Anais Eletrônicos
Vol. I
Simpósios Temáticos:
01 - Culturas, poderes e trabalhos no Brasil nos séculos XVIII e XIX
02 - Família e História: perspectivas e abordagens
03 - História da Historiografia e Teoria da História
Belo Horizonte
2012
1
Organizadores
Ana Marília Carneiro
Fabrício Vinhas Manini Angelo
Gabriel da Costa Avila
Mariana de Moraes Silveira
Mariana Sousa Bracarense
Raul Amaro de Oliveira Lanari
Warley Alves Gomes
Anais Eletrônicos do I Encontro de Pesquisa
em História da UFMG – I Ephis:
Volume I
1ª edição
ISBN: 978-85-62707-34-6
Belo Horizonte
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – FAFICH / UFMG
2012
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
2
I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – I Ephis
23, 24 e 25 de maio de 2012
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - Fafich
Reitor
Clélio Campolina Diniz
Vice-reitor
Rocksane de Carvalho Norton
Diretor da Fafich
Jorge Alexandre Barbosa Neves
Vice-diretor
Mauro Lúcio Leitão Condé
Chefe do Departamento
Cristina Campolina
Coordenadora do Colegiado de Graduação
Adriana Romeiro
Subcoordenador do Colegiado de Graduação
Luiz Duarte Haele Arnaut
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em História
Kátia Gerab Baggio
Subcoordenador do Programa de Pós-Graduação em História
José Newton Coelho Meneses
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
3
Realização
Programa de Pós-Graduação em História da UFMG –
PPGHIS
Comissão Organizadora
Ana Marília Carneiro (mestranda,UFMG)
Fabrício Vinhas Manini Angelo (mestrando, UFMG)
Gabriel da Costa Ávila (doutorando, UFMG)
Mariana de Moraes Silveira (mestranda, UFMG)
Mariana Sousa Bracarense (mestranda, UFMG)
Raul Amaro de Oliveira Lanari (doutorando, UFMG)
Warley Alves Gomes (mestrando, UFMG)
Design Gráfico
Débora Lemos
Apoio
Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – FAFICH
Programa de Pós Graduação em História da UFMG –
PPGHIS
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
4
Índice
Anais Eletrônicos Vol. I
Apresentação....................................................................................................................................... .. 07
Simpósio Temático 01: Culturas, poderes e trabalhos no Brasil nos
Séculos XVIII e XIX.......................................................................................................................... .. 08
Segurança, economia e moralidade: as fugas de escravos em Minas Gerais e São Paulo (1871 –
1888)
Adriano Soares Rodrigues............................................................................................................................. ...08
Entre datas e festejos: a emancipação de Montes Claros e a polêmica do “3 de Julho”
Aparecido Pereira Cardoso e Cristiane Aparecida Nunes Oliveira........................................ ..23
A inserção política dos intelectuais românticos e o debate sobre a escravidão e a
força de trabalho: o caso de Francisco de Salles Torres Homem (1831-1839)
Bruno Silveira Paiva......................................................................................................................................... ...32
Cartografia do distrito diamantino: as representações do espaço de extração
e dominação
Carmem Marques Rodrigues...........................................................................................................................48
Das teias de traições ao desejo local de reconhecimento pela Coroa Portuguesa nas
Inconfidências Mineiras
Cleidimar Rodrigues de Sousa Lima............................................................................................................61
Traços da mineiridade: influência nas atividades econômicas dos séculos XVIII e XIX
Daniela Almeida Raposo Torres e Paula Belgo Moraes.......................................................... .........71
Labor mecânico: oficiais mecânicos arrematantes de obras junto ao Senado da Câmara de
Mariana, século XVIII
Danielle de Fátima Eugênio..............................................................................................................................87
Higiene, Controle e Disciplina no Asilo de Meninos Desvalidos - Rio de Janeiro
(1875-1894)
Eduardo Nunes Alvares Pavão........................................................................................................... ............97
Súplicas, suplicantes e suplicados: a relação e concepção do trabalho dos (des)empregados
imigrantes ao longo do segundo reinado (1840-1889)
Elizabeth Albernaz Machado Franklin de Sant’ Anna e Marconni Marotta.......... .............107
“Matei e não me arrependo”: a libertação antecipada em Itajubá pelo soslaio cativo
Fábio Francisco de Almeida Castilho............................................................................................. .............118
Vivendo da arte mecânica: a importância social dos artífices em Mariana no
século XVIII
Fabrício Luiz Pereira............................................................................................................................... .............134
Formação militar e “amparo aos desvalidos” na Companhia de Aprendizes Militares de
Minas Gerais (1876-1891)
Felipe Osvaldo Guimarães.................................................................................................................. ...............145
Uma proposta comparativista no estudo da apropriação do Ideário Liberal durante o II
Reinado (1831-1842/ 1871-1888)
Glauber Miranda Florindo.................................................................................................................................155
Aprendendo o ofício da pintura em Minas Gerais (século XVIII e XIX); mestres, aprendizes e
escravos
Hudson Lucas Marques Martins....................................................................................................................163
Vadiagem, civilidade e crime: a casa de detenção como espaço educacional (1870-1880)
Jailton Alves de Oliveira............................................................................................................ ........................178
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
5
A evolução econômica regional e o papel dos imigrantes na zona da Mata mineira: o caso de
Juiz de Fora no século XIX
Joanna Darc de Mello Croce e Marcus Antônio Croce........................................................ .............194
O Mundo da Justiça no Império Português: Um Estudo Sobre os Pareceres Jurídicos de
Tomás Antônio Gonzaga.
Larissa Cardoso Fagundes Mendes................................................................................................ ....220
Na esteia de um regressismo conservador: Joaquim José Rodrigues Torres e a presidência da
província do Rio de Janeiro (1834-1836)
Lívia Beatriz da Conceição................................................................................................................ ................229
A “Facção Áulica” e seus posicionamentos sobre a escravidão e a força de trabalho na
imprensa periódica do Rio de Janeiro (1832-1834)
Lucas Eduardo Pereira Silva............................................................................................................ ................246
Paulo Rodrigues Durão: atuações e redes relacionais de um camarista de Vila do Carmo na
primeira metade do setecentos mineiro
Lucas Moraes Souza.............................................................................................................................. ................262
Categorias, anúncios e imagens: o negro no Brasil ao final dos oitocentos
Luiz Gustavo Vieira Santos............................................................................................................. .................277
Ferreiros, Mestres de Forja, Fabricantes de ferro, engenheiros, operários: considerações sobre
o trabalho e a história social dos trabalhadores em metais em Minas Gerais e Rio de Janeiro
(1812-1900)
Marcus Vinícius Duque Neves........................................................................................................ ................293
Além das Senzalas: “amizades e legados”
Roseli dos Santos.................................................................................................................................... ................310
Simpósio Temático 02: Família e História: perspectivas e abordagens............ ... .324
A mãe de família: construção de um ideal no jornal O Sexo Feminino
Bárbara Figueiredo Souto................................................................................................................ ...................324
“Desejando deixar por socorridos por sua morte”:
Famílias de padres: o caso do Vigário João da Costa Guimarães (1819-1836)
Edriana Aparecida Nolasco......................................................................................................... .....................331
Memórias, vestígios e trajetórias que compõem a história de famílias cativas em Conceição
dos Ouros Sul de Minas Gerais
Elizabete Maria Espíndola e Viviane Tamíris Pereira..................................................... ...............347
Reprodução natural e população escrava de Piranga na segunda metade do
Oitocentos
Guilherme Augusto do Nascimento e Silva............................................................................... ..............362
Paulistas e Emboabas: quando se tornaram mineiros?
Isaac Cassemiro Ribeiro....................................................................................................................... .............378
Bigamia e nulidade de casamento no Brasil do século XIX
Isabela Guimarães Rabelo do Amaral........................................................................................... .............393
A conformação da elite marianense e sua relação com a força armada particular:
1707-1736
Izabella Fátima Oliveira de Sales.................................................................................................... .............405
Estrutura de Posse de Escravos e Família Escrava nos Plantéis de Guarapiranga: composição
dos plantéis e transferências inter-parentela (1807-1885)
Lucilene Macedo da Costa e Tiago Pereira Leal...................................................................... .............419
Expostos: das estruturas domiciliares à representação social – Mariana, 1737 – 1828
Nicole de Oliveira Alves Damasceno...........................................................................................................435
Parentelas de Forros: A constituição familiar entre os alforriados
Mariana (1727-1838)
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
6
Rogéria Cristina Alves.......................................................................................................................... ...............448
Redes de sociabilidades da Família Ferreira Lage: a formação da coleção de fotografias
oitocentistas no acervo do Museu Mariano Procópio – Juiz de Fora (MG)
Rosane Carmanini Ferraz................................................................................................................... ...............462
Simpósio Temático 03: História da Historiografia e Teoria da História........... .. 475
Fundamentos da ciência da História a partir do pensamento de Jörn Rüsen
Ana Paula Hilgert de Souza............................................................................................................... ...............475
Hegel e a Razão moderna radicalizada no Espírito
Augusto Leite............................................................................................................................................. ...............485
Paul Ricoeur e a narrativa historiográfica: para além do debate epistemológico, a dimensão
ética
Breno Mendes.............................................................................................................................................. .............493
Michel Foucault e a historiografia pós-moderna da erótica grega
Daniel Barbo................................................................................................................................................ ..............508
O caso de negação do Holocausto na Espanha
Daniela Ferreira Felix..........................................................................................................................................525
Contenções contemporâneas em torno do cronótopo da modernidade
Davidson de Oliveira Diniz.................................................................................................................. .............538
Aproximações entre a História e a História das Ciências: As teorias da historiografia das
ciências e o estudo da astronomia de Abraham Zacuto
Geraldo Barbosa Neto............................................................................................................................. .............547
Considerações sobre o Tempo Presente na História Econômica
João Paulo de Oliveira Moreira............................,............................................................................ ..............556
Teoria e narrativa históricas na English Historical Review de 1886 a 1902.
Leonardo de Jesus Silva......................................................................................................................... ..............570
Pensando a Literatura: o romance e suas possibilidades de análise
Marcelle D. C. Braga................................................................................................................................... ...........581
História das Ideias: entre apropriações e ressignificações
Marcelo Monteiro dos Santos............................................................................................................... ..........590
A literatura redescoberta: contribuições de Roger Chartier e Jean Starobinski para a análise
de fontes literárias
Marcus Vinicius Santana Lima............................................................................................................. ..........602
A Lei da Boa Razão (1769) e a Jurisprudence: uma análise do Iluminismo por meio das
Culturas Políticas
Sofia Alves Valle Ornelas.......................................................................................................................... .........612
Identidade narrativa em Evaldo Cabral de Mello: Rubro veio e a ipseidade de Pernambuco e
do Brasil
Walderez Simões Costa Ramalho......................................................................................................... .........623
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
7
Apresentação
O I Encontro de Pesquisa em História da UFMG é uma iniciativa discente, que
tem como objetivo principal promover um diálogo aberto e democrático entre
os alunos de pós-graduação e de graduação em história e áreas afins. A intenção
de realizar o evento surgiu a partir da consciência das limitações do espaço
dedicado aos debates entre jovens pesquisadores em muitos grandes eventos.
Propomos, então, um encontro feito por e para estudantes, voltado
essencialmente para a troca de experiências, informações, inquietações – o que,
acreditamos, muito pode contribuir para a atividade por vezes tão solitária que
é a pesquisa.
Por uma grata surpresa, o evento alcançou dimensões muito maiores do que
imaginávamos inicialmente e cresceu em quantidade e qualidade. A proposta
inicial de cinco Simpósios Temáticos voltados a proporcionar uma maior
interação entre os alunos do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG
adquiriu dimensões nacionais, atraindo participantes de diversas instituições e
de muitas áreas afins que se distribuíram em dez Simpósios Temáticos que
contemplam uma grande variedade de temas e de recortes temporais, em
estreita relação com os movimentos mais recentes da historiografia.
Para a realização do evento, contamos com o apoio constante de muitas pessoas
e instituições. Por isso, gostaríamos de registrar os nossos agradecimentos ao
Programa de Pós-Graduação em História e à Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da UFMG, às Professoras Kátia Gerab Baggio e Adriana Romeiro, aos
alunos do PPGHIS/UFMG e, em especial, àqueles que enviaram propostas de
Simpósios Temáticos. Agradecemos também a todos que se inscreveram e
acreditaram no projeto do encontro e aos convidados que se dispuseram
gentilmente a participar do EPHIS: Professor Fernando Novais, Professora
Miriam Hermeto, Ricardo Frei e Leandro Eymard.
Comissão Organizadora
Ana Marília Carneiro
Fabrício Vinhas Manini Angelo
Gabriel da Costa Avila
Mariana de Moraes Silveira
Mariana Sousa Bracarense
Raul Amaro de Oliveira Lanari
Warley Alves Gomes
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
8
Simpósio Temático 01:
Culturas, poderes e trabalhos no Brasil nos séculos
XVIII e XIX
Segurança, economia e moralidade: as fugas de escravos em Minas Gerais e São
Paulo (1871 – 1888)
Adriano Soares Rodrigues
Licenciado em História pela UFV
adrianosrodriguess@yahoo.com.br
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo estabelecer uma análise sobre as fugas de
escravos e sua possível contribuição para a reorganização de um mercado de trabalho nas
províncias de Minas Gerais e São Paulo, entre os anos de 1871 e 1888. Buscaremos abordar
qual o tratamento dado pela elite imperial a esta questão, através da análise de textos
publicados em alguns dos principais periódicos destas localidades. Além disso, também
utilizamos anúncios de fugas de escravos, que não só nos permitem esboçar o possível
perfil dos foragidos, como também, sua possível direção e consequente inserção no
mercado de trabalho.
Palavras-chave: Escravidão, Imprensa, Reorganização do Mercado de Trabalho
Summary: This article aims to provide an analysis on the leakage of slaves and their
possible contribution to the reorganization of a labor market in the provinces of Minas
Gerais and São Paulo, between the years 1871 and 1888. Which seek to address the
treatment of the imperial elite to this question by analyzing some of the texts published in
leading journals of these places. In addition, we also use ads leakage of slaves, which not
only allow us to outline the possible profile of the fugitives, but also its possible direction
and subsequent insertion into the labor market.
Keywords: Slavery, Press, Restructuring the Labour Market
Debate Ideológico Acerca das Fugas de Escravos nos Periódicos do Século XIX:
A primeira parte deste trabalho busca identificar a perspectiva veiculada pela elite
política mineira e paulista, em seus periódicos, acerca das fugas de escravos, entre os anos
de 1871 e 1888. Inserimos este ponto por acharmos que seria importante perceber se a fuga
poderia ser utilizada como objeto de discussão sobre a emancipação dos escravos, abolição
ou permanência do sistema escravista.
Grande parte da produção historiográfica sobre a escravidão, que trabalha com
nosso recorte temporal, utiliza os periódicos para falar dos crimes, motins e revoltas de
escravos. De início, pensamos que um fator tão corriqueiro nas páginas de anúncios
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
9
poderia ter sido abordado como ponto de discussão, também, nos editoriais e artigos de
outras seções dos jornais. No entanto, no decorrer do processo de pesquisa, notamos que
as fugas quase nunca era mencionado pelos autores. Os temas ligados aos escravos, em
ambos os jornais das províncias estudas, além da seção de anúncios de fugas e vendas,
ficavam em sua maioria restritos às páginas de “Noticiário”, onde eram dadas informações
sobre os crimes que teriam sido cometidos por escravos. Os cativos apareciam nas
primeiras páginas dos jornais quando eram citados assassinatos ou outros crimes que os
envolviam, mas, as suas fugas quase nunca foram mencionadas nos textos argumentativos.
Eram mencionados ou eram objetos de artigos, quando havia alguma discussão nas
assembleias provinciais ou geral sobre temas ligados à escravidão. Era comum aparecerem
propostas de emancipação e abolição dos escravos, principalmente nas "seções livres" dos
jornais. As opiniões eram diversas e em sua maioria eram publicadas sob pseudônimos ou
anonimamente.
A exemplo disto, em novembro e dezembro de 1880, acerca da situação do
sistema escravista e da ação dos chamados abolicionistas, em São Paulo, um autor chamado
Dr. L. P. Barreto, escreveu uma série de quatorze artigos, no jornal A Província de São Paulo,
onde busca possíveis soluções para a questão da mão-obra nas fazendas paulistas. Segundo
ele, os abolicionistas eram aliados a uma “metafísica revolucionária”1. Criticava, ainda, a
atuação dos lavradores, que estariam mudos “na attitude de quem se reconhece culpado ou
medita uma vingança inconfessavel.” Ele traça uma possível saída para a emancipação, que
deveria ser antecedida pela supressão da religião do estado, a realização do casamento civil,
a secularização dos cemitério, a elegibilidade dos não católicos, a imigração europeia etc.
Ele cita que a reforma na lavoura poderia ser feita da união da ordem com o progresso.
Mas, como podemos perceber os escravos não aparecem como protagonistas nestas
argumentações, a questão que move seus artigos é a busca por soluções aos problemas
ligados à força de trabalho na lavoura. Mesmo que os escravos, ou a sua libertação, fossem
a fonte dos problemas da força de trabalho nas lavouras paulistas, eles quase não são
mencionados.
Neste mesmo jornal, A Província de São Paulo, sete anos mais tarde, aos 20 de
dezembro de 1887, ou seja, a pouco mais de cinco meses da assinatura da lei que libertaria
os escravos, foi publicado um artigo, assinado por “O Solitario”, onde é apresentado mais
1
Os abolicionistas e a situação do paiz. A Provincia de São Paulo. São Paulo: 20/11/1880, N. 1721, seção
Questões Sociais, p. 1.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
10
um plano de condução da emancipação escrava onde não só os escravos são citados, como
também são, os possíveis fugitivos.
O autor faz oposição às medidas tomadas na assembleia da “Sociedade
Libertadora”, que teria decidido pela libertação total dos escravos sob prestação de
serviços, em no máximo três anos. Fica claro no trecho a seguir, um dos pontos que mais
aparece nos jornais de ambas as províncias e que expressa, de certa forma, um possível
medo que a elite tinha sobre a libertação dos escravos, a moralidade e a “vadiagem” dos
libertos.
Se eu pudesse ter alguma influencia na questão suscitada, apresentaria o projeto
que segues:
Art. 1° - Da data da promulgação da presente lei , ficam livres todos os
escravos existentes no Brazil.
§ 1° - A lei será acompanhada do regulamento indispensável do trabalho livre.
§ 2° - Os libertos serão obrigados ao serviço, em os quaes tem estado
empregados e po[r] espaço de tres annos, mediante um salario modico,
conforme suas edades, habilitações e sexo.
§ 3° - Os fugitivos serão forçados a recolherem-se ás suas antigas occupações.
§ 4°- Os vagabundos serão recrutados ou remettidos para as colonias militares.2
Como já falamos acima, projetos como este, eram publicados com frequência.
Dificilmente tinha uma semana em que não era publicado pelo menos um artigo com
propostas para a solução da falta de braços, defendendo ou não o sistema escravista. Mas
não podemos deixar de citar este, pois é um dos poucos que toca no nosso objeto, mesmo
que só em uma frase.
O inciso terceiro nos leva a perceber que há uma preocupação com a situação do
fugitivo, que possivelmente incomodava essa elite, já que ele deveria ser inserido na
legislação. Vale lembrar a importância disto. Uma vez que a fuga não era considerada
crime, escravo poderia fugir quantas vezes achasse necessário, ele não estaria cometendo
nenhuma “infração”. Porém, acoitar, ou seja, esconder ou tomar um escravo fugitivo como
seu, era considerado crime, pois caía sob o direito à propriedade que o senhor tinha sobre o
escravo. Daí a explicação para a frase encontrada em, praticamente, todo anúncio de fuga
de escravos: “protesta-se com todo o rigor da lei contra quem o acoutar”.
No inciso quarto, há uma clara preocupação com a moralidade, ou seja, os
escravos “vagabundos” deveriam ser submetidos ao poder do Império, afim de não ficarem
ociosos.
Visão semelhante a esta, também, encontramos em um artigo publicado num
2
SOCIEDADE LIBERTADORA. A Provincia de São Paulo. 20/12/1887, N. 3817, seção Secção Livre, p. 2.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
11
jornal da província de Minas Gerais. N’O Liberal Mineiro de 3 de Março de 1888, há um
artigo onde o autor expressa a junção dos dois pontos que levantamos acima, as fugas e a
moralidade.
Ao que parece, o Partido Liberal de Minas Gerais teria recebido críticas e sido
responsabilizado pelo “exodo de trabalhadores servis que tem procurado a capital como
refugio para sua sorte miseranda.”3 E o autor faz uma retratação em nome do jornal que
representa o partido.
As fugas a que o autor se refere, na verdade não são as mesmas que lotaram a
seção de anúncios. Seria a saída de escravos que teriam sido, recentemente, libertos das
fazendas. A fuga das fazendas, sem o necessário “treinamento” dos escravos à sua nova
condição seria uma ameaça à moralidade e defende que seria necessário que os novos
libertos passassem um tempo nas fazendas, até se acostumarem com a liberdade, por isso
defende, a libertação condicional aos escravos. Mas, toda a sua preocupação com a moral é
desencadeada também, como vimos nos jornais paulistas, por uma preocupação com a
economia e com a reorganização do mercado de trabalho.
O preparo dos trabalhadores servis para o gozo da liberdade, nos proprios
estabelecimentos agricolas em que servirão durante o tempo do seu captiveiro
sem esperanças, é o systema que nos parece mais patriotico e efficaz nas
actuaes condições economicas da nossa provincia.4
Como podemos perceber, no trecho citado, o autor demonstra claramente que a
fuga das fazendas causa um impacto econômico na província. E, mesmo se declarando
“insuspeito á causa do abolicionismo”, defende uma medida que seria encaixada mais com
o chamado emancipacionismo, que defenderia a liberdade gradual ao escravo. A abolição
imediata estaria gerando o grande êxodo nas fazendas. Este autor diz ainda que,
Em tal disposição de espirito, demittindo de nós qualquer co-participação em
actos menos regulares que se hajão praticado, diremos todo nosso pensamento
a tal respeito: pensamos que, se é um crime ante a moral e um erro economico
altamente fatal ao paiz a perduração do elemento servil, não é menos
condemnavel deslocar o trabalhador dos estabelecimentos onde lhe irá procurar
brevemente a liberdade para se o atirar á peior escravidão, a do vicio nas
tavernas e nos prostibulos, caminho que o levará direto ás prisões.5
A fuga das fazendas causaria um impacto econômico e um desastre moral nas
cidades, já que os libertos não saberiam como usufruir da sua liberdade entregando-se
meramente ao ócio. E, chega a um ponto interessante, o da segurança, que nos permite
dialogar com a pesquisadora Célia Maria Marinha Azevedo.
3
AS FUGAS DAS FAZENDAS. O Liberal Mineiro. Ouro Preto, 03/03/188, N. 16, [seção inlegível], p. 2.
4Idem.
5Idem.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
12
A autora analisa o imaginário das elites no final do século XIX. Diz que,
principalmente, a partir da década de 1880 os negros teriam iniciado revoltas e insurreições
em massa, andando armados pelas fazendas e “dispostos a tudo para se verem livres do
cativeiro,” (AZEVEDO, 2004: 176) que ela chama de “onda negra”, cuja violência gerou
um medo nas elites. O fenômeno teria criado uma pressão que teria sido responsável por
fazê-las tomar as medidas que levariam ao fim da escravidão. Segundo a autora, “pela
primeira vez na história da escravidão na província [São Paulo] presencia-se um momento
de acerto geral de contas e nisto os brancos poderiam levar a pior.” (AZEVEDO, 2004:
176). Sendo assim, a abolição teria sido uma medida de segurança das elites, frente às
“lutas” dos escravos.
Encontramos alguns artigos no A Província de São Paulo, que falam de supostos
crimes e revoltas cometidas por escravos, mas como nosso objetivo é tratar das fugas, não
demos tanta atenção a eles.
Se analisássemos as duas fontes citadas por nós sob a ótica de Célia Azevedo e
dos historiadores que partilham da sua visão, concluiríamos que o autor daquela proposta
para a abolição na província de São Paulo propunha uma medida para tentar manter os
negros subordinados ao poder dos brancos, ou seja, tratar-se-ia de uma tentativa de
controle sobre a possível “onda negra”, que ameaçaria as elites. Portanto, o artigo
publicado pelo jornal mineiro expressaria claramente o medo que as elites teriam das
possíveis revoltas que surgiriam das aglomerações dos escravos, mesmo aqueles que
estivessem libertos sob prestação de serviços, já que ainda estariam sob poder do seu
senhor.
No entanto, não pensamos assim. Vemos que tais pontos defendidos pelos artigos
que expomos são mais passíveis de uma análise voltada, não para um medo do negro, mas
por uma preocupação com a força de trabalho e com o destino deste mercado. Mesmo que
expressem com clareza a questão moral, como enfatizamos, e que citem o abalo de
estabilidade da ordem social, parece-nos ser mais claro uma questão econômica, onde a
segurança e a moralidade são usadas como ponto de argumentação, do que um medo de
fato.
Por exemplo, voltemos ao artigo d’O Liberal Mineiro, “As Fugas das Fazendas”. O
autor diz que não vê sem desgosto “e apprehensões a agglomeração, na capital, de
elementos que lhe podem perturbar a segurança e tranquillidade,” apresentando uma
preocupação com a ordem e com a segurança. Mas isto nos parece mais uma maneira de
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
13
defender que os escravos ainda não estão prontos para serem liberados das fazendas, ou
seja, uma tentativa de mantê-los no trabalho. Como o autor mesmo diz, seria necessário
um “preparo dos trabalhadores servis para o gozo da liberdade, nos próprios
estabelecimentos agrícolas”. Do contrário causaria danos econômicos à província devido à
situação em que se encontrava a oferta de trabalho. Percebemos que sua argumentação,
baseada na falta de preparo dos escravos para se tornarem livres, é usada como uma
justificativa para prolongar o sistema escravista, já que os deixaria mais tempo ligados ou
dependentes dos senhores. Para ele, como já citamos, esse sistema “parece mais patriótico e
efficaz nas actuaes condições econômicas da nossa província.” E uma maneira de causar
menos impacto à economia da província seria deixar os escravos na fazenda exercendo seus
trabalhos para os senhores, sob condições. Se fossem declarados livres incondicionalmente,
provavelmente abandonariam seus postos de trabalho. Assim sendo, preparar os escravos
para a liberdade seria uma maneira de fazer com que a força de trabalho ficasse nas
fazendas por mais tempo.
Como argumentamos anteriormente, em poucos momentos as fugas de escravos
foram objetos nos artigos dos jornais paulistas e mineiros que pesquisamos. No entanto, o
mesmo não ocorre com a seção de anúncios, onde foram publicados milhares de apelos de
senhores querendo capturar seu escravo fujão. É sobre esta fonte riquíssima que focaremos
nossos olhares agora
Os Anúncios das Fugas:
Os anúncios de fugas de escravos foram frequentes em quase todos os jornais do
século XIX até meados da década de 1880. Independente da posição política do periódico,
conservador, liberal ou republicano, ele estava lá. Era usado como ferramenta de busca dos
senhores, que ampliavam seus limites de busca para toda a população leitora, os anúncios
traziam descrições físicas e comportamentais dos fugitivos, ora com informações
detalhadas, ora muito rasas dependendo do grau de conhecimento que o senhor tinha do
seu escravo. Nos anúncios de fuga, os senhores traçavam um verdadeiro retrato falado do
escravo a que ele pretendia capturar.
O número de escravos fugitivos que encontramos nos anúncios não pode, nem
deve ser considerado como o número real de fugas. O autor Flávio dos Santos Gomes, que
trabalha com a questão das fugas, argumenta que muitos escravos fugiam apenas por algum
tempo e acabavam voltando para as fazendas. Às vezes, eles fugiam apenas por poucos
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
14
dias, iam pra cidade, ficavam nos ajuntamentos e rodas de escravos, dançavam e jogavam
capoeira. Por ora, alguns escravos tinham laços familiares fora da fazenda a que
pertenciam, então, acabavam fugindo para “visitá-los”, mas depois voltavam. Acostumados
com essas fugas temporárias, anunciá-las era praticamente a última medida que o senhor
tinha na procura do cativo. (GOMES, 2003)
Trabalhamos com anúncios e artigos de cinco periódicos, sendo quatro de Minas
Gerais (Diário de Minas 1873-1878, A Província de Minas 1878-1888, A Actualidade 1878-1881
e Liberal Mineiro 1882-1888) e um paulista (A Província de São Paulo 1875-1888).
O anúncio era publicado a fim de que obtivesse qualquer informação sobre o
paradeiro do fugitivo. Mas, o exercício da captura gerava uma série de contratempos a
quem não via a escravidão com bons olhos. Indício disto são alguns textos que
encontramos n’A Provincia de São Paulo de pessoas reclamando da captura de escravos.
No dia 7 de Agosto de 1880, foi publicado n’A Provincia de São Paulo, um pequeno
texto, sem autoria declarada, onde o autor reclama da dedicação da força policial à caça de
fugitivos.
Ao exm. chefe de policia
Roga-se a sua exc. o favor de pôr cobro ao espirito mercantil com que o chefe
de um certo posto de urbanos só trata de aceitar especulações para ganhar
gratificações por negros fugidos; ainda em cima distrahindo camaradas com
taes caçadas, com sacrificio do interesse publico, e vergonha para alguns
soldados que tem brio e não apreciam sujar a farda n’aquele triste officio.
consolação6
Neste caso, o autor diz que um posto inteiro seria destinado a busca de fugitivos,
que seria uma função nada honrosa. Encontramos outros artigos como este argumentando
que, enquanto, alguns praças ficavam somente a procura de escravos fugitivos e das
respectivas recompensas, os crimes continuam ocorrendo e os criminosos soltos.7
Estes trechos nos fornecem indícios de que para algumas pessoas as fugas não
representariam uma ameaça à segurança e à ordem, pelo contrário, a dedicação da força
policial à captura de fugitivos é causaria alguma instabilidade.
Segundo Ademir Gebara,8 algumas “posturas municipais”, foram criadas para
diferenciar fugitivos das demais pessoas. Esses escravos que se destacavam, pelas
vestimentas, por comercializar produtos ou vender sua força de trabalho sem autorização
6 Ao exm. chefe de policia. In: A Provincia de São Paulo. São Paulo: 07/08/1880, N. 2168, seção “Secção
Livre”, p. 1. Grifos no original.
7A Policia e os escravos. In: A Provincia de São Paulo. São Paulo: 22/09/1883, N. 2553. p. 1.
8 Sobre posturas municipais e fugas ver: GEBARA, A. Escravos: fugas e fugas. Revista Brasileira de História, v.
6, n. 12. São Paulo: mar./ago. 1986.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
15
do senhor, eram recolhidos à cadeia e seu senhor tinha um tempo determinado para retirálos.
Alguns anúncios eram parecidos e com poucas informações detalhadas.
Encontramos um caso curioso em São Paulo. Um negro livre teria sido preso como
fugitivo. E, algumas pessoas escreveram indignadas ao jornal dizendo que o sujeito tinha
família e trabalhava. E, não seria só porque era parecido com um foragido que deveria ser
preso, sem antes fazer uma investigação de quem se tratava. Os autores clamaram ao
delegado e às autoridades que garantissem “a liberdade dos cidadãos, ainda mesmo dos
desconhecidos.” 9
Neste caso, um negro livre teria sido preso por ser semelhante a um escravo
foragido e, segundo a carta enviada ao jornal reclamando de sua prisão, a investigação
necessária para a conclusão de que se tratava ou não de um foragido não teria sido
realizada. Isto nos leva a pensar sobre os meios que buscados para obter um maior controle
social. Para isto, teriam contribuído as posturas municipais que tentariam estabelecer regras
de comportamento dos escravos nas cidades, a fim de diferenciar potenciais fugitivos dos
outros escravos. Os anúncios também contribuiriam, já que colocariam a população em
alerta para identificar um sujeito descrito.
Como o porte de muitos escravos era parecido e muitos anúncios não eram claros,
acreditamos que possíveis erros como os denunciados no trecho que citamos acima
possam ter ocorrido. Este caso eventual nos dá uma dimensão de como teria funcionado as
tentativas de controle social, o que nos leva a pensar, mais uma vez, que com a inserção de
novos elementos na sociedade, ou seja, a quebra dos dois polos, escravo e livre, o controle
teria se tornado mais difícil. Por este motivo, escravos foragidos que fossem mais
qualificados poderiam “infiltrar-se” nesta sociedade, fugindo dos olhos da captura.
É importante ressaltarmos que a utilização dos anúncios de fuga como fonte de
pesquisa histórica é rara ou usada como fonte complementar a ela. Um dos primeiros
autores a utilizá-la foi Gilberto Freyre em seu Escravosnos Anúncios de Jornais Brasileiros do
Século XIX, lançado em 1979, onde ele faz uma análise etnológica/antropológica dos
anúncios. Identifica neles as origens étnicas dos escravos, verticalizando sobre os africanos.
Como já dissemos, os anúncios são um verdadeiro retrato falado do fugitivo, então, Freyre
9
Prisão injusta. In: A Provincia de São Paulo. São Paulo: 16/10/1878, N. 1097, seção “Secção Livre”. p. 1.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
16
foca-se nas descrições físicas, observando os símbolos e sinais que possam ligá-los a um
determinado grupo étnico.
Já na vertente historiográfica posterior a Gilberto Freyre, a chamada “escola
sociológica paulista” dos anos 1960, que faz grandes críticas a este autor que teria uma
visão paternalista e harmônica sobre a escravidão, os anúncios são utilizados como
argumento para enfatizar o caráter violento da escravidão. Sendo assim, também ficam
presos às descrições físicas dos escravos, prestando atenção aos sinais de castigos e
informações sobre o comportamento agressivo de alguns escravos. Sendo que sua
agressividade seria gerada, justamente, pela violência do sistema escravista.
Esta vertente acredita que a elite agiria de forma articulada e teria planejado todo
processo de emancipação, onde a fuga teria contribuído para a criação de um mercado de
trabalho livre diminuindo, assim, os impactos do fim da escravidão no processo produtivo.
Fazem parte desta gama de pensamento, autores como: Emília Viotti da Costa, 10 Florestan
Fernandes e Fernando Henrique Cardoso.
11
Fazem análise semelhantes a eles, autores
posteriores como, Suely Robles Reis de Queiroz 12 e Ademir Gebara. 13
Por volta dos anos 1980 surge outra visão historiográfica, a chamada história
social da cultura, que tenta explicar o processo de emancipação da escravatura através da
luta entre senhores e escravos. São autores desta vertente: Stuart Schwartz,
Marinho Azevedo,
15
Sidney Chalhoub
16
14
Célia Maria
e Flávio dos Santos Gomes17. A maioria da
documentação que esta vertente utiliza são processos criminais e artigos de periódicos,
onde esses historiadores buscam indícios para o que eles chamam de “luta dos escravos”. A
ação dos escravos deixaria de ser um ato inconsciente gerado pela violência do sistema
10Ver: COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. 2ª ed. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas
ltda, 1982.
_______________. O Escravo na Grande Lavoura. In: HOLANDA, Sergio Buarque de. (org.). História
Geral da Civilização Brasileira.2ª ed., São Paulo: Difel, 1969. P. 135-188.
11 Ver:CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional:o negro na sociedade escravocrata
do Rio Grande do Sul. 2ª Ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997.
12Ver: QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Aspectos Ideológicos da Escravidão. In: Estudos Econômicos. Vol. 13,
Nº1, São Paulo: 1983. p. 85-102.
13Ver: GEBARA, A. Escravos: fugas e fugas. Revista Brasileira de História, v. 6, n. 12. São Paulo: mar./ago.
1986.
14Ver: SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, Roceiros e Rebeldes.Bauru, Edusc, 2001.
15Ver: AZEVEDO, Célia Maria Marinho. Onda Negra, Medo Branco. 2ª ed. São Paulo: Annablume,2004.
16Ver: CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São
Paulo, Cia das Letras, 1990.
17Ver: GOMES, Flávio dos Santos. A Hidra e os Pântanos: Mocambos, Quilombos e Comunidades de Fugitivos no
Brasil (séculos XVII-XIX). São Paulo: Editora UNESP, 2005.;
____________. Experiências Atlânticas. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2003.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
17
escravista, passando a ser vista como uma luta consciente onde o escravo busca nos seus
atos os caminhos para a liberdade.
Sabemos que até meados do século XIX havia, praticamente, dois elementos na
sociedade escravista, sendo eles escravos e homens livres. Portanto, seria muito fácil
identificar um fugitivo. Com a inserção de novos elementos na sociedade - como
imigrantes -, com o processo de urbanização e com a criação, expansão e demanda de um
mercado de trabalho livre, após a primeira metade do século XIX, ampliou-se a dimensão
de oportunidades para que o escravo obtivesse sucesso em sua fuga. Inclusive vendendo
sua força de trabalho.
Em certos anúncios é explícito que o fugitivo tinha pretensões de trabalhar
livremente, pois, fugiam levando ferramentas de trabalho. Vendendo sua mão-de-obra, o
fugitivo teria mais chances continuar em fuga. Como dissemos anteriormente, o
desenvolvimento econômico e urbano permitia que ele interagisse com este mercado e com
a comunidade sob o aspecto de um homem livre.
Não eram apenas os escravos urbanos que fugiam e vendiam sua força de
trabalho. Sim, trata-se de escravos que tinham um ofício específico, mas, o ponto a ser
discutido é que os cativos das fazendas também tinham especializações no trabalho e, ao
fugirem, procuravam se valer disso. Há de ser considerado também que eles poderiam
empregar-se, não necessariamente, no espaço urbano, por ter ofícios tipicamente rurais,
como podemos perceber nesses dois anúncios do dia 05 de março e 14 de setembro de
1882, publicados no A Província de Minas:
[...]fugio da fazenda de Lamas, freguesia da cidade de Montes Claros, o escravo
de nome Marcelo, pardo, idade de 30 annos (...) tem costume de viajar com
tropa (...) é também acostumado a trabalhar em cortume de couros [...]18
Fugio da fazenda da Providencia, termo de Queluz, o escravo Luiz, creoulo, de
20 anos (...) trabalha de pedreiro e de carpinteiro [...] 19
Importante lembrarmos que com o anúncio o senhor quer capturar seu fugitivo,
por isso ele traça uma descrição de tudo que pode ligar um “suspeito” a seu escravo, então,
citar que ele possui ofício não necessariamente quer dizer que ele vá ser um trabalhador
livre, mas sim que há essa possibilidade. Nos dois casos citados acima, o senhor faz questão
de frisar o ofício do escravo fugido. Isso nos leva a pensar que estes escravos poderiam
vender sua força de trabalho, mesmo sendo originários de fazendas.
18Francisco
19
Coutinho Durões. Escravo Fugido. In: A Província de Minas, Ouro Preto, nº 90, 05/03/1882.
Antonio Moreira da Cunha. 400$000. In: A Província de Minas, Ouro Preto, nº 115, 14/09/1882.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
18
Em alguns casos, a possível incorporação ao mercado de trabalho fica nítida. O
senhor supõe até em que tipo de “estabelecimento” o escravo provavelmente iria oferecer
seu trabalho: “É provável que [o fugitivo] procure sentar praça em alguma cidade do
interior, ou que se ajuste em algum hotel, por ser perfeito cozinheiro.” 20
De certo, a expansão econômica possibilitou ao escravo obter maior sucesso na
sua fuga. Muitos iam trabalhar, nas cidades, como já foi dito, ou na construção das
estradas-de-ferro. Como podemos notar em dois anúncios do A Província de Minas, de 18
de janeiro e 1 de fevereiro de 1883:
Fugio da fazenda Ribeiro do Ouro, freguesia de Matheus Leme [região central
de Minas Gerais] [...] o escravo José, [...] 21 annos de idade. Já fugio uma vez e
foi encontrado indo para os lados da confusão [...]. Desconfia-se que esteja nos
prolongamentos da estrada de ferro. 21
O escravo Manoel, crioulo, de idade de 20 a 22 anos, [...] dado à embraguez,
bom pagem e optimo copeiro, que fugera no dia 14 de Novembro e havia sido
preso na dia 25 de Dezembro de 1882 na linha ferrea – Rio Verde, onde
trabalhava com o nome de Antonio Pedro, fugio de Novo antes de ser entregue
a seu senhor [...]. Consta que [...] seguio para a linha ferrea de Pedro II afim de
trabalhar alli, e levou a roupa em um mallote de viagem que furtou na via ferrea
do Rio Verde [...].22
De José Pedrosa da Silva Campos, fugiu em dias do mez de Outubro proximo
passado, o escravo Aniceto, de côr preta, altura regular, pés grandes, falla
fanhosa, idade 30 e tantos annos; [...] Gosta de andar bem vestido, assim como
de passear em praças. E’ Bahiano. Julga-se com probabilidade estar trabalhando
em alguma estrada de ferro ou estação. 23
Nesses três casos fica explícita a relação dos escravos com o mercado de trabalho
livre. Fogem uma, duas, três vezes para se empregarem na construção de estradas de ferro.
Observamos que em Minas Gerais e em São Paulo, no período da expansão ferroviária,
muitos anúncios traziam informações como estas indicando que o escravo estaria
trabalhando na feitura das ferrovias, um dos meios de absorção de força de trabalho.
É notável a diferença entre os anúncios mineiros e paulistas. Antes, é importante
lembrarmos que apesar de falarmos Minas Gerais, restringimos nossa pesquisa ao centro da
província, pois analisamos jornais da capital, Ouro Preto. O mesmo ocorre em São Paulo,
quando analisamos um jornal publicado, também, em sua capital e que restringe a
20
Antonio Alves F. Campos. 200u000 de gratificação. In: A Província de Minas, Ouro Preto ,nº 104,
11/06/1882.
21 José Alves Ferreira Silva. 200$000. In: A Província de Minas, Ouro Preto, nº 135, 18/01/1883.
22 Francisco Carneiro Santhiago. Attenção. In: A Província de Minas, Ouro Preto, nº 137, 01/02/1883.
23 SÃO CARLOS DO PINHAL. In: A Provincia de São Paulo, São Paulo, nº 45, 02/03/1875, p. 3.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
19
publicação de anúncios de fugas das zonas cafeeiras do chamado oeste paulista e alguns do
vale do Paraíba.
A primeira diferença é na quantidade de informações que vêm em cada anúncio.
Os publicados em Minas são majoritariamente mais detalhados e específicos, são
relativamente maiores que os de São Paulo. Enquanto a maioria dos anúncios paulistas
traziam apenas informações físicas dos fugitivos, os anúncios mineiros nos informam sobre
o comportamento, qualificação e hábitos dos escravos. Estas informações também
constam nas publicações de São Paulo, mas em Minas Gerais a riqueza de detalhes é bem
maior, o que nos permite dizer que havia um maior conhecimento dos anunciantes sobre
os fugitivos. Uma vez que ambos querem capturá-los, quanto mais informações forem
citadas, maiores as chances de captura. Por isso, é praticamente impossível que o senhor
não coloque no anúncio tudo aquilo que ele saiba sobre o escravo.
Esta discrepância de quantidade de informações entre as duas províncias pode ter
uma explicação ligada ao tipo de economia a que cada província se dedicava no período
estudado.
Como São Paulo, grande produtor de café, tinha uma economia ligada à plantation
e possuía grandes fazendas produtoras que demandavam um grande número de escravos
para a produção deste núcleo, seria muito difícil o senhor, ou o responsável pelos escravos,
conhecerem um a um dos seus escravos detalhadamente. Além disso, segundo alguns
autores, São Paulo foi um dos maiores centros de absorção da mão-de-obra advinda do
tráfico interprovincial de escravos, muito forte nos anos 1870-80 (COSTA, 1982), e
percebemos que vários fugitivos eram recém chegados das províncias do “Norte”, sendo
assim os senhores não teriam muito conhecimento sobre eles.
No caso de Minas Gerais, mesmo sendo a província que tinha o maior número de
escravos do período, os plantéis de cada fazenda, na região em que pesquisamos (Ouro
Preto, ou seja, região central de Minas Gerais), eram bem menores que os da província
paulista. Assim os senhores tinham mais contato com escravos e saberiam mais detalhes
dos fugitivos.
Na historiografia sobre a economia mineira no século XIX, há um forte embate
sobre o tipo de atividade econômica desenvolvida e o apego desta província à escravidão.
De um lado está Roberto Borges Martins que afirma ter sido desenvolvida em Minas
Gerais uma economia voltada para o consumo interno, cujo apego à mão-de-obra escrava
seria explicado pelo grande número de terras livres para a produção, sendo assim seria
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
20
melhor para o homem livre produzir nestas terras e possuir escravos de que vender sua
força de trabalho. (MARTINS, 1983: 181-209)
Em contrapartida, do outro lado da discussão, Robert Slenes diz que, realmente
Martins acerta quanto fala da questão das terras e do apego à escravidão, mas erra quando
considera que sua economia não era exportadora. A justificativa utilizada por Slenes para
criticar Roberto Martins é que havia de fato pequenas propriedades que produziam milho,
algodão, atividades pecuárias etc., para o consumo interno. Mas, é exatamente aí que estaria
o erro de Martins ao desconsiderar a relação desta produção com a cafeeira no sul e zona
da mata mineira. Uma vez que ela seria direcionada para o consumo na zona cafeeira, que
dedicava quase que exclusivamente ao café, o apego à escravidão estaria relacionado com
uma produção exportadora. (SLENES, 1988: 449-496)
Não podemos discordar ou concordar de nenhum dos dois porque não fizemos
pesquisa sobre o tema. Fato é que ambos concordam que parte de Minas Gerais, a que
analisamos, produzia com pequenos plantéis onde seria possível um contato mais
individualizado do senhor com o escravo. Isto significa que em Minas seria possível que o
senhor conhecesse melhor o seu escravo, devido a um plantel pequeno, comparado às
lavouras cafeeiras de São Paulo, cujo número podia ultrapassar duzentos escravos por
plantel. (SLENES, 1999)
Acerca dos ofícios dos fugitivos, a quantificação dos anúncios nos possibilita
comparar as duas províncias. Em Minas Gerais, por exemplo, os anúncios que constavam
alguma especificação sobre os trabalhos exercidos pelos escravos chegam a 68% do total,
enquanto os de São Paulo não ultrapassam 38%. É óbvio que, praticamente, todos os
escravos desempenhavam alguma função produtiva, senão não seriam escravos. O que
queremos dizer é que aqueles fugitivos que possuíam alguma qualificação específica, ou até
mais de uma (e nesse caso Minas sai na frente de novo, já que 72% dos escravos que têm
ofício citado, possuem mais de uma especialização; em São Paulo este número cai para
22%) têm mais chances de ser absorvido pelo mercado de trabalho livre, e assim, obterem
êxito na sua fuga.
Como base nestes dados, podemos dizer que os escravos da província de Minas
Gerais tinham mais oportunidades de permanecerem em fuga, de não serem identificados
como fugitivos, já que se camuflariam na sociedade, diminuindo as possibilidades de
captura.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
21
Conclusões:
Conclusões que chegamos é que tanto em Minas Gerais quanto em São Paulo, as
questões ligadas à fuga não eram frequentes nos jornais. Quando era citada, vinha ligada a
outros fatores como a reorganização do mercado de trabalho. Em ambas as províncias, ela
é uma preocupação relacionada à falta de mão-de-obra nas lavouras. E, é objeto de
discussão quando se fala na questão de braços para as lavouras, ficando no meio do embate
entre os defensores do sistema escravista e os do emancipacionismo e abolicionismo.
Quando analisamos os anúncios, vimos que há indícios de vários motivos para os
escravos verem na fuga uma maneira de buscarem sua liberdade e que muitos encontram
na venda sua força de trabalho um meio para driblar sua captura e permanecer fugido. Isso
só teria sido possível com o avanço do processo de urbanização e expansão econômica que
inseriram outros elementos na sociedade - como o imigrante - fazendo com que quebrasse
a sociedade composta, meramente, por livres e escravos.
Observando o aspecto da qualificação do escravo fugitivo, notamos que em Minas
Gerais os escravos cujas fugas foram anunciadas nos jornais, eram mais qualificados que os
de São Paulo. O que significa que eles poderiam ter mais chances de permanecerem
fugidos, já que seria possível encontrar na venda de sua mão-de-obra uma forma de
sobrevivência que não despertasse tanta atenção das pessoas para lhes entregarem aos seus
senhores.
Bibliografia:
AZEVEDO, Célia Maria Marinho. Onda Negra, Medo Branco. 2ª ed. São Paulo: Annablume,2004.
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional:o negro na sociedade
escravocrata do Rio Grande do Sul. 2ª Ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997.
CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte.
São Paulo, Cia das Letras, 1990.
COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. 2ª ed. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas
ltda, 1982.
______. O Escravo na Grande Lavoura. In: HOLANDA, Sergio Buarque de. (org.). História Geral
da Civilização Brasileira.2ª ed., São Paulo: Difel, 1969. P. 135-188.
FREYRE, Gilberto. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. 4. ed. rev. São Paulo:
Global, 2010.
GEBARA, A. Escravos: fugas e fugas. Revista Brasileira de História, v. 6, n. 12. São Paulo: mar./ago.
1986.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
22
GOMES, Flávio dos Santos. A Hidra e os Pântanos: Mocambos, Quilombos e Comunidades de Fugitivos no
Brasil (séculos XVII-XIX). São Paulo: Editora UNESP, 2005.;
______. Experiências Atlânticas. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2003.
MARTINS, Roberto Borges. Minas Gerais, Século XIX: Tráfico e Apego à Escravidão numa
Economia Não-Exportadora. In: Estudos Econômicos. 13 (1), Jan./Abr. 1983, p.181-209.
QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Aspectos Ideológicos da Escravidão. In: Estudos Econômicos. Vol.
13, Nº1, São Paulo: 1983. p. 85-102.
SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, Roceiros e Rebeldes.Bauru, Edusc, 2001.
SLENES, Robert. Os Múltiplos de Porcos e Diamantes: a economia escrava de Minas Gerais no
Século XIX. In: Estudos Econômicos. 18, Set./Dez. 1988, p. 449-496.
______. Na Senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil Sudeste, século
XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
23
Entre datas e festejos: a emancipação de Montes Claros e a polêmica do
“3 de Julho”
Aparecido Pereira Cardoso
Mestrando em História pela Unesp
apcmocmg@gmail.com
Cristiane Aparecida Nunes Oliveira
Mestranda em História pela Unimontes
Cristiane.nunes.oliveira@gmail.com
Resumo: Montes Claros viveu ao longo da década de 1950 entre a “esperança e a
frustração”. A elite local imbuída na ideologia do governo JK esforçou-se para inserir a
cidade dentro dos projetos do Plano de Metas do governo federal. A comemoração do 3 de
julho de 1957 foi o ponto alto desse processo onde as lideranças políticas buscaram
projetar a cidade enquanto polo regional carente de investimentos. Nesse sentido, o texto
visa articular a comemoração em questão à cultura política inerente ao período em que ela
foi instituída.
Palavras-chave: Comemoração, cultura política, governo JK.
Summary: Montes Claros lived throughout the 1950s between "hope and frustration." The
local elite imbued with the ideology of the JK government struggled to enter the city
projects within the Plan's goals of the federal government. The commemoration of the July
3, 1957 was the culmination of this process where political leaders sought to project the
city as a regional center in need of investment. In this sense, the text aims to articulate the
celebration in question to the political culture inherent in the period in which it instituted.
Keywords: Celebration, political culture, the JK government.
Na madrugada do dia 16 de outubro de 1832, os habitantes do então Arraial de
Formigas foram acordados com 21 tiros. O motivo da comemoração que saudava o
nascente dia estava localizado um ano antes, quando em 13 de outubro de 1831, a Regência
Trina por meio de resolução elevou à categoria de vila o povoado de Formigas. Para o
memorialista Hermes de Paula, o dia de 16 de outubro figura como “um dia de festa para
nossos antepassados”, uma vez que política e administrativamente foi concedida autonomia
à vila de Formigas, que se tornou sede de um vasto município no norte da província de
Minas Gerais. (PAULA, 1979: 15)
Na mesma ocasião em que as lideranças políticas de Formigas festejavam a
instalação da vila, os habitantes da Barra do rio das Velhas protestaram com veemência a
nova condição daquele lugarejo como sede de câmara e termo.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
24
Data de 2 de agosto de 1833 um longo abaixo-assinado enviado à presidência da
província, onde os moradores da preterida Barra do Rio das Velhas lançaram uma série de
queixas. Para eles, a Barra tinha mais condições de ser vila uma vez que sua localização
hidrográfica favorecia em muito o desenvolvimento da vila e termo a serem ali instalados.
No documento, o juiz de paz do distrito Antônio Hipólito Gomes de Magalhães afirmou
que a Barra estava localizada “na margem de dois rios navegáveis o São Francisco e das
Velhas” ficaria também em posição geográfica privilegiada, pois “ficaria no meio das vilas
de Formigas, São Romão e do Salgado”. Além disso, a câmara “promoveria o
desenvolvimento de uma região de grande movimentação mercantil e de produção agrícola
e pecuária”.24
Em 1855 as lideranças da Barra do rio das Velhas ainda reclamavam a elevação de
Montes Claros à condição de Vila, e esperavam ansiosos “a necessidade da criação de um
centro municipal na mais importante posição desta província, a qual é a da Barra do Rio
das Velhas e dos seus dois majestosos rios”. 25
O recuo histórico-temporal apresentado nos parágrafos anteriores denota os
sentidos que os políticos do século XIX atribuíram às localidades com status de vila e aos
anseios que muitos tinham em ter sua região inserida na mesma categoria. No entanto, a
partir da segunda metade do século seguinte o ser vila não mais preocupava os políticos da
região norte de Minas, uma vez que esse termo passou a ter outro sentido e significado na
nomenclatura da divisão administrativa da federação e dos municípios brasileiros. (COSTA,
1970: 19)
Se a elevação de Formigas à condição de vila proporcionou reclamações dos
habitantes da Barra do rio das Velhas em fins de 1832, o mesmo não ocorreu quando a lei
provincial nº 802 de 3 de julho de 1857, que atribuiu à vila de Montes Claros a categoria de
cidade. Na correspondência dos juízes de paz das vilas de São Romão, Januária e do distrito
de Barra do rio das Velhas com destino ao governo da província de Minas Gerais a partir
de 1857 não aparece nenhuma reclamação quanto ao novo status atribuído a Montes
Claros. (PAULA, 1979: 17)
24 ABAIXO-ASSINADO dos habitantes do distrito e freguesia da Barra do rio
elevação à condição de vila. Barra do rio das Velhas, 19 de dezembro de 1832.
Seção Provincial, SP/PP 212, Caixa 187, doc. 8.
25 ABAIXO-ASSINADO dos habitantes do distrito e freguesia da Barra do rio
elevação à condição de vila. Barra do rio das Velhas, 23 de dezembro de 1855.
Seção Provincial, SP/PP 213, Caixa 231, doc. 5.
das Velhas pedindo a sua
Arquivo Público Mineiro.
das Velhas pedindo a sua
Arquivo Público Mineiro.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
25
Segundo a estudiosa Fernanda Borges, a elevação de um distrito à categoria de vila
tinha mais importância do ponto de vista político administrativo do que a atribuição do
status de cidade.
Tanto em Portugal continental como em suas colônias, o status de cidade
implicava a concessão de certas prerrogativas de caráter honorífico às
aglomerações de maior importância do ponto de vista política ou militar.
Embora se deva destacar o fato de que uma vila ser elevada à categoria de
cidade nem sempre significava a agregação de alguma prerrogativa política
suplementar. (MORAES, 2007: 60)
O Brasil depois de alcançada a sua independência herdou de Portugal a forma de
organização administrativa dos municípios. Era reconhecido por parte da administração
municipal de Montes Claros até 1957 o fato de que as comemorações acerca da
emancipação política deveriam ocorrer no dia 16 de outubro. Em 1932 o centenário do
município de Montes Claros foi lembrado em meio a festejos que duraram alguns dias.
Como se explica então o 3 de julho como data da “emancipação político-administrativa” e
não mais o 16 de outubro? (PEREIRA&OLIVEIRA, 2003: 2)
Segundo Laurindo Mékie Pereira e Marcos Fábio Martins de Oliveira, a ideia de se
comemorar o centenário da cidade foi lançada em 1955 quando foi divulgada nos jornais
locais da época. O maior entusiasta da proposta foi o médico e memorialista de Montes
Claros Hermes Augusto de Paula, que assinalou a importância das comemorações a serem
feitas em 1957:
Duzentos e cinquenta anos de fundação. Cem anos de cidade. 1957 será, para
nós, um ano de significação especial. Será uma oportunidade para
relembrarmos os feitos de nossos antepassados e um convite para celebrarmos
novas realizações. (PAULA, 1979: 3)
Os mencionados historiadores assinalam que Hermes de Paula não criou nenhuma
relação direta entre o aniversário da cidade e a emancipação política e administrativa de
Montes Claros. O 3 de julho só foi adquirindo o significado de data da emancipação política a
medida em que a efeméride foi se consolidando no calendário das festividades da cidade.
A data com o passar do tempo foi sendo reconhecida: pelas instituições públicas,
pelos escritores, políticos e pela imprensa com o momento em que se comemora a criação
do munícipio. Exemplo disso é o artigo de Éder de Oliveira Martins Júnior, então
secretário de Gabinete do prefeito Luís Tadeu Leite, publicado na Gazeta Norte Mineira
em 3 de julho de 2009.
No texto repleto de elogios à cidade, o secretário parabenizou Montes Claros, que
naquele dia estava “completando 152 anos de emancipação política e administrativa”
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
26
(MARTINS JÚNIOR, 2009: 13). Além desse artigo não seria difícil encontrar livros,
reportagens e outros tipos de publicações em que o 3 de julho passou a ser visto como tal.
Nas palavras de Laurindo Mékie Pereira e Marcos Fábio Martins Oliveira a festa de
centenário em 1957
Insere-se no contexto de entusiasmo característico do período – o
desenvolvimento levado a efeito pelo Plano de Metas do Governo Juscelino
Kubitschek - e reflete a vitalidade da pecuária local, maior força econômica e
braço direito da Prefeitura Municipal na promoção do evento. Mas, além disso,
foi uma estratégia cuidadosamente planejada para construir a imagem de uma
cidade moderna e pacífica, de um povo ordeiro e trabalhador e, por fim, atrair
investimentos do Estado e da União (abertura e melhoria das estradas,
construção de hidrelétricas, ampliação/melhoria dos serviços de telefone, água
e esgoto, e apoio para a criação de um frigorífico na cidade.
(PEREIRA&OLIVEIRA, 2003: 4)
O questionamento acerca do 3 de julho em Montes Claros foi levado à público pela
primeira vez pelos historiadores Marcos Fábio Martins de Oliveira e Tarcísio Rodrigues
Botelho em 1988, quando escreveram uma série de artigos para os jornais que circulavam
em Minas Gerais enfatizando a importância do dia 16 de outubro.
Em 2001 outros artigos levaram a questão novamente ao público, e segundo os
autores do artigo A invenção do 3 de julho em Montes Claros, a partir desse momento a forma de
tratar a questão começou a mudar. Um jornal da cidade no mesmo ano assinalou que “A
emancipação política de Montes Claros foi aprovada no dia 13 de outubro de 1831, foi
concretizada em 16 de outubro do ano seguinte, quando ocorreu a eleição da primeira
Câmara Municipal”; já outro artigo publicado no jornal Hoje em Dia em 16 de outubro de
2001 trazia o seguinte título: “Emancipação de Moc completa 169 anos sem comemorações
oficiais”. (PEREIRA&OLIVEIRA, 2003: 8)
Da imprensa a questão chegou à Câmara Municipal “e, no ano de 2001, foi objeto
do Projeto de Lei de autoria da vereadora Fátima Macedo cujo ponto central era o
reconhecimento de 16 de outubro como a data da efetiva emancipação de Montes Claros”.
Aprovado pelos vereadores o projeto se transformou na lei 2.995 (de 5 de abril de 2.002) e
reconheceu o dia 16 de outubro como o “dia do município”.(PEREIRA&OLIVEIRA,
2003:8)
Ao propor uma análise sobre o significado do 3 de julho do ponto de vista
histórico, não estamos aqui levantando uma bandeira de protesto contra as comemorações
que ocorrem nesse dia e muito menos buscando uma retomada à antiga data. Mas torna-se
necessário reconhecer que de fato o 16 de outubro foi a data em que se concretizou a
emancipação político-administrativa de Montes Claros.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
27
A data de elevação à categoria de cidade não teve nenhum efeito do ponto de vista
jurídico e legal na Vila que já existia desde 1832. Não se adicionou nenhuma prerrogativa
legal e muito menos alterou a organização política do município. No estado de Minas
Gerais, o caso de Montes Claros é considerado sui generis, pois comemora a data de
elevação de sua sede municipal à categoria de cidade, em detrimento da data em que foi
conquistada a sua emancipação política.
Na primeira metade do século XX, uma revisão na legislação acerca da organização
administrativa do Brasil, alterou significativamente os parâmetros para a criação de distritos
e formação de novos municípios. Em consonância com essa nova legislação, ao ser criado
um novo município, o distrito que seria a sede, automaticamente era elevado à categoria de
cidade, logo no ato de sua instalação.
Seria possível pensar o 3 de julho como uma tradição inventada no contexto de
uma determinada cultura política? O estudo dos professores Laurindo Mékie Pereira e
Marcos Fábio Martins Oliveira já demarcaram o 3 de julho como sendo uma tradição
inventada. Agora nos resta identificar o contexto das comemorações do Centenário no
bojo de uma determinada cultura política. Além de ter se consolidado como principal data
comemorativa do calendário das festividades de Montes Claros nas últimas cinco décadas,
o 3 de julho pode ser entendido também em uma perspectiva mais ampla, isto é, inserir a
data no contexto nacional do momento em que ela foi criada.
A historiadora Ana Maria Ribas Cardoso ao analisar a produção dos intelectuais
ligados ao ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) durante o governo de Juscelino
Kubistchek assevera ser possível delinear alguns aspectos que constituem “a cultura política
que formata os anos JK” (CARDOSO, 2006: 1), notadamente os que se referem “à
personalidade de Juscelino como ‘grande estadista” e ao projeto desenvolvimentista por ele
levado a cabo, no slogan 50 anos em 5 e no Plano de Metas. “O nacionaldesenvolvimentismo, manufaturado na fábrica isebiana, representou a argamassa que
modelou a cultura política na segunda metade dos anos cinquenta e correspondia à ilusão
que há muito movia a intelligentsia brasileira: a de imaginar-se protagonista da revolução
sinônimo de progresso” (CARDOSO, 2006: 2). Juscelino teve o ISEB como grande
elaborador e divulgador da ideologia do seu governo, de forma a mostrar o Brasil arcaico
frente ao Brasil que caminhava para o progresso. Para Ângela de Castro Gomes, o conceito
de cultura política apresenta grande plasticidade, dado ao fato de ele “permitir
explicações/interpretações sobre o comportamento políticos dos atores sociais, individuais
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
28
e coletivos, privilegiando-se seu próprio ponto de vista: percepções, vivências,
sensibilidades”. (GOMES, 2005: 47-48)
A primeira vez em que o 3 de julho foi festejado se inscreve na cultura política do
governo JK. Trata-se de uma época em que o Brasil viveu perspectivas muito intensas de
progresso, desenvolvimento, estabilidade política e liberdade de imprensa. Nessa época, o
país sentia-se confiante no progresso, apesar do pouco investimento governamental na área
social como educação, saúde e saneamento básico. O Plano de Metas, cuja síntese foi a
construção de Brasília criou uma aura de euforia, apesar das deficiências e contradições do
modelo desenvolvimentista.
O otimismo verificado durante o governo de JK refletiu-se também na área
cultural, onde uma onda de ideias novas se propagou pelos mais variados
campos do conhecimento. O projeto urbanístico de Brasília e as linhas
arrojadas de suas construções foram a consolidação de uma arquitetura
moderna que vinha sendo desenvolvida no Brasil havia algumas décadas, como
o complexo arquitetônico da Pampulha, projetada por Oscar Niemeyer, em
Belo Horizonte em 1943. (SANTOS, 1998: 234)
Os grupos políticos de Montes Claros – o PSD e PR – usaram a imprensa para
divulgar as ideias do discurso desenvolvimentista, pois era de interesse destes que os
benefícios e investimentos do Plano de Metas alcançassem o norte de Minas, e
principalmente Montes Claros. De acordo com Laurindo Mékie Pereira, “os jornais
legitimaram a ideologia oficial e procuraram construir a imagem de uma cidade ‘moderna’,
‘pacífica’ e ‘civilizada’”. (PEREIRA, 2002: 39)
Com o intuito de atrair a atenção do governo federal as festividades do 3 de julho
de 1957 foram marcadas pela euforia e expectativas frente às benesses que poderiam ser
trazidas. Um ano antes, quando o executivo municipal criou a Comissão Organizadora das
Festividades do Centenário.
Foi uma semana de espetáculos. A cidade estava preparada: as ruas centrais
foram calçadas, as ruas dos bairros próximos ao centro foram cascalhadas, os
jardins das praças estavam bem cuidados, pontes foram construídas sobre o rio
Vieira (que corta quase toda cidade), as construções velhas ostentavam pinturas
novas, a passagem de gado pelas ruas do centro, velho costume local, foi
proibida e o “majestoso parque” estava pronto. Durante o “centenário”,
realizaram-se o I Congresso do Algodão, espetáculos pirotécnicos, cavalhadas
no estádio João Rebelo, diversas solenidades religiosas e esportivas, um desfile,
histórico-folclórico, diversas palestras acercas dos “homens importantes” de
Montes Claros e a exposição agropecuária. As solenidades oficiais contaram
com as presenças do governador Bias Fortes e do presidente Juscelino
Kubitscheck. (PEREIRA&OLIVEIRA, 2003: 5)
Torna-se importante salientar que a Sociedade Rural de Montes Claros teve papel
decisivo das comemorações de julho de 1957, uma vez que o Parque de Exposições,
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
29
inaugurado no momento do centenário foi a principal obra construída. Essa relação ficou
indelevelmente marcada nos calendário das festividades de cidade, pois o 3 de julho
coincide com a Exposição Agropecuária de Montes Claros.
FIGURA 1
JK sendo recepcionado pela população no Parque de Exposições de Montes Claros
Fonte: www.montesclaros.com
A visita de JK na ocasião do Centenário foi a oportunidade para as elites locais se
mostrarem antenadas ao momento de euforia propiciada pelo projeto desenvolvimentista
do governo federal. O momento seria propício para solicitar recursos e obras com o
objetivo de projetar sobre a cidade o interesse e o desejo pelo progresso.
FIGURA 2
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
30
Montes Claros em 1953
Fonte: www.montesclaros.com
A partir de 1957, o 3 de julho foi inserido nos calendário das festividades do
município. Se neste ano a comemoração estava justificada no centenário do status de
cidade atribuída a Montes Claros, com o passar do tempo, a data passou a ser reconhecida
como a da emancipação política do município. Sobre essa mudança, torna-se necessário
investigar se houve por parte do Executivo municipal a implementação de medidas legais
com o objetivo de suprimir as comemorações do 16 de outubro, ou se as datas chegaram a
ser comemoradas alguns anos depois das festividades do centenário da cidade.
Considerações Finais
Montes Claros viveu ao longo da década de 1950 entre a “esperança e a frustração”.
A elite local imbuída na ideologia do governo JK esforçou-se para inserir a cidade dentro
dos projetos do Plano de Metas do governo federal. A comemoração do 3 de julho de 1957
foi o ponto alto desse processo onde as lideranças políticas buscaram projetar a cidade
enquanto polo regional carente de investimentos. A aura de cidade sem problemas criada
pelo Executivo Municipal destoava dos dilemas que vivam a população antes e também
depois das festividades: deficiência de fornecimento da eletricidade, ausência de
saneamento e insuficiência na distribuição de água potável continuaram a afligir a
população. Enquanto tradição inventada, as comemorações do Centenário da Cidade
foram criadas em consonância com o desenvolvimentismo do governo JK e foi se
consolidando com o passar dos anos, não como o aniversário de criação da cidade e sim
como o de emancipação política. Somente na década de 1960 “que os efeitos práticos da
intervenção do Estado como promotor da industrialização” começaram a ser sentidos. A
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
31
viabilização “da infraestrutura energética e de transportes e os incentivos fiscais da
SUDENE atraíram à região investimentos industriais em volume expressivo”. “Entretanto,
a região não assistiu passivamente ao espetáculo do período”. “A cidade de Montes Claros
foi o centro de mobilização das elites regionais em um esforço conjunto para atraírem os
investimentos do Estado e se inserirem na política desenvolvimentista”.
Referências Bibliográficas:
Fontes:
ABAIXO-ASSINADO dos habitantes do distrito e freguesia da Barra do Rio das Velhas pedindo a
sua elevação à condição de vila. Barra do Rio das Velhas, 19 de dezembro de 1832. Arquivo Público
Mineiro. Seção Provincial, SP-PP 212, Caixa 187, doc. 8.
ABAIXO-ASSINADO dos habitantes do distrito e freguesia da Barra do Rio das Velhas pedindo a
sua elevação à condição de vila. Barra do Rio das Velhas, 23 de dezembro de 1855. Arquivo Público
Mineiro. Seção Provincial, SP-PP 213, Caixa 231, doc. 5.
MARTINS JÚNIOR, Elder. Parabéns, Montes Claros. Gazeta do Norte, 3 de julho de 2009, p.13.
Bibliografia:
CARDOSO, Ana Maria Ribas. Oficina do mito: o ISEB nos anos JK. Anais... Rio de Janeiro, 2006.
COSTA, Joaquim Ribeiro. Toponímia de Minas Gerais. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1970.
GOMES, Ângela de Castro. História, historiografia e cultura política no Brasil: algumas reflexões.
In: Bicalho, Maria Fernanda Batista; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva; SOIHET, Rachel (Orgs).
Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de História. Rio de Janeiro:
Mauad, 2005.
MORAES, Maria Fernanda. Dos arraiais, vilas e caminhos: a rede urbana das Minas coloniais. In
RESENDE, Maria Efigênia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos (Orgs). História de Minas Gerais – as
minas setecentistas. Belo Horizonte: Autêntica-Companhia do Tempo, 2007, v. 1.
PAULA, Hermes de. Montes Claros, sua história, sua gente e seus costumes. Montes Claros: Pongetti, 1979.
PEREIRA, Laurindo Mékie; OLIVEIRA, Marcos Fábio Martins. A invenção do 3 de julho em
Montes Claros. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes Claros, v.5, n.1, jan-jun.2003.
PEREIRA, Laurindo Mékie. A cidade do favor: Montes Claros em meados do séc XX. Montes Claros:
Editora Unimontes, 2002.
SANTOS, Joaquim Ferreira dos. 1958: o ano que não deveria terminar. 5º ed. Rio de Janeiro:
Record, 1998.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
32
A inserção política dos intelectuais românticos e o debate sobre a escravidão e a
força de trabalho: o caso de Francisco de Salles Torres Homem (1831-1839)
Bruno Silveira Paiva
Mestrando em História pela UFSJ
Bolsista CAPES/REUNI
brunopaiva-bq@hotmail.com
Resumo: Esta pesquisa busca lançar luz sobre o debate acerca da escravidão e das
alternativas da força de trabalho entre os anos de 1831 a 1839 no Brasil Imperial. Neste
momento, em que o Brasil se lançava na corrida para se constituir como uma nação
moderna, a questão envolvendo a relação entre um Estado-nacional de caráter liberal e a
escravidão era temática importante nos discursos dos homens públicos. Na historiografia
brasileira contemporânea há duas vertentes de análise, uma que aponta a existência de
compatibilidade entre os termos nação, liberalismo e escravidão para o Brasil do século
XIX, e outra que aponta a incompatibilidade entre os termos após a independência. A
partir destas diferentes perspectivas de análise, esta pesquisa busca traçar outras posturas
internas à elite, que mostram uma relação tensa e dúbia entre nação e escravidão,
impedindo tanto uma síntese que minimize as tensões internas como uma
incompatibilidade entre os termos. Sendo assim, com a finalidade pensar a postura
antiescravista, compartilhada por muitos homens públicos do Brasil Imperial, temos como
objeto central da pesquisa os escritos de Francisco de Salles Torres Homem, nos
periódicos em que foi redator durante os anos de 1837 a 1839, no caso o Jornal dos Debates
Políticos e Literários no ano de 1837 e Aurora Fluminense em 1838 e 1839.
Palavras-chave: imprensa periódica, escravidão, nação.
Resumen: Esta investigaciónpretendearrojar luz sobreel debateacerca de la esclavitudy las
alternativas dela mano de obraentre losaños1831a1839 enel Brasil imperial. En este
momento, en la que Brasilfue lanzadoen la carrerapara calificar comouna nación moderna,
el tema que involucra ala relación entre el Estado-nación de carácter liberal y la
esclavitudfuetema importante enlos discursosde los hombres públicos. En la
historiografíabrasileña contemporánea, hay dos formasde análisis: unoque apunta ala
existencia decompatibilidad entre lostérminosde la nación, el liberalismo y la esclavituda
laBrasildel siglo XIX, y otroque apunta auna incompatibilidad entrelos términosdespués de
la independencia. A partir de estasdiferentes perspectivas deanálisis, estainvestigación tiene
como objetivoelaborarotras posicionesdentro dela élite, que muestran una relación tensay
ambiguaentre la nación yla esclavitud, evitando tantouna síntesisque reduzcan al mínimolas
tensiones internascomouna falta de coincidenciaentre los términos. Por lo tanto,con el fin
deque lapostura anti-esclavitud, compartida por muchoshombres públicosdelBrasilImperial,
tenemos como el objeto central deestudio delos escritos deFrancisco
deSallesTorresHomem, en lasrevistas en las quefue editordurante los1837años para1839,
elsi elDiariode los debates políticosy literarios en1837 yAuroraFluminenseen1838 y 1839.
Palabras clave:prensa periódica, esclavitud, nación.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
33
Introdução
Esta pesquisa26 busca lançar luz sobre o debate acerca da escravidão e das
alternativas da força de trabalho entre os anos de 1837 a 1839 no Brasil Imperial. Nesses
anos, que fazem parte do período regencial (1831-1840), época marcadamente agitada e
conturbada da história do Brasil, as discussões em torno do que viriam a ser o Estadonacional brasileiro se faziam presentes em todas as instâncias da sociedade, sendo o debate
acerca da escravidão elemento determinante na formação da identidade nacional.
Nesse momento, em que o Brasil se lançava na corrida para se constituir como uma
nação moderna, a questão envolvendo a relação entre um Estado-nacional de caráter liberal
e a escravidão era temática importante nos discursos dos homens públicos do país. Na
historiografia brasileira contemporânea, alguns trabalhos já apontam a existência de
compatibilidade entre os termos nação, liberalismo e escravidão para o Brasil do século
XIX, sendo um dos autores de destaque dessa posição Rafael Marquese. Por outro lado,
temos a perspectiva de José Murilo de Carvalho, que aponta a incompatibilidade entre os
termos após a independência. A partir dessas diferentes perspectivas de análise, a presente
pesquisa busca traçar outras posturas internas à elite, que mostram uma relação tensa e
dúbia entre nação e escravidão, impedindo tanto uma síntese que minimize as tensões
internas quanto uma incompatibilidade entre os termos.
A fim de pensar a postura antiescravista, compartilhada por muitos homens
públicos do Brasil Imperial, temos como objeto central da pesquisa a análise dos escritos de
Francisco de Salles Torres Homem nos periódicos em que foi redator durante os anos de
1837 a 1839, no caso o Jornal dos Debates Políticos e Literários (JDPL) no ano de 1837 e Aurora
Fluminense em 1838 e 1839.
Para além desta análise interna, que prioriza o texto e as representações ali contidas,
serão explicitados pontos referentes à sua inserção em condições sociais, econômicas e
políticas da época, por serem fatores determinantes na produção do discurso sobre a
temática da escravidão. Dedicaremos atenção principalmente às redes de sociabilidade pelas
quais ele circulou, pois seu estudo é fator central para a história intelectual, permitindo uma
reconstituição da evolução do meio intelectual em questão. Entre as redes de sociabilidade
26
O presente artigo é resultado de uma pesquisa de iniciação científica desenvolvida na Universidade Federal
de São João Del Rei (UFSJ) entre agosto de 2010 e julho de 2011 sob orientação do Prof. Dr. Danilo José
Zioni Ferretti
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
34
que aqui nos interessa, temos a Sociedade Defensora da Liberdade e Independência
(SDLIN) do Rio de Janeiro.
Discussão bibliográfica
Na conformação dos diferentes projetos para a nação, a temática da escravidão
aparece como elemento determinante na formação da identidade nacional, conforme
apontado por István Jancsó e João Paulo Pimenta. Pois o escravismo era a “variável a
determinar o horizonte mental desses homens, igualando-os quanto a esse ponto, para além
das diferenças de visões de futuro e da cultura política que professavam” (JANCSÓ;
PIMENTA, 2000: 172). Vemos, portanto, que estes autores apontam a proximidade
existente entre nação e escravidão no Brasil Império.
Seguindo esta linha historiográfica, que aponta para a compatibilidade entre os
termos nação, escravidão e liberalismo no Brasil do século XIX, temos Rafael Marquese.
Ao estudar as práticas e discursos legitimadores do escravismo no Brasil oitocentista,
afirma a incorporação, sem grandes tensões e contradições, nos projetos das elites políticas
para a elaboração do novo Estado-nacional, a continuidade da escravidão, sendo esta um
projeto para o futuro. O entrelaçamento entre uma nação de caráter liberal e a escravidão,
segundo Marquese, se daria principalmente pela reafirmação do princípio colonial da
soberania doméstica, na qual a gestão dos escravos caberia somente aos senhores, com o
Estado interferindo apenas em caso de insurreições ou assassinatos. Este argumento era
reforçado nos discursos da economia política da época, que tinha como um dos pontos
centrais, defender a separação entre a esfera de ação do Estado e a dos agentes econômicos
individuais.
Como desdobramento da perspectiva de Rafael Marquese, temos o trabalho de seu
orientando Tamis Parron. Se pautando na análise das falas parlamentares tanto no Senado
quanto na Câmara dos Deputados, pleiteia a existência de uma política da escravidão.
Constituída a partir de “uma rede de alianças políticas e sociais costuradas em favor da
estabilidade institucional da escravidão” (PARRON, 2009: 11-12), que fazendo uso dos
órgãos do Estado procuraram beneficiar os interesses das classes senhoriais. E seria a partir
da ascensão do movimento do Regresso, em 1835, que esta prática ganharia sua base
política. Primeiramente sob a forma da política do contrabando negreiro (1835-1850), surgindo
posteriormente a política da escravidão na era pós-contrabando (1850-1865).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
35
Em posição contrária aos autores acima referidos, temos a perspectiva de José
Murilo de Carvalho, visto que ele aponta para existência de incompatibilidade entre nação e
escravidão. Segundo este autor, após a independência, a escravidão passa a ser tratada não
mais por autoridades coloniais, mas por cidadãos preocupados com a formação da nação,
“a liberdade não é vista como problema individual, mas como questão pública”
(CARVALHO, 1998: 35). Sendo assim, entra em pauta a dimensão da “razão nacional”
como principal força de crítica a escravidão, que no caso brasileiro, substituiu o papel do
cristianismo e dos ideais ilustrados na crítica a escravidão em outros contextos.
Mesmo reconhecendo a contribuição dos estudos acima referidos, o presente
trabalho busca ampliar o quadro de referências para o tratamento da temática escravista no
Brasil Império. Sendo assim, daremos enfoque a outras posturas internas a elite, trazendo
para o debate o posicionamento de grupos que entendiam nação e escravidão como
elementos paradoxais, buscando assim reintroduzir o caráter contraditório e tenso da
relação entre estes dois termos nos moldes do liberalismo.
A atenção dada ao mundo texto se faz imprescindível no presente trabalho, visto
que ele é central para a história intelectual, pois esta “passa obrigatoriamente pela pesquisa,
longa e ingrata, e pela exegese de textos, e particularmente de textos impressos, primeiro
suporte dos fatos de opinião, em cuja gênese, circulação e transmissão os intelectuais
desempenham um papel decisivo”(SIRINELLI, 2003: 245).
Mas a história intelectual não se pauta somente na análise interna do texto, ela
privilegia também uma abordagem externa a ele, pois é necessário saber em quais
condições econômicas, políticas e sociais que propiciaram sua elaboração e eventuais
ressignificações. E nas palavras de Dosse: “a história intelectual só me parece fecunda no
momento em que pensa juntos os dois pólos” (DOSSE, 2004: 299).
