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Sorte e Etica

O presente artigo pretende contribuir para a compreensão dos porquês que levaram os filósofos morais a criar uma divisa entre o que depende de nós e o que não depende e porque a teoria ética foi pensada como dizendo respeito apenas ao voluntário. Usando uma série de conceitos filosóficos e psicológicos mostro que essa formulação indica uma má concepção fundamental: filósofos basearam suas teorias no que podemos criticar como uma terrível psicologia da normatividade baseada em noções como a de caráter que deve ser substituída por uma concepção mais sincrônica baseada na heurística que ocorre em nossas mentes. Para tal percurso baseio-me na formulação de Bernard Williams em seu artigo “Moral Luck”.

Sorte e Ética Fernando da Costa Cardoso (Posdoc Cnpq/Centria UNL/Lisboa) Comentários Contato: promenadex@gmail.com Resumo O presente artigo pretende contribuir para a compreensão dos porquês que levaram os filósofos morais a criar uma divisa entre o que depende de nós e o que não depende e porque a teoria ética foi pensada como dizendo respeito apenas ao voluntário. Usando uma série de conceitos filosóficos e psicológicos mostro que essa formulação indica uma má concepção fundamental: filósofos basearam suas teorias no que podemos criticar como uma terrível psicologia da normatividade baseada em noções como a de caráter que deve ser substituída por uma concepção mais sincrônica baseada na heurística que ocorre em nossas mentes. Para tal percurso baseio-me na formulação de Bernard Williams em seu artigo “Moral Luck”. Introdução Nesta primeira parte, irei brevemente apontar exemplos da desvinculação entre filosofia moral e Sorte, complementando o que foi sugerido na abertura da tese. Mais do que uma hermenêutica o mais importante seja a noção de como esse apartamento parece estar justo agora atingindo seu ápice no momento em que o estado abraça, como política pública, essa infeliz concepção do humano. Após um breve apontamento nesse sentido, passo à interpretação do exemplo de Paul Gaugain lendo-o, um tanto quanto livremente, a partir de Bernard Williams. E por que não a formulação de Nagel? Essa é uma resposta que demorei a chegar, mas que me parece mais claramente dizer respeito ao fato de que a formulação de Nagel (e ambos escreveram seus respectivos textos em resposta e em discussão às formulações de um e de outro) parece domesticar, no sentido de domesticar filosoficamente, o fenômeno da sorte num momento em que para minha discussão precisava de um animal mais selvagem. Outro motivo é aquele relacionado à analogia entre Sorte moral e ceticismo epistêmico central na argumentação de Nagel e que é, a meu ver, duvidosa (e é a base da crítica de vários autores quanto à própria existência do fenômeno da Sorte moral). Assim, suas formulações são sim importantes mas, sobretudo como uma sombra daquela de Williams, aparecendo aqui e ali quando clareza e conceitos domesticados se fazem necessários. O passo seguinte é duplo: de um lado vou aceitar as conclusões que esse exemplo implica e, ainda do ponto de vista de uma visão intuitiva da Sorte, apontarei como vejo o assassinato do agente moral deliberativo. Talvez deva notar o aspecto teórico ou metaético desse assassinato logo de uma vez, afinal, não é plausível uma tentativa, neste momento, de ensinar ninguém a viver (um fim perdido a muito para a filosofia moral que apenas ao final procurarei apontar os rumos de uma retomada). Pelo outro lado, irei qualificar o que deve ser entendido como Sorte na vida e como isso passa pela compreensão, já apontada na abertura, da irmandade entre Sorte e normatividade, uma irmandade fundada em nós mesmos como seres vivos ou, em termos mais eloquentes, numa concepção que não separa os céus acima de nós do ser moral em nós. Com esses dois resultados, concluirei mostrando uma prioridade (no sentido de mais importante para os presentes desenvolvimentos) do que, na falta de melhores termos, aceito chamar de Sorte intrínseca. Da impassibilidade da virtude nos gregos à proposta distributiva contemporânea de defesa contra a Sorte: por que esse adversário e por que esse inimigo da Ética? Primeiramente talvez deva apontar uma ausência: a falta de uma historicização, tão comum e cara em nossos departamentos de filosofia tupiniquins, desse relacionamento entre Sorte e Ética. Sem muito me estender, por não estar interessado na elaboração de uma história desse erro, aponto aqui brevemente alguns desses momentos. Concordo com o modo como Martha Nussbaum lê a tradição filosófica grega como exótica ao seu próprio meio, que, sem nenhum aprofundamento, chamaria de cultura grega. Nussbaum vê esse exotismo, apontando a tradição filosófica em busca de autossuficiência e defesa contra a Sorte, como o lado excêntrico de uma cultura (clara na poesia, no teatro, nas suas narrativas genealógicas) que primava pelo outro lado, que é o que eu gostaria de defender como correto para a própria filosofia: “the other side of this pursuit of self sufficiency, complicating and constraining the effort of banishing contingency from human life, was always a vivid sense of the special beauty of the contingent and the mutable, that love for the riskiness and openness of empirical humanity which finds its expression in recurrent stories about gods who fall in love with mortals” (Nussbaum:1986, p.3). Talvez de fato minha intenção seja devolver essa possibilidade de um enamorar sobre humano e uma rejeição àquela tradição que vulgarmente se denomina humanista e meu particular naturalismo, ao qual voltarei, avança nesse sentido. Quanto a essa tradição, Platão, ao procurar isolar a boa vida da Sorte e, em menor medida e de maneira mais intricada, Aristóteles, que se de um lado aceita que a felicidade possa ser desafiada pela Sorte (e seus exemplos são todos relativos ao que poderíamos identificar com sorte externa relativa à bens e interações com o mundo) esse não seria o caso com a virtude e o virtuoso, representam o lado exótico da compreensão de nós mesmos que não apenas creio equivocada (e especialmente equivocada quando crava com um ar de nobreza o alcançar dessa tranquilidade de espírito), mas como oferecendo uma imagem de conflito que gostaria de substituir. Outro desses momentos é o estoicismo, que pode ser entendido (é, por exemplo, por Parfit:2011) como afirmando que aqueles que são virtuosos possuem um tipo de felicidade que não depende da Sorte ou do modo como o fluxo do mundo lhes traz sofrimento. Não que deixam de sofrer, dado o caráter quase masoquista do verdadeiro estoico. Mas o que lhe é de direito e o que deve ser considerado na avaliação (de suas vidas e de suas ações) não é esse fluxo, mas a constante tranquilidade de ser, modernizando, responsável pelo que se faz e não pelo que o acaso e o mundo lhes trazem. Apenas uma insistência quanto à Aristóteles: a menção ao filósofo recebeu certa atenção em minha pré-defesa e gostaria de justificar o que tinha em mente mesmo que brevemente. Acredito que sou cuidadoso o suficiente em distingui-lo de Platão, mas os exemplos que ele menciona dizem respeito à sorte externa (perda de riqueza, descendentes imorais) mantendo, mesmo como um ideal, o ponto da minha tese que diz respeito exatamente como o próprio agente não constitui essa fortaleza contra a sorte considerada enquanto sorte interna ou intrínseca. De fato, a formação do caráter ocupa um local central na argumentação aristotélica mesmo que reconhecidamente como um ideal e é justamente esse aspecto, sua “mera” formulação como um ideal, um ideal quase intangível dado (EN VII) o reconhecimento de que durante a maior parte de nossas vidas vivemos no vício e etc., que será criticado na presente tese Athanassoulis:2005 discute detalhadamente essa tópica.. A naturalidade com que o cálculo utilitarista se fecha e se encouraça contra a Sorte em sua suposição de que o agente, no momento da avaliação, possui aos seus olhos as premissas necessárias para uma avaliação do valor das diferentes ações fornece outro exemplo nesse sentido de apartamento entre sorte e Ética e na construção de uma muralha na cidadela defendida pelo filósofo moral. Essa suposição de transparência para o agente é, sobretudo, uma aposta, encoberta pelo utilitarista, que se aquém à Sorte com uma naturalidade totalmente artificial e artificiosa, mas que quase nunca intranquiliza o moralista. Contudo, o momento central da construção dessa muralha, e de modo a irmos diretamente ao ponto, diz respeito ao passo kantiano (que, aliás, torna todos esses momentos anteriores, antigos ou modernos, um quase-nada). Assim, uma das mais famosas passagens de construção de uma muralha em torno do agente é aquela de Kant na Fundamentação: “A good will is not good because of what it effects or accomplishes, because of its fitness to attain some proposed end, but only because of its volition, that is, it is good in itself… Even if, by a special disfavor of fortune or by the niggardly provision of a step motherly nature, this will should wholly lack the capacity to carry out its purpose — if with its greatest efforts it should yet achieve nothing and only the good will were left (not, of course, as a mere wish but as the summoning of all means insofar as they are in our control) — then, like a jewel, it would still shine by itself, as something that has its full worth in itself. Usefulness or fruitlessness can neither add anything to this worth nor take anything away from it” (Kant, Fundamentação 394). Há outras passagens no mesmo tom e poderíamos insistir numa hermenêutica. Mesmo assim, talvez seja injusto ler essa passagem de Kant. Talvez, duzentos anos de interpretação tenham constituído uma barreira nessa passagem e nas de tom similar de tal forma que é impossível adentrar a obra kantiana sem esperar encontrar nela o clichê que nos leva a compreendê-lo de forma tão fechada Mesmo que não sirva de justificativa, há uma reciprocidade nesse mal tratamento quando kantianos, que Nussbaum critica repetidas vezes no seu Fragility of Goodness, leem, por exemplo, a tradição grega encontrando nela kantismo inexistente. e ainda mais se baseando apenas na Fundamentação Ver, no entanto, as dificuldades que Athanassoulis:2005 tem na sua tentativa detalhada de reavaliar a relação de Kant com a sorte. Creio-a falha mas o esforço é interessante e rigoroso.. Não sendo minha tentativa aqui a de hermeneuta, acredito haver outras razões para nos fiar nesse clichê. A infinidade de obras ressaltando a autonomia, a responsabilidade e coisas do gênero comprovam esse clichê - que se não é em si mesmo ridículo (quem pode ridicularizar o esforço kantiano?) encontra na repetição e popularização (quem realmente se dedica a Kant o necessário para compreendê-lo? Uma das poucas exceções foi meu professor, amigo e vizinho Valerio Rohden a quem deixo mais uma pequena homenagem aqui como um desses poucos que realmente compreendeu Kant.) de suas máximas algo que não esconde a necessidade de uma força misteriosa não plenamente acessível. Assim, se não na letra do texto Kantiano na mitologia derivada daí, o ser ético é aquele guiado para o bem e para o justo, custe o que custar, custe inclusive seus interesses. Falhar nessa busca é viver uma vida imoral, não virtuosa e injusta com os outros. Sendo mais tolerante, poderíamos comparar essa passagem de Kant e reforçá-la com uma afirmação de Parfit no seu recente “On what matters”: “Return now to the moral difference between two people who attempt murder, only one of whom succeeds. Thought these people should both feel remorse, the successful murderer ought also to feel great agent regret of a kind that the attempted murderer has no reason to feel. And the successful murderer ought, for deterrent reasons, to be more severely punished. These two claims may sufficiently describe the moral difference here. It seems doubtful that the successful murderer is more blameworthy, and that, if we believe in desert, this person deserves to be punished more. This view, as I have said, is paradoxical. Given our reasons to believe that blameworthiness and desert cannot depend entirely on luck, it is unclear how these things could even partly depend on luck”(Parfit:2011 V.1 nota à p. 154). E, de fato, na ausência de uma verdadeira e completa versão desse apartamento da Sorte e do apogeu desse apartamento no kantismo O livro de Nussbaum “Fragility of goodness” é um importante capítulo. Sua interpretação numa série de conferências sobre o Fígaro de Mozart, que tive a oportunidade de presenciar na UNC-Chapel Hill, avançam essa historicização rumo à modernidade., a “história” dessa passagem de Parfit é explanatória: quando o livro ainda se chamava Climbing the mountain, essa passagem estava no texto principal, mas foi substituída na versão final por uma afirmação - “This kantian view, I believe, is true” - e transportada para uma nota de fim como explicação dessa obviedade que estou a começar a atacar. Bernard Williams talvez tenha em mente, entre outras coisas, esse aspecto da moralidade