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Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Universidade estadUal Programa de do Ceará reitor Hildebrando dos santos soares Centro de hUmanidades adriana Maria duarte barros editora da UeCe - edUeCe Cleudene de oliveira aragão Pós-gradUação em FilosoFia - PPgFil - UeCe viCente tHiago Freire brazil EDITORES emanUel angelo da roCha Fragoso João emiliano Fortaleza de aqUino CONSELHO EDITORIAL alberto dias gadanHa aylton barbieri durão eManuel angelo da roCHa Fragoso enéias Forlin estenio eriCson botelHo de azevedo gustavo bezerra do nasCiMento Costa Jan gerard JosePH ter reegen João eMiliano Fortaleza de aquino lourenço leite † luis alexandre dias do CarMo ManFredo raMos Maria luisa ribeiro Ferreira Maria teresinHa de Castro Callado Marly CarvalHo soares regenaldo rodrigues da Costa ruy de CarvalHo rodrigues Júnior COORDENAÇÃO EDITORIAL CleUdene de oliveira aragão CONSELHO EDITORIAL antônio luCiano Pontes eduardo diataHy bezerra de Menezes eManuel angelo da roCHa Fragoso FranCisCo HoráCio silva Frota FranCisCo Josênio CaMelo Parente gisaFran nazareno Mota JuCá José Ferreira nunes liduina Farias alMeida da Costa luCili grangeiro Cortez luiz Cruz liMa ManFredo raMos MarCelo gurgel Carlos da silva MarCony silva CunHa Maria do soCorro Ferreira osterne Maria salete bessa Jorge silvia Maria nóbrega-tHerrien organização eManuel angelo da roCHa Fragoso João eMiliano Fortaleza de aquino Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers Tradução de Gionatan Carlos Pacheco 1ª edição Fortaleza - 2024 ensaio de metaFísica nos princípios de spinoza © 2024 copyright by Emanuel Angelo da Rocha Fragoso, João Emiliano Fortaleza de Aquino e Gionatan Carlos Pacheco. o Conteúdo deste livro, beM CoMo os dados usados e sua Fidedignidade, são de resPonsabilidade exClusiva do autor e/ou dos organizadores. o download e o CoMPartilHaMento da obra são autorizados desde que seJaM atribuídos Créditos ao autor (vida e obra), tradutor e/ou aos organizadores. aléM disso, é vedada a alteração de qualquer ForMa e/ou utilizá-la Para Fins CoMerCiais. Coordenação editorial (edUeCe) Cleudene de oliveira aragão editores (Argentum nostrum) eManuel angelo da roCHa Fragoso João eMiliano Fortaleza de aquino CaPa, ContraCaPa (diagramação e imagens) brena Kátia xavier da silva editoração brena Kátia xavier da silva eManuel angelo da roCHa Fragoso estabeleCimento do texto, tradUção e revisão da tradUção Gionatan Carlos Pacheco revisão de texto eManuel angelo da roCHa Fragoso Gionatan Carlos Pacheco imagem da CaPa: Disponível em <https://commons.wikimedia.org/wiki/ File:Retrato_Benedictus_de_Spinoza.jpg>. This file is licensed under the Creative Commons Attribution-Share Alike 4.0 International license. dados internaCionais E59d de Catalogação na PUbliCação (CiP) Ensaios de metafísica nos princípios de Spinoza: Henry de Boulainvilliers/ Tradução de Gionatan Carlos Pacheco. Organizadores: Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e João Emiliano Fortaleza de Aquino. – Fortaleza: EdUECE, 2024. E-book. 278 p.: (Coleção Argentum Nostrum) ISBN: 978-85-7826-911-1 1. Filosofia holandesa. 2. Ética. I. Fragoso, Emanuel Angelo da Rocha II. Aquino, João Emiliano Fortaleza de. CDD 110 elaborada Por lUCélia mara todos os direitos reservados editora da Universidade estadUal de do soUza serra - Crb 3ª região-886 Ceará – edUeCe Av. Dr. Silas Munguba, 1700 – Campus do Itaperi – Reitoria – Fortaleza – Ceará CEP: 60714-903 – Tel: (085) 3101-9893 www.uece.br/eduece – E-mail: eduece@uece.br editora Filiada à Sumário Boulainvilliers e seu ensaio Gionatan Carlos Pacheco p. 7 ensaio de metaFísica nos princípios de spinoza Henri de Boulainvilliers advertência p. 77 primeira parte Do Ser em geral e em particular p. 81 segunda parte Das paixões p. 163 apêndice nota explicativa soBre o conto “o jantar do conde de Boulainvilliers” Gionatan Carlos Pacheco p. 243 o jantar do conde de Boulainvilliers Voltaire p. 245 5 Boulainvilliers e seu Ensaio H enri de Boulainvilliers (1658-1722), conde de SaintSaire, foi um intelectual que produziu uma vasta obra, mas sobre quem nos resta parcas informações biográficas. Ao levantamento das informações disponíveis e relevantes que faremos a seguir, adicionaremos uma contextualização histórica que nos auxiliará a situar a personagem e sua obra: primeiro, uma contextualização mais geral em comparação com Spinoza, depois mais especificamente a relação de Boulainvilliers e sua obra com a corte de Luís XIV. Nas duas últimas partes dessa apresentação, primeiro, descreveremos a obra de Boulainvilliers em linhas gerais e, por fim, abordaremos particularmente o Ensaio de Metafísica nos princípios de Spinoza. Sabemos que Boulainvilliers ingressou como aluno no “custoso e aristocrático” (ELLIS, 1986, p. 421) Oratório de Juilly aos 11 de idade (1669), lá sendo bem-sucedido e permanecendo até 1674 (MORERI, 1995, p. 132). Informação relevante, pois trata-se de um dos colégios franceses mais avançados da época1, onde se ensinava e discutia o cartesianismo, desde 1662 até a proibição real em 1675, a despeito dos jesuítas contrafeitos que 1 “Nenhuma sociedade religiosa jamais reconheceu no mesmo grau o valor da ciência, nenhuma teve pelo pensamento o mesmo respeito, o mesmo entusiasmo. A atividade intelectual do Oratório não é apenas atestada pelos nomes gloriosos de Malebranche e Richard Simon; ela é especialmente demonstrada pelas incessantes perseguições a que foram expostos os mestres do Oratório. A censura da heterodoxia lhes era incessantemente dirigida. Eles foram acusados de defender o jansenismo. Quando o cartesianismo foi proscrito, foi nos colégios do Oratório que encontrou seus defensores mais firmes” (D’ISTRIA, 1907, p. x). Ver também: FURET, 1986, pp. 117-8. Todos os textos citados cuja fonte referida está em idioma estrangeiro, salvo indicação expressa, são traduções nossas. 7 Boulainvilliers e seu Ensaio protestavam desde 1663. Ali, informa Louis Moreri (1643-1680), também havia um mestre muito hábil em história, “principalmente na dos soberanos da Europa”2, sendo provavelmente onde o jovem Henri tomou gosto por este tipo de estudo. É provável que lá tenha tido por mestre de oratória Richard Simon (16381712) que, junto a Spinoza, nas palavras de Ernest Renan, foi o fundador “da exegese bíblica do Antigo Testamento” (2020, p. 25). É atraente a hipótese de Simon ter aberto o caminho da heterodoxia para Boulainvilliers – atraente, porém, hipótese (cf. WADE, 1967, p. 97). O mais importante dessa formação é a novidade da inclusão da história no currículo, em especial a história nacional, ponto ao qual retornaremos ao comentarmos a produção de Boulainvilliers sobre essa área. Boulainvilliers entrou para a carreira de militar em 1679, integrando o primeiro corpo de mosqueteiros até 1688. Tudo indica que o abandono desta carreira teve por motivo complicações no seio familiar, que o fizeram assumir os negócios da família (MORERI, 1995, p. 132; ELLIS, 1986, p. 420). Há registro dele ter viajado para Alemanha e Inglaterra nos últimos anos, ou logo após o término, de sua carreira militar3. Seu primeiro casamento data de 1689, no qual teve dois casais de filhos. Complicações no parto de seu último filho o deixam viúvo, quando o mais velho deles conta apenas 6 anos de idade. Consta que Boulainvilliers se aplicou na educação de seus filhos, tendo mesmo escrito obras destinadas a tal, como teria sido o caso de sua História Universal [Histoire Universelle] (MORERI, 1995, p. 133; cf. ELLIS, 1986). Em 1709, morrem seus dois filhos homens. Casa-se novamente em 1710, não tendo filhos neste último casamento. Sua morte se deu em Paris, no ano de 1722, aos 74 anos de idade. Para além das viagens supramencionadas, só podemos afirmar que Boulainvilliers passou sua vida principalmente em Saint-Saire, com intervalos de estadias em Paris que foram 2 MORERI, p. 132. D’Istria especula que o professor “ao qual seu biógrafo Moreri alude e não ousa nomear” (1907, p. xi) seja o próprio Richard Simon, a quem nos referimos na sequência do texto. Tholozan (1999, §§9-10) menciona cursos de história que eram ministrados extracurricularmente para os alunos que eram pensionários, o que era o caso do jovem Henri. 3 THOLOZAN, 1999, §11. Ver também ali a nota de rodapé 43. 8 Gionatan Carlos PaCheCo mais frequentes em seus últimos 20 anos de vida (VENTURINO, 2019, p. 566). Sabe-se de sua relação clientelista com o duque de Noailles (1651-1729), a qual dá azo a especulações sobre a participação de Boulainvilliers em uma espécie de sociedade intelectual que orbitava o duque. Segundo Saint-Simon (16751755), havia uma forte ligação entre os dois, tendo sido o duque a lhe apresentar Boulainvilliers (SAINT-SIMON, 1914, p. 245). As sociedades intelectuais eram comuns na época e tomavam como modelo as Academias4. Teria sido nessa sociedade que Freret (1688-1749) ingressou aos dezenove anos em 1707 (cf. WALCKENAER, 1850, p. 276)5 e, por meio dela, que “apesar da diferença de idade” travou amizade com Boulainvilliers “que, desde então, espantado com sua erudição, previu que ele seria um dos homens mais eruditos de seu século” (BOUGAINVILLE, 1756, p. 316). A ausência de uma correspondência ou de diários torna desafiador entender o ambiente intelectual que Boulainvilliers frequentava e o público que seus manuscritos visavam. Torna difícil, por exemplo, apoiarmos a hipótese de Ira Owen Wade, em seus estudos pioneiros sobre os manuscritos clandestinos do início do século XVIII, de uma “coterie Boulainvilliers”, na qual ele seria “o verdadeiro centro de uma atividade que até então se pensava ter existido apenas após 1770”6. Não obstante 4 “O gosto pelas conferências Literárias era então mais comum do que é hoje. O estabelecimento das Academias fez sentir as vantagens do comércio entre as mentes; e em toda parte se viu o nascimento de Sociedades particulares que as tomaram como modelos” (BOUGAINVILLE, 1756, p. 315). 5 Ver também o verbete “Fréret” em Nouvelle Biographie générale (JOUBERT, 1858). 6 WADE, 1967, p. 101; “Boulainvilliers, Fréret, Dumarsais, Lévesque de Burigny e Mirabaud exemplificam a tendência oposta [oposta à tendência individual e independente de publicações]. Muitos são os indícios de que, nas atividades e obras desses autores, há uma tentativa definida de organização para atingir um fim comum. Uma consideração das relações entre eles trará à tona as principais linhas de sua cooperação. Boulainvilliers, o espírito movedor do grupo, reuniu avidamente as obras liberais de outros, e sendo amigo de D’Argenson, chegou a fornecer secretamente algumas delas àquele ministro. Ele estava alerta, interessado, ansioso. A certa altura conheceu os escritos de Spinoza e ficou fascinado por eles, embora a obscuridade da filosofia de Spinoza não escapasse à sua inteligência aguçada. Ele conversou sobre essas obscuridades com seu amigo Fréret, membro da Académie des Inscriptions 9 Boulainvilliers e seu Ensaio certos envolvimentos, Boulainvilliers levou uma vida discreta, na qual produziu uma vasta obra que, tudo leva a crer, nunca teve a intenção de publicar. É difícil falar da circulação de seus et Belles lettres, e escritor de tratados bem documentados sobre problemas de cronologia para a Academia. Enquanto Boulainvilliers era um admirador entusiástico de Spinoza, Fréret era um fervoroso devoto de Bayle, e até ganhou a invejável reputação de ter devorado todo o Dictionnaire historique et critique durante um curto confinamento na Bastilha. Ele e Boulainvilliers eram visitantes frequentes na casa do duque de Noailles, um notório centro de livre-pensamento. Provavelmente foi lá que conheceram Dumarsais, amigo e admirador de Fontenelle, interessado em problemas de cronologia e inimigo inveterado da superstição. Boulainvilliers estava em termos de intimidade com Mirabaud, Secrétaire perpétuel de l’Académie des Inscriptions. Ele reuniu as obras de Mirabaud, colocou uma delas em suas Lectures, ou mandou fazer cópias para D’Argenson. Dumarsais, também, conhecia bem Mirabaud, e por ele se interessou a ponto de publicar suas obras por volta de 1751, apesar do protesto brando deste. Eles tinham entre outras coisas em comum uma admiração por Fontenelle. Fréret era íntimo de Lévesque de Burigny, com quem tinha interesses semelhantes e cujas ideias utilizava sem escrúpulos. Não há dúvida de que existia uma relação bastante próxima entre Boulainvilliers, Fréret, Dumarsais, Mirabaud e Burigny. Também não há dúvida de que as ideias de cada um inspiraram os outros. Cada um também imbuiu os outros com um sentido mais completo do significado de seu próprio autor favorito: Boulainvilliers trouxe Spinoza, Fréret contribuiu com as ideias diretrizes de Bayle, Dumarsais e Mirabaud enfatizaram ideias que vieram de Fontenelle, Burigny introduziu a audácia de Orobio. Eles tinham vários centros nos quais trocavam opiniões: o de D’Argenson, o do duque de Noailles, a Académie des Inscriptions e os cafés. Eles escreveram seus tratados e os distribuíram, discutindo-os tão profundamente que cada tratado perdeu a marca da personalidade do autor e conservou a marca do grupo. Até hoje é impossível dizer quem escreveu alguns desses ensaios, tão completamente o anonimato do autor é ocultado por esta marca. A fortuna do grupo foi determinada por um único evento, a morte em 1722 de Boulainvilliers, espírito movedor da organização. Após a morte do conde, o círculo se desfez e seguiu-se um período de organização mais solta e flexível. Alguns membros, nomeadamente Fréret e Dumarsais e Lévesque de Burigny, continuaram a escrever na década de trinta. Mirabaud ocupou-se depois com outros tipos de escrita. Mas antes que o círculo fosse finalmente dissolvido, havia sido composto o Examen de la religion, o Doutes sur la religion, o Religion chrétienne analysée, o Essay de métaphysique, o Traité des trois imposteurs, a Lettre de Thrasybule a Leucippe, o Analyse du traité de la théologie politique de Spinosa, o Examen critique des apologistes de la religion chrétienne, o Opinion des anciens sur la nature de l’âme, Opinion des anciens sur les juifs, o Examen critique du Nouveau Testament, o Theophrastus redivivus, os Sentiments des philosophes sur la nature de l’âme, Abrégé de l’histoire ancienne, e o Israël vengé, quinze dos dezoito tratados mais importantes e influentes dos 102. Esses ensaios, distribuídos judiciosamente entre os leitores agora preparados para receber suas ideias, criaram o estímulo necessário para a composição, circulação e absorção de ensaios de natureza semelhante” (Ibidem, pp. 267-8). 10 Gionatan Carlos PaCheCo manuscritos durante sua vida, senão que ela ocorria7. Depois de sua morte, veremos adiante, a publicação de seus escritos fizeram considerável barulho. uma contextualização ampla com comparações sumárias Boulainvilliers foi ainda mais discreto que Spinoza na publicação de seus escritos. Ao longo de sua vida, seu nome não assina nenhuma obra impressa, ao contrário de Spinoza que publicou os Princípios da Filosofia Cartesiana (PPC) em 1663. Também não publicou nenhum livro anonimamente, como é o caso do Tratado Teológico-Político (TTP) de 1670. Caute [cautela] era o lema de Spinoza, mas Boulainvilliers sem dúvida o superou no emprego dessa divisa. Talvez por ter visto a forma como o nome de seu antecessor estava entrando para a história. A juventude de Boulainvilliers se passou enquanto a obra de Spinoza era o Judas a ser malhado, a filosofia spinozana era como que uma doença, um mal a ser combatido e spinozismo era usado como um adjetivo de xingamento tão ou mais comprometedor do que ímpio ou herege. Porém, isso explica muito pouco, se é que explica algo, sobre o apagamento voluntário de Boulainvilliers enquanto intelectual público de seu tempo. A carência de fontes torna temerário especular motivos pessoais e subjetivos dessa superioridade de Boulainvilliers em termos de caute. Por outro lado, mesmo o esboço precário que oferecemos a seguir, sobre a distinção das conjunturas políticas e histórico-sociais em que eles se encontravam, revela-nos razões objetivas suficientes. o noBre franco e o pleBeu Batavo Praticamente contemporâneos, Boulainvilliers tinha 19 anos quando Spinoza, aos seus 44, morreu em 1677 e então se iniciou a edição de suas Obras Póstumas. Isso abre a possibilidade de um contato muito precoce com TTP (1670) e com os PPC (1663)8, nos tempos em que o conde 7 Cf. MARAIS, 1864, t. 2, pp. 212-4, 348; 1868, pp. 137, 360-1. 8 Essas duas obras constam em seus extratos de leitura (NAF 11072), ver WADE, 1967, pp. 98-9. 11 Boulainvilliers e seu Ensaio ainda frequentava o colégio de Juilly (1669-1674). Se temporalmente há proximidade, política e socialmente um abismo se abre. Spinoza era de uma família de judeus portugueses, refugiados nos Países Baixos. O negócio familiar era ligado ao comércio marítimo e veio à bancarrota depois que Spinoza e seus irmãos o herdaram. Depois disso, nosso filósofo se proletarizou. Boulainvilliers, por sua vez, julgava que sua família estava ligada a terra que ocupava desde o século XIII. E se, com o restante da nobreza de espada, sua família estava em decadência, contudo não se aburguesou (ELLIS, 1986, p. 431). Naqueles tempos os Países Baixos eram uma espécie de ilha de liberdade religiosa e de pensamento em comparação a seus vizinhos. Sua independência foi declarada em 1581, e já representava a ascensão de uma camada burguesa, no seio da qual se destacou os protestantes calvinistas, cujos interesses se chocavam “com os interesses dinásticos e religiosos medievais da Coroa espanhola, do Sacro Império e do Papado” (CARNEIRO, 2006, p. 170). Durante a vida de Spinoza, Amsterdã superou a Veneza renascentista como o principal centro de produção de publicações, contando com mais “de 270 livreiros e impressores [que] atuaram na cidade nos 25 anos entre 1675 e 1699”9. Por outro lado, a França de Luís XIV era a origem de vários exilados, como foi o caso mesmo de Descartes, Pierre Bayle, Saint-Evremond: “Em 1701 havia apenas 51 gráficas em Paris, em contraste com 75 em 1644 e 181 em 1500” (BURKE, 2003, p. 131). O caso é que o Grande Século, a despeito das revoluções britânicas, assistiu a ascensão e consolidação do absolutismo, não somente na França, como também na Prússia, Áustria e Rússia (cf. THOLOZAN, 1999). Podemos dizer que o contexto sócio-político que Spinoza viveu em termos de liberdade de pensamento – pelo menos até o assassinato do grão-pensionário 9 BURKE, 2003, p. 148. “No século XVII, a República Holandesa substituiu Veneza como ilha de relativa tolerância da diversidade religiosa e também como principal centro e mercado da informação, o “magasin général” como a chamou Bayle em 1686” (Ibidem). 12 Gionatan Carlos PaCheCo Johan de Witt (1672), pois não devemos esquecer que o TTP “foi banido pelos estados-gerais em 1674” (BURKE, 2003, p. 131, grifo nosso) –, não voltou a se repetir tão cedo (cf. ROWEN, 1986). Com isso em mente, atenuamos o impacto provocado pelas novas pesquisas sobre as correntes mais radicais do Iluminismo, que apontam o pensamento de Spinoza como um centro de gravidade e coesão de toda uma literatura clandestina e marginal que, por vezes, saía da pena de um nobre, como a que saiu da do conde de Boulainvilliers (cf. ISRAEL, 2009). Para Spinoza, seus escritos publicados poderiam ser uma forma de renda, ou mesmo de comprovação de capacidade, pois os PPC, além de terem sido solicitados por amigos, sabemos também que foram resultado de um curso dado ao seu aluno Caesarius. E, se este foi o caso, foi bem sucedido, dado o convite que recebeu da Universidade de Heidelberg em 1673 (SPINOZA, 2014, p. 216). Nada mais distante do caso do conde de Boulainvilliers que, enquanto nobre, deveria viver de sua nobreza, isto é, de seus rendimentos. o mosquete, a corte e o novo mundo O mosquete é a imagem concreta que resume uma condição material de profundas mudanças que repercutiram no momento histórico que nossos pensadores viviam. Numa breve passada de olhos pelo quadro de Pieter Frits (16271708), de título “O assassinato dos irmãos De Witt” [Moord op de gebroeders De Witt], contamos facilmente uma dúzia deles. A chamada “revolução militar” começou na academia militar de Maurício de Nassau (1604-1679), fundada em 1618, caracterizando-se como: [...] a adoção de métodos racionalizados de combate, com tropas altamente treinadas em exercícios complexos com novos tipos de arma (mosquetões, canhões móveis), novos tipos de soldado (em fileiras menos compactas e mais ágeis, treinadas na “ordem unida” que coordenava salvas de tiros). (CARNEIRO, 2006, p. 181). A revolução militar é um de tantos fatores que fizeram o momento de hegemonia comercial dos Países-Baixos. 13 Boulainvilliers e seu Ensaio Segundo um levantamento francês, a frota neerlandesa não só superava em qualidade a dos outros países como em número ela igualava todas as demais frotas europeias somadas (cf. BRAUDEL, 2009, pp. 172-sqq). A expansão da rede de influência econômica e política dos batavos foi tamanha no século XVII, é bom lembrar, que sobrou até pra nós (cf., p. ex.: WATJEN, 1938; MELLO, 2010). É certo que o mosquete abriu fogo contra a nobreza que fez fortuna de a cavalo e pela ponta da espada. Mas nos serve apenas como símbolo que sintetiza mudanças que já vinham ocorrendo. É preciso lembrar que o sucesso dos romances de cavalaria no século XVI respondia, em alguma medida, a uma demanda do que já era um saudosismo da nobreza. Durante o feudalismo, eram os senhores feudais que arcavam com os custos de guerra, bem como eram eles que faziam fortuna com os despojos dos inimigos. O tempo passou e os serviços militares foram cada vez mais monetarizados: não mais se ganhava terras, mas, sim, soldo – o “termo ‘soldado’ evoca essa fase do desenvolvimento social”, lembra Norbert Elias (2001, p. 168). A guerra foi se profissionalizando e os contingentes cada vez maiores demandavam uma organização que frustrava as chances de fortuna em aventuras bélicas. O que Dom Quixote (1605), a suprema sátira dessa decadência, temia ou perseguia era um inimigo de outrora, os mouros, e tal qual o Quixote, a nobreza encantada, no caso com o próprio passado, não entendeu o impacto da descoberta do Novo Mundo em sua própria condição. A tradição aristocrática francesa se distingue pela continuidade. Ela “atravessou toda a Idade Média, até a época moderna, sem uma ruptura verdadeira” (ELIAS, 2001, p. 161), de modo que o rei francês estava mais ligado aos costumes corteses do que os reis de outros países, nos quais a passagem para modernidade, ligada às reformas religiosas e ao renascimento, representou um “fosso profundo […], ou onde a cultura aristocrática não era tão rica nem constituída de modo tão característico” (ibidem). Ao mesmo tempo que 14 Gionatan Carlos PaCheCo havia uma mútua dependência entre o rei e seu entorno social, havia uma luta intestina sempre em aberto, não tanto “com a nobreza em geral, pois uma parte significativa dela havia sempre lutado ao lado dos reis, mas com a alta nobreza e seus partidários” (ibid.). Isso vai mudar com o absolutismo monárquico instaurado durante o reinado de Luís XIV, sendo então uma mudança interna a essa camada social, na qual encontraremos nosso Boulainvilliers. A balança do poder, então, pende determinantemente para o lado do rei em detrimento da nobreza, tanto da alta quanto da baixa. A longeva continuidade muda de caráter entre o último rei cavaleiro, Henrique IV (1553-1610), e o primeiro rei aristocrata de corte, Luís XIV (1638-1715), o rei sol (cf. ibid., pp. 162-sqq). O afluxo da prata de Potosí e do nosso ouro dos Gerais tem um dedo nesse pendor da balança. A base da economia mudou. Enquanto uma burguesia ascendia sabendo se aproveitar do momento, a nobreza estava estagnada nos rendimentos fixos de suas posses. A inflação simplesmente explodiu, tais posses e rendimentos passaram a significar uma parcela do que valiam outrora: […] para uma grande parte dos nobres franceses a inflação significou um profundo abalo, ou até mesmo uma destruição dos fundamentos econômicos de sua existência. […]. A maioria dos membros da nobreza estava mergulhada em dívidas após o término das guerras religiosas; em muitos casos, os credores tomaram posse de suas terras. A maior parte das propriedades trocou de dono nesse período. (ELIAS, 2001, p. 165). O rei foi o único nobre fortalecido em sua base econômica. Anteriormente, a corte do rei era uma entre tantas, “era apenas a primeira, e nem sempre a mais rica, brilhante e significativa” (ibidem, 171). Mais tarde, o rei dependia da nobreza como seu meio social e como um modo de se distanciar tanto da burguesia, quanto da plebe. Porém, a dependência da nobreza para com a realeza se tornou total. Ela não era mais a protagonista guerreira, nem havia mais proezas a serem recompensadas basicamente com terras, nas quais cada senhor feudal era uma espécie de 15 Boulainvilliers e seu Ensaio rei. Visto que “passou-se gradativamente de uma realeza em que o rei possui e distribui terras para uma realeza em que o rei possui e distribui dinheiro” (ibid., p. 166), de cima do trono, mas também em cima do cofre, o rei deixou de ser mero primus inter pares. Agora, para repreender a nobreza o rei precisava apenas fechar a mão: “Era muito mais fácil e rápido abolir uma pensão de alguém que retomar uma terra, ou as fontes de renda naturais que se encontravam em algum lugar distante da residência do rei” (ibid., p. 169). Mas a ligação entre rei e nobreza permanece a despeito de já instalada essa supremacia, “o dever tradicional que o rei tinha de sustentar os nobres, assim como o dever dos nobres de servir ao rei – nada disso desapareceu” (ibid., p. 170). Tanto a República das Províncias Unidas dos Países Baixos quanto a França saíram por cima no final da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). A primeira se estabeleceu como a potência emergente, que depois de algumas décadas foi paulatinamente superada pela França e pela Inglaterra. A França se manteve oficialmente neutra no conflito até 1635, com a intenção “de criar um ‘terceiro pólo’ entre a aliança espanhola-imperial e o bloco dos protestantes alemães, suecos e holandeses” (CARNEIRO, 2006, p. 167). Sendo um Estado católico, ao se somar as fileiras protestantes esvaziou o caráter supostamente “religioso” do conflito. Os Tratados de Westfália, que encerraram o confronto, foi a pá de cal no espírito de cruzado medieval e podem ser “vistos como o marco na construção da ordem europeia moderna em que a ‘razão de Estado’ sobrepõe-se aos princípios religiosos medievais da soberania universal do Papado, que haviam sido a base das grandes monarquias nacionais” (ibidem, p. 166). Estes tópicos mereceriam um tratamento mais amplo e aprofundado. Porém, esse esboço nos serve, em alguma medida, para situarmos historicamente nossos autores. Não é difícil de ver, por exemplo, o quanto esses fatos se relacionam à temática teológico-política em Spinoza e da emergência do conceito de nação, que constitui objeto central das análises de Boulainvilliers. 16 Gionatan Carlos PaCheCo Boulainvilliers e a corte: órBita sem muita gravidade Boulainvilliers viveu no “Século de Luís XIV”, para nos valermos de um título de Voltaire. O término das guerras religiosas, ao invés de removerem a aura sagrada da coroa, abriu caminho para a “monarquia absoluta”10. Foi nesse momento que, para o bem ou para o mal, o complexo jogo de forças no seio da elite francesa atingiu um equilíbrio, é claro, no rei. Antes de Luís XIV atingir a maioridade, as tensões no seio da elite francesa se expressaram na revolta da Fronda (1648-1653). Neste conflito, em torno de Luís II (Príncipe de Condé, 1621-1686), a alta nobreza, o parlamento e a burguesia se uniram no anseio comum de diminuir o poderio do rei. Não obstante, por óbvio, nenhuma dessas frentes se interessava por uma quebra radical do status quo, já que isso poderia bem ser um tiro no pé, arriscando assim seus atuais privilégios. Ao mesmo tempo, a mútua desconfiança desses grupos entre si permitiu ao rei, neste caso o ministro Mazarin (1602-1661), amplo espaço de manobra. Segue-se um quadro característico: “grupos se aliam contra o ministro, o representante da rainha; parte dos aliados faz um acordo com o ministro; abandona a aliança; enfrenta aqueles que estavam a seu lado; e acaba retomando, em parte, a aliança com estes”11. Quando Luís XIV assume o poder em 1661, o destino da nobreza já está decidido, e tanto ela quanto a burguesia dependem do rei quando seus interesses conflitam. 10 “Existiu um mito de Luís XIV no sentido de que ele era apresentado onisciente [informé de tout], invencível, divino, e assim por diante. Era o príncipe perfeito, associado ao retorno da idade de ouro. Poetas e historiadores qualificaram o rei como “herói” e seu reinado como “uma série ininterrupta de maravilhas”, para usar as palavras de Racine. Sua imagem pública não era simplesmente favorável: tinha uma qualidade sagrada. (BURKE, 2009, p. 18). “Luís tomava também o lugar de Deus, como foi assinalado pelo pregador da corte Jacques-Bénigne Bossuet e outros teóricos políticos. Os soberanos eram “imagens vivas” [images vivantes] de Deus, “os representantes da majestade divina” [les représentants de la majesté divine]” (ibidem, p. 21). 11 ELIAS, 2009, p. 184. Ver: MAQUIAVEL, 1994, liv. III, cap. 11, pp. 341-sqq. 17 Boulainvilliers e seu Ensaio A França, bem como outros impérios que se impunham na modernidade, teve que implementar mudanças significativas na burocracia estatal com a finalidade de centralizar e organizar seus recursos e informações. Este imprescindível funcionalismo estatal foi parar na mão de burgueses, ao passo que “afastou a nobreza de quase todos os cargos elevados do judiciário e da administração. Desse modo surgiu a poderosa camada da noblesse de robe, que se equiparava à nobreza em poder, e às vezes até em prestígio social” (ELIAS, 2001, pp. 188-9). Assim, a nobreza tradicional, em contraposição a de robe, ficou conhecida como nobreza de espada [noblesse d’épée]. A maior parte dela “foi lançada de volta às suas funções de cavaleiros e proprietários de terra” (ibidem, p. 189) durante o século XVI. Houve assim um afastamento da nobreza em geral da corte do rei, sendo cada mais difícil para a nobreza provinciana, já sem poder ou função política, integrar-se a esta. Boulainvilliers pertenceu justamente a essa nobreza provinciana. Boulainvilliers, seguindo uma tradição familiar, fez carreira militar. Há indícios de que, paralelamente aos percalços em seu seio familiar, teve de abandoná-la por esta ser muito custosa, de modo que não tinha rendimentos suficientes para se sustentar em um cargo condigno ao seu estatuto de nobre. A venalidade de cargos públicos, inclusive de comandos militares, foi um “dos aspectos característicos da função pública no Ancien Régime” (ibid., p. 197) e estava consolidada no tempo de Henrique IV. Era um golpe na antiga aristocracia, ao passo que atendia os interesses da burguesia endinheirada, ao mesmo tempo que era mais um vetor de arrecadação para o trono. Por mais difícil que seja conceber, a nobreza não tinha nenhuma função para o Estado. Porém, tinha função para o rei. Luís XIV nunca viu como opção deixar essa nobreza simplesmente se esgotar e desaparecer. Tal desaparecimento acarretaria o aburguesamento da nobreza (e, consequentemente, do próprio rei), o que de certo romperia o equilíbrio cujo centro de gravidade era o rei, tornando ele dependente dessa burguesia ampliada. 18 Gionatan Carlos PaCheCo A corte que tinha um caráter peripatético, com Luís XIV se fixa, sem concorrentes, no Palácio de Versailles (1682)12. A dominância da coroa sobre essa alta nobreza era tanta que o único movimento de resistência possível era a aproximação com seu provável próximo dono. Quanto mais poderosa e próxima da linha de sucessão, mais perigos a nobreza representava. Por conta disso, Versailles servia para o exercício da necessária vigilância. As Memórias do duque Saint-Simon são particularmente reveladoras sobre esta resistência cortesã e jogam um pouco de luz sobre o distante personagem de Boulainvilliers. Ao contrário de Boulainvilliers, Saint-Simon pertencia a alta nobreza e o apoio de seus antepassados à coroa ainda o favorecia diante do rei, de sorte que gozava de uma “independência” singular em comparação com os demais cortesãos. Era um dos membros mais ricos da nobreza de espada, de modo que sua descrição de Boulainvilliers como “muito pobre”, que caracterizou historicamente o suposto ressentimento de nosso filósofo, precisa levar em conta essa perspectiva13. 12 ELIAS, 2009, pp. 173-sqq. Foi neste palácio em que foi assinado o contrato do segundo casamento de Boulainvilliers em 1710, um evento custoso, sendo este um dos fatos documentados que desbancam a atribuição de pauperismo por vezes dirigida a Boulainvilliers (ELLIS, 1986, p. 422). 13 SAINT-SIMON, 1928, p. 240. Harold A. Ellis fez estudos importantes sobre o “caráter”, digamos assim, de Boulainvilliers, nos quais quebra a imagem simplória de um nobre despossuído, ressentido a ponto de defender uma espécie de “racismo filosófico”. A problemática releitura de Boulainvilliers como um teórico do conflito racial foi substancialmente desacreditada, em favor da caracterização como um teórico de classe, e remonta à Augustin Thierry; ela foi incensada principalmente por André Devyer (1973), e segue sendo citada de passagem como um lugar-comum (e.g. ISAAC, 2004, p. 10n17); a encontramos mesmo em Foucault, de cuja exposição nos valeremos adiante, sem nos determos nessa tentativa de associação de Boulainvilliers à direita francesa racista, e notando aqui que a exposição de Foucault não é de todo original, devendo em grande medida a de Thierry (ver BERNASCONI, 2003, pp. 5778). Ellis analisa o uso dos conceitos de raça e genealogia em Boulainvilliers, demonstrando que “ele nunca elaborou explicitamente uma teoria da excelência nobre descrevendo a linhagem como o transmissor biológico por ‘semente’ ou ‘sangue’ — de qualidades pessoais. […]. Para Boulainvilliers, a própria hereditariedade era algo habitual, inculcado pela educação familiar. A linhagem, como Boulainvilliers a entendia, era um fato cultural, não biológico. Boulainvilliers não era racista.” (ELLIS, 1986, p. 423). Ainda, sobre as posses de Boulainvilliers, bem como sua proximidade da corte, ver: ELLIS, 1986. 19 Boulainvilliers e seu Ensaio Saint-Simon nos conta sobre sua aproximação ao duque de Borgonha (1682-1712) que, após a morte do pai Luís (Grande Delfim de França, 1661-1711), tornouse o novo delfim. Neste relato vemos como Saint-Simon habilmente sonda o delfim sobre a situação da alta nobreza e do que ele vê como usurpação do poder por parte dos magistrados, da nobreza de robe, bem como o desprezo desta pelos pares do príncipe. Um tópico dessa conversa que deve nos ser interessante é a educação do rei. “Esta corda, tocada assim levemente, de pronto devolveu um grande som” (SAINT-SIMON, 1840, p. 6). Enfim, parece que Saint-Simon encontrou naquele momento um aliado contra os ministros. Não obstante, voltemos nossa atenção sobre a educação do próprio príncipe, o duque de Borgonha. Havia um círculo de pessoas em torno do duque de Borgonha que “era constituído de todo um núcleo da oposição nobiliária” (FOUCAULT, 1999, p. 152). No centro dele estava o arcebispo Fénelon (1651-1715), nomeado preceptor do duque de Borgonha em 168914. Antes, mencionamos a burocratização do Estado, que foi uma resposta a necessidade de centralizar as informações15. Fénelon, por exemplo, perguntava: “o que diríamos de um pastor que não soubesse a quantidade de suas ovelhas?” (apud BURKE, 2003, p. 127). Assim, em 1697, inspirado no trabalho dos levantamentos [enquêtes] que Colbert (1619-1683) realizava através dos intendentes das províncias, Fénelon elabora um questionário de 19 pontos, que “foi enviado aos intendentes para que fornecessem informações para a 14 SÉE, 1923, p. 209. Henry Sée nos diz que Fénelon: “é verdadeiramente o centro daquela pequena sociedade de descontentes e reformadores que se agruparam em torno do duque de Borgonha e que contam com o futuro reinado para fazer triunfar suas ideias; é o círculo de Chevreuse e Beauvilliers, um círculo ao qual o próprio Saint-Simon teve a honra de pertencer” (1923, p. 210, traduções nossas). 15 “Na França, o século XVII foi o período da organização dos arquivos, primeiro pelo estudioso Théodore Godefroy (1615), depois por Richelieu e, mais tarde, por Colbert. [...]. Quando Luís XIV chegou ao poder, nenhuma repartição do Estado possuía arquivo, mas quando ele morreu todas depositavam seus registros em lugares fixos” (BURKE, 2003, p. 129). 20 Gionatan Carlos PaCheCo educação política do duque”16. Coube a Boulainvilliers resumir e analisar os memorandos (mémoires) para serem apresentados ao duque. Por certo, foi uma escolha politicamente interessada (cf. THIERRY, 1842, p. 83). Estes memorandos “talvez sejam o documento mais conhecido e utilizado do reino de Luís XIV” (ESMONIN, 1964, p. 113). As análises de Boulainvilliers sobre eles estão reunidas em sua obra Estado da França [Etat de la France], impressa póstuma e desajeitadamente17. No mesmo capítulo de suas Memórias, Saint-Simon nos relata outra conversa sua com o delfim. Nesta surge como assunto outro tópico (SAINT-SIMON, 1840, pp. 14-sqq), que também diz respeito a Boulainvilliers. Trata-se da questão sobre os príncipes de sangue e os príncipes legítimos. Um assunto que viria a calhar para uma possível conspiração de Saint-Simon, se pouco tempo depois (1712) o duque não tivesse falecido. Em seguida (1715), é a vez da morte de Luís XIV. Então, essa questão se tornará uma querela, e ganhará forma impressa18. Os únicos textos de Boulainvilliers que sabemos com certeza terem sido impressos durante sua vida, mais precisamente em 1717, ainda que sem seu nome, foram justamente sobre a questão dos príncipes legítimos e figuram numa espécie de compêndio, publicado no auge da querela dos príncipes legítimos e de sangue19. 16 BURKE, 2003, pp. 126-7; “Este grande homem [Fénelon] acreditava igualmente nos direitos naturais dos povos e no poder da história. No plano de um vasto levantamento do estado da França, concebido por ele para a instrução do duque de Borgonha, teve o cuidado de incluir o passado bem como o presente, os velhos costumes, as velhas instituições, como o novo progresso da indústria e da riqueza nacional. Ele requer, em nome do príncipe, a todos os intendentes do reino, informações detalhadas sobre as antiguidades de cada província, sobre os antigos costumes e as antigas formas de governo dos países reunidos à coroa” (THIERRY, 1842, p. 82). 17 “A obra teve três edições: 1727 (3 vol. in-fo), 1737 (6 vol. in-12) e 1752 (8 vol. in-12). A última é a menos incorreta” (ESMONIN, 1964, p. 101, n. 162). 18 “Quando o rei morre, uma querela começa entre os príncipes de sangue e os legítimos. Dará origem a uma importante troca de calúnias de 1716 a 1717 que se encerra com o Edito de Fontainebleau em julho de 1717” (CAUSIN, 2020, p. 17). 19 Recueil général des pièces touchant l’affaire des princes légitimes et légitimés, mises en ordre, Rotterdam, s. n., 1717, 4 vol., in-12. Ver CAUSIN, 2020. 21 Boulainvilliers e seu Ensaio Pelo que foi dito, podemos concluir que Boulainvilliers, por mais distante da corte que se encontrasse, ou por mais desvinculados com ela que sejam diversos de seus interesses, ela pautou consideravelmente sua produção intelectual. Com efeito, é hora de falarmos da obra de Boulainvilliers. a oBra de Boulainvilliers Podemos dizer que toda a obra de Boulainvilliers foi impressa postumamente, se desconsiderarmos sua participação na querela dos príncipes legítimos e um opúsculo de título Carta de Hipócrates a Damageto [Lettre d’Hippocrate à Damagète], cuja autoria é contestada (BROGI, 1993, p. 16, n. 4) e, no caso de ser dele, talvez tenha sido impresso sem seu conhecimento (SIMON, 1973, p. v). O grosso de sua obra é histórica e política e teve publicação em um volume considerável entre 1727 e 1788 (ibidem). Diversas fontes nos permitem afirmar que o “sistema” – caracterização dada por Montesquieu – que Boulainvilliers erigiu nelas foi um marco na historiografia francesa. Seus demais escritos tiveram publicação mais recente, alguns manuscritos seguem inéditos e há até a possibilidade de outros ainda serem descobertos. Sua tradução da Ética de Spinoza, a primeira tradução francesa dessa obra, por exemplo, foi publicada apenas 190720. Seus escritos especificamente filosóficos, como seu Ideia de um sistema geral da Natureza [Idée d’un système général de la Nature], foram editados ainda mais tardiamente, na década de 1970 (BOULAINVILLIERS, 1973 e 1975). Talvez a única das obras filosóficas de Boulainvilliers que veio ao lume logo depois de sua morte, que circulava em forma manuscrita durante sua vida, seja o Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza [Essai de métaphysique dans les principes de B. de S.], publicado em 1731. Esta certamente contribuiu para que, ao lado da conta de historiador, Boulainvilliers fosse tido também na de livre-pensador, ou 20 BOULAINVILLIERS, 1907. Não obstante, em um artigo ao qual infelizmente não conseguimos acesso, Gianluca Mori (1994) questiona a autenticidade da atribuição da tradução a Boulainvilliers. 22 Gionatan Carlos PaCheCo libertino, ao longo do século XVIII. A celebridade de seu nome fez com que esse fosse tomado de empréstimo para assinar diversos escritos espúrios. Além disso, há o fato de que os manuscritos legitimamente atribuídos disponíveis tampouco são autógrafos, o que acrescenta dificuldade em estabelecer uma bibliografia definitiva. Das vicissitudes que rondam a publicação da obra de Boulainvilliers, podemos dizer que houve a recepção de parte dela no século XVIII, seguida de uma fase de relativo ostracismo, particularmente após Revolução francesa (1789) e, por fim, uma redescoberta mais recente, muito devida aos esforços de Renée Simon21, que se desenvolve dos anos 1970 até os dias de hoje. puBlicista de classe Boulainvilliers se insere na “República das letras” como um historiador político da aristocracia antiabsolutista. A chamada reação aristocrática do final do reinado de Luís XIV já foi um lugar-comum, um consenso entre os estudiosos (cf. ELLIS, 1986, 416). Se bem que suas ideias foram de todo ofuscadas pelo brilho da Revolução Francesa (1789). Não obstante, desde o século passado, uma retomada dos estudos dessa corrente intelectual a revela muito mais ambígua e controversa do que supúnhamos. Assim, tal categorização não nos diz muito além de um certo grupo de escritores com uma certa proximidade social e intelectual. Em suma, a ambiguidade e a dificuldade que encontramos em categorizar autores como Fénelon, Saint-Simon e Boulainvilliers é efetiva, mas não nos impede de traçarmos uma precária “unidade por analogia”. Segundo Henry Sée, as ideias de Boulainvilliers “apresentam uma notável analogia com as concepções de Fénelon e do duque 21 Além das Œuvres philosophiques de Boulainvilliers, Simon publicou três estudos sobre Boulainvilliers: “A la recherche d’un homme et d’un auteur (Paris, 1941); Henry de Boulainviller, historien, politique, philosophe, astrologue, 1658-1722 (Paris, 1941); Un révolté du grand siècle (Garches, 1948)” (BURANELLI, p. 475, n. 2). 23 Boulainvilliers e seu Ensaio de Saint-Simon”, sendo mais marcadamente contrárias ao absolutismo que as deles. Uma pauta comum é o restabelecimento dos Estados Gerais, que devolveria uma influência política à classe a que os três pertenciam. Boulainvilliers, porém, “menos aristocrático que Saint-Simon, mais favorável que Fénelon às liberdades políticas, foi um dos primeiros escritores preocupados com a condição das classes populares” (SÉE, 1924, p. 272). História filosófico-política Se o que podemos chamar de reação aristocrática antimonárquica envolve certo nível de imprecisão, a ponto de sua própria existência ser questionada (cf. DOYLE, 1972), a própria função de historiador, na época em que Boulainvilliers escreve, ainda não está claramente definida. Até o século XVII a História não era uma disciplina em si mesma. Era vista mais como um ramo ou um auxiliar da Retórica, e se dividia em história sagrada, a da Igreja, e história profana, a dos antigos. Podemos dizer também que estava “dividida em duas atividades intelectuais que se ignoram quase sempre ou se desprezam: a erudição e a filosofia” (FURET, 1986, p. 109). A erudição histórica estava nas mãos dos “antiquários: ou seja, especialistas do antigo, e naturalmente da Antiguidade, escondidos por detrás de conhecimentos estreitos, esotéricos, eruditos, e manejando línguas desaparecidas” (ibidem). A atividade do antiquário nos trouxe a noção de fato histórico, isto é o “material constitutivo da história”, mas “não a história, como a entende o século XIX” (ibid.), pois era acrítica e preocupada em não ameaçar os textos sagrados. A cronologia profana embaraçava a bíblica, constituindo assim um campo minado: “Bossuet [1627-1704] ainda escreve uma História Universal, mas teve uma certa dificuldade em fazer entrar na cronologia sagrada a história profana dos povos antigos da qual as descobertas dos ‘antiquários’ alargam doravante os limites” (ibid., p. 110). Não é à toa que a publicação, em 1678, da História Crítica do Antigo Testamento, custa a Richard Simon sua expulsão da ordem dos oratorianos. 24 Gionatan Carlos PaCheCo No século XVII, o colégio do oratório de Juilly – onde Simon ensinava quando Boulainvilliers era aluno – é o melhor e mais precoce exemplo da inclusão da história no currículo como disciplina independente, além disso, cujos conteúdos envolviam a história nacional, ou seja, “emancipados da relação exclusiva que mantinham com a Antiguidade” (ibid., p. 117). Por outro lado, este também é o século do racionalismo individualista, de reedições do ceticismo de Montaigne, enfim, dos precursores dos libertinos. Estes são muito bem representados em Pierre Bayle (1647-1706), que afirmava ler livros de história para descobrir os preconceitos dos autores, não podendo se fiar nos fatos relatados. Tal “derrotismo histórico”, segundo Furet, está muito ligado à obsessão pelo presente, visto como produto melhor acabado de uma linha temporal que se sucede desde a antiguidade, em suma, com a ideia de progresso. O que o século XVIII trará de novo, segundo Furet, é o que podemos chamar de história filosófica. Não se trata tão somente de narrar os fatos sucessivos, “a história filosófica tem outro pólo conceptual para além dos progressos da civilização: é a origem da nação. Os franceses do século XVIII procuram na sua história nacional simultaneamente a fonte do seu ‘contrato’ com o rei e a legitimidade da nobreza” (ibid., p. 114)22. Aqui que inserimos Boulainvilliers, um historiador filósofo-político. um marco da Historiografia francesa Boulainvilliers foi um marco na historiografia francesa. Afirmamos isso com base no testemunho de várias autoridades de períodos históricos distintos. Por exemplo, Augustin Thierry (1795-1856), que é tido como um dos primeiros historiadores a se valer de 22 Mesmo quando, mais adiante no século XIX, a história passa a ser posta como ciência no mesmo sentido das ciências naturais, para estabelecer um consenso provisório sobre o sentido de história, “Lavisse e Seignobos retomam os dois temas da história filosófica desde o século XVIII: a história é a nação; a história é a civilização” (FURET, 1986, p. 133). 25 Boulainvilliers e seu Ensaio fontes originais em seus estudos. Apesar da antipatia para com Boulainvilliers e suas teses23, ao compará-lo com a teoria de François Hotman (1524-1590) – esta escolha de comparação distante parece acentuar a má vontade em dizer o que diz –, não deixa de afirmar que sua obra “marcou um verdadeiro progresso pelo talento de análise, pela profundidade, pela faculdade de discernir os problemas fundamentais e os pontos delicados de nossa história” (cf. THIERRY, 1842, pp. 89-90). Thierry caracteriza as Cartas sobre os antigos parlamentos da França [Lettres sur les anciens Parlements de France] como um trabalho “inteiramente novo para a época, que desde então serviu como base ou tema para muitos ensaios do mesmo gênero; ele jamais foi refeito sobre as fontes com um desempenho comparável” (ibidem, p. 91). No momento em que Thierry escreve, Boulainvilliers é “mais conhecido de nome que por suas obras” (ibid., p. 83), “seu renome de publicista se estabeleceu à parte de seu sistema” (ibid., p. 91), e resume a descrição de suas obras da seguinte forma: Suas conclusões, um tanto parciais, suas interpretações, um tanto errôneas, abriram o caminho que levaria à verdade. Foi uma revolta contra o curso das coisas, um protesto impotente contra as tendências sociais da civilização moderna; mas essas tendências estavam lá, pela primeira vez, claramente reconhecidas e apontadas. (THIERRY, 1842, pp. 90-1). De fato, a obra de Boulainvilliers suscitou um extenso debate que se arrastou até as portas da Revolução. Porém, tornou-se um lugar-comum, no qual não era necessário se deter. O abade Dubos (1670-1742), que tomou parte na discussão propondo uma inversão do sistema de Boulainvilliers, segundo Montesquieu, incidiu em grandes erros, “porque teve mais tempo sob os olhos o conde de Boulainvilliers do que seu assunto” (2000, p. 659). Segundo Montesquieu, ambos eram 23 Esta atitude, porém, de forma alguma é nova. “Quando, no século XIX, os historiadores começaram a descrever Boulainvilliers como um aristocrata reacionário, estavam efetivamente seguindo uma tradição inaugurada por seus críticos do século XVIII” (ELLIS, 1986, p. 418). 26 Gionatan Carlos PaCheCo extremos a serem evitados, opinião que, justa ou não, mostra a influência incontornável da obra de Boulainvilliers24. História e legitimação social A seguir faremos uma exposição sumária do conteúdo das obras históricas e políticas de Boulainvilliers. As obras políticas de Boulainvilliers não são nosso foco na presente publicação, e uma análise satisfatória delas extrapolam o objetivo deste ensaio introdutório, e mesmo as nossas atuais possibilidades. Assim, a base da exposição que se segue, por sua vez, já é um resumo. Nomeadamente, faremos o resumo do que Foucault resume da obra de Boulainvilliers em seus cursos de 1975-1976, publicados em 1997 no livro que leva o título: Em defesa da sociedade (FOUCAULT, 1999). Muitos dos fatos discutidos fazem parte do currículo escolar francês, ao passo que nos são praticamente alheios, o que, acreditamos, aumenta a utilidade da contextualização a seguir. Lembremos, antes de tudo, que a obra de Boulainvilliers sobre a história da França, inicialmente, fez parte de um levantamento de informações realizado pelos intendentes das províncias. Levantamentos desse jaez constituíram uma base quantitativa de fontes comuns para os estudiosos, de sorte que fizeram o século XVIII especialmente propício para a afirmação da história, não somente como disciplina, mas como campo de disputa da legitimidade política. Substituindo o direito divino dos príncipes, a história “tornou-se depositária do contrato original, dos direitos dos Franceses e dos segredos do pacto social” (FURET, 1986, p. 177). A finalidade deste levantamento era dar conta da situação atual da França, de suas instituições e economia, 24 “O conde de Boulainvilliers e o abade Dubos elaboraram cada um um sistema, o primeiro dos quais parece ser uma conjuração contra o terceiro estado e o outro uma conjuração contra a nobreza. Quando o Sol deu a Faeton seu carro para conduzir, lhe disse: ‘Se subires alto demais, queimarás a morada celeste; se desceres baixo demais, reduzirás a terra a cinzas. Não vá por demais à direita, cairás na constelação da Serpente; não vás por demais à esquerda, cairás na do Altar: conserva-te entre as duas’” (MONTESQUIEU, 2000, p. 624). 27 Boulainvilliers e seu Ensaio bem como dos costumes da população, servindo assim para a instrução do duque de Borgonha. A apresentação de Boulainvilliers, a “depuração daqueles enormes relatórios”, é complementada por “reflexões críticas e com um discurso: o acompanhamento necessário, pois, daquele enorme trabalho administrativo de descrição e de análise do Estado” (FOUCAULT, 1999, p. 152). Foucault caracteriza esse discurso como “assaz curioso, uma vez que se trata, para esclarecer o estado atual da França, de um ensaio sobre o antigo governo da França, até Hugo Capeto” (ibidem, pp. 152-3). Segundo Foucault, ali o objetivo de Boulainvilliers é “valorizar as teses favoráveis à nobreza” (ibid.). Entre essas teses, aponta os seguintes objetivos: contra a venalidade dos cargos, a favor do direito de jurisdição e de um lugar para a nobreza no Conselho do rei. Porém, para Foucault, o que se sobressai como objetivo do discurso é um protesto contra a influência da máquina administrativa, criada pelo rei, no “saber dado ao rei, e depois ao príncipe” (ibid., pp. 153-4). Esse alvo, “o mecanismo de saber-poder” (ibid., p. 155), é generalizado a “todos esses historiadores ligados à reação nobiliária”, pois se trata de vincular o aparato burocrático ao absolutismo – o que faz sentido, uma vez que a entrega de funções de estado a uma elite plebeia é de fato um golpe proposital na potencial ameaça que era a alta nobreza. O que é um tanto paradoxal é uma tese que ataca a burocratização da educação do príncipe ser veiculada justamente numa exposição da facção antiburocrática para a educação do príncipe. Isso parece configurar uma crítica à educação do rei atual para o rei que está por vir. Neste caso, remete a conversa que mencionamos anteriormente entre Saint-Simon e o duque de Borgonha, na qual lamentavam a educação do rei. Em suma, o paradoxal expressa a complexidade das tensões entre frações da elite francesa do final do século XVII, sobre a qual não é necessário nos deter e excedem nossas pretensões aqui. 28 Gionatan Carlos PaCheCo a nação tenciona a História Estamos falando de uma explosão do “próprio funcionamento do saber histórico” (ibid., p. 159). Esta especulação ligeira e interessante de Foucault parece exagero, bem como parece não nos dizer muito. Por um lado, podemos pensar na pobre história do saber histórico em comparação com a existência de humanos em relações de poder entre si; por outro, nas condições materiais que permitiram, talvez pela primeira vez, uma elite decadente e impotente imprimir sua própria versão da história. Porém, enfim, é fato que essa nobreza se opunha ao que o “Estado” pensava sobre si próprio e, se (e somente se) concedermos a premissa foucaultiana de que “a história sempre fora apenas a história que o poder contava sobre si mesmo” (ibid.), precisamos concordar em ver na obra de Boulainvilliers uma explosão da história. Lembremos, a história passa a ser a fonte de legitimidade do “contrato social”. Foucault coloca o direito como centro gravitacional desse confronto interno da elite. Porém, ele traz essa noção com certa ambiguidade. Por um lado, o direito, ou o saber jurídico, é “o saber que é preciso descartar” (ibid., p. 156) segundo a antiga nobreza. Entendemos com isso que a educação do rei, voltada ao saber que vai ao do tribunal ao do escrivão, tornaria o rei um par inter pares, não com a corte, mas com os burocratas e a nobreza de robe. Este ponto ganha peso ao considerarmos uma das peculiaridades desta aristocracia francesa, a saber, que ao longo de “toda a história moderna da França quase nunca nos deparamos com nomes de juristas pertencentes à noblesse d’épée” (ELIAS, 2001, p. 197). Por outro lado, este “discurso da nobreza reacionária do final do século XVII” (FOUCAULT, 1999, p. 160), representada pela obra de Boulainvilliers, vai além de sua necessidade pedagógica do direito e de seu funcionalismo institucional. Trata-se principalmente da relação do direito com o próprio fundamento do Estado e do exercício do poder; do direito, não enquanto conjunto de convenções e procedimentos 29 Boulainvilliers e seu Ensaio regulados, mas como expressão superficial do jogo de forças sociais latentes. Esta configuração ambígua ou dupla da noção de direito na exposição de Foucault, não obstante, não nos impede de reconhecer que com este discurso “aparece um novo sujeito da história” (ibidem). O novo sujeito histórico que emerge a partir do discurso de Boulainvilliers é aquilo: [...] que um historiador daquela época denomina uma “sociedade”: uma sociedade, mas entendida como associação, grupo, conjunto de indivíduos reunidos por um estatuto; uma sociedade, composta de certo número de indivíduos, que tem seus costumes, seus usos e até sua lei particular. Essa alguma coisa que fala doravante na história, que toma a palavra na história e da qual vai se falar na história, é o que o vocabulário da época designa com a palavra “nação”. (ibid.). O direito toma parte na própria constituição da categoria de nação, porém tido “muito mais como regularidade estatutária do que como lei estatal” (ibid., p. 161). Nesse sentido, a nação integra o estado, mas não se define por ele nem a ele se limita institucional ou territorialmente. Assim como, mais tarde na França, a revolução burguesa tomará as bandeiras de liberdade, igualdade, fraternidade como invólucro dos interesses por privilégios de uma determinada camada social, assim também a reação da antiga aristocracia ao absolutismo real se vestirá de nação, mas “é uma nação em face de muitas outras nações que circulam no Estado e se opõem umas às outras” (ibid.). Talvez com algum exagero, Foucault vê nisso o germe de diversos conceitos fundamentais para o desenrolar histórico e político dos séculos vindouros, entre eles o do nacionalismo do século XIX, o de raça e, por fim, o de classe. O saber histórico que emerge deste discurso, então, é tomado como “instrumento de luta – no poder e contra o poder” (ibid., p. 162), do qual se valerá tanto o pensamento que chamamos de direita quanto o de esquerda (ibid., p. 163). Mais tarde, também o poder régio apropria-se desse discurso, de modo que “a partir de 1760, vemos esboçar-se instituições que seriam, grosso modo, uma espécie de Ministério 30 Gionatan Carlos PaCheCo da História” (ibid., p. 164, grifo do autor)25. Não por acaso, ao consultarmos o verbete nação da Enciclopédia, vemos uma definição cujos critérios – principalmente a delimitação territorial e centralização jurídico-governamental – são de todo contrários àquela que nos referimos antes; trata-se, pois, nas palavras de Foucault, de uma “definição estatal”. a constituição do feudalismo franco Boulainvilliers, em seu Estado da França, mais do que relatar a situação atual do país a partir dos documentos produzidos pelos intendentes das províncias, faz uma análise histórica que remete às origens deste país. Em sua exposição, Foucault separa três temas ou momentos históricos sobre os quais a análise de Boulainvilliers se detém. Em primeiro lugar, a invasão franca da Gália e/ou decadência da dominação romana. Em segundo, quem eram esses invasores francos. Por último, a decadência dos próprios francos. Antes de tudo, entra a caracterização da Gália de quando o invasor a encontrou. Aqui trata-se de desfazer “a velha narrativa histórico-lendária do século XVII, segundo a qual os francos, gauleses que haviam deixado a pátria, teriam almejado em dado momento voltar para ela” (ibid., pp. 171-2). Contrariando o mito da Gália feliz, esquecida das violências da dominação romana e herdeira do direito romano, Boulainvilliers a descreve como uma “terra de conquista” na qual “o absolutismo romano, o direito régio ou imperial instaurado pelos romanos, não era de modo algum, nessa 25 Eis a sequência do parágrafo: “Primeiro, por volta de 1760, criação de uma Biblioteca das Finanças que deve fornecer a todos os ministros de Sua Majestade os memoriais, informações e esclarecimentos necessários; em 1763, criação de um Arquivo de Documentos para aqueles que quisessem estudar a história e o direito público na França. Enfim, essas duas instituições são reunidas, em 1781, numa Biblioteca de Legislação – notem bem os termos –, de Administração, História e Direito Público. E um texto um pouco posterior diz que essa biblioteca é destinada aos ministros de Sua Majestade, àqueles que são encarregados de alguma parte da administração pública geral, e a eruditos e jurisconsultos que, encarregados pelo Chanceler ou pelo Ministro da Justiça de trabalhos e de obras úteis à legislação, à história e ao público, serão pagos à custa de Sua Majestade” (ibidem). 