DOI: 10.5965/2175234606112014144
Do quadro ao jogo de fruição: Bosch Adventure
Game
From painting to play: Bosch Adventure Game
Ana Beatriz Bahia
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Do quadro ao jogo de fruição: Bosch Adventure Game
Resumo
O artigo aborda o jogo digital Bosch
Adventure Game, que foi produzido pelo
Museu Boijmans (Roterdã) e desenvolvido
pelo V2_Lab para a exposição Hieronymus
Bosch 1450-1516: Only Opportunity to See
So Many Works Together. Realiza leitura
(Roland Barthes) da interface (Lev Manovich) do jogo, enfocando o conceito de jogo,
o gameplay, a narrativa e as obras de Bosch
tomadas como referência: Os Sete Pecados Capitais e O Mascate. O artigo conclui
apontando esse jogo como suplemento de
obra e dispositivo de fruição para além dos
limites da pintura.
Palavras-chave: Museu, Arte; Videogame, fruição; Bosch.
Abstract
This paper is about the Bosch Adventure Game produced by Boijmans Museum (Rotterdam) and developed by V2_
Lab for the exhibition Hieronymus Bosch
1450-1516: Only Opportunity to See So
Many Works Together. It presents a reading (Roland Barthes) of the interface (Lev
Manovich) of the videogame, speciically,
of the concept, the gameplay, the narrative and the Bosch’s works incorporated:
The Seven Vital Sins and The Pedlar. At the
end, this paper deines the videogame as a
supplement of Bosch’s works and a fruition
device outside of the frames of the paintings.
Keywords: Museum, Art; Video game,
play; Bosch.
ISSN: 2175-2346
Ana Beatriz Bahia
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Não se pode falar sobre um texto, só se pode falar ‘em’ ele, à sua maneira, só se
pode entrar num plágio desvairado, airmar histericamente o vazio da fruição.
(Roland Barthes, O prazer do texto, 1996, p. 32)
Pretextos
Contexto museal
Entre 1999 e 2000, o Museu Boijmans Van Beuningen (Roterdã/Holanda) preparava-se para a exposição a ser realizada entre setembro e novembro de 2001: Hieronymus Bosch 1450-1516: Only Opportunity to See So Many Works Together1. A equipe
do setor educativo do museu vinha observando a diminuição do público adolescente
em suas salas expositivas. Pessoas dessa faixa etária diicilmente integram os grupos de
escolares que visitam o museu, tampouco têm o hábito de acompanhar familiares que
dispendem o tempo livre nesse tipo de instituição. Como comentou Chris Will (2006),
coordenador do setor educativo do Museu Boijmans: esses jovens encaram os museus
de arte como local entediante, onde se ica olhando para objetos difíceis de entender,
em contraste com os museus de ciência, onde cada vez mais há possibilidades de icar
fazendo alguma coisa.
A fala de Will não expressa resistência ao uso de recursos interativos por museus
de arte – bem pelo contrário, como atesta o fato de suas inquietações terem culminado na produção de jogo digital. No geral, as práticas do Museu Boijmans não repisam
o estereótipo de museu-mausoléu, sequer comunga dos discursos apocalípticos sobre os espaços museais na atualidade2 . Sua atuação reairma a ideia de museu como
instituição que se volta para trás e para a frente, tão resistente ao saudosismo quanto
ao progressismo3 . Apresenta-se como espaço de ruminação do mesmo e de negação
da mesmice (CHAGAS, 2005). O que ecoa na fala de Will é a preocupação em diferenciar dois padrões de comportamento do visitante museal, cada qual reportando a um
modo de construção do conhecimento, um voltado aos museus de arte e outro aos de
ciência (ALMEIDA, 2005).
Os museus de ciências versam sobre conceitos e usam recursos de tecnologia
para demonstrar fenômenos. Estabelecem correlação entre seus conteúdos e o cotidiano dos visitantes, abordam conceitos por meio de práticas, instrumentalizam seus
públicos a compreender o mundo. Dão acalento sobre as incertezas da vida4.
Na contramão disso está a Arte. As obras de arte desestabilizam certezas acerca
1 Tradução livre: Hieronymus Bosch: Oportunidade Única para Ver Tantas
Obras Reunidas. A mostra reuniu boa parte da produção do artista holandês,
com apenas duas pinturas e um desenho do acervo do Museu Boijmans. A mostra foi intitulada “oportunidade única” porque a maior parte das 25 pinturas e oito
desenhos reconhecidos como de autoria de Bosch estão em coleções estrangeiras (BOSCH UNIVERSE, 2008). Uma das pinturas inclusive faz parte do
acervo em exposição permanente do MASP, São Paulo: As Tentações de Santo
Antão (óleo sobre tela, 127 x 101 cm, c. 1500), primeira versão do painel central
do tríptico homônimo que está no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa.
2 Tendo o contexto latino-americano como foco, Jesús Martin-Barbero (Dislocaciones del tiempo y nuevas topograias de la memória, de 2000) e Néstor
García Canclini (Culturas híbridas. Estrategias para entrar y salir de la modernidad, de 1990) rebatem visões pessimistas sobre as inovações tecnológicas
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e conceituais adotadas por museus desde o inal do século XX.
3 Lembro-me aqui da leitura que Walter Benjamin (Teses sobre ilosoia da
história, de 1940) fez do Angelus Novus de Paul Klee: por um lado, o anjo
volta-se para o passado, onde vê a catástrofe que acumula escombros diante
de seus pés, a qual ele deseja poder parar e “acordar os mortos”; por outro
lado, uma tempestade impele-o para o futuro: Progresso é essa tempestade.
4 Pondero que tal ideia acerca do saber cientíico é relativizada tanto por
cientistas quanto por ilósofos da ciência. Douglas Hofstadter (em sua tese
Godel, Escher, Bach, publicada em 1979) discorrendo sobre o Teorema da
Incompletude, lembra-nos que não podemos defender padrões de raciocínio
indeinidamente; num ponto é a fé o que norteia o pensamento. Logo, todo
conhecimento é parcial e interdependente em relação ao sujeito cognoscente
e do contexto promotor do conhecer.
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do mundo, do homem e da vida, apresentam-se como enigmas. A fruição das obras
efetiva-se na medida em que assumimos posição de espectador coautor e realizamos
a leitura-escritura, evitando o tédio da leitura de consumo (BARTHES, 2004). Logo, museus de arte são espaços para dialogar com e a partir de obras de arte. São locais privilegiados para promover o pensar, o sentir e o imaginar, sem a preocupação de sair dali
com respostas (SAAVEDRA; BENAVENTE, 2006). Inclusive melhor é sair do museu de
arte com perguntas e desejos renovados.
O cerne do desabafo de Chris Will parece estar, então, em uma dúvida recorrente
entre proissionais de museus desde o inal do século XX: como despertar o interesse
em pessoas que interagem com dispositivos computacionais desde tenra idade, sem
banalizar a experiência da fruição artística?
A incorporação de recursos computacionais para ins museográicos é solução
adotada por boa parte das instituições. Todavia, nem sempre o sucesso esperado é alcançado. Muitas vezes, o museu dispende considerável montante inanceiro para obter
um aplicativo interativo que, contudo, carece de consistência formal. Ou seja, aplicativo que utiliza os recursos computacionais de modo supericial, não dialoga com os
conceitos-chave do acervo, opera de modo desconectado das demais estratégias de
comunicação museal e do contexto tangível de atuação da instituição. Não é possível listar aqui quais características garantem consistência formal para um aplicativo
de museu, da complexidade e diversidade das instituições museais, assim como dos
recursos tecnológicos disponíveis nos dias de hoje. Diante desse cenário de possibilidades, prudente é suspender a busca por soluções genéricas. É indicado encarar o
problema em sua parcialidade.