Daí decorre a necessidade de darmos atenção as redes de sociabilidade pelas quais
Torres Homem circulou, pois de acordo com Sirinelli, as redes de sociabilidade nos dizem
sobre microclimas que organizam o mundo intelectual, permitindo uma reconstituição da
evolução de tal meio. “E, assim entendida, a palavra sociabilidade reveste-se portanto de
uma dupla acepção, ao mesmo tempo “redes” que estruturam e “microclima” que
caracteriza um microcosmo intelectual particular”(SIRINELLI, 2003: 252).
E para Dosse, esta abordagem nos permite desfazer da idéia bourdieusiana de
sociabilidade apenas como estratégia de otimização dos interesses e conquista de poder.
Coloca outros parâmetros em jogo, fazendo valer a complexidade e a contingência do
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
36
campo intelectual. “Assim, a leitura em termos de interesse pode ser substituída por uma
abordagem que valorize o campo intelectual como campo magnético, sobretudo em torno
do conceito de afinidade eletiva, como faz Michael Löwi”(DOSSE, 2004: 303).
O jornalista como intelectual no Brasil Império e suas sociabilidades
A figura do homem público de letras, intelectual que exercia atividades de jornalista
(redator) ou panfletário (gazeteiro), surge entre meados do século XVIII e início do século
XIX. Com heranças da República das Letras, em conjunto com as noções de modernidade
política, entre elas a liberdade de expressão em espaços públicos, irá fazer uso da imprensa
de opinião, também surgida neste contexto, para propagar suas idéias. Este novo ator
histórico estava imbuído de pretensões tanto políticas como pedagógicas, “é o tipo do
escritor patriota, difusor de idéias e pelejador de embates e que achava terreno fértil para
atuar em uma época repleta de transformações”(MOREL, 2005: 167).
Mas a existência de um meio intelectual, no qual o jornalista estaria imerso, exigia a
existência de um espaço público. No Brasil, a cidade do Rio de Janeiro é um dos espaços
públicos em transformação no século XIX, portador de uma dimensão política e de
extrema importância para se entender os princípios da nação que estava se forjando. Frente
ao papel marcadamente político que a opinião pública recebe, os jornalistas irão se
apresentar como porta vozes da mesma. Eles seriam os agentes propagadores do
esclarecimento em várias direções, visando construir uma opinião, reforçando a concepção
de que estariam imbuídos de uma missão civilizadora, esclarecedora e pedagógica.
No Brasil, a vacância do trono em 1831 após a abdicação de D. Pedro I, significou
um relativo enfraquecimento do poder monárquico, a partir daí, a opinião pública se
apresenta com tom mais exacerbado, fruto não só do crescimento da imprensa periódica,
mas também pela proliferação de associações filantrópicas, maçônicas e patrióticas. E será
sobre um destes espaços de sociabilidade emergentes, a Sociedade Defensora da Liberdade
e Independência do Rio de Janeiro (SDLIN), que passaremos a dedicar atenção, visto ser
este local um dos principais núcleos de aglomeração dos adeptos do liberalismo moderado,
entre os quais se encontra Torres Homem.
A Sociedade Defensora da Liberdade e Independência foi a pioneira entre estas
novas formas de associação de caráter político, surgida primeiramente na cidade de São
Paulo, em 29 de março de 1831, e posteriormente atingindo todo o país. A SDLIN do Rio
de Janeiro foi fundada em 10 de maio de 1831 sobre a tutela do exaltado Antonio Borges
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
37
da Fonseca, que após a abdicação se converteria momentaneamente em moderado. Ela
funcionaria, tendo como objetivos primordiais a defesa da liberdade e da independência
nacional, princípios estes evocados de forma vaga. Porém, segundo Marcello Basile, ela
contribuiria “para a preservação da ordem e da tranqüilidade pública, tão periclitante na
época, constituindo-se em sustentáculo da Regência no seio do espaço público”(BASILE,
2004: 85).
Assunto que diretamente nos interessa, e sem dúvida o mais polêmico, a questão do
tráfico negreiro para o Brasil, foi colocada em pauta por Evaristo em janeiro de 1832. Ele
então propôs a criação de uma comissão para averiguar e denunciar os abusos contra a lei
de 7 de novembro de 1831, que proibia o comércio de escravos. O mesmo teor tinham as
emendas propostas por Camara Lima e Januário da Cunha Barbosa, o primeiro queria por
parte da Regência, sanções mais severas aos navios negreiros, e o segundo, pleiteava o
envio de uma representação ao governo afim de protestar acerca da entrada ilegal de
africanos (BASILE, 2004: 102-103).
As propostas acima referidas deram fruto ao requerimento enviado à Regência em
fevereiro de 1834, tendo como pontos principais o desrespeito ao tratado anglo-brasileiro
de 1826 e à lei antitráfico de 1831. Denunciavam a continuidade do tráfico por toda a costa
brasileira, a conivência de autoridades locais subornadas, pediam a ampliação da pena de
pirataria para pessoas de outras nacionalidades, e também a necessidade de espalhar
informantes por toda a costa, que ficariam encarregados de falar para onde estariam indo
os africanos desembarcados e acionar os cruzeiros para a interceptação dos navios
negreiros (BASILE, 2004: 104).
Apesar da discordância de qual a melhor forma para combater o tráfico de
escravos, havia na Defensora, a hegemonia da idéia de que a continuidade do tráfico era
responsável pelo não andamento da civilização no Brasil, pois ela mantinha situações como
a apatia do homem livre frente ao trabalho, estagnação do capital, depravação moral das
famílias e atraso na indústria do país. Para reverter esta situação, era necessário promover o
incentivo à vinda de imigrantes europeus, visto que estes teriam melhores condições
intelectuais e morais do que os africanos para promover o tão ambicionado progresso da
nação.
Partiu também de Evaristo a idéia de promover um concurso, que oferecia prêmio
de 400$000 mil réis a quem apresentasse a melhor memória analítica do tráfico de escravos,
mostrando seus inconvenientes e odiosidades. Porém, até o fechamento da Defensora em
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
38
1835 não se tem nenhuma outra informação sobre o concurso, não sendo possível saber
quem foram os candidatos. Sabe-se apenas que a Memória analítica acerca do comércio de escravos
e acerca dos males da escravidão doméstica, de autoria de Frederico Leopoldo Cézar Burlamaque,
foi preparada para o concurso. “Publicada somente em 1837, é possível que tenha sido a
vencedora do concurso, mas nada garante, pois nem mesmo a obra apresenta qualquer
menção a isto”(BASILE, 2004: 105).
Mesmo não tendo informações precisas sobre o concurso promovido pela
Defensora, conforme explicitado acima, colocamos como hipótese, que o texto escrito por
Torres Homem, Considerações econômicas sobre a escravatura, publicado na revista Nitheroy, em
1836, foi outro desdobramento de tal concurso. Esta hipótese se coloca pelo fato de o
texto em questão preencher todos os quatro pontos do programa relativo ao concurso, e
ter sido publicado no contexto do mesmo, por um autor inserido na sociabilidade da
SDLIN.
Salles Torres Homem não pode acompanhar de perto todo o processo de
fragmentação que deu fim a SDLIN do Rio de Janeiro e ao partido moderado, pois desde o
ano de 1833 ele já se encontrava na França, como adido da legação diplomática do Brasil
em Paris, ocupação conseguida por intermédio de seu padrinho político, Evaristo da Veiga.
Durante os anos vividos em Paris, Torres Homem, conjuntamente com Domingos José
Gonçalves de Magalhães e Manoel de Araújo Porto Alegre, realizou o projeto de
publicação da Nitheroy – Revista Brasilense de Ciências, Letras e Artes. Essa obra é considerada o
marco de fundação do movimento intelectual romântico no Brasil Império, com seus dois
únicos volumes sendo publicados em 1836.
Na volta ao Brasil, em 1837, Torres Homem, Gonçalves de Magalhães e Araújo
Porto Alegre deram continuidade a suas idéias por meio da imprensa periódica. Eles
criaram então, no Rio de Janeiro, em maio, o Jornal dos Debates Políticos e Literários (JDPL),
cabendo a Torres Homem o papel de redator. No presente trabalho, como a centralidade
gira em torno da questão da escravidão, será dada atenção apenas aos artigos que versem
sobre tal temática, procurando levantar quais os principais argumentos levantados por
Torres Homem para combater a instituição escravista, ao mesmo tempo, pretende-se situar
o cenário político no qual ele escreve.
A moderação no Jornal dos Debates Políticos e Literários
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
39
No fim de 1836 a regência do padre Diogo Antônio Feijó vivia um momento de
grande instabilidade. Evaristo da Veiga, que era um dos seus principais aliados políticos e
líder do governo na Câmara, decidiu afastar-se por não aceitar o arbítrio do regente na
formação do governo. O rompimento final veio no início de 1837, após uma conversa com
Feijó, na qual expôs suas insatisfações. Como Evaristo era o principal líder e articulador
político de Torres Homem e seu grupo, e numa demonstração de fidelidade a ele, ganha
ressonância nas páginas do JDLP, já em seu primeiro número, uma crítica as práticas
políticas do governo Feijó. Esta atitude pode ser entendida como uma aliança pontual com
o grupo articulado em torno de Pereira Vasconcellos, que desde a derrota nas eleições para
regente passou a ser o líder de oposição ao governo Feijó.
Tal aliança era pontual porque, no que diz respeito a escravidão e ao tráfico de
escravos, Torres Homem mantém distância das idéias pró escravistas de Vasconcellos e seu
grupo. O distanciamento nesta questão se faria presente nas páginas do JDPL, mesmo que
de forma tímida, procurando não polemizar muito com o grupo do qual se encontrava
próximo no momento. Sendo assim, os artigos sobre a escravidão que aparecem no JDPL,
parecem se pautar apenas na desqualificação da instituição escravista, deixando de lado a
questão do tráfico de escravos.
Buscando maior publicidade para o artigo que havia publicado na Nitheroy em 1836,
Considerações Econômicas sobre a Escravatura, Torres Homem reproduz trechos do mesmo nas
páginas do JDPL. A primeira parte aparece no n°5, de 17 de maio de 1837, trazendo o
paralelo entre o Norte e o Sul dos Estados Unidos. E a segunda parte vem no n°
subseqüente, em 20 de maio de 1837, apresentando a influência desastrosa que a escravidão
exerceu sobre a indústria dos Romanos.
O exemplo dos Estados Unidos aparecia com o intuito de demonstrar como um
país, com a mesma origem política, religiosa e social, apresentava enorme diferença no
desenvolvimento e grau de riqueza entre suas regiões. O Sul, apesar de melhor clima e solo
mais fértil, era inferior em prosperidade e opulência do que o Norte. Mas a diferença entre
as duas regiões não derivava das leis tarifárias, como argumentavam os sulistas. Para Torres
Homem “o verdadeiro motivo, a causa real daquele resultado está em outra parte mui
diversa: procurai-a na escravatura, e nas suas funestas conseqüências” (JDPL, 17/05/1837:
n°5).
Entre os males provocados pela escravidão estaria o atraso sobre a atividade
industrial das sociedades. Pois o escravo, não produzindo em benefício próprio e sem
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
40
perspectiva de futuro entrega-se a inércia e a preguiça, não tendo, portanto, o desejo de
difundir sua capacidade produtora. Somente o trabalhador livre seria capaz de propiciar o
desenvolvimento das capacidades industriais de um país. Isto porque, diferentemente do
escravo, ele produz em benefício próprio, na busca por melhorar o seu destino,
procurando assim desenvolver suas capacidades produtoras. Ou seja, a escravatura se
apresenta como um instrumento ruinoso de produção pois, “o obreiro livre produz
incomparavelmente mais que o escravo: do mesmo modo que a liberdade do trabalhador
favorece a potencia da indústria, e o desenvolvimento da riqueza, a servidão produz o
resultado inverso”(JDPL, 17/05/1837: n°5).
Tomando como referência Adam Smith, Torres Homem também enfatizou a
superioridade do trabalhador livre em relação ao escravo. Esta superioridade poderia ser
verificada no fato do trabalhador livre ser capaz de trabalhar nos diferentes ramos da
indústria, produzir sempre mais e em melhor qualidade, por sua inteligência e habilidade,
condição da qual o escravo não desfrutava, devido ao embrutecimento causado por seu
estado de servidão, “que o impedem de levantar-se acima de uma estúpida rotina, e de
aplicar a produção outro trabalho além do físico, maquinal, esclarecido apenas de um
pálido reflexo de inteligência”(JDPL, 17/05/1837: n°5).
Recairia também sobre a escravidão, a responsabilidade de criar entre os homens da
classe livre o desprezo pelas ocupações industriosas, valorizando apenas as profissões que
exerçam influência e ação sobre outros homens e a sociedade. O habitante do Sul nasce
como empregado público, e nada mais o serve, desdenha das profissões industriosas e as
entrega aos negros. Já o do Norte, “que escravos não possui, nasce agricultor,
manufatureiro, negociante, artista”(JDPL, 17/05/1837: n°5).
Fazendo uso da obra de Tocqueville, publicada em 1835, Torres Homem ressalta as
diferenças entre o Sul e o Norte. Na perspectiva de Tocqueville, a escravidão era mais
funesta ao senhor do que ao escravo, esta circunstância poderia ser verificada facilmente
seguindo o rio Ohio. Em uma margem a Kentucky escravista, inundada de florestas
primitivas, a sociedade parece adormecida, só a natureza mostra vida. Do outro lado a
Ohio livre, movimentada, cheia de indústrias, campos cultivados e abastança, o homem se
encontra contente porque trabalha.
Por fim, Torres Homem ataca a idéia de que o trabalho escravo é gratuito ao
senhor. Pois se gastava muito na compra, manutenção de alimentação e vestimenta, cura de
moléstias e constante necessidade de reposição do contingente, devido a alta taxa de
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
41
mortalidade entre os escravos africanos. Argumenta também ser a escravidão responsável
pelo embargo do mercado consumidor de um país, outro meio de extrema importância
para a produção de riquezas e prosperidade material.
Entre os Romanos, a maciça introdução de escravos fizera com que eles perdessem
o gosto pela indústria e agricultura, “que de primeiro tanto haviam honrado”. E continua
dizendo que, “de dia em dia desmedrou a vida dos campos, e o amor do trabalho, e que a
introdução de escravos torceu para o ócio o animo da população Romana”. A escravidão
também gerava a concentração de terras, eliminando os pequenos proprietários livres, e
como decorrência, tinha-se a completa decadência da agricultura (JDPL, 20/05/1837: n°6).
Torres Homem reforçava, com o exemplo romano, o empecilho que a escravidão
representava no desenvolvimento da indústria. Em suas palavras, “a mecânica prática dos
antigos consistia essencialmente em um espantoso consumo de homens empregados como
força muscular” (JDPL, 20/05/1837: n°6). Sendo assim, seria anacronismo para as
sociedades modernas o uso do escravo como máquina. Pois os progressos na indústria não
se dão mediante o trabalho muscular, mas sim pelo desenvolvimento das forças
intelectuais, tendo o homem que criar as condições para operar sobre a matéria pelo
intermédio da matéria. Esta idéia se faz presente no seguinte trecho:
Recorrendo à potência do vapor, e das maquinas em vez do trabalho muscular
do escravo, a sociedade moderna teria feito precisamente aquilo que reclamam
os interesses da indústria, e o respeito para a natureza do homem, isto é, o
operar sobre a matéria pelo intermédio da matéria, como condição única de
sucesso, e reservar a intervenção do trabalho dos órgãos físicos a não ser outra
coisa mais do que a expressão da inteligência, como na marcha do navio
intervém a mão do piloto (JDPL, 20/05/1837: n°6).
Após quatro meses sem aparecer nas folhas do JDPL, a temática da escravidão
ganha espaço novamente no mês de outubro, nos números 36 e 37. Nestes dois números,
aparecem dois artigos comentando a obra de Francisco Burlamaque, Memória analítica acerca
do comércio de escravos e acerca dos males da escravidão doméstica, que havia sido publicada no ano
de 1837. Nas linhas destes artigos aparecem palavras elogiosas ao trabalho de Burlamaque,
por ressaltar a relutância do espírito humano as idéias de progresso, decorrente dos longos
anos vividos sob os mesmos auspícios de uma razão pública.
Tal é a posição moral do Brasil relativamente à servidão doméstica. Nós
vivemos desde três séculos debaixo do jugo do prejuízo, que nos afigura a
indústria servil como única possível e lucrativa sob o céu ardente dos trópicos,
e opõem-se com a maior contumácia a toda inovação no sistema de trabalho.
Contra estes prejuízos as leis penais, todas as medidas de repressão serão
sempre ineficazes e impotentes, tanto que uma revolução moral não se operar
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
42
nos espíritos, e mudar os sentimentos públicos a este respeito (JDPL,
07/10/1837: n°36).
Aponta que mesmo não se tratando de um trabalho original, por ser uma versão
resumida do quarto volume do “Tratado de Legislação” de Charles Comte, a obra deixa de
ser importante. Ela não fica devendo em nada nos pontos que se referem a imoralidade do
comércio de escravos, a vantagem do trabalho livre sobre o escravo e nas influências que
exercem sobre os costumes, civilização e liberdade. Ressalta a importância da Memória em
demonstrar como a existência da escravatura está em desarmonia com os sentimentos
morais e religiosos. Mas a parte de maior relevância da Memória vem em seu terceiro
capítulo, quando se presta a mostrar o retardo causado pela escravidão na produção das
riquezas de uma sociedade.
Até o fim de 1837, momento no qual Torres Homem encerra sua atuação como
redator do JDPL, a temática da escravidão não volta a ter espaço nas folhas deste
periódico. Nota-se, portanto, que os artigos ali contidos parecem se pautar apenas na
desqualificação da instituição escravista, deixando de lado a questão do tráfico de escravos.
Vale ressaltar, que em setembro de 1837 Feijó havia renunciado ao cargo de
Regente. Araújo Lima então assumiu o posto e formou o Gabinete de 19 de setembro, no
qual estavam presentes figuras como Bernardo Pereira de Vasconcellos, Joaquim José
Rodrigues Torres, José da Costa Carvalho e Calmom du Pin, dando início a política do
Regresso nos órgãos do Estado. Tal governo se caracterizou pela proximidade de seus
líderes com a classe senhorial, decorrendo daí uma prática política de incentivo a
continuidade da escravidão e de intensificação do contrabando de escravos, que havia sido
proibido com a lei de 7 de novembro de 1831.
A Aurora Fluminense e a oposição ao Regresso
Em maio de 1838, quando as práticas políticas do Regresso já estão em curso,
Torres Homem refunda a Aurora Fluminense e assume o papel de redator. Esta folha, que
havia circulado até o final de 1835 sob a direção de Evaristo da Veiga, reaparece como um
dos periódicos de oposição política ao Regresso. Nota-se, portanto, que a aliança existente
em 1837 entre Torres Homem e o grupo articulado por Vasconcellos, que visava acabar
com o governo Feijó, havia sido desfeita. Frente a esta situação, Torres Homem estabelece
como um dos pontos centrais de oposição política ao Regresso, o debate a cerca da
escravidão e do tráfico de escravos.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
43
Sendo assim, no número 10 da Aurora, em 23 de maio de 1838, aparece um artigo
no qual se definem os pontos que diferenciam politicamente a oposição do Ministério.
Entre eles, “a questão da escravatura é uma das mais transcendentes das que desde alguns
anos ventila-se no seio de nosso país”(Aurora Fluminense, 23/05/1838: n°10). Se fazia
necessário então combater o contrabando de escravos, que a partir da ascensão do
Gabinete de 19 de setembro, havia recebido um alento desconhecido nos anos anteriores.
Segundo Torres Homem, esta tolerância para com o contrabando de escravos, seria fruto
da conivência do “principal Ministro do Gabinete”, no caso Pereira Vasconcellos, que
ocupava as pastas da Justiça e do Império, pois suas idéias e sentimentos “são mais que
muito favoráveis a continuação deste horroroso flagelo de nosso país” (Aurora Fluminense,
25/05/1838: n°11), e que “nos últimos anos pronunciou-se formalmente em favor dos
erros dos plantadores” (Aurora Fluminense, 23/05/1838: n°10).
A continuidade do contrabando de escravos servia apenas para trazer prejuízos
públicos, mas “a popularidade do Governo requer que se serre os olhos sobre a audácia do
contrabando”. Porém, “os cidadãos superiores aos erros de seu tempo, e que vêm não só
uma lepra corruptora da civilização do país, mais ainda um obstáculo imenso aos
progressos da produção de riquezas, deploram profundamente a continuação desse
tráfico”(Aurora Fluminense, 23/05/1838: n°10).
Portanto,
o
melhoramento
da
condição
material
do
país
passava
incondicionalmente pela substituição do trabalho servil pelo trabalho livre, visto que,
a cessação do tráfico de escravos não é simplesmente um progresso moral, é
ainda uma revolução industrial, que se fora efetuada, mudaria em poucos anos a
face do Brasil. A presença da escravatura desonra o trabalho, afugenta o obreiro
estrangeiro, impossibilita os progressos da agricultura, e das artes mecânicas,
tão raras ou imperfeitas entre nós ” (Aurora Fluminense, 01/06/1838: n°14).
Intentando fortalecer o combate ao tráfico de escravos, Torres Homem da
publicidade nas folhas da Aurora, às constantes pressões britânicas para que o Brasil dê fim
a este comércio ilícito. Cita uma matéria do jornal Times de Londres, a respeito de uma
petição feita pelo Lord Bronghan, com 17.000 assinaturas de pessoas importantes de Leeds
contra o comércio de escravos. Nesta petição pede-se grande atenção ao Porto do Rio de
Janeiro, que em um só mês teve o desembarque de 4.500 escravos (Aurora Fluminense,
01/06/1838: n°14).
Tem-se também a referência a uma nota do representante da Majestade Britânica na
Corte, Sr. Ouseley, na qual faz reclamações ao Gabinete sobre o contrabando de africanos.
E sem fazer cerimônia, “não repara em acusar pelo modo o mais explícito o Sr. Ministro da
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
44
Justiça de conivência e patrocínio a respeito daquele tráfico; e que em toda a sua nota a
uma virulência tão estranha como ofensiva do decoro do governo Imperial”. Alguns
ministros viram a importância desta nota, e que tratá-la com indiferença “equivaleria a
expor o governo à reiteradas humilhações, as quais em último resultado refletem-se sobre a
nação, cuja dignidade eles tinham por missão defender e sustentar” (Aurora Fluminense,
21/02/1839: n°112).
Outra investida contra o tráfico de escravos aparece na Aurora de 11 de junho de
1838, quando abre-se espaço para uma carta enviada por leitor desconhecido. Na dita carta,
o tráfico clandestino de escravos aparece como responsável por provocar, entre a
população do Rio de Janeiro, vários males a saúde. Pois os escravos estavam sendo
introduzidos diretamente no meio da população, com todas as moléstias adquiridas nos
navios, e como resultado tinha-se “o desenvolvimento espantoso, que ultimamente se tem
visto de moléstias tais com as bexigas, febres, infecções de olhos, etc, que vão ceifando a
nossa descuidada população”. O autor da carta também cobra providências da própria
nação para acabar com este comércio tão infame, antes que uma nação estrangeira resolva
impor leis e ferir a dignidade de nosso país (Aurora Fluminense, 11/06/1838: n°17).
O artigo de maior relevância contra a instituição escravista e o contrabando de
escravos viria nas páginas do número 140 da Aurora, de 14 de maio 1839. Torres Homem
começa alertando sobre a intensa atividade do tráfico de escravos, que continuava por toda
a costa brasileira. Responsabiliza os lavradores, negociantes, Ministros, Juízes de Paz e
autoridades subalternas de “comerciarem, ou de darem favor ao comércio de carne
humana, aliciados uns pelo lucro, outros pelos perigos que vão correr, si pretenderem
resistir a sanha do interesse individual, afrontar a massa dos erros”. Diz também, que tal
comércio acontece intensamente porque os traficantes sabem da impunidade (Aurora
Fluminense, 14/05/1839: n°140).
Fala do prejuízo público com este contrabando, mas que ainda não imprime
vergonha sobre esta espécie de crime. E para por termo a esta prática, confia na persuasão,
mesmo que seja lenta e seus resultados incertos, “e muito se terá feito, si o pré-conceito
favorável a introdução da escravatura no Brasil for substituída por idéias mais sãs e
judiciosas” (Aurora Fluminense, 14/05/1839: n°140). Seria necessário ilustrar a massa dos
cidadãos para se atentar a desumanidade deste comércio, o prejuízo causado a indústria do
país e a cada um destes cidadãos.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
45
Chama os escravos de máquinas caducas, sem interesse pelo aperfeiçoamento dos
métodos de produção, sem serventia para a arte e o custeio das manufaturas, que todos os
anos levam para debaixo da terra grande quantidade de capitais. Por estes motivos, a
escravidão é um fator que contribui para o atraso da lavoura e da indústria do país,
perpetuando a ignorância e a apatia dos cultivadores. E estes, pela
facilidade de achar a mão estas máquinas já feitas, impede que se lancem os
olhos para tantos melhoramentos, introduzidos pela atividade do espírito
Europeu nos processos da indústria, e que procuremos para o Brasil uma
povoação melhor, convidando de outras nações colonos, que por conta de
particulares venham cultivar nosso solo (Aurora Fluminense, 14/05/1839: n°140).
No que diz respeito à corrupção dos costumes, outro argumento em voga na época
para desqualificar a escravidão, Torres Homem identifica o desdenho da classe livre pelo
trabalho, visto sempre como uma condição servil, o vício levado ao seio das famílias, afinal
muitas crianças são confiadas a escravos que lhes dão exemplos de depravação e
imoralidade, “só pedagogos da infâmia, e correio dos crimes”. E a pior das influências,
seria o desdobramento da falta de moralidade na esfera pública. Afinal,
como será livre e moral em carreira pública aqueles homens sempre
acostumados com o despotismo e a tirania na esfera doméstica? Suas idéias de
liberdade não se ressentiram destes hábitos? Como ratificar o coração dos
homens com as relações entre senhores e escravos? Que facilidade aberta para
toda a espécie de desordens morais! [...] E todavia, continua-se, sem
consciência, e fechando-se os olhos aos perigos de um futuro medonho, a
encher nosso país de recrutas da escravidão, cujo número sem exageração
computasse a mais de 50 mil cada ano! (Aurora Fluminense, 14/05/1839: n°140)
Torres Homem encerra a publicação da Aurora Fluminense em julho de 1839.
Posteriormente, ele irá assumir a redação do jornal O Despertador, mas que pelo curto
espaço de tempo para realização da presente pesquisa, não foi possível realizar a análise do
mesmo.
Considerações finais
No Brasil Império, a fase que compreende o período regencial (1831-1840), foi
marcada pelo grande número de projetos políticos visando à implementação do Estadonacional brasileiro. E em todos eles, a temática da escravidão aparece como elemento
determinante, seja para se pensar suas relações com uma nação de caráter liberal, ou na
formação da identidade nacional.
Neste momento, assiste-se também uma expansão do espaço público, ganhando em
importância a imprensa periódica. Frente a estas duas circunstâncias, os jornalistas
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
46
apresentam-se como intelectuais capazes de dotar a nação da dimensão simbólica da qual
ela precisa ser investida, e mais uma vez a temática da escravidão se faz presente.
Presença esta, que pudemos notar na análise dos periódicos em que Francisco de
Salles Torres Homem, figura central de nossa pesquisa, atuou como redator durante os
anos de 1837 a 1839, no caso o Jornal dos Debates Políticos e Literários em 1837, e Aurora
Fluminense entre 1838 e 1839.
Nos artigos analisados, foi possível detectar que as idéias antiescravistas com as
quais teve contato no Rio de Janeiro, principalmente pelas estreitas relações com Evaristo
da Veiga e sua convivência nos círculos do liberalismo moderado, com destaque para
SDLIN do Rio de Janeiro, entram em voga na postura assumida por ele para combater a
instituição escravista no Brasil. Daí a importância das redes de sociabilidade pelas quais
Torres Homem circulou.
Por fim, no que diz respeito aos argumentos usados por Torres Homem para
desqualificar a instituição escravista e a continuidade do contrabando de escravos, pode-se
notar a centralidade do argumento de atraso material da nação causado pela escravidão. E a
resolução desta situação viria com substituição do trabalho servil pelo trabalho livre,
mediante a inserção de colonos europeus por todo o território brasileiro.
Referências Bibliográficas:
ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989.
CARVALHO, José Murilo de. “Escravidão e razão nacional”. In: IDEM. Pontos e bordados: escritos de
história e política. Belo Horizonte: Editora Ufmg, 1998.
BASILE, Marcello. O Império em construção: projetos de Brasil e ação política na corte regencial. Tese
(Doutorado em História Social) Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.
CASTRO, Paulo Pereira de. “A experiência republicana”. In: HOLANDA. Sérgio Buarque de.
(org.) História Geral da Civilização Brasileira.Tomo II, 2º Vol. São Paulo: DIFEL, 1964.
DOSSE, François. História e Ciências Sociais. Bauru: Edusc, 2004.
JANCSÓ, István & PIMENTA, João Paulo. “Peças de um mosaico (ou apontamentos para o
estuda da emergência da identidade nacional brasileira)”. In: MOTA, Carlos Guilherme (org.).
Viagem incompleta 1500-2000. A experiência brasileira. Formação: histórias. São Paulo: Senac, 2000.
MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente. Senhores, letrados e o controle dos
escravos, 1660-1880. São Paulo: Cia das Letras, 2004.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
47
MOREL, Marco. As transformações dos espaços públicos. Imprensa, atores políticos e sociabilidades na Cidade
Imperial (1820-1840). São Paulo: Hucitec, 2005.
PARRON, Tamis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Dissertação (Mestrado em
História) Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil
(1800-1850). Campinas, SP: Editora da Unicamp, CECULT, 2000.
SIRINELLI, François. “Os intelectuais”. In: RÉMOND, Réne. Por uma história política. Rio de
Janeiro: FGV, 2003.
VIANNA, Hélio. “Francisco de Sales Torres Homem, Visconde de Inhomirim”. In: Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. v.246, jan.-mar. 1960. p. 253-281.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
48
Cartografia do distrito diamantino: as representações do espaço de extração e
dominação
Carmem Marques Rodrigues
Mestranda pela UFMG/CAPES
carmemmarquesrod@yahoo.com.br
Resumo: O objetivo da presente comunicação é apresentar aos demais colegas da PósGraduação os passos iniciais da pesquisa que começa a ser realizada no Mestrado. As Minas
Gerais e suas riquezas naturais foram objeto de políticas que buscaram soluções para
otimizar os ganhos e a presença da Coroa, especialmente no distrito diamantino, região
delimitada pela Metrópole, onde a utilização da cartografia era instrumento essencial que
dava forma a territorialidade política. Como lugar construído de fora para dentro, o espaço
“distrito diamantino” nasceu e se legitimou como tal por meio das construções
cartográficas. Apesar de todos os estudos da historiografia atual ainda não temos nenhum
trabalho sistemático baseado nas representações construídas sobre “o lugar” distrito
diamantino. Assim, para completar o esforço historiográfico atual, que vem
problematizando cada vez mais as questões referentes ao distrito diamantino, é de
fundamental importância analisar as representações cartográficas construídas sobre o
distrito diamantino como peças fundamentais de sua própria história.
Palavras-chaves: Cartografia, Distrito Diamantino, Território.
Abstract:The purpose of this communication is to present to their classmates the
Postgraduate the initial steps of the research that begins to be held in MA. Minas Gerais
and its natural resources were the object of seeking political solutions to optimize the gains
and the presence of the Crown, especially in the diamond district, a region bounded by the
metropolis, where the use of cartography was an essential tool that gave way to territorial
politics. As a place built from the outside, the space "diamond district" was born and
legitimized as such by means of cartographic constructions. Although all studies of
historiography today still have no systematic work based on the representations built on
"the place" diamond district. Thus, to complete the current historiographical effort, which
is increasingly questioning the issues of the diamond district, is of fundamental importance
to analyze the cartographic representations built on the diamond district as centerpieces of
their own history.
Key Words:Cartography, diamond district, territory
O objetivo da presente comunicação é compartilhar com os colegas estudantes de
pós-graduação e graduação as primeiras pesquisas, dúvidas e as intenções do projeto de
mestrado que inicio esse ano. O projeto deriva do desmembramento das pesquisas
realizadas ainda na graduação durante a monografia para obtenção de título de bacharel,
denominada Despotismo ilustrado e representação cartográfica: as políticas do marquês de Pombal para o
distrito diamantino, sob orientação da professora Drª. Júnia F. Furtado. O distrito
diamantino, ao longo das aulas e pesquisas na graduação, mostrou-se um lugar de intensas
relações, envolto em uma memória de opressão e delimitação não só do espaço territorial,
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
49
mas também social. Dessa forma, um especial interesse foi se formando em torno das
representações cartográficas construídas sobre a região “que durante o século XVIII se
tornou o centro da extração mundial de diamantes.” (FERREIRA, 2009: 25)
Primeiramente, a intenção era utilizar a cartografia como base documental, mas devido a
natureza limitada da pesquisa monográfica, acabou-se dando mais ênfase ao seu aspecto
ilustrativo do período em questão.
A intenção agora em nível de mestrado é focar, mais atentamente, as construções
cartográficas que marcaram a história do distrito diamantino durante o século XVIII, ou
seja, o objetivo é analisar a cartografia como principal documento histórico da pesquisa, e
não mais como um dos vários elementos, muitas vezes apenas ilustrativos, de uma pesquisa
histórica. Para isso é preciso tomar os mapas como instrumentos formadores da
territorialidade, um tipo de relação que vai além da ligação homem-território, pois não é
constituída apenas pela demarcação de espaços, mas pelas relações sociais.
A formação do espaço distrito diamantino foi construída e legitimada pelos mapas
que realizaram a passagem do significante para o significado, da forma gráfica para o
conceito, do uso das formas simbólicas para a tradução da realidade. Assim, é necessário
realizar um processo de problematização do espaço para poder dialogar com as fontes
cartográficas,
“é necessário observar as forças e relações sociais, políticas e simbólicas que
fizeram esse lugar colonial, definição de sua territorialidade. A análise (...)
requer compreender os mecanismos ou dispositivos de ‘divisão’ do espaço que
delimitam o lugar como uma região, em função do seu enquadramento
territorial pelo Estado.” (ANDRADE, 2008: 15)
Foram selecionados três mapas emblemáticos para serem analisados, e foi a partir
deles que o marco temporal foi constituído. Apesar de não serem divididos de forma
constante dentro do marco temporal selecionado todos os mapas representam momentos e
conhecimentos de grande relevância. Os dois primeiros representam os momentos iniciais
da exploração dos diamantes, 1729 e 1731, mas possuem uma diferença na forma de
representação marcante, demonstrando claramente que foram construídos por pessoas
diferentes, com objetivos totalmente diferentes, e embasados em conhecimentos empíricos
distintos. Até chagarmos ao terceiro mapa, temos um longo espaço de tempo muito
significativo, pois somente em 1770 encontramos outro mapa sobre o distrito diamantino,
construído em moldes parecidos com o segundo, mas, novamente, ele é emblemático como
representação fruto de novas preocupações, novos objetivos e conhecimentos sobre a
extração dos diamantes.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
50
Figura 1 Mapa 1: Demarcação das terras que produz diamantes, post. 1729.
Figura 2 Mapa 2: Carta topográfica entremeias do sertão do Serro frio com as novas minas de
diamantes, 1731.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
51
O essencial é ver os mapas não apenas como imagens que se esgotam em si
mesmas, mas como fontes históricas muito ricas, principalmente para a história cultural,
pois por eles podemos identificar o modo como diferentes lugares e momentos de uma
determinada realidade social foram construídos, pensados e lidos.
Los mapas nunca son imágenes carentes de valor; excepto en el sentido
euclidiano más estricto, por sí mismos no son ciertos o falsos. Tento en la
selectividad de su contenido como en sus signos y estilos de representación, los
mapas son una manera de concebir, articular y estructurar el mundo humano
que se inclina hacia, es promovido por y ejerce una influencia sobre grupos
particulares de relaciones sociales. (HARLEY, 2005: 80)
Figura 3 Mapa 3: Carta topográfica das terras diamantinas em que se descrevem todos os rios e
córregos e lugares mais notáveis que nela se contém, ca. 1770.
Essa preciosa pedra já era conhecida e negociada por Portugal desde o início dos
descobrimentos devido ao comércio de diamantes que se estabeleceu com as Índias.
Desde o século XVII, Portugal concentrava a distribuição de diamantes na
Europa, graças à presença de agentes comercias lusos juntos aos rajás das
cidades indianas, especialmente em Bornéu e Golconda, de quem compravam
as preciosas gemas. (FERREIRA, 2009: 25)
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
52
Dessa forma, com a colonização efetiva portuguesa no Brasil, logo se criou o desejo
de aqui descobrir e explorar tão grande riqueza. Principalmente a partir do aumento das
expedições para os vários sertões da nova colônia, também foram proliferando as notícias
sobre diversas riquezas minerais em especial sobre as esmeraldas, sobre as quais se criou
um grande imaginário.27 “Não se sabe ao certo a história dos diamantes no Brasil.”
(FERREIRA, 2009: 25) Oficialmente os diamantes foram descobertos em carta de 22 de
julho de 1729 quando o então governador Dom Lourenço de Almeida enviou o
comunicado a Coroa, mas já se sabia que as pedras estavam sendo exploradas durante toda
a década de 1720, inclusive era grande a probabilidade de que o próprio governador
estivesse envolvido em tal comércio devido à imensa fortuna que acumulara.
Após a descoberta oficial d. João V precisava organizar a exploração e a tributação
sobre as pedras. No começo o próprio intendente do ouro era o encarregado pela
distribuição e arrematação das lavras, que entre 1729 a 1734 ficaram sob exploração aberta,
sendo apenas cobrada uma taxa, bem modesta de 5$000 por cada escravo empregado nas
lavras, a taxa de capitação, que sofreu vários aumentos ao longo desses primeiros anos na
tentativa de controlar o número de homens nas lavras, saltou dos iniciais 5$000 para
15$000 e depois 40$000 em 1732.
Entre 1731 e 1734, período de notícias contraditórias desde que a ordem régia
de proibição da mineração de diamantes não foi executada pelo governo da
Capitania, os exploradores e negociantes aproveitavam a instabilidade reinantes,
na mira do fisco da Coroa e do iminente despeja das lavras, para reputar os
valores de datas e de escravos, e especular com os preços dos diamantes.
(ANDRADE, 2008: 227-228)
Em 1734 a mineração dos diamantes foi suspensa devido à interferência direta da
exploração sem controle nas cotações internacionais do quilate, a Coroa apesar da
experiência na comercialização das pedras, tinha pouco conhecimento sobre a mineração
das mesmas, naquele momento se viu obrigada a interromper a produção para organizar
tanto o sistema do fisco como o da exploração.
A parada repentina na extração das pedras proporcionou a Coroa um período para
repensar sua estratégia em relação à região. Assim no mesmo ano foi enviado para as Minas
Gerais Martinho de Mendonça Pina e Proença (1693-1743) para avaliar a situação e Rafael
Pires Pardinho, engenheiro-militar, responsável pela demarcação da região produtora. A
27 Uma extensa historiografia trata das várias lendas que percorreram os sertões das minas não só durante o
período das expedições dos paulistas, mas que já desembarcaram no Brasil junto com os primeiros
portugueses, em busca do sonho do eldorado. As lendas mais famosas giram em torno da Serra do
Sabarabuçu ou Serra das Esmeraldas, que estaria no coração do sertão da colônia e guardaria imensas
riquezas.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
53
partir desse momento iniciou-se uma estratégica relação entre as políticas de controle da
coroa sobre a extração de diamantes e os mapas produzidos sobre a região. A extração das
gemas passou a ser cuidadosamente delimitada e para exercer tal controle era
imprescindível obter um conhecimento o mais exato possível da região. Assim foi criada a
região da demarcação diamantina ou distrito diamantino que compreendia as áreas até
então conhecidas, onde se poderia extrair os diamantes, e à medida que novas descobertas
fossem feitas, seriam incorporadas a demarcação. Era uma área administrativa
especialmente criada para controlar a extração das pedras, com sede no arraial do Tejuco
sob a autoridade do intendente dos diamantes, cujo primeiro foi justamente Rafael Pires
Pardinho.
Com o fim do trabalho de reorganização da extração de diamantes, em 1739 o novo
governador Gomes Freire de Andrade foi acompanhado de sua comitiva, especialmente ao
arraial do Tejuco para reabrir a exploração e realizar o novo processo de extração, que seria
agora sob a forma de contratos, um sistema que consiste no arremate, por qualquer vassalo
ou grupo dos mesmos, do direito exclusivo de minerar e comercializar os diamantes. Dessa
forma a Coroa pretendia obter um controle maior sobre a mineração e ao mesmo tempo
garantir a arrecadação com a antecipação do pagamento do lance do contrato.
Até o ano 1753 foram três contratos, os dois primeiros foram arrematados pelo
sargento-mor João Fernandes de Oliveira, primeiramente em sociedade com Francisco
Ferreira da Silva, depois sozinho, em 1740 e 1744. Em 1747 o contrato foi arrematado por
Felisberto Caldeira Brant juntamente com Alberto Luís Pereira e Conrado Caldeira Brant,
este último contrato ganhou notoriedade pelos grandes desvios realizados pelos
contratadores, tornando-se um evento emblemático dento da história dos contratos dos
diamantes. Até o ano de 1751 as fraudes de Caldeira Brant estavam encobertas pela
fragilidade do então intendente dos diamantes, Plácido de Almeida Moutoso, e pelas fortes
ligações de apadrinhagem com figuras fortes do governo das Minas, como o próprio
governador Gomes Freire de Andrade. Brant também tinha na população do Tejuco uma
grande aliada, pois, fazia vista grossa ao contrabando e ao mesmo tempo era uma fonte
garantida de renda através dos aluguéis de escravos para a mineração do contrato. A sorte
de Brant começou a mudar quando no ano de 1751 o novo intendente Sancho de Andrade
Castro e Lanções chegou. O novo representante da Coroa chegou ao distrito imbuído da
nova proposta do reinado de d. José I de combater a sonegação e assim aperfeiçoar os
ganhos da Real Fazenda, dessa forma Lanções começou a vigiar as ações do contrato e
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
54
rapidamente percebeu que este se encontrava totalmente fora dos limites estabelecidos.
Assim começou a pressionar Brant para que apresentasse os verdadeiros números,
principalmente em relação ao controle do número de escravos na extração. (FURTADO
In: SCHWARTZ e MYRUP, 2009: 217-262)
Foi durante esse combate que surgiu a incrível denuncia sobre o roubo do cofre da
intendência,28 uma ação arquitetada por Brant para desafiar o poder do Intendente, mas que
acabou se voltando contra o contratador, quando descobriram seu plano, após uma grande
devassa organizada pelo ouvidor do Serro do Frio, José Pinto de Morais Bacellar. Apesar
dos insistentes pedidos de interferência para o lado de contratador feitos por Gomes Freire
de Andrade para os dois principais secretários de d. José I – Diogo de Mendonça Corte
Real e Sebastião José de Carvalho e Melo – a situação do mesmo tornou-se irreversível
quando em março de 1753 chegou a Lisboa um grande carregamento de diamantes não
oficiais. Pouco tempo depois saía de Portugal a ordem secreta para prender Brant e os
outros contratadores, o que deveria ser pessoalmente executado pelo governador interino
José Antônio Freire de Andrade. O cumprimento da ordem gerou grande alvoroço, sendo
Brant levado para a prisão em segredo. Ao mesmo tempo começaram a se espalhar boatos
sobre a insolvência do contrato, o que acabou sendo confirmado pelo ouvidor Bacellar. O
público escândalo do contrato pôs em histeria os mercados financeiros tanto do Império
como os de Londres e Amsterdã, obrigando o rei d. José I a garantir o pagamento das
letras emitidas pelos contratantes. Brant foi enviado para o Reino onde acabou morrendo
na cadeia em 1769, após o sequestro de seus bens e o parcial ressarcimento da Real
Fazenda.
Neste mesmo ano de 1753 a Coroa decidiu intervir mais na mineração dos
diamantes pelo Alvará de 11 de agosto. Diante da “eminente ruína” em que se achavam os
contratos pela ação dos “interesses particulares ao bem público”, tornou-se necessário
colocar o comércio dos diamantes sobre a Real proteção.29 No documento há uma
constante reafirmação do poder real sobre as pedras preciosas, decretando forte punição
para aqueles que desobedecerem, e ao mesmo tempo reafirma o controle especial que
28
Evento bastante retratado pela historiografia tradicional que se posicionava ora a favor do contratante ora a
favor da Coroa. Atualmente o evento teve vários pontos elucidados pelos trabalhos mais recentes da Profª.
Júnia F. Furtado e é sempre lembrado pelos historiadores que estudam a região. Para saber mais, consulte a
bibliografia.
29 Alvará de 11 de Agosto de 1753. Fixando o comercio exclusivo dos diamantes do Brasil, que fica baixo
proteção real.
Disponível em: >http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=105&id_obra=73&pagina=252
> Acesso em: 02/07/2012.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
55
deveria ser realizado dentro das terras diamantinas, controlando a entrada de comerciantes,
de cobradores, proibindo a faiscação, a permanência de pessoas sem oficio na demarcação
e repassando a responsabilidade sobre a fiscalização dos contrabandos não só sobre os
representantes diretamente nomeados para o distrito, mas sobre todos os outros
representantes reais na colônia.
Após essa pequena reestruturação, a mineração dos diamantes continuou sob o
comando dos contratos, o quarto e o quinto contratos de 1753-1758 e 1759-1761 foram
novamente arrematados pelo sargento-mor João Fernandes de Oliveira, em sociedade com
Antônio dos Santos Pinto e Domingos de Basto Vianna, mas como o sargento passou a
morar no reino, enviou para os trabalhos no Tejuco seu filho homônimo, o desembargador
João Fernandes, que no último contrato de 1762 a 1771, tornou-se sócio do pai.
Enquanto o período de 1760-1770 representou o início da curva descendente da
produção aurífera em Minas Gerais, temos esse período como o áureo da produção de
diamantes. Segundo números da produção oficial de diamantes, no período de 1765-1771
foram retirados 489.108 quilates, com uma impressionante produção nos anos de 1765
com 84.862 quilates, e em 1766 com 91.382 quilates. (FURTADO In: SCHWARTZ e
MYRUP, 2009: 217-262) As estimativas em relação ao arremate do comércio das gemas
também eram impressionantes, se dos anos de 1757 a 1760 foram arrematados 115.659
quilates pelo valor de 1,067.198$850 por João Gore e Josué Van-Neck, no período seguinte
constatamos a opulência da mineração pelo incrível aumento das cifras; de 1760 a 1771,
Daniel Gil e Meeter arremataram 952.589 quilates por 8,144.165$537. (AZEVEDO, 2004:
122) A partir de 1771, a exploração dos diamantes deixa de ser estabelecida pelo sistema
dos contratos e passar a ser um monopólio direto da Coroa.
Dessa forma, fica claro que a exploração dos diamantes era bastante rentável para
Portugal, mas, ao contrário da exploração do ouro, era necessária uma atenção especial para
os diamantes devido a sua natureza de comercialização. A experiência mal sucedida dos
primeiros anos de exploração, que produziram um verdadeiro estrondo nos preços
internacionais, mostraram para as autoridades reais que era necessário introduzir alguma
forma de controle da produção, tentando conciliar a rentabilidade da extração com a
manutenção do preço do quilate nas praças internacionais, sendo assim, quanto mais
conhecimento a Coroa obtivesse sobre a mineração dos diamantes, mais real e mais fácil
seria esse controle. É claro que, assim como na mineração do ouro, os contrabandos,
desvios, descaminhos eram enormes e na maioria das vezes fugiam as várias tentativas de
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
56
controle metropolitano, o caso das fraudes do contrato da família Brant é um exemplo
clássico, que mostra como o contrabando de diamantes agregava uma vasta gama de
pessoas que iam desde a relação micro dentro do distrito diamantino até as relações
macroeconômicas dos contrabandistas internacionais, o que dificultava ainda mais um
efetivo controle da mineração.
No caso dos diamantes, cuja extração e comercialização na Europa eram
controladas de perto pelo Conselho Ultramarino, os contrabandistas agiam em
várias etapas. Os contraventores deviam atuar desde o momento da extração
das pedras, que precisavam ser desviadas dos cofres da Intendência dos
Diamantes e, então, eram conduzidas para além dos limites da demarcação
diamantina, rumo a um porto para serem embarcadas tendo como destino final
a Europa, onde agente do mercado paralelo as comprariam e as revenderiam
aos joalheiros lapidários do continente, geralmente estabelecidos em reinos
como Holanda e Inglaterra. (FERREIRA, 2009: 131)
Como os mapas podem nos falar sobre os mundos do passado? (HARLEY, 2005:
80) A partir dessa pergunta de J.B. Harley que pretendemos, durante essa pesquisa, mostrar
que os mapas selecionados podem nos contar sobre a história da invenção do distrito
diamantino, como a construção desse espaço tornou-se um lugar fortemente marcado na
historiografia e de como, a Coroa utilizava a tecnologia cartográfica para materializar seu
conhecimento sobre a região.
Inicialmente o caminho metodológico escolhido foi o delineado pelo historiador da
cartografia J. B. Harley, uma trilogia da análise dos contextos da cartografia. Para esse
estudioso inglês, para uma correta análise da cartografia história, que leve em consideração
não só os aspectos técnicos, mas também as relações sociais e políticas contidas nos mapas,
seria necessário percorre três etapas: 1) o contexto do cartógrafo, 2) o contexto dos mapas
correlatos, 3) o contexto da sociedade.
No primeiro momento é essencial identificar a autoria do mapa a ser analisado, o
que já nesse primeiro momento pode representar um importante entrave na pesquisa, pois
nem sempre a autoria dos mapas, realizados durante o período colonial está claramente
demarcada, sendo, na maioria das vezes e inclusive em dois, dos três mapas, a serem
analisados, um dado ainda não identificado. “Este requisito, la reconstrucción de los
contextos técnicos del trazado de los mapas, implica una enorme exigencia de habilidades
auxiliares del historiador.” (HARLEY, 2005: 65),
sendo assim, para completar esse
processo, é necessário realizar uma busca transdisciplinar que proporcione o embasamento
técnico suficiente para a compreensão do trabalho do cartógrafo.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
57
Em um segundo momento seria necessário fazer o cruzamento entre os mapas
analisados e a produção cartográfica correlata, pois é fato reconhecido que os mapas
dialogavam entre si, não necessariamente, entre mapas de mesma autoria, mas os
cartógrafos, especialmente durante o período colonial onde havia várias dificuldades
técnicas e mesmo de deslocamento ao longo do território, utilizavam representações que já
eram trabalhadas em outros mapas. “Ningún mapa está herméticamente cerrado en sí
mismo, ni puede responder a todas las preguntas que despierta.” (HARLEY, 2005: 69)
Dessa forma, podemos identificar a recorrência de topônimos, dos traçados dos rios, dos
caminhos, a partir dessa análise cartobibliográfica.
O terceiro momento é o da análise do contexto social daquele mapa, pois os mapas
não são construções puramente técnicas isentas de envolvimento, muito pelo contrário,
ainda mais durante a época colonial onde as técnicas cartográficas não eram tão avançadas
como hoje. Os mapas deixam transparecer os aspectos políticos e sociais do momento em
que foram construídos e dessa forma podem nos fornecer informações relevantes sobre o
espaço e o tempo dos mundos históricos que poderiam permanecer obscuros em outras
fontes. “El marco de las circunstancias y las condiciones históricas definidas produce un
mapa que es, indiscutiblemente, un documento social y cultural.” (HARLEY, 2005: 72)
Essas são as regras metodológicas gerais que Harley identifica como essenciais durante
o processo analítico da cartografia. Mas além desse processo geral é de grande importância
também realizar a análise pormenorizada e individual dos mapas, para o qual, novamente
Harley propõe uma trilogia influenciada pela metodologia da história da arte:
1. Signos convencionais/descrição pré-iconográfica
a. Descrição do objeto mais a identificação e reconstrução de sua
temporalidade, os signos, símbolos e emblemas dos mapas vistos
individualmente.
2. Identidade topográfica/análise iconográfica
a. Relação entre objeto e o conceito, a identificação da representação com a
realidade representada.
3. Significado simbólico/ interpretação iconológica
a. Descoberta dos valores simbólicos, a analise do estrato simbólico do mapa,
os mapas como metáforas visuais dos valores mais importantes do lugar
representado.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
58
A proposta de Harley é estabelecer uma análise tanto micro, como macroespacial da
cartografia, para dessa forma realizar uma pesquisa atenta aos vários detalhes que um mapa
contém.
Justamente por essa preocupação com a divisão das etapas de análise, com a
correlação de dados, com a análise dos contextos, que a metodologia de Harley é
inovadora, por agregar vários aspectos tomados de outras disciplinas tendo como objetivo
lançar a história da cartografia como disciplina autônoma, que não seja apenas técnica, mas
essencialmente histórica. Por outro lado, também é necessário tomar as propostas
metodológicas de Harley de forma crítica, pois seu contexto de formação tanto histórica
como cartográfica é bastante distinto do contexto luso-brasileiro. Cartógrafo e geógrafo de
formação John Brian Harley foi professor na Inglaterra nas universidades de Birmingram,
Liverpool e Exeter e nos Estados Unidos em Winsconsi, onde realizou extensas pesquisas
sobre história da cartografia, publicou diversos livros e trabalhou no projeto History of
Cartography, junto dom David Woodward. Seus trabalhos, focados nos contextos britânico e
norte-americano, contam com uma vastíssima produção cartográfica, que especialmente
durante o final do século XVIII e início do século XIX foi sendo absorvida pelo mercado
editorial, que produzia atlas e versões impressas de mapas para colecionadores, além disso,
os escritório estatais desses países tinham, e ainda, tem, uma grande preocupação com a
constante realização e atualização dos mapas, incentivando o desenvolvimento do
conhecimento técnico e mantendo, de forma constante, a produção de mapas. Um
contexto de intensa produção que não foi seguido no contexto luso-brasileiro. Por outro
lado, alguns críticos de Harley, como J. H Andrews, não encontram nenhum originalidade
em suas ideias e inclusive as classificam como ingênuas.
De qualquer forma, Harley foi responsável por um processo de renovação da
história da cartografia e de sua aproximação com a história cultural que abriu portas para a
leitura social dos mapas.
Nesse primeiro momento de desenvolvimento da pesquisa de mestrado, estamos
ainda nas primeiras etapas de análise dos mapas selecionados e ainda filtrando a
documentação correlata. Felizmente, os estudos de história da cartografia no Brasil estão
despertando o interesse de um número cada vez maior de pesquisadores, de várias áreas do
conhecimento, o que proporciona um círculo de debates transdisciplinar que é essencial. O
Brasil, especialmente durante o seu processo de formação territorial, durante o período
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
59
colonial e imperial, possui uma vasta produção cartográfica que ainda precisa de estudos
mais específicos e pormenorizados.
Especialmente sobre a história da mineração dos diamantes durante o século XVIII
ainda encontramos muitas questões a serem problematizadas. Pouco de sabe sobre o
processo de descobrimento dos diamantes, sobre a história da mineração no período dos
contratos, de como Portugal comercializava e distribuía as pedras na Europa e de como o
Conselho Ultramarino tinha conhecimento sobre o território do distrito diamantino, qual
era o papel da cartografia nas políticas coloniais. Dessa forma, que a cartografia pode ser
trabalhada como fonte histórica e não apenas como ilustração de uma história.
O Brasil vem se destacando no cenário internacional desde a época colonial por
suas riquezas naturais, durante o século XVIII foi o centro mundial de extração de ouro e
diamantes, que abasteceu a Europa e financiou o desenvolvimento da revolução industrial,
durante o século XIX foi o maior produtor mundial de café, extraindo da riqueza de seu
solo os frutos que alimentavam a economia nacional e durante o século XX descobriu que
também poderia extrair de seu solo, inclusive da parte que estava submersa no Oceano, o
ouro negro que alimenta a indústria e o comércio mundial. Novamente, nesse início de
século XXI descobrimos que ainda temos muito mais riquezas em nossas terras, a maior
mina de ferro a céu aberto do mundo e um dos maiores reservatórios de petróleo se águas
profundas. Diante desse cenário é essencial que sejamos capazes que compreender
historicamente como lidávamos com nossas riquezas e de como podemos assim nos
preparar para as riquezas do futuro.
Bibliografia:
Alvará de 11 de Agosto de 1753. Fixando o comercio exclusivo dos diamantes do Brasil, que fica
baixo proteção real. Disponível
em:>http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=105&id_obra=73&pagina=252 >
Acesso em: 02/07/2012.
ANDRADE, Francisco Eduardo de. A invenção das Minas Gerais. Empresa, descobrimentos e
entradas nos sertões do ouro da América portuguesa. Belo Horizonte: Autêntica e Ed. PUC Minas,
2008.
AZEVEDO, João Lúcio de. O marquês de Pombal e a sua época. São Paulo: Alameda, 2004.
BLACK, Jeremy. Mapas e História: construindo imagens do passado. Bauru-SP: Edusc, 2005.
COSTA, Antônio Gilberto (org.) Roteiro prático de cartografia: da América portuguesa ao Brasil
imperial. Belo Horizonte: UFMG, 2007.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
60
FERREIRA, Rodrigo de Almeida. O descaminho de diamantes. Relações de poder e sociabilidade da
demarcação diamantina no período dos contratos (1740-1771). Belo Horizonte: Fumarc, São Paulo:
Letra&Voz, 2009.
FURTADO, J. F. . Um cartógrafo rebelde? José Joaquim da Rocha e a cartografia de Minas Gerais.
Anais do Museu Paulista (Impresso), v. 17, p. 155-187, 2009.
FURTADO, Júnia F. Chica da Silva e o contratador de diamantes. O outro lado do mito. São Paulo: Cia
das Letras, 2003.
FURTADO, Júnia F. O livro da Capa Verde. O regimento diamantino de 1771 e a vida no distrito
diamantino no período da Real Extração. 2ªed. São Paulo/Belo Horizonte: Annablume/ PPGHUFMG, 2008.
FURTADO, Júnia Ferreira. Terra de estrelas: o distrito dos diamantes e a fortuna dos
contratadores. In: SCHWARTZ, Stuart e MYRUP, Eric. (orgs.) O Brasil no império marítimo português.
Bauru: Edusc, 2009, p.217-262
HARLEY, J. B. La nueva naturaleza de los mapas. Ensayos sobre la historia de la cartografia. México:
FCE, 2005.
HARLEY, J. B. Mapas, saber e poder. Confins (online), 5, 2009. Disponível em:
>http://confins.revues.org/index5724.html> Acesso em: 01/07/2012.
LIMA JR., Augusto de. História dos diamantes nas Minas Gerais (século XVIII). Rio de Janeiro/Lisboa:
Dois Mundos, [19..?]
PARRELA, Ivana. O teatro das desordens: garimpo, extravio, contrabando e violência na ocupação da
Serra de Santo Antônio do Itacambiraçu. 1768-1800. Belo Horizonte, FAFICH/UFMG, 2002
(Mestrado em História).
SANTOS, Joaquim Felicio dos. Memorias do Distrito Diamantino da Comarca do Serro do Frio. 4.ed. Belo
Horizonte/São Paulo, 1976 (coleção reconquista do Brasil, v.26)
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
61
Das teias de traições ao desejo local de reconhecimento pela Coroa Portuguesa nas
Inconfidências Mineiras
Cleidimar Rodrigues de Sousa Lima
Professora Assistente do Centro de Filosofia, Letras e Educação da UVA
Doutoranda em História pela UFMG / CAPES
cleidimary@hotmail.com
Resumo: Esta comunicação pretende discutir as Inconfidências Mineiras que ocorreram
entre 1760 e 1776, na Capitania das Minas Gerais, mais precisamente nas cidades de
Curvelo (duas foram registradas), Mariana e Sabará, durante o período de Reformas
Pombalinas, cujas especificidades organizativas merecem apreciação no conjunto de uma
tessitura onde as traições e a falta de fidelidade ao Monarca, então D.José I, foram
consideradas crimes que levaram pessoas e instituições a serem questionadas e punidas, a
partir do ordenamento jurídico em vigor à época. Uma característica bastante peculiar a ser
evidenciada é que nessas Inconfidências a população local não chegou a se levantar ou
pegar em armas para defender seus próprios interesses, mas buscou conquistar um tipo
especial de reconhecimento junto à Metrópole Portuguesa. Ressaltamos que tiveram como
ideário comum a insatisfação com o processo de expulsão dos jesuítas do Brasil e com a
concentração de poderes nas mãos do Marquês de Pombal. Nosso estudo, de caráter
teórico-bibliográfico, associado à reflexão dialética, teve como sustentação as contribuições
de autores renomados como CATÃO (2007), FURTADO (1999a), MONTESQUIEU
(2004), VILLALTA (2007) que analisaram tais Inconfidências e suas repercussões na vida
colonial do nosso país. O papel das oralidades das ideias libertárias, das leis e das Teorias
Corporativas será percebido como importante elemento de conexão destes fatos históricos.
Em Minas Gerais a Coroa Portuguesa foi posta à prova por suas práticas gerenciais e o seu
poder foi visto como um espaço conflituoso de disputas entre grupos religiosos e laicos.
Palavras-chave: Inconfidências Mineiras, Curvelo (1760-1763), Mariana (1769), Sabará
(1775).
Abstract: This communication discusses the Inconfidências Mining that occurred between
1760 and 1776, in the province of Minas Gerais, more precisely in the cities of Curvelo
(two were recorded), Mariana and Sabará, during the reforms of Pombal, whose
organizational characteristics deserve consideration in conjunction a fabric where the
betrayals and lack of loyalty to the monarch, then D. José I, were considered crimes that
led people and institutions to be questioned and punished, from the legal system in force at
the time. A peculiar feature to be highlighted is that these Inconfidências local people did
not stand up or take up arms to defend their own interests, but sought to gain a special
kind of recognition by the Portuguese metropolis. We emphasize that such ideas were
common dissatisfaction with the process of expulsion of the Jesuits from Brazil and the
concentration of power in the hands of the Marquis of Pombal. Our study of the
theoretical literature, associated with the dialectical reflection, was to support the
contributions of renowned authors such as CATÃO (2007), FURTADO (1999a),
MONTESQUIEU (2004), VILLALTA (2007) who analyzed such Inconfidências and its
impact on colonial life in our country. The role of oralities of libertarian ideas, laws and
theories Corporate will be perceived as an important connection of these historical facts. In
Minas Gerais the Portuguese Crown was put to the test by their management practices and
their power was seen as a space of contentious disputes between religious and secular
groups.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
62
Keywords: Inconfidências Mining, Curvelo (1760-1763), Mariana (1769), Sabará (1775).
Introdução
Nos capítulos da História brasileira a Capitania das Minas Gerais figura como um
lugar de reivindicações e de levantes significativos de suas diversas classes sociais contra o
jugo da Coroa Portuguesa e de suas leis em relação à Colônia, com ditames que
provocavam insatisfações, descréditos e revoltas.
Este estudo, elaborado numa perspectiva de análise teórico-bibliográfica e
reflexivo-dialética, pretende discutir as Inconfidências Mineiras que aconteceram em
Curvelo (1760-1763), Mariana (1769) e Sabará (1775), três importantes locais econômicos e
religiosos, anteriores à de 1789 (Conjuração Mineira), que ficou nacionalmente
reconhecida, e suas repercussões históricas.
Neste sentido, estabeleceremos breves olhares dos crimes cometidos, da
participação dos envolvidos, dos interesses em conflitos e das ações da Coroa Portuguesa
para solucionar tais movimentos, em prol da manutenção de seu domínio colonial.
O embasamento teórico será apresentado mediante as contribuições de autores
renomados, tais como CATÃO (2007), FURTADO (1999a), MONTESQUIEU (2004),
VILLALTA (2007) que nos permitirão tecer três incursões metodológicas muito
significativas, a saber: a) Os Cenários das Inconfidências Mineiras e suas Tramas de
Interesses Políticos e Sociais; b) Os Crimes praticados e as Punições da Coroa Portuguesa;
c) As Lições de Percurso das Teorias Corporativas.
Embora seja perceptível a ampla complexidade e o difícil esgotamento da temática
proposta, esperamos abrir novas trajetórias de sua percepção histórica, de sua projeção
social e política no sentido de observar nas classes sociais das Minas Gerais um celeiro de
combate ao poder da Metrópole, de cisão dos poderes locais e de disseminação de ideias
libertárias no Brasil Colonial.
Os cenários das inconfidências mineiras e suas tramas de interesses políticos e
sociais
Discutiras Inconfidências Mineiras que tiveram repercussão histórica antes de 1789
exige uma passagem por três locais desta Capitania: a) Curvelo; b) Mariana e c) Sabará. O
primeiro era um arraial pertencente à Comarca do Rio das Velhas, canal de ligação com a
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
63
Bahia e centro econômico de abastecimento, sobretudo, alimentício, às regiões de
mineração; o segundo, celeiro de formação religiosa; e o terceiro, importante região aurífera
mineira.
Nestes locais encontraram-se registros da presença e divulgação de “papéis
sediciosos”, atacando a pessoa do rei D. José I, de seu mais ilustre Ministro Marquês de
Pombal e que assinalavam à contraposição à saída da Companhia de Jesus do país.
Nos três locais já descritos os interesses políticos eram forjados por sentimentos de
insatisfação e de revolta, sendo que em Curvelo, na primeira inconfidência o “breve
papal”30 foi usado para combater a tirania portuguesa e, por esta atividade, foram
incriminados o franciscano Antão José de Maria e o leigo Lourenço Feliz de Jesus Cristo,
considerados inimigos do vigário local. Por sua vez, na segunda inconfidência no mesmo
local, o padre Carlos José de Lima foi acusado de comparar o monarca com os maiores
perseguidores dos cristãos.
No caso de Mariana, os próprios religiosos foram envolvidos em conflitos internos
de suas congregações, de ordem capitular por disputas de jurisdições, denunciando uns aos
outros – o que resultou na prisão do vigário Ignácio Correa de Sá.
Na de Sabará, o fato ocorreu envolvendo o ouvidor local, José de Goés Ribeiro
Lara de Morais e o vigário geral, José Correa da Silva, que foram acusados de inconfidência,
descaminho de ouro e diamantes, manipulação de cargos públicos e ainda de “perturbação
do sossego dos povos”31. Crimes muito graves ao domínio da Coroa na Colônia
Portuguesa.
Uma característica muito marcante destes fatos foi que as inconfidências foram
marcadas pela presença de autoridades dos próprios locais, ocupantes de cargos e com
influência no poder vigente. Elas deveriam zelar e preservar os seus cargos e a confiança
nelas depositadas.
Assim, as devassas, utilizadas para apuração e comprovação das denúncias, foram
complexas e polêmicas porque tentaram identificar os entrelaçamentos das teias favoráveis
de condições políticas dos envolvidos. Um emaranhado conflitante de interesses políticos e
sociais que afetava a vida das pessoas e os costumes dos locais.
30
Era assim denominada a carta oficial escrita pelo Papa à comunidade cristã.
Destacamos que os fatos descritivos em que figuram os crimes cometidos pelos inconfidentes e aqui
estuados foram assinalados por Catão (2007) no texto base dessa discussão, intitulado “Inconfidência (a),
jesuítas, e redes clientelares nas Minas Gerais”.
31
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
64
Nesses processos investigatórios pode-se apurar que as denúncias geralmente
foram movidas por disputas internas nos grupos que destituídos de um lugar de poder
queriam a ele retornar, naqueles que queriam mudar o seu lugar de poder, e também
naqueles que, temendo a perda desse lugar, lutavam por sua manutenção a todo e qualquer
custo. As teias envolviam rupturas, mas advogavam também continuidades, permanências e
pequenas mudanças de percurso e de autoridade.
Os populares, prejudicados em seus direitos e sem muitos mecanismos de reação
contra o poder existente, ficavam divididos nestas disputas ou nem eram mencionados
nessas tramas que traduziam um viés colonial do que também ocorria na Metrópole
Portuguesa. Eles eram parte de um jogo político mais amplo entre os anti-pombalinos e os
pró-jesuíticos.
No caso de Sabará, a revolta foi além do esperado e registrou-se uma
“representação”32 contra os abusos do ouvidor e do vigário- geral, pelos “vassalos
oprimidos” ou “homens bons” da Vila, cuja interpretação recaiu sobre a História como
uma defesa do povo em face dos fatos em ocorrência. O povo moveu-se contra a teia de
interesses que o cercava e não os protegia de suas mazelas.
Os crimes praticados e as punições da Coroa Portuguesa
Devemos destacar que nasOrdenações Filipinas, o Livro V, título 6, trata do crime
de "lesa-majestade"33·, que é definido como de "traição contra o rei". A punição aos que
eram acusados deste crime deveria ser exemplar para afastar da sociedade o mal advindo de
tal prática. Os punidos deveriam evitar com suas punições a reincidência no crime e a
perpetuação do poder emanado da autoridade punitiva.
Desta forma, o governante podia tudo e os seus vassalos deveriam respeitar as leis,
as diferenças hierárquicas e todas as implicações do poder político34 e coercitivo. No crime
32Segundo
Catão (2007, p.677) a representação foi assinada por “eclesiásticos, militares pertencentes á tropa
paga, altas patentes das forças auxiliares, além de bacharéis, todas as pessoas abastadas e influentes”. A
representação era um documento onde se pedia ao monarca para solucionar os problemas da Capitania e que
exaltava as virtudes do povo de Sabará ao anotar que “só agora se queixa (va), quando se vê na última ruína”.
33O crime era tido como tão grave e tão abominável que era comparado à lepra. A enfermidade da lepra
geralmente acometia todo o corpo humano, sem que houvesse cura para tal doença no campo científico.
Mesmo descendentes de leprosos, que não contraíram a doença, eram julgados socialmente pela sua
incidência na família e retirados do convívio social. Como a lepra, a traição contra o rei precisava ser
combatida para não se propagar na sociedade e nem inflamar os descendentes daqueles que cometiam tal
crime.
34Podemos pensar que há várias formas de poder do homem sobre os seus semelhantes. Identificamos três
formas historicamente mais discutidas do poder: o paterno, o despótico e o político. Neste estudo nos
interessa o poder político que se manifesta pelo interesse de quem governa e de quem é governado. Quando
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
65
de inconfidência as penas consistiam normalmente na prisão dos criminosos, na perda de
cargo público que possuíam, no degredo para colônias portuguesas na África, podendo
chegar até mesmo na morte dos implicados, com o esquartejamento dos membros do
corpo e sua exposição em locais públicos.
Após as devassas concluídas, as punições nessas Inconfidências35 - com
todas as
suas dificuldades de realização pelas teias de poder que engendravam principalmente
disputas por cargos políticos – se restringiram às seguintes determinações e punições, a
saber: em Curvelo, na primeira devassa, o franciscano Antão de Jesus Maria “fugiu para o
mato” e o outro, irmão-leigo Lourenço de Jesus Cristo foi preso e encaminhado para Vila
Rica; na segunda, o padre Carlos José de Lima foi preso e os que não o denunciaram nos
seus testemunhos também foram condenados ao mesmo crime; na de Mariana, o capitular
Ignácio Correa de Sá foi preso no Seminário da cidade e só saiu de lá com os benefícios do
perdão de 177736, quando todos os demais presos políticos foram libertos em cumprimento
de ordem de D.Maria Mariana. E na de Sabará, houve a prisão dos acusados - José de Goés
Ribeiro Lara (ouvidor local) e José Correa da Silva (vigário geral)-, o degredo e o sequestro
de seus bens.
Nestes três casos aqui estudados o panorama político interferiu claramente nas
decisões e punições exemplares tomadas pela Coroa Portuguesa que tinha em suas mãos
um dos mais desafiantes jogos de interesses das oligarquias locais, que, por sua vez
divergiam em seus próprios anseios no interior do mundo colonial. Embora não seja
possível negar que representavam na Colônia os modelos políticos da Metrópole, em
menor ou em maior escala de atuação.
É também relevante mencionar que o ato de punir deveria ser o papel do Estado,
representado pelas leis emanadas da Metrópole à Colônia; no entanto, as leis proferidas tão
longe e distantes dos problemas concretos e imediatos dos locais eram burladas ou
sofre vícios em sua utilização passa a ser um poder exercido em benefício dos governantes. E é praticado
mediante atos de coação social. Sugerimos sobre este assunto as contribuições de Norbert Bobbio (2000), na
obra Dicionário de Política, Pierre Ansart (1978), na obra Ideologias, Conflitos e Poder e Bernardo Ferreira
(2004), na obra O Risco do Político: Crítica ao Liberalismo e Teoria Política no Pensamento de Carl Schmitt.
Elas procuram explicitar os aspectos políticos do poder e sua gerência ou ingerência estatal nas decisões que
afetam o povo na sua organização social e política.
35O crime de Inconfidência, de acordo com Catão (2007) podia se referir a uma verdadeira trama subversiva
ou a tão-somente o hábito, que se tornaria recorrente após a expulsão dos jesuítas do Brasil, de proferir
blasfêmias, insultos ou impropérios públicos contra o monarca. No período que compreendeu o governo de
D. José I em Portugal, este se viu bastante contestado pelos súditos das Minas Gerais, principalmente depois
que permitiu a expulsão dos jesuítas em 1759, sendo tal fato comandado pelo marquês de Pombal.
36 AHU, Cx. 113, doc. 25, fl.6.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
66
redefinidas para ajustar posições, garantir a permanência do poder ou até mesmo negociálo, quando fosse necessário.
Citamos, como exemplo, o caso mais célebre de incapacidade e de incompetência
ao cargo de ouvidor local de Sabará, do sr. José Goés Ribeiro Lara37, visto com espanto
pelos que o conheciam de Coimbra e na Corte, quando era secretário de Estado dos
Negócios do Reino Dr. José de Siebra da Silva e dos fatos que provocaram seu crime de
inconfidência, denunciado por Manuel Figueiredo, sobre sua proclamação de “injustiça” da
Coroa com o exílio do ex-secretário para Angola.
As lições de percurso das teorias corporativas
As Teorias Corporativistas da Segunda Escolástica exerceram umpapel significativo
na montagem das estratégias políticas que fizeram funcionar essas inconfidências. O estudo
destas teorias torna-se imprescindível porque elas tinham como princípios a justiça por
parte dos governantes, o respeito às leis, às diferenças sociais de direito e de hierarquias, a
capacidade do povo de honrar o pagamento de tributos, a felicidade no Reino, e a
repartição, com a mesma justiça de prêmios e castigos.
De acordo com Villalta (2007: 4) essas teorias enunciavam que o poder, embora
tivesse a sua origem em Deus, “não transitava diretamente deste para o Rei, passando, ao
contrário, pela mediação da comunidade, cujo bem estar deveria ser objeto de cuidado do
soberano, o qual, caso se tornasse tirano, poderia ser deposto”.
Neste diapasão, quando visto pelos seus vassalos como um governante tirano, por
agir de forma oposta aos princípios que deveria respeitar e às leis estabelecidas pelo seu
próprio governo, o rei deveria ser “julgado”. Tal julgamento podia significar a perda do seu
direito de governar, corroborado pelo direito de insurreição. O direito de resistir à tirania
era um direito considerado de caráter natural em face de um governo déspota.
Os princípios postos nas teorias corporativas convergem em seu ideário com os das
luzes, quando encontramos em Montesquieu (2004: 31) a assertiva de que os ”[...]
monarcas, cujo poder parece ilimitado, são detidos pelos menores obstáculos e submetem
seu orgulho natural às lamentações e súplicas”.
37 No dizer de Catão (2007, p.678) “referido magistrado não possuía nível cultural condizente com o cargo de
ouvidor, nem fortaleza de espírito, qualidades tão inseparáveis de um juiz”.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
67
Nesse sentido, o governo despótico “submete tudo a sua vontade e caprichos”38,
mas sendo juiz de sua própria regra não consegue “regular o coração de seus povos, e
tampouco o seu”39.
Em todas as inconfidências aqui estudadas pode se constatar o cerne entranhado da
insatisfação com os desmandos e negligências da Coroa Portuguesa à Colônia em formação
e desenvolvimento, cujo governante era quem menos respeitava suas próprias leis. Diante
deste complexo contexto, sua forma de fazer justiça era diferenciada entre as categorias
sociais; seus prêmios e seus castigos eram direcionados e suas cobranças, exacerbadas.
Para Portugal, reconhecendo as fortes implicações do quadro descrito, era preciso
combater os “jesuítas encobertos”
40
nas Minas Gerais, antes que a Coroa ficasse incapaz
de governar. No entanto como as “[...] Redes clientelares, em muitos casos, extrapolavam
os limites da América Portuguesa, atingindo o Reino e [...] frequentemente acabavam por
infringir as leis do Império português” (FURTADO, (1999a:46-47), tornava-se difícil
combater a política interna da Colônia e suas conexões com as tramas de privilégios da
Coroa Portuguesa.
Aos inconfidentes mineiros restavam os difíceis papéis de inconformidade,
resistência e luta, com as estratégias políticas possíveis, para deter a extensão do poder da
Coroa e a sua influência na Colônia.
De acordo ainda com Montesquieu (2004: 32) “nos Estados despóticos, onde não
existem leis fundamentais, não existe também repositário das leis”. Por esse motivo,
nascem e proliferam os corruptos e as corrupções, a preguiça, a pobreza, a ambição e a
morte dos valores morais, ficando o povo na desgraça, entregue a sua própria sorte e aos
desígnios dos que governam.
Tais Inconfidências guardavam no seu bojo o desejo de liberdade que aí se traduzia
na compreensão de que as leis, quando justas e bem aplicadas, fomentam a harmonia
social. E quando injustas devem ser motivo do direito de resistência dos que estão sob a
sua égide.
As ideias das Luzes, a partir do panorama enfocado, estiveram presentes nessas
Inconfidências, servindo para combater a política repressora do Estado e suas arenas de
38
MONTESQUIEU. (2004, p. 23)
MONTESQUIEU. (2004, p. 71)
40 Eram os que não aceitaram a expulsão dos padres da Companhia de Jesus do Império português em 1759.
Também foram chamados de pró-jesuíticos. Na assertiva de Catão (2007), de acordo com a documentação
contida no AHU (Cx, 91, doc. 29, fl. 1-2) já em 1767, Luís Diogo Lobo da Silva, então governador das Minas
Gerais, informou à Corte Portuguesa que havia “jesuítas encobertos” nessa Capitania, e das providências
tomadas para combatê-los.
39
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
68
perpetuação do poder em que as amizades, os parentescos, os cargos públicos e as
corrupções estavam nitidamente em confrontos e múltiplas disputas.
À guisa de possíveis conclusões
Para que serve verdadeiramente o poder? E como o poder deve ser
utilizado?Quando o poder do Rei cai em desgraça, as formas de contraposição a ele se
manifestam e se proliferam, caso não sejam detidas a tempo e com as formas coercitivas
apropriadas. No entanto, mesmo detidas, a História nos mostra que algumas dores ou
chagas ainda abertas ressurgem em outras épocas e com novos fatos como uma “ferida de
Narciso” 41, pronta para reivindicar suas necessidades no seio do poder.
As Inconfidências Mineiras, anteriores à Conjuração de 178942 nos acenam para o
panorama histórico, político e cultural acima descrito e suas faces de diversas
representações sociais43 do poder. É importante destacar, diante das dimensões desse
panorama, que do ponto de vista histórico criaram um conjunto preliminar de estratégias
para combater o poder monárquico (“papéis sediciosos”); do político, usaram as armas de
troca ou de barganha de influências que eram comuns na Metrópole, forçando Portugal a
ceder para não perder mais em seu próprio terreno de tramas e intrigas; do cultural,
estabeleceram interfaces com as ideias das Luzes, de uma sociedade que buscava sua
liberdade e seu desejo de emancipação.
Os “jesuítas encobertos” em Minas Gerais reconheciam as teorias corporativistas
de poder e agiam de forma a manter em suas práticas uma dinâmica de convergência com
elas. Preceitos retóricos à parte, tais Inconfidências estabeleceram críticas ao despotismo de
Portugal e buscaram deduzir do binômio tirania-despotismo as possibilidades do direito à
resistência.