31 Boulainvilliers e seu Ensaio Gália, um direito aclimatado, aceito, acatado, que formava um só corpo com a terra e o povo” (ibid., p. 172). Ou seja, não se tratava de uma soberania, nem de absorção cultural: o direito romano era, isso sim, “um fato de dominação”, e apenas notado na medida em que esta se impunha. Tratava-se, pois, de uma Gália submetida ao jugo externo. Antes, a única força de resistência gaulesa aos romanos foi a aristocracia guerreira. Esta, então, foi desarmada e rebaixada econômica e politicamente. Outra medida foi “uma elevação artificial da ralé, a quem lisonjeiam, diz Boulainvilliers, com a ideia de igualdade” (ibid., p. 173). Tais medidas se completam em um mecanismo social, usual e desenvolvido “na república romana desde Mário até César”, onde a igualdade se torna igualdade de impotência frente ao governo despótico. A conclusão desta primeira fase de dominação se dá “sob Calígula, com o massacre sistemático dos antigos nobres gauleses que resistiam tanto aos romanos quanto a esse rebaixamento que caracterizava a política deles” (ibid., p. 172-3). Em seguida, trata-se de erigir uma nova nobreza, desta vez romana. Essa nobreza não é militar, mas administrativa – o que, é claro, dá azo a um paralelo com a ascensão da nobreza de robe na era moderna. Essa nobreza romana é caracterizada pela aplicação do direito e da língua romana. Tal descrição serve para caracterizar o absolutismo romano como alienígena e violento frente a Gália, de sorte a não servir de precedente, menos ainda de fundamento, para o absolutismo francês do final do século XVII. Descrita essa nobreza romana desmilitarizada, Boulainvilliers aponta para ela como causa de sua própria derrocada. Desprovida de meios próprios para sua defesa, esta nobreza se viu obrigada a recorrer a tropas mercenárias – os paralelos continuam: da mesma forma que a França se viu obrigada a lançar mão desse recurso durante a recente Guerra dos Trinta Anos. Assim, o aumento dos impostos em moeda para pagar essas tropas, seguido tanto de uma 32 Gionatan Carlos PaCheCo desvalorização quanto escassez da própria moeda, resulta em “um empobrecimento geral” (ibid., p. 174). A primeira questão da análise de Boulainvilliers, destacada por Foucault, é encontrar as causas internas da derrota romana. Não se trata de avaliar a legitimidade do regime. Assim, a análise da clássica questão histórica e política sobre a prosperidade e a decadência do Império Romano é, “pela primeira vez, uma análise de tipo econômico-político, […]. É aí que o problema das causas da decadência dos romanos se torna o modelo mesmo de um novo tipo de análise histórica” (ibid., p. 175). A segunda questão é caracterizar a força deste invasor, que menos instruído e numeroso logrou derrotar o maior dos impérios até então. Tal força dos francos é apontada como o exato oposto da fraqueza dos romanos, a saber, a “existência de uma aristocracia guerreira” (ibid., p. 176). Neste passo a figura de Clóvis é importante, pois ele “era a um só tempo o árbitro civil, o magistrado civil escolhido para solucionar as contendas, e depois também o chefe de guerra” (ibid.). Este rei, chefe de guerra, porém, não se tornou o proprietário das terras, que foram divididas entre os guerreiros a título individual. Então, o regime franco se consolida. Desarma os gauleses e forma uma aristocracia “que é uma casta inteiramente germânica” (ibid. p. 180). A ocupação efetiva de suas terras é deixada aos gauleses, “já que, precisamente, os germanos ou os francos não vão ter outra ocupação além de guerrear” (ibid.). O imposto deixa de ser cobrado em moeda e passa a ser cobrado em espécie, o que faz essa divisão social – “o franco com o engenho do gaulês e este com a segurança que o primeiro lhe proporcionava” (ibid.) – prosperar melhor do que quando do regime romano. Temos aí o núcleo daquilo que Boulainvilliers, como vocês sabem, inventou: isto é, o feudalismo como sistema histórico-jurídico que caracteriza a sociedade, as sociedades europeias, desde os séculos VI, VII, VIII até o século XV aproximadamente. Esse sistema do feudalismo não havia 33 Boulainvilliers e seu Ensaio sido isolado nem pelos historiadores nem pelos juristas, antes das análises de Boulainvilliers. É essa felicidade de uma casta militar sustentada e mantida por uma população camponesa que lhe paga tributos em produtos agrícolas que é, de certo modo, o clima dessa unidade jurídico-política do feudalismo. (Ibid., pp. 180-1). liBerdade, igualdade e feudalismo Um problema deveras complexo, que emerge do discurso de Boulainvilliers, é um paradoxo que se reedita até os dias de hoje no seio das elites. Talvez se resuma como o “problema da igualdade e da desigualdade”. Tal paradoxo é, por um lado, o de quererem, contra o povo em geral, manter sua distância e direitos ilimitados e, por outro lado, contra o poder político central, a necessária valorização das “liberdades fundamentais” (ibid. p. 170). “Daí a complexidade do problema e daí, acho eu, o caráter infinitamente mais elaborado da análise que vocês encontram em Boulainvilliers, se comparada com aquela que encontrávamos várias décadas antes” (ibid. p. 171). Contudo, ressalta-se que esse protagonismo de Boulainvilliers não deve ser exagerado, e o devemos tomar, com Foucault, apenas como “ponto de referência e de perfil geral válido provisoriamente” (ibid.) para toda uma constelação de historiadores de seu naipe. A aristocracia franca possuía as terras não apenas como proprietários, mas também como soberanos em seus limites. Ali, sua vontade era a lei. Assim, tal posse territorial era o fundamento da igualdade entre o rei e os seus pares, bem como da desigualdade entre a classe nobre e a plebe. Remota e resumidamente, esta seria a origem do feudalismo. Trata-se, então, de “uma sociedade em que o poder é mínimo, ao menos em tempo de paz, e por conseguinte, a liberdade máxima” (ibid., p. 177). Essa liberdade, longe de ser a liberdade da igualdade, é uma liberdade da dominação, “do egoísmo, da avidez, do gosto pela conquista e pela rapina”, em suma: “é uma liberdade da ferocidade” (ibid.). Neste ponto Foucault se refere a 34 Gionatan Carlos PaCheCo etimologia da palavra “franco”, feita por Freret, caracterizado por ele como “um dos sucessores de Boulainvilliers” (ibid.). Segundo Freret, longe do atual significado de “livre”, “franco” etimologicamente remete a feroz, “tendo exatamente as mesmas conotações que a palavra latina ferox, tem todos os sentidos dela, diz Freret, favoráveis e desfavoráveis” (ibid.). Dotado de um amor à liberdade, tão valente quanto infiel em sua avidez, impaciente e inquieto: “são esses os epítetos que Boulainvilliers e seus sucessores utilizam para descrever esse novo grande bárbaro louro, que faz assim, através de seus textos, sua entrada solene na história europeia, quero dizer na historiografia europeia” (ibid., p. 178). o vaso de soissons e o nascimento do monarca aBsoluto A terceira questão, da análise de Boulainvilliers destacada por Foucault, é as causas da decadência desses senhores feudais. A ascensão e a queda desta aristocracia franca é ilustrada pela história do vaso de Soissons. Esta história é um lugar comum “de discussões históricas infinitas”, a qual Foucault dá por certo que seus alunos “aprenderam em seus livros escolares”. Trata-se de uma história pinçada em Grégoire de Tours (538-594), e seria “uma invenção de Boulainvilliers, de seus predecessores e de seus sucessores” (ibid., p. 179). Em resumo, ela conta o seguinte: Depois de uma batalha, Clóvis, na qualidade de magistrado civil, organiza a divisão do butim. Ele vê um certo vaso de seu gosto e diz que o queria. Um guerreiro protesta, Clóvis não teria direito a nenhuma preeminência, mesmo sendo o rei: “não tens nenhum direito de posse primeira e absoluta sobre o que foi ganho na guerra” (ibid.). Esta parte da história ilustra a fase de consolidação do regime feudal, no qual o rei é chefe de guerra e goza de poder absoluto enquanto ela dura. Finda a guerra, o rei passa a ser tão somente um magistrado civil que precisava ser eleito sem ter direito de sucessão. O caso é que se trata de uma ocupação, a qual justificadamente requer continuada 35 Boulainvilliers e seu Ensaio mobilização militar. Em tal período o rei acumula ambas as funções, de magistrado civil e de chefe de guerra. Esse estado de coisas, porém, prolonga-se, “mas não sem problemas, não sem dificuldades, não sem revoltas de parte justamente dos francos, dos guerreiros francos, que não aceitam que a ditadura militar se prolongue de certo modo até na paz” (ibid., p. 182). Para manter seu poder, o rei recorre a mercenários “que ele vai arrebanhar precisamente nesse povo gaulês que deveria ter deixado desarmado, ou ainda no exterior” (ibid.). Isso resulta em uma pressão sobre a aristocracia guerreira que é ilustrada pela sequência da história do vaso de Soissons: o ressentido Clóvis está passando em revista suas tropas quando reconhece o guerreiro que lhe impediu a posse do tal vaso de Soissons: “pegando seu grande machado, o bom Clóvis racha o crânio do guerreiro, dizendo-lhe: ‘Lembra-te do vaso de Soissons’” (ibid.). Ou seja, servindo de seu posto militar, resolve um “problema civil. O monarca absoluto nasce, pois, no momento em que a forma militar do poder e da disciplina começa a organizar o direito civil” (ibid.). do BárBaro ao cruzado Essa conjuntura ganha maior contorno ao analisarmos o papel de outra fração social, aqueles que efetivamente saíram perdendo com a ocupação franca: a antiga aristocracia gaulesa. Com o fim do Estado romano, destituída de suas terras, ela “tinha um único abrigo, que era a Igreja” (ibid., p. 183). Mais do que se refugiar, ela “desenvolveu o aparelho da Igreja”, “aprofundou, estendeu sua influência sobre o povo”, ao mesmo tempo que cultivou “seus conhecimentos de latim” e do “direito romano, que era um direito de forma absolutista” (ibid.). Por outro lado, a nobreza franca, que falava línguas germânicas e tinha como única função a militar, ignorava o latim “no momento em que todo o novo sistema de direito estava sendo implantado por ordenações em latim” (ibid., p. 184). Segundo Foucault, “Boulainvilliers faz toda uma história da educação da nobreza” (ibid.), mostrando como 36 Gionatan Carlos PaCheCo essa se deixou levar pela influência da Igreja – ela aos poucos foi deixando de ser aqueles grandes guerreiros ávidos por conquistar pela força tudo o que a terra tinha para lhes oferecer, para se tornar cavaleiros preocupados com o alémmundo: As Cruzadas, como grande caminhada para o além, são para Boulainvilliers a expressão, a manifestação do que se passava quando essa nobreza ficou inteiramente voltada para o mundo do além, enquanto no lado de cá, ou seja, em suas próprias terras, no momento em que estavam em Jerusalém, que é que se passava? O rei, a Igreja, a antiga aristocracia gaulesa manipulavam as leis em latim que deviam espoliálos de suas terras e de seus direitos. (Ibid., p. 184). Este, então, é o resumo, do resumo de Foucault, da história contada por Boulainvilliers. Vemos nele as sementes de uma defesa da existência de uma aristocracia guerreira, de uma crítica ao absolutismo monárquico e, por fim, de uma proposta para a própria nobreza a respeito de sua educação e de como ela deve se apropriar do próprio passado. No entanto, não é a narrativa de Boulainvilliers sobre os eventos e suas causas que o permitem constituir “um campo históricopolítico”, mas suas ferramentas analíticas. a guerra como cHave de leitura do social Antes vimos que seu discurso é o primeiro discurso do súdito sobre o poder, emergindo desse movimento a noção de sociedade ou nação como sujeito histórico. É preciso, antes de mudarmos de assunto, descrever a chave interpretativa de Boulainvilliers. A chave de inteligibilidade do discurso históricopolítico de Boulainvilliers é a guerra. Todo o corpo social ou está em uma guerra, ou estruturado segundo o resultado de uma. Antes de Boulainvilliers, a guerra não passava de um episódio violento que interrompia o funcionamento do direito, muitas vezes sendo o caminho pelo qual se vai de um sistema de direito para outro. Agora, ao invés de uma ruptura no direito, a guerra o envolve por completo. O corpo 37 Boulainvilliers e seu Ensaio social é um permanente jogo de forças interessadas, e só pode ser entendida por meio de elementos que o traduzem em seu funcionamento, isto é, em termos de guerra. Não há espaço para se falar em indivíduo ou em direito natural, entidades de todo tipo fictícias frente ao corpo social: o indivíduo só é algo em relação a um grupo ou corpo político; o direito natural não é historicamente localizável. Assim, também a guerra generalizada de Boulainvilliers se distingue da hipotética guerra hobbesiana de todos contra todos, na medida “que vai percorrer tanto todo o corpo social quanto toda a história do corpo social; mas não, é evidente, como guerra dos indivíduos contra os indivíduos, mas como guerra de grupos contra grupos. E é essa generalização da guerra que é”, segundo Foucault, “característica do pensamento de Boulainvilliers” (1999, p. 194). Ainda segundo Foucault, a guerra, não como uma anomalia do social, mas seu princípio de inteligibilidade, está presente pela primeira vez em Boulainvilliers e, “a partir daí, em todo o discurso histórico” (ibidem, p. 195), de sorte que: [...] se Clausewitz pôde um dia dizer, um século depois de Boulainvilliers e por conseguinte dois séculos depois dos historiadores ingleses, que a guerra era a política continuada por outros meios, é porque houve alguém que, no século XVII, na virada do século XVII para o XVIII, pôde analisar, expor e mostrar a política como sendo a guerra continuada por outros meios. (Ibid., p. 198). Foucault afirma que tanto o cálculo político quanto a narrativa história, em Boulainvilliers, apesar de não terem a mesma finalidade, possuem um mesmo objeto, a saber, as relações de força constitutivas do jogo do poder: “Logo, temos em Boulainvilliers, creio eu, pela primeira vez, um contínuo histórico-político” (ibid., p. 202). Esta continuidade históricopolítica “vai fazer com que, daí em diante, falar da história e analisar a gestão do Estado poderá se fazer segundo o mesmo vocabulário e segundo o mesmo gabarito de inteligibilidade ou de cálculo” (ibid., p. 204). 38 Gionatan Carlos PaCheCo História cíclica: contra o natural aBstrato Foucault, entre as ideias de Boulainvilliers que ele vê como inéditas até então, cita “a ideia de uma história cíclica” (ibid., p. 230). Um exemplo disso são as causas da formação do Estado francês, causas de decadência e de ascensão, que são apontadas em seu potencial de repetição. A ideia de história cíclica, contudo, não seria algo de novo no sentido de recorrer à história como fonte de exemplos, isto é, ao passado para entender o presente e o que pode ser o futuro. Sua novidade, digamos assim, está nas implicações de sua visão da constituição do tecido social, suas revoluções e reconstituições, como cíclica. Mais do que ser uma crítica avant la letre de um positivismo histórico, ou de uma dialética teleológica, é uma crítica, em primeiro lugar, é claro, à linearidade da sucessão cronológica teológica (criação, queda, apocalipse); mas, muito mais do que isso, é uma base crítica às noções de estado natural, do homem natural, as quais serão fundamentais nas teorias do direito no século XVIII. O homem natural é o selvagem pré-social e abstrato que descobre em si a potencialidade de trocar com outros selvagens, abrindo assim uma picada para fora de sua selvageria. “No fundo, esse selvagem, nesse pensamento jurídico do século XVIII, bem como no pensamento antropológico dos séculos XIX e XX, é essencialmente o homem da troca; é o trocador, o trocador dos direitos ou o trocador dos bens” (ibid., p. 232). A este “selvagem teórico-jurídico”, Boulainvilliers contrapõem o bárbaro histórico-político26. Ao passo que o selvagem tem por pano de fundo uma natureza à qual pertence, natureza esta tão abstrata quanto ele próprio, o bárbaro “só surge contra um pano de fundo de civilização, contra o qual vem se chocar” (FOUCAULT, 1999, p. 233). O selvagem é vetor de trocas, o bárbaro de dominação. O selvagem goza de uma liberdade absoluta, e é cedendo (trocando) ela que 26 Sobre a distinção bárbaro-selvagem no pensamento francês do século XVIII, ver FURET, 1986, pp. 201-sqq. 39 Boulainvilliers e seu Ensaio busca segurança. Por outro lado, o bárbaro nunca cede a sua liberdade, a qual ele mede por sua própria força e “quando se atribui um poder, quando se atribui um rei, quando elege um chefe, ele o faz não, em absoluto, para diminuir sua própria parte de direitos, mas, ao contrário, para multiplicar sua força” (ibidem, p. 234). Assim, concluímos nosso resumo da exposição de Foucault das ideias de Boulainvilliers. Recomendamos a sequência do curso de Foucault para os interessados nas repercussões da obra de Boulainvilliers na historiografia subsequente (ibid., pp. 236-sqq. Ver também: FURET, 1986, pp. 175-sqq). a filosofia política spinozana em Boulainvilliers A influência de Spinoza sobre as ideias políticas de Boulainvilliers ainda se apresenta como um campo de estudos em aberto. Remetemos, a este propósito, o leitor ao texto seminal, “Boulainvilliers leitor de Spinoza” [Boulainvilliers lector de Spinoza] (2007), de Laurent Bove. Trata-se, nas palavras de Bove, “de um rápido estudo comparativo das abordagens e textos de Boulainvilliers e Spinoza” (BOVE, 2007, p. 376). Neste “rápido estudo” há comparações contundentes de algumas noções, bem como de uma série de trechos textuais. A despeito da brevidade, a conclusão geral é ousada: “O que Spinoza fez em filosofia política (a saber, uma leitura ontológica e criativa do pensamento de Maquiavel contra a teoria hobbesiana da soberania) Boulainvilliers o fez no domínio da história” (ibidem, p. 375). A metafísica que Boulainvilliers expõe em seu Ensaio “organiza a reflexão política” implicitamente. Por outro lado, Bove aponta como “o limite do ‘spinozismo’ de Boulainvilliers” (ibid., pp. 382-3) o seu posicionamento individual no interior do imaginário do corpo social que sua obra descreve. Aos estudos feitos sobre o pensamento político de Boulainvilliers, a influência de Spinoza passa despercebida, ignorada, como no caso de Foucault, ou mesmo recusada, no que nos parece um sinal de incompreensão, desculpável em todo caso, do pensamento político spinozano. Porém, não passou batida pelas análises de François Furet, quando ele comenta 40 Gionatan Carlos PaCheCo o surpreendente que é vermos uma concepção de direito tão desencantada como a vemos em Boulainvilliers. Vale citá-lo: Para atenuar a surpresa que se sente ao encontrar num homem tão representativo das ‘primeiras luzes’ uma identificação tão tranquila do direito ao fato, é preciso lembrarmo-nos das leituras assíduas que ele fez de Spinoza. A frequentação de um sistema em que o direito de Deus se identifica com o seu poder e em que cada indivíduo goza de direitos exactamente proporcionais à sua força predispõe seguramente para que não se coloque o direito no plano dos fins ideais. Tal como a urbe spinozista, a sociedade de Boulainvilliers é a resultante de uma pura relação de forças. A descrição histórica é para ele apenas a tradução de uma situação empírica e deixa de fora qualquer axiologia. (FURET, 1986, pp. 182-3). a vida de MaoMé: uma oBra teológico-política Mathieu Marais (1665-1735), em seus Diários e Memórias (1864, 1868), conta que conheceu Boulainvilliers muito bem e que este lhe emprestou seus cadernos sobre a história de Maomé. Na quarta-feira, dia 21 de janeiro de 1722, o conde pediu seus manuscritos de volta. Na quinta-feira, ao recebê-los, Boulainvilliers teria dito “eu mandei chamar meu encadernador para encaderná-los todos juntos, pois se eu morro, eles serão dispersados” (MARAIS, 1864, p. 227). De fato, na sexta-feira, dia 23, Boulainvilliers morreu, não chegando a completar sua A vida de Maomé [La vie de Mahomed], cujo relato se interrompe na primeira hégira. Essa obra foi impressa pela primeira vez em 1730, composta de três “livros”, sendo os dois primeiros de Boulainvilliers, correspondentes aos cadernos emprestados a Marais, e o terceiro, mais breve e de tom completamente distinto, segundo a edição, composto por alguma “pessoa capaz” não nomeada27. 27 La Vie de Mahomed par M. le comte de Boulainvilliers. Auteur de l’Etat de la France et des Mémoires historiques qui l’accompagnent, Londres [Amsterdam]: P. Humbert, 1730; (Disponível em: <https://gallica.bnf.fr/ ark:/12148/bpt6k108352s>). Aqui citaremos a segunda edição, que saiu já em 1731, pelo mesmo Pierre Humbert, que é idêntica à publicada por François Changuion, talvez apenas diferindo na lista de títulos de cada livreiro adicionada ao final do volume. 41 Boulainvilliers e seu Ensaio A vida de Maomé é uma obra que ocupa um lugar de destaque na bibliografia de Boulainvilliers, mas que é ainda mais notável em meio a todas as obras sobre o Islã e seu profeta publicadas na França antes dela, e mesmo ao longo do século XVIII. Já em 1731 foi traduzida para o inglês e publicada em Londres, de sorte que, sabemos pelas bibliotecas coloniais, sua difusão foi mundial (cf. KIDD, 2018, pp. 9-10). Trata-se da primeira obra ocidental na qual se depreende uma imagem positiva da religião islâmica e de seu profeta. Essa simpatia, expressa na mais tardia das obras de Boulainvilliers, parece destoar do subsequente pensamento iluminista, cujo carro chefe era a denúncia de todas as superstições. Os livres pensadores se valeram de Maomé e das instituições islâmicas como um alvo, deixando no ar que essas suas mesmas setas, velada ou indiretamente, perfuram perfeitamente o corpo da Igreja e de suas instituições. Tratava-se dum caso extremo das iniquidades produzidas pela superstição, da forma mais vil de se sustentar no “asilo da ignorância”, celebremente descrito no Apêndice da Primeira Parte da Ética como a “vontade de Deus”. Encontramos esse movimento elusivo mesmo no Tratado Teológico-Político de Spinoza28. De todo modo, o interessante é notar que em ambos não se trata nunca de simplesmente negar ou atacar a religião, mas de entender a articulação entre ela e a política. Assim, podemos dizer, com Yves Citton (2007), que o que 28 Já no Prefácio do TTP encontramos um movimento nesse sentido, justamente em uma argumentação sobre a finalidade do Tratado, isto é, uma defesa da liberdade de filosofar: “Na verdade (como se prova pelo que já dissemos e como Cúrcio muito bem observou, no Livro IV, cap. X), não há nada mais eficaz do que a superstição para governar as multidões. Por isso é que estas são facilmente levadas, sob a capa da religião, ora a adorar os reis como se fossem deuses, ora a execrá-los e a detestá-los como se fossem uma peste para todo o gênero humano. Foi, de resto, para prevenir esse perigo que houve sempre o cuidado de rodear a religião, fosse ela verdadeira ou falsa, de culto e aparato, de modo que se revestisse da maior gravidade e fosse escrupulosamente observada por todos. Entre os turcos, isso foi tão bem sucedido que até o simples discutir eles consideram crime, deixando a inteligência de cada um ocupada com tantos preconceitos que não há mais lugar na mente para a reta razão, nem sequer para duvidar” (ESPINOSA, 2003, pp. 7-8, grifos nossos). 42 Gionatan Carlos PaCheCo escandalizou a crítica nas respostas que obra de Boulainvilliers recebeu em seguida de sua publicação, não foi tanto a imagem positiva de Maomé, mas a filosofia política ali expressa, que tem como pano de fundo o pensamento de Spinoza. Boulainvilliers reage ao discurso ordinário que basicamente era um ataque aos muçulmanos. Se opõe diretamente ao que ele identifica como os dois princípios sobre os quais a discussão sobre o islamismo se desenrola até então. “O primeiro é que não se acha nenhum motivo razoável em tudo o que eles acreditam ou praticam, de sorte que precisaram renunciar ao bom senso [sen commun] para se submeter a ele” (1731, p. 267-8). Ou seja, era de praxe negar ao muçulmano qualquer racionalidade, empurrá-lo para fora da esfera do que é propriamente humano – tática que ainda repercute no ocidente e em sua periferia sobre este e outros “outros”. Boulainvilliers ataca, enquanto segundo princípio da leitura do senso comum ocidental, a imagem de Maomé como “um impostor tão grosseiro e tão bárbaro que qualquer ser humano teria o dever e a capacidade de aperceberse de sua fraude e de sua sedução” (ibidem, p. 268). De fato, o tema dos profetas e sua caracterização como impostores, que remete à Idade Média, é muito presente no final do século XVII e durante o século XVIII, cujo símbolo máximo é o mais famoso dos manuscritos clandestinos, o Tratado dos três impostores [Traité des trois imposteurs]29. Os princípios políticos spinozanos, extensíveis aos filósofos do Iluminismo Radical, são o de que todo poder de um governo repousa sobre o poder da própria multidão, e de que nenhum ser humano cede seu direito natural, dissipando-o no interior do corpo político. É através de tais princípios que Boulainvilliers operará inversões sutis, mas potencialmente escandalosas, como o enxerto de democracia radical na tradicional imagem do despotismo oriental. 29 Por vezes esse manuscrito levava o título de L’esprit de M. Benoît Spinoza, e chegou a ser atribuído a Boulainvilliers (WADE, 1967), pois efetivamente circulava agregado a textos de Boulainvilliers, marcadamente, o próprio Ensaio. Com efeito, o conteúdo de A vida de Maomé vai na contramão desta atribuição, bem como outras razões (ver BERTI, 1996, pp. 21-22). 43 Boulainvilliers e seu Ensaio [...] se os príncipes têm a vantagem de se fazerem obedecidos em toda a extensão de seus comandos, sem glosa, interpretação ou demora, o povo tem, em compensação, a liberdade de odiá-los e fazer-lhes justiça quando sua paciência for forçada. Isso lança os primeiros na necessidade de exercer uma dominação muito exata e muito severa, e os outros em uma disposição muito iminente de mudar ao acaso a forma de sua escravidão. É assim que suas máximas mais ultrajantes de obediência passiva lutam e se destroem, porque é impossível forçar a natureza. (1731, p. 49). Enfim, devemos notar que ao invés de defender ou atacar a religião, o que interessa a Spinoza e a Boulainvilliers é esclarecer o mecanismo teológico-político em sua função de constituir o social, e em seu fundamento na constituição afetiva da natureza humana30. Se os sentimentos religiosos nos são de certo modo inerentes e respondem a uma necessidade, como a própria sociabilidade o é e faz, não devemos censurar ou rir, devemos entender – parafraseando o 4§ do primeiro capítulo do Tratado Político de Spinoza. Ao mesmo tempo, os abusos dos sacerdotes, suas ambições de se elevar em suas próprias hierarquias, bem como sobre o povo em geral, não se fundamenta em nenhum afeto teológico, mas em paixões bem mundanas. E é isso que nossos filósofos atacam: eles não são estritamente antirreligiosos, tal posição é uma ingenuidade; não obstante, são claramente anticlericais. Tal distinção nos parece importante, pois o sentimento irreligioso por vezes é tomado como chave de leitura das obras de Boulainvilliers, mas que, tomada em sentido estrito, não nos explica seu propósito em A vida de Maomé. Assim, quando Colonna D’Istria (1907), por exemplo, usa exatamente a irrreligião como chave de leitura, ou melhor, fio condutor da obra de Boulainvilliers, se temos em mente a distinção entre a instituição e o campo afetivo da religião, podemos nos valer de sua análise sem grandes desacertos. 30 A este respeito Clare Carlisle nos diz que “Spinoza está revisando radicalmente ideias religiosas, mas não rejeitando elas” (2005, p. 70). Sobre esta e outras questões teológico-religiosas da filosofia spinozana, ver CARLISLE, 2021. 44 Gionatan Carlos PaCheCo astrologia: encanto e desencanto Boulainvilliers foi astrólogo. Este aspecto curioso de sua atividade intelectual parece confrontar sua imagem de spinozano, e mesmo desacreditá-lo como precursor das luzes radicais no século XVIII. Porém, é um fato. Era conhecido na corte por essa atividade, o duque de Noailles sendo um dos mais entusiasmados com ela, segundo Saint-Simon que, por sua vez, lamentava que “um homem tão culto tivesse se apaixonado por essas curiosidades proibidas” (1928, p. 239). Moreri atribui esse engajamento de Boulainvilliers, tanto ao seu gosto pessoal, quanto a complacência dele “para com diversos amigos de grande distinção” (1995, p. 133). A descrição de Boulainvilliers dada por Saint-Simon é generosa – nada comum em suas Mémoires, onde a regra é o cáustico. Ele lamenta não o ter procurado mais seguidamente para instruir-se, e explica que “o medo de dar a impressão de que o procurava para conhecer o futuro me deteve, e tantos outros, de frequentá-lo como gostaria” (1928, p. 240). De fato, em sua biblioteca, Boulainvilliers “teria reunido mais de 200 volumes sobre a filosofia hermética e sobre as ciências ditas ocultas”31. Além disso, ele não só lia e praticava, como também elaborou com certa desenvoltura novos métodos de cálculos para esta “ciência”. De fato, a astrologia foi uma paixão de Boulainvilliers, mas, Saint-Simon nos diz, “por mais apaixonado que estivesse, teve a boa-fé de confessar que não se baseava em qualquer princípio” (1914, p. 249). Colonna D’Istria toma o ataque à religião por fio condutor para o entendimento da obra de Boulainvilliers – dissemos isso a pouco. Assim, D’Istria demarca a irreligiosidade mesmo nos textos astrológicos de Boulainvilliers. Talvez, ele conjectura, tais atividades “fossem simplesmente um véu conveniente para as ideias que, apresentadas sob a forma de devaneios bizarros, escapavam mais facilmente à perseguição” (1907, 31 FRANCK, 1875, p. 203. Esse informação parece provir da mesma fonte e corrigir em um decimal uma nota de rodapé (de M. de Lescure) em Marais, onde lemos: “Ao mês de outubro de 1811, fez-se a venda da biblioteca do Sr. Javiel de Forges, cuja base provinha daquela do conde de Boulainvilliers. Encontrou-se lá mais de 2,000 vol. sobre a filosofia hermética e sobre as ciências ditas ocultas” (MARAIS, 1864, t. 2, p. 227, n. 1). 45 Boulainvilliers e seu Ensaio p. xiii). As propriedades de ser historiador e ser astrólogo se compatibilizariam frente a um inimigo comum: “a intervenção divina que põem o milagre no lugar da lei” (ibidem, p. xviii). O argumento de D’Istria tem lá seu peso. Ele nos diz que basta analisarmos o “método novo que Boulainvilliers quer introduzir no cálculo astrológico” para entendermos que a “ideia de lei histórica se oculta sob a forma de ilusão astrológica” (ibid., p. xx). Assim, essa disciplina não teria tanto a função de fazer previsões místicas, mas de um instrumento para apontar a necessária ciência do passado. Sem dúvida, uma ideia ortodoxa que é uma pedra no sapato de um historiador que se quer independente, é a ideia da criação do mundo e de sua datação por meio das Escrituras. Em sua História do apogeu do Sol [Histoire de l’apogée du Soleil], através de uma [...] interpretação ousada da ideia de período, ele se aproxima imperceptivelmente da ideia de eternidade do mundo, que ele pode negar de passagem e como que para descargo de consciência. Mas o resultado é alcançado: a ideia de criação desaparece e a eternidade do mundo junta-se à eternidade divina. A importância desta passagem é capital. Não é somente a Criação, mas a Providência que é excluída do universo. Sob o pretexto de justificar o cálculo astrológico, Boulainvilliers proclama a necessidade das leis da história; graças à hábil distinção entre causas primárias e causas secundárias, as únicas ativas, as únicas eficientes, não há mais lugar para a vontade divina no universo. (D’ISTRIA, 1907, p. xx). Eis que nos deparamos com um inusitado uso spinozista da astrologia32. Resumidamente, a argumentação 32 Segue a tradução de algumas passagens de Boulainvilliers utilizadas por D’Istria, nas quais afinadamente escutamos seu timbre spinozano: “Porque embora Deus tenha feito tudo quando e da maneira que lhe aprouve, ignoramos e sempre ignoraremos se o que Moisés disse tem outra relação além da terra em que habitamos; no entanto, é muito pouco para dizer; pois está provado que ele não conhecia a verdadeira disposição dos corpos celestes nem mesmo a ordem [économie] comum da Natureza, do que é preciso necessariamente concluir que ao escrever ele não pretendia ensinar senão o que sabia, embora sua fala nos apresente um significado suficientemente indeterminado para que vários dos seguintes filósofos tenham se gabado de que estarem se servindo instrumentalmente de sua narração para autorizar sua opinião particular, razão que levou escritores ilustres e eruditos a admirar e depois nos propor essa fecundidade de significado nas Escrituras como uma das características 46 Gionatan Carlos PaCheCo que Boulainvilliers sustenta é similar à que encontramos no Tratado Teológico-Político, sobre os milagres perturbarem a ordem da natureza, e a identificação que implica entre a eternidade do mundo e a eternidade de Deus nos remete a tese spinozana segundo a qual Deus é causa de si no mesmo sentido que é causa de todas as coisas. os extratos de leitura Spinoza marca forte presença nos Extratos de leitura do sr. conde de Boulainvilliers com reflexões [Extraits des lectures de M. le comte de Boulainviller, avec des réflexions]. Visto que também se trata de uma parte considerável da obra de Boulainvilliers, somando cerca de 32 títulos, convém sabermos o que são estes escritos. É complexo determinar a natureza destes textos. Podemos dizer que não são tratados autorais. São anotações de Boulainvilliers de suas leituras e comentários seus sobre elas. As anotações por vezes são indistinguíveis dos comentários, e carecemos de estudos específicos sobre isso (cf. SEGUIN, 2003, p. 22). Tais textos, informativos sobre as fontes das quais bebia Boulainvilliers, certamente serviam para o uso privado do autor, mas também podemos assegurar que de sua divindade” (BOULAINVILLIERS, H. Histoire de l’apogée du Soleil ou Pratique des règles de l’Astrologie pour juger des événements généraux, fol. 7980. Ms. de la Bibl. Nation., Fonds français, 9126, apud D’ISTRIA, 1907, p. xviii); “Por que eu faria isso contra minha persuasão? Visto que da maneira como concebo o edifício da nossa terra, e se é preciso dizer do mundo inteiro, acredito que agradou a Deus deixar a direção dele às causas secundárias, ao invés de agir imediatamente por sua vontade absoluta, não que ele não tivesse a liberdade ou o poder de fazê-lo, mas porque sua conduta presente seria um argumento invencível para o passado. Ora, essas causas secundárias agem lentamente e por um progresso tão imperceptível que, para produzir o que se passa aos nossos olhos, talvez tenham sido necessários não menos do que uma infinidade de séculos durante os quais se formou essa cadeia inconcebível de causas e efeitos ligados necessariamente uns aos outros. Eu teria, então, insultado meus princípios e minha razão se tivesse atribuído a este momento que chamo o primeiro meio-dia a data da criação; mas, de fato, dei-lhe o nome de período porque não concebo nenhuma duração além da qual não se relacione com outro princípio oculto na eternidade de Deus e que não busco desembaraçar porque o instante em que eu escolhi basta para tudo e por tudo o que aconteceu desde então”. (Ibidem, f. 80, apud D’ISTRIA, 1907, pp. xix-xx). 47 Boulainvilliers e seu Ensaio não se limitavam a isto. Além disso, tal formato de escrita, aparentemente ingênuo e sem maiores consequências, abre uma margem de manobra inesperada para Boulainvilliers tocar em questões tabu sem se comprometer diretamente com o texto. Isso pode caracterizar o feitio desses extratos como uma estratégia de divulgação clandestina, como veremos a seguir. Maria Susana Seguin (2003) faz uma análise desses Extratos, caracterizando-os, para além do inédito, como escritos clandestinos: “a circulação desses textos é comprovada tanto na forma de coleção como, em alguns casos, em cópias separadas, e todos os manuscritos foram copiados por copistas profissionais” (ibidem, p. 23). Hoje contamos com o acesso a seis tomos (coleções) desses Extratos, no site da Biblioteca Nacional da França [Bibliothèque nationale de France] (BnF). Lá podemos ver que os volumes, cada um com cerca de 250 páginas em média, são padronizados entre si e numerados sequencialmente: “situam-se, de fato, na fronteira entre o inédito e a edição, entre o manuscrito e o livro do qual se fazem o eco” (ibid.). As diversas querelas em torno do dogma religioso são um tema recorrente, e os extratos intercalam posições distintas, de modo que “considerados em seu conjunto, os extratos de leitura parecem fornecer ao leitor clandestino do século XVIII verdadeiros dossiês temáticos organizados em torno das grandes questões que interessam o pensamento heterodoxo do qual Boulainvilliers se torna então o símbolo” (ibid., p. 24). A conclusão de Seguin é que esses textos foram importantes “na formação de um espírito clandestino” (ibid., p. 31), visto que “oferecem um base de dados de argumentações acadêmicas que se tornarão verdadeiros lugares-comuns no combate filosófico do século XVIII, como, por exemplo, as teorias cosmológicas de Burnet e a crítica filológica de Spinoza ou de Jean Le Clerc” (ibid.)33. 33 Seguin também dedicou um artigo à análises dos Extratos de leitura que se concentram nas observações de Boulainvilliers feitas a obra de Thomas Burnet, percebendo um “parentesco metodológico entre os extratos de Boulainvilliers e os princípios de interpretação da Escritura que Spinoza enuncia no Tratado Teológico-Político, no capítulo VII, ‘Da interpretação da Escritura’” (2001, p. 125). 48 Gionatan Carlos PaCheCo Tais textos são difíceis de datar. Estima-se que tenham sido produzidos de 1695 ao início do século XVIII. Nos manuscritos copiados, “quase-editados”, da BnF o único que tem alguma indicação de data, até onde conseguimos ver, é o primeiro tomo (NAF 11071) que, depois do primeiro título, e acima do texto está indicado “Janeiro [16]97”, que provavelmente nem se refira a data de composição dos escritos. O Ensaio, por sua vez, autodeclara-se escrito em 1704 ou depois [1712? (BERTI, 1996, p. 33)], confinando a tradução da Ética também a este período, que se supõe ter sido feita antes do Ensaio, na qualidade de material de apoio. Os textos sobre Spinoza nestes Extratos de leitura, que encontramos no segundo tomo de manuscritos da BnF (NAF 11072), são: um extrato de leitura em latim dos Princípios da Filosofia Cartesiana de Spinoza [Principia Cartesiana more geometrico demonstrata per B. SP.]; o Sumário ou breve exposição da opinião de Spinoza sobre a divindade, a mente humana e os fundamentos da moral34 [Abrégé ou Courte expression de l’opinion de Spinoza touchant la Divinité, l’esprit humain et les fondements de la morale]; um (em francês) Extrato do Tratado teológico-político com a refutação [Extrait du Traité théologopolitique de Spinoza avec la Refutation]35. Para além deste tomo de manuscritos, há também uma Exposição do sistema de Benoit Spinoza [Exposition du système de Benoît de Spinoza] (BOULAINVILLIERS, 1973, pp. 213-230), seguido de uma Defesa contra as objeções de Regis [Défense contre les objections de M. Regis] (ibidem, p. 231-252). soBre o ensaio de Metafísica nos PrincíPios de sPinoza O Ensaio se pretende, e é efetivamente, uma apresentação da metafísica de Spinoza despojada da aridez 34 Tradução publicada na Revista Conatus- Filosofia de Spinoza, v. 12, n. 22, ano de 2020. Disponível em:<https://revistas.uece.br/index.php/ conatus/article/view/10720>. 35 Em outros manuscritos o extrato é separado da refutação, esta recebendo o título de Refutação de alguns de seus sentimentos [Réfutation de quelques-uns de ses sentiments] (cf. BOULAINVILLIERS, 1973). 49 Boulainvilliers e seu Ensaio matemática da Ética. Seu objetivo é torná-la acessível aos estudiosos. Boulainvilliers afirma que metade desses savants eram incapazes de compreender a Ética na estrutura em que ela se apresenta. Neste grupo, ele não hesita em incluir Bayle, e o faz categoricamente: “eu não tive dúvidas”. Isso não é nada banal, pois Bayle “foi o mestre mais escutado dos filósofos do século XVIII” (D’ISTRIA, 1907, pp. xli-xlii). O que o fez levar este empreendimento a sério, ou a gota d’água, foi a distorção da metafísica de Spinoza por missionários que, da China, assimilaram-na às opiniões de Confúcio. Não precisamos ter dúvida de que tais missionários não tiraram tal comparação de um cotejo da letra spinozana com a de Confúcio, e pode ser muito bem o caso de que, assim como grande parte da República das letras, o único acesso deles a Spinoza tenha sido o Dicionário histórico e crítico de Bayle (cf. MOREAU, 1995, p. 410). É no verbete “Spinoza”, deste que foi conhecido como “Dicionário Incomparável” de Bayle, que encontramos a origem dessa interpretação que, desde sua publicação em 1697, tornou-se hegemônica. Em suma, acreditamos que o Ensaio é uma reação à leitura de Bayle, intelectualmente engajada com o spinozismo, muito longe de ser um exercício diletante destinado apenas ao uso privado. o ensaio manuscrito Sabemos que cópias manuscritas do Ensaio circulavam clandestinamente enquanto Boulainvilliers ainda era vivo, do mesmo modo que seus Extratos de leitura e outros textos. A circulação de obras clandestinas é naturalmente envolta por mistérios. Um ponto que não podemos explicar completamente, mas para o qual temos evidências, é o fato de já por volta 17121714 o Ensaio circulava integrando um curioso compilado de manuscritos junto com a Vida de Spinoza atribuída a Lucas, e com o Tratado dos três impostores, o mais famoso dos manuscritos clandestinos (cf. SCHWARZBACH & FAIRBAIRN, 1996, p. 108). Não fosse esse volume, diríamos que a circulação do Ensaio foi bem restrita, provavelmente correspondendo àquele 50 Gionatan Carlos PaCheCo “grande prelado” do qual nos fala a Advertência. Esta audiência provavelmente era a já mencionada sociedade de estudiosos em torno do duque de Noailles, à qual pertencia Freret. Não obstante, é curioso que o conteúdo elusivo da Advertência, por seu lado, não parece se direcionar a essa audiência “cativa”, por assim dizer. Por isso, Sheridan (1996) levanta a questão de se “Boulainvilliers sabia de antemão que sua obra alcançaria um público relativamente amplo e preparou para si uma defesa no caso de uma intervenção da polícia” (ibidem, p. 324). Com efeito, há evidências de que cópias do Ensaio tenham chegado até a Holanda neste período36. Vejamos o Ensaio mais de perto. a advertência do ensaio A Advertência que abre o Ensaio parece um texto cuidadosamente elaborado. O primeiro parágrafo já vem carregado de noções como suspeita, obrigação, medo. Todo esse preâmbulo é caracteristicamente clandestino, carregado de sentidos e da antecipada “hipocrisia voltairiana”. Por outro lado, é um prefácio que retira qualquer margem para o anonimato e até fornece informações bibliográficas e cronológicas do autor. Antes de falar da Opera Phostuma, Boulainvilliers lembra que, muito tempo antes, empreendeu uma Refutação do Tratado Teológico-Político, que foi comunicada ao tal “grande prelado”. Esta comunicação, então, parece ter se dado antes da morte de sua primeira esposa (1696) e da de seu pai (1697). Segundo Simon, essa Refutação é o primeiro texto de Boulainvilliers sobre Spinoza e teria começado a ser escrito por volta de 1695 (SIMON, 1973, p. 10). Ela se encontra num dos volumes dos Extratos de leitura (NAF 11072), como Extrato do Tratado teológico-político com a refutação. Nesse escrito há resumos de cada um dos seis primeiros capítulos do TTP, 36 “De fato, há razões para acreditar – uma anotação na cópia de Reimmann do Essai de métaphysique – que, apesar das guerras, Boulainvilliers enviou, ou intermediários obtiveram, para o Barão Hohendorff uma cópia do Essai de métaphysique e outros materiais da França” (SCHWARZBACH & FAIRBAIRN, 1996, p. 108). 51 Boulainvilliers e seu Ensaio seguidos de breves refutações. À primeira vista, na Advertência essa refutação é tratada como uma obra interrompida, tendo saído de suas preocupações essa “ideia”, até lhe chegarem duas refutações e o artigo de Bayle sobre Spinoza. Porém, não faz muito sentido que a referência seja à Refutação, já que o Ensaio não trata de completá-la. O curioso é que nos parece que Boulainvilliers está se referindo, por esta “ideia”, ao “ardor que deve animar todo homem capaz de conhecer e de defender a verdade”. Levemos, pois, adiante essa hipótese. Esse ardor teria sido despertado pelas refutações e pelo artigo de Bayle. Porém, ele nos diz que o que o fez tomar a sério a empreitada do Ensaio foram os escritos, inspirados em Bayle, que comparavam Confúcio com Spinoza. Acreditamos que colocar o sistema de Spinoza em evidência pareceu algo sério para Boulainvilliers, pois, mais do que interpretar erroneamente e fazer dele um espantalho para ser refutado (algo demasiado comum), o que estava em curso era a desocidentalização do pensamento de Spinoza. Spinoza quis desvincular a filosofia da teologia, agora a sua filosofia estava sendo desligada do pensamento ocidental como um todo. A seriedade do esforço de Boulainvilliers foi no sentido de fechar a vereda pela qual Bayle estava metendo a filosofia spinozana, e à qual, muito mais tarde, a leitura hegeliana lhe arrastou com vigor renovado. Não por acaso o tom cartesiano do início do Ensaio: ele mostra o pertencimento a uma tradição, a continuidade e o aprofundamento do pensar saído do Renascimento, que passou por Maquiavel, Hobbes e pretendeu levar a Nova Filosofia às suas últimas consequências. A hipótese levantada acima nos pareceu tentadora demais para não ser trazida aqui. Porém, carece de aprofundamento. Na verdade, Boulainvilliers parece ter o sistema de Confúcio na mais alta conta, ainda que mais em termos de sabedoria do que de filosofia. Assim, pode ser que os escritos dos missionários, ao fazerem a comparação, impulsionaram Boulainvilliers em direção a Spinoza, ao passo 52 Gionatan Carlos PaCheCo que textualmente ele estaria é defendendo Confúcio – o qual retorna quase ao fim do Ensaio em harmonia com Spinoza37. No terceiro parágrafo, é de se notar, Boulainvilliers nomeia apenas Bayle – um desterrado e não-eclesiástico, mas também o mais célebre – para exemplo de quem compreendeu mal Spinoza. A seguir, ele distingue duas caracterizações das recepções da obra de Spinoza, a saber, horror e/ou obscuridade: “ele nada havia escrito de inteligível ou que não merecesse um completo desprezo”. É interessante perceber como ele rejeita ambas caracterizações, ininteligível e desprezível, no parágrafo seguinte. É comum notar o irônico da desculpa dada por Boulainvilliers para ter adquirido as obras póstumas de Spinoza, a saber, seu interesse pela Gramática Hebraica ali contida – como a desculpa de alguém que, surpreendido ao comprar uma revista adulta, alega o interesse pelas entrevistas. Porém, essa dissimulação superficial, por sua vez, parece dissimular uma mais profunda. Ao falar deste apêndice raramente lembrado da obra spinozana, tido como de menor importância em relação aos demais escritos, longe de caracterizá-lo como ininteligível, ele nos diz que “ela me parecia mais fácil” e, ainda, longe de ser desprezível, também lhe parecia “mais sensata do que aquelas que eu tinha visto até então”. Nesse mesmo parágrafo, Boulainvilliers cita sua indiferença até o ano de 1704, no qual leu Opera Posthuma, em seguida transformada em indignação. Apresenta o Ensaio, 37 Ao falar da sabedoria no Prefácio, provavelmente escrito em 1700, de seu Ideia de um sistema da natureza [1683?], Boulainvilliers afirma “eu até não sei se não é preciso concedê-la aos bárbaros, visto que, religião à parte, jamais apareceu um sistema como o de Confúcio” (1975, p. 151). Quase no encerramento do Ensaio, na altura de sua exposição da mecânica spinozana das paixões, em meio a qual Boulainvilliers se concentra na gênese do sentimento religioso, Confúcio retorna: “Tudo isso é puramente mecânico e tão consequente de nossa constituição que é possível se surpreender que, entre as várias religiões do mundo, só pudesse ser encontrada uma (Confúcio) que, sem ajuda da revelação, ao rejeitar igualmente os maravilhosos sistemas e fantasmas da superstição e do terror, pretende ser de tão grande utilidade para a conduta dos homens, sem ter sido estabelecida senão sobre o dever natural” (1731, pp. 303-4; 1973, p. 206). 53 Boulainvilliers e seu Ensaio então, como obra fruto da indignação e feita para provocar indignação. A princípio, parece indignar-se com “o livro mais perigoso que já foi escrito contra a Religião”. Porém, o curioso é que se levarmos em conta o que o fez retornar ao tema e levá-lo a sério, podemos ler essa indignação como direcionada a “metade dos savants” que não compreendem a Ética, também mencionados nesse parágrafo. Também vale notar que na sequência da Advertência, Boulainvilliers se vale do mote spinozano de comparar a verdade com a luz, uma sendo o índice de si mesma e do falso, outra de si e das trevas. Enfim, parece que essa Advertência, presente nos manuscritos que circulavam clandestinamente, ao passo que serviria para escusá-lo perante a censura, também funcionaria como uma espécie de “apito de cachorro” para os livre-pensadores. o ensaio é uma oBra acaBada? O Ensaio tem sido caracterizado como uma obra incompleta. O seu verbete na Wikipédia possui até um subtítulo no qual se refere a uma terceira parte que Boulainvilliers teria anunciado, mas não escrito38. Não obstante, a própria circulação do manuscrito, em alguma medida, parece indicar a completude, ou ao menos que seu autor estava satisfeito com sua incompletude. De nossa parte, até o presente, acreditamos que o Ensaio é uma obra finalizada. Acreditamos que os três tratados anunciados na Advertência já se encontram no Ensaio assim como ele está. Nossa hipótese é de que a Primeira parte contém dois deles, ao passo que a Segunda parte seria o terceiro. Na Primeira parte, cujo título é Do Ser em geral e em particular, há um tratado sobre o Ser em geral e outro sobre o Ser em particular, divididos explicitamente no texto estabelecido por Renée Simon (BOULAINVILLIERS, 1973, p. 119), que comparou os diversos manuscritos existentes39. De 38 Ver: <https://fr.wikipedia.org/wiki/Essai_de_m%C3%A9taphysique>, acesso 5/2/2023. 39 Cf. BOULAINVILLIERS, 1973, p. xvii. Nós, porém, não encontramos essa divisão nos manuscritos a que tivemos acesso, nem na versão impressa em 1731, a qual até omite a menção aos três tratados da Advertência. 54 Gionatan Carlos PaCheCo fato, no último parágrafo do que, então, poderíamos chamar de primeiro tratado, Boulainvilliers concluí o que intencionava explicar sobre o “sistema da Divindade” e anuncia o próximo tratado, que se proporá a “aprender o que somos, assim como o resto do universo, buscaremos doravante, na mesma ordem e com as mesmas precauções, de que forma os seres particulares puderam ser produzidos e o que eles são precisamente”. Consequentemente, o que identificamos como segundo tratado começa remetendo o leitor às primeiras definições e sobretudo ao primeiro axioma da Ética. No que chamamos de segundo tratado da Primeira Parte, que trata do sobre o ser em particular ou modal, logo no início, após definir mente, pensamento e ideia, Boulainvilliers precisa que não está distinguindo a ideia da sensibilidade, depois do que afirma: “Isso será o objeto da segunda parte deste tratado, nem em relação aos julgamentos que elas contêm, que serão o assunto da terceira”. Sheridan toma esta frase como evidência de que haveria um projeto para uma terceira parte do Ensaio que trataria dos julgamentos contidos nas ideias. Consequentemente, assume ao mesmo tempo que a Segundo Parte do Ensaio é sobre as ideias enquanto são distintas dos afetos, o que não é o caso: pois esta parte da obra tem por tema as paixões, as quais lhe dão o título. Uma leitura mais atenta revela que Boulainvilliers, neste início do segundo tratado, está dividindo este mesmo em três partes em relação ao conceito de ideia. A indagação inicial é sobre o estatuto ontológico das mentes e de sua participação na ideia de Deus, o que se conecta a unidade mente-corpo, isto é, a composição do humano. Isso tudo corresponde bem à Parte 2 da Ética, até a chamada pequena física entre as proposições 13 e 14. Depois disso vem a tematização da distinção da ideia em relação a sensibilidade: “porque essa percepção dos objetos externos é muito diferente daquela que se tem do que se passa em si mesmo, chamo de imagem a ideia de objetos que permanece após a impressão”. Segue-se disso a descrição das limitações imposta pela própria natureza de nossas ideias, 55 Boulainvilliers e seu Ensaio inelutavelmente unida às afecções do corpo: “É evidente que as afecções do corpo são de tal maneira o objeto da mente que não se tem percepção alguma que não seja pensamento, nem reciprocamente algum pensamento que não seja percepção”. Dessa conclusão spinozista, que parece antecipar o famoso adágio kantiano, segue a crítica às noções abstratas de faculdades e a terceira parte deste tratado, isto é, a abordagem da ideia em relação ao julgamento: “a sensação e a ideia resultante são os princípios necessários de nossos julgamentos”. Quase no final da Primeira Parte do Ensaio, lemos: “Quase nada resta a dizer para completar a anatomia da mente humana, senão que, resumindo as várias proposições deste tratado, […]”. Daí até o final desta parte completa sua caracterização da mente humana, sua unidade com corpo, dando conta até da eternidade dos seres particulares, desenvolvida por Spinoza no final da quinta parte da Ética. As “proposições deste tratado” que ele resume são restritas às proposições do segundo tratado incluído na Primeira parte do Ensaio, o que dá razão adicional à nossa interpretação da estrutura e completude desse escrito. A hipótese da incompletude pode ser descartada com base no que já afirmamos. Não obstante, podemos ainda fundamentar a nossa leitura por dois aspectos desta obra. Em primeiro lugar, lembremos que o Ensaio de Metafísica nos princípios de Spinoza é um ensaio. O caráter ensaístico do texto não parece pretender dar conta definitiva dos pontos que toca, mesmo naqueles em que se demora e especula para além do que o próprio Spinoza fez. Apesar disso, todos os três tratados são suficientemente estruturados e seus últimos parágrafos dão ideia de encerramento, inclusive o final: “o que eu disse até agora é suficiente para ter uma certa noção da mecânica de nossas paixões”. Registramos, porém, que Sheridan discorda dessa leitura, vendo nesse parágrafo um final abrupto que “pede uma sequência” (1996, p. 327). Em segundo lugar, lembremos que é um ensaio de metafísica. Esse é o ponto mais importante, pois, basicamente, 56 Gionatan Carlos PaCheCo Boulainvilliers é acusado de ter desprezado as partes edificantes da Ética e ter substituído a teoria do conhecimento de Spinoza por um empirismo pessimista (ou cético). Tais leituras nos parecem superficiais, ainda que, de fato, a epistemologia e a moral não sejam o foco do Ensaio, porém estão ali, tanto o conhecimento intuitivo quanto o amor a Deus, e de maneira muito próxima a como Spinoza as coloca. No final da Primeira parte, há uma abordagem em termos puramente metafísicos da doutrina spinozana da eternidade dos modos finitos, a qual demonstra que percorreu o caminho completo da Ética acerca do ser em particular, que é como Boulainvilliers por vezes se refere aos modos. Em suma, o Ensaio é composto de três passos: do ser geral: a definição da substância e seus efeitos necessários; da produção dos seres em particular e sua relação com o ser geral; e, por fim, do interior dos seres particulares: da mecânica das paixões como consequência da natureza imanente. A possibilidade de se tratar de uma obra incompleta, confessamos, não nos veio à mente antes de vermos mencionada por Wade (1967) e, mais tarde, por Sheridan (1996). Sobre esta incompletude, Wade baseia em parte sua atribuição do Tratado dos três impostores [Traité des trois imposteurs], ou O Espírito de Spinoza [L’esprit de Spinoza], à Boulainvilliers, de modo que esse misterioso e célebre manuscrito seria a terceira parte do Ensaio. Tal atribuição foi fartamente contestada, especialmente pela escrita tosca do Tratado em comparação à sofisticação da redação do Ensaio (cf. BERTI, 1996), o que afasta ainda mais a possibilidade dele ser a esperada terceira parte. Para Sheridan essa terceira parte jamais foi escrita. A autora, a bem da verdade, não defende a incompletude do Ensaio, pois somente se vale dela para apoiar sua tese sobre a origem do Ensaio, mais precisamente, sobre a influência do Breve Tratado nela. Especula-se que Boulainvilliers teria lido o manuscrito do Breve Tratado, dali tendo tirado a estrutura para o Ensaio. Trata-se de uma hipótese interessantíssima com repercussões sobre a história do próprio Breve Tratado, 57 Boulainvilliers e seu Ensaio do qual só nos aparecem rastros no século XIX. Contudo, não há nenhuma evidência concreta (SHERIDAN, 1996, p. 328). Não obstante, essa já é outra hipótese que, independente de sua confirmação, não tem peso na questão da completude do Ensaio e, em todo caso, é dispensável afirmar que o Ensaio teria três partes como o Breve Tratado, no curiosíssimo caso deste ter tido alguma influência naquele. o ensaio e a oBra de spinoza Por outro lado, é certo afirmar que a Ética não era o único material de Boulainvilliers em sua exposição. Ele leu a Opera Posthuma inteira, de modo que é possível encontrarmos no Ensaio ecos da correspondência e demais textos. O Tratado da Emenda do Intelecto (TEI) certamente tem seu papel (cf. POLLOCK, 1912, p. 363), o começo do Ensaio por um recenseamento das ideias nos lembra dele tanto quanto das Meditações cartesianas40. Boulainvilliers parece ter tomado o TEI como uma forma de prefácio à Ética, assim como Lívio Teixeira (2001) o caracteriza. Ao contrário da Ética, que inicia abruptamente pelas definições das categorias mais centrais se valendo do método sintético, o começo do Ensaio, como o TEI, percorre um caminho de reflexões analíticas, em direção a ideia que deve servir de pedra de toque das demais, naturalmente, a ideia de Deus. Nesse sentido, Boulainvilliers atalha a retórica meditativa de Descartes e o conteúdo moral do início do TEI, como que indo diretamente ao §21 dele, estabelecendo como certezas indubitáveis as noções de extensão, sensação e pensamento. A certeza do “cogito spinozista” não é uma certeza solipsista de uma existência particular, mas implica também um conhecimento do que é comum entre tudo o que existe e o eu pensante. Também é certo que o Ensaio não se restringe estritamente à letra spinozana. O próprio título da Primeira Parte, Do Ser em geral e em particular, bem o uso ali das noções de universalidade e abstração, possuem um sentido 40 D’Istria ressalta particularmente que o início do Ensaio não tem semelhança alguma com a Ética, lembrando-lhe o PPC de Spinoza e o Discurso do método de Descartes (1907, p. xxviii). 58 Gionatan Carlos PaCheCo muito mais pedagógico do que revelam um intuito de exegese ortodoxa. Tal intenção, porém, não parece trair o conteúdo spinozista do texto, pois, não obstante, a crítica spinozana sobre os universais e abstrações tem posteriormente seu lugar. Outro caso do início do Ensaio, no qual Boulainvilliers parece se distanciar de Spinoza, é o da distinção operada entre os seres, através das três noções indubitáveis que acompanham a certeza da própria existência (pensamento, extensão e sentimento), a saber, entre seres vivos e não vivos. Trata-se de uma distinção abstrata, feita via negação, e problemática, segundo Boulainvilliers, pois o que vive se nutre do que é morto, havendo aí uma conversibilidade que nos é obscura. Com efeito, a noção de vida, longe de estabelecer uma distinção inicial que terá desdobramentos, possui somente a função de etapa para alcançar a noção que é a chave interpretativa de Boulainvilliers, a saber, a existência enquanto a propriedade mais comum e universal. Pois, incluindo a nós mesmo, de tudo quanto percebemos ser pensante, senciente ou meramente extenso, sempre o percebemos acompanhado de existência. Nesta mesma reflexão, há um segundo caso de “transgressão” do spinozismo, que a crítica ao Ensaio acentuou mais gravemente, a saber, a hipótese do Ser tomado abstratamente. Aqui, confunde-se esta hipótese com a implicação de um caráter fictício à substância. De fato, é uma etapa de um caminho, em certa medida original de Boulainvilliers, para chegar à ideia de Deus. Se, por um lado, a existência é universalmente comum a tudo, ao mesmo tempo tudo o que conseguimos perceber “perece, ao menos quanto à forma”. A existência não pertence à essência de nenhuma coisa particular. Assim, a própria ideia de existência, a ideia mais comum de todas, precisa estar contida na essência de um ser absoluto, o qual nenhuma percepção nossa é capaz de envolver e nenhuma imagem que possamos formar pode representar, de sorte que precisamos nos contentar com a evidência intelectual. 59 Boulainvilliers e seu Ensaio O “Ser abstrato” começa a ganhar concretude pela propriedade de existência necessária: a partir daí não é mais uma ideia universal que formamos abstraindo os diferentes e variados seres particulares e os reunindo em uma mesma noção. A posterior caracterização da substância como o ser cuja propriedade essencial é a existência necessária é de todo conforme a definição da Ética, porém, da forma como Boulainvilliers a coloca, exclui os atributos da essência da substância, passo que é visto como heterodoxo ou transgressor em relação a filosofia de Spinoza. Este não é lá um ponto sobre o qual é simples julgar. Não há apenas o risco de estarmos disputando por palavras ao invés de ideias, como também se trata de uma questão interpretativa das mais delicadas. O caso é que não encontramos o conceito de atributo na definição spinozana de substância e, mesmo que encontremos o conceito de substância na definição de atributo, Boulainvilliers poderia sustentar seu ponto. Enfim, há também momentos do Ensaio em que Boulainvilliers é bem autoral em argumentos, exemplos, digressões e até mesmo noções. Na crítica à noção de Criação, demora muito mais que Spinoza, é minucioso na apresentação da posição que defende e seu ataque beira ao entusiasmo. O destaque à noção de preguiça, por exemplo, é de todo sem paralelo na obra spinozana, por vezes apontado como um ponto fraco de sua leitura. A presença pessoal de Boulainvilliers também é notável na descrição da admiração, junto à qual ele aproveita para elaborar toda uma gênese do sentimento religioso. recepção do ensaio Tanto a imagem intelectual de Boulainvilliers quanto a de Spinoza mudaram e seguem em suas mutações ao longo dos séculos. Antes de falarmos da recepção ao Ensaio de Boulainvilliers, precisamos anotar o fato das mudanças do imaginário (social) intelectual. Nossas concepções compartilhadas sobre um autor ou uma obra vão se modificando ao longo do tempo, seja por condições históricas e materiais, seja por novas descobertas individuais ou coletivas, seja por aparecimento de novas fontes primárias. Isso é natural 60 Gionatan Carlos PaCheCo e saudável. O caso é que quando tais mudanças se dão em relação a obras ou autores marginais, que lograram resistir ao tempo e escapar do esquecimento, é ainda mais desafiador dialogar com a tradição interpretativa que está cristalizada em um “paradigma”, por assim dizer. Paralelo a isso, não temos a pretensão de nos pôr acima ou fora de nosso próprio “paradigma”, como se de cima de nosso galho quiséssemos desenhar toda a floresta. Enfim, por fase ou paradigma, queremos dizer aqui recortes temporais arbitrários que pressupõem uma uniformidade de ideias que é no máximo abstrata. Assim precavidos, não obstante, precisamos admitir sua utilidade. Vejamos, pois, um deles. Em seu tempo, Paul Janet (1823-1899) distinguiu três fases da história do spinozismo na França. No século XVII, Spinoza foi objeto de curiosidade de alguns espíritos-fortes [esprits forts], de execração e horror para os crentes que não viram senão um ‘monstro’. No século XVIII, salvo raras exceções, foi desprezado e negligenciado como obscuro, bárbaro, indecifrável. No século XIX, graças sobretudo à influência alemã, regressou honrosamente, encontra novos discípulos e é tratado com respeito até mesmo por seus adversários. (JANET, 1882, p. 109). Das “raras exceções” do XVIII, Janet cita Boulainvilliers. Descreve-o como um “amador”, “aventuroso e excêntrico41, 41 Encontramos ecos dessa caracterização em Pollock, que ressalta o caráter curioso ou pitoresco (curios, oddly) do Ensaio (1912, p. 363), bem como mais tarde em Spink (1960), sobre o qual falaremos adiante. Nos parece provável que esta alegada falta de seriedade, ou mesmo este caráter diletante que se tenta atribuir a Boulainvilliers, apoia-se naquilo que Saint-Simon descreveu como o seu maior defeito, a saber, “trabalhar em muitas coisas ao mesmo tempo, e desistir ou interromper um trabalho iniciado, seguidamente muito avançado, para começar outro” (SAINTSIMON, 1923, p. 240). Mais recentemente, Stefano Brogi se propôs a remover essa pecha de amadorismo de Boulainvilliers, mostrando, “por outro lado, que, por mais ecléticos que sejam, os interesses filosóficocientíficos de Boulainvilliers não foram cultivados de forma amadora. Nenhum de seus contemporâneos estudou com maior seriedade e aprofundamento os diferentes aspectos da filosofia de Spinoza, em suas implicações metafísicas, morais e religiosas” (BROGI, 1993, p. 20), e por aí vai. 61 Boulainvilliers e seu Ensaio tanto em metafísica quanto em política” que quis veladamente fortalecer o pensamento de Spinoza e acabou por enfraquecêlo. Janet caracteriza o Ensaio como uma exposição difusa, em cuja prosa parafrástica não encontramos a grandeza que vemos nos escólios e apêndices da Ética. Tal elogio à Spinoza, mais até do que sua depreciação de Boulainvilliers, caracteriza sua inserção no que o próprio Janet chama de terceiro período do spinozismo na França. O Spinoza de Janet (cf. JANET, 1883) e de seu tempo vem “honrosamente” pintado pelo idealismo alemão que, resumidamente, constrangido em explicar spinozismo de Lessing (cf. SOLÉ, 2011), inventaram um Spinoza do Grande Todo panteísta, o maior dos racionalistas dogmáticos, um virtuose do fracasso. Essa caracterização de Spinoza adentrou o século XX e ainda ecoa em nossos dias. Tal fato tem mais consequência sobre a atual marginalização do Ensaio, do que seus mais de 300 anos de idade. Os trabalhos de Renée Simon sobre Boulainvilliers publicados nos anos 1940, conjuntamente a reedição do Ensaio e a edição de outros textos do conde nos anos 1970, foram responsáveis por uma espécie de redescobrimento dos escritos filosóficos de Boulainvilliers. Ao mesmo tempo, há neles uma negligência notável e compreensível acerca do pensamento de Spinoza e da influência dele em Boulainvilliers. A arrancada para a redescoberta deste pensador, enquanto pensador spinozano, deu a partida com o freio de mão puxado. Em alguma medida, isso explica o Ensaio ter sido desprezado durante tanto tempo enquanto texto da tradição spinozana. Não nos cabe aqui desatar nós apertados ao longo de tantas décadas. Porém, não podemos deixar de mencionar a influente leitura de J. S. Spink (1960), por sua vez, influenciada pelos trabalhos de Simon. Trata-se de uma leitura ambígua, pois caracteriza o texto de Boulainvilliers como não spinozano, mas, ao mesmo tempo, medievalmente escolástico e modernamente empirista (SPINK, 1960, pp. 62 Gionatan Carlos PaCheCo 268-271). É preciso mencioná-la, não obstante, por ter feito escola, digamos assim, tendo ascendência, entre outros (cf. BENÍTEZ, 1992; FESTA, 1996), no já citado texto de Sheridan (1996) e no recente livro de Diego Donna (2021). Pierre-François Moreau talvez tenha sido o primeiro em, por assim dizer, sair em defesa do Ensaio, afirmando que esta “obra não merece de forma alguma o desprezo no qual a têm Renée Simon e P. Vernière; ela manifesta uma compreensão bastante fina do sistema” (1994, p. 502). Segundo Moreau a recomposição da Ética efetuada pelo Ensaio se dá “a partir de uma meditação sobre a existência”, de modo que encontramos um spinozismo que alguém pode chamar “heterodoxo, mas que testemunha um reconhecimento bastante seguro das estruturas do sistema” (1994, p. 514). Podemos dizer, dando sequência a classificação de Janet, que Moreau pertence a um quarto e contemporâneo período do spinozismo na França, inaugurado na década de 1960, o qual por vezes chamamos de Renascença spinozana. Porém, como os demais, o atual período do spinozismo ainda não nos forneceu estudos especialmente dedicados ao Ensaio, de modo que contamos apenas com comentários feitos de passagem, como os de Moreau, ou como o de Yves Citton que nos diz que o Ensaio de Boulainvilliers “talvez permanece até hoje a introdução mais acessível ao pensamento spinozista” (2007, p. 319). Se hoje nos vemos razoavelmente livres da atravessada leitura bayle-hegeliana de Spinoza, dispondo de diversas interpretações concorrentes, podemos, sem o perceber, estarmos valendo-nos de outros e novos antolhos. É justamente por isso, por esta descontaminação sem igual (para não descambarmos a falar de pureza), que o Ensaio tem especial valor para a tradição interpretativa do pensamento de Spinoza42. E é também por isso que a resenha que 42 No mesmo sentido, D’Istria aponta para o valor da tradução de Boulainvilliers da Ética spinozana, pois se trata efetivamente de uma fonte que nos revela o pensamento de Spinoza “na forma que ele poderia ter tido para os contemporâneos de Spinoza” (1907, p. vii). Sobre a tradução francesa disponível no momento em que escreve, afirma: “Se a estimável 63 Boulainvilliers e seu Ensaio analisaremos a seguir, publicada no mesmo ano em que o Ensaio foi impresso, merece nossa atenção em particular. recepção imediata do ensaio impresso Em 1731 o Ensaio aparece impresso no meio de um curioso volume que tinha por título Refutação de Spinoza [Réfutation de Spinosa]. Na capa propriamente dita, este título tem a seguinte versão extendida: “Refutação dos erros de Benoit de Spinoza / Pelo Sr. de Fénelon Arcebispo de Cambray, pelo P. Lami Beneditino e pelo Sr. conde de Boulainvilliers, com a A Vida de Spinoza, escrita pelo Sr. Jean Colerus, Ministro da Igreja Luterana de Haia; aumentada com várias particularidades retiradas de uma Vida Manuscrita deste Filósofo, feita por um de seus amigos”. Além disso, indica-se Bruxelles como lugar de impressão e François Foppens como editor. Felizmente, contamos com uma resenha crítica desse volume, feita no mesmo ano de 1731, publicada na Biblioteca arrazoada das obras dos eruditos da Europa [Bibliothèque raisonnée des ouvrages des savans de l’Europe] (doravante apenas BE). A BE foi uma publicação que funcionou de 1728 até 1753, com uma periodicidade trimestral. O mais interessante é que logrou tamanha produção e longevidade em um anonimato que podia se estender entre os seus próprios colaboradores anônimos. A grande maioria dos artigos não possuem qualquer indicação de autoria, algumas exceções contém iniciais como assinatura. A resenha que nos interessa, a da Refutação, é uma dessas exceções e ao final estão lá as inicias “AR” que, porém, não nos reduzem este anonimato (cf. CANDAUX, 1991). Chamemos, pois, nosso resenhista anônimo de AR. Trata-se de um autor muito familiarizado com a obra de Spinoza e com textos spinozistas. Sobre o primeiro texto tradução de Émile Saisset nos deixa seguidamente decepcionados, é em parte porque a hostilidade leal do espiritualista francês em relação a Spinoza contribuiu para lhe tornar alheio o pensamento do filósofo” (ibidem, p. vii). De fato, este tradutor, em seu verbete generoso dedicado a Spinoza (SAISSET, 1875, pp. 1652-1668), no Dicionário de ciências filosóficas testemunha o quanto, em comparação ao Ensaio de Boulainvilliers, regrediu o entendimento da filosofia de Spinoza mais de um século depois. 64 Gionatan Carlos PaCheCo do volume, A Vida de Spinoza de Colerus, que no volume diz ter sido “aumentada com muitas particularidades” de um manuscrito suposto de um amigo de Spinoza, o resenhista denuncia que devia ter por título: “Vida de Spinoza por um de seus amigos aumentada com algumas particularidades do Sr. Colerus” (BE, 1731, p. 164, grifo nosso). Por isso, critica o editor do volume que elogia Spinoza a ponto de sacralizálo. AR diz acreditar “piamente que o compilador não teve o desejo de favorecer o spinozismo” (ibid., p. 167), mas ressalva o perigo de tais elogios “sobre a mente do vulgo” (ibid., p. 168). Então, ele passa para o catálogo das obras de Spinoza oferecido ao fim da biografia. Aqui, AR se mostra uma autoridade no assunto. Corrige a lista, fala das edições do Tratado Teológico-Político e da Opera Phostuma, dá os títulos das edições elusivas publicadas com nomes trocados, no que inclui a tradução francesa do TTP, especulando sobre a autoria dela (Saint Glain ou Lucas?), em todo caso, para AR “é muito certo que ela é do mesmo que escreveu a Vida de Spinoza” (ibid., p. 169) 43. Em seguida lista diversas obras publicadas na tentativa de refutar o spinozismo (ibid., pp. 171-3), como que mostrando as opções que o editor tinha à mão, mas preferiu dar o falso título de Refutação ao escrito de Boulainvilliers, “visto que, como diz o próprio autor no Prefácio [Advertência], não é senão o sistema de Spinoza reduzido em método e posto em linha” (ibid., p. 173). Em 1731 já circulavam algumas obras impressas de Boulainvilliers, “do qual conhecemos bem a superioridade do gênio e a sagacidade nas matérias mais abstratas” (ibid.). AR vai descrevendo o conteúdo da Advertência do Ensaio. Ele chega no ponto em que Boulainvilliers deixa a tarefa de refutação para um metafísico mais hábil. Aqui o resenhista faz uma comparação espirituosa com a atitude do também 43 Atualmente costuma-se atribuir a biografia a Lucas e a tradução a Saint Glain. 