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As contradições discursivas sobre a mulher no
contexto político de cinco estados brasileiros
Discursive contradictions about women in the political context
of five Brazilian states
Pedro Farnese
Universidade Paulista – UNIP | Rua Dr. Bacelar, 1212, 4º andar, Vila Clementino, São Paulo, SP, 04026‑002 | Brasil
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Janete Monteiro Garcia
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Carla Montuori Fernandes
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Paolo Demuru
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Fechas: Recepción 14/03/2023 · Aceptación 06/06/2023 · Publicación 15/07/2023
Resumo
O estudo tem por objetivo analisar as valências simbólicas que são acionadas nas reportagens publicadas em sites
governamentais de cinco Estados brasileiros (São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Bahia e Pernambuco), durante atos
iniciais de vacinação contra a Covid‑19, quando se verifica questões de raça e gênero com foco nas mulheres e sua
posição na sociedade. Esses mesmos locais apresentaram os maiores índices de feminicídio nos últimos 11 anos,
de acordo com o levantamento feito pelo Atlas da Violência, o que nos leva a discutir as contradições entre o mundo
encenado e o mundo real. Com base nos conceitos da semiótica discursiva, plástica e figurativa de Algirdas Julien
Greimas, identificamos elementos disfóricos em meio a um cenário de representações que buscam a visibilidade
de um “Estado Presente”, colocando as mulheres no “centro” dos discursos políticos e midiáticos, mas que não
encontram aderência na efetividade das políticas públicas voltadas para este segmento, suscitando, assim, a
percepção de um “Estado Ausente”. As polifonias identificadas trazem à luz essas fragilidades e contradições que
são discutidas ao longo do texto, buscando compreender como a diversidade de relações permeiam os discursos
de agentes de estado que se utilizam de “oportunidades” da dinâmica social, como a Pandemia, para traçar
estratégias de comunicação e formatar sua imagem‑conceito no imaginário social, a partir de possibilidades que
podem ser construídas e desconstruídas em um contexto político dinâmico e interativo no que tange às questões
de gênero.
Palavras‑chave: visibilidade midiática, pandemia, semiótica, interseccionalidade.
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Abstract
The study aims to analyze the symbolic valences that are activated in the reports published on government websites of
five Brazilian states (São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Bahia and Pernambuco), during initial acts of vaccination against
Covid‑19, when examines issues of race and gender with a focus on women and their position in society. These same
places had the highest rates of femicide in the last 11 years, according to the survey carried out by the Atlas of Violence,
which leads us to discuss the contradictions between the staged world and the real world. Based on the concepts of
discursive, plastic and figurative semiotics by Algirdas Julien Greimas, we identify dysphoric elements in the midst
of a scenario of representations that seek the visibility of a “Present State”, placing women at the “center” of political
and media discourses, but that do not find adherence in the effectiveness of public policies aimed at this segment,
thus giving rise to the perception of an “Absent State”. The identified polyphonies bring to light these weaknesses
and contradictions that are discussed throughout the text, seeking to understand how the diversity of relationships
permeate the discourses of state agents who use “opportunities” of social dynamics, such as the Pandemic, to outline
strategies of communication and format its image‑concept in the social imaginary, based on possibilities that can be
constructed and deconstructed in a dynamic and interactive political context with regard to gender issues.
Keywords: media visibility, pandemic, semiotics, intersectionality.
1. Introdução
Em um contexto de crise sanitária e vulnerabilidade humana deflagradas pela pandemia do novo
Coronavírus, reconhecida em março de 2020 pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a descoberta
de imunizantes em tempo recorde representou uma conquista da Ciência, mas também foi vista
como uma oportunidade para organizações governamentais, notadamente Prefeituras e Estados,
angariarem capital simbólico, principalmente em relação a temas considerados “politicamente
corretos”; dentre eles, o da mulher ganhou um lugar de destaque (Bourdieu, 1987, 1989, 2011)1.
O Brasil inaugurou a aplicação de imunizantes no dia 17 de janeiro de 2021, imediatamente após a
autorização em caráter emergencial pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)2. A partir
da decisão, os governos estaduais, que constitucionalmente têm a função de distribuir as doses para
as cidades organizarem sua aplicação, iniciaram uma verdadeira “corrida da vacina”.
Não obstante, o debate acerca da possível vacinação para a Covid‑19 foi atravessado pelo discurso do
Governo Federal. Logo que os primeiros imunizantes surgiram, o então Presidente da República Jair
Bolsonaro negou a compra, indicando que nenhum brasileiro iria servir como cobaia. Em movimento
contrário, o ex‑governador de São Paulo João Doria anunciava uma parceria com o laboratório chinês
Sinovac, que pesquisava a vacina Coronavac, produzida no Brasil pelo Instituto Butantan3. O chefe do
executivo criticava as ações do desafeto político, alegando que não sentia “segurança” nas pesquisas
feitas juntamente com os chineses, por ser um país comunista.
1 O conceito de capital simbólico aparece na obra de Pierre Bourdieu. No campo político, trata‑se de uma espécie de capital de
reputação, um capital simbólico ligado à maneira de ser conhecido (Bourdieu, 1989).
2 Agência reguladora do Estado brasileiro responsável pelo controle sanitário da produção e consumo de produtos e serviços
submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados,
bem como o controle de portos, aeroportos, fronteiras e recintos alfandegados (Anvisa, 2021).
3 Órgão vinculado ao Governo do estado de São Paulo, é um instituto de pesquisa e o maior produtor de vacinas e soros da Amé‑
rica Latina e o principal produtor de imunobiológicos do Brasil (Butantan, 2021).
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Com o tema da vacinação amplamente polarizado, embora Bolsonaro não tenha se colocado
contrário à campanha, fez uma série de declarações que colocaram em dúvida os imunizantes.
