Artigo - Considerações Psicanalíticas
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Artigo - Considerações Psicanalíticas
Considerações psicanalíticas
sobre preconceito racial:
um estudo de caso1
Psychoanalytic considerations
on racial prejudice:
a case study
Robenilson Barreto
Paulo Roberto Ceccarelli
Resumo
O texto traz reflexões sobre as relações raciais entre brancos e negros no Brasil, e seus des-
dobramentos psíquicos na construção subjetiva de sujeitos negros. Ancorado no referencial
teórico psicanalítico dos processos identificatórios, do narcisismo das pequenas diferenças e
em questões ligadas à construção discursiva sobre o preconceito racial, evidencia-se o racismo
como fenômeno social. Utilizou-se uma pesquisa realizada por meio de entrevistas semies-
truturadas, com dois estudantes da UFPA: uma estudante de nacionalidade brasileira e um
estudante de nacionalidade guineense, que foram vítimas de preconceito racial. Os resultados
demonstraram existir uma diferença histórica e cultural das experiências vividas pela estudan-
te brasileira e pelo estudante guineense, ambos em Belém, Pará, Brasil.
1. Trabalho apresentado no XXII Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise e na XXVI Jornada do Círculo Psicanalítico
da Bahia: Assim caminha a psicanálise: indagações do séc. XXI. Salvador, 18 nov. 2017.
2. O presente trabalho baseia-se na dissertação de mestrado de Barreto (2017).
condição de sujeito diante da relação com o forma, o não reconhecimento desse lugar
outro. Atualmente suas facetas são observa- não os faz reconhecer a si próprios, colocan-
das em fenômenos como preconceito e dis- do-os como algo negativo e desvalorizado.
criminação, que remetem à complexidade da Nessa perspectiva, a edificação do discur-
desigualdade, impedindo o desenvolvimento so ideológico sobre a construção identitária
humano integral e a ocupação de espaços so- do negro na sociedade se configura num pre-
ciais e de constituição de poder na sociedade juízo nas relações de identidade pautadas na
brasileira. hegemonia de referências identificatórias de
Nesse aspecto, Munanga (2003, p. 6-7) uma cultura eurocêntrica.
define o racismo como: A dinâmica desses processos será o ponto
de ancoragem desta discussão, que aborda
Uma ideologia essencialista que postula a questões cruciais: o conceito de identidade
divisão da humanidade em grandes grupos em psicanálise e o mecanismo de identifica-
chamados raças contrastadas que têm carac- ção na construção dessa identidade. Para a
terísticas físicas hereditárias comuns, sen- psicanálise, o conceito de identidade só pode
do estes últimos suportes das características ser pensado de maneira dinâmica por ser
psicológicas, morais, intelectuais e estéticas dependente dos processos identificatórios
e se situam numa escala de valores desiguais. (Ceccarelli, 2013).
Visto deste ponto de vista, o racismo é uma Entre os elementos aí presentes, que ofe-
crença na existência das raças naturalmente recem possibilidades de representação às
hierarquizadas. pulsões, estão os ideais sociais. Entretanto,
quando esses ideais não levam em conta
Estudos de Fanon (2008), Souza (1983), os mitos de origem, no caso, as referências
Nogueira (1998) e Reis Filho (2005) sugerem que representam a cultura negra no Brasil, o
que o desenvolvimento do sujeito negro na encontro entre esses ideais e os mitos pode
sociedade brasileira é marcado por uma ex- produzir efeitos traumáticos ou mesmo de-
periência sistemática de discriminação, pre- sorganizador.
conceito e ofensa à cor da pele, o que gera
um processo identificatório no qual esse su- É neste sentido que falamos de “perda identi-
jeito tem dificuldade de reconhecer a si pró- tária”: sendo a identidade um processo dinâ-
prio (Barreto; Ceccarelli; Lobo, 2017). mico sustentado pelas identificações constitu-
Não se reconhecendo como tal, o negro tivas do Eu (Freud, [1923] 1976), a perda de
não se identifica com seus elementos cultu- referências identificatórias paralisa a circula-
rais, não afirma sua estética corporal e não ção pulsional, pois o novo universo simbólico
se vê em elementos identificatórios na socie- em que o sujeito se vê inserido é gerador de
dade (mídia televisiva, propagandas, entre angústia. Este estado de coisas pode produzir
outros). efeitos devastadores no sujeito, pois afeta di-
Nos filmes pornográficos, esse reconhe- retamente os conteúdos recalcados, fazendo
cimento inevitavelmente passa pela exposi- com que a ligação afeto/representação se des-
ção e pela hipersexualização do corpo ne- faça (Ceccarelli, 2007, p. 189).