65 Boulainvilliers e seu Ensaio astrólogo Palingenius (1500-1543)44 que, em seu livro muito célebre Zodiacus vitae, “Livro VII, circa fin, diz quase a mesma coisa e nas mesmas circunstâncias; pois este autor, depois de ter formado poderosas objeções contra a Criação e a noções comuns, ao invés de as responder, ele diz simplesmente, “Alguém certamente se juntará a mim para desmontálas e refutar totalmente seu sistema [Non deerit qui recte istis respondeat olim / Quaesitis, nodosque omnes dissolvat ad unguem].” (BE, 1731, p. 174)45. A próxima comparação é ainda mais interessante. Boulainvilliers fala sobre como seu esforço de esclarecer esse sistema errôneo é mais útil para a verdade que ao próprio erro.“Este raciocínio do Sr. de Boulainvilliers”, diz AR, “lembra perfeitamente aquele de um certo autor que não nomearemos aqui, visto que ele se esforçou muito para se ocultar” (ibid., p. 175), citando na sequência o início da Advertência do Tratado dos três impostores. A comparação é contundente, de fato, pois a Advertência do Tratado, apesar de muito mais incisiva que a do Ensaio, igualmente cita a forma violenta com que a Inquisição busca vencer as ideias na falta de boas razões. Comparação feita, AR se distancia da posição de Boulainvilliers e do autor anônimo se valendo do clichê do “iluminismo moderado” de que tais ideias são perigosas ao povo, dizendo inclusive que “há mesmo verdades de uma tal espécie, que podem ser mais perigosas de manifestar ao povo do que deixá-lo em seu erro” (ibid., p. 175). Segue-se no texto uma lista de perigos trazidos pelas ideias spinozistas. Moderado, contudo tolerante, AR 44 O Dicionário histórico e crítico lhe dedicou um verbete, no qual nos informa, por exemplo: “É certo que ele falou contra os monges e contra os abusos da Igreja com extrema liberdade; e daí vem que apareça no Index librorum prohibitorum entre os hereges de primeira classe, sob a pecha de luterano. Diz-se até que seu cadáver foi desenterrado e queimado sob o pretexto de heresia” (BAYLE, 1697, p. 721). 45 PALINGENII, 1600, p. 184. Nos valemos para a tradução livre desses versos da tradução francesa, em prosa, publicada também nesse ano de 1731, p. 295: “Quelqu’un sans doute se joindra un jour à moi pour les confondre & réfuter totalement leur systeme”. 66 Gionatan Carlos PaCheCo desaprova “todas as violências que se fazem contra aqueles que não pensam como os outros” (ibid., p. 178). Mesmo sem “conhecer mais particularmente” o compilador, AR afirma que seguramente “é ou um ignorante, ou um enganador, ou um spinozista”. Não se conforma com o fato do editor do volume ter dado “sob o enganoso título de Refutação de Spinoza, um sistema completo de cerca de 330 páginas da mais danosa doutrina deste ateu; sistema melhor seguido e mil vezes mais perigoso do que os escritos dos quais é extraído” (ibid., p. 179). Eis que temos em primeira mão uma caracterização geral da recepção do Ensaio impresso como um sistema spinozista fluído: “totalmente esclarecido, e totalmente desprendido da secura matemática” (ibid., p. 180). O perigo representado pelo texto é atenuado, bem como a condenação ao editor, pois, por mais esclarecido e fluído “que ele seja, é ainda bastante abstrato e metafísico para não ser entendido por todo mundo indiferentemente; é preciso ter a mente um pouco geométrica e não ignorar os termos escolásticos para vê-lo em todo encadeamento, e é nisso que nem todo mundo é capaz” (ibid.). AR também descreve o conteúdo do Ensaio (ibid., p. 180-2): sua estrutura dividida em duas partes e o desenvolvimento dos princípios centrais, “dos quais ele tira as terríveis conclusões que confundem e invertem a ideia que sempre tivemos de Deus, da religião, da alma, etc.” (ibid., p. 182). Nesta breve análise, vemos apontadas, pela primeira vez, características do Ensaio frequentemente ressaltadas em comentários posteriores. Sobretudo, é de se notar que AR já capta o tom cartesiano do Ensaio – “ele se serve da via da análise, como o fez Descartes” (ibid., p. 180) –, e, em alguma medida, a preeminência da noção de existência neste sistema. Daí em diante, a resenha segue sobre as demais peças componentes do volume. No último parágrafo, revela o editor, surpreendentemente um “eclesiástico católico romano, famoso 67 Boulainvilliers e seu Ensaio na República das Letras, etc. em uma palavra o abade Lenglet” (ibid., p. 186), a quem esse trabalho de compilação não trará muita honra, diz AR, e nem teria sido isso que ele tinha em vista, mas sim apenas o lucro. Por fim, também já desmascara o suposto lugar de impressão (Bruxelas), afirmando que foi impressa em Amsterdã. 68 Gionatan Carlos PaCheCo referências BOULAINVILLIERS. La vie de Mahomed; avec Des Refléxions sur la Religion Mahometana, & les Coutumes des Musulmans. 2. ed. Amterdam: François Changuion, 1731. BOULAINVILLIERS. 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Tendo mesmo comunicado esta obra a um grande prelado, foi aplaudida de tal forma que me fez esperar que a execução do desígnio que eu havia formado * Estabelecemos o texto nos valendo tanto das edições impressas (sobretudo pela de 1731), quanto dos manuscritos. Fontes impressas utilizadas para o texto estabelecido: “Réfutation de Spinoza”. In: Refutation des erreurs de Benoit de Spinoza, Bruxelles: François Foppens, 1731, pp. 151–320. Henri de Boulainviller, “Essai de métaphysique dans les principes de B[enoît] de S[pinoza]”, éd. Renée Simon, in Œuvres philosophiques, éd. Renée Simon, La Haye, Martinus Nijhoff, 1973, pp. 83-212; Fontes manuscritas: La vie, Essay de metaphisique et l’Esprit de Sp. Premier Partie. Bibliothèque nationale de France (BnF). Département des manuscrits: Français 12242. Disponível em: <https:// gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b9065143m>; Essay de métaphysique. Seconde Partie. Bibliothèque nationale de France (BnF). Département des manuscrits: Français 12243. Disponível em: <https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/ btv1b10720549s>; Essai de Métaphysique Dans les Principes de B*** de Sp.**. Bibliothèque nationale de France (BnF). Département des manuscrits. Français 9111. (Disponível em: <https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b9006780>). 77 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers pudesse ser útil ao público. Mas vários embaraços domésticos que sobrevieram por ocasião da morte de meus parentes mais próximos interromperam esta obra, eu teria aparentemente perdido a ideia, se não me tivesse caído nas mãos, algum tempo depois, duas refutações da Ética de Spinoza: uma composta pelo Padre Lamy, beneditino, e o outra manuscrita, por um holandês que eu acreditei ser sociniano. O artigo de Spinoza no dicionário de Bayle me fez ainda prestar uma nova atenção ao sistema desse judeu. Porém, o que acabou por me fazer o considerar como um trabalho sério, digno de ser posto ao lume para poder em seguida ser validamente refutado, foi a publicação da doutrina dos chineses nos escritos dos Senhores das Missões estrangeiras, interessados em fazer conhecer que as honras que se rendem no Oriente à Confúcio não são mais legítimas do que as que se renderia na Europa à Spinoza, visto que ambos sustentavam as mesmas opiniões. Admito de passagem que as refutações que eu havia lido anteriormente não me satisfizeram e que, pelo contrário, elas me induziram a julgar, ou que os seus autores não quiseram colocar a doutrina que combatiam em uma evidência suficiente, ou que a entenderam mal. E, em particular, eu não tive dúvidas de que Bayle estaria nesta última posição. Porém, aconteceu mais tarde que, tendo me encontrado em companhia de várias pessoas de saber e piedade conhecida, ouvi sustentar por alguns que a doutrina de Spinoza era capaz de aniquilar todas as religiões e, por outros mais numerosos, que a cristandade nada teria a temer de um tal sedutor, visto que ele nada havia escrito de inteligível ou que não merecesse um completo desprezo. Estava muito indiferente a este problema e muito contente de ignorar os prós e os contras, quando as obras póstumas de Spinoza me caíram nas mãos em 1704, por ocasião de uma gramática hebraica que se achava ali, e que me determinou a comprar o livro inteiro do qual ela fazia parte, porque ela me parecia mais fácil e mais sensata do que aquelas que eu tinha visto até então. Enfim, o grande lazer e a estadia no campo 78 Advertência me tendo convidado a ler toda a obra, ela me pareceu duma tal consequência que, na expectativa de algum dia eu mesmo combater o livro mais perigoso que já foi escrito contra a Religião, ou ao menos na esperança de engajar um metafísico mais hábil do que eu a refutá-la, empenhei-me em despojála daquela aridez matemática que torna a leitura impraticável até mesmo para metade dos estudiosos [savants], a fim de que o sistema, posto em uma linguagem comum e reduzido às expressões ordinárias, pudesse estar em condições de excitar uma indignação semelhante à minha e, por esse meio, obter verdadeiros inimigos a tão perniciosas princípios. Segui, a respeito das obras póstumas, a mesma conduta que havia tido sobre o Tratado Teológico-Político, com exceção da refutação, ou seja, expliquei fielmente a doutrina que deve ser o objeto desta mesma refutação. E, de fato, de que serviria diminuir a força das razões que se opõem a nós? Nós não trabalhamos pela verdade? E poderia ela carecer de evidência, de certas cores com as quais seu contrário pudesse ser embelezado? Levei, então, o raciocínio de Spinoza o mais longe que pude levá-lo. Não negligenciei adornar seus pensamentos além do que ele mesmo fez e, em geral, não alcancei nada além de enfraquecer suas demonstrações. Cheguei mesmo a levar a sinceridade ao ponto de sustentar os sofismas evidentes, que seu livro contém um grande número, pelos meios mais plausíveis que pude encontrar na lógica natural em que fui instruído. Sempre persuadido de que nada pode manchar a verdade e que, para fazê-la brilhar com toda claridade que lhe pertence, é bom às vezes opor a ela, senão as densas trevas (porque o contraste seria muito forte), ao menos as falsas luzes de uma tempestade impetuosa que por alguns momentos parece destinada a deslumbrar a razão e a natureza. Tenho, além disso, esta íntima confiança de que é impossível que a boa causa seja abandonada, e que a Providência possa deixar de suscitar na multidão de seus verdadeiros adoradores algum defensor tão judicioso quanto zeloso, que reduzirá este falso 79 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers sistema ao pó e fará triunfar tão realmente a verdade quanto ela é aqui artificiosamente atacada. Há muito tempo desejo ter alguma parte nesta glória; mas como os anos começam a diminuir minha vivacidade e outras ocupações mais convenientes ao alcance de meu gênio parecem destinadas a me prender pelo resto da minha vida, é sem ciúme que cedo a um escritor mais douto e mais eloquente a honra de obter para a religião uma vitória menos equívoca do que aquela que a violência da Inquisição lhe fez obter, pela supressão dos livros ou suplícios daqueles que os compuseram. Não posso também abdicar ainda da esperança de aqui contribuir, ao menos de maneira indireta, seja por minhas solicitações junto a pessoas que estimo capazes de ter êxito em tal obra, seja pela comunicação do que já esbocei contra a impiedade de Spinoza. 80 PRIMEIRA PARTE do ser em geral e em particular u não sei qual será o fruto de minha ideia, mas me levou E a recolher neste escrito o detalhe das coisas que acredito conhecer, e daquelas que ignoro ou das quais duvido. Pareceme que aprenderei por este meio mais perfeitamente o que eu já sei, ou que me instruirei melhor sobre minha ignorância, o que pode servir a dois fins: ou para afastar a presunção pelo conhecimento preciso de minha fraqueza, ou para aliviar a aflição da incerteza pela evidência das razões que tornam a ignorância e a dúvida invencíveis. É usual ter em conta as suas receitas e as suas despesas. Por esse meio, organizam seus negócios, evitam surpresas, asseguram-se contra as inclinações e tendências mais naturais que levariam à desordem e ao esmorecimento de suas forças. Mas eu creio essa espécie de conta muito mais necessária em relação aos conhecimentos da mente, os quais sendo o bem e a possessão, em relação às consequências que deles se tira, que são as receitas deste fundo, e em relação ao uso que se faz deles em aplicações particulares, que são propriamente a despesa. E é nisso que me engano muito ordinariamente, crendo saber o que não sei, tirando conclusões sem princípios e muitas vezes construindo sistemas quiméricos dos quais não reconheço a frivolidade senão depois de ter depurado todo o trabalho de sua construção. Eis porque que tomei o desígnio de prestar conta a mim mesmo de meus conhecimentos verdadeiros, não daqueles 81 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers que me instruíram dos eventos passados pela leitura da história, ou daqueles que são fruto da experiência, que se adquire durante o curso ordinário da vida, nem, enfim, de todos os assuntos particulares que caem sob os sentidos, mas sobre os conhecimentos primeiros e gerais que devem servir de fundamento a todos os outros, e mesmo de regra para a conduta. Tal é o primeiro de nossos conhecimentos que consiste na convicção que temos de nossa existência. Conhecimento acompanhado de sentimento, assegurado pelo axioma comum: “Eu penso, logo existo”, ou “eu sou pensante”, contra o qual não creio que se possa razoavelmente formar um incidente, sob o pretexto da forma da argumentação que ali está contida, porque seu objeto é uma noção indubitável. Ora, o meu sentimento, que me prova a minha própria existência, faz-me conhecer com a mesma certeza a de várias outras coisas. Não sou o único homem que pensa; vendo vários outros que também pensam e que me fazem conhecer os seus pensamentos por suas expressões, como reciprocamente eu lhes comunico os meus. Eu também não sou o único que tem sentimento. Encontro a mesma propriedade em várias coisas além dos homens. Pode ser mesmo que o seu sentimento seja acompanhado de pensamento; ao menos parece que elas têm uma voz para expressá-lo. Mas sua expressão não me é inteiramente inteligível. Assim, ignoro o detalhe de seus pensamentos. Enfim, não sou o único ser que tem extensão; vejo corpos extensos como o sou eu mesmo, mas esses corpos não parecem ter nenhum sentimento, o que me faz concluir que eles também não têm pensamento. Dessas três observações das quais estou tão certo quanto de minha própria existência (pois se fundam sobre o mesmo sentimento que me faz conhecer que eu sou), concluo que há seres cuja primeira propriedade parece-me ser a extensão sólida que me é comum com eles, e que podemos dividir esses seres em três classes: aqueles que pensam evidentemente como eu mesmo penso; aqueles que sentem de tal maneira 82 Primeira parte do ser em geral e em particular que se poderia conjecturar que eles também pensam, sem podermos, todavia, assegurarmos perfeitamente, e aqueles que não pensam de todo. A experiência que nasce dos diversos tipos de sensações cuja memória se conserva internamente em mim, ensiname que a terceira espécie é mais geral do que as outras, não somente porque todos os corpos são extensos, mas porque aqueles cuja distinção se apreende pelo sentimento e pelo pensamento, perdem um e outro depois de certa duração, e caem na espécie da simples extensão sólida. Concebo, então, com certeza que há algo em mim e em todos os seres da primeira e da segunda espécie distintos da simples extensão, e que é o princípio do sentimento e do pensamento. Também sei que este princípio de distinção é nomeado vida, e que ela é o fundamento de uma segunda divisão de todos os seres: viventes e não viventes. Mas se quero buscar o que que é a vida, em que ela consiste, o que a produz em mim, o que faz que uma erva, um grão, um fruto, etc., não a possuindo eles mesmos, todavia, a conservam em mim ao me servirem de alimento, encontro-me tomado por tantas dificuldades, e as minhas ideias se tornam tão confusas que me apercebo que esta busca é um abismo do qual é impossível me desprender senão dando aos meus pensamentos uma precisão que eles não têm, mas que eu me gabo de poder adquirir por uma distinção exata das coisas que devo considerar, as arranjando de acordo com suas diversas propriedades e estabelecendo claramente suas conveniências e desconveniências. Ao seguir esta rota, reconheço logo que todos os seres têm propriedades comuns e que têm singulares, e as primeiras, como mais gerais, me parecem exigir a minha primeira atenção, porque concebo muito bem que nada podemos concluir do particular ao geral para fazer um raciocínio sólido, mas que, ao contrário, as proposições gerais se aplicam a todas as coisas particulares. Ora, de todas as propriedades dos seres das quais tenho conhecimento, a mais simples e a mais geral é a da 83 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers existência. Porém, como eu não poderia raciocinar sobre esta propriedade concebendo ela atrelada à certas coisas e dependente delas, sem as conhecer elas mesmas de antemão (o que não pode ser, a menos que me limite às considerações particulares que evito pela razão precedente), eu mudo a forma da minha ideia, e em vez de me deter na existência como simples propriedade, esforço-me por conceber uma ideia universal que abrace tudo o que existe e, assim, formo aquela do Ser tomado abstratamente, sem atenção a qualquer coisa particular, nem mesmo à minha própria existência, que entrará no seu ranque com aquelas outras. Me basta, na visão que proponho, ter a ideia geral de que há alguma coisa de existente, e isso é o que chamo de Ser abstrato e geral, o qual devo examinar as propriedades antes de qualquer outra coisa. A primeira que descubro aqui é a necessidade de sua existência: pois o Ser não seria Ser se não existisse. No entanto, observo de início que tudo o que cai sob meus sentidos perece, ao menos quanto à forma, depois de uma curta duração. Ora, visto que cessa de existir; visto que eu mesmo tenho o sentimento de ter começado recentemente, concluo racionalmente que todos os seres particulares não têm essa existência necessária que faz a propriedade essencial do ser absoluto. Concebo, então, perfeitamente que há outra coisa do que aquilo que cai sob meus sentidos, e o concebo tanto melhor quanto não o posso conceber senão como existente, embora, de fato, eu não o veja. Estou, então, convencido pela razão de que há um Ser absoluto e necessário, e pelo sentimento que há vários particulares que não são nem absolutos, nem necessários, e que, todavia, existem uns após outros em uma certa ordem, cuja disposição não me é conhecida, mas onde observo sensivelmente que a matéria de um torna-se ordinariamente a matéria do outro, por meio de uma mudança muito medíocre que se dá na forma de suas partes. Essa reflexão me levaria facilmente a duvidar de que os seres particulares fossem verdadeiros seres, se eu não concebesse distintamente que esse nome lhes pertence 84 Primeira parte do ser em geral e em particular enquanto existem, e que não o perdem senão quando cessam de existir. Mas, por outro lado, visto que é a diferente disposição da matéria que lhes dá a existência, não posso julgar que o ser pertence realmente a essa matéria? Todavia, reconheço de início o meu erro, pois, além de amarrar o ser à matéria, excluiria o pensamento e a extensão não sólida, o que seria absurdo, bem vejo que não posso separar esta matéria dos seres nos quais ela existe, nem a conceber sem a despojar de sua universalidade ao determiná-la à alguma existência particular. No entanto, tiro do raciocínio precedente duas conclusões, que a minha só experiência me daria por certas, se a demonstração não fosse sensível por ela mesma: a primeira, que tudo o que é concebido como necessariamente existente deve ser em si e por si, e a segunda, que o que não existe necessariamente existe em outro e por outro, e não pode ser concebido senão por outro. No que é preciso bem distinguir a ideia racional de uma coisa do sentimento que dela temos: pois bem sinto, por exemplo, que existo, mas não concebo que poderia existir por mim mesmo. Eu bem sinto minha existência, mas não poderia separá-la de suas causas, seja daquelas pelas quais ela começou a ser, seja daquelas que a conservam e a contêm. Ora, entre os seres que não têm existência própria, vejo duas espécies: uns imitam a natureza do Ser absoluto no que parecem ser por si mesmos. Não é senão a razão que descobre o contrário. Outros são manifestamente em outro e não podem ser separados de seu sujeito. Um homem, uma árvore, qualquer outra coisa são da primeira espécie; a figura, a cor, etc. são da segunda. E isso me é tão evidente que não falta a esse respeito senão lhes impor nomes definidos que ocasionalmente possam remeter as ideias precisas à memória. O Ser é, então, um nome geral, sob o qual compreendo tudo o que é, e tudo o que pode ser. Mas conhecendo distintamente que todos os seres não existem da mesma maneira, havendo um necessário e muitos não necessários, 85 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers e que entre estes alguns têm uma existência distinta, que podemos chamar de subjetiva, porque ela serve de sujeito para outros seres que nunca tiveram uma existência separada, concluo dividindo a natureza do Ser: Que tudo o que é, é em si e por si, caso em que o chamo substância; Ou é distintamente em outro e por outro e, doravante, chamo modo de substância; Ou, enfim, o que está em outro e por outro sem distinção, e neste caso ele é acidente. Parece-me que essa divisão é perfeita, pois nada fica de fora dela. Tenho uma ideia muito distinta das duas últimas espécies de ser, porque posso escolher exemplos à vontade. Eu mesmo sou um ser existente, embora não necessário: pois bem sinto que comecei e que devo terminar. Julgo, então, que tenho uma existência emprestada, visto que não a tenho por mim mesmo: e daí concluo que sou um ser modificado ou uma modificação do ser, determinado em certa forma, em certa duração. Eu tenho uma existência comum com o Ser absoluto, consequentemente eu a tenho dele, não podendo têla recebido realmente de outros homens semelhantes a mim, que não possuindo outro poder senão aquele que fruo por meu turno, tão cegamente quanto eles o fazem. Tenho, além disso, as mesmas propriedades que reconheço nos outros homens: a extensão, a figura, o pensamento, o sentimento. Sinto minha existência efetiva e separada de todas as outras; sou, então, mais do que o que entendo pelo nome de acidente. A respeito de minha figura, de minha cor, etc., bem vejo que elas não me são essenciais, visto que elas mudam. No entanto, elas subsistem comigo realmente, mas sempre indistintamente, porque não podem ser separadas de mim, nem de qualquer outro sujeito em que as vejo existir. Não concebo a redondeza separada de um corpo redondo; portanto, é com razão que distingui a espécie dos acidentes das outras duas. 86 Primeira parte do ser em geral e em particular Mas quanto ao Ser absoluto a que chamo substância, embora eu conceba evidentemente que ele existe, não tenho nenhum sentimento positivo, nem percepção sensível, senão na relação que todos os outros seres têm com ele por participarem de sua propriedade de existir. Se quero o conhecer sem me contentar com simples negações, eu me lanço em um embaraço e uma confusão de ideias que me parece insuportável. Pois se tomo a extensão pela substância, porque, de fato, tudo que vejo participa da extensão, imediatamente percebo que excluo o pensamento que nada tem em comum com ela, e se, por outro lado, dissesse que o ser pensante é a substância, excluiria a extensão. Devo, portanto, concluir que o Ser Absoluto não é pensamento nem extensão, excluindo um do outro, mas que a extensão e o pensamento são atributos ou propriedades do Ser absoluto. Começo assim a reconhecer que a dificuldade de formar uma ideia correta deste Ser não vem de alguma inevidência, mas da desproporção de sua natureza e a minha. Não posso o tomar senão em partes e, todavia, concebo perfeitamente que ele não as tem. É preciso, então, que eu evite, ao considerálo, tudo o que pode ter relação com uma ideia particular, e que eu me apegue simplesmente às propriedades gerais pelas quais ele me é conhecido, as quais, para evitar a ambiguidade, nomearei atributos, pelo que entendo o que a mente conhece da substância, ou aquilo sem o qual dela não haveria ideia. O primeiro desses atributos é a existência necessária; pois, 1º se eu pudesse conceber o Ser universal ou absoluto como inexistente, não poderia conceber que houvesse no mundo qualquer existência. Consequentemente, os axiomas: eu penso, tenho um sentimento, logo existo, seriam falsos, o que não pode ser. 2º É tão próprio ao Ser existir que, se não existisse, não seria. Não posso, então, conceber sua existência senão como necessária. O segundo desses atributos é a unidade; pois além do fato de que a ideia do ser é única, não pode haver várias substâncias de mesmo ou diferente atributo. Não com os 87 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers mesmos, porque se são iguais, são uma. Não com diferente, porque o atributo é o que a mente concebe da substância como lhe sendo próprio. Mas é próprio da substância existir necessariamente e por si mesma, segundo sua definição, visto que é o atributo sem o qual eu não teria nenhuma ideia. Concluo, então, que não há e nem pode haver substâncias de diferente atributo. Além disso, se houvesse diversas substâncias, elas seriam diferentes em seu ser, em seus atributos ou em seus modos. Não pode ser pelo primeiro que é suposto e reconhecido como comum, nem pelos dois outros que são acidentais à substância: pois ela subsiste por si mesma, isto é, independentemente de todas as modificações, às quais ela precede por natureza, visto que elas não existem senão nela, e mais independentemente ainda de nossos conhecimentos ou julgamentos. A Substância é, então, uma. Se alguém objetar que existem várias e que elas diferem entre si por sua essência, imediatamente reconheço que isso não pode ser, visto que a existência é a essência do Ser absoluto ou da substância, seguindo a definição. Não me detenho em provar que esses termos são equivalentes: pois a própria definição o garante. Assim, concluo que, supondo várias substâncias, elas não poderiam diferir umas das outras em sua essência, ou então não seriam substâncias. Acrescento ainda que a definição de substância dá uma ideia tão precisa do que ela é que, como ela subsiste em si e por si, também é concebida por si mesma, sem qualquer ideia de outra coisa. Então, visto que ela não tem nada em comum com qualquer outra coisa, devemos concluir que ela é uma. Esta prova poderia se estender ainda mais, mas eu permaneço bastante convencido da unidade do Ser por isso só. Assim, passo aos outros atributos. A substância sendo uma e necessária, concluo que ela é infinita, pelo que entendo aquilo a que nada pode ser acrescentado: pois, por um lado, todas as modificações sendo acidentais à substância, não têm proporção com ela, 88 Primeira parte do ser em geral e em particular e portanto: não a podem limitar, nem aumentar. Por outro lado, sendo a sua essência necessária, segue-se que tudo o que é necessário lhe pertence e, por conseguinte, que ela é infinita, visto que nada lhe pode ser acrescentado de mesma natureza. Digo ainda que sendo uma, segue-se que ela não pode ser limitada e, portanto, que é infinita, segundo uma outra definição de infinito. Além disso, pela palavra fim, ou término [terme], entendo uma negação de existência para além dele; mas, ao contrário, a substância afirma e contém a existência por sua definição. Ora, a mesma propriedade não pode ser afirmada e negada de um único objeto. A substância, então, não é finita. Então, ela é infinita. O mesmo princípio ainda me leva a reconhecer que a substância é independente, 1º) porque ela é uma; 2º) porque sendo necessária, ela é sua própria causa de existir e agir; 3º) porque é infinita. Julgo ainda que ela é simples e indivisível, porque se ela tivesse partes, elas seriam da mesma natureza ou de natureza diferente que ela; no primeiro caso, haveria várias substâncias, o que não pode ser; no segundo, o Todo não poderia ser identificado com suas partes, contrariando a noção de Todo. Concluo também que ela é eterna, porque sendo necessária, não concebo nenhum tempo em que ela pudesse não existir. E é o mesmo com sua imutabilidade. Ao passo que se ela pudesse mudar, o seria a respeito de sua essência ou de suas propriedades. Mas sua essência é necessária e suas propriedades são consequências de sua essência. Portanto, se pudessem mudar, sua essência teria que mudar, o que é contraditório. Julgo ainda que, visto que o Ser absoluto deve conter todas as propriedades do Ser, segue-se que a substância é não somente extensa, mas que pensa necessária e infinitamente. De fato, não tenho ideia do Ser, senão por meio da extensão e do pensamento. Esses são, consequentemente, os únicos atributos sensíveis pelos quais ele me é conhecido. O Ser 89 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers é, então, pensante e extenso e, consequentemente, tal é a substância. Não é, todavia, sem certa relutância que concedo tantas prerrogativas ao Ser que nomeio de substância; mas a sua unidade, que é de certo modo o fundamento de todas as outras, é também a que mais fere a minha imaginação. Pois se eu concebo tão bem que é da essência do modo não poder existir sem a substância, como é evidente que há modos incompatíveis, não parece que podemos evitar reconhecer que diversas substâncias lhes devem servir de sujeito, visto que, segundo a noção mais comum, um mesmo ser não pode ser encontrado ao mesmo tempo vivo e morto, redondo e quadrado. Isso é incontestável. Mas respondemos que, assim como as figuras redondas e quadradas são modalidades da extensão, da mesma maneira a extensão e o pensamento são atributos da substância. Ora, como seria absurdo dizer que a extensão ou o pensamento não podem ser modificados senão de uma forma, por causa que eles não poderiam admitir de uma só vez figuras ou sensações incompatíveis, parece-me também que, sob este mesmo pretexto, não devo concluir que uma mesma substância não possa ser o sujeito de diferentes modificações. Como não é preciso imaginar um sujeito da extensão e do pensamento diferente do Ser pensante e extenso, não é necessário tampouco atribuir a tal ou tal figura um sujeito diferente da extensão, tampouco a tal ideia ou sensação um sujeito diferente do pensamento. Sendo que essa extensão é um atributo do ser e a figura é uma modalidade deste atributo, é-me fácil compreender que uma tal modalidade não pode ser redonda e quadrada ao mesmo tempo. Não que lhe falte diferentes atributos ou diferentes substâncias para estabelecer essas figuras, mas porque, segundo a noção mais comum, nada de qualquer espécie que seja pode simultaneamente [ensemble] ser e não ser. No entanto, levemos a objeção ainda mais longe. A extensão, digamos, não é concebível sem partes e, 90 Primeira parte do ser em geral e em particular consequentemente, é preciso dizer, ou que cada uma dessas partes é uma substância, ou que a extensão em geral não é uma substância. Mas, se nos atentarmos a esta última parte do argumento, podemos provar o contrário de várias maneiras. 1º A extensão não pode ser concebida como uma modalidade da substância, porque se retiramos a extensão, não podemos conceber a substância. 2º A extensão não pode ser um atributo da substância, a menos que seja ela mesma substância, porque o atributo não lhe sendo distinto, ou separado, posto que pela definição é o que a mente conhece da substância. 3º Se a extensão não fosse substância, seria distinta da substância, caso em que ela não poderia adquirir suas dimensões (pois o não-ser não pode produzir o ser, o nãoextenso não pode se tornar o sujeito da extensão, senão distinto da substância). Tudo o que é extenso é substância. Esta objeção parece ter alguma força. No entanto, para resolvê-la, basta uma inteligência verdadeira dos termos. E 1º a extensão substancial não pode ser concebida por partes, do contrário não seria mais o que ela é, pois seria modificada em suas partes. 2º O atributo não é a substância; mas, como convimos, ele é aquilo pelo qual a mente tem noção dela. Ora, se julgo que é próprio à substância ser indefinidamente extensa, julgo também que toda extensão determinada por suas dimensões, ou por uma figura, não é senão uma extensão modificada, e não a extensão substancial, a qual está em questão. Concebo o mesmo do pensamento. Pensar em geral é um atributo do ser: pois conheço a existência pelo pensamento, como pela extensão, mas este ou aquele pensamento determinado em um ser particular é uma modificação deste atributo. Tal ser [particular], nem qualquer outro, não é substância, nem porque é extenso, nem porque pensa ou sente. Pois esse não entra na definição da substância, mas é pensante, ou extenso, ou ambos juntos, porque é um modo da substância, à qual esses dois atributos pertencem com uma infinidade de outros, dos quais não tenho nenhuma noção e 91 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers que não entram na composição deste modo determinado a uma certa existência. O que engana nisso é que se faz impropriamente distinção entre o pensamento e o ser pensante, entre a extensão e o ser extenso, como se eu e meu pensamento ou minha extensão fôssemos duas coisas diferentes. Mas esse erro é fácil de destruir, pois se o sujeito da extensão fosse diferente dela mesma, poderia ser concebido sem extensão, o que não pode ser. Quando eu rolo um pedaço de cera entre meus dedos, ela é, na verdade, o sujeito das figuras que eu lhe dou, mas não o é enquanto substância, porque eu não concebo a substância pelas figuras. É, então, porque esta cera é uma extensão determinada que não pode ser sem limites e, consequentemente, sem figuras, indiferente a todas, e necessariamente sob alguma. Ela não é quadrada quando é redonda. Mas não é menos extensa sob uma forma do que sob outra, porque tal e tal figura é um modo de extensão. A cera também não é sujeito da extensão, pois, não somente eu não a poderia conceber sem extensão, mas também sem figuras que são modos da extensão. Se, além disso, ponho que ela é cera, ela é por isso mesmo um modo de ser independentemente da extensão. Seria preciso haver no mundo apenas cera para que se pudesse a tomar por Ser substancial e absoluto. Resta, então, concluir que ela é um modo e, se ela é um modo, que não é a substância. Então, nem sua extensão, nem suas diferentes figuras me farão concebê-la como um sujeito substancial. Relacionarei sempre as figuras à extensão da qual são modos, e a extensão ao ser do qual ela é também modo, quando ela é determinada, e atributo quando ela é concebida substancialmente, sem partes e sem relação com qualquer particularidade que seja. É o mesmo do pensamento tomado singularmente e de qualquer outra coisa que se possa propor. O resto da objeção é suficientemente destruído pelo que acabei de dizer, que me fez conceber em que sentido a extensão é distinta da substância, e em que sentido não o 92 Primeira parte do ser em geral e em particular é, seguindo as propriedades do modo ou do atributo, pelos quais, o primeiro, enquanto limitado, é concebido como tendo partes e o segundo, enquanto infinito, não tem nem pode ter. Essas diferentes reflexões trazem uma nova luz sob minhas ideias. No entanto, sou obrigado a conceder que ainda não me encontro em posição de imaginar claramente o que é a substância, e suspeito que isso seja porque ainda não examinei quais são as relações que os outros seres têm com ela e especialmente as minhas particularidades. Neste pensamento, empenho-me a aprofundar as relações desta substância que concebo já necessariamente existente, una, infinita, independente, simples, imutável, eterna, extensa e pensante. Por relações ou denominações externas, entendo aquilo que é concebido em um sujeito sem nele ser realmente, como o nome de parte que não acrescenta nem diminui nada à essência do que é assim nomeado e que, no entanto, é concebida tão necessariamente em relação ao todo que, sem a parte, o todo não seria o que é. Existem noções comuns ao sujeito das relações que devem servir de regra para o que vamos dizer. A primeira é que tudo o que é concebível, deve ser concebido por si, ou por outro. A segunda, que as coisas que são concebidas sem relação, não têm nada em comum e, reciprocamente, que as coisas que nada têm em comum são concebidas sem relação, isto é, que a ideia de uma é totalmente independente da ideia de outra, também não se relacionando de nenhuma forma. Seguindo essas regras, estou assegurado 1º que nada do que é pode ser concebido sem relação com a substância, isto é, com o Ser existente, caso contrário, não poderia ser concebido; 2º que tudo o que é concebido como existente tem existência comum e, portanto, não pode ser concebido sem relação; 3º que a substância que existe é uma, visto que qualquer outra que pudesse ser concebida não existiria. 93 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers As relações que temos a considerar se expressam geralmente pelos nomes de causa e efeito, de sujeito e adjunto, de todo e parte e de personalidade. Coisas que entendemos suficientemente pela enunciação. É por isso que, passando inicialmente à aplicação, busco se a denominação ordinária do Todo convém à substância, e concebo inicialmente que não: porque, de acordo com sua definição, é indivisível, não tendo nem podendo ter partes, sem o que, no entanto, é impossível que haja o Todo. Concebo, pelo contrário, que os modos que são limitados têm necessariamente partes. Assim, determino sem esforço que, se a substância tivesse partes, não seria mais infinita, porque estas fariam o todo e, consequentemente, o limite que não poderia ter. Busco também se o nome de pessoa ou o ser individual convém à substância e não posso deixar de concluir que não, na medida em que, quem diz uma pessoa, diz um ser distinto, do qual se pode negar que seja um outro. Mas do ser existente e infinito, nada podemos negar de existente. Portanto, a substância não pode ser concebida sob a ideia de um ser individual, e não pode ser senão muito impropriamente que a dizemos única, visto que a unidade se torna número apenas quando podemos dizer dois. Para a relação de sujeito e adjunto, vejo inicialmente que a aplicação não se pode fazer senão muito impropriamente à substância e aos seres particulares: pois além de que não podemos jamais propor que o finito seja adjunto do infinito, porque sua natureza é absolutamente diferente, se tomarmos a existência abstrata pelo sujeito da extensão ou do pensamento, precisaríamos distinguir seu ser, o que não pode ser, a existência não subsistindo senão em suas propriedades, como as propriedades na existência. Isso quer dizer que o que existe é necessariamente extenso, ou pensante, ou ambos juntos, e que se o que existe não fosse extenso nem pensante, não teríamos ideia alguma, pois não conhecemos o ser senão por seus atributos. Eu vejo esta ou aquela figura em um pedaço de cera como um adjunto, porque pode ser indiferentemente redonda 94 Primeira parte do ser em geral e em particular ou quadrada; mas eu não poderia imaginar sua extensão da mesma maneira, porque se não fosse extensa, ela não existiria. É por isso que concluí acima que ela não é redonda ou quadrada senão por um modo de ser da extensão, como não é extensa senão por um modo particular de existir em geral. Eu também não poderia raciocinar diferentemente a respeito do pensamento. A propriedade de formar ideias e ter percepções, que sinto em mim mesmo, não é diferente de mim, nem minha extensão e minha figura. Esta mudou quando de pequeno me tornei grande, e velho do jovem que eu era. No entanto, minha individualidade não mudou. Assim, a mudança das ideias que constituem a forma do meu pensamento não me deve fazer julgar que eu, sujeito dessas ideias, seja diferente das próprias ideias. Cada ideia ocupa toda a base do sujeito pensante e posso me assegurar que o que pensa em mim no momento que escrevo isso não é diferente de minha ideia presente, e que o é sua forma atual, como tal figura o é da cera, que manuseio, embora esta figura e esta ideia sejam igualmente mutáveis e sucessivas. Compreendo o bastante que se essa cera tivesse uma percepção de si mesma, internamente se acreditaria o sujeito dessas figuras sucessivas, ou bem que ela pensaria que essa sob a qual ela se poderia considerar lhe seria essencial. Mas esses julgamentos seriam ambos falsos, o primeiro, porque concebemos bem que a cera não tem existência distinta de sua extensão, o segundo, porque sua figura é mutável por sua natureza. Mas eu não deveria raciocinar da mesma maneira sobre minha própria existência? Minhas ideias são sucessivas e as formas diferentes de meu corpo o são também. As primeiras fluem continuamente, porque representam sem cessar objetos novos ou percepções diferentes. Os segundos progridem lenta e quase imperceptivelmente; mas ambos operam uma mudança real, não de mim como sujeito, mas de mim como existindo sob uma forma tão necessária à minha mente quanto ao meu corpo: porque sou igualmente limitado a respeito de uma ou outra propriedade. 95 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers Posso, então, concluir com certeza que seres particulares não são o sujeito de suas propriedades, mas que seu ser e suas propriedades são a mesma coisa, considerados sob diferentes aspectos e que, assim, a relação que existe entre eles é tal que de modo a modo, ou de modo a atributo, ou a substância, mas não é tal que a compreendemos como [relação] do sujeito e do adjunto. O corpo não é outra coisa senão uma extensão sólida e delimitada por uma figura que é um modo de ser desta extensão. A inteligência nada mais é do que um pensamento representativo de objetos ou de percepções, para o qual as diferentes ideias são o mesmo que as figuras para a extensão. Consequentemente, extensão modal sem figura, e pensamento sem determinação de ideia, ou ideia sem imagens de objeto ou de percepção, é o que não se pode compreender. Mas, com mais forte razão, devo formar a mesma conclusão em relação à substância, que, sendo já reconhecida como essencialmente infinita, única, necessária, independente, etc., nunca pode ser o sujeito do que é concebido como limitado, multiplicado, composto de partes, sujeitada às causas externas, etc. Resta agora falar da mais extensa de todas as relações, quero dizer aquela da causa e do efeito, que concebo de tal natureza que um não pode existir sem o outro. Pelo nome de causa, entendo tudo o que produz um efeito, e pelo nome de efeito tudo o que é produzido por uma causa. Mas, porque nada pode existir sem uma causa, segue-se que tudo o que existe tem uma causa em si mesmo ou fora de si. O que existe por si mesmo e só precisa de si mesmo para existir, é certamente sua própria causa, e tal é pela definição o Ser necessário que tenho nomeado substância, a qual, visto existir por si mesma, é a causa absoluta de tudo o que pode existir. Pois é da essência do efeito ter uma causa e, pela divisão completa do ser, existe apenas o necessário e o não necessário. Este último, então, não pode existir senão 96 Primeira parte do ser em geral e em particular como o efeito do primeiro. Portanto, o Ser necessário é a causa absoluta de si mesmo e de tudo o que pode existir. Esta verdade sendo conhecida, precisamos examinar o caráter da ação da substância, para julgar se é determinada ou contingente, livre ou necessária. Mas antes de decidir, devemos convir na significação dos termos. Chamo determinação toda ação de uma causa que produz um efeito e, nesse sentido, não posso duvidar que a substância seja determinada, pois é a causa geral de si mesma e de tudo o que existe. Chamo livre toda determinação cujo princípio está em si mesma, acepção na qual é impossível que a substância não seja livre, pois ela é sua própria causa de existir e de agir. Chamo espontaneidade o sentimento que faz querer, ou que faz aquiescer a uma determinação, mas este termo não pode convir à substância, tanto porque ela é oposta àquela da coação, que não pode ter relação com ela, quanto porque não podemos julgar seus sentimentos que são infinitos; além disso, o termo espontâneo induz uma personalidade que não pode ser atribuída à substância. Chamo contingente o que pode ser ou não ser, em um sentido tal que é evidente que a substância e suas ações não o podem ser, visto que sua natureza e suas consequências são igualmente necessárias e determinadas. Chamo necessário tudo o que é determinado e, nesse sentido, a substância é necessária, sendo determinada por si mesma; e seres particulares também são necessários enquanto determinados por suas causas. Mas há outro tipo de necessidade que é a da natureza, e tal é a da substância, cuja existência é necessária por sua definição, a qual, consequentemente, não convém aos seres particulares que podem ser concebidos como não existentes. Há igualmente outro tipo de determinação que consiste nos limites prescritos para a existência dos seres particulares, seja na extensão, seja na conformação dos órgãos, seja nas percepções e nos conhecimentos; mas essa espécie de 97 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers determinação limitada é oposta à ideia geral e se restringe aos indivíduos. Isto posto, concluo que a ação da substância é eterna, livre, infinita e necessária, como sua natureza, pois de outra forma sua ação não dependeria dela. Ela teria uma outra causa que ela mesma, contra sua definição, que me faz concebê-la como sua própria causa de existir e de agir. E da mesma maneira, segue-se que é onipotente, isto é, pode fazer tudo o que é possível, não para forças limitadas ou para um intelecto finito, mas em geral tudo o que pode ser consequência de seu atributos infinitos. Ora, da infinidade de atributos se segue a infinidade de consequências. Portanto, a substância ou o Ser absoluto é infinito em sua ação e, consequentemente, onipotente. Com esta enumeração dos atributos da substância, mas mais sensivelmente com aquilo que concebo sob o nome de causa absoluta e de onipotência, não é difícil reconhecer o Ser supremo, isto é, Deus que concebo como o Ser absolutamente infinito, a substância dotada de uma infinidade de atributos, ou melhor, cognoscível por uma infinidade de propriedades, cada uma das quais exprime infinitamente sua essência eterna e infinita. Mas, nesse sentido, evidentemente percebo que não posso limitar sua infinitude em um gênero particular, porque seria verdadeiramente repugnante para a natureza do infinito que fosse possível expressar alguma realidade que não lhe conviesse ou que pudesse lhe ser negada. Em consequência do que se pode estabelecer por axioma que tudo o que envolve existência, realidade ou perfeição não pode ser negado do Ser necessariamente existente e infinito, ou ainda (trazendo a proposição de outra maneira), que seria contraditório conceber alguma negação ou defeito em uma existência real, infinita e necessária, tal como o Ser divino. Todavia, não levo muito longe este raciocínio sem perceber que a primeira dificuldade relativa à divisibilidade da extensão lhe constitui um terrível obstáculo: pois, se a 98 Primeira parte do ser em geral e em particular infinitude de Deus me leva, por um lado, a julgar que ele é real e infinitamente extenso, por outro lado, sua simplicidade não permite supor um atributo que o tornasse divisível e que o compondo de partes, destruiria essa mesma infinitude. Isso me parece tão claro e tão decisivo para o sistema que postula Deus como o criador dos corpos e da extensão, sem ser ele mesmo extenso, que independentemente do preconceito da educação e do hábito, que fala interiormente em seu favor, estaria inclinado a concluir que há uma contradição em ser extenso e infinito. Mas, ao considerar a questão mais detidamente, é assim fácil conceber que a extensão poderia ter sido formada sem extensão? É a mesma dificuldade que encontraríamos ao estabelecer que o Nada poderia produzir o Ser. Não se trata de decidir se Deus poderia ter feito algo do nada, mas para mostrar como ele poderia ter feito alguma coisa sem a colocar em qualquer lugar: pois é uma contradição e, por consequência, impossível. Ora, ao criar a extensão, onde ele a colocou se não havia extensão? Se dissermos que a infinitude de sua natureza compreende tudo, isso quer dizer, em outras palavras, que a extensão é um efeito de um de seus atributos. O que nos ilude neste confronto é que estamos acostumados a considerar a extensão em suas partes e a compreendê-la sob uma figura, não tendo nem mesmo imagem do infinito senão pela adição de várias quantidades limitadas, sejam números, sejam magnitudes. O que eu tomo por infinito não é isso, por mais extenso que o conceba. E, consequentemente, ele não pode entrar em qualquer comparação com o infinito substancial, que devemos conceber indivisível, de sorte que o atributo da extensão que ali descubro não se limita nem a uma quantidade, nem a uma medida imaginável. É verdade que quando formo a ideia da quantidade por uma medida, devo concluir que ela é divisível, mas a extensão abstrata, tal como a concebo em consequência da infinitude da substância, não é nem mensurável nem figurável senão em 99 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers seus modos ou maneiras de ser. Portanto, a extensão enquanto atributo não prova que a substância seja divisível, e menos ainda porque concluí acima, por sua definição, que ela não pode ter partes. Mas essa solução não é questionável? Não poderiam me dizer que esta extensão substancial não divisível é uma quimera de minha mente, visto que não conhecemos nada disso por experiência e que, ao contrário, a experiência está contra mim, e todo o raciocínio que podemos fazer sobre o sujeito da extensão conhecida? Para melhor julgar a verdade, parece-me conveniente abandonar por alguns momentos a ideia da extensão e escolher uma outra, se possível, mais sensível, pela qual possamos formar um raciocínio comparativo. Ora, nada é mais sensível do que o pensamento. Mas de onde tiramos o sentimento, senão pelas ideias? Essas ideias não são limitadas, figuradas, determinadas, senão absolutamente como a extensão, pelo menos em seu gênero? Mas acreditarei que as ideias de Deus sejam limitadas e determinadas como as nossas? Se dirá que a determinação da ideia não se toma a partir do objeto que ela considera, que o sujeito pensante pode ser infinito, na medida em que considera uma infinidade de ideias de uma vez, embora cada uma dessas ideias sejam determinadas no objeto particular que elas representam, além disso, que a ideia de Deus tem outro objeto infinito que é ele mesmo, e que as ideias particulares não aumentam seu conhecimento. Mas mesmo isso é uma contradição: pois não concebo menos uma infinidade de ideias particulares distintas, que uma infinidade de números. Sempre posso acrescentar uma nova quantidade a ambos. Dizer que as ideias particulares não aumentam o conhecimento de Deus, isso não se pode compreender, visto que aumentam ao menos o conhecimento acidental, além do que é impossível negar que, suprimindo por suposição essas ideias particulares do conhecimento divino, não se destrói sua infinitude. E não se pode evitar esse inconveniente senão reconhecendo que o conhecimento de 100 Primeira parte do ser em geral e em particular Deus compreende substancialmente todos os tipos de ideias possíveis, sem número, sem limites e sem medidas, que é o sentido no qual se pode julgar que Deus ou a substância é tão extenso quanto é pensante, mas não é e não pode ser divisível em nenhum desses aspectos. E daí tenho motivo para concluir que nenhum atributo da substância única deve ser concebido, de sorte que se possa inferir que ela seja divisível, visto que não pode ter partes, como foi provado, e da mesma maneira concluo que a pluralidade ou infinitude dos atributos não combate a unidade da substância, porque é de sua essência ser uma e ter uma infinidade de atributos ou de propriedades. Devo tomar por regra dessa noção que a quantidade, o número, a figura e tudo o que conclui por dar limites ao Ser, não podem convir senão às modalidades da substância e não à ela mesma enquanto substância. Por exemplo, vejo que um corpo, como a água, é divisível, mutável, sujeito à corrupção, ao congelamento, a tomar a forma dos vasos em que está contida. Mas digo que todas essas propriedades não lhe convêm senão em relação à sua modificação, e não em relação à sua existência substancial. Me responderão imediatamente que mesmo para mim a existência e as propriedades são inseparáveis, e isso é verdade, como foi provado acima da existência modal da cera, ou do pensamento. Mas como é da experiência que todos os seres particulares são mutáveis e mudam de modalidade sem perder a existência substancial pela qual são um com a substância, devo concluir que as propriedades modais da água ou de qualquer outro sujeito particular não são consequências do Ser substancial. Uma coisa é o Ser, outra é a maneira de ser. Esta é limitada, finita, mensurável, etc. Mas o primeiro é infinito, imutável e, portanto, não é limitado nem mensurável. Que se voltarmos a dizer que o ser é, então, o sujeito do modo e esse modo é seu adjunto, ou que o modo é para o ser o que a cor é para o mármore, de sorte que será reduzido à natureza de um 101 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers simples acidente, é fácil de replicar, como acima, que o ser e o modo são confundidos na substância e que esta existe nos modos, assim como os modos existem nela. Detenho-me aqui para refletir sobre o que entendi até agora e, examinando-o, para julgar se minhas ideias são claras, se as conclusões têm alguma solidez e, enfim, para onde me conduzem. Mas quanto mais avanço, mais fico surpreso. Porque nesta ordem de raciocínio não posso deixar de concluir que Deus e a universalidade das coisas são o mesmo. Segue-se, portanto, que tudo o que pensei do Ser Soberano, do Ser Perfeito, de um Deus a quem acreditei dever obediência, amor, adoração, religião, de um Deus criador juiz das minhas ações, tudo isso se desvanece. Mas posso estar indo rápido demais: e de fato. Se eu me imaginasse Deus soberano da natureza da maneira que os reis são em seus estados, com a diferença de que seu poder é sem limites, sem dúvida me desviaria da verdade; pois devo conceber que a vontade de Deus não é separada de sua inteligência, nem seu poder de sua vontade, visto que tudo é um na substância indivisível. Mas isso o desvia de sua perfeição? Não sem dificuldade; pois o que é a perfeição senão a realidade do Ser? E podemos conceber uma realidade mais absoluta do que aquela que inclui tudo o que existe e sem a qual nada pode existir? Concebo que os homens que têm as ideias e os desejos sucessivos não fazem, de uma só vez, tudo o que está em seu poder; mas seria absurdo pensar a mesma coisa de Deus. Na verdade, é dito que se Deus tivesse feito tudo o que podia, ele teria exaurido seu poder onipotente. Pretexto absurdo para supor Deus, senão pela impotência, ao menos pela impossibilidade de fazer tudo o que poderia. Não é mais justo reconhecer que a onipotência de Deus sempre existiu em ato, e que estará ali eternamente, porque é um atributo inseparável de sua natureza? Se eu também concluísse que a ideia de Deus, compreendida sob a da infinitude do universo, dispensa-me 102 Primeira parte do ser em geral e em particular da obediência, do amor e da adoração, estaria fazendo uso ainda mais pernicioso de minha razão: pois me é evidente que as leis que recebi, não do relato ou da intervenção de outros homens, mas imediatamente dele, são aquelas que a luz natural me faz conhecer como verdadeiros guias de uma conduta racional. Se me faltasse obediência a este respeito, pecaria não só contra o princípio de meu ser e contra a sociedade dos meus semelhantes, mas contra mim mesmo, ao me privar da mais sólida vantagem da minha existência: mas é verdade que esta obediência apenas não me engaja senão aos deveres de meu estado, e que ela me faz considerar todo o resto como práticas frívolas, inventadas supersticiosamente, ou para a utilidade de quem as instituiu. No que diz respeito ao amor de Deus, longe desta ideia enfraquecê-lo, creio que nenhuma outra é mais adequada para aumentá-lo, pois ela me faz conhecer que Deus é íntimo ao meu ser, que ele me dá a existência e todas as minhas propriedades, mas que ele as dá a mim liberalmente, sem censura, sem interesse, sem me sujeitar a nada senão a minha própria natureza. Ela bane o medo, a inquietude, a desconfiança e todos os defeitos do amor vulgar ou egoísta. Ela me faz sentir que é um bem que não posso perder e que possuo tanto melhor quanto mais o conheço e amo. No que diz respeito ao culto, embora me vincule àquele em que nasci e ele me faça preferi-lo a todos os outros, percebo bem que, ao me despir do zelo desumano, dos sentimentos de parcialidade e ódio que acompanham a religião vulgar, ela purifica a minha e a torna digna de ser praticada por uma mente racional, como a torna mais própria à honrar o Ser supremo. No que diz respeito à qualidade de juiz das ações dos homens, de onde seguem as de recompensador e de vingador, não discordo que essas ideias não toquem eficazmente algumas mentes que só o medo e a esperança podem convencer. Mas devemos também admitir que elas são inteiramente opostas ao amor perfeito, que é nosso primeiro dever para com Deus, e 103 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers que elas são as fontes muito fecundas de todas as superstições do mundo. Supondo, todavia, que o bem que delas deriva supera o mal, devemos concordar que seu fundamento é a persuasão do castigo e da recompensa que o vício e a virtude devem encontrar, seja neste mundo, seja na eternidade. Mas qual inconveniente pode haver em olhar para esta distribuição de castigo ou recompensa como uma consequência necessária da primeira verdade, isto é, da natureza divina? O mal que deve alcançar aos ímpios e a felicidade que os bons devem esperar, são menos temidos ou desejados de uma maneira do que de outra? E nossa precaução ante essas qualidades, que são para nosso uso, deve nos cegar ao ponto de não ficarmos satisfeitos com a justiça de Deus, senão enquanto a imaginamos arbitrária e semelhante à nossa? Assim, seja o caso que os princípios do amor a Deus, da caridade, da temperança e da justiça universal receberam para nós uma forma de lei pela voz de certos homens que foram favorecidos por revelações sobrenaturais e autorizados a estabelecê-los por milagres, seja o caso de terem sido simplesmente gravados em nossos corações pela natureza, e que brilham ali à luz da razão para a felicidade daqueles que os seguem, e a condenação daqueles que os rejeitam, seriam eles menos salutares aos primeiros e menos danosos aos últimos, que não podem violá-los sem dano a sua consciência? Isso não é rejeitar a religião, nem a virtude, senão estabelecer sua recompensa em sua prática. Tampouco autoriza o crime ao estabelecer a principal punição na vergonha e no remorso que o acompanham, ou na perversidade e na loucura que preenchem ambos. Quando julgamos o contrário, é porque a virtude não parece suficientemente amável em si mesma para engajar o coração, ou porque o vício tem tantos atrativos que estaríamos inclinados a nos abandonar a ele por escolha, sem o medo de penitência. Se, então, praticarmos a virtude nesta disposição, podemos nos gabar de que merecemos alguma recompensa, mesmo da parte de um juiz que é suposto infinitamente justo e esclarecido? Isso 104 Primeira parte do ser em geral e em particular seria antes odiar sua obra, obedecer ao terror, condenar seu próprio coração e renunciar às luzes da razão, que poderiam fazer o homem feliz, fazendo-o encontrar Deus, a verdade, o descanso em seu próprio meio, sem remeter a sua posse em um tempo de uma outra vida. Esse raciocínio alivia um pouco minha inquietude e tranquiliza minha imaginação. No entanto, não remove duas dificuldades que à primeira vista parecem intransponíveis: a primeira é que, se Deus e a universalidade dos seres são a mesma coisa, segue-se que, sendo todas as coisas em geral, ele não é nada de particular. Ele não pensa senão nas inteligências, não se estende senão nos espaços, em suma, é tudo e é nada. Ou seja, é uma quimera tão absurda quanto a primeira matéria. Em que, então, podemos basear a obrigação de amá-lo, e como ele poderia fazer felizes aqueles que o conhecem? A segunda dificuldade é que se Deus é verdadeiramente (como foi demonstrado) um ser necessário e infinito, suas consequências devem ser iguais e necessariamente infinitas. Razão pela qual se pode concluir que os seres limitados e particulares nunca poderiam ser consequência da existência da substância infinita. Tentarei responder a ambas as dificuldades. Mas para colocar a primeira em toda a sua força, é necessário acrescentar, parece-me, que no princípio que é aqui desenvolvido, se imaginamos alguma personalidade na substância, essa será um modo ou maneira de ser, sem proporção com a infinitude, e que se rejeitarmos a ideia de personalidade, não será nada absolutamente, ou pelo menos nada de que possamos formar a ideia, seguindo a regra: universalium non datur notio [universais não dão conceito]. Não sei de que servem para este assunto as distinções utilizadas pela Escola, e pouco versado nas sutilezas que lá se ensinam, contentar-me-ei em dizer que entendo perfeitamente que se pelos termos de pessoa [personne] ou de suporte [suppôt] devemos entender um ser limitado e definido tal que exclua qualquer outro suporte, é impossível que a substância, que é concebida infinita por sua natureza, 105 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers goze dessa personalidade exclusiva; mas que, se tomarmos o termo pessoa por realidade do ser, é igualmente impossível negá-la à substância, visto que é a única existência real e necessária que inclui absolutamente todas as outras, embora julgadas não necessárias. Essa objeção envolve, ao meu ver, uma contrariedade que destrói toda a sua força: pois convimos que a substância existe, e que é próprio dela existir. Assim, não negamos que ela seja; mas queremos que ela seja pessoalmente [personnellement] distinta de suas afecções, e queremos admitir que essa personalidade é um atributo do ser, como se pudéssemos imaginar que uma esfera redonda e branca fosse realmente e pessoalmente distinguida de sua redondez e de sua brancura. Ora, posso bem conceber que esses dois modos são realmente distintos um do outro, pois a redondez não é a brancura; mas não conceberei jamais que a esfera seja pessoalmente distinta de sua redondez. Assim, voltando à ideia universal, concebo que a figura de uma esfera e a de um triângulo são pessoalmente distintas, pois são modos da extensão; mas não poderei distinguir pessoalmente a extensão da esfera, nem do triângulo. E é o mesmo, por razão mais forte, da substância em relação aos seus atributos e a todas as afecções das quais ela é suscetível, visto que ela é a ideia universal que as compreende todas distintamente entre elas, mas indistintamente delas com ela mesma, pois ela é o único fundamento de seu ser. Além disso, é-me muito mais evidente que Deus existe, necessária e absolutamente, em seus atributos infinitos, do que me é difícil de conceber que ele é tudo e infinitamente além. Se me proponho a universalidade das coisas como uma quantidade numérica, é contraditório associála à ideia do infinito substancial, que não pode ter partes sem deixar de ser o que é. Mas também, se eu me proponho essa universalidade como um suporte particular, confundo as ideias mais distintas ao querer que o universal seja particular e que o infinito seja limitado. É por isso que concluo que compor o Ser de Deus das diferentes partes do universo é destruí-lo, pois, sendo infinito, 106 Primeira parte do ser em geral e em particular não tem partes. Querer que Deus seja um suporte singular ou individual é, da mesma forma, destruir a ideia de sua infinitude e a de sua existência absoluta. Pretender representar à sua imaginação uma ideia modal do Ser infinito é enganar a si mesmo. Duvidar da existência de Deus depois de concluir que ele existe necessariamente é duvidar da própria evidência. Mas como combinar o impossível, como entender que Deus é o todo e que não faz parte do todo, e que existe sem uma personalidade distintiva? Isto não é tão difícil se reconhecermos que sua existência é certa. Porque toda a questão se limitará a definir sua maneira de existir. Mas quem diz uma maneira de existir, diz um modo; não se trata mais do Ser absoluto que compreende todas as existências modais. Assim, vejo claramente que tudo o que eu possa dizer ou imaginar a esse respeito, longe de me fazer conhecer como Deus existe, faria-me perder a sua ideia. Portanto, estou seguro de que não preciso da minha imaginação para o compreender. Basta que a evidência de seu ser me seja tão certa quanto a minha própria, sem exceção do que extraio do sentimento, ou, por outras palavras, sendo verdadeiro o princípio de que Deus existe, necessário, infinito e absoluto, e que os modos são limitados e não necessários, devo concluir que Deus, ou a substância, não é um modo, e que todos os modos juntos não são Deus. Se me pressionam dizendo que há uma contradição em minha ideia de infinito, visto que, se for assim, não se pode negar nada de sua existência, é inconcebível que seres particulares não sejam partes dele, eu responderia que ele é um Todo substancial no sentido de que nada lhe pode ser adicionado, nem retirado, e que inclui tudo, mas que não é um Todo relativo às partes, que ele não tem e não pode ter, enquanto que ele é infinito. Com efeito, as definições devem servir de regras para minhas ideias. Se compreendi, então, que o infinito existe necessariamente, que não tem partes, porque se fosse composto poderíamos lhe acrescentar algo, e que por isso não seria mais infinito; que não obstante ele compreende tudo, 107 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers porque se lhe pudesse negar alguma realidade, também não seria infinito (como o coloca a definição); se eu também compreendi que é da essência do modo ser limitado e existir pela determinação de uma causa fora dele, necessariamente concluirei que nenhum deles, nem todos juntos podem ser o infinito, nem o Ser necessário e absoluto. Esta conclusão é da última evidência. É, então, preciso fixar minha ideia neste termo de que a noção da substância não está ao alcance dos recursos da imaginação, que não se instrui senão pela experiência, e que nunca a fez nem poderia fazer sobre um tal sujeito, e com isso ficarei satisfeito em saber que Deus existe sem poder determiná-lo outramente senão por sua infinitude, sua necessidade, etc. Nesta convicção, inclinarei-me [exciterai] ao seu amor, ao seu culto, à obediência, persuadido, porém, de que tudo isso nada é em relação a ele, mas que em relação a mim é o bem essencial que convém ao meu ser. Poderiam ainda objetar-me que seria preciso experiência para se assegurar da verdade de uma tal definição; mas, pelo contrário, entendo que não há necessidade de experiência, senão a respeito das coisas que não são claramente exprimidas por uma definição, isto é, contidas na expressão da ideia que delas tenho formado. Por exemplo, na medida em que a existência não é a essência do modo, nem compreendida em sua definição, visto que ele pode ser concebido como não existindo, não posso estar certo de que existam modos senão pela minha experiência; mas quando a definição compreende a existência, isto é, quando não posso conceber uma coisa sem existência, não posso duvidar, mesmo sem experiência, de que esta coisa não seja. Tal é o Ser de Deus que é concebido necessário, embora minha imaginação não possa formar uma imagem. Consequentemente, posso dizer que minha experiência a esse respeito se relaciona com o sentimento que tenho do meu ser, já que não poderia conceber o Ser necessário senão como existente. Quanto à segunda dificuldade, que gira em torno da natureza das consequências do Ser infinito e necessário, 108 Primeira parte do ser em geral e em particular parece-me que está suficientemente resolvida distinguindo os dois significados acima observados da palavra necessário. Pois convindo que todos os seres particulares não envolvem nenhuma necessidade que se relacione puramente com sua existência, isto é, podemos concebê-los como existentes ou não existentes, desde que não prestemos atenção à determinação de sua causa, ao lado da qual são sempre necessários, porque não há efeito sem causa, nem causa sem determinação. Mas Deus não é infinito em relação a uma determinação externa que o fez existir. Ele é a sua própria causa; ele existe por si mesmo, infinito, como ele é, e nada pode ser concebido separadamente [divisément] em seu Ser substancial. É, portanto, evidente que a necessidade do Ser de Deus e a necessidade da determinação que faz existir os seres particulares são duas necessidades diferentes; uma visa o próprio Ser, a outra visa a eficácia da causa. Mas os seres causados não podem ser infinitos, uma vez que são determinados por sua causa e limitados pelo próprio fato de terem uma causa fora deles. Portanto, não há questão de saber como determinados seres particulares podem ser finitos, uma vez que não podem ser diferentes. Reduz-se, assim, a dificuldade em determinar como podem ser consequências do ser infinito, o que é fácil, pois a substância não pode ser sem suas afecções, e as afecções da substância são modos. Ora, as afecções da substância são consequências de seu ser. Assim, os modos necessariamente finitos são consequências da substância infinita. Os modos são infinitos em geral, porque as consequências do Ser infinito são da mesma natureza que ele, ou seja, existem tantos modos quanto ideias no entendimento infinito, e os modos de ser em particular no Ser geralmente absoluto. Mas todos eles são limitados enquanto modos, caso contrário, não seriam o que são. Eu torno essa ideia ainda mais clara ao considerar que os atributos de Deus devem exprimir sua essência, sem o que não a conheceríamos, pois é tudo o que estabelece a noção 109 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers que temos, mas que os modos que são as maneiras de ser desses atributos não representam diretamente senão esses mesmos atributos, que, assim, a extensão não compreende o pensamento, nem reciprocamente; de sorte que cada modo é limitado no gênero de seu atributo, e não é uma consequência senão do mesmo atributo: porque a extensão não é consequência do pensamento. Isto posto, se refletirmos que a substância que por sua natureza deve ter infinitos atributos não nos é conhecida senão pelos dois da extensão e do pensamento, que compreendem todos os objetos de nossas percepções, não podendo ter senão de um ou o outro gênero, facilmente concluiremos que é impossível, não de imaginar, mas de conceber a menor ideia do infinito, a não ser aquela que é carregada por sua definição, isto é, pelo conhecimento que temos de sua existência necessária. E consequentemente diremos que os modos, sendo seres imperfeitos, carentes da principal realidade, que é a necessária, não tendo outra senão aquela que segue a determinação de sua causa, não podem ser consequências da infinitude de Deus, mas que são consequências de seus atributos enquanto afecções dos mesmos atributos. Examinando essas respostas, parece-me que elas resolvem inteiramente as dificuldades propostas. Mas como em uma decisão de tal importância é preciso empregar todos os tipos de precauções, parece-me necessário apoiar adequadamente minha ideia para compará-la com a que supõe que Deus é um infinito particular, especificado, como em consequência de sua perfeição, que também lhe dá uma onipotência arbitrária. Eis aqui como eu compreendo esse sistema. Deus não é o Ser absoluto, mas uma espécie particular do ser, distinto dos demais por sua perfeição suprema e por sua infinitude. A perfeição de Deus é de tal natureza que nada de excelente deve ser concebido que não lhe pertença no grau soberano. O poder supremo e arbitrário é concebido como 110 Primeira parte do ser em geral e em particular uma vantagem infinita: consequentemente, pertence a Deus, excluindo todos os outros seres, e Deus o exerceu na criação dos seres particulares que ele tirou do nada, tal como ele os pôs e quando os pôs. Nesse sentido, a infinitude de Deus não é tomada genericamente, mas como uma excelência da natureza à qual pertence tudo o que pode ser considerado bom. Pois não concebemos o mal como uma realidade; é por isso que restringimos a infinitude de Deus ao que pode ser chamado bem perfeito. Pretende-se ademais que as criaturas são obra de sua simples vontade e poder, que ele governa esses seres por sua sabedoria infinita, dispensando a cada um os talentos que possui, exercendo, não obstante, sua justiça e bondade para cada um de acordo com seus méritos. Este sistema tem grandes vantagens e poupa grandes inconvenientes. 