Em outubro de 2021, associou as vacinas contra a Covid‑19 à contaminação por AIDS em sua live
semanal, transmitida pelo Facebook. Entre as narrativas de relativização usadas pelo ex‑Presidente,
Gomes (2021) destaca o uso de adjetivos como “experimentais” ao se referir aos imunizantes. O que
se nomeia de relativização, segundo o autor pode ser retratado pela dimensão de cunho político e
xenófobo, por exemplo, com relação à vacina Coronavac, quando Bolsonaro se refere a ela como
“vacina chinesa do João Dória”, numa forma de depreciação4.
O Governo também foi acusado de retardar a negociação para a aquisição de imunizantes contra
a Covid‑19. Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), instaurada para investigar supostas
omissões e irregularidades nas ações do governo durante a pandemia, apontou que ficaram sem
resposta 53 mensagens enviadas por e‑mail da farmacêutica Pfizer indicando interesse e propostas
de negociação para a compra de vacinas ainda em 2020. Ao comentar a cláusula da empresa de que não
se responsabilizaria por eventual efeito colateral, Bolsonaro afirmava não tomar a vacina e que “se a
pessoa tomasse e virasse jacaré, o problema era dela" (Calgaro, 2021).
A aposta inicial do Governo Federal ficou restrita à vacina AstraZeneca/Oxford, produzida e envasada
pela Fiocruz5, viabilizada através de uma parceria, assinada em 27 de julho de 2020, que estabelecia
a transferência de tecnologia do imunizante desenvolvido pela Universidade de Oxford, no Reino
Unido, com a farmacêutica AstraZeneca. Somente em 23 de janeiro de 2021 foi realizada a aplicação
da primeira dose.
Para além da urgência de saúde pública, a fim de conter o avanço da doença, agentes políticos
enxergaram nesse contexto uma oportunidade de construir uma imagem de Estado “eficiente”, que
dá respostas rápidas às demandas sociais com planejamento e gestão. Com um olhar mais estratégico
e atento às prerrogativas básicas que norteiam as ações de comunicação organizacional, era possível
ir além, afinal, o seu real significado e a sua abrangência ultrapassam uma visão reducionista
linear e instrumental que se concebe sobre ela. É o que defende Kunsch (2020) ao afirmar que o
fazer comunicacional contemporâneo perpassa “[...] novas demandas e exigências as quais as
organizações vêm enfrentando na sociedade atualmente, que passa por constantes transformações
sociais, econômicas e políticas” (p. 87).
O Estado de São Paulo saiu na frente. Minutos após a aprovação da Anvisa, sob os holofotes de toda
a imprensa brasileira, outra representação também se configurava: uma mulher foi a escolhida
para receber a primeira dose. Chamada a manifestar seu sentimento por se tornar a figura central
do momento, a enfermeira Monica Calazans, de 54 anos, reforçou sua posição como mulher negra,
suburbana e que acredita na ciência (Adorno, 2021).
A utilização dessa personagem e a ênfase de suas falas representativas nas estratégias de divulgação
empreendidas pelo governo estadual nos chamou a atenção. Essa tática se tornava recorrente
4 Bolsonaro é o representante da extrema‑direta brasileira. Suas perspectivas políticas vão além da defesa do liberalismo
econômico e o livre mercado como melhor modelo para uma sociedade. Elas se definem por defender “o pensamento de lei e de
ordem, [...] o aumento do uso da força policial como solução para a violência” (Mudde, 2000, p. 11), o anticomunismo, o antipar‑
lamentarismo, o antipluralismo, o racismo e a xenofobia. Trata‑se, sugere o autor, de um conjunto de características “antidemo‑
cráticas” (Mudde, 2000, p. 72).
5 Fundação Oswaldo Cruz é uma instituição vinculada ao Ministério da Saúde é a mais destacada na área de ciências e tecnolo‑
gia em saúde da América Latina (Brasil Escola, 2022).
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em outros Estados, dando‑nos pistas em relação ao uso da imagem da mulher para inaugurar as
campanhas de vacinação.
Ao mesmo tempo em que este segmento ganha a centralidade do espaço público a partir dessa prontidão
do Estado, um outro dado vai em antítese a esse cenário: o Estado que “cuida” e “reconhece” a sua
importância na sociedade, também é o que deixa essa mesma população carente de ações efetivas que
visam a coibir a violência contra elas. Foi o que revelou o Atlas da Violência, divulgado em agosto de
2021. Boa parte das unidades federativas registraram aumento no número de morte de mulheres nos
últimos 11 anos (2009‑2019) (Jucá, 2021).
Os cinco Estados que apresentaram maior índice de feminicídio são São Paulo, Pernambuco, Bahia, Rio
de Janeiro e Ceará. Tal contexto nos levou a pesquisar se a mulher foi protagonista das campanhas de
vacinação nestes locais, a partir das reportagens publicadas nos sites oficiais dos governos estaduais
e das prefeituras das capitais dessas unidades da federação. Com essa constatação, intenta‑nos
compreender qual o perfil da imagem feminina prevaleceria nessas iniciativas e quais os efeitos de
sentido poderiam trazer no imaginário social.
Ao analisar todos esses dados sob a luz da semiótica greimasiana (Greimas, 1984; Greimas & Courtés,
2008), buscamos imbricações importantes sobre as polifonias que emergem ao comparamos um
discurso construído, quando o Estado “valoriza” o papel da mulher na sociedade brasileira ao
utilizá‑la como protagonista de estratégias de comunicação para exaltação de sua imagem‑conceito6;
e o que, de fato, se verifica em relação às estatísticas do mundo real com respeito às vulnerabilidades
das mulheres no quesito da segurança e a efetividade das políticas públicas frente ao problema.
O objetivo geral, então, é analisar sob o prisma da semiótica discursiva, a linguagem verbal e imagética
presentes nos discursos das páginas governamentais de cinco Estados brasileiros, a saber: São Paulo,
Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e Ceará. Mais especificamente, nossa intenção é abordar os modos
como o estado constrói a imagem de “pai protetor” em relação à mulher no discurso institucional.