quando a chama de a “peculiar institution”. Tal como a escravidão, para a qual essa expressão foi criada no sul dos Estados Unidos, a moralidade é bastante peculiar se compreendida em torno desse galante agente (ele mesmo uma instituição bastante peculiar e completamente alheia aos agentes que, teoricamente, são chamados de agentes morais, ou seja, nós mesmos) e murada contra a Sorte: “… the point of this conception of morality is to provide a shelter against luck, one realm of value (indeed, of supreme value) that is defended against contingence” (Williams in Statman:1994, p. 251) Por que essa peculiaridade e que razões a Ética nos prove para construir essa muralha e para se crer poderosa o suficiente para mantê-la? A própria possibilidade de fazer essa pergunta é um desafio: vemos, em certo sentido, o ápice na batalha contra a Sorte, quando o próprio Estado abraça a ideia de defesa de seus cidadãos contra os acasos e as infelicidades, especialmente aqueles relacionados ao nascimento (acasos de posição social, casta, raça, acessibilidade a recursos, pertencimento a minorias), mas também os relativos ao curso da vida: o estado que passa de possibilitador da vida, como sugere a figura do homo sacer (ver Agamben:2004) a mantenedor, assumindo e usando de fato parte importante de seus recursos com sistemas de compensação frente a doenças, perda de habilidades e etc. Um modo de tentar responder a isso seria compreendendo o próprio imperativo categórico. Mas longe de mim tentar uma hermenêutica para além daquela aprendida em tom quase de revelação quando da minha “iniciação” aos mistérios na primeira leitura de Kant há muito. Afora isso, parece-me que esse argumento foi de maneira aceitável exposto por Philippa Foot ao revertê-lo como um conjunto de imperativos hipotéticos aos quais indivíduos racionais adeririam por sua vontade livre – por suas deliberações – concedendo aí sim sua força. Mas, repito, não estou interessado em lidar com alguma forma de hermenêutica para tratar essa questão. Mais ainda: esse caminho hermenêutico não forneceria o teste para essa outra noção que tenho procurado desenvolver, que é a de relevância enquanto chave para o processo cognitivo envolvido na normatividade e que deve ser desvendado pela Ética como seu tema maior (ver Apêndice). De fato com a relevância e com outras perspectivas cognitivas semelhantes como a de Mikhail ou Greene, não estamos presos a esse esquema de racionalidade e império da vontade e da deliberação - garantidor da liberdade e coisas grandiloquentes do gênero. Com a relevância, podemos, até mesmo orgulhosamente, aceitar o fato da extensão do nosso descontrole da carruagem das paixões e, salvando-nos de uma hermenêutica do texto kantiano, ganhamos em perguntar algo mais mundano, algo que não separa os céus e nossa vontade nem estabelece alguma barreira tola entre ser e dever que nos desnaturalize. Tal pergunta é a seguinte: O que significa para Gaugain ter abandonado sua família na França e partir para o Taiti? *** Bernard Williams procede à sua formulação com uma afirmação bem feliz acerca do que é a Sorte. Bem feliz para fortalecer meus argumentos: “I shall use the notion of ‘luck’ generously, undefinedly, but, i think, comprehensibly” (Williams:1981, p. 22). É certo que há algo de preventivo nessa indefinição. Sua intenção é, como vai colocar no posfácio a esse mesmo artigo escrito uma década depois, defensiva porque lida com uma tradição que rejeita a própria possibilidade de se conviver com esses dois conceitos “Sorte” e “moral” juntos e nega à primeira, o uso mesmo de suas ferramentas mais próprias (no caso, a arte de definir). Que essa tradição filosófica, especificada por Williams no arco que passa pelos antigos até Kant, seja exótica isso é certo. Que tenha se tornado política governamental diz respeito a uma era fundada sobre o signo, não da ciência e das luzes como gostamos de ressaltar, mas do medo como uma leitura de Hobbes no momento mesmo da fundação da modernidade sempre nos faz relembrar. Esse exotismo da filosofia em seu alheamento frente à sorte é talvez mais impressivo que o fato de que seus princípios tenham tornado-se leis e constituições ocidente afora. Digo isso uma vez que, por exemplo, a literatura nas suas mais diversas formas produzida nas mesmas partes do mundo, nas mesmas civilizações por assim dizer, claramente, de Jó ao Homem sem Qualidades Por exemplo, Nussbaum interpreta Pindáro e sua analogia entre a vida humana e a oliveira do mesmo modo: “The problem is made more complex by a further implication of the poetic image. It suggests that part of the peculiar beauty of human excellence just is its vulnerability… Human excellence is seen, in Pindar’s poem and pervasively in the Greek poetic tradition, as something whose very nature it is to be in need, a growing thing in the world that could not be made invulnerable and keep its own peculiar fitness” (Nussbaum:1986, p.2)., sabe que deve, de forma inclusive a se comunicar com seus leitores ou seus crentes, tratar desta grande parte dos eventos do mundo que não dependem de nós, ou como veremos, de forma ainda mais radical e útil para minha argumentação, daqueles relacionados à sorte de sermos o que esperamos vir a ser no momento da formulação mesma de um plano de ação. Mas tornada exótica na filosofia, no sentido de oposta ao seu mainstream, as precauções adotadas por Williams tornam-se completamente inteligíveis. Uma das caracterizações de Williams acerca do que ele intenciona atacar me interessa, porque vejo aí a própria justificativa da insistência da construção da muralha contra a Sorte: “Just as, in the realm of character, it is motive that counts, not style, or powers, or endowment, so in action it is not changes actually effected in the world, but intention” (Williams:1981, p. 20-1). Gostaria de analisar esse mantra do filosofo moral E mesmo aquele preocupado com a sorte como Rescher:1995 p.158 o repete. e terei oportunidade de esclarecer minha concepção quando abordar na sequência a falha que vejo na própria ideia de caráter como psicologia de fundo da normatividade. Entendo que Williams(1981) queira apontar com essas e outras passagens uma diferença em poderes: frente a essa tradição que tornou a própria conjunção de Sorte e moral algo de estranho, que essa sua força em tornar algo estranho, não reflete a realidade de um poder extraterreno do campo (a moralidade) que tanto se empenhou nesse sentido, apresentando-se com uma nobreza vazia. De fato, a noção de Sorte pode ser usada de um modo ainda mais geral para a confrontação com essa formulação da vida moral. Quando alguém supõe que está seguindo determinado plano de ação, porque segue a tradição ou seus ancestrais, isso contém um elemento de Sorte não evitável. Anscombe, em outro contexto, capta bem o que quero mostrar com isso: “Once one sees this, one may say: I have to frame my own rules, and these are the best I can frame, and I shall go by them until I know something better: as a man might say "I shall go by the customs of my ancestors." Whether this leads to good or evil will depend on the content of the rules or of the customs of one's ancestors. If one is lucky it will lead to good” (Anscombe:1958). Mas o moralista poderia rejeitar como “irracional” e, portanto, como não moral essa justificação pela tradição. Ou seja, rejeitar como irracional o recurso ao motivo relevante – que estabelece uma razão – de seguir os costumes dos ancestrais – nos empurrando novamente para seu jogo puro rejeitando essa rejeição como simplória. E, do mesmo modo, mesmo a refundação ou o apontamento de uma nova base em nossa cognição poderia ser rejeitada pelo moralista como não atingindo seu jogo de contas de vidro ou como não o jogando de maneira justa. Assim, o que proponho que a relevância faz ao sustentar a normatividade de modo mais próximo à natureza apesar de vir a diminuir as aporias que Anscombe tem em mente – “The search for "norms" might lead someone to look for laws of nature, as if the universe were a legislator; but in the present day this is not likely to lead to good results” (Anscombe:1958) – uma vez que com a nova psicologia que acompanha a relevância e com a relevância como traço de nós mesmos e alguns outros animais temos sim uma interação com a natureza e uma forma de legislação quase tautológica alheia à deliberação mas não alheia a mais automática intenção (‘decido que é correto porque tal plano de ação é o que apresenta os traços relevantes mais bem dispostos e é correto porque é relevante contextualmente’), mesmo isso estaria aberto à critica do moralista. Por isso, a argumentação de Williams é útil. Seu objetivo gera um desafio maior ao procurar, aceitando argumentativamente o quadro dado pelo moralista, reconhecer a “verdade amarga” que “morality is subject, after all, to constitutive luck”. Digamos que, com essa argumentação de Williams, temos algo que nenhuma outra argumentação como a minha em torno da relevância ou a de Mikhail, que propõe uma metáfora linguística da normatividade, pode fornecer: um ataque à própria cidadela da filosofia moral. E é precisamente essa primeira distinção sobre a Sorte constitutiva o começo da resposta sobre o que é Sorte e sobre o que significa para Gauguin, que não é um imoralista mas alguém que leva em conta as demandas dos outros sob si mesmo (Gauguin tinha esposa e filha recém nascida no momento de sua decisão Levi (in Statman:1994, p. 113s) insiste em qualificar esses traços da vida de Gaugain de forma a rejeitar a noção de Sorte ela mesma, o que me parece um engano. Primeiro porque não se trata de um exemplo, mas de um modelo; segundo porque os traços relevantes no modelo não implicam uma identidade com o Gaugain real, mas a possibilidade de um Gaugain ou alguém que tivesse nessa posição de conflito. Williams (Posfácio em Statman:1994) rejeita com poucas linhas toda a argumentação nesse sentido, e a argumentação ad hoc sob sua visão “romântica” do artista, no que o creio correto.), se lançar na vida. Assim, frente a esse ser que é sensível às “demandas” da moral e preocupado com a questão da justificação de suas ações que Williams vai procurar instalar o problema da Sorte, conjugando o oxímoro da Sorte moral que, ao final, se revela uma quase tautologia. Gauguin, carregado por remorso e tristeza pelo que deixa, tendo em vista um plano de ação (que imagina irá desenvolver seus talentos como artista da melhor maneira), esse homem, portanto, carregado de preocupações com os outros – não sendo um amoral – e com sua capacidade de imaginar e projetar consequências futuras para suas ações afinada (tal como alguns outros animais), resolve lançar-se no vazio que é o futuro ainda não vivido e traçado por suas ações e pelos eventos no mundo e ir para o Taiti. Gauguin, reafirmemos com Williams, não é um perdido que está meramente abandonando sua esposa por alguma vaga promessa ou por uma vida de prazeres (o que parece sensivelmente ser considerado imoral decisivamente). Ele é, sim, um homem que escolhe esse plano de ações mesmo que este não possua garantias e mesmo que essas garantias sejam inalcançáveis por uma ou outra mudança local que poderíamos imaginar, mas por aquilo que podemos, metaforicamente, identificar como uma verdadeira revolução ou uma transformação rumo a um bem maior. Portanto, é por ser esse homem preocupado com o jogo que chamamos de moral e um jogador conhecedor de suas regras e demandas que ele se encontra no paradoxo que é justamente o que Williams quer apreender: aquele homem cujas decisões somente podem ser julgadas pelo próprio êxito. Como Moore afirmou numa passagem de autocrítica, uma indefinibilidade do mal teria maior valor do que aquela do bem e assim é a falha que melhor revela o problema da moral no presente caso: “If he fails then he did the wrong thing, not just in the sense in which that platitudinously follows, but in the sense that having done the wrong thing in those circumstances he has no basis for the thought that he was justified in acting as he did. If he succeeds, he does have a basis for that thought” (Williams:1981, p.23). Esse crash não é solucionado pela inserção de uma maior racionalidade no sistema (mais tempo para pensar, mais informações para avaliar) afinal a execução da ação ou do plano de ação visando ao bem foi posta em funcionamento e justamente por isso apenas seu sucesso, que depende de condições alheias ao agente e alheias teoricamente à própria moralidade, pode garantir a avaliação moral dessa ação ou plano de ação como corretas moralmente! E devemos ter em mente que esse crash não é devido a fatores circunstanciados apenas e não previsíveis. Não é porque o navio que leva Gaugain ao Taiti afunda ou porque ao chegar lá ele é vitimado por uma doença que o incapacita a realizar seu plano (mesmo que isso ocorresse esse plano também falharia e falharia moralmente dado que os impactos de sua decisão – impactos nos outros seres humanos com os quais ele se importa – já se fizeram presentes no início do ciclo). Não é também porque seu plano, na