1º Ele decide sobre as dificuldades do infinito, que nos ocuparam até agora. Pois concebendo Deus como um infinito particular, não é mais uma questão de mostrar que ele não tem partes, basta assegurar tal. 2º Ele abrevia todas as nossas pesquisas a respeito de seres particulares, dizendo-nos que eles são como aprouve a Deus formá-los. 3º Ele adula a imaginação, que é a parte sensível do homem, 1º propondo um objeto exterior à sua religião: pois não podemos facilmente meter na mente que o culto e o amor são indiferentes à natureza suprema, a quem o são devotados, e que só são vantajosos para o homem que os dispensa. 2º Dando-nos uma razão precisa e conforme ao que praticamos na ordem do mundo, da construção de suas partes, de sua relação, de sua beleza e bondade. 3º E enfim, proporcionandonos, para todas as ocasiões singulares e para todos os efeitos que nos surpreendem, um recurso miraculoso e uma causa tanto mais suficiente quanto se supõe ser acima de todas as forças da natureza. Ousaremos dizer depois disso que falta a parte mais essencial da beleza do sistema, saber a verdade? No entanto, 111 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers é preciso admitir, se o Ser Supremo fosse tal como esse sistema o representa, não seria nada menos do que queremos que ele seja, e não teríamos certeza alguma de que ele existe. 1º Se Deus fosse um infinito especificado com um certo caráter de ser particular, ele não seria nem o ser absoluto, nem o infinito real e verdadeiro. Não o primeiro, porque concordamos que ele é diferente das criaturas; não o segundo, visto que poderíamos negar dele tudo o que concebemos de realidade efetiva, em lugar da qual precisaríamos substituir uma outra puramente imaginária e ideal. 2º Se Deus não fosse o Ser absoluto e o puro infinito, não teríamos demonstração de sua existência, porque a existência necessária só pode pertencer a ele em consequência de que é o ser absoluto. Porque se alguém diz que essa necessidade é consequência da perfeição de Deus, responderei que essa perfeição supõe que exista, e exigirei que me prove que existe de fato. Não é suficiente, por exemplo, dizer que é da essência de um triângulo ter seus três ângulos iguais a dois ângulos retos, embora isso seja comprovadamente verdadeiro, se não me mostram um tal triângulo, ou melhor, se ele não existe de fato: pois se eu negar que ele existe, nego consequentemente todas as suas propriedades. Assim, eu poderia convir que é da essência do Ser perfeito existir, mesmo necessariamente, que ainda precisaria me provar que um tal Ser existe, sem o que não seria mais uma demonstração, mas um sofisma. Além dessas dificuldades, há várias outras, não menos essenciais, pois 1ª a Criação é impossível na suposição de que Deus seja o Ser necessário e infinito. 2º O que estabelecemos como regra de perfeição, o que chamamos de virtude, bem e mal, é em relação a Deus uma pura ficção da imaginação. 3º O poder supremo e arbitrário do qual fazem o principal atributo da Divindade envolve contradições que arruínam o sistema, e assim várias outras. Aqueles que compreendem que o termo infinito é tão absoluto que esgota, ou melhor, envolve a totalidade do Ser sem 112 Primeira parte do ser em geral e em particular exceção, quiseram evitar esse escolho usando uma distinção escolástica. Eles dizem que Deus é infinito intensivamente e não extensivamente, o que explicam dizendo que toda a virtude do Ser é reunida na essência de Deus, de sorte que nada pode existir senão por ele, e que os seres particulares não têm existência própria, visto que, não sendo nada por si mesmos, não são senão o que ele quer que eles sejam. Eles pretendem que isso não prejudique o infinito perfeito, que deve existir necessariamente, segundo a definição que dão dele. É por isso que eles asseguram que os seres limitados e não-necessários não podem, pela mesma definição, ter nada em comum com o infinito, nem mesmo a existência. Mas o que significam realmente as palavras intensivo e extensivo, senão a maneira como o universal e o infinito se tornam particulares em seus modos, sem perder seu infinito e sua universalidade? Não é evidente que se supor que Deus é um ser especificado, todo infinito como se quer concebê-lo, haverá uma ideia de ser mais universal do que a sua, visto que ela o compreenderá enquanto especificado, e que compreenderá também a universalidade das coisas, que se supõe essencialmente diferentes dele? Ora, se existe uma ideia mais geral do que o infinito, o infinito não é mais o infinito. Dir-se-á, sem dúvida, que os seres limitados, na quantidade que são supostos, não podem constituir um todo infinito e que, consequentemente, seja os removendo, seja os adicionando ao infinito, ele é sempre o mesmo por natureza. Isso é verdade no sentido negativo, que exclui toda composição na natureza infinita, mas não o é no sentido afirmativo e próprio que descobre que o infinito compreende toda realidade, ou que do ser infinito não se pode negar qualquer existência real. Se me objetam ainda que a ideia universal do ser não tem objeto distinto, como não o tem a de humanidade, tomada a parte rei, porque a humanidade não existe senão nos indivíduos humanos, e igualmente o Ser universal nos 113 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers particulares, respondo que essa comparação é muito desigual, havendo aí uma diferença completa entre os sujeitos, visto que o ser absoluto é concebido existir necessariamente, e que a humanidade abstrata é julgada um ser não necessário e não existente. Se, depois de ter concebido o Ser absoluto, eu pudesse compreender que ele não poderia existir, concluiria que minha ideia não tem objeto distinto dos seres particulares, porque ela os representa para mim como existindo sem necessidade. Mas do só fato de que o Ser absoluto existe necessariamente, devo concluir que ele é e que compreende todos os outros realmente. Se acrescentarmos que a ideia universal compreende o finito e o infinito como duas espécies ou duas propriedades do ser inteiramente distintas, portanto, que um não é o outro e que, assim, há razão para sustentar que eles têm existências totalmente diferentes; eu respondo a esta objeção, que não passa de um sofisma, que nenhum ser é finito porque existe, pois a existência é absoluta e comum a tudo o que é, mas que um ser é finito pela modificação do atributo no qual ele é compreendido, seja extensão, seja pensamento. Consequentemente, a pretensa divisão do ser em finito e infinito não deve ser admitida, pois repugna à noção do ser. Mas se alguém toma a existência pela maneira de existir, acautelo-me de não contestar essa conclusão. Reconheço que os seres particulares não existem como o Ser infinito e universal, visto que são limitados e têm curta duração, ao passo que este é substancial, único, eterno e necessário. Mas não se segue que, enquanto o Ser absoluto é infinito e substancial, ele não compreenda suas modalidades, visto que a substância contém seus modos, os quais não podem existir ou ser concebidos sem ela. Enfim, passando por essas dificuldades espinhosas a respeito da verdadeira noção do infinito, cheguemos à que consiste na impossibilidade da criação. Parece-me que há duas razões principais que nos devem convencer disso. A primeira é uma consequência natural da necessidade do Ser absoluto, e a segunda é tirada de sua infinitude. 114 Primeira parte do ser em geral e em particular 1º A criação é suposta dos seres não necessários, isto é, daqueles que, nada sendo por si mesmos, receberam a existência pelo só beneplácito de Deus, que não são concebidos como uma determinação de sua natureza, mas como um ato arbitrário que poderia não ser, pois se ele não pudesse não ser, não conceberíamos aí liberdade, prova certa de que nossa ideia não é correta. Ora, se os seres criados não são necessários, isto é, se não são determinados a existir senão por um ato de vontade contingente, é preciso concluir que Deus, cuja essência é a existência necessária, não é seu autor, visto que o ser necessário só pode agir necessariamente. Mas se, confundindo a liberdade com o acaso, sustenta-se que o ser necessário pode agir contingentemente, responderei que resta provar que existem diversas substâncias; porque enquanto a ideia da unidade do ser subsistir, será preciso conceder que tudo o que existe ou pode existir lhe pertence, e que, consequentemente, a criação de seres tirados do nada é impossível, visto que seguindo uma noção comum a ambos os sistemas, concorda-se que não existe senão as substâncias e suas afecções. 2º Se Deus é o infinito atual, ele compreende toda a realidade possível. Assim, ou os seres particulares não são reais, ou pertencem ao infinito. Então, sua criação não pode ser compreendida. É tão evidente que nada pode existir para além do infinito (já que por sua definição é aquilo a que não se pode acrescentar nada da mesma natureza), que todas as objeções que se possa fazer sob o pretexto da desproporção do finito e do infinito me parecem puras ninharias, concebendo distintamente que o ser é uma propriedade comum às criaturas e ao criador, a qual não pode ser limitada de forma alguma sem alterar a natureza do infinito e destruí-la. É vão sustentar que se os seres limitados pertencessem ao infinito, ele seria consequentemente divisível. É um erro grosseiro da imaginação que relaciona a divisibilidade à extensão, em vez de julgar com precisão que nada é divisível senão o que é mensurável. 115 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers 3º Retiro uma última prova contra o sistema da criação, não somente da opinião vulgar que quer que os seres particulares compreendidos sob o nome de criaturas não sejam conservados em sua existência senão pela continuidade de sua criação, mas também da demonstração que faz com que um ser não possa mudar de modo sem mudar de existência, a qual lhe é concedida por meio de uma nova criação ou reprodução. De fato, se supormos que a noção de cada indivíduo envolve todas as suas diferentes determinações, ou, para falar mais propriamente, se é verdade que o ser não pode existir senão nos modos que lhe são próprios, seguir-se-á que ele não pode mudar de modos sem mudar de ser. Ora, quem não vê que para essa mudança ele precisa da mesma criação que se supõe tê-lo feito existir a primeira vez? Isso é claro. Mas se sustentam que o mesmo ser pode mudar de modo sem mudar de existência, isto é, para dar exemplos que a mente é sempre a mesma sob qualquer ideia que ela se transforme, como o corpo em repouso ou em movimento é sempre o mesmo corpo, será preciso, para compreender essa identidade contínua, abstrair da substância pensante, que será concebida não pensante em certo momento, como a substância corporal será concebida como não estando em repouso nem em movimento; porque a passagem de um modo a outro supõe um instante no qual o ser é privado do modo que ele parte e ainda não é dotado do modo que deve se tornar. De fato, há uma tal diferença entre o modo de repouso e o de movimento que um nunca pode ser concebido sem o outro. Assim, na discussão dos diferentes modos corporais, será preciso supor um tempo em que o corpo não estará nem em repouso nem em movimento, nem reto nem dobrado, nem figurado, o que é absurdo no sistema de quem rejeita as propriedades do Ser absoluto ou quem com ele confunde as existências modais e não necessárias dos indivíduos. Mas se, além disso, a coisa é por si mesma evidente, visto que sei sensivelmente que minha mente é capaz de tomar diversas ideias, e que meu corpo é o mesmo sentado ou 116 Primeira parte do ser em geral e em particular em pé, falando ou escrevendo, segue-se que o Ser em geral ou em particular é capaz de diferentes modificações sucessivas, ou que a abstração do ser não seja uma quimera inconcebível, como se pretende. Mas em ambas as opiniões, a criação ou reprodução do ser em cada momento que ele recebe um novo modo deve passar por uma ideia inútil e sensivelmente falsa. Então, a primeira criação não é senão ela mesma uma quimera absurda, visto que ela se termina em simples modalidades do Ser que já existe, segundo o que já foi demonstrado. Pois, se é preciso repeti-lo, o Ser é por si mesmo, e as modalidades individuais não existem senão pelas determinações de suas causas. É necessário, então, distinguir nos indivíduos o que eles possuem a título de ser, que é a existência, e o que eles têm a título de modos determinados, a saber, composição, figura, forma, ideia, etc. Mas a existência nunca deve ser concebida como uma criatura, a menos que se diga que o ser é o efeito do nada, ou vice-versa. Concluirei, então, que a abstração necessária que deve ser feita do Ser, toda a vez que se quiser imaginar a mudança modal de algum indivíduo, é uma imagem justa e acabada [accomplie] do Ser absoluto, existente em suas modalidades, e que ela faz a prova perfeita do absurdo do sistema da criação. E, enfim, concluirei por último que a criação é uma obra impossível e contraditória, que não concebo no poder do Ser onipotente, visto que ele não pode senão o que seu intelecto infinito pode compreender, e que nisso o finito e o infinito são iguais, que eles conhecem distintamente que uma coisa não pode conjuntamente ser e não ser. Se os seres particulares são concebidos como afecções da substância, ou modos do Ser absoluto, eles não são tirados do nada pela criação, isso é mais claro do que o dia. Se são julgados não necessários, não são o efeito de uma causa necessária da necessidade da natureza e menos ainda o efeito de uma vontade arbitrária, visto que não há causa sem determinação. Ou, se quisermos juntar essas ideias contraditórias, eu teria 117 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers o direito de sustentar ainda que, embora às vezes abusemos da razão pelos sofismas, não é desculpável se deixar conduzir a uma opinião tão absurda e tão sensivelmente contraditória como essa da criação, seja qual for a autoridade que a religião lhe empreste; porque (isto seja dito para resumir em poucas palavras o raciocínio precedente) ela é suposta de seres que não existiriam e nem mesmo poderiam ser concebidos existentes, se eles não tivessem a existência comum com o Ser substancial e absoluto, isto é, se não fossem modos. A respeito da ideia que nós formamos da perfeição, ou do que é chamado de bom e mau, vício e virtude, defeito e perfeição, é bastante evidente que julgamos apenas em relação a nós mesmos. Tudo o que satisfaz a nossa sensibilidade, ou seja, a percepção que temos do nosso ser, o que a expande, o que a conserva, é universalmente chamado de bom, como, pelo contrário, dizemos que uma coisa é má quando nos aflige, restringe ou ameaça nossa existência. Assim, os objetos são bons ou maus para a nossa sensação em relação aos sentimentos de prazer, alegria, dilatação ou constrição, dor e aflição que eles nos causam. Disso, se passarmos à consideração dos atos de um ser inteligente, é claro que chamamos virtude aqueles que são convenientes à nossas ideias de bem, e vício ou imperfeição aqueles que se relacionam com nossas ideias de mal, ou de um bem menor. Acredito que, em consequência dessas definições, podemos concluir com certeza que o bem e o mal não são nada de positivo, e que não devemos considerá-los senão como modos de pensamento ou noções formadas pela comparação que podemos fazer dos outros seres conosco e deles entre eles mesmos. Consequentemente, o que é assegurado de um bem ideal ou arquetípico, ao qual todos os bens, a virtude e a própria santidade, devem se relacionar, parece-me bastante distante da verdade e da realidade, porque é evidente que cada coisa é nela mesma conforme à determinação de sua causa, e não pode ter mais perfeição ou realidade do que ela lhe deu. 118 Primeira parte do ser em geral e em particular Ora, os seres particulares não existem por eles mesmos e, portanto, a sua causa está sempre fora deles, diferentemente de Deus, que sendo concebido o Ser necessário, deve ter sua causa em si mesmo, segundo a sua definição, isto é, que ele é a sua própria causa de existir e agir, e como sua ação é tão necessária quanto sua existência, segue-se que tudo o que podemos conceber sob qualquer relação que seja, tem uma perfeição, ou melhor, uma realidade atual e necessária. Não é, portanto, uma realidade ou perfeição comparativa, que pudesse de alguma forma depender da minha ideia ou da minha estima. Não devo conceber nada em Deus que não exista necessariamente e por ele mesmo. Quando digo que ele é totalmente bom e o soberano bem, é porque sua existência é, de fato, o fundamento da minha. Amando o meu ser, procurando sua conservação nas regras da razão, realizo a sua obra, consinto com o sentimento que ele me deu e encontro este bem soberano no meio de mim mesmo, segundo minha própria disposição e modificação. Então, se acrescento à ideia do ser infinito aquela dos atributos de sabedoria, justiça, misericórdia, paciência, amor pela virtude, ódio pelo vício, pureza, etc., faço duas coisas igualmente improváveis. Pois 1º qualifico a divindade pelas virtudes humanas que não são de seu uso e que ela não poderia praticar, na medida em que a respeito de umas, sua unidade as exclui de todo comércio, e em relação a outras, não vejo nada de real e positivo que possa pertencer-lhe. 2º Ao pensar em elevar sua excelência, destruo sua infinitude: pois não há nenhuma dessas virtudes que não tenha seus limites; mas, se as tomarmos em um grau intenso, como elas se conflitam entre si, é certo que não poderiam existir no mesmo sujeito, não mais do que as figuras redonda e quadrada. Além disso, essas virtudes são modos ou maneiras de ser, seja à respeito do hábito, seja a respeito dos atos, e, portanto, não podem ser adequadas ao Ser que existe substancialmente, do qual as ideias são tão verdadeiras e reais que as coisas particulares possuem precisamente tanta 119 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers realidade quanto elas contêm de realidade, e não mais. Isto destrói absolutamente tudo o que jaz apenas em relações e em comparações de uns com os outros. Mas o erro do sistema é ainda mais sensível quando prestamos atenção que ele conduz naturalmente a recorrer a um outro princípio que não o próprio Deus, para dar razões ao que ele fez. E é assim que se diz que ele age para certos fins, ou em relação a um determinado bem que lhe é conhecido, supondo consequentemente uma causa determinante de sua ação, de todo diferente dele mesmo. Mas se, para evitar esse inconveniente, contenta-se em dizer que ele mesmo é o bem intencional e o fim a que se propõe, tem-se a mesma ideia que nós, disfarçada sob uma expressão diferente. Pois isso quer dizer que a causa da ação divina está em sua essência e, portanto, é ela tão necessária quanto sua existência. Isto destrói o sistema da criação arbitrária. A ideia de um poder supremo exercido deliberativamente não é menos desproporcionada ao Ser substancial e absoluto, se for formada não de uma potência necessária, cujo exercício não é livre senão na medida em que ela é determinada por si mesma, como não é absoluta senão no sentido de que pode fazer tudo o que é possível, e não mais. Mas para se ter uma ideia da onipotência de Deus, em consequência da qual se possa concluir que ele fez e poderia fazer igualmente o possível e o impossível, os contraditórios assim como os simples contrários, os seres pensantes como os extensos, e em geral todo o universo, sem nada disso pertencer ao obrador, isto é abusar de sua razão e dos termos pelos quais ela se exprime. Diz-se, não obstante, para apoiar a ideia comum que se tem sobre esse assunto, que a onipotência é concebida como um atributo necessário do Ser perfeito; mas que se negarmos a criação de seres sem matéria preexistente, em consequência de um simples ato da vontade divina, arruína-se a ideia da onipotência, porque essa seria sua operação mais essencial. Porém, já mostrei que se faz uma falsa ideia da onipotência, sobretudo porque ela nunca deve ser aplicada ao impossível 120 Primeira parte do ser em geral e em particular contraditório, tal como ser e não-ser. Resta somente dizer algo da vontade considerada em nós e em Deus, porque nós somos enganados a seu respeito, por um sentimento interior, que nos faz confundir a determinação, em consequência do qual agimos, cuja causa quase nunca nos é claramente conhecida, com a consciência de nossa ação. De sorte que usualmente tomamos a aquiescência dada à determinação por um julgamento livre e um ato voluntário, que se pode repetir quantas vezes quisermos, e que assim se torna o verdadeiro princípio de todas as nossas ações. E daí concluímos que, como a vontade é a mais universal e a mais estimável de nossas faculdades, e que sem ela nós nos conceberíamos despojados de toda ação, ela deve, com mais forte razão, encontrar-se eminentemente no Ser perfeito. Ora, neste sentido, crer que Deus poderia ter desejado uma coisa ,tal como a criação, e que Ele não a executou, seria sem dúvida um defeito, o qual é importante justificar. Mas sem nos deter por ora em demonstrar o abuso que se encontra na suposição de nossas faculdades, limito-me a provar que aquilo que concebemos pelo nome de vontade não pode convir a Deus, e que seria até prejudicial ao Ser Perfeito. Eis aqui duas razões. A primeira é retirada da definição dada pelos melhores teólogos, que nos ensinam que Deus é um ato puro, ou seja, que não há nada nele dividido, nem divisível, ou que suas infinitas faculdades estão todas unidas em uma só essência e existência. Daí se segue que seu consentimento, sua vontade, sua potência, etc., são apenas uma coisa existente em ato: e, portanto, que ele não conhece nada que não quer, e que não quer nada que não execute atualmente. A segunda é uma consequência do axioma comum e geralmente reconhecido, de que o efeito difere de sua causa precisamente no que dela recebeu. Daí decorre, por exemplo, que o homem que ao engendrar um outro, sendo causa real e efetiva de sua existência, difere dele precisamente por esta mesma existência: de sorte que o pai e o filho, que convêm em essência, na qualidade de homens, fruindo das mesmas 121 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers faculdades, diferem formalmente em existência, de sorte que vivem e existem separada e independentemente. Ora, Deus é incontestavelmente a causa verdadeira e soberana do homem; é por isso que se este tem faculdades das quais é preciso convir que Deus seja a causa efetiva, será por essas mesmas faculdades que o homem diferirá formalmente dele. Pois, se fosse verdade que a vontade humana seria uma faculdade distinta da aquiescência dada a uma determinação sensível, cuja causa é desconhecida, seguir-se-ia que nem esta mesma faculdade, nem as outras de memória, julgamento, etc., poderiam se encontrar em Deus, por esta razão invencível de que o efeito difere de sua causa precisamente no que dela recebeu. E é assim que podemos nos convencer de que o Ser absoluto e supremo está de tal forma acima de todas as ideias e de todas as imagens, que nossos esforços para representá-lo nos privam de seu conhecimento ao invés de facilitá-lo. Talvez dirão que este raciocínio prova demais: porque sua conclusão se estende à existência que o homem sustenta [tient] de Deus mais particularmente do que todo o resto. Mas isso em si é verdade, visto que nada existe substancialmente senão o Ser absoluto, e que as entidades particulares não são senão modalidades cuja existência não necessária nada tem de igual a dele. Por essas razões, concluo em último lugar, que se há algo de verdadeiro e razoável no sistema da Divindade, tal como é vulgarmente concebido, está perfeitamente de acordo com nossas primeiras definições, e que o que há de acréscimos sob diferentes pretextos de probabilidade, decoro e de comparação, se distancia do fundamento verdadeiro e não é capaz de nos lançar para fora da rota da reta da razão. Mas, como não basta conhecer a existência de Deus, e que é necessário ainda, se possível, aprender o que somos, assim como o resto do universo, buscaremos doravante, na mesma ordem e com as mesmas precauções, de que forma os seres particulares puderam ser produzidos e o que eles são precisamente. *** 122 Primeira parte do ser em geral e em particular A noção essencial que deve regular este trabalho é a conclusão já seguidas vezes repetida, de que nenhum ser pode existir nem ser concebido independentemente da substância, a qual não nos sendo conhecida senão por dois de seus atributos, o pensamento e a extensão, disso se segue que não podemos ter uma ideia de nenhum ser que não seja modo de um ou de outro. Isto suposto, estamos certos de que o corpo é modo da extensão, senão enquanto ela é penetrável e indefinida, ao menos enquanto pode ser sólida e figurada, segundo a noção própria de corpo. E apenas daí tenho motivo para concluir que Deus não é um corpo particular, nem todos os corpos juntos, visto que não pode haver corpo sem modificação e, consequentemente, o corpo tomado em geral ou em particular não pode ter qualquer proporção com o infinito. Não estamos menos certos de que as ideias em geral e em particular são modificações do pensamento. E, portanto, a mesma razão nos obriga a concluir que Deus não é a totalidade das ideias em geral, nem qualquer ideia em particular, que ele não pode ser compreendido por nenhuma ideia representativa de seu ser, e que sua ideia própria não pode representar algum objeto particular. Porém, é indubitável que o pensamento é um de seus atributos, visto que é pelo pensamento que dele temos a primeira e a principal noção. Mas é a [noção] de um pensamento infinito, visto que ela nos faz conhecer um ser infinito, ou seja, ela compreende toda a existência e realidade efetivas. De sorte que não pode existir nenhum modo dos atributos divinos que não seja conhecido ou conhecível por um modo correspondente no pensamento infinito. De fato, se houvesse algum modo da substância infinita que por sua natureza não pudesse ser representado por nenhum modo do pensamento, seguir-se-ia que o atributo do pensamento não seria mais infinito, ou não forneceria mais a noção e a prova da existência de um ser infinito, o que vai contra a definição do atributo. Portanto, é evidente que o pensamento considerado em sua qualidade de atributo é capaz de conhecer 123 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers e representar, seja realmente, seja virtualmente, todas as modificações da substância que são seu objeto infinito. E daí resulta 1º que, seja considerando os atributos divinos em sua própria natureza, seja os considerando como objetos de um pensamento infinito, eles devem ser infinitamente modificados, seja real, seja virtualmente, segundo a forma da ideia divina. E 2º que cada modificação possui no atributo que lhe é próprio uma existência real e determinada. Real, porque tudo o que participa do ser da substância é real e efetivo; e determinada, porque de outra maneira ela não existiria, nenhum ser não necessário podendo existir sem uma causa específica e particular. Propondo-nos, então, a pesquisar como os seres modificados existem e como são produzidos diária e incessantemente, não podemos duvidar que eles existem 1º como modificações dos atributos da substância, visto que pela regra geral reconhecida por todos, não há nada que não seja substância ou afecção de substância, e que por nossas demonstrações particulares estamos convencidos de que não são substâncias. 2º Dizemos que eles existem como objetos reais e necessários do pensamento infinito que é em Deus. E 3º reconhecemos que, enquanto modos, eles são imediatamente produzidos pela determinação de suas causas, da mesma maneira que esta determinação é o efeito de uma outra causa, e assim ao infinito, até à causalidade suprema, que se encontra em Deus, tal como demonstrado por sua definição. Todavia, seria concluir errado inferir desse raciocínio que Deus não fosse senão uma causa remota de cada modalidade, porque a causa imediata se encontra na determinação: pois é necessário distinguir em um sujeito o que pertence ao ser e o que pertence à maneira de ser, depois do que conceberemos facilmente que se esta se relaciona com a determinação, e não é o mesmo da existência, que não pode ser concebida separadamente daquela da substância: visto que, se não houvesse o Ser absoluto, não se daria nada de existente no mundo. 124 Primeira parte do ser em geral e em particular Tampouco se segue que as coisas que não são modos de pensamento não existam senão em consequência delas serem o objeto necessário da ideia divina. De fato, cada atributo é concebido separada e independentemente. A ideia da extensão não envolve a do pensamento, nem vice-versa. Ora, visto que, seguindo o axioma, o que é concebido independentemente e sem relação não possui nada em comum, segue-se que as modificações de um atributo não podem ser causas em um atributo diferente, caso contrário, as naturezas estariam sujeitas a uma confusão perpétua. O pensamento se tornaria extensão, ou a extensão se tornaria pensamento, o que é um absurdo. Porém, esses atributos e essas modalidades pertencem a um só ser. E é dele que cada um tira o fundamento de sua existência, que é comum, não tendo senão a atribuição e a maneira de ser que seja diferente; e é a partir daí que se segue por necessidade da natureza que, malgrado sua distinção formal, as modalidades do pensamento se reúnem às da extensão, de sorte que umas se tornam o próprio objeto, e outras as imagens sensíveis e representativas de tudo o que acontece ao objeto delas. Mas, para compreender bem este assunto, não será inútil, antes de irmos mais longe, fixar as noções que devem ser atreladas às palavras mente, pensamento, ideia. Pela palavra Mente, entendo então todo ser pensante. Não que eu pretenda distingui-la essencialmente da extensão, porque as conclusões precedentes nos ensinaram que a substância infinita é ao mesmo tempo extensa e pensante, e porque a experiência também nos ensina que o pensamento se encontra unido aos nossos corpos, embora sua conexão não seja conhecida. 2º Pensamento é um ato representativo e sensível pelo qual o ser tem percepção de si mesmo e de tudo o que lhe acontece, bem como dos objetos externos que é capaz de perceber ou conhecer, em consequência da impressão que deles recebe. 3º Ideia é todo conceito formado pela mente. Mas há ideias de vários tipos, embora todas elas convenham 125 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers na propriedade de serem sensíveis ao sujeito pensante, de representar objetos e de conter um julgamento sobre o objeto representado. Não vou distinguir aqui as ideias em relação à sensibilidade e aos afetos do sujeito pensante. Isso será o objeto da segunda parte deste tratado, nem em relação aos julgamentos que elas contêm, que serão o assunto da terceira; mas as considerando em relação à representação, parece que se pode dizer que umas são puramente mentais e espirituais, porque não representam nada que caia naturalmente sob nossos sentidos, e tais são as ideias que temos da substância e de suas propriedades; que outras são puramente corporais e não representam senão nossas percepções; e que, enfim, outras são mistas, resultantes das operações e reflexões da mente sobre as ideias corporais. E tais são aquelas que exprimimos pelos termos de duvidar, concluir, raciocinar, comparar, etc. Mas a sua divisão principal deve, parece-me, relacionar-se com a verdade que elas contêm, isto é, com a sua conveniência com os objetos que elas representam: segundo o que chamarei ideias iguais aquelas que são conformes, e desiguais aquelas que não o são. Depois disso, descubro que existem simples e compostas, gerais e particulares, absolutas e relativas, e várias outras espécies cujos detalhes iriam longe demais. Ora, tendo assim determinado o significado das expressões, é evidente que, ao aplicá-las a Deus, devemos reconhecer que a unidade de sua essência com os atos, que são consequentes, demonstra inelutavelmente que a ideia que é nele, é tão igual ao objeto que ela representa, que ela não constitui senão um mesmo ser com ele. De sorte que é verdade dizer que a ideia de Deus se conhecendo, e ele mesmo, são um só; visto que se a ideia de Deus fosse diferente, o modo não seria o que é, ou a ideia de Deus poderia ser falsa, o que não pode ser. Todavia, isso não deve ser entendido sem precaução e sem critério, pois de acordo com a definição precedente, o pensamento enquanto é um conceito sensível da mente, 126 Primeira parte do ser em geral e em particular representativo dos objetos e das percepções, nunca pode estar isento de modificação, uma vez que ele não existe senão pela determinação dos objetos. E, portanto, se [o pensamento] é infinito na substância, enquanto é um atributo dela, deixa de sê-lo assim que exista especificamente, mesmo na suposição de que possa representar ao mesmo tempo, por uma única ideia completa, a infinidade de modificações da substância. Esta verdade se tornará ainda mais evidente se considerarmos que não só o pensamento tem como seus objetos todos os modos possíveis da extensão, que é infinita por sua qualidade de atributo, mas que todas as modificações de que ele mesmo é capaz são igualmente seu objeto, a mente não sendo menos sensível à percepção das modalidades do pensamento do que àquelas da extensão. Ora, a consequência natural dessa consideração nos levaria a dizer que há uma contradição em sustentar que esses atributos são infinitos, visto que o [atributo] do pensamento seria precisamente o dobro do [atributo] da extensão, numa unidade aproximada [à une unité près]; medida e numeração de partes incompatíveis com a natureza do infinito, como já observamos. É preciso remarcar que aqui eu digo numa unidade aproximada [à une unité près], porque a última ideia não seria representativa, caso contrário haveria um progresso ao infinito, o que não pode ser. Mas temos uma outra regra que nos aproxima da verdade, ao nos fazer sentir, por essas dificuldades, que nos é absolutamente impossível formar qualquer ideia do Ser substancial, e que nos basta saber com convicção que nem a substância, nem seus atributos, são infinitos por suas modalidades, não podendo ter nelas um numeral infinito; mas que são infinitos por sua natureza, no sentido de que nada de real pode ser negado de sua existência, assim como nada pode existir que não lhe pertença. Se, então, depois disso, quisermos definir com precisão a maneira pela qual a ideia de Deus, ou o atributo do pensamento 127 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers envolve as ideias de todas as modalidades possíveis, tanto as que existem atualmente, como as que existiram e não existem mais, ou daquelas que existirão embora ainda não o sejam, tendo-se bem compreendido a demonstração que estabelece que a ideia de Deus representativa dele mesmo ou de tal modalidade que é a mesma coisa que o objeto representado, será necessário concluir que essas ideias particulares são em Deus como seus objetos, isto é, enquanto os seres particulares não existentes senão em potência nos atributos divinos relativamente à suas causas ou à seus efeitos, sua ideia não existe em Deus de outra maneira, mas que quando eles passam à uma existência real, que em relação à sua não necessidade não é mais do que uma duração dependente da determinação de suas causas, então a ideia de Deus os conhece e os abraça como realmente existentes e participantes de sua própria realidade: de tal forma, não obstante, que esta ideia objetiva e eles próprios não sejam senão uma e a mesma coisa, pois, como se disse, se a ideia de Deus fosse diferente, eles não seriam o que são. E daí vem que, se alguém perguntar o que pode ser a ideia divina, ou o modo de pensamento correspondente a uma matéria absolutamente desconhecida, como aquela que existe na terra perpendicularmente sob o lugar que eu ocupo, a mil léguas de profundidade, ou então o interior de um bloco de mármore, de uma árvore, de uma pedra, etc., pois é certo que tal matéria realmente existe, pois é um modo de extensão corporal, e que ao mesmo tempo é desconhecida, e pouco conhecível na suposição, qual é o modo de pensamento correspondente que lhe pode ser assinalado? A resposta não é difícil, visto que se trata apenas de aplicar a ideia de conhecimento virtual, que mostramos existir em Deus tão realmente como o conhecimento atual. De fato, quem supõe a ideia de um todo supõe a de suas partes, ao menos implicitamente. De sorte que, se quisermos formar uma ideia ou conceito particular da parte, é preciso, então, separá-la do seu todo para revesti-la de outra forma: e é assim que, abrindo 128 Primeira parte do ser em geral e em particular a massa da terra, ou de um bloco de mármore, para penetrar e conhecer o interior, o que era sólido se torna superfície e, portanto, não será mais a mesma modalidade de antes. A mesma coisa se passa continuamente no corpo animado, não havendo ninguém que não saiba que é atualmente sensível em todas as suas partes, embora existam várias das quais ele pode nunca ter tido conhecimento ou sentimento explícito, não por falta de sensibilidade, mas por falta de aplicação formal de algum objeto a essa parte, a qual ao desenvolver seu sentimento a teria de alguma maneira separada do todo onde é compreendida. Exemplo preciso do que acontece no universo material, onde a natureza e a disposição do modo de extensão determinam o conhecimento atual e virtual que dele se pode ter; isto é, a espécie do modo de pensamento que lhe corresponde.1 Mas depois de ter considerado os seres particulares em Deus, que é o princípio geral, é necessário examiná-los em si mesmos. E como me encontro ocupando um lugar entre esses seres particulares, interrogo a mim mesmo primeiro, a fim de julgar os outros pelo meu próprio sentimento. E primeiramente em relação à minha existência, busco se, apesar das conclusões anteriores, não há meio de me considerar uma substância, em consequência de que existo com todas as propriedades que chamamos de transcendentes: pois sou um, isto é, separado e distinto de todos os outros; sou verás, isto é, um ser real e efetivo; sou bom, isto é, tenho todas as qualidades necessárias à minha constituição: e daí não tenho motivo para concluir que sou uma substância real? Mas, por outro lado, se uma vez entendi a verdadeira ideia que deve ser atrelada ao nome da substância, e particularmente esta propriedade de ser concebido por si só, e de precisar apenas de si para existir, necessariamente concluirei que eu e todos 1 Em nota, Renée Simon nos informa que este parágrafo, que aparece na impressão de 1731, não está presente nos manuscritos de Valenciennes e Angoulême (cf. BOULAINVILLIERS, 1973, p. 124n1). Dos manuscritos que consultamos, num deles este parágrafo está ausente (Fr. 12242), ao passo que no outro ele está lá (Fr. 9111). 129 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers os meus pares não somos senão modalidades dependentes das causas que nos fizeram existir, ou daquelas que perpetuam nossa duração em uma certa forma e relação de partes, embora seja verdade que, em relação à existência, pertencemos ao ser absoluto, do qual apenas nós a podemos ter. Objeto-me, não obstante, que, se pertencemos ao Ser absoluto, de tal maneira que não temos existência senão pela participação na dele, deve-se concluir que, se ele é uma substância, também nós somos substâncias, ou ao contrário. Mas vejo primeiro que este raciocínio não é senão um paralogismo, já refutado no artigo em que se tratou da unidade da substância, no qual me convenci de que não podem existir várias substâncias com o mesmo ou diferente atributo: e quanto à mim em particular, o que existe em mim substancialmente sempre existiu, e existirá eternamente porque pertence ao Ser absoluto, por outro lado, quanto à modalidade ou maneira de ser que depende de causas particulares, que são elas próprias modalidades, e que não têm nada em comum com a substância, serei absolutamente destruído assim que cair na esfera de uma causa contrária àquela que me fez existir. Portanto, devo me assegurar na conclusão de que os seres particulares, considerados em sua forma ou maneira de ser não são substâncias, apesar das qualidades transcendentes que lhes são próprias, porque essas mesmas qualidades não entram na verdadeira definição da substância. Além disso, como estou certo de que não há nada além da substância, seus atributos e suas afecções, é preciso reconhecer que os seres particulares são pelo menos afecções da substância universal e modalidades de seus atributos, os quais, pelo poder do ser contido em cada atributo, passam à existência real pela determinação de uma causa particular, e esta por uma outra até o infinito, como também perdem esta existência por uma outra determinação. Isto posto, tudo o que resta é formar uma definição correta do ser particular, que traga à luz e sem confusão as propriedades de sua existência. Assim, digo que o ser 130 Primeira parte do ser em geral e em particular particular é uma modalidade determinada de algum atributo da substância, modalidade da qual a ideia se encontra em ato completo ou incompleto no atributo infinito do pensamento que é próprio do Ser absoluto. Ora, nos termos desta definição, nada de difícil se apresenta que já não tenha sido plenamente explicado, exceto pela diferença entre a ideia em ato completo ou em ato incompleto, que deve ser encontrada no pensamento infinito do Ser absoluto. E, não obstante, essa diferença é tão efetiva que, junto com a especificação dos atributos, é ela que estabelece a natureza e a essência dos seres pensantes e não pensantes. Com efeito, por ato incompleto, não entendo mais que uma possibilidade de ser, representada pela ideia ou pelo conceito de algum ser inteligente, possibilidade essa que se reduz à representação efetiva, sem alterar a natureza do ato incompleto, na medida em que toda a propriedade dos seres que ele especifica se limita a uma capacidade puramente passiva de ser representada por uma imagem ideal e que, assim, a realidade ou não realidade de uma tal representação não muda nada para a natureza do objeto: e é por isso que foi notado acima que basta que tais seres sejam conhecidos ou conhecíveis por algum modo de pensamento que lhes corresponda na infinitude do atributo divino. E por ato completo, entendo uma afecção sensível, bem como representativa de tudo o que acontece ao próprio objeto de um ser pensante. De sorte que o Ser pensante não é realmente distinguido do não pensante (a especificação do atributo à parte) senão pela percepção que ele é capaz de receber, tanto do estado quanto da disposição de seu próprio objeto, quanto de todas as coisas que fazem impressão sob esse objeto, enquanto o não pensante se limita à possibilidade de ser representado por uma imagem sensível a quem a recebe, mas insensível àquele de quem ela se toma. Por outro lado, como já fomos aqui antes convencidos de que a ideia objetiva, que é em Deus, de todas as modalidades de seus atributos, não é realmente senão uma e a mesma 131 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers coisa com elas, devemos concluir que o ser pensante e o não pensante diferem entre si como a ideia de um e do outro que são em Deus; mas essas ideias são igualmente em ato, visto que constituem igualmente seres reais e efetivos. É preciso, então, reconhecer que a diferença que existe entre elas não pode relacionar-se senão com a natureza do próprio ato, segundo o qual a ideia do ser pensante é dita existir em ato completo, e a ideia do ser não pensante em ato incompleto, isto é, menos perfeito que o precedente. E daí tenho o direito de concluir que toda a diferença dos seres é estabelecida sobre a natureza e a qualidade do ato, que determina a ideia objetiva de Deus em relação a eles. Porém, segue-se ainda deste princípio, 1º que todo ser pensante é formado no atributo do pensamento de uma porção determinada e modificada do pensamento infinito da substância, uma vez que a ideia objetiva que é nela, e a mente que é o objeto desta ideia, foram demonstradas serem a mesma coisa. E 2º que no atributo da extensão o ser pensante é formado a partir de uma determinada porção da mesma extensão, que se torna o objeto próprio desta modificação do pensamento, pela determinação da ideia objetiva que é em Deus, de tal maneira que tudo o que pode acontecer a este objeto se lhe tornará sensível e conhecido por uma imagem certa da impressão de todas as causas que agirão sobre ele. E, portanto, a mente será precisamente definida como um modo de pensamento correspondente a um certo modo da extensão pelo qual é determinada, como pelo seu objeto próprio e necessário. E, portanto, a ideia objetiva e divina, que especifica a mente humana e que a faz existir, abrange necessariamente a do corpo humano, como de seu objeto próprio: pois se não fosse o corpo, a mente não teria nenhuma percepção do que lhe acontece, ou pelo menos não a teria senão como de um corpo estranho; mas ela não tem percepção de outros corpos senão através de seu corpo: então, seu próprio corpo é seu objeto e não qualquer outro, senão em relação com ele. 132 Primeira parte do ser em geral e em particular É por isso que concluo que sou composto de corpo e mente, e que todos os outros indivíduos que participam da sensação e da inteligência são proporcionalmente da mesma natureza e composição que eu: de tal sorte que com eles, como comigo, o corpo e o pensamento estão unidos como a ideia está ao seu objeto, e que ambos recebem sua existência tanto da modificação dos atributos substanciais quanto da ideia de um e do outro reduzido [réduite] em ato completo, que se encontra em Deus. Daí se segue que, em geral, as ideias de Deus em relação aos seres particulares, de qualquer natureza e propriedade que eles sejam, são entre si como seus objetos, porque se supõe que sejam iguais e que não podem ser outras de acordo com as provas que demos. Portanto, a realidade e a perfeição das ideias são relativas às dos objetos e, reciprocamente, as dos objetos às das ideias, visto que está provado que a ideia objetiva de um modo e o modo mesmo não são senão um. E é nisso que consiste toda a diferença individual ou especial que se encontra de homem para homem ou de homem para outra espécie, desde o último inseto que parece ter sensação e percepção de si mesmo, até a inteligência mais elevada que possa ser concebida. Nem todo modo de extensão inclui necessariamente o modo de pensamento, embora seja evidente que os modos de ambos os atributos se correspondem proporcionalmente. Aquele, então, que reúne o pensamento ou o sentimento à extensão, tem uma realidade a mais. E essa realidade aumenta na proporção da disposição do objeto a ser movido pelas impressões de causas externas, pois a alteração desse objeto fornece à mente um maior número de percepções, que consequentemente aumentam sua realidade, multiplicando e variando suas ideias. Observação que nos faz conhecer a grande vantagem que resulta da organização dos corpos: visto que é ela que determina a flexibilidade e a mobilidade do objeto próprio de cada mente, desde aquela que anima o inseto até a inteligência suprema, e visto que é ela que estabelece todas as diferenças individuais na mesma espécie. 133 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers Mas, segue-se ainda do mesmo princípio, que a mente que, na percepção que tem de seu objeto, melhor distingue a natureza das impressões que recebe de causas externas, aquela que menos confunde as diferentes afecções resultantes e, enfim, aquela que tem sobre seu objeto um juízo mais simples, é também a que tem ideias mais claras e evidentes, e quem está mais disposta a fazer uma comparação correta. Princípio que desenvolve o fundamento do que chamamos de razão. Todavia, é muito difícil entender perfeitamente uma tal mecânica, se não formos instruídos mais particularmente sobre a natureza dos corpos e suas propriedades. E é isso que me determina a interromper nossas considerações sobre a união do corpo e da mente para tratar fisicamente do primeiro. O corpo em geral é uma extensão sólida, isto é, um modo do atributo absoluto da extensão, e os corpos particulares são modos da extensão sólida distintos entre si por sua figura, composição, repouso e movimento. Daí se segue que todos os corpos concordam no princípio de que eles não podem ser concebidos senão como modos de um mesmo atributo, e que eles não diferem senão pelos termos que demarquei. Quanto às afecções dos corpos, notamos em geral que as primeiras são o repouso ou o movimento, a qual é considerada de acordo com sua velocidade, que tem vários graus, mas não prestando atenção senão à própria natureza do corpo, será sempre verdadeiro dizer que, uma vez que não pode haver efeito sem uma causa, os corpos não podem se mover, nem podem repousar, sem determinação da parte de um agente de mesma natureza que eles, isto é, de um outro corpo que está ele mesmo em repouso ou em movimento por uma outra determinação, e assim ao infinito. De fato, se considero um corpo em repouso sem atentar a nenhum outro, não posso julgar outra coisa, senão que está em repouso. Mas, se ele vem a se mover, sou convencido de que não é porque estava em repouso, e que seu movimento deve ter sido causado por uma determinação externa. 134 Primeira parte do ser em geral e em particular Considerando, em seguida, o efeito de uma causa externa agindo sobre um corpo, não posso duvidar que ele não resulta da ação da causa, e da reação do objeto que a sofre. De sorte que dos dois nasce um ou mais modos no corpo determinado por esta causa. Assim, quando um corpo cai sobre outro, ao qual ele não pode comunicar nenhuma parte de seu movimento, resulta em um modo de reflexão pela conservação do mesmo movimento no primeiro desses corpos. A respeito da maneira como os corpos se associam [joignent] entre si, observamos que, sejam eles de igual ou diferente grandeza, sejam todos eles em repouso ou em movimento, se são constrangidos [resserrés] por outros corpos, se eles se tocam por suas superfícies, se se aderem ou se penetram reciprocamente, esses corpos se dizem unidos, e juntos compõem um todo de uma certa figura, que é um modo da extensão sólida, que chamamos de indivíduo corpóreo ou suporte. A composição desses indivíduos os torna mais difíceis ou mais fáceis de se separar. E daí vêm as distinções de duro, mole, fluido, etc. Se algumas das partes desses indivíduos são separadas de seu todo, e que lhes sucedam outras de mesma natureza, o indivíduo conservará seu ser, sua composição e seu nome, porque os corpos não se distinguem por sua substância e porque o ser de tal e tal indivíduo não consiste senão em sua composição. Igualmente, se as partes desse todo aumentam ou diminuem proporcionalmente entre elas e ao todo, se essas mesmas partes mudam de movimento sem perder a relação que têm entre elas, se até mesmo cessam de se mover completamente ou em parte sob a mesma condição, é evidente que o mesmo indivíduo subsistirá sempre. E disso é preciso concluir que existem indivíduos de todas espécies: alguns compostos de corpos muito simples, outros eles próprios compostos de outros indivíduos, e ainda outros desses últimos, e assim por diante até a universalidade 135 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers das coisas que é ela mesma nesse sentido uma espécie de indivíduo cujas partes mudam perpetuamente, e em uma infinidade de maneiras, sem que sua natureza seja alterada ou cesse de ser a mesma. Aplicando agora essas noções ao corpo humano, concluo imediatamente que se trata de um indivíduo composto de vários outros, os quais têm também suas partes individuais. Percebo que dos indivíduos de que sou composto, uns são duros, outros moles, outros fluídos, etc., que esses indivíduos mudam, alteram-se, dissipam-se e que preciso reparar a perda de outros corpos individuais, que tomam o lugar das partes dissipadas. Observo ainda que as impressões das causas externas mudam ordinariamente o plano e a figura de minhas partes. Enfim, creio sentir em mim mesmo não sei que força que tomo por um poder de mover meu próprio corpo, e por seu meio vários outros, sem que eu possa me assegurar, não obstante, de que não seja o efeito de uma determinação externa, cuja causa não me é conhecida. Por essas observações, mesmo que eu não tivesse uma experiência certa, poderia concluir que a mente humana é capaz de ter uma quantidade muito grande de ideias e percepções diferentes, visto que ela deve natural e necessariamente sentir e conhecer o que acontece à seu objeto. Mas é preciso ainda julgar que o modo de pensamento que estabelece sua existência não consiste em uma ideia simples, mas que resulta da sucessão de suas diversas ideias relativas a todas as afecções de seu corpo e de suas partes, não em relação ao detalhe de sua composição ou arranjo, mas em relação às diferentes impressões de que elas são suscetíveis. Igualmente, concebo que as ideias das diferentes afecções do corpo humano e de suas partes envolvem as de outros corpos, que agem sobre elas e sobre ele, porque de outra forma ignoraria como é que, com a percepção de meu próprio ser, eu também tenho a de tudo o que excita essa percepção. 136 Primeira parte do ser em geral e em particular Enfim, encontro no mesmo princípio a causa pela qual conheço tão pouco a natureza de meu próprio corpo e minha constituição, dos quais não posso ter ideias senão por minhas sensações. Assim como não conheço outros corpos senão pelas impressões que eles fazem sobre o meu, as quais me asseguram simplesmente de sua presença, ou um pouco mais, até que outras impressões as afastem de mim, apaguem ou enfraqueçam a percepção que delas tenho. Por outro lado, observando que às vezes temos uma percepção tão viva dos objetos ausentes quanto dos presentes, para penetrar na causa dessa igualdade irregular, observo que o efeito necessário da ação dos objetos é de modificar as partes do corpo, sobre as quais eles agem, de sorte que a impressão continue por muito tempo, mesmo na sua ausência, o movimento que é formado na sua ocasião alterando as partes próximas e estas as seguintes, até que resulte numa disposição duradoura nos órgãos frágeis do cérebro. Mas porque essa percepção dos objetos externos é muito diferente daquela que se tem do que se passa em si mesmo, chamo de imagem a ideia de objetos que permanece após a impressão, e chamo de imaginação o poder que cremos ter de contemplar essas imagens excitando certos órgãos ou recordando de sensações passadas. O fundamento da imaginação nada mais é do que a percepção de objetos que agem ou que agiram sobre o corpo. Mas como não existe uma percepção simples que não diga respeito à ação de vários agentes de uma vez, as partes orgânicas não podem assumir a situação ou o movimento que renova essa percepção, sem relacioná-la inteiramente com as imagens de todos os objetos que concorrem para formar esta percepção. Mecânica que nos revela em que consiste a faculdade da memória, a qual por ocasião de uma imagem imediatamente evoca outra, de acordo com a sequência e o encadeamento das percepções passadas, embora essas imagens muitas vezes não tenham relação umas com as outras, como não há entre as palavras e as coisas significadas. 137 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers Confrontando a seguir a ideia que essas diferentes reflexões nos dão da natureza da mente com a tese principal que postula que o pensamento é um atributo do ser absoluto, e que os seres particulares dotados de pensamento são modos deste atributo, distinguidos uns dos outros por seus objetos, encontro-me em condição de concluir que minha mente é, então, um modo de pensamento, distinto das outras mentes pelo objeto que lhe é próprio, o qual é meu corpo, e que todavia não conhece este corpo, nem a si mesma, nem sua existência, nem sua composição, nem a de outros senão pelas afecções deste mesmo corpo. Ou, diferentemente, pois não será demais repetir tais princípios e de muitas maneiras diferentes, a mente humana é estabelecida pelo conhecimento íntimo e sensível que tem necessariamente de tudo o que acontece ao corpo humano, composto, movido, alterado, reparado em suas diversas partes, que são elas próprias alteradas, compostas, movidas, reparadas, etc. Mas não é estabelecida pela ideia ou pelo conhecimento do movimento, composição, mudança e reparação do corpo, nem de suas partes: porque a ideia objetiva que faz toda a realidade dos seres particulares não estabelece a existência de mentes senão sobre a sensibilidade das afecções de seus objetos que são os corpos. Essas verdades que se desenvolvem pouco a pouco me fazem perceber (embora ainda com alguma confusão) que o sistema que estabelece a essência das mentes em um pensamento só e puro é muito mais sutilmente imaginado do que verdadeiro ou sólido. De fato, é tão difícil para mim conceber um pensamento sem objeto, sem representação e sucessão de imagens, quanto uma sensação sem órgão. O que seria, por exemplo, uma alma separada de seu corpo, senão um pensamento vago, indefinido, despojado de objeto real e de sentimento? É verdade, todavia, que o ser sendo infinito e suas modalidades também, não há fundamento suficiente para negar que não possa haver outras inteligências muito acima das mentes humanas, como há várias e em uma quantidade 138 Primeira parte do ser em geral e em particular imensa que estão abaixo em diversos graus de inferioridade, desde que concedamos a essas objetos particulares em alguns dos atributos divinos. Se levarmos essa discussão adiante, também descobriremos a razão pela qual a mente não conhece a si mesma, ignorando sua natureza e sua essência, suas propriedades, a origem de suas ações, sua verdadeira duração e, para dizer tudo, os fundamentos precisos de seu repouso ou de sua esperança. Ela pode na verdade dobrar e triplicar suas ideias, isto é, ter ideias das ideias de seus afetos, porque ambas são sempre percepções. Mas ela não se conhece melhor, visto que não existindo senão como representação sensível e sucessiva das afecções de seu corpo, não poderia ter uma ideia mais completa de si mesma do que do objeto sem o qual ela não seria. Além disso, como as partes constitutivas deste objeto não são de sua essência, e que não é senão sua conjunção ou a relação que existe entre elas o que o faz o que é, seguese que nenhuma ideia dessas partes se acha particularmente contida na ideia total do ser humano, exceto de uma maneira simplesmente condicional, que não pode fornecer senão uma noção absolutamente imperfeita do todo. Assim, infelizmente, a imperfeição do nosso conhecimento está muito bem fundada, tanto na ignorância em que nos encontramos da verdadeira natureza de nossas mentes e dos nossos corpos, bem como da sua constituição, como na impossibilidade de penetrar na dos objetos exteriores que não nos são comunicados senão pelas sensações. Não deveria, portanto, ficar surpreso de me descobrir ignorante de minha própria duração, ou da dos outros, já que minhas noções são todas superficiais e incapazes de atingir a natureza em seu interior. Descubro mesmo a razão pela qual me acostumei a ver os eventos como contingentes, a saber, de um lado a certeza de que a existência de seres particulares não contém por si mesma qualquer necessidade e, de outro, a ignorância da ordem das causas e das determinações especiais que os fazem existir, ou que os destroem, ou fazem com que mudem de disposição. 