As hipóteses que procuraremos verificar ao longo do artigo são as seguintes: (i) a mulher é construída
como sujeito social “fraco” ou “dependente” do Estado; (ii) por sua vez, governos se constituem
como “Pai‑Provedor”, ou “Protetor”, capaz de proporcionar o “bem‑estar” individual e coletivo,
em particular o público feminino, sendo as mulheres pretas o alvo de toda a encenação e, (iii) nestas
estratégias discursivas, almeja‑se a construção de uma visibilidade em torno do que se “vê” com o
objetivo de angariar capital simbólico eufórico a partir da temática da mulher como “sujeito central”.
2. A complexidade da comunicação organizacional
Nos dias atuais, gerir relacionamentos de uma organização é condição sine qua non para a expansão e
consolidação da sua imagem junto ao público. Na esfera pública governamental, as imbricações entre
os interesses e objetivos de uma “Política de Estado” e “Política de Governo” tornam a definição de
6 “constructo simbólico, complexo e sintetizante, de caráter judicativo/caracterizante e provisório realizada pela alteridade
(recepção) mediante permanentes tensões dialógicas, dialéticas e recursivas, intra e entre uma diversidade de elementos‑força,
tais como as informações e as percepções sobre a entidade (algo/alguém), o repertório individual/social, as competências, a
cultura, o imaginário, o paradigma, a psique, a história e o contexto estruturado” (Baldissera, 2009, p. 138).
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estratégias de comunicação ainda mais complexa. De acordo Lima, Maciel e Pazolini (2019), a primeira
versa sobre aspectos da sociedade a partir dos pressupostos da Constituição Federal. Já a outra tem
alta vinculação com chefes de poder executivo, visando a atender situações como atendimento de
promessas de campanhas e oportunidades que ensejam ganhos políticos.
Segundo Bratosin & Tudor (2021), o espaço público é, por excelência, o “espaço simbólico da
comunicação pública e política, cujo modo de funcionamento repousa sobre a simultaneidade da
publicização do político e da politização do público” (p. 26). Eles afirmam que essa compreensão
requer um olhar atento sobre a amplitude dos fenômenos globais recentes, que trazem consequências
profundas para as experiências vivenciadas, “como a reprodução das fake news, a emergência de
novas formas de militância transnacional ou a proliferação (por meio das crises sanitárias, ecológicas,
culturais etc.) de fragilidades e vulnerabilidades que contrariam a ordem dos poderes e valores que se
dizem democráticos” (p. 10).
De acordo com Baldissera (2009), podemos dizer que todo ato comunicacional é incerto e provisório,
contudo, produz efeito. Assim, por mais que haja intenções na produção de mensagens pela
organização, não há garantias de que os significados construídos pelas pessoas serão os mesmos que
a organização, em âmbito formal (produção), desejou e idealizou. O autor define, então, comunicação
organizacional como processo de construção e disputa de sentidos.
Parece mais fértil pensar a comunicação organizacional em sentido complexo, seja para assumir a
incerteza como presença, respeitar e fortalecer a diversidade (possibilitar que se realize/ manifeste),
fomentar lugares de criação e inovação, potencializar o diálogo e os fluxos multidirecionais de
comunicação, reconhecer as possibilidades de desvios de sentidos e compreender a alteridade como
força em disputa de sentidos, dentre outras coisas (Baldissera, 2009).
Atentando‑se para o fato de que qualquer informação ou movimento pode assumir visibilidade
instantânea (Thompson, 2008), mesmo quando não é desejada, podemos indicar que as organizações
precisam estar atentas a todo o processo de produção e prestação de serviços. Não basta marcar
presença no mundo virtual. Importam as representações que lá estão ofertadas, particularmente
quando se pensa que elas interferem nas percepções que os públicos têm e, em alguma medida,
influenciam na construção/acumulação de capital e poder simbólicos.
3. Gênero, raça e interseccionalidades
O gênero, para Araújo (2011), “traz à luz os processos da história humana das diferenças biológicas
(macho/fêmea)” (p. 3). O autor segue na tentativa de revelar como essas diferenças foram sendo
ajustadas nos discursos pela força e poder. Nesse aspecto, explica que tais “representatividades de
papéis sociais dos corpos sexuados (...) reproduzirão, historicamente, relações desiguais baseadas
nas diferenças percebidas desses corpos marcados por sua biologização” (p. 3). Quando se trata de
“corpos negros”, tal desigualdade se acentua ainda mais, como veremos ao longo deste estudo.
Trazendo para o aspecto da interseccionalidade, a pesquisadora Kimberlé Crenshaw (2002) aborda
esse conceito sob a ótica que visa a capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação
entre dois ou mais eixos da subordinação. Desse modo, o racismo, o patriarcalismo, a opressão de
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classe e outros tantos sistemas discriminatórios ocasionam desigualdades básicas, que estruturam
as posições relativas de mulheres, raças, etnias e classes dentre outras.
Betty Friedan (1971) foi uma das principais precursoras do assunto. No entanto, suas ideias diziam
respeito a um determinado grupo de mulheres que, conforme apontam os estudos de hooks (1984),
“são brancas, casadas, com formação universitária de classe média e alta” (p. 193‑194), não
compreendendo a interseccionalidade como um todo. Na publicação “Mulheres negras: moldando
a Teoria Feminista”, hooks (2015) faz críticas à Friedan, alertando que ela “ignorou a existência de
todas as mulheres não brancas e as brancas pobres, e não disse aos leitores se era mais gratificante
ser empregada, operária (...) do que ser dona de casa da classe abastada” (p. 194).