41
Termo usado no Livro intitulado Ferida de Narciso, um ensaio de História Regional, em que o autor
Evaldo Cabral de Melo analisa o domínio holandês em Pernambuco, buscando compreender e explicar as
guerras e as negociações com a Coroa Portuguesa e com os Holandeses nessa Capitania, seus
desdobramentos sociais, políticos e históricos na formação do nativismo pernambucano e da Historiografia
Brasileira.
42Foram levantadas pelos inconfidentes de 1789 discussões que envolviam aspectos intrigantes e entrelaçados
das relações sociais da Metrópole Portuguesa com a Colônia, da propriedade e de uma nova ordem política,
embora as aspirações tivessem conotações mais amplas e, em alguns casos, diversas das que foram anteriores
a ela.
43De acordo com Motta (1996, p. 86) “Imaginário ou imaginação social, como preferem alguns autores,
passou a ser considerado um objeto de estudo fundamental para compreensão não somente das
representações mentais, mas também para o equacionamento da lógica das práticas e dos comportamentos
coletivos”. Para tal autor, seria ainda a “representação ou conjunto de representações imagéticas de
determinados aspectos ou fenômenos da vida social como anseios, temores, utopias, valores, crenças, etc.”.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
69
Segundo Berstein as noções de uma possível cultura política estão ligadas à cultura
global da sociedade, sem se confundir totalmente com ela, porque o seu campo de
aplicação incide exclusivamente sobre o político sendo necessário “perceber o papel
fundamental que ela desempenha na legitimação de regimes ou na criação de identidades,
sendo seus usos extremamente eficientes e pragmáticos”. (BERSTEIN, 1997, p.384).
Ela também determina a representação que uma sociedade faz de si mesma, do seu
passado e do seu futuro. Sua ação é variada e por vezes, contraditória, fruto da composição
de influências diversas, resultantes de uma mensagem com caráter unívoco.
As Inconfidências mineiras em análise, numa dimensão de culturas políticas, foram
tecendo fios que não desapareceram no tempo e no espaço contra o jugo português, e
embora não se possa asseverar no seu todo e nas suas fragmentações locais que foram o
nascedouro da mais famosa Conjuração das Minas Gerais, elas podem ter servido para
germinar progressivamente o solo mais fecundo de 1789, abrindo os caminhos necessários
aos processos na Colônia de dessacralização da Coroa Portuguesa.
Referências:
AHA-Arquivo Histórico Ultramarino.Caixa 91, documento 29, fl.1-2.
AHA-Arquivo Histórico Ultramarino. Caixa 113, documento 25, fl.6.
CATÃO, Leandro Pena. Inconfidências, jesuítas e redes clientelares nas Minas Gerais. In:
VILLALTA, Luiz Carlos; RESENDE, Maria Efigênia Lage de. História de Minas Gerais: As Minas
setecentistas. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
______. As outras Inconfidências Mineiras. Revista História da Biblioteca Nacional, São Paulo, n.
31,
01
abr.
2008.
Mensal.
Disponível
em:
http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=1517. Acessada em: 03/12/2011.
BERSTEIN, Serge. « La Culture Politique ». IN: GIROUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean- François
(org.). Pour une histoire culturelle.Paris: Seuil, 1997, p.384.
FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócios: a Interiorização da Metrópole e do Comércio nas Minas
Setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999a
MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis. 2ªed. São Paulo: Martin Claret, 2004.
______. Cartas Persas.Um Estudo de Abel Grenier. Tradução e Notas de Mário Barreto. 1ªed. Belo
Horizonte: Itatiaia Limitada. Coleção: Clássicos Itatiaia.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A História Política e o conceito de Cultura Política. Mesa Redonda
proferida no dia 23 de julho de 1996. Anais X Encontro Regional de História da ANPUH-MG,
Mariana (22 a 26 de julho de 1996).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
70
VILLALTA, Luiz Carlos. As origens intelectuais e políticas da Inconfidência Mineira. In:
VILLALTA, Luiz Carlos; RESENDE, Maria Efigênia Lage de. História de Minas Gerais: As Minas
setecentistas. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
71
Traços da mineiridade: influência nas atividades econômicas dos séculos XVIII e
XIX
Daniela Almeida Raposo Torres
Professora do Departamento de Ciências Econômicas da UFSJ
daniraposo@ufsj.edu.br
Paula Belgo Moraes
Graduada em Ciências Econômicas pela UFSJ
paulabelgomoraes@yahoo.com.br
Resumo: Este trabalho analisa a mineiridade enquanto identidade mineira e característica
sócio cultural do povo mineiro interligando a sua formação e a sua influência nas atividades
econômicas desenvolvidas no espaço mineiro setecentista e oitocentista. Busca-se
demonstrar como os traços da mineiridade se construíram a partir da atividade mineradora
e como se fizeram presentes nas optativas e no desenvolvimento das atividades econômicas
nos séculos XVIII e XIX. Os aspectos qualitativos dos mineiros quanto sua formação
social, cultural e econômica foram explorados pela análise de obras que pesquisaram as
peculiaridades mineiras neste período. Conclui-se pela influência da mineiridade na
formação da economia mineira.
Palavras-chave: mineiridade, economia mineira, atividades econômicas dos séculos XVIII
e XIX.
Abstract: This paper analyzes the mineiridade while identity mineira and socio-cultural
characteristics of the people mining linking its formation and its influence on economic
activities in the eighteenth and nineteenth-century. It aims to demonstrate how the features
of mineiro were built from the mining activity and how they were present in electives and
the development of economic activities in the eighteenth and nineteenth centuries. The
qualitative aspects of the miners and their social, cultural and economic analysis were
explored by works that investigate the peculiarities of mining in this period. It is concluded
that the influence of mineiridade the formation of the State economy.
Keywords: mineiridade, mineira economy, economic activities of the eighteenth and
nineteenth centuries.
A mineiridade enquanto identidade mineira
Minas Gerais traz em sua identidade cultural traços fortemente consolidados e
disseminados ao longo de sua historia. Seus traços de caráter regional são únicos e porque
não dizer indissolúveis. Levando-se em consideração a força que uma identidade deve ter
para se perpetuar na linha do tempo vislumbramos a tenacidade da mineiridade. “Todas as
compreensões comuns numa sociedade existem só na medida em que os grupos determinados sejam capazes
de assegurar sua continuidade no tempo e no espaço.” (ARRUDA, 1990, p.25).Enraizado na sua
formação primordial os traços da mineiridade permanecem presentes e influenciantes no
desenvolvimento de Minas Gerais.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
72
A província de Minas Gerais surge motivada por uma atividade econômica, a
mineração, que foi a responsável pela construção dos primeiros traços da mineiridade. Por
sua vez quando das minas já não se brotavam mais tantos metais e pedras preciosas na sua
busca por um novo esteio econômico os traços da mineiridade, formados no processo
minerador, foram determinantes na sua optativa econômica. “Na construção mitificada de
Minas é comum encontrar-se o juízo de que o espírito mineiro forjou-se na zona mineradora, ou que o
quadrilátero mineral conteria as raízes primeiras da mineiridade.” (ARRUDA, 1990, p.111).
A mineração promoveu no estado mineiro uma explosão demográfica e com ela
uma urbanização precoce e imatura, sem precedentes rurais. Esta população foi formada
por imigrantes de variadas regiões, países e classes sociais. Motivados pela “mística de
Midas”, iludidos com a possibilidade do enriquecimento fácil pela descoberta de pedras ou
metais preciosos, esses habitantes povoaram a região montanhosa e isolada. Muitas foram
às privações e dificuldades encontradas pelos primeiros a povoar Minas Gerais, em
particular a aquisição de alimentos, serviços básicos e estrutura urbana mínima, todos os
problemas foram ainda acentuados pela dificuldade de transporte e distancias dos centros
marítimos. “(...) as minas nasceram diferenciadas no conjunto da colônia. Vieram ao mundo envolvida
pela mística de Midas. Mesmo no futuro, quando o espaço regional estava delimitado, elas continuaram a
ser pensadas como o coração a emitir fluxos vitais para o corpo.” (ARRUDA, 1990, p.55.)
A atividade mineradora condicionou a sociedade mineira a características singulares
fundadas pela forma como ela se desenvolveu e se instalou na província. Além de todas as
restrições que ela impôs ao novo povoamento ela também atraiu a atenção da metrópole
para a colônia criando uma presença forte e repressora do Estado, ainda não vivida pela
colônia.
As relações sociais mineiras instituídas no período minerador e suas atipicidades
fizeram com que elas se fortalecessem e adquirissem uma importância superior para seus
habitantes mostrando-se presentes nas suas relações economicas. O conteúdo da atividade
mineradora cria na região que se instala traços característicos devido as particularidades do
seu processo. São eles: exigência de poucos recursos para ser desenvolvida, a não
concentração de propriedade, atividade que origina um produto de alto valor e de fácil
transporte e origina um padrão monetário, no caso o ouro e o diamante. Sendo assim
Minas Gerais adquiriu com essa atividade uma diferenciada e numerosa quantidade de mão
de obra, recursos financeiros abundantes frutos da própria extração e ainda um crescente e
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
73
vasto mercado interno criado pela explosão demográfica e pelos inúmeros núcleos urbanos
estabelecidos.
Minas Gerais viveu durante a época aurífera seu período de gloria e crescimento.
Com a decadência da extração sua economia interna já era aquecida e diversificada. Porém,
mesmo possuindo os pré-requisitos básicos para a implantação de manufaturas e indústrias
em seu território, estas não foram desenvolvidas. Houve um retrocesso para a economia
rural, reprimindo o progresso e a evolução de seu sistema econômico, já forte desde a sua
formação.
Dado importância dos aspectos sociais para os mineiros e sua singular e única
identidade, a mineiridade, seus traços são percebidos nesta optativa de retrocesso e
travamento na implantação de manufaturas, não como causa única, mas como fatores
fortemente influenciantes na determinação dessa rearticulação econômica mineira pósmineração. Na medida em que o futuro é construído com bases no passado, o povo
mineiro “cheio” de passado trouxe para o seu futuro moldes de desenvolvimento
carregados dos seus traços daquilo que se denominam mineiridades.
A influência da atividade mineratória na construção da mineiridade
O ouro e o diamante construíram o estado mineiro, envolvendo de fascínio e ilusão
seus habitantes. A mística de Midas enfeitiçou o mineiro. Toda a identidade mineira foi
construída pela mística presença do ouro ou por sua escassez. A mineiridade, enquanto
identidade mineira se formou conjuntamente ao processo produtivo mineiro. Ela começa a
ser construída no período aurífero, com a decadência, seus traços se ampliaram e se
consolidaram. Por sua vez, os traços da mineiridade se perpetuaram pelo tempo não se
desvinculando da sua formação original. “Chamo intemporalismo esse desdém pelo tempo que se
manifesta nas menores coisas em minas.” (ARRUDA, 1990, p.122)
A explosão demográfica ocorrida no ciclo do ouro trouxe a urbanização e as
instituições públicas para o território. Em contrapartida, não havia na região estrutura
prévia para absorver as necessidades básicas desta população. Muitas foram às privações e
dificuldades para os pioneiros da mineração. A precária forma de abastecimento, a
dificuldade de transporte, a geografia montanhosa e a distância do litoral, somaram-se à
dedicação exclusiva a exploração aurífera tornando a população carente dos mais diversos
bens e serviços, principalmente de alimentos. “A população que se precipitou para Minas era
submetida a uma impiedosa seleção natural, tais as dificuldades iniciais encontradas e os trabalhos de
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
74
desbravamento e exploração.” (LUCAS, 1991, p.20). Dos tempos de privação e abastecimento
defasado emergiram na sociedade mineira traços singulares de solidariedade, de altruísmo,
de gosto pela abundancia alimentar e também o medo da abstinência.
Após a descoberta do ouro a província mineira sofreu profunda pressão por parte
da colônia. Essa pressão se deu a partir da imposição de impostos, represálias, fiscalizações
intensas e forte presença da Coroa em todos os aparatos da província mineira. “Acontece que
de todas as províncias desse imenso território, a mais fiscalizada, a mais oprimida, a mais explorada era
sem contradição, a de Minas Gerais” (ARRUDA, 1990, p.65). A presença e a forte opressão da
Coroa sobre a colônia e seus habitantes foi um dos fatores condicionantes a instituição de
traços da mineiridade, na medida em que moldou certos comportamentos tipicamente
mineiros. O constante temor de represálias e a exploração fiscal incentivavam o
contrabando, e a desconfiança rodeou a população. O isolamento montanhês foi pela
coroa acentuado como forma de restringir a fuga do ouro.
Na idéia de sobrevivência nota-se outro traço de mineiridade nascida no ciclo do
ouro, o caráter hospitaleiro do povo mineiro. Essa característica pode estar relacionada à
miscelânea de imigrantes nacionais e estrangeiros que ocuparam e fundaram o espaço
mineiro no período da mineração. A escassez e as dificuldades em adquirir o básico para a
sobrevivência, dado pela distância dos centros de abastecimento são aspectos que geraram
no mineiro considerações altruístas, de ajuda mútua. Os tempos de privação tornaram o
mineiro indubitavelmente altruísta e afetuoso, sentem gosto em ajudar a “outrem”. Pelos
viajantes não acostumados com a hospitalidade e a generosidade, essa característica soou
como defeito da personalidade a ser corrigido.“È preciso se desterrar a ociosidade que muito
impera em todo o Brasil, e principalmente nas Minas Gerais, em conseqüências da facilidade de se subsistir,
graças à hostilidade e generosidade da gente mineira.” (ARRUDA, 1990, p.53)
A idéia da descoberta de novas minas, o encanto do enriquecimento rápido e fácil
foi o fator preponderante na atração desse povoamento e das primeiras impressões do
caráter mineiro observado pelos viajantes.“(...) Sempre entregues à perspectiva de enriquecer
subitamente, imaginavam estar isento da lei universal da natureza, que obriga o homem a ganhar o pão
com o suor do seu rosto.” (ARRUDA, 1990, p.57). O ócio, desprazer pelo trabalho e a preguiça,
rondou a perspectiva do povo mineiro por toda a sua formação. Por vezes essa
característica foi colocada como responsável pela desarticulação mineira para as demais
atividades econômicas. Ademais, considera-se que a mineração moldou esse traço, tão
presente e tão realçado pelos viajantes.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
75
A Mística de Midas envolveu a identidade mineira com outro sentimento motivador
dessa ilusão que foi, a esperança. Ao acompanhar fatos de indivíduos de repente
enriquecerem, de escravos se alforriarem por conta própria e a facilidade da extração nos
primeiros anos do ciclo geraram a crença na loteria das minas. Essa crença contaminava o
ensejo ao trabalho desvalorizando as atividades desvinculadas da mineração, por estas
serem demoradas, árduas e menos lucrativas. Dessa forma, ao exercer outras atividades os
mineiros almejavam encontrar nelas as mesmas características da mineração, como a
facilidade, lucro rápido e pouco dispêndio de tempo. O clima e a geografia das terras
mineiras também foram apontados como causadoras do marasmo mineiro. A geografia das
montanhas configurou um caráter de tristeza, apatia e reclusão. Assim como a generosidade
e a proximidade social existente entre os donos das terras e os trabalhadores, o
conformismo e a submissão são traços que vão de encontro à ambigüidade mineira, na
proporção que são também dotados de revoltas e indolências assim como de esperança
viva.
Sustenta-se que a formação urbanizada de Minas Gerais, ocasionada pela
mineração, foi uma grande e importante condicionante na formação da mineiridade. Lucas
(1991) faz referencia a Washington Albino, autor de Ensaios sobre o ciclo do ouro (1978), onde
este mostra a relativa autonomia da formação urbana mineira e como ela condiciona a
economia local.
Núcleos urbanos constituídos para determinada finalidade produtiva, já trazem
na sua fisionomia inicial os traços de um condicionamento econômico e
pragmático. Diferentemente do que ocorreu na colonização espanhola e em
outras experiências portuguesas, foi possível a combinação imediata de espaço,
população e cultura, sem passar, antes, pela experiência de destruir uma cultura
local, de deslocar valores tradicionais ou de pilhar e saquear nativos. (LUCAS,
1991, p.66)
A formação cultural emergida na extração aurífera mineira deu-se de forma tão
singular, que sua própria formação corroborou para o pleno estabelecimento da
mineiridade. Note-se que o fato de ser uma região vazia e inexplorada possibilitou a
criação de traços “originais”, de traços primeiros, sem o peso da destruição ou
modificações de culturas para se estabelecer. Ao se propagar a mineiridade não carregou o
peso do massacre e da morte o que possibilitou seu desvinculamento de um peso negativo
na sua posteridade, o que gestou bases para o seu estabelecimento e perpetuação.
As minas foram o começo e fim de tudo, o ponto vital da identidade mineira. Ao se
compreender a mística do ouro e tudo que a ela está vinculada, consegue-se absorver a
essencialidade mineira. Assim, como o metal e as pedras preciosas, tudo que se fundou a
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
76
partir deles absorveu também a sua essência de cunho eterno e indissolúvel. Por isso em
Minas a construção social, a tradição, o conservadorismo, a religiosidade, entre outros
traços se disseminaram com as mesmas características indissolúveis e brilhantes do ouro e
do diamante.
Os aspectos sócio culturais na formação do povo mineiro
A formação e transformação das atividades econômicas mineiras, agregadas a sua
atípica e diferenciada formação, veio a traçar características particulares de sua “gente”. A
urbanização, a religiosidade, o caráter político e desenvolvimentista, a personalidade
desconfiada e retraída, a fama de “bom sujeito”, tímido e acolhedor, assim como as
especialidades alimentares, foram construídas, dentre os demais fatores, pela influência das
atividades econômicas desenvolvidas no espaço mineiro setecentista e oitocentista.
Ao isolar-se nas montanhas nos primeiros anos de exploração, no período de
mazelas vivido pelos pioneiros, associados ao vinculo urbano propiciou a essa sociedade a
assimilação de construções sociais sólidas. Os vínculos da sociedade mineira com os
aspectos sociais e morais são indiscutivelmente consolidados e também desarticulados das
demais regiões. O esforço em preservá-los por meio da memória representa para a
sociedade mineira, condição essencial a eternização de seu espírito e uma forma de
distinguir-se do todo. “O memorialismo mineiro mobiliza as concepções da mineiridade, numa espécie
de sacralização das lembranças da terra.” (ARRUDA, 1990, p.29)
Neste contexto, pode-se afirmar que há uma profunda relação entre o
comportamento social do mineiro e sua formação econômica. O regionalismo mineiro
absorveu do ouro a característica do brilho e da durabilidade. Do atraso rural absorveu a
simplicidade e a timidez. Das privações retirou o gosto pela mesa farta e pela abundância
do alimento. A mística de Midas, por sua vez, gestou profunda aversão ao novo, a
mudança, e ao que não possui a materialidade, a essencialidade dos metais preciosos.
No ideário mineiro, ainda que o ouro esgotasse e que a reclusão rural fosse
imprescindível, as características sociais e culturais seriam mantidas irrefutavelmente como
modo de preservar sua identidade. Com esperteza e astúcia preservou sua identidade,
reafirmando suas particularidades. Reservado como as montanhas e dotado de expressiva
perspicácia arraigada nos tempos da exploração e da opressão metropolitana tornou-se
ensimesmado e contemplativo.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
77
A religiosidade sempre foi marcante e presente no ideário mineiro, fonte de
estabilidade e consolidação de características sócio culturais. Facilmente disseminada nos
meios urbanos, a religiosidade fundamenta valores morais e comportamentais e os justifica.
Lucas (1991) considera que o sentimento religioso se originou da luta pela existência em
condições de insegurança física e social. Nas concentrações tripuladas de Minas com
tendencialismo ao misticismo, a religiosidade encontrou terreno fértil. A perpetuação do
caráter religioso mineiro se confundiu com a resistência a mudanças existida em outros
preâmbulos da caracterização mineira como, escravidão, hierarquização social, persistência
em atividades fracassadas entre outros. “É preciso notar que, em certas áreas, a intolerância
religiosa, ou racial, ou política se confunde com a resistência à mudança, isto é, com o mais paralisante
conservadorismo.” (LUCAS, 1991, p.108). Nesse conceito os aspectos sócio culturais
encontram em Minas Gerais ampla consolidação e importância. Disseminam-se e ditam um
padrão, tipicamente mineiro, de influenciar suas relações, inclusive nas bases econômicas.
Traços da mineiridade: influência das atividades econômicas dos séculos XVIII e
XIX
A exploração de metais preciosos fortaleceu a metrópole e as atividades urbanas
diversificando a economia. Essa atividade também estimulou as ligações entre os setores
econômicos e fornecedores destinados aos bens de primeira necessidade, voltados ao
interesse de viabilizar a ocupação no território mineral.
A economia mineradora reafirma-se como atípica no cenário econômico brasileiro,
quando comparada a outras atividades econômicas brasileiras. A formação de núcleos
urbanos viabilizaram o processo exploratório suprindo a população dos mais variados bens,
produtos e serviços necessários, principalmente os de primeira necessidade. Essa malha
urbana não era autossuficiente e era totalmente concentrada na exploração. Assim, o
desenvolvimento das demais atividades em torno do processo de urbanização
proporcionou, além de diferenciação social e de ocupação, a intensificação dos fluxos
monetários.
Como dependia do fornecimento de alimentos, transporte e demandava bens e
serviços diversos inerentes de uma população altamente concentrada e urbanizada,
apresentava transações comerciais elevando o grau de monetização da economia. A
distância do litoral favoreceu emergir a procura por bens e serviços correntes, e a aquisição
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
78
e pagamento desses bens e serviços espalhavam a renda para fora dos limites da
mineração.44
De acordo com Coutinho (2008), ao admitir-se o inegável dinamismo da economia
mineira setecentista e oitocentista questiona-se quais seriam as supostas razões ao fracasso
das manufaturas mineiras, já que dentro dos conceitos básicos, Minas Gerais possuía a
contento todas as condições favoráveis ao desenvolvimento dessa atividade. Segundo ele,
analisando a obra de Celso Furtado quanto à economia de Minas e a economia dos três
grandes ciclos econômicos brasileiros – açúcar, mineração e café – em relação às demais, a
mineração apresenta singularidades e particularidades exclusivas a essa atividade bem como
aos padrões como ela se estabeleceu. As diferenciações não observadas nos demais ciclos
tornaram-na ímpar em sua análise.45
No território mineiro setecentista e oitocentista foi possível observar pré-requisitos
básicos que viabilizariam a implantação de manufaturas e de uma estrutura industrial
favorável. Atentaremos a presença de três fatores fundamentais que por si só já seriam
suficientes ao desenvolvimento destas: o mercado, a mão de obra e o capital.
Temos que em termos de mão de obra que em Minas Gerais consolidou-se uma
imensa gama de imigrantes vindos de diversas partes e também dotados de habilidades
diversas, ainda que ao imigrarem e se estabelecerem em solo mineiro esses imigrantes não
exerciam sua profissão original eles ainda continuavam dotados das habilidades a elas
pertinentes.46
A escravidão em Minas Gerais, por sua vez, foi então consideravelmente atípica. “A
escravidão ‘normal’ seria a do plantation; as demais, exceções à regra.” (VERSIANI, 1998, p.40). No
escravismo mineiro, diferentemente do açucareiro, os escravos não chegaram a constituir a
maioria da população, tem-se ainda que estes possuíssem maior iniciativa e também
recebiam incentivos que propiciavam a conquista da liberdade. (LUCAS, 1991, p.19).
Versiani (1998) aponta ainda que na extração mineral para minimizar as perdas era
necessário aplicar atenção ao trabalho exercido pelo escravo tornando, portanto essa tarefa
“intensiva em habilidade”. A escravidão em Minas se diferencia fortemente da escravidão
do plantation. Na mineração a coerção era mais voltada a coibir os furtos e não em
maximizar a produção, que por ser intensivo em habilidade ocasionaria perdas. Os escravos
44Para mais detalhes sobre a economia provincial mineira ver: O mercado interno provincial: um estudo dos
preços de mercado dos gêneros da produção mineira em 1839/40, RESTITUTTI(s/d).
45 Para mais detalhes sobre os ciclos produtivos da economia colonial brasileira ver, entre outros, Furtado
(1970).
46Para mais detalhes sobre os imigrantes e suas habilidades ver WIRTH, 1982, p.53 entre outros.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
79
por sua vez trabalhavam visando seus próprios ganhos, caracterizado pela possibilidade de
recompensas ou por pequenos furtos, modificando os parâmetros de escravidão.47
Quanto ao mercado, Minas Gerais ao se urbanizar criou um expressivo e múltiplo
mercado interno e também por intermédio do esvaziamento do ouro abriu portas ao
mercado interprovincial. A densa demografia e a formação de núcleos urbanos
desenvolveu o setor de serviços e o comercio. Incentivados e essenciais ao
desenvolvimento da mineração, como forma de viabilizar a presença dos mineradores na
região, esses setores não foram vistos com maus olhos pela coroa, como as manufaturas.
Isso contribuiu para o seu crescimento e sua fácil implantação em toda a zona mineral. A
própria escravidão mineira que se deu em contesto diferenciado, acrescentou ainda que
timidamente um começo a possibilidade da população negra a participar do mercado
interno através das recompensas e dos furtos que eles realizavam48.
Por se tratar de um padrão monetário de alta aceitação e comercialidade o ouro e o
diamante estabeleceram a monetização da economia mineira no período. Os recursos
desviados ao pagamento de impostos deixaram na província um excedente econômico que
chegou a possibilitar no período da decadência aurífera a implantação de indústrias têxteis,
pastoril e siderurgia em Minas. Por meio das lucrativas lavras do inicio da exploração e da
monetização propiciada pelas pedras e metais preciosos houve no território mineiro
formação de capital. Mesmo com a forte evasão das divisas pressionadas pela metrópole e
seus pesados impostos e forte fiscalização o mercado mineiro ainda conseguia produzir
excedentes e reter parcela da produção.49
A mercantilização do território mineiro setecentista e oitocentista era inquestionável
e se justifica com base ainda que somente, na grande massa populacional e
predominantemente urbana. Distinguiu-se em forma e intensidade de acordo com as
regiões e suas formações. As regiões de Minas não diretamente ligadas à mineração
dedicaram-se a prover as necessidades de abastecimento destas, principalmente na
agricultura e na pecuária. Nas zonas mineradoras a alta monetização promoveu o aumento
dos preços, esse aumento foi ainda intensificado pela prevalência da exploração mineral
frente às outras atividades.
47Para
mais detalhes sobre o trabalho escravo em Minas Gerais ver VERSIANI, 1998, p.53 entre outros.
mais detalhes sobre a economia provincial mineira ver: O mercado interno provincial: um estudo dos
preços de mercado dos gêneros da produção mineira em 1839/40, RESTITUTTI(s/d).
49Para mais detalhes sobre a monetização da economia mineira ver LUCAS, 1991, p.19 entre outros.
48Para
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
80
Coutinho (2008) ao questionar as transações monetárias e o pagamento de fatores
sob os traços básicos do modelo de Furtado na economia aurífera do século XVIII e sua
posterior fase de decadência pondera: “se houve disseminação dos pagamentos na forma monetária,
por um período razoável, apenas razões bem especiais poderiam impedir a formação de fluxos
autossustentados de expansão da renda.” (COUTINHO, 2008, p.373). Sabe-se que em Minas
Gerais no período aurífero houve disseminação dos pagamentos na forma monetária
propiciada pelo mercado interno e também interprovincial assim como pelo dinamismo
oferecido pela rede urbana e diversidade de mão de obra. As Minas setecentista com a
exploração aurífera gestou a formação de mercado, capital e mão de obra que conduziriam
a expansão manufatureira da província. Observa-se que mesmo com o estruturado
desenvolvimento dessas bases, mercado – mão de obra – capital, com a decadência aurífera
a economia do Estado mineiro, voltou-se de forma significativa para as bases rurais em
proporções nunca antes vividas pela província, contrariando o fluxo lógico do
desenvolvimento do processo produtivo.
O relativo atraso à implantação de manufaturas e o retrocesso à economia rural
Os traços da mineiridade, fatores sócios culturais mineiros, construídos e
estabelecidos na sua formação, são, em conjunto com outros fatores, responsáveis pela
optativa mineira ao retrocesso a economia rural e no relativo atraso ao desenvolvimento de
manufaturas e indústrias em Minas, a exemplo de São Paulo.“(...) Trata-se de reconhecer, que
toda a modernidade mineira tinha um decisivo travamento: seu compromisso com o passado.” (DE
PAULA, 2000, p.47).
A idéia do sonho dourado está diretamente relacionada com os traços da
mineiridade. A esperança mineira de se deparar com a descoberta de pedras e metais
preciosos permitia a mobilidade social desconhecida até então para as demais regiões
colonizadas no Brasil. O ambiente urbanizado, a ausência da concentração de terras, como
na monocultura da cana de açúcar, além do pouco interesse atribuído a esse bem (terra)
possibilitou a facilitação do cultivo de subsistência do povo. Dado pelos viajantes como
povo habituado ao não trabalho, ou seja, ao ócio, construíram na visão deles a imagem do
mineiro como um povo cultivador da idéia de sobrevivência desvinculada da necessidade
de grande trabalho.
O que afasta os habitantes desta cidade do habito de uma indústria regular, é a
esperança continua que alimentam de se tornarem repentinamente ricos pela
descoberta de minas. Estas idéias enganosas (...) dão-lhes invencível aversão ao
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
81
trabalho, embora todos vivam miseravelmente, e, muitas vezes dos obséquios
de outrem. (ARRUDA, 1990, p 57.)
Diversas são as passagens em quem os viajantes chamam a atenção ao caráter
preguiçoso e tendido ao ócio dos mineiros. Essa marcante característica, ou defeito dos
mineiros foi criado a partir da mística de Midas. Esse processo ilusório de enriquecimento,
de trabalho a subsistência e de dedicação apenas às lavras foi também incentivado pelas
articulações da metrópole para manter todos os esforços da provincia voltados à
mineração. A mais marcante interferência metropolitana na investida de coibir a
descentralização de esforços da extração foi o Alvará de 5 de Janeiro de 1785, que instituía
a proibição de manufaturas têxteis nas capitanias da Brasil. Varnhagem (s/d) descreve essa
proibição como “ato mais arbitrário e opressivo da metrópole contra o Brasil desde o reinado anterior”
(VARNHAGEN, s/d, p.374, APUD, NOVAIS,2000, p.214). A coroa alegava que a
dedicação ao trabalho nas fabricas causaria prejuízos ao trabalho no campo e nas minas.
Desta forma, o trabalho apenas nas lavras foi realçado com o referido decreto da coroa. Na
já influenciada província mineira, à dedicação exclusiva a extração esta foi mais uma
reafirmava de dedicação a essa atividade. Apela também para o temor de preservar o
sustento alimentar que já havia afetado a população no inicio do povoamento. Assim criouse mais um fator a expugnação das tendências ao progresso e evolução de fábricas e
manufaturas na região.
De fato o trabalhador das gerais não era em sua essência ocioso. Eram envolvidos
intensamente pela mística de Midas e por sua vez encontrou incentivos governamentais
para seu comportamento. Tornou-se inapropriado e inadequado ao mineiro, já
intensamente ligado aos padrões sociais de tradicionalismo e essencialismo a dedicar-se a
outros afazeres tidos como “prejudiciaes e nocivos”. Atribuindo as manufaturas um caráter
prejudicial à lavoura e a mineração facilmente os mineiros se convenceram a submeter-se à
proibição. As atividades prejudicadas eram para os mineiros, as que eles mais zelavam e
temiam de extinção, ouro e o alimento.
Observa-se, porém, que a implementação das proibições pouco afetou, ou
contrariaram a tendência vigorosa mineira ao emprenho mineral. Os dados disponíveis da
aplicação do alvará sugerem que pouco foi encontrado para apreender. Novais (2000) cita
José Vieira Couto “nunca em Minas se fabricara senão teçume próprio para os escravos e gente miúda”,
produção que não era proibida pelo alvará. (NOVAIS, 2000, p.232).
As considerações relativas às instalações das manufaturas na província de Minas
Gerais retratam os traços sociais inseridos no contexto de formação econômica mineira no
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
82
período aurífero. Ainda que diversos fatores corroborassem para mitigar o processo
industrial no estado, estes por si só não explicam o travamento nas proporções inibidoras
que estas atingiram. Essa idéia é reforçada por Coutinho (2008), referindo às relações
colocadas por Furtado em Formação Econômica do Brasil sobre o desenvolvimento da
Austrália no século XIX. Percebe-se que há fatores não explorados nessa investigação a
despeito do relativo atraso mineiro ao progresso manufatureiro e industrial, mesmo tendo a
província mineira condições a sua plena e forte instalação.
Editos governamentais não conseguem suprimir tendências econômicas
vigorosas. Formação Econômica do Brasil utiliza o exemplo da Austrália do
século XIX para mostrar como o declínio de uma atividade mineradora pode
levar a uma diversificação econômica. Em Minas, ao contrário do que viria a
acontecer na Austrália (100 anos depois...), o declínio da mineração levou a uma
regressão da atividade econômica. (COUTINHO, 2008, p.365 - 366.)
O vigor econômico da mineração era inquestionável. Tem-se ainda que o povo
mineiro desde sua primordial formação era considerado como “povo dado a motins e
conflitos”, “tumba da paz”, portanto um edito governamental não justificaria o travamento
ao desenvolvimento econômico manufatureiro. Muito menos se justificaria por fatores
como a inexistência de pré-requisitos básicos a produção manufatureira.
Para o mineiro, a questão da tradição foi utilizada como forma de resguardar e
preservar sua identidade. O caráter desconfiado e temeroso criado pelo período minerador
e suas implicações persistiram nos processos econômicos mineiros subseqüentes. A
mineiridade destaca-se no comportamento do homem mineiro nas descrições dos viajantes,
que apontam as habilidades destes ao processo industrial e ao mesmo tempo suas
diferenciações comportamentais frente aos demais.
(...)os mineiros formam por assim dizer uma população a parte entre a
população brasileira.(...) No geral as singularidades são marcantes: o habitante
de minas não se distingue somente por sua sagacidade natural, por sua
franqueza, por seus hábitos de hospitalidade, mas depois do Rio de Janeiro
nenhuma região neste vasto império apresenta reunidos melhor do que em
Minas tantos elementos próprios para desenvolver um movimento industrial
favorável(...). (ARRUDA, 1990, p. 85)
Tem-se ainda que o caráter temeroso do mineiro provocou certa aversão ao que
“vem de fora”, considerando que tudo de fora das montanhas, perturbavam, tumultuavam
e incomodavam a sua vangloriada solidão. “Os sertanejos demonstravam: profunda indiferença por
tudo que existe além da sua solidão, é o sinal distintivo do seu caráter.” (ARRUDA, 1990, p.85). O
que transcende as montanhas gera desconfiança e resguardo, são intuídos como fatores que
viriam a destituí-los de algo muito preservado como a tradição e a identidade. Nessa
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
83
perspectivaa aversão às mudanças, ao novo e desconhecido, ao irreal e palpável, facilmente
negociável, e principalmente essencial era objeto de repulsa.
Os aspectos sociais dos mineiros foram assim influenciantes no relativo atraso
manufatureiro. Optar pela manufatura e pelas indústrias parecia redundante na visão do
viajante visto a própria dinâmica do processo de evolução econômico. Porém, para o
mineiro realizar essa opção significava cortar seus laços tradicionais. Seria romper seu
sonho dourado, desbravar um “mundo” desconhecido, ao lado da solidez do metal,
representava perigo e descontentamento. O sonho do metal e das pedras preciosas, aliados
ao temor das privações do passado fizeram do ouro e do alimento fundadores da
essencialidade mineira, destinados à preservação permanente.
No período da decadência do ciclo do ouro, a economia mineira apresentou-se
reclusa, mas não estagnada, mantendo seu dinamismo através das demais atividades que se
desenvolveram na região para viabilizar a mineração. Com a decadência das extrações a
economia mineira teve de se readaptar frente ao novo contexto. Estudos realizados
referentes ao período demonstram que a economia interna, apesar da optativa ao
travamento manufatureiro, manteve-se aquecida em outros setores, particularmente rurais,
e apresentava forte dinamismo. Cabe então compreender o que levou a economia mineira e
retroceder para as bases rurais. Sabe-se que as interferências sociais e econômicas se
fundiram se influenciando mutuamente em Minas Gerais. No retrocesso a economia rural
também pode apontar traços da mineiridade que o influenciaram.
Faz-se necessário entender que para o mineiro o fim do período do ouro
representava o fim do sonho dourado, portanto representava a desesperança, a vergonha, à
derrota, depois de tanta espera e dedicação. “Ao mesmo tempo quando o fausto do ouro tornou-se
passado, a decadência que se segue pode gerar certa rejeição em face do mundo, criando um lastro comum aos
períodos decadentes.” (ARRUDA, 1990, p 61). Para alcançar seu sonho o povoador mineiro
desbravou as montanhas, passou por restrições, faltas e construiu um padrão de costumes e
tradições vinculados ao processo economico. As derrotas mineiras recriaram em seu âmago
profunda vergonha e descontentamentos geradores de características sociais marcantes.
“Esse conjunto de vexames e afrontas havia necessariamente de robustecer nos mineiros o complexo de
desconfiança.” (ARRUDA, 1990, p 107). Assim não é de se surpreender que com o fim do
ouro os mineiros voltassem sua atenção a sua próxima grande preocupação e ocupação, o
sustento alimentar.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
84
Ao repensar o campo como sua nova principal atividade econômica ele conquistou
além da segurança de provimentos para o tempo futuro a possibilidade de reclusão. Se o
sentimento de vergonha e derrota não podiam ser menosprezados pelo mineiro eles
podiam se esconder no meio rural. É importante nesta compreensão a noção de que com o
fim do ouro a economia mineira não tinha como única opção retroceder ao meio rural, sua
estruturação de mão de obra, capital e mercado no período possibilitariam outras optativas.
Seus precedentes de formação desvinculados dessa atividade como central fortaleceriam as
propensões à escolha de outras atividades econômicas, que não a um retrocesso rural.
Considerações finais
A construção primitiva da mineiridade se deu na atividade mineradora, primeira e
certamente a mais significativa atividade econômica desenvolvida no território mineiro
desde seu desbravamento até a atualidade. Em torno do ouro, a mineiridade se fundou e se
consolidou. Quando a atividade mineratória chegou à exaustão, o espírito mineiro já estava
entranhado de características socioculturais fortes, que moveram esta sociedade a uma
optativa econômica atípica e diferenciada quebrando o percurso convencional de
direcionamento.
Ao mesmo tempo em que a atividade econômica mineradora do século XVIII foi
responsável, inegavelmente, pela construção dos traços da mineiridade, estes por sua vez
passaram a ser um dos principais fatores influenciadores das optativas econômicas
posteriores a mineração. O intemporalismo, em outras palavras, o desdém pelo tempo, essa
típica confusão mineira entre presente, passado e futuro, dada nas experiências econômicas
mineiras vivenciadas nos séculos XVIII e XIX, fizeram de Minas um grande baú que
preservou características do passado.
Ao considerar um recomeço econômico no período da “decadência”, os traços da
mineiridade podem ser encontrados e analisados neste processo. Mesmo sendo um
território dotado de qualificações econômicas que viabilizariam o desenvolvimento de suas
atividades, como demonstrado através da sua atípica construção urbanizada, da sua
numerosa e diversificada população, do capital e mercado entre outros atributos, o mineiro
preferiu retroceder ao meio rural a desenvolver sua atividade manufatureira.
Os aspectos sociais, o apego às tradições e o dever indelével de sacralizar as
lembranças do passado foram sempre ativos na formação mineira. Então, como poderiam
elas se distanciar das suas optativas econômicas?
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
85
A atípica formação do território fez com que na província mineira se trava-se um
conflito interno de valores de uma sociedade diferenciada. O vexame do empobrecimento,
o endurecimento a manter empreendimentos fracassados e a mística de Midas talvez jamais
se separasse da sua trajetória econômica. Sobre o entendimento de que preservar seria até
mesmo manter as particularidades que pudessem vir a prejudicar Minas Gerais, o estado
carregou no seu processo produtivo o peso das considerações sócio culturais.
Em termos nacionais a formação de Minas Gerais teve importância relevante. O
ideário de liberdade, democracia, igualdade e acessibilidade do espaço nacional, certamente
tiveram seus primeiros passos fundados em território mineiro. Estes fortaleceram e
ampliaram com bases na solidez da mineiridade. A busca do ouro e das pedras preciosas
contribuiu para efetivar o caráter nacional, mas principalmente o caráter mineiro. As glórias
antigas passaram, mas muitos traços culturais ficaram e outros surgiram. A situação
material e espiritual moldou as perspectivas econômicas mineiras e desvinculá-las
representaria modificar a essência do caráter mineiro. “De qualquer forma um caráter foi forjado.
Dele, centenas de estribas tem-se aproveitado”. (LUCAS, 1991, p.101)
Referências Bibliográficas:
ARRUDA, Maria A. do Nascimento. Mitologia da Mineiridade. 1º ed.: São Paulo: Brasiliense, 1990.
COUTINHO, Mauricio C. Economia de Minas e economia da mineração em Celso Furtado. Nova
economia. Belo Horizonte 18(3), p.361-378, setembro-dezembro de 2008. Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-63512008000300002&script=sci_arttext>. Acesso
em 14 junho 2011.
DE PAULA, João Antônio. Raízes da Modernidade em Minas Gerais. Belo Horizonte: Editora
Autêntica 2000.
LUCAS, Fabio. Mineiranças. Belo Horizonte: Oficina de livros, 1991.
NOVAIS, Fernando Antônio. A proibição das manufaturas no Brasil e a política econômica
portuguesa do fim do século XVIII. Revista de História. 142-143 (2000), 213-237. Disponível em
<http://www.revistasusp.sibi.usp.br/scielo.php?pid=S003483092000000100005&script=sci_arttext>. Acesso em 14 junho 2011.
RESTITUTTI, Cristiano Corte. O mercado interno provincial: um estudo dos preços de mercado
dos
gêneros
da
produção
mineira
em
1839/40.
(s/d).
Disponível
em
<http://www.cedeplar.ufmg.br/seminarios/seminario_diamantina/2006/D06A035.pdf>. Acesso
em 14 junho 2011.
VERSIANI, Flávio Rabelo. Os escravos que Saint-Hilaire viu. Diamantina, 1998, VIII Seminário de
economia
mineira.
Disponível
em
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
86
<http://historia_demografica.tripod.com/bhds/bhd37/versaint.pdf saint hilaire>. Acesso em 14
junho 2011.
WIRTH, John D. O Fiel da Balança: Minas Gerais na Federação Brasileira. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1982.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
87
Labor mecânico: oficiais mecânicos arrematantes de obras junto ao Senado da
Câmara de Mariana, século XVIII
Danielle de Fátima Eugênio
Mestranda em História pela UFOP/ Proext - Ministério da Educação
daniellef.eugenio@gmail.com
Resumo: Este trabalho busca abordar o tema do oficialato mecânico na capitania de Minas
Gerais, através da análise de um determinado grupo de oficiais mecânicos, composto por
arrematantes de contratos de obras públicas, em Mariana, durante o século XVIII
(especialmente a segunda metade). Para tanto utilizaremos registros encontrados na
documentação arrolada, que consiste em testamento e inventários post-mortem. Informações
como: indicação do ofício mecânico praticado, realização de outras atividades paralelas ao
exercício do ofício, registros de licenças ou cartas de exame, número de arrematações
contratadas, registros de dívidas ativas e passivas, formação de sociedades, levantamento
dos bens móveis e imóveis, composição dos plantéis de escravos que possuíam, se
pertenciam a agremiações leigas, naturalidade e cor da pele. Desse modo, analisaremos
como alguns dos arrematantes de obras públicas viviam, se representavam, inseriam e
ascendiam socialmente. Contudo, estamos nos referindo ao perfil social e às relações
sociais estabelecidas no cotidiano dos trabalhadores manuais que satisfizeram as
necessidades da Câmara de Mariana em executar as construções propostas.
Palavras-chave: Oficiais mecânicos; arrematantes de obras públicas; século XVIII
Abstract: This work looks to analize the privileged group of craftsmen, formed by public
works’ bidders in the Eighteen Century Mariana, Minas Gerais. For that, we will use data
from wills and inventories like: the mechanical craft practiced, the realization of other
activities besides the craft, registration of licences or letter of examination, number of
buildings, debt’s registration, formation of societies, collection of real estate and movables,
the application of slave labor, the participation in lay brotherhoods, place of birth and skin
collor. So, we will analyze how some craftsmen lived, were inserted and ascented in a
colinial society. We are refering about the social profile and relations made in craftsmen’s
daily who satisfied the Câmara of Mariana needs to execute the buildings.
Keywords: Mechanical craftsmen, public works’ bidders, eighteenth century.
Introdução
Nesta comunicação buscaremos abordar o tema do oficialato mecânico na capitania
de Minas Gerais, através dos perfis sócio-econômicos de um determinado grupo de oficiais
mecânicos, composto por arrematantes de contratos de obras junto ao Senado da Câmara
de Mariana. Contemplaremos os oficiais que se destacaram quanto ao número de trabalhos
contratados na segunda metade do Setecentos e apresentaremos como viviam, se
representavam, inseriam e ascendiam socialmente.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
88
Arrematantes de obras públicas na cidade de Mariana
Inicialmente, fazemos uma ressalva acerca do uso da palavra labor que fora utilizada
no título desse trabalho. Não fazemos referência ao conceito Thompsiano de labor
(Labour), mas sim, e simplesmente, ao trabalho manual desempenhado pelos arrematantes.
Como consta no dicionário de D. Raphael Bluteau, quando descreve trabalho: “dado ao
trabalho. Laboriosus (...) Trabalhosamente. Com trabalho. Laboriosé. Cic. Laboriosiús , &
Laboriosissimé, são usados (...). Trabalhoso. Cousa, que dá trabalho. Laboriosus, a, um.
Cic.” (BLUTEAU, 1712: 230,231 - l.8). E no dicionário de Antonio de Moraes Silva,
quando descreve trabalhador: “s.m. Obreiro (...) Trabalhador: Dado ao trabalho. (...)
Trabalhar: v. n. Usar das forças, e engenho para fazer alguma obra rústica, d’arquitectura,
ou de entendimento, ou mecânica (...) Trabálho, s.m. Exercício corporeo, rustico,ou
mecânico (SILVA, 1789: 792 – v. II).
Feita a ressalva, iniciaremos o estudo proposto. Durante a segunda metade do
Setecentos, mesmo com o declínio da mineração, houve aumento da demanda por ofícios
mecânicos em diversas porções da colônia. No caso de Mariana, em um contexto de
reconstrução do núcleo urbano, assolado pelas enchentes do Ribeirão do Carmo e
preparativos para se tornar o centro religioso das Minas.
Ao longo do século XVIII, o núcleo urbano da região do Ribeirão do Carmo sofreu
lentas, porém importantes transformações em sua organização. Deixou de ser arraial para
ser elevado à categoria de Leal Vila e no ano de 1745, foi elevada ao patamar de Cidade
devido à instalação da sede do Bispado e à chegada do bispo Dom Frei Manoel da Cruz
para sua definitiva consagração em fins de 1748. Nesse período, a Câmara proporcionou
uma ampla demanda por quem executasse suas obras.
Faz-se necessário, portanto, a reflexão sobre as seguintes indagações: quem
executava as atividades in loco na lide diária dos canteiros de obras? Quem arrematava as
obras requeridas pelo Senado da Câmara de Mariana nesse momento de reconstrução do
núcleo urbano? Qual o perfil sócio-econômico desses trabalhadores? Alguns se destacavam
quanto ao número de contratos de obras arrematados?
A partir do Índice de Obras Públicas de Mariana (1715-1863) feito pela equipe de
pesquisadores do Programa Cantaria, elencamos sete oficiais mecânicos: o alferes Sebastião
Pereira Leite, Sebastião Martins da Costa, o alferes Francisco Álvares Quinta, Bento
Marinho de Araújo, João de Caldas Bacelar, Cosme Fernandes Guimarães e o alferes José
Pereira Arouca. Quanto às obras públicas arrematadas pelos referidos oficiais constam a
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
89
construção de calçadas, pontes, pinguelas, fontes, chafarizes, paredões, muros e edifícios
públicos. Todos estes nomes são encontrados no Dicionário de Artistas e Artífices de Judith
Martins, podemos ver a referência ao ofício na seguinte tabela
TABELA 1
Identificação do ofício
Arrematantes
Ofício identificado no Dicionário
Sebastião Pereira Leite
Calceteiro
Sebastião Martins da Costa
Carpinteiro
Francisco Álvares Quinta
Pedreiro
Bento Marinho de Araújo
Pedreiro
João de Caldas Bacelar
Pedreiro
Cosme Fernandes Guimarães
Carpinteiro
José Pereira Arouca
Pedreiro e Carpinteiro
Fonte: MARTINS, Judith. Dicionário de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas
Gerais, Rio de Janeiro: Departamento de Assuntos Culturais/MEC, 1974.
Como consta no Índice dos Registros de Carta de exame de ofício (1737-1806), a prática
legal dos oficiais mecânicos era concedida pela Câmara, através do registro de uma carta de
exame em livro. O processo tinha início com um requerimento de exame de ofício
encaminhado à Câmara pelo requerente. Havia uma avaliação realizada pelo juiz e escrivão
do respectivo ofício e quando aprovado, o oficial encaminhava à Câmara uma petição
requerendo a carta de exame. Assim os camaristas (juiz, vereadores, procurador)
confirmavam o exame realizado e o escrivão da Câmara registrava a certidão. No referido
índice foi localizado apenas o registro da carta de exame do oficial Cosme Fernandes no
ofício de carpinteiro (em 1739, na Vila de Nossa Senhora do Carmo, constando como
examinadores Paulino Henriques e Manoel Martins Mendes). No entanto, alguns oficiais
aparecem como examinadores: Sebastião Martins da Costa, em 1747; Bento Marinho de
Araújo, em 1756 e 1757; Cosme Fernandes Guimarães, em 1757 e 1778.
No clássico estudo de Salomão de Vasconcellos, Os ofícios mecânicos em Vila Rica no
século XVIII, também há referência a Sebastião Martins da Costa, nos termos de
arrematações do período de 1737 a 1745, em meio a relação dos nomes de oficiais que
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
90
registraram licenças e cartas de exames ou foram eleitos juizes de oficio. Dentre os registros
das cartas de ofícios e provisões dos anos de 1741 a 1744, ele figura entre os juízes de
carpinteiro; nas Atas da Câmara referentes ao período de 1742 a 1745, consta como eleito
ao cargo de escrivão do ofício de carpinteiro. Contudo, mesmo não sendo encontrados os
registros das cartas de exames dos demais oficiais, podemos considerá-los mestres de
ofício, pois, além do considerável número de arrematações, atuaram como examinadores
de ofício.
Recorrendo aos inventários post-mortem encontramos importantes registros, como a
naturalidade de cada oficial, sendo que todos os trabalhadores analisados vieram do Reino.
O que corrobora as observações do historiador Fabiano Gomes da Silva:
No século XVIII, milhares de portugueses cruzaram o Atlântico sonhando com
melhores dias na afamada região das pedras e dos metais preciosos do Brasil,
deixando para trás famílias, parentes e amigos que dificilmente tornariam a ver.
Muitos desses homens eram oficiais e mestres em suas comunidades, com
experiência em ofícios necessários para as vilas e arraiais mineiros (SILVA,
2006: 286).50
TABELA 2
Naturalidade
Oficiais mecânicos
Local de origem
Sebastião Pereira Leite
Freguesia de São Pedro de Alvinho Cabeceiros
de Basto, Arcebispado de Braga, Comarca de
Guimarães
Bento Marinho de Araújo
Freguesia de Santa Maria termo de Valença do
Minho, Arcebispado de Braga
João de Caldas Bacelar
Freguesia de São Pedro de Cima, termo de
Valadares, Arcebispado de Braga
Francisco Alves Quinta
Freguesia do Couto de São Miguel de [?], termo
da Ponte de Lima, Arcebispado de Braga
Sebastião Martins da Costa
Freguesia de São Pedro [corroído] Arcebispado
de Braga
Cosme Fernandes Guimarães
Natural de São Romão [?] termo de Guimarães
Arcebispado de Braga
50
SILVA, Fabiano Gomes da. Trabalho e escravidão nos canteiros de obras em Vila Rica, no século XVIII.
In: Brasil-Portugal: sociedades, culturas e formas de governar no mundo português (século XVI-XVIII). São
Paulo: Annablume, 2006, p. 286.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
91
José Pereira Arouca
Natural da Freguesia de São Bartholomeu da
Villa de Arouca Bispado de Lamego
Fonte: AHCSM, Livro de Registro de Testamentos 1º Oficio, Nº 45, fl. 160; Nº 76, fl. 46; Nº 41, fl. 27 v.
AHCSM, Inventários 1º Oficio, Códice 154, Auto 3244; Códice 116, Auto 2330. Inventários 2º Ofício,
Códice 139, Auto 2801; Códice 89, Auto 1923.
Chamou-nos a atenção, além da origem portuguesa dos oficiais, o número de
imóveis que possuíam, suas dívidas e seus plantéis de escravos. Quanto aos bens imóveis
temos:
TABELA 3
Bens Imóveis
Oficiais
Imóveis (montante)
Sesmarias/ Terras minerais
Bento Marinho de Araújo
2:161$600
_
João de Caldas Bacelar
2:195$000
1:000$000 (1)
Francisco Alves Quinta
600$000
_
Sebastião Martins da Costa
800$000
600$000 (2)
5:756$600
1:600$000
Total
Fonte: AHCSM, Inventários 1º e 2º Ofícios, Códices: 89, 92 e 139.
(1) “uma sesmaria de terras de planta que partem com Constantino da Silva fica no rio do Casca
infestada dos gentios; tem outra sesmaria no dito rio do casca que partem com o Capitão Francisco
Luiz Manoel Rodrigues Coura”; “uma sesmaria de terras brutas que partem com a fazenda da
sociedade com o Padre José Lopes João Rodrigues”.
(2) “uma roça com terras e águas minerais com casas de vivenda e mais pertences comprada de
Pedro da Fonseca Magalhães na freguesia de Guarapiranga na paragem de Nossa S da Conceição”.
Estes dados, são indícios de que os oficiais mecânicos escolhidos realizavam outras
atividades além do exercício de seus ofícios. Essa possibilidade foi levantada por
depararmos nos inventários de alguns dos oficiais com a posse de sesmarias, terras minerais
e um grande volume de dívidas, principalmente dívidas ativas. Nos inventários de Sebastião
Pereira Leite, João de Caldas Bacelar, Francisco Álvares Quinta e Bento Marinho de
Araújo, encontramos o registro de dívidas ativas, listadas de forma a apresentar o nome dos
devedores (pessoas ou instituições), o valor da dívida, o documento utilizado para registrála e, algumas vezes, a data de vencimento para pagamento do crédito. Através dos registros
das dívidas podemos verificar a formação de redes de crédito consideravelmente extensas.
Tomamos como exemplo principal as dívidas de João de Caldas Bacelar, sendo que o
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
92
número de devedores envolve mais de cinquenta nomes diferentes. Assim, podemos
concluir que dentre os ditos arrematantes, alguns se destacaram como importantes
credores.
TABELA 4
Dívidas
Inventariado
Montemor
Dívidas ativas
Dívidas
passivas
Outras dívidas
Sebastião Pereira Sem registro (1)
Leite
973$708
------------
2:950$000
João de Caldas 14:199$299 e ½
Bacelar
3:384$450
10$012
303$920
Francisco
Quinta
519$636 e ½
-----------
453$827
99$562
Alves 2:317$654
Bento Marinho 4:520$551 e ½
de Araújo
------------
Fonte: AHCSM, Inventários 1º Ofício, Códices 135, 92, 139 e 89.
(1) Não há o item monte-mor neste inventário. Mas a soma de todos os bens arrolados, é de
aproximadamente 4:406$788.
Segundo Fabiano Gomes da Silva, para assegurar sua participação no mercado de
trabalho, era importante para esses oficiais a formação de redes de sociabilidade e
camaradagem, sendo imprescindível o estabelecimento de boas relações com as pessoas
ligadas ao Estado, a irmandades, a ordens terceiras, a membros das elites locais e a fiadores
respeitáveis. Esses últimos eram pré-condição para o estabelecimento de uma arrematação,
o que contribuía para formação de redes clientelares (SILVA, 2006: 290). Acreditamos que
tais redes de crédito possibilitaram a formação de vínculos sociais por prestação de favores,
o que pode ter servido para que se inserissem e acomodassem na sociedade marianense,
além de poderem demonstrar sua condição de homens abastados, seja pelo empréstimo de
dinheiro ou pelo montante que recebiam com as obras arrematadas ou contratadas.
Outro importante dado consiste no plantel de escravos pertencentes a cada
trabalhador:
TABELA 5
Plantéis por oficial
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
93
Oficiais
Número de escravos
Inventariados
Especializados
Mulheres
Homens
Nascidos
na colônia
Africanos(1)
Outros
Total
Sebastião
Leite
0
1
5
4
1
1
6
1
4
10
2
10
2
14
1
5
7
10
3
_
13
0
3
9
4
8
_
12
1
11
19
21
8
1
30
21
1
25
4
21
1
26
24
25
72
45
51
5
101
Álvares
Bento Marinho de
Araújo
João
de
Bacelar
Total
Pereira
Sebastião Martins da
Costa
Francisco
Quinta
Origem
Caldas
José Pereira Arouca
Totais
Fonte: AHCSM, Códices 89, 139, 135, 154 e 116.
(1)Etnias dos escravos africanos: África Ocidental – Cabo Verde, Fula, Mina, Nagô e Sabaru, Costa do
Marfim, Guiné e Nação Courana; África Central Atlântica – Angola, Basa, Bemba, Benguela, Cabinda,
Cassange, Congo, Ganguela, Massangano, Monjolo, Muhembé, Mutemo, Quissama, Rebolo e Xamba, e São
Tomé; África Central da Costa do Índico – Moçambique; Indefinida – Xará, Nação Fam, Cobú, Nação
Ladano, Nação Cambudá, Bique e Moconco (PAIVA, 2001: 71).51
Em uma amostragem de 101 escravos apresentados nos inventários, 24 foram
especificados como especializados, ou seja, detinham o conhecimento de determinado
oficio e podiam auxiliar seus donos na execução de seu labor, como nas obras arrematadas
junto a Câmara de Mariana. Dessa maneira, temos o seguinte questionamento: tendo em
vista o considerável número de obras públicas arrematadas e considerando as obras
contratadas por particulares, podemos afirmar que apenas esse reduzido número de
escravos especializados ajudava na lide diária dos canteiros de obras? A documentação
consultada é lacunar a respeito da condição de escravo especializado. Todavia, ressaltamos
51
Em nosso levantamento há referências apenas às etnias Mina, Angola, Benguela, Cabinda (ou Cabunda),
Congo, Monjolo, Rebolo e Moçambique.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
94
que esses cativos eram avaliados com um preço maior do que o dos escravos não
especializados. A exemplo, no inventário de Sebastião Martins da Costa consta que seu
“mulato Serrador Manoel 28 anos” foi avaliado em 200$000; o cativo de Francisco Álvares
Quinta, “Francisco Angola Pedreiro 40 anos”, em 160$000; o de Bacelar, “Joao Carapina
Benguela 42 anos [em] 130$000”.52
Como a posse de escravos era um indício de riqueza e predominavam nas vilas
mineiras plantéis de quatro a seis cativos por proprietário, estamos diante de um pequeno
grupo de homens abastados que se destacavam socialmente mesmo sendo oficiais
mecânicos.
Como já dito, os oficiais arrolados se destacaram quanto ao número de
arrematações das obras do Senado da Câmara. Segundo o Índice de arrematação de obras
públicas, foram arrematados 240 contratos de obras no período de 1745 a 1800, por 85
oficiais diferentes. Os sete oficiais presentes em nosso estudo arremataram 95 contratos, ou
seja, aproximadamente 8% (8,24%) dos oficiais arremataram 40% dos contratos de obras
públicas. Sebastião Pereira Leite arrematou um total de 14 obras públicas entre os anos de
1746-1756, Sebastião Martins da Costa, 6 construções entre 1746 e 1753, Francisco Alves
Quinta, 14, em 1790-1806, Bento Marinho de Araújo, 7, em 1755-1769, João de Caldas
Bacelar, 15, de 1758 a 1773, Cosme Fernandes Guimarães, 14, em 1753-1778 e José Pereira
Arouca, aproximadamente 25 obras no período de 1768-1794.
No que concerne às irmandades e ordens terceiras, buscamos as informações que
constam nos testamentos: Bento Marinho de Araújo foi irmão professo na Ordem Terceira
de Nossa Senhora do Carmo, em Mariana, e desejou ser sepultado em sua capela,Francisco
Alves Quinta também pertencia à mesma Ordem e às irmandades do “Santissimo desta
Catedral e do Senhor dos Passos” e Sebastião Martins da Costa declarou ser professo na
Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo da Cidade de Mariana.Segundo
Caio César Boschi, nas Ordens Terceiras a admissão era mais seletiva que nas demais
irmandades, porquanto dentre os irmãos terceiros estavam aqueles de camadas mais
elevadas, sendo a composição de seu quadro social mais sofisticada. Essas agremiações
leigas configuram-se como importante componente da História Social do Setecentos
mineiro (BOSCHI, 1986). Acreditamos ter sido através delas que grande parte dos oficiais
52
Mesmo quando a documentação não traz a informação da condição de escravo especializado, através da
indicação do ofício exercido pelo cativo, podemos observar que há um preço elevado sobre estes escravos,
mesmo quando possuem idade mais avançada.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
95
mecânicos conseguiram se acomodar socialmente, além de representar sua ascensão
econômica.
Conclusão
Sabemos que a condição mecânica, foi importante obstáculo à nobilitação no
Antigo Regime, sendo que a noção de defeito mecânico consiste na mancha que caracterizava a
atividade manual. Segundo o historiador José Newton Coelho Meneses,
o oficial mecânico nas sociedades de Antigo Regime é aquele indivíduo que tem
atividade laboral essencial para a fundamentação da sociedade, mas que, por
outro lado, possui um estatuto que o coloca em uma condição jurídica inferior
ao da elite social, a nobreza, não assumindo posições e funções a ela destinadas
(MENESES, 2003: 33).
Contudo, no estudo de caso dos sete arrematantes apresentados, podemos extrair
que o estigma do defeito mecânico e o fato de não serem, stricto sensu, cidadãos não foram
empecilho para que ascendessem econômica e socialmente, diferenciando-se da maior parte
dos oficiais mecânicos do período. A documentação consultada indica que se tratavam de
mestres de ofício que se destacaram, sendo que alguns foram mais abastados, possuíram
um considerável montante de bens móveis, imóveis, escravos e uma importante gama de
dívidas ativas. O que nos abre caminho para refletir acerca de uma possível hierarquização
tanto de ofícios, como de oficiais mecânicos, sendo o acesso às arrematações um
importante indício de diferenciação dentro do universo laboral na colônia.
Referências bibliográficas:
AHCMM. Índice de Obras Públicas de Mariana (1715-1863). Inédito.
AHCMM. Índice das Cartas de exame de ofício (1737-1806). Inédito.
BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o Poder: Irmandades Leigas e Política Colonizadora em Minas
Gerais. São Paulo: Editora Ática, 1986.
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ... Coimbra:
Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712 - 1728. 8 v.
EUGÊNIO, Danielle de F. Arrematantes de obras públicas: oficialato mecânico na
cidade de Mariana (1745-1800). Monografia (Bacharelado em História). Instituto de
Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, 2010.
MARTINS, Judith. Dicionário de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas
Gerais, Rio de Janeiro: Departamento de Assuntos Culturais/MEC, 1974.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
96
MENESES, José Newton Coelho. Artes fabris e serviços banais. Ofícios mecânicos e as Câmaras no
final do Antigo Regime. Minas Gerais e Lisboa – 1750/1808. Tese (Doutorado em História).
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. Niterói: UFF, 2003.
SILVA, Antonio Moraes. Diccionario da lingua portugueza - recompilado dos vocabularios impressos
ate agora, e nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado, por ANTONIO DE
MORAES SILVA.
SILVA, Fabiano Gomes da. Trabalho e escravidão nos canteiros de obras em Vila Rica, no século
XVIII. In: Brasil-Portugal: sociedades, culturas e formas de governar no mundo português (século
XVI-XVIII). São Paulo: Annablume, 2006.
PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na colônia: Minas Gerais, 1716-1789. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2001.
VASCONCELLOS, Salomão. Ofícios Mecânicos em Vila Rica durante o Século XVIII, RSPHAN,
Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, n.º 4, 1940.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
97
Higiene, Controle e Disciplina no Asilo de Meninos Desvalidos - Rio de Janeiro
(1875-1894)
Eduardo Nunes Alvares Pavão
Doutorando em História pela UERJ
enap2010@yahoo.com.br
Resumo: O objetivo deste trabalho é compreender as condições históricas que
possibilitaram o surgimento do Asilo de Meninos Desvalidos, inaugurado em 1975, na
cidade do Rio de Janeiro, e suas políticas de ação cotidianas, marcadas por constantes
relações de poderes e contrapoderes, disciplina e controle intensos. Além disso, interessa,
especialmente, compreender como estes poderes que incidem sobre os corpos dessas
crianças agem não apenas sobre estes corpos, mas também sobre seus modos de
subjetivação transformando, em grande medida, “corpos desvalidos” em “corpos úteis”. E
úteis não apenas no sentido marxista de corpos potentes para o trabalho, mas dispostos a
contribuir para o novo conceito de nação e cidadania a ser forjado pela elite brasileira no
último quartel do século XIX, sobretudo a partir de 1889 quando os ideais republicanos
entram efetivamente em cena.
Palavras-chave: Infância, desvalida; asilo.
Abstract: The objective of this study is to understand the historical conditions that enabled
the emergence of the Underprivileged Children of Asylum, opened in 1975, the city of Rio
de Janeiro, and its political action daily, marked by constant power relations and
counterweights, intense discipline and control . In addition, interested, especially, to
understand how those powers which relate to the bodies of these children not only act on
these bodies, but also about transforming their modes of subjectivity to a great extent,
"helpless bodies" in "working bodies". And not only useful in the Marxist sense of
powerful bodies to work, but willing to contribute to the new concept of nation and
citizenship to be forged by the Brazilian elite in the last quarter of the nineteenth century,
especially after 1889 when the republican ideals effectively enter on the scene.
Keywords: Children, helpless and asylum.
O interesse em trabalhar com a infância “desvalida” esteve presente em minha vida
acadêmica desde finais dos anos de 1990 quando comecei a pesquisar o cotidiano de
crianças e adolescentes de “rua” atendidos pela Associação Beneficente São Martinho,
situada na Lapa, na cidade do Rio de Janeiro.
Naquela ocasião, fortemente marcado pelo interesse em possibilitar a emergência
das falas e gestos daqueles sujeitos e atores sociais, procurei identificar a relação dos
mesmos com o espaço urbano (a rua), a família, o trabalho e a escola, evidenciando não
apenas as formas e condições em que viviam, mas, sobretudo, suas representações e formas
de significação do mundo. O resultado da pesquisa foi minha Dissertação de Mestrado,
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
98
defendida no ano de 2002 no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
Ao terminar o curso de mestrado, o interesse em continuar pesquisando a “História
de crianças e adolescentes de rua na cidade do Rio de Janeiro” ainda era grande, mas em
decorrência de questões profissionais decidi seguir novos rumos e protelar o desejo.
Passada quase uma década, desde a defesa do mestrado, eis que o interesse, ainda latente,
ressurgiu, quando tive acesso ao Acervo do Arquivo do Asylo de Meninos Desvalidos
(AMD)∗, inaugurado no ano de 1875, na cidade do Rio de Janeiro. Rico pela sua quantidade
e diversidade de documentos, o acervo, doado em 1990, pelo Colégio Estadual João
Alfredo, à Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é
capaz de dar forte testemunho não só da História da Educação no Brasil, mas também da
História da Assistência à infância desvalida e suas nuances sociais, políticas e econômicas.
Diante daquele acervo imenso surgiram, então, algumas problemáticas: Por que a
criação de um Asilo para Meninos “desvalidos” na cidade do Rio de Janeiro em finais do
século XIX? Quem eram, como eram e de onde vinham as crianças admitidas naquela
instituição? Quais eram os critérios usados para a classificação de uma criança como
desvalida? Depois de admitidas na instituição como era o cotidiano dessas crianças? E mais,
aquela instituição seguia apenas o seu objetivo explícito de educar as crianças pobres e
inseri-las no mercado de trabalho ou atendia a outros interesses como, por exemplo, o
projeto de higienização dos espaços públicos e controle social na cidade do Rio de Janeiro
no último quartel do século XIX?
Foi diante de tais perguntas que surgiu o meu interesse em investigar as condições
históricas que possibilitaram o surgimento de uma instituição como o AMD e suas políticas
de ação cotidianas, marcadas por constantes relações de poderes e contrapoderes, disciplina
e controle intensos. Além disso, me interessa, especialmente, compreender como estes
poderes que incidem sobre os corpos dessas crianças agem não apenas sobre estes corpos,
mas também sobre seus modos de subjetivação transformando, em grande medida,
“corpos desvalidos” em “corpos úteis”. E úteis não apenas no sentido marxista de corpos
potentes para o trabalho, mas dispostos a contribuir para o novo conceito de nação e
cidadania a ser forjado pela elite brasileira no último quartel do século XIX, sobretudo a
partir de 1889 quando os ideais republicanos entram efetivamente em cena. Afinal de
contas, foi justamente no período em que o Brasil vivia um afrouxamento da ordem
∗
Daqui em diante será utilizada a sigla AMD para se referir ao Asylo de Meninos Desvalidos.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
99
escravocrata e a reestruturação de novas formas de trabalho e inserção dos homens livres
no meio social e, consequentemente, a necessidade da construção de um novo conceito de
nação por parte da elite, principalmente intelectual, que surgiu esta instituição. Haveria
alguma relação direta?
Assistência aos desvalidos no Império
No Império passa a vigorar, através de leis e decretos, o recolhimento. Esta
preocupação aparece atrelada à primeira lei penal do Império, o Código Criminal de 1830.
Essa lei estabelece a “responsabilidade penal para menores a partir dos 14 anos”
(RIZZINI, 1995, p. 104).O recolhimento dos menores passa a visar sua correção em
instituições denominadas Casas de Correção, que mantinham alas separadas. Umas de
cunho correcional, para menores delinquentes, mendigos e vadios; e outra destinada à
divisão criminal.
Neste período, o recolhimento de crianças e órfãos, amparados na legislação da
época, tem ainda sua tônica fundada na ideologia cristã. As medidas praticadas pela Igreja
Católica eram de caráter “religioso e caritativo” (RIZZINI, 1995, p. 105).
Na segunda metade do século XIX é que começa a aparecer mais claramente na
legislação da época, outra característica das medidas de amparo à infância pobre no
Império: a formação educacional das crianças. A atitude do Império em relação à infância
está dentro do discurso da construção dos projetos políticos que visam a definir o futuro
da ex-colônia. Essas perspectivas foram formuladas nos Anais da Assembleia Constituinte,
de 1823, no Rio de Janeiro.
Neste período, o tema infância ganha importância nas pesquisas acadêmicas.
Foram registradas na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, de 1836 a 1870, 81 teses
acadêmicas tendo como tema a criança. Sendo que 34 dessas se referiam à infância pobre; à
exposição de órfãos na Santa Casa de Misericórdia; à prostituição infantil, à baixa
frequência escolar, à higiene dos escravos, às altas taxas de mortalidade infantil - seja por
doenças da puerícia, seja por abandono dos recém-nascidos.
Por outro lado, a infância, sobretudo a infância pobre, passou a ser também um
assunto de polícia. Em 1836, Euzébio Coutinho Mattoso de Queirós - Chefe de Polícia da
Corte, intencionava mobilizar a polícia para “caçar”crianças “pobres”, “vadias” e
“vagabundas” e encaminhá-las aos Arsenais de Marinha e Guerra e às Casas de Correção
(ABREU & MARTINEZ, 1997, p. 22).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
100
Com a consolidação do Estado Imperial, a preocupação com as crianças e sua
educação passou a envolver diferentes setores da sociedade. Em 24 de janeiro de 1874,
pelo Decreto nº 5.532, são criadas dez escolas públicas de instrução primária na Corte. O
ensino primário e secundário foi regulamentado pelos Decretos N° 630, de 17 de setembro
de 1851, e N°1331-A, de 17-2-1854. As crianças pobres são contempladas por esses
decretos. O artigo 57, de 1854, determina a admissão de “alunos pobres” em escolas da
rede particular, mediante pagamento por parte do Governo, assim como a medidas quando
estiverem pelas ruas em estado de “pobreza” ou “indigência”. A estes “se fornecerá
igualmente vestuário decente e simples, quando seus pais, tutores, curadores ou protetores
o não puderem ministrar, justificando previamente sua indigência perante o Inspetor Geral,
por intermédio dos Delegados dos respectivos distritos” (VOGEL, 1995, p. 306).
A partir de 1850, são regulamentadas as leis acerca de escravos e seus filhos. A
chamada “Lei do Ventre Livre ou dos ingênuos”, Lei de n°2.040 de 28 de setembro de
1871, declarava livres os filhos de mulheres escravas nascidos após esta data. Estipulava
obrigações para os senhores de escravos e para o governo, proibia a separação dos filhos
menores de 12 anos do pai ou da mãe. Para Abreu & Martinez (1997), a lei de 1871, tem
como preocupação o futuro dos descendentes de escravos, tônica dos debates públicos da
época.
A Lei 2040 obrigava os senhores a criarem os filhos das escravas até à idade de 8
anos, após este período poderiam receber uma indenização do Estado ou os usarem como
trabalhadores até à idade de 21 anos. Num quadro econômico agroexportador, escravista e
monocultor, a postura dos senhores de escravos tinha muitos defensores. Após 1871,
descendentes de escravos libertos, menores em geral (imigrantes e mestiços) se tornaram
objeto da elite pensante no Brasil. A partir desse período, os discursos dos homens
públicos, dos reformadores e dos filantropos propunham a “fundação de escolas públicas,
asilos creches, escolas industriais e agrícolas de cunho profissionalizante, além de uma
legislação
para
menores”.Buscava-se
inserir
nas
práticas
jurídico-policiais
o
encaminhamento para Casas de Educação, Educandários e Reformatórios “para os
chamados menores abandonados e delinquentes” (ABREU & MARTINEZ, 1997, p. 25).
No Império começa-se a traçar também metas para a formação da futura
nacionalidade, calcadas em padrões europeus, numa ordem científica. Corrigindo tudo
aquilo ou todo aquele que divergisse da ordem estabelecida e considerada condição sine qua
non para o desenvolvimento de uma nação moderna e civilizada.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
101
Chácara da família Rudge....
O AMD, para cuja criação estava o poder executivo autorizado por decreto, desde
fevereiro de 1854, só foi finalmente criado vinte anos depois pelo decreto nº 5532 de 24 de
janeiro de 1874, sendo inaugurado no dia 14 de maio de 1875, com 13 meninos, pelo então
Ministro do Império João Alfredo Corrêa d’Oliveira, que o regulamentou por decreto nº
5849 de nove de janeiro de 1875. O Asilo tinha como objetivo fundamental a assistência à
infância desvalida, sobretudo, meninos órfãos de pai e/ou mãe que não tinha quem os
sustentasse e garantisse a continuidade de seus estudos.
Localizado em Vila Isabel, Rio de Janeiro, essa instituição sofreu várias mudanças
em sua denominação ao longo de sua história – Asylo dos Meninos Desvalidos (18751894), Instituto Profissional (1894-1898), Instituto Profissional Masculino (1898-1910),
Instituto Profissional João Alfredo (1910-1933), Escola Secundária Técnica João Alfredo
(1933-1934) e Escola Técnica Secundária João Alfredo (1934-1956), atualmente, Colégio
Estadual João Alfredo. Essas nominações diferenciadas no decorrer dos anos
corresponderam às mudanças estruturais pelas quais passou esse estabelecimento.
A procura pela instituição era feita, em geral, por pessoas extremamente pobres que
não tinham meios para manter-se e aos filhos. Geralmente, recolhia meninos pobres, “de
rua”, “indigentes” e “órfãos”, crianças, entre seis e doze anos de idade, que perambulavam
pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro, sem terem para onde ir, cometendo, às vezes, furtos
e outros crimes. Uma vez no Asylo, tendo terminado a educação de primeiro grau e
instrução em algum ofício, eram obrigados a trabalhar três anos nas oficinas da escola.
Depois desse período, os “órfãos” ficavam à disposição do Estado, na figura de um “juiz
de Órfãos”, enquanto os outros eram encaminhados às suas famílias. Ambos, entretanto,
tinham como certa a sua inserção no processo de trabalho, em empresas públicas ou
privadas (Cf. LOPES, 1994).
A instituição era mantida com subvenção do Estado e, em grande medida, através
de doações feitas por benfeitores, dentre eles empresários e industrialistas, interessados
com a formação de jovens trabalhadores para suas fábricas. Estava inserida, portanto, em
uma lógica de funcionamento social que correspondiam não apenas aos interesses do
Estado, mas também de grupos privados:
Daí, postulamos a idéia de um projeto educacional vinculado a um projeto
social mais amplo e a uma estratégia geral de poder. Aqui, a compreensão da
instituição enquanto um aparelho privado de hegemonia está calcada, dado
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
102
constituir-se um dos meios de atingir os objetivos da burguesia industrialista de
várias formas: uma, formando força de trabalho qualificada e ‘adestrada’ do
ponto de vista técnico e moral. Outra, constituindo-se alternativa efetiva de
poder, já que consegue carrear par si a participação do Governo Imperial
(LOPES, 1994, p. 88).
Daí depreende-se que a construção do AMD decorre de projetos sociais muito mais
amplos, que conformam a relação entre poderes públicos e privados em fins do século
XIX. No entanto, penso que analisar as políticas de funcionamento de uma instituição
com estas características, por um viés predominante econômico, que pensa o projeto
pedagógico levado a cabo pelo controle e a disciplina, apenas interessado em formar mão
de obra técnica e qualificada para o trabalho nesta sociedade que se desponta como
industrial, é muito pouco e eu diria até mesmo pobre. Partilho, seguindo outro viés, das
ideias de Michel Foucault que pensa a importância em trabalhar este modelo de instituição
não do ponto de vista interno, de “dentro” para “fora”, mas partindo de “fora” para
“dentro”, buscando compreender como esta “máquina” (instituição) funciona como a
materialização de políticas sociais mais complexas que transcendem seus muros. Políticas
estas que se concretizam e se materializam por via das estratégias de poder. Em outras
palavras, não pretendo fazer uma História do AMD, mas compreender como as suas
políticas de funcionamento interno conformam com as políticas sociais mais abrangentes
em determinado contexto histórico. E mais, como estas políticas, tornadas possíveis através
dos dispositivos de poder, atravessam corpos individuais e os transforma.
Traçamos então como objetivos: 1) dentificar o perfil da clientela atendida pelo
AMD neste período e suas formas de admissão; 2) Pesquisar a relação entre a Medicina e as
políticas de educação, principalmente no que diz respeito à higiene física e mental das
crianças, políticas públicas de saúde e profilaxia das doenças; 3) Entender o processo de
“atravessamento” da instituição educação, AMD, por outras instituições como a saúde, a
religião, a política, a economia, a prisão, o quartel, o hospital, etc.; 4) Identificar as
estratégias de poder utilizadas e suas formas de funcionamento no cotidiano, considerando
também a possibilidade da existência de contra poderes por parte dos asilados, manifestos
através de resistências, indisciplinas e formas mais sutis, como processos de somatização,
etc.; 5) Verificar as condições de moradias, vestimentas, alimentação das crianças asiladas.
O pensamento higienista, fundamentado nos valores da ciência, tinha como
objetivo, em sua ação, a prevenção da desordem. As instituições de amparo social criadas
para servir aos “desprovidos”, aos desvalidos, tinham como objetivo, neste sentido,
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
103
prevenir a delinquência, proteger a infância e fazer de sua saúde física e de sua adaptação
moral a mais grave preocupação da sociedade (Cf. RIZZINI, 1997).
Como vimos anteriormente o Decreto Nº 5849 de nove de Janeiro de 1875
estabelecia que o Asilo era um internato destinado a recolher e educar meninos de 6 a 12
anos de idade.
O artigo 2º salientava como primeira ação a se dar: a vacinação dos meninos
recolhidos, no caso da falta desta. No entanto os que porventura viessem a sofrer algum
tipo de doença, exteriormente ao Asilo teriam tratamento. Continua este mesmo artigo
enfatizando que “Não serão admitidos os que sofrerem de moléstias contagiosas ou
incuráveis, nem os que tiverem defeitos physicos que os impossibilitem para os estudos e
para a aprendizagem de arte ou officios”.