139 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers Contudo, não posso me conhecer, e aos outros homens, tão pouco que não saiba que nós raciocinamos, ou seja, que podemos comparar nossas ideias entre elas e tirar conclusões. Como isso pode ser, se nossas mentes não existem senão pela continuação ou sucessão de ideias representativas das afecções de nossos corpos? E esta dificuldade resolvida, qual é a regra de julgamento que nós irá garantir que sabemos e conhecemos algo de certo e de verdadeiro? A respeito da primeira questão, aqui está como eu acho que ela pode ser respondida. É evidente que as afecções do corpo são de tal maneira o objeto da mente que não se tem percepção alguma que não seja pensamento, nem reciprocamente algum pensamento que não seja percepção. E se isso fosse de outra forma, pensaríamos sem sentir e sem ter conhecimento, o que é absurdo. Ora, a memória, da qual começamos a formar uma ideia, é sensivelmente o depósito das imagens de todas as percepções, e das ideias refletidas das mesmas percepções. Por outro lado, a imaginação que se representa como uma potência ativa e livre, e que, todavia, não é senão a determinação consequente de alguma afecção do corpo, excita essas imagens segundo sua relação e a dependência nas quais elas estão uma para com as outras. Diremos ainda que, para comparar essas imagens, para conhecer o que elas têm de semelhante ou de diferente, para formar uma nova ideia, para ter uma nova percepção de uma ou de outra, seria preciso supor novas faculdades em nossas mentes, uma apreensão que tome os objetos, um juízo que afirme ou que negue e uma razão que conclua? É numa tal ocasião que podemos dizer que o homem se apraz em multiplicar os seres sem necessidade, visto que a simples percepção basta para todas essas diferentes operações. De fato, não é evidente que, quando se trata de comparar duas ideias ou duas imagens, o sentimento sozinho nos revele o que elas têm de comum ou de diferente e que a conclusão nada mais é que a sensação mais ou menos perfeita de sua conveniência ou desconveniência, a qual quando se 140 Primeira parte do ser em geral e em particular chega até o grau que chamamos de evidência e convicção, não é senão uma percepção mais viva e que grava tanto melhor sua imagem na memória, como todas as outras de mesmo gênero? É, então, verdade que nossos pensamentos mais sutis, conquanto, todavia, que sejam pensamentos (pois muitas vezes há amontoados de palavras que nada significam), não são senão as imagens de nossas percepções, iguais ao mais simples no princípio comum, que é a sensação, mas mais delicados nos retratos que elas nos pintam, porque são traçados pela reflexão e consequentemente mais desprendidos da matéria. Nós nos expressamos, em seguida, esses pensamentos uns aos outros com mais ou menos leviandade, propriedade de expressão, e mais ou menos prazer e convicção na audiência, conforme o estado que ela está pela disposição de seus órgãos de serem tocados de uma sensação de certa espécie. Pois já observamos que é a flexibilidade das partes que determina a propriedade das mentes. Assim, não precisamos nos espantar de encontrar homens para os quais a linguagem dos outros é ininteligível sem diferença de idioma, porque deve haver a mesma desproporção entre as ideias de uns e as de outros, do que entre seus órgãos e as disposições de seus corpos. A mesma demonstração se estende ao animal e ao inseto que raciocinam à sua maneira, por comparação das imagens que lhes são presentes e por aquiescência à evidência, isto é, à sensação mais forte, sem que haja outra diferença entre eles e nós do que a organização, tal como se encontra de homem para homem, embora em uma menor distância. Mas não podemos insistir contra esse discurso e dizer que, se a mente age sobre suas ideias, se ela pode efetivamente compará-las, reduzi-las ao que elas têm em comum e conhecer suas diferenças, é impróprio que eu diga que essas mesmas ideias são a forma da mente, sem outra diferença senão aquela que se concebe entre a figura e a extensão sólida: porque a mesma diferença que existe entre o homem e a sua obra deve ser entre a mente e o raciocínio. 141 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers Enganamo-nos, não obstante, a mente não trabalha sobre suas ideias como sobre um assunto distinto dela mesma. Ela compara com a verdade as imagens de suas percepções, ela forma as ideias de suas ideias, ela as duplica, as aumenta, as diminui, as separa, mas sempre como imagens de suas percepções, e nunca como uma coisa distinta da impressão sensível que elas fazem sobre ela, visto que ela não pode conhecê-las nem julgá-las de outra maneira. Quanto à segunda questão, que diz respeito aos meios de conhecer a verdade e de alcançar uma certeza, a única que pode produzir o repouso da mente, antes de responder é necessário estabelecer alguns princípios a respeito da imaginação e das ideias. O primeiro é que o princípio do erro não está na imaginação: isto é, a mente não erra em consequência do que tem das percepções, e do que ela se representa nas imagens, mas somente porque ao representá-las não tem faculdade crítica, capaz de rejeitar a ideia daquilo que imagina mal: pois ao formar um conceito, se conhecesse sempre a realidade ou não realidade do que imagina, não se enganaria nunca. O segundo, que toda ideia, enquanto é um modo de pensamento, é verdadeira e real nela mesma e não contém nada de positivo pelo qual possa ser dita falsa; tanto é assim que, se a falsidade fosse qualquer coisa de real, seria um modo de algum atributo do ser absoluto, o que não pode ser. Ora, a palavra verdadeiro afirma a existência de algum modo, e a palavra falso nega essa mesma existência; consequentemente, é certo que o falso não é positivo. Então, para que uma ideia seja verdadeira no sentido natural, é suficiente que ela exista, mas para que seja justa e proporcional ao seu objeto, e verdadeira a respeito dele, é preciso que esse objeto exista realmente tal como é representado por essa ideia e, enfim, para que a mente possa aquiescer a essa ideia, ela precisa conhecer essa conveniência por uma percepção viva e sensível, que não admite nada contrário a si mesma, e a ideia dessa percepção é o modo de pensamento que chamamos de evidência. 142 Primeira parte do ser em geral e em particular A falsidade, ao contrário, não pode ter outros princípios que a não existência dos objetos ou das qualidades que lhes supõe, ou também a negação do que existe realmente. Assim, não encontro senão defeito de conhecimento, visto que são as mentes que erram e não os corpos. No entanto, isso não é uma ignorância total: porque se enganar e ignorar são coisas muito diferentes. É, então, um conhecimento imperfeito que pode resultar, quer de uma percepção confusa, quer de uma prevenção contrária à verdade, quer do fascínio das paixões, todos os quais podem emprestar a vivacidade e a sensibilidade que atribuímos à evidência, mas que, não obstante, são os verdadeiros e únicos obstáculos que podem nos impedir de reconhecê-la. O caráter próprio, o índice seguro da verdade, não pode, então, ser encontrado em outro lugar senão na evidência, porque qualquer outro tipo de convicção de antemão se tornará suspeita para uma mente livre, e não prevenida, em lugar daquela que é o efeito da evidência nítida, clara, distinta, que não é combatida por nenhuma ideia contrária ou desconveniente, mas, antes, que exclui absolutamente a incerteza. De fato, o que é saber uma verdade senão conhecêla bem, entendê-la perfeitamente? Ora, posso ter o sentimento desse conhecimento sem sua ideia, ou sua ideia sem sua percepção? É me impossível saber que duvido ou que tenho certeza, se efetiva e anteriormente não tenho o sentimento ou a consciência de minha dúvida e de minha certeza; mas isso não é a continuação ou a consequência de um estudo laborioso ou da arte de construir silogismos. Tudo se faz aqui por sentimento, ao qual não está em nosso poder contradizer, ou recusar uma aquiescência interior. O erro, pelo contrário, é uma imagem imperfeita e disfarçada, que representa um objeto que não existe, ou que o reveste de qualidades que não tem, ou que nega aquelas que ele possui, imagem que, enquanto é o conceito de um ser pensante, é, no entanto, realmente um modo de pensamento, bem como a evidência que é um modo de outra espécie; mas 143 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers sua realidade, que é igual quanto à existência, não o é quanto a representação, visto que um é suposto dos objetos que existem como tais, e o outro de objetos que não existem. Segue-se, então, que a ideia verdadeira e a ideia falsa diferem uma da outra, como o ser e o não-ser, visto que tal é a diferença entre seus objetos. Minhas ideias se esclarecem, bem o vejo, e ainda assim essa evidência que deve banir a incerteza e fazer conhecer nuamente a verdade parece ainda fugir diante de mim. Uma nuvem de novas dificuldades vem me confundir, e sinto toda a força dos preconceitos do hábito e da educação: por que, afinal, não existe entre nós uma ciência que nos ensine a julgar a força ou a fraqueza de um raciocínio, uma arte que ensine a persuadir os outros, a treinar seus sentimentos e a convencê-los? Mas se esta ciência é verdadeira, se esta arte não é uma ficção, o que acontece com toda a pretensa mecânica das ideias, percepções e do raciocínio mecânico? Sentimos, de fato, que o raciocínio é uma obra da mente, na qual não só discerne as provas que quer empregar, depois de ter estimado o valor, mas as arranja, distribui, sustenta umas nas outras, em suma, ela as compõem à sua vontade. Por outro lado, se se trata de persuadir, de obter, de defender, de acusar, há uma arte na conduta da palavra e das expressões que dificilmente falta ao fim a que se propõe; mas essas palavras e expressões são apenas os signos de nossas ideias. Então, se a arte se aplica sobre essas, ela consequentemente regula aqueles, e os regula primeiro sem nenhuma dificuldade. Existe uma ciência, uma arte, um método que possa regular os efeitos supostamente determinados por causas externas e totalmente independentes de nós? Além disso, qual é a faculdade que nos resta, capaz de empregar esta arte e este método, se a ideia que temos da vontade não é senão uma pura quimera, e se nossos órgãos não são usados senão por uma determinação que tem sua causa fora de nós? Essas são as dificuldades que a antiga prevenção ainda suscita para mim. Mas antes de trabalhar para resolvê-las, é necessário, parece-me, conceber a significação dos termos ciência, arte, método. 144 Primeira parte do ser em geral e em particular Quanto ao primeiro, creio que pelo nome de ciência nós devemos entender um acumulado regular e metódico, composto por um certo número de ideias verdadeiras e definidas, a respeito deste ou daquele assunto. E seguindo esta definição, podemos assegurar que não pode haver falsa ciência, uma vez que assumimos que todas elas devem ser estabelecidas sobre ideias verdadeiras. Portanto, resta evidente que a ciência deve ser definida como um conhecimento verdadeiro e metódico de algum assunto que é adquirido por instrução ou por experiência. E assim, rejeito a frívola definição da Escola que, supondo que a ciência é o conhecimento dos objetos por suas causas, exclui a todas em geral, visto que não temos tais conhecimentos. Mas, segue-se de nossa definição que o fundamento de toda ciência é o órgão da memória, cujo dever e propriedade é de conservar as imagens de todos os tipos de ideias e de todos os tipos de percepções. 2º Chamo de arte toda operação metódica dos órgãos humanos, concomitante com as ideias e as imagens traçadas na memória pela instrução e pela experiência. E observo sobre este assunto que o homem sendo um autômato, isto é, movendo seu próprio corpo de acordo com certas determinações, pode consequentemente excitar e aplicar seus órgãos de acordo com as mesmas determinações. E tanto mais que a memória está compreendida entre esses órgãos, o método de dar uma ordem às ideias que são conservadas cai tão bem na classe das artes quanto a direção da língua, ou da mão, ou de qualquer outro órgão mais sensível do que ela é. Enfim, chamo de método o uso resultante da experiência que torna conhecido sensivelmente os meios mais fáceis de atingir um fim proposto. E, portanto, o órgão natural da arte e do método é a imaginação que faz reviver igualmente todas as imagens contidas na memória, seja como termos, seja como meios, seja como peças inúteis. Ora, essas definições postas, quem pode negar que a ciência, a arte, o método não possam ser adquiridos e empregados pelo homem, ser mecânico e determinado por 145 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers suas causas externas, tal como o descrevemos? Ele pode ter ideias verdadeiras assim como supomos que ele pode ter de qualquer espécie que seja. Mas é evidente que não pode haver nenhuma sem percepção e, consequentemente, sem uma causa externa. Ora, como a experiência própria e particular do homem não lhe pode fornecer senão um número muito limitado de ideias verdadeiras, porque a vida é curta, as ocasiões raras, e porque o espírito quase nunca está atento, ele também tem a vantagem de poder se beneficiar da experiência dos outros, recebendo deles, através do órgão da fala, a percepção de certas imagens verdadeiras, que eles próprios receberam daqueles que os precederam ou de sua própria experiência. Ora, quem poderia duvidar de que, a partir desse número de ideias tidas como verdadeiras, não se pode formar um conhecimento verdadeiro, isto é, uma ciência concernente a tal e tal assunto? Quem poderia igualmente duvidar de que essas ideias sejam suscetíveis de alguma ordem e algum arranjo, sobretudo da parte daqueles que as possuem há muito tempo, as manipulando e comparando à vontade, e conhecendo as novas percepções que essa comparação produziu neles? Donde eles concluíram que teria o mesmo efeito em outros; método que produziu os diferentes sistemas de ciência que vemos e que forma a cada dia o que chamamos um raciocínio, que não é outra coisa, como já foi dito, senão um acumulado de percepções refletidas, isto é, nascidas da comparação de outras ideias ou percepções precedentes. Ora, como duvidar que a memória conserva as imagens dessas novas percepções na ordem e na relação em que elas lhes são apresentadas, ou naquilo que depende da configuração das partes do órgão, segundo a qual uma ideia remete a uma outra progressivamente até o termo da determinação que excitou a primeira? Isso não coloca nenhuma dificuldade e nem pode ser de outra maneira. Admito, todavia, por ser uma consequência necessária da mecânica do ser humano, que há órgãos mais bem dispostos do que os outros para 146 Primeira parte do ser em geral e em particular adquirir essas percepções ou imagens refletidas, como há muitos outros que as recebem mais nitidamente, outros que os expressam com mais força ou mais graça e leveza. Pois a persuasão, que nada mais é do que uma percepção preferida por quem é tocado por ela, é consequência ou da paixão que o orador sabe despertar e conduzir, ou da evidência das razões que sabe empregar, as quais se tornam percepções no ouvinte, como foram primeiramente nele. O que se torna, depois desse detalhe, toda a força das objeções que me propus? De fato, concebo melhor que a mente tem um poder real de inventar e forjar razões ao seu critério, do que posso conceber que essas razões estando prontas, ela tem a percepção delas, pela comparação que o sentimento opera nela, das imagens dos objetos que lhe são presentes, ou que estão gravados em sua memória, e que ela tem o poder de exprimir tal percepção, que se tornou ideia, seja pela fala, seja pela escrita? Há mais verossimilhança em supor que um homem pode governar sua mão para fazer alguma obra, do que dizer que ele conduz sua língua e suas expressões e que essas expressões são os signos de suas ideias, de sua nitidez, clareza, arranjo, ordem e consequência? Admito que não entendo em que se possa basear a disparidade dessa economia, pois se o homem tem a direção arbitrária de um de seus órgãos, deve ter a de todos os outros, ou ao contrário. Assim, a dificuldade se reduz essencialmente ao artigo da vontade, a qual imaginamos ser a única faculdade que pode empregar e dirigir os órgãos humanos. Mas é fácil julgar, pelo que temos dito, que não pretendemos atacar a realidade da vontade na medida em que expressa o desejo, que é verdadeiramente o princípio e a fonte de todas as nossas ações, e que nós não a negamos senão no sentido de que é suposta uma faculdade livre e indeterminada por uma causa diferente dela mesma: o que é absolutamente oposto à natureza de um ser modal e não necessário. Quanto ao desejo, cuja natureza explicaremos mais exatamente na segunda parte desta obra, basta considerar 147 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers que não há nenhum que não se relacione com algum objeto, para nos convencermos de que não é também tal que não seja necessariamente determinado e, consequentemente, incapaz de qualquer outra espécie de liberdade que não a espontaneidade, pela qual querer e desejar se tornam a mesma coisa. Assim, como é verdade dizer que a exclusão do objeto exclui consequentemente a realidade do desejo, é preciso admitir que a impressão do objeto é a causa necessária da determinação do desejo. Pode-se dizer que o homem deseja em geral ser feliz e que este é o primeiro móvel de sua vontade, que em seguida se porta livremente entre os diversos objetos. Mas essa objeção não se funda senão sobre um erro da imaginação que nos faz crer que, como nos contentamos quando nossos desejos são satisfeitos, nós não desejaríamos senão nos tornarmos felizes. Donde se conclui que nada desejamos senão em relação à nossa felicidade, que é o termo necessário de nossos desejos, e que abraçamos os objetos simplesmente por ocasião. Porém, como sobre matérias semelhantes a experiência é o guia mais seguro, creio que podemos assegurar que nenhum homem visa a felicidade sem determinação do objeto, na fruição do qual espera em vão encontrá-lo: visto que a satisfação de um desejo não pode determinar a de outro, e as impressões dos objetos são sucessivas e independentes umas das outras. Reservo-me a tratar esta matéria na sequência com mais precisão e extensão, para desenvolver o fundamento da mecânica de nossos desejos e, consequentemente, de nossas paixões. Mas já disse o suficiente neste lugar para tornar conhecido de que maneira o desejo supre a vontade na direção dos órgãos humanos. Chegamos enfim à investigação principal e verdadeiramente essencial que consiste em determinar se é possível conhecer a proporção de uma ideia com o seu objeto existente e, suposta essa possibilidade, quais são os meios e as regras que podem nos conduzir a tal conhecimento. Esta discussão é tanto mais necessária porque só ela pode nos assegurar que sabemos algo de verdadeiro, e que só ela pode, 148 Primeira parte do ser em geral e em particular por assim dizer, verificar a ideia da evidência, da qual o erro seguidamente toma emprestado a semelhança. Ora, o primeiro passo que pode ser dado nesta busca nos convence absolutamente da verdade que já tantas vezes expressamos, a saber, que nada acontece na economia do intelecto humano que não tenha sua causa efetiva no sentimento pelo qual distinguimos os objetos e as suas imagens de uma maneira evidente e irresistível: visto que não está mais em nosso poder confundir as imagens do branco e do preto, isto é, representar um como o outro, do que aniquilar a diferença física e real que existe entre essas duas cores. Mas se não distinguimos positivamente os objetos uns dos outros senão em razão da percepção que deles temos, segue-se que não distinguimos suas imagens de nenhuma outra maneira e que, portanto, a sensação e a ideia resultante são os princípios necessários de nossos julgamentos. Que se levarmos adiante esta reflexão, estendendo-a à proporção da ideia com seu objeto, é ainda evidente que o sentimento sendo o juiz natural e incontestável, visto que não está em meu poder formar uma imagem diferente de minha percepção, nem de me representar o amargo como o doce, ou o branco como o preto. Ora, é precisamente esta inevitabilidade do julgamento, ou da conclusão, que é feita pela mente como consequência da percepção, que se chama de evidência, pela qual entendemos a certeza que temos da conformidade de nossa ideia com o objeto que ela representa. De fato, que tipo de certeza ou convicção eu poderia exigir ou imaginar diferente daquela que resulta do sentimento, a fim de permanecer convencido que a ideia que tenho do branco está de acordo com a brancura que eu vejo, e diferente do vermelho que vejo também? Isso é da evidência como de todas as outras ideias simples, as quais é impossível representar por qualquer conjunto de outras ideias, ou de palavras escolhidas para significá-las. De fato, a ideia da evidência não admite nenhuma composição. É um ato tão simples que nenhuma outra ideia além da sua poderia 149 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers representá-la. Mas seu poder é tão efetivo que, como ela exclui necessariamente a suspeita, a desconfiança e a dúvida, ela convence absolutamente a mente por uma percepção igualmente certa e irresistível. Pedir ou pretender mais da natureza do homem é ignorar suas forças e sua constituição: e tudo o que imaginamos para além nada mais é do que substituir a verdade mais sensível pelas mais vãs quimeras. Bem sei que se objetaria os erros tão comuns de nossas sensações, que são uma aparência de prova contrária a essa proposição. Mas devemos atentar que esses mesmos erros não são descobertos nem corrigidos senão por outras sensações, sem as quais nenhum tipo de raciocínio poderia nos convencer do primeiro erro. Quando, afundando minha bengala na água, a percepção me representa ela rompida, não há melhor prova para me fazer conhecer que é um erro da sensação do que retirar a mesma bengala da água, e posso dizer que todas as razões buscadas pelas regras de refração para assinalar a causa de tal aparência não foram imaginadas para preveni-la, pois seriam realmente insuficientes se a segunda percepção não as justificasse. Se a natureza tivesse disposto nossa constituição de tal maneira que todas as nossas percepções concorressem para formar o mesmo erro, a objeção proposta teria toda a força que se supõe; mas, visto que, ao contrário, a experiência nos assegura que uma espécie de sensação corrige a outra, devemos sempre retornar ao sentimento para fundar solidamente o que chamamos de evidência: isto é, a convicção de que nossas ideias são conformes aos seus objetos. Há homens que pensam sobre este assunto de uma forma mais surpreendente do que se poderia imaginar: pois depois de ter estabelecido que a verdade, como a virtude, a santidade, a justiça, etc., não existem senão em Deus, arquétipo de toda perfeição, eles dizem que o homem foi primeiramente formado com uma relação essencial com essas mesmas perfeições, e que ele não foi deturpado e tornado sujeito ao erro senão por seu pecado, de tal maneira que ainda lhe resta uma luz natural, 150 Primeira parte do ser em geral e em particular cuja propriedade é reconhecer esta verdade, embora oculta sob espessas trevas, e ligar-se a ela, após o que a inteligência cega e a vontade corrompida se encontrarão de um só golpe iluminadas e submissas pela operação da graça divina. Ora, o que eles entendem, ou o que devemos compreender pelos termos de verdade substancial, ideal ou arquétipa? Não há tantas verdades quanto pode haver fatos, proposições ou ideias, e poderíamos, com alguma sombra de verossimilhança, imaginar uma verdade ideal, em consequência da qual meu papel é realmente branco, como me parece, e sem a qual ele poderia ser preto? Essas ideias não são nem sensíveis, nem evidentes, e isso para dizer o mínimo. Mas me dirão talvez que não há mais probabilidade em sustentar que apenas as sensações possam retificar reciprocamente seus erros, e que, supondo que assim fosse, ainda seria impossível determinar o motivo de preferência pelo qual o julgamento se deveria determinar mais por uma sensação do que por outra. A respeito da primeira parte desta objeção, ela é suficientemente refutada pela experiência universal; mas quanto à segunda, que contém uma dificuldade essencial, é necessário buscar a solução. De fato, não é a vivacidade de uma sensação que pode decidir da verdade da ideia que nos representa um objeto; nem é a regularidade da sensação: pois quem poderia exigir outras regras no sentimento do que o sentimento mesmo? Então, o que é preciso para nos engajarmos em preferir uma sensação a outra, para aquiescer com a evidência de uma e para reconhecer o erro da outra? O obstáculo mais fatal ao conhecimento dos homens é sempre sua própria disposição. Prevenidos de paixões de tal ou tal espécie, devoção, devassidão, raiva, amor, ciúme, curiosidade, eles não veem quase nada em seu estado natural. O objeto é sempre disfarçado pela cor do meio através do qual é apercebido. Espere, então, até que a disposição do órgão seja mudada, que seja restabelecida em uma justa liberação, e 151 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers a percepção será de um tipo totalmente diferente, assim como a determinação do julgamento. Mas, dir-me-ão, quem será o juiz desta disposição do órgão? A isso não tenho nada a responder, senão o que eu diria a um homem repentinamente acordado de um sono profundo pelo terror de alguma coisa: esteja certo de vosso estado, conheça vossa disposição e então julgue a causa de vosso medo ou de qualquer outra paixão você sentir. E, de fato, entre todos os exemplos que eu poderia escolher para dar a conhecer o quanto a certeza de uma percepção prevalece sobre uma outra, não há nenhum mais adequado do que o do sono e da vigília, ou melhor, das sensações que nos chegam em um ou outro desses dois estados. A impressão de umas e de outras é amiúde igualmente poderosa. A memória delas também é distinta, as paixões que resultam também são vivas, e a própria imaginação é de tal maneira seduzida por elas, que por vezes ignora se as ideias que ela teve em sonho de certas percepções não são realmente o efeito de sua reflexão. Ora, de minha parte, pergunto por qual regra o homem distinguirá certamente as percepções da vigília daquelas do sono, e como é impossível que haja outras além do sentimento mesmo, concluirei sempre que a evidência não pode ser legitimamente fundada senão sobre o sentimento. Isso é bom, responder-me-ão, pelos exemplos que você propõe, em que podemos ter diferentes percepções de um mesmo objeto; mas não podemos razoavelmente aplicálo aos objetos dos quais a percepção é sempre semelhante, embora seja constante que ela nos engane. Tal é aquela que nos representa as estrelas como pequenas tochas presas ao firmamento, sem qualquer noção de seu verdadeiro tamanho ou da imensa distância que existe entre elas e nós. Ora, este é um fato em que estamos manifestamente enganados, e a respeito do qual nenhum tipo de percepção direta pode nos conduzir a uma verdade evidente. Mas esta objeção não tem a mesma força que a precedente e não contém propriamente mais que uma 152 Primeira parte do ser em geral e em particular repetição frívola. As regras da óptica que nos conduzem a julgar solidamente da verdadeira grandeza dos corpos distantes, aquelas que nos ensinam a medir distâncias corretamente, são elas outra coisa que percepções digeridas, reduzidas em método e tão geralmente verificadas por todos os homens versados em sua prática, que as conclusões que delas se extraem adquiriram um título de certeza que não pode ser equilibrado, e menos ainda contrariado por nossas percepções particulares, que o bom senso sempre desautorizará quando lhes forem contrárias? Reconhecerei, todavia, que neste caso todos os homens não têm o mesmo grau de evidência, no que diz respeito a verdades contrárias às suas percepções. Mas, para justificar minha proposição, basta que o matemático que não vê as estrelas mais perto que eu, nem diferentemente, corrija sua própria percepção de uma maneira demonstrativa e invencível por meio de outras percepções verdadeiras, sobre as quais estão suas regras e suas máximas estão estabelecidos, e que pareceriam igualmente verdadeiros e convincentes para todos, se todos as tivessem estudado. Seja-me permitido deter-me aqui por um momento para admirar a maravilhosa prodigalidade da natureza, a qual tendo enriquecido a constituição do homem com todos os recursos necessários para prolongar até certo termo a duração de sua frágil existência, e para animar o conhecimento que ele tem dele mesmo pelo de uma infinidade de coisas distantes, parece ter negligenciado expressamente lhe dar os meios para bem conhecer aquelas de que é obrigado a fazer um uso mais ordinário, e até dos indivíduos de sua própria espécie. Porém, bem entendido, isso é menos efeito de uma recusa do que de uma extrema liberalidade, pois se houvesse algum ser inteligente que pudesse penetrar um outro contra a sua vontade, gozaria de tal vantagem sobre ele que por isso mesmo ele seria excluído da sociedade, ao invés disso, no estado presente, cada indivíduo goza de si mesmo na extensão de suas forças com plena independência, não se comunica senão tanto quanto lhe convém. 153 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers Além disso, pouco importaria para a felicidade essencial do homem que ele tivesse esse conhecimento justo e verdadeiro dos objetos dos quais ele não tem senão uso exterior. Ele pode, sem prejuízo de sua felicidade, ignorar a natureza do ouro e da prata, desde que possua o suficiente para suas necessidades. Ele também pode ignorar a natureza íntima dos animais, ou dos indivíduos de sua espécie, porque a primeira impressão passiva o instrui suficientemente sobre o que ele deve esperar ou temer. Mas quanto aos conhecimentos necessários para a felicidade da mente, embora a sua distribuição seja tão diversa, não obstante, nada falta a ninguém do que é conveniente à sua própria disposição e à extensão de suas forças: verdade em consequência da qual vemos cada um contente com o que possui, e sem a qual é verdadeiro dizer que a partilha da existência seria muito desigual. Porém, este não é ainda o benefício inteiro desta sábia prodigalizadora de nossa felicidade: porque como que para estimular o homem na busca de conhecimentos que possam contribuir para sua perfeição ou para seu bem-estar, ela lhe deu o aguilhão da curiosidade, não como propriedade destacada e externa da obra, mas como uma consequência de seu ser mecânico, segue-se que esta curiosidade, que deve servir de suplemento ao que falta na constituição orgânica, não pode se limitar a objetos escolhidos, mas deve se estender tão longe quanto as forças dos recursos que lhe dão o ser. Razão pela qual ela se aplica também e mais seguidamente aos objetos de uso do que a todos os outros, porque caem mais comumente na esfera de sua atividade. Mas isso resulta em outra grande vantagem, uma vez que seus diferentes esforços enfim produzem regras e um método por meio do que podemos julgar de maneira sadia e justa da verdade contida na ideia dos objetos menos penetráveis ao nosso conhecimento, a necessidade e o hábito lhes dando lições. E 1º concebemos que o que é comum a tudo não pode produzir senão uma ideia igual e perfeita de si mesmo, tanto 154 Primeira parte do ser em geral e em particular porque o sentimento é universal e igual, quanto porque tão logo é suposto ser comum, não se pode formar uma noção particular dele. E esse é o único caso em que poderia tornar a ideia falsa. 2º É evidente que o que é comum a todos, e a todas as partes de todos, convém à ideia objetiva de todos, isto é, à ideia que é em Deus, de todas as modalidades de seus atributos, e esta ideia é, como vimos, o fundamento da realidade de todos os seres, tanto do meu como o dos outros. Se, então, eu conheço a mim mesmo e conheço ao mesmo tempo outra coisa, isso não pode ser senão pelo que temos em comum e, então, limitando meu conhecimento a esse ponto comum, devo estar certo de que esse conhecimento é perfeitamente justo. É verdade que também conheço as coisas com distinção, e que sua ideia objetiva em Deus não é menos real a respeito desta distinção do que a respeito ao que é comum; mas como a particularidade distintiva os afasta de mim, longe de me aproximar deles, é certo que eu nunca os conheceria, se nada tivéssemos em comum. Posso, então, enganar-me ao julgar o que os indivíduos têm de particular, mas não posso errar quanto ao que nos é comum, ou então seria verdade que não conheço a mim mesmo. Assim, devo concluir regularmente que há noções comuns a todos os seres inteligentes e que essas noções são verdadeiras, ou seja, conformes aos objetos dos quais elas representam a ideia. Mas podemos ir ainda mais longe, e afirmar que as noções consequentes das primeiras noções verdadeiras são também verdadeiras, supondo, todavia, a verdade da consequência, sobre a qual se pode estar enganado por diferentes meios, que não são do presente assunto, visto que nos basta saber que toda a arte de descobrir verdades ignoradas e acessíveis deve consistir, segundo nosso princípio, em despojar os objetos da particularidade que os esconde de nós, e em reduzi-los à ideia comum na qual, como vimos, não podemos errar. 155 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers Ora, é certo a este respeito que a natureza nos favorece pela nossa só constituição, sem estudo e sem trabalho, de tal sorte que a nossa própria fraqueza e os limites nos quais nossa capacidade é envolvida servem necessariamente para nos aproximarmos da verdade: porque não sendo capazes de conter claramente senão uma certa quantidade de ideias e imagens, elas se confundem por si mesmas, assim que seu número excede, e então a mente não podendo mais contemplar um detalhe que ultrapassa sua força, compreende a todas ao comprimi-las sob a ideia geral mais próxima, o homem, o animal, o cão, etc., daí se segue a necessidade de inventar termos universais, o gênero, a espécie, etc., e os termos transcendentes, ens, res, aliquid [ser, coisa, algo]. Devo, então, conceber que, para julgar com verdade os seres particulares, não precisamos nos deter nas ideias exclusivas que eles nos apresentam, mas que é preciso, na medida do possível, considerá-los em relação às noções universais, nas quais não podemos nos enganar, em vez das ideias singulares serem relativas às nossas percepções, que nunca seriam iguais, pois os órgãos que as recebem são todos diferentes, ou tão frágeis que muitas vezes é necessário apenas um ligeiro intervalo de tempo para torná-los dessemelhantes deles mesmos. Sobre o que, observemos de passagem, não há razão para nos surpreender que os filósofos, que querendo explicar as coisas naturais pelas diferentes imagens que delas formavam, estivessem tão pouco de acordo. De resto, para completar a explicação de minha ideia sobre os meios de chegar ao conhecimento da verdade, parece ser necessário apenas mostrar distintamente as ocasiões comuns do erro, ou melhor, definir de que maneira ocorre nos enganarmos por erro de percepção, por erro da imaginação, ou por erro de ambos juntos. Mas, como seria preciso empregar exemplos e entrar em um detalhe que poderia distrair nossa ideia do objeto principal deste tratado, retorno à certeza que se encontra nas noções comuns, embora não sujeitas à percepção ou à imaginação. E é a este respeito 156 Primeira parte do ser em geral e em particular que é verdade dizer que a convicção e a certeza que temos da existência de Deus, considerado como substância absoluta, ou como ser substancial e verdadeiramente infinito, supera todas as outras espécies de certeza e de convicção, visto que não somente ela é comum a todo ser inteligente e capaz de atenção e reflexão; mas não há nada no universo que possa ser concebido independentemente dele, que é a causa suprema e a fonte necessária da qual cada modalidade tira sua existência; desde que, todavia, no lugar do Ser absoluto não tomemos um ser particular, ornado de qualidades ao critério de nossa imaginação; porque então não seria mais o objeto de uma ideia comum a todos, mas de uma ideia particular cuja existência não poderia ser demonstrada senão por uma percepção real que é impossível. Pergunta-se muito comumente por que os homens não possuem um conhecimento de Deus tão nítido e tão sensível quanto o de qualquer outra coisa, sendo verdade que sua existência é evidente e necessária, tanto por sua definição quanto pela de nós mesmos e pela de tudo o que cai sob nossos sentidos. Mas a resposta é fácil se bem entendemos o que vem sendo dito: pois outro que do Ser absoluto não pode ser imaginado sob nenhuma semelhança, e que cada um acrescenta à ideia verdadeira e natural que tem de Deus as imagens de uma infinidade de preconceitos, quer recebidos da educação, quer produzidos por nossas próprias disposições e nossa tendência para o terror ou para a esperança. E como dessa mistura caprichosa não resultam senão ideias particulares, cuja demonstração é impossível, embora a teimosia não seja menor entre os que nelas se previnem, acontece que raramente se entendem e que nada provam uns aos outros, o turco combatendo tão cegamente pela unidade de Deus quanto o cristão por uma Trindade não-contrária à unidade, ou pela Encarnação do Verbo. Mas há mais, pois esta diferença não se limita apenas às religiões, é sentida entre os seguidores de um mesmo culto, e cada um concordará que o Deus dos jansenistas e o dos 157 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers molinistas não é o mesmo, segundo as suas definições. Ora, o que se passa, a respeito de seitas inteiras, sendo fundado sobre a natureza íntima dos homens deve ser comum a todos, e daí é preciso concluir que assim que alguém se deixa arrastar para além dos limites da verdadeira noção do ser substancial e absoluto, não há ninguém que não forje a ideia de uma divindade a sua maneira, malgrado a impossibilidade real de demonstrá-la a si mesmo ou aos outros. Na verdade, comumente nos apoiamos sobre a revelação como sobre um fundamento sólido e invariável, sem prestar atenção que nos princípios de todas as religiões e do próprio cristianismo a revelação não é crível senão como consequência de uma opinião comum. Eu não acreditaria nas Escrituras, disse Santo Agostinho, se a Igreja não o ordenasse. Quase nada resta a dizer para completar a anatomia da mente humana, senão que, resumindo as várias proposições deste tratado, devemos permanecer convencidos das consequências justas e necessárias se a alma do homem não for outra coisa, como sua definição o ensina, que um modo de pensamento, do qual o corpo é de tal maneira o objeto, que nada pode lhe acontecer do que, supondo a atenção, ela não tenha imediatamente a ideia e o conhecimento, como reciprocamente o corpo não poderia ter percepção nem sentimento, senão pelo modo de pensamento que está unido a ele, a saber, a alma ou a mente, segue-se que se essa pudesse existir sozinha, não teria nenhum objeto preciso e determinado que pudesse ser o órgão de suas percepções, da mesma forma que o corpo, destituído de alma, não teria mais sentimento, porque não teria nele mesmo uma faculdade representativa do que lhe acontece, sendo um modo de extensão e não um modo de pensamento. E desse princípio resulta, como já ressaltei, que as faculdades com as quais se pretende que a alma humana esteja ornada, tais como o intelecto, a vontade, etc, são, propriamente falando, apenas noções universais de percepções singulares da mente, que envolvem conhecimento, recusa ou 158 Primeira parte do ser em geral e em particular consentimento; tais noções não são mais distintas dos atos de vontade e de conhecimento do que o é a humanidade de todos os indivíduos humanos; pois, como as propriedades de um triângulo ou de um círculo não são distintas do círculo ou do triângulo, e são concebidas respectivamente, aquelas por estes e estes por aquelas, eu não poderia conceber a vontade sem volição, nem a inteligência sem ideia e sem representação. Assim, deve permanecer constante que estes não são outra coisa que diferentes maneiras de pensar e, consequentemente, que são modos do mesmo atributo do pensamento e não faculdades singulares concedidas ao homem como suplemento da existência. Além disso, tendo compreendido, como temos feito, sobre demonstrações sensatas muito evidentes, que todas as ideias da mente nascem de suas percepções, e que a memória é o depósito orgânico de ambas, de onde são tiradas para formar a lembrança, ou seja, a representação do passado pelo restabelecimento de uma certa conformação de partes, vejo-me obrigado a concluir precisamente que a capacidade de imaginar, de ter percepções ou de recordar está ligada à existência do corpo e, consequentemente, à mente que não possui essas propriedades senão enquanto está unida ao corpo. Poderíamos até ir mais longe ao concluir que, visto que a mente é definida como um modo de pensamento do qual o corpo é o objeto único e especial, é preciso que a destruição do corpo acarrete consequentemente a sua própria. Mas, aparentemente, isso seria dizer demais, pois, como a dissolução das partes de que o corpo é composto não prejudica a sua existência, porque sua ideia objetiva está em Deus, embora de outra forma, ou para falar mais claramente, visto que elas não cessam de ser modos da extensão material, em alguma nova figura que venham a assumir e, consequentemente, de participar da existência do ser cuja extensão é um atributo, da mesma maneira a mente, que é um outro modo de ser no atributo do pensamento, parece não poder cessar absolutamente de existir, tanto por razão 159 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers de sua ideia objetiva, que será sempre em Deus, tal como um modo que existiu em ato, quanto pelo princípio geral de que da existência do ser sendo necessária, nada pode ser totalmente aniquilado. Cessará, então, de ser tal modo que ela era; suas relações internas e externas não subsistirão mais. Mas, enquanto o pensamento for reconhecido como um atributo da substância, será verdade dizer que tal modo deste atributo existiu relativamente às suas causas e aos efeitos que lhe são consequentes, e que se perpetuam ao infinito e, consequentemente, que ele ainda existe, ao menos no poder do Ser, visto que, para restabelecer sua realidade, bastaria restituir à outras partes da matéria a mesma disposição e as mesmas relações que tinham aquelas que formaram seu corpo. Segue-se, então, que não morrerei inteiramente, e que uma grande parte de mim escapará da ruína de minha existência modal, sem, no entanto, que eu seja capaz de me jactar de ter após minha morte qualquer conhecimento ou noção de que eu sou, ou de que tenha sido, visto que não tenho nada da existência precedente de todas as partes da matéria das quais presentemente sou composto, as quais também existiam realmente antes que eu fosse e existirão depois que não serei mais. Do que concluo que não há proposição mais absurda do que aquela que é usada para nos persuadir de que devemos acreditar provisoriamente em tudo o que é dito da outra vida, exceto a experiência que se terá dela após a morte. Porque, além disso, quem anula, por assim dizer, sua existência presente na esperança de uma segunda existência, que ele nunca terá, joga e arrisca tudo o que é e tudo o que tem contra nada, e não é necessário remeter para após a morte uma experiência que a vida nos fornece continuamente, seja pela perda diária que fazemos de uma quantidade muito grande de partes, seja pela adesão daquelas que vêm a tomar seu lugar, sendo claro e evidente que sabemos tão pouco do que acontece com essas que se separam de nós, quanto daquelas que se juntaram a nós, e que precisamos raciocinar da mesma maneira no tocante a nossa dissolução total. 160 Primeira parte do ser em geral e em particular Nosso ser corporal consiste na modificação e organização de certas partes da matéria que não têm nenhuma conexão necessária entre elas, unindo-se e se separando segundo a ação de certas causas, sem prejuízo da organização e da modificação que nos são próprias; desde que as relações internas sejam conservadas. Mas uma vez que essas relações são destruídas, é evidente que não há mais nenhuma organização e, consequentemente, nenhum conhecimento ou sentimento particular, visto que o modo de pensamento que deu ser à mente não tem mais objeto determinado, o que digo supondo que ela ainda exista, senão como um modo atual, pelo menos na imensidão do atributo do pensamento. Que se insistem nesse assunto, a ponto de querer determinar um objeto particular à um pensamento reunido à infinitude do atributo, direi nitidamente que não há nenhum e nem pode haver. Mas se se contentam em perguntar em que sentido posso, então, pretender que um modo particular do pensamento conserva sua existência na infinitude do atributo quando realmente cessou de existir pela dissolução do modo corporal que era seu objeto próprio, eu responderei que não é mais difícil de conceber que, não existindo mais em ato completo, ele possa trocar e troca efetivamente de objeto singular, do que seria improvável sustentar que, estando confundido na universalidade de um atributo, ao qual é próprio o existir, pudesse ser realmente aniquilado. 161 SEGUNDA PARTE das paixões E sclareci a ideia confusa que tinha de mim mesmo pela conta que me comprometi prestar dos meus conhecimentos verdadeiros, na primeira parte deste ensaio. No entanto, como o que tenho observado não diz respeito senão à maneira de existir dos seres que preenchem o universo, eu não tiraria senão a menor parte da utilidade que me propus nesta pesquisa se não examinasse: 1º Minhas afecções 2º O poder que se supõe estar em mim de governá-las. Este exame me assegurará melhor da verdade de minhas primeiras reflexões. Ele me dará a certeza da extensão de minhas forças e talvez me propiciará o fruto precioso da Sabedoria, se é verdade, como a Religião e a Filosofia ensinam, que ela pode ser adquirida pela regra ou pela aniquilação das paixões. A Religião, que deve ser a primeira a avançar, prescrevenos o aniquilamento das paixões, estabelecendo por princípio que houve uma desordem infausta na Natureza, a qual inverteu toda a organização e sujeitou o homem a uma concupiscência que antes não o acometia; que esta concupiscência é a fonte de todas as paixões, que tornou o homem carnal e cego em relação a todos os conhecimentos intelectuais e sujeito a uma infinidade de movimentos, por vezes involuntários, mas sempre condenáveis, porque são contrários ao primeiro estabelecimento. 163 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers Quanto à Filosofia, ela supõe as paixões na constituição do homem. Ela até as considera como o princípio da quantidade das boas ações, mas exigindo delas a regra e a moderação, porque reconhece que seu efeito mais comum é levar o homem desatento para além dos termos racionais e, assim, perturbar e dividir a sociedade. Assim, a religião e a filosofia concordam em supor no homem um poder efetivo com o qual ele pode tornarse mestre de suas paixões. E, consequentemente, longe de considerá-las como os efeitos necessários das leis do movimento e do arranjo das partes de que somos compostos, elas nos querem persuadir de que dispomos sempre de nós mesmos, e que nunca somos determinados senão por nossa própria vontade. A religião, então, pretende que o homem possa aniquilar todas as paixões pelo socorro da graça celeste, e a filosofia, que ele as pode regrar por sua razão. Portanto, não resta saber senão se essas proposições não são contrárias à ordem comum da natureza, supondo que o homem é capaz de agir sobrenaturalmente dentro desta mesma ordem, ou então atribuindo-lhe um direito de comando no seio de a natureza, apesar da evidente dependência dos efeitos de sua causa, em tudo o que resulta da existência de um ser não necessário. A experiência nos ensina que somos capazes de ação em uma certa extensão de forças. A opinião vulgar até atrelou a ideia de felicidade a essa capacidade de agir, de sorte que um soberano é considerado muito mais feliz do que um simples particular apenas porque pode mais. Porém, para se ter uma ideia correta dessa felicidade, é necessário voltar à fonte, e considerar que nossas ações, supostamente livres, são consequências de nossos desejos, o que nos faz imediatamente julgar que a felicidade consiste menos em poder para agir, do que na satisfação dos desejos. Este, todavia, não é o último termo, porque para saber em que consiste essa satisfação, é preciso saber qual é a natureza de nossos desejos e do esforço resultante de sua determinação. Mas nos detenhamos aqui: 164 Segunda parte das paixões porque primeiramente vemos que a determinação de nossos desejos não pode ter outra causa senão nós mesmos ou os objetos exteriores que atuam sobre nós. Se nossos desejos são consequências de nossa própria natureza, isto é, se eles não têm outra causa senão nosso poder real, nem de outro objeto além de nós mesmos, eles serão considerados simples e diretos; mas, pelo contrário, se nossos desejos são determinados pelos objetos exteriores, isto é, colocam-se fora de nós mesmos em qualquer espécie que seja, eles serão ditos compostos e refletidos, e mais propriamente serão chamados de paixões, por exprimir que o homem determinado pela ação de causas externas não concorre com elas senão emprestando sua sensibilidade. Será, portanto, em relação a esses dois tipos de desejos que tentarei fixar meu conhecimento. Seria de se esperar, para explicar as verdades que se seguirão, que fosse possível empregar os termos e os raciocínios de uso mais comum. Mas a escolha das expressões, em se tratando de um assunto abstrato e distante das ideias vulgares, não é uma das menores dificuldades que se encontram na redução das noções metafísicas, e prevejo com pesar que ela me lançará, como menos habituado do que outro a esta linguagem, na necessidade de me servir de raciocínios mais extensos do que eu gostaria, ou então usar algumas repetições de princípio. No entanto, estou convencido de que o defeito quase necessário da expressão não é o obstáculo mais nocivo à inteligência dessas questões, mas que a insuficiência de nossas ideias sobre a natureza do homem e a confusão onde nos lançam os preconceitos da educação produzindo um outro muito mais essencial e que é necessário dissipar, antes de pensar em edificar um sistema racional sobre as paixões. Somos prevenidos de que a mente humana é uma substância independente do corpo, a qual não faz ali senão uma habitação passageira, após a qual ela desfrutará sem ele de todos os benefícios da espiritualidade. Acreditamos também que se a mente é algo por ocasião do corpo e de seus órgãos, segundo a relação que Deus estabeleceu entre 165 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers eles, há uma infinidade de outras sensações que pertencem às suas propriedades intelectuais. Por fim, acreditamos que nossa alma move nosso corpo e que ela determina todas as ações pelo poder de sua vontade. Esses são os preconceitos capitais sobre os quais giram todas as outras ideias que se têm sobre a natureza das mentes. Para agora julgar racionalmente sua verdade efetiva, precisamos retornar às noções demonstradas na primeira parte desta obra, segundo as quais, tendo remetido todos os indivíduos da natureza ao gênero absolutamente geral, ou seja, a noção de Ser, sem a qual nada pode ser compreendido, permaneci persuadido de que não pode haver senão um só Ser necessário e existente por si mesmo, é, consequentemente, uma só e única substância da qual todos os indivíduos imagináveis são modalidades existindo não necessariamente e, não obstante, determinantemente, no que diz respeito à ação das causas que os tiram do seio do ser onde tudo o que é possível existe, ou realmente, ou virtualmente. A partir daí concluí que sou uma modalidade particular participante de dois atributos do ser absoluto, que são os únicos que conheço, embora saiba que ele realmente possui uma infinidade deles: mas vejo claramente que sou incapaz de conhecer outros que não aqueles dos quais eu mesmo sou composto. Além disso, concluí particularmente que meu pensamento não existe senão pelas percepções de meu corpo, que é seu objeto próprio, de sorte que minha mente não é uma faculdade de pensar e de ter ideias, nem uma ideia simples, nem propriamente uma ideia composta, mas antes uma sucessão ou continuidade de ideias que nascem de minhas percepções, durante e por todo o tempo em que a constituição orgânica de meu corpo a torna capaz de sentimento. Ou, para dizer a coisa, se é possível, mais claramente, não concebo minha mente como um ser distinto de mim mesmo, ao qual meu pensamento pertence propriamente, sem que meu corpo e meus órgãos ali concorram de outra maneira 166 Segunda parte das paixões senão ocasionalmente, mas a concebo como um ser não diferente de meu indivíduo pessoal, pensando, conhecendo, sentindo pelas percepções que ela tem do que acontece ao meu corpo, e não pensando, conhecendo, nem sentindo quando ele não tem nenhuma percepção. De sorte que as percepções são o fundamento e propriamente a matéria de minha mente, se for permitido empregar tal expressão. E assim poderíamos dizer que o que a figura ou a forma são para um corpo, as ideias o são para a mente, a exclusão da forma destrói a natureza do corpo como a exclusão do pensamento destrói a da mente. Concluí também do mesmo princípio que eu, não sendo um ser necessário, não poderia receber a existência senão por determinação de certas causas, que me são pouco conhecidas, mas de cuja realidade estou convencido; e que essas causas de minha existência particular são também causas de todas as minhas ideias, sensações, percepções, ações: visto que se eu não existisse, seria incapaz de qualquer função. E, além disso, é uma máxima certa que as consequências do ser são também consequências da causa do ser. “Qui dat esse, dat consequentias ad esse”, razão pela qual não posso pensar que a faculdade que é chamada vontade seja realmente outra coisa que uma determinação acompanhada de sentimento, a respeito da qual confundimos o consentimento resultante da sensação com a noção de um ato livre, o qual não poderia existir em um ser não necessário, visto que depende totalmente das causas que o fazem ser o que é, e que sem essas seria sua própria causa de agir e, consequentemente, de existir, o que não pode ser, se ele é suposto não necessário. Ora, se é evidente a partir dessa demonstração que a ideia da vontade, separada do desejo, e indeterminada por outro agente que não ela mesma, é uma pura ficção, devo concluir que é impossível que seja esta mesma vontade, que não existe, o que move meu corpo e os outros. Consequentemente, vejo com evidência que nenhum dos preconceitos que detalhei acima possui um fundamento sólido. 167 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers Isso todavia não é suficiente; é preciso ainda me convencer que, independentemente da vontade no conjunto das modalidades de pensamento e de extensão que constituem o eu presente, não é possível que um aja sobre1 o outro; de sorte que não é nem meu corpo que determina meu pensamento, nem minha mente que determina meu corpo ao movimento ou ao repouso, nem em qualquer outro tipo de ação, caso haja possíveis para além dessas. De fato, concebi acima que meu corpo e minha mente não compõem senão um e o mesmo indivíduo, ou uma e a mesma modalidade de existência, que pode ser considerada ora sob o atributo da extensão corporal, ora sob o atributo do pensamento, e que, apesar da partição ideal que dele se faz habitualmente, não é senão um todo realmente indivisível, cuja ação não é nem mais própria nem mais consequente de um atributo do que de outro. Daí se segue que a ordem ou encadeamento dos movimentos ou afecções do corpo é a mesma que a das afecções da mente, como reciprocamente a ordem das ideias é a mesma dos movimentos. E, portanto, não resta nenhuma razão plausível para estabelecer a ideia de uma determinação recíproca do corpo à alma e da alma ao corpo, seja tomada na natureza e organização do corpo, seja tomada no sentimento, pelo qual parece que a mente move o corpo, visto que supondo a unidade do nosso ser e o sentimento íntimo que dela deve resultar, deve ser impossível distinguir o consentimento acordado a uma determinação sensível, daquilo que imaginamos ser um ato livre e voluntário, mas que vimos anteriormente não poder existir em um ser não necessário. Mas há mais: pois não nos é possível determinar o que está no poder do corpo, isto é, o que pode se seguir fundado na mera corporeidade, só pelas forças e leis da natureza. Não conhecemos nem a fabricação ou construção dos corpos, nem as funções de que são capazes. Quem, por exemplo, pode 1 N.T.: No texto estabelecido por Simon (BOULAINVILLIERS, 1973, p. 154) está “sem [sans] o outro”, como também está em um dos manuscritos que consultamos (Fr. 12243), ao passo que no outro (Fr. 9111) e também na versão impressa de 1731 está a opção que adotamos aqui: “sobre [sur] o outro”. 168 Segunda parte das paixões explicar por quais meios os animais e os mais vis insetos executam tantas coisas impossíveis à arte e ao raciocínio dos homens? Além disso, quem conhece por que organização ou por quais meios uma mente pode mover um corpo, se devemos acreditar no axioma universal: tangere enim e tangi nisi corpas nulla potest res [“nada pode tocar e ser tocado se não é corpo material”2]. Quem conhece igualmente quais são os graus de força e velocidade que uma mente pode lhe comunicar? É, então, evidente que nenhum dos que afirmam de forma mais positiva que a alma produz esta ou aquela ação pelo poder que se supõe que tem de mover o corpo arbitrariamente, não expressa nada de que tenha uma noção clara, isto é, que conheça evidentemente. Por outro lado, se quisermos refletir sobre o que se passa na organização [economie] do ser humano, reconhecemos que a ação do corpo sobre a mente não é menos poderosa do que a da mente sobre o corpo, embora a sensação seja mais obscura. Com efeito, não vemos que é da composição do corpo que a mente tira sua força e sua vivacidade? Que é a delicadeza dos órgãos e sua flexibilidade que tornam as mentes mais leves e mais geralmente próprias às artes, ciências e negócios? Que é o temperamento que dispõe o caráter do homem, que torna um colérico e outro preguiçoso? Que é da abundância e da fermentação do sangue que nascem os ávidos desejos da volúpia? Enfim, não sentimos que o cansaço do corpo lança a alma no langor e na inação como, ao contrário, vemos que a febre causa delírios e às vezes furores? O próprio sono é uma prova diária de que as disposições do corpo determinam as faculdades da alma, pois no momento em que as sensações são suspensas pelo sono, a mente não tem mais ideias, nem vontade ou conhecimento, senão as que permanecem nos sonhos, as quais ocorrem apenas quando todos os sentidos não estão perfeitamente adormecidos. 2 N.T.: Tradução de Agostinho da Silva, em LUCRÉCIO, Da natureza, São Paulo: Abril Cuktural (Coleção Os Pensadores), 1973, p. 43. 169 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers É preciso, então, reconhecer de uma vez por todas que o princípio das ações recíprocas da mente sobre o corpo e do corpo sobre a mente nunca pode ser claramente demonstrado, exceto pela noção da unidade de nosso ser modal, embora resultante da união de dois atributos tão diferentes que o mundo se acostumou há quase dois mil anos a considerá-los como substâncias distintas. Mas, dir-me-ão, o que será de todas as obras dos homens, de todas as produções das artes, de todas as descobertas das ciências? O que será desse nosso poder tão sensível para cada um de falar ou de se calar? Como imaginar que sua determinação possa ser tirada de alhures que não da vontade do homem, de sua aplicação e do poder efetivo que está nele para mover seu próprio corpo, e por ele aquelas massas de edifícios que formam cidades inteiras? Eis uma objeção capciosa; mas não é nada no fundo. Não confundamos o desejo do homem com uma vontade indeterminada por outro agente que não ela mesma. Longe de negar que o homem seja capaz de formar ou sentir os desejos, estabelecemos que esta é a primeira consequência de sua sensibilidade, e o presente trabalho não tenciona senão desenvolver o princípio e os efeitos. Este desejo, junto à arte, ou conhecimento metódico dos meios para chegar a uma determinada meta, conduz as mãos do obrador e é a causa determinante do efeito mais próximo que nele resulta, como daqueles que se seguem progressivamente até a perfeição do empreendimento. Mas esse desejo tem ele mesmo sua causa determinante no sentimento de precisão em que o homem se encontra de construir uma casa para morar, fazer um relógio, ou qualquer outro tipo de trabalho para tirar sua subsistência ou suas comodidades. É, então, algo à parte, e muito diferente de sua vontade, que estamos considerando agora. Quanto à dificuldade que toca ao poder que acreditamos ter de falar ou calar, é comumente resolvida pela comparação de um homem que, tomado de sede, crê na liberdade de beber uma bebida que lhe agrade, ou pela de um bêbado, qui dicenda tacenda locutus [falou o que devia dizer e o que 170 Segunda parte das paixões 3 devia calar] , crê dizer por julgamento o que amanhã gostaria de ter calado a sua vida toda. Poderíamos ainda combatê-la por esse princípio comum da teologia cristã de que nenhuma de nossas faculdades é livre em relação a seu objeto clara e evidentemente conhecido, mesmo quando os atos resultantes sejam voluntários. Mas vale mais resolvê-la pela exposição de uma verdade que nunca é demais repetir, a saber, que os homens se creem livres porque possuem um sentimento de seus desejos e das ações que realizam em consequência, e não o possuem das causas que os determinam. Eu bem sinto, por exemplo, quais os efeitos produzem em mim a visão de uma beleza ou a esperança de uma fortuna. Vejo por experiência que minhas ideias ordinárias são banidas por esses objetos novos, que meu coração se inflama de desejos e impaciência, que minha mente se propõe um termo diferente do que havia desejado até então. Mas como essas causas externas operam em mim movimentos diferentes do passado? Isso é o que a sensação sozinha não me pode fazer conhecer. Para penetrar neste mecanismo é preciso estabelecer uma nova teoria do homem, segundo a qual diremos que o que se chama ato de vontade, decreto da mente, desejo ou determinação não são realmente senão uma e a mesma coisa considerada como devemos considerar nós mesmos, ora no atributo do pensamento, caso em que chamaremos de vontade, decreto da alma, e ora no atributo da extensão, segundo o qual tudo está sujeito às leis comuns do movimento e do repouso, em tal caso chamaremos de determinação e paixão. Contudo, podemos ainda considerar este mecanismo de um ponto de vista bastante diferente do que acabei de explicar: pois supondo que temos uma faculdade de vontade tal como vulgarmente a imaginamos, é evidente que ela não pode produzir nenhum ato em relação a coisas ausentes sem 3 N.T.: Essa é uma tradução livre nossa. Este trecho é da Epístola I.7 de Horácio (2009, p. 78, In: PICCOLO, Alexandre P. O Homero de Horácio: intertexto épico no Livro I das Epístolas. 2009. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Programa de Pós-graduação em Linguística, Campinas, Unicamp, 2009). 171 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers a ajuda da memória; não podemos nem falar senão por meio da memória dos termos próprios a significar o que queremos dizer: ora, não se é livre para esquecer ou se lembrar. É preciso, então, separar do domínio da vontade tudo aquilo cuja ideia e percepção não estão presentes na mente. Mas, por outro lado, a mente não tem ideias nem percepções que não sejam determinadas de alguma forma, isto é, pela aplicação real dos objetos, ou pela impressão de suas imagens. O que então resta sob o império da vontade e sobre o qual ela pode exercer seu suposto poder? Essa porção de reflexões sobre a unidade individual da mente e do corpo nos permite avançar à prova direta da proposição, que postula que o corpo não determina a mente a pensar, e que nem a mente determina o corpo a agir ou se mover, e esta prova é muito simples: pois, visto que todos os modos imagináveis do pensamento não podem existir senão na medida em que pertencem ao Ser absoluto considerado no atributo do pensamento, assim como os corporais existem no atributo de extensão que lhes é próprio, é tão impossível que um modo do pensamento possa produzir ou determinar um modo de extensão e vice versa, quanto é impossível que um dos atributos do ser absoluto possa mudar sua natureza, deixar de ser o que é e se tornar o que não é. Este fundamento posto, por meio do qual permaneço tão convencido da união individual dos dois atributos que constituem o meu ser, quanto do vazio dessa força chamada de vontade, na qual os homens trariam a causa de todas as suas ações, é tempo de me convencer da mesma forma que nossas paixões ou desejos refletidos não possuem outro princípio que a modificação causada pela impressão dos objetos, dos quais, entretanto, nunca podemos ter uma ideia perfeitamente completa, de tal sorte que é verdade dizer que nossas paixões não chegam à mente senão negativamente porque a privam de ação própria, e são animadas, por assim dizer, por uma determinação externa, muito frequentemente destituída de um conhecimento verdadeiro. 172 Segunda parte das paixões E, na verdade, se tomei uma noção correta de meu ser, devo me representar à minha própria ideia como um modo particular dos atributos infinitos do pensamento e da extensão que concebo no ser absoluto, modo esse que existe, seja como consequência da ideia que está no ser infinito, considerado como pensante, seja pela determinação das causas que agiram no atributo da extensão, para formar o que encontro em mim de material e de extenso. Devo representar-me ainda que minha modalidade individual, considerada como pensante, não é outra senão a sequência e o encadeamento de percepções de meu corpo, as quais são o princípio distintivo de todas as minhas ideias e pensamentos; de sorte que, sob o nome de mente humana, sou verdadeiramente um modo de pensamento resultante do sentimento de tudo o que acontece ao meu corpo, em consequência do qual minhas ideias são perpetuamente mutáveis; o que significa que, no decorrer da minha vida, sou capaz de ter uma infinidade de todos os tipos, verdadeiras ou falsas, iguais ou desiguais: porque é a divisão mais simples que se pode fazer. Mas é impossível que uma ideia, tal como ela seja, exista individualmente, se não existe na causa primeira: caso contrário, ela não existiria de todo, visto que para existir é preciso ser um modo de algum atributo do Ser absoluto. Além disso, está demonstrado que nenhuma ideia é falsa ou desigual em consequência do que ela tem de positivo: porque se a falsidade ou o erro, que consistem em pura negação de conhecimento, ou de representação, fosse algo de real, o nada seria um modo de algum atributo do ser absoluto, o que é absurdo. Segue-se, então, que em Deus, causa primeira e necessária, a diferença de uma ideia igual e verdadeira de uma ideia desigual e falsa consiste simplesmente em que ambas estabelecem o modo de pensamento que determina a mente humana a existir sob uma certa forma em certo momento, a primeira aperfeiçoa esta modalidade ao perceber o conhecimento passivo de que é capaz segundo sua natureza, e que a ideia desigual, ao contrário, destrói a realidade de 173 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers seu próprio conhecimento pelas imagens falsas pelas quais ela substitui o verdadeiro. Portanto, segue-se que a ideia igual e verdadeira esclarecerá a alma, ornará-lhe de conhecimentos e a fará existir nos termos verdadeiros e reais, que envolvem o tipo de perfeição que pode lhe ser essencialmente própria. Pois é fora de dúvida que a perfeição da inteligência seja pensar a verdade. Ao contrário, a ideia falsa e desigual alterará sua existência, engajando-a no erro que se opõe diretamente à perfeição e à realidade. Esses princípios, que se desenvolvem pouco a pouco à minha imaginação, começam a me fazer perceber que não sou nada menos do que pensava ser – visto que em vez de uma substância espiritual, essencialmente distinta da matéria e que não poderia unir-se ao meu corpo sem a instituição de um Criador todo-poderoso, isto é, sem uma contínua violência à sua natureza, ou melhor, sem um milagre perpétuo, o mais surpreendente de todos os que possam ser imaginados –, não sou outra coisa senão eu mesmo. Encontro no fundo da minha sensibilidade e na constituição dos meus órgãos o princípio das minhas percepções, das minhas ideias e do progresso de meu conhecimento. Não me é mais necessário recorrer à visão do próprio Deus para compreender como os objetos fazem impressão sobre meus sentidos, nem de que maneira essa impressão se pinta à minha ideia e, consequentemente, na minha memória. A unidade do meu ser modal sob dois atributos diferentes aplaina todas as dificuldades, desde o momento em que concebo claramente: 1º Que a essência das mentes consiste na ideia de um objeto atualmente existente, e que esse objeto é o corpo, ao qual estão unidas. 