gro (mulher/homem) como uma marca do
preconceito no imaginário social. Nos filmes Este trabalho contou com a escuta fora do
pornôs, o homem negro é quase sempre va- espaço clínico analítico de dois estudantes
lorizado pelo tamanho de seu órgão sexual, negros: um da República da Guiné-Bissau
e a mulher negra é apresentada como fogosa e uma do Brasil. A coleta de dados foi feita
e boa de cama em propagandas e programas através de entrevistas semiestruturadas, que,
televisivos (Barreto; Esber, 2019). Dessa além de um instrumento fundamental do
método clínico, são uma técnica de investi- Como sabemos, o Eu se constitui e se dife-
gação dos fenômenos psicológicos (Bleger, rencia através de uma série de identificações
2007). (Freud, [1921] 1976), que são processos psi-
As entrevistas3 trouxeram duas dimensões cológicos pelos quais um aspecto, uma pro-
fundamentais na constituição de sujeito na priedade ou um atributo do outro é assimila-
perspectiva psicanalítica freudiana: a cons- do e se transforma total ou parcialmente, se-
trução dos referenciais identificatórios apre- gundo o modelo dessa pessoa. Assim, a iden-
sentados em uma cultura hegemonicamente tificação é definida como “[...] a mais remota
eurocêntrica, branca e machista, e a história de uma expressão de um laço emocional com
do sujeito como elemento fundador na sua outra pessoa” (Freud, [1921] 1976, p. 133).
constituição e na construção dos ideais. Mais adiante, Carolina Maria de Jesus
A partir desse ponto, a análise das entre- aponta uma desordem psíquica na relação
vistas foi composta em dois momentos, por com sua mãe diante do seu fenótipo manifes-
meio de cenas da vivência desses sujeitos tado pelas interpelações dos colegas de sala:
durante algum momento da vida, sobretudo
na UFPA como espaço potencializador de Além disso ser difícil, eu ficava com uma coi-
enfrentamento do preconceito e como o lu- sa na minha cabeça [...] minha mãe é branca,
gar que guarda todo privilégio expresso pelo é completamente diferente de mim. [...] eu ti-
racismo institucional por parte de funcioná- nha receio de andar com minha mãe na rua e
rios, professores, estudantes e da própria es- pensarem que eu era adotada porque, quando
trutura da universidade. eu falei disso na escola pela primeira vez, [...]
Uma encarnação dos coleguinhas que riram
Entrevista4 I - Carolina Maria de Jesus quando eu disse ‘olha, esse nome é um nome
Cena 1 - Construção identitária: alemão, eu descendo de alemães também’.
reconhecendo sua origem mediante o Meus colegas riram da minha cara, disseram
preconceito que era mentira, a professora, eu lembro va-
A origem do sobrenome de Carolina Maria gamente... Não lembro direito se ela soube li-
de Jesus é alemã, pois sua mãe descende de dar, mas acredito que não, porque eu lembro
alemães. Aqui começa a trajetória de cons- que as risadas foram constantes quando eu
trução do processo identificatório de Caro- falei sobre isso.