Considerações Finais
O tema de criança desvalida, desamparada, desfavorecida, desassistida, desprovida
de condições de subsistência já foi objeto de inúmeras abordagens. Neste texto procuramos
discorrer algumas considerações sobre controle, vigilância.
Primeiramente, esta assistência teve um cunho religioso, sendo praticada pelos
jesuítas que, além de um interesse humanitário, procuravam atrair seguidores para o
catolicismo. A assistência, neste sentido, tinha uma característica de caridade atrelada a
interesses religiosos.
Somente mais tarde é que aparecem políticas de Estado para a assistência à Infância
Desvalida. Sobretudo a partir dos anos 1850, quando os escravos começaram a figurar na
ordem dos homens livres e o governo teve que se preocupar com os filhos que passaram a
circular pelo centro urbano. Neste contexto, a assistência assume um caráter de ordem e
controle social, a fim de se evitar a violência e criminalidade.
A medicalização da sociedade, das relações sociais, a assistência as crianças
desvalidas, assim como nas distintas esferas de poder se deu gradativamente.
Bibliografia:
ANTUNES, José Leopoldo Ferreira. Medicina, leis e moral: pensamento médico e comportamento no
Brasil (1870-1930). São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999.
ARAÚJO, Inês Lacerda. Formação discursiva como conceito chave para a arqueogenealogia de
Foucault. Revista Aulas, n. 3, dezembro 2006/março 2007.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
104
ARAÚJO, Rosa Maria Barboza. A vocação do prazer: A cidade e a família no Rio de Janeiro
republicano. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
ARIÉS, Philippe. História da criança e da família (2 ed.). Rio de Janeiro: LTC Ed. 1981.
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2003.
BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Oficio do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BORDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand/DIFEL, 1989.
BRAGA, Theodoro de Medeiros. Subsídios para a memória histórica do Instituto Profissional João Alfredo
– desde sua fundação até o presente (1875- 14 de março de 1925). Rio de Janeiro: Santa Cruz, 1925.
BRETAS, Marcos Luiz. A Guerra das ruas: povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.
BURKE, Peter. A Escola dos Annales. São Paulo: Edunesp, 1997.
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia
das Letras, 1996.
COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar (3 ed.). Rio de Janeiro: Graal, 1989.
DEL PRIORE, Mary (Org.). História das crianças no Brasil (6 ed.). São Paulo: Contexto, 2008.
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. 7. ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
FOUCAULT, Michel. Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
FOUCAULT, Michel. Os Anormais: curso no Collége de France (1974-1975). São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: Curso dado no Collége de France (1977-1978).
São Paulo: Martins Fontes, 2008.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: História da Violência nas Prisões, 15 ed. Petrópolis: Vozes, 1987.
FREITAS, Marcos Cezar (Org.). História social da infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 1997.
GUIMARÃES, Alberto Passos. As classes perigosas - banditismo rural e urbano. Rio de Janeiro:
Graal, 1982.
KOERNER, Andrei. Judiciário e cidadania na Constituição da República Brasileira. São Paulo: Editora
Hucitec. Departamento de Ciência Política, USP, 1998.
KOHAN, Walter Omar. Infância. Entre a Educação e a Filosofia. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
LEITE, Ligia Costa. A razão do invencíveis: Meninos de rua - O rompimento da ordem (1554/1994).
Rio de Janeiro: Editora UFRJ/IPUB, 1998.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
105
LOPES, Luiz Carlos Barreto. Projeto educacional Asylo de Meninos Desvalidos: Rio de Janeiro (18751894) – Uma contribuição à História social da educação no Brasil. Dissertação de mestrado
aprovada pela Faculdade de Educação, Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: março de 1994.
MARCÍLIO, Maria Luiza. História social da criança abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998.
MARINS, Paulo César Garcez. Habitação e vizinhança: limites da privacidade no surgimento das
metrópoles brasileiras. In: Fernando A. NOVAIS (coordenador geral da coleção): História da vida
privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
MARQUES, Juncinato de Sequeira. Os desvalidos: o caso do Instituto Profissional Masculino (18941910) – Uma contribuição à História das Instituições Educacionais na cidade do Rio de Janeiro.
Dissertação de mestrado aprovada pela Faculdade de Educação, Centro de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 1996.
MERHY, Emerson Elias. A Saúde pública como política. São Paulo: Editora Hucitec, 1992.
MONCORVO FILHO, Arthur. Histórico da proteção à infância no Brasil (1500-1922). Rio de Janeiro:
E.G.E. Paulo Pongetti e Cia, 1926.
NEGRÃO, Ana Maria Melo. Infância, educação e direitos sociais: Asilo de órfãs (1870-1960). Tese de
doutorado, Universidade Estadual de Campinas, 2002.
NEVES, Margarida de Souza e HEIZER, Alda. A ordem é o progresso: o Brasil de 1870 a 1910. São
Paulo: Atual, 1991.
OLIVEIRA, João Batista Araújo e SCHWARTZMAN, Simon. A escola vista por dentro. Belo
Horizonte: Alfa Educativa Editora, 2002.
PILOTTI, Francisco & RIZZINI, Irene. A arte de governar crianças. Rio de Janeiro: Ed. Universitária
Santa Úrsula, 1995.
RAGO, Margareth. O efeito Foucault na historiografia brasileira. Tempo Social: Revista de Sociologia
da USP. São Paulo, 7(1-2): 67-82, outubro de 1995.
REIS, Elisa Maria Pereira e Simon Schwartzman. Pobreza e exclusão social - aspectos socio-políticos.
Rio de Janeiro, 2002.
RIZZINI, Irene (Coord.). Vida nas ruas: crianças e adolescentes nas ruas: trajetórias inevitáveis? Rio
de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2003.
RIZZINI, Irene (Org.). Olhares sobre a criança no Brasil – séculos XIX e XX. Rio de Jeneiro:
Petrobrás – BR: Ministério da Cultura: USU Ed. Universitária: Amais, 1997 (a).
RIZZINI, Irene, RIZZINI, Irma & HOLANDA, Fernanda Rosa Borges. A criança e o adolescente no
mundo do trabalho. Rio de Janeiro: USU Ed. Universitária: Amais Livraria e Editora, 1996.
RIZZINI, Irene. Deserdados da sociedade: Os “meninos de rua” da América Latina. Rio de Janeiro:
USU Ed. Universitária, 1995.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
106
RIZZINI, Irene. O século perdido: Raízes históricas das políticas públicas para a infância no Brasil.
Rio de Janeiro: Petrobrás-BR: Ministério da Cultura: USU Ed. Universitária: Amais, 1997 (b).
RIZZINI, Irma (Org.). Crianças desvalidas, indígenas e negras no Brasil: cenas da Colônia, do Império e
da República. Rio de Janeiro: EDUSU. 2000.
ROCHA, Sonia. 2000. Estimação de linhas de indigência e de pobreza: opções metodológicas no
Brasil. In: R. Henriques. Desigualdade e pobreza no Brasil, pp. 685-718, Rio de Janeiro: IPEA, 2000.
RODRIGUES, José Carlos. O corpo na História. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999.
RODRIGUES, José Carlos. Tabu do corpo. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006.
Schwartzman, Simon. Trabalho infantil no Brasil. Brasília: Organização Internacional do Trabalho,
2001.
SEVCENKO, Nicolau. A Capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. In: Fernando A.
NOVAIS (coordenador geral da coleção): História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia
das Letras, 1998.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Foucault revoluciona a história. Brasília: Editora UnB,
1982.
VIANNA, Adriana de Resende Barreto. O mal que se adivinha: polícia e menoridade no Rio de
Janeiro, 1910-1920. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça, Arquivo Nacional, 1999.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
107
Súplicas, suplicantes e suplicados: a relação e concepção do trabalho dos
(des)empregados imigrantes ao longo do segundo reinado (1840-1889)
Elizabeth Albernaz Machado Franklin de Sant’ Anna
Licenciada em História pela UFOP
bethamf@yahoo.com.br
Marconni Marotta
Graduando em História pela UFOP
marconnimarotta@gmail.com
Resumo:O objetivo deste presente trabalho é identificar e analisar dentre as súplicas
escritas ao imperador D. Pedro II, ao longo do período de 1840 – 1889, na cidade do Rio
de Janeiro, os perfis dos suplicantes imigrantes - trabalhadores e/ou desempregados, que
pedem emprego, dinheiro, proteção, recursos e socorros – e suas condições materiais de
vida ao longo do segundo reinado. Os elementos analisados nas fontes evidenciam
estratégias de caráter popular, individuais e coletivas (a exemplo das sociedades
beneficentes fundadas por imigrantes) que nos permitem refletir acerca de sua organização
social e relação/concepção do trabalho, através das estratégias discursivas e argumentativas,
mobilizadas pelos suplicantes a fim de conseguirem o bem suplicado. Dessa forma, ao
compreendemos as sociedades beneficentes de imigrantes enquanto modalidade de
organização social, amplamente difundida entre os imigrantes trabalhadores, destacamos
sua relevância, ou mesmo viabilidade, para uma escrita da História Social do Trabalho.
Palavras-chave: Imigração; Súplicas; Associativismo.
Abstract:The objective of this study is to identify and analyze among the supplications
written to the emperor D. Pedro II, during the period 1840 - 1889 in the city of Rio de
Janeiro, the profiles of the supplicants immigrants - workers and / or unemployed, who ask
for jobs, money, protection, resources and aid - and their material conditions of life during
the second reign. The elements analyzed in the sources show individual and collective
popular strategies, (for example, the mutual benefit societies founded by immigrants) that
allow us to reflect on their social organization and relationship / conception of work,
through argumentative and discursive strategies mobilized by the supplicants in order to
achievesuccess intheir interests. Thus, to understand the mutual benefit societies of
immigrants as a form of social organization, widespread among the immigrant workers, we
highlight their relevance, or even the viability, to Social History of Labor writing.
Keywords: Immigration; Supplications; Associativism.
Em 1875, o pintor espanhol Miguel Alsina, residente na cidade do Rio de Janeiro,
escreve por duas vezes à Dom Pedro II. Na primeira carta relatava que havia deixado a
Espanha por motivos políticos e que estava a confeccionar um quadro, cujo tema figurava
sobre o término da escravidão, em que contemplava a “Justiça e a Caridade” do imperador,
da família real e dos políticos mais importantes da época, no qual pretentia:
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
108
[...] poner en vista de las geraciones venideras, y principalmente á los hijos de los esclavos, los
sufrimentos de que les ten apartado sua nobles libertadores; y como es de esperar, que habia
agradecidos de los que tan grande bien les ten echo, asi los he representado por medio de los
niños que estan hablando. (Casa Imperial: Caixa 16, Pacote 14, Documento 323)
Ressaltava que passava por algumas dificuldades na confecção do referido quadro e
do desejo que nutria, mesmo antes do término da obra, de que o monarca e seus familiares
fossem os primeiros a apreciarem sua arte. Na segunda carta, voltou a se dirigir ao
imperador, então com a tela terminada. Anexo à essa missiva havia um parecer de um
funcionário, certamente escalado pelo mordomo da Casa Imperial, em que este fazia uma
descrição pormenorizada da obra, destacando a necessidade de correções nas proporções e
o assentimento do artista em realizar as devidas alterações.
Em um trecho transcrito da carta, Miguel afirma que aceitaria que lhe fossem
apresentados candidatos a compradores do quadro, ou que a coroa viabilizasse sua
participação em exposições importantes na corte, e, que inclusive, aceitaria modificar a obra
de acordo com a preferência dos interessados.
Temo molestar a tencion de V. E. por tanto concluir é diciendo que, si em esta corte hai algun
personaje, que me envite llevando á vender á outra ocasion, yo em cambio estoy dispuesto em
modoficar la figura que pega o negro, convertiendola en compassiva hacia el y em obstáculo
para que no se mate, a lo que convengamos asi quedará dulcificada a crueldade que V. E. le
encuentra. Aun que no he representado nada que no suseda muchas veces. (Casa Imperial:
Caixa 16, Pacote 14, Documento 323)
Inferimos pelo referido trecho, o possível intuito desse pintor imigrante espanhol
em usar a retórica, que envolvia a figura do monarca, em benefício próprio. Das duas vezes
em que escreveu ao imperador, Miguel ressaltava a imagem deste como a de um monarca
culto, generoso e defensor dos interesses dos menos favorecidos e dos cativos. Podemos
dizer que o pintor espanhol se utilizava de uma construção do ethos de D. Pedro II em
torno do “Pai dos pobres” e do mecenas Patrono das artes. Entendendo-se por ethos,
segundo Amossy (2011), como a imagem de si mesmo que o locutor constrói em seu
discurso para garantir a adesão de seu interlocutor. Cabe-se a pertinente observação,
segundo Ronaldo P. de Jesus (2009: 38), de que a disseminação da imagem de um monarca
esclarecido, patrono das artes, pai dos pobres e preocupado com a condição dos escravos
partiu dos esforços do próprio imperador e da coroa, no sentido de conquistar a simpatia
dos setores menos favorecidos da população, como também da corte. De acordo com
Ekkehard Eggs (2011: 33), na perspectiva da retórica aristotélica, podemos compreender
esse ethos solidário (criado por D. Pedro II e a coroa), “não só como a expressão de uma
simpatia para com o outro, mas também de uma disposição ativa para prestar serviços ao
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
109
outro, caso ele necessite”. Nesse sentido, nada mais faz Miguel do que se utilizar da
construção de um ethos criado como estratégia de adesão pelo monarca, para utilizá-lo
como estratégia argumentativa em proveito próprio. Com isso, podemos inferir que
possivelmente Miguel se utilizou de estratégias discursivas e argumentativas, que por meio
de uma narrativa que evidenciava suas dificuldades pessoais, visava sensibilizar D. Pedro II
criando certa proximidade com este. Desta forma, o pintor espanhol se reapropria do ethos,
(da imagem) paternalista forjada pelo próprio imperador e pela coroa, assentada nos
padrões de dominação pessoal característicos da sociedade escravista, como recurso
argumentativo a fim de obter sucesso em seu empreendimento.
Destacamos que Miguel faz uma abordagem pragmática e personalista do
imperador e da coroa - abordagem esta recorrente em outras súplicas53 analisadas enviadas
à D. Pedro II pela gente comum54, dentre as quais incluem-se alguns imigrantes. Embora
Ronaldo P. de Jesus endosse os dizeres de José Murilo de Carvalho, de que a gente comum
era indiferente e distante do regime monárquico, ele observa que uma reduzida parcela das
pessoas comuns, a maioria habitantes livres e pobres da corte, escrevia ao imperador e à
família real na tentativa de sensibilizar o poder monárquico com a finalidade de pleitear
auxílio material diante da pobreza e da doença. Nesse sentido, se o povo era distante e até
apático ao regime, ele procurava se aproximar no discurso, se reapropriando do próprio
ethos paternalista do monarca, como força argumentativa para que seus anseios fossem
atendidos. O que nos revelaria um “significativo pragmatismo na apropriação da imagem
de D. Pedro II e do regime imperial” (JESUS, 2009: 37). Assim, com relação as súplicas,
53 Pertencentes ao gênero epistolar, as quarenta e uma súplicas analisadas, em termos gerais, possuem uma
estrutura textual padronizada do tipo requerimento administrativo, que obedecem à forma de tratamento na
relação entre o suplicante, que formula o requerimento, e o “suplicado”, nesse caso, o imperador, um
membro da família real ou a coroa. Estruturalmente as súplicas são compostas por uma identificação inicial
sobre o suplicante, acompanhadas por uma explicação sobre suas condições gerais – em alguns casos, anexos
à documentos comprobatórios - como também o uso de argumentos para o merecimento do benefício, a
formulação expressa e concreta do pedido, e a conclusão com reverências e assinatura. Das quarenta e uma
súplicas relativas ao fundo Casa Imperial, no Arquivo Nacional e do Museu Imperial, a grande maioria são
referentes à pedidos de dinheiro (30), pequenos “auxílios pecuniários” ou “esmolas” (19) para os problemas
mais imediatos, pensões (11) e solicitação de favores (11) relacionado com a sobrevivência material do
suplicante, como emprego, inclusão em lista de pagamento, casa, etc. Das referidas súplicas analisadas, cinco
suplicantes eram imigrantes e/ou descendentes de imigrantes, dentre os quais, o pintor espanhol Miguel
Alsina utilizado neste trabalho.
54 Segundo Jesus (2009, p.26) “entre as classes populares, ou a gente comum da corte, havia um setor mais
diretamente ligado à instituição do cativeiro, composto pelos escravos e libertos, negros e mulatos. Outro
grupo era formado pelos homens livres pobres (miseráveis, mendigos, “vadios” ou “desclassificados”). E, por
fim, havia o segmento social que incluía pequenos comerciantes, artesãos, executores de ofícios indignos e
outros (barbeiros, boticários, alfaiates), militares de baixa patente, funcionários públicos do baixo escalão e
operários. Este último, portanto, bastante próximo do que se poderia chamar de classes médias urbanas da
época”.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
110
Jesus (2009: 38) esclarece que “a abordagem pragmática e personalista do imperador e da
coroa, surgia como estratégia possível, tendo em vista as pressões e dificuldades de
sobrevivência individual [...]”. Nesse sentido, não era incomum que a imagem de D. Pedro
II se confundisse com a do próprio regime monárquico, de forma que ao recorrerem “ao
imperador para conquistar alguma forma de inserção social e política, ou proteção
econômica, diretamente ligada à atuação protetora do Estado [...] não pressupunha
demandas relacionadas à conquista de direitos civis, [...] à cidadania [...]”, mas “que
buscavam algo semelhante a ‘estadania’”. José Murilo de Carvalho (1998: 96-97) define a
estadania, como uma longa tradição estadista do País, de herança portuguesa, em que
aqueles “insatisfeitos com os baixos salários e com os minguados orçamentos”, recorriam
ao “emprego público ou à intervenção do Estado para abrir perspectivas na carreira”, de
forma que “todos acabavam olhando para o Estado como porto de salvação” em que a
“inserção de todos eles na política se dava mais pela porta do Estado do que pela afirmação
dos direitos de cidadão”. Portanto, podemos compreender as súplicas de alguns imigrantes,
no âmbito das estratégias pessoais, que nos padrões de dominação senhorial, se
reapropriaram da imagem de D. Pedro II e da coroa, de forma paternalista e pragmática,
com o fim de pedir amparo material e financeiro, por meio da concepção da estadania,
definida por José Murilo de Carvalho.
***
Em 6 de maio de 1861 a Seção dos Negócios do Império do Conselho de Estado,
atendendo solicitação de D. Pedro II de 28 de fevereiro do mesmo ano, realizou consulta
acerca do requerimento em que a Sociedade Belga de Beneficência “ped[ia] permissão para
continuar em exercício, e também a aprovação dos [seus] estatutos”55. Segundo o parecer
dos conselheiros de estado a “associação não se dirig[ia] a outro fim que não seja o de
socorrer e proteger” os belgas necessitados, conforme os termos do artigo 1º dos estatutos:
Artigo 1º
O fim da sociedade é vir em auxílio dos Belgas necessitados e prestar-lhes o seu
apoio em quaisquer circunstâncias em que será útil e honrável fazê-lo. (Caixa 528,
Pacotilha 3, Envelope 2, Documento 37)
Os conselheiros de estado José Antônio Pimenta Bueno, o Visconde de Sapucaí e o
Marquês de Olinda, após diligências necessárias acerca do pedido, indicaram apenas uma
55
Caixa 528, Pacotilha 3, Envelope 2, Documento 37.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
111
alteração nos estatutos da sociedade. Propuseram uma modificação no artigo 21 dos
estatutos que deveria ser reformulado por entenderem que “qualquer alteração ou
aditamento feita aos estatutos não ter[ia] execução sem que preceda a necessária aprovação
do Governo”. Desse modo, os conselheiros achavam por bem conceder à sociedade Belga
“autorização para continuar a exercer suas funções”56.
A partir da promulgação da Lei 1.083 de 22 de agosto 1860 e dos decretos 2.686 de
10 de novembro e 2.711 de 19 de novembro, tornou-se obrigatório os pedidos de
autorização para funcionamento e aprovação dos estatutos para diversas formas de
associações fundadas ou em funcionamento no Brasil. No mês de novembro, o governo
através do Decreto 2.686 colocou em execução a Lei 1.083 determinando que os bancos,
monte de socorros, caixas econômicas “e outras companhias de qualquer natureza sem
firma social, administrada por mandatários revogáveis”, ainda que estas entidades fossem
beneficentes, e que “[funcionassem] sem autorização e aprovação de seus estatutos ou
escrituras de associação” a partir de então seriam obrigados “a solicitá-las dentro do prazo
de 60 dias contados a partir da publicação do [...] Decreto”.57 O conjunto normativo
lançado ao longo do ano de 1860 objetivou colocar sob o controle do Estado imperial a
organização econômica, social e institucional de quaisquer grupos sociais. Desse modo,
trabalhadores nacionais e estrangeiros quando desejassem fundar novas associações, ou,
regularizar a situação de associações já existentes, precisavam apresentar o pedido de
consulta e aprovação no Ministério da Fazenda que os enviaria ao Ministério do Império,
que por sua vez, os encaminharia para apreciação do Conselho de Estado.
A capital do Império do Brasil na segunda metade dos oitocentos apresentava um
cenário de “dinamização e rearticulação das atividades mercantis” favorecido com a
“promulgação do Código Comercial, da Lei de Terras e do fim do tráfico Atlântico de
cativos” ocasionando mudanças substanciais no mercado de trabalho da Corte
(LACERDA, 2011: 17). Sobretudo após 1870 os padrões demográficos alteraram-se
significativamente pela incorporação de libertos e imigrantes pobres, cenário em que
acentuaram as clivagens sociais jurídicas e raciais nas relações de trabalho (JESUS, 2011:
14). Segundo Ronaldo Pereira de Jesus (2011) os trabalhadores que viviam na Corte nas
últimas décadas do século XIX sofreram com intensas variações dos salários e dos preços
dos alimentos, fatores que geravam instabilidade e crise nas condições de vida de variados
56
57
Caixa 528, Pacotilha 3, Envelope 2, Documento 37.
Decreto 2.686 de 10 de Novembro de 1860. Disponível em <http://www6.senado.gov.br>.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
112
segmentos sociais. Nesse contexto, o associativismo se manifestava de modo expressivo, na
medida em que exercia importante papel de segurança social, material e moral de artesãos,
operários, ex-excravos, industriais, comerciantes, profissionais liberais, entre outros. Sendo
assim, visando a conquista de direitos civis, reconhecimento e seguridade social, nos termos
da “estadania”, a gente comum da Corte organizou-se em sociedades de caráter popular –
sociedades
de
socorros
mútuos
(ou
beneficentes)
de
classe;
Comemorativas;
Emancipadoras; Empresários e Comerciantes; Filantrópicas; Imigrantes; Mutuais Gerais;
Ofícios; Regionais. – cada uma delas com suas representações e práticas direcionadas ao
governo imperial (JESUS, 2009: 93-94).
Gráfico I: Total de associações de socorros mútuos identificadas na cidade do Rio
de Janeiro entre 1840 e 1889, classificadas segundo tipo:
97
94
71
46
40
23
25
37
21
Total por tipo
Classe
Comemorativas
Emancipadoras
Empresários e Comerciantes
Filantrópicas
Imigrantes
Ofícios
Regionais
Mutuais Gerais
O gráfico I demonstra a expressividade e o alcance do fenômeno associativo no Rio
de Janeiro. Entre os anos de 1840 e 1889 foram identificados a existência de no mínimo
497 sociedades de socorros mútuos. Através da análise das características de organização de
cada entidade chegamos à divisão tipológica das entidades nas seguintes categorias: Classe;
Comemorativas; Emancipadoras; Empresários e Comerciantes; Filantrópicas; Imigrantes;
Mutuais Gerais; Ofícios; Regionais.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
113
O gráfico permite inferir algumas hipóteses acerca das dinâmicas internas do
mercado de trabalho urbano da Corte. Sobretudo, nos interessa os dados que revelam o
montante total de associações de socorros mútuos organizadas por imigrantes. Em nossos
dados, essas sociedades perfazem o percentual total de 19% sob o total de entidades
identificadas. Nesse sentido, no presente estudo estamos considerando as associações que
se organizaram com base na nacionalidade. Estas associações ao mesmo tempo em que
“unem conterrâneos em torno de interesses comuns, são, inexoravelmente, também locais
de exclusão, na medida em que delas não podem participar indivíduos que pertencem a
outras nacionalidades” (FONSECA, 2008: 362).
A expressividade de associações fundadas por imigrantes está intrinsecamente
relacionada à grande presença de estrangeiros na cidade do Rio de Janeiro, fator facilmente
demonstrável através dos dados disponíveis no recenseamento58de1872 para a cidade:
Quadro I: “População considerada em relação à nacionalidade estrangeira
(1872)”
Nacionalidade
População
Africanos (Livres)
7092
Alemães
1459
Belgas
145
Suecos
33
Franceses
2884
Espanhóis
1451
Ingleses
966
Italianos
1738
Norte-Americanos
Portugueses
Suíços
211
55933
275
Total: 72187
Já para a década de 1890, segundo Vitor da Fonseca (2008: 382-383), 29,70% da
população da cidade era estrangeira, sobressaindo a população de nacionalidade portuguesa
que perfazia 20,37% do total de estrangeiros.
58
Recenseamento de 1872. Disponívelem < http://ww.ibge.gov.br>.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
114
Os dados indicados no texto apresentam a dinâmica de um mercado de trabalho
cujos espaços eram disputados por nacionais e estrangeiros que lutavam entre si, e que, de
algum modo, em conjunto, contribuíram para construção de uma “cultura do trabalho”
pela valorização das atividades comerciais e artesanais, fabris e manufatureiras, contra a
tradicional depreciação promovida pelo trabalho escravo no contexto de predominância da
economia agrária escravista. Analisando a trajetória da Associação Nacional dos Artistas
Brasileiros: Trabalho, União e Moralidade, Ronaldo Pereira de Jesus (2009: 108) observa
que “havia grande preocupação com o mercado de trabalho no contexto da gradual
extinção da escravidão”, pois, a associação orientava seus membros artesãos a “não
receber em sua loja ou obra que dirigia, escravos ou aprendizes” servindo-se de “operários
nacionais, e sobretudo membros da Associação”.
No artigo 31 do Decreto 2.711 a “ajuda mútua” exercida pelas entidades de
socorros mútuos se encerrava em:
[...] terão unicamente por objeto prestar auxílios temporários aos seus
respectivos sócios efetivos nos casos de enfermidade, ou inutilização de serviço,
e ocorrer, no caso de seu falecimento, ás despesas do seu funeral. (Decreto
2.711 de 19 de Dezembro de 1860)
Como pode ser observado o texto do Decreto fixou limites para a atuação das
associações de socorros mútuos que poderiam prestar auxílios temporários de natureza
material a seus associados, porém, na prática as associações ultrapassaram esses objetivos
oferecendo um conjunto amplo de auxílios e que não eram necessariamente temporários e
materiais. A sequência do artigo 1º dos estatutos da Sociedade Belga de Beneficência
exemplifica bem como os sujeitos coletivos envolvidos na prática do socorro mútuo
atribuíram diferentes significados a esta forma de organização:
A sociedade não lhes prestará unicamente socorros pecuniários; tratará também
de proporcionar-lhes o trabalho necessário para poderem obter os meios de
subsistência. Entra no ânimo dos fundadores que a beneficência praticada [...]
não seja tão somente [...] material, fria e indiferente, mas antes, que [...] seja
animada de um verdadeiro sentimento de caridade cristã, a qual realça, tanto o
valor dos socorros, aos olhos dos infelizes. (Caixa 528, Pacotilha 3, Envelope 2,
Documento 37)
Em pedido de autorização e consulta datado de 21 de agosto de 1868 informam os
estatutos da Sociedade Italiana de Socorros Mútuos, em seu artigo 8º os fins da entidade:
O fim da Sociedade é:
1.º Unir os Italianos residentes no Rio de Janeiro.
2.º Promover o bem estar dos sócios.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
115
3.º Socorrer aos sócios que caírem doentes, fornecendo-lhes médico e remédio,
e um subsídio diário [...].
4.º Pagar as despesas de passagem para voltar à pátria aos sócios que em causa
de alguma enfermidade, depois de ter pertencido à sociedade por três anos,
fossem pelo médico da sociedade julgados incuráveis, permanecendo no Brasil.
A viagem para pátria será feita pelo meio de transporte mais econômico.
5.º Subsidiar aos sócios impotentes ao trabalho [...] [que] durante dez anos
tiverem feito parte da sociedade mediante uma pensão mensal que será
determinada cada vez pela Assembleia Geral [...].
6.º Pagar as despesas funerárias dos sócios [...].
7.º Procurar emprego e trabalho aos sócios que precisarem.
8.º Promover a instrução e a moralidade dos sócios, conforme os meios dos
quais a sociedade poderá dispor [...].
(Caixa 544, Pacotilha 3, Envelope 1, Documento 46)
O principal objetivo da Sociedade Italiana de Socorros Mútuos era “promover o
bem estar” de seus membros. Observa-se que a sociedade era composta de trabalhadores
imigrantes envolvidos em diversificadas atividades econômicas, em outras palavras, gente
comum que estavam à mercê dos abusos do capital. “[N]ão existia [...] a menor
preocupação em garantir que o trabalhador não se desgastasse ao ponto de tornar-se inapto
para a produção. Quando isso se dava, operário rompia a tênue linha que o separava da
miséria” (LUCA, 1990: 25). Algo comum aos italianos e outros imigrantes envolvidos no
mercado de trabalho urbano do Rio de Janeiro. Pela análise dos estatutos identificados para
a década de 1860, 70% das entidades ofereciam auxílio a seus membros “enfermos ou
impossibilitados de trabalhar por moléstia”, evidenciando as precárias condições de vida e
trabalho as quais estavam sujeitos a gente comum da Corte.
Segundo Tânia Regina de Luca (1990), o imigrante na maioria das vezes era atraído
para um país através de propagandas que em diversas situações ocultou as reais dificuldades
que o estrangeiro encontraria na nova terra. Soma-se a isso, as dificuldades econômicas e os
novos referenciais culturais que a cada instante impulsionava-os a redimensionar sua
identidade. Segundo a autora muitos possuíam uma auto-imagem desvalorizada, fator que
certamente influenciou na elaboração do parágrafo 8º dos objetivos da SISM, definindo a
necessidade de “promover a instrução e a moralidade dos sócios” e “procurar emprego e
trabalho”, objetivos encontrados em 23% dos estatutos localizados para a década de 1860.
O fenômeno associativo voltado para o mutualismo praticado no Rio de Janeiro ao
longo de todo segundo reinado, apresentou a característica marcante da promoção de
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
116
práticas de socorros pecuniários contra os riscos sociais enfrentados pelos trabalhadores
urbanos, no entanto, não podemos desconsiderar as demandas que não se restringem às
dimensões materiais de seguridade. Entre os imigrantes, o mutualismo ampliou seus
objetivos dos socorros mútuos para a conquista de bens materiais e culturais como
bibliotecas, publicação de jornais, montagem de oficinas, premiação por inventos, incentivo
à instrução, procura de emprego e entretenimento educativo.
***
Portanto, podemos evidenciar nas súplicas de alguns imigrantes, como Miguel,
“atitude que assentada nos padrões de dominação pessoal, característicos da sociedade
escravista, combinava a indiferença, o distanciamento e o personalismo, partindo da gente
comum em direção ao imperador e ao regime monárquico” (2009: 38). Dessa forma,
podemos compreender que tanto as súplicas, no âmbito das estratégias individuais da gente
comum, como as sociedades, no âmbito das estratégias coletivas de grupos organizados, se
apropriavam do ethos paternalista do monarca, compreendido no regime de dominação
senhorial, e que nos moldes da estadania recorriam à atuação protetora do Estado a fim de
conquistarem alguma forma de inserção social e política, ou mesmo proteção econômica.
Bibliografia
AMOSSY, Ruth. O ethos na intersecção das disciplinas: retórica, pragmática, socieologia dos campos. In.
AMOSSY, Ruth (org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto,
2011.
EGGS, Ekkehard. Ethos aristotélico, convicção e pragmática moderna. In. AMOSSY, Ruth (org.). Imagens
de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2011.
CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
CARVALHO, José Murilo de. Pontos e bordados – escritos de história e política. Belo Horizonte,
UFMG, 1998.
FONSECA, Vitor Manoel Marques da. Imigração: Identidade e integração, 1903-1916. In. MATOS,
Maria I; SOUZA, Fernando de; HECKER, Alexandre (Org.). Deslocamentos e Histórias: os
portugueses. Bauru, SP: Edusc, 2008.
LUCA, Tania Regina de. O sonho do futuro assegurado (O mutualismo em São Paulo). São Paulo:
Editora Contexto, 1990.
JESUS, Ronaldo Pereira. Dinâmica Associativa entre Imigrantes Portugueses no Rio de Janeiro Imperial. XXX
Encontro da Associação Portuguesa de História Econômica e Social, 2011.
____. Associativismo no Brasil do Século XIX: Repertório crítico dos registros de sociedades no
Conselho de Estado (1860-1889)
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
117
____.Visões da Monarquia: escravos, operários e abolicionismo na Corte. Belo Horizonte, MG:
Argvmentvm, 2009.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
118
“Matei e não me arrependo”: a libertação antecipada em Itajubá pelo soslaio cativo
Fábio Francisco de Almeida Castilho
Doutorando em História pela UNESP-Franca /Bolsista Fapesp
fabiofacastilho@hotmail.com
Resumo: Em meio às transformações que se apresentavam no mundo do trabalho durante
a década de 1880, existiu em Itajubá uma comissão disposta a resolver os problemas
acarretados pela crise da mão de obra através da abolição da escravidão no município e
arrabaldes. Participaram desta comissão elementos grados da sociedade itajubense e os
mesmos conseguiram colocar fim a instituição escravista meses antes da instauração da Lei
Áurea. A história contada por estes personagens privilegia apenas os seus atos e não
esclarece a participação dos cativos no processo, estes são vistos como simples objetos da
ação da elite, que se beneficiam do processo, mas não participam do mesmo.
Nesta comunicação abordamos alguns artigos publicados na imprensa itajubense que
demonstram a participação dos cativos no processo de conquista da liberdade, ou, ao
menos, desvendam aspectos do cotidiano de constante negociação que os mesmos
estabeleceram com seus senhores. São atos de revolta, fugas, assassinatos, mas também de
negociação, casamentos e de busca de vantagens econômicas, corroborando com uma
historiografia consolidada que assinala a clara participação dos cativos nos ganhos auferidos
e a sua condição de agentes históricos, negociadores e jamais simples “coisas”.
Palavras Chave: Escravidão, libertação, periódicos.
Abstract: Among the changes that were in the world of work during the 1880s, there was a
commission in Itajubá willing to solve the problems caused by the crisis of labor through
the abolition of slavery in the city and suburbs. Elements of Itajubá’s society grads
participated in this committee and they ended up with the institution of slavery months
before the opening of the Golden Law. The story told by these characters favors only their
acts and does not explain the participation of prisoners in the process, these are seen as
mere objects of action of the elite, who benefit from the process but not part of it. In this
communication we discuss some Itajubá’s press articles that demonstrate the participation
of prisoners in the process of gaining freedom, or at least, reveal aspects of everyday life of
constant negotiation that they have established with their masters. There are acts of
rebellion, escape, murder, but also negotiation, marriages and seeking economic benefits,
corroborating a consolidated historiography that marks the clear involvement of the
captives and gains earned its status as a historical agent, negotiators and never simple
"things ".
Keywords: Slavery, Liberation, journals.
Introdução
A transição da mão de obra foi um dos temas mais presente na imprensa nacional
do final do século XIX. Desde 1870 os periódicos de todo o país repercutiam questões
referentes ao final do escravismo e as novas formas de trabalho que deveriam surgir nas
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
119
lavouras. Com o iminente final do regime escravista um novo braço precisava ser
arregimento para dar prosseguimento à produção nacional. Diante deste problema diversas
propostas foram discutidas, passando da importação de trabalhadores estrangeiros,
principalmente vindos da Europa, ao aproveitamento do trabalhador nacional, embora
muitas vezes olhado com desconfiança devido aos discursos racistas, como o darwinismo
social, em voga na época. A classe produtora precisava resolver este intrincado problema
posicionando-se diante da imperiosa crise da mão de obra que se agravava no país com o
final da escravidão.
De acordo com Silvia Lara (1988), falar em escravidão e falar por si só em um
regime violento.59 Sem o direito a liberdade o escravo estava sujeito aos mandos de seus
senhores, embora de algumas maneiras pudesse fazer sentir seu inconformismo perante tal
situação. Exemplos mais claros de descontentamento eram as fugas e as violências
cometidas contra os senhores, no entanto, outros atos dos cativos também poderiam
demonstrar sua insatisfação.
Consideramos desnecessária a reprodução da extensa bibliografia produzida ao
longo das décadas de 1980 e 1990 acerca do debate historiográfico da escravidão por não
ser este o mote do presente artigo. Tal bibliografia enfatizou a subjetividade da mão de
obra escrava, estes trabalhos se preocuparam em desmistificar a imagem do escravo-coisa,
visto como simples mercadoria e teve como resultado a construção de uma nova
perspectiva das relações entre senhor e escravo, num contexto de negociações no qual o
cativo também aparece na condição de sujeito histórico e possuidor de espaços de
autonomia (Cf. FREYRE, 2001; FERNANDES, 1981; MATTOSO, 1990; GORENDER,
1992; LARA, 1988; FLORENTINO, 1997; MATTOS, 1998; CHALHOUB, 1990; FARIA,
1998 e REIS, 2003). Nosso escopo é analisar o discurso da elite sobre a transição da mão
de obra e sendo assim, as representações do cativo nos periódicos. Este prisma ressalta a
opinião dos editores do século XIX e sua visão sobre a mão de obra que trabalhava suas
lavouras. Trata-se de uma opção metodológica, de voltar-se, primordialmente, para as
fontes primárias dando voz aos protagonistas do acontecimento histórico analisado.
59
Embora a assertiva da autora pareça ser repetitiva, ela é magistralmente utilizada, pois estava no contexto
de embate com outra corrente historiográfica, os “sociólogos da USP” e era utilizada para marcar diferença,
assinalando que a simples afirmação de que a escravatura era um regime violento era redundante, mais
importante seria aprofundar as complexas questões envolvidas nas relações entre senhores e escravos no
regime escravista, portanto, não se tratava de “reabilitar a escravidão”. Ver ainda: LARA, 1992 e
GORENDER, 1992.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
120
Em nossa principal fonte, os periódicos do Sul de Minas, os escravos apenas
aparecem como sujeitos de seus atos de duas maneiras: quando fugiam e eram procurados
por seus senhores ou quando praticavam crimes.60 Ou seja, a elite que editava os periódicos
apenas reconhecia humanidade nos cativos quando esse se portava como revoltoso.
Nos periódicos analisados, que, evidentemente, apresentam a visão senhorial,
podemos perceber como estes qualificavam seus cativos. O escravo era sempre
representado apenas de duas maneiras: ora como inimigo, ora como “bom escravo”.
Na primeira opção percebemos o quão agressivo era o regime, pois quando
procurado o escravo foragido seria reconhecido graças as suas cicatrizes decorrentes de
violências sofridas ao longo dos anos:
O escravo tem os sinais seguintes:estatura regular, nariz fundo, corpo regular,
pouca barba no queixo, falta de dentes na frente, tem sinal de uma brecha na
cabeça, tem as duas pontas das orelhas viradas para fora ou murchas, muitas
cicatrizes velhas nas costas, sinal de ferro no pescoço, esperto no andar, cara
desencarnada, os ossos da cara muito salientes, tem idade de quarenta e tantos
anos, crioulo de cor preta. (O Baependiano, 02 de janeiro de 1879, p.4.).
A descrição acima, de um trabalhador cativo aos quarenta anos, demonstra como
era rude o regime. As marcas (sinal de brecha na cabeça, cicatrizes velhas nas costas e sinal
de ferro no pescoço) adquiridas ao longo da vida sugerem o motivo da fuga do escravo. No
entanto, sua identidade era mantida, ainda “esperto no andar” este sujeito histórico fugiu da
fazenda onde vivia em busca de uma vida melhor.
A segunda maneira por meio da qual o escravo aparecia nos jornais do Sul de Minas
era mais incômoda para a elite, pois neste caso a mesma era francamente ameaçada e seus
membros eram as vítimas da “bestialidade” e da “brutalidade” dos negros “selvagens”.
De grande repercussão no Sul de Minas, foi um caso ocorrido no interior de São
Paulo, em Itu, quando o escravo Nazário assassinou seu senhor, suas filhas, uma
empregada e outra escrava. O fato culminou na morte do escravo por apedrejamento pela
população da cidade mesmo depois do mesmo já ter se entregado a polícia.61 O evento foi
60
No mais das vezes os escravos não apareciam como atores, mas apenas como objeto de estudo no discurso
da elite, que buscava soluções para a crise da mão de obra, sem jamais se preocupar com a posição ou o papel
dos cativos nesta questão.
61 No contexto do tráfico interno, quando escravos trazidos do Nordeste, principalmente da província da
Bahia, se avolumavam nas lavouras do sul do país, os mesmos passaram a ser apontados como maiores
responsáveis pelo aumento de crimes e revoltas. Era comum a prática de crimes e a apresentação a policia
imediata, demonstrando que preferiam a cadeia a servir como escravos. No trecho apresentado temos a
narração de dois casos semelhantes que além de comprovarem esta idéia também mostram a população que a
pratica se repetia e se alastrava, provocando medo e exigindo rápida solução. Cf. AZEVEDO, 2004.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
121
repetidamente discutido no periódico liberal O Baependiano e seu editor, Amaro Carlos
Nogueira, passou a exigir leis mais duras para coibir crimes semelhantes:
Deu-se em Itu um crime horrível que assim referido pela Província de S. Paulo.
Foram assassinados em Itu, na madrugada de ontem, 08 do corrente, o médico
ali residente, Dr. João Dias Ferraz da Luz e toda sua família, composta de duas
filhas moças, uma escrava e uma mulher idosa de nome Faustina. Escapando só
uma netinha de 4 a 5 anos.
Deu-se o fato na casa em que reside a família, no centro da cidade, rua do
Comércio, esquina do Pastor do Bom Jesus. Acudiram na vizinhança e viram o
seguinte: no quintal estava com a cabeça partida o Dr. Ferraz, no quarto das
moças foi uma delas encontrada deitada sem vida e a outra morta aos pés da
cama. Uma negra, escrava da casa agonizava ainda numa sala junto do cadáver
da mulher Faustina. Só escapou desta hecatombe a netinha de que já falamos.
O assassino, escravo comprado a pouco tempo nesta capital apresentou-se a
polícia. Foi igualmente preso um crioulo menor que desconfia-se ser cúmplice
do fato. Compareceram as autoridades policiais. A exaltação da população
ituana é extraordinária.
Foram todos mortos a machado. O caráter bondoso e dulgente (sic) do Dr.
João Dias era fato notório. A senhora do finado esta ausente em Minas.
Da repartição da polícia recebemos sobre o caso as seguintes informações:
Foram ontem em Itu barbaramente assassinados o Dr. João Dias Ferraz da
Luz, suas duas filhas, Albertina e Balbina e uma Senhora que lhes fazia
companhia, ficando a expirar uma sua escrava, escapando uma sua neta menor
de 4 anos.
O autor de tão horrível crime foi um seu escravo de nome Nazário, que a
golpes de machado praticou aquelas mortes. O assassino foi logo preso pelo
respectivo delegado de polícia. Tal acontecimento causou a maior indignação e
horror na população de Itu.
No auge da indignação mais de 200 pessoas dirigiram-se de noite a cadeia para
arrancar dali o assassino do Dr. João Dias. Os guardas resistiram e na luta que
se travou foi morto um guarda e feridas algumas pessoas do povo. Como era
natural isso incitou mais os ânimos. No dia seguinte, pelas duas horas da tarde,
mais de mil pessoas, dentre as quais, homens, mulheres e crianças, fizeram igual
tentativa com melhor êxito.
O escravo, arrancado da prisão, foi apedrejado até expirar, o cadáver foi depois
arrastado pelas ruas até a porta da casa do Dr. João Dias, onde ergueram-se
(sic) vivas a justiça do povo. O cadáver foi depois depositado na porta da
cadeia, retirando-se o povo pacificamente. ( O Baependiano, 23 de fevereiro de
1879, p.2).
O crime cometido violentamente, por um escravo recém adquirido, a machadadas
em um meio urbano, contra a conhecida “docilidade” do senhor, que não dera motivos
para o crime e, principalmente, a forma como a narração foi construída pelo periódico, diz
muito da crise da transição da mão de obra. A descrição minuciosa do assassinato tem por
objetivo amedrontar a população e chamar a atenção da mesma para a situação crítica em
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
122
que se encontrava o regime escravista, conjuntura que exigia uma solução imediata. Diante
desta constatação, diferentes posições surgiram. Uns defendiam o fim do escravismo,
regime bárbaro que condenava o escravo a uma vida desregrada e que o levava a se revoltar
e cometer tais crimes. Outra posição defendia maior rigidez das leis para combater esses
assassinos. Cada grupo, com suas diferentes soluções, compuseram o debate que se formou
em torno da transição da mão de obra.
Neste texto apresentamos a visão dos abolicionistas republicanos, que eram
contrários ao regime servil e se valeram tanto de argumentos humanitários como de ideias
racistas para justificar o fim do regime. Analisamos as representações da transição da mão
de obra no Sul de Minas pelo ponto de vista de um periódico liberal e abolicionista, A
Verdade. Este jornal teve seu escritório sede localizado na cidade de Itajubá e ao longo de
sua duração, 04 de março de 1886 a 09 de maio de 1896 - apesar de nos concentremos no
período escravista -, desenvolveu intensa campanha pelo fim da escravidão no município
antecipando-se a qualquer decisão imperial ou provincial e obteve êxito nesta empreitada.
Através da formação de uma Comissão Libertadora, composta pelos editores do periódico
e mais alguns membros da sociedade itajubense, o município teve a escravidão extinta em
seu território meses antes do 13 de maio.
Embora a emancipação já estivesse concluída em Itajubá desde março de 1888,
com a promulgação da Lei Áurea, muitas comemorações aconteceram na cidade e
freguesias. Nas edições subseqüentes ao 13 de maio foram reproduzidos artigos
descrevendo as festas organizadas no município e arrabaldes, em todas elas não faltaram
missas cantadas, marchas cívicas, edifícios públicos enfeitados com bandeiras e flores e a
presença e fala de autoridades e grandes fazendeiros.
Nas descrições das comemorações se repetiam nomes da alta sociedade que
tomaram parte dos festejos cerimoniosos e com a seguinte assertiva resumiram os
acontecimentos: “É esta a história do Abolicionismo entre nós, como perpetuam e
autenticam os fatos cronologicamente registrados pela imprensa local” (Grifo
nosso). Desta forma, os editores do periódico acreditavam não só serem os principais
responsáveis pela abolição no município, como portadores da verdade, registrada e levada à
posteridade nas folhas do seu periódico.
Nos números seguintes a folha publicou os elogios que recebeu de periódicos de
outros municípios vizinhos, conferindo-lhe o mérito de terem sido pioneiros no combate a
escravidão e de tudo que fizeram em prol da causa da redenção dos cativos. Também
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
123
descreveu as festas nas freguesias de Itajubá, onde se repetiram o mesmo regozijo da elite e
suas comemorações suntuosas, sem a participação dos libertos. Foram realizados bailes em
grandes casarões e jantares em residências centrais, com a participação da mais alta
sociedade do município e freguesias. Em São Sebastião do Paraíso, por exemplo, esteve
uma festa imponente e além de missa cantada, passeio pela cidade e fala de autoridades,
ainda houve um baile na Câmara Municipal. (A Verdade, 31 de maio de 1888).
Em todos os artigos que descrevem as comemorações da libertação são registradas
festas suntuosas, com a participação da elite, mas sem qualquer referência aos recém
libertos.
A partir de 21 de junho de 1888 o periódico fez um balanço da Abolição e suas
características, nestes comentários ficou evidente o medo de ainda acontecerem
perturbações da ordem, principalmente devido à falta de ação do Estado em apressar a
organização do trabalho com leis mais específicas que o regulassem e a necessidade de
implementar uma reforma criminal.
Mas, em geral, a situação estava sob controle e a produção agrícola do Sul de Minas
continuava seu desenvolvimento, agora realizada pelo braço livre e nacional, sem motivos
para pânico entre os proprietários:
Está acabando o susto e temor da lavoura pelos efeitos da lei redentora e tudo
retomou o seu antigo aspecto, com a diferença, porem, que o trabalho de hoje é
feito por homens livres que conhecem o seu sagrado direito de liberdade e que
sentem as sua própria individualidade e autonomia nas diversas manifestações
da atividade humana.
O trabalho agrícola tem ocorrido perfeitamente entre nós. As colheitas foram
feitas sem interrupção, com toda a regularidade. (A Verdade, 06 de setembro de
1888).
Ainda neste mesmo artigo é informado que alguns proprietários do município até
colheram mais. Apontando para uma das causas da necessidade da elite itajubense apressar
a abolição no município, estavam preocupados com a nova colheita e queriam garantir a
mão de obra para a mesma, e assim, negociaram com seus escravos uma liberdade
associada ao condicionamento de prestarem serviço por alguns meses, medida que garantiu
a colheita do ano e não desorganizou o trabalho na fazenda, como muitos proprietários
temeram por todo o país.
“Matei e não me arrependo”: a libertação em Itajubá pelo soslaio cativo.
Como pudemos perceber no item anterior, o periódico A Verdade enalteceu a
participação de alguns membros da elite e de alguns de seus editores no processo que
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
124
culminou na emancipação antecipada dos cativos de Itajubá. Embora este não seja um
evento singular na história do país e tenha se repetido largamente por outros municípios e
províncias, aqui tivemos a oportunidade de acompanhar o discurso da elite envolvida no
processo, ressaltando suas preocupações com a adaptação de ideias e debates até a
instauração da esperada abolição.
No entanto, a história contada por estes personagens privilegia apenas os seus atos
e não esclarece a participação dos cativos no processo, estes são vistos como simples
objetos da ação da elite, se beneficiam do processo, mas não participam do mesmo. Das
poucas vezes que se manifestam são vistos com um olhar preconceituoso e tachados de
ignorantes ou bárbaros .62
Nos extensos artigos publicados quase semanalmente nas primeiras páginas do
periódico os editores conferiam aos escravos a condição de pacientes e pacíficos, no
entanto, ao analisarmos os pequenos artigos publicados esporadicamente e localizados em
lugares sem nenhum destaque nas últimas páginas do periódico, podemos perceber que os
cativos não eram tão pacientes assim, e desempenhavam, na medida do possível, seu papel
de agente histórico.
Neste item abordamos alguns artigos publicados na própria folha, A Verdade, que
diferentemente do que diziam seus editores, demonstram a intensa participação dos cativos
no processo de conquista da liberdade, ou, ao menos, desvendam aspectos do cotidiano de
constante negociação que os mesmos estabeleceram com seus senhores. São atos de
revolta, fugas, assassinatos, mas também de negociação, casamentos e de busca de
vantagens econômicas, corroborando com uma historiografia já consolidada que
demonstra a clara participação dos cativos nos ganhos auferidos com a liberdade e a sua
condição de agentes históricos, negociadores e jamais simples “coisas”. Ao abordarmos
este tema encontramos mais perguntas do que respostas, pois os artigos aqui analisados, em
geral acanhados e encobertos, não têm a intenção de esclarecer o cotidiano dos escravos,
ou tampouco conceder aos mesmos condições de escolherem e participarem do processo
em desenvolvimento, na opinião dos editores do periódico, o poder decisório estava nas
mãos apenas dos proprietários, enquanto aos cativos cabia a sujeição e o contentamento.
62 Em que pese toda consolidada historiografia nacional a respeito do tema da resistência e negociação
presente no cotidiano dos escravos, aqui nos referimos, tão somente, a visão da elite, em seu discurso, objeto
deste trabalho, o escravo era visto, como ficou demonstrado, como indivíduo que apenas aguardava
pacificamente as decisões da elite. Por mais equivocada que seja esta visão é ela que esta presente no discurso
da elite, principal objeto aqui em estudo.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
125
Um dos artigos que nos chamou a atenção quanto a este mote, e que infelizmente
mereceu pouco cuidado dos editores da folha, foi uma notícia que informava a fuga do
escravo Miguel da fazenda de seu proprietário, José Rodrigues dos Santos. Com efeito, era
constante a vinculação desse tipo de notícia nos periódicos do século XIX, mas em folhas
abolicionistas, como A Verdade, seus editores e proprietários não divulgavam tais anúncios
de procura. De fato, ao longo dos onze anos analisados desta folha, embora apenas três
deles no período escravista, jamais foi vinculado qualquer notícia sobre a fuga de escravos,
constituindo o caso do escravo Miguel a única exceção.
O artigo nada se diferencia aos demais encontrados em quase todas as folhas do
período, informa o nome do proprietário, a recompensa oferecida e as condições da fuga,
como data e demais características que poderiam colaborar para a localização do escravo
fugido. Mas as semelhanças terminam por aí, o que desperta atenção na fuga de Miguel,
além do fato de ser a única denunciada no periódico em análise, é o fato de ele ter levado
consigo sua esposa, de nome Lúcia e mais cinco filhos ingênuos! Mais informações não são
reveladas no curto artigo de “Procura-se”, mas a fuga de sete pessoas, constituindo uma
família, foi condição definitiva para quebrar o silêncio de A Verdade quanto à fuga de
escravos e colaborar no seu encontro. Cabem questionamentos quanto às intenções do
periódico, o que mais estaria por trás do acontecido? São perguntas que ficam sem
respostas, mas revelam o cotidiano do cativeiro, onde existiam famílias e fugas, que levaram
uma folha abolicionista a romper com os “escrúpulos” apontados por Gilberto Freyre
(1979) e denunciar a fuga da família, mesmo com intenções desconhecidas, que poderiam
mesmo ser com o objetivo de ajudar o escravo, e não o senhor. (A Verdade, 13 de maio de
1886).
De acordo com Silvia Lara (1988), a violência marcava a vida no cativeiro, com
efeito, entre os meses de abril de 1886 a janeiro de 1887, A Verdade noticiou três crimes de
assassinatos diferentes cometidos por escravos contra seus senhores. Em oposição a outros
periódicos, não anunciou a emersão de uma onda negra, mas enfatizou a grave crise e a
necessidade de solucionar o problema da transição da mão de obra o mais rápido possível.
O primeiro crime, noticiado em 22 de abril de 1886, ocorreu em Campinas, no dia
12 do mesmo mês. Neste crime oSr. Carlos Augusto de Camargo, administrador da
fazenda do Sr. Antônio Américo de Camargo, e genro do mesmo senhor, saiu no domingo
pelas 9 horas da manhã em procura de três negros que fugiram. Não reaparecendo em casa
até a noite, deram-se as providências a fim de encontrá-lo. “Efetivamente foi encontrado
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
126
hoje, no mato, em um estado horroroso já sem vida e barbaramente esfaqueado e
mutilado”. Do estado horrível que o cadáver fora encontrado concluiu-se que a vítima fora
morta a facadas, tiros e pancadas.
O delegado de polícia, o escrivão e mais 23 praças seguiram para a dita fazenda,
denominada das Sete Quedas, onde já encontraram os escravos presos, sendo apresentado
à autoridade pelo Sr. Antônio Camargo o escravo José, feitor, como suspeito de haver
praticado o crime. Destacamos o grande número de praças que acompanhou o delegado
até a fazenda de Sete Quedas, em número de 23 homens, demonstrando a séria
preocupação com as repercussões que um assassinato como este poderia proporcionar,
principalmente envolvendo cativos e proprietários.
Outro crime narrado pela folha ocorreu na freguesia do município de Itajubá, em
Soledade, a 15 de julho de 1886. Neste caso:
No dia 7 do corrente, às 7 horas da noite na fazenda da Queimada, freguesia da
Soledade, deste município, o escravo Amaro, pertencente ao Sr. José Bertolino
Ribeiro, em ato de desobediência e luta com o seu Sr., ofendeu a este com uma
faca em ambos os braços, e na mesma ocasião também ferio mortalmente, na
região bipogástrica, a sua jovem senhora, D. Ana Balbina da Fonseca, que veio
em auxílio do seu marido (...).O assassino, que se apresentou nesta cidade como
fugido, foi preso e recolhido a cadeia.
Este crime também é bastante complexo e revelador do cotidiano vivido nas
senzalas, pois no restante do artigo é informado ao leitor o motivo da luta entre senhor e
escravo: “Estamos informados de que a causa do delito foi o reprovado comportamento da
preta forra Felisarda, mãe do facínora, que morando com seu filho, praticou alguns furtos
pelos quais foi advertida e despedida”. Ou seja, a advertência seguida de demissão da mãe
de um cativo, mulher já livre, levou ao desentendimento entre senhor e escravo que
culminou na morte da esposa do proprietário. Num cotidiano em que a condição da
experiência do cativeiro e a proximidade de um passado ou antepassado escravo eram
definidores da condição e de preconceitos (FARIA, 1998), os trabalhadores livres não
admitiam a advertência e a comparação com o cativo, pois a mesma diminuía sua principal
diferenciação conquistada naquela sociedade rigidamente hierarquizada, a conquista da
liberdade (MATTOS, 1998).
Por último, outro caso ocorrido no interior paulista é relatado na folha de Itajubá, e
neste terceiro caso algumas tendências da folha são reveladas ao leitor mais atento. Em
Batatais, uma escrava assassinou seu senhor, o proprietário Sr. Eloy Pompílio Franco,
moço de 25 anos, filho de fazendeiro João Francisco de M. Octavio. No entanto, o artigo
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
127
informa que o senhor Ely era muito severo e “deu em resultado o ter sido ele assassinado
(...) por uma preta” com dois golpes de machado sobre a fronte. Ou seja, há uma
justificativa pelo crime da acusada, que sofria com o comportamento cruel do proprietário
e mais ainda, dessa vez a visão da escrava é conhecida e esclarecida, justificando,
cabalmente, o seu ato: “A escrava confessa o delito, dizendo: matei meu senhor para
livrar meus filhos e marido dos castigos bárbaros que sofriam. Matei e não me
arrependo!” (Grifo nosso).
Informa ainda que o marido da preta assassina foi encontrado na fazenda
“amarrado como Cristo, posição essa em que achava-se há mais de oito dias!” (A Verdade,
21 de janeiro de 1887).
Neste evento nos é revelado às motivações dos escravos, seu ponto de vista e o que
mais os movia, este exemplo de artigo constitui uma exceção no tipo de fonte que
privilegiamos neste trabalho, os periódicos locais, e só foi revelado por se tratar de uma
folha abolicionista, que apostou na justificativa do crime para inocentar a escrava envolvida
no mesmo e demonstrar a injustiça do cativeiro e do regime que queriam ver extinto do
país.
Negociação, diferenciação, adaptação e resistência nos cativeiros do Sul de Minas:
Onde andará Clemente?
Os escravos não apareciam nas folhas de A Verdade apenas como praticantes de
crimes, por vezes também eram vítimas, embora nestes casos a repercussão fosse muito
menor, caso do crime narrado em 12 de agosto de 1886, quando dois escravos foram
mortos em Paraíba do Sul quando condenados ao açoite.
Outras notícias revelam apontamentos curiosos, como o caso de um jovem
advogado de Campinas que “foi convidado a retirar-se daquela cidade, contendo o convite
grande número de assinaturas. O motivo do fato é haver o dito advogado patrocinado
abertamente causas da liberdade” (A Verdade, 27 de janeiro de 1887). Embora cidades do
interior paulista sempre tenham aparecido na folha como exemplos adiantados de
emancipação esta notícia contrariava o paradigma, informado a existência de um forte
grupo escravocrata em Campinas, com poderes suficientes para expulsar um advogado
abolicionista do município.
Outros dois acontecimentos noticiados por A Verdade merecem destaque neste
item. O primeiro deles, a invasão da delegacia de Penna do Rio de Peixe, também no
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
128
interior de São Paulo, seguida pelo assassinato do delegado por “um grupo numeroso de
homens armados”, entre eles alguns escravos. A folha sintetizou a questão do assassinato
em Penna do Rio como“fatal desenlace da questão social que se tem agitado no
Império”(A Verdade, 01 de março de 1888). Para os editores da folha toda a questão social
da transição da mão de obra se resumia nesta bárbara invasão de uma delegacia e no
assassinato da autoridade. “O lutuoso acontecimento (...) magrou todo país, principalmente
a província de S. Paulo, onde se trata de extinguir rapidamente o elemento servil”.
Na opinião da folha, o ato destoava da índole generosa e dócil do brasileiro. De
acordo com A Verdade, o próprio contexto nacional não era propício a execução de tais
crimes, pois a situação caminhava para uma solução harmoniosa. Desta forma, os editores
do periódico buscavam acalmar a população e não apostavam na emersão de uma onda
negra, como tais crimes sugeriram para outras facções, ao contrário, buscavam disseminar a
ideia de harmonia e breve encaminhamento das questões para uma solução satisfatória e
pacífica. Para os editores do periódico o “monstruoso crime” ocorrido no interior paulista
era reflexo da condição do trabalho no país, que exigia pronta solução.
Crimes de tais montas eram utilizados, magistralmente, para corroborar com a
argumentação e ideologia da folha, sempre favoráveis a libertação.
Outro caso de violência noticiado em A Verdade, este com mais detalhes, ocorreu
em Itajubá e revela de maneira cabal a participação dos escravos no dia-a-dia e suas
estratégias para melhorar de vida, inclusive enfrentando seus senhores na justiça quando
necessário.
Trata-se de uma longa carta do proprietário Cândido Ribeiro da Costa, em defesa
de seu genro, Manoel Custódio Santos, por acusações de ter causado muitos ferimentos em
um seu escravo, de nome Clemente. Cândido Ribeiro da Costa afirma que ultimamente seu
genro vinha sendo tripudiado por outra folha da cidade e em sua defesa publicava esta carta
em A Verdade com detalhes do processo crime instaurado em juízo no município de Itajubá
para fazer justiça. Além de alegar inocência do genro, que estava preso, descreve, sem ser
sua intenção primordial, o cotidiano e as estratégias de alguns escravos. Constituindo
importante fonte para o pesquisador:
Contra meu genro, pelos ferimento que se diz, por ele praticado na pessoa do
escravo Clemente – de sua propriedade. E nesse artigo é o mesmo tratado
como um homem que não merece benevolência e por conseqüência um monstro,
besta-fera, etc. Não posso deixar de protestar semelhantes insinuações
infundadas, pois da inquirição de testemunhas no inquérito policial, somente
dois menores – Pedro e Manoel – um, ingênuo e o outro escravo do mesmo
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
129
informaram ter visto se praticar o fato criminoso e isto mesmo em contradição
no seus depoimentos.
O ingênuo Pedro em seu depoimento (...) diz que viu o fato criminoso, estando
ele no terreno da casa da fazenda, e que também viu a preta Justina e o escravo
Manoel presenciarem o crime, olhando ambos pela fresta da porta que da sala
dá comunicação para o interior da casa, Justina sendo inquerida disse que não
viu nada, que não estava neste lugar e que nada sabe, e Manoel em seu
depoimento disse que não estava na referida porta com Justina, mas sim com
Pedro...
É de notar, e isto é uma base principal de nenhum valor do depoimento de
Pedro – que do terreiro da casa da fazenda não se pode ver o que se passa na
sala (...). Outro fato que consta no processo e também é de bastante peso, é o
seguinte: Clemente diz em seu interrogatório que a última vez que fugiu estava
com uma pega no pé, e com os ferimentos descritos no auto do corpo de
delito, ora, Clemente fugiu ultimamente na noite de 13 para 14 de fevereiro
próximo passado e foi visto neste último dia nos subúrbios desta cidade, por
uns trabalhadores de roça que estavam a beira da estrada, e tendo-lhes
Clemente perguntado por uma preta da fazenda que tinha pouco antes passado
e que também achava-se fugida, eles lhe disseram que a preta tinha passado há
pouco e o referido Clemente seguiu logo pelo mesmo caminho, e com ligeireza.
Dirigindo-se pois Clemente para esta cidade e estando já perto, aonde esteve ele
até o dia primeiro de março? Dia este que se apresentou com ferimento tão
grave? (...) Quinze dias que esteve gravemente ferido, sem procurar recursos,
sem queixar-se (...) é uma coisa inacreditável!!! (Grifos originais).63
Ainda nesta extensa carta Cândido Ribeiro da Costa coloca outras argumentações
em defesa do genro, como a recordação de um fato ocorrido em Itajubá tempos atrás,
quando uma escrava se matou afogada e o seu marido feriu o cadáver em local mortal para
atribuir o crime ao senhor. Costa via correlação neste tipo de crime acusando os escravos
de, costumeiramente, produzirem este tipo de dificuldade para imputarem culpa aos seus
senhores injustamente, valendo-se das táticas mais vis.
Além disso, afirmava a docilidade do seu genro, que já libertara um outro escravo
fugido, Thomé, pacificamente, mesmo depois de perder dinheiro com a recaptura do
mesmo. Também enumerou as boas ações de seu genro, que ajudava órfãos, portanto não
era nenhuma “besta-fera”. Citou nomes conhecidos da sociedade que conviviam e tinham
amizade com o genro, ressaltando o fato do mesmo já ter sido sub-delegado do município.
Por último, põe em questão a sua própria honestidade e prestígio ao dar sua palavra
pela inocência do genro, afirmou morar próximo ao local do suposto crime e asseverou que
não ouviu gritos, ficando sabendo das acusações posteriormente, por ouvir dizer e pela
63A
Verdade, 21 de abril de 1887.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
130
folha Itajubá. Sua esposa e filhos também nada sabiam. Considerou
que gritos não
passariam despercebidos, ainda mais quando foram arrancados “os dentes com torques”.
A intenção clara da carta é defender o acusado, mas revela aspectos daquela
realidade dividida por senhores e escravos num mundo em avassaladora transformação.
Mas, a violência no final do século XIX não estava apenas na relação senhor escravo. Neste complexo contexto de mudança do braço trabalhador, diferentes relações
eram estabelecidas nas fazendas e a presença de nacionalidades diferentes e o preconceito
contra o trabalho manual agravavam os desentendimentos entre elite e trabalhadores.
No dia 10 de novembro de 1887, A Verdade noticiou um fato que corrobora com o
exposto acima e demonstra o quão complexo eram as relações de trabalho no final do
Império, em uma sociedade rigidamente hierarquizada e em franca transformação. Informa,
que em Campinas, na fazenda do Sr. Carlos Olympio Leite Penteado, este senhor chamou a
atenção do pedreiro português, José Joaquim da Silveira, criticando a obra que o mesmo
realizava em sua propriedade.
O Pedreiro português retrucou que a mesma ainda não estava pronta e para o
senhor não questioná-lo antes que o trabalho estivesse concluído. Consta que o Sr.
Penteado, irritado com a resposta do português, gritou exasperado. Ao que este último
respondeu não ser escravo de ninguém!
Enfurecido, Sr. Penteado partiu para agressão e “deu com cacete (...) uma forte
pancada em José Joaquim (...) abrindo-lhe na cabeça uma grande brecha”. Neste evento, se
o pedreiro respondeu irritadiço não ser escravo de ninguém, o proprietário ficou ainda mais
zangado com a “insubmissão” e partiu para a agressão contra o trabalhador português.
O trabalhador português, José Silveira, reagiu desferindo uma pedrada no Sr. Carlos
Olympio, ferindo-o também na cabeça, ao que o Senhor avançou sobre o pedreiro, este se
armou com um martelo e ameaçou Carlos Olympio. Sob a ameaça, o proprietário se
retirou, mas em seguida mandou um grupo de escravos de sua propriedade cercar o
trabalhador português, “esses escravos deram muitas pancadas, parando somente quando
interveio o feitor Fabiano”. José Silveira ainda foi metido no tronco, por ordem do senhor
e liberado apenas duas horas depois, quando prometeu não intentar processo algum contra
a fazenda. Assim que saiu quebrou a promessa forçosa e fez exame de corpo de delito e
queixou-se as autoridades.
O envolvimento de escravos e de um trabalhador estrangeiro braçal que não
admitia “ser escravo de ninguém!” e tampouco ser tratado como tal, deixava os membros
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
131
da elite em estado de perplexidade ao deparar-se com o fato de que ela, até então senhora
de tudo e todos, também precisava se adaptar a nova ordem em constituição.
Demonstrando que o problema da transição da mão de obra não era apenas adaptar
o trabalhador nacional recém libertado ao afazeres da grande lavoura para não constituírem
maltas de vadios, a questão se apresentava mais complexa, pois a elite também precisava se
adaptar, convencendo-se que lidava com homens livres, que valorizavam imensamente sua
dignidade advinda da liberdade recém adquirida. A análise das relações entre diferentes
grupos demonstra o quão confuso e complexo eram as relações naquela sociedade.
Festas populares
Como mencionado acima, grandes manifestações comemorativas ocorreram em
todos os pontos da freguesia de Itajubá com o fim da Escravidão. No entanto, as festas
foram realizadas em grandes casarões luxuosos e entre os membros da elite. O cativo
recém liberto, que realmente tinha motivos para comemorar a liberdade recém conquistada,
como evidentemente deve ter comemorado, não mereceu o destaque da imprensa do
período. Sobre as festas populares, uma nota tímida é encontrada na terceira página de A
Verdade do dia 25 de maio de 1888. Nos artigos que descreviam estas festas populares os
editores dos periódicos faziam questão de ressaltar a harmonia e o respeito à ordem por
parte dos libertos, para não por em dúvida quem ainda estava no comando, pois até a
libertação fora descrita como dádiva da elite e jamais como uma conquista dos cativos. Ao
liberto cabia apenas a permanência no trabalho, agradecido pela oblata oferecida pela elite
benevolente. Se os festejos populares não foram preservados propositadamente pelos
periódicos da elite, outras evidências de que grandes mudanças ocorreram naquela
sociedade com a promulgação da Lei Áurea ainda podem ser percebidas nestas mesmas
folhas.
No dia 09 de agosto de 1888 A Verdade vinculou um artigo que noticiou, se não um
problema, ao menos uma dúvida, o que fazer com o dinheiro economizado por escravos
para comprar sua liberdade, o chamado pecúlio? Deveria ser devolvido aos cativos? Em
Itajubá os ex-escravos achavam que sim, e foram procurar o Coletor municipal e o Juiz de
Órfão para receber o dinheiro economizado de volta (A Verdade, 09 de agosto de 1888).
Importante neste evento é demonstrar a ação do recém liberto, um sujeito ciente de seus
direitos, diferentemente daquele escravo descrito pelo próprio periódico como um mísero e
paciente.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
132
O fato de ter conseguido ou não receber o seu dinheiro de volta não é o
fundamental, ressaltamos que neste evento o liberto pressionou e protestou, demonstrando
sua condição de sujeito histórico. O Último artigo para o qual chamamos a atenção foi
publicado no dia 02 de agosto de 1888 e intitula-se “Casamento a granel”:
Estamos sobre a influência d´uma epidemia casamenteira que é um Deus nos
acuda! Já se casam às dúzias, e no domingo foram apregoados nada menos de
30!
Mas, pergunta-se: Não se tem casado menores sem licença da autoridade
competente? Os pretos e pardos, ex-escravos e ingênuos, são todos maiores de
21 anos?
Só para os menores pobres que nasceram livres é que é necessário licença?
Responda quem souber Ass.: O Coadjutor. (A Verdade, 02 de agosto de 1888).
Embora a preocupação do responsável pela publicação do artigo seja outra, a
necessidade de licença de menores para se casarem ou não, o artigo comprova que após a
abolição uma verdadeira mudança ocorreu na vida da sociedade daquela época, muitos exescravos decidiram se casar, demonstrando sua segurança em um futuro melhor. A
libertação provocou radical alteração na sociedade e os ex-cativos tiveram condições de
mudar suas estratégias e modificar seu modo de vida.
Por último, salientamos que os eventos considerados neste último tópico suscitam
maiores questões do que oferecem respostas. No entanto, tal análise contribuiu com nosso
escopo ao longo deste artigo, pois demonstraram a complexidade das relações entre
senhores e escravos e as muitas outras maneiras de relacionamento que advieram com a
extinção da escravidão no mundo do trabalho.
A descrição de crimes e assassinatos convinha para amedrontar a elite e pressionar a
mesma para encaminhar o fim do escravismo. Por outro lado, o crime contra escravos
demonstra que esses eram as maiores vítimas do regime bárbaro, e por último, um universo
de negociações nos é revelado com a leitura do ponto de vista dos cativos.
Bibliografia
AZEVEDO, Célia Maria Marinho. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites
século XIX. 2ª edição. São Paulo: Annablume, 2004.
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade:uma história das últimas décadas da escravidão na
Corte. São Paulo: Cia das Letras, 1990.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
133
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial.Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
FERNANDES, F. A Integração do Negro na sociedade de classes. Rio de Janeiro: Zahar
editores, 1981.
FLORENTINO, Manolo e GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico
atlântico, Rio de Janeiro, 1790-1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala. Rio de Janeiro: Record, 2001.
______. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. São Paulo: Ed.
Nacional, 1979.
GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. In.: LPH: Revista de História. Vol.3, n. 1, 1992.
pp. 245-266.
______. Escravidão no Brasil: um balanço historiográfico. In.: LPH: Revista de História. Vol.3, n.
1, 1992. pp. 215-244.
LARA, Sílvia Hunold. Campos de violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro,
1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista
– Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
MATTOSO, K. M. Q. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 3º Ed, 1990.
REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil:a história do levante dos malês em 1835. São Paulo:
Cia das Letras. 2003.
Fontes
O Baependiano, 1879.
A Verdade, 1886 a 1888.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
134
Vivendo da arte mecânica: a importância social dos artífices em Mariana no século
XVIII
Fabrício Luiz Pereira
Mestrando pela UFOP / Bolsista CAPES
fabricioluizp@yahoo.com.br
Resumo:O termo oficial mecânico se designava ao profissional possuidor de destreza ou
maestria na prática de determinado ofício. A principal particularidade do oficial era a
liberdade para vender o seu produto ou mesmo a sua própria força de trabalho. Não
estavam submetidos a instituições, somente ao mercado consumidor de sua arte, ainda que
de forma limitada, pois esses trabalhadores, por vezes, estavam à mercê da câmara, como
mostram as licenças, as cartas de exame, as posturas e os regimentos, além da
regulamentação dos preços. Em geral, conseguiam seus contratos através dos leilões em
praça pública, tanto para obras públicas quanto para obras religiosas. O objetivo dessa
comunicação é apresentar, através do inventário e testamento de José Pereira Arouca,
alguns aspectos sociais e econômicos relacionados ao trabalho manual em Mariana durante
o período colonial. Propõe-se também delinear um panorama do modo de trabalho
mecânico na América Portuguesa, a qual não seguiu os padrões metropolitanos das
corporações medievais. Delimitaremos o período de 1745 a 1808, omarco temporal
coincide com o momento de maior número de obras no centro urbano marianense. Para
tal, privilegiaremos a documentação cartoráriado Arquivo Histórico da Casa Setecentista de
Mariana e camarária do Arquivo Histórico da Câmara de Mariana.
Palavras-Chave: Ofícios mecânicos, José Pereira Arouca, Escravos
Ao analisar o universo das construções de prédios públicos e eclesiásticos nas
Minas setecentistas, verifica-se que os projetos iam se concretizando a partir de uma ideia
de um espaço urbano conveniente para uma boa acomodação do comércio e dos súditos.
Acima de tudo, as intervenções no espaço urbano favoreciam a posse simbólica do
território. O presente trabalho pretende apresentar algumas possibilidades de pesquisa
sobre o tema “oficialato mecânico”, bem como debater sobre alguns aspectos que
permeava a sociedade colonial mineira.
Descobertas as minas de ouro, em fins do século XVII, o sertão, ambiente
selvagem e inóspito, seria rapidamente habitado. Em pouco menos de um século, o vasto
interior do Brasil passaria a sediar um dos mais complexos sistemas administrativos da
Coroa Portuguesa. A extração mineradora , oscilante durante o século XVIII, propiciaria
um rápido processo de urbanização, iniciado já em 1711, com a criação das primeiras vilas:
Vila do Ribeirão de Nossa Senhora do Carmo, Vila Rica e Vila Real de Nossa Senhora da
Conceição sob administração do Governador Antônio de Albuquerque.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
135
Os primeiros anos da região foram marcados por conflitos importantes para a
história da região mineradora. Em 1709 eclodiu a conhecida guerra dos Emboabas,
motivada por conflitos de interesses e por relações de forças entre paulistas e os
“estrangeiros”. Em 1720, a Revolta de Felipe dos Santos, novamente coloca a
fragmentação da autoridade e dos poderes às claras. Diante da riqueza da região e do
desregramento evidente a Coroa passa a se preocupar com a administração nas Minas. A
partir do governo de Gomes Freire de Andrade (1735-1763) nota-se um avanço no
processo de institucionalização dos poderes municipais e régios na região; um processo
marcado por um maior investimento na urbanização das vilas. A região centro-sul de região
mineradora passaria a se tornar uma complexa sociedade marcada por uma mobilidade
social pouco vista no Antigo Sistema Colonial, além de apresentar características
econômicas importantes como a forte presença da agropecuária e a atuação do setor
secundário, dentre os quais os artesãos.
As construções que eram erguidas naquele espaço urbano nasciam das mãos de
homens simples, jornaleiros e oficiais mecânicos licenciados pela Câmara. Alguns mestres
de ofícios arrematariam grandes obras públicas, enquanto jornaleiros, negros e mulatos,
ergueriam paredes de pau-a-pique em pequenas residências ou construíam grandes
monumentos arquitetônicos de pedra e cal, servindo aos seus senhores ou contratantes.
As atividades de ferreiro, latoeiro, carpinteiro, carapina, marceneiro, pedreiro,
oleiro, arrieiro, cangalheiro, tecelão, ceramista, telheiro, sapateiro, alfaiate, dentre outros,
são delineadas como ofícios mecânicos rústicos. Por definição, tais ofícios se diferenciam
dos artífices ocupados com os trabalhos de imaginária, entalhe, escultura e pintura.
Nesse sentido, o Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico64, do
Padre Raphael Bluteau, o verbete “mecânico”, indica uma distinção clara entre os oficias
mecânicos e os artistas liberais. De acordo com Bluteau;
Artes mecânicas, ou servis, são as que são oppostas às artes liberaes, porque
aquellas não só se occupão na fabrica de machinas mathematicas, mas tambem
em todo o genero de obras manuaes, & officios necessários para a vida
humana, como são os de Carpinteiro, Pedreiro, Alfayate, Sapateiro (...)
(BLUTEAU, 1728: 380)
Bluteau acrescentaria ainda que o homem que se dedicava ao trabalho mecânico
seria baixo e humilde e, seguindo os ensinamentos clássicos, finalizaria o verbete com os
64 BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Português e Latino (1728). In. http://www.brasiliana.usp.br/dicionario
.Acesso: 01/05/2011.p 379 – 380.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
136
estes dizeres: “Excogitou o sábio todas estas cousas, mas parecendo lhe indignas delle,
entregou-as a homens mecânicos” (idem).
Já o “artista liberal” seria nobre, “que mostra ser de pessoa de qualidade” (Ibdem,
109). As artes liberais seriam sete: gramática, retórica, lógica ou dialética, aritmética, música,
geometria e astrologia. No vocábulo “arte liberal” mais uma vez verifica-se a distinção
entre as artes servis e as artes liberais, conforme exposto a baixo:
Da-se este epitheto às artes, que exercitando o engenho, sem ocupar as mãos
[como as artes mecânicas] são próprias de homens nobres, & livres não só da
escravidão alheya, mas tambem da escravidão das suas proprias paixões, & por
isso se chamão liberaes (...) (ibdem).
Bluteau adverte ainda no referido verbete que os romanos eram os mais
“escrupulosos” nas artes liberais e explicava seu julgamento ressaltando a admissão da
pintura, escultura e arquitetura como artes liberais. Alguns estudos historiográficos
preocupados com essa distinção atribuíram à possibilidade de “inventar” a diferença entre
os oficias mecânicos e os artistas liberais 65, incluindo entre eles os pintores e escultores, os
quais, em princípio, estariam excluídos dessa categoria. As hierarquias no interior das artes
e ofícios eram múltiplas e se complexificaram no decorrer do tempo.