2º Que esta ideia é modificada por tudo o que acontece a este objeto, do qual a mente tem uma percepção necessária, na medida em que compõem juntos um só ser modal. 174 Segunda parte das paixões 3º Que a mente não existindo senão pela sequência e encadeamento de suas ideias e suas percepções não é capaz de nenhum conhecimento ativo. 4º E que, enfim, os efeitos ou consequências da mente são efeitos e consequências das diferentes ideias que a constituem. Acrescentemos, todavia, a estas conclusões uma curta reflexão sobre o lugar que ocupamos na natureza, lugar que nos liga de tal maneira às diversas outras de suas partes que é impossível formar uma ideia simples, nem em relação à nossa natureza ou essência, nem em relação às suas consequências, isto é, não poderíamos nos considerar sem relações, do que se segue que não somos causa senão de nossas próprias ações de uma maneira mais ou menos parcial; tão longe estamos de ser causas absolutas, como se pensa vulgarmente. Assim, longe de podermos estabelecer que nossas ações são consequências de nossa vontade ou de nossa essência, pois o é a mesma coisa na acepção ordinária, pode-se concluir com evidência que elas são também consequências de todas as modificações que recebemos da parte dos objetos, cuja sensação se junta à nossa própria ideia, sem a qual sensação não teríamos, contudo, outro uso de nosso ser senão o dos mármores e do que parece inanimado na natureza. Essa sensação é, então, em certo sentido, a primeira vantagem de nossa individualidade; mas como o modo de pensamento está intimamente unido ao da extensão na natureza do homem, visto que os dois atributos não compõem senão uma e a mesma existência, segue-se que a sensação se torna percepção e que esta se torna ideia, não por progressão ou melhoria da natureza, mas pela identidade do princípio que faz com que nada possa acontecer ao corpo do qual a mente não tenha ideia, porque ele é seu objeto necessário. É preciso com isso ser lembrado que as ideias que temos dos objetos não representam senão as percepções que temos em sua ocasião, e não a natureza desses objetos, dos quais é tão impossível que tenhamos um conhecimento 175 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers direto deles, como é impossível que tenhamos qualquer conhecimento sem percepção. É, então, necessário que essas ideias sejam desiguais, visto que não nos representam senão nossas próprias afecções, e não a natureza dos objetos que agem sobre nós. Assim, podemos concluir: 1º Que para falar exatamente, nós não agimos, nem podemos dizer que agimos, senão na medida em que as consequências de nosso ser estejam isentas de modificação por parte das causas externas. Verdade que nos deve convencer de que não há, e não pode haver, desejos puramente diretos, à exceção daquele da perseverança do ser, do qual trataremos mais abaixo, e que todas os outros, às quais aquele serve de fundamento, estão todos mesclados com alguma determinação tomada de objetos externos. 2º Que nós sofremos e somos justamente ditos e reputados passivos, enquanto nossas ideias são modificadas pelas próprias causas. O que pode ocorrer de duas maneiras: pois, como vimos, nossas ideias são iguais ou desiguais; mas nenhuma das duas pode se pintar para a imaginação senão pelo canal da percepção, o qual representa diretamente a afecção do corpo e não a natureza dos objetos. No entanto, quando é verdade que essa percepção poderia nos fornecer as ideias perfeitamente conformes à seus objetos, não é menos certo que os desejos ou paixões que seriam consequentes não se relacionariam senão negativamente com a mente: visto que em vez de uma determinação tomada na mente mesma, receberia a de uma imagem exterior ao seu objeto essencial, que é o corpo. Mas no caso de ideias desiguais, que é o estado comum e ordinário, a falta de realidade objetiva que constitui seu caráter não nos permite pensar que os desejos ou paixões que lhe são consequentes possam se relacionar à mente, diferentemente de uma forma negativa. Esta demonstração me parece completa. Assim, não tendo senão que fixar minha ideia por uma conclusão conforme e relativa às provas precedentes, digo que todas as paixões humanas são desejos, plenos de agitação e 176 Segunda parte das paixões inquietude, formados sobre a percepção dos objetos exteriores, consequentemente dos quais a mente é levada fora dela mesma e constrangida a atrelar sua própria ideia ou a de seu poder a esses mesmos objetos. De onde ocorre que ela imagina ou age de todo diferentemente do que fazia antes. Todos os termos desta descrição são claros e a verdade dela é estabelecida pelo que foi observado acima no tocante à natureza das mentes: visto que sua essência consiste na sequência de ideias que elas recebem por ocasião da existência atual de seu corpo, e não em uma pretensa espiritualidade que não poderia ter relação natural com o corpo, segue-se que toda ideia representa a aptidão presente do corpo e não o próprio objeto por ocasião do qual ou pela determinação do qual essa aptidão é posta tal. Mas se essa representação é verdadeiramente a do corpo em tal e tal instante, segue-se que a aptidão do corpo é modificada por esses objetos: isto é, que o poder do corpo e, consequentemente, o da mente é aumentado ou restringido por esses mesmos objetos. Segue-se daí, então, que as afecções do indivíduo são paixões reais, e que as ações consequentes não são consequências da só natureza do indivíduo. Isso não apresenta dificuldade. De resto, não pretendo dizer que a mente faça uma comparação laboriosa entre o estado real de seu corpo e a mudança provocada pelas diferentes paixões pelas quais é tocada: pois essa comparação se faz naturalmente pela simples percepção que carrega consigo a ideia de maior ou menor perfeição, que resulta da paixão presente. Tal é, então, a natureza e o princípio dos desejos refletidos, ou paixões, muito diferentes daqueles que chamamos de diretos, os quais não têm senão nós mesmos por princípio e por objeto. E tal é o desejo íntimo pelo qual cada ser senciente é levado a perseverar em seu ser e sua modalidade particular. Mas fora deste ponto, como não existem e não podem existir ideias sem percepções, nem percepções sem objetos, é verdadeiro dizer que a natureza do homem não pode admitir 177 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers desejos que não sejam verdadeiras paixões, na medida em que são determinados por tudo que causa a percepção e a ideia, e não pela própria natureza do indivíduo. Segue-se disso também que nossos desejos refletidos devem se multiplicar em proporção à nossa sensibilidade, com o número e a qualidade dos objetos que lhe fazem impressão: o que responde naturalmente ao argumento tirado de uma pretensa insaciabilidade do coração humano, em consequência da qual supomos que ele nunca pode ser satisfeito senão pela posse de um objeto infinito. Mas seria de se esperar que aqueles que fundaram sua moralidade neste princípio conhecessem melhor sua própria constituição, e distinguissem o efeito necessário da impressão dos objetos em nossos sentidos e nossos órgãos, da inquietação voluntária que eles nos atribuem. Com efeito, qual proporção eles poderiam conceber entre o suposto vazio de nosso coração e um objeto infinito? Mas se é verdade, como não podemos duvidar, que somos seres sencientes, engajados em formar perpetuamente novas ideias e novos desejos por ocasião de cada nova percepção, dado que a satisfação dos primeiros desejos não determina a dos próximos, e é evidente que sua multiplicação é um efeito consequente e necessário de nossa sensibilidade e da presença dos objetos: e, portanto, não seria muito judicioso supor que o coração do homem só pode ser preenchido por um objeto infinito. Estes diversos fundamentos postos, é tempo de chegar ao nosso assunto principal, ou seja, de tratar da natureza de nossos desejos. O primeiro que está em nós e o princípio de todos os outros é certamente aquele que tende à nossa conservação. Não poderemos duvidar de que ele seja comum a tudo o que existe com percepção de si mesmo. Os filósofos, e particularmente os estoicos, o consideravam íntimo à natureza e, todavia, deram razões tão ruins que foram obrigados a admitir que a verdade de sua existência se estabelecia melhor pelo sentimento do que pelas sutilezas de sua lógica. No entanto, como toda a mecânica 178 Segunda parte das paixões das paixões está fundada sobre esta base, e como temos, além disso, exemplos de várias pessoas que procuraram sua própria destruição por um desespero contrário a este sentimento universal, seria apropriado procurar uma demonstração sólida, e que possa convencer que sempre existe mesmo naqueles que se acabaram pela violência. Vimos acima que todos os seres particulares são modos consequentes dos atributos do Ser absoluto, dos quais cada um exprime em seu gênero o poder e a ação, na medida em que cada atributo é determinado a uma certa existência particular. Consequentemente, não é possível que contenham a ideia nem o princípio da sua destruição, seja em relação ao ser absoluto do qual são modalidades, visto que nada lhe pode ser oposto, seja em relação à sua essência modal, porque a sua existência posta como consequência da determinação que os faz ser o que são, não podem ser concebidos senão como existentes. Portanto, não pode haver nem em Deus, ou o Ser absoluto, suposto determinado, nem neles, supostos existentes, qualquer ideia que não afirme sua existência. De outra maneira, o princípio do ser e o do não-ser seriam o mesmo, o que é contraditório e, consequentemente, impossível. Portanto, todo seu ser se opõe inteiramente à não-existência. Então, é verdade que cada modalidade de ser deve perseverar e continuar a existir enquanto é em si, seja com conhecimento e sentimento, enquanto a natureza da modalidade é capaz, seja sem percepção enquanto outra disposição das partes a coloca no ranque de coisas insensíveis e inanimadas. Mas esse desejo de existência não é um acréscimo do ser particular: é o fundamento íntimo da essência de cada coisa, porque se supomos um ser, precisamos supor também suas consequências imediatas e necessárias, na medida em que elas decorrem da mesma causa que o faz existir. Mas o desejo ou o esforço de perseverar é uma consequência necessária da existência, como acabamos de ver. Portanto, ele não difere da determinação do ser, isto é, de sua essência. Razão que nos 179 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers deve convencer de que a espécie deste desejo é inteiramente diferente de todas as outras, visto que tem seu princípio e seu objeto na natureza mesma do ser, de sorte que sem esperar alguma determinação externa ele existe em um indivíduo sensível antes de qualquer percepção. Além disso, esse desejo não é limitado a um tempo ou a uma duração finita: pois, se isso fosse possível, seguir-se-ia que o princípio da destruição estaria na determinação que faz o ser existir, o que não é possível. É preciso, então, concluir que esse desejo se estende tanto quanto o poder do próprio ser, isto é, por uma duração indefinida. É por isso que podemos incluir entre as regras da natureza que nenhum ser pode ser destruído senão por causas externas: assim como vimos que na ordem dos seres não necessários, nada pode existir sem semelhantes causas. E a razão é demonstrada pelo mesmo princípio, pois, dado um ser, sua definição põe sua realidade como fundamento. Um ser não existe quando não é real. Mas essa realidade, uma vez suposta, é absoluta, enquanto não consideramos as causas que a podem destruir. Assim, deve permanecer constante que a posição ou afirmação do ser não contém e não pode conter nada que o exclua, isto é, que o possa destruir. No entanto, não há coisa singular na natureza, e não pode haver, em relação a qual não exista outra mais forte e mais poderosa que a limite, isto é, que restrinja, termine ou destrua seu poder e sua duração, pela razão de que nenhuma modalidade pode começar a existir exceto pela determinação de uma ou mais causas, não há também uma que não deixe de ser pela determinação de outra causa diferente em natureza e efeito, cada poder sendo limitado por um outro poder ou uma força maior. Portanto, se há contrários na ordem e arranjo do universo, são esses diferentes graus de força que se limitam mutuamente, e que são verdadeiramente opostos, no sentido de que eles não podem convir nem subsistir juntos no mesmo sujeito, como é provado pela proposição que estabelece 180 Segunda parte das paixões que nada pode conter o princípio de sua destruição. Seguese, então, que o poder pelo qual todas as coisas singulares conservam seu ser e nele perseveram não é diferente daquele do ser absoluto ou do próprio Deus, não enquanto ele é infinito, mas como determinado a uma existência particular. Determinação que, como vimos, é o único princípio do que existe em particular. Contudo, se pretendêssemos que, em consequência dessa participação da natureza infinita, um homem, por exemplo, não fosse sujeito a outras mutações que aquelas que seriam consequentes de sua própria natureza, a conclusão não valeria nada, porque daí seguiria que este homem seria imutável e verdadeiramente um ser necessário; seja concebido agir em consequência da própria necessidade do Ser absoluto, caso em que não seria mais uma modalidade; seja concebido agir em consequência da determinação que lhe dá o ser, isto é, por um poder finito, mas que, não obstante, seria suposto suficiente para afastar a ação de todas as causas externas, o que implica contradição. É preciso, então, voltar a dizer que todo ser particular só pode ser considerado como parte da natureza, sua ideia em Deus e, consequentemente, sua existência especial, que é a mesma coisa, são modificados pelo concurso de todos os objetos que agem nele ou com ele e que é sujeito a todas as mutações resultantes dessas diferentes modificações. Depois disso, não nos devemos surpreender que o desejo da perseverança seja geral e comum a tudo o que tem o sentimento de si mesmo, e que ele seja manifestado por todos os que são capazes de exprimi-lo. Porém, podemos nos espantar que no costume os homens o confundam com a vontade que se atribuem, ou como uma faculdade natural que está neles para dirigir suas ações, ou como um poder que lhes é concedido como acréscimo a seu ser, que os torna verdadeiramente livres para agir, ou não agir, escolher, preferir, etc. É verdade que na primeira acepção o erro é pouco considerável, pois esse desejo de perseverança é realmente 181 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers o princípio de todos os outros e, consequentemente, de tudo o que queremos e fazemos; embora no fundo haja uma diferença muito real entre a causa e seu efeito. Mas, na segunda acepção, como nada é tão oposto à liberdade como a determinação, e como não há ato de vontade que não seja determinado, não se pode deixar de concluir, por um lado, que se a liberdade e a vontade são tais como as imaginamos, é contraditório pretender combiná-las e, por outro lado, que se juntamos no princípio a vontade ao desejo, também é contraditório pretender conservar a liberdade, pois o desejo é uma determinação precisa, que carrega a vontade a tal objeto ou a tal ação. Se opusermos a essa conclusão a experiência comum de tantas ações que se fazem contra seu desejo, é fácil responder que a simples percepção nos ensina que essas ações são ainda menos livres que as outras, porque sua determinação é tão sensível que não escapa nem mesmo àqueles que não têm intuito de a examinar. No fundo, como não se trata aqui senão de convir nos termos, a fim de poder se fazer entender, é certo que, considerando o desejo, e o esforço da alma que lhe é a consequência, como modo de pensamento, podemos, sem notável abuso, nomeá-los vontade, desde que tenhamos o cuidado de não os confundir com o fantasma da vontade livre e indeterminada que é a quimera favorita dos homens. Mas se os considerarmos em relação ao corpo, ou em relação à identidade do corpo e da mente, teremos que nomeá-los de apetites, termo pelo qual quero exprimir um desejo mesclado de sensação que se estende, tanto à própria conservação, quanto aos meios considerados capazes de servir a ela. Podemos, não obstante, para uma maior precisão distinguir ainda entre estes dois termos, apetite e desejo, fazendo com que o primeiro sirva para designar uma sensação toda corporal, como a fome ou a sede, e o segundo com o de cupidez, que pode ser sinônimo, para exprimir a sensação ideal resultante, ou o modo de pensar unido à percepção do corpo. 182 Segunda parte das paixões Porém, dado que estou convencido da verdade deste princípio de que o homem está necessariamente determinado a perseverar em seu ser, também devo concluir que, visto que ele é suposto senciente, isto é, sujeito a todas as impressões das causas externas e a receber as suas percepções, ele está também determinado da mesma maneira: 1º A buscar os meios que estima próprios a obter sua conservação e o seu bem-estar, não havendo diferença entre estes dois termos: querer ser e querer estar bem. 2º A fugir, rejeitar e afastar o que estima lhe ser contrário, como podendo aniquilar seu ser, diminuí-lo ou incomodá-lo, isto é, reduzi-lo a estar mal. Esses dois sentimentos são igualmente consequentes do princípio absoluto do desejo de perseverança do ser, suposto agindo para além dos limites do indivíduo, e determinado pelas causas externas que produzem as percepções. É por isso que ele tem respectivamente uma igual impetuosidade e um mesmo ardor, quer se trate de abraçar um objeto, quer de o repelir, não tendo mais força ativa de um lado do que de outro, se ele não a encontra na impressão que causa os diferentes objetos. Todavia, para explicar convenientemente este tópico, não basta observar a paridade de forças nas duas afecções, é preciso dizer também que a identidade do princípio que as produz e do fim a que elas se propõem as unem e as ligam de tal maneira que elas não formam propriamente senão uma só. E, de fato, o desejo de estar bem não é praticamente senão a fuga do estar mal, e vice-versa. Prova manifesta de que o desejo natural de existir e perseverar na existência não é diferente daquele de estar bem, como argumentei acima. Mas vou ainda mais longe: pois é da experiência que não é a ideia de felicidade, por maior que a imaginemos, que determina nossos desejos, se a separamos de um sentimento de mal-estar e de inquietude que nos faça aperceber de sua privação. Tanto isso é verdade que a oscilação é de tal maneira igual entre essas duas afecções que ficamos embaraçados de 183 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers decidir qual move a balança; se o fazemos apenas considerando o bom e o mau pelo lado da sensação, não queremos dizer que a percepção deste último é a mais sensível, e que todos os homens temos uma ânsia mais viva de libertar-nos dela do que de aspirar a um bem, do qual várias considerações o podem dissuadir. Ora, é nisso que consiste todo o poder ou propriamente a fonte dos desejos. Pois, se há uma atividade cheia de fogo, trabalho e zelo, que são as testemunhas seguras de uma determinação perfeita, há outras tão débeis que, detendo-se na simples consideração dos objetos, nunca vão tão longe a ponto de obter sua fruição. São aquelas que nós distinguimos ordinariamente pelo termo de veleidade, que exprime o mais baixo grau do poder de vontade. Mas se é fácil julgar que ambos não são tais senão em consequência da impressão que os causa, ou da maior ou menor mobilidade dos órgãos do sujeito afetado, é muito difícil dizer por que a ideia do bem soberano ou de uma felicidade eterna toca tão pouco a maior parte dos homens, mesmo daqueles que teriam o terrível escrúpulo de colocá-la em dúvida. Mas o poder do desejo consiste tanto, como mostramos, no sentimento de privação, que é um mal real do qual se deseja necessariamente se livrar, quanto na convicção e esperança de um bem futuro, por maior que o imaginemos. Assim, enquanto aqueles a quem o paraíso é pregado serão dissipados por objetos mais sensíveis, isto é, enquanto não sentirem em si mesmos, a respeito deste objeto, a fonte comum dos desejos, quero dizer uma inquietude efetiva causada pelo medo de serem privados dele, eles não ansiarão por desejá-lo. E esta é a verdadeira razão pela qual esse tipo de sentimentos, aos quais dificilmente prestamos atenção durante a vida, tornam-se tão vívidos quando corremos o risco de perdê-los. Acontece o mesmo com mais forte razão para todos os outros tipos de desejos, visto que a ideia do bem maior é certamente aquela que deve ter mais peso e eficácia. Tal é, então, a natureza do desejo que o faz produzir o concurso atual das duas primeiras afecções, a busca e a fuga, 184 Segunda parte das paixões ambas fundadas no esforço necessário pelo qual os seres sencientes persistem em sua existência com conhecimento e sentimento. Há, porém, essa diferença entre eles que, no concurso, a ideia do bem o representa como futuro e ausente, enquanto o sentimento do mal está presente, pelo menos pela inquietude que causa a privação conhecida de um bem, seja efetivo, seja imaginário. Não emprego aqui os termos bom e mau aqui como distinções positivas, tiradas das diferentes qualidades dos objetos: pois embora seja verdade que entre os indivíduos com os quais o mundo está repleto, os há mais ou menos conformes com a nossa natureza, reconheço que não os qualificamos em consequência de suas verdadeiras propriedades, visto que é uma verdade certa que no uso ordinário os homens nada procuram por o terem julgado bom depois de uma justa consideração, mas, pelo contrário, o estimam e o julgam bom porque estão determinados a buscá-lo na primeira percepção que têm dele. O mesmo ocorre com as espécies do mal, nenhuma coisa sendo dita má, senão em consequência do sentimento de fuga que se excita em nós por sua ocasião. Tudo porque as percepções recebidas na alma são ideias e não há ideia que não contenha um julgamento positivo, sendo até a inevidência e a dúvida julgamentos. Também ocorre a partir daí que a maioria das ideias que são traçadas como bem ou como mal por essas primeiras percepções são falsas, desiguais ou, no mínimo, confusas e precipitadas, razão pela qual elas produzem paixões de tantos tipos diferentes quanto diferentes são as modificações que elas causam ao corpo e a mente. Sejam quais forem essas ideias, no entanto, se o erro em que nos lançam pudesse ser retificado pelo conhecimento da verdade ou pela presença do verdadeiro, não teríamos que reclamar de nossa constituição: mas como foi mostrado que o que é falso em toda ideia não é real, visto que reside na falta de conhecimento e representação e, além disso, no que diz respeito ao Ser absoluto tais ideias são verdadeiras enquanto existem, se o poder do verdadeiro 185 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers pudesse mudá-las, ou corrigi-las, a verdade destruiria a verdade, o que é absurdo. Isso será melhor entendido por uma breve explicação das operações da imaginação humana, sobre a qual já reconhecemos que ela realmente representa mais a sensação presente e a disposição do corpo, do que objeto que a causa, do qual ela não pode dar senão uma ideia reflexiva e indireta. Razão pela qual a mente se engana a seu respeito. Por exemplo, olhando para o sol, a imaginação o julga a uma distância comum de nós, como mais ou menos de uma légua, no que estamos absolutamente enganados, visto que ignoramos sua verdadeira distância. Mas quando esta distância verdadeira é conhecida, o erro, que é certamente dissipado no que diz respeito à noção, não o é no que diz respeito à imaginação, isto é, a ideia do sol pintada na percepção: pois se temos de representar o sol, nós não o consideraremos como mil vezes maior que a terra, nem em uma distância tão prodigiosa. Nós o imaginaremos como a vista o representa a nós e não tal como a demonstração nos ensina que ele é, porque não é a ignorância da verdadeira grandeza ou distância do sol que o pinta à nossa ideia sob a forma em que nos aparece; mas é a sensação mesma, a qual o conhecimento da verdade não muda. É o mesmo em geral de qualquer outra percepção em que a imaginação é enganada; de sorte que devo permanecer convencido de que o erro em que ela me envolve não pode ser banido pelo conhecimento da verdade, e que ela não cede efetivamente senão a uma nova imagem mais forte que a primeira e que a exclui, seja por razão de sua força, seja por ser mais recente e mais precisa; como se, em relação ao sol, eu tivesse me aproximado quinze ou vinte mil léguas, é certo que o conceberia de uma forma diferente da que ele me imprime daqui. Podemos ainda dizer que, para destruir a primeira impressão, não é necessário que a segunda tenha uma causa verdadeira; basta que opere sobre nós. De fato, não experimentamos todos os dias que o medo de um mal futuro 186 Segunda parte das paixões e real se dissipa com a alegria que dá uma boa nova, ainda que ela seja falsa, desde que cause uma impressão pelo menos igual à primeira? Tanto isso é verdade que a experiência responde exatamente à ordem e à necessidade que supomos na natureza: segundo a qual são as paixões mais fortes que acalmam as menores e não o conhecimento da verdade. Mas tiro tristes induções desses exemplos: pois eles me revelam uma causa de erro e uma razão de incerteza tão poderosas e tão ordinárias que me lançam em uma espécie de desesperança de poder alcançar a verdade. Assim, antes de ir mais longe, creio que devo reassegurar-me, tomando uma noção precisa dos diversos graus de realidade e verdade que nossos conhecimentos podem ter, proporcionalmente à maneira de os adquirir e à capacidade de nossas mentes. Parece-me, então, que todos os conhecimentos dos homens se podem reduzir a certas espécies, a primeira das quais é aquele que eles adquirem pela percepção de diferentes objetos, a qual sendo apresentada pelo sentimento à medida que chegam não é suscetível a nenhuma ordem, e não pode deixar de ser desigual, obscura e confusa, representando antes, como já foi dito, a aptidão do corpo do que os objetos, que lhe é impossível penetrar. Assim, essa espécie de conhecimento pertence inteiramente à imaginação, uma vez que se contém na pintura dos objetos da sensação. No entanto, deve-se reconhecer que esta é o fundamento de todas as outras: pois sem o uso da percepção seria impossível para a mente conhecer a si mesma e ter ideia alguma. Mas como a mera existência de ideias não bastou para estabelecer a razão humana, nossa modalidade não poderia existir sem um órgão mais excelente que todos os outros, no qual essas ideias estão gravadas pela mesma percepção que as produz na ordem de sua formação: e é desse depósito geral que saem uma primeira, segunda e terceira vez, umas após as outras, e umas por ocasião das outras, para dar novas formas à mente, que, segundo sua definição, não pode existir sem ideias. 187 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers Este tesouro de ideias é, então, uma segunda fonte de conhecimento que os homens adquirem por ocasião de certos signos, como nomes e palavras; os quais, conhecidos ou entendidos, excitam a lembrança de certas ideias, ou de certos objetos que a mente tem força para imaginar como de percepções presentes e, não obstante, sempre ocasionalmente, como explicado na primeira parte deste tratado. Mas essa espécie de conhecimento, que é manifestamente mais suscetível de ordem e de método do que o anterior, não é mais segura, uma vez que tudo o que pode produzir se limita a ideias representativas de percepções passadas. Segue-se, então, que nem a primeira nem a segunda podem fornecer mais do que uma opinião: um termo pelo qual entendo uma persuasão gratuita que uma certa imagem, apresentada pela percepção, é conforme a certo objeto. Assim, opina-se que o fogo é quente, porque nos queima: o que realmente não tem e não pode ter senão uma conveniência por puro acaso com os objetos representados. É, entretanto, nessa acumulado de ideias que consiste a maior parte de nossas ciências usuais. 1ª A prática de todas as artes, sobre a qual dificilmente raciocinamos, cada um dos que as praticam satisfazendo-se com uma rotina que retira dos ensinamentos do mestre e que se confirma pela experiência a seu respeito; rotina que os conduz mais seguramente ao termo a que se propõem, do que o poderiam fazer longos raciocínios, nos quais temem se perder. 2º As ciências que se ocupam precisamente de objetos, fatos e arranjos de ideias e expressões, como a retórica ou a poesia, como a física tomada para o conhecimento da disposição do mundo, e a conexão dos seres que aí vemos, a geografia, a hidrografia, que são apenas descrições das superfícies da terra e da água das quais o nosso globo é composto; a história que é apenas uma compilação de eventos passados, a teologia de todas as religiões, que consiste na suposição de certas ideias tidas como verdades absolutas, seja como consequência de alguma revelação, considerada 188 Segunda parte das paixões sobrenatural, seja como consequência de uma tradição que é sempre carregada com novas ideias em seu progresso, e assim várias outras ciências. No entanto, tenho o cuidado de não pretender excluir o raciocínio da prática [usage] desses tipos de ciências e estudos: pois os princípios sendo uma vez estabelecidos e tidos como certos por aqueles que os admitem, eles se acham em condição de tirar conclusões ao infinito, nada sendo tão fecundo quanto a imaginação. Mesmo assim, tenho o direito de sustentar que o fundamento dessas ciências ou conhecimentos consiste apenas na aquisição de um número suficiente de ideias para cada assunto. A segunda espécie de conhecimento próprio aos homens deve ser tirado das noções comuns, em consequência das quais conseguimos formar ideias justas e iguais de certas propriedades dos objetos, como por exemplo que o todo é maior do que sua parte, ou o recipiente que o conteúdo. Mas embora seja demonstrado e certo que o que é comum a tudo não pode ser senão concebido de maneira igual e verdadeira, percebemos que nosso conhecimento faz pouco progresso por esta via, o número de máximas estabelecidas nesses princípios sendo tão limitado, e as conclusões que tiramos de um uso tão pequeno. A terceira espécie de conhecimento é o que chamamos intuitivo, porque parece ser o efeito de uma simples visão; e porque atinge a mente com uma convicção tão sensível que ela não está mais certa daquilo que vê, do que conhece por seu meio. Certeza que nos igualaria às inteligências mais perfeitas, se o meio que a alcança fosse de uma tão grande utilidade para a afirmação, quanto como o é para a negação. É por meio dela que distinguimos os objetos e as nossas ideias, e percebemos com convicção que uns não são as outras. Digo com convicção, porque nenhuma mente pode imaginar uma evidência mais inteira do que aquela que resulta da diferença que nós apercebemos entre dois objetos ou duas ideias. O mesmo meio também nos faz conhecer o que dois objetos ou duas ideias têm em comum; mas é sempre com 189 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers mais reflexão e trabalho, de sorte que embora a evidência seja a mesma, há algo de mais complicado na maneira de adquirir esse conhecimento. Assim, somos obrigados a reconhecer que, de uma forma ou de outra, é a base de todo o raciocínio de que os homens são capazes: porque quando a conveniência ou a desconveniência de duas ideias não está presente em nossa mente por si mesma, toda a sagacidade humana não pode fazer outra coisa que descobrir uma ideia mediana que possa ser comparada às duas primeiras pela via do conhecimento intuitivo, e que possa estabelecer a prova da conveniência ou desconveniência que queremos descobrir entre essas diferentes ideias. É nisso que consiste toda a arte dos silogismos e das demonstrações, como todos sabem, arte a qual (mantidas as regras) não pode deixar de produzir um conhecimento certo, embora acompanhado de trabalho e aplicação, porque a mente não pode prescindir de sempre fazer avançar o conhecimento intuitivo em relação às ideias medianas, e de redobrar esse trabalho até o final da demonstração: o que pode se estender tanto a ponto de os gênios preguiçosos serem totalmente incapazes disso, ou que a rejeitem, abandonando-se antes à ignorância ou à fé de quem lhes assegura que a coisa está bem provada e que as mentes mais aplicadas perderão a memória do fio e do encadeamento dessas ideias medianas, lembrando-se somente que há uma demonstração completa da verdade de uma tal proposição, isto é, da conveniência ou desconveniência de tais ideias. Isso é por si só claro e, todavia, não creio que deva negligenciar trazer aqui alguns exemplos, que tornarão, se possível, a verdade ainda mais sensível. A ciência dos números é precisamente uma ciência de palavras: pois o número dez, que posso aplicar à medição de tal quantidade como me aprouver, não se aplica a nada se quisermos, e não significa por si mesmo senão dez unidades indefinidas. Contudo, os números não são termos vazios, pois despertam em nossa imaginação a ideia de quantidade e nos permitem conhecer a medida até o termo que podemos 190 Segunda parte das paixões contar. Este é também o primeiro de nossos conhecimentos, uma ciência de palavras que servem de signos para recordar certas ideias, ou melhor, um catálogo de percepções escritas na memória ocasionalmente, e todavia sob a mesma designação das palavras convencionadas para significá-las. Eis certamente um conhecimento muito leviano em aparência; no entanto, ele é tão fundamental que, como alguém que não tivesse ideia dos números, seja qual for a mente que possa ter, não poderia distinguir quantidade, assim também aquele que não tem noção dos signos estabelecidos entre os homens para se comunicarem seus pensamentos não compreenderia quase nada do que os veria praticar. A história de um surdo e mudo de nascença, que recuperou a audição e, consequentemente, o uso de sua língua aos trinta anos, é precisa para sustentar essa proposição, por ter parecido tão instruído quanto seria possível do culto externo da religião, e acostumado na loja do pai a ver as mercadorias vendidas e a receber o preço em dinheiro, ele admite hoje que não fazia ideia nem do que se fazia na missa, nem do valor do dinheiro, nem mesmo da perpétua troca de mercadorias que via ser feita com o dinheiro. Seria o mesmo, com mais forte razão, com um homem que não conservasse nenhum traço de suas percepções, e acho que posso dizer que ele seria incapaz de distinguir a si mesmo do resto da natureza. Ora, a ciência dos números estando suposta, se eu quiser me aplicar ao conhecimento de suas propriedades, primeiro percebo sua conveniência ou desconveniência de maneira intuitiva e garanto com a certeza final que 1 não é 2 nem 3, e que 1 é a metade de 2 e um terço de 3. Nenhuma evidência é mais clara do que esta, nem mesmo aquela que me assegura que 2 é mais do que 1, em consequência da noção comum de que o Todo é maior do que a parte: porque todo homem é intuitivamente convencido da verdade dessa proposição “2 é mais do que 1” antes de ser instruído no axioma que acabei de citar. Razão pela qual insisti pouco acima sobre os conhecimentos resultantes das noções comuns. Além disso, o 191 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers que estou dizendo aqui do conhecimento intuitivo que temos das propriedades de alguns números se aplica a qualquer outro objeto cuja percepção é simples: pois não é menos óbvio que o branco não é preto, ou que o círculo não é quadrado, do que é certo que 1 não é 2. Mas quando, depois de ter avançado em minhas buscas sobre as propriedades dos números, persuadi-me ter motivo para estabelecer uma proposição, como dizer: 6 é para 3 como 2 é para 1, se eu precisar ao demonstrar a verdade e não puder comparar intuitivamente estes quatro números, é necessário que eu recorra a um termo ou a uma ideia mediana, que possa comparar imediatamente a cada um dos dois membros da minha proposição, e é isso que encontro na ideia ligada à palavra dobro: pois conhecendo intuitivamente que 6 é o dobro de 3, como 2 é duplo 1, mostra-se que 6 é 3, pois 2 é 1. E nenhuma mente pode resistir a esta prova. E se acontecer de um homem ir além de uma verdade expressa, no desejo de penetrar em alguma outra que ele ignora, mas que ele se jacta de descobrir por meio de seu trabalho, como um termo desconhecido no exemplo de 1, 2, e 3, o qual seria para 2 o que 3 seria para 1, o conhecimento intuitivo à parte, que se faz aperceber ele mesmo nesses números simples, é preciso proceder da mesma maneira por uma ideia mediana; de sorte que, tendo observado que o número 3 contém três vezes 1, será fácil descobrir aquele que conterá três vezes 2. Esses exemplos, talvez simples demais, não deixam de nos fazer perceber a mecânica do progresso ordinário de nossos conhecimentos e dos meios que proporcionam a certeza. Resta mostrar o que a arte e o método podem agregar a isso, e a que se reduz sua prática pela relação com aqueles que não empregam senão as simples regras para atingir determinada meta. Para isso, basta considerar que as mesmas demonstrações, que são feitas com tanta facilidade a respeito das proporções dos números muito simples, tornam-se bastante difíceis quando os números são muito compostos. No entanto, como a razão 192 Segunda parte das paixões de sua proporção é a mesma, aqueles que raciocinaram sobre a natureza dessa proporção descobrem por longa experiência que, com a ajuda de uma multiplicação e de uma divisão, obtêm precisamente a proporcionalidade desejada. Assim, a necessidade de empregar uma ideia mediana foi reduzida no método para encurtar a repetição das comparações que deveriam ser feitas com os diversos termos da proporção. E tanto o sábio como o ignorante tornam-se, por meio desse método, igualmente capazes de encontrar um quarto termo proporcional aos termos propostos, embora totalmente desconhecido, tanto a um quanto a outro. Todavia, na prática, há esta diferença entre eles, que o conhecedor sabe o que faz e como o faz: ele vê intuitivamente de que maneira as multiplicações e divisões que emprega suprem a atual comparação de ideias médias, das quais ele precisaria, ao passo que o comerciante e o contador que empregam as mesmas regras, segundo lhes foram mostradas, negligenciando todas as ideias de proporção, comparação, conhecimento intuitivo e termo médio, atingirão seu objetivo com o mesmo sucesso e sem embaraço. No entanto, a ignorância destes está longe de ser preferível ao conhecimento do outro: pois se alcançam igualmente ao mesmo termo, os primeiros são conduzidos ali como cegos e o outro se porta com liberdade, ação e conhecimento, de maneira que nada mais tenha desejar por evidência do que ele se propôs a saber. Eis de que maneira o que é método, evidência e convicção para uns é arte mecânica para outros, arte que podemos exercer e conhecer sem outras ideias que não as das regras, cuja recordação é necessária se quisermos nos poupar do trabalho de raciocinar: um princípio dos mais gerais da conduta dos homens. Ora, por mais que seja evidente que o erro e a falsidade não podem ter nenhum outro princípio a respeito das ideias representativas além da precipitação com que tomamos um julgamento sobre a conveniência ou desconveniência de duas ideias (o que, para bem tomá-la, não é em si mesma senão uma semelhante desigualdade, pela qual imaginamos que uma 193 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers proposição é demonstrada, embora não o seja), na medida em que me parece certo que o erro e a falsidade não podem referir-se senão à primeira espécie de conhecimento próprio à mente humana, a qual, como vimos, não fornece senão ideias de nossas percepções, e não os objetos neles mesmos. Pelo contrário, a verdade não se podendo pintar à mente por outra via que a das ideias iguais, e reciprocamente, as ideias iguais não podendo representar senão a verdade, é impossível que as outras três espécies de conhecimento nos possam enganar, se, além disso, nós não fazemos nada por nós mesmos que lhes seja contrário. Assim, nossa natureza frui da vantagem de três tipos de conhecimento verdadeiro, contra um sujeito ao erro. Mas também é preciso admitir que o hábito perpétuo e necessário das sensações e da palavra torna estas muito mais gerais que as outras, que exigem reflexão e atenção, coisas sempre combatidas por nossa preguiça natural. É por isso que, por outro lado, como se alguma natureza inteligente quisesse nos preservar, mesmo apesar de nós sermos presas do erro, as ideias iguais se encontram marcadas de uma característica distintiva, sobre o qual nenhuma mente pode se equivocar, e essa característica é a evidência intuitiva, ou demonstrada, em consequência da qual aquele que tem uma ideia verdadeira sabe e conhece que a possui, de maneira que, quando é dada, não lhe é possível formar dúvida por sua ocasião. De fato, quem diz uma ideia verdadeira, diz um conhecimento completo e perfeito do objeto que ela representa, e quem diz conhecimento perfeito exclui necessariamente a dúvida e a incerteza. De outra maneira, isso seria reduzir a ideia à função de um quadro inanimado e despojá-la da sensação que a acompanha, na medida em que ela é um modo de pensamento unido aos órgãos sensíveis. Portanto, a verdade é evidente por ela mesma e distinta da falsidade como a luz é das trevas, sem outro argumento que a sensação e a evidência resultante. Há, no entanto, uma dificuldade que consiste em que – visto que a sensação é a companheira inseparável da evidência 194 Segunda parte das paixões e esta a consequência necessária da verdade – parece que a sensação não deveria ser encontrada onde há erro, e portanto nós nunca deveríamos tomar o falso pelo verdadeiro. Mas esta consequência não é justa: pois não é o erro que toma a forma de verdade e que se torna evidente na sensação de estarmos nos enganando. Vimos que o erro e a falsidade não são senão defeito de conhecimento e que nada têm de positivo. Pelo contrário, nossa percepção é real, efetiva e necessariamente sensível. Assim, quando represento o sol do tamanho de um prato, é certo que minha percepção não me engana: pois realmente o vejo como tal e não pode me parecer outro nas circunstâncias que acompanham minha percepção. Porém, é certo que me engano por falta de conhecimento, e mesmo que me engane desmesuradamente, porque não há nenhuma proporção entre o tamanho efetivo do sol para o que a percepção lhe dá. Qual é, então, o meu erro e como ele me seduz por uma sensação verdadeira? Aqui está: é que vou além da minha percepção, e por um julgamento falso e precipitado me persuado de que o sol é tal como me parece. O mesmo é válido para qualquer outra sensação: elas são todas verdadeiras, na medida em que representam um objeto, ou melhor, o sentimento e a aptidão do corpo em sua ocasião, e todas incertas, e na maioria das vezes falsas, na medida em que elas passam a formar um julgamento efetivo e real dos objetos que as causam. Limitemo-nos, então, a julgar as nossas próprias sensações e as ideias que delas resultam, a comparálas, a examinar as suas conveniências e desconveniências, seja intuitivamente, seja seguindo o método de uma demonstração justa, e seremos assegurados da verdade por sua evidência. Segue-se daí que os homens se enganam e muito mais e muito menos do que acreditam, e que não lhes é dito que o fazem: pois, em geral, enganam-se ou podem se enganar em todos os julgamentos que formam sobre os objetos exteriores em consequência de suas percepções, e pela mesma razão em tudo o que edificam sobre um mal fundamento. Em 195 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers segundo lugar, eles se enganam como consequência dos maus princípios de sua conduta: desatenção, precipitação, paixão, falsas hipóteses, submissão ao hábito e à autoridade, falta de provas, falta de habilidade ou vontade de usá-la, etc… Mas em todos os outros aspectos, não está no poder do homem se enganar. Seu conhecimento é feito necessário pela convicção da verdade, seja intuitiva, seja demonstrativa. E é por isso que os homens não divergem de opinião sobre o objeto das verdades matemáticas, porque suas demonstrações são tão evidentes para um chinês ou americano, quanto para um homem nascido em Londres ou Paris. O mesmo seria aparentemente para a metafísica, moral e muitos outros conhecimentos, se eles também fossem igualmente cultivados. Pelo contrário, vemos que no que diz respeito a todas as ciências, que consistem na representação de objetos, não somente as diferentes nações não concordam, mas que é muito raro que dois homens particulares concordem com as mesmas conclusões, embora pareçam convir dos mesmos princípios. Resta-me depois disso demonstrar que a evidência é o caráter distintivo da verdade, e que não está no poder do homem resistir a ela, se ele age naturalmente. Vimos acima que nenhuma ideia é verdadeira em relação a nós, senão em consequência do que ela é tal no Ser infinito ou absoluto, a respeito ao qual é demonstrado que a ideia de uma coisa, como seria a de um triângulo, é a mesma que um triângulo existente. Se, então, eu tenho uma ideia verdadeira, ela é objetiva do lado do ser absoluto, isto é, que em Deus há uma ideia dessa ideia, e do meu lado é o modo constitutivo de minha mente no momento em que estou ocupando. Seguese, então, que a segunda ideia, aquela que concebo estar em Deus, existe em mim, como a primeira, visto que não há diferença entre a ideia de Deus e um ser existente. Mas esta ideia existe em Deus como ideia verdadeira: então, ela existe da mesma maneira em mim: isto é, tenho uma ideia verdadeira da minha primeira ideia; mas quem diz uma ideia verdadeira diz um conhecimento perfeito. Então, conheço 196 Segunda parte das paixões perfeitamente minha primeira ideia e, consequentemente, não posso formar nenhuma dúvida sobre seu objeto: isto é, que ela me é evidente ou que me dá um sentimento convincente de sua verdade. Mas o que você entende, dir-me-ão, por essa ideia objetiva, que você supõe estar em Deus, de tudo o que existe no universo e de sua ideia em particular? Ou essa ideia objetiva é, como você o diz, a mesma coisa que o ser individual existente, ou é diferente. Se for a mesma coisa, toda essa prova não é senão uma batologia ou um sofisma; se for diferente, você faz um ser particular daquilo que você reconheceu pelo Ser absolutamente geral. Eu respondo a isso que este assunto foi amplamente discutido na primeira parte deste tratado, onde mostramos a natureza e as propriedades dessa ideia objetiva. Contudo, para não abusar da atenção do leitor, contentar-me-ei em repetir aqui duas coisas: a primeira, que nunca pode haver diferença entre um ser individualmente existente e a ideia objetiva que está em Deus, pois, diferentemente, o Ser absoluto e geral seria concebido como pensante em particular, o que seria absurdo. A segunda, que o termo ideia objetiva não deve ser tomado senão pela realidade individual dos seres particulares, correspondendo a algum ponto do atributo infinito do pensamento que existe no ser absolutamente geral: isto é, não existe nada que não seja concebido ou concebível por uma inteligência proporcional, visto que os atributos do ser total sendo necessariamente infinitos, eles respondem proporcionalmente uns aos outros em seus diferentes modos, graus ou partes, expressão a ser tomada aqui no sentido que mostrei que os atributos divinos podem ter partes, embora sejam respectivamente infinitos. Mas, apesar dessa resposta, ainda me objetarão que, neste mesmo sentido, eu provo demais: porque eu disse alhures que uma ideia desigual é verdadeira e igual em Deus: sendo esta compreendida pela realidade individual que lhe convém, enquanto ela é um modo do ser absoluto, é preciso dizer que, se essa ideia é real em Deus, também existe em mim com a ideia de sua ideia, e igual convicção que a primeira. Todavia, 197 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers bem vejo que tal objeção não seria fundada senão sobre um abuso significativo dos termos: pois a realidade de uma ideia desigual não é efetiva senão em relação à verdade de seu ser e não em relação à representação que é necessariamente falsa, caso contrário, não seria desigual. No entanto, não podemos dizer que a ideia da realidade de uma tal ideia é suficiente para a convicção? Mas o oposto é evidente, pois a ideia de uma ideia desigual só pode representála como tal. Ela pode ser capciosa; pode lisonjear as paixões, pode ser favorável aos desejos, mas não será evidente, porque a verdade de seu ser estabelece sua falsidade, visto que é suposta desigual. Por outro lado, é difícil não concluir sobre esta prova que o erro e a falsidade são, então, evidentes, visto que eles não podem ter absolutamente o caráter da verdade e, se é assim, não se pode nunca errar senão por um fato voluntário. Mas isso é ir longe demais; não se pode dizer que o erro e a falsidade sejam evidentes, pois, pelo contrário, é porque não são evidentes que são erro e falsidade. Dizemos, então, somente que seriam facilmente apercebidos se se quisesse darlhes uma atenção conveniente, e se os preconceitos, as paixões, a preguiça de examinar e raciocinar e os outros compromissos assinalados acima não suprimissem o conhecimento. As características da verdade e do erro, assim como as diversas espécies de conhecimento que nos são próprias, uma vez estabelecidas, é tempo de regressar à nossa última proposição, segundo a qual reconhecemos que o esforço comum de todos os seres para se conservar, e para perpetuar a sua existência, é íntimo à natureza, da qual ele faz uma parte essencial. De sorte que os apetites, ou desejos de busca e fuga que lhe são necessariamente consequentes, são também consequências da natureza, na medida em que é determinada pelos objetos: pois, então, não é mais o efeito do desejo puramente direto, que deve envolver no indivíduo que o sente, pois, ao contrário, este se refere aos objetos externos, segundo a forma da percepção. Assim, não pode 198 Segunda parte das paixões haver ser sensível que não esteja inelutavelmente sujeito a essas duas afecções, fuga e busca, na medida em que ele é suposto capaz de esforço para se perpetuar e de sensação para conhecer objetos. Mas a simples propriedade dos termos nos faz conhecer que a busca é um desejo que aspira à posse de algum objeto, assim como a fuga é, ao contrário, um desejo de ausência ou de privação de algum outro objeto, e daí devemos concluir que a presença ou ausência dos próprios objetos causarão necessariamente um prazer ou um desprazer atual àqueles que supomos serem tocados por essas afecções, isto é, um sentimento de bem-estar ou mal-estar, consistindo em que o poder do indivíduo será virtualmente aumentado ou diminuído, segundo sua percepção. Com efeito, se lembramos de nossas provas precedentes, lembraremos que foi demonstrado que a existência da mente não consiste senão na percepção do que acontece ao seu corpo, que a ordem ou a conexão das ideias é a mesma que a das percepções, e que a mente tem mais ou menos aptidão para formar diferentes ideias, segundo a aptidão de seus órgãos para receber diferentes percepções. Além disso, vimos que a mente e o corpo juntos não compõem senão um mesmo indivíduo dotado de certa força, capaz de certas ações, e sensível às mudanças que ocorrem, seja ao corpo, seja à mente. Consequentemente, é fora de dúvida que qualquer coisa que aumente ou diminua sua força e poder atuais, e o bem-estar de seu corpo, aumenta ou diminui também a força e o bemestar da mente e, reciprocamente, da mente ao corpo, visto que os dois juntos são um mesmo indivíduo. Segue-se daí que a mente e o corpo estão reciprocamente sujeitos às mesmas mutações, isto é, a passar de uma realidade maior para uma realidade menor, e inversamente. Mas, seguindo nossas definições precedentes, a realidade e a perfeição não são senão a mesma coisa. Portanto, quem diz para passar para uma realidade maior ou menor, diz passar para uma perfeição maior ou menor. Todavia, o que se compreende facilmente do 199 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers corpo, que vemos sucessivamente em diversos estados de força ou fraqueza, de perfeição ou imperfeição, não se aplica tão facilmente à mente, pela dificuldade que há de imaginar que o atributo do pensamento não é independente do corpo. E é aqui que o preconceito nos adestra, apesar da própria evidência, para o qual não parece haver outro remédio que bem compreender e reter para sempre que a alma humana, na medida em que ela é um modo de pensamento determinado a um objeto próprio, não tem outra realidade além daquela que ela tira das ideias das quais ela é sucessivamente ocupada à proporção das afecções do corpo. Mas, para evitar qualquer ambiguidade, é preciso demarcar que os ofícios da memória estão aqui incluídos entre as afecções do corpo, porque a lembrança não é verdadeiramente senão uma segunda sensação evocada pelas causas ocasionais que já mencionamos, e que conheceremos na sequência ainda mais claramente. Ora, se considerarmos as mudanças do indivíduo humano em relação apenas à mente, não as devemos considerar como a sucessão ordinária de suas ideias: pois essa mudança é necessária para cumprir as funções de sua natureza, ou melhor, é o efeito necessário de sua existência. Mas é preciso tomá-las por um estado de perfeição ou imperfeição, ocasionado pelas causas que aumentam ou diminuem seu poder, ou o de seu corpo, isto é, do indivíduo inteiro, estado esse que não pode deixar de ser sensível a um ser igualmente capaz de percepção em relação ao corpo e em relação à mente. Não é, então, a igualdade ou a desigualdade das ideias que torna o homem sensível, é a percepção mesma que o torna capaz de buscar ou evitar objetos de prazer ou de desprazer em sua aplicação. Mas quem diz sensibilidade diz uma modificação intrínseca do indivíduo, na medida em que os objetos que agem sobre o corpo se unem à ideia objetiva da mente que deve ser encontrada no Ser absoluto. Razão pela qual foi demonstrado acima que tais modificações da mente são realmente paixões: isto é, ideias para formação das quais ela recebe sua determinação de objetos externos, e não age senão emprestando a sensibilidade 200 Segunda parte das paixões e a facilidade de sua natureza. Daí resulta que os efeitos consequentes dessas mesmas modificações não têm causa própria senão na ação dos objetos, aplicada a um ser capaz de sentimento, e de um impulso autômato [ressort automate], que no hábito se toma por uma força ativa. Portanto, posso concluir que, como o princípio ativo das paixões reside sensivelmente na impressão dos objetos, seu princípio passivo não pode ser tomado senão na sensibilidade do homem, expressa pelas afecções de busca e fuga. Se passarmos depois ao exame das paixões em sua ordem natural, as primeiras que se apresentam à mente são aquelas que resultam imediatamente das afecções primitivas, na medida em que são satisfeitas, pela fruição na busca e afastamento na fuga, ou na medida em que são afligidos pela privação na busca e pela presença na fuga. Essa satisfação e esse pesar são evidentemente os primeiros efeitos da aplicação dos dois impulsos da natureza do homem aos objetos exteriores, a busca propondo necessariamente a fruição e não a privação, e a fuga propondo da mesma maneira o afastamento e não a presença. Se, então, essas afecções são satisfeitas, resulta um sentimento, uma percepção, uma ideia que exprimimos pelo nome de alegria e, consequentemente, o coração e a mente são dilatados, conhecendo seu bem-estar e o aumento de seu poder, realidade ou perfeição. Mas se, por um efeito contrário, essas afecções são afastadas de seu termo, resulta uma sensação toda oposta, que exprimimos pelo nome de tristeza, em consequência da qual o coração e a mente são constrangidos pelo conhecimento de uma menor realidade, poder ou perfeição. A alegria e a tristeza, então, são incontestavelmente as primeiras paixões com as quais o homem pode ser tocado, e não o são somente em ordem, como as primeiras consequências das afecções necessárias do ser senciente, mas na realidade porque todas as outras paixões não são senão de modificações destas: verdade que a sequência demonstrará. Isso é também o que torna sua definição muito importante, já 201 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers que seremos obrigados a considerá-las em uma variedade de faces tão grande quanto há variedades nas paixões. Observarei, então, que, como o homem é de alguma forma duplo em sua constituição, essas paixões que são nomeadas alegria e tristeza em relação à mente devem ter outras denominações em relação ao corpo para evitar a confusão. Assim, chamarei titilação, carícia ou hilaridade o que é próprio do corpo na paixão da alegria, distinguindo, todavia, que os dois primeiros não se referem ao corpo senão no que diz respeito a algumas de suas partes, ao passo que a hilaridade se estende à aptidão inteira. E nomearei dor e melancolia o que é o paralelo na paixão da tristeza, a saber, dor quando uma ou mais partes do corpo são afetadas com violência, e melancolia quando o é à aptidão inteira. Mas deste grande princípio que um ser senciente e conhecedor, tal como o homem, é necessariamente sujeito à alegria e à tristeza, segue-se uma infinidade de consequências que, na sua diversidade, dão a forma a todas as outras paixões, em geral e em particular. E, em primeiro lugar, precisamos concluir que a mente humana deve se esforçar, tanto quanto está em si, em imaginar as coisas que lhe são próprias a dar alegria, isto é, a aumentar o poder de seu corpo e, consequentemente, seu próprio, o que faz nascer a afecção que distinguimos pelo nome de amor. Em segundo lugar, que quando a mente é forçada a imaginar as coisas que a afligem, porque elas constrangem e limitam esse mesmo poder, ela deve conceber o sentimento do ódio, ou seja, fazer mais um outro esforço para rejeitar a ideia. E certamente, enquanto o corpo humano é modificado por uma impressão externa, é necessário que a mente considere como presente o objeto que causa essa modificação, e reciprocamente, enquanto a mente considera como presente tal objeto, não o faz senão pelo auxílio da memória, o corpo será afetado de uma maneira que aumentará ou diminuirá seu poder; porque, como vimos, a ordem e a conexão das ideias é a mesma que a das percepções. Mas cada ser se conduz 202 Segunda parte das paixões por seu esforço natural de perseverar em sua existência e nas consequências desse esforço, que não são senão o desejo de bem-estar. Portanto, é impossível que a mente não se leve à consideração dos objetos que ela julga capazes de aumentar a realidade dela mesma e de seu corpo, ou seja, o bem-estar do indivíduo total. Não é mais difícil mostrar que, da mesma maneira, o esforço natural tende a excluir a ideia e a sensação das coisas que restringem o poder do indivíduo: pois enquanto a mente imagina o que diminui sua realidade efetiva, ela consequentemente imagina o que diminui a de seu corpo, e, da mesma maneira, reciprocamente do corpo para a mente. De sorte que, como deseja essencialmente a sua conservação e bem-estar, será necessário fazer um esforço contrário à sua ideia ou à sua percepção, isto é, trabalhar para excluí-las, o que não pode ser feito senão propondo outro objeto, cuja impressão seja suficientemente forte para banir a imagem fastidiosa que está presente em nossa mente. Assim, o indivíduo deve se agitar nesse esforço, revirar-se, por assim dizer, para todos os lados para encontrar um estado cômodo. E essa é a razão física da inquietude que sempre acompanha as paixões fastidiosas. Por outro lado, como não há percepção que não se grave na memória, nem da qual consequentemente a lembrança não represente a imagem com uma vivacidade proporcional ao sentimento primitivo ou ao tempo decorrido desde que ela aconteceu, segue-se que o amor e o ódio não são restritos apenas à presença dos objetos, porque sempre que nossas faculdades de imaginação ou de memória tornam objetos distantes presentes para nós, devemos sentir as mesmas percepções que antes atribuímos à sua presença efetiva e real. Razão que deve nos convencer de que essas duas paixões não estão atreladas à mera presença dos objetos, mas se estendem às suas imagens segundo a forma em que foram gravadas pela percepção. Assim, podemos dizer que o amor não é outra coisa que um sentimento de alegria, acompanhado da ideia de uma causa externa, da qual desejamos a presença, até empreender 203 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers tudo o que a possa proporcionar, ou a conservar depois de tê-la adquirido, ou ao menos mantendo a memória, cujas imagens tomam o lugar da presença efetiva. Pelo contrário, o ódio é um sentimento de tristeza, acompanhado igualmente da ideia de uma causa externa, que leva a mente a rejeitá-la e a imaginar seu afastamento e destruição: de tal sorte que não haverá nada que não empreendemos com satisfação para chegar ao fim do propósito formado de nos livrarmos dele, e que na falta de uma ação real, a imaginação se nutrirá de todos os projetos que lhe poderão consolar a este respeito. Mas isso mesmo nos faz conhecer quanto esses sentimentos estão longe de depender de nossa liberdade: pois, além do que acima conhecemos, a necessidade de uma determinação externa para produzir nossas percepções, estamos em posição de julgar que não pode haver nada de arbitrário na afecção, que resulta das mesmas percepções, nenhum objeto podendo excitar nosso amor por um sentimento contrário à alegria, nem causar alegria sem aumento da realidade do ser, e, ao contrário, o ódio não podendo entrar em nosso coração por nenhuma outra porta do que a de uma percepção fastidiosa e importuna, que necessariamente irrita o sujeito que a sente contra o objeto que a causa. Não é menos evidente, pela definição da memória, que toda mente que concebeu duas ou mais ideias juntas não será mais afetada por uma delas sem o ser logo pelas outras. Verdade cuja prova se estabelece pela relação necessária que as ideias têm com as afecções do corpo. É por isso que a imaginação e a memória não sendo fundadas senão na propriedade natural dos corpos animados de renovar uma percepção por ocasião de uma outra, e as ideias que não representam senão essas mesmas percepções, de tal sorte que a ordem de umas é a mesma da das outras, seguese que, no exercício da imaginação e da memória, não há nada mais arbitrário nem mais livre do que na aplicação dos objetos. 