anuncia a vocação da humanidade: formar uma comunidade em
fraternidade. A concórdia e não a luta, a fraternidade reconciliada e não a agressão
permanente é o destino humano. E, em Cristo, Deus reconciliou os homens separados
e criou um homem novo. É possível, portanto, uma nova forma de humanidade, na
qual, a condição de 'imagens de Deus', de 'homem novo em Cristo', de 'irmão' é a
categoria que define a humanidade verdadeira e os imperativos a cuja luz ela deve
realizar-se.

A Igreja, ao revelar e realizar o mistério de Deus ao homem e colaborar com a


vinda do Reino (presença da misericórdia de Deus à miséria humana e apropriação
fraternal de todos os homens radicados na paternidade divina) leva a cabo a salvação
da humanidade (GS 45,1). Essa missão de salvação nunca deixou de significar ao
longo da história, e apesar os seus pecados e limitações, ela manteve-se como esposa
e testemunha fiel dessa chamada divina e desse destino da humanidade (GS 43,6).

À luz dessa vocação divina, da história pessoal de Jesus e da fidelidade da Igreja


na sua história, o homem descobriu a sua superioridade sobre o mundo material e
sobre a própria história social. A pessoa fica relativizada a Deus e ao próximo e ao
mesmo tempo a partir deles personalizada. É aí que se funda e se manifesta a sua
transcendência. Por isso, cumpre uma função humanizadora que nenhum estado nem
filosofia puderam cumprir:

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"A Igreja, que por razão da sua missão e da sua competência não se confunde de
modo nenhum com a comunidade política nem está ligada a sistema político nenhum,
é sinal e salvaguarda da transcendência da pessoa humana" (GS 76,2).

5. Significado desta categoria para a compreensão da Igreja

Analisamos agora o significado desta categoria na compreensão da Igreja.

1. Remete a Igreja para duas realidades: O Verbo encarnado e os sete sacramentos.


Aquele como origem e causa, estes como efeitos ou frutos. No meio dos dois e
participando tanto quanto revelando a natureza dos dois, está a Igreja. Um e outros
têm em comum ser uma mediação da graça por uma causa conatural à existência
humana, que se abre ao mundo do invisível através do visível. Os sacramentos não
poderiam significar e conter a graça, se o sujeito ou a comunidade de que são
expressão não fosse, por sua vez, sacramental, não contivesse e significasse
radicalmente essa graça. Suposto o anteriormente dito, podemos entender a estrutura
da Igreja através da estrutura do Verbo encarnado e dos sacramentos.

a) Com o Verbo encarnado existe uma analogia de estrutura: a sua constituição


teândrica reflecte-se na Igreja. E uma analogia de função: tal como a humanidade de
Jesus é instrumento da salvação nas mãos do Verbo, fórmula que repete literalmente
a SC 5: "A sua humanidade foi, na unidade da pessoa do Verbo, o instrumento da
nossa salvação".

E a LG 8:
"Assim como a natureza assumida serve ao Verbo divino de instrumento vivo de
salvação, a Ele indissoluvelmente unido, de modo semelhante a estrutura social da
Igreja serve ao Espírito de Cristo que a vivifica para o crescimento do corpo".

b) Com os sacramentos existe também analogia de estrutura, já que em ambos os


casos se trata de realidades físicas e humanas, que remetem a realidades espirituais e

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divinas. E analogia de função: uma e outros, de maneira diferente, significam e


causam a graça divina.
S. Tomás elaborou a teoria dos sacramentos unindo-os com o Verbo
encarnado. Os sacramentos são sinais e estes dão-se aos homens "para que, através
do que se conhece se chegue ao desconhecido". O sacramento é "o sinal de uma coisa
sagrada enquanto é santificador dos homens" (Suma teológica). Os sacramentos,
portanto, são sinais que nos levam ao conhecimento de outra realidade, realidade que
se aproxima como purificadora e santificadora da vida humana. Têm a sua origem
em Cristo e d'Ele recebem a sua eficácia. E ao verbo encarnado se remetem no que
diz respeito à sua estrutura.