lina Maria de Jesus, que se revelou por meio
de um trabalho escolar para estabelecer sua Dahia (2008) nos apresenta em seu artigo
árvore genealógica. A mediação do riso na expressão e consolida-
Eis que se insta um conflito como revela ção racismo no Brasil, a possibilidade de uma
Carolina Maria de Jesus: reflexão diante de uma das realidades brasi-
leiras frente ao racismo. O riso desempenha
Era difícil explicar dentro da escola [...] de um importante papel mediador inscrito na
onde é que vinha o meu nome. Como eu ia fronteira entre realidades distintas: o psíqui-
explicar, como negra, que eu tenho um sobre- co e o social, o consciente e o inconsciente, o
nome alemão? jocoso e o sério. O riso é capaz de articulá-las
de forma a contribuir para o encobrimento e
a consolidação do racismo colado no mito da
3. As entrevistas foram apresentadas ao Comitê de Ética democracia racial. A autora revela ainda que
da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa do Conselho o riso derivado da piada racista é portador
Nacional de Saúde (CONEP/CNS/MS) e pelos Comitês de de uma ambiguidade que, dificultando uma
Ética em Pesquisa (CEP).
4. O nome dos entrevistados foi alterado para preservar sua definição precisa de sua natureza, permite a
identidade. ele transitar entre realidades distintas.
O discurso jocoso parece ser uma das que eu sabia do meu pai a minha mãe que me
possibilidades peculiares ao brasileiro de dizia porque eu perguntava pra ela [...] O meu
resolver conflitos identitários na vivência pai também tinha o problema de aceitação de
de suas relações raciais. Para Freud ([1905] identidade muito grande. Porque, ele, por
1976), o chiste e seu efeito humorístico são exemplo, não gostava de estar no lugar onde
os mesmos mecanismos da condensação e tinham pessoas negras. Ele não se sentia bem
do deslocamento, pelos quais o inconsciente como negro.
se apresenta como nos sonhos, nos atos fa-
lhos e nos sintomas. Se o chiste está estrutu- Ao falar sobre seu pai, Carolina Maria de
rado como uma formação do inconsciente, Jesus nos traz de imediato duas construções
ele é, por isso mesmo, um trânsito para que para se pensar sobre sua relação com o pai
alguma coisa da ordem do recalcado abra e o que chama de problema de aceitação de
passagem e se mostre. identidade de seu pai.
O chiste atua como álibi de alguma verda- Freud ([1919] 1976), no texto Uma crian-
de do sujeito que, até então, não fora possível ça é espancada, mostra que a introdução do
de ser dita: “tudo o que se tem a dizer é dito pai na vida da criança vai marcar significa-
no chiste” (Freud, [1905] 1976, p. 23). Essa tivamente e de forma determinante na sua
verdade, ainda não elaborada por crianças organização psíquica. Para a psicanálise, o
mas já manifestada pelos ideais identificató- pai é percebido como o elemento que corta
rios de uma sociedade preconceituosa e da o vínculo simbiótico entre a mãe e seu bebê,
cultura, mostra sua relação com o incons- tão necessário num primeiro tempo de uma
ciente. Aquela cena, que marcou a sua infân- estruturação psíquica. O pai é o represen-
cia e adolescência, começou a gerar inquieta- tante da lei que convoca ao desejo, à singu-
ções em Carolina Maria de Jesus. laridade, à apropriação do campo simbólico
(campo da palavra e dos significantes). É a lei
E daí, desde então, eu comecei a sentir um que instaura o espaço criador, espaço facili-
pouco de incômodo na minha infância quan- tador das operações simbólicas.
do eu era vista do lado da minha mãe, de fala- Entretanto, a representação e o lugar do
rem assim ‘ah, deve ser adotada’, e tudo mais. pai na vida de Carolina Maria de Jesus re-
[...]. Ficou durante muito tempo mesmo na caem coincidentemente sobre a segunda
minha cabeça ‘ai, será que é filha, num sei o questão mencionada: o problema da acei-
quê? É da família e tal. tação sinalizado teoricamente no processo
identificatório do sujeito, que Carolina Ma-
Ao seguir contando a história da sua fa- ria de Jesus manifesta assim como o pai.
mília, Carolina Maria de Jesus vai resgatando Desse modo, percebe-se que o sofrimento
as memórias e as lembranças de sua árvore diante do racismo violenta Carolina Maria
genealógica até que conta a história do seu de Jesus e seu pai de forma constante e siste-
pai e revela: mática por uma dupla determinação: encar-
nar o corpo e os ideais de ego de um sujeito
Não convivia com meu pai. Ele se negou du- branco e recusar, anular e negar a presença
rante muitos anos a assumir paternidade, era do seu corpo negro (Souza, 1983).