O Museu Boijmans fez isso, tendo clareza sobre o que queria resolver e, então,
desenvolvendo um sistema computacional (jogo digital) voltado especiicamente para
uma plataforma (web), para um peril de público (adolescente) e um momento de sua
agenda (a exposição sobre Bosch em 2001). Outra decisão certeira foi a de convidar
o V2_Lab5 para conceber e desenvolver tal solução tecnológica; pois o portfólio do
V2_Lab é marcado por intervenções colaborativas que discutem relações entre Arte,
Tecnologia e Sociedade, problematizando justamente os mecanismos de produção e
de distribuição artístico-cultural em ambientes instáveis, como é o caso da web. O
resultado foi positivo e surpreendente. O jogo digital Bosch Adventure Game não apenas despertou o interesse dos adolescentes pela exposição de Bosch, como também
se apresentou aos meus olhos6 como interface que pluraliza os modos de fruição do
universo imagético boschniano.
5 Apesar de congregar artistas de locais diversos, o V2_Lab surgiu e está
sediado em Roterdã. Para acessar a documentação de intervenções por eles
realizadas, acesse: http://www.v2lab.com
6 Esta parte do texto teve como ponto de partida um dos capítulos de minha
tese de doutorado (“Jogando Arte na Web: Educação em Museus Virtuais”,
PPG em Educação/UFSC, 2008, sob orientação do Prof. Dr, Wladimir Garcia).
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Contudo, a versão aqui apresentada, escrita seis anos após a defesa, sintetiza
algumas partes do capítulo e desenvolve outras que estavam apenas anunciadas na tese. Em suma, trata-se de um outro texto.
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Bosch Adventure Game 7
Quando o Museu Boijmans convidou o V2_Lab, tinha em mente o desenvolvimento de uma versão “virtual” da exposição. Mas o grupo problematizou a ideia original: jovens que não vão ao museu porque não se vêm motivados pelo tipo de experiência que ali é oferecida, estarão igualmente desmotivados a passear pela visita virtual.
O V2_Lab atentava ao fato de que o diagnosticado desinteresse dos adolescentes pelo
museu não se devia tanto aos meios empregados, tampouco ao assunto abordado − as
imagens de Bosch seguem sendo enigmáticas, instigantes e bem humoradas −, mas à
forma como tudo isso era oferecido ao público. Eram utilizadas as interfaces, o que não
despertava o interesse dos adolescentes.
O que leva adolescentes a passar horas a io na web, manuseando o celular e interagindo com jogos digitais não é o fato de terem em suas mãos um “novo” recurso
– até porque, os meios computacionais não são novos para eles, já existia quando eles
nasceram. O que suscita interesse é a dimensão interativa, interpessoal e lúdica vivenciada por meio desses recursos.
Foi por estar cientes disso que os artistas do V2_Lab propuseram o desenvolvimento do Bosch Adventure Game. Trata-se de um jogo do gênero aventura RPG (Role-Playing Game) , concebido para ser jogado online (sem demandar download de arquivo) e multiusuário (a ação de um jogador inlui no jogar de outro, apesar de cada
um construir seu percurso). Foi lançado em 2001 e divulgado no Brasil em 2002, na
conferência e na oicina ministradas por Anne Nigten (2002), no evento Emoção Art.Ficial (Instituto Itaú Cultural, São Paulo). Na época, joguei-o diversas vezes. Foi por sorte,
pois desde 2003 o jogo não está mais disponível ao público. Mesmo assim, em 2006,
tive a oportunidade de entrevistar Chris Will no Museu Boijmans e receber uma cópia
do jogo, em CD-Rom, para ins de pesquisa.
7 Ficha técnica: V2_Lab (concepção e produção); Anne Nigten do V2_Lab (direção artística, organização e pesquisa); Ra.nj digital entertainment (cenários);
Jan-Wijbrand Kolman e Marjolein Kassenaar (interface); Ad Rus, Pepijn van
Haren e Rob Bank (programação); Sandra Hekkelman (agenciamento de recursos); Lenno Verhoog e Meik van den Noordt (design); Martijn Hoogendijk
(apoio técnico); patrocínio de ABN AMRO Bank, KPN e Unilever.
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8 Seguindo a classiicação proposta por Neitzel (SANTAELLA, 2005): a) jogos
de ação, não-narrativos, marcados por desaios de luta e competição, ações
de pular e correr, como os jogos esportivos; b) jogos de inteligência, nos quais
o jogador é solicitado às práticas de construir, destruir e reconstruir em situações complexas, como Civilization; c) jogos de exploração, ou de aventura, ou
narrativos (RPG) nos quais o jogador imerge num mundo preigurado mas com
incontáveis possibilidades de interação.
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Figura 1: Duas capturas de tela do jogo: (1) jogador negociando objetos com um mascate; (2) diálogando sobre o pecado da preguiça.
Além do jogo, o site Bosch Universe foi produzido, permanecendo disponível por
cerca de dez anos. O site veiculava o jogo e trazia informações sobre Bosch estruturadas em quatro seções: (i) sua obra, com reproduções em alta resolução, organizadas
por tipo de suporte, e links para sites dos museus proprietários das obras de Bosch; (ii)
sua vida, com texto biográico escrito sob supervisão de Jac Biemans e Adrie Luysterburg, do Arquivo Municipal de Hertogenbosch, cidade natal do artista; (iii) sua inluência, listando obras em cinema, artes visuais, literatura, entre outras, que fazem referência a obras de Bosch; (iv) reações, com comentários de internautas, visitantes do
site, sobre as imagens criadas por Bosch. A interface do site incluía recurso de divisão
da janela do navegador em duas partes independentes (Fig. 2), estimulando a leitura
simultânea de duas partes do site escolhidas pelo próprio internauta e promovendo
a tessitura de relações entre as informações. Tal abordagem era introdução à atitude
interativa exigida ao internauta dentro do jogo.
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Figura 2: Captura de tela do site Bosch Universe.
Em 2001, Bosch Universe (site + jogo) icou entre os sete inalistas do prêmio Museums and Web, promovido anualmente pelo International Council of Museums (ICOM
-UNESCO) na categoria de Melhor Aplicativo Experimental. Ainda: recebeu dois prêmios no EuroPrix Multimedia Awards na categoria Conhecimento, Descoberta e Cultura, assim como o prêmio de destaque do ano. Para justiicar a premiação, o júri argumentou que o jogo oferecia ao público uma maior interatividade com a obra do que
uma exposição tradicional consegue oferecer, dando ao espectador a possibilidade de
imersão no universo imaginado por Bosch (no jogo), além da percepção em detalhes
de suas obras (no site). O júri encarou a iniciativa como uma variação atualizada da obra
de Bosch, desempenhando os papéis de hipermídia de entretenimento e educacional,
voltada tanto para adultos como para crianças (V2_ARCHIVE, 2006).
Proposição
Tendo em vista a paisagem acima igurada, proponho-me a ler o Bosch Adventure
Game, baseada em minha experiência como jogadora deste. Em meio à teia de conceitos norteadores dessa leitura, destaco dois: interface, enquanto pele e estrutura do
objeto digital; e fruição, enquanto modo dos artistas do V2_Lab apropriaram-se das
obras de Bosch para criar a interface do jogo.