2. A Igreja, tal como os sacramentos, significa e contém a graça. É, para os que nela
se integram e não colocam obstáculos à graça, o lugar de salvação em que podem
esperar confiados, já que, não é o seu esforço ou santidade pessoais o que garante a
amizade e reconciliação com Deus, mas a sua própria instituição. A Igreja tem, por
conseguinte, o perigo do objectivismo sacramental, a afirmação levada ao limite do
ex opere operato, deixando fora o sujeito. Mas essa atitude é só a caricatura de uma
dimensão da realidade: a validade objectiva da instituição querida por Deus, na qual
o homem pode confiadamente entregar-se, sem ter que velar desesperadamente pela
sua salvação.

A Igreja não é, por isso, o lugar onde uma pessoa se integra depois de ter
adquirido a perfeição, ou a mera manifestação da identidade cristã: ela é uma
realidade objectiva, anterior à decisão do homem, é uma instituição salvífica querida
por Cristo, e a sua validade não depende da perfeição dos que a formam, nem está à
mercê da santidade dos seus membros. Os seus actos estão apoiados e garantidos pelo
seu fundador e fundamento perene. Nem sequer o pecado dos seus membros pode
prevalecer contra ela:

"Se alguém disser que os sacramentos da nova lei não contêm a graça que significam,
ou que não concedem a graça a quem não coloca obstáculos, porque são somente
sinais externos da graça ou da justiça recebida pela fé, e certas notas da profissão

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cristã, pelas quais os crentes se distinguem dos não crentes: esse seja anátema"
(Concílio de Trento. DS 1606).

3. Na Igreja passa-se o mesmo que no homem. Este é corpo e alma; o componente


material é a forma expressiva e constitutiva da vida espiritual. Da mesma forma a
Igreja é o 'símbolo de uma realidade sagrada e a forma visível de uma graça invisível'
(Concilio de Trento. DS 1639).

A categoria de sacramento tem como valor primordial o estabelecer a correlação


profunda entre a ordem material e a jurídica na Igreja, por um lado, e a ordem da
graça por outro. Não existem sobrepostos ou independentes, mas ordenados um ao
outro, servindo um ao outro. Com isto conseguem-se vários objectivos: a Igreja não
tem validade só pelo que é na ordem temporal ou em sua consistência social e
jurídica, mas pela sua capacidade de significar, remeter e expressar a ordem da graça.
Vale na medida em que significa. Ela vale, então, na medida em que é corporização
do sobrenatural. Evita-se um materialismo crasso, que julga a Igreja pelas sua
capacidade de afirmação, competência ou esplendor frente às realidades deste
mundo. Mas evita-se ao mesmo tempo um falso espiritualismo, que procura a graça
e o Evangelho à margem desta Igreja, sem passar por ela, tolerando-a.

Desde Leão XIII, na Mystici Corporis, de 29 de Junho de 1943, o magistério


pontifício sublinhou, à luz da constituição antropológica (inseparabilidade de alma e
corpo) e à luz da constituição de Cristo (diferença e inseparabilidade das duas
naturezas) a dualidade e inseparabilidade dos elementos divino e humano na Igreja.
A sociedade externa é o corpo místico de Cristo.

"O considerar a Igreja como sacramento evita o perigo de separar o visível-corpóreo


do invisível, divino, de tal maneira que se chegue a um espiritualismo que crê
falsamente estar em contacto com Deus ou a um materialismo que dá um valor
absoluto à organização externa. A Igreja é uma sociedade visível. A realidade

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204

sobrenatural encarna nela, a unidade e conexão do externo e o interno, do humano e


o divino, vê-se quando se toma a sério a Igreja como realidade sacramental"52.

4. O conceito de Igreja como sacramento supera a dicotomia a que inclinam os outros


dois conceitos fundamentais: Povo de Deus - Corpo místico de Cristo. O primeiro
põe o acento sobre a parte externa da Igreja, sobre a sua corporeidade imediata, sobre
a sua visibilidade e acessibilidade a todos, até ao ponto de poder ser confundida com
qualquer outra realidade deste mundo, e ser valorizada e julgada pelo que na ordem
humana realiza.