negro, tinta forte, família dele toda é uma fa-
mília de negros que vem do Acará5 [...]. Tudo
manescente de quilombo Guajará-Miri. Os remanescentes
5. No município de Acará, localizado no nordeste do estado de quilombo são um grupo social que tem sua identidade
do Pará há duas comunidades de remanescentes de quilom- arraigada em um território, na sua história e na de seus des-
bo chamadas, respectivamente, comunidade remanescente cendentes, na cultura, no sentimento de pertencimento e na
de quilombo Santa Maria de Itacoã-Miri e comunidade re- interdependência.
Entrevista II - Clennon King Jr. história é escondida, que eles estão simples-
Cena 1 - História, mito e identidade: mente em querer mostrar uma hegemonia
a importância da construção medíocre, uma hegemonia sem fundamentos,
discursiva para o sujeito né?
Clennon King Jr. introduz em seu relato, as
primeiras impressões ao começar estudar, na Clennon King Jr. é guineense. Chamou-
busca de entender a história dos negros no me a atenção o significado do seu sobrenome
Brasil. Fala das primeiras contradições so- como uma possível relação com sua identi-
bre a história de um povo. A construção e o dade e sua história no país Guiné-Bissau.
reconhecimento da história de um povo são Trarei a história do seu nome como um dado
fundamentais para formação cultural de sua importante e significativo para compreen-
nação (na África). dermos como a história de um povo pode
Aqui Clennon King Jr. nos mostra que assumir um lugar de enfrentamento e resis-
existem alguns aspectos que alicerçam essa tência em meio aos discursos de preconceito
posição contraditória: o discurso de supe- racial no Brasil.
rioridade da raça e da ideia de raça inferior Seu sobrenome tem significados e his-
(como observamos anteriormente) na cons- tórias diferentes na construção subjetiva de
trução discursiva do preconceito racial cons- Clennon King Jr. como sujeito estrangeiro e
titui uma justificativa para a dominação e a negro vivendo no Brasil.
exploração de povos e principalmente a ne-
gação da história de povo em cujo elemento Eu sou descendente dos... Do Império Man-
se funda a cultura. dinga, de Saraculês, então a minha etnia
Este último aspecto nos remete novamen- surgiu através da degradação do império de
te aos processos identificatórios já apontados Mandinga. É um grupo de guerreiros que
neste trabalho. Qual objeto identificatório saiu e formou um grupo, que começou a vi-
terá o(a) brasileiro(a) diante de uma história ver de uma forma anarquista, entendeu? [...]
negada ou diante do ideal de ego branco sus- na região de Guiné Bissau, Gâmbia e Senegal.
tentado pela sociedade e reproduzido pelos [...] Era um reino, que era o reino de Mali
próprios sujeitos negros na medida em que dominado pelos Mandingas, então depois da
repetem o imaginário do branco? desintegração desse Império, que acabou su-
Do ponto de vista da formação cultural, cedendo o Império de Gana, não estou lem-
Clennon King Jr. nos alerta que a história brando, esses guerreiros formaram um grupo
contada pelos brancos nos remonta à ruptu- e começaram a viver de forma anarquista,
ra dos aspectos mitológicos de uma origem rejeitando qualquer forma de submissão, de
ancestral, uma história de uma África que domínio de qualquer natureza. Então com
não é contada. a chegada dos portugueses, é uma etnia que
Assim Clennon King Jr. nos conta: deu resistência, e, aliás, essa etnia de nome
Balanta significa os que resistem à única etnia
Acabei tendo oportunidade de estudar histó- que os portugueses não conseguiram domi-
ria aqui do Brasil, em geral, de um modo que nar. E na luta pela independência era a etnia
eles apresentam os africanos e afrodescen- que fazia parte de 90% de todos os soldados,
dentes começa na escravidão, eles associam ou seja, uma espécie de luta de portugueses
o negro com escravo, de que os negros são a contra Balanta, que é da minha etnia. Só que
raça inferior. Claro que é uma pregação que depois da independência criou aquela estig-
foi implantada no século XV, mas antes disso matização, e começou um sistema montado
a África tinha muitos impérios, muitos reinos onde as pessoas daquelas etnias não ganha-
que nós conhecemos. Mas infelizmente essa vam mais bolsas de estudos, uma coisa bem
estrutural e hostil, porque eles de certa forma seu pai, seus avôs e com os ideais culturais de
queriam... Vandalizar essa etnia de todo cus- sua etnia em divergência com a história e os
to. [...] E eles acabaram estigmatizando essa ideais de cultura de outra etnia.