verdade, não era realmente racional e moral. É porque nossas ações dependem de coisas que não podemos prever e de coisas relacionadas à Sorte que esse crash acontece e entre essas coisas está aquela que particularmente ataca a imagem fornecida pelo filósofo moral que é de como depende da Sorte ser o que se pensa ser capaz de ser. Assim, mesmo que a Sorte relacionada com o mundo seja “muito externa para o injustificar” (Williams:1981, p.25), tanto do ponto de vista do moralista como do da justificativa (e podemos pensar que ele, tendo sobrevivido à doença, volta, fracassado e se contenta a passar seus anos restantes se justificando moralmente àqueles que insistissem em perguntar o que ocorreu e o porquê de sua falha), esse outro aspecto da Sorte resta avassaladoramente à margem da moral: “… yet still that is, at another level, luck, the luck of being able to be as he hoped he might be… it is not merely luck that he is such a man, but luck relative to the deliberations that went into his decision, that he turns out to be such a man; he might (epistemically) not have been” (Williams:1981, p.25). Frente a esse quadro, a pergunta é: pode haver justificação nesse fundamento da vida moral na filosofia? Se pode haver autonomia é uma transposição com sinônimos no interior do vocabulário filosófico; e se pode haver deliberação é uma pergunta válida e adaptada para a própria visão do normativo e a resposta a isso é premente para qualquer visão da normatividade como um processo cognitivo. Tal qual desenvolvida pela relevância, por exemplo, se respondemos sim a essas perguntas parece que encontramos uma rejeição: uma vez que, caso seja plausível pensarmos em deliberação, teremos um controle muito maior do que a cognição parece implicar e sua heurística se tornará muito menos automática do que penso ser e do que alguns experimentos como aqueles feitos por Haidt sobre nossas respostas aos tabus parecem também indicar. As soluções apontadas pela filosofia moral parecem falhar nesse sentido. De fato, uma breve enumeração de possibilidades de justificação disponíveis nessa tradição, por regras e por suas consequências, mostram como elas falham por anacronismo. A justificativa de regras pelo anacronismo de que “at the relevant time one is in no position to answer what could that rule be” Williams:1981 p.24 e o consequencialismo pelo anacronismo de ser implausível ou independente da Sorte (ou seja, impossível de sabermos anteriormente à ação) saber os próprios termos que permitiriam o cálculo utilitarista por parte do agente no momento da ação. Nesse sentido, uma visão do humano deve considerar a ação do ponto de vista de um salto no escuro: sabemos que estamos caindo, sabemos que chegaremos a algum lugar e sabemos que uma série de ações devem, sincronicamente, ser tomadas de forma a garantir esse chegar. Mas não temos ideia se estamos com o equipamento correto para o salto (apenas nossos braços para proteger nossa cabeça ou um paraquedas), não sabemos onde vamos (apenas que análogo à gravidade que nos puxa para baixo o tempo nos impele para o futuro). Associada a essa visão, há apenas uma garantia, inaceitável para o moralista, aquela relacionada ao que há de mais primário em nós mesmos, a nossa animalidade: nela encontramos uma garantia única que é dada pela verdade biológica evolutiva de que temos sobrevivido a esse salto no escuro e a essa queda há milênios. O moralista pensaria que isso obviamente é uma prova indiferente à verdade da moral. Sustento que essa é a prova de que a normatividade que nos guia nesse salto é uma estrutura em nós, uma estrutura cognitiva, não descrita e não alcançada pela visão de nós como agentes deliberativos. Argumentando desse modo, internamente aos preceitos da filosofia moral, com a compreensão de que o aspecto intrínseco da Sorte aponta que algo que se pensou relacionado à mágica da moral é na verdade dependente da Sorte, temos um elemento para sua implosão. Na possibilidade da justificativa deliberacional exigida pelos sistemas da moralidade, Gaugain, assim como nós, assim com eu, está sempre frente à Sorte e ela nunca se abstém de se fazer presente, mesmo com as falsas orações e palavras mágicas lançadas pelo moralista. Se essa Sorte se fará presente por fatores externos (o barco que afunda, a doença que incapacita etc.) ou por fatores internos (“the luck to being able to be as he hoped he might be”) que Williams chamará de Sorte extrínseca e intrínseca (Williams:1981, p.26), é o que vemos com a vida de Gaugain como modelo teórico. Nele podemos testar todas essas variações desde que o compreendamos sempre como alguém que não procurou escapar à moral, mas alguém que, jogando de coração o seu jogo, enfrentou seus paradoxos como qualquer um de nós que tenha tomado qualquer decisão que nos aparte e nos lance ao mundo. Williams expande sua argumentação detalhando-a com as crises de Anna Karenina. Ela e seu plano de ação, ser moral e ser engajado no jogo moral, são óbvias vítimas do primeiro caso de Sorte relativo ao mundo. Mas o que realmente importa e o que vai ao âmago do problema é essa noção de ser capaz de ser o que se espera ser e a noção, frente ao fracasso dessa esperança depositada no plano de ação e no caráter acurado da imaginação, do arrependimento e o fato de que realmente “arrependimento mata”. Todavia, a própria questão da Sorte, do modo desenvolvido até aqui, já, em si mesma, fornece elementos para um assassinato da nossa esperança no sucesso do agente moral deliberativo. Apenas o assassinato de nossa esperança, porque esse ser capaz de ser o que se espera ser diz respeito a uma noção já morta, mas que é uma aparição constante na filosofia moral. Especificá-la em sua essência frente aos seus diversos sinônimos é tarefa difícil. Mas há uma série de vantagens de, colocando-a sob o guarda-chuva conceitual de “agente deliberativo”, visar aos seus vários elementos “controle”, “caráter” (o que faremos agora) e, por fim, retomarei o que creio ser seu operador essencial na filosofia, a noção de plano de vida. Agora vou mostrar como alguns dos diversos golpes dados nessa noção de agente deliberativo e como esses golpes constituem, portanto, elementos da investigação sobre esse assassinato. O assassinato do agente moral deliberativo O modelo Gaugain tal como elaborado por Williams nos trouxe uma série de consternações sobre o local da Sorte, mas especialmente acerca da fragilidade da filosofia moral em nos fornecer uma visão sobre nós mesmos. E tudo isso foi feito, o que é mais consternador, do ponto de vista de uma visão pré-teórica do que é Sorte. Talvez pré-teórica porque a filosofia recusou a essa bárbara, que entendeu ser a Sorte, o tratamento “civilizado” dado aos conceitos que aceita à sua porta, que é aquele da definição e do esclarecimento. Iremos seguir o caminho de “racionalizar” a “irracional” sorte porque ele nos abrirá uma porta interessante e surpreendente que é a comunhão – pelo aspecto da significação e da necessária contextualização comum à Sorte e à normatividade – do que se viu como bárbaro. No entanto, ainda desse ponto de vista pré-teórico e sem nos dedicarmos a aprofundar nosso entendimento da Sorte, devemos ampliar algumas das consequências da formulação de Williams. Gostaria de fazer isso atacando algo que a filosofia moral viu como central para a possibilidade do estabelecimento de uma Ética: o agente moral deliberativo. Irei mostrar de diversos modos e com diversas fontes (da psicologia e da filosofia) como ele foi assassinado. Foi, porque não se trata de sujar as mãos aqui matando algo que é, já há algum tempo, um cadáver. Apenas devemos reafirmar, por causa da insistência de seus adoradores, que se trata de um fantasma no mesmo estilo que Anscombe:1958 nos faz lembrar desse defunto que são os comandos divinos. A diferença quanto Anscombe é que sustento que estamos novamente aptos a fazer filosofia moral, que o tempo para essa teorização é agora e que os desenvolvimentos que ela esperava chegaram mesmo que de modos opostos (ela clamava pelo que chamaríamos de uma psicologia do caráter tal qual desenvolvida pela Ética das virtudes). Assim, proponho que relembremos os aspectos – Gaugain já nos forneceu um incentivo – não condizentes com o que somos que essa visão deliberativa mantinha acerca da psicologia do caráter na resposta ao puzzle de Michael Smith acerca da explicitação da ação intencional e nas questões em torno dessa tendência em supormos controle no que rotineiramente é uma ilusão. Na sequência, aprofundarei a compreensão da Sorte, trazendo-a para a cidade murada da filosofia. 1- O erro fundamental de atribuição O artigo de Williams, um dos mais instigantes textos que li, me faz reagir com tensão e nervosismo pela sua prosa irreplicável. Mas como me desviei acrescentando minhas preocupações em sua prosa, vou a um detour “justificador” dessa morte “matada” do agente moral deliberativo. Há outra razão para esse abandono. Williams encontrará no arrependimento e seus dilemas de um ponto de vista literário-psicanalítico o que eu encontro no esmerar das nossas concepções acerca da psicologia moral e essa discussão na verdade não é a melhor parte do seu artigo e mesmo sua interessante formulação (Williams:1993, p.219s) acerca dos mecanismos psicológicos envolvidos na culpa são nada mais do que um esboço Afora o ceticismo que reservo a seu uso (em Williams:1993) ao vocabulário da psicanálise.. Um modo de ver as armas e as táticas empregadas nesse assassinato é apontar como elas dizem respeito a uma das origens dessa insistência na clivagem entre de um lado as ações que concernem à Ética e aquelas que são irracionais, não-morais, não-normativas num crescente de estranhamento, mas não num crescente de falta de sentido, pois se minha formulação vem convencendo da maneira que eu gostaria essas distinções devem ser abandonadas a favor da visão de uma concepção geral do normativo mesmo que ela acarrete paradoxo similar ao que Fodor apontou na compreensão da cognição (“the more global a cognitive process is the less anybody understand it”) e Nussbaum na formulação de visões mais ricas acerca do nosso esquemas de valoração (“the richer my scheme of value more vulnerable to conflits and luck”). Essa origem é, sugiro aqui, o que foi chamado na ciência da psicologia empírica por erro fundamental de atribuição (apesar de que, cada vez mais, essa expressão tem perdido qualquer sentido Gostaria de agradecer ao Prof. Bibb Latane por ter me mostrado como essa expressão vem cada vez mais deixando de fazer qualquer sentido na psicologia mas que a culpa recaia dessa vez a sempre atrasada coruja da filosofia por eu estar ainda insistindo nesse ponto pace seus conselhos de não fazê-lo.). Gostaria de desenvolver esse tópico a partir da formulação, que bem resume a polêmica já a traduzindo inclusive para a filosofia, de Gilbert Harman (Harman:1999 & Harman:2000). O ponto de partida para a compreensão do erro de atribuição é uma analogia. Assim como nossos sentidos provocam uma série de equívocos que são bases de algumas de nossas intuições sensíveis e devem ser compelidos e rejeitados para a correta execução de uma ação (Harman sugere o treinamento do piloto de bombardeio que deve levar em conta a contra-intuitiva resposta da queda de um projétil que descreve uma parábola e não uma linha reta) do mesmo modo nossas intuições morais acarretariam erros em nossa teorização (Harman sugere dois: o próprio consequencialismo e o relativismo morais). Outro desses erros, o que está envolvido na construção da muralha em torno da Sorte e do acaso como alheias à vida moral e não como partes essenciais dela, é aquele do erro de atribuição fundamental, ao qual Harman se dedica a investigar, sobretudo, resumindo a literatura de psicologia social que afirma: “It seems that ordinary attributions of character traits to people are often deeply misguided and it may even be the case that there is no such thing as character, no ordinary character traits of the sort people thinks there are, none of the usual moral virtues and vices” (Harman:1999). Ancorado na pesquisa empírica feita por psicólogos, Harman (1999) afirma que, pace as dificuldades inerentes a tal tipo de investigação, não há nenhum estudo que tenha sido realizado que comprove a existência de coisas importantes no arsenal do moralista – esse amante de armas caseiras e soluções de gabinete – como virtude, caráter, pessoa de vontade, ser racional etc. e que, nesse sentido, a filosofia moral e sua psicologia estiveram desde sua fundação presas a um maquinário equivocado e equivocado de modo análogo à física popular que: “In attempting to characterizer and explain the movements of a body, folk physics places too much emphasis on assumed internal characteristics of the body ignoring external forces” (Harman:1999) Especificando, não haveria nada que pudesse ser traçado metodicamente na personalidade das pessoas com aquela força de causalidade E isso traz uma força no que diz respeito à argumentação de Judith Thompson sobre a Sorte (In Statman:1993) em que ela tenta