204 Segunda parte das paixões É preciso também concluir do mesmo princípio que não há nada no mundo que não possa, por acidente, causar seja o ódio, seja o amor, seja a alegria, seja a tristeza; pois se supormos o homem tocado por dois afetos, um dos quais lhe será indiferente, porque não aumenta nem diminui seu poder ou seu bem-estar, e outro que, ao contrário, toca-o realmente de alegria ou de tristeza, necessariamente acontecerá que quando ele imaginar o primeiro, ou se lembrar dele, ele irá imaginar o segundo e sofrerá de sua parte a alegria ou a tristeza que esse é capaz de lhe causar. Portanto, a primeira afecção, embora indiferente em si mesma e em relação a ele, será ocasionalmente causa positiva de alegria ou tristeza e, consequentemente, objeto de ódio ou de amor, sem nenhum mérito de sua parte. Princípio que descobre a causa de nossas simpatias ou antipatias em um mecanismo muito simples. Mas essa consequência se estende ainda mais, visto que é indubitável que toda percepção ou imaginação de um objeto em que encontramos alguma semelhança ou paridade com outro objeto, que nos tocou com amor ou ódio, excitará os mesmos sentimentos em relação a ele, mesmo que a semelhança desses objetos consistisse em coisas diferentes daquilo que é a causa real de nossas afecções. O que acontece em consequência da propriedade essencial do órgão da memória, onde as imagens das percepções são evocadas por ocasião umas das outras; ou melhor, por um efeito do desejo precipitado que nos leva a buscar, ou a rejeitar, sobre a mais ligeira aparência tudo o que julgamos capaz de contribuir para o nosso bem-estar, ou tudo o que lhe parece ser contrário. Mas se esse princípio tem consequências coerentes e moralmente relativas entre si, há outros que parecem contraditórios, como aquele que muitas vezes reúne sentimentos de amor e ódio em relação ao mesmo objeto. Isso ocorre, todavia, em razão da mesma mecânica: pois o corpo humano sendo composto de um grande número de partes diferentes, que podem ser diversamente afetadas por um mesmo objeto, as percepções que dele resultam podem ser diferentes e até 205 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers contrárias; ou pode ser que um objeto sendo amado ou odiado por si mesmo, seja lembrado na imaginação por outro objeto, que excita um sentimento contrário, de modo que será amado por si mesmo e odiado por ocasião, ou vice-versa. Mas de uma forma ou de outra, esse combate de duas paixões opostas termina necessariamente em uma incerteza, que os latinos chamaram de animi fluctuatio, que na ordem dos afetos corresponde ao que chamamos de dúvida em relação à evidência de um objeto, ou de uma proposição, em coisas que são do domínio da imaginação. Tudo isso se compreende facilmente, mas me parece que resta alguma dificuldade no tocante à eficácia que atribuímos à memória, para excitar as mesmas afecções de alegria ou tristeza que poderia fazer um objeto presente. No entanto, a definição da memória e nossa própria experiência nos fazem conhecer que consideramos como presente qualquer objeto que imaginamos, por mais distante que esteja realmente, a menos que a percepção tenha perdido muito de sua evidência pelo número de anos decorridos no intervalo, ou então pela constituição do órgão; e daí se segue que uma ideia, enquanto tal, não está mais relacionada com o tempo do que com a distância, e o mesmo ocorre com qualquer afecção ou paixão resultante de uma tal ideia. Não se pode separar a ideia de uma coisa da afecção que é seu efeito necessário: porque, enquanto ideia, ela é a forma da mente no momento em que ela está ocupada e, portanto, está tão realmente presente como se o objeto, do qual é a imagem, afetasse o corpo no mesmo instante, o que, no entanto, deve ser entendido na proporção da percepção dessa imagem, quando se trata do passado. Não é o mesmo com as ideias que formamos no porvir: pois é ordinário ampliar as imagens dos objetos. De sorte que, quando chegamos a obter o que desejávamos, ou caímos na inconveniência que nos apreendeu, quase sempre encontramos a experiência mais fraca do que a ideia do objeto esperado. É preciso, no entanto, excluir desta regra os homens a quem o uso da vida deu suficiente sabedoria e experiência para conhecer a incerteza dos eventos, os quais 206 Segunda parte das paixões são mantidos em suspense até onde sua razão pode agir, sem desejar demais nem temer, de modo que que suas afecções são mais facilmente dissipadas por outras imagens, até que o sucesso as tenha plenamente asseguradas. Isso ainda traça o caminho para reconhecermos a fonte de diversas paixões de segunda ordem, como da esperança que não é senão uma alegria mal assegurada, concebida na ideia de um evento incerto, ou do medo que, em uma espécie contrária, é uma tristeza inconstante, concebida na ideia de algo triste cujo sucesso não é garantido. Assim, essas duas paixões são tão baseadas na incerteza, que mudam de natureza e de nome assim que o evento deixa de ser duvidoso, a esperança torna-se segurança e o medo desespero ou simples dor, segundo a gravidade dos casos que o determina. É certo, então, segundo o que acabamos de explicar, que o ser sensível e cognoscente, ou seja, o indivíduo humano, sendo uma vez tocado por sentimentos de amor ou ódio pelos diversos objetos que a sensação lhe apresenta, não está mais em condições de deter as paixões do que suas consequências necessárias, e toda a sabedoria, religião e filosofia com que ele pode se armar contra seu esforço, nada podem opor-se a elas, se não atrelou desde cedo sua inclinação aos objetos de uma outra espécie ou se não a retiram dessas próprias percepções pela representação de outros objetos, que poderiam tocá-lo mais sensivelmente. Parece-me, porém, que nisto falo demais, visto que conheço por experiência um sentimento que se recusa de tal forma aos objetos e que aquiesce tão simplesmente à minha própria constituição que, sem ajuda externa, sem precauções contra as paixões, goza de si mesmo e das circunstâncias de seu estado com uma tranquilidade que é sua verdadeira satisfação. Pode-se até dizer muito mais, visto que esse estado se opõe inteiramente às novidades, de qualquer lado que se apresentem, nos hábitos, nas sociedades, nas opiniões. Devemos dizer que esta disposição é suficiente para si mesma? Vamos acreditar nos infelizes que suspiram na escravidão sem querer positivamente mudar sua situação? Ou, pelo menos, nossa prevenção natural 207 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers em favor do costume não formará uma demonstração contrária a tudo o que foi alegado para sustentar a necessidade da ação de causas externas na determinação de nossos desejos? Não, sem dúvida: pois é fácil descobrir no mesmo princípio a mecânica dessa preguiça, que encanta, por assim dizer, o gênero humano. De fato, o desejo da perseverança do ser precedendo essencialmente, na ordem da natureza, e os apetites de busca e fuga, e os sentimentos de prazer e dor, que dele resultam, não pode acontecer menos ao homem, ocupado de um desejo tão íntimo quanto o da perseverança, acostumar-se ao seu próprio estado, a ponto de temer ser perturbado em sua posse, do que se sentir lisonjeado pela esperança de ser distraído por uma sensação desconhecida, sobretudo quando a confiança é mal assegurada e quando os sucessos parecem mais incertos do que os perigos. Além disso, se considerarmos essa afecção da preguiça em relação aos atributos do pensamento e da extensão, que constituem o indivíduo humano, reconheceremos que, como é impossível que aquilo que não é causa de si mesmo aja a não ser por impulso, o homem é não ele mesmo determinado a qualquer tipo de ação, seja em relação ao corpo, seja em relação à mente; mas que esse impulso sendo suposto, não há parte do homem que possa agir sem trabalho. O corpo suará sob o peso do trabalho, os pés e as mãos se fatigarão, e a aptidão inteira suspirará pelo descanso, que nem sempre o trabalhador encontra no final de seu dia. É o mesmo com a mente. Se é preciso raciocinar, é necessário que todos os órgãos e todas as faculdades concorram para isso, que a memória evoque as percepções que lhe foram confiadas, que a imaginação as represente, que o juízo as compare e que se forme a partir daí uma nova percepção à qual a mente dará sua aquiescência, ou que rejeitará segundo a conveniência ou a desconveniência que perceberá entre seu bem-estar e essa nova percepção. Ora, este trabalho, em qualquer atributo em que se passe, é um efeito da determinação que, como já reconhecemos 208 Segunda parte das paixões precedentemente, não pode ter senão uma causa externa, visto que o homem, ser modal e condicional, é tão pouco sua própria causa de agir do que é a de existir, e que, embora penetrado do desejo íntimo de sua perseverança em seu ser, e em sua modalidade, nunca pode ser causa em seu próprio fundamento, embora possa sê-lo em todo outro aspecto nas coisas que são fora dele. Assim, combatido por duas disposições contrárias, ele busca seu prazer nas determinações novas e seu descanso na aptidão ou na continuação de sua existência modal. E, consequentemente, ele nunca está em condições de decidir em qual situação se encontra mais confortável, se a inconveniência do presente ou a esperança do porvir não pendem a balança. Segue-se, então, que, propriamente falando, o homem não age mentalmente ou corporalmente senão a despeito de si mesmo: isto é, ele só raciocina quando, não encontrando em sua memória regras de conduta feitas ou conhecimentos assegurados, é obrigado a refletir sobre a natureza das coisas, comparar suas ideias e formar juízos sobre elas, assim como, por outro lado, só trabalha com as mãos quando suas necessidades a tal o constrangem. Mas essa preguiça é um defeito em nossa constituição ou, para exprimir melhor a questão, nossa felicidade consiste mais na ação do que no repouso? Essa proposição é de uma extrema importância: pois se a felicidade reside na ação, parece que não nos cabe senão sermos felizes, não agindo sem determinação, mas não tendo senão que nos abandonarmos àquelas que os objetos possam nos causar. Ao contrário, se a tranquilidade, se a calma das paixões é a verdadeira felicidade do homem, a preguiça nos conduz pelo caminho mais curto à felicidade, pois não temos senão que recusar com constância as sensações que nos seduzem e que, assim, o afastamento do mundo, a renúncia aos cuidados e negócios, a indolência e a posse de si são os verdadeiros meios que nos podem fazer felizes. A filosofia se empenha há várias centenas de anos em resolver solidamente esta questão, sem ter podido se 209 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers satisfazer. A religião se empenhou novamente em socorrê-la neste trabalho, e em abreviar seus raciocínios com o auxílio de imagens cujo espanto e vivacidade representam infinitamente acima de todas as sensações comuns. O que poderíamos acrescentar ao que cada uma avança de sua parte? Limitemonos, pois, a observar que na própria ação o repouso é o nosso verdadeiro termo, e que, segundo a definição da ação que nos é própria, não está no poder de quem nele mais se compraz, de ter encontrado uma outra satisfação que não aquela que resulta da aptidão adquirida no trabalho, ou na mudança de objetos, ou em uma palavra, na agitação de uma vida que, passando-se em seguir a impressão de causas externas, deve sempre sofrer e, consequentemente, fazer alguma violência. Parece, por outro lado, que a preguiça é o presente mais rico que a natureza nos deu. É ela que contenta e, consequentemente, iguala todas as condições; é ela que põe equilíbrio entre as doçuras obscuras de uma vida simples e a brilhante felicidade dos conquistadores. É ela que ameniza as maiores dores, e que torna a existência amada e desejada, mesmo nas masmorras e suplícios. É ela, enfim, que assegura os tronos, adoçando a condição dos sujeitos, e lhes fazendo suportar um jugo do qual eles nem sequer têm ideia no meio da experiência. Tudo pela só razão de que o desejo de perseverança do ser se afasta por si mesmo de qualquer mutação violenta, atrela-se necessariamente ao estado presente e receia experiências incertas. Mas, além disso, essa preguiça de raciocinar e agir precisa de entretenimento. Uma sensação contínua tornase necessariamente importuna. Muitas vezes elogiamos os grandes príncipes, os mais cheios de sua glória e de sua fortuna, porque descem facilmente de sua elevação, e no fundo são louváveis e felizes pela espontaneidade de seu gênio, que não repugna às sensações comuns; mas, no fundo, não será que, entediados com homenagens contínuas e ocupações tão gloriosas, procuram se divertir, ou falar a linguagem comum, para matar o tempo? A experiência está contra eles, 210 Segunda parte das paixões pois vemos pela história que a maioria, sob o pretexto de relaxar, deu menos atenção, não estou dizendo ao destino dos indivíduos, mas ao destino de nações inteiras, do que aos seus entretenimentos mais simples: porque, seguros de sua autoridade, em que o desejo de perseverança está satisfeito, raramente pensam em seus deveres, que são efeitos de uma determinação externa. Tenho o cuidado de não pretender dar, por semelhantes razões, vantagem à preguiça acima das outras afecções necessárias da humanidade, nem mesmo justificá-la no tocante às contradições de conduta em que ela lança a maioria dos homens, sobretudo no que diz respeito a questões que exigiria raciocínio e sofrimento para desenvolver e fazer considerar suas consequências. Pretendo ainda menos aplaudir a ignorância, que é seu efeito mais ordinário, visto que é a causa comum das maiores fraquezas da humanidade, quero dizer, do medo e da superstição. Mas concluo, sobre este exemplo, que será sem dúvida tão útil quanto agradável seguir neste tratado as outras consequências de nossos princípios e examinar com precisão a mecânica de nossas paixões para poder julgar a extensão de suas forças, contra as quais nos jactamos tantas vezes de podermos nos defender com toda liberdade. 1º Digo então, seguindo os princípios acima demonstrados, que qualquer mente que imagina a destruição do que ama deve se afligir, como, ao contrário, deve se alegrar em imaginar sua conservação. A prova desta proposição deve ser tirada da necessidade do esforço que determina cada ser senciente a representar para si o que aumenta seu poder, isto é, o que lhe dá alegria e, consequentemente, o que ama. Tanto este mesmo poder só pode ser aumentado, de acordo com a hipótese, pela posição de tal objeto, quanto é destruído por sua negação. Mas pela mesma razão, toda mente que imagina a destruição do que odeia deve alegrar-se, visto que é necessariamente inclinada a excluir a existência daquilo que diminui seu poder, e semelhantemente deve afligir-se de sua 211 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers preservação como de sua presença: porque qualquer afecção que contém a ideia do objeto de seu ódio se oporá ao seu esforço natural e lhe causará necessariamente um sentimento de tristeza. No entanto, é bastante difícil exprimir por nomes e designações particulares as paixões resultantes desta mecânica, senão dizendo que ela é o princípio de todo o bem que fazemos ou que desejamos ao que amamos, e de todo o mal que fazemos ou desejamos ao que odiamos. Além disso, é necessário observar a esse respeito que os diferentes temperamentos dos homens diversificam os efeitos desta mecânica, visto que o mundo está repleto de pessoas que nem amam nem odeiam, outras que odeiam e que não amam e, enfim, outras que amam e dificilmente odeiam. Mas consideramos aqui o estado comum da natureza, segundo o qual essas duas proposições não apresentam nenhuma dificuldade. 2º Digo que qualquer mente que imagina o objeto que ama como sendo tocado por sentimentos de alegria ou tristeza, será determinada às mesmas paixões, proporcionalmente à afecção que se supõe no objeto amado e no grau de sua afinidade própria. Com efeito, as imagens ou ideias das coisas supõem sua existência em uma modificação particular, que se relaciona não menos à imagem do que ao seu objeto. Mas a ideia de alegria é essencialmente o sentimento de uma maior realidade, como, ao contrário, a de tristeza é o sentimento de uma menor realidade. Portanto, é certo que a mente não pode imaginar a tristeza ou a alegria em um objeto que aumenta realmente seu próprio poder (na suposição de que o ama) sem ser tocada proporcionalmente pelas mesmas afecções. O reverso desta proposição não é menos fácil de demonstrar, nem menos perceptível na experiência. Assim, dizemos que a mente, que imagina o objeto de seu ódio tocado de tristeza, deve se alegrar com isso e, ao contrário, afligir-se por sua alegria proporcionalmente aos sentimentos que sente e que imagina nele: porque na ordem comum de nossas ideias, quem diz uma tristeza diz uma afecção negativa 212 Segunda parte das paixões de realidade, e quem diz ódio acompanha necessariamente a ideia da tristeza da imagem de uma causa externa. Se, então, aplicamos a tristeza, isto é, uma negação de realidade, ao objeto que nos aflige, não podemos senão nos alegrar, como, ao contrário, se aplicarmos a ideia de alegria, que é uma afirmação de realidade, não podemos senão nos afligir, visto que nossa própria realidade será proporcionalmente diminuída. Esta mecânica é simples, mas infelizmente suas consequências não são vantajosas para a humanidade: pois além de multiplicar as ocasiões de dor e aflição, muito além das de alegria, na medida em que nosso coração é mais disposto a odiar do que a amar, nossa conveniência com os objetos externos nunca podendo igualar a desconveniência, no próprio amor ela nos faz encontrar o sentimento de tristeza pelo interesse do que nós amamos. Ela nos inspira, além disso, a alegria pelo mal alheio e a aflição por sua felicidade: disposição infinitamente contrária à generosidade, que é uma das afecções da mente para a qual mais geralmente damos nossos aplausos. Enfim, a satisfação que ela obtém com o mal alheio nunca é isenta de percepções contrárias a ela mesma: o que necessariamente entrega o coração à incerteza e à impaciência e, consequentemente, afasta-o da verdadeira alegria. 3º Se a mente imagina algo que produz realmente ou não os sentimentos de alegria e tristeza que percebe no que ama, conceberá necessariamente para essa coisa os sentimentos de amor ou ódio, proporcionais à sua afinidade pelo sujeito afetado, e à ação que ele atribuirá à coisa imaginada. Esta proposição é provada pela precedente: porque se é verdade que somos tocados de alegria ou tristeza por ocasião do que amamos, não pode ser senão pela imagem de uma coisa externa, seguindo a definição dessas paixões. Mas, no caso da tristeza, essa imagem não é a do objeto amado: pois esse não pode causar tristeza enquanto é amado. Será, então, o da causa que o modifica, para o qual seremos levados com amor ou ódio, segundo a imagem da paixão que se acredita causar ao que amamos. 213 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers Mas, pela mesma razão, odiaremos necessariamente o objeto que imaginamos aumentando a realidade do que odiamos e, ao contrário, amaremos o que o diminui nas mesmas proporções de nosso ódio pelo objeto, e dos afetos que imaginamos lhe serem causados. Que, se aplicarmos essas duas proposições gerais aos nossos próprios sentimentos, conheceremos primeiro que as afecções expressas pelos nomes de favor e indignação são verdadeiramente fundadas sob esta mecânica. Com efeito, o favor é apenas uma espécie de alegria, misturada com amor, aplicada a um objeto que se supõe ter beneficiado o sujeito que amamos, e a indignação, ao contrário, é um sentimento de tristeza, misturado com ódio, contra um objeto suposto causa do mal que acontece ao que amamos. Disso se segue que o favor pode passar até à amizade e ao sentimento de reconhecimento, como a indignação pode se tornar cólera e desejo de vingança na proporção da afecção que nos liga ao objeto ao qual causou dano ou benefício. Mas se esse mesmo mecanismo se passa em relação a um objeto odiado, o despeito e o ressentimento tomam o lugar do favor, e a indignação se transforma em um sentimento de gratidão que se teria vergonha de admitir por reconhecimento, o qual, todavia, não deixa de vincular a sociedade daqueles que são contentes em prejudicar. 4º A mente humana necessariamente se esforça para afirmar e imaginar em um objeto que ama o que acredita ser próprio a dar-lhe a sensação de bem-estar ou alegria, como, ao contrário, a mesma determinação deve levá-la a negar de um objeto que ama tudo o que imagina que possa ser uma causa de tristeza ou um sentimento de mal-estar. Esta proposição, estritamente falando, não é senão uma extensão da primeira definição de amor e ódio, segundo a qual vimos que a mente não pode deixar de se comprazer com o que aumenta seu próprio poder, e de se afligir do que o diminui. Propriedade que não pode pertencer à natureza da mente sem se tornar necessária à respeito dos objetos externos aos quais ela se liga ou dos quais se afasta. Ou seja, ela ama ou 214 Segunda parte das paixões odeia como consequência de sua percepção: porque seguindo sua verdadeira e real constituição, amar ou odiar os objetos nada mais é do que amar a si mesmo e seu bem-estar. Mas esta proposição tem sua recíproca, assim como todas as precedentes, que (seja dito de passagem) me persuade e pode até, ao meu ver, fazer uma prova admissível para todos, que a moral considerada nas afecções naturais do indivíduo humano deve ser tratada matematicamente, e que ela é suscetível de demonstrações tão regulares quanto aquelas que podem ser empregadas para determinar as proporções de grandezas, números, sons e de qualquer assunto mecânico. Ora, esta recíproca consiste em que, por uma razão igual à precedente, a mente deve necessariamente se esforçar para afirmar do que odeia o que imagina poder lhe causar alguma diminuição da realidade ou de poder, e negar o que lhe julga ser um motivo real de alegria. É por isso que, embora essas ideias não sejam arbitrárias, pois cada uma requer um fundamento efetivo, é tão comum ver os homens sujeitos a opiniões falsas, seja sobre si mesmos, ou sobre o que amam, ou do que odeiam, quase nunca estimando cada um desses objetos pelo seu justo valor, porque a paixão corrompe a maior parte das ideias que deles podem tomar. De fato, a mente prevenida de soberba, pensando em si mesma para além dos termos verdadeiros, atribui a si tudo o que imagina valer e poder. Contempla suas falsas ideias como reais, imagina todos os objetos que a adulam como verdadeiros, e ela mesma os desfruta efetivamente enquanto não for treinada na consideração de outras ideias que os excluem, ou de uma força que limite a dela. Que se esse sentimento se aplicar fora da mente, será ou excesso de estima pelo que ela ama, ou de desprezo pelo que odeia: o que faz nascer uma outra espécie de cegueira, em consequência da qual se põe muito alto ou muito abaixo a opinião sobre as qualidades ou forças de um amigo ou inimigo, não podendo a verdade ser produzida pelas ilusões de um amor-próprio desregrado. 215 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers 5º A mente considerando a si mesma e seu próprio poder deve conceber tanto mais alegria quanto mais os imagina distintamente. Verdade que é substancialmente relativa à proposição anterior, pela qual aprendemos que a mente deve esforçar-se por imaginar de si mesma, e consequentemente do que ama, tudo o que busca ou supõe o bem-estar: visto que ela não pode imaginar o contrário sem restringir seu próprio poder e, consequentemente, sem o afligi-lo. Mas se quisermos uma prova independente disso, basta considerar que a mente, não se conhecendo senão pelas afecções de seu corpo e pelas percepções que delas resultam, não pode passar para uma realidade maior, isto é, ser tocada de alegria, senão por sua própria consideração, na medida em que se reconhece afetada de uma maneira e por objetos que a satisfazem, de sorte que quanto menos se incomoda nessa consideração, mais sua satisfação deve ser plena. Por outro lado, o poder da mente e o esforço que dele resulta não são diferentes de sua essência, isto é, dela mesma: e a essência de cada coisa não envolve senão o que ela tem de real, e não o que não tem. Consequentemente, o esforço da mente não pode ser dirigido senão para a afirmação de seu poder, ou melhor, de seu ser e de seu bem-estar, e tanto quanto esta afirmação lhe parece clara e evidente, tanto e proporcionalmente sua satisfação deve ser aumentada. É sob esse princípio que é fundado o amor à independência, não só como meio mais seguro do que qualquer outro de nos garantirmos dos eventos que podemos temer, mas porque a ideia de sujeição e de obediência oprime a nossa própria ideia, e não deixa senão uma evidência emprestada, com a qual a mente não pode ficar plenamente satisfeita. É também por isso que podemos concluir que, como é impossível na ordem comum da natureza que a mente possa considerar sua impotência sem se afligir, também é impossível que a mente possa regozijar-se na humilhação, ou seja, na ideia clara de sua impotência, ou se quisermos, de seu nada: visto que qualquer impedimento que se encontre 216 Segunda parte das paixões na formação de uma ideia plena de si mesma e de seu poder, torna-se necessariamente uma causa de tristeza. Pode bem acontecer que uma mente forte, ocupada com ideias e objetos singulares, como os que a religião apresenta, regozije-se com uma humilhação que afligiria uma outra; mas não o é senão porque ela se compensa alhures, essa aflição ou tristeza mecânica servindo, por outro lado, para multiplicar a ideia de seu mérito diante de Deus, isto é, aquela do poder, do qual ela é então mais vivamente lisonjeada. Ora, a alegria que o homem tira de sua própria consideração deve necessariamente aumentar na proporção dos sufrágios que recebe de fora, isto é, dos testemunhos da satisfação que inspira nos outros, à qual ele relaciona à sua própria ideia, e isso é o que torna o comércio de elogios tão usado entre nós, cada um se apressando em dar sua parte para obter a sua. Disso vem também o contentamento e a satisfação interiores, que sentimos por ocasião de uma boa ação, quando podemos nos considerar como o autor e o princípio dela, sentimento que, não obstante, aumenta na proporção dos aplausos que recebe, e que muitas vezes chega ao ponto de torná-los desejáveis. Mas, por razão contrária, a culpa necessariamente aflige a mente na mesma proporção, pois junta à nossa própria ideia a da indignação, desprezo ou tristeza que inspiramos nos outros. E é isso o que entendemos pelos termos vergonha, arrependimento, remorso, humilhação, que designam diferentes paixões, mas todas baseadas no princípio da tristeza, concebidas por ocasião de uma falta da qual não se pode desculpar, ou então por ocasião de um constrangimento que traz à tona nossa inexperiência. Assim, não perguntemos mais por que o homem gosta tanto de promover a si mesmo, ou suas próprias ações, ou por que os outros se cansam tão rapidamente de histórias ordinárias para esse fim, os elogios próprios sendo uma espécie de negação à respeito dos ouvintes de tudo isso que atribui a si mesmo. 217 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers 6º Se a mente humana se apega a algum objeto semelhante a si mesma, ou que ela apenas imagina capaz de sensação, não pode deixar de desejar o recíproco de sua parte, e de se esforçar por obtê-lo. De sorte que ela será sensível à alegria de adquiri-lo e possuí-lo; e que se algum outro objeto fizer parte dessa reciprocidade que ela exige para si mesma, ela será tocada de tristeza, às vezes a ponto de tomar uma aversão ao objeto amado, mas sempre a ponto de odiar, e muitas vezes com fúria, o objeto que acusará de sequestro de um bem sobre o qual seus desejos e suas ânsias a fizeram tomar uma espécie de direito. Para julgar a necessidade desse mecanismo, basta lembrarmos que foi demonstrado que a mente procura necessariamente ocupar-se com o que ama e tocá-lo de uma alegria que seja acompanhada de sua ideia, ou seja, fazer-se amar. Princípio que desenvolve todas as outras consequências do amor, mas que, aplicado à última proposição, faz-lhe a demonstração completa, pois quanto mais essa alegria e essa ideia forem sensíveis ao objeto amado, tanto mais o serão para nós mesmos. Donde se segue que o enfraquecimento, a partilha ou a destruição dessa ideia causarão uma tristeza real que não pode ser sem ódio contra os objetos que a produzem, e sem ciúme contra aquele que se apodera do objeto que fazia a satisfação. Há, porém, essa diferença em relação ao ódio que pode ser concebido nesta ocasião contra o objeto amado que, como não é odiado senão por acidente, e como esse tipo de ódio é contrabalançado por um amor essencial, não resulta senão uma dolorosa incerteza, que mantém a sensação em tal equilíbrio que pode facilmente ser convertida em verdadeiro ódio, ou em amor mais ardente do que antes. 7º Qualquer homem que se considere amado ou odiado livremente, e sem ter dado uma ocasião positiva, ama ou odeia mais na proporção em que as ideias dessa liberdade ou gratuidade são mais evidentes. E aqui está a prova. Quem diz ser livre concebe sua liberdade e sua indeterminação por elas mesmas. Se, então, esse ser nos causa ao mesmo 218 Segunda parte das paixões tempo uma alegria ou tristeza reais, nós o imaginamos só e, portanto, seremos mais tocados por sua ocasião do que se, o considerando como determinado, fôssemos obrigados a lhe acrescentar outra imagem. Razão que nos faz conhecer por que os homens, que são reciprocamente persuadidos de sua liberdade, amam-se ou se odeiam mais do que qualquer outros objetos. É também a causa evidente da cólera e da vingança, que são os movimentos pelos quais a mente se inclina a odiar quem a odeia ou quem a prejudica, e a retribuir o mal que ela considera lhe ter recebido, ou então a lhe fazer aquilo que ela apreende. E é o ponto pelo qual esta afecção tende à crueldade que, além disso, é considerada fazer o mal sem pretexto ou objeto. Assim, vemos que o ódio é aumentado pelo ódio. Mas a mesma razão também mostra que pode ser vencido pelo amor, pois ninguém pode atentar que é amado sem conceber um sentimento de alegria capaz de aniquilar a tristeza que causa o ódio. Isso é também por consequência do mesmo princípio que a ingratidão nos aflige, os benefícios mais desinteressados estando sempre fundados sobre o desejo de se fazer amar. Fim ao qual somos privados pela ignorância. Mas é necessário observar sobre a mudança do amor para o ódio ou do ódio para o amor que, depois de feita a mudança, o sentimento que dela resultará deve extrair grande parte de sua força da paixão precedente: porque aquele que começa odiar o que amou perde muito mais realidade do que quem nunca amou, seja do lado da própria alegria, seja do que deu ao objeto, seja do lado do esforço que fez para se fazer amar reciprocamente. Circunstâncias que são todas necessárias na suposição do amor e que, cessando tudo com ele, multiplicam por consequência a tristeza e o ódio proporcionalmente. É o mesmo com a mudança do ódio em amor: pois à nova alegria do amor e suas consequências, juntase a de se libertar da tristeza real que causou o ódio, alegria essa que não pode ser determinada senão proporcionalmente 219 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers aos sentimentos contrários que se tinha antes. Não se segue, todavia, que seja possível, como consequência desta verdade, que alguém possa se propor o ódio como meio de amar mais fortemente em seguida. Pois é contrário à natureza engajar-se em um certo mal com a esperança de uma vantagem duvidosa e, além disso, quem odiasse por esse princípio certamente odiaria sempre. Todavia, no uso comum, percebe-se que é muito mais ordinário ver as paixões violentas se amenizarem e extinguirem do que vê-las passar ou mudar de uma para outra. Para o que há diferentes causas: pois além da mudança de organização, que acontece a cada indivíduo no curso dos anos, a qual faz com que se torne insensível a prazeres ou dores que outrora tocavam profundamente, é certo que a grande distração da maioria dos homens e a facilidade com que se prestam a todas as novas percepções lhes faz perder muito prontamente a memória das primeiras. 8º As paixões que têm seu princípio imediato nas afecções primeiras, a saber, a alegria e a tristeza, têm necessariamente um efeito proporcional a essas mesmas afecções, e assim, segundo essa medida, o desejo de gozar o que se ama, ou de afastar o que se odeia, não pode ser moderado senão por outros desejos de mesma força, ou de tipo oposto, como o medo de um mal maior ou a esperança de um bem maior. Chamo aqui bem qualquer espécie de satisfação e os meios que a ela conduzem, assim como, ao contrário, nomeio mal toda espécie de tristeza, e particularmente aquela que surge de um desejo frustrado, isto é, tornado inútil. De fato, vimos acima que o bem e o mal não se distinguem por sua natureza, e que não o são em relação a nós senão pelas afecções de fuga ou busca, inseparáveis da percepção dos objetos, o que faz com que cada coisa seja estimada boa ou má segundo as ideias particulares. Ora, a determinação pela qual a mente não consente em seguir a impressão que recebe de um objeto, ou pela qual se submete a uma outra menos sensível de certa maneira, 220 Segunda parte das paixões porque ela apraz menos, mas mais eficaz para fazê-la agir, chama-se precaução, e consiste apenas na esperança de obter um bem maior previsto e desejado, ou de evitar um mal apreendido; como, por outro lado, a sagacidade, que permite prever os acontecimentos de longe, e que dá à sua imagem o peso necessário para prevalecer sobre as sensações presentes, chama-se prudência. Segue-se, então, que toda paixão contém e pressupõe um esforço da mente proporcional à sensação que a causa, isto é, à percepção do objeto, mas que a determinação efetiva, ou seja, aquela que produz uma ação, não é sempre consequente da atração, ou do esforço da própria paixão, porque temos dois outros motivos quase inseparáveis da alma, a saber, a esperança e o medo, os quais, embora mais obtusos do lado da sensação, não são menos poderosos, porque sendo auxiliados pelos preconceitos do hábito e da educação, são capazes de superar os sentimentos mais vivos. De sorte que, na estima comum, os homens que obedecem sem restrições às suas paixões, que não consideram nem as consequências remotas nem os efeitos imediatos a não ser em sua satisfação presente, esses, digo, são considerados imprudentes, ou como loucos, igualmente incapazes de sentimentos de glória e de vergonha. 9º Se uma mente foi tocada de alegria ou tristeza por algum objeto, no primeiro caso ela fará necessariamente esforço para representá-lo para si mesma nas mesmas circunstâncias em que lhe recebeu a percepção, se não for ainda tocada do desejo de tornar sua posse mais perfeita. Mas, pelo contrário, se foi acometida de tristeza ou ódio, fará outro esforço para diminuir, ou remover, a ideia da coisa das circunstâncias de sua percepção, se não for o caso que sua paixão a leve à vingança. A causa desses sentimentos é inteiramente evidente em qualquer espécie que se queira considerá-la: pois se falta algo na ideia de um objeto, falta também à sua realidade imaginada, e é uma privação à qual a mente se esforçará em suprir pelos 221 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers seus desejos se se trata do sentimento de amor, ou de que não pode deixar de se regozijar se se trata do sentimento do ódio. Mas como por esta última espécie de satisfação ela não pode confiar absolutamente na ação de outrem, e como consequência de sua constituição ela precisa agir ela mesma para se livrar de sua dor presente, ela se vê na necessidade de diminuir em sua imaginação as circunstâncias do que a aflige, para afastar ao menos o que puder da realidade de sua tristeza. Todavia, a respeito do ódio absoluto, há a distinção de que este aumenta, como vimos, na proporção de que ele é sensível, sobretudo quando a mente se jacta da esperança da vingança: pois então ela busca razões para odiar mais e não teme aumentar em sua imaginação as circunstâncias que aumentam sua cólera. Mas se examinarmos bem esse sentimento, reconheceremos que ele não é produzido senão pelo odioso prazer que encontra em prejudicar e vingar-se. Com efeito, se mudarmos a espécie de ódio, supondo-o direcionado a um objeto poderoso, contra o qual nossa vingança não possa ter força, ou do qual nós mesmos temos motivos para temer a ira, a mente se esforçará então, de acordo com a mecânica natural, para diminuir tanto quanto está em si a realidade de sua tristeza, negando ou ocultando de si mesma algumas das circunstâncias da ação ou do objeto que causa seu desprazer. 10º Se a mente, supostamente em um estado de perfeita indiferença por um objeto que considera, não obstante, o imagina tocado de amor ou ódio, ou simplesmente de dor ou prazer, tomará a ideia da mesma afecção e será igualmente afetada. Aqui está a prova desta proposição: As imagens são afecções de algum órgão do indivíduo humano, que envolvem, conjuntamente com a representação de um objeto externo, a ideia da percepção ou modificação que recebe de sua parte. Se então este objeto é semelhante ao que ela imagina, mesmo que fosse apenas por uma igualdade de sensação, a imagem desse objeto envolverá a ideia dessa paridade ou semelhança e, consequentemente, se o imaginarmos tocado por uma afecção que nos seja 222 Segunda parte das paixões conhecida, a ideia dessa afecção será pintada na mesma imagem e a mente, da qual essa ideia se torna a forma, será necessariamente tocada por ela. Ora, segue disso: 1º Que facilmente concebemos o amor ou o ódio pelos objetos, aos quais imaginamos causar prazer ou dor àqueles que consideramos nossos semelhantes, mesmo que apenas por uma suposição de paridade de sensação. 2º Que não é da natureza odiar os objetos que nos causam piedade, porque de outra maneira não teríamos piedade, visto que nos regozijaríamos com seu desprazer. 3º Que somos naturalmente inclinados a consolar aqueles por quem temos compaixão, porque sua tristeza se torna nossa, vemo-nos obrigados a buscar meios e ideias que possam excluí-la. Este último sentimento que, entre todos os nossos afetos, distingue-se pelos honoráveis nomes de bondade e de humanidade, muito diferentes, consequentemente, do que nomeamos inclinação, consiste no desejo de consolar aquele que estimamos digno de uma fortuna melhor, e pode ser considerada como uma das disposições mais louváveis da natureza, porque parece descobrir no coração humano um fundo de generosidade muito mais extenso do que seria julgado pela experiência. Mas, além disso, é mal compensado por outras afecções, resultantes do mesmo princípio, as quais sempre, na estima dos sábios, pouco honrarão a humanidade. Com efeito, segue-se igualmente que, se imaginarmos alguém em condições de possuir sozinho um objeto que possa enchê-lo de alegria, o esforço natural nos levará a lhe fazer obstáculo, porque pelo único princípio de que o espírito se engaja por imitação a amar o que julga ser amado por outro, segue-se que uma posse exclusiva não pode deixar de afligir aquele que a considera em outro, e a mente não pode sentir tristeza sem lhe fazer esforço contrário, como foi demonstrado. Eis, pois, o segundo mecanismo que duplica, por assim dizer, a desvantagem da natureza humana: visto que não só nos torna sensíveis às dores de todos os infelizes, mas também 223 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers nos aflige pela alegria dos que são felizes; a mesma causa que nos torna piedosos também muito ordinariamente nos torna ciumentos ou invejosos. Digo ordinariamente porque, como a organização, que é o instrumento das percepções, varia na maioria dos homens, pode-se encontrar algum temperamento menos sujeito à inveja do que à piedade, e vice-versa. No entanto, ao considerar essa mecânica na ideia geral da constituição dos homens, é preciso reconhecer que a demonstração do princípio e de suas consequências não apresenta nenhuma dificuldade. Não falo aqui de uma espécie de inveja que possa ser chamada de maligna, em relação à causa que a determina, que descobrirei mais adiante, e considero apenas aquela que decorre da disposição comum das mentes de tomar as afecções de seus semelhantes. Podemos ter várias experiências cotidianas da grande facilidade com que nos deixamos levar à imitação dos sentimentos de outrem, e particularmente em relação a jovens ou crianças, cujos órgãos ainda estão em uma espécie de equilíbrio: pois os vimos ordinariamente rirem e chorarem apenas por imitação, conforme encontram pessoas que riem ou que choram. Eles também desejam, e muitas vezes com a maior violência, o que parece agradar seus semelhantes, porque são incapazes de moderar por outros sentimentos esse ciúme natural, que resulta da inclinação a imitar ou a se revestir das afecções de outrem: em uma palavra, porque as ideias que os ocupam não são ainda senão as primeiras percepções de suas mentes, que os determinam a querer e a agir, sem mistura de antigas sensações que poderiam modificar essa determinação. Pois é o que acontece com as pessoas de idade e mente mais maduras, a quem o grande número de percepções passadas dá lugar a sabedoria e a moderação, porque lhes é difícil receber novas delas, que não remetam a ideia de alguma outra mais antiga, cujo efeito certo será suspender ou modificar de qualquer maneira que seja essa nova percepção, pela qual (se as circunstâncias forem as mesmas) se deixariam levar tão bem quanto as crianças. 224 Segunda parte das paixões 11º A mente que considera um objeto não se pode deter satisfatoriamente senão em dois casos particulares, se atribui sua alegria a ele ou se descobre nele qualidades singulares, cujas imagens necessariamente a ocuparão com a mesma determinação que lhe fará negligenciar esse mesmo objeto, se nele não encontrar senão qualidades comuns ou já conhecidas. A verdade da mecânica, expressa por esta proposição, é fundada em dois princípios, que foram demonstrados de forma invencível: o primeiro é o vínculo necessário da mente ao que lhe apraz, isto é, ao que estabelece seu bem-estar; o segundo é a relação que nossas ideias mantêm entre si e a dependência em que elas estão umas em relação às outras. A nada remeterei aqui do que concerne aos efeitos da alegria e do amor em relação à maneira como essas afecções nos fazem considerar os objetos, especialmente porque basta saber que na ordem comum a imaginação não pode representar nada cuja ideia não dê instantaneamente origem a uma outra, particularmente quando as qualidades que se tornam seu objeto são comuns a vários indivíduos. Mas, por essa mesma razão, é evidente que apenas ideias e percepções singulares podem verdadeiramente vincular a mente: porque sendo inusitadas, não podem ainda ser unidas a outras, das quais as imagens poderiam tomar seu lugar e, consequentemente, aniquilá-las. Assim, essas ideias são necessariamente as mais duradouras, porque a mente não se distrai delas, como não poderia deixar de ser quando as ideias se sucedem prontamente uma após a outra. Mas, por outro lado, é necessário que a mente encontre sua satisfação ao considerar essas ideias singulares, porque se elas produzissem qualquer outro efeito e lhe causassem uma sensação triste ou dolorosa, ela seria necessariamente engajada em rejeitá-las e imaginar sua destruição: o que contraria a suposição de que essas ideias não lembram outras que possam aniquilá-las. Acrescentemos a isso essa forte impressão que nos leva ao repouso, quando não somos levados 225 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers por uma determinação contrária, e estaremos em condições de julgar a satisfação que acompanha as ideias singulares. Excetuo, aliás, os casos graves, mais capazes de surpreender a imaginação do que de satisfazê-la. Mas de resto, como este mecanismo se junta necessariamente a vários outros na nossa constituição, daí resulta uma infinidade de efeitos diferentes, embora sempre proporcionais às suas causas. Tal é aquele que é produzido pela união de nosso vínculo às ideias singulares com o princípio que nos faz desejar ter uma ideia clara e distinta de nós mesmos e de nosso próprio poder: pois se segue que não podemos ver senão penosamente nos outros uma realidade que se é obrigado a negar de si mesmo; como, ao contrário, o que se considera com alegria em si, o que se estima tão singular que se acredita podê-lo negar de todos os outros. É por isso que, se não se percebe em si mesmo senão qualidades necessárias ao ser e à natureza e, consequentemente comuns a todos os indivíduos de mesma espécie, por mais louváveis que sejam essas qualidades, seremos pouco sensíveis à sua posse. Mas se por infelicidade alguém for obrigado a reconhecer a inferioridade de suas próprias qualidades, será afligido por isso, tentará remover a ideia da comparação enfraquecendo a ideia dessas qualidades externas para engrandecer as próprias e formar delas uma imagem que excita a complacência, e é assim que se engendra a inveja, que podemos distinguir pela alcunha de maligna, cujo efeito ordinário é aniquilar o mérito verdadeiro, ou o mérito externo, para elevar o pessoal. Isto, não obstante, recebe uma exceção, na medida em que a inveja só pode ocorrer entre semelhantes. Ninguém ainda pensou em ter inveja da altura das árvores ou da força dos elefantes, e aqui está a razão: é que, pela definição da inveja, ela deve ser como um ódio formado contra um objeto por ocasião de um sentimento de tristeza, da qual ele é causa, porque sua ideia aniquila ou diminui a do próprio poder; mas o poder do homem é consequência de sua natureza e não de outra: é por isso que ele nunca pode desejar o que constitui a propriedade de uma outra espécie de ser que não a dele, tal 226 Segunda parte das paixões como o voo dos pássaros, a não ser por uma ficção, pela qual nunca é realmente tocado. Assim, quando vemos em outros homens qualidades de valor, justiça, magnanimidade ou qualquer outra espécie de perfeição, que excitam mais a veneração do que o ciúme, é porque não as concebemos como propriedades da natureza das quais se esteja tão despojado que falte a esse respeito algo na própria realidade; mas nós as imaginamos como singularidades superabundantes no indivíduo que as possui, que, negadas de si mesmo, ainda deixam ao ser particular tudo o que é necessário para exercer e sentir seu próprio poder. Mas esse grande princípio das qualidades singulares, comparável em sua fecundidade às afecções de fuga e busca, não se limita a produzir apenas o ciúme maligno. A admiração é um efeito ainda mais simples, visto que é preciso defini-la como a consideração de uma qualidade especial desconhecida e inesperada no objeto de nossa percepção, da qual a mente não se distrai por nenhuma ideia diferente, nascida da mesma consideração. Na verdade, ela não pode ser colocada diretamente entre as paixões: visto que ela não é, considerando tudo, senão uma maneira particular de imaginar. Mas o detalhe seguinte nos fará conhecer que ela produz uma quantidade quase igual à dos objetos que podem causá-la, e que elas são tão diferentes umas das outras quanto o são esses mesmos objetos. Com efeito, se a admiração parte de um objeto que nos inspira medo, ela se tornará consternação, isto é, formará uma imagem de perigo tão nova e, consequentemente, tão viva e tão poderosa, que excluirá todas as ideias habituais de glória, honra, virtude e bom senso, mesmo as dos meios que se poderia empregar para se livrar dela se estivesse de sangue frio. Que se esta admiração parte de um objeto simplesmente odioso, como de uma má ação, a cólera, a vingança, a crueldade de um outro homem, ela se torna horror: isto é, uma aversão que revolta todas as sensações daquele que é tomado por ela. Mas se, ao contrário, essa admiração tem a virtude por objeto, ela se tornará veneração, respeito, e se o amor 227 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers ali se juntar, ela produzirá a devoção: termo que explico pelo de consagração de si mesmo ao objeto admirado. E a partir disso é fácil compreender como a mistura da admiração com as outras afecções é capaz de excitar paixões de tantos tipos diferentes que nem sequer há termos usuais para expressá-las. De resto, a admiração é uma afecção tão mecânica que seu inverso se descobre à mente menos diligente, que reconhece sem dificuldade que ela deve consistir em uma tal disposição do objeto ou da mente que o considera, que esta está mais inclinada a julgar o que lhe falta do que a refletir sobre o que ali se encontra realmente. Não pretendo excluir por esta definição a espécie de desprezo de que já falei por ocasião da soberba, nem aquele que resulta da indignação e do ódio. Mas parece que, no sentido mais próprio, para tornar o desprezo completo, é necessário que a mente não seja tocada por nenhuma outra afecção, visto que se a imaginação ali juntar outras ideias, nascerão tantas paixões diferentes, proporcionais aos seus princípios, as quais todavia será difícil exprimir para além do que nomeamos de troça, zombaria, insulto. Por outro lado, estando a mente disposta de maneira que se vincula e se deleita na consideração de qualidades singulares, deve necessariamente se esforçar para formar imagens em cuja novidade e singularidade ela possa encontrar sua satisfação. E é por isso que todos os homens desejam tão geralmente ampliar seus conhecimentos, alguns pelo estudo e pela leitura, outros pela visão de objetos novos, outros pela conversação e pela sociedade de seus semelhantes. De sorte que podemos dizer que há uma infinidade de espécies de curiosidade, sem aí compreender o que podemos chamar maligno, que é um efeito do ciúme, unido à propensão que temos para buscar novas ideias. A mecânica que produz o tédio é uma consequência da precedente, e não parecerá menos evidente: pois se se considera que a mente não tem ideias e, consequentemente, nenhuma ocupação, nem mesmo da própria existência que, na medida em que tem percepções, as quais lhe são fornecidas 228 Segunda parte das paixões por apenas duas vias, as sensações presentes e as imagens gravadas na memória, julgaremos facilmente que, se o indivíduo se encontra num estado em que não pode receber novas percepções, é preciso que a mente recorra às imagens da memória, que já são conhecidas e, consequentemente, incapazes de deter a mente por sua novidade ou singularidade. Além disso, as imagens da memória não se apresentam à mente dependendo umas das outras, e de acordo com sua conexão, de sorte que se a determinação, de qualquer lado que for tomada, leva a considerar uma, esta lembrará apenas um certo número de outras e deixará desvanecer a imaginação quando este número se esgotar. Será preciso, então, uma nova determinação para suscitar uma segunda, e assim por diante. Mas supõe-se que a mente carece de determinação, porque o indivíduo carece de percepções. Portanto, há ao mesmo tempo uma falta de ação e, consequentemente, de realidade, o que não pode acontecer sem dar lugar a um tipo de tristeza, que nomeamos de tédio, a qual, sem ser dolorosa nela mesma, é, no entanto, insuportável, na medida em que não excita nenhuma outra sensação além da inquietude pela busca de uma determinação que lhe falta. Esse mesmo princípio desenvolve ainda de qual maneira ocorre que às vezes não se pense em nada, ou pelo menos não que se possa explicar, nem prestar conta de sua última ideia; o que supõe que a última determinação chega ao fim, e que não tem mais força para excitar novas imagens; disposição muito próxima de cair no sentimento de tédio: visto que para produzi-la basta perceber que faltam novas percepções. Mas o grande e importante efeito do princípio estabelecido por esta proposição, de que a mente se apraz e vincula a necessidade de considerar as qualidades singulares dos objetos, consiste na disposição na qual lhe põe a acreditar sem nenhum esforço nas coisas menos críveis. Da qual a causa deve ser tomada na natureza da imaginação, que se apraz com a surpresa, e não é capaz aprofundar para além da percepção, de sorte que lhe basta que seja movida e vinculada à uma 229 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers consideração para então dar seu consentimento sob a mais leviana probabilidade. A surpresa de uma percepção maravilhosa, então, envolve quase sempre a opinião e até a fé, o que não é afastado na maneira comum de pensar. E daí vêm todos os preconceitos e contos populares em que cada um toma sua parte sem exame, seguindo o caminho traçado pelo maior número, e mesmo apesar do exame que às vezes se pode fazer, porque a imaginação uma vez conquistada e treinada segundo à sua disposição natural, justifica a sua própria leviandade valendo-se de todas as circunstâncias que possam servir para a defender. É verdade que seguidamente encontramos homens mais firmes, cujo julgamento é mais difícil de enganar. Todavia, pode-se assegurar de que, se fosse possível examinar rigorosamente suas opiniões, encontrar-se-ia a maior parte delas de origem na surpresa causada por um objeto inusitado, ou em uma narrativa maravilhosa, mais do que na verdade bem discutida. Isso é tão verdadeiro, e tão conhecido de todos os homens, que se formou entre eles na mais profunda antiguidade uma arte cujo único objetivo é surpreender a credulidade comum. E nesta visão, após longas observações, regras foram estabelecidas para excitar os diversos movimentos do coração de acordo com a intenção do orador, e para submeter o julgamento dos ouvintes pelo sublime, o maravilhoso ou o patético de um discurso estudado. É uma prática de mais de vinte séculos, contra a qual reivindicamos mil e mil vezes, sem sucesso, a evidência da verdade. Isto ainda não é tudo: pois é preciso tomar no mesmo princípio o motivo desta antiga definição que nos ensina que o homem é essencialmente um animal religioso, isto é, que é formado de uma disposição que não pode recusar seu culto a certos objetos que ele não conhece, mas que sua imaginação lhe representa a critério de sua própria credulidade, misturada com todas as paixões às quais ela se junta na ordem comum. 230 Segunda parte das paixões É verdade, não obstante, que a profissão de uma religião não está totalmente à escolha dos indivíduos: visto que se apegam ordinariamente àquilo do qual se recebe as primeiras noções e que, consequentemente, encontra tudo estabelecido, com uma base doutrinal à qual entrega sua crença, seguidamente a ponto de pensar que seria um crime colocá-la em dúvida. No entanto, se ousássemos remontar à origem, seria fácil ver que não há religião que não tenha um começo conhecido, e um legislador a cujas ideias devemos remeter a regra da moral e a doutrina especulativa que cada uma propõe diferentemente. Consequentemente, é impossível supor que todas elas tenham a mesma verdade por objeto e a mesma autoridade divina por seu fundamento. É preciso, então, concluir necessariamente que esses legisladores empregaram as disposições comuns muito mais do que as criaram, por mais tocantes que sejam os objetos que representaram diferentemente. Cada um deles se serviu da base de credulidade comum a todos os povos, como um terreno fértil onde se fez germinar os dogmas convenientes aos seus desígnios e ao seu caráter próprio, por meio das paixões que souberam excitar de acordo com a disposição particular dos mesmos povos. E para dar um exemplo incontestável, tal foi Maomé, que, encontrando seus compatriotas predispostos à paixão pela eloquência e capazes de se entregar sem cerimônia às ideias sublimes e maravilhosas se lhes fossem apresentadas sob essa isca, sabia não apenas tirar desta base uma submissão cega à sua doutrina, mas também recursos para persuadir ou subjugar metade do nosso continente em menos de cinquenta anos. Basta, de fato, à nossa constituição natural e à conexão que nossas diferentes paixões têm com a base da admiração que se encontra em nós mecanicamente, para obter para as religiões em geral a autoridade que elas assumem sobre as consciências; mas o que será se lhe acrescentarmos ainda os preconceitos da educação e do hábito contra os quais a própria evidência não pode fazer quase nada? 231 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers O que digo, com efeito, visto que a evidência é tão pouco requisitada em matéria de religião, que o mistério e a ignorância entram essencialmente na constituição de todas aquelas que o mundo tem seguido até o presente. É mesmo no mistério de uma doutrina obscura e inexplicável que a imaginação encontra um recurso seguro e sempre novo para manter sua credulidade, seja pelas descobertas que ela se apressa a fazer ali, como em uma terra desconhecida, seja pela atração e gosto que ela encontra para formar, no vazio que ele lhe apresenta, fantasmas proporcionais aos seus desejos. Na conta dos quais não devemos excluir nem mesmo aqueles que prejudicam o próprio sujeito religioso, como as terríveis mortificações que os índios idólatras ou os santos da Turquia praticam com um zelo que horroriza a razão. E isso mostra que o único ponto essencialmente difícil para a mente humana, arrastada por tantas percepções, ideias e determinações diversas, é fixar seu juízo na verdade, e sua prática moral ou sua conduta no que há de razoável, de natural e consequente no que ela sabe ser verdadeiro. O grande poder das religiões consiste, então, na atração que a imaginação encontra nelas para se satisfazer, seja nas paixões de esperança ou de medo, que nos agitam quase continuamente, seja do lado da ficção de certos sentimentos proporcionais aos quais ela alcança por fortes meditações, as quais excitam as paixões que lhe são mais úteis. Ora, não há quem não esteja em condições de julgar quão pouca evidência é necessária para tais fins, para não dizer que ela lhes seria inteiramente contrária. Todavia, não seria suficiente se a razão e a verdade não dessem alguma cor às diferentes religiões: pois não há nenhuma que seja absolutamente desprovida de razão e de especiosa aparência, caso contrário ninguém lhe poderia aquiescer. A armadilha que elas armam para as mentes mais firmes, depois de tê-las submetido como as outras, ou pelas maravilhas de sua hipótese, ou pela diretiva do nascimento e da educação, consiste, então, nas consequências exatamente ligadas e deduzidas de seus princípios, que nunca são 232 Segunda parte das paixões examinados, ou na regra dos costumes, a qual nenhuma religião deixou de prover, desculpando-se facilmente pelas desordens particulares de tudo o que se pratica contrariamente. Assim, os homens sábios e virtuosos sempre têm motivos suficientes para suportar até a morte uma parte do jugo da religião em que nasceram. Depois disso, é tão pouco necessário quanto seria difícil explicar quantos tipos de paixões entram em cada sistema de religião, quão suas misturas têm efeitos complicados, quão o amor-próprio emprega muitos impulsos e destrezas para lhe sacrificar seu exterior, retendo o direito de fazer sua própria religião servir aos fins que lhe são verdadeiramente caros. Tudo isso é puramente mecânico e tão consequente de nossa constituição que é possível se surpreender que, entre as várias religiões do mundo, só pudesse ser encontrada uma (Confúcio) que, sem ajuda da revelação, ao rejeitar igualmente os maravilhosos sistemas e fantasmas da superstição e do terror, pretende-se ser de tão grande utilidade para a conduta dos homens, sem ter sido estabelecida senão sobre o dever natural. 12º Todo homem capaz de ação para fora de si mesmo sempre tenderá necessariamente a fazer o que pensa que seus iguais verão com alegria, e não a fazer o que estima que eles veriam com tristeza, exceto no caso de agir por motivo de ódio e desejo de vingança, ou se ele se gaba de poder retrair sua ação. Essa mecânica não parecerá menos óbvia do que as precedentes, para quem se lembrar que foi demonstrado que não somente os outros homens são nossos semelhantes, e que, consequentemente, sendo sujeitos à imitação de seus sentimentos, as disposições que eles tomam à nosso respeito tornam-se nossas, mas que qualquer ação própria, suscetível a elogio ou censura, isto é, capaz de excitar em outrem um sentimento de alegria ou tristeza, que se expressa por aprovação ou condenação, causa realmente na mente uma afecção tanto mais viva porque não pode ser separada da ideia própria, seja na espécie do bem, seja na espécie do mal. 233 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers Que se juntarmos a isso a ideia, embora falsa, que os homens têm de sua própria liberdade, tal que se estimam causas efetivas e imparciais de tudo o que fazem, podemos julgar o quanto as paixões que resultam do elogio ou da censura de suas ações têm força e poder. A primeira em ordem é a ambição, a qual deve ser compreendida sob a ideia de um desejo muitas vezes imoderado de dominar seus pares, seja pela força em caso de contradição, seja por seus sufrágios voluntários, por merecer realmente ou fazê-los pensar que se merece deles homenagens, submissão e elogios. O contrário da ambição é a pusilanimidade, que é, além de uma impropriedade para comandar, um medo imoderado de desagradar e de merecer culpa. Por isso, é apropriado observar que o que chamamos de elogio ou censura, quando julgamos as ações de outrem ou as nossas próprias, é em relação a nós mesmos ou a Deus uma afecção de alegria fundada no testemunho da consciência, que deve ser nomeada de complacência e satisfação, ou bem uma afecção de tristeza, fundado no mesmo testemunho, que levará os nomes de culpa e arrependimento. Paixões tanto mais vivas, como temos observado, quanto mais envolvem distintamente a ideia da própria liberdade. A glória e a vergonha, que são ainda efeitos do mesmo princípio, referem-se mais propriamente a uma ação passada, sobre a qual se espera o sufrágio ou a condenação do público. Mas quando as paixões se desvinculam da consideração ou do julgamento de outrem, e se restringem à ideia que cada um tem de si mesmo, mudam de nome e assumindo os de arrogância e orgulho na espécie da própria complacência, ou o de remorso na espécie de arrependimento. Além disso, pode-se observar sobre essas quatro diferentes afecções que a primeira, isenta de violência e injustiça, é reconhecida pelo caráter particular das belas almas, as quais, no desejo de uma reputação digna delas, ou pela satisfação que encontram no cumprimento do que julgaram ser 234 Segunda parte das paixões seu dever, na qualidade de homens, cidadãos, pessoas públicas ou privadas, e geralmente em todos os aspectos, empreendem o que parece ao vulgo ser mais difícil à natureza, porque não são tocados pelos mesmos objetos. Assim, não precisamos concluir sobre essa ideia popular que essas almas generosas se façam uma perpétua violência para resistir aos sentimentos comuns. O hábito que elas contraíram de nunca aquiescer senão às determinações conformes às regras que se propuseram, ou a feliz constituição de seus órgãos, que não são senão raramente movidos pelas sensações que fazem agir os outros homens, são o princípio de sua virtude. Foi assim que a firmeza de Régulo triunfou sobre a ternura que ele sem dúvida tinha pela família: porque a determinação que falava nele, pelo interesse da pátria e pela observação de sua palavra, fazia-se a mais poderosa, pelo hábito formado contra o preconceito comum. A vergonha é uma paixão totalmente oposta à glória e que, consequentemente, indica uma fraqueza real em quem é tocado por ela, o que fez dizer justamente que ela não é própria senão às almas que não têm força de serem generosas, nem toda a coragem de serem más. O caráter particular desse defeito é de fazer sentir àqueles tocados por ela a necessidade de ajuda externa. É por isso que a bajulação sempre passou pelo remédio particular da vergonha, tiranos e príncipes perversos não consolando-se de sua própria indignidade senão por meio dela. Além disso, o sentimento da vergonha ainda tem essa imperfeição que, nunca aplicando-se senão ao passado, é lhe impossível poder retificar as desordens futuras daquele a que ela mais toca; nisto diferindo de outras paixões que podem, em certo sentido, servir à vantagem do indivíduo ou de toda a sociedade dos homens. O remorso, que na linguagem das Escrituras é chamado de verme da consciência, não é propriamente senão uma vergonha levada ao excesso: uma vez que essas duas afecções consistem igualmente na tristeza, concebida no objeto de uma ação, ou qualquer outra falta, a qual se une de tal maneira a causa com a ideia de si mesmo e de uma liberdade inteira 235 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers que não se pode pensar em uma sem ser instantaneamente chocado pela outra. E é sobre esse vínculo necessário que é fundada a sensação importuna e dolorosa que causa o primeiro suplício dos culpados. Mas a respeito da arrogância, ela consiste em uma satisfação consigo mesmo tão forte e tão pouco mesurada que degenera em desprezo por todos os outros. De sorte que seu efeito indispensável é produzir o ódio em todos aqueles a quem ela se revela: porque não é da natureza do homem poder perdoar o desprezo de si mesmo, que ela supõe necessariamente. Esta é também a razão pela qual a modéstia não pode deixar de agradar e de se fazer amar: porque supõe sentimentos de estima e respeito pelos outros, que são tão lisonjeiros para aqueles a quem se mostram, quanto o desprezo e o orgulho são ofensivos. Pouco seria, todavia, se o homem se contentasse em se jactar de seus sentimentos; mas por outra consequência mecânica de sua constituição, ele exige de todos os seus semelhantes que amem ou odeiem o que ele mesmo ama ou odeia, e geralmente quer que os outros pensem e sintam as mesmas afecções que ele. Tudo em consequência do mesmo princípio que forma a ambição. Quer-se, de fato, que os outros vivam e ajam em uma ordem conforme as suas próprias ideias. Exige-se não só a obediência exterior, mas também a dos afetos: porque tudo isso serve para multiplicar o poder e a ação daquele que se atribui esta dominação. O mal é que cada um desejando a mesma coisa para si, é inevitável que resulte uma divisão perpétua na sociedade e que, consequentemente, os homens quase sempre vivam inimigos uns dos outros. 13º Deve ser evidente, após as demonstrações precedentes, que existem tantas espécies de afecções quantas são as espécies de objetos capazes de causar diferentes percepções; e reciprocamente que as afecções diferem entre si, ou em razão dos objetos que as excitam, ou em razão das disposições do sujeito que as percebe. Assim, esta proposição tem duas partes, ambas fáceis de demonstrar. 236 Segunda parte das paixões Pois, em primeiro lugar, embora os nomes usuais de alegria e tristeza, ou de outras paixões que brotam da fonte comum, não nos apresentem senão ideias unívocas, é verdade todavia que seu princípio não é outro senão as imagens resultantes da percepção de certos objetos, e que essas imagens não podem ser senão desiguais, visto que, como foi inelutavelmente demonstrado, nossas afecções envolvem mais a ideia de nossas percepções do que a da natureza dos objetos. No entanto, como é impossível que uma percepção não represente o objeto que a dá, visto que se o objeto é excluído, a percepção é anulada; segue-se necessariamente que cada paixão é determinada por uma ideia, ou imagem do objeto, de modo que ela possa ser. E é por isso que o amor ou o ódio, concebido por um objeto, é sempre diferente de um outro amor, ou de outro ódio; embora o mesmo indivíduo seja sujeito de uma mesma paixão em espécie; porque basta que o objeto ao qual se aplicam as paixões seja mudado, ou se não for realmente assim, que a imagem que o representa em nossa ideia seja mudada por alguma ocasião externa ou interna. E eis aqui o grande princípio, não somente da diferença de uma paixão para outra, na mesma espécie, mas dos diferentes acessos de uma mesma paixão. Em segundo lugar, é indubitável que os modos ou afecções de um corpo movido por outro não resultam apenas da natureza daquele que age, mas também da natureza daquele que sofre a ação. De sorte que, considerando esta verdade na ordem simples do movimento, podemos dizer que todo corpo que é movido recebe uma modificação dependente, tanto da força das causas que o fazem mover, quanto de sua própria natureza, e que por razão semelhante, um só corpo, suposto agindo sobre vários outros, move-os diversamente, segundo o que ele é e segundo o que os outros são. Isso é tão claro que a proposição pode ser numerada entre os axiomas mais indubitáveis. Mas visto que a ordem das ideias é a mesma das afecções dos corpos animados e sensíveis, tenho azo de concluir que há tanta diferença entre 237 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers as paixões dos indivíduos da mesma espécie, quanto há entre sua constituição particular, sem falar da presença da outra diferença que consiste na disparidade das percepções ou na diversidade das imagens impressas pelos objetos. Não procuremos, então, outra causa da infinita variedade que se encontra nas paixões com que os homens são tocados. Variedade tão fecunda que experimentamos todos os dias que o que é objeto de ódio ou tristeza para um, é objeto de alegria e amor para outro; que um teme o que o outro não teme, e assim por diante. Porque cada um julga de acordo com sua afecção, ou percepção particular, e não de acordo com a verdadeira natureza das coisas. Assim, os nomes de bom e mau, melhor e pior, não exprimem senão nossos próprios julgamentos relativos às nossas percepções, e às imagens que delas resultam. Mas disso se segue ainda que, segundo o uso comum de nossa vida, que se passa quase inteiramente em comparar os diferentes objetos, se nos ocorre de nos colocarmos em paralelo com os outros, ou de compararmos os outros entre si, sempre os julgamos pela só diferença de nossas afecções. Assim, dizemos por expressões absolutas que alguns são corajosos, outros tímidos, e todavia esses termos não significam outra coisa que uma comparação de nossas próprias afecções com aquelas que supomos nos outros. Por exemplo, aquele que despreza um perigo, sobre o qual eu ponderaria, e com mais forte razão se tivesse o costume de temê-lo, parece intrépido à minha imaginação. Ao contrário, aquele que teme um perigo que desprezo, parece-me não ter coragem. Da mesma maneira, chamo de ousadia ou temeridade o sentimento que, em um empreendimento, faz alguém superar as considerações que poderiam impedir-me, e chamo de fraqueza o abandono de um empreendimento feito em função de um motivo que não teria poder sobre minha mente. Assim, a variedade de afecções de todos os homens influencia necessariamente sobre todos os seus julgamentos. De sorte que, longe de poder confiar em alguma regra certa a esse respeito, em consequência da qual todos os 238 Segunda parte das paixões homens devem amar ou odiar certos objetos de uma maneira uniforme, não há indivíduo humano que possa confiar em si mesmo, pois seus julgamentos são necessariamente relativos às suas afecções, e estas mudam quase continuamente, é da ordem natural que às vezes odeie o que amou, ou que ame o que odiou, que tema o que desprezou ou que despreze o que temeu, não havendo nada real em suas considerações e julgamentos senão as imagens de objetos, gravadas por uma percepção que vemos ser tão sujeita a mudanças quanto a erros. É isso também que torna o arrependimento tão frequente entre os outros sentimentos, especialmente porque o sucesso quase nunca atende às expectativas, e a tristeza resultante necessariamente altera as disposições dos homens, eles não podem mais considerar os objetos sob sua primeira aparência, o que os leva a se acusarem voluntariamente de erro, seja no empreendimento, seja na escolha dos meios, que poderiam ter conseguido o seu sucesso, ou na conduta geral, ou particular, algo que imaginam depender deles. Segue-se também que as afecções dos animais, que não podemos mais considerar como destituídos de sentimento, depois de ter entendido tão claramente o nosso princípio, são tão diferentes das afecções dos homens quanto sua conformação é da deles. Assim, embora pareçam ter desejos como os nossos, não podemos raciocinar completamente sobre seu objeto. E verdadeiramente reconhecemos nas feras um desejo de acasalar, o que indica uma propensão à volúpia, que também se encontra na natureza do homem. Todavia, há a diferença de que seus desejos não estão relacionados como os nossos à beleza ou ao agrado, mas que são excitados por certas disposições da estação, ou do sangue da fêmea, os quais não agem sobre nós. Razão que os isenta dos vícios em que a atração da beleza lança a maioria dos homens por determinações invencíveis. No entanto, devemos concluir disso que cada indivíduo vive contente em sua natureza e por sua natureza, tendo as sensações suficientes à sua espécie para fornecer-lhe as paixões que devem lhe dar o impulso, 239 Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza Henri de Boulainvilliers determinando-o ao gênero de ação que lhe é própria, e que assim as sensações dos animais são somente nisso comparáveis às nossas: que elas envolvem, com a ideia individual, o desejo de ser, ou de bem-estar, do qual nenhum indivíduo sensível pode ser privado segundo as leis da natureza. 