A categoria Corpo de Cristo alude sobretudo à realidade sobrenatural , à quase


identificação de Cristo com cada um e com todos os membros da Igreja, até ao ponto
de que já vivem em solidariedade de destino e numa unidade de vida nova. Dizer que
a Igreja é sacramento é dizer que é o sinal sensível e eficaz do encontro de ambas as
realidades: a graça e o mundo, Deus com a sua revelação e o homem com a sua
liberdade. Integra-se também outro elemento da Igreja explicitado pela categoria
'esposa', que designa a contraposição no encontro, a iniciativa de ambas as partes, a
reciprocidade na doação. O sinal supõe a intervenção dos sujeitos: o que o realiza e
aquele a quem vai dirigido.

A Igreja é sacramento na confluência da chamada e oferta de Deus, que suscita


e torna possível a resposta do homem. Para expressar as duas ordens de realidade e a
conexão e inseparabilidade de ambas, foi proposta a categoria de 'sacramento' pelos
Bispos alemães no Concílio Vaticano II:
"Sacramento é um facto visível colocado por Deus, mediante o qual a vontade
salvífica divina é simultaneamente manifestada e tornada presente no contexto
histórico dos homens. Não se deve dizer somente que a Igreja consta de um elemento
visível, mas também de um elemento invisível".

5. A Igreja é sacramento para a universalidade. A missão é, assim, uma exigência


sagrada da Igreja. Ela é o lugar para o qual Deus quer convocar todos os homens para
os integrar na sua própria comunidade divina. A Igreja é, assim, o 'sacramento da

52O. SEMMELROTH, Unidad del concepto de Iglesia, 412.

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unidade'. Essa é a sua vocação: convocar os homens para a união entre si, como
resultado da união com Deus.

A fraternidade humana é horizontal e vertical. Em relação ao outro é-se irmão e


sobretudo em relação ao Pai comum. A Igreja, desta forma, congrega os homens para
os abrir à vida divina e para criar como resultado uma comunidade humana. Ela é,
neste sentido, o lugar para o qual Deus convoca os homens, para se lhes dar e os
edificar numa comunidade nova, em imagem de Cristo homem novo. O carácter
positivo, indeduzível teoricamente da Igreja, e, portanto, não construível pelos
homens, reflecte e prolonga o carácter positivo e divino de Jesus que é dom de Deus
à história humana, mais que fruto dela.

"A Igreja é aqui na terra o sacramento de Jesus Cristo, como Jesus Cristo em si
mesmo é para nós, na sua humanidade, o sacramento de Deus"53.

6. Significado ecuménico da Igreja como sacramento da salvação. A recepção foi


diversa na ortodoxia e no protestantismo. A ortodoxia viu nesta categoria uma
recuperação de perspectivas essenciais da patrística e o instrumento para superar uma
visão puramente jurídica. A compreensão teândrica, epifânica da encarnação e da
Igreja que é conatural ao seu pensamento, encontra-se reflectida aqui.

"Situar a vida e doutrina da Igreja em relação orgânica com o sacramento representa,


sem dúvida o acto essencial da constituição sobre a Igreja. Isto é o que explica o
sentimento tranquilizador de um equilíbrio de valores... Por sua parte a tradição
Oriental tinha encontrado na noção teândrica a expressão do mistério, consumado no
ponto de convergência da transcendência do Deus trino e a economia da encarnação:
sendo a Igreja o lugar da manifestação, a phania, em sentido bíblico e patrístico"
(reflexões de um teólogo ortodoxo).

O mundo teológico protestante mostrou mais receios diante da afirmação da


sacramentalidade da Igreja. Estes são os seguintes: risco de um eclesiocentrismo que
converte a Igreja na origem e causa da salvação, relegando a segundo plano Cristo,

53H. DE LUBAC, Méditation sur l'Église. Paris, 1953, 175.

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único mediador; risco de que a Igreja passe da sua atitude de ouvinte da palavra,
cumpridora do mandato e serva de Jesus Cristo, a dona da graça e coisificadora da
graça nos seus ritos; finalmente o risco de silenciar a acção do Espírito Santo nela.
Se é verdade que certas expressões podem dar motivo a isso, no entanto, o Concílio
sublinhou sempre que a Igreja é sacramento 'em Cristo' (LG 1) e a partir do Espírito
Santo (LG 48; 59). Ela existe como sinal, remetendo para Cristo, causa suprema e
se é causa é pela acção permanente do Espírito Santo nela.