etnia. Só que acabei não tendo o sobrenome Portanto, o relato de Clennon King Jr.
da minha etnia porque se eu tivesse, como confirma a posição anteriormente sinalizada
aconteceu com meu pai, ele tem o sobrenome por Ceccarelli (2000) nos termos da origem
da minha etnia, ele foi cortado de bolsa de es- do preconceito como parte constitutiva do
tudos pela união soviética. Então ele pensou psiquismo, inerente à condição humana. Em
nisso e falou ‘não vou colocar nos meus filhos diversas passagens da entrevista, Clennon
esse sobrenome pra poder dar mais abertura King Jr. nos mostra a relação do preconceito
e não criar aquela resistência.’ Ele só botou ... étnico com mais frequência e de forma mais
já é o nome da minha etnia que é o nome do evidente.
meu pai. Porque lá tem muito esse negócio de Clennon King Jr. segue nos alertando so-
colocar nome referindo a alguma situação, al- bre a importância da história como aspecto
guma coisa e tudo mais. Aí ... significa ‘eu sou mitológico para constituição dos ideais na
melhor que você’. Quando a minha avó sepa- sociedade guineense, na diáspora ou na rela-
rou do meu avô, e o meu pai nasceu, a minha ção com esse Outro.
avó colocou o nome dele assim, pra dizer pro
meu avô que ela é melhor que ele. O que se vê aqui é que a história é contada
de forma distorcida, parece um filme cortado
Temos aqui um relato importante para numa determinada cena, a gente não sabe o
pensarmos a questão do preconceito étnico. início nem como é que finalizou. E infeliz-
Não se observa no relato de Clennon King mente os negros brasileiros, nossos irmãos,
Jr. uma relação histórica de preconceito de eles acabam, de certa forma, sendo vítimas
cor na Guiné-Bissau, mas um fundamento dessa história. Porque você sendo negro bra-
histórico de conflitos étnicos gerador de pre- sileiro, entrando na sala de aula e escutando
conceitos. a única coisa que falam sobre você, da escra-
Obviamente nosso objeto de pesquisa é vidão, da humilhação, e hoje da miséria, não
o preconceito racial, contudo não podería- é uma coisa bacana. Isso de certa forma não
mos deixar de ‘escutar’ as manifestações do cria nenhuma autoestima. [...]. Mas claro, é
inconsciente a respeito da produção do dis- uma construção de um país que ainda é do-
curso sobre as relações étnicas em África sob minada pela população negra, e essa história
o ponto de vista dos afetos. é renegada, ninguém conhece, que deveria
Nesse contexto, Clennon King Jr. é cons- ser patrimônio mundial, pra mostrar o avan-
tituído dos ideais de fundam uma instância ço, o conhecimento do povo africano. [...]. Lá
da personalidade resultante da convergên- [Guiné-Bissau] nós somos os donos da nossa
cia do seu narcisismo (idealização do ego) e história, nós escrevemos a nossa história, não
da identificação com seus pais, com os seus nos submetemos mais àquelas histórias que de
substitutos e com os ideais coletivos. Como certa forma não são totalmente verídicas, ou
instância diferenciada, o ideal de ego cons- verdades absolutas, porque nós temos a nossa
titui um modelo a que o sujeito procura se história, nós escrevemos e nós somos ensi-
conformar (Laplanche; Pontalis, 2001). nados essa história. [...]. Inclusive a gente sai
No relato apontado por Clennon King Jr. da África com uma mentalidade de enxergar
encontramos, de forma evidente, as instân- uma pessoa branca, caucasiano, com o mes-
cias convergentes e conflitantes para consti- mo olhar que eu enxergaria o negro Iorubá.