Na perspectiva proposta por Lev Manovich (2006), interface é mais do que a superfície gráica e os dispositivos interativos de um objeto computacional. Manovich
defende o estudo das interfaces para além da informática – sob o nome interface cultura – como estratégia para ultrapassar a ideia de computador como meio. Interface é
ponto de conjunção de recursos tecnológicos com códigos culturais, logo, não é “ja-
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nela transparente”. É opaca, sendo sua opacidade constituída pelo modo de selecionar
e de organizar conteúdos plasmados em sua forma. Esse conceito não se aplica apenas
aos sistemas computacionais. De fato, não existe encontro direto com o mundo, nosso
perceber e conhecer passa sempre pelas torções das interfaces – é o que ocorre na
sala de um museu de arte, através das lentes dos óculos que nos permitem ver com deinição, ou apenas no enquadramento de um olhar sobre uma paisagem. As interfaces
contaminam e potencializam as leituras que tecemos sobre as coisas do mundo.
Quanto à leitura, Roland Barthes9 atenta-nos às contradições que constituem
esse processo. O sujeito que se encontra imerso no texto10 está mal situado, à deriva,
oscilando entre o prazer de ler (reconhecendo códigos culturais) e a fruição do texto
(subversão autoral do que está dado). Na leitura de fruição, o leitor pergunta-se: “como
esta obra pode ainda ser lida?” (BARTHES, 2004, p. 104). Mas fruição não é leitura livre,
nem palco para projeção de fantasias − “não há leitura ‘natural`, ‘selvagem`”; “a leitura
mais subjetiva que se possa imaginar nunca passa de um jogo conduzido a partir de
certas regras” (idem, p. 28). A leitura de fruição dá-se dentro da estrutura múltipla e
aberta do texto, tanto a respeitando como a pervertendo. A fruição produz excessos –
a leitura-escritura, como nomeia Barthes –, gera suplementos de obra.
A escolha de Roland Barthes (1990; 1996; 2004; 2005) para fundamentar este
ensaio justiica-se por ter sido ele leitor ávido por textos variados – como mobiles de
Calder, fotos de revistas de moda, cidades, rostos e gestos. Barthes modelou sistemas
de leitura que problematizavam as metodologias analíticas que decompõem os textos
no processo de leitura. Ele enfocava justamente as relações entre os ios culturais que
compõe um texto. Seus sistemas de leitura são assumidamente artiiciais e parciais,
sem pretensão essencialista ou totalizante. Nem por isso são arbitrários; são pautados
em uma solidariedade entre as partes da obra entrevista pelo leitor11 .
Neste artigo, leio a interface de Bosch Adventure Game como resultado de leitura-escritura das obras de Bosch, realizada pelo V2_Lab de forma colaborativa com o
Museu Boijmans. Estruturo a leitura a partir de quatro aspectos desse objeto digital, especialmente signiicativos no contexto museal e artístico para o qual o jogo foi criado.
São eles gameplay, conceito (premissa de jogo), narrativa e as obras de Bosch tomadas
como referência mor pelos criadores do game.
O gameplay 12
Bosch Adventure Game inicia com a apresentação das regras do mundo do jogo.
Não se trata tanto da parte operacional quanto do contexto histórico e dos valores
culturais ali simulados. Ocorre em diálogo com o personagem-mentor (Fig.11) em um
preâmbulo narrativo que deine os tipos de interação possíveis ao jogador e as respectivas reações do sistema:
9 Vale lembrar que a base teórica adotada por Lev Manovich em sua tese
The Language of New Media, publicada em 2000, é o pensamento de Roland
Barthes.
10 Leia-se aqui por texto uma obra de artes visuais, um ilme, um cartaz
publicitário ou outros tipos de produção cultural que possa ser tomado como
dispositivo para a prática da leitura.
11 Essa posição metodológica é explícita nas obras que Barthes publicou nas
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décadas de 70 e 80, quando inclusive problematizou a semiologia sumarizada
em “Elementos de semiologia”, de 1965.
12 Opta-se pelo uso do termo em inglês – em vez de jogabilidade – por ser
o neologismo gameplay comumente empregado para o tema que abordo
neste tópico do texto. Inclusive há dois termos em língua inglesa – gameplay
e playability –, cuja diferença conceitual costuma ser abreviada, utilizando tradução única para o português como jogabilidade.
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Be careful in this world. There are epidemics, you can be robbed, and there are
beggars and usurers on the prowl. But you also come across love, God’s love and
the love you fellow human beings. You can earn money, and you can spend it.
Avoid sin and live in as exemplary a manner as possible. At the Last Judgment
you will be spared or damned depending on the life you have led. […] Live modestly, stay healthy and sin as little as you can. If you still commit a sin, compensate it. Follow your heart! (BOSCH ADVENTURE GAME, 2001) ¹³
Em seguida, o jogador escolhe uma dentre quatro possibilidades de personagem-avatar, adota um nome e deine uma senha. Então, entra efetivamente em jogo. Conversa com a NPC14 Neel, a dona da hospedaria e taberna da cidade, que lhe oferece
um quarto ao custo de trinta moedas. O jogador não tem como deixar de fazer esse
pagamento, pois é o único modo de encerrar esse diálogo e poder interagir com outros personagens. Feito o pagamento, o jogador ica registrado no livro de hóspedes
de Neel (Fig.3).
Figura 3: Captura de tela do jogo logo após diálogo com Neel e registro no livro.
O jogador tem acesso a esse livro. Por meio dele, consegue obter informações
sempre atualizadas sobre o estado do seu personagem – apesar de que esse tipo de
consulta nem sempre é vantajosa, pois implica dispêndio de moedas, além do deslocamento até o balcão da hospedaria. O livro também possibilita a cada jogador acessar
informações da jogada dos demais usuários do jogo, podendo enviar mensagens para
estes.
Além de o recurso de comunicação entre jogadores icar disponível no livro a
todo momento de jogo, tal recurso se dá também na barra do jogador ixada no canto
13 Tradução livre: Tenha cuidado neste mundo. Há epidemias, você pode ser
roubado e há mendigos e aproveitadores à espreita. Mas você também encontrará amor, o amor de Deus e o amor das pessoas que te cercam. Você pode
ganhar dinheiro e gastá-lo. Evite o pecado e tente viver de forma exemplar.
No Juízo Final você será absolvido ou sentenciado, dependendo da vida que
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levou. [...] Viva modestamente, mantenha-se com saúde e evite pecar. Caso
cometa um pecado, compense-o. Siga o seu coração!
14 Abreviatura da expressão em inglês Non-Player Character, personagem
não jogável/manipulável, mas com o qual o jogador interage em desaios ou
em diálogos.
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esquerdo e superior da tela. Além do pergaminho − ícone do recurso de troca de mensagens, o qual é marcado em vermelho quando o jogador possui mensagens não lidas
−, a barra registra o status da jogada através: (i) da imagem do personagem do jogador,
a qual se metamorfoseia de jovem à caveira na medida em que o jogador gasta (perde
pontos de) vitalidade, e pode recuperar juventude na medida em que o jogador alimenta o seu personagem e contrata tratamentos médicos; (ii) do número de moedas que
o jogador possui em caixa; (iii) da bolsa com os objetos que o personagem conquista
durante o jogo. O sistema salva essas informações periodicamente, logo, cada vez que
o jogador retorna ao jogo, reencontra sua barra no estado em que a deixou.
Todo jogador começa com dezessete anos de idade, 100 pontos no atributo vitalidade e 70 moedas (sendo 30 delas gastas de imediato, para pagar a hospedaria).
Dependendo do modo como conduz sua vida no jogo, perde vitalidade de modo mais
rápido ou lentamente. Também conquista e gasta dinheiro, o que não interfere diretamente em sua vitalidade, apesar de que o dinheiro lhe permite comprar alimento,
remédios e objetos de proteção do corpo, e assim retardar o envelhecimento, logo, a
morte no jogo.
