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Séries brasileiras na Netflix: O cronotopo da
distopia em Onisciente1
Brazilian series on Netflix: The dystopia chronotope
in Onisciente
Maria Cristina Palma Mungioli
Professora Livre-docente da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP). Doutora em Ciências da
Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, Brasil. E-mail: crismungioli@usp.br
Flavia Suzue de Mesquita Ikeda
Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, Brasil. E-mail: flaviasuzue@gmail.com
Resumo:
O artigo analisa as relações espácio-temporais que enformam a construção discursiva
da ficção distópica Onisciente (Netflix, 2020), série brasileira original da Netflix,
realizada no contexto de internacionalização das produções da plataforma. Em sua
primeira parte, o artigo apresenta um breve histórico das produções originais
brasileiras de ficção realizadas pela Netflix. Em seguida, analisa os espaços da Cidade
da série Onisciente com base no conceito de cronotopo de Bakhtin (2003; 2010),
enquanto dimensão formal e temática. Martin-Barbero (1998; 2008) e Certeau (2007)
embasam ainda as reflexões acerca do espaço da cidade e Terentowicz-Fotyga (2018)
e Barros (2011) contribuem para a discussão de aspectos das cidades distópicas. A
análise dos cronotopos da série evidencia visões de mundo, ideias e conceitos
marcados pelas oposições entre o indivíduo e o Estado, o privado e o público, o dentro
e o fora, e os signos de verdadeiro e falso, como na questão da segurança e
infalibilidade do sistema que controla a Cidade.
Palavras-chave:
Séries distópicas; Cronotopo; Netflix; Série brasileira; Onisciente.
Abstract:
The article analyzes the spatiotemporal relations that shape the discursive construction
of dystopian fiction Onisciente (Netflix, 2020), a Brazilian Netflix original series,
made in the context of the internationalization of the platform's productions. In its first
part, the paper presents a brief history of Brazilian original fiction productions made
by Netflix. Next, based on Bakhtin's (2003; 2010) concept of chronotope as a formal
and thematic dimension, we explore the spaces of the City in the series. TerentowiczFotyga (2018) and Barros (2011) add to the consideration of elements of dystopian
cities, while Martin-Barbero (1998; 2008) and Certeau (2007) provide additional
context for views on city space. The analysis of the chronotopes in the series focuses
on worldviews, notions, and concepts characterized by oppositions between the
individual and the State, the private and the public, the inside and the outside, and the
1
Uma versão deste artigo foi apresentada no 44º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação,
GP Ficção Seriada, 2021.
INTERIN, v. 28, n. 2, jul./dez. 2023. ISSN: 1980-5276.
Maria Cristina Palma Mungioli; Flavia Suzue de Mesquita Ikeda.
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indications of what is true and what is false, as in the case of the security and
infallibility of the system that controls the City.
Keywords:
Dystopian series; Chronotope; Netflix; Brazilian series; Onisciente.
1 Introdução
As indústrias de televisão e cinema se transformaram profundamente com o
advento dos sistemas de vídeo sob demanda por assinatura (em inglês: Subscription
Video on Demand, ou SVOD), popularmente conhecidos como streaming desde o
início das operações da Netflix em nosso país em 2011. Considerada “a primeira rede
global de televisão” (LOTZ, 2018, p. 117), a Netflix contabiliza mais de 230 milhões
de assinantes em mais de 190 países no primeiro trimestre de 2023, aos quais poderiam
ser adicionados mais 100 milhões de lares que compartilham a assinatura do serviço
(NETFLIX, 2023).
Para além dos números, cabe destacar, conforme pontuamos em outro artigo,
que a Netflix “não apenas inaugurou um novo modelo de negócios de distribuição de
vídeos via internet, mas também criou novos modelos de produção – em escala
internacional e transnacional – e transformou formas de recepção (...).” (MUNGIOLI
e IKEDA, 2020, p. 15). O objetivo de atender a um público formado por assinantes
de diversos países e culturas levou a empresa a investir fortemente em conteúdos de
gêneros e formatos distintos produzidos em diferentes países que pudessem agradar
não apenas os públicos locais, mas também de outros países e regiões. Tal estratégia
comercial é positivamente destacada pela empresa em seus balanços trimestrais. Em
2019, a plataforma creditava seu sucesso mundial a suas produções originais realizadas
em diversos países e regiões do mundo e defendia essa política como essencial para
sua manutenção como líder em um mercado cada vez mais competitivo (NETFLIX,
2019, p. 6). Em 2020, uma executiva da empresa informava que mais de 50% da receita
da Netflix não provinha dos Estados Unidos (LOW, 2020). Esses dados dimensionam
não apenas o alcance da Netflix como serviço de vídeo sob demanda por assinatura em
escala mundial, mas também como produtora em uma perspectiva transnacional que
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constrói sua marca com base nos produtos de seu catálogo. Ao tratar desse último
aspecto, Lotz (2022) destaca que2
A proposta de valor da Netflix advém do fato de oferecer fácil acesso a
conteúdo diferenciado dos EUA e de fornecer uma gama atraente de
produções dramáticas multiterritoriais, muitas das quais atendem a gostos
e sensibilidades que são inviáveis para os canais nacionais atenderem de
forma econômica (LOTZ, 2022, p. 109).3
Considerando esse cenário, o presente artigo apresenta, em sua primeira parte,
um breve histórico das séries originais brasileiras de ficção produzidas pela Netflix,
com o intuito de refletir sobre o contexto de produção de séries brasileiras pela
plataforma no qual se encontra a série Onisciente (Netflix, 2020), objeto de nossa
análise. Posteriormente, o artigo se organiza em torno de seu objetivo principal:
discutir as relações espaciotemporais que enformam a construção discursiva da ficção
distópica Onisciente (Netflix, 2020), destacando a produção de sentido em torno das
cidades da série. O enfoque tem como base as discussões de Bakhtin (2003; 2010)
acerca do cronotopo, entendendo-o como uma dimensão formal e temática. O conceito,
resumidamente, matiza e condiciona, em sua materialidade, as relações entre
personagens e temporalidades discursivas com o tempo histórico e o cotidiano na obra
artística. Embasam ainda nossas reflexões Martin-Barbero (1995, 1998, 2008) e
Certeau (2007) para tratarmos do espaço da cidade, e Terentowicz-Fotyga (2018) e
Barros (2011) para pensar os aspectos da espacialidade e temporalidade das cidades
distópicas.