CONCLUSÃO

1. A noção de Igreja como 'sacramento de salvação' estabelece uma relação estrutural e


funcional com Cristo. A Igreja é como Cristo: a sua realidade é resultante de uma
união do divino e do humano. Não se trata de igualdade absoluta, porque em Cristo
há união pessoal e na Igreja união de eficiência, de causalidade, de instrumentalidade.
Há conexão funcional, porque a Igreja existe e tem legitimidade só enquanto está
ordenada e serve a salvação do mundo. Não é autónoma, porque nem vem de si
mesma nem serve a si mesma. Vem de Cristo, representa a Cristo e o que tem é
participação de Cristo. Ele é 'sacramento primordial' ou original. Ela é sacramento
fundamental, em relação aos outros sete sacramentos que são explicitações dessa
capacidade de comunicação de graça que Jesus ofereceu à Igreja. O teândrismo e a
soteriologia são os dois elementos constituintes da Igreja como realidade e como
função.

2. Esta categoria explícita a conaturalidade da ordem da graça por meios


proporcionados à nossa natureza. A salvação tem, por conseguinte, uma natureza
encarnativa, que prolonga e actualiza a salvação de Cristo. Esta não vem só pela sua
palavra, mas pela palavra e pelo sacramento. Com isso temos a superação dos
dualismos, por um lado, e dos monismos, por outro. Nem a identificação massiva do
divino com o humano, nem a separação que desemboca num espiritualismo que afasta
a salvação deste mundo.

3. Como consequência superam-se as polaridades existentes entre uma compreensão


vertical e uma compreensão horizontal da salvação. A salvação que procede de Deus

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comunica-se mediante a inserção em realidades que surgem e crescem neste mundo.


entre uma compreensão puramente divina e outra puramente humana da salvação. A
salvação é de Deus e chega até nós por meio dos homens, já que Ele deu-se-nos na
humanidade do Verbo que é o primeiro sacramento. Superação da polaridade entre
permanência e actualidade: a Igreja, na sua estrutura divinamente querida, é a
potência fundante, a realidade estática e permanente da qual surgem, como acções
concretas, pontuais e ordenadas a situações da vida, os sacramentos.

4. O sacramento e, por isso, a Igreja tem dois níveis de realidade explicitados nas duas
palavras: sinal e instrumento. O primeiro indica que a outra ordem de realidade se
mostra, se significa, convida o homem a transcender-se, a responder, a integrar-se
nela. O segundo indica que essa outra ordem de realidade não é só potência, mas
também comunicação. O sacramento, por isso, significa a causa. Os dois efeitos são
inseparáveis: nem há sentido sem causalidade, nem causalidade sem significação.

Não é, portanto, possível um personalismo de interpretação nem um


cristianismo da pura palavra: o cristianismo é oferta, purificação e criação de
realidade. Mas isso não acontece à margem da inteligência e da vontade do homem,
que recebe sentido e responde em liberdade. Por isso, há um necessário personalismo
na vida da Igreja. Os sacramentos são assim dons de Deus e acções do homem. Uns
teólogos acentuarão mais o aspecto epifânico, outros o aspecto de causalidade e de
comunicação de vida.

5. Esta definição engloba por igual tudo na Igreja: coisas e pessoas, instituição e
homens. Todo o povo de Deus é sujeito de salvação, é sacramento e transmite a
salvação nos diversos níveis de exercitação da sua existência cristã.

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ANEXO: “FORA DA IGREJA NÃO HÁ SALVAÇÃO”

1. História desta formulação

1.1. Orígenes (185-254)

No livro de Josué (cap. 2) conta-se que este enviou dois exploradores secretos a
Jericó para que estudassem a melhor maneira de atacar a cidade. Encontraram alojamento
e esconderijo na casa de uma prostituta, Rahab. Como recompensa prometeram-lhe que
tanto a sua casa como quantos nela se encontrassem seriam perdoados na destruição da
cidade. Deveria servir como sinal, uma fita vermelha pendurada na janela.