Em Portugal, por exemplo, os pintores instavam que fossem considerados artistas
liberais. Conforme apresenta Georgina dos Santos ao analisar a Bandeira de São Jorge em
Lisboa, verifica-se que, em 1577, o mestre Diogo Teixeira conseguiu dispensa dos encargos
da bandeira de São Jorge argumentando que a pintura era uma das artes liberais, sendo
assim,
O conceito subjacente à fala do pintor da imaginária deitaria raízes em solo
português, como fizera no território italiano. Aliado a um movimento mais
amplo de promoção das artes plásticas, nas centúrias seguintes, pari passu ao
galardão de nobre atribuído aos pintores da arte, estes artífices estariam
ausentes da bandeira de São Jorge e de qualquer outra com assento na Casa dos
Vinte e Quatro. Mas o processo de redefinição dos parâmetros de classificação
das atividades profissionais, assinalado por mestre Diogo, atravessaria o mundo
do trabalho durante toda a Era Moderna, derrubando velhas paredes e
erguendo novos muros entre as artes liberais e as artes mecânicas.(SANTOS,
2005: p.123)
O conceito de artista e artífice (ou artesão) pode se confundir para o período.
Segundo Caio César Boshi, os limites que separavam as práticas do mundo do trabalho não
se delineavam com clareza (Cf. BOSCHI, 1988). De maneira geral, o termo oficial
65
Segundo Maria Helena Ochi Flexor aos pintores, escultores e entalhadores havia a possibilidade de
“inventar” e por isso eram considerados profissionais liberais, enquanto aos artífices cabia somente “copiar” e
permanecer administrativamente atrelados às Câmaras. FLEXOR, Maria Helena Ochi. Mobiliário Bahiano.
Brasília, DF: IPHAN/ Programa Monumenta, 2009. P.39.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
137
mecânico designava-se ao profissional possuidor de destreza ou maestria na prática de
determinado ofício. Contudo, esse domínio prático não se constituía desassociado das
clivagens próprias do campo social. Na colônia, de acordo com Fabiano Gomes da Silva, a
principal particularidade do oficial era a liberdade para vender o seu produto ou mesmo a
sua própria força de trabalho (Cf. SILVA, 2007)
As particularidades atinentes à condição colonial não cessão diante da escravidão e
do regime diferenciado de trabalho. Na América portuguesa, os oficiais mecânicos não
estavam submetidos a instituições como as corporações de ofício, ao contrário do que
normalmente ocorria na metrópole. Na Colônia, o oficial mecânico dependia de um
mercado consumidor limitado, no qual se distinguia a Câmara e as irmandades.
A câmara exerceria um controle desse oficial não apenas pela contratação da sua
obras, mas também pela concessão de licenças e cartas de exame. A ordenação da execução
das obras era estabelecida por meio do próprio contrato firmado no momento da
contratação e licitação da obra. Para além desses instrumentos ordenadores, a câmara
estabelecia posturas, os regimentos e a regulamentação dos preços. Por meio desses
instrumentos administrativos, a Câmara buscava intervir e ornar o espaço urbano.
As cartas de exame, conforme salientado fora um importante instrumento
regulamentarizador por parte da Câmara. Entre 1737 a 180666, a instituição de poder local
concedeu 360 cartas de exames em Mariana, conforme distribuídas no gráfico abaixo:
GRÁFICO 1: Cartas de exames retiradas em Mariana entre 1737 – 1806 com seus
respectivos ofícios.
66 Agradeço a pesquisadora Crislayne Gloss pela doação do levantamento das cartas de exame da Câmara
realizados pela mesma.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
138
Série1;
Série1; Pedreiros;
Série1; Parteira,
Ferreiros
Ferradores
Ourives; 13; 3%
13; 4%
cirurgião e
Ferreiros e ferradores
Carpinteiros "sangrador"; 3; 1%
Alfaiates
Sapateiros
Ourives
Pedreiros
Parteira, cirurgião e "sangrador"
Série1; Sapateiros;
79; 22%
Série1; Ferreiros;
82; 23%
Série1; Ferradores;
66; 18%
Série1;
Alfaiates; 65;
18%
Série1;
Carpinteiros; 35;
10%
Série1; Ferreiros e
ferradores; 4; 1%
Fonte: Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana – Códices: 146, 218, 381
Nota-se que os oficiais ferreiros foram os que mais procuraram a Câmara para tirar
as cartas de exame, paripassu com eles estão os sapateiros, alfaiates e ferradores. Importante
salientar que dentre os oficiais arrolados quatro foram examinados para exercer o oficio de
ferreiro e ferrador em concomitância. Os oficiais de carpintaria e de pedreiro aparecem em
pequeno número, sendo 35 o primeiro grupo e 13 o segundo. Três canteiros figuram na
listagem, mas também tiraram suas cartas de exame juntamente com a de pedreiro.
Podemos destacar alguns problemas quanto ao número de oficiais que obtiveram carta de
exame pela Câmara de Mariana. Em primeiro lugar, o baixo número de oficiais que de fato
prestavam tal exame. De acordo Fabiano Gomes da Silva, no caso de pedreiros, canteiros e
carpinteiros verificou-se em Vila Rica que apenas um grupo reduzido de arrematantes
monopolizaram as construções públicas, o que fez com que a grande maioria dos oficiais
trabalhassem como jornaleiros. O mesmo ocorreu em Mariana, conforme aponta os dados
iniciais da pesquisadora Danielle de Fátima Eugênio67.
67
Essas informações estão sendo analisadas pela pesquisadora no seu projeto de mestrado, também pelo
Programa de Pós-Graduação da Universidade de Ouro Preto, mas em conversa Danielle relatou que os seus
estudos apontam para esses dados, ou seja, um pequeno grupo de homens que arrematam as principais obras
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
139
Mesmo sabendo que as cartas de exame são um conjunto de fonte que não abarca a
totalidade dos oficiais que se dedicavam as artes mecânicas na colônia podemos inferir
outras questões relativas aos que obtiveram tal recurso. Por que a grande maioria das cartas
foram para pessoas que se dedicavam a ofícios que tinham como matéria-prima o ferro
(148 cartas) e também às vestimentas (144)? Por que os ourives só conseguiram retirar suas
cartas entre os anos de 1741-1750? O que explicaria um número tão pequeno de cartas para
cirurgião, parteira e sangrador? Respectivamente uma para cada. Já que parcela pequena de
artífices retiravam licença na Câmara, como que o poder local conseguia regulamentarizar o
ofício na prática cotidiana? Essas e outras perguntas podem ser retiradas dessa fonte, no
entanto para o presente artigo iremos utilizá-las somente como possibilidade para futuras
pesquisas.
Em obras de grande porte, conseguiam seus contratos através dos leilões em praça
pública. No caso das obras públicas, “conforme lei e o estilo, um funcionário da câmara, o
porteiro, lia em voz alta e inteligível na praça o edital da construção durante vários dias,
estimulando os lançadores (arrematantes) a oferecerem o menor lanço (oferta)” (SILVA,
2007: p.98). O ritual só terminava com a eleição do arrematante com o menor preço, que
recebia em suas mãos um ramo verde “como sinal público de sua obrigação com a
obra”(idem).
Com o afluxo populacional para as minas, criou-se um universo móbil e viável às
trocas e misturas de raças e cultura. Na arte, notam-se as trocas culturais, as mudanças de
modelos motivadas pela influência africana e pelos materiais da região. Vale lembrar que
Manuel da Costa Ataíde famoso pintor mineiro, ensinava o oficio da pintura a seus
escravos e contava com a ajuda deles em suas empreitadas.
A condição mecânica que fora um obstáculo intransponível à nobilitação no Antigo
Regime. Pessoas que viviam das artes mecânicas buscavam maneiras de ascender
socialmente, vinculando-se às irmandades, estabelecendo relações, incluindo o compadrio,
com os responsáveis por grandes arrematações no período. No entanto, embora alguns
mecânicos possuíssem escravos, eles não deixavam a condição de plebeu na colônia. A
distinção de qualidade era fator determinante para manter as estruturas sociais na colônia,
embora os artífices tivessem grandes chances de enriquecimento, conforme elucidaremos a
da Câmara de Marina no século XVIII. Conferir também em: EUGÊNIO, Danielle de Fátima. Arrematantes de
Obras Públicas: oficialato mecânico na Cidade de Mariana. (1745-1800). Mariana: Instituto de Ciências
Humanas e Sociais – UFOP. 2010. (Monografia de conclusão de curso).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
140
posteriori. Maria Beatriz Nizza da Silva elucida um caso interessante no qual percebemos que
o enriquecimento do artífice Aleixo Lopes São Cristovão, no Pará, era desdenhado pelo
então governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado, em 1757, de acordo com os
relatos da autoridade:
Este homem era um pobre carpinteiro que não passava de ter mais que os
jornais de que se sustentava. Entrou neste contrato no fim do ano de 1751 e
ainda que dele resulte conveniência à Fazenda de Sua Magestade, ele tem tirado
tais lucros que já se acha nos termos dos homens de cabedais desta terra.
(SILVA, 2005: 20)
Estima-se que o carpinteiro arrematou a obra do pesqueiro real da ilha de Joanes
por 2:000$000 réis, uma quantia considerada alta para o período. Provavelmente o oficial
só havia conseguido tal arrematação por possuir tenda e escravos suficientes para a
construção da obra.
Silva chama atenção também para a formação de uma classe intermédia entre
nobres e plebeus, visto no verbete no dicionário de Bluteau como “Estado do Meio”. Não
seriam nem mecânicos e nem nobres, seriam tratados com certa distinção por andarem
com cavalos e servindo-se como criados, além disso dedicava-se as artes mais estimadas,
como pintores, escultores, ourives e cirurgiões (idem: 20-22) Talvez essa informação
explique o baixo número de cartas de exame para ourives e cirurgiões expostos acima.
Na tentativa de exemplificar as discussões expostas acima, apresenta-se o
significativo inventário e testamento de um dos maiores arrematantes de obras em Mariana
no século XVIII, José Pereira Arouca. O artífice atuava em três ofícios: carpintaria, cantaria
e pedreiro, provavelmente teve sua carta de exame retirada em Portugal, pois em Mariana
aonde residia não há registro de tal documento. Entre as principais obras arrematadas por
Arouca destacam-se as obras na Matriz de São Sebastião, na Igreja da Ordem Terceira de
São Francisco, na Casa de Câmara e Cadeia, na Casa Capitular (em sociedade com outro
importante arrematante do período João de Caldas Bacelar) e obras na Matriz do Senhor
Bom Jesus do Furquim. Arouca ainda ocupou os cargos de: juiz de ofício de pedreiro e
carpinteiro nos anos de 1762, 1772 e 1774; tesoureiro da Câmara em 1780; e arrendatário
das aferições e meias patacas no anos de 1787 e 1788. Coincidência ou não, no ano de
1780, enquanto tesoureiro da Câmara, Arouca arrematou a obra mais cara ao Senado, a
construção da nova Casa de Câmara e Cadeia (TEDESCHI, 2011: p.96-108).
Em seu testamento redigido em 1793 o arrematante, natural da freguesia de São
Bento da Vila de Arouca, Comarca do Porto – Portugal, dizia-se solteiro e sem filhos
legítimos, portanto deixava sua alma como herdeira de seus bens. Pedia para ser sepultado
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
141
com o hábito da Ordem Terceira de São Francisco de Assis, da qual era irmão indigno,
prometia esmolas aos irmãos das irmandades do Santana, arquiconfraria de São Francisco,
Nossa Senhora das Mercês, do Rosário e de São Gonçalo que acompanhassem seu
sepultamento, além deles deixava 200 oitavas de ouro como esmola para os pobres brancos
que também estivesse no momento de seu enterro.
Dos bens que possuía, Arouca dizia que possuía várias moradas de casas e dívidas a
receber. Dizia também que possuía terras minerais no Morro de Santana em sociedade com
Lizardo Coelho Martins e Manoel Jorge de Carvalho. A diversificação econômica é
característica importante naquele universo social. Além das obras arrematadas e das terras
minerais, Arouca também se dedicava as ordens militares, ele era alferes. O arrematante
declarou em seu testamento que possuía mais de 50 escravos e que deixava quartados
quatro deles: Joaquim Mina, Bernardo Mina, Thomas Mina e Sebastião Mina, com a
condição de depois de seu falecimento finalizassem as obras arrematadas por seu senhor,
conforme as condições expostas abaixo:
Depois do meu falecimento quatro anos de serviços que hão de trabalhar nas
obras em que hão de ser acabadas. E sendo os ditos quatro anos a lei para
forras aos quais meu testamenteiro lhes passará suas cartas de liberdade no caso
de lhes pedirem e lhes deixo a cada um deles sendo os quatro anos de serviço
depois de meu falecimento cinquenta mil réis de esmola cada um para seu
principio, e caso no tempo do meu falecimento eu tenha concluído as obras de
pedreiro que tenho arrematado como tão bem as de carapina, neste caso meu
testamenteiro lhes passará suas cartas de alforria, e não lhes dará a esmola acima
declarada enquanto meu testamenteiro não lhes passar suas cartas de alforria os
tratará com o necessário68.
De seus “cinquenta” escravos apenas treze foram arrolados em seu inventário,
conforme a tabela abaixo, outros onze não se apresentaram para serem avaliados por
estarem no mato tirando madeiras com vários carros de bois69.
TABELA 1: Escravos arrolados do inventário de José Pereira Arouca
Nome e origem
Idade
Especialização
Valor
João Caetano Crioulo
33 anos
Carpinteiro
160$000
João Angolla
44 anos
Carpinteiro
150$000
68
Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana- Livro de Registro de Testamento 42 – 1º oficio – 17941796.
69 Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana. Inventários Avulsos – 1º ofício, caixa 1, códice 6.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
142
Matheus [Cabunda]
45 anos
Pedreiro
140$000
Antonio Carioca
65 anos
Pedreiro
70$000
Antonio Grande
Angolla
50 anos
Serrador
160$000
Domingos Angolla
58 anos
Serrador
80$000
Miguel Angolla
Candimba
45 anos
Ferreiro
200$000
Joaquim Angolla
42 anos
“cabouqueiro”
130$000
Andre Angolla
40 anos
“cabouqueiro”
150$000
Pedro Angola
60 anos
“capineiro”
30$000
Caetano Angola
35 anos
Sem ofício
140$000
Lourenço Angola
55 anos
Sem ofício
80$000
Antonia Mulata
55 anos
Sem ofício
50$000
Valor total:
1: 540$000
Fonte: Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana. Inventários Avulsos – 1º ofício, caixa 1, códice 6.
Na tabela acima se verifica que a especialização valorizava na avaliação do escravo,
como Caetano Angola de 35 anos avaliado em 140$000 réis em comparação com Mateus
Cabunda, pedreiro 10 anos mais velho avaliado no mesmo valor.
Impressiona no inventário de Arouca a forte presença de escravos com
especialização. A respeito daquela sociedade escravocrata percebe-se que a mobilidade
social contribuiu para a criação de uma população escrava munida de desejos e direitos.
Através das análises da devassas civis encontradas no Museu da Casa do Pilar em Ouro
Preto, Marco Antônio Silveira propõe que as relações sociais vigentes para o período
guiadas pela vontade da distinção. Dentro de uma sociedade norteada por valores
patrimonialistas, “... a escravidão, embora assentada em bases institucionais, dependia em
larga escala da legitimação cotidiana expressa por meio de gestos e comportamentos
(SILVEIRA, 1997: p.124)”. Mais adiante Silveira afirma que, “as relações sociais do escravo
não se restringiam ao contato com o senhor e seu círculo; pelo contrário, sabemos que a
mobilidade permitia que elas ampliassem e definissem um campo próprio” (idem).
Ao tratar da mobilidade do escravo africano Russel-Wood destacou que cerca 341
mil escravos vieram para as minas durante o século XVIII. Para o autor, não houve em
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
143
outro lugar da colônia uma relação entre senhor e escravo marcada por tamanha fluidez. O
autor destaca ainda a aflição vivida pelo poder régio frente a essa enorme parcela da
população que vivia nas minas. De acordo com Russel-Wood, “o impacto deste súbito
fluxo de escravos na administração, na sociedade [e] na economia da região [...] levaram ao
surgimento dos libertos de ascendência africana como um setor poderoso” (RUSSELWOOD, 2005: 164). Destaca-se também o fato de alguns escravos trazerem saberes
técnicos para as minas, como os provenientes da Costa da Mina e muitos escravos
especializados como ferreiros e ourives. No contexto urbano, Russell-Wood salienta ainda,
que os escravos de ganho, para além da bateia, se envolviam em diferentes atividades como
carregar madeira e limpar roçados.
Embora não apresentado em sua totalidade pode-se perceber que o inventário e
testamento de José Pereira Arouca suscitam diversas possibilidades de análises, tais como a
relação entre o artífice e as irmandades, seu lugar na escala social, afinal o arrematante
Irmão da Ordem Terceira do Carmo e mesmo envolvido com atividades mecânicas
conseguiu certo distanciamento social. Além disso, pode-se analisar a ferramentaria e
escravaria que facilitavam suas arrematações juntamente com seus contatos, como suas
relações com a Câmara, conforme exposto. Esse artigo apresentou-se como uma análise
incipiente sobre a temática, bem como possibilitando alguns problemas sobre o assunto.
Referências:
Fontes documentais
Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana – Códices: 146, 218, 381
Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana. Inventários Avulsos – 1º ofício, caixa 1, códice
6.
Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana - Livro de Registro de Testamento 42 – 1º
oficio – 1794-1796.
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Português e Latino. In. http://www.brasiliana.usp.br/dicionario.
Acesso: 01/05/2011.
Bibliografia
BOSHI, Caio César. O Barroco Mineiro: artes e trabalho. São Paulo Brasiliense, 1988.
EUGÊNIO, Danielle de Fátima. Arrematantes de Obras Públicas: oficialato mecânico na Cidade de
Mariana. (1745-1800). Mariana: Instituto de Ciências Humanas e Sociais – UFOP. 2010.
(Monografia de conclusão de curso).
RUSSELL-WOOD, A.J.R. Escravos e libertos no Brasil Colonial. Tradução: Maria Beatriz Medina. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
SANTOS, Georgina Silva dos. Ofício e sangue: A Irmandade de S. Jorge e a Inquisição na Lisboa Moderna.
Lisboa: Edições Colibri / Instituto de Cultura Ibero-Atlântica, 2005.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
144
SILVA, Fabiano Gomes da. Pedrae cal: Os construtores em Vila Rica no século XVIII (1730-1800).
Dissertação (Mestrado em História) Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007.
SILVEIRA, Marco Antônio. O universo do indistinto. São Paulo: Hucitec, 1996.
TEDESHI, Denise Maria Ribeiro. Águas urbanas: as formas de apropriação das águas em Mariana/MG
(1745-1798).Campinas, SP: [s.n], 2011. (dissertação de mestrado).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
145
Formação militar e “amparo aos desvalidos” na Companhia de Aprendizes
Militares de Minas Gerais (1876-1891)
Felipe Osvaldo Guimarães
Mestrando em Educação pela UFMG / Bolsista CNPq-Capes
felipeoguimaraes@yahoo.com.br
Resumo: Esse estudo consiste em investigar as motivações expressas pelos organismos e
intelectuais estatais para a instalação da Companhia de Aprendizes Militares de Minas
Gerais. Criada em Ouro Preto em 1876, a companhia foi composta por crianças entre 7 e
12 anos, órfãs, pobres ou libertas pela lei do “Ventre Livre". Mantida pelo Ministério da
Guerra, a Companhia foi extinta em 1891. O estudo permite observar uma articulação
entre novas propostas de formação de recrutas e um esforço do Estado de prover
assistência às camadas pobres, afastando-as da criminalidade e do ócio, dentro das
particularidades do Exército, como saberes técnicos e um ethos próprio, baseado em valores
como a hierarquia e a disciplina. As fontes utilizadas envolvem legislação, relatórios e
correspondências governamentais, material articulado a uma discussão teórica com autores
como Norbert Elias e Pierre Rosanvallon e áreas como a História da Infância, a Educação
Militar e a História da Educação Social.
Palavras-chave: educação militar, história da educação social, assistência aos pobres
Abstracy: This study is to investigate the reasons expressed by intellectual sandstate
agencies for the installationof the Company of Military Apprentices of Minas Gerais.
Created in Ouro Preto in 1876, the company was composed of children between 7 and12
years, orphans, poor or freed by the "Ventre Livre" Law. Maintained by the Ministry
ofWar, the Company was terminated in 1891. The study allows us to observe a link
between new proposals for training of recruits and a State's effort to provide assistance to
the poor, keeping them away from crime and idleness, within the particularities of Army,
such as technical knowledge and anethos of its own,based on values such as hierarchy and
discipline. The sources used involve legislation, government reports and correspondence,
which werearticulatedwith atheoretical discussion with authors such as Norbert Elias and
Pierre Rosanvallon and areas such asthe History of Childhood, Military Education and
History of Social Education.
Keywords: military education, social history of education, assistance to the poor
Nas décadas finais do século XIX, ganhou força no Brasil o processo de
escolarização do ensino profissional a partir da iniciativa do Estado, que começa nesse
período a assumir a assistência aos “desvalidos” como uma questão importante para a
ordem social70. No campo da produção econômica, esse movimento se caracterizou pela
criação de instituições para o aperfeiçoamento agrícola, como Escolas agrícolas e Fazendas-
70
Trabalho apresentado no 1º Encontro de Pesquisa em História da UFMG, realizado em 2012 na cidade de
Belo Horizonte, e baseado no projeto e nos levantamentos iniciais da pesquisa realizada no mestrado.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
146
modelo, e manufatureiro, como os Liceus de artes e ofícios, sendo um processo motivado
pela necessidade de se melhorar a produtividade agrícola e a instalação de novas indústrias.
Outra modalidade de formação profissional, a militar, também esteve inserida nesse
processo, com a criação dos Depósitos de Aprendizes Artilheiros e das Companhias de
Aprendizes Artífices em várias províncias do país, para a formação de recrutas ou oficiais
inferiores e a fabricação de armamentos e materiais para suprimento do Exército,
respectivamente.
Nesse contexto, o Ministério da Guerra determina, em 1874, a criação de
Companhias de Aprendizes Militares nas províncias onde não houvesse Arsenais de
Guerra, a começar por Minas Gerais e Goiás, sendo instaladas as ditas companhias nas
capitais de ambas as províncias em 1876.
Essas iniciativas reportam a uma dupla série de motivações que se articulam nesse
período. A primeira delas diz respeito a uma preocupação assistencialista, no sentido do
Estado prover aos cidadãos “desvalidos da fortuna”, em especial as crianças e jovens,
meios que assegurem sua subsistência, formando cidadãos “úteis a si mesmos e à pátria”,
afastados dos perigos da criminalidade e do ócio.
Ilustra essa motivação a descrição, no regulamento da Companhia, do público para
o qual esta é criada: “órfãos, desvalidos, abandonados ou sem amparo da família, filhos dos
praças do Exército ou da Armada, filhos de pessoas indigentes e ingênuos de que trata a
Lei do Ventre Livre de 1871 e na falta de todos esses, com quaisquer outros menores
apresentados pelos pais, que provem o estado de indigência” 71.
A outra motivação presente nos discursos que as elites políticas do período emitiam
pauta-se pela necessidade de modernização econômica, através da formação, nas
instituições de ensino profissional, de trabalhadores que dominassem técnicas e métodos
mais produtivos no campo e nas manufaturas.
Essa temática também aparece no Exército, mas com as especificidades próprias da
formação militar brasileira. Especialmente após o esforço de reorganização do Exército
durante a Guerra do Paraguai, entre 1865 e 1870, a formação dos soldados tornou-se um
tema recorrente de debate no interior da organização. Inspirando-se no modelo dos
exércitos europeus, evidenciou-se a importância do ensino aos soldados de aspectos
técnicos como o manuseio dos armamentos modernos e a aplicação dos princípios táticos e
estratégicos. Mas, além disso, essa perspectiva educacional advoga a formação de um esprit
71
Decreto Imperial nº. 6304 de 12 de setembro de 1876, capítulo III, artigo 31.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
147
de corps, forjando a identidade de uma organização com abrangência nacional, baseada nos
princípios da hierarquia e da disciplina.
A própria estrutura da companhia, definida em seu regulamento, ilustra esse
propósito, contratando professores para ministrar conhecimentos julgados importantes
para a formação dos jovens, como as primeiras letras, música, ginástica, natação e ensino
religioso, além, é claro, da instrução militar propriamente dita.
O Ministério da Guerra e a Presidência da Província dividiam o custeio da
instituição, que tinha capacidade para 40 alunos - composição raramente mantida, o que
motivou o governo a requisitar aos juízes de órfãos o encaminhamento de crianças para a
instituição. Os alunos recebiam alojamento, fardas e um auxílio financeiro, sendo
transferidos para os corpos de infantaria ao completar os 14 anos e serem aprovados nos
exames. Também era permitida a continuação dos estudos na Escola Militar ao aluno que
melhor se saísse nos exames.
Diante do quadro apresentado, evidenciam-se alguns problemas de pesquisa. Em
que medida a criação da Companhia de Aprendizes Militares se insere em um quadro mais
amplo de propostas de “amparo aos desvalidos”, assumido pelo Estado? Como essa
inserção se relaciona com a importância, do ponto de vista estritamente militar, atribuída à
formação “metódica” de recrutas? A percepção dessas motivações é a mesma entre
Ministério da Guerra e Presidência da Província? O que as elites e o Estado do século XIX
concebiam como “assistência” a crianças e jovens pobres, órfãos ou filhos de escravos?
Quais são as especificidades de um estabelecimento de ensino militar para esse público?
Por que houve a extinção da Companhia, exatamente no período em que os militares
estavam no poder?
A pesquisa em curso procura responder a essas perguntas, confrontando as fontes
primárias com os referenciais teóricos. Estes são provenientes de autores que abordaram a
questão da marginalidade e da ação do Estado no sentido de se combater esse fenômeno,
inclusive através da educação.
Na obra “Os Estabelecidos e os Outsiders”, de Norbert Elias (2000), um dos
aspectos abordados pelo autor é o da elaboração, pelo primeiro grupo, de um estigma sob
o segundo. Os oustsiders são caracterizados por sua anomia, sendo “vistos pelo grupo
estabelecido como indignos de confiança, indisciplinados e desordeiros” (ELIAS, 2000, p.
27).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
148
Ainda segundo o autor, no caso especifico das crianças membros de grupos
outsiders, esse estigma pode resultar inclusive em déficits intelectuais e afetivos, o que pode
ser pensado no contexto brasileiro também em termos de sua origem pobre, órfã,
abandonada ou negra. Assim, os investimentos em instrução militar e de ofícios poderiam
ser pensados pelo Estado como uma tentativa de prevenção desse quadro de anomia entre
os desvalidos, dentro da ótica de grupos estabelecidos da formação de cidadãos “úteis a si e
à pátria”.
Outra perspectiva importante para a pesquisa é a da chamada História da Educação
Social, que não se confunde com uma História Social da Educação, uma vez que o que se
está priorizando não é a abordagem teórica da história, mas o objeto de investigação.
Entretanto, isso não excluir a possibilidade de emprego da História Social, haja vista as
discussões deste campo teórico acerca da marginalidade e da pobreza.
Julio Ruiz Berrio define a História da Educação Social como uma “história dos
processos educativos destinados a equilibrar, superar ou prevenir duas categorias
fundamentais: a marginalização e a exclusão, especialmente na infância e na juventude,
através dos tempos” (BERRIO, 1999, p. 7). A expansão da autoridade do Estado, a maior
complexidade das sociedades industriais e a mudança da concepção de infância no século
XIX se articulariam na gestação dessa educação social, voltada para um público específico e
desenvolvida de forma paralela aos esforços de expansão da educação formal. Dessa forma,
discutem-se os propósitos e o papel formador das instituições voltadas para a educação
profissional e militar de jovens e crianças desamparados.
Essa perspectiva demonstra uma mudança na própria organização do Estado, como
é investigado por Pierre Rosanvallon (1997). De acordo com este autor, o Estado moderno
definiu-se enquanto um Estado-protetor, defendendo os direitos básicos, como a segurança
e a propriedade, dos indivíduos. A partir do século XIX, o Estado-protetor estende-se e
aprofunda-se na forma de um Estado-providência, no qual uma das transformações mais
importantes é a substituição da incerteza da providência religiosa pela certeza da
providência estatal. Assim, o autor afirma que “ele [o Estado] se dá por tarefa resgatar hic et
nunc as desigualdades de ‘natureza’ ou os infortúnios da sorte” (ROSANVALLON, 1997,
p.22). Assim, a perspectiva deste autor acerca do Estado-providência oferece uma
ferramenta de compreensão das iniciativas de educação voltadas para os jovens e crianças
marginalizados.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
149
Por ser um tema ainda pouco estudado, a educação militar para crianças
marginalizadas exige a articulação entre obras com variados objetos de estudo para que se
estabeleça um quadro de análise da pesquisa. Destacam-se três perspectivas de diálogo com
a bibliografia: a da formação militar, a da educação voltada para a infância pobre e a que
aborda especificamente a companhia mineira.
Sobre a questão da formação militar propriamente dita, destoando de uma tradição
historiográfica que caracteriza o Exército imperial como um agente social pouco relevante
no século XIX, Cláudia Alves (2002b) apresenta o mesmo como um campo de debates não
só sobre aspectos próprios da defesa nacional, mas também da organização social e
educacional brasileira. Enquanto uma instituição também educadora, o Exército criou e
manteve, entre outras organizações, estabelecimentos para a instrução militar das crianças e
jovens, como o Companhia de Aprendizes Militares.
Sobre essa instituição, e outras de caráter parecido, como os Depósitos de
Aprendizes Artífices, a autora destaca como a profissionalização do Exército e sua posição
desprivilegiada no organismo imperial acarretou a geração de um campo específico de
ensino militar, com um modelo baseado em estabelecimentos similares existentes na
Europa, mas com necessidades e clientela inseridas nas especificidades sociais brasileiras do
século XIX (ALVES, 2002b).
Estudando a constituição do exército enquanto uma instituição mais influente na
política a partir do final do século XIX, inclusive com intervenções diretas, John Schulz
(1994) destaca as mudanças da composição social dos oficiais da corporação e a produção
de um conjunto de metas políticas muitas vezes divergentes dos objetivos de setores da
elite. O autor ressalta que “a educação militar expandiu-se de maneira significativa e a
promoção por tempo de serviço tornou-se a regra geral (...). Em consequência, a
oficialidade emergiu como uma força profissional coesa, na qual o progresso dependia do
talento” (SCHULZ, 1994, p. 13).
Já Fábio Faria Mendes (2010) destaca, ao analisar os complexos elementos
relacionados ao recrutamento militar durante o período imperial, que a rígida disciplina, os
castigos físicos e o duro cotidiano de trabalhos criaram uma imagem negativa em relação ao
serviço militar. Ele destaca também como as extremas dificuldades de recrutamento
durante a Guerra do Paraguai levaram os reformistas militares a propor formas menos
forçadas de composição dos efetivos. Isso se manifestou nas mudanças da organização
militar em 1874, com a lei do sorteio (e sua tentativa fracassada de aplicá-la) e a abolição
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
150
dos castigos corporais. A criação das Companhias de Aprendizes Militares, exatamente
nesse contexto, pode ter sido pensada nesse sentido.
Abordando a temática da infância abandonada, destaca-se a obra de Maria Luiza
Marcílio (2006). A autora destaca três grandes fases na história da proteção às crianças
abandonadas ou pobres: a caritativa até o século XVIII, a filantrópica desse século ao início
do XX e, a partir daí, a fase do Estado do Bem-Estar Social. No Brasil, a passagem entre a
primeira e a segunda fase ocorreu no século XIX, com uma lenta transformação de um
padrão de assistência baseado em princípios religiosos de caridade a uma ação laica de
indivíduos ou grupos particulares, eventualmente com o apoio do Estado. É importante
problematizar essa divisão em fases, haja vista a interpenetração entre as práticas desses
modelos assistenciais, além da importância de se diferenciar as concepções de assistência
do Estado no século XIX em relação às do século XX, sob o risco de ser incorrer em um
anacronismo baseado no uso de premissas atuais de assistência para analisar aquele
período.
A autora destaca que o pensamento filantrópico visava preparar a criança desvalida
para o mundo do trabalho, mantendo a ordem social e prevenindo males como o ócio e a
criminalidade. Ao tratar das iniciativas militares de assistência (curiosamente, inseridas na
fase caritativa, e não na filantrópica), Marcílio enfatiza mais a rígida disciplina e o uso de
castigos físicos nos estabelecimentos criados durante o Império do que suas características
particulares.
Sabina Loriga (1996) pesquisou as transformações e as nuances do ofício militar
para os jovens, destacando a formação de um perfil ideal de soldado para os grandes
exércitos nacionais surgidos a partir da Revolução Francesa: jovem, másculo, treinado no
uso de armamentos modernos e imbuído de valores nacionais. Sobre o ensino militar de
crianças desvalidas, a autora explica que desde o final do século XVIII esse ramo da
formação bélica ganhava força, na expectativa de que os órfãos, abandonados, bastardos e,
sobretudo, os filhos dos soldados “demonstrassem acentuadas inclinações marciais”
(LORIGA, 1996, p. 24).
Sobre a própria companhia mineira, as referências são escassas e episódicas, não
tomando a instituição como objeto de estudo mais sistemático. Em um pequeno capítulo
da obra memorialística Ouro Prêto, Henrique Cabral (1969) comenta brevemente sobre a
localização da instituição em Ouro Preto, alguns de seus funcionários e enaltece o
estabelecimento de “espírito elevado” que “além de proteger o desamparado, ensinava-lhe
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
151
um ofício e dava-lhe instrução, afastando, por conseguinte, do ócio e do vício” (CABRAL,
1969, p. 154).
Na dissertação de Lucílio Silva (2009), o autor descreve, também de forma muito
breve, a companhia mineira, evidenciada como um exemplo de implementação do ensino
profissional, inserido em uma lógica de controle e tutela dos aprendizes dessas instituições.
Entretanto, ele não se aprofunda nas especificidades militares dessa iniciativa, sendo a
companhia abordada de forma indistinta em relação aos outros estabelecimentos de ensino
profissional criados em Minas Gerais no século XIX.
Por fim, analisemos a documentação a partir da qual se elaborou a pesquisa, que
abarca leis, regulamentos, correspondências e relatórios oficiais e artigos jornalísticos. À
exceção destes, os conjuntos de fontes são de caráter oficial, o que limita a execução de um
estudo aprofundado da recepção de regras e diretrizes entre alunos e professores da
companhia.
Além disso, como alerta o historiador Jacques Le Goff, a percepção do documento
enquanto monumento é importante para se compreender o esforço de alguns grupos para
impor ao futuro determinada imagem de si próprios (LE GOFF, 1984). No caso desse
estudo sobre a Companhia, essa problematização é particularmente vital ao se estudar as
fontes oficiais escritas, que exigem uma leitura atenta para que se compreenda esses
discursos como produtores de uma memória selecionada da instituição, muitas vezes
silenciando sobre a ação de atores como professores e alunos.
Por outro lado, como é destacado por Luciano Faria Filho (1998), esse tipo de
fonte, especialmente a legislação escolar, nos permite refletir sobre o ordenamento do
processo pedagógico e o emaranhado de práticas e representações que constituem o “em
torno” dessas leis, regulamentos e relatórios, influenciando sua concepção e aplicação no
interior dos estabelecimentos de ensino.
A legislação que deu origem à companhia é composta pelas leis 2530 e 2556, ambas
de 1874, e os decretos 6205 e 6304, ambos de 1876. No caso das leis, os parágrafos dos
artigos 2º e 7º, respectivamente, autorizam o governo a criar as companhias. Nos dois
casos, as leis referem-se à questão do recrutamento e fixação de forças, dentro de um
quadro de reforma do alistamento de 1874, o que exige uma reflexão sobre o porquê do
estabelecimento dessas companhias nesse período. O decreto 6304, que é o regulamento da
companhia, além de informar o público para o qual a companhia foi criada, como foi
destacado acima, descreve as funções de cada cargo, os conteúdos das disciplinas,
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
152
alojamento, auxílio financeiro aos alunos e os procedimentos de exame dos aprendizes, o
que oferece um quadro claro das expectativas relacionadas à instituição.
Os Relatórios do Ministério da Guerra e os Relatórios dos Presidentes da Província
de Minas Gerais, documentos anuais pesquisados no período entre 1876 e 1891,
constituem fontes importantes, pois permitem observar as apreciações das autoridades
acerca do funcionamento da companhia. No caso dos relatórios ministeriais, a ênfase recai
sobre questões na contagem anual do número de alunos e o estado geral da companhia. Já
os Presidentes de Província abordam em seus relatórios aspectos mais específicos e
pragmáticos, como a necessidade de se suprir cargos vagos e as condições, em geral ruins,
das instalações físicas da companhia.
A análise da documentação diretamente relativa à companhia se encontra no
Arquivo Público Mineiro, em especial no fundo Secretaria de Governo. Nas séries Força
Pública e alistamento e Avisos do Ministério da Guerra há capítulos nos cadernos de
correspondências expedidas pelo governo referentes à companhia, informando, por
exemplo, sobre nomeações de professores ou suprimento de objetos, mas que em geral
apenas repetem as determinações legais.
Na pesquisa de matérias publicadas em jornais da cidade de Ouro Preto, um
exemplo da presença de informações relativas à companhia é uma pequena matéria do
Diário de Minas relativa à abertura da mesma (curiosamente chamada pelo jornal de “Escola
militar de menores artífices”), destacando as autoridades presentes à abertura do “asilo
oficial aos deserdados da fortuna”.72
Portanto, este estudo apresenta-se como uma oportunidade de se discutir em que
medida havia ou não uma mudança nas propostas de assistência aos pobres no Brasil, e em
especial em Minas Gerais no final do século XIX. Além disso, a pesquisa contribui para a
compreensão das influências, entre crianças e jovens marginalizados, de um projeto de
formação militar específico para esse grupo, pensado pela intelectualidade do Exército e
assentado em um ethos que enfatiza valores como a disciplina e a hierarquia.
Bibliografia:
ALVES, Cláudia Maria Costa. A visão militar da educação no Império. In: GONDRA, José. Dos
arquivos a escrita da historia: a educação brasileira entre o Império e a República. 2 ed.
Bragança Paulista: Universidade São Francisco, 2002a. p.147-164.
72Diário
de Minas. Edição 751, 28 de novembro de 1876.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
153
______. Cultura e política no século XIX: o exército como campo de constituição de
sujeitos políticos no Império. Bragança Paulista: EDUSF, 2002b.
BERRIO, Julio Ruiz. Introducción a la Historia de la Educación Social en España. In.: Historia de
la Educación: Revista Interuniversitaria. Nº 18. Ediciones Universidad de Salamanca, 1999.
BOTELHO, Jorge Florentino. A formação do trabalhador do campo em Minas Gerais - o
Instituto Agronômico de Itabira (1880-1898). Belo Horizonte: Centro Federal de Educação
Tecnológica, 2009. Dissertação de Mestrado.
CABRAL, Henrique Barbosa da Silva. Ouro Prêto. Belo Horizonte: (?), 1969. p. 153 e 154
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Brasília, DF:
Editora Universidade de Brasília, 1981. p. 171-180.
CLAUSEWITZ, Carl von. Da guerra. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
COSTA, Wilma Peres. A espada de Dâmocles: o exército, a guerra do Paraguai e a crise do
império. São Paulo: Hucitec; [Campinas, SP]: Ed. da UNICAMP, 1996
CUNHA, Luiz Antônio. O ensino de ofícios artesanais e manufatureiros no Brasil
escravocrata. São Paulo: UNESP, 2000a.
______. O ensino de ofícios nos primórdios da industrialização. São Paulo: UNESP, 2000b.
ELIAS, Norbert; SCOTSON, John.Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de
poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
FARIA FILHO, Luciano Mendes de. A legislação escolar como fonte para a História da Educação:
uma tentativa de interpretação. In: FARIA FILHO, Luciano Mendes de(org.). Educação,
Modernidade e Civilização. Estudos e perspectivas de análises para a história da educação
oitocentista. Belo Horizonte: Autêntica, 1998. p. 90-125
FERRER, Francisca Carla Santos. A (re) organização do Exército Brasileiro na Guerra do
Paraguai. Biblos, Rio Grande, 17: 121-130, 2005.
FONSECA, Celso Suckow. História do ensino industrial no Brasil. Rio de Janeiro, 1961. V.2. p.
150-190
KEEGAN, John. Uma história da guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, 1984.
LOPES, Eliane Marta Santos Teixeira; FARIA FILHO, Luciano Mendes de; VEIGA, Cynthia
Greive. 500 anos de educação no Brasil. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
LORIGA, Sabina. A experiência militar. In LEVI, Giovanni; SCHMITT, Jean- Claude (Orgs.).
História dos Jovens. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. (vol. 2)
MACHADO, Lucília Regina de Souza. Educação e divisão social do trabalho. São Paulo:
Autores Associados: Cortez, 1989. p. 22-32.
MAGNOLI, Demétrio. História das guerras. São Paulo: Contexto, 2006.
MANFREDI, Sílvia Maria. Educação Profissional no Brasil. São Paulo: Cortez, 2002.
MARCÍLIO, Maria Luiza. História social da criança abandonada. São Paulo: HUCITEC, 1998.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
154
MENDES, Fábio Faria. Recrutamento militar e construção do estado no Brasil imperial. Belo
Horizonte: Argvmentvm, 2010.
MOTTA, Jeovah. Formação do oficial do exército: currículos e regimes na Academia Militar
(1810-1944). Rio de Janeiro: Cia. Brasileira de Artes Gráficas, 1976.
NASCIMENTO. Adalson de Oliveira. Exercícios físico-militares em escolas civis brasileiras e
portuguesas na passagem do século XIX para o XX. Belo Horizonte: Universidade Federal de
Minas Gerais, 2009. Tese de Doutorado.
ROSANVALLON, Pierre. A crise do Estado-providência. Goiânia: Editora da UFG; Brasília:
Editora da UNB, 1997.
SCHULZ, John. O exército na política: origens da intervenção militar – 1850/1894. São Paulo:
EDUSP, 1994.
______. O Exército e o Império. In: HOLLANDA, S. B. (org.). História geral da civilização
brasileira. T. II: O Brasil monárquico. V. 4. São Paulo: Difel. 1971.
SEIDL, Ernesto. 2005. A construção de uma ordem: o Exército brasileiro e o nascimento da
"meritocracia" (1850-1930). Ciência & Letras, Porto Alegre, n. 37, p. 107-137, jan.-jun
SODRÉ, Nélson Werneck. História militar do Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
SILVA, Lucílio Luís. Educação e trabalho para o progresso da nação - o Liceu de Artes e
Ofícios de Ouro Preto (1886-1946). Belo Horizonte: Centro Federal de Educação Tecnológica,
2009. Dissertação de Mestrado.
VENÂNCIO, Renato Pinto. Os aprendizes da guerra. In: DEL PRIORI, Mary. História das
crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2000.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
155
Uma proposta comparativista no estudo da apropriação do Ideário Liberal durante
o II Reinado (1831-1842/ 1871-1888)
Glauber Miranda Florindo
Mestrando em História Comparada pela UFRJ
gmfhis@gmail.com
Resumo: Neste trabalho faremos uma breve exposição acerca da apropriação do
liberalismo na política oitocentista. Proporemos uma abordagem na qual se estabeleça uma
comparação sistemática do mesmo espaço em temporalidades diferentes, assim,
chamaremos a atenção para a possibilidade de se problematizar a apropriação do “ideário
liberal” pela elite política no decorrer do II Reinado.
Palavras-Chaves: Ideário Liberal, Apropriação de Ideias, II Reinado.
Abstract: In this work we will make a brief exposition about the appropriation of political
liberalism in the nineteenth century. It is proposed an approach to establish a systematic
comparison of the same space in different times, thereby, we will call attention to the
possibility of analyzing the appropriation of the "liberal ideology" by the political elite
during the Second Brazilian Reign.
Keywords: Liberal Ideals, Appropriation of Ideas, Second Brazilian Reign.
A construção do estado brasileiro no decorrer do II Reinado seria permeada de
contradições e ambiguidades: da necessidade de reformas derivaria a necessidade de um
Estado centralizado para fazê-las. Ao mesmo tempo em que se demandaria um menor
controle sobre a economia e uma menor centralização, haveria a necessidade de um Estado
forte para resolver questões como a da escravidão (CARVALHO, José Murilo de. 2008:
234).
Grosso modo, podemos entender a questão da seguinte forma: embora a elite
imperial do Brasil fizesse uso de teorias liberais advindas de correntes europeias e norteamericanas e as usasse como exemplos diante de questões políticas, o embate com o
contexto brasileiro produziria paradoxos. Exemplo disso seria o processo abolicionista,
pois, embora ele fosse produto de inúmeros fatores – resultado da causa abolicionista
somada ao repúdio internacional em relação à escravatura, ao declínio gradual das relações
econômicas e sociais após 1850, ao comércio interprovincial de escravos, às influências da
abolição no EUA e a resistência dos escravos (C.f. CONRAD, Robert Edgar.1978). A
abolição fez parte de um projeto, em sentido lato, de reforma do Estado.Nesse sentido, a
abolição, pode ser entendida como uma série de politicas públicas, assim, tem-se a imagem
de um Estado que paradoxalmente cerceou o trabalho escravo até seu fim, estando
alicerçado sobre uma economia que dependia da mão-de-obra escrava, e uma sociedade
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
156
(produtores rurais, comerciantes) que demandaria e contribuiria à construção de um Estado
forte para cuidar de seus vários interesses, dentre os quais, a manutenção da escravidão
(CARVALHO. 2008: 293).
Posto isso, definimos como problemática de nossa pesquisa a questão: como a elite
politica imperial se articulou no decorrer do Segundo Reinado para construir um Estado
forte e dele deliberar acerca de reformas tal qual a abolição? Podemos considerar a
influência de um ideário liberal como justificativa para o processo de centralização do
Estado, assim como justificativa para a empreitada abolicionista? Obviamente que não
podemos pensar o Segundo Reinado com um todo homogêneo. Cada questão posta pela
elite imperial tinhasuas próprias especificidades, mas como a elite lidava com elas? Como
comparava as questões brasileiras com a de outros países? Como se apropriavam de
produções teóricas e políticas formuladas em outros contextos? E por fim, como
adequavam tais produções aos contextos do Brasil Imperial?
Pretendemos analisar as discussões legislativas acerca da estruturação do Estado,
comparando-as com as discussões das propostas de leis que resultaram no processo de
abolição da escravidão. Para tanto consideraremos dois períodos distintos: o primeiro vai
de 1831 a 1842, em que ocorre a promulgação da lei que estabelece o Código de Processo
Criminal (1831), passando pelo Ato Adicional de 1834 até a lei que o interpreta em 1840 e a
Lei de Reforma do Código de Processo Criminal (1842); o segundo período vai de 1871 até
1888, período em que se promulgam a Lei do Ventre Livre (1871), 1885 - Lei dos
Sexagenários, até 1888 quando é promulgada a Abolição. Nosso intento será entender sob
quais justificativas teóricas tais deliberações foram aprovadas, observaremos mais
atentamente as justificativas embasadas em teorias de cunho liberal, por serem mais
exploradas pela historiografia.
Buscamos em nossa comparação, diferenças na forma como dada ideia seria
apropriada pela elite imperial nos embates legislativos de cada período estudado, em outras
palavras, tentaremos apreender sentido da justificativa dos agentes no emprego de dado
embasamento teórico, tendo por vista, sempre, a relação com o contexto no qual ele estaria
sendo empregado. Partimos do pressuposto denominado por Angela Alonso como
“truísmo sociológico” em que “formas de pensar estão imersas em práticas e redes sociais”
(ALONSO, Angela. 2002: 38).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
157
Propomos pensar uma amalgama de teorias apropriadas pela elite política para “dar
cabo” das questões que iriam surgindo. Pretendemos demonstrar ao longo da pesquisa o
equívoco de se pensar as apropriações teóricas descoladas de uma realidade de ação.
Utilizaremos noções básicas de abordagem trabalhadas por Angela Alonso. A autora
chama atenção, primeiramente, para cuidados a serem tomados, a começar por não
restringir os atores estudados a grupos sociais, instituições, ou associações sob o risco de
vincular as ideias por eles produzidas a rótulos superficiais que não condizem com a
significação do produzido (ALONSO, Angela. 2000: 38-40).
Outra questão a ser levada em conta, é a relação entre contextos diferentes que é
dinâmica, não existindo no uso da ideia características imitativas, o que há, é um repertório
que abarca tanto a ideia apropriada quanto a tradição nacional. A apropriação é sempre
seletiva, passível de modificação e supressão (ALONSO. 2000: 41).
Sublinhados tais cuidados, passamos agora a explicitar as opções metodológicas
propostas pela autora. Quando se trata da compreensão da forma como dadas ideias foram
apropriadas ou produzidas por um autor ou um grupo de autores, é necessário perceber
que “formas de pensar estão imersas em práticas e redes sociais” (ALONSO. 2000: 41).
Desse modo “dada a indistinção de campos no Império, uma manifestação intelectual era
imediatamente política. Por isso, a própria dinâmica política – a performance política de
agentes e argumentos, e não as ‘teorias’ ou os ‘intelectuais’ – oferece a melhor perspectiva
de análise” (ALONSO. 2000: 41).
Segundo Alonso, tal opção metodológica possibilita observar de forma clara a
atividade dos agentes políticos brasileiros, permitindo identificar complementaridades entre
suas ideias e as consequentes formas de ação (ALONSO. 2000: 41).
Era comum durante o Império o uso de teorias estrangeiras como “armas retóricas”
de combate, tendo isso em conta, o problema que se desenha é “como capacidades
culturais criadas em um contexto histórico são reapropriadas e alteradas em novas
circunstâncias” (ALONSO. 2000: 41). Diante disso, três “chaves de leitura” são propostas
para a possibilidade de compreensão destas questões.
O primeiro é a estrutura de oportunidades políticas: consiste na oportunidade gerada por
algum fator que acaba permitindo a inserção de novas ideias e propostas diferentes das até
então instituídas (ALONSO. 2000: 42-43). O segundo é a comunidade de experiência: diz
respeito a fatores que fazem com que dado grupo se aglutine em torno de problemas ou
circunstâncias comuns (ALONSO. 2000: 44). O Terceiro e último é o repertório: são “caixas
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
158
de ferramentas”, ideias, conceitos e teorias que, de acordo com a demanda da situação, são
utilizadas tanto para a compreensão como para a definição das linhas de ação (ALONSO.
2000: 46).
No que diz respeito à história comparada, nossa pesquisa parte da possibilidade de se
empreender uma análise comparativista “em uma mesma realidade nacional em duas fases
temporais de imediata sucessão” (BARROS, José D’Assunção. 2007: 12). Levamos em
consideração os critérios destacados pelo professor José D’Assunção Barros. Intentaremos
uma “abordagem comparatista diferenciadora”, segundo o autor tal abordagem “trata-se de
submeter os diversos casos que estão sendo examinados a um certo conjunto de variáveis –
alguns questionamentos que são escolhidos para efetuar as comparações – de modo a tirar
conclusões sobre os diferenciais de cada caso” (BARROS. 2007: 12).
Tendo em consideração que uma perspectiva comparada é uma análise interativa
entre dois recortes (BARROS. 2007: 24), se faz indispensável definir uma “escala de
inserção”, ou seja, uma definição dos limites do recorte escolhido (BARROS. 2007: 24).
Enfim, em nossa pesquisa buscaremos compreender as diferenças na transposição e
apropriação do ideário liberal frente às demandas de dois períodos distintos: o de formação
do Estado e o do fim do trabalho escravo. Nosso recorte compreende o mesmo espaço em
temporalidades distintas, permeadas pela adequação de uma ideia comum (o ideário liberal)
formando assim um campo duplo de observação e consequentemente permitindo uma
análise comparativa.
Utilizaremos como fontes para o desenvolvimento desta pesquisa, discussões,
opiniões, juízos de valor, dentre outros pareceres sobre o processo de estruturação do
Estado ocorrido na primeira metade do XIX, assim como acerca do processo de Abolição
ocorrido a partir da década de 1860. Isso significa analisar uma gama ampla de discursos
veiculados na Câmara dos Deputados, no Senado Imperial, na imprensa, em panfletos de
associações e clubes e em livros publicados. Acreditamos que através das análises dessas
produções conseguiremos elaborar algumas conclusões sobre as questões postas pela
problemática da nossa pesquisa
Faremos uso de um amplo e diversificado número de documentos, embora o
enfoque, como dito anteriormente será a análise das discussões legislativas. Portanto
dividimos as fontes em dois conjuntos gerais: Documentos do governo – Relatórios do
Ministério da Justiça, da Agricultura e do Império e Anais da Câmara e do Senado.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
159
Documentos da elite intelectual/política – livros, panfletos, manifestos e outras
publicações.
É importante ressaltar que tais fontes existem para ambos os períodos estudados.
Optamos por separar nosso corpus documental nas categorias acima mencionadas, por
levarmos em conta os espaços de produção de cada documentação: os documentos como
anais e relatórios são produções governamentais em que consta o exercício prático de dado
agente no cargo a ele atribuído, enquanto que os documentos produzidos em outros
espaços são por nós entendidos como produções individuais ou de grupo, mas
complementares aos embates políticos do Estado. Ainda se faz necessário deixar claro que
consideramos para os períodos estudados “a inexistência de um campo intelectual
autônomo no século XIX brasileiro, toda manifestação intelectual era imediatamente um
evento político” (ALONSO. 2002: 38).
Por fim, tendo em vista que efetuaremos, sobretudo, uma análise discursiva, e que,
procuraremos perceber a “rede de dialogicidade” que há entre as fontes, tanto nos
Documentos do governo. Quanto nos Documentos da elite intelectual/política.
Consideramos tais documentos como “fontes dialógicas”, isto é, “aquelas que envolvem,
ou circunscrevem dentro de si, vozes sociais diversas” (BARROS. 2010: 12). Desse modo a
intencionalidade voluntária ou involuntária é de igual modo importante para nossa análise
já que “há vários outros tipos de ‘fontes dialógicas’. Existem inclusive as fontes de
‘dialogismo implícito’, aquelas que dão voz a indivíduos ou grupos sociais pelas suas
margens, pelos seus contracantos, ou mesmo através dos seus silêncios e exclusões”
(BARROS. 2010: 14).
Acerca da historiografia: Sérgio Adorno argumenta que o liberalismo serviu de base
ideológica para a superação do estatuto colonial (ADORNO, Sérgio. 1988: 45). No
momento pré-independência a sociedade brasileira teria atribuído aos princípios liberais um
sentido predominantemente anti-metropolitano (ADORNO. 1988: 33), pois a elite
proprietária de terras, embora concebesse o ideário liberal como sinônimo de progresso,
modernidade e civilização, não traria à baila a abolição. O projeto político nacional, por eles
proposto, não interferiria na manutenção da propriedade escrava (ADORNO. 1988: 34).
Desse modo, Adorno procura demonstrar a permanência dessa forma de
compreensão paradoxal do ideário liberal que teria acompanhado a vida social de politica
da sociedade brasileira no decorrer o século XIX durante o processo de formação do
Estado Nacional (ADORNO. 1988: 34).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
160
Segundo Maria Odila Leite da Silva Dias o ideário liberal no Brasil não surgiu de um
programa modernizador das forças sociais, pois teria sido difundido por uma minoria
ilustrada que, influenciada pelo despotismo ilustrado no século XVIII, buscaria modernizar
e estruturar o arcabouço político e administrativo do Brasil sem que para isso colocasse em
risco a continuidade social e econômica advinda da sociedade colonial (DIAS, Maria Odila
Leite da Silva. 2009: 129).
Sob este aspecto a autora defende que as reformas, consideradas liberais, duranteo
período da Regência, de modo algum teriam como objetivo ampliar para outras classes a
participação politica. Baseados nas instituições americanas, setores novos das classes
dominantes buscariam apenas ampliar a própria participação política (DIAS. 2009: 142).
A historiografia quando trata da influência do liberalismo no período que
compreende a independência até meados da década de 1840, concorda que o ideário liberal
transposto para a realidade brasileira só se aplicaria a elite imperial que faria uso deste
artificio para ampliar seus poderes. O liberalismo no contexto brasileiro não teria nada a
ver com direitos civis ou com o fim da escravidão. Isso, pelo menos, até a segunda metade
do século XIX, pois o processo abolicionista forçaria uma revisão da apropriação do
ideário liberal no Brasil.
Célia Maria Marinho de Azevedo chama a atenção para a diferente forma como foi
conquistada a independência nos dois países: no Brasil houve um acordo “pacífico” que
derrotou a possibilidade de um republicanismo enquanto nos Estados Unidos houve a
experiência de uma revolução, ou seja, a derrota do republicanismo no Brasil teria feito o
abolicionismo se desenvolver de forma específica no que diz respeito pensar a identidade
nacional e a cidadania se comparado com o caso norte americano (C.f. AZEVEDO, Célia
Maria Marinho. 2003).
Segundo Robert Conrad, somente na década de 1860 é que o movimento
emancipacionista tomaria forma significante, o que viria a resultar na Lei do Ventre Livre
de 1871 e daria folego para as restantes leis abolicionistas. Abolição era considerada
impossível de se efetuar devido às características econômicas brasileiras, porém, já não se
poderia ignorar o assunto que assolava o restante do mundo (CONRAD, Robert. 1978:
88).
O conflito militar dos Estados Unidos teria, segundo o autor, enfraquecido a
escravatura brasileira, pois o fim da escravidão após a Revolução de1776 fez com que
muitos defensores da causa escravocrata no Brasil perdessem seus argumentos baseados na
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
161
não mais existente escravidão norte-americana. As novas condições mundiais e o
consequente atraso do Brasil teria despertado a atenção do Imperador que procurou zelar
pela boa imagem do Brasil frente à comunidade mundial (CONRAD, Robert. 1978: 89).
No entanto, afirma Conrad, “o Imperador preocupado com assuntos do Estado e
problemas estrangeiros, ousara fazer valer sua autoridade em desafio aos interesses das
classes dos fazendeiros” (CONRAD, Robert. 1978: 98). O autor afirma que muito
provavelmente, desde a década de 1840 não se teria uma crise política que fosse contra as
intenções do Império, porém as novas influências “obrigaram” a sociedade a conceber o
liberalismo de uma forma nova não permitindo mais a instituição escrava (CONRAD,
Robert. 1978: 103).
Embora os autores considerem as influências do liberalismo que corria o mundo, as
pressões de caráter político-econômico da Europa e dos Estados Unidos e a tomada de
consciência da população brasileira como determinantes no processo de abolição da
escravatura, a forma como isso ocorreu ainda nos parece um campo fértil de estudo, ainda
nos falta uma explicação para o fato ambíguo que se sucedeu no decorrer do Império,
permitindo sob as apropriações de ideias liberais a formação de um Estado forte em prol
da proteção das oligarquias tradicionais. E em seguida, a empreitada desse mesmo Estado
contra um dos pilares das oligarquias: a escravidão. É sobre essa questão que nossa
pesquisa pretende se assentar, propor perguntas e elaborar algumas conclusões.
Bibliografia:
ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder: o bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1988.
ALONSO, Angela. Crítica e contestação: o movimento reformista da geração 1870. In: Revista Brasileira de.
Ciências Sociais. Vol. 15, n. 44, out. 2000.
ALONSO, Angela. Ideias em movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e
Terra, 2002.
AZEVEDO, Célia Maria Marinho. Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, Uma história comparada (século
XIX). São Paulo: Editora Annablume, 2003.
BARROS, José D’Assunção. História Comparada: um novo modo de ver e fazer a História. Revista
de História Comparada, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, 2007.
BARROS, José D’Assunção. Fontes Históricas.Revista Albuquerque, v. 3, n 1, 2010
CARVALHO, José Murilo de. A construção da Ordem. A elite política imperial / Teatro de Sombras. A
política imperial. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
162
CONRAD, Robert Edgar. Os Últimos Anos da Escravatura no Brasil (1850 – 1888).Trad. de Fernanda
de Castro Ferro. 2ª Ed. São Paulo: Civilização Brasileira. 1978.
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. “Ideologia Liberal e Construção do Estado”. In: A interiorização
da metrópole e outros estudos. 2ªed. São Paulo: Editora Alameda, 2009.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
163
Aprendendo o ofício da pintura em Minas Gerais (século XVIII e XIX): mestres,
aprendizes e escravos
Hudson Lucas Marques Martins
Mestrando em História pela UFJF/ Bolsista CAPES-CNPq
hudsonlmm@yahoo.com.br
Resumo: Propomos nesse artigo discutir a formação e o aprendizado dos artífices
coloniais em Minas Gerais, principalmente aqueles ligados à pintura de forros e painéis.
Para tanto, usamos o pintor João Nepomuceno Correia Castro como exemplo e guia para
nossa narrativa, esse pintor, um dos mais caros e ativos da segunda metade do século
XVIII, nasceu e aprendeu o seu ofício na região das minas.
Palavras chaves: Arte sacra, pintura colonial, Ciclo do Ouro mineiro.
Abstract:We propose in thispaper to discussthe training andlearningofcolonialcraftsmenin
MinasGerais,especially those relatedto the painting ofceilings andpanels. For this purpose,
we use the painterJohnNepomucenoCastroCorreiaas an exampleand guide forour narrative,
this painter, oneof the most expensiveassetsandthe second half ofthe eighteenth century,
was born and learned his tradein the mining zone.
Keywords: religious art, colonial painting,CycleGoldminer.
Esse artigo pretende ser uma primeira explanação referente a uma questão
complexa, que intriga vários pesquisadores que estudam a pintura colonial mineira. Por
tanto, não espero chegar a conclusões ou verdades, e sim levantar hipóteses sobre um
assunto que poucos autores se dedicaram: Como era o aprendizado dos pintores coloniais
em Minas Gerais? Essa questão nos intriga ainda mais sabendo que não havia Academias
de Belas Artes no Brasil, não havia organizações ou instituições que educassem e
ensinassem os jovens pintores. A primeira Academia de Belas Artes no Brasil só viria a ser
inaugurada no século XIX, mesmo assim no Rio de Janeiro e sobre preceitos artísticos
completamente diferentes dos vigentes (e consumidos) na sociedade mineira colonial. O
aprendizado dos artífices coloniais que nasceram e trabalharam em Minas Gerais era
informal, o que se torna um grande desafio para os historiadores e suas fontes de pesquisa.
João Nepomuceno Correia Castro foi um dos grandes pintores em atuação na
capitania de Minas Gerais, trabalhando a partir da segunda metade do século XVIII.
Ganhou altos valores por suas obras e nos legou um considerável número de pinturas
documentadas e atribuídas. Reconhecido por estudioso e críticos de arte como um dos
pintores mais importantes de seu tempo, ainda pouco se sabe sobre ele. As obras de João
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
164
Nepomuceno se encontram nas atuais cidades de Mariana, Ouro Preto, Itabirito e
Congonhas; a última conserva o acervo de obras mais importantes pintor, no santuário
Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas estão os 35 painéis distribuídos por todo o
interior do templo e o forro da nave da capela.
Para analisarmos a importância da obra executada por João Nepomuceno em
Congonhas em relação ao contexto histórico de Minas Gerais, devemos ressaltar dois
pontos importantes: Os valores recebidos por João Nepomuceno se comparados aos seus
contemporâneos e a grande relevância do santuário Bom Jesus de Matosinhos em
Congonhas no contexto da sua construção, ou seja, como o grande canteiro de obras do
período. João Nepomuceno recebeu pelas mencionadas obras de pintura no santuário Bom
Jesus de Matosinhos um total de 1464/8as de ouro, entre os anos de 1777 e 179073. O outro
grande pintor contemporâneo a João Nepomuceno é o pintor e guarda mor José Soares de
Araújo, excelente artista que voltaremos a citar. Sua maior obra é toda a pintura interna da
capela de Nossa do Carmo da cidade de Diamantina e sua atuação nesse templo vai dos
anos de 1765 a 1784, recebendo um total aproximado de 1.080/8ªs de ouro74. Esse valor
está inserido contando a pintura do tento da nave, do teto da capela mor, a douração dos
altares colaterais, além de várias outras miudezas como, por exemplo, de dourar castiçais,
de pintar o lavatório, de pintar flores para o trono entre outras. Outro importante pintor
contemporâneo é João Batista Figueiredo, apesar da pouca documentação referente a ele,
sabem que o mesmo arrematou a pintura e douramento da capela mor da igreja da
Irmandade de São Francisco de Assis em Ouro Preto por 270 8/as de ouro entre os anos
de 1773 e 177575.
Aumentando as comparações monetárias recebidas por João Nepomuceno com
outros artífices coloniais mineiros, vejamos o caso de Antônio Francisco Lisboa, o
Aleijadinho. O renomado escultor produziu no Santuário Bom Jesus de Matosinho em
Congonhas o seu mais importante acervo de esculturas. São 64 peças em madeira
referentes às capelas dos Passos e 12 em pedra sabão, os profetas. Por esse serviço, recebeu
o equivalente a 1590/8as de ouro, entre os anos de 1796 a 180876, ressaltamos ainda que
Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho contou com um grande número de oficiais
73.
AEAM. Despesas do santuário Bom Jesus de Matosinhos, 1777 a 1790. In: Livro 1º de despesas do
santuário de N. S. Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas do Campo. F. 9, 9 v., 12 v., 13, 13 v., 14, 14 v.,
15, 16, 18 v., 20 v., 21, 22, 86 e 87 v., Prateleira H, códice 26.
74. MARTINS, 1974. v. I, p. 52 e 53.
75. MARTINS, 1974. v. I, p. 285.
76. OLIVEIRA, 2002. p. 27, 29 e 30.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
165
trabalhando nessa obra, feita no final de sua vida e em curto espaço de tempo. Arriscamos
ainda uma comparação com Manuel da Costa Ataíde, pintor posterior a João Nepomuceno
Correia Castro e em um contexto econômico um pouco diferente. Manuel da Costa Ataíde
recebeu por todos os seus trabalhos documentados dentro da capela da Irmandade de São
Francisco de Assis de Ouro Preto o equivalente aproximado de 1000 8/as de ouro77, entre
os anos de 1791 a 1825. Incluído nesse valor está a pintura de forro mais famosa do
período colonial, a Nossa Senhora Rainha dos Anjos no teto da nave da dita capela
franciscana de Ouro Preto. Nota-se os altos valores recebidos por João Nepomuceno
frente aos outros pintores coloniais, e até mesmo frente ao maior conjunto de obras do
principal artífice mineiro, Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.
Para demonstrarmos a importância do santuário Bom Jesus de Matozinhos em
Congonhas em relação ao contexto de Minas Gerais no final do século XVIII e começo do
XIX, vamos voltar à sua história. O santuário Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas foi
construído como pagamento a uma promessa feita pelo português Feliciano Mendes.
Encontrando-se muito enfermo, esse promete erguer uma ermida dedicada ao Bom Jesus
de Matosinhos, caso se salve. Alcançado a graça pretendida, Feliciano Mendes começa a
construir esse templo no Alto do Maranhão, morro defronte ao arraial de Congonhas do
Campo, isso por volta de 175778. Doa todos os seus bens à ermita, peregrina atrás de novas
verbas, dedica o resto da sua vida à essa causa. Veio a falecer em 176579, e a devoção que
começou até os dias de hoje leva milhares de fiéis ao santuário todos os anos,
movimentando o comércio e o turismo da região.
Erguido através de doações dos fiéis, o santuário Bom Jesus de Matosinhos em
Congonhas foi construído pelas mãos dos grandes artistas e artífices do século XVIII e
começo do XIX; atestado pela historiadora Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira como: “o
que de melhor havia em Minas no momento”80. São vários os artistas e artífices que
trabalharam nessa obra: pintores, escultores, entalhadores, carpinteiros e uma infinidade de
outros profissionais. Entre os grandes nomes contratados está Antunes Carvalho81 e
Jerônimo Félix Teixeira82 para talhar os altares. Para a pintura dos altares laterais, João de
77.
MATINS, 1974, v. I, p. 81.
FALCÃO, 1962, p. 45.
79. FALCÃO, 1962, 49.
80. OLIVEIRA, 2002. p. 18.
81. AEAM. Livro 1º de despesas do santuário de N. S. Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas do Campo. f.
9. Prateleira H, códice 26.
82. MARTINS, 1974. v. 2. p. 284.
78.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
166
Carvalhais83, para pintar o forro da capela mor foi contratado Bernardo Pires84; para pintar
as imagens em madeira dos Passos e as suas respectivas capelas, foram contratado
Francisco Xavier Carneiro85 e Manuel da Costa Ataíde86. O último ainda recebe por
“Retocar a Capella mor”87 (sic) anos mais tarde. Temos ainda a presença do importante
escultor Francisco Vieira Servas88. Não bastando todos esses grandes nomes da arte
colonial mineira, é no santuário Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas que está o mais
importante conjunto de obras de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, artista máximo
de todo o período colonial. E entre todos esses grandes nomes das artes, trabalhou
também João Nepomuceno Correia Castro89, pintor máximo desse templo.
Em seu período de atuação no santuário, João Nepomuceno estava envolvido em um
dos maiores canteiros de obras sacras da capitania, a construção do santuário Bom Jesus de
Matosinhos, obra que se iniciou na segunda metade do século XVIII e adentrou no século
XIX. Esse importante templo mineiro é um marco da história colonial mineira, as romarias
que até os dias de hoje se voltam para o santuário e seu entorno movimenta milhares de
fiéis; o seu cenário é recorrente na literatura90 e é um símbolo mineiro reconhecido com
Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO desde 1985.
Apesar de toda a documentação relativa aos pintores mineiros e às suas obras, pouco
se sabe sobre o aprendizado desses oficiais em terras mineiras. Nascido em Mariana91, João
Nepomuceno Correia Castro aparentemente não saiu da capitânia para aprender o seu
ofício. Assim como ele, vários outros pintores aprenderam a pintar dentro da região
mineradora. A meu ver, esse aprendizado passa por cinco questões básicas a todos os
pintores: a organização do trabalho entre mestre, aprendiz e escravos; os ensinamentos práticos dos
tratados de pintura; as imagens européias que serviam de modelos pictóricos; o aprendizado no canteiro de
obras e a individualidade de cada artífice. Minha hipótese é que esse cinco fatores são os
83.
AEAM. Livro 1º de despesas do santuário de N. S. Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas do Campo. f.
9 v. Prateleira H, códice 26.
84. AEAM. Livro 1º de despesas do santuário de N. S. Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas do Campo. f.
9 e 9v. Prateleira H, códice 26.
85. MARTINS, 1974. v. 2. p. 199.
86. AEAM. Livro 1º de despesas do santuário de N. S. Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas do Campo. f.
86 e 87 v. Prateleira H, códice 26.
87. Ibid. f. 87 v.
88. MARTINS, Judith. 1974. v. 2. p. 216.
89. AEAM. Livro 1º de despesas do santuário de N. S. Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas do Campo. f.
12 v., 13, 13 v., 14, 14 v., 15, 16, 18 v., 20 v., 21 e 22. Prateleira H, códice 26.
90. Ver entre outros; GUIMARÃES, 1991. 139 p.
91.AEAM.Registro de batismo de João Nepomuceno Correa Castro, 16 de maio de 1752. In:Livro de
batismoda Catedral Basílica de Nossa Senhora da Assunção, Sé de Mariana. f. 13v-14. Prateleira O, códice
10.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
167
determinantes para o aprendizado e a atuação dos pintores coloniais dentro da própria
capitania.
Passar os ensinamentos do ofício da pintura aos mais novos era parte do trabalho do
pintor, era conseqüência do próprio dia a dia do pintor e seus ajudantes, era natural. Os
primeiros mestres que chegaram à região das Minas eram portugueses, eles vinham de
todas as partes do reino e continuaram chegando durante todo o século XVIII. Da cidade
do Porto eram, por exemplo, Antônio Rodrigues Belo (1738)92 e Jacó da Silva Bernardes
(1764)93; da cidade de Braga, Antônio Gualter de Macedo (1738)94 e Manoel José Rebelo
Sousa (1752 -75)95; da vila de Chaves, Manoel Gonçalves de Sousa (1744 - 61)96; de Lisboa,
João de Deus Veras (1740)97, só para citar alguns exemplos de portugueses, há muitos
outros. O mais interessante é a presença logo no começo do século de outro estrangeiro
“vivendo da sua arte de pintor”, é o indiano Jacinto Ribeiro (1711-21)98 que atuou em
Mariana e Camargos. Esses são alguns nomes que declaram a sua origem e que em sua
maioria devem ter chegado à capitania com algum tipo de experiência no ofício da pintura.
Esse seria o primeiro passo para o aprendizado dos novos pintores mineiros, a chegada de
mão de obra minimamente especializada de outras partes do reino, principalmente de
Portugal.
Os pintores, assim como os demais artífices do período colonial, não trabalhavam
sozinhos. O serviço era divido entre os diversos encarregados, havia os aprendizes mais
experientes, que possivelmente preparavam as tintas, cuidavam das estampas, do material
mais delicado e inclusive pintavam partes secundárias das obras. Interessante notar o caso
do pintor João Nepomuceno Correia Castro, em testamento de 179599, ele deixa de
heranças todas as suas: “estampas, riscos e debuxos100”101 a Francisco Xavier e Bernardo de
Sena(ou Serra), seus aprendizes. Esse dois aprendizes de João Nepomuceno já deveriam
estar chegando a esse grau de maturidade artística, pois doando o seu acervo de gravuras
92.
MARTINS, Judith. 1974, v. I, p. 111.
Idem. v. I, p. 114.
94. Idem. v. II, p. 7.
95. Idem. v. II, p. 173 e 274.
96. Idem. v. II, p. 271 e 272.
97. Idem. v. II, p. 300.
98. Idem. v. II, p. 163.
99. AEAM. Contas de testamento de João Nepomuceno Correia Castro, 1794 - 1806. In: Testamento de João
Nepomuceno Correia Castro. f. 4. Testamentos, pasta 619.
100. “Debuxar; Diz do que se obra na pintura sem dar cor, nem sombras, mas só com lápis, & pena” in:
BLUTEAU, 1712-28. v 3. p. 16. Desenhar, desenhos.
101. AEAM. Contas de testamento de João Nepomuceno Correia Castro, 1794 - 1806. In: Testamento de João
Nepomuceno Correia Castro. f. 4. Testamentos, pasta 619.
93.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
168
européias aos seus aprendizes, estava legando parte do material necessário para o seu ofício
aos novos pintores.
Um documento muito interessante foi utilizado pela pesquisadora Célia Macedo
Alves102 para explicar um pouco da dinâmica entre mestres e aprendizes, tratasse de um
volumoso processo103 entre o pintor nativo João Batista de Figueiredo e o pintor português
Manoel Rebelo de Souza. O primeiro abre o processo cobrando o outro uma dívida por
pinturas executadas. Manoel Rebelo se defende dizendo que na época das pinturas João
Batista era seu aprendiz, e por tanto não tinha direito a jornais104, e como prova mostra um
contrato de aprendizagem de 1760, firmado entre Manoel Rebelo e o pai de João Batista. O
contrato possuía duração de 6 anos, e o pai se via obrigado a “vesti-lo, calçá-lo e tudo
mais” e ao mestre “ensiná-lo, doutriná-lo e sustenta-lo” e ainda havia cláusulas caso
houvesse faltas do aprendiz. Após várias peripécias do interessante processo, João Batista
Figueiredo se torna aprendiz de um outro importante pintor do período, Antônio Martins
da Silveira. Há casos também de mestres e aprendizes serem pai e filho, como no caso do
pintor português João Coelho Lamas, que em 1750 tinha como aprendiz o seu filho pardo,
Antônio Coelho Lamas105. Ou ainda Manuel da Costa Ataíde, que tinha como aprendiz o
seu filho Francisco Assis106 na época que o mesmo estava trabalhando na capela de Nossa
Senhora do Rosário da cidade de Mariana.
Mas a mão de obra utilizada pelos pintores não era apenas de aprendizes, quase
sempre havia escravos. A maioria deles fazia o trabalho braçal que eventualmente os
pintores necessitavam, deviam corta madeira, carregar andaimes, buscar ferramentas ou
coisas do tipo. João Nepomuceno Correia Castro possuía em 1795 dois escravos homens,
Pedro e Domingos ambos da nação Angola107. Manuel da Costa Ataíde em 1804 possuía
como escravos Manoel de 22 anos, Ambrósio de 13 anos e Pedro Angola de 45 anos108,
coincidência ou não, mas pelas datas, poderia ser o mesmo escravo de Ataíde o que
pertenceu a João Nepomuceno? Depois da morte de João Nepomuceno em 1795, Ataíde
pode ter comprado o escravo já habituado ao auxílio a pintores? Nunca saberemos. O
grande pintor de Diamantina, o guarda mor José Soares de Araújo, possuía na época de seu
102.
ALVES. 2003. p. 82 a 84.
AHMIOP. Cód. 185. Auto 2535, 1º ofício. Citado por ALVES, 2003, p. 82 a 84.
104. Pagamentos diários.
105. ALVES. 2003. p. 84.
106. ACSM. Cód. 239, auto 5972, 2º ofício. Citado por ALVES, 2003. p. 86.
107. AEAM. Contas de testamento de João Nepomuceno Correia Castro, 1794 - 1806. In: Testamento de João
Nepomuceno Correia Castro. f. 4. Testamentos, pasta 619.
108. CAMPOS, 2002. p. 257.
103.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
169
falecimento 26 escravos, mas a grande maioria não devia auxiliá-lo na pintura, pois o
mesmo possuía diversos outros empreendimentos. Mas interessante notar no testamento
do pintor de 1799 é a presença dos escravos “João cabundongo com princípios de pintor”
e “Vidal, pintor e dourador”109. Dessa forma, os escravos podiam fazer parte da mão de
obra especializada no “plantel de ateliê”110 dos pintores, mas na maioria das vezes eram
legados os trabalhos mais pesados e não especializados. Há exemplos ainda de pintores
mais humildes, que atuavam sozinhos, como o caso do pintor pardo José Gervásio de
Souza Lopes atuando no final do século XVIII111 em Ouro Preto. Devemos enfatizar a
presença marcante de escravos no processo de produção das pinturas, transformando a
relação de mestres e aprendizes em mestres, aprendizes e escravos, todos com funções bem
delimitadas no processo produtivo.
A relação entre mestre e aprendiz em Minas Gerais no século XVIII está baseada no
antigo sistema europeu das oficinas mecânicas, oriundas desde o Império Romano. Já no
começo do século XVII, os pintores portugueses conseguiram maior autonomia em relação
à estrutura corporativa que vigorava em Lisboa até então. Eles estavam até aquele
momento, submetidos à bandeira de São Jorge, juntos aos demais oficiais mecânicos. A
partir do século XVII eles não precisavam mais prestar contas à essa bandeira e ainda
possuía alguns privilégios, como a não participação obrigatória nas procissões organizadas
pelas Câmaras Municipais. Em Minas Gerais no século XVIII, todos os pedreiros,
carpinteiros, entalhadores e demais oficiais tinham que prestar exames diante de dois juizes
do seu respectivo ofício112 para poderem atuar nas vilas. Mas os pintores não estavam
sujeitos a esse tipo de exame, só constam dois nomes em todos os censos, no de 1746
aparecem Joze Correa Gomes e Manoel Gonçalves de Souza113. Ou seja, o sistema de
mestres e aprendizes mineiros era bem menos rígido que o europeu, não havendo os
exames para a pintura, por exemplo. O único sistema de julgamento ao qual o pintor estava
submetido se refere aos processos de Louvação.
O processo de Louvação consiste em uma análise da obra pronta por dois árbitros,
estes confrontam as especificações do contrato assinado entre a Irmandade e os oficiais
109.
SANTIAGO. 2009. p. 104.
Termo nosso, apenas para designar um grupo de indivíduos que eram ligados profissionalmente a algum
mestre pintor, seja ele um aprendiz ou um escravo. Seria o conjunto desses indivíduos que atuam junto ao
pintor, mas não são lançados separadamente nos livros de despesas das Irmandades, atuando sobre o nome
e a orientação do mestre pintor.