Em uma primeira aproximação, destacamos a centralidade do conceito de
cronotopo (BAKHTIN, 2010; 2003) como instrumental teórico para o estudo das
relações espaciais e temporais no interior da série. Cabe salientar que, embora o
pensador russo tenha criado o conceito para estudar obras literárias complexas, como
o romance, entendemos que ele contribui de forma inequívoca para a análise de séries
televisivas, como discutimos em outros textos (MUNGIOLI, 2013; 2020). O
cronotopo bakhtiniano apreende a inseparabilidade das dimensões espaciais e
2
Os textos em língua estrangeira foram vertidos para o português pelas autoras do artigo.
No original: “Netflix's value proposition derives from offering convenient access to distinctive US
content and providing a compelling array of multi-territory drama production - much of which services
tastes and sensibilities that are infeasible for national channels to service affordably”.
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3
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temporais, fundindo-as como unidade indivisível que vincula a obra artística a uma
realidade histórica e social na qual é concebida, localizando-a no processo dialógico.
No cronotopo artístico-literário ocorre a fusão dos indícios espaciais e
temporais num todo compreensivo e concreto. Aqui o tempo condensa-se,
comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprio espaço intensificase, penetra no movimento do tempo, do enredo e da história (BAKHTIN,
2010, p. 211).
A obra artística, como enunciado concreto, produz sentidos em um contexto
social com o qual dialoga e pelo qual está impregnada. Para Bakhtin (2003, p. 300), o
objeto do discurso “já está ressalvado, contestado, elucidado e avaliado de diferentes
modos; nele se cruzam, convergem e divergem diferentes pontos de vista, visões de
mundo, correntes”.
Dessa forma, a “perspectiva de análise por meio do conceito de cronotopo
insere trama, personagens e conflitos em situações (do cotidiano) que desnudam os
embates sociais e tensionam visões de mundo e conflitos inerentes à vida social em
sua perspectiva de construção histórica” (MUNGIOLI, 2020, p. 253).
No nível figurativo, as cidades imaginadas nas distopias não só ambientam as
ações, mas concretizam e são expressões das angústias e esperanças, dos receios,
medos e desejos presentes na sociedade atual (BARROS, 2011). Em Onisciente, tais
sentimentos são organizados em uma narrativa que especula sobre um futuro em que
a divisão de classes não determina apenas uma desigualdade simbólica ou mesmo
material, mas se manifesta espacialmente pela separação geográfica entre a utópica
Cidade, iluminada e ordenada, onde não há violência nem pobreza, e o espaço fora dos
seus limites, caracterizado pelas heterogeneidades de classes e estéticas, pelo barulho
e pela insegurança.
Dito de outra forma, ao longo do texto, procuramos refletir sobre as cidades
imaginadas na série Onisciente, entendidas como lugares em que se condensam as
dimensões espaciais e temporais que caracterizam ambientes distópicos que, por sua
vez, fazem emergir visões de mundo marcadas por valores apreensíveis por seus
cronotopos e, portanto, configuram universos imagináveis. Para Todorov (1981, p.
129), a noção de cronotopo “não [se] relaciona simplesmente à organização do tempo
e do espaço, mas também à organização do mundo (que pode legitimamente se chamar
cronotopo na medida em que o tempo e o espaço são as categorias fundamentais de
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todo universo imaginável).” Assim, o conceito bakhtiniano pode ser entendido como
elemento que configura não apenas o ambiente ficcional, mas também o acabamento
temático. Como salienta Todorov (1981, p. 128-129), os gêneros apresentam
cronotopos que lhes são característicos. Assim, os cronotopos da sala de estar e da
alcova ganham relevância no romance de realista francês de Stendhal e Balzac
(BAKHTIN, 2010, p. 246) e circunscrevem personagens e temas nele apresentados.
2 Séries brasileiras originais na Netflix
A Netflix chegou ao Brasil em setembro de 2011, oferecendo a possibilidade,
até então inédita no país, de assistir a conteúdos audiovisuais sob demanda e assinatura
independentemente da contratação de outros serviços. No lançamento da plataforma
em São Paulo, o presidente da Netflix, Reed Hastings, afirmou que a empreitada se
justificava pelo crescimento econômico do país e pelo reconhecimento do grande
interesse dos brasileiros no consumo de vídeos. Na ocasião, o alegado objetivo da
empresa, em todo o mundo, não era concorrer com outras modalidades de serviço por
assinatura, como a TV paga, mas ser um complemento e alternativa aos consumidores,
pois na plataforma eram disponibilizados apenas episódios que já haviam sido
veiculados na televisão, com acento em programas antigos. Na ocasião, a Netflix
mantinha contratos de licenciamento com Paramount Pictures, Sony Pictures
Television, NBC Universal International Television, ABC Television, CBS
Television, MGM, BBC Worldwide e Disney (BRENTANO, 2011).
Tal direcionamento, entretanto, se transformou em 2012, quando a empresa
estadunidense, em resposta às iniciativas de estúdios de lançar serviços próprios, que
limitavam novos acordos, a Netflix passou a investir em conteúdos próprios e iniciou
a expansão internacional, também, no campo da produção. A primeira aposta foi
dividir os custos da série Lilyhammer com a emissora norueguesa NRK1, que,
entretanto, pode exibir a série um mês antes da plataforma. Já no ano seguinte, em
2013, produziu as primeiras séries originais do Netflix, uma nova temporada da até
então extinta série Arrested Development, e sua primeira série original House of Cards
(adaptação de minissérie britânica de 1990), publicando as temporadas completas
(binge publishing). Com a expansão das produções para outros países, a Netflix chegou
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em 2016 ao posto de maior produtora de séries do mundo. Nesse mesmo ano, 2016, a
Netflix lançou sua primeira série original brasileira, a distopia 3%, criada por Pedro
Aguilera. O Brasil foi o segundo país da América Latina onde a Netflix investiu em
uma série original, um ano depois da série mexicana Club de Cuervos (2015).
Ressalte-se que, em 2015, a empresa já tinha 2.5 milhões de usuários no Brasil
e seu faturamento, em comparação com as operadoras de TV paga, estava atrás apenas
da Net e Sky (CANAL TECH, 2015). Além disso, a dinamização do mercado trazida
pelo novo modelo de televisão pela internet (LOTZ, 2017) influenciou em iniciativas
dos grandes grupos nacionais. Exemplos são o NOW, serviço sob demanda da Net que
desde 2014, podia ser acessado através de um aplicativo em aparelhos móveis com
acesso à internet e ser contratado por não clientes da operadora, e o Globoplay,
plataforma ligada à TV Globo, lançada em 2015.