O jogador conquista moedas vencendo desaios que exigem astúcia e agilidade
(Fig. 4 e 5). Por exemplo, o desaio de copos exige atenção e pode render moedas; o de
servir mesas na taberna exige que deduza qual tipo de alimento é a preferência de cada
cliente e, assim, rende moedas. Outro exemplo é o desaio baseado no jogo clássico
Pac-Man (Atari): o jogador controla um personagem que corre pelo labirinto e devora
pratos de comida; assim, ele tanto conquista suprimento (que ao término do desaio
pode ser convertido em vitalidade) quanto ganha peso; mas se engordar muito, não
passará por alguns corredores e precisará apenas correr (evitar colidir com alimentos)
até perder peso e conseguir chegar ao inal do labirinto.
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Figura 4: Duas capturas de tela do jogo: (1) servindo mesas na taberna; (2) descobrindo onde está a moeda no jogo dos copos.
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Figura 5: Duas capturas de tela do jogo: (1) rezando terço para compensar pecados; (2) jogo de tabuleiro sobre o pecado da luxúria.
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Para entrar nos desaios, o jogador precisa das chaves (acumuladas no canto direito e alto da tela) conquistadas em diálogos com NPCs. Tais diálogos preparam o
jogador para os desaios, abordando os pecados capitais15 e fornecendo objetos especíicos necessários. Por exemplo, só é possível entrar no desaio de luta se o jogador
tiver acumulado a chave ao passar por um diálogo sobre o pecado da ira; o jogador
só poderá vencer essa luta se tiver em sua bolsa o punhal adquirido em diálogo com
o mascate; quando estiver prestes a vencer, uma caixa de diálogo lhe perguntará se o
seu adversário merece mesmo morrer, como se fosse sua própria consciência que faz
ecoar o diálogo sobre o pecado da ira; se o jogador recuar, seu personagem aparece
caído no chão, mas o nocaute é mais proveitoso para sua pontuação geral no jogo do
que a vitória; se optar por matar seu adversário, o jogador terá cometido um pecado
capital, o que pesa contra ele na balança do Juízo Final. Ainda assim, o jogador pode
atenuar o peso desse pecado indo à igreja, confessando exatamente o tipo de pecado
cometido, comprando e oferecendo ex-votos ou apenas orando.
Sabendo administrar situações como essas, moedas e pontos de vitalidade podem ser conquistados e a jogada pode estender-se a perder de vista – demora que
problematiza a ideia comum de que os jogos digitais são marcados apenas pela velocidade acelerada. Demorar-se no mundo do jogo proporciona regozijo, mas pode acarretar um inal infernal para o jogador, pois a busca obstinada por dinheiro e vitalidade
caracteriza os pecados da cobiça e da vaidade. Trata-se de um subterfúgio da interface
do jogo, em seu sistema de recompensa, para puxar o tapete do jogador que se detém
na mecânica e se esquece do conteúdo narrativo. Em poucas palavras, o gameplay
desse jogo não reprisa a lógica acumulativa comum nos jogos de aventura e de RPG,
mas experimenta a moral cristã do contexto histórico de Bosch; o sucesso do jogador
depende menos de acumular moedas ou vitalidade e mais de evitar pecar.
De qualquer modo, quando termina a vitalidade do personagem, o jogador chega
ao ambiente celestial e encontra-se diante do “criador”, rodeado por anjos e personagens terrenos. A igura do criador não é Deus, mas o próprio Bosch, que pede ao jogador recapitular as ações que realizou em jogo e anuncia a chegada do veredicto. Nesse
ponto o sistema avalia se o jogador soube equacionar o cumprimento da lei divina com
os prazeres terrenos, quantiicando situações como: o tempo em que orou na igreja,
os ex-votos que colocou no altar, as indulgências que negociou com o padre, a esmola
que deu ao mendigo, o modo como se alimentou, se reconheceu ou não os pecados
que cometeu, entre outras. A cena seguinte ao Juízo Final é uma imagem comprida,
que traz na base as chamas do inferno e no topo a glória dos céus. Entre as extremidades, bandeirinhas amarelas demarcam a posição dos jogadores que por ali já passaram,
permitindo identiicar visualmente (e não numericamente) os escores obtidos (Fig.6).
15 Classiicação de sete comportamentos da condição humana: gula, avareza, luxúria, ira, inveja, preguiça e orgulho. Identiicados como vícios na cultura
cristã desde o período medieval, foram tomados como balizas no processo
de educação moral e problematizados por Bosch em suas pinturas. Hoje, têm
sentido ambíguo, inclusive, tomados como qualidades humanas.
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Figura 6: Duas capturas de tela do jogo: (1) Paraíso; (2) Inferno.
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O conceito
Em termos abstratos, conceituais, a premissa do jogo Bosch Adventure Game é
a relação isomórica existente entre a interface do jogo e as obras que ele incorpora.
Nesse jogo, não se fala tanto sobre as obras de Bosch quanto a partir dela, à maneira
delas. Fazendo um trocadilho com Barthes (1996, p. 32), diria que o V2_Lab entrou num
plágio desvairado com as obras tomadas como referência. Daí advém a consistência
formal de sua interface e a impossibilidade de tomarmos seu gameplay como modelo
para criar outros jogos de obras e artistas.
A percepção de tal conceito motivou-me a demorar-me na forma (interface) desse jogo, tomando-a como palco de leitura. Isso porque, quando nos demoramos na
forma de um texto – em vez de buscar rapidamente construir um signiicado sobre
ele –, equilibramos a tensão existente entre o enunciado expresso, o sentido óbvio
do texto, e a inquietação que a forma gera, o sentido obtuso (BARTHES, 1990). Assim,
participamos do caleidoscópico jogo de olhar para a forma e enxergar variações, deslocamentos, correlações a partir dela. Somos levados a “outro nível de percepção” do
mundo. Barthes destaca que o texto artístico é mais propício a esse tipo de leitura.
Se a arte (mantemos esse nome cômodo, para designar toda atividade não funcional 16) tivesse o único objetivo – fazer ver melhor – seria apenas uma técnica de
análise, um ersatz [substituto] de ciência (foi a pretensão da arte realista); mas, ao
tentar produzir a outra coisa que está na coisa, subverte toda uma epistemologia
[...]. (ibidem, p. 203)
Bosch Adventure Game é um texto artístico e educativo. Ele desperta o gosto pela
experiência da fruição das imagens de Bosch – pois foi desenvolvido para resolver o
“problema” diagnosticado pelo Museu Boijmans já mencionado –, e faz isso se apresentando como dispositivo de fruição desse tipo de imagem. Nem por isso reproduz a
experiência vivida na visita ao museu tangível. Ao contrário, aporta um nível de fruição
do imaginário boschiniano diferencial, suplementar às obras tomadas de referência.
Nesse sentido, os fragmentos de obras citados em jogo não se deixam perceber como reproduções das obras. A reprodução não é determinada pelo emprego de
técnicas de reprodutibilidade na geração de imagens, mas pela função que a imagem
realiza em seu destino. A demora do olhar sobre a forma é o que impede que a função-reprodução se realize, pois implica a imagem remeter apenas para fora de si, para o
“original”. Quando a imagem é excesso, como o caso do jogo aqui abordado, ela tanto
remete para fora de si (para a obra referida) quanto para si, promovendo a demora do
olhar sobre a forma (BAHIA, 2008).
Na interface de Bosch Adventure Game, por exemplo, as imagens de Bosch incorporadas são tramadas com códigos culturais da atualidade, a um meio estranho ao da
pintura artística, mantendo certo distanciamento em relação às obras de referência e
suscitando a escritura de um novo texto, isomórico aos textos de referência.
16 Barthes deine a forma artística como: heterogênea, não se explica pelas
regras de uma língua; polivalente, ou seja, polissêmica, remete a vários signiicados, e sinonímica, mantém relações com outras imagens; e combinatória,
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Palíndromo, nº 12, jul./dez. 2014
possui tal “elegância na fusão” de seus elementos que nada pode ser tirado
ou colocado sem comprometer radicalmente o funcionamento de sua forma
diferencial (2005, p. 37-43).