tuição do ego do sujeito nascido em deter- Porque pra nós não existe nenhum ‘oh!’, não
minada cultura. Nesse caso, a relação com existem, olhos azuis e os caralho... Não exis-
te isso. É isso que eu acho interessante. [...]. que darão sentido aos movimentos internos,
Nós temos um olhar totalmente diferente, oferecendo suporte identificatório à criança,
um olhar totalmente que eu diria... divergen- cujas fronteiras narcísicas estão balizadas
te da forma que é ensinada aqui, porque nós pela alteridade e atravessadas pelo desam-
sabemos que a dignidade de uma pessoa não paro originário e fundamental de todos nós.
tem que estar atrelada na produção pouca ou Recursos úteis àquilo que o homem mais
em grande quantidade de melanina. Porque almeja saber: “quem eu sou?”. O “quem eu
quando a gente faz esse julgamento, é um jul- sou” passa certamente por aquilo que a civi-
gamento infame, é um julgamento injusto. É lização (o Outro) deseja que sejamos. Afinal,
um julgamento de uma sociedade doentia, de nossa onipotência narcísica sofre agravos
uma sociedade desequilibrada. [...]. Porque, constantes, a alteridade vem de encontro à
aliás, a nossa independência não foi um mero individualidade ao interditar nossos desejos
ato político, foi onze anos de luta armada, ex- egoístas, desempenhando uma imposição
pulsamos eles, essa história que nós contamos. normatizadora.
Então jamais nos derrotamos de certa forma, Portanto, a ausência do laço emocional
entrou no nosso continente de forma sutil, entre o Eu e o outro é cara ao indivíduo, re-
querendo negócio, aí plantaram e dissemina- cordando a severa perda de contato com a
ram raiz, uma espécie de câncer silencioso. realidade observada na psicose, pois o de-
samparo psíquico, condição antropológica
Segundo Freud ([1932] 1976), os mitos fundamental do ser humano, é insuperá-
são analogias à compreensão do mundo ex- vel. Frente a isso, constituímos e mantemos
terno e, a partir da identificação, repercutem ideais intersubjetivos que tomamos como se
no conteúdo sintagmático individual, inter- fossem originalmente nossos.
ferindo nas representações identitárias de A cultura elabora suas construções sin-
cada um. E assim como o mito de origem ex- tagmáticas, um capital fantasmático, a partir
plica a criação do mundo, as histórias ances- da valoração de ideais introjetados devidos à
trais dos povos africanos mantêm um lugar identificação entre o Eu e eles, de forma se-
no imaginário social dos povos na diáspora e melhante à ontogênese.
dos seus descendentes brasileiros.
Ceccarelli (2012, p. 32) afirma: Ninguém pode ter deixado de observar, em
primeiro lugar, que tomei como base de toda
Os mitos, cujas origens se confundem com minha posição a existência de uma mente
a dos homens, representam o capital fantas- coletiva, em que ocorrem processos mentais
mático de uma cultura. Graças à cosmogonia exatamente como acontece na mente de um
que sustentam, cria-se um ponto de partida indivíduo [...] (Freud, [1921] 1976, p. 159).
que permite fundar historicamente a origem
do homem, dos animais e das coisas, asse- Atualmente, as religiões de matriz afri-
gurando a passagem do caos à ordem [...]. cana compõem um exemplo vivo de como
Os mitos têm os mesmos estatutos que o da a cultura e os mitos fundadores dos povos
realidade psíquica: são relatos que oferecem iorubás no território africano elaboram suas
representações às pulsões [...] cumprem uma construções sintagmáticas a partir do pro-
importante função ideológica: a de represen- cesso de identificação.
tar a ordem simbólica, que sustenta a social,
como sagrada, universal e imutável. Conclusões provisórias
Constatamos que a construção discursiva da
Para Lindenmeyer e Ceccarelli (2012), os história sobre a cultura dos povos e nações
ideais culturais servem de base às traduções se configura como um elemento fundador da
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