Para hooks (2015), o discurso feminista dominante e praticado por mulheres brancas na
contemporaneidade segue a mesma prédica de Friedan (1971), não deixando claro, porém, “até que
ponto suas perspectivas refletem preconceitos de raça e classe, embora tenha havido uma consciência
maior sobre esses preconceitos nos últimos anos” (hooks, 2015, p. 195).
Diante desses desafios, um conceito trabalhado e debatido pelo feminismo nos últimos anos,
inclusive por hooks (1984), é o da sororidade. Segundo Lagarde y de los Rios (2006), trata‑se de “uma
experiência subjetiva entre mulheres na busca por relações políticas e saudáveis, na construção de
alianças (...) para contribuir com a eliminação social de todas as formas de opressão e ao apoio mútuo
para alcançar o empoderamento vital de cada mulher” (p. 123). Tal noção, de acordo com Machado
et al. (2019), “recebe críticas por ser entendida como um conceito que tende a universalizar a noção
de mulher, como se não houvesse diferença de classe, raça, etnia e orientação sexual, por exemplo,
entre elas” (p. 239).
Ao acionar hooks (1984), os autores entendem que “essa concepção foi baseada em um feminismo
branco e burguês, um programa que ela caracteriza ser ‘falso e corrupto’, que mascara e confunde
a realidade diversa e complexa das mulheres” (Machado et al., 2019, p. 239). Sendo assim, hooks
reconhece que a “opressão sexista” está intrinsicamente atrelada à “racista”, tornando‑se mais
forte nesse quesito. Por isso, a feminista “prefere referir‑se à sororidade não como ‘apoio’ entre
mulheres, mas como uma ‘aliança’ entre elas, que deve considerar o entrelaçar de gênero, raça e
classe” (Machado et al., 2019, p. 239).
4. Metodologia e seleção de amostra para análise
O corpus de análise deste estudo foi constituído a partir da visita em cada um dos sites de governos
estaduais e prefeituras das capitais dos cinco Estados brasileiros que apresentaram aumento no
número de morte de mulheres em 11 anos, conforme o Atlas da Violência: São Paulo, Pernambuco,
Bahia, Rio de Janeiro e Ceará. O recorte temporal compreende o período em que esses agentes políticos
promoveram solenidades para marcar o início da campanha de vacinação, de 17 a 21 de janeiro de
2021, cuja centralidade, como dissemos anteriormente, residiu no protagonismo feminino que foi
destacado nas reportagens oficiais produzidas por seus respectivos órgãos de comunicação.
O Quadro 1 aponta a divisão de mulheres vacinadas por raça e suas condições. Vale lembrar que as
primeiras doses aplicadas no país foram direcionadas para profissionais de saúde e idosos.
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Quadro 1.
Características das personagens
Estado
Raça
Profissão / Condição
São Paulo
Uma mulher negra
Uma enfermeira
Pernambuco
Uma mulher negra
Uma técnica em Enfermagem
Bahia
Duas mulheres negras
Uma enfermeira
Uma idosa institucionalizada
Rio de Janeiro
Duas mulheres negras
Uma técnica em Enfermagem
Uma idosa institucionalizada
Ceará
Uma mulher parda
Uma técnica em Enfermagem
Fonte. Elaboração dos autores.
Os dados estatísticos mostram que, das sete mulheres que receberam as primeiras doses, seis eram
negras (85,7%) e cinco (71,4%) eram profissionais de saúde, sendo todas da área de enfermagem. O
cruzamento dos dados apresentados nos leva a questionar como essas Unidades da Federação que
atuam como “protetoras da mulher”, colocando‑a em evidência, não dão a mesma atenção quando
se refere à segurança dela em relação à violência. Isso caracteriza uma espécie de contradição que,
segundo Greimas & Courtés (2008), representa a “relação existente entre dois termos da categoria
binária asserção/negação” (p. 98).
As personagens foram expostas de formas distintas, com o objetivo de modular e criar um discurso
político‑institucional. Tais polifonias, a partir das imagens veiculadas nos canais oficiais desses
governos, foram reveladas utilizando como metodologia a análise do discurso e os conceitos
de semiótica plástica e figurativa (Greimas, 1984; Greimas & Courtés, 2008). Dentro de suas
possibilidades, tal arcabouço teórico‑metodológico permite desvendar as estratégias discursivas e
os efeitos de sentido presentes nos textos, que emergem a partir de uma correlação entre o plano da
expressão (o que é concretamente perceptível: cores, formas, figuras, sons, etc.) e o plano do conteúdo
(os valores veiculados); em outras palavras, associa‑se o que está visível na superfície do texto ao que
é mais implícito, abstrato, e pode ser tematizado corroborando para a compreensão maior do objeto
de estudo.
Dada a manifestação insistente de determinados traços observados no material analisado, uma
das definições mais acionadas para a compreensão do objeto de estudo é relativo ao conceito de
“isotopia”, que diz respeito à recorrência, no texto, de determinados traços distintivos, seja do plano
da expressão, seja do plano do conteúdo. As isotopias, portanto, podem ser plásticas (cromáticas,
topológicas, eidéticas); figurativas (a recorrência da própria figura da mulher, por exemplo);
temáticas (o tema da “família”, do “amor”). Mais especificamente, conforme aponta Fiorin (2016, p.
12), uma isotopia temática é a reiteração de valores semânticos específicos em uma narrativa, fixados
por meio de figuras e/ou formantes plásticos do plano da expressão.
Vale lembrar que as figuras são os elementos do “mundo natural” (o sol, a lula, as nuvens, mas
também o homem, a mulher, uma seringa, a máscara, um jaleco) cujo sentido é validado dentro de
um universo sociocultural onde estão inseridas (Greimas & Courtés, 2008, p. 324). Os formantes
plásticos são compostos por categorias como eidética (curvo vs reto), cromática (vermelho vs
azul) e topológica (alto vs baixo). Tanto as figuras, quanto os elementos plásticos, possibilitam a
interpretação da imagem, estabelecendo correlações entre os dois planos da linguagem; nesse caso,
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a verbal e a visual. São, para Greimas (1984), “sistemas reconhecidos que (...) constituem linguagens
e, portanto, estão longe de serem triviais” (p. 21).