Ana Beatriz Bahia
Do quadro ao jogo de fruição: Bosch Adventure Game
Pede que se tente abolir (ou pelo menos diminuir) a distância entre a escritura e a
leitura, não pela intensiicação da projeção do leitor sobre a obra, mas ligando-os
a ambos numa só e mesma prática signiicante (BARTHES, 2004, p. 73).
O distanciamento relativo em relação às obras apropriadas evidencia-se na metodologia empregada para produzir a parte gráica do jogo: a técnica de colagem semi-3D (V2_ARCHIVE, 2006). Primeiro, as obras de Bosch foram digitalizadas e as imagens
fragmentadas (separando cenários, personagens e objetos); segundo, os fragmentos
foram estruturados em módulos e camadas, animados separadamente, dando ao jogador a impressão de estar em um ambiente tridimensional.
Tal procedimento conlui com a ideia de transcodiicação (MANOVICH, 2006),
de construção de um outro texto por meio de convergência e manipulação de textos
pré-digitais. Lev Manovich aponta a transcodiicação como uma das marcas da sociedade computacional17. Exempliica com o Dj, proissional que transcodiica os meios
de gravação (o vinil) e de reprodução musical (o toca-discos). O que resulta soa inovador aos nossos ouvidos, mas traz metáforas, gramáticas, categorias e conceitos dos
“velhos” meios (como enciclopédia, narrativa, drama, comédia, tragédia, mímesi, entre
outos), de modo que preserva uma forma de organização inteligível aos usuários. Ainda: a consistência da mixagem não se deve apenas à seleção dos meios e obras que serão incorporados, depende da habilidade do DJ de realizar uma combinação reinada
de elementos, mesmo os aparentemente desconexos, e construir um objeto que não
esconda a heterogeneidade dos elementos que a constituem, nem evidencie os pontos
de união – ou seja, trata-se de uma abordagem diferente da assemblage modernista.
Por ocorrer no meio computacional, a transcodiicação implica modulação das
partes que serão combinadas no “novo” texto. Cada elemento modular, por menor
que seja, pode ser manipulado, deslocado, eliminado e substituído individualmente,
sem que isso acarrete prejuízo à identidade dos demais elementos. No caso de Bosch Adventure Game, fragmentos de obras foram categorizados (como personagens,
elemento de cenário ou objetos) e programados para terem estados/comportamentos especíicos em cada momento de jogo, vinculados às unidades narrativas (como
cada um dos pecados capitais). As partes também são moduladas em níveis discretos
(não perceptíveis ao público não especialista em informática) e cada vez menores, até
chegar às menores unidades computacionais. Assim, o jogador interage com os fragmentos sem percebê-los como partes de obras especíicas, mas imerso num mundo
consistente que plasma o universo de Bosch.
A mixagem de obras em Bosch Adventure Game não expõe as suturas. O mesmo procedimento não ocorre em outros jogos, como Guido Contra el Señor de lãs
Sombras (Museu Thyssen Bornemisza/Madri). Neste, o personagem-mentor, Guido,
desempenha o papel de guia do jogador em visita a uma sequência de obras do acervo
do museu, com a missão de coletar objetos que possam fortalecer o jogador e permitir
que enfrente, ao inal do percurso, o Senhor das Sombras. Há uma narrativa que en-
17 Transcodiicação é o quinto dos cinco axiomas (representação numérica,
modulação, automatização e variabilidade) elencados por Manovich acerca
dos objetos computacionais
Ana Beatriz Bahia
Palíndromo, nº 12, jul./dez. 2014
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Do quadro ao jogo de fruição: Bosch Adventure Game
laça as obras, mas estas são apresentadas como algo independente da narrativa e da
visualidade do jogo. Por mais que a narrativa dialogue com a dimensão semântica das
obras, não há continuidade entre estes dois planos da interface: quando Guido fala, a
narrativa é proeminente, e as obras são apresentadas em segundo plano; quando entra
a cena de zoom na obra, Guido desaparece do palco e o jogador é indagado sobre algum aspecto narrativo ou formal da obra em si.
O conceito de jogo plasmado na interface de Guido Contra el Señor de lãs Sombras difere do que temos em Bosch Adventure Game. Guido não estabelece relação de
isomoria com as obras que cita, até pelo contrário. Apresenta um gameplay “coringa”,
que pode ser tomado como modelo para o desenvolvimento de outros jogos, facilmente adaptável a outros artistas e obras sem correr o risco de perder a sua consistência formal.
A narrativa
A narrativa é algo a ser construído pelo jogador de Bosch Adventure Game –
como se espera de um jogo de RPG –, a partir de incontáveis elementos signiicantes
distribuídos por todo o espaço de jogo. Ou seja, a narrativa do jogo não se limita ao
enredo; não é uma história contada, e sim a ser escrita mediante a leitura de imagens,
sons, diálogos, desaios e todas as demais situações vividas em jogo. A sequencialidade
dessa leitura dependerá do transcurso de cada jogador, pois os jogos digitais possuem
narrativa multiforme, modular e rizomática (MURRAY, 2003), potencializando o caráter
múltiplo e coautoral de todo processo de leitura.
Em termos concretos, a leitura tem como ponto de partida o enredo, introduzido
nos diálogos com o personagem-mentor, logo após o login, e no diálogo com a dona
da hospedaria. Desde aí, não há uma sequência predeinida para acessar os demais
diálogos, e eles podem ser relidos quantas vezes o jogador desejar. Ou seja, a representação narrativa depende do modo como o jogador conduz os passos de seu personagem. Isso caracteriza um modo de narrar diferente da literatura e do cinema modernos
− nos quais a história é construída a partir da tensão psicológica entre personagens −,
assemelha-se ao teatro da Grécia Antiga, pois o enredo é pautado no itinerário do protagonista (MANOVICH, 2005).
A fruição da arte por meio de um itinerário não é uma novidade de jogos. Sabe-se
que, em tempos de fundação dos primeiros museus modernos, a ideia de viver uma
aventura em meio a obras de arte já era encarada como forma intensiva de conhecer
a arte. Reiro-me ao Grand Tour18 : prática apreciada por ingleses, alemães e franceses
do inal do século XVII a meados do século XIX, caracterizada por viagens rumo a Itália como forma de estudo das realizações da cultura clássica e de lazer (SALGUEIRO,
2002). E vivia-se uma efetiva aventura: as rotas incluíam Hannover, Dresden, Viena,
Paris, os Alpes, Lion, Turim, Veneza, Florença, Nápoles e culminavam em Roma. Como
18 Valéria Salgueiro diferencia o Grand Tour (ou Grosse Reise, ou Grand
Voyage) do turismo cultural de massa: o primeiro esteve relacionado à busca
de prazer e de status intelectual; o segundo é visto apenas como lazer, distração, ocupação do “tempo livre” socialmente determinado (feriados, inais de
semana e férias do trabalho) em pacotes preigurados de viagem. A separação
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Palíndromo, nº 12, jul./dez. 2014
entre prazer e trabalho, trazida pela racionalização do tempo na sociedade
capitalista moderna, não era conhecida pelo grand tourist, até mesmo porque
a ideia ordenada de trabalho não fazia parte da vida desses viajantes, pessoas
que gozavam de estabilidade inanceira advinda de bens familiares, que eram
tanto administrados quando desfrutados.