novamente murar a moralidade contra a Sorte pelo caráter – o mal caráter no caso de seu exemplo – que, sendo formativo e constituído como experiência de vida, não poderia ser explicável por mera Sorte. assumida pela filosofia moral de que determinadas ações são explicitáveis, porque pessoas são corajosas ou virtuosas ou boas, sem menção ao caráter contextual de sua situação (e acrescentaria ao modo como elas selecionam os aspectos relevantes). Em suma, não há nada que garanta do ponto de vista da psicologia empírica que a muralha do caráter, sempre tênue e a exigir uma reafirmação constante na tradição filosófica No caso da mais recente (ou seria mero revival?) tentativa de reforçar a muralha, a ética das virtudes e especial aquela baseada na idéia de florescimento a noção de caráter operaria como um garantidor. Harman afirma “the main point is that this sort of virtue ethics presupposes that there are character traits of the relevant sort, that people differ in what character traits they have, and these traits help explain differences in the way people behave” (Harman,1999), sequer exista Sem poder me adentrar ainda mais nesse fascinante artigo cito o resumo de Ross & Nisbett sobre os estudos do tema: “‘average correlation between different behavioral measures designed to tap the same personality trait was typically in the range between .10 and .20 and often even lower’. These are very low correlations, below the level which people can detect” (Ross& Nisbett citado por Harman,1999).. Harman cita os experimentos de Milgram com o experimento do choque e aquele de Darley & Batson sobre o bom samaritano e poderíamos adicionar o de Latané sobre o porque a testemunha ocular (bystander) não ajuda a vítima de uma violência em contextos urbanos. É certo que o filósofo sempre tem a possibilidade de dizer que sua formulação de caráter foi incompreendida mas creio que a ausência que está sendo apontada aqui atinge qualquer versão dessa formulação devido a seu caráter genérico. O que esses experimentos estão apontando é a inexistência de uma continuidade essencial a qualquer noção de caráter, que, afinal, é uma disposição distendida no tempo e apontando o caráter, sobretudo, circunstanciado de nós mesmos limitados por uma economia energética clara que é aquela de nossa capacidade cognitiva e que, talvez, o filósofo chamasse de finitude. De fato, relendo o artigo, é curioso encontrar a referência a uma reinterpretação do experimento de Milgram feita por Ross & Nisbett, frente ao ridículo da suposição de que todos aqueles que deram o choque numa dosagem perigosa teriam uma falha de caráter (aliás, se houvesse algo tão forte quanto caráter alguns nem ao menos participariam do experimento, recusa que não ocorre uma vez sequer de acordo com Milgram), invoca justamente o que eles chamam de “aspectos relevantes” do caso. De acordo com esses dois autores, tais aspectos seriam relacionados à questões de autoridade (do guia do experimento que insiste na necessidade de prosseguir) e à falta de uma visão da própria situação (os participantes simplesmente são incapazes de associar o apertar de um botão ao sofrimento ao lado ou mesmo de se conectar com esse sofrimento em alguma medida dada a intervenção dos pesquisadores) fornecendo já, sem termos que seguir o caminho de Williams em torno do arrependimento mas com resultados intercambiáveis, os primeiros elementos para uma rejeição dessa noção importante na filosofia moral, provavelmente devida à centralidade que ela deu para o agente deliberativo, que é a de plano de vida. Assim, descrito o fenômeno do erro fundamental de atribuição e deixando ao artigo de Harman a discussão da literatura relevante, retomo à pergunta título desta seção: tendo apontado, provar demanda uma formulação historiográfica (Doris:2002) Um desses livros pouco citados mas fascinantes. Seja pela sua abertura a qual concordo plenamente (“I’m possessed with the convinction that thinking productivily about Ethics requires thinking realistic about humanity”) e seus ataques a formulação sobre virtudes., o que reconheço ser a origem desse erro na filosofia moral, apontamento que me satisfaz muito por estar justamente na conexão de uma formulação de filosofia da mente ou da psicologia falha gerando consequências específicas e equivocadas para a Ética, devo procurar apontar como a formulação que venho defendendo baseada na relevância ou em outras formulações cognitivas a evita. Ela o faz ao rejeitar a existência mesma de uma vida moral no sentido clássico, aquela que Aristóteles, por exemplo, temia que até mesmo o post-mortem pudesse afetar. Tópicos fundamentais dessa vida são a noção e uma fluidez unitária que é apresentada com uma naturalidade tal que se torna surpreendente que haja outra maneira de pensarmos que seja possível ou plausível nossa vida moral sem sermos lançados ao reino desprotegido e aberto aos fantasmas do relativismo, da falta de universalidade e objetividade. De fato, essa noção implausível de que haja um local a partir do qual possamos avaliar e julgar nossas ações tendo em vista todo o percurso seguido aponta para uma imagem analógica, de “filme de rolo” por assim dizer, onde uma sequencia alheia a nós mesmos e ao modo como nossa cognição se organiza (afinal ao não explorar verdadeiramente ela e ao se fixar em fantasmas como “carater” o filosofo moral não possui a sua disposição princípios organizacionais tal como o que almejo com a noção de relevância e Mikhail com a noção de uma gramática gerativa da moral) se solidifica não reconhecendo o acaso do que se rememora. Com o caráter e o agente deliberativo essa sequência é estabelecida de modo heterônomo e prova desse aspecto é o fato que não há pior memoralista que nossa memória recolocada ao papel de biografa de si mesma. Assim sendo uma melhor concepção deve visar o sempre presente circunstancialismo apontado pelo erro de atribuição fundamental formulação cognitivas tende ao reconhecer esse aspecto e a gerar um ganho exatamente pela proximidade com o objeto descrito mesmo que falhe em fornecer a segurança que o kantismo provê. Em outra frente, ela supera o erro de atribuição fundamental ao não se basear numa psicologia de traços de caráter ou uma psicologia especializada no agente racional mas sim na fluidez possível pela sua compreensão do caráter heurístico do processamento das intuições normativas tal qual estabelecida pelo princípio de compartilhamento variável descrito alhures. 2 - A ilusão de controle Insistindo que esse assassinato já é antigo devo notar que não é apenas a noção de caráter que foi atacada se olharmos para a literatura relevante na psicologia empírica. De fato um tema não muito mencionado do lado de cá é a noção estabelecida no clássico trabalho de Ellen Langer (Langer:1975 e Langer & Roth:1975) acerca da ilusão de controle que irei propor generalizar, associando-a com a tópica da Sorte que interage de maneira geral em nossas ações. Langer define da seguinte forma o fenômeno da ilusão de controle: “An illusion of control was defined as an expectancy of a personal success probability inappropriately higher than the objective probability would warrant” (Langer:1975, p. 311). Sua noção central é que, quando fazemos uma suposição de que temos alguma forma de talento, ou, quando devido a nossas circunstâncias supomos que uma série de “situações talento” (ela exemplifica com coisas como escolha, competição, familiaridade e envolvimento) interferem com aspectos da realidade que são completamente regidos por coisas que não dependem de nós, ocorre uma perda dessa importante distinção. O experimento de Langer é desenhado de forma a testar uma diferença essencial à visão que a filosofia moral tem de nós mesmos como agente deliberativos, a suposição de que distinguimos entre aquelas coisas que temos controle por supostamente termos alguma forma de “talento” em realizá-las (“in skill situations there is a causal link between behavior and outcome”) daquelas coisas que reconheceríamos como não dependendo de nós mas da Sorte e de desenvolvimentos contextuais alheios à nossa vontade, em que esse vínculo causal não existiria ou seria desativado. A série de experimentos que Langer dedica ao tema comprova exatamente a inexistência dessa distinção quando é devida (o que poderia ser respondido pelo moralista de que os seres humanos são imperfeitos). Mas mais importante, comprovam que, de fato, seres humanos não acessam a si mesmos e suas práticas como fazendo essa distinção nos momentos esperados o que, suporto, insere uma dificuldade maior para o moralista (afinal uma narrativa idealizada de nós mesmos não poderia tão facilmente associar algo que seres humanos nem mesmo procuram acessar) e comprovam algo acerca da própria operação cognitiva envolvida na normatividade: que ela tem na Sorte uma irmã no sentido de serem filhas de um mesmo processo e de um processo que operando de forma aproximada falha em traçar distinções tão puras como exige o moralista e mais geralmente o filósofo. Esse segundo ponto parece ser implicado pelo que Langer aponta como uma dificuldade imensa dos indivíduos de seus experimentos (e de outros pesquisadores), indivíduos motivados até mesmo sob o incentivo financeiro de acertarem a distinção entre o que é relacionado à causalidade ou guiado pela responsabilidade derivada do “controle” da situação, em distinguir se há ou não contingência nas situações que lhes são apresentadas. Nesse sentido, esses experimentos revelam uma dissonância que Langer aponta como a ilusão de controle ao mencionar que as pessoas possuem uma tendência “to attribute desirable outcomes to internal factors but to blame external factors such as luck for failures. The valence of the outcome would not be a potent factor if people distinguished between chance and skill on the basis of the objective contingency” (Langer:1975, p. 312). Mas as pessoas não o fazem. Em suas, ou melhor, em nossas decisões e em nossos planejamentos, estamos na mesma situação daquele jogador de Poker que joga o dado violentamente se quer números maiores e apenas deixa cair de sua mão se seu desejo é pelo número 1, ou então aquele que, precavendo-se, procura escolher cuidadosamente o “melhor” baralho – na suposição de que não é um baralho de cartas marcadas – por uma série de características extemporâneas às reais probabilidades em jogo. E isso não pode ser suposto como irracionalidade do agente, como gosta de apontar o moralista, porque não há de fato irracionalidade (pensamos como o jogador de poker que estamos em controle do que na verdade não estamos e agimos consequentemente a essa ilusão) mas apenas autoengano “These behaviors are all quite rational if one believes that the game is a game of skill” (Langer:1975, p.312).. Essa ilusão deve estabelecer um estudo sobre a responsabilidade que estabeleça os meandros de modo mais claro, traçando onde ela se inicia e onde ela termina (como parecem dispostos certos teóricos) ou deve aceitando os autoenganados agentes que temos à disposição aceitar a indeterminação com que vivem e assumir que o que há de útil a ser pesquisado não é essa avaliação dos limites da responsabilidade mas o fato do que incentiva esse auto-engano Langer sugere que ele tem a ver com a suposição de que temos algum talento como por exemplo dar ao apostador a chance de escolher os números incentiva-o a jogar mais vezes sem um ganho relevante em suas probabilidades de acertar e de como esse nosso traço ajuda a relevar aspectos da arquitetônica da normatividade, ou seja, do funcionamento de nós mesmos. 