Orígenes, lê o Antigo Testamento à luz do Novo Testamento, vê nesta casa a


Igreja que, vinda dos gentios, tinha-se em tempos dedicado à prostituição. A fita
vermelha é o sangue de Cristo.

“Quem deste povo quiser salvar-se venha a esta casa na qual está o sangue de Cristo
como redenção. Ninguém tenha ilusões, ninguém se deixe enganar a si mesmo. Fora
desta casa, isto é, fora da Igreja não se salva ninguém. Se alguém sai dela, condena-se
a si mesmo à morte” (Jn 3: PG 12,841).

Orígenes não pretende estabelecer uma teoria geral sobre a salvação ou


condenação. Simplesmente exorta as pessoas e recorda-lhes que só o sangue de Cristo
salva.

1.2. S. Cipriano (200-258)

Na sua obra De unitate Ecclesiae (6: PL. 4,503s) diz:


“A esposa de Cristo não pode cometer adultério, é incorruptível e púdica. Só conhece
uma casa, guarda em casto pudor a santidade de um só leito. Ela guarda-nos para Deus,
ela destina para o Reino os filhos que gera. Aquele que se separa da Igreja e se une a uma
adúltera afasta-se das promessas da Igreja e não só, não alcançará os prémios de Cristo
quem abandona a Igreja de Cristo. É um estranho, um profano, um inimigo. Não pode

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ter Deus por Pai quem não tem a Igreja por mãe. Se pôde escapar algum que esteve
fora da arca de Noé, também escapará quem estiver fora da Igreja... Quem rompe a paz
e a concórdia da Igreja, actua contra Cristo; quem recolhe fora da Igreja, dispersa a Igreja
de Cristo”.

Na hora de interpretar este texto não podemos deixar de lado o contexto


histórico: contra os movimentos separatistas, Cipriano pretende defender a unidade da
Igreja. Também aqui não se trata de fazer teologia sobre a salvação, mas de uma
exortação para não destruir a unidade da Igreja.

Com Lactancio, Jerónimo e Agostinho, este axioma começa a ter um sentido


absoluto.
“Fora da Igreja católica, podes encontrar tudo menos a salvação - diz Santo Agostinho
- Pode ter-se o sacramento, pode cantar-se Aleluia, pode ter-se e pregar-se a fé no nome
do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Mas em nenhum sítio, fora da Igreja católica, se
pode encontrar a salvação” (Sermo ad Caes. eccl. plebem, 6: PL. 43,695).

1.3. Fulgêncio de Ruspe

Discípulo de Santo Agostinho, converteu este axioma num princípio geral. Ao


serem recolhidas pelo Concílio de Florencia (1442) assumiram um peso oficial, muitas
das suas formulações.

“Firmemente crê, prega e confessa que ninguém que não esteja dentro da Igreja
católica, não só pagãos, mas também judeus, hereges e cismáticos, pode participar da
vida eterna, mas irá para o fogo eterno que está aparelhado com o diabo e seus anjos, a
não ser que antes da morte se incorpore à Igreja” (DS 1351).

1.4. Na Idade Média

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Os teólogos medievais crêem que o Evangelho tinha sido pregado em todo o


mundo e que só o endurecimento culpável podia afastar alguém da Igreja. Por isso, o
Concílio de Florência fala só dos que culpavelmente não quiseram incorporar-se à Igreja.
Santo Agostinho ao mesmo tempo que sustem que só na Igreja católica
pode encontrar-se a salvação, desenvolve uma ideia ampla de Igreja: “Ecclesia ab Abel”,
ou seja, que a Igreja existe desde o primeiro homem.

1.5. Na Idade moderna

Os descobrimentos geográficos indicam que inumeráveis seres humanos não


têm ideia do evangelho e, no entanto, guardam as suas leis morais. Se Deus é bom não
pode condená-los.

Alguns agarraram-se às fórmulas de Santo Agostinho e continuaram a afirmar,


como Jansénio, que era herético afirmar que Cristo tinha morrido por todos os homens
e por todos tinha derramado o seu sangue (DS 2005). E nos finais do séc. XVII, o P.
Quesnel afirma que “fora da Igreja não se encontra nenhuma graça”. Ambas as teses
foram condenadas.