Assim, em novembro de 2016, 3% foi lançada nos 190 países em que a
plataforma já estava presente, e chegou a ser a série de língua não inglesa mais assistida
na Netflix no mundo. Apesar de receber algumas críticas desfavoráveis no Brasil após
a estreia, a sua boa recepção internacional garantiu outras três temporadas (em 2018,
2019 e 2020). Em 2018, além da segunda temporada de 3%, estrearam as séries O
Mecanismo, Samantha e a animação adulta Superdrags.
O esforço de demarcar o caráter regional das produções já era flagrante, como
visto em O Mecanismo (Zazen Produções, 2018 e 2019). Criada e dirigida por José
Padilha, a série é inspirada na operação Lava-jato, que resultou em uma série de
processos e condenações contra políticos, funcionários públicos e empresários, e
ocupou posição central na história recente do Brasil. Por sua vez, Samantha! (Los
Bragas, 2018 e 2019), dirigida por Luiz Pinheiro e Julia Jordão, tem como protagonista
uma estrela mirim da televisão na década de 1980 que, no tempo atual, tenta recuperar
a fama. Apesar de ser ambientada no tempo presente, a série, através da história de
Samantha (Emmanuele Araújo), remete ao contexto da cultura midiática nacional dos
anos 1980, quando grupos infantis como Balão Mágico e Trem da Alegria fizeram
sucesso.
Desde então, a Netflix incluiu séries originais brasileiras em seu catálogo todos
os anos e, até dezembro de 2022, estrearam 22 títulos, totalizando ao longo do período
33 temporadas, conforme apresentado no Quadro 1.
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QUADRO 1 – Séries brasileiras originais NETFLIX – 2016 a 2022
2016
Título
3%
Episódios Duração aprox.
8
45 min
2018
Gênero*
Ficção científica
Título
Episódios
Duração aprox.
Gênero
O Mecanismo
3% (2a temporada)
Samantha!
Superdrags
8
10
7
5
40 min
40 min
30 min
25 min
Policial / política
Ficção científica
Comédia / sitcom
Animação adulta
Título
Coisa Mais Linda
Samantha! (2a temporada)
O Mecanismo (2a temporada)
Episódios
7
7
8
Duração aprox.
40 min
25 min
50 min
Gênero
Drama romântico
Comédia
Ação
3% (3a temporada)
O Escolhido
8
6
45 min
40 min
Ficção científica
Suspense
Sintonia
Irmandade
Ninguém Tá Olhando
O Escolhido 2a temporada
6
8
8
6
40 min
50 min
25 min
45 min
Policial /Teen
Policial / drama / social
Drama / fantasia
Suspense
2019
2020
Episódios Duração aprox.
6
45 min
7
36-60 min
10
30 min
Título
Onisciente
Spectros
Reality Z
Coisa Mais Linda 2a temporada
Boca a Boca
3% 4a temporada
Bom dia, Verônica
6
6
7
8
Gênero
Ficção científica / suspense
Terror / Fantasia
Terror/ humor
35-56 min
45 min
36-74 min
45 min
Drama romântico
Mistério / teen
Ficção
Policial
Episódios
Duração aprox.
Gênero
7
6
40 min
45 min
Policial/ fantasia
Policial
2021
Título
Cidade Invisível
Sintonia
Título
Maldivas
Cangaceiro do Futuro
Irmandade (2ª temporada)
Nada Suspeitos
A Sogra que te Pariu
Só se For por Amor
De Volta aos 15
Sintonia 3ª temporada
Temporada de Verão
2022
Episódios Duração aprox.
7
30 min
7
35 min
6
50 min
9
30 min
10
25 min
6
60 min
6
35 min
6
45 min
8
48 min
Gênero
Mistério
Comédia
Policial
Comédia de mistério
Sitcom
Música
Adaptação
Policial
Teen
INTERIN, v. 28, n. 2, jul./dez. 2023. ISSN: 1980-5276.
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Bom dia, Verônica 2ª temporada
6
50 min
Fonte: as autoras com base em dados fornecidos pela Netflix Brasil 4.
Policial
Referências à história recente do Brasil também são encontradas em séries
como Irmandade (O2, 2019), que conta o surgimento de uma facção criminosa em um
presídio de São Paulo, na década de 1990, guardando muitas similaridades com a
história do PCC (Primeiro comando da capital); e em Coisa mais linda (Pródigo, 2019
e 2020), que se passa na década de 1960, ambientado no Rio de Janeiro no contexto
do surgimento da Bossa Nova. Essas produções trazem representações do passado que
condizem com uma instrumentalização mercadológica da nostalgia pela Netflix
(CASTELLANO e MEIMARIDIS, 2017), recorrente nas produções internacionais da
plataforma. Podemos mencionar ainda títulos como Cidade Invisível (2021), que
colocou em cena personagens do folclore nacional, envolvidos em uma trama de
investigação policial, e a comédia O Cangaceiro do Futuro (2022), a qual aborda o
universo do Cangaço, como exemplos dos esforços da Netflix em garantir o que
Straubhaar (2007) denomina de proximidade cultural.
O autor identifica a atração dos públicos de diferentes países por produções
com as quais se identifica por língua, fenótipo, estilo, humor, referências históricas ou
outros conhecimentos compartilhados, acesso que conceitua como proximidade
cultural. “Esse não é necessariamente um fenômeno nacional. Audiências podem ser
atraídas ou sentir proximidade com a cultura local, culturas regionais dentro de sua
nação, da cultura nacional e regiões e espaços transnacionais” (STRAUBHAAR, 2007,
p. 26, tradução nossa5). Straubhaar pontua que, fora parcelas pequenas das elites que
possuem um capital cultural “globalizado”, as classes médias e as com mais restrições
econômicas dão preferência a programas próximos de suas referências culturais. Nessa
perspectiva, a utilização de formas de gênero importadas inclui novos padrões na
cultura de um lugar, cuja cultura “original”, contudo, persiste ainda que hibridizada
com novos elementos.
4
A classificação dos gêneros foi realizada pelas autoras com base na nomenclatura utilizada pela
Netflix.
5
Original: “This is not necessarily a national phenomenon. Audiences can be attracted or feel
proximities to local culture, regional cultures within their nation, national culture, and transnational
cultural regions or spaces”.