3 – O puzzle de Smith e uma pergunta: todo esse esforço em eliminar o deliberativo é meramente devido ao unilateralismo que uma visão cognitiva da Ética e a psicologia empírica implicam? Essa reconstituição do assassinato do agente deliberativo, feita do ponto de vista da psicologia, é uma vítima do unilateralismo que adotei ao indicar que uma explicitação da cognição (na minha visão feita pela relevância e no caso do erro de atribuição e da ilusão de controle por obviamente serem concepções “meramente” psicológicas) guiasse a compreensão da normatividade? Vejamos o motivo por que estou pensando nisso, contextualizando-a com o puzzle que Michael Smith crê encontrar na explanação da ação e como minha reconstituição do assassinato parece pecar por indistinguir duas perspectivas de explicação da ação que ele aponta cometendo uma forma de unilateralismo. Os porquês dessa indistinção são elas mesmas um dos motivos ou elementos no assassinato do agente deliberativo. Segundo Smith, há dois modos de explicitarmos a ação ética: “In general, we can explain intentional action from two quite different perspectives: intentional and the deliberative. Though at first sight the difference between these two perspectives is both intuitive and clear, on reflection the fact that intentional action can be explained from these two perspectives provides us with a puzzle” (Smith:1992, p.323 e reutilizado em Smith:1994, p. 131). Na perspectiva intencional, encaixamos (‘austin-anamente’) a ação intencional num padrão de explanação teleológica (faço isso porque intenciono esse fim) e é aqui que floresce a trama de estados sentimentais, tema da psicológica popular e do filósofo, uma vez que “we explain by citing the complex of psychological states that produce the action” (Smith:1994, p. 131): “fiz isso porque tive medo”. Já na perspectiva deliberativa a ação intencional será explicada “in terms of the pattern of rational deliberation that either did, or could have, produced it”. Portanto, nessa segunda perspectiva, há muito mais claramente uma ideia “como se” e trata-se de fato de uma reconstrução, a reconstrução em forma de uma narrativa, que Smith bem sabe “may be more or less close to the truth”, e essa história ou narrativa constitui a própria explanação da ação (“eu fiz isso porque isso funciona desse modo e é o melhor meio de se realizar o que intencionei fazer”). Mas quem explicita a ação? Qual perspectiva? Esses dois modos entram em conflito quando tentamos responder justamente a essa questão. Se parece óbvio que a perspectiva deliberativa possui essa primazia, isso parece falso na prática. Falho na construção de um plano, quando uma descrição psicológica (“eu senti raiva”) se apresenta inteiramente capaz de ocupar esse mesmo local de modo absoluto. Assim, o que há parece ser uma oposição de perspectivas causando uma falha quase quântica na tarefa de explicação da ação e é essa oposição entre um interesse em estados psicológicos e um interesse nas razões vai levar Smith a apontar seu Puzzle. O puzzle então é elaborado por Smith do seguinte modo: “how it can be that accepting normative reason claims can both be bound up with having desires and yet come apart from having desires. In other words, the problem is to explain how deliberation on the basis of our values can be practical in its issue to just the extent that it is” (Smith:1994, p.136). O modo de resolver esse Puzzle, contrariamente a Smith, é então compreender uma conexão fundamental que Smith, ao aceitar a primeira parte da imagem humeana de nossa vida prática, aquela da distinção entre estados psicológicos e razões, está impossibilitado de acessá-la apesar de reconhecer sua origem de modo claro: “The puzzle here is a deep one, a puzzle that can be traced back to the belief/desire psychology we have inherited from Hume… In Hume’s term, is it a matter of believing? Or is it a matter of desiring” (Smith:1994, p.136). O modo de acessar a resolução é então pela via de escape. É uma questão de fugir da compreensão de qualquer centro nervoso, separado da circunstância, e compreendê-lo como parte mesma da cadeia de eventos e do fluxo que chamamos mundo. Essa conexão fundamental aponta que a normatividade não opera pela deliberação, porque não há como se manter a imagem humeana do conflito entre estados psicológicos e razões frente à adoção de uma concepção contextual do funcionamento da normatividade como aquela da relevância como heurística da normatividade. Assim, esse puzzle é resolvido pela própria inserção da tarefa de que a filosofia explicite o processo cognitivo envolvido na normatividade (processo ele mesmo prático, motivador e explanatório por ser a ferramenta para a ação e compreensão da normatividade) e pela visão de nossas mentes implicada aí; visão que se ancora numa rejeição da clivagem emoções/razões não tanto por argumentos, mas por sua falha de adequação para o caso dos seres exemplares de agentes morais que temos disponíveis para pautar nossas considerações sobre a normatividade: nós mesmos e alguns outros animais. Essa rejeição vem sendo fortalecida aqui de diversos modos: com a inserção da Sorte no nosso sistema, na seção anterior com a rejeição da existência do centro de emoções formado contra a maré do mundo que normalmente é chamado de caráter e com o apontamento da ilusão de controle, mesmo que a tarefa de expandi-la para exemplos mais próximos do nosso assunto ainda esteja em aberto como pesquisa futura. Portanto, o unilateralismo da relevância e de qualquer interpretação da normatividade baseada em uma visão da cognição como a da interpretação da analogia linguística de Rawls por Mikhail (Mikhail:2011), em termos linguístico-cognitivos, é ainda outro passo nessa mesma direção Mas essa leitura deve ser feita contra a revisão que Rawls faz da Teoria da Justiça na segunda edição onde afirma no prefácio: “Unhappily that account left it ambiguous whether something’s being a primary good depends solely on the natural facts of human psychology or whether it also depends on a moral conception of the person that embodies a certain ideal”. (Rawls:1999 p.xiii).. De fato, com a rejeição dessa clivagem que Smith toma como verdade ao aceitar essa parte do humeanismo (a clivagem entre desejos e “means-end beliefs”) sem ver que ela é a razão mesma para sua rejeição da teoria das razões motivantes, o que temos é uma rejeição do Puzzle por indistinguirmos, já de início, as duas perspectivas (intencional e deliberativa) que fragmentam a explanação da ação intencional e sustentam o modelo deliberativo. Consequentemente, a acusação de unilateralismo da relevância e de qualquer formulação cognitiva da normatividade e, mesmo de modo mais genérico, de qualquer versão que aceite as implicações da Psicologia empírica, de fato, se mostra verdadeira, mas perde sua âncora nesse exato momento, uma vez que era baseada em uma má formulação sobre nós mesmos (de que nos explicamos desses dois modos e de que estamos, dado que é sua origem, fragmentados entre desejos e razões). Nesse sentido, trata-se de uma má formulação da mesma estirpe daquela do erro de atribuição fundamental. Assim, com o deliberativo compreendido como enganoso (ele não se constitui parte autônoma nem de nós mesmos, nem da explicação de nós mesmos e uma crítica mais voraz está a aguardar a investigação acerca do remorso e dos planos de vida tema a ser explorado futuramente) e o intencional a ser estabelecido por qualquer forma de compreensão cognitiva da normatividade (na minha proposta pela heurística provida pela “absoluta” e unilateral relevância), o Puzzle deixa de ser propriamente um Puzzle e assume ares quase de uma tautologia (seus termos são sinônimos para um mesmo fenômeno) e a tarefa de uma melhor, respeitando sempre seus limites de clareza e certeza, compreensão dessa operação cognitiva vem a ocupar a cena com mais essa fragilidade de uma visão da normatividade baseada num comitê central inexistente, aquele que tenho chamado de caráter, o que fortalece a sugestão de um convite ao filósofo moral: que ele investigue os seres humanos e sua cognição e não a fábula do caráter, sem dúvida justificada pela força da repetição e talvez pelas miragens que nós mesmos nos colocamos (e que exige que fenômenos sejam investigados e não meramente teorizados por sua mera aparição). 4 - Fins para máquinas? Fins para seres humanos? Até aqui vimos três golpes dados na noção de agente deliberativo como centro de decisão posta no núcleo duro do sistema elaborado pelo filósofo moral. Mas, de fato, há um aspecto funcional dessa noção – a relação entre esse agente e a teleologia supostamente necessária ao reino da liberdade e refletida nas dificuldades em torno da motivação – que deve ser abordado e que parece faltar àquelas concepções que remontam a cognição. Por exemplo, a relevância defendida por mim ou a analogia linguística apresentada por Mikhail como modelos para a compreensão do raciocínio moral remontam a um procedimento heurístico que não faz destoar os agentes morais do mundo natural e da animalidade em geral ao colocar esse tipo de conhecimento (já que a normatividade se trata de uma interação com o mundo) no interior de uma concepção psicológica que os compreende como responsivos às circunstâncias e como, por estarem em conexão com o mundo, processadores das demandas desse mesmo mundo (sendo seu corpo partes dele e explicitáveis sem nenhum guindaste). É nesse sentido que aceito como diretriz a sugestão de Anscombe, que, para entendermos a normatividade, um tipo de filosofia da mente é implicado e acaba por explicar de modo mais cabível a normatividade. Todas essas vantagens da compreensão da normatividade como processo cognitivo possuem, no entanto, um desafio explanatório: como pode um processo realizado pelos seres normativos, e cuja normatividade é explicitada por um processo cognitivo, ter finalidades? Finalidades que precisamente foram postas como centrais para qualquer formulação Ética? Como manter a teleologia da normatividade numa concepção que têm na sua origem o objetivo de ser explicitadora também de coisas que não possuem fins ou, ao menos, não possuem fins práticos no sentido indicado pela filosofia moral e que constituem de certa maneira sua “mística”? É plausível uma visão do normativo sem uma concepção do melhor ou do mais correto E obviamente é uma dificuldade de qualquer naturalismo incapaz de ser resolvida com o recurso à uma história natural dado que a melhor dessas histórias, a evolução, claramente recusa essa noção de melhor no sentido requerido pela Ética.? Smith, já que estávamos a tratar dele, pode simplesmente dizer que essa teleologia aparece naturalmente de sua própria separação entre crenças e desejos, o que não posso mais sustentar, dado que estou engajado numa concepção de nós mesmos que não se adapta e, mais do que isso, rejeita essa clivagem. Assim, explicitar essa possibilidade é de grande importância para minha formulação e mesmo para o convite que faço ao filósofo moral, uma vez que nela também está ausente o outro modo de garantir isso: aquelas garantias “metaeticamente” fundadas numa definição formal e não circunstanceável da bondade ou da correção ou aquelas garantias dadas pelas suposições da racionalidade e da objetividade do domínio normativo alheias à sua prática que qualquer formulação como a minha não pode simplesmente lançar mão (porque afinal a racionalidade e objetividade da normatividade somente podem ser reivindicadas como resultado do que chamei de heurística e pela sua sobrevivência ao ser compartilhada). Um modo de fazer essa explicitação é com uma distinção que Sperber (Sperber:1986, p.46) aponta entre dois tipos de fins que se coordenam muito bem com a distinção entre imperativos categóricos e hipotéticos. De fato, sua distinção entre fins absolutos e relativos é traçada exatamente com a finalidade de abarcar, contrariamente à certa Psicologia e a ainda primitiva inteligência artificial a qual ele menciona (o livro apesar de revisto é obviamente responsivo ao estado de coisas de 30 anos atrás), o caráter habitual e o importante local dos fins relativos que possuem limitantes importantes para sua realização. Tais limitantes podem dizer respeito aos fins absolutos (seu exemplo diz pegar uma presa, ganhar um jogo ou resolver um problema e coaduna-se com a interpretação de Foot dos imperativos categóricos) enquanto outros têm fins relativos (como compreender a si mesmo ou multiplicar sua descendência). Mas esse pode ser o caso da normatividade? Num sentido a motivação pode ser trazida se aceitarmos que em certas situações a normatividade opera da mesma maneira que a evolução e que os seres morais são responsivos a ela de maneira similar onde existe mesmo a possibilidade análoga ao caso da eficiência na comunicação: “efficient information processing may involve formulating and trying to answer new questions despite the extra processing costs incurred” (Sperber:1988, p. 47)? O problema na formulação de Sperber, problema alheio a seus objetivos mas central aos objetivos que proponho em sua relação com a normatividade, é que ele situa a discussão de fins no plano da eficiência comunicativa (passar a mensagem intencionada) enquanto a normatividade deveria explicar casos (e Kant nos fornece vários) em que os custos para o agente são jamais “compensados” e onde qualquer validação naturalista da normatividade que permita dizer, analogamente a comunicação humana que seu fim é um aumento da compreensibilidade do mundo (eficiência) fica dificultada (que o da Ética seja um consequente florescimento, por exemplo). E de fato, poucas noções foram sugeridas nesse sentido e isso talvez por causa do requerimento energético inviavel. Por exemplo: Podemos interpretar que uma delas foi noção de superveniência se esta for compreendida, por meio de suas implicações e não pela sua resumida fraseologia, como um modo de responder ao papel desempenhado pela eficiência no campo do normativo, reinserindo a necessidade num mundo sem causalidade e extrapolando-a ao criar uma ponte entre nossa visão acerca da ação prática e a noção de finalidade. Mas estamos sem ela para poder nos basear. O que fazer? Pensar em ações sem verdadeiras finalidades ou compartimentar o processo heurístico? Pode haver conhecimento do normativo se não há narrativa de vida? A filosofia pareceu responder a isso de modo negativo e essa resposta parece ser ainda mais um aspecto da muralha contra a Sorte: eventos particulares podem ser afetados pela Sorte, mesmo no caso do homem virtuoso que se garantiu uma proteção