De outro modo, o conceito de isotopia, indicando a interatividade de um ou mais traços, busca
explicar as maneiras como se confere coerência e homogeneidade a um texto.
Os valores semânticos profundos manifestados por traços ou isotopias figurativas e/ou plásticas
podem ser dispostos – conforme o corpus analisado – ao longo dos polos, que constituem aquilo
que Greimas & Courtés (2008) definem como “categoria tímica” (p. 505). Trata‑se do “humor” e do
“tom afetivo” empregado em um determinado semantismo, podendo conotar um traço semântico
como “eufórico” e outro como “disfórico”, caracterizando, assim, a sua valorização positiva e/ou
negativa.
Tais concepções dão luz à análise aqui proposta. Os governos, de forma estratégica, aproveitando‑se da
narrativa da fragilidade, buscaram construir a própria imagem de um Estado “paterno”, “provedor”
e “protetor”, que acolhe todos. Tais simbolismos nos importam em particular, ao considerá‑los
parte fundamental no fluxo da engrenagem das estratégias de comunicação e visibilidade midiática.
5. O “pai protetor” na figura do Estado
O “Estado protetor” como sujeito “patriarcal”, de fato, não está preocupado com a causa das mulheres
e, sim, com a vantagem e “boa visibilidade” que pode obter “abraçando” as pautas relacionadas
a elas (Landowski, 1992, p. 86). Esta “visibilidade” é acionada a partir de “especificações modais
(essencialmente do tipo querer, dever, saber, poder “ver”) visando gerar um efeito de sentido na
relação entre “o que vê” e o “que é visto” (Landowski, 1992, p. 90). Nessa lógica do que é pretendido
pelo destinador, de um lado busca‑se conquistar capital simbólico eufórico (positivo) utilizando
a temática da mulher como “sujeito central” do discurso para atender seus objetivos políticos;
por outro, observa‑se que uma das questões que mais afeta milhares de mulheres brasileiras, a
violência, é negligenciada. Um exemplo disso está em pontos importantes da Lei Maria da Penha
(Senado Federal, 2011) que visam a proteção das vítimas, como delegacias especializadas e abrigos
para acolhimento deste público em situação de vulnerabilidade, que é um dever do Estado, e é
muitas vezes ignorado (Amorozo et al., 2020). Nesse sentido, dados da pesquisa de “Informações
Básicas Municipais” (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2018) apontam que existem
atualmente apenas 2,4 % de casas‑abrigo no Brasil, somando 153 num total de 5568 municípios. No
levantamento do ano de 2013, eram cerca de 2,5%. Ou seja, ao invés de aumentar a quantidade desses
instrumentos de segurança, número vem sendo reduzido ao longo dos anos (Costa & Tatsch, 2019).
Isso posto, começamos as explanações pelo estado de São Paulo, que foi o primeiro a realizar
a vacinação contra a Covid‑19, a fim de mostrar como se deu esse processo. Na Figura 1, estão
presentes o governador João Dória; a enfermeira Mônica Calazans, a primeira brasileira vacinada; e a
profissional que aplicou o imunizante.
A cromática verde no backdrop engloba toda a imagem, apontando que essa é uma ação do governo
do Estado em parceria com o Instituto Butantan, podendo a cromática em questão simbolizar a
esperança de pôr fim às mortes causadas pela Covid‑19. Esse sentimento construía, de certa forma,
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Figura 1.
Ato de vacinação no Estado de São Paulo
Fonte. Governo do Estado de São Paulo (2021)
a figura do “herói”, tão almejada por políticos brasileiros, podendo representar aquele que traria
a solução para a crise sanitária ainda em vigor. O herói surgido para salvar e proteger os “fracos”,
como a mulher preta que, não por obra do acaso, foi escolhida para figurar esse momento.
Obedecendo às regras das análises topológicas (posições), a postura ereta de Dória (em pé), sem
dizer nada, aparenta um ar de superioridade daquele que “está situado mais alto ou acima do outro”
(Greimas, 1984) e, dessa forma, “se dirige aos demais” (Houaiss, 2009, p. 1791), principalmente se o
sujeito da relação for, em qualquer esfera, a mulher. Nesse mesmo ato, ele olha para baixo na direção
de Calazans, que está no centro da foto, passando a impressão de que o Estado lhe assegura a devida
atenção ou “proteção”. Tal estratégia de marketing durante o lançamento da campanha de vacinação
redundava numa “campanha antecipada de Dória à presidência da República” (Singer, 2020, online).
A primeira mulher vacinada “roubou” a cena no papel de representatividade que a ela concederam.
A camiseta do governador traz a bandeira do Brasil, o que denota sua preocupação para além dos
interesses do Estado. Outra reflexão a ser feita é a respeito de outra actante na imagem, ou seja, a
mulher branca que aplica o imunizante. Um adendo para explicar que actante, em Greimas & Courtés
(2008), significa exatamente “aquele que realiza ou que sofre o ato (...) são seres ou as coisas que,
a um título qualquer e de um modo qualquer, ainda a título de meros figurantes e da maneira mais
passiva possível, participam do processo” (p. 20).
Ela está encurvada e, mesmo sendo uma postura mais apropriada para a aplicação, pode ser entendido
como, independentemente do espaço conquistado, a mulher na sociedade vigente, que sempre
estará abaixo da posição ocupada pelo homem, estando ambas em posições inferiores a Dória. A
autora bell hooks (2015) já refletia acerca da superioridade da mulher branca sobre a negra e Saffioti
(2011) também complementa a ideia de que “dependendo das condições históricas vivenciadas, uma
destas faces estará proeminente, enquanto as demais, ainda que vivas, colocam‑se à sombra da
primeira” (p. 79).