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Do quadro ao jogo de fruição: Bosch Adventure Game
não existiam trens e barcos a vapor, os viajantes atravessavam o Canal da Mancha em
embarcações à vela, andavam em carruagens por estradas precárias e perigosas, enfrentavam saqueadores e atravessavam os Alpes no lombo de mulas ou em cadeiras
móveis levadas por carregadores. O grand tourist contratava guias nas próprias cidades
para obter informações sobre o que ver e visitar, conversava com estudiosos que lhes
ofereciam acesso as coleções particulares, documentava o que conhecia em diários
recheados com desenhos e citações de textos da literatura clássica e que, muitas vezes,
eram depois transformados em publicação.
O que não foram estas viagens senão um jogo de aventura com a cultura clássica,
mas sem tirar os pés do tempo presente e do espaço tangível? O que não é este artigo
senão um copilado de escritos e fotos que produzi como grand tourist em Bosch Adventure Game?
Figura 7: Capturas de tela em que o jogador vagueia pelo mundo do jogo.
Ana Beatriz Bahia
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Do quadro ao jogo de fruição: Bosch Adventure Game
Quanto aos aspectos temáticos da narrativa, Bosch Adventure Game versa sobre
o contexto sociocultural, em especial, religioso, em que viveu Bosch. No diálogo inicial,
a dona da hospedaria conta ao jogador que ele está no ano de 1481, na cidade de Hertogenbosch (Países Baixos, atual Holanda), na semana em que a cidade recebia duques
e membros de irmandades cristãs para os preparativos da procissão.
Segundo Adrie Luysterburg, do Arquivo Municipal de Hertogenbosch (BOSCH
UNIVERSE, 2008), o nome de registro do artista que icou conhecido internacionalmente como Hieronymus Bosch, ou apenas Bosch, é Jeroen Van Aeken. Ele viveu em
Hertogenbosch entre 1450 e 1516, período no qual a cidade prosperou, tornou-se a
sétima maior dos Países Baixos, passando de 14 mil a 16 mil habitantes. Ficou famosa,
entre outras coisas, pela procissão religiosa que lá acontecia anualmente. Na época,
quinze ordens monásticas estavam estabelecidas e quarenta igrejas/capelas em funcionamento na cidade, a qual icou conhecida como a “pequena Roma”. Junto às ordens religiosas foram fundados hospitais, centros de caridade e escolas, levando para
Hertogenbosch estrangeiros, dos mendicantes aos estudantes, como Erasmus, que ali
cursou escola entre 1485-1487. Apesar de não ser litorânea, mas sendo cortada por
canais, também foi ponto de parada de comerciantes terrestres e marítimos, importante produtora de tecidos e de materiais para construção, reduto de artesãos. Havia
dezoito guildas em funcionamento na cidade em meados do século XV. Nesse período,
a catedral da cidade – que hoje é considerada a um estilo gótico em melhor estado de
conservação do país – estava em construção, atraindo para lá artesãos de renome. O
próprio Bosch trabalhou em um dos altares da catedral, aquele referente à Confraria de
Nossa Senhora, da qual o artista tornou-se membro em 1486.
Além deste e de outros dados coletados no arquivo histórico municipal, a narrativa de jogo foi construída a partir de duas obras do artista: Os sete pecados capitais
(c. 1480, óleo sobre painel, 120 x 150cm, peça do acervo do Museu do Prado em exposição permanente) e O mascate, ou The pedlar, conforme consta no catálogo do
museu (c. 150019 , óleo sobre painel octogonal, 71 x 70,6cm, peça do acervo do Museu
Boijmans em exposição permanente). No próximo tópico, discorro sobre estas obras.
Por ora, vale dizer que a escolha das duas obras-chave parece ter sido arquitetada
como resposta à recorrente identiicação de Bosch como precursor remoto do Surrealismo20 , destacando seu viés fantástico e deslocando os olhares para obras como
O jardim das delícias (Museu do Prado) – viés que não coincide com as obras que integram o acervo do Museu Boijmans. De qualquer modo, Bosch Adventure Game não
olvida o fantástico em Bosch, inclui personagens desse tipo, “recortados” de outras
obras, que atravessam o palco do jogo de tempo em tempo. Não se estabelece hierarquia ou relação de causalidade entre as diferentes iconograias presentes no jogo.
Todas transitam no mesmo palco – como ocorre nas obras de Bosch −, imbricadas
19 Apesar do Museus Boijmans não precisar a data da obra, os exames técnicos realizados no suporte desse painel mostraram que ele foi confeccionado
com o tronco da mesma árvore de outra obra de Bosch, A morte do avarento
(de 1490, também feito em óleo, com 93 x 31 cm, acervo da National Gallery
de Washington). A análise também atestou que O mascate é posterior a
1488 (BOSCH UNIVERSE, 2008).
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20 Exemplos estão em publicações recentes como “Bosch” (Parkstone Press,
2012), de Virginia Pitts Rembert; “Realism, Rationalism, Surrealism: Art Between the Wars” (Yale University Press, 1993), de David Batchelor, Briony Fer e
Paul Wood; “Universos Da Arte” (Editora Campus, 1983), de Fayga Ostrower.
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Do quadro ao jogo de fruição: Bosch Adventure Game
através da narrativa e do gameplay, como se lançasse ao mundo a pergunta: para além
da classiicação como fantástica ou do medieval tardio, como a obra de Bosch pode ser
lida desde ali? Em proveito da fruição, a pergunta é deixada em aberto para o jogador.
Dos pecados ao riso
A primeira pintura norteadora do desenho do jogo é Os sete pecados capitais.
Considerando a forma como os pecados capitais foram tomados como vícios pela cultura cristã medieval, deduzo que a obra devia despertar sensações de temor e culpa
nos contemporâneos de Bosch, pois ela aborda os pecados de modo empático e representa Deus como aquele que tudo vê.
Trata-se de um painel de madeira quadrangular que não foi concebido como objeto para ser colocado na parede, e sim como tampo de mesa. Aqui me detenho às
imagens representadas no painel, organizadas em cinco círculos: quatro menores, nos
cantos do suporte (com representações da morte, do Juízo Final, do Inferno e da Glória) e um maior, no centro (com representações dos sete pecados capitais).
Figura 8: Reprodução da obra “Os sete pecados capitais” (H. Bosch, c. 1480, óleo sobre painel, 120 x 150 cm, Museu do Prado – Espanha)
No alto e na base da composição, duas itas trazem passagens bíblicas retiradas
do livro Deuteronômio21 : “Porque son un pueblo que no tiene ninguna comprensión
21 Deuteronômio é um dos livros do Antigo Testamento escrito por volta de
1405 a. C. A tradução literal do termo é “repetição da Lei”, visto que o texto é
registro verbal dos discursos de Moisés ao povo (os israelitas, “ilhos de Israel”) quando rumavam para a Terra Prometida. A parte do texto citada por Bosch
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é o capítulo 32, o cântico de fechamento do Livro, profícuo em imagens simbólicas: Moisés aponta a necessidade das pessoas que o ouviam de conhecer o
passado e ver-se como parte de um povo, sob o zelo do Senhor.
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Do quadro ao jogo de fruição: Bosch Adventure Game
ni visión, si fueran inteligentes entenderían esto y se prepararían para su in” e “Apartaré
de ellos mi rostro y observaré su in22” (MUSEO NACIONAL DEL PRADO, 2008). Apesar
de o livro ser composto dos discursos de Moisés encorajando seu povo a rumar à Terra
Prometida, os versículos transcritos por Bosch colocam o indivíduo pequeno diante da
soberania de Deus e alertam que o Juízo não tarda e que não há como esconder seus
atos de Deus. No centro da composição, dentro da esfera maior, o olho de Deus é representado tendo a igura de Cristo na pupila. Cristo está tocando as chagas da cruz e
acompanha o seguinte dizer: “Cave, Cave, Dominus videt”23. Tudo o que fazemos está
sob o olhar inquisidor do qual nada escapa.