contra a sorte intrínseca por sua vontade pode vir a ser afetado pelas Parcas mas a vida do homem virtuoso, tomada como um todo não é influenciada pela Sorte e caso o agente seja virtuoso, ele o é por, constantemente e por suas próprias energias, reafirmar-se a cada ato de modo virtuoso. Conhecemos essa noção e ela é quase o mesmo princípio de termos séries de jogos em alguns esportes. Um jogo apenas poderia não apresentar o verdadeiro melhor time, uma vez que esse pode estar num dia de azar (o melhor jogador teve um ataque epilético único, a chuva no campo poderia impossibilitar a tática de jogo) mas uma série de jogos (os Playoffs no basquete americano possuem 7 deles e a noção envolvida com os pontos corridos no futebol é a mesma) revelariam o melhor time. Em Ética, essa noção foi associada e desenvolvida de modo flamboyant. Aristóteles conectou sua visão acerca da ação prática com a felicidade pela compreensão da vida como um processo arquitetônico, ele mesmo com uma finalidade (“o bom viver”), e uma ciência, a Ética, que ensinaria o método desse bom viver por proposições, tais como ‘a virtude é o ponto mediano entre dois vícios’. Desse modo, se a Sorte pode vir a afetar o homem virtuoso em algum particular (fazendo-o perder sua riqueza) mas aquilo que realmente importa e é difícil de ser construído (a sabedoria, o caráter), é alcançado por um processo que pode ser planejado e, ao ser atingido, deixa para trás os anos de ensinamento abertos à Sorte (e mesmo ao erro) e se torna incorruptível. Mas tendo apontado essa ligação proponho revertê-la, pois sustento que a normatividade, tal qual explicitada pelo apelo ao funcionamento da cognição, deve-se reconectar com a motivação sob outra verve e que, como vimos com o carater, há um apelo nessa formulação a estruturas implausíveis que fazem recursos à uma força e a uma energia maior do aquelas disponíveis (daí a força mágica que assume na filosofia moral a universalidade e a superveniência). Afora isso há uma pergunta relacionada porque de sua resposta dependerá qualquer atratividade da presente proposta: há algum modo de dizer que possamos passar sem essa narrativa e sem a quantidade extrema de energia cuja fonte (por exemplo a conexão com a superveniência que, cabe lembrar, é compreendida por alguns, por exemplo por Hare, como sinônima da universalidade) rejeito como implausível? Minha resposta será que, apesar das dificuldades, devemos justamente ficar sem isso de modo a evitar o reino universal da moral que Williams sabiamente mostra queremos ser evitado a qualquer preço (Williams:1981, p.37s) e de modo a chegarmos a uma melhor compreensão de nossa própria cognição que parece ser estritamente contextual e incapaz ou incapaz de na maioria dos casos (e não devemos basear nossas concepções em santos morais) de ser alheia ao particularismo exigido pela concepção de nós mesmos como um sistema natural. Se a perda é grande, a perda em tranquilidade inclusive, um dos ganhos é a possibilidade de reinserirmos no nosso sistema, o que vou chamar de as “válvulas de escape” da moral (akrasia, a falta de motivação e a má-fé) que sempre constituíram aporias para a filosofia moral e, nesse sentido, devemos seguir para o passo final na investigação acerca do assassinato do homem do agente moral deliberativo. Escapando da formulação de Williams em busca de uma radicalização: devemos definir o que é Sorte? “I shall use the notion of ‘luck’ generously, undefined, but, I think, comprehensibly” (Williams,1981, p.22) Temos até aqui seguido essa sugestão de Williams e “generosamente” tomamos Sorte algo como uma noção primitiva e indefinível. Sabemos o que é ou quando ocorre, sem necessidade de nos estendermos no assunto. E de fato a literatura sobre o tema, talvez sobre o impacto da compreensão da sorte como sendo esse bárbaro à fronteira da moralidade apenas balbucia seu nome sem necessidade de algo mais, incentiva tal procedimento sendo especialmente restrita em tentativas de especificar o que é entendido por Sorte O que leva Slote:1994 a afirmar: “clearly the topic has been almost totally neglected throughout the history of ethics”. Outras referências semelhantes em epistemologia nos levam a crer que se trata de uma negligência mais geral.. Se quisermos um exemplo, podemos ir a Statman:1991. Na abertura desse artigo ele produz talvez a mais extrema prova dessa relação conturbada. De fato nela o nome Sorte é jogado de um lado e de outro e a tentativa de defini-la produz na verdade uma definição do que seria a moral (algo relacionado ao que depende de nós e a uma avaliação positiva ou negativa): “Let us start by explaining what we usually mean by the term ‘luck’. Good luck occurs when something good happens to an agent P, its occurrence being beyond P’s control. Similarly, bad luck occurs when something bad happens to an agent P, its occurrence being beyond his control.‘ Thus, moral (good) luck is a case where one’s moral status is positively determined, at least partially, by factors which are beyond one’s control” (Statman:1991, p. 146). Com Statman temos apenas certa hipérbole - pelo ridículo de inserir o que ele crê estar fora da própria filosofia, porque está fora da racionalidade no jogo mais exclusivo ou primeiro da filosofia que seria aquele de definir - dessa tradição que lega a Sorte à indefinibilidade. Recentemente, no entanto, duas obras (Pritchard:2005 e Herscher:1994) procuraram especificar, especialmente do ponto de vista da teoria do conhecimento, o que é Sorte. Pritchard ( 2005, p.125s e 2007 p.279) compartilha essa minha surpresa, com a ausência de literatura sobre o tema em filosofia e aponta certo ceticismo justificável acerca de suas consequências “There is thus a lacuna in the philosophical treatments of issues that turn on the notion of luck and this in itself suffices to cast doubt on the conclusions drawn from such debates” (Pritchard:2004, p.6). para então ir, interessantemente, à Psicologia (Pritchard & Smith:2004) em busca de esclarecimento. Tentativamente podemos iniciar uma definição de Sorte com sua formulação: “An event is lucky iff it obtains in the actual world but does not obtain in a wide class of near-by possible worlds in which the relevant initial conditions for that event are the same as in the actual world” (Pritchard:2007, p. 279). Todavia, essa definição por si só é incapaz de nos ser útil. Ela não filtra suficientemente da forma que como sabemos nossa cognição filtra a realidade e o fenômeno psicológico da ilusão de controle que tratamos acima coaduna com isso: seres humanos não estão propriamente a tratar como Sorte uma série de eventos que claramente desafiam as probabilidades (e são realmente terríveis mesmo com probabilidades básicas que não envolvam nenhum recurso à lógica de mundos possíveis etc). Minha desconfiança é que essa dificuldade de nossa cognição é aparente (o moralista a chamaria de burrice ou a trataria como uma imperfeição de nossa cognição). De fato, ela respeita uma série de limitações de processamento e essas limitações não são sem mais mas dizem respeito à economia energética de nossas mentes (não há motivo em raciocinar demais sobre coisas vãs) e a seu caráter contextual (essa relação com uma probabilidade pura é inteiramente inútil nos contextos evolutivos que pressionaram e moldaram a evolução de nossas mentes). E, de fato, à essa definição Pritchard vai anexar uma condição importante e que se adapta a essa compreensão, que é aquela de significância do evento para o agente: “We thus need a second condition that captures the ‘significance’ element of luck. Here is one possible formulation: If an outcome is lucky, then it is an outcome that is significant to the agent concerned” (Pritchard:2004, p. 18). As implicações desse adendo são vastas. Ela implica que a Sorte diz respeito a seres sencientes (no sentido de que pedras e raios por si só não podem ser sortudos ou azarados) e mais importante, ela aplaca o determinista ao eliminar a referência a uma cadeia causal necessária que vem desde o início do universo. Com a inserção da significância, fica circunscrito que a Sorte diz respeito a uma escala próxima àquela dos seres humanos e das coisas vivas em geral e que sua “temporalidade” diz respeito não ao início dos tempos e sim ao momento circunscrito pela condição de significância: que pode variar de poucos segundos (a Sorte envolvida em ter escapado de ter sido atingido por um carro no último instante) a algo mais longo que poderia envolver alguns anos (por exemplo, a Sorte ou o azar, tão repetidos por aqueles de espírito fin-de-siécle, de viver nessa ou naquela época). Acredito que essa compreensão se adapta aos casos que temos em Ética, a noção de plano de vida como racionalizadora e moralizadora de nós mesmos, parece usar uma versão distendida e apelar (e vejo nisso um de seus defeitos) à noção de que seríamos capazes de uma abstração reflexiva, que é aquela de considerar nossas vidas como um todo de modo a escapar da Sorte. Mas como essa noção de significância pode ser inserida? “The mere fact that some odd event has obtained which would not obtain in a wide class of relevant near-by possible worlds would not normally be sufficient for us to count it as lucky, since it may be an event that is of no significance to us (think, e.g., of something strange that is happening right now on one of Saturn's moons)”. Pritchard:2007, p. 279. Concordo com essa especificação de que os anéis de saturno não estão na órbita do presente artigo nem, pace a astrologia, na órbita de nossas vidas éticas. Assim, há um aspecto “intuitivo” relacionado a essa inserção. Ao menos que você tenha algum interesse no evento – o que cobre a astrologia e aqueles que recorrem a ela para se guiar em suas ações No sentido de que determinada posição de Saturno, torna-se significativa caso esteja preocupado com aspectos financeiros de minha vida. Assim, um evento realmente determinístico – a órbita do planeta – é transtornado e significado e sua posição – que não viola o princípio probabilístico da definição pura de Sorte – é, no entanto, compreendido como relacionado como Sorte, provando o ponto de que ela diz respeito a um para nós e não a uma Sorte pura. – não faz muito sentido apontar a presença ou ausência de Sorte. De fato, trata-se de uma platitude que apenas a ausência de tratamento filosófico do assunto poderia ter deixado escapar. Esse segundo elemento também permite um importante elemento para o ponto de vista de sua aplicação na Ética, que é seu aspecto polarizado, condizente com o modo que intuitivamente é compreendida. Assim, o azar e a fortuna ocupam um local nessa definição do mesmo modo que ocupam um local em nossas vidas. Nesse sentido, podemos concluir com Pritchard: “The type of luck, and its very existence from that agent’s point of view, thus depends upon the significance that the agent attaches to the event in question” (Pritchard:2004, p. 19). Mas há uma série de elementos ainda ausentes dessa definição, mesmo com a adição do princípio de significância. A meu ver algo que ainda falta explicitar, e sua obviedade para muitos de nós não é motivo para não acrescentar algumas linhas nesse sentido, é o caráter estritamente contextual desse fenômeno. No malfadado exemplo do motorista bêbado Em que não sei se há Sorte propriamente por ferir a primeira condição da Sorte mesmo do ponto de vista do agente que, se perguntado poderia “confessar”, como de fato confessam nessas sinistras entrevistas imediatamente posteriores ao acidente que vinculam na televisão sua percepção de que esse mesmo evento poderia ocorrer com alta probabilidade. isso poderia ser indicado, se supomos que é relacionado com a Sorte, como o aspecto de que ela intervém com aquele motorista em particular dirigindo de maneira errada (e um valor da presente discussão é que a inserção da Sorte na ética não torna paradoxal esse tipo de sentença e anula essa covardia que esteve presente no sistema judicial brasileiro, que é a de não ver necessariamente dolo e intenção nesses casos porque o motorista não estaria sob controle de si mesmo). Assim, temos que nesse sentido a Sorte moral é “moral” porque se adapta justamente a esse aspecto contextual em outra semelhança que gostaria que conservássemos em nossas mentes. De qualquer maneira, Pritchard faz uma sugestão que ele não indica como uma compreensão desse aspecto contextual (que me parece lhe escapar talvez porque a compreendeu como óbvia) mas que apela a uma noção que quero ressaltar: “That is, a car accident which the agent survives—an event in which luck is involved and which is regarded by the agent in a negative fashion—will tend to be regarded as an instance of bad luck, but this type of luck ascription can be altered if the conversational context encourages the agent to focus on a counterfactual alternative that is even worse, such as a car accident in which the agent dies. Similar remarks will apply to ascriptions of good luck. So the presence of luck will (…) tend to covary in line with whether or not the event is (respectively) regarded