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Neste artigo, destacamos especialmente – o esforço da Netflix – no que
podemos classificar como “séries de gênero”, que correspondem a produções com
acabamentos temático e estético específicos, estabelecendo relações interdiscursivas
com produções internacionais de sucesso, como o caso da já citada 3% e Onisciente,
que apresentaram ao público da Netflix uma versão local do fenômeno das distopias
seriais que já vinham se destacando com sucesso no mercado editorial, no cinema, na
televisão e nas webséries na última década, incluindo produções internacionais da
própria plataforma, como Black Mirror (2015) (IKEDA e MUNGIOLI, 2022).
Além do gênero distópico, há outros casos de investimento inovador em
relação ao que o público estava habituado em ver nas produções nacionais. O drama
de suspense O escolhido (2019) mostra a história de uma equipe de saúde que se depara
com uma seita ao tentar levar a vacina para o zika vírus (que, no mundo real, ainda
não existe em uso) a um povoado, e é uma adaptação da série mexicana Niño Santo
(2011). Por sua vez, Boca a boca (2020) tem como tema uma doença misteriosa
transmitida entre jovens através do beijo. As duas séries são tramas de suspense com
toques de fantasia que se passam em cidades remotas do interior do país. Como O
escolhido, as séries Spectros (Moonshow, 2020) e Reality Z (Conspiração, 2020)
chamam a atenção pela relação direta com obras estrangeiras, refletindo o diálogo
entre formatos celebrados na cultura internacional com a ambientação e outros
aspectos da cultura local. Nesse caso, trata-se de duas séries do gênero terror. Reality
Z é adaptação de formato da série britânica Dead Set, crida por Charlie Brooker, e
narra a história de participantes de um reality show que se veem no meio de um ataque
zumbi no Rio de Janeiro. Já Spectros foi criada e dirigida por Douglas Petrie
(conhecido por assinar a série estadunidense Buffy), e transportou o mote do terror
jovem para o bairro paulistano da Liberdade (IKEDA, 2022).
Essa tendência pode ser relacionada ao caráter multinacional do negócio da
Netflix, que disponibiliza as produções das diferentes regiões do planeta nos catálogos
dos países onde presta o serviço. Dessa maneira, as séries devem ter potencial para
atingir não só o público nacional, mas sensibilizar espectadores de outros países e
culturas, o que é facilitado por uma certa homogeneização das suas produções
internacionais, mediado pelas matrizes culturais locais. Essas matrizes se expressam,
INTERIN, v. 28, n. 2, jul./dez. 2023. ISSN: 1980-5276.
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nas produções brasileiras observadas, por meio de aspectos cronotópicos de
localização e diferentes figurações relacionadas à cultura e à sociedade locais.
Em relatório de 2019, a Netflix atribuiu o seu sucesso mundial às produções originais
em diversas regiões e países do mundo. “É por isso que começamos a investir em
produções originais em 2012 e expandimos agressivamente desde então – através de
categorias (gêneros) de programas com a ambição de compartilhar histórias do mundo
para o mundo”6 (NETFLIX, 2019, p. 6).
3 Cidade como escritura e sistema de enunciação
Consideramos as cidades da série analisada com base no enquadramento da
metáfora da cidade como escritura, como sistema retórico que Certeau (2007) lhe
atribui. Conforme discutimos em outro texto, o pensador francês entende a cidade
como
“texto urbano” no qual se enunciam os passos dos pedestres em um sistema
retórico estruturado que contém um estilo do uso, maneira de ser e maneira
de fazer. Essa forma de pensar a cidade permitiria a sua compreensão não
como espaço racional, coerente, totalizador, mas como algo em
construção/descontrução/construção permanentes de acordo com as
práticas e usos que se fazem e que podem ser feitos dos espaços urbanos
(MUNGIOLI e JAKUBAZKO, 2008, p. 6).
Martin-Barbero, no texto Entre urbanías y ciudadanías (s/d, p. 1)7 discute o
estudo da cidade como uma escritura que deve ser lida na
(...) multiplicidade de suas camadas tectônicas e de sua polifonia de
linguagens, em seu fecundo caos e seu desconcertante labirinto,
transformando o palimpsesto em aposta metodológica: um lugar de
vislumbre e fuga de sentidos, enquanto dispositivos do sentir, do ver, do
cheirar, do tocar.
No original: “It’s why we started investing in originals in 2012 and expanded aggressively ever since
- across programming categories and countries with an ambition to share stories from the world to the
world”.
7
Fazemos uso ao longo do texto de material impresso distribuído pelo autor durante o curso que
ministrou na ECA-USP, em 2008, que foi resumido no artigo: MARTÍN-BARBERO, J. As novas
sensibilidades: entre urbanias e cidadanias. MATRIZes, [S. l.], v. 1, n. 2, p. 207-215, 2008. DOI:
10.11606/issn.1982-8160.v1i2p207-215.
Disponível
em:
<https://www.revistas.usp.br/matrizes/article/view/38201>. Acesso em: 12/08/21.
INTERIN, v. 28, n. 2, jul./dez. 2023. ISSN: 1980-5276.
6
Maria Cristina Palma Mungioli; Flavia Suzue de Mesquita Ikeda.
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Camadas e linguagens que concretizam por meio de uma escritura que tem
entrelinhas e paratextos8 que compõem uma complexa rede intertextual e
interdiscursiva por meio do (1) espaço habitado, do (2) espaço produzido, do (3)
espaço imaginado e do (4) espaço praticado, os quais, segundo Martín-Barbero (s/d, p.
4), seriam os espaços matriciais que possibilitariam a leitura da intrincada escrita da
cidade contemporânea. Os espaços matriciais permitem pensar o espaço como uma
escritura cuja tessitura guarda marcas e vestígios das escritas que lhe precederam
(Martín-Barbero s/d).
Dessa forma, podemos compreender que
Os espaços matriciais, ou seja, essas quatro modalidades de compreensão
do espaço, mesclam em seu interior muito mais que territórios e lugares;
evidenciam a necessidade de se pensar o espaço não apenas como um lugar
delimitado, mas em suas múltiplas dimensões - sociais, políticas,
territoriais, sociais, identitárias e psicológicas – todas elas perpassadas por
um traço comum: a necessidade de comunicação (MUNGIOLI e
JAKUBAZKO, 2008, p. 6-7).
