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GOLINHO INDIGESTO

A polêmica participação de Tom Zé no novo comercial da Coca-Cola. Crítica para o site da revista Cítrica, da Fundação Cultural do Estado da Bahia. / SANTOS, A. B. Golinho indigesto. CÍTRICA (FUNCEB). Disponível em: <https://citricafunceb.wordpress.com/2013/03/13/golinho-indigesto/>. Acesso em: abril 2015.

AUDIOVISUAL/_ANDRÉ BOMFIM_ Golinho indigesto Publicado em 13 de março de 2013 por Cítrica A polêmica participação de Tom Zé no novo comercial da Coca-Cola. Um gole de Coca-Cola nunca fez tão mal a alguém quanto a Tom Zé. Ao emprestar sua voz para a locução de um comercial do refrigerante, o músico tornou-se alvo de acusações, que se espalharam de forma virulenta pela internet. De fato, o discurso ufanista do comercial, que prega uma copa feita “por todos e para todos” e patrocinada pela marca em questão, soa incoerente com a trajetória artística e o posicionamento político de Tom Zé. Em Defeito 3: Politicar (2009) era o próprio músico quem vociferava contra o modus operandi do capitalismo neoliberal: “Meta sua usura na multinacional / Vá tomar na virgem, seu filho da cruz”. Ironicamente, foi o patrocínio da Natura, o primeiro na carreira de Tom Zé, que deu um novo fôlego à sua trajetória, com o lançamento do álbum Tropicália Lixo Lógico (2012) e do videoclipe da canção Tropicalea Jact Est, em salas de cinema de dez capitais do país. Em depoimento em seu mural no Facebook, Tom Zé declara que os patrocínios de grandes marcas como Natura e Coca-Cola foram importantes até mesmo para a recuperação de sua autoestima: “No ano passado o apoio da Natura me deu tanta confiança pessoal que ousei fazer o Tropicália Lixo Lógico”. Já o cachê da Coca-Cola banca o mais recente projeto do artista, que busca resgatar a sonoridade de instrumentos experimentais da década de 70. As discussões sobre a fronteira entre cultura e mercadoria surgem de forma quase sempre polarizada, como se os dois campos ainda pudessem permanecer estéreis, livres de qualquer contato um com o outro. A cultura precisa do capital para se materializar em forma de livros, filmes, encenação ou eventos, por exemplo. A mercadoria precisa da cultura para superar sua existência utilitária, alcançando uma existência simbólica, através das marcas. Ao disputar a atenção do público, cada vez mais dispersa com a superoferta de opções de cultura e entretenimento, o bem cultural muitas vezes se assemelha a uma mercadoria, utilizando-se de todas as estratégias mercadológicas para conquistar essa atenção. Pela mesma razão (a conquista da atenção), a mercadoria, através da publicidade, investe em um imaginário simbólico (oriundo da própria cultura), que lhe permite criar outros vínculos com o consumidor, muito além do simples ato de consumo. Evidente que as opiniões polarizadas, justo por se acomodarem nos extremos, não dão conta do debate com toda a sua riqueza de nuances. Seja o extremo que “crucificou” Tom Zé, ou o extremo que sequer atentou para a incoerência do comercial na trajetória de contestação do músico baiano. O ponto central da discussão desloca-se, portanto, para a seguinte questão: até que ponto as relações entre mercadoria e cultura podem ser viáveis, sem que desvirtuem ou descaracterizem a essência dessa última? Enquanto pensamos numa resposta, vale a pena conferir o desabafo de Tom Zé na sua linha do tempo no Facebook. E assistir a dois comerciais com o inconteste Tom Jobim: no primeiro, o maestro empresta uma clássica canção à mesma Coca-Cola e, na segunda, bebe um chope da Brahma em um tocante encontro póstumo com seu amigo Vinicius de Moraes. Atire a primeira pedra quem não tomaria um golinho. André Bomfim é especialista em Análise de Cinema e TV e mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas - FACOM/UFBA. andrebomfim01@gmail.com.