negatively or positively, this account can allow for those cases in which ‘negative’ events are viewed positively (and vice versa), because of the specific counterfactual comparison that is at issue in that conversational context” (Pritchard:2004, p.19). Gostaria de analisar essa passagem de modo a concluir essa seção e irmos a uma analogia que creio esclarescedora que é aquela com a epistemologia. Um elemento importante é o aspecto que a Sorte se relaciona, como a Ética, à imaginação. Isso nos permite apontar outro elemento que chamarei de irmandade entre esses dois fenômenos: Sorte e Ética. Mesmo que sejamos profundamente incapazes de operar essa imaginação do modo correto pois como veremos a imaginação respeitando os limites energéticos da cognição em geral, opera de modo econômico, evitando desdobramentos que seriam óbvios devido aos custos de que seu aponte implicam e nesse sentido, condições ceteribum paribus são sempre subsumidas e nunca realmente tratadas. Mas talvez o mais importante aqui seja que o elemento contextual presente opera sob a mesma égide que o sistema de razões. Apesar de poder ser captado de modos distintos, gosto da formulação de Dancy:2004 (especialmente no seu capítulo 3), que a denomina “modelo de escala de cozinha”. Nele, contrariamente à formulação do moralista, as razões morais não se apresentam de modo fixo e não polarizado de antemão ao contexto ou a sua aplicação contextual. O que isso confirma, e desculpe essa quase tara por apontar isso, é que, do mesmo modo, a Sorte e as razões são moralizadas em nossas vidas por um processo adicionador que a meu ver somente pode ser compreendido com o recurso ao nosso processo cognitivo que enriquece (e a analogia de Mikhail:2011 com a discussão chomskiana em torno da pobreza do estimulo serve ao mesmo resultado) a “realidade” e, no presente caso, enriquece a Sorte com a condição de significância que passou despercebida repetidas vezes aos filósofos. Mas quais as vantagens desse esforço de definição? Temos que ser cuidadosos nesse sentido. Especialmente porque muitos desses desenvolvimentos são realizados com o caso epistêmico em mente e uma dissonância entre os dois é o papel do controle. A formulação de Pritchard se sustenta, porque está a pensar numa forma de resposta aos ceticismos derivados da formulação de Gettier que controle ("control over events is thus a good determinant of whether or not luck is involved” Pritchard:2004, p.19) é um indício de Sorte, quando sabemos, especialmente após nossa breve incursão às formulações de Langer, no que se refere à normatividade, que nossas mentes operam mais indefinidamente nesse aspecto. De fato a formulação de Nagel serve para direcionar nossa atenção a como essa impureza de tomar Sorte e controle como associados é importante para a definição do conceito em Ética, mesmo que deva ser proscrita, se nosso interesse é outro, como o caso de Pritchard e da epistemologia. Diz Nagel: “Where a significant aspect of what someone does depends on factors beyond his control, yet we continue to treat him in that respect as an objetct of moral judgment, it can be called moral luck” (Nagel:1979, p. 25). Assim, a relação com o controle, que é uma indefinição da Sorte do ponto de vista epistemológico, não é alheia por si só ao fenômeno da Sorte no que nos interessa. Poderíamos contabilizar essas impurezas no que Pritchard chama de “vagueza inerente” do fenômeno Sorte. Essa vagueza aponta algo de importante por sua similitude, e veremos que é um caso de semelhança de família, com a própria normatividade, mas ela também indica que devemos ser cuidadosos. Mas agora gostaria de fazer um detour observando em condições absolutamente formais e quiçá controláveis – a questão da Sorte em outro campo da filosofia, que é aquele da epistemologia e mais exatamente na esperança que o epistemólogo tem de que as proposições científicas apresentariam uma marca de autenticidade quando não relacionadas com a Sorte e que, quando relacionadas a esta, teriam claros indícios dessa contaminação. Minha “esperança obviamente e neutra frente ao anseio do epistemólogo e diz respeito apenas a possibilidade de que essa incursão nos provenha alguns esclarecimentos quanto à relação da Sorte com a Ética. Uma analogia: Interpretando o paradoxo de Gettier como relacionado à Sorte “Both knowledge and necessity exclude luck” Roy Sorensen “Formal Problems About Knowledge” Apesar de menos famosa, há uma discussão acerca do papel da Sorte no nosso conhecimento, análoga à discussão que temos acompanhado em Ética. Lá, como aqui, e a citação de Sorensen foi escolhida apenas porque fornece o que estaria nessa junção de modo abreviado, a Sorte é vista como inimiga e como uma inimiga que seria consensual. Riggs afirma por exemplo: “After all, the immunity-from-luck requirement is virtually the only thing in the theory of knowledge about which we can claim consensus” (Riggs:2007, p.330). Mas, de fato, a discussão acerca da Sorte moral parece ter fornecido o empurrão final para a interpretação de uma das consequências da formulação de Gettier contra a visão tripartide tradicional sobre o conhecimento como crença verdadeira: “…justification and knowledge must somehow not depend on coincidence or luck. This was just the point of the Gettier counter-examples; nothing in the tripartite definition excluded knowledge by luck” (Dancy:1985, p.134). Assim uma analogia entre Sorte moral e a Sorte epistêmica pode ser útil. Mas como estabelecê-la? Parece claro que a preocupação com a Sorte no que diz respeito ao conhecimento diz respeito a um elemento comum com sua preocupação na moralidade, que é o relacionado com as tópicas da justificação, apesar de o caso contra a Sorte na moralidade parecer afetar um número maior de aspectos. Isso no sentido de que o epistemólogo pode se contentar, por exemplo, em aceitar o efeito eureka Pritchard analisa esse tipo de caso (usando o exemplo de Nozick acerca do ladrão de banco identificado como sendo Jesse James porque sua mascara caiu) e nomeia-o como sorte evidencial em seu Pritchard:2005, p.136. Riggs:2007 aponta como o epistemólogo pode aceitar uma compreensão de graus de Sorte e se preocupar mais em distinguir e classificar aqueles tipos de Sorte aceitáveis e aqueles não aceitáveis para o apontamento de crenças verdadeiras. e supor esse efeito como relacionado à sorte no que o moralista parece necessariamente necessitar adotar postura mais comedida pensando que se, por exemplo, algum bem é dado ao agente não por seu esforço ou motivação mas por pura Sorte, esse bem não seria propriamente moral. Essa divergência quanto ao local da Sorte possui duas implicações. Uma delas é o ceticismo do epistemólogo quanto à Sorte moral. Trata-se de um ceticismo extremamente aparente na literatura sobre o tema com uma série de avaliações, especialmente baseadas no artigo de Nagel que estabelece uma analogia com o conhecimento para explicitar a Sorte moral, que negam a existência do fenômeno que estou descrevendo. A segunda implicação diz respeito à possibilidade de circunscrever o domínio da Sorte epistêmica como aquele relativo à verdade da crença. É nesse sentido que Pritchard compartimenta os locais e impactos da sorte no conhecimento: “Luck only undermines knowledge when it impacts directly on the truth of the belief in question; luck in the mere ‘initial conditions’ for knowledge is not by itself knowledge undermining” (Pritchard:2006). Interpretado no interior dessa compartimentação o exemplo de Gettier sobre a crença verdadeira baseada no relógio parado e outras diatribes da Sorte geraram uma imensa literatura, visando justamente à defesa contra a Sorte baseada em noções de salvaguarda (Ernest Sosa) e sensitividade (Dretske e Nozick) e, até mesmo, com Greco e com Riggs a formulaçao, pré-crise financeira mundial, quase monetária de crédito (“a sorte corroí o credito dado à verdade” na expressão de Riggs) para a formulação ou para a circunscrição do que seria uma crença verdadeira e de quando ela seria ilegítima por ser afetada pela sorte. Mas por que esse mesmo fenômeno de busca de defesa contra a Sorte na epistemologia? O tipo de conforto que Williams aponta como um dos motivos do kantismo (“kantianism is only superficially repulsive – despite appearance, it offers an inducement, solace to a sense of the world’s unfairness” Williams:1981, p.21) parece não ser o motivador aqui e talvez a melhor pergunta seria: trata-se de uma característica da filosofia esse escapar e se defender contra a Sorte? Mas, por mais interessante que essa pergunta seja, ela parece irremediavelmente irrespondível, ainda mais se acreditarmos em Riggs:2007: “almost no one is asking why it matters so much that knowledge be immune from luck in the first place”. Nesse sentido, apontado esse aspecto comum de defesa contra a Sorte na epistemologia e na filosofia moral, podemos procurar de maneira mais proveitosa o que haveria de comum entre essas duas que implicaria nessa preocupação com a Sorte. Riggs sugere que a noção de realização justifica na epistemologia a defesa contra sorte: “If so, what difference does it make whether our proficiency at producing such results is due to luck or not? (…) I think the best answer to this question is that luck matters because knowing is an accomplishment. It is something that one deserves credit for” (Riggs:2007, p. 330-1). Seria esse o ponto comum com a moralidade? Apenas essa defesa de nossas realizações e do crédito que ganhamos com ela? Retomando à definição de Sorte Esse detour na epistemologia esclarece os seguintes pontos úteis para a compreensão da relação Sorte e Ética: - O fenômeno da Sorte na Ética apresenta aspectos únicos Na nota final de seu artigo, Williams já apontava que as formas do ceticismo nas duas áreas são completamente diversas “the path taken by scepticism from these similar starting points, and its eventual effectiveness, seem to me very different in the two cases” (Williams:1981, p.39 nota 13). e sua desconsideração está na base da sua rejeição por parte do interessado em outras áreas e daí também os problemas que vejo na formulação de Nagel que se baseia numa analogia com a epistemologia e minha priorização da formulação de Williams. - Nesse sentido, a Ética deve retomar o que Aristóteles já apontava no momento de sua fundação com a noção que poderíamos chamar de marca do homem educado: “It is a mark of the educated man and a proof of his culture that in every subject he looks for only so much precision as its nature permits” (NE 1094b). - A forma como o ceticismo assume na epistemologia implica uma ponte, não investigada aqui, com a normatividade e com a Ética no que acredito podermos confirmar nossa compreensão de que a Ética diz respeito a outra forma de conhecimento diversa da ciência (por ser informal). Nesse sentido, a compreensão da normatividade como uma forma de interação provê o modo correto de acessá-la (com o decorrente esforço de eliminarmos aquelas equivocadas metáforas que veem a Ética e a normatividade como um puro acesso sensorial a elementos da realidade) no que me diferencio de Nagel que afirma: “The inclusion of consequences in the conception of what we have done is an acknowledgment that we are parts of the world, but the paradoxical character of moral luck which emerges from this acknowledgement shows that we are unable to operate with such a view, for it leaves us with no one to be” (Nagel in Statman:1993, p.69). Contrariamente, uma definição de Sorte esclarecida nos limites que estabeleci como úteis estabelece que, para a compreensão desse fenômeno na moral, ele diz respeito não tanto à probabilidade de recorrência de um evento tomada indiferentemente ao seu contexto mas, pelo contrário, diz respeito tão somente àqueles eventos que, afetando os agentes de modo externo (quando afetado por eventos no mundo que não foram tidos como relevantes ou que não foram estabelecidos como razões a serem consideradas no momento de tomada da decisão) e de modo interno (quando o agente é incapaz de sustentar pelo tempo necessário e com o afinco devido o fluxo motivacional que seu aparato cognitivo estabeleceu e reservou respeitando os princípios relacionados à economia energética), transtornam o curso de ação, escapando daquilo que foi visto, real ou aparentemente, como estando sob o controle do agente. A essa definição é necessário anexar duas cláusulas importantes: - Quanto mais extensa e dilatada no tempo é a ação maior sua relação com a Sorte; - Não há garantia de que a força estabelecida pelo processo cognitivo como necessária é existente ou será disponível e nesse sentido que toda ação está sob o signo da Sorte intrínseca (e a ilusão de controle apenas vem a aprofundar esse dilema). Com essa formulação em mente, o passo seguinte é investigar a profunda semelhança e encaixe que vejo e tenho mostrado existir entre Sorte e Ética extremando a diferença frente à Nagel e apontando que é apenas porque ficamos em algum lugar nesse cenário de incerteza que somos o que somos. Mas há uma passagem do texto de