Procuramos, dessa forma, ao longo do artigo, analisar os enunciados que
compõem os espaços matriciais elencados por Martín-Barbero (2008) e que se
configuram por meio de cronotopos que, por sua vez, materializam não apenas o
universo imaginável da obra, mas também sentimentos de angústias e esperanças, de
receios, medos e desejos presentes na sociedade atual (BARROS, 2011).
4 Cronotopo na obra artística
Para Bakhtin (2010), na produção artística e literária as definições de espaço e
tempo são inseparáveis e recebem sempre um “matiz emocional”. Toda obra está
impregnada de valores cronotópicos que a determinam em torno da relação com a
realidade. É quando esses valores adquirem regularidade discursiva em diferentes
obras que se determinam os gêneros na literatura. Bakhtin considera a relação temporal
e espacial como motivadora dos temas e enredos, uma categoria de conteúdo e forma
8
Compreendemos o termo paratexto, desenvolvido por Gerard Genette em Seuil (1979), como o
conjunto dos discursos contendo comentários, apresentações ou acompanhamento sobre uma obra, seja
ele feito por seu autor ou por críticos especializados ou mesmo na imprensa em geral.
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literária, e analisa os cronotopos com características tipológicas estáveis que
determinam os gêneros do romance em dados momentos (BAKHTIN, 2010, p. 212).
Ao tomar o emprego da linguagem como fenômeno social, que não se
materializa de forma autônoma, mas a partir da interação dialógica, das trocas
determinadas pelo contexto amplo dos indivíduos envolvidos e pelo contexto imediato
de cada enunciação, Bakhtin destaca como cada enunciado reflete o ambiente, a
situação e a finalidade na comunicação de cada grupo ou campo de atividade humana
por seu tema, ou conteúdo, pelo estilo e pelas características composicionais
empregadas. A determinação do cronotopo parte especialmente da essência temporal
recorrente em determinadas obras de um período (2010, p. 212).
Uma vez que todos os elementos se determinam mutuamente, um
determinado princípio de enformação da personagem está vinculado a um
determinado tipo de enredo, a uma concepção de mundo, a uma
determinada composição do romance (BAKHTIN, 2018, p. 205).
Bemong e Borghart (2015) resumem o cronotopo por meio da ideia de que um
texto narrativo é composto dos eventos e das falas no interior da diegese e na
construção de um mundo ficcional particular, mundo esse que é modelado pelo gênero
(e pelos cronotopos que lhe dão forma).
Para análise dos enunciados artístico-literários, aqui equiparados às séries
televisuais, interessam os valores cronotópicos como organizadores dos temas e
eventos, e os valores figurativos, quando o cronotopo é o palco no qual se materializam
em imagem e se desenrolam em ações, as ideias, reflexões e conceitos intencionados
pelo autor.
Todos os elementos abstratos do romance - as generalizações filosóficas e
sociais, as ideias, as análises das causas e dos efeitos, etc.- gravitam ao
redor do cronotopo, graças ao qual se enchem de carne e de sangue, se
iniciam no caráter imagístico da arte literária. Este é o significado
figurativo do cronotopo (BAKHTIN, 2010, p. 356).
Em uma mesma obra encontram-se numerosos cronotopos, os quais, por sua
vez, podem incluir outros muitos pequenos cronotopos e inter-relações determinadas
de obra e autor. “toda imagem de arte literária é cronotópica” (BAKHTIN, 2010, p.
356.). Isso inclui a posição sócio-histórica do enunciador/autor, posto que “a relação
tempo-espaço é dinâmica e organicamente construída de maneira concomitante pelo
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autor, obra e leitor na medida em que todos se inserem no quadro da comunicação
dialógica” (MUNGIOLI, 2013, p. 107).
Bakhtin (2018; 2010) identifica particularidades referentes a como o romance,
no decorrer de diferentes fases, considera o tempo e o espaço (o mundo); como
considera o homem nos contextos; e como se dá a construção da imagem da
personagem central. Porém, destaca que o cronotopo real nunca é assimilado de forma
homogênea e total, mas apenas em determinados aspectos nas obras, que reorganizam
elementos de formas específicas em cada gênero, que pode ser identificado pela
predominância de um ou outro cronotopo.
Finalmente, quaisquer conceitos apenas têm existência através de uma
expressão espaço-temporal, ou seja, forma sígnica: “Consequentemente, qualquer
intervenção na esfera dos significados só se realiza através da porta dos cronotopos”
(BAKHTIN, 2010, p. 362). Dessa maneira, consideramos que o conceito se presta à
observação das narrativas audiovisuais, como um filme ou uma série. “Do ponto de
vista formal, um filme é uma sucessão de pedaços de tempo e de pedaços de espaço”
(BURCH, 1992, p. 24). A multiplicidade de possibilidade de organização temporal e
espacial permite que, no audiovisual narrativo, uma mesma história, possa ser contada
de diferentes maneiras (SPINELLI, 2005).
A materialização dos cenários, as relações espaciais entre as cidades
imaginadas e a forma estética de cada uma delas é elemento extraverbal da enunciação
da série: “O extraverbal não se define de maneira mecânica, mas dentro de uma
dialética que envolve o percurso que ‘articularia o verbal e o não verbal, o dito e o nãodito, o posto e o pressuposto, o entendido e o subentendido’” (MUNGIOLI, 2008, p.
4). No caso das distopias, independente da materialidade expressiva, se literatura,
filme ou série, é fácil observar a centralidade das relações temporais e espaciais na
constituição como gênero, conceitual e figurativamente.
5 Cronotopo das cidades distópicas
Incialmente, pensamos o cronotopo das cidades distópicas com base na
conceituação de distopia como uma negação da utopia. Esta, pode ser descrita como o
sonho do mundo ideal que reflete os anseios e as vozes sociais e históricas de uma
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época, como imaginado por Thomas More, em 1516, no livro Utopia. Nele, o autor
imaginou uma sociedade que havia superado a maioria das deficiências e encontrado
a felicidade e o equilíbrio. O termo utopia deriva do grego: “topos”, ou lugar, e “u”,
redução de “ouk” – uma negação, e significa um lugar que não existe. A expressão
“distopia”, que utiliza o prefixo grego “dis” (disfunção e estranheza) surgiu no século
XIX, para descrever um lugar impossível não pela perfeição, mas pela absoluta
imperfeição. A palavra foi usada pela primeira vez em um discurso de John Stuart Mill
(BARROS, 2011).