Bosch representou os pecados em situações corriqueiras, comuns na vida do seu
público (URBINA, 1993): a ira, dois homens embriagados brigam enquanto uma mulher
tenta apartá-los; a luxúria, jovens em núpcias, ao ar livre, rodeados por instrumentos
musicais24 ; a vaidade, uma dama em frente ao espelho, em posição semelhante à tomada diante de um oratório; a preguiça, uma freira acorda o padre que adormeceu
junto com seu gato; a gula, um pai obeso come desvairadamente junto com seu ilho,
enquanto a mulher/mãe entra na sala com mais um frango assado; a avareza, um juiz
mediando a desavença entre um homem em traje humilde, um clérigo e dois homes
“bem vestidos”, sugerindo que a cobiça poderá fazer faltar a justiça; a cobiça, um osso
posto à vista, mas não ao alcance, de um cão faminto.
Temos aí aspectos narrativos da obra que foram incorporados ao Bosch Adventure Game: a lógica de viver evitando o pecado sem contudo deixar de desfrutar da vida
norteou o desenho do gameplay; no jogo, a inteligência artiicial do sistema representa
o “olho do Senhor”, sendo esta infalível em seu papel; os personagens e situações escolhidas por Bosch para representar os pecados foram apropriadas pelos desenvolvedores do jogo.
Especiicamente, cada pecado é apresentado ao jogador em um módulo de diálogo, a partir do qual se ganha uma chave que abre o desaio relacionado àquele pecado.
O modo como o jogador atua nos desaios repercute na balança do Juízo Final, mas
ele nunca tem certeza sobre sua pontuação moral – diferentemente da vitalidade, do
dinheiro e do alimento, quantiicados nos atributos da barra do jogador. O máximo
que lhe é fornecido de informação acerca disso é a igura de uma balança que aparece
rapidamente na tela quando o jogador sai de um desaio, mostrando se o peso maior
está no Bem ou no Mal.
A advertência sobre as consequências de pecar e sobre a diiculdade de não sucumbir à tentação é outro elemento comum entre a obra Os sete pecados capitais e
o jogo Bosch Adventure Game. Até o modo como esse enunciado foi estruturado em
ambos os casos é semelhante: o perigo do pecado é apresentado dissimuladamente
em situações do cotidiano relacionadas à moralidade ali posta e supervisionadas pelo
olho que tudo vê. A diferença é que no game quem profere o julgamento inal é o
próprio Bosch (retrato do artista, conforme mostra a Fig.10), acompanhado de outras
22 Tradução livre: Isso porque eles não têm compreensão ou visão, se fossem
inteligentes iriam entender isso e se preparar para o seu im; afaste eles do
meu rosto e observe o seu im.
23 Tradução livre: cuidado, cuidado, o Senhor vê.
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24 O uso de instrumentos musicais e partituras em cenas de liberação sexual e tortura é recorrente nas obras de Bosch, como vemos em O jardim das
delícias.
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Do quadro ao jogo de fruição: Bosch Adventure Game
iguras “recortadas” de suas pinturas, sentado no trono de Deus. Percebe-se aí um tom
irônico, reairmando a leitura autoral do V2_Lab sobre a obra de Bosch.
Figura 9: Captura de tela do jogo, Juízo Final.
A segunda pintura estruturadora do jogo é O mascate (ou The pedlar, conforme
consta no catálogo do museu). Igualmente aborda o pecado, mas desde a perspectiva
do sujeito que está entre a consciência moral (a moralidade cristã) e a tentação (as situações de prazer que entram em choque com tais regras). Em Bosch Adventure Game, o
mascate também é a ligação entre o Bem e o Mal. É o personagem que explica ao jogador os valores culturais que balizam a interação naquele mundo. Ele apresenta o modo
de funcionamento do jogo, o algoritmo daquele sistema computacional, tornando o
gameplay signiicativo ao público.
Em O mascate, Bosch posiciona em primeiro plano a igura de um vendedor ambulante – personagem frequente no cotidiano do contexto histórico do artista, na passagem da sociedade medieval para a moderna – e, ao fundo, uma casa com elementos iconográicos que nos remetem aos prazeres terrenos. O jarro emborcado no teto
lembra excesso de bebidas; o mesmo vale para o homem urinando na lateral da casa.
A placa com a imagem de um cisne indica que ali funciona uma taberna, e as pombas
no sótão lembram a expressão tradicional holandesa “Duiven houden op zolder” (literalmente traduzida como “manter os pombos no sótão”), que designa bordel. Essa ideia
é reairmada com a mulher parada na porta carregando um jarro de vinho e sendo tocada por um homem em traje distinto. Cuecas penduradas na janela também apontam
para relações de intimidade sexual estabelecidas naquele lugar. Bosch destacou alguns
desses elementos colocando uma tinta densamente branca sobre eles: os porcos, as
pombas, as cuecas, o cisne e o lenço carregado pelas mulheres. Isso contrasta com o
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tratamento dado ao restante da pintura, de tinta tão ina que chega a ser transparente
em alguns pontos, onde deixa ver o esboço feito pelo artista. O aspecto moralmente
degradante da taberna-bordel é apontado por metáforas: o telhado deteriorado, a janela precisando de reparos e o pátio desordenado. E além da luxúria outros pecados
são também lembrados na composição: a gula dos porcos, que se empurram uns aos
outros por um pote de comida; a ira do cachorro, que rosna para o mascate (BEENKER,
2005; BOSCH UNIVERSE, 2008).
Figura 10: Reprodução da obra “The pedlar” (H. Bosch, óleo sobre painel octogonal, 71 x 70,6 cm, peça do acervo do Museu Boijmans Holanda)
O destaque da obra está na igura do mascate, em primeiro plano, retratado nos
pormenores. Parece ser homem que conhece bem o mundo terreno: é comerciante e
andarilho que sabe se defender de ladrões (carrega um punhal sobre o saco de dinheiro). Mas não parece ter o hábito de pensar no futuro nem de cuidar do próprio corpo
(está excessivamente magro, tem roupas rotas e a perna machucada). Será que teme o
Juízo Final? No momento em que foi retratado por Bosch parece que sim. O mascate
foi posto numa encruzilhada: no caminho que liga a casa dos prazeres com a natureza
virginal da pradaria; com o corpo direcionado ao pasto e o olhar voltado para a casa.
Ele para pensativo e resiste ao pecado.
Ao mesmo tempo em que o cão raivoso afasta o mascate da taberna-bordel, o
portão que leva à pradaria está fechado e guardado por um novilho. Seja qual for a direção que ele resolva tomar, terá de tomar uma atitude, abrir caminho. Esse é um diferencial do modo como Bosch abordava a moralidade cristã em relação a outros artistas
que lhe foram contemporâneos, como consta no catálogo do museu proprietário da
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obra:
As a follower of the modern devotional ideas, Bosch rejected the teaching of
predestination: he wanted to show that people could in fact affect their inal end,
by leading good and virtuous lives, and so gain a place in heaven (BEENKER,
2005, p. 62)25.
A ideia de que o indivíduo tem relativo controle sobre sua sentença inal também
está posta na interface de Bosch Adventure Game.
Mais do que o dilema de estar entre o céu e o inferno (segundo a cosmogonia
cristã), Bosch posiciona o sujeito indeciso entre os ensinamentos da moral medieval e
o novo modo de olhar o mundo, proposto pelos humanistas. Vanderbroeck (MOXEY,
2004) mostrou que, apesar das temáticas burlescas, as obras de Bosch eram apreciadas
pela elite da aristocracia (como Henrique III de Nassau, conselheiro do duque Felipe
reinante na região) e as pessoas que adquiriam suas obras também tinham quadros de
renascentistas italianos e livros de ilosoia antiga. Além dos ditados populares, Bosch incluía em suas representações signos compreensíveis apenas àqueles que tinham
formação humanista. Isso nos diz que Bosch foi mais do que um pintor de imagens
didáticas da moral religiosa. Que existe opacidade em suas formas, algo que resiste ao
olhar decodiicador – resistência igualmente presente na interface de Bosch Adventure
Game.