Williams que gostaria de deixar em nossas mentes porque a creio “vacinada” contra o que poderíamos chamar de formalismo da definição da sorte aqui apontada. Essa passagem está no exemplo de Anna Karenina: “It would have been an intrinsic failure, also, if Vronsky had actually committed suicide. It would not have been that, but rather an extrinsic misfortune, if Vronsky had been accidentally killed. Though her project would have been at an end, it would not have failed as it does fail” (Williams:1981, p. 27). Aqui estão presentes as mesmas distinções quanto à Sorte que venho traçando aqui. Ele apenas não as está tornando explícitas nem as formalizando com uma separação frente à tópica do controle que tanto venho insistindo. Voltando à Ética: uma visão da irmandade entre Sorte e Ética consequente ao seu esclarecimento “It is always by favour of Nature that one knows something” Wittgenstein, On Certainty, Prop. 505. Tendo especificado o que é Sorte, encontramos uma visão da irmandade daquilo que está em sua base e daquilo que está na base da Ética. A tarefa explanatória da Ética não é propriamente relacionada ao voluntário ou à motivação e isso é confirmado pela noção, forçosa com a sorte, de que o voluntário não cria uma distinção útil enquanto fundadora de uma disciplina. Afora isso a motivação é explicitada não com o recurso a algum aspecto mágico que dá força moral às nossas ações tal como a filosofia moral tratou com essa figura, uma espécie de alquimista, que é o agente deliberativo. Resumindo, com a sorte fica escancarado que não é possível situar a Ética nesse tripé que tem o agente deliberativo em seu centro como um verdadeiro mágico a gerar a demanda energética necessária para fazer a vinculação entre crenças e desejos. Diferentemente, a motivação deve ser explicitada com o recurso a uma visão de nossa cognição. Isso porque é nela, e a sorte nos guiou para tal quando foi compreendida como pertencendo juntamente com a normatividade a esse elemento nuclear da Ética, que encontramos sua origem e nesse sentido uma das consequência da irmandade entre Sorte e Ética é que a defesa contra a Sorte pela filosofia moral assume o caráter paradoxal de uma defesa contra algo que constitui a si mesma se propriamente compreendida: o mecanismo cognitivo que funda a Ética é ele mesmo relacionado à Sorte e é a operação desse mecanismo que é a diferença específica que deve fundar essa disciplina. Fica assim estabelecido um primeiro resultado: é porque (e isso fundamenta uma justificativa naturalística) somos como somos que existe sorte e ética. Essa visão da Ética como teoria da cognição dos atos que relevamos (e não das leis morais que revelamos) e, usando o vocabulário da definição da Sorte, dos eventos significativos para nós (e não simplesmente daquilo que depende de nós) fica mais clara com uma distinção entre o que poderíamos chamar de sorte total e aquilo que nos interessa que é a sorte relativa a nós. Na noção de sorte relativa à nós que se diferencia pela condição de significância apresentada acima já está claro esse interesse e aqui apenas quero aprofundá-lo no que ele esclarece a irmandade que tenho apontado. Se o que era apontado por Williams dizia respeito a como existem consequências moralmente relevantes relacionadas com a sorte que minariam nossa concepção de responsabilidade moral atacando uma das bases fundamentais da filosofia moral que é aquela relacionada à deliberação, com o apontamento da irmandade entre sorte e ética que temos traçado aqui isso é aprofundado. Aprofundado no sentido de que não é devido a uma característica perversa do nosso mundo, evitável ou superável no reino da pura moralidade ou da moralidade universal para usar os termos de seus defensores, que somos “reféns” da Sorte em nossas ações. E não é também, se quisermos usar ainda o vocabulário do filosofo moral, porque “infelizmente” somos “seres limitados” em nossas capacidades. Com a irmandade da Sorte e da Ética, alcançamos um local para pensarmos que aquilo que propicia a normatividade, a capacidade cognitiva de relevarmos determinados aspectos do mundo, o que chamamos de motivos ou razões, é relacionado e responsivos com as incertezas do mundo que pomos sob o guarda-chuva, mesmo que agora muito mais especificado do que na discussão originaria em Williams e Nagel, de sorte. Assim há uma intrinsicalidade da relação entre Sorte e Ética e essa relação deve ser vista de um modo extremamente radical próprio aos presentes esclarecimentos. E como esse esclarecimento radicaliza a visão de Williams? Acredito que a resposta é clara. Trata-se de nossa constituição e da constituição daquilo que mais prezamos em nós, nossa cognição - afinal é ela que fornece-nos razões e motivos - que circunscrevendo uma irmandade entre Sorte e Ética, deve radicalizar a visão de Williams. Nesse sentido constitutivo podemos entender a afirmação de Wittgenstein - “It is always by favour of Nature that one knows something” – e amplia-la: é por um favor da natureza que moralizamos. É por sermos esse animal que somos que valoramos o que valoramos porque escolhemos sempre de modo parcial o que nos guiara e nossas decisões estão sempre na corda bamba que o moralista acreditando inviável acaba por ridicularizar sem perceber que o que ridiculariza é o que em primeiro lugar permitiu o certo e o errado e o bom e mau. É porque nossas mentes funcionam como funcionam que valoramos – ou seja, na diversidade das possibilidades que se apresentam, tomamos determinados aspectos como traços que nos dizem respeito, relevando-os e tornando-os razões – ou não o que valoramos. Esse aspecto em nós é nele mesmo relacionado à Sorte, seja ela compreendida de modo puro, afinal podemos pensar que, na maioria dos mundos possíveis, não seriam necessárias muitas alterações para que tivéssemos outro quadro cognitivo, seja ela compreendida como um para nós. Por exemplo, do ponto de vista dos indivíduos é importante que esse evento, esse molde da natureza, se realize como o é e nos torne seres éticos ou normativos, capazes de apontar o que apontamos como relevante: os bens e o que em geral tomamos como precioso em nossas vidas. Mas é justamente esse naturalismo, esse quase fatalismo de ver um provisionamento da natureza que instaura algo que cremos tão central em nós mesmos e que gostaríamos de crer como um esforço controlado por nós, que estabelece os limites para nossa Sorte, e também para a Ética, do quão para nós é esse fenômeno. Sendo um modo de nosso funcionamento, ele define o que somos. Desse modo, os resultados importantes das discussões em torno da objetividade de nossos valores, sua universalidade etc foram perdidos porque seu caminho foi impedido pelo que revelou ser a Sorte e seu local dentro da muralha erguida à sua revelia. Mas, apesar de fechado esse caminho, os resultados não nos são bloqueados para sempre. Eles apenas exigem outro tipo de investigação, uma investigação naturalista, sobre o que somos e sobre o que há em nós de mais importante no que diz respeito à normatividade, que é a cognição. Nesse sentido a Sorte não é propriamente uma arma cética, diferentemente do que Williams dá a entender no fechamento de seu artigo, que mostra o que seria o bom viver, que não é aquele do cético, apontando-a contra o crente moralista. Seu melhor uso é aquele que esclarece a profunda dimensão de “para nós” que a Sorte compartilha com a normatividade apenas para, no momento que aprofunda essa dimensão, nos fornecer uma visão mais rica de nós mesmos e uma visão que, aí sim, estabeleça de modo mais crível o porquê temos a Sorte de sermos seres normativos. Williams receava que “scepticism about the freedom of morality from luck cannot leave the concept of morality where it was” e o movendo deixávamos de ser o que somos. Esse receio é verdadeiro se prezamos aquele conceito de moralidade como um instantâneo de nós. O que, para nossa sorte, ele não é. E não somente a filosofia moral deve ser vista como uma instituição peculiaríssima como se devem prover os remédios para sua eliminação, num sentido mais radical que o de Williams. Em Williams, e em Nagel, persiste a visão de que a sorte mantém com a Ética e a normatividade uma relação algo como a de uma “externalidade”. Em Nagel, por exemplo, os dois motoristas bêbados são distintos pela forma que o mundo cruza suas vidas, numa inversão dos eventos de certa crueldade frente ao pedestre morto. A extensão que Nagel propõe apontando a generalidade dessa possibilidade, ou seja, o como a sorte E poderíamos questionar se o exemplo do motorista bêbado diz respeito à Sorte. Pritchard:2004 p.22 elabora esse ponto: “one consequence of this characterization of luck is that the drunk driver in the example who manages to make it home safely is not (contra Nagel) thereby lucky (at least pending further details about the scenario), though he may well be fortunate”. se relaciona com as consequências de todas as nossas ações uma vez que seja lá o que fizermos ou que decisão tomemos – sermos responsáveis e não bebermos ou sermos irresponsáveis e bebermos – sempre existe a possibilidade de que a cadeia de eventos ocorra de modo diferente, apenas aprofunda o externalismo da discussão acerca da sorte. Ela nunca é vista como estou a apontar como um aspecto relacionado a nós mesmos e em comunhão com a própria possibilidade da normatividade que, insisto, diz respeito ao relevar determinados desses traços do mundo. A polarização da Sorte por si só deveria ter saltado aos olhos de qualquer interessado no fenômeno relacionado a algo de comum que tenho apontado como essa estrutura cognitiva, sensível aos “imperativos” da Ética e da Sorte. O modo como isso é capturado no caso da Sorte (no caso da Ética esse elemento é sua própria razão de ser) foi dada pela inserção do requisito de significação que estabelece um para nós eliminando do cenário aquelas discussões de cunho determinista que ontologizando a questão da Sorte acabam por a perder tal qual o fazem na Ética. Nesse sentido, o projeto de compreensão que defendo para a normatividade coloca essa noção de Wittgenstein de que, “It is always by favour of Nature that one knows something”, num primeiro plano que nos obriga a lidar com bêbados e com a ética de maneira menos fatalista como explicitarei na sequência. Conclusão A irmandade da Sorte e da Ética atinge então um ápice na concepção (que podemos nos sentir mais ou menos confortáveis pela aceitação ou não) de que o agente deliberativo é um cadáver e talvez, repito, essa aceitação é mais fácil se compreendermos esse agente pelo que ele realmente é: apenas uma hipotética descrição do que seríamos nós e não nós mesmos. Nesse novo retrato, tirado com uma emulsão menos clara em nos relacionar com os deuses (e a própria palavra teoria não vem desse desejo?) porém mais clara em nos associar com o resto do mundo natural, uma coisa fica menos nítida e uma mais. A perda em nitidez, aquela relacionada ao “voluntário”, é justificada apontando-se que não é o que realmente importa do ponto de vista de uma compreensão de nós como seres normativos. Mais ainda ela não é apenas justificada como é compensada pelo que se ganha em nitidez em outro ponto: de que o que realmente importa é o modo, comum à Sorte e à Ética, com que tratamos esses fenômenos do ponto de vista cognitivo. Tendo partido da formulação de Williams procurei um aprofundamento. Aprofundamento de suas conclusões (com a especificação do que apontei como o assassinato do agente deliberativo) e do local que ele cria apontar para a Sorte e que creio ainda se pautar por uma externalidade. Externalidade porque tanto a discussão de Williams como aquela de Nagel ainda apontam a Sorte do modo como a filosofia moral tradicional a viu, como um dilema de nosso mundo a ser resolvido pelo império da pura moralidade e a ser instaurado pelo puro agente racional. Ora, se Williams expressa seu ceticismo quanto a esse império, no que o sigo inteiramente, ele não percebe que, mesmo como um ideal, esse império é implausível. A cognição dos agentes racionais é possível porque esse traço tão explorado, sua racionalidade, somente é plausível se o compreendermos como um aspecto de nossa cognição e, explorando isso genealógica ou constitutivamente, essa cognição deve ser compreendida como apenas sendo possível como uma forma como nós humanos, e talvez alguns outros animais, interagimos com essa externalidade. Nessa interação, constitui-se essa parte higienicamente mínima de nós que chamamos “eu” e, nesse sentido, a Sorte está em nós mesmos e não é um mero sinônimo de acidental Pritchard fornece um bom exemplo acerca dessa distinção no caso do apostador que compra um bilhete de loteria escolhendo seus números favoritos como um caso em que essa distinção entre Sorte e acidente se faz presente. Ver Pritchard:2004, p.5. E essa distinção parece corresponder a algo em nossa cognição, como vimos na tópica da ilusão de controle.. Bibliografia Bibliografia Agamben, G. 2004. Homo Sacer. Belo Horizonte, Editora da UFMG. 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