Em fins do século XIX, H.G. Wells lança A máquina do tempo, primeira
aparição de uma viagem no tempo na literatura e um marco para o surgimento do
gênero da ficção científica. No livro, não há apenas o deslocamento espacial, mas o
deslocamento temporal para o futuro, onde um viajante do tempo encontra uma
sociedade aparentemente harmoniosa, mas na qual, identifica uma relação
indissociável entre a aparente perfeição e a desgraça. Fromm (2009) pontua os livros,
Nós (1924), de Zamyatin, 1984 (1949), de George Orwell, Admirável Mundo Novo
(1931), de Aldous Huxley como a trilogia das “utopias negativas de meados do século
XX”, que “expressam o sentimento de impotência e desesperança do homem moderno
assim como as utopias antigas expressavam o sentimento de autoconfiança e esperança
do homem pós-medieval” (FROMM, 2009, p. 369).
No cinema, Metrópolis (1927), de Fritz Lang pode ser considerado
paradigmático das representações de uma cidade distópica. No filme, que se passa em
2026, uma cidade que se projeta às alturas com seus arranha-céus e carros voadores é,
na realidade, dependente da exploração de operários que vivem no subterrâneo,
reforçando a divisão e a desigualdade entre duas classes através de uma representação
espacial. Trata-se de um mundo dividido entre um ambiente rico, superior e aéreo,
repleto de arranha-céus, varandas suspensas, viadutos e aviões que rodeiam o
gigantesco edifício Nova Babel e um ambiente subterrâneo, onde vivem os
trabalhadores e de onde brota o sonho de transformar aquela realidade. Barros (2011)
demarca a cidade do filme como estruturante para a trama e uma influência essencial
na construção de um imaginário de cidade futurista no cinema.
Conforme afirma Francisco (2015), a distopia permite uma nova forma de
“relacionamento entre o tempo e o espaço, no qual o pensamento utópico não parece
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estar ligado apenas ao futuro, mas sim à própria existência dos homens em qualquer
tempo” (FRANCISCO, 2015, p. 158). Nesse horizonte, não há “futuro em aberto”,
mas sim a ideia de que, inevitavelmente, todos padecerão sob Estados burocratizados,
despersonalizados e totalitários.
Seguindo a abordagem de Bakhtin, Terentowicz-Fotyga (2018) localiza 1984
como um exemplo canônico para constituição de um cronotopo distópico, a partir da
identificação do que materializa a unidade da obra, da sua relação com a realidade e
de como o ser humano é representado. “Distopia, como uma novela das ideias, sátira
de uma ordem social particular, é um gênero particularmente apto para se considerar a
função estrutural do cronotopo” (TERENTOWICZ-FOTYGA, 2018, p. 15). O
cronotopo distópico se estrutura no tema do conflito entre o indivíduo e o Estado
opressor contra o qual o protagonista tenta se rebelar, o que normalmente termina em
frustração ou pequenos sinais de esperança. Assim, uma distopia, como encarnação de
ideias e visões de mundo específicas de um tempo, precisa conter uma cena que
apresente os principais aspectos e as regras do mundo imaginário.
Por seu turno, no plano da construção de espacialidade, é central a questão dos
limites entre o que é público e o que é privado. Dessa forma, a configuração dos
espaços remete a situações sociais determinadas. A casa, nessa perspectiva, relacionase à vida privada, fora dos domínios do Estado e, por isso mesmo, o motivo
cronotópico da destruição do lar é recorrente nas distopias. O choque entre o que é
interior e exterior também está representado no controle sobre os corpos e as mentes.
“O Estado quer manter o corpóreo sob controle, enquanto o indivíduo tenta proteger
isso e, a princípio, quanto mais íntima a experiência do corpo, mais distópico é o efeito
desse controle” (TERENTOWICZ-FOTYGA, 2018, p. 18, tradução nossa9). Como um
exemplo recente, a série Handmaid´s Tale (Hulu, 2017), adaptação de sucesso de livro
homônimo de Margaret Atwood (1985), centra-se especialmente nesse cronotopo,
também essencial e estruturante em Onisciente, objeto empírico deste artigo. Entre as
oposições características do cronotopo distópico elencadas por Terentowicz-Fotyga,
estão alto e baixo, central e periférico, passado e presente, cidade e mundo natural e
os signos verdadeiros e falsos.
“The state wants to bring the corporeal under control, while the individual tries to protect it and in
principle, the more intimate the experience of the body, the more dystopian is the effect of its control”.
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O sucesso de público e de crítica de distopias na literatura, no cinema e na
televisão, a exemplo das séries Handmaid´s Tale e Black Mirror (Channel 4, 2011;
Netflix, 2014), mostra como essas obras foram essenciais para sedimentar a noção das
plataformas streaming como produtoras de séries de qualidade. Além disso, servem
para atestar a relevância que as distopias mantêm no imaginário popular por entre e
através de diferentes mídias.
6 A distopia em Onisciente
A série Onisciente, do mesmo criador de 3%, Pedro Aguillera, e lançada em
2020 na Netflix, conta a história de Nina, jovem programadora que vive em uma
grande cidade no futuro, onde o crime foi praticamente abolido com a implantação do
sistema de vigilância individual que dá nome à série. Nascida já após a contratação da
empresa, decidida por votação popular dos habitantes, Nina jamais experimentou a
vida fora dos termos dessa sociedade, onde cada morador é acompanhado 24 horas por
dia por um drone minúsculo, que lembra um inseto, com hélices em forma de asas que
se movimentam incessantemente.
O primeiro episódio inicia com um zoom lento que se aproxima de Nina,
interpretada por Carla Salle, que dorme em sua cama. A lente fecha em um drone que
a observa. A câmera, então, assume o ponto de vista do drone para mostrar cada ação
íntima da rotina da manhã da protagonista: no banho, ao escovar os dentes, e ao
encontrar com o pai, Inácio (Marco Antônio Pâmio) que faz ovos na cozinha. O mesmo
recurso será usado em muitos outros momentos da série, que privilegia o plano
plongée, conotando a observação de terceiros aos acontecimentos. O cronotopo
futurista e tecnológico imprimido pelo drone, entretanto, contrasta com um ambiente
doméstico mostrado, similar a um dos tempos atuais. É uma casa com planta aberta,
com cozinha americana em madeira clara, na qual o verde das paredes e os tons
terrosos conferem um clima aconchegante para o encontro familiar. É na casa que
também é apresentado o irmão de Nina, Daniel (Guilherme Prates). A fala do pai
expressa sua predileção pela filha, que é trainee programadora na mesma empresa em
que ele atuou na manutenção até se aposentar: a Onisciente.