Na Bahia, uma das primeiras mulheres vacinadas foi uma idosa (Figura 2). Ela parece ser uma
paciente acamada devido à vestimenta que usa. No entanto, mesmo diante dessa condição, não foi
poupada da exposição, o que reforça a estratégia de comunicação dos homens que agem de maneira
“politicamente correta”. Circundada por homens, encontra‑se sentada numa cadeira de rodas,
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pendendo o corpo e a cabeça para o lado esquerdo, como se fosse sucumbir diante das câmeras e dos
que estão ao seu redor.
Figura 2.
Idosa sendo vacinada no Estado da Bahia
Fonte. Governo do Estado da Bahia (2021).
Tanto no plano da expressão, quanto do conteúdo, essa posição topológica fortalece implicitamente
o sentido de inferioridade da personagem. O secretário de Saúde do Estado, Vilas‑Boas, que também
é médico, está em primeiro plano e mais visível na imagem. Ele representa socialmente duas
posições elevadas, diferindo em tudo nesses aspectos da vulnerabilidade manifestada na mulher.
Assim, usando as modalidades do “saber” e do “poder”, o representante do poder público aplica o
imunizante, numa atmosfera que atravessa, conforme Landowski (1992, p. 85), o domínio da “vida
privada” para o da “vida pública”, garantindo sobre si os holofotes e “visibilidade” nesse momento.
Outro ponto relevante é a cromática composta por tons de azul, branco e cinza, tanto nas roupas
dos participantes em questão, quanto no painel ao fundo e na caixa de vacina. Tais cores convergem
com a ideia de que atores estão alinhados em um mesmo propósito, que é de resguardar a vida dos
baianos, a começar pelas mulheres, tidas como mais “frágeis” e, portanto, as mais necessitadas da
atenção do Estado como “pai provedor” ou “protetor”. Eideticamente, o envergar do secretário para
aplicar o imunizante o aproxima da idosa, que serve como trampolim para atingir os interesses em
disputa.
Em Pernambuco, ao fazer um comparativo com o que dissemos anteriormente, as fotografias
publicadas nos Portais da Prefeitura de Recife e do Estado (Figura 3 e Figura 4) são parecidas, mas
diferem no ângulo e nos atores mostrados de acordo com a estratégia política e comunicacional de
cada governo.
Na Figura 3, divulgada pelo poder público municipal, o plano é médio (de meio corpo) e está mais
fechado na mulher. O backdrop com a propaganda do governo não mostra o nome do Estado, apenas
“Contra a Covid” e “estadual”, possivelmente para tirar o foco do poder público estadual. Ao lado
direito da personagem, estão “cortados” a vice‑governadora Luciana Santos, que também é uma
mulher negra e, nesse contexto consolida a narrativa construída; e o secretário de Saúde, André
Longo.
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Figura 3.
Ato de vacinação retratado pela Prefeitura de Recife
Fonte. Portal da Prefeitura de Recife.
Figura 4.
Ato de vacinação retratado pelo Governo de Pernambuco
Fonte. Secretaria de Estado de Saúde de Pernambuco (2021).
Já na imagem disponibilizada no Portal do Estado, é evidente o slogan “Pernambuco vacina contra
a Covid”, sendo reforçado com a palavra “estadual” abaixo. Na fotografia em plano mais aberto,
a mulher está sentada e ladeada por dois homens – o governador Paulo Câmara e o secretário de
Saúde –, mostrando, literalmente, para não deixar dúvida, quem está “provendo” a vacina. Em uma
região mais periférica da imagem, em ambos os lados cortadas, aparecem duas outras mulheres. Esse
recorte pode trazer a impressão da pouca importância do sujeito feminino, representando que elas
não devem aparecer mais do que os provedores da benesse e confirmando, sobretudo, a análise de
que a mulher, de fato, não é a prioridade e atua nesse processo como coadjuvante ou, no mínimo,
contradiz a proposta.
No Ceará, diferente de todas as análises anteriores, a profissional da saúde vacinada na ocasião está
em pé, embora sua estatura física seja mais baixa do que os demais actantes na imagem. Percebemos
na foto publicada no site da Prefeitura (Figura 5) que o nome do Estado aparece meio cortado e na
encenação divulgada pelo Governo do Estado (Figura 6), esses dizeres estão destacados na parte
superior do backdrop.
As cores em destaque são o rosa, que no “mundo natural” está atrelada à figura da mulher; e a
seringa com o líquido que assegura a vida é representada pela cor azul, atribuída ao homem (Greimas
& Courtés, 2008). Ou seja, a mulher recebe o benefício (a vacina) e quem provê é o homem, o Estado,
ou “pai provedor” (p. 324).
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Figura 5.
Ato de vacinação registrado pela Prefeitura de Fortaleza
Fonte. Prefeitura de Fortaleza (2021).
Figura 6.
Ato de vacinação registrado pelo Governo do Ceará
Fonte. Governo do Estado do Ceará (2021).
Nas camisas usadas por todos que estão na fotografia, é possível perceber um coração na estampa,
onde está escrito: “Nossa prioridade é salvar vidas”. O uso dos termos “prioridade” e “salvar
vidas” condiz com a estratégia política e midiática de que a mulher tem atendimento prioritário e
que, principalmente, o governo municipal deixa explícito na linguagem verbal que zela pela vida
dela. Temática e figurativamente, essas características passam a noção de que o Estado e seus
representantes defendem a causa da mulher.