111. Argumentos que sustentam sua atuação individual está em: CAMPOS. 2002. p. 249.
112. ARAÚJO. 2003. p. 93.
113. ARAÚJO. 2033. p. 93.
110.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
170
com o resultado final da pintura ou escultura em questão. Normalmente a Irmandade
indica um arbitro e o pintor ou escultor que executou indica o outro. Mas sempre serão
árbitros os envolvidos no ambiente de produção da decoração religiosa, geralmente padres
ou outros escultores e pintores. No caso de João Nepomuceno Correia Castro, o primeiro
documento que encontramos da sua atuação profissional é um processo de Louvação. Em
1774114, aos 21 anos, João Nepomuceno é contratado como louvado para analisar quatro
pinturas na capela mor da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar em Ouro Preto. Pela
importância do templo, pode-se concluir que nessa época João Nepomuceno não era mais
um aprendiz. João Nepomuceno foi convidado para ser louvado pelo arrematante da obra,
João de Carvalhães, para julgar os painéis feitos pelo pintor Bernardes Pires; e o padre
Antônio Meireles Rabelo como louvado por parte da Irmandade do Santíssimo
Sacramento. Depois de alguns retoques a obra foi aceita, mas o interessante é a presença de
João de Carvalhães e Bernardo Pires, os dois voltariam a trabalhar com João Nepomuceno
no santuário Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas. O historiador Rodrigo Mello
Franco de Andrade assim se expressa em relação ao processo de Louvação feita por João
Nepomuceno em 1774:
...tal circunstância demonstra que, na época, sua situação era de mestre ou,
pelo menos, de oficial de capacidade reconhecida, pois a perícia para o
julgamento de serviço daquela importância, executado em templo tão
prestigioso, não poderia ser incumbida senão a profissional de idoneidade
notória.115
Fundamental para o aprendizado dos pintores na região das Minas eram os tratados
de pintura, em circulação na capitania durante os séculos XVIII e XIX. Esses livros eram
importados da metrópole e vários pintores possuíam exemplares, como Manuel da Costa
Ataíde e Francisco Xavier Carneiro, dentre muitos outros que constam ter-los em
testamentos116. Esses livros trazem conhecimentos práticos que eram utilizados pelos
pintores coloniais, são regras para preparação das tintas, para desenhos, técnicas do ofício e
procedimentos para pinturas a têmpera, afresco e óleo. Por exemplo, veja a regra para
recuperar as cores de um painel contida no livro Os Segredos Necessários para os ofícios, artes e
manufaturas, de Du Fresnoy: “Corta huma cebola branca ao meio e molha-a em vinagre, e
esfrega suavemente o painel até ver o efeito que produz”117. Há vários conhecimentos que
114.
AHEPP. Termo que fazem os Irmãos da Irmandade do Santíssimo Sacramento da aceitação dos painéis e
douramento feito na capela mor da matriz de Nossa Senhora do Pilar, 9 de fevereiro de 1774. In: Livro de
termos da Irmandade do Santíssimo Sacramento de Ouro Preto. f. 139 v.. Volume 224.
115. ANDRADE, 1978. p. 29.
116. SANTIAGO, 2009. p. 138.
117. SANTIAGO, 2009. p. 138.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
171
poderiam ser colocados em prática a partir desses livros, essa edição de Du Fresnoy, por
exemplo, é de 1744 e ainda traz muitas dicas extremamente úteis para os pintores mineiros,
para se adquirir uma espécie de pigmento branco deve-se: “Toma cascas de ovos, tira-lhes
as películas interiores, e lava-as muitas vezes em água clara e reduzindo-as a pó
impalpável”118. Interessante notar que o santuário Bom Jesus de Matosinhos lança em seu
livro de despesas quando João Nepomuceno Correia Castro estava trabalhando no
santuário: “De que dei a Joze Roiz da Costa aconta do que mandou vir do Rio de Janeiro
tintas, ovo, e outras muidezas para a capela”119. Possivelmente João Nepomuceno estava
ciente do uso da casca de ovo para a obtenção de pigmentos, se o mesmo não teve acesso a
esse tratado, teve acesso às informações contidas nele, seja através da leitura ou do
aprendizado direto com o seu mestre ou ainda em intercâmbio com os seus
contemporâneos.
O tratado de pintura mais famoso em circulação em Minas Gerais no século XVIII
foi o do português Felipe Nunes, sua primeira edição é de 1615 e foi reeditado em 1767.
Esse livro traz vários conhecimentos práticos para os pintores mineiros, seus ensinamentos
são didáticos e segundo o mesmo em sua introdução, foi feita para os leigos na arte de
pintura. Para ele, por exemplo, o pau brasil para dar boa tinta deveria ser: “doce na língua”,
ou, o verde bexiga seria obtido caso mantivesse a solução preparada guardada em uma
bexiga de carneiro. A historiadora Camila Santiago120 faz uma complexa análise de todos os
tratos em circulação em Minas Gerais no período colonial, a partir dos livros encontrados
em testamentos de pintores e os seus possíveis usos e leituras. Interessante notar a vasta
gama de informações presentes nesses livros, e a acessibilidade de sua linguagem e dos
materiais empregados na confecção das tintas. Acredito que os diversos tratados de pintura
davam suporte técnico necessários aos pintores, além de manterem os mesmo em diálogo
com os mestres europeus contemporâneos a eles. Dessa forma, o conhecimento
estabelecido pelos tratados de pintura européia era fundamental no aprendizado dos
pintores mineiros, mesmo que os oficiais não os tenham lido, o conhecimento exposto por
eles circulou entre os oficias e artífices coloniais.
Assunto muito debatido dentro da historiografia da arte colonial brasileira é o uso
das gravuras produzidas na Europa como fonte imagética para os pintores mineiros. A
118.
SANTIAGO, 2009. p. 138.
AEAM.Despesas do santuário Bom Jesus de Matosinhos, outubro de 1777 a 1781. In: Livro 1º de
despesa do santuário de N. S. Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas do Campo. f. 12, 12v, 13,
13 v.. Prateleira H, códice 26.
120. SANTIAGO, 2009, 364 p.
119.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
172
primeira pesquisadora a escrever sobre o assunto em Minas Gerais foi Hanna Levy121 na
década de 1940, mas, estudos mais recentes e abrangentes foram publicados, como a tese
de doutoramento da historiadora Camila Santiago122. Não é mais surpresa para os
pesquisadores do assunto a semelhança, próximo a uma cópia, entre as pinturas presentes
nas nossas capelas e as gravuras dos missais e livros religiosos em circulação na região.
Todos os artistas mineiros estavam sujeitos a essa prática, na verdade era o costume da
época, ainda não existia a idéia de liberdade criadora, ou mesmo de autoria das pinturas123.
Geralmente os contratantes mostravam aos pintores a imagem que gostariam de ver
retratada em suas capelas, e cabia ao pintor ampliá-la e adaptá-la. Normalmente são
retirados alguns personagens e a composição é simplificada. Esses modelos que chegavam
à colônia por meio dos livros religiosos foram de extrema importância para a formação dos
pintores mineiros, pois foi delas que os mesmo retiraram todo o seu vocabulário imagético.
Analisaremos apenas um caso dessas gravuras relacionadas ao pintor João
Nepomuceno Correia Castro, é um painel do interior do santuário Bom Jesus de
Matosinhos em Congonhas. Trata-se de uma representação da Natividade. Ainda na
primeira metade do século XVIII o pintor italiano Sebastiano Conca estabeleceu a
iconografia relacionada à passagem da Natividade.
Natividade. Sebastiano Conca. Primeira metade do século XVIII.
A historiadora Camila Santiago separou uma série de gravuras européias sobre o
tema da Natividade que estavam em circulação em Minas Gerais durante os séculos XVIII
121.
LEVY, 1978, p. 97.
SANTIAGO, 2009.
123. A única pintura colonial que se tem notícia assinada, é a grande tela da Última Ceia que está no Colégio do
Caraça, em Catas Altas, assinada por Manuel da Costa Ataíde.
122.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
173
e XIX. Uma delas nos chamou atenção pela aproximação com o painel pintado por João
Nepomuceno Correia Castro em Congonhas. É uma gravura presente no Missal Romano
editado em 1751, a imagem é de excelente qualidade, um dos livros que trazia as melhores
gravuras sacras em circulação no período. Produzido na Antuérpia, esse missal possuía
qualidade superior ao editados em Portugal e por isso eram mais caros124.
Natividade. Missale Romanum. Antuerpiae. 1751.
124.
Sobre as referências aos livros que os pintores possuíam, a origem dos exemplares, técnicas de edição e
gráficas, consultar: SANTIAGO, 2009.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
174
Natividade. João Nepomuceno Correia Castro. 1777 a 1787. Santuário Bom Jesus de Matosinhos,
Congonhas.
Quanto ao tema, a gravura da Natividade escolhida por João Nepomuceno para ser
representada no santuário Bom Jesus de Matosinhos insere-se “na opção iconográfica
ocidental de privilegiar a Adoração do Santo menino em detrimento da representação da
Virgem convalescendo do parto”125. Comparando as duas imagens, o modelo europeu e o
painel de João Nepomuceno Correia Castro, logo se nota a ausência de dois elementos na
pintura do santuário Bom Jesus de Matosinhos. O artífice suprimiu a mulher que carrega
um jarro na cabeça ao lado direito, e o cachorrinho aos pés da figura masculina em
primeiro plano. A mulher foi retirada para aliviar a composição da imagem, ressaltamos
que, a estrutura em madeira ao lado esquerdo, que fazia a contraposição à mulher, também
foi suprimida, deixando a imagem mais equilibrada. O cachorrinho deve ter sido retirado
por orientação de algum religioso ligado à ornamentação do santuário, pois o Concílio de
Trento já havia visto com maus olhos a presença do asno e o boi na representação da
Natividade126.
Outro ponto a se notar são os raios que emanam do menino Jesus na estampa
européia que não são reproduzidos pelo pintor mineiro, apesar de na pintura a luz partir do
menino Jesus para iluminar os diversos personagens, ele não foi representado com essa luz
125.
126.
SANTIAGO, 2009. p. 259.
SANTIAGO, 2009. p. 260.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
175
tão própria da santidade e divindade do personagem. Segundo a historiadora Camila
Santiago citando Louis Réau:
a iconografia da Natividade renovou-se a partir do sonho de Santa Brígida, em
1370. Um dos elementos destacados pela mística seria a exuberante iluminação
emanada do menino Jesus, que teria, inclusive, ofuscado uma vela trazida por
São José127.
Mas a grande “liberdade” do pintor João Nepomuceno em relação ao seu modelo
europeu foi o fundo da pintura. Na gravura européia há uma construção em último plano,
arrematado pelo céu ao fundo. O pintor mineiro optou por uma paisagem, com muitas
plantas e montanhas, além da feliz escolha das cores para o céu, que dá a impressão de um
belo entardecer em Minas Gerais. Como já dissemos os pintores mineiros não possuíam
muita liberdade criadora, e nem era essa as suas intenções e nem a dos seus contratantes.
As pinturas deviam antes de tudo ser didática, devia mostrar o caminho da salvação para
um público não alfabetizado, deviam ser o suporte imagético para a doutrina e os
ensinamentos que os padres tentavam transmitir em seus sermões. A “liberdade” dos
pintores consistia nessas pequenas alterações, nesses ajustes e muitas vezes simplificações
dos modelos que tinham em mãos. Modelos esses importantíssimos não apenas para o
aprendizado desses oficias, mas para todo o ofício da pintura do período colonial, sendo
reproduzidas por mestres e aprendizes em seus trabalhos.
Devemos voltar mais uma vez no tópico referente aos canteiros de obras e o
aprendizado prático dos pintores mineiros. Como dissemos não havia instituições ligadas
ao ensino da pintura em Minas Gerais durante todo o período colonial, e o grande
aprendizado ocorria nos canteiros de obras, juntos aos mestres e demais pintores que
atuavam juntos em um mesmo templo. Quanto a João Nepomuceno, destacamos, que
Manuel da Costa Ataíde trabalhou no santuário quando ele estava em seu auge, em 1781,
Ataíde recebeu 8/8as de ouro por encarnar128 uma imagem de cristo e 2/8as e meia de ouro
por dourar e pintar 20 med rS (sic)129. O canteiro de obras era o ensino prático e a
oportunidade dos novos artífices/oficiais de atuarem e verem os oficiais mais experientes
em atuação. Não queremos dizer com isso que João Nepomuceno teve participação efetiva
no aprendizado de Manuel da Costa Ataíde, mas ressaltamos que o último esteve presente
no auge do primeiro, trabalhando em obras mais simples e menos remuneradas, enquanto
127.
SANTIAGO, 2009. p. 260.
termo de pintor A côr da carne em todas as partes nuas de hum corpo pintado” in:
BLUTEAU, 1712-28, v. 3, p. 208. “Encarnar: Dar cor de carne a pinturas ou imagens, aplicando polimento às
partes do corpo que devem aparecer” in: ÁVILA, 1979. p. 143.
129. MARTINS, 1973, v. I, p. 80.
128“Encarnação;
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
176
o primeiro era tido como o grande pintor do santuário Bom Jesus de Matosinhos em
Congonhas.
Concluímos que o aprendizado em Minas Gerais se dava por uma série de fatores
próprios do contexto do período colonial. Os pintores mineiros que aprenderam o ofício
na capitania tiveram a ajuda e a orientação dos mestres portugueses, esses amparados na
tradição pictórica do reino, trouxeram para a capitânia as primeiras técnicas de pintura.
Juntos aos mestres pintores vieram da metrópole os tratados de pintura e as gravuras de
missais, os primeiros eram responsáveis pelo conhecimento prático do oficio da pintura e
as gravuras eram a bases imagéticas para as composições das obras de decoração. Tendo os
jovens aprendizes da colônia o suporte de mestres minimamente experimentados, o auxílio
dos tratados de pintura e as imagens a serem confeccionadas. Restava o aprendizado no
canteiro de obras, na prática efetiva da decoração, em contato com outros oficiais e
trabalhando em campo com os seus mestres. Esses fatores se juntam à capacidade e a
história de cada indivíduo que atuou no ofício da pintura, cada um do seu jeito e da sua
maneira. O desenvolvimento do aprendizado de João Nepomuceno se deu de maneira
rápida, tanto que aos 21 anos já era reconhecido com um pintor importante, mas poucos
sabemos dos detalhes sobre o aprendizado de todos os pintores mineiros no período
colonial. Mais pesquisas vão ajudar a esclarecer todas as nossas dúvidas sobre a questão,
que está apenas esboçada aqui.
Arquivos consultados:
ACSM – Arquivo da Casa Setecentista de Mariana.
AHEPP – Arquivo Histórico Eclesiástico da Paróquia do Pilar.
AHMIOP – Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência de Ouro Preto.
AEAM – Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana.
Bibliografia:
ANDRADE, Rodrigo Mello Franco de. A Pintura colonial em Minas Gerais. Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1978. p. 11-74.
(Publicação da revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 18).
ALVES, Célio Macedo. Pintores, policromia e o viver em colônia. Imagem Brasileira. Belo Horizonte:
Centro de Estudos da Imaginária Brasileira, 2003. n.º 2. p. 81-86.
ARAÚJO, Jeaneth Xavier de. O Trabalho artístico e artesanal na Vila Rica setecentista. . Imagem
Brasileira. Belo Horizonte: Centro de Estudos da Imaginária Brasileira, 2003. n.º 2. p. 87-97.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
177
ÁVILA, Affonso. Barroco mineiro; glossário de arquitetura e ornamentação. Belo Horizonte:
Fundação João Pinheiro; Rio de Janeiro: Fundação Roberto Marinho, 1979. 220 p.
BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário histórico e geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte:
Saterb, 1971. 549 p.
BOSCHI, Caio César. Os Leigos no poder; irmandades leigas e a política colonizadora em Minas
Gerais. São Paulo: Ática, 1986. 254 p. (Ensaios, 116).
BOSCHI, Caio César. O Barroco mineiro; artes e trabalho. São Paulo: Brasiliense, 1988. 78 p. (Tudo é
história, 123).
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez, e latino, áulico, anatômico, architectonico,bellico, botânico...
Coimbra: Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-28. 8 v.
CAMPOS, Adalgisa Arantes. Vida cotidiana e produção artística de pintores leigos nas Minas
Gerais: José Gervásio Souza Lobo, Manoel Ribeiro Rosa e Manoel da Costa Ataíde. In: (Org.)
PAIVA, Eduardo França. ANASTASIA, Carla Maria Junho. O Trabalho Mestiço, maneiras de pensar e
formas de viver séculos XVI a XIX. São Paulo: Annablume: PPGH/UFMG, 2002. p. 247-263.
FALCÃO, Edgard de Cerqueira. A Basílica do Senhor Bom Jesus de Congonhas do Campo. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1962. 336 p.
GUIMARÃES, Bernardo. O Seminarista. Rio de Janeiro: Ediouro, 1991. 139 p.
LEVY, Hannah. Modelos europeus na pintura colonial. Pintura e escultura I, São Paulo:
FAUUSP/MEC/IPHAN, 1978. p. 97-154. (Textos Escolhidos da Revista do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 7).
MACHADO, Lourival Gomes. Barroco Mineiro. 3 ª ed. São Paulo: Perspectiva S. A., 1978. 434 p.
(Debates, 11).
MARTINS, Judith. Dicionário de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas Gerais. Rio de
Janeiro: SPHAN, 1974. 2 v. (Publicação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
27).
OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. Aleijadinho; passos e profetas. Belo Horizonte: Itatiaia,
2002. 74 p.
OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. O Aleijadinho e o Santuário de Congonhas. Brasília:
IPHAN/MONUMENTA, 2006. 133 p.
RAMOS, Adriano (org.). GUTIERREZ, Ângela (coord.). Francisco Vieira Servas; e o ofício da
escultura na capitania das Minas do ouro. Belo Horizonte: Instituto Cultural Flávio Gutierrez, 2002.
224 p.
SALGADO, Graça (coord.). Fiscais e meirinhos; a administração no Brasil colonial. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 452 p.
SANTIAGO, Camila Fernanda Guimarães. Usos e impactos de impressos europeus na
configuração do universo pictórico mineiro (1777- 1830). Belo Horizonte, 2009. 364 p. (Dissertação
de doutorado).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
178
Vadiagem, civilidade e crime: a casa de detenção como espaço educacional (18701880)
Jailton Alves de Oliveira
Mestrando em História da Educação pela UERJ/ Bolsita FAPERJ
jailtonoliveira2016@hotmail.com
Resumo: Após a ruptura política de Portugal, as elites imperiais, ancoradas por ideais
liberais – como liberdade, prosperidade, igualdade, ordem e progresso - idealizam a
construção de uma nação e a conseqüente inclusão de brancos pobres a esse modelo. No
entanto, essa inclusão devia ser feita a partir da reeducação dos comportamentos, via
vigilância e punição, de todos os que não se enquadrassem nos comportamentos
considerados civilizados.
Isso posto, o artigo tem como principal objetivo discutir como a antiga Casa de Detenção
da Corte pode ser considerada como um espaço de educação para milhares de homens
(livres e libertos), mulheres e crianças, que as elites imperiais incorporaram ao mundo da
vadiagem. Para tanto, concentramo-nos em perceber imbricações entre educação, vadiagem
e a instituição em discursos do período imperial, sobretudo em dispositivos legais como o
Código Criminal do Império e o Código de Posturas Municipais. A partir das análises do
Regulamento, destinado ao bom funcionamento da instituição, percebemos tentativas de
“educar” os presos, produzindo comportamentos desejáveis.
Palavras-chaves: Educação, Casa de Detenção, vadiagem.
Abstract: After the break policy of Portugal, the imperial elites, anchored by liberal ideals like freedom, prosperity, equality, order and progress - the construction of an idealized
nation and the consequent inclusion of poor whites in this model. However, this inclusion
should be made from the reeducation of behaviors, via surveillance and punishment of
those who do not fit in behaviors considered civilized.
That said, the article's main objective to discuss how the old House of Detention Court can
be considered as an area of education for thousands of men (free or freed), women and
children, the imperial elites entered the world of vagrancy. To this end, we focus on
realizing interplay between education, truancy and the institution discourses of the imperial
period, especially in legal provisions as the Criminal Code of the Empire and the Municipal
Code of Postures. From the analysis of the Regulation, for the proper functioning of the
institution, we see attempts to "educate" prisoners, producing behaviors.
Keywords: Education, House of Detention, vagrancy.
Considerações iniciais
A partir do século XVIII, quando a história passou a ser cunhada como ciência, os
métodos de pensar e escrever as construções históricas sofreram transformações. A
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
179
historiografia passou por modificações metodológicas que permitiram abordagens distintas
sobre o passado, através da incorporação de novos tipos de fontes. Ainda no final do
século XIX, percebe-se um afastamento da descrição e da narrativa, da ênfase no singular e
no individual, e uma aproximação da análise e da explicação, das regularidades e da
generalização.
No segundo quartel do século XX, no entanto, um movimento
historiográfico foi importante e renovador, colocando em questionamento a historiografia
tradicional e apresentando novos e ricos elementos para o conhecimento das sociedades.
Apresentava uma história bem mais vasta do que era praticada até então, considerando
aspectos distintos da vida humana e não apenas uma história política dos grandes homens e
feitos.
Um grupo de intelectuais, ligados à revista dos Annales, apresentava novas
diretrizes teórico-metodológicas, promovendo movimentos no sentido de novas
abordagens, métodos, objetos. As principais contribuições desse movimento foram:
substituição de uma história narrativa, dos grandes homens ou eventos por uma história
problematizada. Uma promoção da interdisciplinaridade (BURKE, 1989, p.12).
Burke (op.cit.), problematizando o sentido do termo Nova História, sublinha que a
expressão ganhou “força nos anos de 70 e 80” (p.19), quando a existência de reações ao
“paradigma tradicional”(loc.cit.) tomou força entre diferentes profissionais, em diversos
lugares do mundo. Verificou-se, pois, que novas propostas historiográficas passaram a
constituir o primeiro movimento de tentativa de elaboração de uma história política que
fosse, em primeiro lugar, melhor do que qualquer outra elaborada anteriormente. O
historiador discorda que o termo Nova História esteja vinculado apenas ao movimento dos
Annales, problematizando o fato de que Fevbre, Bloch, Braudel e outros fossem
precursores de uma nova forma de fazer história. Antes, diferentes profissionais, em
diferentes lugares do globo e em diferentes momentos da história, também indicaram
novas perspectivas, novos rumos à história, enquanto ciência. Iniciativas como as de
“Ranke, Coulanges, Marx, Spencer” (BURKE, op.cit., p.18) e outros, são exemplos desses
movimentos.
O que a Nova História significa à história da educação brasileira? Nunes (2005)
salienta que no final do século XIX, com a criação da “história da educação brasileira,
como disciplina” (p. 17), já era pensada a necessidade de ruptura com uma história
positivista. A influência dos Annales, com perspectivas de uma Nova História, seria
percebida a partir dos anos de 1960, com diferentes abordagens surgidas em trabalhos de
cursos de pós-graduação. Além disso, a significativa ampliação de fontes e campos do saber
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
180
na história da educação brasileira, observada em dissertações e teses de doutoramento,
produzidas nos diferentes programas de pós-graduação em educação, em diferentes
instâncias e processos de difusão do saber, tem contribuído muito para as abordagens no
campo da história da educação.
Pensar a educação brasileira supõe, portanto, inscrever em nosso horizonte “os
interesses que esse tipo de prática aciona e mobiliza” (GONDRA, 2004, p.185). Nesse
movimento, é possível observar que a vontade de educar, de interferir no curso da vida, de
modo “racional ou “científico”(loc.cit.) está presente em lugares variados. Dessa forma,
considera-se a existência de forças distintas que agem, de modo solidário ou concorrente,
às iniciativas educacionais. Gondra e Schueler (2008), ao ampliarem o termo educação no
Brasil do século XIX, procuram perpassar o campo de visão da chamada educação formal.
Para os autores, o espaço escolar dito formal oitocentista não pode ser considerado como
único lugar de aprendizado. Nesse sentido, abrem oportunidades para se pensar em
prisões, escolas, quartéis, manicômios, ordens religiosas, entre outros, também como
espaços formais de educação, na medida em que buscam ensinar, via regularização dos
corpos, modos de comportamentos ditos civilizados. Escolarização, portanto, que perpassa
o campo de visão da chamada educação formal.
Pensar na então Casa de Detenção da Corte como espaço educacional é ter em
mente formas plurais de educação, no Brasil imperial. Pluralidades das possibilidades
históricase “usos diversos que os agentes fazem das instituições educativas, escolares e nãoescolares, remodelando e reconstruindo os espaços, os saberes e os tempos sociais.” (Id.
Loc.cit.).
Os recentes estudos sobre o período, no campo educacional, demonstram
intensidade nos debates sobre a escolarização de uma camada populacional como, por
exemplo, dos negros, dos índios e das mulheres. Os estudos têm se distanciado daqueles
que consideram o período como “idade das trevas” (FARIA FILHO, 2004, p.9) da
educação brasileira. Os modelos de educação escolar para o país estavam diretamente
ligados aos ideários civilizatórios, iluministas, segundo os quais para que houvesse
progresso era preciso reeducar a população considerada perigosa para a ordem, como visto
anteriormente. Inventar o Brasil passava pela necessidade de criar uma “instrução que
possibilitaria arregimentar o povo para um projeto de país independente.” (loc.cit.).
Discursos jurídicos e a educação na cidade imperial
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
181
A monarquia constitucional, imposta no Brasil Império, “regida por homens
brancos e com a manutenção do trabalho escravo” (GONDRA & SHUELER, op.cit., p.
46), pareceu ser a solução quando se pensou a construção de um Estado-nação. A invenção
do Brasil passava, dentre muitas outras circunstâncias, pela necessidade de civilizar a
população dita perigosa. De acordo com Mattos (1987), a manutenção e a conservação de
uma ordem político-econômica vigente a partir do segundo quartel do Oitocentos
estiveram vinculadas à ideia da “construção de uma nação” (p.44). E isso significava
interferir diretamente nos modos e costumes dos agentes que deveriam ocupar esse novo
espaço. Para os idealizadores do Estado Imperial brasileiro não importava apenas prevenir
ou reprimir crimes. Antes, era necessário conhecer a população que circulava pela corte, o
que significava garantir uma “continuidade nas relações entre senhores e escravos, da casagrande e na senzala; dos sobrados e mocambos; da manutenção da terra pela minoria
privilegiada” (p.57).
A arte de prevenir e de curar, como nos lembra Foucault (2005), no caso do Brasil
imperial, estava imbricada com a necessidade de educar uma população considerada
perigosa para a ordem vigente. Faria Filho (op.cit.), em seus estudos sobre a política
autoritária brasileira e a sua estreita relação com o povo, parte do princípio de que as
propostas educativas estiveram vinculadas à necessidade de se construir uma nação nos
trópicos. As fontes utilizadas deram a ele pistas sobre diferentes movimentos interessados
em garantir a ordem vigente, a partir da educação das classes ditas perigosas. A educação
era vista como “subserviência desses sujeitos e não como forma de emancipação
social”(p.172). O gosto e o hábito pela leitura, por exemplo, ajudariam a todos fugirem “[...]
da preguiça e dos vícios [...]” (p.173). A educação aperfeiçoaria a “sociedade, não só porque
dá hábitos e costumes de regularidade, mas também porque substitui esses maus costumes
pelos bons [...]”(loc.cit.).
A concepção de punição aponta para ideia de prevenção, ou seja, prevenir o mal
seria a solução para se evitar crimes. Há nítida associação entre falta de trabalho, ociosidade
e vagabundagem. No dicionário de Moraes e Silva (1813), o termo vadio significa “alguém
que não tem amo, ou senhor com que viva, nem trato honesto, negócio, ou mister, ou
officio, emprego, nem modo de vida nem domicílio certo [...]” (p.875). Alguns anos mais
tarde, no dicionário de Silva Pinto (1832), o termo é definido como o “que não tem officio,
vagabundo” [...] não tem “domicilio certo” (p. 654). Nesses casos, há aproximações entre
ocupação e moradia fixa. Nessa sociedade, que está sendo posta sob os auspícios do
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
182
trabalho escravo, o ócio estava disponível apenas para os homens da boa sociedade. No
sentido inverso, o trabalho era direcionado para os escravos (a)s. Portanto, qualquer outra
manifestação de trabalho era imediatamente combatida. O homem livre, ao se movimentar
pela cidade, em busca de ocupação ou do seu próprio sustento, poderia ser considerado
como quem anda a “[...] vadiar, isto é, anda ociosamente de uma parte para outra”
(PECHMAN, p. 240). Ou seja, todos aqueles que não têm não tinham ofício ou endereço
certo.
Os códigos deveriam apontar para um ideal civilizatório. Nesse sentido, assumem
caráter correcional e preventivo de ordem e segurança pública. No Brasil imperial, o
Código de Posturas e o Código Criminal surgiram a partir da necessidade de um novo
delineamento jurídico que desse conta das relações sociais, de produção e de uma nova
ordem nas cidades. O ideal civilizatório, desejado para o país desde os tempos da pósindependência, trazia consigo a higienização de todo espaço urbano, fosse de cortiços,
logradouros; de vadios e prostitutas; dos mendigos e demais personagens da cidade. Polir
os comportamentos requeria a construção de um aparato administrativo-burocráticojudiciário que tomasse como parâmetro os modelos de dominação presentes nos estados
nacionais burgueses europeus. Modelo fundamentado em uma “concepção liberal de
Estado e de justiça, e que serviria de base ideológica e política para a construção do Estado
e da formação social brasileira” (NEDER, 1996, p.36).
O Código de Posturas da cidade do Rio de Janeiro130 pode ser analisado como
um conjunto de discursos jurídicos que objetivava organizar, separar, dividir, para
melhor controlar os moradores nos diferentes cantos da cidade. Nas páginas do Código
encontramos ordenações quanto à saúde pública, polícia, calçamentos, tráfego da
cidade, pinturas emplacamento das casas, tamanho dos muros das residências, prédios
comerciais e públicos, entre muitas outras.
Embora constituído em 1838, pouco mudou em suas ordenações até o final do
império, principalmente as destinadas à ordem pública. As novas determinações para o
funcionamento de fábricas de velas e o emplacamento de carroças de limpeza e de café;
novas medidas para a remoção do lixo; novas determinações para as albergarias, entre
alguns outros, são exemplos de algumas modificações feitas no Código entre 1880 e
1889.
130 Arquivo Geral da cidade do Rio de Janeiro. Código de Postura Municipal do Rio de Janeiro, 1838.
Título IV, §1º.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
183
Todos os habitantes desta cidade serão alistados nas freguesias de suas
residências. Todos os chefes de família deveriam listar seus habitantes com
nome, ocupação, nome da rua, número, parentes, agregados, escravos,
idades, empregos, e estados de origem. Eles, os chefes, assignam e são
responsáveis pelos dados. O chefe de quarteirão com uma cópia e outro
para o juiz. E uma outra na Câmara.131
Assim, os moradores da cidade também deveriam ter seus nomes e demais
dados arrolados em livros de registros. Sob um olhar hierárquico que contava com a
participação do Ministro da Justiça, do juiz de paz, do chefe de polícia, do chefe de
quarteirão e do inspetor de quarteirão, livros, mapas e relatórios eram usados para
esquadrinhar os espaços, classificar e distribuir cada morador ou forasteiro nos
diferentes cantos da cidade. Nada fugia ao “olhar” desses mecanismos de controle.
Esse aparato servia para cadastrar moradores e recém chegados à cidade. E eram os
inspetores de quarteirões, últimos da hierarquia citada anteriormente, os homens
responsáveis pelo cadastro e controle de todos os moradores. Existiam também mapas
para controle de forasteiros, ou seja, para visitantes que chegavam à cidade para visitar
parentes ou simplesmente para procurar trabalho. E qualquer um que desejasse mudar
deveria se apresentar “ao inspetor para que esse lhe de uma guia em que declare seu
nome, número da casa que residia e a que vai morar”.132
Toda Pessoa de qualquer sexo, cor ou idade, que for encontrada vadio, ou
como tal reconhecida, sem occupação honesta ou sufficiente para sua
subsistência, será multado em 10$000, e soffrerá 8 dias de cadeia, sendo posta
em custodia até a decisão do auto, e depois remetida ao chefe de polícia para
lhe dar destino. 133
Os discursos do Código associavam desocupado à figura do vadio, pois
qualquer pessoa que tivesse uma “casa ou loja de comprar e vender trastes e roupas
usadas, sem que assine termo nesta Câmara de não comprar nada de escravos ou de
pessoas suspeitas” (CÓDIGO DE POSTURAS, op.cit., TÍTULO VII). Diferentemente
da Europa, onde os meios de produção capitalista esboçavam o desejo por um tipo de
trabalhador livre, no Brasil imperial os perigosos à ordem eram todos que não se
inserissem nos padrões de trabalho ditados pela obtenção do lucro imediato. Era
obrigação dos diferentes inspetores de quarteirões registrarem, nos mapas de
moradores, “quaisquer desconfianças, que haja sobre sua conduta, os ociosos, os
vadios, os bêbados, os sem profissão, turbulentos [...] e achando desconfiança proceda
sobre elles como perturbadores públicos” (CÓDIGO, op.cit., loc.cit.).
131
Código de Postura Municipal. op.cit., Titulo XI. §3º.
Ibid., Titulo VII. §8º.
133 Ibid. Título V. §12º.
132
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
184
Tendo vigorado entre 1831 e outubro de 1890, o Código Criminal do Império do
Brasil (1831), imbuído pelo ideal de modernização do sistema jurídico-penal, veio em
substituição às leis contidas no livro V das Ordenações Filipinas que, embora muito
alteradas, ainda mantiveram algumas disposições em vigência no Brasil até o ano de 1916,
quando da promulgação do Código Civil brasileiro.
Juridicamente, o Código é uma
observância da Constituição Imperial de 1824 que previa a constituição de um “Código
Criminal, fundado nas sólidas bases da justiça e da equidade”.134
Os discursos encontrados no Código Criminal dão conta da necessidade de ordenar
uma camada populacional, com intuitos educacionais. O simples fato de não “tomar uma
ocupação honesta, útil de que possa substituir [...] era suficiente para enquadrar
qualquer um no mundo da vadiagem, pois depois de [...] ser advertido pelo juiz de paz,
não tendo renda suficiente, pena de prisão com trabalho de oito a vinte e quatro dias,
simplesmente por ser vadio [...].” (CÓDIGO CRIMINAL, op.cit., p.16). O dispositivo
educacional também pode ser percebido quando informa que haverá pena de prisão “com
trabalho segundo o estado de forças do mendigo, de oito dias a um mês, por estar
simplesmente andar mendigando”(p.18). Interessante notar que não clara especificação
se o criminoso é um vadio. Apenas há formulações subjetivas sobre quem deveria ser o
criminoso. O crime é definido como “toda acção, ou ommissão voluntária contrária ás
leis penaes” (p.19) e os criminosos são os “os autores, os que commeterem,
constrangerem ou mandarem, alguém commetercrimes” (loc.cit.). Os decretos que
compõem à categoria de crime policial, por exemplo, são destinados a “manter a
civilidade e os bons costumes” (loc.cit.) e isso incluía perseguição a “vadios,
desordeiros, capoeiras, prostitutas e sociedade secreta” (loc.cit.).
Dentre todos os artigos contidos no Código, o de nº 295135 foi o que mais enviou
detentos e detentas para a Casa. Determinava para toda pessoa que “não tomar uma
occupação honesta, e útil [...] não tendo renda sufficiente [...] pena de prisão com trabalho
por oito a vinte e quatro dias” (Ib., p. 33). O ano de 1889 foi de intensa movimentação na
instituição. A aproximação do fim do regime imperial, a chegada cada vez maior de
estrangeiros e de ex-escravos, vindos do interior da Província do Rio de Janeiro, o
surgimento da guarda negra e a atividade frenética da polícia em meio a essas tensões,
contribuíram para uma maior repressão por parte da polícia e, consequentemente, mais
134
135
APERJ. Constituição Política do Império do Brasil de 25 de março de 1824.Artigo 179, inciso XVIII.
Artigo que especifica os crimes a vadios e mendigos. Código Criminal do Império, 1831. Artigo IV.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
185
prisões. Entre os dias 29 setembro e 15 de novembro de 1889, por exemplo, os escrivães
registraram a entrada de seiscentos e sessenta e duas pessoas na instituição.136 Os principais
motivos das detenções foram a “desordem” (LIVRO DE MATRÍCULAS DE
DETENTOS, NOTAÇÃO 61, p. 01 passim),137 com 232 prisões e a “vadiagem”
(Ib.loc.cit.) com 123. Denotando uma imensa preocupação com os ociosos e desordeiros
da cidade.
A Casa de Detenção como espaço educacional
No ano de 1856, uma comissão de inspeção apresentou seus relatórios ao então
Chefe de Polícia, informando sobre as péssimas condições da então prisão do Aljube.138 O
chefe de Polícia, remetendo o relatório ao Ministro da Justiça, aproveita para manifestar a
sua opinião sobre a situação: “[...] essa prisão afronta a capital do Império, sede dos
Poderes Gerais e centro da nossa civilização [...]”.139 Ela foi desativada e todos os presos
transferidos para um dos prédios existentes nos terrenos da Casa de Correção da Corte:140
“Em quanto não for construído o edifício para a construção da Casa de Detenção, servirá
para este fim a parte do primeiro Raio da Casa de Correção, contando das mansardas e
andar térreo [...]” (REGULAMENTO, 1856, p.295). Nunca houve uma construção para a
Casa, como previsto no Regulamento. Durante todo o tempo de funcionamento esteve
vinculada à Casa de Correção. Moreira de Azevedo (1877), que fez várias visitas à
instituição entre 1872 a 1877, salienta que esse “Raio”, na década de 1870, por exemplo,
servia para “prisão de escravas, enfermaria, quarto dos médicos, sala de curativos e a
cozinha” (p.155).
A Casa de Detenção da Corte foi criada pelo decreto nº. 1774, de 02 de julho de
1856, einstalada nas dependências da Casa de Correção da Corte do Rio de Janeiro.
Embora também pudesse abrigar presos condenados, sua principal função era manter
136
Foram 750 prisões no período. No entanto, devido às condições do livro, só conseguimos verificar esses
seiscentos e sessenta e dois casos.
137 Os presos por furto estiveram logo atrás com 14 prisões. 326 pessoas foram consideradas ”brancas” e 134
“pretas”. 411 arrolados como solteiros; 41 casados e 11 viúvos. 300 pessoas tinham entre 21 e 50 anos. 347
pessoas eram “nacionais”. Encontramos aproximadamente 40 ocupações diferentes.
138 A prisão do Aljube era uma antiga masmorra eclesiástica, localizada na antiga Rua da Prainha - atual Rua
do Acre, região portuária da cidade do Rio de Janeiro. (HOLLOWAY apud MAIA, Clarice, 2009, p.275301).
139 Arquivo Nacional. Ofício do chefe de polícia da Corte do dia 23 de fevereiro de 1856. Série Justiça e
Negócios Interiores. Códice IIIJ6-222.
140Atual Penitenciária Lemos de Brito que está localizada nas dependências do complexo
penitenciário de Bangu, Rio de Janeiro. Disponível em: www.correiodobrasil.com.br/inauguradas-em-japeri>
Acesso em: 25 jan.2012.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
186
detidos aqueles que ainda não tivessem sido condenados ou tivessem cometido pequenos
delitos sem pena (REGULAMENTO, op.cit., loc.cit.). A reorganização do serviço policial
do distrito federal, em 1900, estabeleceu a instituição como órgão integrante do Ministério
da Justiça e Negócios interiores. De sua criação até 1889 esteve sob as ordens do Ministro
da Justiça do Império. Com o advento da República, passou a ser subordinada ao governo
federal até 1960, quando o Rio de Janeiro deixou de ser capital do Brasil. A partir daí
pertenceu ao recém-criado estado da Guanabara até 1974, quando se deu a fusão com o
estado do Rio de Janeiro, ao qual pertence até hoje. Em 1941 passou a ser denominado
presídio do Distrito Federal. Em 1963 desvinculou-se administrativamente da Penitenciária
Lemos de Brito, recebendo o nome de Penitenciária Milton Dias Moreira.141 Durante o
regime imperial, houve apenas mais um Decreto modificando o regulamento da instituição,
mas nada de muito significativo (REGULAMENTO, 1881, 01 passim). Apenas
determinava que o diretor fosse chamado de administrador, e que suas atribuições e
vantagens fossem mantidas. Outras alterações, no entanto, foram de caráter administrativo,
como a mudança das atribuições do médico e a supressão de frases e revogação de artigos
do decreto anterior, o de nº 1774 de 02 de julho de 1856.
No final da década de 1870, o Rio de Janeiro contava com um complexo
penitenciário, compreendido pelas Casas de Detenção e Correção, bem como o Calabouço.
Dentre esses, a instituição era a mais importante, pois para lá convergiam todos os dias
uma massa de deserdados, desocupados e desvalidos que caíam na malha fina do poder
jurídico-policial da época. A maioria das prisões era feita sob prerrogativa da manutenção
da ordem constituída. Pedreiros, fundidores, latoeiros, guardas freio, ostreiros, lavadeiras,
lustradores, estivadores, barbeiros, quitandeiros, escravos ao ganho, pautadores, alfaiates,
cigarreiros, calafates, cafeteiros, entre outros trabalhadores, eram encaminhados à
instituição por incorrerem em delitos como vadiagem, mendicância, embriaguez, desordem,
ofensas públicas, agressões, insultos, portar navalha, entre outros (LIVRO DE
MATRÍCULAS, op.cit., loc.cit.). Conflitos resultantes de uma associação perversa entre
crime e vadiagem, e que refletiam diretamente na movimentação diária de detentos e
detentas.
As distinções, promovidas pela linha abissal, que estruturam a realidade social,
baseadas na invisibilidade “[...] das distinções entre este e o outro lado da linha” (p.33),
141
Atualmente a Penitenciária, com capacidade para 768 detentos, encontra-se localizada no
município de Japeri, Rio de Janeiro. Disponível em: <www.correirodobrasil.com.br>Acesso em: 20 de
jan.2012.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
187
permaneceram nos espaços intramuros da Casa. Ao dar entrada na instituição, o detento
passava por uma triagem composta por dois itens: “averiguação do crime e condição do
preso” (REGULAMENTO, 1856, p.295). O objetivo da mesma seria discriminar os
detentos e, a partir dessas informações, encaminhar este ou aquele lugar dentro da Casa: os
detentos condenados a “galés, galés perpétua, pena de morte e trabalhos forcçados por
mais de dez anos” (loc.cit.) deveriam ocupar o andar superior. Os detentos por infração de
posturas “municipaes, regulamentos policiaes [...]” (loc.cit.) juntamente com os que
padecessem de moléstias contagiosas, ou repugnantes, cuja presença seja nociva aos outros,
deveriam “occupar o andar térreo” (loc.cit.). Poderia haver, no entanto, outras divisões.
No Regulamento encontram-se recomendações para que se observem “[...] além dessas,
divisões outras que se julguem convenientes, tendo em vista a posição social, costumes e
circunstancias individuaes” (p.295). O termo, referente à posição social do detido, deixa
claro haver tratamento diferenciado para os detidos. O fato de alguns presos poderem
manter um escravo ou criado dentro da prisão, de outros a “[...] humaração de vinho que
não exceda de meia garrafa, cassando a permissão quando della haja abuso” (loc.cit.) só
confirma esta hipótese.
O detento deveria também assinar um termo, declarando-se pobre ou não:
Preso que for pobre houver de ser sustentado á custa do Estado receberá logo a
sua entrada a vestimenta da casa, deixando na arrecadação a roupa que entrou,
para lhe ser entregue no acto da sahida. Os presos que não forem sustentados á
custa do Estado, receberão de fora a roupa de uso e de cama, sendo obrigados
a mudarem aquella duas vezes, e esta huma por semana; a tabela 2 marca a
ração dos presos pobres: aquelles, porém, que quiserem trabalhar receberão a
ração da tabela 3, iguaes à dos condennados na penitenciária
[...](REGULAMENTO, op.cit.,p.295).
No primeiro caso, teria toda a “vestimenta da casa” que se baseava em uniforme,
roupa de cama e banho, utensílios para higiene pessoal e alimentação. Para os outros, a vida
dentro da prisão parecia ser um pouco mais confortável, pois além de todos esses
benefícios também teriam direito a uma “ração” melhor, bem como a visita semanal de
advogado, caso tivesse um.142 A “ração da tabela 3’ era a mais pobre. Constava apenas do
necessário para sobrevivência como, por exemplo, um pouco “de farinha e fubá”.143
Experiências intramuros que exprimem a manutenção da divisão social nos espaços
extramuros, ou seja, a manutenção de uma linha abissal.
142
Contudo, os presos considerados pobres poderiam ser atendidos pela Casa de Detenção, no que diz
respeito à comida, roupas de cama, uniforme e utensílios de higiene, desde que os mesmos pagassem pelo
serviço( REGULAMENTO, p.296).
143 Relatório de despesas da Casa de Detenção da Corte, feita ao Presidente da Província do Rio de Janeiro,
ano de 1857, informando sobre os valores gastos na alimentação dos presos.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
188
O castigo era um dos mecanismos para ensinar os detentos e detentas a manterem a
ordem.
Os presos que infringirem o presente Regulamento, ou não se comportarem na
prisão com a decencia e moderação necessária, ficarão sujeitos ás penas
correcionaes que lhe serão impostas pelo Director. Essas penas são:
Advertência em separado, reprehensão, mudança de prisão, prisão em solitária e
jejum (p.301).
Até o presente momento, devido aos livros pesquisados, temos poucas informações
sobre os castigos que os presos sofreram. Destacamos, no entanto, o caso do carpinteiro
José Manoel Machado, solteiro, 17 anos, branco, olhos pretos, rosto redondo que foi preso
por vadiagem no dia 01 de janeiro de 1881. Durante dois dias foi “advertido pelo diretor
por não se comportar com decência necessária [...]” (LIVRO DE MATRÍCULAS, op.cit.,
p. 222). Como foi solto somente no dia 20 de fevereiro teve algum tempo para ser
enquadrado no padrão prisional. É certo, porém, que esses castigos eram para os presos
que não fossem escravos. Para esses, havia determinação para o castigo corporal. Como
nesse artigo, bem como na pesquisa, não há maiores investigações nos livros de matrícula
para escravos, não há como precisar sobre os castigos. Holloway (2002), no entanto,
observa que o castigo físico, especialmente o “açoite como sentença judicial” (p.214),
empregado sobre os escravos havia diminuído muito desde o final da década de 1860. O
autor salienta que no ano de 1873, por exemplo, havia inúmeras reclamações da parte dos
senhores acusando os guardas do Calabouço de não estarem sendo severos com os
escravos. Nesse sentido, há remotas possibilidades de haver castigos corporais aos escravos
detidos na Casa.
O trabalho era outra forma de educar esses presos.
A ordem que deve reinar nas cadeias pode contribuir fortemente para regenerar
os condenados; os vícios da educação, o contágio dos maus exemplos, a
ociosidade originam crimes [...] que sejam praticadas regras de sã moral nas
casas de detenção; que, obrigados a um trabalho de que terminarão gostando,
quando dele recolherem o fruto, os condenados contraiam o hábito, o gosto e a
necessidade da ocupação; que se dêem respectivamente o exemplo de uma vida
laboriosa; ela logo se tornará uma vida pura: logo começarão a lamentar o
passado, primeiro sinal avançado de amor pelo dever (FOUCAULT, 2005,
p.129).
De acordo com Foucault (op.cit.), o capitalismo exigiu cada vez mais trabalhadores
produtivos; dóceis e úteis. Nesse sentido, esse sistema exigiu uma economia do corpo para
que esses respondessem melhor aos padrões exigidos. Multidões de trabalhadores,
portanto, deveriam se adequar a um padrão onde economizar movimentos e evitar o ócio
seriam regras a serem seguidas. A prisão - como escolas, hospitais, quartéis e outros - seria
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
189
mais um lugar onde esses mecanismos também devessem ser utilizados a fim de tornar
todo o tempo vigiado produtivo. Nessas décadas finais do sistema imperial, os homens da
boa sociedade viam no ócio uma forma de vadiagem, como visto anteriormente. O mesmo
era privilégio apenas para essa camada populacional. Dessa forma, mesmo os presos na
Casa eram estimulados, a despeito do tempo de permanência, a trabalharem em uma das
oficinas existente no complexo penitenciário: “os presos pobres que quiserem trabalhar
serão admitidos nas oficinas de trabalho do Estabelecimento [...] vencendo o jornal que
será marcado pelo Director”. (REGULAMENTO, op.cit., p.298).
O complexo
penitenciário contava, no período proposto por esse artigo, com uma escola, padaria,
oficina de carpinteiros, de calçados, de encadernação, de ferreiro. O trabalho “[...] começa
ás 5hs no verão e ás 6 no inverno” (AZEVEDO, 1877, p.404). Foi solicitado, em 1876,
que os presos produzissem “[...] 192 pares de sapatos grafos para os bombeiros, e havendo
neste estabelecimento uma officina de calçados, rogo que vossa senhoria de declarar-me
qual o valor de cada par dos mesmos sapatos, e o tempo em que eles podem ser
fornecidos”;144 como também a confecção de “[...] bancos com carteiras para a Escola
pública de meninos da Freguesia do Espírito Santo”.145 Esses exemplos denotam, a
princípio, que mesmo de “passagem” todos estavam submetidos aos mesmos
procedimentos reeducacionais daqueles que estavam cumprindo pena.
Outro distanciamento parece ter sido quanto à funcionalidade da instituição. Se
realmente foi uma instituição de “passagem”. Joaquim Coelho da Costa, nº de registro
3446, preso por vadiagem e declarado pobre. Portanto duas condições que o colocam “do
outro lado da linha”. Entrou conduzido pelo “carro da caza”,146 com a guia do subdelegado
de polícia.147 Era filho de Antonio José da Crua e Maria, natural de Boa Esperança,
trabalhador, solteiro, 20 anos, pardo, rosto cumprido, olhos escuros, cabelos carapinhas,
nariz regular, morador da Rua do Lavradio. No momento da prisão trajava “camiza de
chita, calça de brim, paletó preto e chapéu preto”. Como todos os outros, passou pelo
ritual de passagem: teve cabelos e barba raspados, recebeu as vestimentas, foi conduzido a
uma cela e ouviu dos guardas as normas rígidas impostas do Regulamento como, por
exemplo, horário “do silêncio e do despertar”. O que diferencia Félix de outros presos foi
144 Pedido feito pela diretoria central da Sociedade d’ajuda do Estado dos Negócios da Agricultura Comércio
e Obras Públicas ao diretor da Casa de Correção, em 1876.
145 Pedido recebido, pelo diretor da instituição, da Inspetoria Geral da Instituição Primária e Secundária do
Ministério da Corte.
146 Era uma carroça gradeada, que desfilava com os presos pelas ruas da cidade (SOARES, 1994, p.123).
147 Que pode ter sido um sido um policial ou um simples guarda urbano (Id. loc.cit.).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
190
o tempo de permanência: quatro meses por um crime que, segundo o Código Criminal,
deveria ser de oito a vinte e quatro dias. A hipótese é a de que quanto mais tempo preso,
mais tempo teria para ser reeducado. A justiça contribuía com esse ideal. De acordo com
Azevedo (op.cit.), a justiça era lenta e que os processos judiciais não davam conta das “[...]
custas, e as pretorias deixam dormir em paz a formação da culpa, enquanto a indolência
dos cubículos [...] rapazes, dias antes honestos, fazem o mais completo curso de delitos e
infâmias [...]” (p. 397).
A instituição, de passagem, parece ter passado a permanente. O problema ficou tão
sério que no ano de 1885, com o agravamento do problema da superlotação, o próprio
Ministro da Justiça solicitou a “[...] a construção de um novo prédio [...]” (WOLLOWAY,
1997, p. 232), pois o mesmo não mais condizia com o “estado de civilização” (loc.cit.).
Porém, o problema da superlotação não foi solucionado. Tão pouco houve construção de
outro prédio. Então, o mesmo Ministro, no ano de 1888, pediu às autoridades competentes
para que as pessoas presas devessem ser “formalmente acusadas de crime ou liberadas“
(loc.cit.). Parece que as autoridades judiciais tinham conhecimento de que a instituição não
era mesmo um lugar de passagem, mas sim de permanência.
Considerações finais
Disciplinar para educar a população pareceu ser um dos principais ingredientes para
o envio de tanta gente à prisão da corte. Nessa direção, a instituição deveria ser um
prolongamento dos acontecimentos sociais, políticos e econômicos do espaço da cidade.
Deveria se a escola para educar, produzir comportamentos desejáveis, ensinar o vadio a ser
produtivo, mediante as oportunidades de trabalhos nas diversas oficinas da instituição.
Deveria contribuir com o processo de construção da nação. E não por acaso a instituição
chega ao final do império superlotada; correcionais e apenados, na mesma cela,
participantes de uma teia de poder onde as múltiplas relações ocasionassem, por exemplo,
em motins, assassinatos, promiscuidade, jogos de azar, suborno a policiais, brigas entre
outros. A instituição como uma escola de todas as perdições.
Os mundos idealizados pela boa sociedade acabaram por demarcar as relações
ambíguas e perversas entre os diferentes personagens. Os pertencentes ao “outro lado”
viram-se perseguidos e presos na Casa de Detenção. E a instituição deveria ser a escola
para educar, produzir comportamentos desejáveis. Tornar o vadio útil e produtivo. E, não
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
191
por acaso, a instituição chega ao final do império superlotada. Correcionais e apenados
dividindo a cela com crianças. A instituição como uma escola de todas as perdições.
Enquanto sujeitos históricos, quando, de maneira geral, os considerados vadios
saíram do espaço apropriação/violência? Qual foi o ponto de viragem? Ele realmente
existiu? Este trabalho não traz respostas a todas essas perguntas, mas propõe reflexões
posteriores sobre alguns pontos. Seria possível imaginar que a linha abissal, no caso dos
vadios, corta a história brasileira após o Império? O sistema legal destinado a manter
vadiagem “do lado de lá” da linha, permaneceu após esse período? Essa associação entre
crime e vadiagem persistiria no Brasil República. O código Penal de 1890 também
tipifica a vadiagem como crime quando previa pena de reclusão para aqueles que
deixassem de “exercer profissão, ofício [...] prover subsistência por meio de ocupação
proibida por lei [...]” (MENEZES, 1996, p.132).
Fontes manuscritas:
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro: Posturasdas Câmaras Municipais do Rio de
Janeiro,1838-1881.
Arquivo Nacional: Ministério da Justiça. Auto de revistas de prisões. Série Justiça e Negócios
Interiores, códice III J7-7.
_____. Ofícios do chefe de polícia da Corte, 23 de fevereiro de 1856. Códice IJ6 222.
_____. Fundo Estado dos Negócios da Agricultura Comércio e Obras Públicas. 2 secção, RJ,
1876).
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro: Fundo Casa de Detenção do Rio de Janeiro:
Livros de Matrícula de Detentos e Detentas.
_____. Coleção de Leis do Império do Brasil: Regulamento da Casa de Detenção da Corte.
1856 e 1881. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1857, p. 294-305.
_____. Fundo Presidência da Província do Rio de Janeiro: 1786-1889.
Referências bibliográficas:
ANAIS da Câmara dos Deputados do Rio de Janeiro. Sessão do dia 27 de agosto de
1874. Disponível em:<www.imagem.camara.gov.br> Acesso em: 20 mar.2012.
AZEVEDO, Duarte Moreira de Azevedo. Rio de Janeiro: Sua história, monumentos, homens
notáveis, usos e curiosidades. Biblioteca Garnier, 1877. 425p.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
192
BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos: Um Haussmann Tropical. Biblioteca Carioca, 210p.
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário portuguez & latino: áulico, anatômico, architectonico.
Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 - 1728. 8 v. p. 638. Disponível em:
<www.brasiliana.usp.br/en/dicionario/edicao/3> Acesso em: 20 jun. 2012.
BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da historiografia. São
Paulo: Fundação da UNESP, 1989, p.12.
______.A Escrita da História. Novas perspectivas São Paulo : Ed. UNESP, 1992, p18.
FILHO, Luciano Mendes de Faria (org.) Pensadores sociais e história da educação. São Paulo,
2004. 342p.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramallete. 30ª ed.
Petrópolis: Vozes, 2005. 288p.
GONDRA, José Gonçalves. Artes de civilizar: Medicina, higiene e educação escolar na corte
imperial. Gondra, Rio de Janeiro: EdUERJ, 2004. 562p.
______. SCHUELER, Alessandra. Educação, poder e sociedade no império brasileiro. São
Paulo: Cortez Editora, 2008. 320p.
HOLLOWAY. Thomas H. O Calabouço e o Aljube do Rio de Janeiro no século XIX. In.
MAIA, Clarice (et.tal.). Histórias das Prisões no Brasil. Rio de Janeiro : Rocco, 2009. 375p.
______.Polícia no Rio de Janeiro. Repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de
Janeiro. Ed. FGV, 1997. 344p.
LINHARES, Maria Yedda Leite. História do abastecimento: uma problemática em questão
(1530-1918). Brasília : BINAGRI, 1979. 250p.
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema: A formação do estado imperial. São Paulo,
ed. Hucitec, 1987. 300p.
MENEZES, Lená Medeiros de. Os indesejáveis: desclassificados da modernidade. Protesto, crime
e expulsão na capital federal (1890-1930). Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996. 304p.
NEDER, Gizlene. Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil. Ed. Sérgio Antônio
Fabbis,1995,168p.
NUNES, Clarice. Formação de educadores: os desafios do presente. In. MAGALDI, Ana
Maria; ALVES, Claudia; GONDRA, José Gonçalves (Orgs). Educação no Brasil: História, cultura
e política. Bragança Paulista ; EDUSF, 2003, 668p.
PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas: o detetive e o urbanista. Rio de
Janeiro: Casa da palavra, 2002. 421p
PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionario da Lingua Brasileira por Luiz Maria da Silva Pinto,
natural da Provincia de Goyaz. Na Typographia de Silva, 1832. Disponível em:
<www.brasiliana.usp.br/en/dicionario/edicao/3> Acesso em: 20 jun. 2012.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
193
PRESIDÊNCIA da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei de 16 de
dezembro de 1830. Código Criminal do Império do Brasil. Disponível em:
<www.planalto.gov./ccivil03/leis/lim-16-12-1830> Acesso em: 20 jun. 2012.
SILVA, Antonio de Moraes e. Diccionario da língua portugueza. Lisboa. Casa impressora:
Typographia Lacerdina, 1789. Disponível em <www.brasiliana.usp.br/en/dicionario/edicaõ/3>
Acesso em: 20 jun. 2012.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
194
A evolução econômica regional e o papel dos imigrantes na zona da Mata mineira:
o caso de Juiz de Fora no século XIX
Joanna Darc de Mello Croce
Graduação em Turismo pela UFJF
joannacroce@hotmail.com
Marcus Antônio Croce
Doutorando em Economia pela UFMG/Bolsista Capes-Reuni
mc1967@ig.com.br
Resumo: Nosso trabalho busca focar como a chegada de imigrantes, tanto nacionais como
estrangeiros na cidade pólo da zona da Mata mineira, Juiz de Fora, consolidou uma
dinâmica econômica ascendente. Tudo começou devido a construção da Estrada União
Indústria, ligando Juiz de Fora ao Rio de Janeiro no século XIX, que atraiu a presença de
trabalhadores estrangeiros na construção da rodovia, e, ao mesmo tempo, atraiu
investidores como industriais, comerciantes e dentre outros de outras localidades
contribuindo para um evolução econômica regional.
Palavras Chave: Imigrantes; economia; desenvolvimento
Abstract: Our paper aimstofocus onthe arrival of immigrants, both domestic and foreignin
the citycenterofZona da Mataof Minas Gerais,Juiz deFora,aconsolidatedupwardeconomic
dynamics. It all startedbecauseofthe constructionIndustryUnionRoad, linking Juiz de
Forain Rio de Janeiroin the nineteenth century, which attracted the presenceof foreign
workersin the constructionof the highway,and at the sametime,attractedinvestors
andindustrialists, tradersand amongothersother locationscontributing toregional
economicdevelopment.
Keywords:Immigrants; economicdevelopment
Introdução
O trabalho ora apresentado tem como objetivo central contribuir com o estudo
sobre a imigração ocorrida na cidade mineira de Juiz de Fora, durante a segunda metade do
século XIX.
A expansão da economia cafeeira na região da zona da Mata mineira propiciou os
agentes agrários juntamente com o governo imperial à inaugurarem a rodovia União e
Indústria, fato esse que trouxe uma grande leva de imigrantes alemães, franceses e outros a
se instalarem na cidade através de colônias. Tais imigrantes paralelamente à construção da
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
195
estrada foram inaugurando ramos de produção com suas economias, tanto individuais
como também em sociedade, contribuindo significativamente com o crescimento da
cidade.
A força de trabalho especializada desses imigrantes juntamente com o crescimento
da cidade e sua proximidade com a capital do Brasil nesse período, a cidade do Rio de
Janeiro, atraiu também imigrantes nacionais, em sua maioria do próprio estado de Minas
Gerais que já se instalaram em Juiz de Fora consolidados e passaram a investir na cidade
com seus ramos de produção. A diversificação setorial desses investimentos contribuiu na
junção de capitais de imigrantes nacionais, estrangeiros e agentes agrários da cidade
gerando um número representativo de sociedades anônimas que geraram inovações no
contexto brasileiro dessa época como a Cia. Mineira de Eletricidade, primeira hidrelétrica
da América Latina e a Academia do Comércio, primeira instituição de curso superior na
América do Sul.
Metodologicamente, o desenvolvimento de nossa pesquisa se divide em três partes.
Na primeira expomos uma visão geral da relação entre imigração e produção cafeeira na
região sudeste, focando mais precisamente os estados de Minas Gerais e São Paulo que
vivenciaram esse contexto.
No segundo tópico, o enfoque é direcionado aos imigrantes estrangeiros e suas
atuações na conjuntura econômica que a cidade de Juiz de Fora presenciava. Pequenas
fábricas, porém com grande diversificação produtiva fazem parte dessa dinâmica.
Na terceira e última parte do artigo, destaca-se a participação maciça dos imigrantes
nacionais que, associando-se a cafeicultores locais deram a oportunidade da cidade
alavancar sua importância no cenário econômico nacional. Eventos como luz elétrica,
formação superior para administradores e gerentes, sistema financeiro, industrial e
comercial sólidos foram algumas características da contribuição dos imigrantes em Juiz de
Fora.
Esperamos por fim, respeitando todas as especificidades socioeconômicas do
estado de Minas Gerais, demonstrar como o fator imigração trouxe uma constelação de
fatores que transformaram o cotidiano de toda uma sociedade.
1 - A Visão Geral da Imigração no Brasil no século XIX: Uma análise da região
sudeste.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
196
Segundo Celso Furtado, em um momento em que a população brasileira se
encontrava com sete milhões de habitantes dos quais dois milhões eram escravos, o Brasil
pressionado pela Inglaterra, em 1850, decreta a Lei Eusébio de Queiróz com o objetivo
encerrar o tráfico de escravos oriundos da África ao país. Em 1872, o primeiro censo
demográfico do Brasil já demonstrava uma redução da população escrava, onde se detectou
a presença de um milhão e meio deles na sociedade (FURTADO, 1980 p. 117).
O fim do tráfico refletiu diretamente na economia do Brasil nesse período uma vez
que, o tráfico representava a maior quantidade de importação do país, envolvendo muitos
negociantes de distintas esferas sociais nesse empreendimento. Gerou também uma grande
inversão de ativos, como por exemplo, transferência de capitais destinados à imóveis,
compra de escravos para outros setores como bancos de emissão e papéis da dívida pública
(HOLANDA, 1995 p. 88).
O episódio da extinção do tráfico negreiro no Brasil pode ser enxergado como um
ensaio para a Abolição que ocorreria em 1888, uma vez que já estavam sendo elaboradas e
implantadas formas de se substituir a mão-de-obra escrava pela força de trabalho dos
imigrantes (COSTA, 1998 pp. 159-93).
A transição da força de trabalho, do escravo para o livre, juntamente com o
desenvolvimento da produção cafeeira gerou uma situação conflituosa. Latifúndios
começaram a se dividir na questão de mão-de-obra entre escravos, meeira e imigrante que
haviam sido informados de uma forma de trabalho, mas se deparavam com uma realidade
bem diferente, chegando a existir até uma “quase escravidão por dívida”148. Tais conflitos
entre fazendeiros e imigrantes ocasionaram em 1859 uma proibição de imigração por parte
da Alemanha ao Brasil (BOCCHI, 2003 p. 82).
Em 1837 entra em vigor uma legislação que regulamenta o trabalho de imigrantes
estrangeiros, a lei nº 108 de 11 de outubro, onde existia uma política voltada para a criação
de “colônias de parceria” financiadas por investidores particulares porém com ônus para os
imigrantes e uma política de subsídio tratada entre o governo imperial e os governos
provinciais que acabou sendo prevalecida.
Na década de 1870, com a ascensão contínua da produção de café e a Lei do Ventre
Livre promulgada em 1871, a força de trabalho tornou-se mais necessária, pois além de
148 Existiam contratos que os imigrantes que assumiam um papel de colonos assinavam na Europa fazendo
com que estes ficassem atrelados ao serviço nas fazendas até o pagamento final de suas dívidas. Tais colonos
tinham seu transporte desde a Europa até as fazendas pagos e todas as despesas envolvendo manutenção e
transportes teriam de ser pagas no momento em que o imigrante pudesse sustentar-se, além de ser cobrado
um juros sobre a quantia investida de 6% ao ano. Ver: COSTA, 1998 p. 81.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
197
reduzir o número de escravos, a convivência entre cativos e ex-cativos desencadeou
revoltas nos centros de produção (BOCCHI, 2003 p. 82).
Os fatos acima geraram incentivos à imigração de trabalhadores assalariados e
participações em subsídios envolvendo o império e governos provinciais. Entre 1860 e
1869, 108.187 imigrantes pisaram em solo brasileiro, sendo que entre 1881 e 1930, eram
3.964.300 (PAULA, 2012 p. 27).
No ano de 1879 ocorre um fato que levará a um grande contigente imigratório
para o Brasil que irá se estabelecer durante toda a década de 1880: a promulgação da lei de
1879. Tal lei que trazia em seu bojo pontos como, parceria agrícola e pecuária como
também locação de serviços permitiu uma entrada significativa de imigrantes
principalmente direcionados para a cafeicultura.
As regiões de estados como a zona da Mata em Minas Gerais e o Oeste de São
Paulo dinamizando sua economia através de diversificação setorial oriunda do capital
obtido das receitas do café foi um exemplo disso. Verifica-se o caso de São Paulo na tabela
abaixo:
TABELA 01
Subsídios à imigração: 1885-1900 (em libras esterlinas)
Ano
Governo
Federal (A)
Governo
Estadual (B)
TOTAL
B/C %
A+B=C
1885
80.430,78
28.343,82
180.774,01
15,68
1886
160.619,27
88.172,13
194.179,40
45,41
1887
251.734,00
299.447,62
551.181,62
54,33
1888
405.395,21
304.383,88
709.779,09
42,88
1889
703.153,53
17.541,18
720.694,71
2,43
1890
327.322,21
83.918,70
411.240,91
20,41
1891
1.224.275,18
37.382,66
1.281.657,84
2,92
1892
346.374,96
75.565,31
421.940,27
17,91
1893
301.319,60
180.554,46
481.874,06
37,47
1894
99.067,25
51.318,40
150.385,65
34,12
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
198
1895
339.878,38
301.398,25
641.276,63
47,00
1896
679.561,38
175.406,26
854.967,64
20,52
1897
30.887,30
190.619,57
221.506,87
86,00
1898
40.485,88
82.039,20
122.525,08
67,00
1899
7.942,15
70.607,19
78.549,34
90,00
1900
75.213,94
44.685,92
119.899,86
37,26
Fonte: GRAHAM, D. H. Migração estrangeira e a questão da oferta de mão-de-obra no crescimento
brasileiro. Estudos Econômicos 1880-1930, v. 3 n.1
A imigração que ocorreu na região sudeste do Brasil, mais precisamente nos estados
de Minas Gerais e São Paulo no século XIX se deram com maior incidência devido à
produção cafeeira. Em São Paulo os dados abaixo corroboram esse fato:
TABELA 02
Produção de café e imigração (1880-1897)
Ano
Produção de café
Nº de imigrantes
1880
5.783
22.520
1881
5.691
23.766
1882
6.852
24.306
1883
5.166
25.449
1884
6.492
29.935
1885
5.770
35.688
1886
6.320
56.606
1887
3.165
64.818
1888
6.925
79.224
1889
4.405
115.879
1890
5.525
121.927
1891
7.695
122.238
1892
6.535
121.245
1893
5.040
133.274
1894
7.235
121.548
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
199
1895
6.005
133.580
1896
9.315
122.241
1897
11.210
120.970
Total
115.129
1.475.214
Fonte: Departamento Nacional do Café – Anuário Estatístico, 1938 e Secretaria da Agricultura de São Paulo,
Relatório, vários anos. (1) Em milhares de sacas de 60 kg, colocadas no porto de Santos. In: Formação
Econômica do Brasil/ organizadores: José Márcio Rego, Rosa Maria Marques – São Paulo: Saraiva, 2003.
Como coloca João Antônio de Paula, não será reducionismo afirmar que o núcleo principal
destas mudanças foi a economia cafeeira (PAULA, 2012 p. 27). A imigração na região sudeste do
Brasil na segunda metade do século XIX de fato em sua grande parte atrelada ao café,
Temos que reconhecer então, que esse fator contribuiu significativamente para o
deslocamento de pessoas estrangeiras e também de outras localidades do país,
principalmente nos estados de São Paulo e Minas Gerais, onde a produção cafeeira se
encontrava em franca ascensão nessa época.
No caso da zona da Mata de Minas Gerais e seu pólo urbano, a cidade de Juiz de
Fora, objeto de nosso interesse nesse artigo, na segunda metade do século XIX a imigração
se concentrou mais nessa região devido ali ser o centro cafeeiro mineiro nesse período.
A construção de uma rodovia, a “União e Indústria”, voltada para o escoamento do
café para o porto do Rio de Janeiro, contribuiu diretamente nesse contexto, atraindo mãode-obra estrangeira e conseqüentemente atraindo empresários e outros trabalhadores de
outras localidades para o município, fato esse que veremos mais detalhadamente no
próximo tópico.
2- A imigração para a cidade pólo da zona da Mata mineira: Juiz de Fora
No que se refere à questão da imigração em Minas Gerais no século XIX, a relação
desse contexto com a industrialização em Juiz de Fora é um fato pertinente
(ARANTES,1991; BIRCHAL, 1998; CROCE, 2008; GIROLETTI, 1988).Tal relação nos
permite uma visualização geral de como esse processo influiu no panorama econômico de
Juiz de Fora chegando a ponto da cidade ficar conhecida como "Manchester Mineira".
Sérgio Birchal (1998) contribuiu no campo dessas especificidades com uma
pesquisa na qual se refere às diferenças regionais do empresariado brasileiro. Birchal
destaca que a classe empresarial oriunda de imigrantes teve uma expressão muito limitada
em Minas Gerais, porém coloca que a participação dessa classe foi significativa somente na
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
200
zona da Mata mineira (BIRCHAL, 1998 p. 18). Mais uma vez percebemos a desarticulação
e as especificidades de cada sub-região mineira, devido à grande dimensão territorial do
Estado149.
No período que envolve os anos de 1858/1912, 66% das indústrias de Juiz de Fora
pertenciam a imigrantes. Birchal aponta então que o imigrante industrial mineiro se difere
do imigrante industrial paulista, denominado como o "imigrante burguês" (BIRCHAL,
1998 p.19). A diferença é demonstrada através do início das atividades desses imigrantes no
Brasil. Segundo Birchal, o imigrante industrial mineiro começa a trabalhar como operário e
em outras atividades secundárias, na expectativa de conseguir um pedaço de terra, diferente
dos imigrantes paulistas (BIRCHAL, 1998 p. 19).
A análise de Birchal nesse contexto comparativo merece ser relativizada. Quanto ao
setor agrário, podemos assimilar as diferenças, se levarmos em conta que, enquanto as
fronteiras na zona da Mata mineira no período já se encontravam fechadas, São Paulo no
período pós-abolição dispunha de fronteiras abertas. Tal fato resulta no desenvolvimento
cafeeiro, impulsionado pelos "contratos de colonos" (LIMA, 1981 pp. 30 a 35). Quanto ao
"imigrante burguês", o qual é um investidor presente no meio urbano-industrial de grandes
empreendimentos, não assimilamos a diferença entre o imigrante mineiro e o imigrante
paulista.
Imigrantes investidores realizaram grandes empreendimentos na zona da Mata
mineira como o feito em São Paulo. Vejamos o caso de Pantaleoni Arcuri, estabelecido na
cidade de Juiz de Fora. Pantaleoni Arcuri foi pioneiro em fabricar e comercializar no Brasil
telhas de amianto, além de fabricar ladrilhos hidráulicos (GIROLETTI, 1988 p. 78), assim
como muitos imigrantes inovaram em seus ramos em São Paulo.
Muitos imigrantes que se instalaram em Minas Gerais, mais precisamente na zona
da Mata mineira, como apontou Birchal, realmente pretendiam um pedaço de terra que
esperavam adquirir com suas economias extraídas de serviços operários. Porém outros
recém-chegados já pretendiam investir com uma economia externa. Estudos apontam esse
fato, demonstrando a entrada de imigrantes ingleses, que já fixados no Rio de Janeiro
investem em Juiz de Fora (PIRES, 1999 p. 299)150.
149
A respeito dessa desarticulação entre as regiões de Minas Gerais ver WHIRTH, John. O Fiel da Balança:
Minas Gerais na Confederação Brasileira: 1889/1937. Paz e Terra, São Paulo, 1982.
150É importante assinalar que, como aborda Anderson Pires, o investimento da Companhia Industrial Mineira
foi concretizado por comerciantes ingleses radicados no Rio de Janeiro, e por isso afirma que Maria Teresa
Versiani aponta erroneamente que tal investimento foi um investimento de origem estrangeira. Nossa
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
201
Consideramos extremamente importante analisar a imigração na cidade de Juiz de
Fora focando os fatores mão-de-obra e o empresarial na constituição no desenvolvimento
econômico local.
Dentro do primeiro fator, a construção da rodovia União e Indústria foi o marco da
chegada dos imigrantes no município. O desenvolvimento dessa obra, administrada pela
Cia. União e Indústria geraram resultados diretos e indiretos que a diferiram das outras
companhias do país (GIROLETTI, 1988 p. 55).
As outras referidas companhias eram conhecidas como "Cias. relâmpago",
direcionadas por tecnologia e administração estrangeira, enquanto a companhia local
possibilitou relações duradouras, que influíram no processo produtivo endógeno. A
Companhia União e Indústria "contribuiu para diversificação de forças produtivas; não só introduziu
como facultou a mão-de-obra livre e a mão-de-obra qualificada" (GIROLETTI, 1988 pp. 55-56).
Devido às necessidades qualitativas do empreendimento, o idealizador da obra
rodoviária União e Indústria, Mariano Procópio, buscou nos imigrantes serviços
relacionados à engenharia, arquitetura, desenho, técnico em pontes e dentre outros, sendo
que a maioria dos imigrantes iria compor o quadro de operários. Diante desse quadro foi
criada então a Colônia D. Pedro II, local de moradia desses imigrantes recém-chegados.
Em uma iniciativa que envolveria os setores público/privado, o empreendimento
buscou solucionar objetivos de ambos os lados. O setor privado, representado pelos
cafeicultores, estabeleceu que a rodovia atendesse a seus interesses, necessitando de
serviços especializados dos imigrantes. Já o governo, buscou fortalecer a agricultura,
reforçando o contingente agrário associado a técnicas européias.
No acordo entre as partes, celebrado em 1852, ficou constatado que a Cia. União e
Indústria trouxesse 2.000 colonos, sendo que 400 famílias encampariam o setor agrícola.
Entre maio de 1858 e dezembro de 1860, a colônia abrigou 1.144 pessoas, sendo os
residentes dessa colônia agricultores e agentes especializados em diversas categorias como:
professores primários, oleiros, pedreiros, jardineiros, sapateiros e tecelões(GIROLETTI,
1988 pp. 57-58) .
As inovações que os imigrantes trouxeram, refletiram no cotidiano da colônia. Os
trabalhadores da colônia se dividiam em suas funções, enquanto uns trabalhavam na
companhia, outros trabalhavam por conta própria e outros na agricultura. A agricultura
colocação a esse respeito é a colaboração de investimentos proporcionados por imigrantes em Juiz de Fora,
sendo que o investimento mencionado partiu de imigrantes ingleses.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
202
exercida pelos imigrantes se voltou para o mercado interno, cultivando produtos como
mandioca, milho, arroz, feijão, inhame e fumo. Criaram também abelhas e porcos, além de
melhorarem a questão de pastagem para o gado (GIROLETTI, 1988 pp. 57-58).
A mentalidade self made man que os imigrantes possuíam, ou seja, uma mentalidade
direcionada para a disciplina e a produtividade, seriam elementos fundamentais na mão-deobra qualificada. Os imigrantes tinham então uma grande perspectiva de que, através de seu
trabalho, e conseqüentemente adquirindo uma poupança proveniente desse, conseguiriam
o enriquecimento e a posse de terra (GIROLETTI, 1988 pp. 57-58- 59). Tal mentalidade
resultou em fatores contributivos na esfera local, como acumulação de capital através
dessas poupanças, abertura de ramos de produção e organização de empreendimentos
(BIRCHAL, 1998 pp. 18-19). Vejamos a tabela abaixo referente a 1889-1930.
Tabela 03
Participação dos Imigrantes em Abertura de Ramos de Produção em Juiz de Fora
IMIGRANTES
NÃOIMIGRANTES
TOTAL
Alimentação (bebidas)
22
38
60
Tecidos (em geral)
15
16
31
Couros (em geral)
22
17
36
Marcenaria (em geral)
17
04
21
Cerâmica (em geral)
11
09
20
Construção
03
05
08
11
11
RAMOS
Fumos (em geral)
Tipografia e Litografia
11
12
23
Indústrias Diversas
10
27
37
TOTAL
141
145
286
Fonte: ESTEVES, A. Álbum...op. cit. p.291-6. Apud: GIROLETTI, D. A Industrialização...op. cit.p. 79.
Um fator pertinente para investimentos na cidade, resultante da presença de
imigrantes, foi a atração de industriais de outras localidades a investirem em Juiz de Fora,
devido constatarem que na cidade haveria mão-de-obra qualificada. As indústrias atraídas
por esse fator juntamente com as obras ferroviárias em expansão na região, aumentaram o
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
203
volume de imigração A necessidade de uma mão-de-obra qualificada para se trabalhar com
ferrovias foi a causa desse aumento imigratório (PIRES, 1999 p. 54).
O interesse dos cafeicultores e dos industriais locais em buscarem subsídio do
governo em relação aos imigrantes era uma via de ampliar o mercado através de um maior
número de mão-de-obra qualificada a baixo custo. Tal interesse resultou na fundação da
Sociedade Promotora de Imigração em 1887, que teria como premissa promover a entrada
de imigrantes em toda a província de Minas Gerais.
Associamos a iniciativa dessa Sociedade com a pesquisa de Sérgio Birchal, onde é
demonstrado que o fluxo imigratório em Minas Gerais foi significativo apenas na zona da
Mata mineira (BIRCHAL, 1998 p. 18). A criação da Hospedaria Horta Barbosa, núcleo
que receberia os imigrantes recém-chegados, instalada em Juiz de Fora em 1889, resultou
na maior porcentagem de imigrantes a se fixarem na cidade (GIROLETTI, 1988 p. 57).
O fator empresarial é o fator onde podemos perceber a maior contribuição dos
imigrantes na esfera econômica local. Podemos dividir o processo industrial de Juiz de Fora
em duas fases. A primeira é quando surgem as primeiras fábricas, com baixa produção e
tecnologia, onde o proprietário é, ao mesmo tempo, o agente produtor. Tal fase permanece
até o fim de 1880. A segunda fase é o início de pequenas e médias empresas, resultantes das
já instaladas ou novas, que acompanham o avanço do capitalismo brasileiro. As novas
instalações, nessa fase, produzem em série, contam com mais tecnologia e o proprietário
não é mais o produtor direto. Percebe-se que "é um período em que as empresas se diferem das
médias para o emprego, maior quantidade de mão-de-obra, ou pela maior soma de capital
investido"(GIROLETTI, 1988 p. 74). Associamos tal fase ao crescimento de sociedades
anônimas em Juiz de Fora, sendo esse mecanismo um forte elemento no mercado de
capitais.