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A caminho do trabalho, de bicicleta, Nina atravessa uma cidade limpa e
arborizada, sem muros visíveis e por onde também transitam pequenos carros elétricos
e pessoas manipulando seus aparelhos celulares em material transparente. Há telas nas
ruas por onde caminham pedestres tranquilos acompanhados de seus drones. Em todo
o trajeto, desde a saída da personagem de casa até a Onisciente, há sinais da sensação
de segurança na cidade, como os transeuntes despreocupados ou a ação de Nina deixar
objetos pessoais junto à bicicleta estacionada no seu prédio e, depois, na rua. Esse
aspecto, ressalte-se, faz refletir se a percepção em relação a tais elementos como signos
de segurança fez sentido para o público de países sem as taxas de violência do Brasil,
considerando que os temas distópicos refletem as demandas e aspirações sóciohistóricas de uma época e de um lugar de enunciação.
Para Martin-Barbero (1998), o medo é um fator determinante na forma como
as cidades são ordenadas e, não estando ligado apenas à violência, é o que define os
“modos de habitar e de comunicar”.
o mais forte e sutil homogeneizador é a cidade, impedindo a expressão e o
crescimento das diferenças. [...] Ao normalizar as condutas, tanto quanto
os edifícios, a cidade destrói as identidades coletivas, as altera, e essa
erosão rouba-nos a base cultural, joga-nos no vazio. Daí o medo. [...] a
cidade impõe uma ordem precária, vulnerável, porém eficaz. [...]
Paradoxalmente é uma ordem construída com a incerteza que nos produz o
outro, inoculando-nos a cada dia a desconfiança perante aquele que passa
ao meu lado na rua (MARTIN-BARBERO, 1998, p. 5-6).
O prédio da Onisciente, onde Nina faz um programa de seleção para uma vaga,
é muito amplo, com grandes salões abertos, com parcas divisórias transparentes e
mobiliados com mesas altas de vidro e metal e muitas telas. O ambiente tem cadeiras
e bancos rígidos e iluminação dura vinda do teto alto. Essas são as únicas
características responsáveis pelo impacto visual em relação à casa da personagem,
posto que o escritório persiste na mesma paleta vista anteriormente, com cinzas,
terrosos e amarelos.
A homogeneidade estética é percebida também em outros ambientes interiores
da Cidade, como um bar de karaokê, onde prevalece o brilho do vidro e neons, um
restaurante com paredes de vidro ou a sala onde fica o computador central, iluminada
com painéis backlight brancos que contrastam com as paredes cinzas. Dessa forma, a
relação entre os cenários remete à estrutura social, com comportamentos estritamente
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determinados e totalmente controlados pelo sistema de vigilância. As tomadas
panorâmicas mostram um mar de arranha-céus envidraçados, que elevam às alturas os
habitantes da Cidade, mas não há carros voadores como sonhou Fritz Lang.
A apresentação das regras do universo diegético acontece assim que Nina entra
no prédio da Onisciente, ainda no início do primeiro episódio, logo após um alerta de
crime ser exibido em uma tela imensa no hall. Na tela do elevador, um anúncio com
voz feminina informa:
Os números não param de melhorar. Nos últimos cinco anos, apenas quatro
homicídios, todos pegos em flagrante. Não é privacidade ou segurança. É
privacidade e segurança. Nenhum ser humano tem acesso às imagens do
sistema. Só o computador central analisa com nanotecnologia de ponta toda
imagem e informação (ONISCIENTE, 2020).
À diferença do que acontece no livro 1984, nesta cidade distópica os habitantes,
apesar de terem todos os movimentos registrados no sistema tecnológico, acreditam
ter direito à vida privada e à liberdade, desde que dentro das leis, cujo cumprimento é
vigiado pelo drone. Em outro momento, comentando sobre o crime de furto mostrado
antes, Ricardo (Marcello Airoldi), chefe de Nina, lhe afirma: “Tem gente que foi criada
fora do sistema, que não consegue se controlar”.
Ao voltar para casa, Nina encontra o pai morto com um tiro nas costas. Sobre
ele, voa um drone. Convicta da infalibilidade do Onisciente, que entretanto não deu
alarme sobre o crime, e sem contar com estrutura de investigação há 15 anos, a polícia
duvida do assassinato, mesmo diante do corpo baleado, que é levado e retido para
exumação, o que impede a realização do sepultamento pelos filhos. Na certidão de
óbito, entregue apenas dias depois, está o registro oficial de morte natural. Esse
acontecimento é motivador de todas as atitudes que a protagonista vai tomar,
afastando-se da correção moral e da crença cega no sistema que havia guiado sua vida
até então.
O rompimento e a revolta contra a estrutura caracterizam motivos cronotópicos
essenciais na configuração da personagem da distopia. Neste caso, a passagem se dá,
primeiro nos pensamentos de Nina, antes de se manifestar em sinais físicos (como a
dilatação da pupila e aumento da pressão), que são percebidos pelo drone momentos
antes de ela jogar uma estátua com o símbolo da Onisciente no chão do corredor do
escritório. Soa, então, em um alto falante, a condenação para aplicação imediata: “Pela
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sua localização, você tem 27 minutos para se apresentar ao tribunal e arcar com as
consequências dos seus atos”. Essa atitude de Nina é apenas a primeira da personagem
no sentido de modificar sua relação com a sociedade e com o espaço controlado em
que vive. Novamente, cabe relacionar o enredo com o arco de Winston, em 1984.
A segunda ousadia de Nina acontece quando ela sai da Cidade, levada por
Judite, assessora do prefeito a quem ela recorre solicitando ajuda após a condenação.
É quando, através de tomada aérea, é mostrado o limite entre a Cidade e um espaço
exterior. Na passagem para o outro lado, uma marca no chão indica o fim da vigilância
da cobertura do sistema Onisciente. “O observador sempre muda o comportamento do
observado”, justifica Judite para convencer Nina da necessidade de saírem para
conversar sobre o assassinato de seu pai. Separado da Cidade por um rio, sobre o qual
passam duas pontes, o espaço fora representa o avesso da utopia da Cidade, sem as
garantias de segurança e sem a vigilância. Ainda há árvores nas ruas, mas no lugar de
espaços livres, muros e cercas conotam a necessidade de proteção. É lá que, instigada
por Judite a burlar o sistema para conseguir as imagens do drone de seu pai e descobrir
quem é o assassino, Nina começa a imaginar seu plano.