Duas questões importantes são iluminadas à luz do objeto semiótico: na Figura 5, uma mulher aplica
a vacina. Nesse aspecto, intenta mostrar que ambas são “valorizadas” como mulheres, cada uma
em seu papel, a que dá e a que recebe. Já na figura 6, vemos um homem, encenando a aplicação do
imunizante. É a consolidação do que temos dito: nesse ponto, o “Estado”, que linguisticamente
trata‑se de uma palavra do gênero masculino, está sendo representado também figurativamente na
imagem do masculino, implicitamente ao mesmo tempo que intencionalmente o fato configura uma
manipulação. Tal “ação de um homem sobre outros homens” (Greimas & Courtés, 2008, p. 300‑302)
representa uma forma de dominação sob o viés da “sedução” (Fiorin, 2016, p. 30).
Em outras palavras, significa que o sujeito manipulador “leva a fazer manifestando um juízo de
valor sobre a competência do manipulado” (Fiorin, 2016, p. 30). De fato, reforça o sentido de que a
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mensagem teve o poder de manipular tanto a mulher, que pode ter acreditado que é importante e tem
prioridade, quanto o público, que tem acesso ao conteúdo.
No estado do Rio de Janeiro, além da mulher, símbolos religiosos também foram explorados.
Figura 7.
Ato de vacinação registrado pela cidade do Rio de Janeiro
Fonte. Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro (2021).
Figura 8.
Ato de vacinação registrado pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro
Fonte. Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro (2021).
Nessa paisagem, não vemos explicitamente a propaganda dos governos, pois o quadro é mais
emblemático do que seria qualquer outra montagem ou painel ao fundo. Na Figura 7, tanto a idosa,
quanto a profissional de saúde, aparecem em primeiro plano, estando centralizadas e aos pés da
estátua do Cristo Redentor, que é mostrado parcialmente.
De modo distinto ao que se apresentou até agora, não existe a figura explícita de nenhum
representante do Estado junto com elas, revelando, nesse caso, uma estratégia política e midiática
mais eficaz de “valorização” que se pretende dar à mulher. Na Figura 8, o enquadramento é mais
aberto, mostrando outra personagem vacinada nessa ocasião. Nessa exposição, vemos holofotes e
diversas pessoas registrando o momento com seus celulares. Elas aparecem à frente e ao mesmo
tempo abaixo do Cristo Redentor, que parece dar um abraço simbólico em todos os envolvidos na
cena, mas principalmente nas protagonistas.
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O evento mistura, ainda, os aspectos de religiosidade, como se Cristo abençoasse as pessoas nesse
novo ciclo em que a vacina foi descoberta e começa a ser ministrada. Nas cromáticas das duas
fotografias, prevalecem o rosa, o branco e o azul nas roupas; na imagem de Cristo, o céu no horizonte.
Esses últimos elementos combinam com os princípios e ideologia político‑religiosa de quem está no
poder no governo fluminense nos últimos anos (Brasil de Fato, 2020).
6. Um olhar mais sensível (ou atento) para as interseccionalidades
As estratégias observadas ao longo de toda a análise mostram que os direcionamentos dados pelos
governantes, muitos deles implícitos, “não são inocentes”, como diz Landowski (2012, p. 15). Essa
compreensão serve como base para a sequência deste tópico, no qual entraremos mais a fundo nas
questões de interseccionalidade.
De acordo com as análises, existem alguns elementos que podem comprovar uma intencionalidade
do ato por parte dos governos como forma de “tirar vantagem”, provocando outros efeitos de sentido
acerca da escolha das actantes para figurar esse momento, tanto com relação às mulheres negras,
como as profissões acionadas, conforme está demonstrado no Quadro 1.
Parece‑nos intencional o fato de 85,7 % das escolhidas para serem vacinadas serem mulheres
negras. Para exemplificar melhor esse pensamento, recorremos, novamente, às categorias de
Greimas (1984), em particular a topológica (baixo vs alto, superior vs inferior, esquerda vs direita) que,
como conceito metodológico, foi sucessivamente acionada em todas as imagens e casos, deixando
claro que a mulher é submissa, embora a ideia principal dos governantes fosse outra, ou seja, da
“visibilidade” de “atenção” ou “prioridade” (Fiorin, 2016, p. 112; Landowski, 1992). Essas iniciativas
podem representar, também, o que Greimas (2014) estabeleceu como “contrato semiótico” ou de
“veridicção” (p. 115), na tentativa de acentuar a ideia de que a mulher é assistida e que esse discurso é
verdadeiro. Quando se trata da mulher negra, a questão é ainda mais sensível, porque ela representa
as “minorias das minorias”, sendo colocada numa escala inferior à da mulher branca.
No caso da primeira mulher vacinada em São Paulo, isso está bem real. Segundo Saffioti (2011),
“dependendo das condições históricas vivenciadas, uma destas faces estará proeminente, enquanto
as demais, ainda que vivas, colocam‑se à sombra da primeira” (p. 79). Em outras palavras, “será
uma outra faceta a tornar‑se dominante”. Isso traz à tona o mesmo pensamento das condutas
escravocratas em que a mulher branca dominava a negra e ambas eram dominadas pelo senhor
do engenho. Parece um tratado do sistema patriarcal que, de tempos em tempos, é ressignificado,
persistindo em manter, nas práticas cotidianas, a desigualdade, o sexismo e o racismo.
A reflexão está em concordância ao que disse Gonzales (1984) acerca da mulher negra que sofre
muitas vezes um preconceito velado, sujeita a “tríplice de discriminação”, incluindo de raça, de
classe e de sexo, sendo colocada no mais “baixo nível de opressão” (p. 44).
Outro ponto importante a ser ponderado diz respeito ao cargo das primeiras mulheres vacinadas que,
de acordo com os dados estatísticos, 71,4 % são da área de enfermagem. O relatório da Organização
das Nações Unidas (ONU, 2020) converge para o nosso objeto de análise e mostra que 70 % das
profissionais que trabalham na área de saúde são mulheres. De acordo com a Pesquisa Nacional de
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Amostra por Domicílios (PNAD), em 2018 “a participação das mulheres supera a dos homens em
algumas profissões culturalmente identificadas como ‘femininas’ e predominam no magistério, nas
enfermarias e na assistência social”: [...] Todas são profissões que implicitamente estão atreladas à
ideia de que o ‘cuidado do outro’ é incumbência da mulher” (Saraiva et al., 2018).