Pio IX na alocução Singulari quedam (1854) deu um avanço importante a esta


questão. Depois de dizer que fora da Igreja romana ninguém se pode salvar, acrescenta:
“no entanto, também há que ter por certo que aqueles que sofrem de ignorância da
verdadeira religião, se ela é invencível, não são réus de culpa diante do Senhor”.

Aparecem duas afirmações: fora da Igreja não há salvação e quando há


ignorância invencível, há possibilidade de salvação.
A última condenação destas afirmações deu-se em 1949 quando o Jesuíta L.
Feeney defendeu que um acatólico não podia participar da felicidade eterna. O Santo
ofício contestou:

“A Igreja sempre pregou o princípio de que fora da Igreja não há salvação. No entanto,
nem sempre se requer que quem tenha alcançado a salvação eterna se tenha incorporado
à Igreja como membro de facto, mas ao menos é necessário que tenha pertencido em

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desejo... Pois quando o homem é vítima de ignorância invencível, Deus aceita também
um desejo implícito...” (DS 3866-3873).

O desejo implícito dá-se quando em virtude da recta constituição da alma, uma


pessoa quer que a sua vontade se conforme com a vontade de Deus. O desejo implícito
deve ainda, estar informado pela caridade. (Cf. Mystici corporis: DS 3802).

2. Estado actual da questão

Ninguém duvida hoje de que os que não pertencem à Igreja visivelmente podem
salvar-se. O que se tornou problemático é a pertença à Igreja. Isto é, se os que estão fora
da Igreja se salvam, porque tenho eu que estar dentro da Igreja? Vejamos o que diz
Martín Velasco:
Porque não abandono a Igreja? Porque tem ainda solução? Porque a partir de dentro se
pode trabalhar na sua transformação? Não, por Deus! Que ela não me abandone a mim!
Que não me deixe às minhas luzes, às minhas forças, à minha iniciativa! Que faria com
as minhas culpas sem a solidariedade no perdão que vivo nela? Que faria com meus
temores sem a solidariedade na esperança em que me banha? Onde melhor que nela posso
tornar realidade a fraternidade universal a que aspiro?”54

Hoje colocam-se reparos importantes à doutrina do “desejo implícito” de


pertencer à Igreja para se poder salvar:

 Este desejo implícito é invisível pela sua própria natureza e aqui estamos tratando de
critérios visíveis para demonstrar a pertença à Igreja.

 Aplica-se indiscriminadamente a cristãos e a não-cristãos o que implica não valorizar


convenientemente o carácter baptismal.

 Este desejo implícito identifica-se com uma espécie muito vaga de boa vontade e boa
fé. E a boa vontade não basta para obter a salvação porque isso seria pelagianismo.

54M. VELASCO, Creo en la Iglesia Católica: Communio 3, 1979, 75.

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O Vaticano II chega a uma resposta satisfatória no tema da pertença à Igreja,


introduzindo o conceito de diversa ordenação. Admitem-se vários graus de pertença. No
sentido pleno, pertencem à Igreja os que possuem o Espírito de Cristo, aceitam
integralmente a sua organização e todos os meios de salvação nela estabelecidos. O
Concílio manifesta a sua persuasão de que a verdadeira Igreja subsiste na Igreja católica,
mas reconhece que também fora da sua estrutura se encontram elementos de santificação
e de verdade que, como dons próprios da Igreja de Cristo, conduzem à unidade católica
(LG 8).

Que acontece com os não baptizados? A reflexão vai na linha da vontade


salvífica universal de Deus e hoje aumenta a convicção de que os não baptizados podem
obter a salvação. O Vaticano II diz que também eles estão ordenados ao Povo de Deus
de diversas maneiras (LG 16). Se subjectivamente não vive mal, em cada homem as
relações com Deus não são só gerais mas são relações de graça, que não podem existir
sem uma relação com Cristo e, portanto, com a Igreja. Depois aplica este princípio geral
aos diferentes grupos humanos:

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