Na sequência, em seu quarto, Nina chora pelo pai pela primeira vez. Diferente
das cenas anteriores no mesmo cenário, o quarto é captado a partir de um plano mais
baixo, sem inserções da perspectiva da câmera do drone e, no lugar de uma iluminação
que se espalha pelo cômodo, uma luz indireta que projeta uma sombra dura de Nina.
A cena, com tonalidade intimista, marca a grande virada do enredo, quando ela decide
burlar a segurança que impede o acesso de pessoas aos registros feitos pelos drones e
garante a privacidade de todos. Para isso, lança mão de estratégias para sabotar seu
drone e conseguir alguns minutos sem ser observada.
Além disso, ao longo da série, ela e Daniel seguem em busca de respostas e
fazem outras excursões para o espaço fora da Cidade, operando a oportunidade de
mostrar faces mais duras dessa área, como a sujeira, a confusão, a pobreza e a
violência. A cada nova aparição, entretanto, vai ficando claro que se trata de um
território urbano comum, onde se mistura uma diversidade de pessoas de classes,
hábitos e intenções diferentes. Também é para lá onde vão as pessoas da Cidade em
busca de extravasar seus impulsos reprimidos pelo regime, como ilustra uma cena do
segundo episódio em que Ricardo espanca um mendigo, e onde, finalmente, Nina e o
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irmão encontram o assassino de Inácio, que entrou na Cidade através do esgoto,
escapando de ser acompanhado por uma câmera. “A cidade se esforça tanto pra se
isolar, mas a rede de esgoto é a mesma”, explica o assassino, e expõe, metaforicamente,
uma moral da história coerente ao contexto apresentado pela série.
Finalmente, gravada em São Paulo, Onisciente parece, ao ilustrar seus espaços
divididos, remeter às próprias divisões da cidade real, com bairros ricos e luminosos,
como a Cidade, em oposição a regiões pobres, diversas e vulneráveis, como o fora da
Cidade. Espaço-tempo que não se descola da realidade, mas é parte e determina a vida
das pessoas.
7 Considerações Finais
Apresentamos, na primeira parte do artigo, um breve histórico sobre as séries
originais brasileiras de ficção produzidas pela Netflix, com intuito de refletir sobre o
contexto no qual foi realizada a série Onisciente (Netflix, 2020), objeto principal de
nossa análise. Como destacamos anteriormente, a Netflix possui como política
comercial a produção de conteúdos originais de diferentes países como forma de
ampliar e diversificar seu catálogo. Em nossa análise, salientamos o investimento da
plataforma nas chamadas “séries de gênero”, que correspondem a produções com
acabamentos temático e estético específicos, e que estabelecem relações
interdiscursivas com produções internacionais de sucesso, como o caso de 3% e
Onisciente. Tais séries apresentaram ao público da Netflix uma versão local do
fenômeno das distopias seriais que tiveram sucesso, tanto no formato de filmes como
de séries de ficção, catálogos Netflix de diversos países na última década.
Na segunda parte do artigo, analisamos as cidades imaginadas na série
Onisciente, entendidas como lugares em que se condensam as dimensões espaciais e
temporais que marcam os ambientes distópicos que, por sua vez, fazem emergir visões
de mundo marcadas por valores apreensíveis por seus cronotopos, configurando-se
como universos imagináveis (TODOROV, 1981, p. 129).
Desde o século XIX, o gênero das distopias caracteriza-se como matéria para
concretização de ideias, medos, aspirações e frustrações em um mundo marcado por
grandes conquistas e descobertas, mas também de grandes atos de privação de
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liberdade, violência e covardia. Em face oposta do que ocorre nas utopias, o futuro
distópico é um tempo-espaço em que se conforma o agravamento das questões que
inquietam o ambiente sócio-histórico em que é imaginado, produzindo sentido por
meio de seus mundos ficcionais. O sucesso constantemente renovado do gênero na
literatura ou nos meios audiovisuais sugerem que ele continua funcionando nesse
mesmo sentido no presente, em que persistem, como no pós-Segunda Guerra de
Huxley, desenvolvimento e criações fantásticas e, ao mesmo tempo, grandes
injustiças, desigualdades e regimes que atentam contra a liberdade, a privacidade e o
direito à vida.
Neste artigo, vimos que, nas distopias, as construções discursivas espaciais e
sociais são inseparáveis, moldando ambientes e universos ficcionais por meio de
cronotopos que se alinham a cronotopos desenvolvidos em outros textos ficcionais
distópicos, conduzindo o fio narrativo não apenas da série analisada, mas também
remetendo a outros mundos distópicos que habitam nossa enciclopédia. As
características de topografia, arquitetura e as relações entre os diferentes espaços
materializam valores de organização social, despersonalização e relação entre
liberdade e opressão típicos. Dessa forma, motivos que caracterizam o cronotopo
distópico, como as oposições entre o indivíduo e o Estado, o privado e público, o
dentro e o fora, urbano e natural, comparecem em diferentes obras com maior ou
menor proeminência.
Em Onisciente, identificamos a centralidade da articulação cronotópica para a
composição da série, tornando, como sugere Bakhtin (2010), o tempo “artisticamente
visível”. Abordamos os valores cronotópicos como organizadores dos temas e eventos,
centrais na concretização figurativa do enredo. Na Cidade da série, o sistema que
controla incessantemente a vida de todos os habitantes - que tem valor cronotópico
relacionado ao progresso tecnológico, mas também à vigilância – foi escolhido por
estes em votação, ante a crença de que, pela automação do processamento dos
julgamentos sobre o comportamento de cada um, estaria garantido o perene direito à
privacidade, cuja perda é tema recorrente das distopias.
Destacamos que, à ordenação, segurança e limpeza das ruas iluminadas da
Cidade e à homogeneização estética de seus espaços, com cores, materiais e formas
que se repetem tanto nos ambientes públicos quanto nos privados, se contrapõe a
INTERIN, v. 28, n. 2, jul./dez. 2023. ISSN: 1980-5276.
Maria Cristina Palma Mungioli; Flavia Suzue de Mesquita Ikeda.
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heterogeneidade do espaço fora da Cidade, com suas ruas cheias de gente, tapumes,
muros e cercas que identificam a necessidade de segurança, mas também a diversidade
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Recebido em: 14.03.2023
Aceito em: 24.04.2023
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