A análise topológica nos mostra que esses encargos estão inscritos na esfera ou grau inferior (não
superior), sendo manobrados nas estratégias de comunicação pelos poderosos, que Landowski
(2012) denomina de “grupos detentores do poder” (p. 5‑25) em seu arcabouço teórico da assimilação,
admissão, segregação e exclusão. Se as mulheres são num todo tornadas como inferiores nos
discursos da política e mídia, aquelas que sofrem preconceito racial são ainda mais atingidas.
Nas imagens, esses fatos se confirmam na posição das mulheres: ou as mulheres brancas estão
aplicando a vacina em outras, que são pretas; ou elas acompanham homens brancos, enquanto a
negra é vacinada. Em toda essa escala hierárquica, a mulher preta figura com a maior (des)vantagem,
tal como descrevem Biroli & Miguel (2015). Em suma, como deliberam os autores, “mulheres negras
não existem” (p. 39). No discurso da vacina, encenam o papel de protagonista, mas, no sentido
disfórico, deixam fragilidades expostas. Nesse cenário da vacina, contracenam com os efeitos do
racismo e da “dominação pelo olhar do dominador” (p. 39).
Assim, não está excluso o fato de que a mulher, no geral, sofre preconceito de toda ordem. Todavia,
a mulher preta é ainda mais afetada por carregar um fardo que se arrasta histórica e socialmente,
simbolicamente prescrito nos elementos disponíveis na análise das linguagens verbal e imagética.
7. Considerações finais
Em um mundo cada vez mais conectado e ubíquo, a comunicação organizacional tem um papel
crucial para o envolvimento e engajamento que, por meio do entendimento e conhecimento dos
públicos envolvidos com a organização, constroem ações planejadas para conquistar a compreensão
e aceitação públicas.
Buscamos compreender como a diversidade de relações permeiam discursos de agentes de Estado,
que utilizaram a pandemia para traçar estratégias de comunicação a partir de possibilidades, as quais
podem ser construídas e desconstruídas em um contexto político dinâmico e interativo no que tange
às questões de gênero.
Nos cinco Estados analisados, a estratégia estava bem clara: a construção de discursos em que a
mulher negra assume a centralidade. Não por acaso, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) (Jornal Nacional, 2022) anunciou que, nos últimos dez anos, houve um aumento de 32%
de pessoas que se autodeclaram pretas. Seria, então, uma forma de reconhecer a sua importância
na sociedade e limar, de vez, a desigualdade racial e o racismo estrutural resultantes de anos de
escravidão no Brasil?
Definitivamente não. Sob olhares semióticos, as campanhas de vacinação, ao mesmo tempo em
que dão visibilidade para o Estado e seus agentes públicos, colocando as mulheres no “centro” dos
discursos políticos e midiáticos, também demonstram quão “frágil” se considera esse perfil na
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sociedade e como elas são usadas para reforçar a imagem do “homem forte” e a visão paternalística
do “pai‑provedor”.
Discursos não são apenas palavras, mas linguagem; atos que têm significado e devem ser considerados
a partir de um dado contexto. O “mundo ideal” construído pelos agentes políticos, demonstrando
um “Estado presente”, contrasta com o “mundo real”, quando toda a população está diante de uma
crescente onda de violência, em uma clara demonstração de “Estado ausente”.
Tendo em vista este cenário contemporâneo acerca das relações de gênero, comunicação
organizacional e política, algumas problematizações para reflexão emergem: por que gênero ganhou
essa centralidade política? Que atores sociais estão nessa disputa? Que elementos foram importantes
para o desencadeamento dessas ações e reações? Que papel a sociedade tem assumido nesse embate?
Onde e como essas mulheres têm buscado participação e representatividade em sua diversidade? O que
mudou nos últimos anos: a educação, a política, as mulheres? As considerações finais reportam‑se
mais a questionamentos que a respostas conclusivas.
Certeza mesmo é o revés da justificativa de César, ditador absoluto ou pretor máximo romano, no ano
de 63 antes de Cristo, quando ele disse que não basta ser honesto, tem que parecer. No mundo onde
a tecnologia nos vigia a toda hora, “não basta falar que faz”. É preciso “fazer” e o público tem que
“perceber e sentir”.
Entretanto, neste aspecto, observamos pontos relevantes a serem destacados, na expectativa de
que pesquisas como essa colaborem para uma mudança de visão, mesmo que essa venha de modo
lento. Entre algumas conquistas dos últimos meses que apontam para uma atenção maior daqueles
que legislam e executam as leis, está a sanção da Lei (14.550 de 2023), assinada pelo presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, que prevê medidas protetivas de urgência para a mulher, logo após ela
realizar a denúncia da violência (Agência Senado, 2023). Outro ganho significativo é a implantação
do Ministério da Mulher no governo brasileiro atual, que representará um olhar mais atento à causa,
e criação de políticas públicas que visem atender de modo mais efetivo as necessidades deste público
e que nos últimos anos, de acordo com o Núcleo de Estudos da violência da USP (NEV‑USP), teve
uma “redução expressiva do investimento” em ações de “enfrentamento à violência doméstica e
familiar” (Velasco et al., 2023).
Nesse sentido, considera‑se de suma importância o desenvolvimento contínuo de futuros estudos
com o mesmo mote no intuito de fortalecer tais demandas, motivando a sociedade à ação, discussão
e quebra de paradigmas existentes acerca do tema; e, além disso, que este seja um parâmetro para a
escolha de quem estará no poder e se existe nos mesmos uma ótica voltada para estas problemáticas
sociais.
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