Voltando à primeira fase, estudos apontam que os imigrantes vão se inserir na
constituição do mercado de trabalho e organização dos primeiros investimentos industriais.
Para alguns autores existe a hipótese de que os imigrantes operários da Cia. União e
Indústria teriam consciência de que faziam parte de um mercado de trabalho temporário.
De acordo com esse pensamento, teriam que buscar alternativas de sobrevivência ao fim
dessa obra (GIROLETTI, 1988 pp. 74 a 77).
Associando tal consciência com a mentalidade self made man, os imigrantes fazem
uma poupança de seus salários e com o recurso acumulado associam-se entre si, reunindo
habilidades afins, ou abrem ramos individuais, tendo como força de trabalho a família.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
204
Ficam demonstrados nesse contexto empreendimentos individuais e em sociedade abertos
em Juiz de Fora, de propriedade dos imigrantes desde 1858, como fábricas de carroças,
lojas comerciais, cervejarias, curtume, dentre outros (GIROLETTI, 1988 pp. 73 a 81).
Os empreendimentos da primeira fase passam para a segunda através da
concentração de capitais e ampliações verticais e horizontais. O caso da firma Pantaleoni
Arcuri é um exemplo claro da mobilidade vertical. A firma surge em 1895, exercendo
serviços de serraria, carpintaria e marcenaria, com um departamento em materiais de
construção. Em 1905, ampliava seus segmentos fabricando mosaicos e ladrilhos hidráulicos
e em 1909 fabricava telhas de cimento e amianto, sendo pioneira desse produto no Brasil.
Em 1908, possuía 156 operários; em 1914 possuía 200 operários.
O exemplo horizontal, que é uma loja de revenda, passar a fabricar, é o que
podemos constatar com a Fábrica Meurer. Através de seu estabelecimento que vendia
armarinhos e fazendas, o proprietário, Antônio Meurer, percebeu a grande procura por
meias importadas, importou uma máquina da Alemanha e começou a fabricação de meias
em sua própria casa. O início de uma pequena produção, composta de uma força de
trabalho familiar, chegou em 1914 produzindo 120.000 dúzias de meias ao ano, com 300
operários e um capital de 500 contos (GIROLETTI, 1988 pp. 80-81).
A contribuição dos imigrantes no desenvolvimento local como podemos visualizar
com os exemplos acima, fica evidente, e, é de consenso entre historiadores regionais que
estudam a zona da Mata mineira: "se não fossem os imigrantes Juiz de Fora não poderia se beneficiar
tão rapidamente do surto de progresso que a estrada lhe deu" (ALVARENGA FILHO, 1987 p. 34).
Em 1991, surge uma pesquisa envolvendo o tema relacionado aos imigrantes em
Juiz de Fora, As Origens da Burguesia Industrial em Juiz de Fora, do autor Luiz Antônio Valle
Arantes. Este trabalho é de alta valia para a historiografia local, pois se contrapõe aos
argumentos da maioria dos historiadores regionais.
Arantes concorda que o início do processo de industrialização de Juiz de Fora se
deve aos imigrantes, porém aborda que os historiadores locais não buscam explicar suas
razões. Arantes aponta que as explicações historiográficas existentes referentes à
participação dos imigrantes no processo de desenvolvimento econômico de Juiz de Fora
foram insuficientes para explicar o que chama de "fenômeno" (ARANTES, 1991 p. 83).
Dentro de uma teoria weberiana, Arantes aborda que a mentalidade do imigrante
germânico, que majoritariamente fizeram parte da primeira leva de imigrantes que Juiz de
Fora acolheu, está direcionada para a ética protestante. É tal elemento, segundo Arantes,
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
205
que definirá a iniciativa de empreendimentos suas diversificações setoriais e não a
mentalidade self made man colocada por Giroletti(ARANTES, 1999 p. 84).
O projeto da Cia. União e Indústria, elemento responsável pela chegada dos
primeiros imigrantes a Juiz de Fora é visto por Arantes como fracasso e sucesso ao mesmo
tempo. O fracasso é relacionado com a falência da empresa, o sucesso relacionado com a
entrada de imigrantes, formadores de um mercado consumidor e empreendedores dos
primeiros investimentos industriais.
Arantes divide então os germânicos que chegaram a Juiz de Fora em duas
categorias: os católicos e os protestantes. De acordo com o autor, é importante observar
que o vínculo existente entre os imigrantes era de caráter religioso e não de nacionalidade.
Em seu trabalho de campo empírico, Arantes detecta que, de todos os
empreendimentos industriais iniciados em Juiz de Fora com a participação de imigrantes
germânicos, só se concretizaram e se desenvolveram aqueles relacionados com os
imigrantes protestantes. Através da associação entre o nome do proprietário(s), com fontes
empíricas (Livros de Registros e Históricos Evangélicos), dos quais consta a presença dos
participantes em fundações de cultos evangélicos, Arantes absorve sua conclusão
(ARANTES, 1999 p. 89).
Arantes aponta que a religião protestante sofria certa resistência no Brasil, e esse
fator levava os membros dessa religião a aumentarem seus laços de solidariedade e
confiança mútua, o que se refletia no campo dos negócios. Tais relações resultariam em
parcerias e sociedades bem sucedidas. Abordando como elementos de acumulação de
capitais, além dos já expostos nesse tópico, Arantes acrescenta o laço matrimonial existente
entre os protestantes e a facilidade de acesso a fontes de capital externo (ARANTES, 1999
pp. 103-104).
O autor destaca também, o papel de imigrantes de outras nacionalidades dentro do
contexto econômico de Juiz de Fora. Evidencia a importância do capital inglês, que foi
responsável pela instalação da maior fábrica da cidade e do Estado. Quanto aos imigrantes
portugueses e espanhóis o autor aponta a participação destes relacionado com
investimentos em ramos de laticínios, gelo e vinhos (ARANTES, 1999 pp. 115-122).
O setor ferroviário, segundo Arantes, foi um elemento fundamental para a entrada
de imigrantes italianos, que predominaram na segunda fase da industrialização de Juiz de
Fora. Além da ferrovia, é abordado também, dentro da imigração italiana, o interesse de
grupos da cidade em promover sua imigração. Dentre esses grupos estariam os
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
206
cafeicultores visando substituir a mão-de-obra escrava, e os industriais buscando a
qualificação de trabalhadores deserdados, que venderiam sua força de trabalho a baixo
custo, uma vez que o principal motivo da imigração italiana foi a fome e a miséria que
rondavam aquele país (ARANTES, 1999 p. 117).
A conclusão da pesquisa de Arantes demonstra que apesar de incidentes ocorridos,
como a exploração de cafeicultores sobre imigrantes, problemas referentes à higiene,
salubridade e superlotação na hospedaria que abrigou os imigrantes, a cidade alcançou certa
progressão no setor de mão-de-obra. No período de 1886-96, a cidade recebeu 7.000
imigrantes, em sua maioria italianos que, além de comporem o mercado de trabalho,
fundaram fábricas de alta relevância na cidade. Tais fábricas operavam no ramo de
funilarias, calçados, móveis, tonéis, curtume, dentre outras, atingindo uma grande
expressividade no ramo de construção civil (ARANTES, 1999 pp. 121-122-123).
É importante ressaltar também a significância de imigrantes nacionais em Juiz de
Fora. A presença de investidores locais e imigrantes nacionais juntamente com os
imigrantes estrangeiros formou o pilar do desdobramento industrial em Juiz de Fora.
O desdobramento referido provém de avanços como o aperfeiçoamento do sistema
de comunicações (ferrovia, rodovia, telefone urbano e telégrafo), a organização de um
sistema financeiro local (bancos e mecanismos de crédito à indústria), criação de escolas
secundárias e superiores destinadas à formação de mão-de-obra e energia elétrica, servindo
como a nova força motriz para a indústria.
Os fatores colocados acima formam a infra-estrutura de uma nova conjuntura que a
cidade vivenciou. Iniciativas essas que se concretizaram através de investidores que
influenciaram diretamente na história sócio-econômica de Juiz de Fora. São esses
investimentos e seus agentes que abordaremos no próximo tópico.
3 – A atração dos imigrantes nacionais através dos imigrantes estrangeiros e o
desdobramento industrial.
A estrada União e Indústria gerou dois fatos para despertar a transferência de
investidores de outras localidades para Juiz de Fora: mão-de-obra qualificada e barata, uma
vez que muitos imigrantes estrangeiros estavam disponíveis com sua força de trabalho com
o fim da obra da rodovia e terras possíveis de adquirir por um custo acessível e próximas
do maior centro consumidor e distribuidor do país, a cidade do Rio de Janeiro.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
207
Orlando Valverde em sua análise de geografia demográfica, demonstra que a zona
da Mata constitui uma região povoada, na qual a densidade de população gera taxas das
mais elevadas em todo o estado. Valverde aponta que tal densidade demográfica se
encontra ao longo de rodovias, e as principais cidades estendem-se ao longo de caminhos
tradicionais: "Quanto mais velhas as estradas, mais importantes as cidades" (VALVERDE, 1958 p.
01). A colocação de Valverde corrobora a concepção de Domingos Giroletti, que aponta a
rodovia União e Indústria como elemento primordial para o desenvolvimento sócioeconômico da cidade de Juiz de Fora (GIROLETTI, 1988 p. 113).
Ao analisarmos que a industrialização tem seu princípio em centros onde o
mercado de exportação é a atividade principal, como o caso do café em Juiz de Fora, a
expansão da exportação promove a dinamização do mercado interno, cujas necessidades
não podem ser satisfeitas somente com bens importados. Tal ampliação do mercado
interno provoca a aceleração do crescimento das cidades, gerando investimentos e força
de trabalho (GIROLETTI, 1988 p. 40).
É muito interessante observarmos que, como citamos anteriormente, o
aperfeiçoamento do sistema de transportes em Juiz de Fora preparou o terreno para que a
cidade engendrasse uma realidade capitalista depois dos anos de 1880. Tal realidade atraiu e
fez que imigrantes investidores nacionais se fixassem na cidade.
Ao pesquisarmos atas de resoluções da Câmara Municipal da década de 1870,
presenciamos uma parceria público/privada em obras de infra-estrutura pública, como
instalação de rede de esgotos, pontes, iluminação a querosene, dentre outros151.
Maria Bárbara Levy aborda que, no Rio de Janeiro, grupos sociais cobrem os gastos
públicos através de compra de títulos da dívida pública (LEVY, 1994 p. 89). Percebemos
que o mesmo acontecia em Juiz de Fora, onde grupos sociais, como grande parte de
fazendeiros e uma pequena parcela de comerciantes, financiavam infra-estruturas públicas
através da compra de títulos de dívida pública lançados pela Câmara Municipal de Juiz de
Fora. Inicia-se então a formação de grupos sociais que, ao investir em sua localidade,
passam a exigir também formas de melhorias dessa infra-estrutura.
O papel exercido pelos comerciantes locais demonstra que, apesar de serem
pequenos contribuintes frente aos fazendeiros, reivindicavam melhorias na infra-estrutura
urbana.
Conforme cita Sônia Regina Miranda, em 1871 comerciantes locais organizam
151 Livro de Atas e Resoluções da Câmara Municipal de Juiz de Fora (1888-96) sob custódia do Arquivo
Histórico da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
208
uma representação exigindo a instalação de uma estação ferroviária no centro da cidade. O
motivo da manifestação se dava devido à longa distância do terminal rodoviário da Cia.
União Indústria e também ao monopólio exercido pelo seu acionista majoritário Mariano
Procópio (MIRANDA, 1990 pp. 103-104).
A chegada da ferrovia em Juiz de Fora em 1875 permitiu a Juiz de Fora se tornar
um entreposto regional de abastecimento. Na década de 1880 a cidade já vai dispor de um
sistema de transportes urbanos, com a organização da Cia. Carris Urbanos de Juiz de Fora,
e o sistema de comunicação também se aperfeiçoa com a instalação de telefonia urbana em
1883 e os serviços de telégrafos em 1885 (MIRANDA, 1990 p. 105).
Os comerciantes exerceram um papel fundamental em serviços de infra-estrutura
urbana. Além da representação citada acima exigindo a estação ferroviária em um ponto
central, exigiram também melhorias no abastecimento de água e limpeza pública, sendo que
em 1885 a cidade já possui o sistema de água encanada e iluminação a gás (MIRANDA,
1990 p. 105).
Em 1887 a cidade inaugura uma agência bancária, privilégio de poucas localidades
do país fora do centro do Rio de Janeiro152, o Banco Territorial e Mercantil de Minas
Gerais. O banco era uma sociedade anônima constituída por quatro fazendeiros e políticos
da região e um comerciante. Os fazendeiros/políticos eram o Barão de Santa Helena, chefe
do Partido Conservador, senador do império e vice-presidente da província, o Cel. Vidal
Barbosa Lage, principal acionista da ferrovia Juiz de Fora/Piau, Barão de Monte Mário,
chefe do Partido Liberal (imigrante) e Visconde de Morais, apenas fazendeiro. O
comerciante era Francisco Batista de Oliveira (imigrante), dono de uma das maiores casas
comerciais da cidade, exercendo um importante papel de importação na cidade.
O Banco Territorial e Mercantil de Minas Gerais possuía uma carteira comercial
onde eram destinados recursos para operações como descontos, empréstimos à lavoura,
exercendo assim um papel de crédito interno. Expandiu suas atividades inaugurando
agências na praça da capital do Estado, a cidade de Ouro Preto, e no maior centro
financeiro do país, a cidade do Rio de Janeiro (CROCE, 2008 p. 174).
Os desdobramentos dos investidores acima demonstrados levariam ainda a um
maior encadeamento de investimentos de suma importância na infra-estrutura urbana a
partir de 1889, envolvendo investidores externos.
152
A respeito de existirem poucas agências bancárias fora da praça do Rio de Janeiro ver: FRANCO, G. H. B.
Reforma Monetária... op. cit. pp. 27-28.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
209
Associamos então três fatores relevantes que influíram na preparação da cidade a
viver dentro de uma lógica capitalista.
1) O acumulo
de capital dos fazendeiros locais, que, como apontamos
anteriormente, foram beneficiados economicamente através do investimento de
transportes, aumentando sua produção e reduzindo os custos, o que resultou em maior
acumulação de capital a ser reinvestido em outros setores estruturais urbanos. O impulso
cafeeiro era tão ascendente, que o café, um produto que representava apenas 3% da
exportação do estado de Minas Gerais no início do século XIX, passa a 45% três décadas
depois (ALMICO, 2001 p. 37).
2) O papel representativo exercido pelos comerciantes que, junto com outros
investidores, financiavam obras de infra-estrutura pública, adquirindo títulos de dívida
pública. Os benefícios conquistados pelos comerciantes locais são claramente
demonstrados pelo crescimento no número de estabelecimentos comerciais da cidade. Em
1870, a cidade dispunha de 153 casas comerciais, chegando a 692 casas comerciais em
1905 (PIRES, 1999 p. 108).
3) A transferência de investidores de outras localidades, dispostos a investir em Juiz
de Fora pelo fato desta cidade possuir elementos estruturais como comunicação,
transportes, setor financeiro e disponibilidade de mão-de-obra qualificada (imigrantes) a
baixo custo. Um bom exemplo desse fato é a carta escrita por um dos maiores industriais a
se transferirem para a cidade, onde depois de comentar sobre a existência da Hospedaria
do Imigrantes, escreve: "muito facilitará o engajamento do pessoal de primeira ordem e a preço mais
módico que na Corte"153. Associamos também a localização geográfica da cidade, próxima do
maior centro consumidor do país, a cidade do Rio de Janeiro.
A partir de 1889, com as transformações decorridas até então na estrutura urbana, a
cidade se torna um palco de novas inaugurações, principalmente no campo de sociedades
anônimas.
Dos vários empreendimentos concretizados no período, destacamos duas
sociedades anônimas idealizadas por imigrantes nacionais em Juiz de Fora que
consolidaram o pensamento moderno dentro de uma base de investimentos capitalistas: o
Banco de Crédito Real de Minas Gerais e a Companhia Mineira de Eletricidade. A
primeira sociedade anônima referida, respondeu pela consolidação do sistema financeiro
153
JACOB, R. Carta de Mascarenhas de 16/11/1888. In: GIROLETTI, D. A Industrialização...op. cit. p.
67
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
210
local e a segunda pelo empreendimento pioneiro da energia elétrica, permitindo que a
cidade de Juiz de Fora fosse o primeiro local da América Latina a possuir uma usina
hidrelétrica.
O impacto do fenômeno da eletricidade rendeu comentários por todo o país, e
como cita Gustavo Pena em um jornal mineiro:
"Quando em Juiz de Fora havia já a luz elétrica, ali, na Capital do país, ao
empardecer das tardes, saiam, como insetos noturnos, para os pontos, os
acendedores, os profetas, empunhando varas escuras e compridas, tendo na
extremidade uma chamazinha, com que iam acendendo os lampiões nas ruas."
(Gustavo Pena, Minas Gerais de 5 de fevereiro de 1927. In: MASCARENHAS
1954 - p. 150).
A Cia. Mineira de Eletricidade é um exemplo de como Juiz de Fora alavancou seu
desenvolvimento de estrutura urbana através de parcerias envolvendo agentes agrários,
industriais oriundos de outras localidades, comerciantes e políticos. Dentro dessa aliança
de investidores, o idealizador da Cia. Mineira de Eletricidade foi o industrial Bernardo
Mascarenhas.
Em 1887 Bernardo Mascarenhas mudava-se para Juiz de Fora, trazendo consigo
grandes planos para o desenvolvimento e a industrialização. Era um empresário bem
sucedido, que começou a vida trabalhando no comércio, vendendo seus produtos como
tropeiro (GIROLETTI, 1988 p. 86).
Vale a pena lembrar que além de Bernardo Mascarenhas trabalhar como
comerciante, ele era também um grande estudioso. Fez o curso de Humanidades no
Colégio do Caraça, concluindo este em São João Del Rey, além de ter feito cursos de Física
e Mecânica nos Estados Unidos, gerando um conhecimento relativo a equipamentos
importados, o que se refletiria mais tarde em suas fábricas (RIBEIRO, 1990 p. 10).
Trabalhando dessa forma, juntamente com seu irmão Caetano, conseguiu acumular
um capital, construindo em 1872 uma fábrica de tecidos em uma região mineira conhecida
como Cedro, perto da cidade de Sete Lagoas. Depois do sucesso dessa fábrica montaram
outra, a Fábrica da Cachoeira, com seus outros irmãos, e em 1885, as duas fábricas se
juntaram formando assim a Fábrica Cedro Cachoeira com um grande conceito no mercado
da época (GIROLETTI, 1988 pp. 86-87).
Bernardo Mascarenhas com o dinheiro que conseguiu juntar do lucro dessa fábrica
em sociedade montou em Juiz de Fora sua própria fábrica, a Tecelagem Bernardo
Mascarenhas.Sendo assim, o industrial com seu conhecimento técnico, produzia tecidos de
ótima qualidade para o padrão da época (GIROLETTI, 1988 p. 87).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
211
A Tecelagem Bernardo Mascarenhas foi inaugurada em 14 de maio de 1888, e em
1897 já duplicava a quantidade de suas máquinas (as máquinas na época eram teares).
Empregava 120 operários e produzia 2.000 metros de tecidos por dia. Em 1914,
funcionava com mais máquinas e já empregava 526 operários produzindo 188.000 metros
de tecidos por dia (GIROLETTI, 1988 p. 87).
Ao mudar-se para Juiz de Fora, Bernardo Mascarenhas comprou um terreno no
qual se situava a Cachoeira dos Marmelos. Tal cachoeira permitia o fornecimento de
energia hidráulica para sua fábrica de tecidos, fato esse que permitiu ao empresário a
idealização de construção naquele local de uma companhia de eletricidade que fornecesse
energia, não só para sua fábrica, mas também para iluminação pública e particular, e em
período integral para o funcionamento das fábricas que já existiam na cidade e para as que
começassem a surgir (GIROLETTI, 1988 p. 87).
A iluminação da cidade na época era feita com gás, e para Bernardo Mascarenhas
conseguir concretizar seu plano de passar essa iluminação para elétrica era preciso
conseguir a transferência de contrato de iluminação pública. A participação do comerciante
e imigrante Francisco Batista de Oliveira foi fundamental na negociação com o engenheiro
Maurício Arnade na questão da transferência, pois esse engenheiro era o detentor da
concessão de iluminação pública a gás do município (GIROLETTI 1988 p. 87).
Em 1887 foi concretizado o acordo com a permissão e apoio da Câmara dos
Vereadores, e em 1888 já estava em construção a Companhia Mineira de Eletricidade.
Bernardo Mascarenhas daria os terrenos e sua cachoeira para a construção da usina em
troca de 35 anos de energia elétrica gratuita para sua fábrica. A firma Westinghouse foi
contratada para os serviços de construção da companhia, trabalhando e estudando o
aproveitamento da água, a colocação de dínamos, a rede de iluminação da cidade, o número
de lâmpadas, e a especificação de velas e todo o material necessário.
Em 1889 começam a chegar os materiais enviados pela Westinghouse, e a
população acompanhava esse período com muita ansiedade, pois a obra demoraria devido
às dificuldades da época. Até que em setembro é concretizada, e começa a funcionar a
Usina Hidrelétrica de Marmelos, pertencente à Cia. Mineira de Eletricidade (GIROLETTI,
1988 p. 88).
Inaugurada em 5 de setembro de 1889, a Usina Hidrelétrica de Marmelos escreveria
para sempre o nome da cidade de Juiz de Fora na história da energia elétrica do Brasil. O
investimento proporcionou um grande impacto devido a esta hidrelétrica ser a primeira na
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
212
América Latina, começando a funcionar apenas sete anos depois da primeira do mundo, a
Hidrelétrica de Appleton Wisconsis, nos Estados Unidos154.
A hidrelétrica construída a seis quilômetros de Juiz de Fora, às margens da estrada
União e Indústria, gerou uma certa revolução nas indústrias e fábricas de Juiz de Fora, pois
era a primeira vez que recebiam energia elétrica em seus locais de produção. Bernardo
Mascarenhas escreve uma carta em 1887, pronunciando: "Me considerarei muito feliz se for o
primeiro a transmitir força elétrica, praticamente utilizável, no Brasil ou talvez na América do
Sul."155Para se ter idéia da dimensão dessa obra, o Jornal "Gazeta de Notícias", do Rio de
Janeiro escreve se referindo à Hidrelétrica:
"Não podemos deixar de render congratulações aos habitantes de Juiz de Fora,
não só pelo empreendimento, que foi elevar mais, se é possível, a sua
importância, como também porque está livre do gás, que tanto escurece."
(Jornal "Gazeta de Notícias” In: Usina de Marmelos. Edição Comemorativa
p. 02).
A consolidação desse investimento proporcionouuma significativa dinamização
industrial na cidade:
“Nos dezesseis anos que se seguiram (1898-1914) fundaram-se mais de 160
indústrias em Juiz de Fora (...) Há registro da data de fundação de 160
indústrias cuja data de fundação se desconhece. É bem provável que parte delas
tenha sido criada no período assinalado. Por isso se estima que foram fundadas
mais de 160 empresas no período”. (GIROLETTI, 1988 pp.90-91).
O Banco de Crédito Real de Minas Gerais também foi um empreendimento de
capital local com a participação de investidores imigrantes ligados a atividades industriais,
agrárias, comerciais e de profissões liberais. Tal iniciativa libertou de forma significativa a
dependência do crédito externo propiciando aos fazendeiros de café da região a obterem
crédito em sua própria praça. De acordo com a tabela abaixo vemos uma inversão desse
fato:
TABELA 04
Participação do Banco de Crédito Real de Minas Gerais na Distribuição de Capital para a
Lavoura Cafeeira de Juiz de Fora 1890/1919. (valores em mil-réis)
Década
DIV.TOTAL
B.C.R.
%
R.J.
%
1870/79
309.819
------
-----
144:477
46,63
154Usina Marmelos Zero. Um marco na história da energia elétrica no Brasil. CEMIG e Governo de Minas Gerais.
Edição Comemorativa, p.02
155 Trecho da carta de Bernardo Mascarenhas em 1887. Dois anos depois, sua Cia. Mineira de Eletricidade
instalava à beira do Rio Paraibuna, a primeira hidrelétrica de porte da América do Sul. In:Usina
Marmelos...op. cit. p. 01.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
213
1880/89
1.022:570
------
-----
768:649
75,16
1890/99
199:209
143:939
72,46
1:211
0,60
1900/09
613:996
438:776
71,46
73:868
12,63
1910/19
109:517
73:000
66,65
2:263
2,06
FONTE: Inventários Juiz de Fora - 1870/1929 Apud: PIRES, Anderson. Café, Finanças...op. cit. p- 202.
Autorizado a funcionar por um decreto assinado pelo Imperador D. Pedro II, em
22 de agosto de 1889, o Crédito Real ultrapassou a marca de funcionar por mais de um
século (RIBEIRO, 1990 p. 10).
O Banco desenvolveu uma trajetória de crescimento impressionante. Iniciando suas
atividades com um capital de apenas 100 contos, em 1889, direcionava suas atividades ao
empréstimo agrícola com garantias hipotecárias. Em menos de um ano de existência, o
balanço de 30 de junho de 1890 aponta um lucro líquido de 5.697$050 (GIROLETTI,
1988 P. 84).
Em 1891 é concedida pelo governo a autorização de abertura de uma carteira
comercial envolvendo operações de descontos, depósitos, contas correntes e cauções, e no
mesmo ano seu capital era elevado para 3.000 contos, distribuído em 15.000 ações. Em
1892 o Banco abria uma agência na capital do estado, Ouro Preto, e em 1894 firma um
acordo com o governo, tornado-se administrador dos fundos do Tesouro do estado na
agência de Ouro Preto. Em contrapartida faria adiantamentos necessários aos cofres da
Fazenda (GIROLETTI, 1988 pp. 84-85).
Apesar do entrelaçamento do Banco com o governo, não podemos associar o
desenvolvimento dessa instituição bancária atrelada somente ao Estado. O banco atuou
com uma base sólida em suas operações ativas e passivas, ou seja, com grande evolução de
depósitos na sua carteira passiva, era possível operar com um grande desempenho na
carteira de ativos, no desconto de letras. A prática de desconto fortalece o sistema
financeiro local, oferecendo sempre maior disponibilidade de capital de giro para os agentes
produtivos locais (PIRES, 1999 p. 209).
O desdobramento industrial dos investidores locais e imigrantes, investindo em
segmentos de infra-estrutura urbana, e empreendimentos além dos que citamos acima,
permitiu a criação de diversos ramos de produção, constituídos por sociedades anônimas
conforme tabela abaixo.
TABELA 05
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
214
Sociedades Anônimas Fundadas em Juiz de Fora - 1854/1899
Companhia
Capital Nominal
Fundação
Liquidação
Setor
Cia. União e Indústria
5.000.000$
1854
1872
Transporte
Cia. Est. De Ferro J.
Fora a Piau
1.200.000$
1871
1898
Estrada de Ferro
Cia. Est. De Ferro
União Mineira
--------------
1878
1884
Estrada de Ferro
Empresa dos
Lavradores
80.000$
1882
1885
Agrícola
Cia. de Ferro Carril
Bonds de Juiz de
Fora
100.000$
1882
1897
Transporte Urbano
Cia. Industrial
Mineira
1.200.000$
1883
1933
Têxtil
Estrada de Ferro
Carril Parahybuna e
Porto das Flores
---------------
1884
1888
Estrada de Ferro
Associação
Promotora de
Imigração
400.000$
1887
n.d.
Imigração
Banco Territorial e
Mercantil de M.G.
1.000.000$
1887
1892
Financeiro
Cia. de Gás de Juiz de
Fora
200.000$
1887
n.d.
Serviço Público
Cia. Pastoril Mineira
1.000.000$
1888
1896
Agrícola
Cia. Mineira de
Eletricidade
150.000$
1888
Cia. Organização
Agrícola Mineira
300.000$
1896
1896
Agrícola
Cia. Estrada de Ferro
Santa Izabel do Rio
Preto
-------------
1889
1899
Estrada de Ferro
Banco de Crédito
Real de Minas Gerais
500.000$
1889
Financeiro
Academia de
Comércio
200.000$
1890/91
Ensino
Energia
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
215
Cia. Construtora
Mineira
500.000$
1890
1892
Construção Civil e
Industrial
Cia. Industrial de Juiz
de Fora
1.000.000$
1890
1897
Couro e materiais
graxos
Cia. Indústria Mineira
300.000$
1890
1892
Calçados
Cia. Agrícola de Juiz
de Fora
2.200.000$
1891
1896
Agrícola
Cia. Chimico
Industrial Mineira
500.000$
1891
1900
Química e famácia
Cia. Mechânica
Mineira
500.000$
1891
1895/96
Mecânica
Banco de Crédito
Popular de M.G.
1.400.000$
1891
1893
Financeiro
Cia. de Tecidos de
Juta
----------------
1894
1901
Têxtil
Empresa Tipográfica
de Juiz de Fora - "O
Pharol"
300.000$
1899
1901
Jornalismo
Fonte: Jornais locais - vários anos Apud. PIRES, Anderson. Café, Finanças...op. cit. p. 291
As transformações ocorridas provenientes dos investimentos locais ficam
claramente expostas quando analisamos os novos modos de aplicação de capitais desses
agentes. Os investimentos que eram majoritários no período de 1870-88, como escravos e
benfeitorias, perdem posição para os que ocupavam lugares modestos no mercado local,
como títulos, ações e dívida pública. Verifiquemos as tabelas abaixo, baseadas em
inventários post-mortem:
TABELA 06
Médias de Participação dos Ativos no Montante da Riqueza do Período - 1870/1879
Escravos
Café
Animais
Terras
Casas
Benfeitoria
Objetos
Alimentos
Dív At.
Títulos
Ações
Terrenos
32,68
16,65
2,64
17,70
6,01
2,76
2,32
0,77
11,76
4,50
1,93
0,18
Médias de Participação dos Ativos no Montante da Riqueza do Período - 1880/1888
Escravos
Café
Animais
Terras
Casas
Benfeitoria
Objetos
Alimentos
Dív At.
Títulos
Ações
Terrenos
16,04
15,87
2,18
14,54
9,19
2,92
1,74
0,42
23,74
7,96
5,01
0,43
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
216
Médias de Participação dos Ativos no Montante da Riqueza do Período - 1889/1898
Escravos
Café
Animais
Terras
Casas
Benfeitoria
Objetos
Alimentos
Dív At.
Títulos
Ações
Terrenos
0
12,86
2,97
19,64
16,13
2,37
3,15
0,45
18,22
16,55
6,77
0,93
Fonte: inventários post-mortem - Arquivo Histórico da Universidade Federal de Juiz de Fora. Adaptado:
ALMICO, Rita C. Fortunas em movimento...op. cit. pp. 72, 93 e 117.
O outro empreendimento de muita importância idealizado por um imigrante em Juiz
de Fora no século XIX foi a inauguração da Academia de Comércio que foi fundada sob forma
de sociedade anônima e teve como idealizador Francisco Baptista de Oliveira. O crescimento
da área industrial e comercial em Juiz de Fora exigia também a qualificação de seus
colaboradores.
O objetivo desse empreendimento se destinava a formar “negociantes, banqueiros,
diretores e empregados de estabelecimentos comerciais”. Lembramos que o comerciante
Francisco B. de Oliveira, idealizador dessa sociedade, possuía um capital financeiro
diversificado. Além de sua atuação à frente de um estabelecimento comercial considerado um
dos principais da cidade, teve seu nome vinculado á significativa contribuição nas inaugurações
de sociedades anônimas dos setores de energia e financeiro.
Ao colocarmos a idéia educacional dessa sociedade anônima, frente ao panorama da
conjuntura econômica desse período, percebemos as transformações que esse momento
injetava no quadro da nova mentalidade do ensino financeiro brasileiro.
Através de consulta na Coleção de Leis e Decretos do estado de Minas Gerais no arquivo desse
período, observamos um aumento substancial de criação de novas escolas técnicas, que assim
como a Academia de Comércio em Juiz de Fora, buscavam suprir a qualificação dos meios de
serviços. Um exemplo desse fato é o surgimento das Escolas Técnicas Agrícolas, como a da
cidade de Ponte Nova em 1894, dentre outras propiciadas pelas leis de incentivo
governamentais.
Aliomar Baleeiro coloca que dentro do conjunto de idéias e conceitos de Rui Barbosa,
ministro da Fazenda nesse momento, estava:
“categórica repulsa ao protecionismo como meio idôneo para a industrialização,
que deveria assentar numa imediata intensificação de serviços educacionais,
considerando-se investimento dos mais remuneradores e os sacrifícios
tributários que o país fizesse para tal fim.”(BALEEIRO, 1949 pp. 37-38).
A inauguração da Academia do Comércio teve a presença do então presidente do
Estado de Minas Gerais e futuro Presidente da República, Afonso Pena, o qual
demonstrava apoio às necessidades da instituição. A iniciativa privada, através do mercado
acionário, também apontava a solidez do empreendimento.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
217
A Academia do Comércio carregava consigo então, a marca de ser o primeiro
Instituto Superior de Ensino Comercial da América do Sul. (CROCE, 2008 p. 182).
Diante desse quadro então podemos acompanhar uma mudança conjuntural na
cidade de Juiz de Fora sendo que a participação dos imigrantes nacionais e estrangeiros
influenciou diretamente nesse contexto.
Considerações Finais
Nas últimas linhas desse artigo podemos concluir que a participação dos imigrantes
tanto estrangeiros como nacionais atrelados ao capital cafeeiro da cidade de Juiz de Fora
fizeram da região da zona da Mata mineira a referência do contexto imigratório no século
XIX.
Os imigrantes estrangeiros contribuíram diretamente na construção de uma rodovia
que ligou Juiz de Fora à capital do país, alavancando a economia local, gerando uma
poupança social. A contribuição socioeconômica teve continuidade ao final dessa obra que
ao se fixarem na cidade tais imigrantes inovaram na criação de um parque comercial e
industrial com pequenas fábricas de bebidas, carroças, curtumes etc.
Os imigrantes nacionais por sua vez se caracterizaram por inaugurarem grandes
ramos de produção, como foi o caso da indústria têxtil, do comércio e das sociedades
anônimas, sendo esse último fator, em nossa concepção o mais significativo.
Mais significativo no sentido de trazer conseqüências benéficas ao município e para
a região como um todo, como por exemplo, a “independência” do setor financeiro
fluminense através dos serviços prestados pela sociedade anônima dos bancos Crédito Real
de Minas Gerais e do Territorial e Mercantil de Minas. Também no parque industrial que
através da sociedade anônima Cia. Mineira de Eletricidade revolucionou esse setor sendo a
cidade apelidada de “Manchester Mineira”.
Concluímos então que Juiz de Fora foi uma cidade que viveu intensamente os
resultados socioeconômicos que os imigrantes proporcionaram, inserindo na economia
regional alguns empreendimentos inovadores e que passaram por grande longevidade,
como foi o caso da Cia. Mineira de Eletricidade que hoje conhecemos como a Cemig, o
Banco de Crédito Real de Minas Gerais que exerceu suas atividades no mercado financeiro
por mais de 100 anos e a Academia do Comércio, instituição de educação atuante até os
dias atuais.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
218
1 – Fontes Primárias:
1.1 –Jornal “Credireal, 101 anos”, edição comemorativa, Belo Horizonte, 1990.
1.2 - Coleção de Leis e Decretos do Governo de Minas Gerais, sob Guarda do Arquivo Público
Mineiro. Belo Horizonte – MG.
2 – Fontes Impressas
2.1 - ESTEVES, Albino. Álbum do Município de Juiz de Fora. Belo Horizonte: Imprensa
Oficial, 1915.
2.2 - Revista Cultura em Voga. M.R. Publicidade e Promoções, Juiz de Fora, nov/2005.
2.3 - Usina Marmelos Zero. Um marco na história da energia elétrica no Brasil. CEMIG e Governo de
Minas Gerais. Edição Comemorativa
Bibliografia:
ALMICO, Rita C. S. . Fortunas em Movimento: Um Estudo sobre a Transformação de
Riqueza Pessoal em Juiz de Fora (1870-1914). Universidade Estadual de Campinas, 2001,
(Dissertação).
ARANTES, L. A. As Origens da Burguesia Industrial em Juiz de Fora. (Dissertação de
Mestrado). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1999.
BALEEIRO, A . Rui, um Estadista no Ministério da Fazenda. Fundação Casa de Rui Barbosa,
1949. Rio de Janeiro.
BOCCHI, J. I. In: Formação Econômica do Brasil/organizadores: José Márcio Rego, Rosa
Maria Marques – São Paulo: Saraiva, 2003.
COSTA, E. V. Da monarquia à República: momentos decisivos. 7 ed. Unesp, 1999.
CROCE, M. A. O Encilhamento e a Economia de Juiz de Fora: O Balanço de uma
Conjuntura. FUNALFA Edições. Juiz de Fora, 2008.
FRANCO, Gustavo B.. A 1o Década Republicana. In: ABREU, M. P.. A Ordem do Progresso:
100 anos de Política Econômica Republicana 1889-1989. 11o ed. Rio de Janeiro, Campos, 1990.
FURTADO, C. Formação Econômica do Brasil. 17 ed. São Paulo: Nacional, 1980.
GIROLETTI, Domingos A. Industrialização de Juiz de Fora 1850-1930. Juiz de Fora, EDUFJF,
1988.
GRAHAM, D. H. Migração estrangeira e a questão da oferta de mão-de-obra no
crescimento brasileiro, Estudos Econômicos 1880-1930, v. 3 n.1
HOLANDA, S. B. de (Dir.). O Brasil monárquico; declínio e queda do império. História geral
da civilização brasileira. 5 ed. Rio de Janeiro: Bertrand, Brasil 1995. t. 2, v. 4.
LEVI, Maria B.. A Indústria do Rio de Janeiro através de suas sociedades anônimas.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1994.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
219
MASCARENHAS, N. L Bernardo Mascarenhas e o Surto Industrial de Minas Gerais. Rio de
Janeiro, Aurora, 1954.
MIRANDA, S. R. Cidade, Capital e Poder: políticas públicas e questão urbana da velha
Manchester Mineira. Dissertação de Mestrado, UFF, 1990.
PIRES, Anderson. Café, Bancos e Finanças em Minas Gerais. Uma Análise do Sistema
Financeiro da Zona da Mata Mineira - 1889/1930. In: 3o Congresso Brasileiro de História
Econômica. ANAIS. Curitiba: UFPR, 1999.
RIBEIRO, J. "Banco de Crédito Real de Minas Gerais". In: Um Banco de todos os Tempos Credireal 101 anos. Edição Comemorativa. 1990 p. 10.
VALVERDE, Orlando. O Estudo Regional da Zona da Mata de Minas Gerais. In: Revista
Brasileira de Geografia. Rio de Janeiro, 20 (1) 3-82 - Jan/Mar- 1958.
WHIRTH, J. O Fiel da Balança: Minas Gerais na Confederação Brasileira: 1889/1937. 1o ed. Paz
e Terra. São Paulo, 1982.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
220
O Mundo da Justiça no Império Português: Um Estudo Sobre os Pareceres
Jurídicos de Tomás Antônio Gonzaga.
Larissa Cardoso Fagundes Mendes
Mestranda pela UFJF/Bolsista da CAPES
lariscfmendes@yahoo.com.br
Resumo: O Trabalho estuda os pareceres emitidos por Tomás Antônio Gonzaga como
ouvidor de Vila Rica. O objetivo é observar a forma como ele lidou com as noções de lei,
poder, justiça, costumes e privilégios enquanto magistrado. Sabemos que a obra poética e
teórica de Gonzaga foi escrita em um período de reformas, que tentavam levar para o
Império Português idéias de disciplina e boa política. O estudo da forma como Gonzaga
lidou com estas idéias em seus pareceres nos permitiu observar alguns resultados práticos
das reformas, e se podemos falar em um predomínio do “império da lei” no final do século
XVIII dentro do mundo luso-americano ou se devemos tomar cuidado com tal afirmação,
considerando-o mais como uma tendência que um fato concreto.
Palavras-chaves:Gonzaga, Política e Poder
Abstract:The work examines the official documents issued by Thomas Antonio Gonzaga
as ombudsman in Vila Rica. The goal is to see how he dealt with the notions of law, power,
justice, customs and privileges as a magistrate. We know that poetry and theoretical
Gonzaga´s books was written over a period of reforms, trying to take the Portuguese
Empire ideas of discipline and good politics. The study of how Gonzaga dealt with these
ideas in their official documents enabled us to observe some practical results of reforms,
and if we can speak of a predominance of the "rule of law" in the late eighteenth century in
the Luso-American world or whether we should take careful with this affirmation,
considering it more as a tendency than a concrete fact.
Key-words: Gonzaga, Politic and Power.
O conjunto de fontes formado pelos pareceres jurídicos é composto por uma série
de documentos escritos por Tomás Antônio Gonzaga enquanto ele ocupou a Ouvidoria
Geral de Vila Rica. Hoje estes escritos se encontram distribuídos em vários arquivos, sendo
que os remetidos ao Conselho Ultramarinho estão no Arquivo Histórico Ultramarinho de
Lisboa, e os remetidos à Câmara de Vila Rica estão divididos entre o Arquivo Público
Mineiro, a Casa Setecentista do Pilar de Ouro Preto, o Arquivo Nacional e a Biblioteca
Nacional.
Como veremos, em muitos destes pareceres Gonzaga fala sobre as leis, algumas
vezes com argumentos “normativos” e disciplinadores, outras recorrendo aos preceitos
coorporativos. Outro aspecto importante dos pareceres de Gonzaga é que muitos deles
tratam de temas que também são relatados nas Cartas Chilenas, o que nos permite comparar
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
221
como ele lidou com assuntos relacionados à política tanto como poeta quanto como
magistrado.
Os altos magistrados enviados para o ultramar recebiam do rei o poder de fazer valer
a ordem e de exercer a justiça oficial. Sobre o trabalho dos ouvidores, as Ordenações Filipinas
afirmam que o ouvidor nomeado para exercer suas funções no ultramar possuía as mesmas
atribuições do corregedor nomeado para as comarcas do reino. A principal função do
ouvidor era fazer cumprir a justiça em nome del Rey. Porém, apesar de no final do século
XVIII já começar a se formar uma estrutura burocrática no reino que controlava o ofício
dos ouvidores, devemos ter em mente que estes magistrados sabiam manusear mecanismos
de distorção do poder político central em prol de seus interesses. Além disto, na prática,
como mostra Antônio Manuel Hespanha, os ouvidores tinham seu espaço de poder
atrelado a outras jurisdições como, por exemplo, os governadores, os membros da Câmara
e outros representantes do poder local (HESPANHA, 2006: 134). Tudo isso junto com a
existência nas sociedades de Antigo Regime de mecanismos informais de normação social
(o costume e o direito local, por exemplo), em relação aos quais, como temos visto, o
direito oficial era muito complacente.
Uma das chaves que usamos para compreender o processo de tomada de decisão de
Gonzaga na ouvidoria é seu relacionamento com a Câmara e com os governadores bem
como com figuras importantes daquela sociedade. Assim podemos ver como afetos,
alianças e inimizades influenciavam seu trabalho e suas idéias.
Sobre Minas Gerais, Álvaro Antunes afirma que em Vila Rica e Mariana, os dois
principais centros urbanos e administrativos da comarca, a justiça oficial ficava a cargo da
Junta de Justiça, dos ouvidores e das Câmaras (ANTUNES, 2007: 172). A Junta de Justiça
era presidida pelo governador e formada pelos quatro ouvidores de Minas, pelo provedor
da Fazenda e pelo juiz de fora de Ribeirão do Carmo, atual Mariana. Sobre o ouvidor,
Antunes afirma que ele representava a segunda instância judicial no termo de Vila Rica,
sendo responsável por conferir os processos julgados e apurar apelações e agravos contra
sentenças judiciais passadas por juízes de primeira instância (ANTUNES, 2007: 173).
O saber jurídico dos magistrados que, como Gonzaga, eram formados em Coimbra,
não era, segundo Hespanha, um fator que obrigatoriamente promovesse a disciplina e o
cumprimento da lei real no ultramar, pois, o fato destes magistrados se envolverem em
redes locais, fazia com que muitas vezes, se interessassem primeiramente em fazer vingar
os pontos de vista de seus clientes (HESPANHA, 2006: 44). Além disto, como mostra
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
222
Xavier Pujol, à distância para com a metrópole fazia com que muitas medidas tivessem que
ser tomadas sem maiores planejamentos, para fazer frente a contingências inesperadas
(PUJOL, 1991: 133).
Agindo de acordo com as tendências legalistas de seu tempo, e querendo mostrar-se
um bom funcionário régio, Gonzaga abre muitos de seus pareceres intitulando-se um “fiel
executor das leis de Sua Majestade” ou dizendo-se “movido pelo grande zelo com que se
emprega no Real Serviço” que, segundo ele, consiste “na fiel execução das leis”.
Tais declarações obviamente são passíveis de suspeita devido a seu caráter bajulatório
e ao claro interesse de Gonzaga em mostrar-se um bom funcionário para a Coroa. No
entanto, vemos que, assim como em seus textos teóricos onde defende o cumprimento das
leis reais, Gonzaga em muitos pareceres de fato, nega pedidos da Câmara de Vila Rica e de
particulares, alegando que tais demandas vão contra as determinações da Soberana.
Seguindo esta mesma lógica Gonzaga responde da seguinte forma um pedido do
governador da capitania de Minas Gerais Luís da Cunha e Menezes, para aprovação de
umas festas que seriam realizadas em Vila Rica para a comemoração do casamento dos
infantes portugueses.
Recebi de V. M. carta em que pede a minha aprovação para as festas que hão de
fazer em obséquio dos felizes desponsórios dos nossos Sereníssimos Infantes.
Venho dizer a V. M., que não me pertence o aprovar ou desaprovar algum ato
desse respeito, que deve ser decidido em ato de eleição conforme as leis de Sua
Majestade, de que sou um mero executor156.
Este parecer é muito interessante, pois vemos que Gonzaga teve uma oportunidade
de opinar sobre a realização dos festejos que ele tanto critica nas Cartas Chilenas. Como
vemos em tal oportunidade ele preferiu não se manifestar em nome do cumprimento das
leis. A resposta breve e ríspida deste parecer também nos mostra um pouco da
animosidade em o Ouvidor e o Governador.
Outros pareceres, entretanto, nos mostram que apesar de aparentemente seguir a
tendência normatizadora e ser “um mero executor das leis de Sua Majestade”, Tomás
Antônio Gonzaga, da mesma forma que fazia em seus textos teóricos, não hesitava,
quando era necessário, em recorrer à força dos costumes, da tradição e das ideias de bem
comum para tomar suas decisões práticas. Quando tal medida se fazia necessária, Gonzaga
não via problemas em interpretar as leis à sua maneira. Vejamos o exemplo de um parecer
156
Arquivo Público Mineiro (APM), Fundo da Câmara Municipal de Ouro Preto, Caixa 60, documento 19.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
223
dado por Gonzaga para a Câmara de Vila Rica sobre o uso de mão de obra escrava em uma
obra pública:
Vejo que V.M. me participam sobre a necessidade de fazer uma nova cadeia
para o que há já licença de Sua Majestade: o que é absolutamente indispensável.
Vejo a dificuldade que V. M. igualmente me propõe por se achar essa Câmara
com um grande empenho e sem rendas para suprir a tão avultada despesa, o
que também é certo. Vejo finalmente o adjutório que V. M. lhe pretendem dar,
querendo que nela trabalhem os forçados para assim pouparem os gastos dos
jornais, concorrendo essa Câmara unicamente com o sustento deles. Para que
não aceite esse grande adjutório, creio que não pode haver razão alguma: por
inda que a lei manda que as obras das Câmaras se façam por arrematações, esta
lei, contudo não deve se entender tão rigorosamente. O seu espírito é de querer
que as obras se façam mais comodamente e sendo nas circunstâncias presentes
o meio mais cômodo o aceitar-se sem ofertarão, fica manifesto que este meio
inda que pareça oposto ao rigor das palavras é, contudo o mais conforme com
o seu verdadeiro espírito157.
Vemos claramente neste exemplo que as circunstâncias e as necessidades locais
influenciavam Gonzaga no momento de interpretar as leis e tomar suas decisões como
Ouvidor, o que comprova a teoria de Xavier Pujol de que muitas medidas tomadas pelos
funcionários régios eram feitas para atender as demandas locais e não as leis (PUJOL, 1991:
133). Tal fato mostra também que a clássica visão dicotômica que enfatiza uma profunda
dualidade entre metrópole e colônia é errônea. Como afirma Maria Fernanda Bicalho era
enorme a capacidade de negociação e de incorporação dos vassalos no ultramar
(BICALHO, 2005: 94 e 95).
Este parecer sobre a construção da cadeia também é importante para ser contraposto
com as Cartas Chilenas. Como se sabe, nestas Gonzaga critica duramente a “soberba obra”
que, apesar de toda a sua grandiosidade, serviria para abrigar “uns negros que vivem
quando muito em vis cabanas” (GONZAGA, 2006: 61). Gonzaga também lamenta que a
cadeia estivesse sendo levantada “sobre os ossos de inocentes, construída com lágrimas dos
pobres forçados que trabalham sem outro algum jornal mais que o sustento”
(GONZAGA, 2006: 60 e 62).
Portanto, é interessante observar que foi o próprio Ouvidor Gonzaga quem
autorizou que fosse utilizada mão de obra escrava na construção e que ele não fez
nenhuma critica e tampouco criou algum obstáculo para o bom andamento da obra. É
claro que devemos nos lembrar que por se tratar de um poema, as Cartas Chilenas possuem
toda uma liberdade literária que Gonzaga obviamente não tinha como magistrado. No
poema, protegido por um pseudônimo, Gonzaga ficaria mais a vontade para fazer suas
157
Arquivo Público Mineiro (APM), Coleção Casa dos Contos (CC), caixa 10, documento 10201.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
224
criticas, enquanto no parecer pode ter agido com mais cautela para não entrar em conflito
com os membros da Câmara de Vila Rica.
Da mesma forma que no parecer visto acima, é em nome dos benefícios que seriam
trazidos para a população local que Gonzaga permite a construção de um hospital na
cidade de Mariana pela Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, ainda que os
terceiros não tivessem provado que as terras onde seria o dito hospital lhe foram aforadas:
É certo que a Ordem de Nossa Senhora do Carmo aforou à Câmara desta Vila
setenta braças de terra em circunferência da sua capela com o fim de edificar um
hospital para os seus terceiros pobres. Ouvi a Câmara e ela não afirma essa
confirmação. Contudo, esta obra não deixa de ser útil a esta mesma Vila, pois
havendo nela um hospital insignificante, agora ao menos os terceiros pobres terão
o benefício desta casa de piedade158.
Tais exemplos, para além de nos mostrar que assim como no Tratado de Direito
Natural, no cargo de Ouvidor Gonzaga continuava dividido entre o cumprimento das leis e
o direito comum, deixam claro que a aplicação das leis no ultramar, como afirma Júnia
Furtado, deve ser estudada como um instrumento dinâmico, que refletia os embates
enfrentados pela sociedade e que procurava se enquadrar e se adaptar à realidade da
capitania (FURTADO, 2009: 34).
É interessante também observar que estas acusações tecidas por Gonzaga contra o
governo de Cunha e Menezes nas Cartas Chilenas, também foram feitas através de pareceres
oficiais mandados diretamente para a Rainha D. Maria I. Contra o governador, Gonzaga
afirma em seus pareceres que encontrava dificuldades em cumprir adequadamente suas
funções de Ouvidor (denúncia que também aparece nas Cartas Chilenas) devido ao
despotismo do governador Luís da Cunha e Menezes e às intromissões e desmandos do
mesmo em assuntos que eram da alçada do judiciário.
Tais pareceres nos mostram que o duelo entre o governador e o ouvidor era público
e notório, a ponto de Gonzaga escrever também em documentos oficiais as criticas que ele
anonimamente tecia nas Cartas Chilenas. É interessante também observarmos que os
argumentos de ambas as denúncias, tanto a oficial quanto a anônima são os mesmos:
despotismo, falta de respeito às leis e intromissões. Argumentos estes que em muito
convergem com alguns ideias do Tratado de Direito Natural.
É claro que não devemos tomar ao pé da letra todas estas acusações feitas por Tomás
Antônio Gonzaga contra o governador Luís da Cunha e Menezes, mas, inseri-las em um
envolvente jogo de forças em curso na América Portuguesa que, ao mesmo tempo em que
158
Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa (AHU), caixa 124, documento 1, rolo 110.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
225
promovia uma instabilidade social de facções em rivalidade, viabilizava uma maior
vigilância entre as partes.
Mas ainda que relativizemos as acusações de Gonzaga, o “sistema” administrativo
descrito por ele em seus pareceres e nas Cartas Chilenas nos mostra que os funcionários
régios que prestavam serviços em Minas Gerais no final do século XVIII estavam longe de
se basear na máxima ilustrada de que o “bom governo é aquele que segue as leis”.
Pelo contrário, o que vemos é a existência de um governo que ainda se baseava em
improvisações; de pessoas favorecidas por estarem inseridas em certas redes e de uma
justiça que atende a interesses particulares. Não podemos dizer que tais características
fossem uma particularidade do governador Luís da Cunha e Menezes, pois, como já vimos,
o próprio Gonzaga em seus pareceres muitas vezes adotava soluções divergentes do que as
leis mandavam.
É interessante também observar como as afinidades e redes tecidas por Tomás
Antônio Gonzaga em Vila Rica o influenciavam na hora de tomar decisões. Como se sabe,
ao contrário de sua relação com Luís da Cunha e Menezes, Gonzaga se deu muito bem
com Dom Rodrigo José Menezes, governador da Capitania de Minas Gerais em seus
primeiros anos como Ouvidor (1782-1783). Nas Cartas Chilenas,por exemplo, para
contrapor a figura de Dom Rodrigo com a de Luís da Cunha e Menezes, Gonzaga chama
Rodrigo de “benigno chefe”. De fato, pudemos observar que Gonzaga nunca deu nenhum
parecer contrário a Dom Rodrigo, chegando a elogiá-lo para a rainha159 e até a apoiá-lo
quando o governador mandou prender um juiz, um procurador e um vereador por não
atenderem uma ordem sua160. Neste caso, Gonzaga não achou a atitude do então
governador despótica, mostrando-nos que na prática, alianças e afinidades refletiam na
forma como Gonzaga interpretava o mundo político.
Outra amizade feita por Gonzaga ao chegar em Minas e que é refletida em muitos de
em seus pareceres foi a como o rendeiro João Rodrigues de Macedo, que era um dos
homens mais poderosos, economicamente falando, da capitania. Em correspondência
datada de 1787, Macedo oferece dinheiro a Gonzaga, que em resposta afirma que não
recorreria a mais ninguém caso precisasse de recursos. Como ouvidor, Gonzaga deu vários
pareceres a favor de João Rodrigues de Macedo, principalmente notificações para que
devedores quitassem suas dívidas com o rendeiro sob pena de terem seus bens
159
160
Arquivo Histórico Ultramarinho (AHU), documentos relativos à Minas Gerais:cx 124, doc. 2.
Arquivo Público Mineiro: Fundo da Câmara Municipal de Ouro Preto (CMOP), cx 58, doc 22.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
226
penhorados.161 A relação entre estes dois homens talvez pudesse então se encaixar no que
Hespanha chama de “economia do dom”, onde um favor é agraciado por uma recompensa
(HESPANHA E XAVIER, 1994: 120). Ou seja, seria uma relação baseada em hábitos e
valores coorporativos onde as relações pessoais de Gonzaga influenciavam em seu
trabalho.
Por fim, é importante destacarmos que em seus pareceres, sempre que tem de dar
uma ordem judicial para coibir um abuso ou deter um criminoso ou devedor, Gonzaga
afirma que “na falta de oficiais de justiça, poderão fazer-lo quaisquer um das milícias ou
capitão do mato162”. Ou seja, até mesmo o ouvidor geral da Comarca recorria em seus
documentos oficiais aos poderes locais. Tal fato muito recorrente nos pareceres de Tomás
Antônio Gonzaga comprova que a existência de um universo da política e da justiça
baseado nas máximas das leis, da normatização e da centralização estava longe de ser uma
realidade em Minas Gerais no final do século XVIII.
Desta forma, através de todos os exemplos tirados dos textos de Tomás Antônio
Gonzaga que vimos até aqui, vamos comprovando a teoria de que o Império Português do
final do século XVIII não tinha ainda se livrado dos usos dos costumes, dos privilégios e
das tradições locais e, como conseqüência, não tinha completado sua centralização por
meio da normatização. Tal questão se torna ainda mais clara em um interessantíssimo
parecer enviado por Gonzaga à Rainha D. Maria I, relatando os problemas que a Real
Fazenda sofria devido ao fato dele estar cumprindo uma ordenação real que proibia o uso
dos costumes introduzidos contra as leis. Vejamos segundo as palavras de Gonzaga:
O zelo com que devo servir Vossa Majestade no emprego de Juiz dos Feitos,
que atualmente ocupo, me obriga a por na presença de Vossa Majestade o
grande dano que se segue a Real Fazenda na execução de uma Ordenação do
Reino.
As grandes distâncias deste continente e a falta de tabelião fizeram com que os
primeiros habitantes daqui introduzissem o ato de celebrarem seus contratos
por escritos particulares. Este costume, introduzido no princípio por uma
desculpável necessidade passou ao excessivo abuso de praticar nas mesmas vilas
onde havia tabeliões de notas, e o mais é que passou a ser autorizado por
sentenças dos juízes que atendendo mais ao uso, do que as leis julgarão por
certo ainda quando as partes impugnavam a sua validade.
Foi Vossa Majestade servida ordenar que não se julgasse mais pelos costumes
introduzidos contra a aplicação das leis, declarando a todos como abusos. Por
virtude de tão sábia legislação se principiou a absorver a todos os devedores
que eram declarados por sem obrigação e estas sentenças se tem confirmado na
relação do continente. Daí vem que se devem respeitar como perdidas quase
todas as dívidas contraídas nesta capitania o que resulta em um grande dano aos
161
162
Arquivo Público Mineiro: Coleção casa dos contos (CC), cx. 57, doc 30496.
Biblioteca Nacional (BB), 1-25,02,039, documento número 53.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
227
particulares e à Real Fazenda de Vossa Majestade. Assim, eu me vejo nas
circunstâncias de sentenciar conforme a lei em dano da Fazenda de Vossa
Majestade163.
Este último parecer nos mostra que Xavier Gil Pujol está certo ao afirmar que muitas
vezes foram os encarregados de aplicar a justiça no mundo local que tiveram de se adaptar
aos valores da comunidade (PUJOL, 1991: 132). Vemos que, neste caso descrito por
Tomás Antônio Gonzaga, tal adaptação era necessária para os interesses da própria Coroa,
mostrando-nos que por mudar antigas e arraigadas práticas, as tentativas de normatização
acabavam por gerar uma série de situações peculiares e conflituosas. O parecer nos mostra
também que que mesmo nas últimas décadas do XVIII a questão do direito comum estava
longe de ser resolvida e que não havia um poder que poderíamos chamar de “absoluto”.
De fato pudemos observar que em sua vida de magistrado, assim como fez em seus
textos teóricos e poéticos deste a juventude, Tomás Antônio Gonzaga encontrava-se
dividido entre um ideal de Estado forte e centralizado por meio da lei, e o uso dos
costumes e práticas comuns no mundo da justiça. Pois bem, a partir da atitude de Gonzaga
diante dos conflitos e relações de sua época, pudemos observar como fenômenos de seu
tempo refletiam em sua trajetória, tornando-o assim um convincente exemplo das
incertezas político-jurídicas do Império Português do século XVIII.
Fontes Impressas:
GONZAGA, Tomás Antônio. Cartas Chilenas. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
GONZAGA, Tomás Antônio. Tratado de Direito Natural. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e
Cultura, 1957.
Fontes Manuscritas:
Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa (AHU), caixa 124, documento 1, rolo 110.
Arquivo Histórico Ultramarinho (AHU), documentos relativos à Minas Gerais:cx 124, doc. 2.
Arquivo Público Mineiro: Fundo da Câmara Municipal de Ouro Preto (CMOP), cx 58, doc 22.
Arquivo Público Mineiro (APM), Fundo da Câmara Municipal de Ouro Preto, Caixa 60,
documento 19.
Arquivo Público Mineiro (APM), Coleção Casa dos Contos (CC), caixa 10, documento 10201.
Arquivo Público Mineiro: Coleção casa dos contos (CC), cx. 57, doc 30496.
Biblioteca Nacional (BB), 1-25,02,039, documento número 53.
Fontes na Internet:
163
Arquivo Público Mineiro (APM), Coleção Casa dos Contos (CC), caixa 10, documento 10201 de 09-091786.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
228
Código Filipino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal. Livro Primeiro. Título LIX. Pg.112.
In: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/.
Bibliografia Citada:
ANTUNES, Álvaro de Araújo. Administração da justiça nas Minas setecentistas. In: REZENDE,
Maria Efigênia Lage de & VILLALTA, Luís Carlos (orgs). História de Minas Gerais: As Minas
Setecentistas Volume 1. Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo, 2007.
BICALHO, Maria Fernanda. Elites coloniais: a nobreza da terra e o governo das conquistas.
História e historiografia. In: MONTEIRO, Nuno Gonçalo F.; CARDIM, Pedro & CUNHA,
Mafalda Soares da (orgs). Optima Pars: Elites Ibero-Americanas do Antigo Regime. Lisboa: Imprensa de
Ciências Sociais (ICS), 2005.
FURTADO, Júnia Ferreira. Diálogos Oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para o
império marítimo português no século XVIII. In: BICALHO, Maria Fernanda; FURTADO, Júnia
Ferreira & SOUZA, Laura de Mello e (orgs). O Governo dos Povos. São Paulo: Alameda, 2009
GIL PUJOL, Xavier. Centralismo e localismo. Sobre as relações políticas e culturais entre capital e
territórios nas monarquias européias dos séculos XVI e XVII. Penélope: Fazer e Desfazer História, n. 6,
Lisboa, 1991.
HESPANHA, Antônio Manuel. Por que foi “portuguesa” a expansão portuguesa ou O revisionismo nos
trópicos. In: BICALHO, Maria Fernanda; FURTADO, Júnia Ferreira & SOUZA, Laura de Mello e
(orgs). O Governo dos Povos. São Paulo: Alameda, 2009, pg. 45.
XAVIER, Ângela e HESPANHA, Manuel. A representação da sociedade e do poder. In:
MATTOSO, José (org). História de Portugal. O Antigo Regime (1620-1807) vol. IV. São Paulo: Editorial
Estampa, 1994.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
229
Na esteia de um regressismo conservador: Joaquim José Rodrigues Torres e a
presidência da província do Rio de Janeiro (1834-1836)
Lívia Beatriz da Conceição
Doutoranda em História Social pela UFRJ/ FAPERJ - Nota 10
liviabeatrizd@ig.com.br
Resumo: Este artigo pretende fazer uma análise sobre as propostas de ação política de
Joaquim José Rodrigues Torres como presidente da província do Rio de Janeiro. Em
diálogo com os usos do biográfico, o personagem em questão é tomado como o fio da
narrativa para pensarmos sobre alguns assuntos relacionados à recém instaurada
administração provincial, num momento de emergência do regressismo como movimento
político de defesa de algumas reformas e ações. Para tanto, nos utilizaremos de seus dois
relatórios dirigidos à Assembléia Legislativa Provincial, construindo uma problematização
acerca dos seus projetos de experimentação política enquanto presidente de província, com
vias à formação do povo e da nação do jovem império em constituição.
Palavras-chave: História Política, Biografia, Império do Brasil.
Résumé: Dans cet article nous réalisons une analyse des propositions d´action politique de
Joaquim José Rodrigues Torres comme président de province à Rio de Janeiro. Nous avons
choisi ce personnage pour penser sur quelques sujets liés à l´administration provinciale,
dans un moment d´émergence du pensement régressif comme mouvement politique qui a
défendu des réformes. Nous nous utilisons de deux rapports qu´il a envoyé pour
l´Assemblée Législative Provinciale pour construire une analyse sur ses projets comme
président de province, qui avaient comme objectif former le peuple et la nation du jeune
empire qui était en construction.
Mots-clé: Histoire politique, biographie, Empire du Brésil.
Que fontes de riquezas e prosperidade borbulham, Srs., em todos os pontos do
nosso país!! Que risonho futuro nos aguarda, se a Divina Onipotência, livrandonos dos abalos, e comoções políticas, inspirar-nos assaz constância, e esforço para
mantermos as formas governativas, que possuímos, e com elas os benefícios da
paz, e duradoura tranqüilidade!!164
Estas idéias cunhadas por Joaquim José Rodrigues Torres encontram-se presentes
em seu segundo relatório enviado à Assembléia Legislativa Provincial fluminense.
Rodrigues Torres assumiu a presidência da província do Rio de Janeiro em outubro de
1834, dois meses após a promulgação do Ato Adicional de 12 de agosto do mesmo ano.
Neste artigo, defendemos a idéia de que através de seus dois relatórios enviados à
assembléia provincial, o primeiro de 1º de fevereiro de 1835 e o outro de 1º de março de
1836, esse personagem teve uma peculiar oportunidade de trazer ao debate assuntos
considerados por ele da mais urgente resolução! Momento singular de construção e
164 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “s/título,
1836”, p. 24 (disponível em www.crl.edu/brazil).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
230
discussão dos seus projetos de ação política para a recém criada administração provincial
num contexto político específico de constituição do regressismo conservador e, a partir
dele, de revisão das reformas consideradas como descentralizantes elaboradas nos anos
iniciais das regências (BASILE, 2009).
Tomamos seus relatórios, nesse sentido, como espaço não somente de discussão de
questões relacionadas à como bem gerenciar o orçamento público da província, mas,
sobretudo, como uma possibilidade de configuração de algumas de suas propostas de ação
relacionadas a duas grandes questões consideradas por ele das mais importantes nesse
momento de “tão funestas paixões”165: a manutenção da ordem política e social e a
civilização/integração territorial da província; forjando assim em nível local projetos que se
estenderiam a uma percepção de como o Estado imperial no Brasil deveria ser pensado.
É nesse sentido, como procuraremos mostrar, que assuntos como o da Guarda
Nacional, do culto público, a iluminação das ruas das vilas da província, a criação e/ou
reparo das estradas, pontes, canais e das casas de caridade e a construção ou não de cadeias
e casas de correção foram levados a ser debatidos na assembléia provincial.
Livrar a província, e, por conseguinte o “país”, “dos abalos e comoções políticas”,
conseguindo, a partir disso, “riqueza e prosperidade” e um “risonho futuro”; assim como
“curar”166 da falta de civilização e integração a jovem pátria em formação. Essas eram,
seguramente, algumas das suas principais estratégias de ação, assim como da facção
regressista em constituição, conforme procuraremos problematizar nas linhas que se
seguem.
Ordenar, civilizar e integrar para prosperar!
Em 12 de agosto de 1834 fora promulgado o ato complementar à Constituição de
1824167. Uma medida tida por alguns como muito descentralizadora, e que, logo após a sua
aprovação, já seria revista por aqueles que o consideravam uma verdadeira “carta da
anarquia”, nos dizeres de Bernardo Pereira de Vasconcelos, por se contrapor a uma ordem
pública que deveria ser resguardada, e que poderia levar à tão temida fragmentação
165
Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “Fala com que
o presidente da Província do Rio de Janeiro o conselheiro Joaquim José Rodrigues Torres abriu a 1ª sessão da
1ª Legislatura da Assembléia Legislativa da mesma Província no dia 1º de fevereiro de 1835”. Niterói, Typ. de
Amaral e irmão, 1850, p. 34 (disponível em www.crl.edu/brazil).
166 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “s/título,
1836”, p. 16 (disponível em www.crl.edu/brazil).
167 Ato Adicional de 1834. In: ANDRADE, Paulo Bonavides Paes de. História Constitucional do Brasil.Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1988, pp. 593-600.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
231
territorial. Configurar-se-ia ele, assim, como um divisor de águas das ações empreendidas
pelas facções políticas imperiais do período (BASILE, 2009).
Uma de suas principais decisões dizia respeito à separação entre a província do Rio
de Janeiro e a Corte, capital do Império. Passando aquela a ter administração própria, com
capital em Niterói, determinações legais para a sua organização e gerenciamento
precisavam e estavam sendo pensadas; e Joaquim José Rodrigues Torres, como seu
primeiro presidente de província, tinha uma oportunidade ímpar, nesse contexto, de sugerir
idéias, de “emitir” a sua “opinião”168, tecendo assim suas propostas de ação política para os
mais diversificados assuntos relacionados à administração provincial, como a defesa da
idéia da construção de uma casa de caridade na Vila de Magé, havendo, segundo ele,
através desse ato um “asilo para os infelizes, que a fragilidade, ou a miséria e indigência de
seus progenitores levaram a abandoná-los nas estradas e portas dos particulares, onde
muitas vezes” terminavam “na aurora da existência dias que poderiam tornar-se úteis à
Pátria”.169
A Câmara da Vila de Magé recorreria ao governo provincial solicitando uma ajuda de
500 mil réis para a realização desse projeto de criação de uma casa de caridade, e Joaquim
José Rodrigues Torres considerou esse assunto de tão significativa importância que o levou
para ser debatido na assembléia legislativa, afirmando que “algumas somas prestadas pelos
cofres da Província, e engrossadas pela caridade de nossos concidadãos” poderiam
“concorrer para o estabelecimento, ao menos em cada Comarca, de uma casa que” servisse
“de refúgio à desvalida inocência dos expostos”.170
Desvalidos, infelizes, contudo inocentes estes que, com isso, teriam a chance de, ao
serem resgatados de tamanha desgraça e abandono, tornarem-se verdadeiros “úteis à
Pátria” em formação. Mas outro grupo de miseráveis e infelizes, todavia nada cândidos,
assim não eram percebidos por nosso personagem. Quando o assunto eram os presos e a
construção para estes de casas de correção, sua posição era bem diferente:
Não me parece ainda praticável a construção de uma casa de correção em qualquer
ponto da parte do território sobre que se estende a autoridade provincial. As somas
que semelhante obra exigiria para ser acabada em poucos anos estão acima das
168
Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “Fala com que
o presidente da Província do Rio de Janeiro o conselheiro Joaquim José Rodrigues Torres abriu a 1ª sessão da
1ª Legislatura da Assembléia Legislativa da mesma Província no dia 1º de fevereiro de 1835”. Niterói, Typ. de
Amaral e irmão, 1850, p. 1 (disponível em www.crl.edu/brazil).
169 Idem, Ibidem, p. 11 (disponível em www.crl.edu/brazil).
170Idem, Ibidem, p. 11 (disponível em www.crl.edu/brazil).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
232
forças dos cofres provinciais que aliás tem de acudir a despesas muito mais
urgentes171.
E o que fazer então com os condenados da província? Enviá-los para “a Capital do
Império onde uma casa de correção se” estava “edificando”172. Uma forma certamente
engenhosa de se ver livre dos desordeiros. Mas seria possível livrar-se de todos os que
atentaram contra a segurança pública? Seguramente não! Por isso era sugerido ser
“absolutamente necessário (...) a existência em cada Termo Municipal de uma prisão limpa,
segura, e bem arejada, onde se” guardassem “os réus, que em virtude” da “Legislação
Penal” deveriam “neles ser julgados e os que” fossem “condenados a simples prisão”.173
Aos que ficassem, era necessária segura vigilância e mínimas condições de estadia,
através de “concertos e reparos das cadeias existentes”174; a exemplo da cadeia da vila de
Magé, cuja “estreiteza e insalubridade”175 poderiam ser “perniciosas à saúde dos
delinqüentes”176. Podemos nos arriscar a dizer que cadeias apertadas, insalubres e com falta
de ventilação seriam um perigo não somente à saúde dos presos, mas às intenções desse
sujeito da história de que esses homens da desordem bem guardados estivessem.177
No relatório de 1836, ficaria registrada por Joaquim José Rodrigues Torres a ação da
assembléia provincial que no ano anterior havia posto a disposição do governo provincial
“os armazéns da Armação que haviam sido requisitados com o fim de fazer-se ali a Cadeia”
178
da vila de Niterói. Considerada por Rodrigues Torres como uma “obra de urgente e
absoluta precisão” 179, ele prestava esclarecimentos sobre a “despesa orçada” e afirmava ser
“evidente a necessidade de marcar no Orçamento do ano futuro a consignação que” era
“de mister para o seu completo acabamento, ou ainda” que ele fosse autorizado “a
empregar nesta obra o que” pudesse “sobejar em outros títulos da despesa do ano
financeiro corrente”.180
Neste mesmo relatório, ponderações foram feitas a respeito da construção das
cadeias das vilas de Itaboraí, Maricá, Campos e do termo de Rezende, assim como sobre o
171Idem,
Ibidem, pp. 11-12 (disponível em www.crl.edu/brazil).
Ibidem, p. 12 (disponível em www.crl.edu/brazil).
173Idem, Ibidem, p. 12 (disponível em www.crl.edu/brazil).
174Idem, Ibidem, p. 12 (disponível em www.crl.edu/brazil).
175Idem, Ibidem, p. 13 (disponível em www.crl.edu/brazil).
176Idem, Ibidem, p. 12 (disponível em www.crl.edu/brazil).
177 Para uma discussão a respeito do funcionamento do “poder disciplinar” nas casas de correção vista, assim,
como uma “instituição disciplinar”, ver FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2010.
178 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “s/título,
1836”, p. 11 (disponível em www.crl.edu/brazil).
179Idem, Ibidem, p. 11 (disponível em www.crl.edu/brazil).
180Idem, Ibidem, p. 12 (disponível em www.crl.edu/brazil).
172Idem,
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
233
reparo de outras que já existiam. Curiosa foi a forma através da qual a cadeia de Rezende
estava sendo construída. Seus “habitantes”
181
haviam enviado a Joaquim José Rodrigues
Torres um pedido, que ele considerava mais do que justo, de auxílio financeiro para
terminarem a construção que eles próprios haviam iniciado. Através da “detenção dos
criminosos”
182
do termo de Rezende, era opinião de seus habitantes, estaria assegurada,
assim, a tranqüilidade pública em nível local.
Nesse objetivo de manutenção da ordem política e social, outro assunto mereceu
especial atenção de nosso personagem em seu primeiro relatório: a Guarda Nacional, cuja
falta de armamento e desorganização era considerada um verdadeiro perigo! A sugestão era
a de que “anualmente uma porção deste armamento [,] indispensável para que a força
cívica” pudesse “em ocasião de necessidade prestar os serviços que” tinha “a pátria direito
de esperar dela” 183, fosse sendo comprado.
Tamanha era a preocupação de Joaquim José Rodrigues Torres com o segurança
pública que além dessas estratégias de ação políticas outra se fazia urgente: a iluminação das
ruas das vilas da província. Duas delas mereceram especial atenção no relatório de 1835, a
Vila de Campos e a da Praia Grande, capital provincial. A primeira pela “crescida
população e [seu] comércio”184; e a da Praia Grande “não só pela sua extensão e crescida
população, mas ainda pela circunstância de ser continuamente freqüentada por grande
número de pessoas Nacionais e Estrangeiras de todas as classes”185. A iluminação das vilas,
em sua opinião, traria “não só comodidade para os habitantes e pessoas que (...) [as]
transitam, mas ainda facilidade para a manutenção da tranqüilidade e polícia da
povoação”!186
A atenção dada à preservação da ordem política e social do império em formação não
era uma exclusividade de Rodrigues Torres em sua atuação enquanto presidente de
província. Aqui, porém, ele e seu espaço particular de experimentação política que foi a
província do Rio de Janeiro são tomados como o fio da trama para podermos pensar nessa
questão inclusive em escala mais ampla.
181
Idem, Ibidem, p. 12 (disponível em www.crl.edu/brazil).
Ibidem, p. 12 (disponível em www.crl.edu/brazil).
183 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “Fala com que
o presidente da Província do Rio de Janeiro o conselheiro Joaquim José Rodrigues Torres abriu a 1ª sessão da
1ª Legislatura da Assembléia Legislativa da mesma Província no dia 1º de fevereiro de 1835”. Niterói, Typ. de
Amaral e irmão, 1850, p. 14 (disponível em www.crl.edu/brazil).
184Idem, Ibidem, p. 15 (disponível em www.crl.edu/brazil).
185Idem, Ibidem, p. 15 (disponível em www.crl.edu/brazil).
186Idem, Ibidem, p. 15 (disponível em www.crl.edu/brazil).
182Idem,
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
234
Joaquim José Rodrigues Torres e outros tantos personagens desses chamados “anos
da ordem” (MATTOS, 2005) representaram “os elementos de uma geração de construtores
do Império cujas trajetórias interagiram diretamente com a afirmação do projeto
regressista/conservador [em constituição] na consolidação do Estado Imperial” no Brasil
(GONÇALVES, 1985: 89-90).
Facção regressista esta que se formava em oposição às medidas consideradas por eles
muito liberalizantes, como o Código do Processo Criminal de 1832 e o Ato Adicional de
1834 (BASILE, 2009), e que, devido a isto, estariam sendo possibilitadoras de uma idéia
equivocada de liberdade (CONCEIÇÃO, 2004).
Homens como Bernardo Pereira de Vasconcelos187, que passaram a defender que
deveria haver um novo equilíbrio entre a autoridade do Estado e as liberdades políticas.
Esta nova autoridade, mais conservadora/centralizadora, devia ser garantida porque este
era visto como o único meio para a consolidação da ordem e para a preservação da unidade
territorial do Império, ameaçadas pelos constantes conflitos sociais do período.188
Entre os anos de 1835 e 1837, cresceria a idéia entre estes que se denominavam
regressistas de que estaria havendo uma incompatibilidade entre a administração localista e
a preservação das liberdades civis. As liberdades permitidas esbarravam, desta forma, no
limite da desordem política e no perigo da fragmentação.189
Nessa conjuntura de disputas e, certamente, de incertezas, as ações empreendidas por
Joaquim José Rodrigues Torres como presidente da província do Rio de Janeiro deveriam
ser inovadoras e eficazes no objetivo de elaborar uma revisão conservadora das reformas
187
Assim como, a título de exemplo, Carneiro Leão, Araújo Lima, Miguel Calmon e, mais tarde, Paulino José
Soares de Souza e Eusébio de Queiróz.
188 Como, por exemplo, a Cabanagem no Pará, a Farroupilha no Rio Grande do Sul, a Sabinada em Salvador,
a Balaiada no Maranhão e o emblemático Levante dos Malês na Bahia. Para uma discussão sucinta a respeito
dessas revoltas ver, por exemplo, MOREL, Marco. O período das Regências, (1831-1840). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2003. Segundo este autor “nenhum momento da história do Brasil concentrou tanta violência
num tempo tão curto e em extensões de terra tão largas quanto essa fase da monarquia. Violência social e
política. (...) A engrenagem nacional centralizadora, modernizante e defensora da ordem social, urdia por
agentes históricos, incorpora e homogeneíza os multifacetados rebeldes, não somente eliminando-os, mas
digerindo-os e assimilando os pedaços partidos na busca de uma nação próspera e desigual”. Idem, Ibidem, p.
65-66. Marcelo Basile apresenta um quadro das revoltas do período em BASILE, Marcelo. O laboratório da
nação: a era regencial (1831-1840). In: GRINBERG, Keila e SALLES, Ricardo. O Brasil Imperial, volume II:
1831-1870. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p.69. Essa mudança de posição política fora
conseqüência também de outro fator. Não havia mais o porquê do medo de uma ameaça “restauradora” a
qual suas novas idéias poderiam levar, uma vez que D. Pedro I havia falecido em Portugal no ano anterior.
189 Ilmar Mattos caracteriza este período do final dos anos trinta até o ano de 1852 como o período da reação
conservadora; com o “avanço do princípio da autoridade”, ou seja, da prevalência do Executivo. Mas não
seria um absolutismo, já que “não implicava a eliminação da liberdade, e sim a sua requalificação”, num
contexto de desordem social, que demonstrava os limites dessa liberdade. MATTOS, Ilmar. O tempo
saquarema: a formação do Estado Imperial. Rio de Janeiro: ACCESS, 1994, p. 131.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
235
descentralizantes, promulgadas nos anos iniciais das regências, buscando por uma liberdade
dentro da ordem e garantidora, assim, da unidade territorial.190
Nesse objetivo, nenhum outro assunto mereceu tanto a sua atenção em seus meses
iniciais enquanto presidente de província do que a questão da criação e/ou reparo das
estradas, pontes e canais:
Em um País exclusivamente agrícola, como o nosso, onde até a indústria
comercial das grandes Cidades é inteiramente vivificada pelo trabalho rural; o
meio que há para com melhor resultado promover-se o aumento da riqueza
pública é, sem dúvida, depois da segurança pessoal e de propriedade, o
estabelecimento de meios de fácil comunicação. Bem conheço que mal serão
suficientes nossos recursos pecuniários para concertar e melhorar as estradas
que temos; mas também a época parece aproximar-se em que o espírito de
associação para empresas desse gênero começa no nosso abençoado Pais a
produzir os mesmos efeitos que tem opulentado outras nações191.