Segundo Keith Moxey (Ibidem), ele foi um dos primeiros artistas da região a usufruir do conceito de licença poética, da ideia de obra de arte como espaço de manifestação de um talento artístico diferencial. E fez isso por via radical e distinta da adotada
por seus contemporâneos Leonardo Da Vinci e Albert Durer, pois as obras de Bosch são
menos naturalistas e equilibradas, mais fantásticas e burlescas. Ele abriu uma tradição
não mimética e bem humorada de pintura de representação, seguida por Peter Bruegel
e outros artistas do século XVI.
Outra marca de Bosch é o fato de conseguir traduzir situações grotescas que via
no cotidiano popular em imagens que despertavam especial interesse nos humanistas.
Ele teve formação com pintores de iluminuras e resolveu levar para pintura um tipo de
iguração que até então tinha espaço apenas nas margens de manuscritos. São composições satíricas como a da mulher detentora da autoridade no matrimônio, de coelhos
que caçam humanos, de monstros que combinam corpo humano e animal, e também
as cenas anedóticas que justapõem desejos e limitações do corpo humano. Moxey defende que Bosch usou a imagem do mundo ao revés para se diferenciar dos pintores
moralistas, mas sem perder o canal de comunicação com as pessoas de seu convívio
social (clérigos, admiradores e nobres compradores). Ele não deixou de expressar sua
desconiança em relação à moral religiosa, mas sem apelar para o confronto da crítica
direta. Bosch cutucou o sistema de valores pregado pela Igreja usando humor: o valor
do riso. Foi rindo que Bosch conseguiu abordar temas proibidos pela Igreja, em espe22 Tradução livre: Isso porque eles não têm compreensão ou visão, se fossem
inteligentes iriam entender isso e se preparar para o seu im; afaste eles do
meu rosto e observe o seu im.
23 Tradução livre: cuidado, cuidado, o Senhor vê.
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24 O uso de instrumentos musicais e partituras em cenas de liberação sexual e tortura é recorrente nas obras de Bosch, como vemos em O jardim das
delícias.
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cial os ligados aos prazeres do corpo, tão repreendidos pela Igreja medieval.
Cômica é a cena do mascate ameaçado por um cachorro de proporções tão diminutas26 , assim como dos porcos se acotovelando por um prato vazio, ou do homem
curvado urinando. Também provoca riso o atrevimento desse artista de representar
situações banais e grotescas em uma distinta pintura a óleo sobre painel de madeira.
Mas será que O mascate provoca o riso no público que visita essa obra na ala de
exposição permanente do Museu Boijmans?
Como saber? De qualquer modo, o humor de O mascate foi renovado na interface do Bosch Adventure Game. Pelo menos foi o que atestou o reconhecimento público
que este jogo teve no ano de seu lançamento e o relato de Chris Will (op. cit.), dizendo
ter percebido que os adolescentes que iam na exposição estabeleciam uma relação
diferente com as obras citadas em jogo, expressando maior interesse em observar e
reletir sobre elas.
Considerações finais
Ao adotar a noção de interface cultural proposta por Lev Manovich, recusei a discursividade que superdimensiona a importância do computador em sua operacionalidade no processo de estudo dos jogos digitais. Isso porque a computação não causou
ruptura com as tradições, é apenas uma das engrenagens – especialmente potente, é
fato – num processo de transformação de valores e hábitos sociais, de lexibilização
de fronteiras hierárquicas, que permeia o momento histórico em que vivemos. Assim,
Bosch Adventure Game não é fruto apenas do advento do PC, da web e do videogame;
eclodiu em terreno fecundo, marcado pela desconstrução das fronteiras que por um
tempo separaram o mundo jovem e o adulto, o riso e a seriedade, o trabalho e o lazer,
a cultura cotidiana e a erudição, Educação e Arte.
Por mais que Bosch Adventure Game seja ambientado no século XV, sua interface
exterioriza um tipo de uso da obra de arte que só se fez plausível a partir do século XX.
É nesse ponto que reside a dimensão educativa de Bosch Adventure Game: promove
um modo de perceber e conhecer arte que subverte a seriedade da museograia convencional.
26 Como mostra a obra, esse animal foi primeiro representado em tamanho maior pelo artista; depois o foi refeito pequeno como está agora. Com a
transparência da tinta, desgastada pelo tempo, podemos observar o primeiro
esboço a olho nu.
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Figura 11: Captura de tela do jogo, diálogo inicial.
A convenção do formato de quadro é subvertida (Fig.11). Diferente do jogo Guido
Contra el Señor de lãs Sombras, a apropriação das obras em Bosch Adventure Game
foi feita sem incorporar o paradigma da “pintura como janela”. Isso ica explícito desde o primeiro diálogo com o personagem que introduz o mundo do jogo. O mascate
aparece tendo como fundo a própria pintura da qual foi “recortado”, incrementado
com as versões animadas, no segundo plano da composição, de uma nau lutuante
(retirada de outra obra) e do cachorro (que na composição original está em primeiro
plano rosnando para o mascate). E o mascate está deslocado, posicionado fora do limite da composição original da obra, com os pés no palco do jogo. Não é o internauta
que mergulha na pintura pelo “olhar da imaginação”; é o mascate que invade o espaço
de jogo trazendo a tiracolo o universo imaginário de Bosch. Assim, ele não pertence
mais ao quadro e airma a descontinuidade entre o espaço representado pelo artista e
aquele onde se encontra o espectador.
Bosch Adventure Game pluraliza os modos de fruição da obra de Bosch. Opera
uma série de deslocamentos conceituais, provocando o reposicionamento do espectador, que transita entre o olhar distanciado e a imersão; a experiência de contemplação e a de interação; o quadro e o jogo. Não adota a função-reprodução nem realiza a
simulação de uma visita ao museu tangível. Apresenta-se como outro objeto cultural,
variação da obra, “a outra coisa que está na coisa” (BARTHES, 1990, p. 203). A interface
do jogo mostra-se como “outra” em relação à “coisa” de referência, a ponto de que as
obras de Bosch mostram-se ali completamente refuncionalizadas. E o que foi transformado não é a função “original” das obras de Bosch; esta já passou por metamorfoses
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Do quadro ao jogo de fruição: Bosch Adventure Game
desde quando as obras foram incorporadas aos museus públicos, depois acompanharam o processo de ressigniicação da própria instituição museal e, por im, quando
submetidas à reprodutibilidade técnica.
Agora, Bosch Adventure Game reitera a ideia de museu como espaço de sociabilidade, de encontro, para gastar o tempo livre e desfrutar do ócio, algo que esteve na
base de fundação dos museus modernos. Por ser multiusuário, evoca hábitos de convivência mais presente em parques do que em bibliotecas. Também devolve o riso à obra
de Bosch e desconstrói a ideia de entretenimento como experiência banal e insigniicante. Ele subverte o silêncio, o distanciamento do espectador e a hegemonia da visão
no processo de fruição das artes visuais. Por meio dele, a obra é tocada pelo jogador.
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Ana Beatriz Bahia
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Do quadro ao jogo de fruição: Bosch Adventure Game
Autora
Ana Beatriz Bahia
Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em 2008;
especialista em Arte Contemporânea pela Universidade do Estado de Santa Catarina
(UDESC) em 1999; e bacharela em Artes Plásticas: Pintura pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) em 1998
Florianópolis, Santa Catarina, Brasil
bahia@casthalia.com.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8354431206198637
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