14º Há uma série de outras paixões que não explico em detalhes, porque algumas carecem de nomes distintivos, como notei acima, ou porque têm nomes impróprios que o uso lhes atribuiu de uma maneira absoluta: embora no fundo elas não tirem sua distinção senão dos objetos aos quais se aplicam. Tais são, por exemplo, a devassidão ou a luxúria, a avareza, a embriaguez etc., as quais são em si mesmas apenas espécies de amor, distinguidas apenas pelos objetos a que se dirigem. E deve-se notar a respeito desses tipos de afecções que não têm nenhuma imediatamente contrária a elas, como as verdadeiras paixões, isto é, aquelas que têm seu princípio na constituição mecânica do indivíduo. De fato, a temperança, a sobriedade, a castidade, que a elas opomos idealmente, não são paixões, mas hábitos e, na ideia comum, poderes supostos na alma por meio dos quais ela se crê restringir e moderar os apetites corporais. A própria prodigalidade não se opõe à avareza senão pelo seu efeito dissipador, caso contrário deveria ser definida como o ódio ao dinheiro, uma paixão que não é natural e que podemos assegurar que nenhum homem jamais teve. Mas o pródigo dissipa porque ama outros objetos mais do que o dinheiro, o qual sacrifica muito facilmente no desejo apaixonado de obtê-los. O detalhe dessas paixões superabundantes seria, então, inútil para o meu propósito, já que me restringi à minha própria instrução no tocante a origem, extensão e força das paixões em geral, e tocando as propriedades que lhes são comuns, para colocar-me em condições de compará-las com os poderes reais que estão em mim, se houver algum diferente do hábito e da percepção e, enfim, julgar com alguma solidez o que uns podem reciprocamente sobre os outros. Assim, embora eu veja claramente que há uma diferença absoluta entre o amor de 240 Segunda parte das paixões um marido por sua esposa, o de um amante por sua amante, o de um pai por seus filhos etc., ou entre a alegria de um bêbado à mesa e a de um filósofo a estudar, vejo ao mesmo tempo que essas diferenças não dizem respeito aos princípios comuns de cada uma dessas afecções, e que se referem apenas, como expliquei, aos objetos que as determinam, o que me persuade de que o que eu disse até aqui basta para tomar uma noção certa da mecânica de nossas paixões. 241 Apêndice nota exPliCativa sobre o Conto “o jantar do Conde de boulainvilliers” E ste opúsculo, Le dîner du comte de Boulainvilliers, foi publicado por Voltaire em 1767. Trata-se, nas palavras de Wheeler e Foote, de um “charmoso resumo das opiniões religiosas de Voltaire, que teve a honra de ser queimado pela mão do carrasco” (1894, p. 49). É, porém, um texto apócrifo, que Voltaire atribuiu à “Mr. St. Hiacinte”, e no qual consta a data de 1728, – uma manobra das tantas adotada pela literatura clandestina da época. A atribuição a Thémiseul de Saint-Hyacinthe (1684-1746) dizem ter sido uma espécie de vingança póstuma, pois os dois sustentaram uma longa querela (cf. CROCKER, 1964; LANDON, 2020) e Hyacinthe teria tido algum papel na surra de cacetadas que Voltaire levou do pessoal do duque de Rohan. referências VOLTAIRE. “Le dîner (du comte de Boulainvilliers”. In: Mélanges, t. 7; Oeuvres de Voltaire, t. 43, (prefácios e notas de Beuchot) Paris: Léfèvre, 1831. pp. 562-607. (Disponível em https:// play.google.com/store/books/details?id=L8xbyCyGeL4C, acesso 27/05/22). CROCKER, L. G. “Saint-Hyacinthe et le nihilisme moral”. Revue d’Histoire littéraire de la France, 64 ann., nº 3, Jul. - Sep., 1964, pp. 462-466; CARAYOL, Elisabeth. «SAINT-HYACINTHE», In: Dictionnaire des journalistes, nº 730, (disponível em: https:// dictionnaire-journalistes.gazettes18e.fr/journaliste/730themiseul-de-saint-hyacinthe, acesso 26/05/22). LANDON, N. “Saint-Hyacinthe, auteur-compilateur du Recueil de divers écrits (1736)”, Pratiques et formes littéraires. Publicação online em 17/12/20. (disponível em:https:// publications-prairial.fr/pratiques-et-formes-litteraires/index. php?id=227, acesso 26/05/22). WHEELER, J. M. & FOOTE, G. W. Voltaire: A Sketch of his Life and Works. London: Robert Forder, 1894. 243 o jantar do Conde de boulainvilliers* voltaire i – antes do jantar O abade Couet1 – Por que, senhor conde, você considera a filosofia tão útil para o gênero humano quanto a religião apostólica, católica e romana? O conde de Boulainvilliers – A filosofia estende seu império sobre todo o universo, e vossa Igreja não domina senão uma parte da Europa; ela ainda tem muitos inimigos. Mas você deve me confessar que a filosofia é mil vezes mais salutar que a sua religião, já que é praticada há muito tempo. O abade – Você me assombra. O que você entende, então, por filosofia? O conde – Entendo o amor esclarecido pela sabedoria, sustentado pelo amor do Ser Eterno, recompensador da virtude e vingador do crime. * [Nota de Beuchot: Esta obra é de dezembro de 1767; as Memórias Secretas [Mémoires secrets] falam dela desde 10 de janeiro de 1768; a primeira edição, in-8° de 60 páginas, estava sem frontispício e sem nome do autor. Mas logo reconheceram Voltaire e, mais do que nunca, enfureceram-se contra sua impiedade. Voltaire, assustado, não só desautorizou o Dîner, como escreveu, em 22 de janeiro de 1768, a Marmontel, que “todas as pessoas conhecem um pouco o fato do escrito ser de Saint-Hyacinthe, que o imprimiu na Holanda em 1728”. No dia seguinte, escreveu a Argental que o nome de Saint-Hyacinthe estava no livro, prova evidente, segundo ele, de que Voltaire não era o autor. E para provar o que dizia sobre a edição de 1728, Voltaire mandou fazer uma edição intitulada Dîner du Comte de Boulainvilliers por M. Saint-Hiacinte, 1728, in-8° de 60 páginas. Mas esta edição de 1728 é impressa com os mesmos caracteres que a Profissão dos teístas [Profession des théistes], a Epístola aos Romanos, etc., saídos, em 1768, das prensas de Cramer, em Genebra. Os livreiros da Holanda [...]. 1 Nota de Beuchot: Couet (Bernard), grão-vicário do cardeal de Noailles, cônego de Notre-Dame, confessor do chanceler Daguesseau, foi assassinado em 3 de abril de 1736. Voltaire havia endereçado a ele, em 1725, uma quadra picante; ver t. LI, p. 149-50]. 245 o jantar do Conde de boulainvilliers voltaire O abade – Pois bem, não é isso o que nossa religião anuncia? O conde – Se é isso que você anuncia, nós estamos de acordo. Eu sou um bom católico e você é um bom filósofo. Não iremos, então, mais longe nem um nem o outro. Não desonremos nossa filosofia religiosa e santa, nem pelos sofismas e absurdos que ultrajam a razão, nem pela cupidez desenfreada de honras e riquezas que corrompem todas as virtudes. Ouçamos apenas as verdades e a moderação da filosofia; então esta filosofia adotará a religião por sua filha. O abade – Com sua permissão, esse discurso cheira um tanto à heresia. O conde – Enquanto você não parar de nos contar heresias, e se servir de heresias alumiadas2 no lugar de razões, você não terá por partidários senão hipócritas e imbecis. A opinião de um único sábio, sem dúvida, prevalece sobre o prestígio dos malandros e sobre a escravização de mil idiotas. Você me perguntou o que quero dizer com filosofia; eu lhe pergunto, em meu turno, o que você entende por religião. O abade – Eu precisaria de muito tempo para lhe explicar todos os nossos dogmas. O conde – Isso já é uma grande presunção contra você. Você precisa de livros grandes; e a mim não é preciso mais que cinco palavras: Sirva a Deus, seja justo. O abade – Nossa religião nunca disse o contrário. O conde – Gostaria de não encontrar ideias contrárias em seus livros. Essas palavras cruéis: “Obriga-os a entrar”3, que são abusadas com tanta barbárie; e estas: “Eu vim trazer a espada e não a paz”4; e ainda estas: “Aquele que não ouve a Igreja seja considerado pagão ou como recebedor de fundos públicos”5; e uma centena de máximas semelhantes assustam o bom senso e a humanidade. 2 N.T.: No original, “fagots allumés”, que seria “cavacos acesos” ou algo correspondente. Esta fala faz um trocadilho com a anterior, que nos foi impossível de traduzir. Em ambas a palavra “heresia” não aparece e é uma opção nossa, pois é apenas insinuada pela expressão francesa (sentir le fagot) utilizada pelo abade. 3 Luc., cap. 14, v. 23. 4 Mat., cap. 10, v. 34. 5 Idem, cap. 18, v. 17. 246 Apêndice Existe algo mais duro e mais odioso do que este outro discurso: “Eu lhes falo por parábolas, para que vendo não vejam, e ouvindo não ouçam”6? É assim que se explicam a sabedoria e a bondade eterna? O Deus de todo o universo, que se faz homem para esclarecer e favorecer todos os homens, dizer: “Eu não fui enviado senão ao rebanho de Israel”7, isto é, a um pequeno país de no máximo trinta léguas? É possível que este Deus, a quem se faz pagar o imposto, disse que seus discípulos não deveriam pagar nada; que os reis “não recebem impostos senão de estrangeiros, e que as crianças são isentas”8? O abade – Esses discursos que escandalizam são explicados por passagens bem diferentes. O conde – Céus! O que é um Deus que precisa de comentários e que se faz dizer perpetuamente os prós e os contras? O que é um legislador que não escreveu nada? quais são os quatro livros divinos cuja data é desconhecida e cujos autores, tão pouco averiguados, contradizem-se em cada página? O abade – Tudo isso se concilia, eu lhe digo. Mas você pelo menos me admitirá que está muito satisfeito com o Sermão da Montanha. O conde – Sim; pretende-se que Jesus teria dito que serão queimados aqueles que chamam seu irmão Raka9, como seus teólogos fazem todos os dias. Ele diz que veio para cumprir a lei de Moisés, que você tem horror10. Ele pergunta com o que se salgará se o sal se esgotar11. Ele diz que bem-aventurados são os pobres de espírito, porque o reino dos céus é deles12. Eu também sei que lhe fazem dizer que o trigo deve apodrecer 6 Idem, cap. 8, v. 10. 7 Idem, cap. 15, v. 24. 8 Idem, cap. 17, v. 24, 25, 26. 9 Idem, cap. 5, v. 22. 10 Idem, ibid., v. 17. 11 Idem, ibid., v. 13. 12 Idem, ibid., v. 3. 247 o jantar do Conde de boulainvilliers voltaire e morrer na terra para germinar13; que o reino dos céus é um grão de mostarda14; que é dinheiro gasto em usura15; que não se deve dar jantar aos pais quando eles são ricos16. Talvez essas expressões tivessem um significado respeitável na língua em que se diz que foram pronunciadas; eu adoto tudo o que pode inspirar a virtude: mas tenha a gentileza de me dizer o que você pensa de outra passagem, que é a seguinte: “Foi Deus quem me formou; Deus está em toda parte e em mim: ousaria contaminá-lo com ações vis e criminosas, com palavras impuras, com desejos infames? “Que eu, em meus últimos momentos, diga a Deus: Ó meu mestre! ai meu pai! você queria que eu sofresse, sofri com resignação; você queria que eu fosse pobre, eu abracei a pobreza; você me rebaixou, e eu não quis grandeza; você quer que eu morra, eu te adoro enquanto morro. Deixo este magnífico espetáculo agradecendo-te por me ter admitido para fazer-me contemplar a admirável ordem com que rege o universo”. O abade – Isso é admirável; em qual padre da igreja você encontrou esse trecho divino? Está em São Cipriano, em São Gregório de Nazianzo, ou em São Cirilo? O conde – Não; estas são as palavras de um escravo pagão, chamado Epiteto; e o imperador Marco Aurélio nunca pensou diferente desse escravo. O abade – Lembro-me, de fato, de ter lido, em minha juventude, os preceitos de moral nos autores pagãos, que me fizeram grande impressão. Concedo-te mesmo que as leis de Zaleuco, de Charondas, os conselhos de Confúcio, os mandamentos morais de Zoroastro, as máximas de Pitágoras, me pareceram ditadas pela sabedoria para a felicidade do gênero humano: me pareceu que Deus se dignou honrar esses grandes homens de uma luz mais pura que a dos homens comuns, pois deu mais harmonia a Virgílio, mais eloquência a Cícero e mais 13 Iª Epístola de Paulo aos Coríntios, cap. 15, v. 36. 14 Luc., cap. 13, v. 19. 15 Mat., cap. 25, v. 27 16 Luc., cap. 14, v. 12. 248 Apêndice sagacidade a Arquimedes do que a seus contemporâneos. Fiquei impressionado com aquelas grandes lições de virtude que a antiguidade nos deixou. Mas, enfim, toda essa gente não conhecia a teologia; eles não sabiam a diferença entre um querubim e um serafim, entre graça eficiente à qual não se pode resistir e graça suficiente que não é suficiente; eles não sabiam que Deus foi morto e que, tendo sido crucificado por todos, ele não havia sido crucificado senão por alguns. Ah! senhor conde, se os Cipião, Cícero, Catão, Epiteto, os Antonins, soubessem que o Pai gerou o Filho, e não o fez; que o Espírito não foi gerado nem feito, mas procede por inspiração às vezes do Pai e às vezes do Filho; que o Filho tem tudo o que pertence ao Pai, mas que não tem a paternidade; se, digo, os antigos, nossos mestres em tudo, tivessem podido conhecer uma centena de verdades desta clareza e desta força; enfim, se tivessem sido teólogos, que vantagens não teriam proporcionado aos homens! A consubstancialidade sobretudo, senhor Comte, a transubstanciação, são coisas tão belas! Quisera o céu que Cipião, Cícero e Marco Aurélio tivessem aprofundado essas verdades! eles poderiam ter sido grão-vigários do arcebispo, ou síndicos [syndics] da Sorbonne. O conde – Isso, diga-me conscientemente, entre nós e diante de Deus, se você pensa que as almas desses grandes homens estão no espeto, eternamente assadas pelos demônios enquanto esperam que encontrem seu corpo que será eternamente queimado com elas; e isso por não poder ser síndico da Sorbonne e grão-vigários do arcebispo? O abade – Você me embaraça demais; pois fora da Igreja não há salvação. Ninguém deve agradar ao céu, senão nós e nossos amigos17. Todo aquele que não ouve a Igreja, seja como pagão ou como lavrador em geral18. Cipião e Marco Aurélio não ouviram a Igreja; eles não receberam o Concílio de Trento; suas almas 17 N.T.: No original: “Nul ne doit plaire au ciel que nous et nos amis”. Nota de Beuchot: Paródia do verso de Moliérie (Femmes savantes, III, 2). Nul n’aura de l’esprit hors nous et nos amis [Ninguém terá espírito, senão nós e nossos amigos]. 18 Mat., cap. 18, v. 17. 249 o jantar do Conde de boulainvilliers voltaire espirituais serão queimadas para sempre; e quando seus corpos, dispersos nos quatro elementos, forem reencontrados, eles serão queimados para sempre também com suas almas. Nada é mais claro, assim como nada é mais justo: isso é positivo. Por outro lado, é muito difícil queimar eternamente Sócrates, Aristide, Pitágoras, Epiteto, os Antonins, todos aqueles cuja vida foi pura e exemplar, e conceder a beatitude eterna à alma e ao corpo de François Ravaillac, que morreu como bom cristão, bem confessado e provido de uma graça eficaz ou suficiente. Estou um pouco embaraçado neste assunto; pois, enfim, sou juiz de todos os homens; sua felicidade ou seu infortúnio depende de mim, e eu teria alguma repugnância em salvar Ravaillac e o maldito Cipião. Há uma coisa que me consola, é que nós teólogos podemos tirar do inferno quem quisermos; lemos nos Atos de Santa Tecla, grande teóloga, discípula de São Paulo, que se disfarçou de homem para segui-lo, que libertou do inferno seu amigo Faconille, que teve a infelicidade de morrer pagão19. O grande São João Damasceno relata que o grande Macário, o mesmo que obteve de Deus a morte de Ário por suas orações ardentes, questionou um dia em um cemitério a caveira de um pagão sobre sua salvação: a caveira lhe respondeu que as preces dos teólogos confortaram infinitamente os condenados20. Enfim, sabemos com certeza que o grande São Gregório, papa, tirou do inferno a alma do imperador Trajano21: são belos exemplos da misericórdia de Deus. O conde – Você é um gozador; tire, então, do inferno, por suas santas orações, Henrique IV, que morreu sem sacramento como um pagão, e coloque-o no céu com Ravaillac, o bem confessado; mas meu embaraço é de saber como eles vão viver juntos e com que cara vão ficar. 19 Ver Damascène, Orat. de iis qui in pace dormierunt, p. 585. 20 Apud Grab. Spicileg. tom. I. 21 Eucholog. c. 96. & alii lib. graec. Damascène, p. 588. 250 Apêndice A condessa de Boulainvilliers. – O jantar está esfriando; eis lá Sr. Fréret que chega, sentemo-nos à mesa, depois vocês tirem do inferno quem vocês quiserem. ii – durante o jantar O abade – Ah! Senhora, você come gordura em uma sextafeira sem a permissão expressa do senhor Arcebispo ou minha! Você não sabe que isso é pecar contra a Igreja? Não era permitido entre os judeus comer lebre, porque ainda que ela rumine, não tem a pata fendida22; era um crime horrível comer ixion e grifo.23 A condessa – Você graceja sempre, senhor abade; me diga, por favor, o que é um ixion. O abade – Eu não sei, senhora; mas sei que quem come uma asa de frango na sexta-feira sem a permissão de seu bispo, em vez de se fartar de salmão e esturjão, peca mortalmente; que sua alma será queimada enquanto espera por seu corpo, e que quando seu corpo vier encontrá-la, ambos serão queimados eternamente, sem poder ser consumidos, como eu dizia antes. A condessa – Nada é seguramente mais judicioso ou mais justo; há prazer em viver em uma religião tão sábia. Você gostaria de uma asa desta perdiz? O conde – Pegue, acredite em mim; Jesus Cristo disse: Coma o que vos ser apresentado24. Coma, coma, que a vergonha não lhe prejudique. O abade – Ah! na frente dos criados, numa sexta-feira, que é depois da quinta-feira! Eles diriam isso por toda a cidade. O conde – Então você tem mais respeito pelos meus lacaios do que por Jesus Cristo? O abade – É bem verdade que nosso Salvador nunca soube a distinção entre dias gordos e dias magros; mas mudamos toda a sua doutrina para melhor; ele nos deu todo o poder na terra e no céu. Você bem sabe que, em mais de uma província, há menos 22 Deuteron. cap. 14, v. 7. 23 Idem, v. 12 e 13. 24 Luc., cap. 10, v. 8. 251 o jantar do Conde de boulainvilliers voltaire de um século, as pessoas que comiam gordura na Quaresma eram condenadas à forca? E eu lhes citarei exemplos. A condessa – Meu Deus, quão edificante! E como vejo bem que sua religião é divina! O abade – Tão divina que, no próprio país onde enforcaram quem tinha comido omelete de toucinho, fizeram queimar quem tinha tirado toucinho de uma galinha picada, e que a Igreja ainda o usa às vezes desta forma: tanto ela sabe se dosar às diferentes fraquezas dos homens! – Bebamos. O conde – A propósito, senhor grão-vigário, sua Igreja permite que se casem as duas irmãs? O abade – Ambas ao mesmo tempo, não; mas uma após a outra, de acordo com a necessidade, as circunstâncias, o dinheiro dado na corte de Roma e a proteção: note bem que tudo sempre muda e que tudo depende de nossa santa Igreja. A Santa Igreja judaica, nossa mãe, que detestamos e que sempre citamos, acha muito bom que o patriarca Jacó se case com as duas irmãs ao mesmo tempo: ela proíbe em Levítico de casar com a viúva de seu irmão25; ordena-o expressamente no Deuteronômio26 ; e o costume de Jerusalém permitia que alguém se casasse com sua própria irmã, pois você sabe que quando Amnon, filho do casto rei Davi, estuprou sua irmã Tamar, aquela irmã modesta e discreta disse-lhe estas palavras: “Meu irmão, não faça tolices, mas peça em casamento ao nosso pai, ele não lhe recusará”27. Mas, para voltarmos à aprovação de casar as duas irmãs ou a esposa de um irmão, a coisa varia de acordo com os tempos, como eu lhe disse. Nosso Papa Clemente VII não ousou declarar inválido o casamento do rei da Inglaterra, Henrique VIII, com a esposa do príncipe Arthur, seu irmão, por medo de que Carlos V o pusesse preso uma segunda vez, e o declarasse bastardo como ele era; mas tenha como certo que em matéria de casamento, como em tudo o mais, o Papa e o Arcebispo são os mestres de tudo quando são os mais fortes. Bebamos. 25 Lévit., cap. 18, v. 16. 26 Deut., cap. 25, v. 5. 27 II, Reis, cap. 13, v. 12 e 13. 252 Apêndice A condessa – Pois bem! Senhor Fréret, você nada responde a esses belos discursos, não diz nada! Sr. Fréret – Eu me calo, senhora, porque teria demais a dizer. O abade – E o que você poderia dizer, senhor, que pudesse abalar a autoridade, obscurecer o esplendor, invalidar a verdade de nossa santa mãe Igreja católica, apostólica e romana? – Bebamos. Sr. Fréret – Por Deus! Eu diria que vocês são judeus e idólatras, que zombam de nós e embolsam nosso dinheiro. O abade – Judeus e idólatras! Você exagera! Sr. Fréret – Sim, judeus e idólatras, já que você me força. Seu Deus não nasceu judeu? Ele não foi circuncidado como judeu?28 Ele não realizou todas as cerimônias judaicas? Você não o faz dizer várias vezes que é preciso obedecer à lei de Moisés?29 Ele não fez sacrifícios no templo? Seu batismo não foi um costume judaico tirado dos orientais? Você ainda não chama pela palavra judaica páscoa o principal de seus feriados? Você não canta há mais de mil e setecentos anos, em uma música diabólica, canções judaicas que você atribui a uma reizinho judeu30, bandido, adúltero e homicida, um homem segundo o coração de Deus? Você não penhora em Roma com seus judeus, que você chama de banco de caridade [monts de pieté]? E você não vende impiedosamente as penhoras dos pobres quando eles não pagam a tempo? O conde – Ele tem razão; só falta uma coisa na lei judaica, que é um bom jubileu, um verdadeiro jubileu, pelo qual os senhores voltariam às terras que haviam dado como tolos, no tempo que vocês lhes persuadiram de que Elias e o anticristo iriam vir, que o mundo ia acabar, e que era necessário dar todos os seus bens à Igreja para o remédio da sua alma, e não para ser classificado entre os bodes. Este jubileu seria melhor do que aquele que vocês não nos concedem, senão indulgências plenárias; eu ganharia, por minha parte, mais de cem mil francos de renda. 28 Luc., cap. 2, v. 22 e 39. 29 Mat. cap. 5, v. 17 e 18. 30 Nota de Beuchot: David; ver II, Reis, cap. 11 e 12. 253 o jantar do Conde de boulainvilliers voltaire O abade – Eu veria isso bem, desde que dessas cem mil libras você me fizesse uma gorda pensão. Mas por que Sr. Fréret nos chama de idólatras? Sr. Fréret – Por que, senhor! Pergunte a São Cristóvão, que é a primeira coisa que você encontra em sua catedral31 e que é ao mesmo tempo o mais vil monumento de barbárie que você tem; pergunte a Santa Clara, que é invocada para o mal dos olhos e para quem você construiu templos; a São Genou que curou a gota; a São Januário, cujo sangue se liquefaz tão solenemente em Nápoles quando é trazido perto de sua cabeça; a Santo Antônio que borrifa água benta em cavalos em Roma32. Você se atreveria a negar sua idolatria, você que adora com o culto de Dulia em mil igrejas o leite da Virgem, o prepúcio e o umbigo de seu filho, cujos espinhos você diz que uma coroa foi feita para ele, a madeira podre na qual você afirma que o ser eterno está morto? Você, enfim, que adora com um culto de latria um pedaço de massa que você coloca em uma caixa, por medo de ratos? Seus católicos romanos levaram sua extravagância católica ao ponto de dizer que transformam esse pedaço de massa em Deus em virtude de algumas palavras latinas, e que todas as migalhas dessa massa se tornam tantos deuses criadores do universo. Um mendigo que foi feito padre, um monge que emerge dos braços de uma prostituta, vem por doze soldos, vestido com roupas de ator, para murmurar para mim em uma língua estrangeira o que você chama de missa, para dividir o ar em quatro com três dedos, dobrar, endireitar, virar à direita e à esquerda, para a frente e para trás, e fazer quantos deuses quiser, beber e comê-los, e depois devolvê-los ao seu penico! E você não vai admitir que é a idolatria mais monstruosa e ridícula que já desonrou a natureza humana? Não é preciso transformar-se em animal para imaginar que se transforma o pão branco e o vinho tinto em Deus? Novos idólatras, não se comparem aos antigos que adoravam Zeus, 31 Nota de Beuchot: Havia em Paris, dentro da igreja catedral, uma enorme estátua que se dizia ser a de Cristóvão. 32 Voyage de Misson, tom. II, p. 294; esse é um fato público. 254 Apêndice o Demiourgos, o mestre dos deuses e dos homens, e que prestavam homenagem aos deuses secundários; saiba que Ceres, Pomona e Flora valem mais que sua Úrsula e suas onze mil virgens; e que não cabe aos padres de Maria Madalena zombar dos padres de Minerva. A condessa – Senhor abade, você tem no Sr. Fréret um rude adversário. Por que você quis que ele falasse? A culpa é sua. O abade – Oh! Senhora, eu sou aguerrido. Não me apavoro por tão pouco. Faz muito tempo que ouço todos esses argumentos contra nossa Santa Madre Igreja. A condessa – Dou minha palavra, você me lembra uma certa duquesa a quem um descontente chamou de meretriz; ela lhe respondeu: Há trinta anos que me dizem isso, e gostaria que me dissessem por mais trinta anos. O abade – Senhora, senhora, uma boa palavra não prova nada. O conde – Isso é verdade; mas uma boa palavra não impede que se possa ter razão. O abade – E que razão se poderia opor à autenticidade das profecias, aos milagres de Moisés, aos milagres de Jesus, aos mártires? O conde – Ah! Não vos aconselho a falar de profecias, pois os meninos e as meninas sabem o que o profeta Ezequiel comeu no seu almoço33, e que não seria honesto nomear no jantar; desde que souberam das aventuras de Oolá e Oolibá34, sobre as quais é difícil falar diante das damas; pois sabem que o Deus dos judeus ordenou ao profeta Oséias que tomasse uma meretriz e fizesse filhos de prostitutas35. Hélas! Você encontrará algo mais nessas misérias do que rabiscos e obscenidades? Que seus pobres teólogos parem, então, de discutir com os judeus sobre o sentido das passagens de seus profetas, sobre certas linhas hebraicas de um Amós, um Joel, um Habacuque, um Jeremias; sobre certas palavras a respeito de 33 Ezeq., cap. 4, v. 12. 34 Idem, cap. 16 e 23, v. 20. 35 Oséias, cap. 1, v. 2, e cap.3, v. 1 e 2. 255 o jantar do Conde de boulainvilliers voltaire Elias, transportado para as regiões celestes orientais em uma carruagem de fogo, que Elias, abro parêntesis, nunca existiu. Deixe-os sobretudo enrubescer com as profecias inseridas em seus Evangelhos. É possível que ainda existam homens tolos e covardes o suficiente para não serem tomados de indignação quando Jesus prediz em Lucas36: Haverá sinais na lua e nas estrelas; os sons do mar e das ondas; homens secando de medo esperarão pelo que deve acontecer com todo o universo. As virtudes dos céus serão abaladas, e então eles verão o filho do homem vindo em uma nuvem com grande poder e grande majestade. Em verdade vos digo que a presente geração não passará até que tudo isso se cumpra. É seguramente impossível ver uma previsão mais demarcada, mais circunstancial e mais falsa. Seria preciso ser louco para ousar dizer que ela foi cumprida, e que o filho do homem veio em uma nuvem com grande poder e grande majestade. Como é que Paulo, em sua Epístola aos Tessalonicenses (Ire, cap. iv, v. 16), confirma essa previsão ridícula por outra ainda mais impertinente? Nós, que vivemos e falamos com você, seremos levados nas nuvens para encontrar o Senhor no meio do ar, etc. Por menor que seja a instrução, sabe-se que o dogma do fim do mundo e da instauração de um mundo novo era uma quimera então aceita por quase todos os povos. Você encontrará esta opinião em Lucrécio, no livro IV. Você a encontra no primeiro livro das Metamorfoses de Ovídio. Heráclito, muito tempo antes, disse que este mundo seria consumido pelo fogo. Os estoicos adotaram esse devaneio. Os meio-judeus meio-cristãos, que fabricaram os Evangelhos, não deixaram de adotar tal dogma recebido e de aproveitá-lo. Mas, como o mundo subsistiu ainda muito tempo, e Jesus não veio nas nuvens com grande poder e grande majestade no primeiro século da Igreja, diziam que seria para o segundo século; eles em seguida prometeram para o terceiro; e de século em século essa extravagância se renova. Os teólogos agiram como um charlatão que vi no final 36 Cap. 2. [Na edição de Beuchot: Cap. 21, v. 25, 26, 27, 32]. 256 Apêndice da ponte-nova sobre o cais da escola; ele mostrava ao povo, à noite, um galo e algumas garrafas de bálsamo: Senhores, dizia ele, eu vou cortar a cabeça do meu galo, e o ressuscitarei em seguida na presença de vocês; mas é preciso que primeiro vocês comprem minhas garrafas. Sempre havia pessoas simples o suficiente para comprá-las. Eu vou cortar a cabeça do meu galo, continuava o charlatão; mas como é tarde, e esta operação é digna do grande dia, ficará para amanhã. Dois membros da Academia de Ciências tiveram a curiosidade e a constância de voltar para ver como o charlatão se sairia; a farsa durou oito dias consecutivos; mas a farsa da expectativa do fim do mundo, no cristianismo, tem durado oito séculos inteiros. Depois disso, senhor, cite-nos as profecias judaicas ou cristãs. Sr. Fréret – Eu não lhe aconselho a falar sobre os milagres de Moisés na frente de pessoas que têm barba no queixo. Se todas essas maravilhas inconcebíveis tivessem sido feitas, os egípcios teriam falado delas em suas histórias. A memória de tantos fatos prodigiosos que espantam a natureza teria sido preservada entre todas as nações. Os gregos, que eram instruídos em todas as fábulas do Egito e da Síria, teriam feito o barulho dessas ações sobrenaturais ressoar nos dois confins do mundo. Mas nenhum historiador, nem grego, nem sírio, nem egípcio, disse uma única palavra sobre isso. Flavius Josephus, tão bom patriota, tão obstinado em seu judaísmo, esse Josefo que reuniu tantos testemunhos em favor da antiguidade de sua nação, não conseguiu encontrar nenhum que atestasse as dez pragas do Egito, e a passagem em chão seco no meio do mar, etc. Você sabe que o autor do Pentateuco ainda é incerto: que homem sensato poderia acreditar, com a fé de não sei qual judeu, seja Esdras ou outro, em tais maravilhas apavorantes desconhecidas para todo o resto da terra? Mesmo que todos os seus profetas judeus tivessem citado mil vezes esses estranhos eventos, seria impossível acreditar neles: mas não há um único desses profetas que cite as palavras do Pentateuco sobre esse monte de milagres, nem um único que entra nos mínimos detalhes dessas aventuras; explique esse silêncio como puder. 257 o jantar do Conde de boulainvilliers voltaire Lembre-se de que são necessários motivos muito sérios para provocar a reversão da natureza dessa maneira. Que motivo, que razão poderia ter o Deus dos judeus? Seria para favorecer seu pequeno povo? Dar-lhe terra fértil? Por que ele não lhe deu o Egito em vez de fazer milagres, a maioria dos quais, vocês dizem, foram igualados pelos feiticeiros do Faraó? Por que fez o anjo exterminador degolar todos os anciãos do Egito e fez morrer todos os animais, a fim de que os israelitas, em número de seiscentos e trinta mil combatentes, fugissem como ladrões covardes? Por que abrir-lhes o seio do Mar Vermelho, a fim de que morram de fome no deserto? Você sente a enormidade desse absurdo; você tem muito bom senso para admiti-los e acreditar seriamente na religião cristã fundada na impostura judaica. Você sente o ridículo da resposta trivial de que não se deve questionar Deus, que não se deve sondar o abismo da Providência. Não, não devemos questionar a Deus por que ele criou piolhos e aranhas, porque, tendo certeza de que existem piolhos e aranhas, não podemos saber por que existem; mas não temos tanta certeza de que Moisés mudou sua vara em uma serpente e cobriu o Egito com piolhos, embora os piolhos fossem familiares ao seu povo: não questionamos a Deus; questionamos os loucos que se atrevem a fazer Deus falar e emprestar-lhes o excesso de suas extravagâncias. A condessa – Palavra minha, meu caro abade, também não o aconselho a falar dos milagres de Jesus. O criador do universo teria se feito judeu para transformar água em vinho37 em um casamento onde todos já estavam bêbados? Ele teria sido levado pelo diabo38 para uma montanha de onde podiam ser vistos todos os reinos da terra? Ele teria enviado o diabo39, no corpo de dois mil porcos em um país onde não havia porcos? Ele teria secado uma figueira40 por não dar figos, “quando não era tempo de figos”? Acredite, esses milagres são tão ridículos quanto os de Moisés. Confesse em voz alta o que você pensa no fundo de seu coração. 37 João, cap. 2, v. 9. 38 Mat., cap. 4, v. 8. 39 Idem, cap. 8, v. 32. 40 Marc., cap. 11, v. 13. 258 Apêndice O abade – Senhora, um pouco de condescendência pelo minha batina, por favor; deixe-me fazer meu trabalho; estou um pouco batido talvez sobre as profecias e sobre os milagres; mas sobre os mártires, é certo que houve; e Pascal, o patriarca de Port-Royal des Champs, disse: Acredito voluntariamente nas histórias cujas testemunhas foram degoladas. Sr. Fréret – Ah! senhor, que má fé e ignorância em Pascal! Alguém acreditaria, ao ouvi-lo, que ele viu os interrogatórios dos apóstolos e que foi testemunha de seus suplícios. Mas onde ele viu que eles foram torturados? Quem lhe disse que Simon Barjone, apelidado Pedro, foi crucificado em Roma, de cabeça para baixo? Quem lhe disse que este Barjone, um miserável pecador da Galiléia, já esteve em Roma e lá falava latim? Hélas! Se tivesse sido condenado em Roma, se os cristãos o conhecessem, a primeira igreja que teriam construído, pois em honra dos santos, teria sido a de São Pedro em Roma, e não a de São João de Latrão; os papas não teriam perdido; sua ambição teria encontrado ali um belo pretexto. A que estamos reduzidos quando, para provar que esse Pedro Barjone viveu em Roma, somos obrigados a dizer que uma carta atribuída a ele datada da Babilônia41 foi de fato escrita da própria Roma? Sobre o que um autor célebre disse muito bem que, sob condição de tal explicação, uma carta datada de São Petersburgo deve ter sido escrita em Constantinopla. Você não ignora quais são os impostores que falaram dessa jornada de Pedro. Foi um Abdias quem primeiro escreveu que Pedro tinha vindo do lago de Genezareth direto à Roma para o imperador, para assaltar os milagres contra Simão, o Mago; é ele quem fez o conto de um parente do imperador, ressuscitado pela metade por Simon, e inteiramente pelo outro Simon Barjone. É ele quem põe os dois Simões um contra o outro, um dos quais voa pelos ares e quebra as duas pernas pelas preces do outro. É ele quem fez a famosa história dos dois cães enviados por Simon para comer Pedro. Tudo isso é repetido por um Marcel, por um Hegésipo. Estes são os 41 Iª de São Pedro, cap. 5, v. 13. 259 o jantar do Conde de boulainvilliers voltaire fundamentos da religião cristã. Você não vê aí senão um tecido das mais crassas imposturas feitas pela mais vil canalha, que sozinha abraçou o cristianismo durante cem anos. É uma série ininterrupta de falsários. Forjam cartas de Jesus Cristo, forjam cartas de Pilatos, cartas de Sêneca, constituições apostólicas, versos das sibilas em acrósticos, mais de quarenta Evangelhos, atos de Barnabé, liturgias de Pedro, de Tiago, de Mateus e de Marcos, etc., etc., etc. Você o sabe, senhor, você os leu, sem dúvida, esses arquivos infames de mentiras, que você chama de fraudes piedosas; e você não terá a honestidade de confessar, ainda que na frente de seus amigos, que o trono do papa não foi estabelecido senão sobre quimeras abomináveis, para a desgraça da raça humana? O abade – Mas como a religião cristã poderia ter se elevado tão alto, se tivesse sido baseada apenas em fanatismo e mentiras? O conde – E como o islamismo se elevou ainda mais? Pelo menos suas mentiras foram mais nobres e seu fanatismo mais generoso. Pelo menos Maomé escreveu e combateu; e Jesus não sabia escrever nem se defender. Maomé teve a coragem de Alexandre com o espírito de Numa; e seu Jesus suou sangue e água assim que foi condenado por seus juízes. O islamismo nunca mudou, e vocês mudaram toda a sua religião vinte vezes. Há mais diferença entre o que é hoje e o que era em seus primeiros dias, do que entre seus costumes e os do rei Dagobert. Cristãos miseráveis! Não, vocês não adoram o seu Jesus, vocês o insultam substituindo as suas novas leis pelas dele. Vocês zombam dele mais com seus mistérios, seu agnus, suas relíquias, suas indulgências, seus simples benefícios e seu papado, do que você zomba dele todos os anos, no dia 5 de janeiro, com suas canções dissolutas, nas quais você cobre de ridículo a Virgem Maria, o anjo que a saúda, a pomba que a engravida, o carpinteiro que tem ciúmes dela e a criança que os três reis vêm cumprimentar entre um boi e um burro, companhia digna de uma tal família. 260 Apêndice O abade – É, no entanto, esse ridículo que Santo Agostinho achou divino; ele disse: “Acredito, porque é absurdo; eu acredito, porque isso é impossível”. Sr. Fréret – Ei! Que nos importam os devaneios de um africano, ora maniqueísta, ora cristão, ora debochado, ora devoto, ora tolerante, ora persecutório? O que nos fez seu absurdo teológico? Você gostaria que eu respeitasse esse retórico insano, quando ele diz, em seu sermão xxii, que o anjo pôs a criança em Maria pela orelha? imprœgnavit per aurem. A condessa – De fato, eu vejo o absurdo; mas não vejo o divino. Acho muito simples que o cristianismo se formou entre o populacho, como se estabeleceram as seitas dos anabatistas e quacres, como se formaram os profetas de Vivarais e Cévennes, como a facção dos convulsionários já ganha força42. O entusiasmo começa, o engano acaba. É com a religião como com o jogo: Começa-se por ser enganado, Acaba-se por ser trapaceiro. Sr. Fréret – Isso é muito verdadeiro, senhora. O que resulta mais provável do caos das histórias de Jesus, escritas contra ele pelos judeus, e a seu favor pelos cristãos, é que ele era um judeu de boa-fé, que queria se fazer valer ao povo, como os fundadores dos recabitas, dos essênios, dos saduceus, dos fariseus, dos judaítas, dos herodianos, dos joanistas, dos terapeutas e de tantas outras pequenas facções criadas na Síria, que era a pátria do fanatismo. É provável que ele tenha posto algumas mulheres em seu partido, assim como todos os que queriam ser chefes de seitas; que lhe escaparam vários discursos indiscretos contra os magistrados e que foi cruelmente punido com o derradeiro suplício. Mas se ele foi condenado ou sob o reinado de Herodes, o Grande, como afirmam os talmudistas, ou sob Herodes, o Tetrarca, 42 Nota de Beuchot: As convulsões não tendo ocorrido senão após a morte do diácono de Paris, ocorrida em 1727, trata-se de um anacronismo fazer com que as pessoas falem sobre ela diante do conde de Boulainvilliers, falecido cinco anos antes. 261 o jantar do Conde de boulainvilliers voltaire como dizem alguns Evangelhos, é bem irrelevante. Admitese que seus discípulos eram muito obscuros até encontrarem alguns platônicos em Alexandria que apoiavam os devaneios dos galileus com os de Platão. Os povos de então eram apaixonados por demônios, espíritos malignos, obsessões, possessões, magia, como são os selvagens hoje. Quase todas as doenças eram possessões de espíritos malignos. Os judeus, desde tempos imemoriais, gabavam-se de expulsar demônios com a raiz barath, colocada debaixo do nariz dos enfermos, e algumas palavras atribuídas a Salomão. O jovem Tobias afugentou demônios com a fumaça de um peixe na grelha. Esta é a origem dos milagres dos quais os galileus se gabavam. Os gentios eram fanáticos o suficiente para concordar que os galileus podiam fazer essas belas maravilhas; porque os gentios acreditavam estar fazendo isso eles mesmos. Eles acreditavam na magia como os discípulos de Jesus. Se alguns doentes foram curados pelas forças da natureza, não deixaram de afirmar que foram libertados de uma dor de cabeça pela força dos encantamentos. Eles disseram aos cristãos: Vocês têm belos segredos, e nós também; vocês curam com palavras, e nós também; vocês não têm nenhuma vantagem. Mas quando os galileus, tendo ganho uma numerosa turba, começaram a pregar contra a religião do Estado; quando, depois de pedir tolerância, ousaram ser intolerantes; quando queriam erguer seu novo fanatismo sobre as ruínas do fanatismo antigo, então os sacerdotes e magistrados romanos lhes tiveram horror; então reprimiram sua audácia. O que eles fizeram? Eles supuseram, como vimos, mil obras a seu favor; de enganados tornaram-se trapaceiros, tornaram-se falsários; defenderam-se pelas mais indignas fraudes, não podendo empregar outras armas, até ao momento em que Constantino, tendo-se tornado imperador com o seu dinheiro, pôs a religião deles no trono. Então, os trapaceiros ficaram sedentos de sangue. Atrevo-me a assegurar-vos que desde o Concílio de Nicéia até a sedição de Cévennes, não se passou um único ano em que o cristianismo não tenha vertido sangue. 262 Apêndice O abade – Ah! senhor, isso é dizer muito. Sr. Fréret – Não; isso não é dizer o suficiente. Apenas releia a História Eclesiástica; ver os donatistas e seus adversários se atracando a golpes de bastão; os atanasianos e arianos tomando o império romano de carnificina por um ditongo. Veja esses bárbaros cristãos reclamando amargamente que o sábio imperador Juliano os impede de matar e destruir uns aos outros. Veja esta terrível série de massacres; tantos cidadãos morrendo torturados, tantos príncipes assassinados, as estacas acesas em seus conselhos, doze milhões de inocentes, habitantes de um novo hemisfério, abatidos como bestas em um parque, sob o pretexto de que não queriam ser cristãos; e, em nosso antigo hemisfério, os cristãos imolavam incessantemente uns pelos outros, velhos, crianças, mães, mulheres, filhas, expirando em multidões nas cruzadas dos albigenses, nas guerras dos hussitas, nas dos luteranos, dos calvinistas, dos anabatistas, a Saint-Barthélemy, aos massacres da Irlanda, aos do Piemonte, aos de Cévennes; enquanto um bispo de Roma, molemente deitado em um sofá, tem seus pés beijados, e cinquenta eunucos lhe cantam seus murmúrios para distraí-lo. Deus é minha testemunha de que este retrato é fiel, e você não ousaria me contradizer. O abade – Confesso que há algo de verdadeiro; mas, como disse o bispo de Noyon, estes não são assuntos de mesa; estes são índices de matérias43. Os jantares seriam muito tristes se a conversa se prolongasse sobre os horrores do gênero humano. A história da Igreja perturba a digestão. O conde – Os fatos a perturbaram ainda mais. O abade – Não é culpa da religião cristã, é dos abusos. O conde – Seria bom se houvesse pouco abuso. Mas se os padres quisessem viver às nossas custas desde que Paulo, ou aquele que tomou seu nome, escreveu, não tenho44 direito de ser alimentado e vestido por você, eu, minha esposa ou 43 N.T.: Na tradução perdemos o jogo de palavras: “ce ne sont pas là des matières de table; ce sont des tables des matières”. 44 Iª aos Coríntios, cap. 9, v. 4 e 5. 263 o jantar do Conde de boulainvilliers voltaire minha irmã? Se a Igreja sempre quis usurpar; se ela sempre empregou todas as armas possíveis para nos privar de nossos bens e nossas vidas, desde a pretensa aventura de Ananias e Safira, que, dizem, trouxeram aos pés de Simão Barjone o preço de suas heranças, e que haviam guardado algumas dracmas para subsistência45; se é evidente que a história da Igreja é uma série contínua de brigas, imposturas, vexames, enganos, rapinas e assassinatos; então fica demonstrado que o abuso está na própria coisa, como fica demonstrado que um lobo sempre foi carnívoro, e que não é por alguns abusos passageiros que sugou o sangue de nossas ovelhas. O abade – Você poderia dizer o mesmo de todas as religiões. O conde – De jeito nenhum. Eu lhe desafio a me mostrar uma única guerra excitada pelo dogma de uma única seita da antiguidade. Desafio você a me mostrar entre os romanos um único homem perseguido por suas opiniões, desde Rômulo até o tempo em que os cristãos vieram para perturbar tudo. Essa barbárie absurda foi reservada apenas para nós. Você sente, corando, a verdade que o pressiona, e você não tem nada para responder. O abade – Então eu não respondo nada. Concordo que as disputas teológicas são absurdas e funestas. Sr. Fréret – Concorde, então, também que é preciso cortar pela raiz uma árvore que sempre carregou venenos. O abade – Isso é o que eu não vou conceder; pois esta árvore tem também às vezes dado bons frutos. Se uma república sempre está em dissensão, não quero que a república seja destruída por isso. Podemos reformar nossas leis. O conde – Um estado não é como uma religião. Veneza reformou suas leis e floresceu; mas quando eles quiseram reformar o catolicismo, a Europa nadou em sangue; e, finalmente, quando o famoso Locke, desejando poupar tanto as imposturas desta religião quanto os direitos da humanidade, escreveu seu livro do Cristianismo razoável, ele não teve quatro discípulos: prova forte o suficiente de que o cristianismo e a razão não podem subsistir 45 Atos dos Apóstolos, cap. 5. 264 Apêndice juntos. Resta apenas um remédio no estado em que as coisas estão, ainda que seja apenas um paliativo, que é tornar a religião absolutamente dependente do soberano e dos magistrados. Sr. Fréret – Sim, desde que o soberano e os magistrados sejam esclarecidos, desde que saibam tolerar igualmente todas as religiões, considerar todos os homens como seus irmãos, não ter consideração pelo que pensam e ter muita consideração pelo que eles fazem; deixá-los livres em seu comércio com Deus e acorrentá-los apenas às leis em tudo o que devem aos homens. Porque seria necessário tratar como bestas ferozes os magistrados que sustentariam sua religião por carrascos. O abade – E se, todas as religiões sendo autorizadas, todas elas se batessem umas contra as outras? Se o católico, o protestante, o grego, o turco, o judeu, pegarem-se pelas orelhas ao sair da missa, do sermão, da mesquita e da sinagoga? Sr. Fréret – Então, um regimento de dragões deve dissipá-los. O conde – Eu preferia dar-lhes aulas de moderação do que enviar regimentos; gostaria de começar instruindo os homens antes de puni-los. O abade – Instruir os homens! O que você está dizendo, senhor conde? Você os acredita dignos? O conde – Eu entendo! Você sempre pensa que não se deve senão enganá-los: você não está senão apenas meio curado; seu antigo mal lhe admoesta sempre. A condessa. – A propósito, esqueci de pedir sua opinião sobre uma coisa que li ontem na história daqueles bons maometanos que realmente me impressionou. Assan, filho de Ali, estando no banho, um de seus escravos inadvertidamente joga uma panela de água fervente sobre seu corpo. Os servos de Assan queriam empalar o culpado. Assan, em vez de empalá-lo, deulhe vinte moedas de ouro. Há, diz ele, um grau de glória no paraíso para aqueles que pagam os serviços, um maior para aqueles que perdoam o mal, e um ainda maior para aqueles que recompensam o mal involuntário. O que você acha dessa ação e desse discurso? 265 o jantar do Conde de boulainvilliers voltaire O conde – Reconheço nisso meus bons muçulmanos do primeiro século. O abade – E eu, meus bons cristãos. Sr. Fréret – E eu, lamento que o escaldado Assan, filho de Ali, tenha dado vinte moedas de ouro para ter glória no paraíso. Eu não gosto de boas ações autointeressadas. Eu gostaria que Assan fosse virtuoso e humano o suficiente para consolar o desespero do escravo, sem sonhar em ser colocado no paraíso no terceiro grau. A condessa – Vamos tomar um café. Imagino que se em todos os jantares em Paris, Viena, Madrid, Lisboa, Roma e Moscou tivéssemos conversas tão instrutivas, o mundo não seria senão melhor. iii – depois do jantar O abade – Eis um excelente café, senhora; é um puro moka. A condessa – Sim, ele vem do país dos muçulmanos; não é uma grande pena? O abade – Brincadeiras à parte, senhora, os homens precisam de uma religião. O conde – Sim, sem dúvida; e Deus lhes deu uma divina, eterna, gravada em todos os corações; é aquela que, segundo você, praticaram Enoque, Noéquides e Abraão; é aquilo que as letras chineses preservaram por mais de quatro mil anos, a adoração a um Deus, o amor à justiça e o horror ao crime. A condessa – É possível que tenha sido abandonada uma religião tão pura e tão santa pelas seitas abomináveis que inundaram a terra?” Sr. Fréret – Em matéria de religião, senhora, comportamo-nos diretamente de maneira contrária ao que fazemos em matéria de vestuário, alojamento e alimentação. Começamos com cavernas, cabanas, roupas de pele de animais; tínhamos em seguida pão, alimentos saudáveis, roupas de lã e seda fiada, casas próprias e confortáveis: mas, no que concerne à religião, voltamos à cabana, às peles dos animais e às cavernas. 266 Apêndice O abade – Seria muito difícil sair disso. Você vê que a religião cristã, por exemplo, está em toda parte incorporada ao Estado, e que, do Papa ao último capuchinho, todos fundam seu trono ou sua cozinha sobre ela. Já lhe disse que os homens não são suficientemente razoáveis para se contentar com uma religião pura e digna de Deus. A condessa – Você não acredita nisso; você mesmo admite que eles mantinham essa religião nos tempos de seu Enoque, seu Noé e seu Abraão. Por que não deveríamos ser tão razoáveis hoje como éramos então? O abade – Devo dizer: foi porque então não havia cônego com uma grande prebenda, nenhum abade de Corbie com um milhão, nenhum papa com dezesseis ou dezoito milhões. Para restituir todos esses bens à sociedade humana, talvez fossem necessárias guerras tão sangrentas quanto foram necessárias para arrancá-los dela. O conde – Apesar de ser militar, não quero fazer guerra aos padres e monges. Não quero estabelecer a verdade pelo assassinato, como eles estabeleceram o erro; mas gostaria que pelo menos esta verdade esclarecesse um pouco os homens, que fossem mais gentis e mais felizes, que as pessoas deixassem de ser supersticiosas e que os chefes da Igreja temessem serem perseguidores. O abade – É muito difícil (já que devo finalmente me explicar) tirar dos loucos as correntes que eles reverenciam. Você talvez fosse apedrejado pelo povo de Paris se, com tempo chuvoso, impedisse que a suposta carcaça de Santa Genoveva fosse desfilar pelas ruas para trazer bom tempo. Sr. Fréret – Eu não acredito no que você diz. A razão já avançou tanto que há mais de dez anos essa suposta carcaça e a de Marcel não desfilam por Paris. Acho muito fácil desenraizar gradualmente todas as superstições que nos embrutecem. Não acreditamos mais em feiticeiros, não exorcizamos mais demônios; e embora se diga que seu Jesus enviou seus 267 o jantar do Conde de boulainvilliers voltaire apóstolos precisamente para expulsar os demônios46, nenhum sacerdote entre vocês é louco ou tolo o suficiente para se gabar de expulsá-los; as relíquias de São Francisco tornaramse ridículas, e as de Santo Inácio, talvez, um dia sejam arrastadas pela lama com os próprios jesuítas. Deixamos, na verdade, ao papa o ducado de Ferrara que ele usurpou, os domínios que César Bórgia arrebatou pelo ferro e pelo veneno, e que devolveu à Igreja de Roma, para a qual não trabalhou; deixamos Roma até mesmo para os papas, porque não querem que o imperador se apodere dela; eles estão dispostos a pagarlhe mais annates, embora isso seja um ridículo vergonhoso e uma simonia evidente; não queremos fazer barulho por um subsídio tão módico. Os homens, subjugados pelo costume, não rompem de repente um mau negócio feito há quase três séculos. Mas que os papas tenham a insolência de enviar, como no passado, legados a latere para impor dízimos aos povos, excomungar os reis, interditar seus Estados, dar suas coroas a outros, você verá como se recebe um legado a latere: não me desesperaria que o parlamento de Aix ou de Paris o enforcasse. O conde – Você vê quantos preconceitos vergonhosos nós nos livramos. Olhe agora para a parte mais opulenta da Suíça, para as sete Províncias Unidas, tão poderosas quanto a Espanha, para a Grã-Bretanha, cujas forças marítimas sozinhas se impõem, com vantagem, contra as forças reunidas de todas as outras nações: olhe para todos do norte da Alemanha e da Escandinávia, esses inesgotáveis viveiros de guerreiros, todos esses povos nos avançaram longe no progresso da razão. O sangue de cada cabeça da hidra que eles derrubaram fertilizou seus campos; a abolição dos monges povoou e enriqueceu suas propriedades: certamente se pode fazer na França o que se faz em outros lugares; a França será mais opulenta e mais populosa. O abade – Ah, bom! Quando vocês tiverem sacudido os vermes dos monges na França, quando não verem mais relíquias 46 Mat., cap. 10, v. 1; Marc., cap. 3, v. 15; Luc., cap. 9, v. 1. 268 Apêndice ridículas, quando não mais pagarem ao bispo de Roma um tributo vergonhoso, quando até desprezarem suficientemente a consubstancialidade e a procissão do Santo Espírito pelo Pai e pelo Filho, e transubstanciação, para não falar mais; quando esses mistérios restarem enterrados na Suma de São Tomás, e quando os desprezíveis teólogos forem reduzidos ao silêncio, vocês ainda permaneceriam cristãos; em vão você iria querer ir mais longe, isso é o que você nunca obteria. Uma religião de filósofos não é feita para os homens. Sr. Fréret – Est quodam prodire tenus, si non datur ultra [Podemos progredir um tanto, embora nos é dado ir além]47. Eu lhe direi com Horácio: seu médico nunca lhe dará a visão do lince, mas poderá remover uma bélida de seus olhos. Nós gememos sob o peso de cem quilos de correntes, poderemos ser liberados de três quartos. A palavra do cristão prevaleceu, e permanecerá; mas pouco a pouco adoraremos a Deus sem mistura, sem lhe dar nem mãe, nem filho, nem pai putativo, sem dizer que ele morreu por uma tortura infame, sem acreditar que estamos fazendo deuses com farinha, enfim sem aquele amontoado de superstições que colocam os povos civilizados tão abaixo dos selvagens. A adoração pura do Ser Supremo começa a ser hoje a religião de todas as pessoas honestas; e em breve descerá para uma parte sana do próprio povo. O abade – Você não teme que a incredulidade (cujo imenso progresso eu vejo) seja funesta ao povo descendo até ele, e o leve ao crime? Os homens estão sujeitos a paixões cruéis e infortúnios horríveis; eles precisam de um freio que os retenham, e um erro que os console. Sr. Fréret – O culto racional de um Deus justo, que pune e recompensa, sem dúvida traria felicidade à sociedade; mas quando esse conhecimento salutar de um Deus justo é desfigurado por mentiras absurdas e superstições perigosas, então o remédio se transforma em veneno, e o que deveria assustar o crime o encoraja. Um vilão que não raciocina senão 47 Horácio, Epístolas, Livro I, Ep. I, vers 32. 269 o jantar do Conde de boulainvilliers voltaire pela metade (e há muitos desse tipo) seguidamente ousa negar o Deus do qual lhe pintaram um quadro revoltante. Outro vilão, que tem grandes paixões em uma alma fraca, muitas vezes é convidado à iniquidade pela certeza do perdão que os sacerdotes lhe oferecem. De qualquer multidão de crimes que você está contaminado, confesse-se a mim, e tudo será perdoado pelos méritos de um homem que foi pendurado na Judéia há muitos séculos. Mergulhe, depois disso, em novos crimes sete vezes sessenta e sete vezes, e tudo será perdoado novamente. Isso não é verdadeiramente induzir à tentação? Isso não é para aplainar todas as vias da iniquidade? A Brinvilliers não confessou cada envenenamento que cometeu? Luís XI não se valia do mesmo? Os antigos tinham, como nós, sua confissão e suas expiações; mas não se era expiado por um segundo crime. Ninguém perdoou dois parricídios. Pegamos tudo dos gregos e dos romanos e estragamos tudo. O inferno deles era impertinente, confesso; mas nossos demônios são mais estúpidos que suas fúrias. Essas fúrias não eram condenadas; eram consideradas carrascos, e não vítimas da vingança divina. Ser ao mesmo tempo carrascos e pacientes, queimadores e queimados, como são nossos demônios, é uma contradição absurda, digna de nós, e ainda mais absurda que a queda dos anjos, esse fundamento do cristianismo, não se encontra nem no Gênesis, nem no Evangelho. É uma antiga fábula dos brâmanes. Enfim, senhor, todos riem hoje do seu inferno, porque é ridículo; mas ninguém riria de um Deus remunerador e vingativo, de quem esperaria a recompensa da virtude, de quem temeria o castigo do crime, ignorando a espécie dos castigos e recompensas, mas estando persuadido de que os haverá, porque Deus é justo. O conde – Parece-me que o Sr. Fréret deixou bem claro como a religião pode ser um freio salutar. Eu quero tentar provar a você que uma religião pura é infinitamente mais consoladora que a sua. 270 Apêndice Há doçuras, você diz, nas ilusões das almas devotas, eu o creio. Há também algumas nos manicômios. Mas que tormento quando essas almas vêm à se esclarecer! Em que dúvida e em que desespero certas freiras passam seus dias tristes; você testemunhou, você mesmo me contou: os claustros são a morada do arrependimento; mas, especialmente entre os homens, um claustro é o antro da discórdia e da inveja. Os monges são condenados voluntários que lutam remando juntos; Exceto um número muito pequeno que é verdadeiramente penitente ou útil. Mas, na verdade, Deus colocou o homem e a mulher sob a terra para que eles arrastassem suas vidas em masmorras, separados um do outro para sempre? É este o propósito da natureza? Todo o mundo grita contra os monges; e tenho pena deles. A maioria deles, ao sair da infância, fez o sacrifício de sua liberdade para sempre; e de cem há pelo menos oitenta que secam na amargura. Onde estão esses grandes consolos que sua religião dá aos homens? Um rico benfeitor é consolado, sem dúvida, mas é por seu dinheiro, não por sua fé. Se ele desfruta de alguma felicidade, ele a experimenta apenas violando as regras de seu estado. Ele é feliz apenas como um homem do mundo, e não como um homem da igreja. Um pai de família, sábio, resignado a Deus, apegado ao seu país, rodeado de filhos e amigos, recebe de Deus bênçãos mil vezes mais sensíveis. Além disso, tudo o que você poderia dizer em favor dos méritos de seus monges, eu o diria com muito mais razão dos dervixes, dos marabus, dos faquires, dos bonzos. Eles realizam penitências cem vezes mais rigorosas; eles se dedicaram a austeridades mais terríveis; e essas correntes de ferro sob as quais estão curvados, esses braços sempre estendidos na mesma posição, essas terríveis macerações, ainda não são nada em comparação com as jovens da Índia que se queimam na fogueira de seus maridos, na louca espera de renascerem juntos. Portanto, não se gabe mais das dores ou consolações que a religião cristã nos faz experimentar. Admita abertamente que de forma alguma se aproxima do culto razoável que 271 o jantar do Conde de boulainvilliers voltaire uma família honesta presta ao Ser Supremo sem superstição. Largue lá as masmorras dos conventos; largue lá seus mistérios contraditórios e inúteis, objeto de riso universal; pregue Deus e a moralidade, e eu lhe respondo que haverá mais virtude e mais felicidade na terra. A condessa – Sou bem desta opinião. Sr. Fréret – E eu também, sem dúvida. O abade – Ah, bem! Vejo que é preciso contar meu segredo, eu também sou. Em seguida, chegaram o presidente das Maisons, o abade de Saint-Pierre, Sr. Dufay, Sr. Dumarsais; e o abade de SaintPierre leu, de acordo com seu costume, seus pensamentos matinais, sobre os quais se poderia fazer um bom livro. Pensamentos Tirados do sr. o abade de St. Pierre A maioria dos príncipes, ministros, homens de alta posição, não tem tempo para ler; desprezam os livros e são governados por um grande livro que é o túmulo do senso comum. Se soubessem ler, teriam poupado o mundo de todos os males que a superstição e a ignorância causaram. Se Luís XIV soubesse ler, não teria revogado o édito de Nantes. Os papas e seus capangas acreditaram tanto que seu poder não se fundava senão na ignorância, que sempre impediram a leitura do único livro que anuncia sua religião; eles disseram: esta é a sua lei, e nós o proibimos de lê-la; você só saberá o que nos dignamos a lhe dizer. Essa tirania extravagante é incompreensível; ela existe, no entanto, e qualquer Bíblia na língua que se fala é proibida em Roma; só é permitido em uma língua que não é mais falada. Todas as usurpações papais têm por pretexto um miserável jogo de palavras, uma equivocidade das ruas, um ponto que faz Deus dizer, e pelo qual se açoitaria um estudante: Tu és Pedro, e sobre esta pedra fundarei minha assembleia. Se soubessem ler, veriam evidentemente que a religião não tem feito senão mal ao governo; ela tem feito muito mais na França, 272 Apêndice pelas perseguições contra os protestantes; pelas divisões em não sei que bula, mais desprezível que uma canção do Pont-Neuf; pelo ridículo celibato dos padres; pela preguiça dos monges; pelos maus negócios feitos com o bispo de Roma, etc. Espanha e Portugal, muito mais embrutecidos que a França, sofrem quase todos esses males, e têm em cima a inquisição, que, supondo um inferno, seria o que o inferno teria produzido de mais execrável. Na Alemanha, há disputas intermináveis entre as três seitas admitidas pelo Tratado de Vestefália: os habitantes dos países imediatamente submetidos aos padres alemães são brutos que mal têm o que comer. Na Itália, essa religião que destruiu o Império Romano deixou apenas miséria e música, eunucos, arlequins e padres. Eles enchem de tesouros uma pequena estátua negra chamada Madona de Loreto; e a terra não é cultivada. A teologia está para a religião como os venenos estão para os alimentos. Tenha templos onde Deus seja adorado, seus benefícios cantados, sua justiça anunciada, virtude recomendada: todo o resto é espírito partidário, facção, impostura, orgulho, avareza, e deve ser proscrito para sempre. Nada é mais útil ao público do que um cura que mantém um registro de nascimentos, que presta assistência aos pobres, consola os doentes, enterra os mortos, traz paz às famílias e que é apenas um mestre da moral. Para colocá-lo em condições de ser útil, ele deve estar acima da necessidade, e não deve ser possível desonrar seu ministério alegando contra seu senhor e seus paroquianos, como fazem tantos padres do país; que sejam empenhados pela província, segundo a extensão da sua paróquia, e que não tenham outro cuidado senão o de cumprir os seus deveres. Nada é mais inútil do que um cardeal. O que é uma dignidade estrangeira, conferida por um padre estrangeiro? Dignidade sem cargo, e que quase sempre vale cem mil coroas por ano, 273 o jantar do Conde de boulainvilliers voltaire enquanto um padre do campo não tem os meios para ajudar os pobres nem os meios para socorrer a si mesmo. O melhor governo é, sem dúvida, aquele que admite apenas o número de sacerdotes necessários; pois o supérfluo é apenas um fardo perigoso. O melhor governo é aquele em que os padres são casados, porque são melhores cidadãos; dão filhos ao Estado e os criam com honestidade: é onde os padres ousam pregar apenas a moral; pois se eles pregam controvérsia, isso é soar o sino da discórdia. Pessoas honestas leem a história das guerras de religião com horror; eles riem das disputas teológicas como da farsa italiana. Tenhamos, portanto, uma religião que não faça você estremecer ou rir. Houve teólogos de boa-fé? Sim, como houve pessoas que acreditaram ser feiticeiros. Sr. Deslandes, da Academia de Ciências de Berlim, que acaba de nos dar a História da Filosofia, diz, no volume III, página 299: A faculdade de teologia me parece o corpo mais desprezível do reino; ela se tornaria uma das mais respeitáveis se se limitasse a ensinar Deus e a moralidade. Seria a única maneira de expiar suas decisões criminosas contra Henrique III e o grande Henrique IV. Os milagres dos mendigos no Faubourg Saint-Médard poderiam ir longe, se o senhor cardeal de Fleury não os ordenar. Devemos exortar a paz e defender estritamente os milagres. A monstruosa bula Unigenitus ainda pode perturbar o reino. Cada bula é um ataque à dignidade da coroa e à liberdade da nação. A canalha criou a superstição; os honestos a destroem. Buscamos aperfeiçoar as leis e as artes; podemos esquecer a religião? Quem começará a purificá-la? São os homens que pensam. Os outros seguirão. 274 Apêndice Não é vergonhoso que os fanáticos tenham zelo e os sábios não? É preciso ser prudente, mas não tímido. 275 Esta obra foi composta pela Argentum Nostrum em Charter, Eagle Lake, Charter BT, Davys Dingbats 1 e Book Antiqua, em plataforma PDF para a EdUECE e o PPGFil-UECE em fevereiro de 2024. 978-85-7826-911-1 9 788578 269111