A “riqueza pública” e uma aproximação possível do ideal de civilização de “outras
nações”, idéia que aprofundaremos abaixo, far-se-ia assim a partir do “estabelecimento de
meios de fácil comunicação”. Nota-se, contudo que, antes das estradas, esta magnificência
se faria através da “segurança pessoal e de propriedade”.
Uma de suas sugestões para que o “estado deplorável de quase todas as estradas da
Província”192 fosse amenizado seria “a criação de uma administração especial e local
convenientemente organizada, e com rendas privativamente destinadas aos [seus] consertos
e reparações”193, sendo este “um dos grandes benefícios que a Assembléia Legislativa”
poderia “fazer à indústria e agricultura”194 provincial.
190 Segundo Marcel Basile, “o governo centralizado não era mais entendido como sinônimo de despotismo, e
sim, ao contrário, como único capaz de garantir a liberdade, ao conter os arbítrios dos poderes locais
facciosos”. BASILE, Marcelo. Op.Cit., p. 93. De acordo com Marco Morel, para o liberalismo moderado,
cujos preceitos muitos dos adeptos do regressismo defendiam, “a definição de liberalismo (...) [passava] pela
preocupação de fixar os limites da liberdade. [Esses limites deveriam] partir da lei, da Constituição, mas
também de um Estado forte (...) sem rupturas com a ordem”. MOREL, Marco. As transformações dos espaços
públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na cidade imperial (1820-1840). São Paulo: Hucitec, 2010,
p. 121.
191 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “Fala com que
o presidente da Província do Rio de Janeiro o conselheiro Joaquim José Rodrigues Torres abriu a 1ª sessão da
1ª Legislatura da Assembléia Legislativa da mesma Província no dia 1º de fevereiro de 1835”. Niterói, Typ. de
Amaral e irmão, 1850, p. 34 (disponível em www.crl.edu/brazil).
192Idem, Ibidem, p. 26 (disponível em www.crl.edu/brazil).
193Idem, Ibidem, p. 6 (disponível em www.crl.edu/brazil). No relatório de 1836, Rodrigues Torres fala em “uma
administração privativa” para administrar não somente as estradas, mas todas as demais “obras da Província”.
Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “s/título, 1836”,
p. 25 (disponível em www.crl.edu/brazil). Ainda que esta renda privada viesse de capital externo, como no
caso da abertura do Canal de Campos à Macaé. Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro.
TORRES, Joaquim José Rodrigues. “s/título, 1836”, p. 24 (disponível em www.crl.edu/brazil).
194 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “Fala com que
o presidente da Província do Rio de Janeiro o conselheiro Joaquim José Rodrigues Torres abriu a 1ª sessão da
1ª Legislatura da Assembléia Legislativa da mesma Província no dia 1º de fevereiro de 1835”. Niterói, Typ. de
Amaral e irmão, 1850, p. 6 (disponível em www.crl.edu/brazil).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
236
Apesar de Joaquim José Rodrigues Torres ter tido “pouco tempo (...) para calcular o
total das despesas que seus reparos e melhoramentos”195 exigiam, esta seria, a seu ver, uma
das “primeiras necessidades”196, qual seja: a de tratar “dos meios de facilitar a condução dos
produtos do interior da província para os diferentes mercados”197. Produtos como o café,
que sendo produzido como exemplo no distrito de São João do Príncipe e suas
vizinhanças, precisava ser levado por uma estrada a ser consertada na Vila de Mangaratiba
até seu porto para ser escoado para o restante da província.
Grande parte do relatório de 1835 foi dedicado a este tema. Estas eram requisições
das Câmaras Municipais das vilas de Itaboraí, Macacú, Magé, Praia Grande, Campos, Ilha
Grande, Barra Mansa, Valença, Rezende, Paraíba do Sul, Vassouras, Nova Friburgo,
Cantagalo, além da própria vila de Mangaratiba e do distrito de São João de Príncipe.198
Parte significativa do relatório de 1836 também se deteve nessa questão da
construção e/ou reparo das estradas, pontes e canais como referentes à parte das “obras
públicas [que] mais” reclamavam “o estado da Província”199. O café, ponderava Rodrigues
Torres, era o produto mais rentável para os cofres provinciais, com o dízimo sobre este
produto tendo aumentado significativamente no primeiro semestre do ano200. E assim
vinha ocorrendo desde pelo menos 1833, questionando-se ele sobre “quem” poderia saber
“quanto de contínuo aumento (...) a cultura deste rico produto” seria “permitido pensar”201.
No entanto, reconhecia ele “uma verdade”202:
O grande número de estradas, que em todos os sentidos cortam a Província, e o
mal estado da maior parte delas, não permite ocuparmo-nos de repará-las
simultaneamente: mais vale abandonar algumas, e curar de tornar as outras
transitáveis, do que conservá-las todas no estado atual. Escolher as mais
necessárias para facilitar as comunicações do interior, e promover os interesses
da agricultura, e do comércio: e, sem pretendermos por ora torná-las perfeitas
estradas, darmo-nos pressa em repará-las; e fazer-lhes os melhoramentos
compatíveis com as faculdades da Província, estabelecendo depois barreiras nos
195Idem,
Ibidem, pp. 26-27 (disponível em www.crl.edu/brazil).
Ibidem, p. 7 (disponível em www.crl.edu/brazil).
197 Idem, Ibidem, p. 7 (disponível em www.crl.edu/brazil).
198 Estas demandas, certamente, relacionavam-se à expansão dos cafezais na região fluminense. Ver a respeito
em SALLES, Ricardo. E o vale era o escravo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
199 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “s/título,
1836”, p. 16 (disponível em www.crl.edu/brazil).
200 Segundo Arnaldo Fazoli Filho, a partir de 1835, o café “começava a representar o primeiro produto na
pauta das exportações” do Império. FAZOLI FILHO, Arnaldo. O período regencial. São Paulo: Editora Ática,
1994, p. 31.
201 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “s/título,
1836”, p. 27 (disponível em www.crl.edu/brazil).
202Idem, Ibidem, p. 16 (disponível em www.crl.edu/brazil).
196Idem,
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
237
lugares mais apropriados, cujas taxas (que devem ser mui módicas) se apliquem
para a conservação das estradas respectivas203.
Joaquim José Rodrigues Torres sugeriria então quais seriam aquelas que fariam parte
de seu projeto de ação política, figurando-se como “as mais necessárias para facilitar as
comunicações do interior, e promover os interesses da agricultura, e do comércio” da
província: a do Termo de Cartagalo, a estrada do Comércio, da Estrela, de Itaguaí e a da
Polícia. Retornava também ao debate a estrada que ligava São João do Príncipe a
Mangaratiba204, vista como sendo:
Incontestável sua grande utilidade: (...) [bastava] para reconhecê-la atender
quanto é mais fácil aos Lavradores deste Município, e dos lugares
circunvizinhos, enviarem seus produtos à Mangaratiba, em vez de mandar a
outros portos muito mais distantes, ao que (...) [eram] todavia amiudadas vezes
forçados, mormente na estação chuvosa, por evitarem os incômodos e
prejuízos que lhes resultavam (...) do mau estado do caminho205.
Na vila de Paraíba do Sul, a Câmara Municipal alegava que a construção de uma
ponte sobre o rio que levava o mesmo nome não seria muito “dispendiosa à Fazenda
Pública, não só porque” havia “ali pedra em abundância, mas ainda pela boa vontade dos
Povos visinhos em concorrerem em donativos para auxílio da construção”206 dela.
A participação dos “Cidadãos”207 da província na construção desse relatório não
ocorreu apenas a partir de oferecimento de ajuda financeira para a concretização de obras
públicas, mas, inclusive, através de pedidos enviados diretamente a Joaquim José Rodrigues
Torres:
Há poucos dias chegou-me às mãos uma representação de vários Cidadãos da
Vila da Ilha Grande em que fazendo-me constar haver-se promovido uma
subscrição entre os habitantes do lugar para concerto das estradas que daquela
vila se dirigem às de São João de Príncipe, e Rezende, ao Bananal e Áreas, de
cuja direção se achavam pelos subscritores encarregados, pediam ao Governo
da Província uma cota mensal para o mesmo fim208.
203Idem,
Ibidem, p. 16 (disponível em www.crl.edu/brazil).
Sobre as pontes citadas no relatório de 1836, Rodrigues Torres sugeria a construção e/ou reparo destas
sobre os rios Paraíba, Sarapui, Palmitar, Santa Anna, Itaguaí e Teixeira. Nota-se que a maior parte dessas
pontes seriam construídas sobre os rios que atravessavam as estradas “cujos reparos (...) (deveriam, em sua
opinião,) por agora serem preferidos”. Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES,
Joaquim José Rodrigues. “s/título, 1836”, p. 17 (disponível em www.crl.edu/brazil).
205 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “s/título,
1836”, p. 21 (disponível em www.crl.edu/brazil).
206 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “Fala com que
o presidente da Província do Rio de Janeiro o conselheiro Joaquim José Rodrigues Torres abriu a 1ª sessão da
1ª Legislatura da Assembléia Legislativa da mesma Província no dia 1º de fevereiro de 1835”. Niterói, Typ. de
Amaral e irmão, 1850, p. 25 (disponível em www.crl.edu/brazil).
207 Idem, Ibidem, p. 23 (disponível em www.crl.edu/brazil).
208Idem, Ibidem, p. 23 (disponível em www.crl.edu/brazil).
204
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
238
Pedido encaminhado à Assembléia Legislativa Provincial e prontamente atendido
pelo seu então presidente de província, que já no mês de março seguinte enviava essa
“cota” para o “concerto das estradas que d’Angra dos Reis” conduziam “aos Municípios de
S. João do Príncipe, Areias e Bananal (...)”209. Obra esta que estava tendo “regular
andamento”, de acordo com as informações enviadas a Rodrigues Torres pelo “Cidadão
João Pedro de Almeida, encarregado de sua administração”210.
Nesse sentido, os relatórios enviados à Assembléia Legislativa Provincial, com os
assuntos considerados dos mais “urgentes”211, são construídos por Joaquim José Rodrigues
Torres a partir de um diálogo estreito não somente com os pedidos das respectivas câmaras
municipais, mas também a partir de reivindicações diretas dirigidas a ele pelos próprios
“Cidadãos” da província.212
Chamamos atenção para este fato com o objetivo de pensarmos sobre a idéia de que,
como presidente de província, o nosso indivíduo-personagem não impunha o que
precisava ser feito. Negociações certamente eram construídas entre esses sujeitos, num jogo
relacional onde se estabelecia uma diferença entre quais eram os seus projetos de ação
política e o que era possível de ser posto em prática (VELHO, 1994), entrando aí também
seguramente em pauta o fato de que esses relatórios precisavam ser discutidos e aprovados
pela assembléia provincial.
Um exemplo disso foi a sua idéia de “abertura do canal da Nogueira ao Norte do Rio
Paraíba, no Termo de Campos”213. A obra “continuou até ao mês de Junho do mesmo ano
[1835]; época em que se mandou sobrestar nos trabalhos, por se oporem alguns
proprietários da margem do rio, a que o canal passasse por suas terras”214. Julgando “a
utilidade de obra tal”215, Joaquim José Rodrigues Torres elaborou a seguinte manobra: além
dos gastos já orçados para a abertura do canal listados no relatório do ano anterior (1835);
209
Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “s/título,
1836”, p. 21 (disponível em www.crl.edu/brazil).
210 Idem, Ibidem, p. 21 (disponível em www.crl.edu/brazil).
211 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “Fala com que
o presidente da Província do Rio de Janeiro o conselheiro Joaquim José Rodrigues Torres abriu a 1ª sessão da
1ª Legislatura da Assembléia Legislativa da mesma Província no dia 1º de fevereiro de 1835”. Niterói, Typ. de
Amaral e irmão, 1850, p. 34 (disponível em www.crl.edu/brazil).
212 Sobre o conceito de cidadão nesse momento, e suas mudanças, entre o final do século XVIII e meados do
século XIX no Brasil, ver: SANTOS, Beatriz Catão Cruz e FERREIRA, Bernardo. Cidadão. In: FERES
JÚNIOR, João. Léxico da História dos conceitos políticos no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, pp. 4364.
213 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “s/título,
1836”, p. 22 (disponível em www.crl.edu/brazil).
214 Idem, Ibidem, p. 22 (disponível em www.crl.edu/brazil).
215Idem, Ibidem, p. 22 (disponível em www.crl.edu/brazil).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
239
no relatório do ano seguinte (1836) ele deliberava “progredir na continuação do Canal”216
através de uma “indenização”217 aos proprietários para a “desapropriação do terreno
necessário”218. Uma despesa extra que ele procurava justificar devido à importância da
referida obra, e que poderia ser “compensado pelo produto das taxas, que” era “de justiça”
serem “impostas sobre as Embarcações que o”219 navegassem.
Outro indício de que os “Cidadãos”220 desse império em construção participaram
ativamente da elaboração desses relatórios, e, por conseguinte, da própria constituição das
estratégias de ação de nosso personagem-mediador221, foi o caso já citado acima sobre a
construção de uma cadeia no Termo de Rezende. Ou ainda o pedido encaminhado a
Rodrigues Torres por “um grande número de habitantes do Sertão da Nogueira,
representando ao Governo sobre a vantagem, se não necessidade de um caminho que”
facilitasse “a comunicação (...) daqueles férteis lugares com a Cidade de Campos”222. Eles
ofereciam a Joaquim José Rodrigues Torres abrir esse caminho com suas despesas, se lhes
fosse permitido. Idéia prontamente aceita, devido à “incontestável vantagem do referido
caminho”223, que levou a uma ordem de “desapropriação dos terrenos por onde” tinham
“eles de passar; cujos proprietários pela mor parte os” cediam “voluntariamente cônscios
do aumento que daí lhes” resultaria “para suas terras e mais propriedades”224.
Uma astuta e delicada negociação precisava e estava sendo construída em suas ações
como presidente da província fluminense. A própria abertura à possibilidade desses canais
216
Idem, Ibidem, p. 22 (disponível em www.crl.edu/brazil).
Ibidem, p. 22 (disponível em www.crl.edu/brazil).
218Idem, Ibidem, p. 22 (disponível em www.crl.edu/brazil).
219Idem, Ibidem, p. 22 (disponível em www.crl.edu/brazil).
220 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “Fala com que
o presidente da Província do Rio de Janeiro o conselheiro Joaquim José Rodrigues Torres abriu a 1ª sessão da
1ª Legislatura da Assembléia Legislativa da mesma Província no dia 1º de fevereiro de 1835”. Niterói, Typ. de
Amaral e irmão, 1850, p. 23 (disponível em www.crl.edu/brazil).
221 Trabalhamos aqui com uma perspectiva dialógica da escrita biográfica como forma de conhecimento
histórico, defendendo que para se entender as ações de um dado sujeito histórico em sociedade se faz de
suma importância que nos preocupemos em perceber e analisar as redes de sociabilidade nas quais ele se acha
inscrito. Nesse sentido, Rodrigues Torres, “como qualquer indivíduo, se encontra inscrito em uma rede social
específica definida por relações herdadas ou tecidas ao longo de sua vida (...). Ele não escapou à rede de
obrigações, de expectativas e de reciprocidade que caracterizam a vida social”. SOUZA, Adriana Barreto de.
Duque de Caxias:o homem por trás do monumento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 34. O
conceito de mediador remete-se as reflexões de Gilberto Velho e Karina Kuschnir em Mediação. Cultura e
política.
222 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “s/título,
1836”, p. 23 (disponível em www.crl.edu/brazil).
223Idem, Ibidem, p. 23 (disponível em www.crl.edu/brazil).
224Idem, Ibidem, p. 23 (disponível em www.crl.edu/brazil).
217Idem,
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
240
de comunicação entre as regiões provinciais serem taxados é exemplo disso225. Idéia esta
proposta por Joaquim José Rodrigues Torres ainda no relatório de 1835, tornada lei pelo
artigo 4º da Lei Provincial de 14 de abril do mesmo ano - poucos meses após a sua primeira
fala à sssembléia legislativa em fevereiro- e que lhe resultou em alguns aborrecimentos.
No relatório de 1836, ele prestaria esclarecimentos à assembléia provincial do porque
“a organização de um adequando sistema de barreiras para as diferentes estradas da
Província, ajuntando-lhes a tarifa das taxas que nelas se devem pagar”226 não estava em
processo. Sua explicação do porque não ter procedido como determinava a legislação,
pedindo “permissão de adiar ainda a organização de semelhante trabalho”227, era a de que
“as informações em que” devia “fundar-se um tal sistema” demandavam “acurados
exames, que não” tinham “sido ainda possível finalizar, e nem mesmo” parecia “de justiça
que se” estabelecesse “barreiras senão depois de consertarem-se as respectivas estradas228”.
Assim, o valor das experiências de nosso indivíduo-mediador são tomadas aqui como
um campo de possíveis de configurações de suas ações, escolhas e, certamente, limitações
(GONÇALVES, 2009); uma vez que escrever sua história de vida é estar sempre atento aos
projetos e desejos que ele e outros tantos diferentes atores que com ele estabeleceram
relações construíram e desconstruíram com o passar do tempo (GOMES, 2009).229
Não é nosso objetivo aqui falarmos sobre o lugar da indústria, do comércio e da
agricultura mercantil-escravista na estratégia de ação política de Joaquim José Rodrigues
Torres como presidente de província230. O que gostaríamos de chamar a atenção é para o
fato de que assim como as estradas, pontes e canais eram, seguramente, utilizadas para o
escoamento desses produtos, o eram para a circulação de pessoas e idéias e para a
225
Idéia já aqui levantada por algumas das situações tratadas, como o exemplo da abertura do canal da
Nogueira ao Norte do Rio Paraíba, no Termo de Campos.
226 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “s/título,
1836”, p. 26 (disponível em www.crl.edu/brazil).
227Idem, Ibidem, p. 26 (disponível em www.crl.edu/brazil).
228Idem, Ibidem, p. 26 (disponível em www.crl.edu/brazil).
229 Ideia esta também cunhada por Gilberto Velho como forma de evitarmos, numa análise sobre trajetórias e
biografias, “um voluntarismo individualista agonístico ou um determinismo sociocultural rígido”. VELHO,
Gilberto. Op.Cit., p.40.
230 Para uma discussão a respeito ver, por exemplo, DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interiorização da
metrópole. In: MOTA, C. G. (org.) 1822: Dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1972, pp. 160-184. Este texto é
importante para entendermos a expansão desse feixe de relações pelo centro-sul da América Portuguesa, o
que inclui o sul de Minas Gerais. Ver também LENHARO, Alcir. As tropas da moderação. O abastecimento da
Corte na formação política do Brasil, 1808-1842. 2ª ed. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura,
Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração,
1993; MATTOS, Ilmar. A região de agricultura mercantil-escravista. In: MATTOS, Ilmar. Op.Cit., pp. 45-91;
FRAGOSO, João. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro
(1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992 e SALLES, Ricardo. E o vale era o escravo. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2008.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
241
construção em nível local de um projeto de integração territorial que se queria
“nacional”.231
O micro-espaço provincial de exercício de algumas idéias de ação política de nosso
personagem em muito, certamente, tinha correlação com um escala maior de percepção de
que Estado era este que deveria ser criado232, onde a integração territorial era percebida
como um dos meios através dos quais a nação imaginada Brasil estava sendo formada
(ANDERSON, 1989). Em suas palavras:
Estender-me, Senhores, sobre a necessidade da abertura e conservação de
meios que facilitem o transporte dos produtos da nossa agricultura, e tornem
mais rápidas as comunicações, e as viagens do comércio interior, fora por certo
mais do que ocioso. Ninguém há aí que hoje desconheça quanto a riqueza e a
civilização de um País cresce na razão direta de seus meios de comunicação.233
Assim, na esteira de um regressismo conservador, para Joaquim José Rodrigues
Torres, civilizar era integrar; e integrar era aproximar-se de um ideal de civilização e
riqueza, e, certamente, com isso afastar o perigo da fragmentação política; a ponto desta
idéia, a seu ver, ter a força de pôr fim às dissidências dentro tanto da própria assembléia
legislativa quanto do corpo social:
Os esforços que empregardes em promover nossa nascente indústria não só
acrescentarão a riqueza e prosperidade material desta província, mas podem
também concorrer para diminuir e ao fim fazer de todo desaparecer do Solo
Brasileiro os funestos efeitos das discórdias civis. Vosso exemplo, Legisladores, pode
servir de estímulo a nossos compatriotas. Vós lhes mostrareis por certo o
majestoso espetáculo da concórdia de cidadãos que sabem esquecer
dissentimentos políticos para reunidos oferecerem à Pátria o tributo de suas
lucubrações.234
Firmando que:
A vós, Senhores, cumpre alentar o seu desenvolvimento, e enquanto
lamentáveis dissensões políticas e ódios de partidos continuar ainda a desunirnos, será para vós glorioso mostrardes o meio de dar útil distração a tão funestas
paixões.235
231
De acordo com Ilmar Mattos, “impossibilitado de expandir suas fronteiras, o Estado imperial era obrigado
a empreender uma expansão diferente: uma expansão para dentro”. MATTOS, Ilmar. Construtores e
herdeiros: a trama dos interesses na construção da unidade política. Almanack Braziliense. Maio 2005, p. 26.
232 Recorremos aqui ao método microanalítico. Ver, por exemplo, REVEL, Jacquel (Org.). Jogos de Escalas:a
experiência da micro-análise. Rio de Janeiro. FGV, 1998.
233 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “Fala com que
o presidente da Província do Rio de Janeiro o conselheiro Joaquim José Rodrigues Torres abriu a 1ª sessão da
1ª Legislatura da Assembléia Legislativa da mesma Província no dia 1º de fevereiro de 1835”. Niterói, Typ. de
Amaral e irmão, 1850, p. 15 (disponível em www.crl.edu/brazil).
234Idem, Ibidem, pp. 34-35 (disponível em www.crl.edu/brazil). Grifos nossos.
235Idem, Ibidem, p. 34 (disponível em www.crl.edu/brazil). Grifos nossos.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
242
Não por acaso, dentre “todas as necessidades e providências que” reclamava “a
Província”236, “o primeiro lugar”237 no projeto de ação política de Joaquim José Rodrigues
Torres era ocupado por esse tema, qual seja, o da unidade territorial como recurso
simbólico238 de pôr fim aos “funestos efeitos das discórdias civis”, num contexto específico
de disputas e de incertezas e da emergência do regressismo como movimento político na
defesa de ações como esta.
Exatamente por isso o custo desta ação, nos seus dizeres, “produziria vantagens mui
superiores aos sacrifícios”239; sendo ele taxativo ao afirmar que “o melhoramento de
estradas e pontes” seria “um dos fins para que a Assembléia Legislativa Provincial” poderia
“com mais vantagem pública usar a faculdade que lhe concedeu o 3º do artigo 11 da Carta
de Lei de 12 de Agosto de 1834”240, ao possibilitar que se construísse através desse ato um
“meio de dar útil distração a tão funestas paixões”.
“Riqueza”, “civilização”, fim dos “dissentimentos políticos” e das “funestas
paixões”, “o majestoso espetáculo da concórdia” entre os “cidadãos”, tudo isso a partir da
construção e/ou recuperação das estradas, pontes e canais provinciais, numa construção
simbólica do significado desse integrar os “compatriotas” dessa “Pátria” em formação.
Nesse ínterim, outro tema que mereceu a atenção de Joaquim José Rodrigues Torres
como presidente de província no relatório enviado à Assembléia Legislativa Provincial em
1836 foi o culto público. Nos seus dizeres, “a religião, cujos preceitos tanto” concorriam
“para manter e estreitar os laços sociais, consolidar a ordem e firmar a moral pública, não”
poderia “deixar de merecer (...) a mais solícita consideração”241 na lei do orçamento da
província.
O culto público, nesse sentido, serviria como elo entre os principais objetivos do seu
projeto de ação política como presidente da província do Rio de Janeiro, quais seriam: a
preservação da ordem política e social e a manutenção e estreitamento dos “laços sociais”
entre os “cidadãos” da província.
236Idem,
Ibidem, p. 26 (disponível em www.crl.edu/brazil).
Ibidem, p. 34 (disponível em www.crl.edu/brazil).
238 Trabalhamos aqui com a perspectiva de “sistemas simbólicos” de Pierre Bourdieu. BOURDIEU, Pierre. O
poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
239 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “Fala com que
o presidente da Província do Rio de Janeiro o conselheiro Joaquim José Rodrigues Torres abriu a 1ª sessão da
1ª Legislatura da Assembléia Legislativa da mesma Província no dia 1º de fevereiro de 1835”. Niterói, Typ. de
Amaral e irmão, 1850, p. 30 (disponível em www.crl.edu/brazil).
240Idem, Ibidem, p. 31 (disponível em www.crl.edu/brazil).
241 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “s/título,
1836”, p. 5 (disponível em www.crl.edu/brazil).
237Idem,
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
243
Para finalizar, retomemos a citação de abertura deste artigo. Através dessas
medidas/assuntos levados por Joaquim José Rodrigues Torres para serem debatidos na
Assembléia Legislativa Provincial acreditava ele poder alcançar, ainda que a “Divina
Onipotência” não o ajudasse, os “benefícios da paz, e duradoura tranqüilidade” de um
projeto de ação política regressista que percebia questões como a civilização, a integração e
a ordem de formas correlacionadas no objetivo maior de construir um “risonho futuro”
para o jovem império em formação!
Referências Bibliográficas.
ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional.Tradução: Lólio Lourenço de Oliveira. São
Paulo: Editora Ática, 1989.
ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro:
EDUERJ, 2010.
BASILE, Marcelo. O laboratório da nação: a era regencial (1831-1840). In: GRINBERG, Keila e
SALLES, Ricardo. O Brasil Imperial, volume II: 1831-1870. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2009.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
______. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína e FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos e abusos
da história oral. - 8ª edição – Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, pp. 183-191.
CONCEIÇÃO, Lívia Beatriz da.Soberania no mundo atlântico:tráfico de escravos e a construção do
Estado nacional no Brasil monárquico (1831–1850). Dissertação de mestrado – Departamento de
História da UFF, Niterói, 2004, Mimeo.
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interiorização da metrópole. In: MOTA, C. G. (org.) 1822:
Dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1972.
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos.Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed., 1994.
______. Mozart, sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.
FAZOLI FILHO, Arnaldo. O período regencial. São Paulo: Editora Ática, 1994.
FERES JÚNIOR, João (Org.). Léxico da História dos conceitos políticos do Brasil.Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2009.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
FRAGOSO, João. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de
Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.
GINSBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas e sinais. Morfologia
e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp. 143-180.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
244
______. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
GOMES, Ângela de Castro. Rascunhos de história imediata: de monarquistas e republicanos em
um triângulo de cartas. In: GOMES, Ângela de Castro e SCHMIDT, Benito Bisso (Orgs). Memórias
e narrativas (auto)biográficas.Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009, p. 41-77.
GONÇALVES, Márcia. Mestiço, pobre, nevropata: biografia e modernidade no Machado de Assis
de Lúcia Miguel Pereira. In: GOMES, Ângela de Castro e SCHMIDT, Benito Bisso (Orgs).
Memórias e narrativas (auto)biográficas.Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009, p. 191-223.
GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Micro-história: reconstruindo o campo de possibilidades. In:
Topoi.Rio de Janeiro, nº 1, 2000, pp. 217-223.
HESPANHA, António Manuel- 0 género biográfico em curso. História. Nº 41. Ano XXIV (III
Série). Janeiro 2002, p. 16-17.
LENHARO, Alcir. As tropas da moderação. O abastecimento da Corte na formação política do Brasil,
1808-1842. 2ª ed. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes,
Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1993.
LEVI, Giovanni. A herança imaterial.Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
______. Usos da biografia. In: Janaína Amado e Marieta de Moraes Ferreira. Usos e abusos da história
oral. - 8ª edição – Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, 1994.
______. Construtores e herdeiros: a trama dos interesses na construção da unidade política.
Almanack Braziliense. Maio 2005.
MOREL, Marco. O Período das Regências (1831-1840).Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
______. As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na cidade
imperial (1820-1840). São Paulo: Hucitec, 2010.
RÉMOND, René(Org.). Por uma história política.Rio de Janeiro: FGV Editora, 2003.
REVEL, Jacquel (Org.). Jogos de Escalas:a experiência da micro-análise. Rio de Janeiro. FGV, 1998.
RICCI, Magda Maria de Oliveira. Assombrações de um padre regente:Diogo Antônio Feijó (1784 –
1843). Campinas, SP: Editora da Unicamp, Cecult-IFCH, 2001.
SALLES, Ricardo. E o vale era o escravo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
SCHMIDT, Benito Bisso. O gênero biográfico no campo do conhecimento histórico: trajetórias,
tendências e impasses atuais e uma proposta de investigação. Anos 90.Porto Alegre, n.6, pp. 165192, dez. 1996.
______. Grafia da vida: reflexões sobre a narrativa biográfica. História Unisinos. vol.8, nº 10, jul/dez,
2004, p.131-142.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
245
______. Nunca houve uma mulher como Gilda? Memória e gênero na construção de uma mulher
“excepcional”. In: GOMES, Ângela de Castro e SCHMIDT, Benito Bisso (Orgs). Memórias e
narrativas (auto)biográficas.Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009, pp. 155-171.
SOUSA, Adriana Barreto de. Duque de Caxias:o homem por trás do monumento. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2008.
VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor,1994.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
246
A “Facção Áulica” e seus posicionamentos sobre a escravidão e a força de trabalho
na imprensa periódica do Rio de Janeiro (1832-1834)
Lucas Eduardo Pereira Silva
Mestrando pela UFSJ/Bolsista CAPES/DS
lucaseduardopsilva@gmail.com
Resumo: Este trabalho empreende traçar o debate entre os membros do grupo político
conhecido como “Clube da Joana” – posteriormente chamado de “Facção Áulica” –, e seu
principal adversário, Bernardo Pereira de Vasconcelos, acerca do fim do tráfico ilegal de
escravos e das alternativas de mão-de-obra no Brasil dos primeiros anos do Período
Regencial. Recorremos à imprensa periódica, lançando mão dos jornais A Verdade (entre
1832 e 1834), Correio Oficial (ao longo do ano de 1834), e O Sete de Abril
(especialmente 1834), para analisar as posturas e estratégias do grupo à luz dos diversos
projetos de formação e consolidação da nação brasileira.
Palavras-chaves: Facção Áulica, Tráfico Negreiro, Mão-de-Obra.
Abstract: This paperundertakesto trace thedebate between membersof the political
groupknown as"Clube da Joana" -later called"Facção Áulica" - andhis main challenger,
BernardoPereira deVasconcelos, about the endof theslaves trade andalternatives
forhandlaborin Brazil in theearly years of theRegencyPeriod. We appeal to theperiodical
press, making use of thenewspaperA Verdade(between 1832 and 1834), Correio
Oficial(over 1834) and O Sete de Abril(especially1834), to analyzethe attitudesand
strategiesin light ofthe groupseveral projects offormation and consolidationof the Brazilian
nation.
Keywords:Facção Áulica, Slave Trade, Hand-to-Work.
Introdução
Edificar uma Nação, consolidar um Estado nos moldes modernos, desenhar um
Povo que o preencha242. Para João Paulo Pimenta, o longo processo de queda do Antigo
Regime e as instabilidades a que ele abriu caminho desde meados do século XVIII, para o
caso da região dos ex-Impérios Ibéricos no Prata, fizeram-se sentir fortemente na primeira
metade do século XIX (PIMENTA, 2006: 15). É exatamente durante a década de 1830 que
se localizam, no Brasil, os maiores embates entre os muitos projetos para a construção de
um Estado nacional brasileiro. A Independência de Portugal, em 1822, ao mesmo tempo
em que libertava definitivamente da condição de Colônia o vasto território do novo país,
deixava evidente a inexistência de uma identidade nacional.
Sustentávamos ainda o bastião da escravidão. A gigantesca população negra, africana
e crioula, só fazia tornar a sociedade do tempo das Regências ainda mais multifacetada,
242
Este artigo apresenta discussões e resultados alcançados em pesquisa do Programa de Bolsas de Iniciação
Científica da Universidade Federal de São João del-Rei, sob orientação do Prof. Dr. Danilo J. Zioni Ferretti,
com financiamento do CNPq/UFSJ.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
247
além de nos manter umbilicalmente ligados ao Antigo Regime que se queria abandonar,
com suas cores de absolutismo, dominação e violência. Ademais, a abdicação de D. Pedro
I, na “revolução de 7 de Abril”, em 1831, viera incendiar mais o campo político,
evidenciando ao menos três grandes grupos políticos – caramurus, liberais moderados, e
liberais exaltados –
Governo.
com diversos vieses internos, que disputariam a hegemonia no
Mesmo com esse cenário de tensões, e talvez, até em função dessa
efervescência, o período Regencial deflagrou uma explosão da palavra pública, pondo em
discussão nos mais variados meios as formas de Governo, a própria escravidão, dentre
muitas outras temáticas outrora inauditas (MOREL, 2003: 9-10).
Esta pesquisa intenta, voltando-se para o período Regencial, compreender o
envolvimento de membros do chamado “Clube da Joana” com o fim do tráfico negreiro, e
suas alternativas ao problema da mão-de-obra. Esse grupo, reunido sob a liderança de
Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho, Ministro das Pastas da Justiça e dos Negócios
Estrangeiros entre 1833 e 1835, compôs-se por Paulo Barbosa, Porteiro do Paço e depois
Mordomo da Casa Imperial que cedia sua casa na “Chácara da Joana” para as reuniões do
clube – o que justifica o apelido dado –, Saturnino de Souza e Oliveira, irmão de Aureliano
e Inspetor da Alfândega, além de políticos, como Odorico Mendes, literatos como o poeta
e pintor Araújo Porto Alegre, e funcionários do Governo, como Ernesto Frederico de
Verna Magalhães, filho da Condessa de Belmonte e funcionário da Alfândega (LACOMBE,
1994: 103).
Se a esfera pública sofreu um inchaço, foi na imprensa que isso se fez sentir com
mais pujança. Conhecendo “desenvolvimento sem precedentes na década de 1830”, a
imprensa foi o principal vetor de pedagogia política e alardeou idéias e os projetos das
diferentes facções (BASILE. In.: GRIMBERG; SALLES, 2009: 65). É, pois, por meio da
imprensa, especificamente da análise de três periódicos de redação liberal moderada – A
Verdade, Correio Oficial, e O Sete de Abril243, que buscamos elementos para nossa
análise.
Revisão de Literatura
Os anos de 1831 a 1840, Período Regencial brasileiro, foram por longo tempo,
tratados como época de desordem política e desagregação. Boa parte da historiografia
243 Os jornais serão referenciados, respectivamente como AV, CO, OSA, sendo seguidos por data de
publicação e página, quando houver.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
248
apoiada, sobretudo, no discurso conservador de muitos políticos do período e também do
Segundo Reinado, reproduziu essa perspectiva em certa medida negativa das Regências. Na
década de 1970, favorecido pela abertura dos cursos de pós-graduação no país, o Período
Regencial passou a ser revisitado pelas pesquisas, promovendo novas abordagens e
suscitando novas temáticas (BASILE. In.: GRIMBERG; SALLES, 2009: 55-58).
Dentre a gama de objetos que ganharam a atenção dos historiadores, figuram os
grupos políticos, sua organização e pressupostos teóricos, além de suas estratégias de ação.
Nesse último ponto, destaca-se a atuação dos homens públicos na imprensa, que funcionou
como campo aberto aos debates entre as facções que compunham o cenário político
regencial, num movimento de expansão da esfera pública e difusão dos projetos de nação
(MOREL. In.: LUCA; MARTINS, 2008: 34). O tema da escravidão viera à tona no
frenético ritmo dos prelos da imprensa daqueles anos. As questões acerca do tráfico
negreiro ganharam as páginas em inflamadas discussões, ora para sua defesa, ora para sua
desqualificação. Jaime Rodrigues atenta para o fato de que dois paradigmas têm norteado
os olhares sobre o término da escravidão no Brasil. De um lado, tem-se tratado a abolição
da escravidão como um projeto de Estado, de longo prazo, gradual, e iniciado com a
primeira lei anti-tráfico de 7 de Novembro de 1831. De outro, o enfoque atribui às
pressões britânicas, intensificadas no segundo quartel do século XIX, o protagonismo
naquele processo (RODRIGUES, 2009: 299-301). Em seu livro, O Infame Comércio,
Rodrigues trabalha na observância das duas tendências em confluência com as descobertas
de suas pesquisas, lançando novos questionamentos e afirmando, por exemplo, que:
No Brasil, foi sobretudo na primeira metade do século XIX que surgiram falas
identificando os supostos males que a presença dos africanos trazia à sociedade
e à segurança pública. De forma cumulativa, o africano (escravo ou liberto) foi
sendo responsabilizado pela “corrupção dos costumes” num processo que se
acentuou nos anos de 1830 e 1840 (RODRIGUES, 2009: 31).
Uma vez que, como já se ressaltou, fora a imprensa o catalisador das disputas pela
construção da razão nacional, perceber como o grupo de “palacianos” liderado por
Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho244 imprimiu em seus jornais o rechaço ao tráfico, e
de que forma isso influiu para a evidente tensão com o Deputado Bernardo Pereira de
Vasconcelos, se justifica no intento de colaborar com as pesquisas que se assentam nesse
mote.
244
Para se conhecer mais sobre o secto de Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho, inicialmente chamado de
Clube da Joana, e que posteriormente ficou conhecido como facção áulica: ver: LACOMBE, Américo L.
Jacobina. “O Clube da Joana”. In: IDEM. O mordomo do Imperador. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército
Editora; 1994.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
249
As balizas que orientaram a análise dos periódicos para a efetivação desta pesquisa
dizem respeito à edificação concomitante do Estado e da nação, em consonância com a
formação de grupos que se lançaram nessa tarefa. Assim, seguimos na senda traçada por
Eric Hobsbawm, que admitindo o caráter de comunidade imaginada postulado por
Benedict Anderson, assevera que o nascimento do Estado-nação moderno é caudatário das
diretrizes do liberalismo burguês. (HOBSBAWM, 2008: 50). Em prefácio a livro de João
Paulo Pimenta, István Jancsó vem corroborar, afirmando que os Estados nacionais são
“construções políticas cujo paradigma emergiu da longa crise que envolveu o universo
europeu, revolucionando-o” (JANKSÓ. In. PIMENTA, 2006: 9). Interessa-nos inscrever
os redatores dos periódicos no rol dos intelectuais que propugnaram o edifício da nação
brasileira durante a Regência. Para isso, valemo-nos das diretrizes da história intelectual.
Jean-François Sirinelli, a isso nos habilita, ao destacar o valor das redes de sociabilidade
como espaços de “fomentação intelectual”, funcionando como um “microclima” capaz de
expressar afinidades de grupo em diversas frentes (SIRINELLI, 2003: 248-253).
Entendemos os periódicos como sendo o espaço par excellence da efervescência da idéias da
intelectualidade política daquele período, dando-nos a perceber as representações de Brasil
que se vinha construindo pelos diversos grupos inseridos na sociedade. Isso se evidencia na
luta dos redatores liberais moderados pelo fim do tráfico de africanos e pela empresa
imigrantista.
Por fim, como nos aconselha François Dosse, desejamos levar a efeito uma
abordagem cultural e intelectual que não se restrinja nem á compreensão única das formas
internas dos artigos contidos nos jornais visitados, nem tão pouco se fixe exclusivamente
numa abordagem externa e contextual da produção dessas Folhas. Queremos, antes,
trabalhar num exercício de mescla, que dê conta da complexidade dos processos de
fortificação da imprensa, da formação de grupos, da profusão de idéias e o embate de
projetos nacionais bem como da sua recepção (DOSSE, 2004: 296-299).
Uma luz sobre A Verdade
Nas páginas d’A Verdade245, o que mais se pode destacar dos artigos é o fato de, em
sua maioria, atacarem aos caramurus e aos exaltados, enaltecendo os liberais moderados.
245
O periódico A Verdade foi criado na Corte do Rio de Janeiro pelo futuro Mordomo da Casa Imperial, o Sr.
Paulo Barbosa, que também era seu redator. Circulou entre os anos de 1832 e 1834 e levou para a esfera
pública as discussões com que se preocupavam os membros da elite política palaciana, organizada em
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
250
Entre as temáticas abordadas, subjazem discussões sobre as relações sociais no país e no
mundo, em especial na Europa. Escreve-se pela defesa do casamento civil, pela
flexibilização e liberdade de culto religioso, pela instrução pública, e até mesmo sobre a
importância de se dar educação às mulheres, que “só em países bárbaros” são escravizadas.
Tema presente, ainda que não prioritário, e que reflete as discussões acerca da mão-de-obra
a ser utilizada, a manutenção ostensiva de braços escravos, em detrimento da elaboração de
políticas de inserção do trabalho de estrangeiros livres, movimenta redatores e
correspondentes. O problema dos males que a massiva presença de negros provoca, desde
a corrupção dos costumes até a baixa produtividade dos campos brasileiros, são tópicos
recorrentes:
A agricultura no Brasil vai-se diminuindo por falta de braços, e não
vemos tomarem-se medidas para que não desappareça de todo. As
cidades estão atulhadas de negros que são nellas tão nocivos, quanto
seriam úteis na lavoira (A Verdade nº 17 – 03 de abril de 1832/Seção –
INTERIOR: 66).
Tributos cobrados aos Senhores por cada escravo que mantivessem nas áreas
urbanas, pela sugestão do mesmo artigo,
[...] pode[riam] entrar para cofres especiaes para ser empregado[s] em
Colonisação Estrangeira. Pode se obter esta fazendo se espalhar pela Europa
resumos de noticias do Brasil, em que se mostrem as vantagens de vir para cá
(como fazem os Americanos do Norte) [...] (AV nº 17 – 03/04/1832/Seção
INTERIOR: 66).
E os vivas à entrada de “estrangeiros industriosos” no território brasileiro tornam a
ganhar corpo num elogio que os redatores fazem à Administração do Presidente da
Província das Minas Gerai, Manoel Inácio de Mello e Souza, pelo desvelo que tem
despendido em fazer daquela Província, boa hospitaleira aos europeus que ali vêm se
estabelecer, e trabalhar nas atividades agropecuárias e fabris: “Abramos os braços à
Estrangeiros, e povoemos nossos bellos desertos, imitemos a politica dos Estados Unidos,
e unamo-nos que nosso sollo nos promette mais promptos resultados” (AV nº24 19/04/1832/Seção RIO DE JANEIRO: 94-96). A sustentação do Governo Monárquico
Constitucional também perfaz as pautas dos redatores, que, ora buscam apontar graves
problemas do regime republicano (AV nº18 – 05/04/1832/Seção INTERIOR: 70-71), ora
reforçam o amor à ordem e à temperança, inabilitando o teor exaltado dos defensores da
instalação da República (AV nº22 – 14/04/1832/Seção INTERIOR: 85).
derredor de Aureliano Coutinho, político forte da Administração regencial, e amigo pessoal de Paulo Barbosa,
como aponta LACOMBE, Américo L. Jacobina. “O Clube da Joana”. In: IDEM. Op. cit., passim.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
251
Os redatores empenharam-se, especialmente, em denunciar os desmandos e a
conduta autoritária e tortuosa de José Bonifácio, Tutor do Menino Imperador, que junto de
seu irmão, “parece obrar para retirar do herdeiro do trono a coroa” (AV nº 10 –
17/03/1832/Seção INTERIOR: 1-2). Por isso, são recorrentes ao longo de todos os
números d’AVerdade publicados em 1832, artigos e correspondências carregados de
desaprovação ao que chamou-se, pejorativamente, “Ministério dos Andradas”, abarcando o
Tutor de D. Pedro II, e seus irmãos Martim Francisco e Antônio Carlos de Andrada, que
durante a década de 1820, acompanharam-no expressivamente. Tratava-se de uma
estratégia cujo resultado foi fundamental para a afirmação política do grupo. Quanto a isso,
atestam os trechos transcritos a seguir:
Muito se tem queixado o Sr. Martim Francisco das censuras que o nosso jornal
tem feito aos Srs. Andradas: nem o Redactor responsavel, nem os mais (dos 40
socios, que garantem a existencia d’esta folha) que para ella tem dado alguns
artigos ácerca da conducta politica d’estes Srs., tem contra elles motivos de
odios particulares; não lhes dezejamos males, nem mesmo que sejam vottados á
obscuridade; dezejamos só não vermos outra vez o nosso paiz entregue ao
sistema de espionagem, arbitrariedades, e proscripções, que elles seguirão no
tempo de sua administração; dezejamos em fim que uma nova revolução não
succeda á de 7 de Abril, seja ella para elevar anjos, porque encaramos uma nova
revolução como a precursora d’um cento de outras successivas, como o
principio da dilaceração da nossa Pátria [...] (AV nº 50 – 26/05/ 1832/Seção
INTERIOR: 1).
Em 1833 retiram Bonifácio da Tutoria e tomam-na para si, consolidando-se em um
espaço importante no Paço Imperial, sendo Paulo Barbosa, instituído Mordomo, e Manuel
Inácio de Andrade, o Marquês de Itanhaém, como o novo Tutor – ambos alinhados às
orientações de Aureliano Coutinho. Aos 17 de dezembro de 1833, publicara-se o Decreto
da Regência Permanente de 14 daquele mês, pelo qual ficara o Conselheiro Andrada
suspenso da Tutoria do pequeno D. Pedro II e suas irmãs. Acompanhava o Decreto uma
PROCLAMAÇÃO repleta de júbilo e exortação à Regência que “está vigilante, e tem
tomado todas as medidas ao seu alcance para frustrar as insídias dos conspiradores”,
saudando-a, excepcionalmente, por retirar do Palácio de São Cristóvão “o homem que
servia de centro e de Instrumento aos facciosos”. (AV nº 257 – 17/12/1833/Seção
DECRETOS: 3-4)
Note-se que é possível identificar uma constância das temáticas que são abordadas
no jornal. Ela permanece até pelo menos os meses finais de 1833, quando um novo e
fortíssimo ponto de discussão passa a preencher as seções d’A Verdade: a contenda com
Bernardo Pereira de Vasconcelos, chamado de “inimigo rusguento” do Governo e
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
252
sobremaneira desafeto ao Juiz de Órfãos e futuro Ministro da Justiça e dos Negócios
Estrangeiros, o Sr. Aureliano Coutinho. Esta recorrência de algumas pautas pode suscitar
diferentes observações e mesmo implicar conclusões a respeito dos objetivos políticos
encampados pelos redatores d’A Verdade. Para Julio Bentivoglio, a publicação desse
periódico teve como fulcro, criar no espaço público, uma opinião coesa de
descontentamento com os ditames de José Bonifácio durante o período em que atuou
como Tutor do menino D. Pedro II. Esse seria apenas um dos passos para que a estratégia
de criação de um ambiente de homens liberais moderados, encabeçados pelo líder da
chamada facção áulica – Aureliano – alocados no entorno mais próximo do futuro
imperador se consolidasse. A derrocada de Bonifácio era, portanto, indispensável, e quando
em 14 de dezembro de 1833 ele fora, por Decreto da Regência, retirado do cargo, aos
olhos de Bentivoglio, A Verdade começou a padecer de um arrefecimento do número de
artigos, indicando que a “a causa maior defendida pelo periódico havia sido ganha. Ele
havia cumprido seu papel” (BENTIVOGLIO, 2010: 18).
Menos do que discordar daquilo que supõe o historiador supracitado, preferimos
aqui priorizar, como é o foco desta pesquisa, justamente a percepção das estratégias e
mecanismos adotados pelos redatores d’A Verdade, bem como do Correio Oficial,
tomando-os como porta-vozes de uma linha política que acenava de uma forma particular a
respeito da escravidão e alternativas de mão-de-obra, avançando para além das invectivas
ao Tutor.
Além do mais, pela análise dos periódicos, podemos perceber que, frente às críticas
lançadas por Vasconcelos, formara-se uma falange de jornais moderados composta por: A
Aurora Fluminense de Evaristo da Veiga, o próprio A Verdade de Paulo Barbosa e de
Saturnino de Souza e Oliveira (que posteriormente lançaria a sua Sentinela da
Liberdade), o Correio Oficial, que apesar de ministerial retumbava sob a pena do Cônego
Januário da Cunha Barbosa e mesmo do então Ministro Aureliano Coutinho. Sem
restringir-se a diatribes unicamente desfechadas a José Bonifácio, tais Folhas demonstram
mais a faceta de difusoras dos ideais e propostas dessa fração da elite intelectual e política,
para a fortificação do nascente Estado-nação brasileiro. Logo, é nesse projeto que
encontramos a luta aberta dessas personagens contra o comércio de negros, tido como
aviltante, luta essa indissociável do incentivo à agricultura e à utilização de mão-de-obra
livre, preferencialmente estrangeira e européia, conditio sine qua non para o alcance do
progresso em direção à formação de um povo para um Brasil caucado na Civilização.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
253
Eis, portanto, que a 03 de janeiro de 1833, A Verdade estampa um artigo que
lamenta não serem conhecidas na Europa as muitas vantagens de estabelecerem-se amplos
cultivos agrícolas em solo brasileiro, ressaltando que, “se tivéssemos promovido
convenientemente a emigração de companhias, veríamos crescer nossa exportação em uma
espantosa progressão” (AV nº 125 – 03/01/1833/Seção INTERIOR: 1). De forma
incisiva, o correspondente que assina como Um Simples Plebeo, em carta ao Redator, se
mostra aflito com a morosidade do desenvolvimento do país. Comparando o clima e a
fertilidade das terras brasileiras à realidade norte-americana, ele assevera a superioridade do
Brasil e culpa dois fatores da idiossincrática conjuntura nacional como “os cancros
assoladores da nossa pátria”. Em primeiro lugar, a frouxa administração da Justiça que não
pune exemplarmente os criminosos, protegidos por uma imprensa conivente. Em segundo,
o “enxame da escravatura”, que ainda mais contribui para o embargo da imigração
européia, que a exemplo do que ocorre na “América Inglesa”, muito engrandeceria este
país (AV nº 128 – 10/01/ 1833/Seção CORRESPONDÊNCIAS: 1-2).
Persistem os reproches a exaltados e caramurus, feitos pelos redatores, que,
comentando a tentativa de assassinato sofrida por Evaristo da Veiga no dia 08 dezembro
de 1832, imputaram aos últimos a pecha de mentirosos e sem vergonhas (AV nº 131 –
17/01/1833: 2-3). O tom dos ataques por vezes assumia o sarcasmo. Ao noticiar episódio
de novembro de 1832 em que o Rei de França sofrera atentado a tiro, do qual escapou
ileso, aproveita-se, o redator, para dizer que o disparo fora feito “por um Caramuru de lá”
(AV nº 136 – 29/01/1833/Seção EXTERIOR: 4).
Mereceu também grande espaço e suscitou discussões nas linhas d’A Verdade a
Sedição de Ouro Preto. Noticiou-se no início de abril de 1833 a deflagração da revolta,
ocorrida em 22 de março daquele ano (AV nº 162 – 06/04/1833/PROCLAMAÇÃO: 4), e
em praticamente todos os números seguintes publicaram-se moções de desaprovação aos
atos dos insurretos por parte de muitas Vilas mineiras como São João del-Rei, Barbacena,
Queluz, Lavras, São José, etc. Os redatores da A Verdade, aproveitando-se da ocorrência
da rebelião, atribuíram-na aos “planos concertados nas cavernas caramuruanas” (AV nº 185
– 09/06/1833/PROCLAMAÇÃO: 2-3) e fizeram o mesmo ao responsabilizá-los por
terem incitado os negros revoltosos que em 13 de maio de 1833, promoveram a chacina da
família de seu senhor, o Deputado mineiro Gabriel Francisco Junqueira, em suas fazendas
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
254
na Freguesia de Carrancas246. Para tanto, publicaram por vários números ao longo do mês
de maio, trechos de depoimentos dos negros insurretos, que diziam, em sua maioria, que
Francisco Silvério vindo de Ouro Preto disse [...] que alli os Caramurus estavam
matando os brancos, e que eram á favor dos pretos, e que por isso, era boa
occasião delles alli se levantarem, e matarem a seus Senhores, para depois [...]
irem encontrar com os Caramurus de Ouro Preto [...] (AV nº 223 –
19/09/1833/Seção MINAS GERAIS: 4) (grifos originais).
Diante da situação extrema da insurreição, até a Bernardo P. de Vasconcelos,
costumeiramente infenso à A Verdade, fora dada voz ao publicarem-se em 20 e 23 de
abril,
respectivamente, uma
PROCLAMAÇÃO (AV.
nº 167
–
20/04/1833/
PROCLAMAÇÃO: 3-4) e um Manifesto aos Mineiros (AV nº 168 – 23/04/1833/Seção
MINAS GERAIS: 1-2) assinados por ele. No entanto, as fontes indicam que o “posto”
efetivo d’O Sete de Abril, e, por conseguinte, do apoiador Vasconcelos, pela pena que riscava
A Verdade, era mesmo o de imoral e revoltante. Assim, depois de muitas admoestações que
a ele já se vinham fazendo, em 19 de setembro de 1833, os redatores do jornal repreendem
o redator d’O Carioca, por ter em seu nº 4, afirmado que O Sete de Abril era um jornal
da Moderação, o que “é falso, e os Periodicos da Moderação, principalmente A Verdade
muitas vezes tem energicamente batido o Sete de Abril, censurando suas doutrinas
estouvadas” (AV nº 223 – 19/12/1833/Seção INTERIOR: 1-2).
Se a Vasconcelos e aos caramurus e exaltados restavam sempre farpas agudas, em
todas as vezes que logrou ver estampado seu nome n’A Verdade, Aureliano Coutinho
recebeu louros e lisonjas. Por ocasião de sua subida à Pasta da Justiças, em 10 de outubro
de 1833 (a qual já ocupava interinamente desde 04 de junho daquele ano), se disse que o
“Sr. Aureliano tem satisfeito de tal maneira os desejos dos amigos da Liberdade legal, que
geralmente todos estimarão que S. Exa. continuasse na Justiça, repartição que tem a seu
cargo a segurança publica [...]” (AV nº 233 – 12/10/1833/Post-Iscriptum: 4). Fechamos
este tópico, ratificando o papel d’A Verdade de propagador das perspectivas negativas de
grupos da intelectualidade e da política com os rumos do Brasil diante da permanência do:
[...] vergonhoso tráfico de carne humana com a importação de escravos para a
Costa de Africa, em despeito do Tratado de 26 de Novembro de 1826, e Carta
de Lei de 07 de Novembro de 1831. A nossa honra como Nação civilisada, a
nossa ventura e desenvolvimento como Estado livre, reclamam providencias do
Governo de V.M.I. He notório, Senhor, que por toda a Costa desta província
desenbarcão diariamente centos e centos de infelizes Africanos, importados por
contrabando, que são recebidos em depósito nas próximas Fazendas, e que
246
Sobre a revolta escrava ocorrida em 13 de maio de 1833 no Curato de São Tomé das Letras, Freguesia de
Carrancas da Comarca do Rio das Mortes, ver: ANDRADE, Marcos Ferreira de. Rebeldia e resistência: as revoltas
escravas na província de Minas Gerais. Belo Horizonte, FAFICH/UFMG, dissertação de mestrado, 1996.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
255
algumas Authoridades locaes desses districtos, conniventes em tão vergonhoso
crime, partilhão do contrabando o lucro e a infâmia.247
A publicação de um documento proveniente da Sociedade Defensora da Liberdade e
Independência Nacional do Rio de Janeiro é reveladora. Com sócios predominantemente
liberais moderados, dentre os quais, Evaristo da Veiga, os irmãos Saturnino e Aureliano de
Souza, e Januário da Cunha Barbosa, o combate aos caramurus e ao tráfico de escravos
marcaram as pautas da Defensora248, desvelando a complementaridade da orientação
política e das ações daquela Sociedade e dos redatores, seja d’A Verdade, seja do Correio
Oficial.
Julgamos, enfim, que tanto mais valiosa se torna a análise desse periódico, quanto
mais o tomemos como participando da disputa entre facções políticas, representadas nos
jornais pela figura central do redator ou redatores. Ao defender a necessidade de que o
Governo franqueasse a vinda de estrangeiros aptos a oferecerem seus braços livres ao
trabalho, e ao rebater as posturas caramurus – identificadas ao atraso e ao embargo na
edificação do Estado-nação brasileiro – A Verdade aglutinou idéias do projeto liberal
moderado pelo viés palaciano, difundindo os males da escravidão e rechaçando fortemente
o tráfico negreiro.
As vozes do Correio Oficial
Ao final do trabalho de levantamento de dados pela leitura do periódico Correio
Oficial, optamos por privilegiar a análise do ano de 1834. Entendemos, pois, que fora
nesse momento que se desnudaram aspectos mais relevantes a esta pesquisa, redefinindo,
assim, nosso recorte, originalmente mais amplo. A leitura d’O Sete de Abrilserviu-nos de
subsídio para melhor compreender as rusgas entre os redatores e seus posicionamentos.
Ensejamos neste tópico, elaborar um panorama do que se publicou nas páginas do Correio
Oficial, bem como fora feito para A Verdade, dando destaque especial aos artigos que nos
possam clarificar o tratamento dado às problemáticas do fim do tráfico e questões acerca
da mão-de-obra naqueles anos por seus redatores, subscritores, enfim, pelo grupo do qual
emanava.
247
AV nº 280 – 27/02/1834/Seção – RIO DE JANEIRO: 2 – Requerimento da Sociedade Defensora da
Liberdade e Independência Nacional do Rio de Janeiro contra o tráfico de Africanos – Sala das Sessões do
Conselho, em 16 de Fevereiro de 1834 – João Silveira do Pilar, Presidente. – Evaristo Ferreira da Veiga, 1º
Secretário. – Joaquim Antônio Caminha, 2º Secretério.
248 Sobre a composição, diretrizes e ações da Sociedade Defensora da Liberdade e Independência Nacional do
Rio de Janeiro, ver: BASILE, Marcelo. Sociabilidade e ação políticas na Corte regencial: a Sociedade Defensora da
Liberdade e Independência Nacional. Dimensões: Revista de História da Ufes nº18. O3 de outubro de 2006.
Disponível em: http://www.ufes.br/ppghis/dimensoes/artigos/Dimensoes18_MarcelloBasile.pdf.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
256
Indubitavelmente, nos idos de 1834, o embate de forças entre o grupo afeito ao
Governo Imperial de maioria liberal moderada, e a oposição a ele, composta tanto por
liberais exaltados como caramurus, é a grande divisa desta Folha. Sobressaem, no entanto,
as altercações entre o Deputado Bernardo P. de Vasconcellos e o Ministro Aureliano
Coutinho, dois pólos dentro das facções liberais moderadas do quadro político. O primeiro
“seguia os passos de Evaristo da Veiga, redator d’ Aurora Fluminense249, contra cujo
espírito liberal ninguém ousa articular palavra” (LACOMBE, 1994: 121). Por sua vez,
Vasconcelos, que naquele momento começava a demonstrar sua insatisfação com o Ato
Adicional de agosto de 1834, ainda que não o renegasse (CARVALHO, 1999: 22-23),
iniciava seu afastamento de alguns cânones da tendência liberal moderada, entre os quais a
briga contra o tráfico de africanos. Segundo os redatores do Correio Oficial, Vasconcelos
atribuía à ação de Aureliano o fato de não ter assumido a Pasta da Fazenda naquele ano, o
que o tornou constante inimigo do Ministro (CO, nº 98 – 25/10/1834/Seção – ARTIGOS
NÃO OFICIAIS).
Assim, a 06 de outubro de 1834, publica-se resposta, carregada de desagravos, ao que
disse Vasconcelos em carta veiculada em seu periódico. Enquanto o Deputado acusa o
Ministro da Justiça de conduzir um “Ministério parcial e parente”, e de sustentar-se sobre
“o côro de seus apaniguados e zangões” (OSA, nº 184 – 30/09/1834), noCorreio Oficial,
ressalta-se que, sendo o dito Ministro alvo principal de Vasconcelos, suas palavras
injuriosas só vêm confirmar o que se ouvia falar “dos proprios amigos do Sr. Bernardo Pereira
de Vasconcellos, que no manejo da intriga era elle terrível quando queria chegar a seus fins
[...]” (CO, nº 81 – 06/10/1834/Seção ARTIGOS NÃO OFICIAIS). O imbróglio em torno
da carta de Vasconcelos continua no nº 85 da Folha dirigida pelo Cônego Januário da
Cunha Barbosa. Desta vez, o artigo apresenta pormenorizada análise de cada um dos
argumentos de que o Deputado lançou mão para caluniar o Ministro da Justiça, sendo
todos desconstruídos pelo redator. Vasconcelos imputa aos atos do Ministério a insídia de
serem frutos do “Gabinete Secreto” e ações da “potência invisível”, ao que lhe rebate o
redator, acusando-o de usar a mesma linguagem outrora utilizada em “Folhas restauradoras
[...] de que todo mundo se ria” (CO nº 85 – 10/10/1834/Seção ARTIGOS NÃO
249 A Aurora Fluminense figurou ao longo de seus oito anos de publicação ininterrupta (dezembro de 1827 a
dezembro de 1835), como a mais relevante folha de orientação liberal moderada da Corte e também do
Império. ANDRADE, Marcos Ferreira de. Imprensa moderada e escravidão: o debate sobre o fim do tráfico e temor do
haitinismo no Brasil Regencial (1831-1835) In. IV Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional,
Universidade
Federal
do
Paraná
–
Textos
Completos.
Disponível
em:
http://www.labhstc.ufsc.br/ivencontro/completos.html.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
257
OFICIAIS). Sendo o núcleo da discussão as determinações da “Lei novissima sobre os
Africanos importados no Brasil”, das quais discorda Vasconcelos, indaga-se no artigo,
referenciando-se o Deputado: “Não tinha elle toda a influencia na Camara, fora della, e no
Conselho dos Ministros em 1831, para não deixar passar, nem sancionar Lei tão danosa?” –
e arremata:
Nos concordamos que a Lei he má, tem graves inconvenientes, sendo um dos
maiores o não se ter logo feito outra, ou adoptado nella mesma providencias
eficazes para a prompta introdução de braços livres, o que faria que os
Lavradores não buscassem comprar Africanos para a sua lavoura, nem em
outras classes, escravos para o serviço domestico; porem o que ora cumpre he
emendar a Lei, torná-la exeqüível, tirar a necessidade de escravo; mas o Sr.
Deputado, que vê a Lei danosa, o que fez para esse fim, e para outros remédios
de que a Patria carece? O que fez? (CO nº 85 – 10/10/1834/Seção –
ARTIGOS NÃO OFICIAIS).
As reprimendas a Vasconcelos naquele nº 85 do Correio Oficial se completam na
correspondência assinada pelo Anti Mercadista, para quem “o Sete he um enigma em
Politica [...]”, já que “[...] infenso á Opposição, não o he menos á Administração actual [e]
sustentador dos principios da Revolução de Abril250, cobre de ridículo e sarcasmos; as
personagens que nella tomaram parte [...]” (CO, nº 85 – 10/10/1834/Seção ARTIGOS
NÃO OFICIAIS). A troca de farpas foi motivada pela Seção da Câmara dos Deputados de
25 de Setembro de 1834, na qual Vasconcelos, reforçando sua cisão com a Maioria,
posicionou-se contrário a posturas administrativas e ordens expedidas pelos Ministérios
dos Negócios Estrangeiros e da Justiça. Nelas, Aureliano sustentava a legitimidade do
julgamento de brasileiros por Juízes ingleses, como previam as regulamentações das
Comissões Mistas para os crimes do contrabando de escravos, e ainda ressaltava a
importância da vigilância das autoridades sobre a arrematação dos serviços de negros
contrabandeados após 1831, que se achavam sob os cuidados do Governo Imperial – tema
que, aliás, reaparecerá ainda em muitas discussões entre as referidas personagens.
As providências de Aureliano contra o tráfico negreiro avultam. Entre 07 de outubro
e 05 de novembro de 1834, em 6 números do Correio Oficial, o Ministro expede ordens a
Juízes, Chefes de Polícia, e solicita do Ministério da Guerra a ceção de embarcações e
efetivo militar para auxiliar na repressão ao contrabando negreiro na região da Illha
Grande, no Rio de Janeiro (CO nº 82 – 07/10/1834; nº 91 – 17/10/1834; nº 93 –
20/10/1834; nº 95 – 22/10/1834; nº 104 – 03/11/1834; nº 106 – 05/11/1834).
250
Sobre o cariz que a glorificada “Revolução do 7 de Abril” assumiu para as elites dirigentes, e mesmo sobre
a polissemia do termo no Período Regencial, ver: MOREL, Marco. O Período das Regências (1831-1840). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, Cap.II – O “carro da revolução”.pp. 20-31.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
258
As medidas de aumento do efetivo policial para fiscalização e repreensão do crime
que atenta contra a Lei 1831, e para que sejam levados a julgamento os Juízes e demais
autoridades locais que venham tratando com “connivencia do deshumano trafico de
Africanos, que nesse Districto continua a praticar-se com a maior offensa das Leis”,
compõem as respostas aos Ofícios enviados ao Ministério pelo Juiz de Direito daquela
Comarca. Nelas, Aureliano chama às responsabilidades o Sr. Promotor Público do
Município de Ilha Grande, e o Juiz de Direito e consegue que da Regência se expeça ordem
para deslocamento de forças da Legião das Guardas Nacionais para aquele lugar, onde
muitos dos que deveriam zelar pela legalidade mostravam-se “ommissos no cumprimento
de seus deveres, ou conniventes com os crimminosos” (CO nº 91 – 17/10/1834/Seção
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA).
Quanto a Vasconcelos, é notável que a rusga se acirrava a cada ato ministerial de
Aureliano. Em sua Folha, o Deputado zombava, apelidando de Padre Mosca ao Cônego
Januário da Cunha Barbosa, de Cupidinho ao Inspetor da Alfândega, Saturnino de Souza,
e de Laureano a Aureliano Coutinho. Fazia troça ao referir-se a estes como Sacra
Camarilha, identificando, portanto, antes mesmo da existência do termo “facção áulica”,
cunhado na década de 1840, o cerne do daquele grupo.
Assim ocorreu quando o Ministro interveio nos processos de comutação das penas
dos condenados Barão de Bulow, e de quatro dos insurretos da Sedição de Ouro Preto. A
estes procederes, tanto Vasconcelos como seu “séquito”, representado, por exemplo, no
campo da imprensa, pelo jornal O Astro de Minas, de São João del-Rei, bradavam
contrariadamente. Foi o que se viu na dita Folha mineira em números do mês de outubro
de 1834, em que, deixando-se levar pelo “dedo do gigante”, os redatores indagavam a
Evaristo da Veiga como podia ele, na Aurora Fluminense, tanto elogiar e defender a um
Ministro de atitudes tão condenáveis (CO nº 98 – 25/10/1834/Seção ARTIGOS NÃO
OFICIAIS). No nº 197 d’O Sete de Abril, desqualificam-se as instruções ministeriais para
a arrematação do serviço dos africanos livres, afirmando serem demasiado restritivas (OSA,
nº 197 – 18/11/1834 – COMUNICADO: 2).
Das fundamentações teóricas que orientavam o grupo a que pertenciam os redatores
do Correio Oficial, pouco se deixa entrever em suas páginas, ainda que de maneira esparsa
deparemo-nos com a utilização de pressupostos de filósofos, antigos ou modernos, ou
discursos de políticos denodados. Um artigo publicando no nº 99 do periódico torna-se,
pois, precioso nesse sentido. Além de ser um “repositório” de idéias e nomes reveladores,
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
259
ele traz dois trechos muito significativos, uma vez que deixam entrever uma tendência
antiescravista – tímida, ou mesmo nas entrelinhas – mas, que converge no sentido da
defesa da imigração européia, e principalmente justifica a luta pelo fim das atividades do
tráfico de cativos:
Licurgo, Platão, Aristoteles, escreverão sobre a Politica e Leis excelentes obras
para o seu tempo, e todos admitem a escravidão como de necessidade absoluta!
Na vida da humanidade, as ultimas paginas nos mostram como loucura o que
parecia sabedoria nas primeiras (CO nº 99 – 27/10/1834/Seção –
VARIEDADES. – Dos diversos modos de considerar e escrever a Historia. escrito por
Hippolyte Roux Ferrand e traduzido por João Candido de Deus Silva).
E ainda:
O que não se poderem fazer as especulações dos Philosophos, e as theorias dos
homens d’Estado, o conseguirá a industria. Ella o fará sem esforços, sem
abalos, e mesmo sem pensar nisso, e só pela força de seu desenvolvimento. He
ella o mais poderoso vehiculo dessa civilisação que tudo abrange [...]porque ella
tem ajudado a felicidade dos homens, e tende a faze-la cada vez mais avultada,
instruindo e melhorando a humana espécie (COnº 99 – 27/10/1834/Seção –
VARIEDADES. – Dos diversos modos de considerar e escrever a Historia. escrito por
Hippolyte Roux Ferrand e traduzido por João Candido de Deus Silva).
A publicação de um artigo tão eloqüente, ao mesmo tempo em que reitera o papel de
difusão da instrução aos leitores do Correio Oficial, consegue compilar e justificar a
empresa liberal moderada, seja na pena dos redatores dos periódicos que a ela se filiam, seja
nas ações dos Políticos como Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho, claramente
empenhado em pôr termo ao tráfico da escravatura, ao que depõem suas muitas ordens e
decisões para esse fim, publicadas na Seção MINISTÉRIO DA JUSTIÇA.
Conclusões
As disputas políticas que avultaram no interregno Regencial desnudam a
multiplicidade de projetos de implantação da Nação brasileira. Dominado, grosso modo por
três principais tendências – liberais moderados, liberais exaltados e caramurus – o cenário
político do decênio de 1830 fora palco de ferrenhos embates de idéias travados no
crescente espaço público. Quanto à desqualificação da escravidão, diferentemente do que
ocorreu no caso dos projetos abolicionistas europeu e norte-americano, para o caso
brasileiro, fora a necessidade de se edificar as bases do Estado-nação que encaminharam as
elites dirigentes à formação de grupos, que em seus clubes, jornais ou Sociedades
Defensoras, discutiam e propalavam suas idéias, fosse pela manutenção ou pelo término da
instituição escravista. Embora Rafael Marquese demonstre que a manutenção da
exploração da mão-de-obra escrava teve uma defesa bastante significativa naquele período,
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
260
postulando que para uma parcela daquelas elites dirigentes não havia incompatibilidade
entre os fundamentos liberais e o escravismo moderno (MARQUESE, 2002: passim), Tâmis
Parron é categórico ao afirmar que:
Com efeito, na turbulenta quadra inicial da Regência (1831-1835), quase não houve
discursos a favor do cativeiro. Bem ao contrário, aprovou-se ali uma determinação
que libertava escravos africanos contrabandeados para o Brasil, discutiam-se
projetos que visavam aperfeiçoá-la, foram ensaiadas companhias de colonização
européia, abriu-se concurso público para a condenação do tráfico e jornais
publicaram artigos diversos contra a escravidão (PARRON, 2009: 67).
A análise dos periódicos A Verdade e Correio Oficial, numa relação de
contrapartida ao que se publicava n’O Sete de Abril, nos permitiu constatar essas tensões
acerca da razão nacional, naquilo em que delas se pode entrever na luta expressa contra o
tráfico negreiro, delineado pelas decisões governamentais do Ministro da Justiça e dos
Negócios Estrangeiros, Aureliano Coutinho, e apoiadas pelo grupo “palaciano”. Grupo,
que, por seu turno, usou das páginas de suas Folhas para denunciar os males da escravidão
– ainda que isso tenha se feito de maneira secundária – e exortar a importância da
imigração européia, como ferramenta para a substituição da mão-de-obra cativa, pelo
trabalho livre, produtivo, e alinhado ao progresso almejado.
A postura do Deputado Bernardo Pereira de Vasconcelos, nos faz notar a força aos
poucos adquirida, estrategicamente, pelos integrantes do Clube da Joana, que para Paulo
Pereira de Castro, assumiram a postura palaciana, como forma de submeter o Parlamento
aos desígnios do Imperador, podendo, assim – já que extremamente próximos de D. Pedro
II – comandar os rumos políticos do país (CASTRO. In: HOLANDA, 1964: 520).
Outrossim, esboçava-se nas críticas de Vasconcelos, o descontentamento com a
administração liberal moderada, que o encaminharia, dentro em pouco, ao posto de chefe
do partido regressista da década seguinte.
Referências Bibliográficas
BASILE, Marcelo. “O laboratório da nação: a era regencial (1831-1840). In.: GRIMBERG, Keila;
SALLES, Ricardo. (org.) O Brasil Imperial, volume II: 1831-1870. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2009.53-119
BENTIVOGLIO, Julio. Demos com o colosso em terra: o ocaso de José Bonifácio e a ascensão política de
Aureliano
Coutinho
nas
páginas
do
jornal
A
Verdade.
Disponível
em:
http://www.scielo.br/pdf/his/v29n2/v29n2a14.pdf. Acessado em: 26 de novembro de 2010.
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política
imperial.5 Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
261
_______. “Escravidão e razão nacional”. In.: IDEM. Pontos e bordados: escritos de história e política. Belo
Horizonte: Editora Ufmg, 1998.
CASTRO. Paulo Pereira de. “A experiência republicana”. In: HOLANDA. Sérgio Buarque de.
(org.) História Geral da Civilização Brasileira.Tomo II, 2º Vol. São Paulo: DIFEL, 1964.
DOSSE, François. “Da história das idéias à história intelectual”. In: IDEM. História e ciências sociais.
Bauru, SP: Edusc, 2004.
GUIMARÃES, Manoel Luis Salgado. Nação e Civilização nos Tópicos: O Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro e o Projeto de Uma História Nacional. Estudos Históricos. n. 1. Rio de Janeiro, 1988, pp.5-27.
HOBSBAWM, Eric J. Nações e nacionalismo desde 1780: programa mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2008.
JANKSÓ, István. “Prefácio”. In: PIMENTA, João Paulo Garrido. Estado e Nação no Fim dos Impérios
Ibéricos no Prata: 1808-1828. São Paulo: Hucitec, 2006.
LACOMBE, Américo L. Jacobina. O mordomo do Imperador. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército
Editora, 1994.
MARQUESE, Rafael Bivar. Governo dos escravos e ordem nacional: Brasil e Estados Unidos (1820-1860).
Penélope: revista de história e ciências sociais ON LINE. Nº 27, 2002, pp. 59-73. Disponível em:
http://www.penelope.ics.ul.pt/pages/todo.htm. Acessado em: 15 de outubro de 2010.
MOREL, Marco. O período das Regências, (1831-1840). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
_______. “Os primeiros passos da palavra impressa”. In: LUCA, Tania Regina de.; MARTINS,
Ana Luiza. (org.) História e imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008.
PARRON. Tâmis. Política e Escravidão no Império do Brasil (1826, 1865). 2009. Dissertação (Mestrado
em História) Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
PIMENTA, João Paulo Garrido. Estado e Nação no Fim dos Impérios Ibéricos no Prata: 1808-1828. São
Paulo: Hucitec, 2006.
RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e exériências no final do tráfico de africanos para o Brasil
(1800-1850). Campinas, SP: Editora da Unicamp, CECULT, 2000.
SIRINELLI, Jean François. “Os intelectuais”. In: RÉMOND. René. (org.) Por uma história política.2
Ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
262
Paulo Rodrigues Durão: atuações e redes relacionais de um camarista de Vila do
Carmo na primeira metade do setecentos mineiro
Lucas Moraes Souza
Mestrando em História pela UFOP
lmsichs@gmail.com
Resumo:Este trabalho tem como objetivo apresentar a atuação e as redes relacionais do
juiz ordinário da Câmara da Vila do Carmo em 1730, Paulo Rodrigues Durão. Desta forma,
busca relacionar suas ações antes e depois da Revolta de Vila Rica de 1720 com os
benefícios conquistados por sua escolha em favor do Conde de Assumar na contenção do
motim. Idéias presentes nos trabalhos de Maria de Fátima Gouvêa, Maria Fernanda
Baptista Bicalho, Maria Verônica Campos e Carlos Leonardo Kelmer Mathias, sobre as
Câmaras e a Revolta serão utilizados nesta apresentação como fundamentos teóricos de
debate. Dentre os documentos utilizados estão: inventários, lançamento e arrolamento de
escravos, registros de editais de lançamento dos quintos, além de cartas régias que
abrangem o período de 1717-1721. O uso destes documentos almeja compreender as
atuações deste poderoso local, e as possibilidades de ganho dentro de uma sociedade do
Antigo Regime na América portuguesa. Para tanto, leva-se em conta os pressupostos atuais
dessa historiografia que privilegia um novo direcionamento sobre as políticas desta nobreza
da terra dentro do Império Ultramarino português.
Palavras-chave: Rede relacional, Câmara, Revolta.
Abstract:This paper aims to present the work and the relational networks of ordinary
judge of the Board of the Village of Carmo in 1730, Paulo Rodrigues Durao. Thus, seeks to
relate his actions before and after revolt of Village Rica from 1720 to the benefits earned by
their choice in favor of the Count of Assumar in curbing the riot. Present ideas in the
works of Maria de Fatima Gouvea, Maria Fernanda Baptista Bicalho, Maria Veronica
Campos and Carlos Leonardo Kelmer Mathias on the Boards and the Revolt in this
presentation will be used as theoretical discussion. Among the documents used are:
inventories, launch and inventory of slaves, records of calls for release of the 5th, and royal
letters covering the period 1717-1721. The use of these documents aims to understand the
working of this powerful place, and the possibility of gains within a society of the Ancien
Regime in Portuguese America. To do so, it takes into account the assumptions that
current historiography that favors a new direction on the policies of this noble land within
the Portuguese Overseas Empire.
Keywords: Relational Networks, Board, Revolt.
Uma sociedade corporativista, burocrática e barroca, eis a configuração das Minas ao
longo do século XVIII. Como entendê-la, e quais indivíduos a formaram? Por meio destas
indagações e com o auxílio teórico de historiadores sobre o tema aqui proposto procuro
dar forma a esta sociedade mineira do início do século XVIII. Para tanto, o recorte
temporal adotado é do início da criação das primeiras vilas e de suas Câmaras em 1711 até
o fim do governo de dom Pedro de Almeida e Portugal no ano de 1721.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
263
A revolta de Vila Rica no ano de 1720, muito debatida pela historiografia mineira, é
aqui tema principal deste trabalho, pois é um evento determinante para a independência
administrativa da Capitania, além de iniciar um período de domínio da Coroa portuguesa
sobre a região. Desta forma, uma breve descrição da Revolta é primordial para o
desenvolvimento do trabalho. Será feita uma abordagem desta revolta sob a perspectiva da
repressão, dos principais de Vila do Carmo que auxiliaram o conde de Assumar.
Na historiografia sobre a Revolta não é novidade o conhecimento daqueles que
ajudaram o governador dom Pedro de Almeida Portugal na contensão desta revolta. Mas
ainda são poucos os trabalhos que dedicam analisar a participação destes homens aliados ao
governador, ainda mais daqueles que moravam na mesma vila que o conde governador. E é
na participação de um destes homens da Vila do Carmo que consiste o esforço maior deste
artigo.
Fundada na figura do potentado Paulo Rodrigues Durão que pretendo apresentar as
motivações, as estratégias e as ações daqueles que contribuíram para o fim da revolta de
Vila Rica em 1720. Conhecer os mecanismos que possibilitavam as adesões destes
poderosos locais às causas da Coroa lusitana é fundamental para compreender esta
sociedade em formação. O imaginário da época e as ideologias existentes são chaves
importantes para o funcionamento destes mecanismos.
A descoberta do ouro nas Minas, sua exploração, e o povoamento da região fez-se
em um contexto de restauração portuguesa, com o fim da união ibérica e a ascensão da
Casa de Bragança ao trono lusitano. Com isso, um novo panorama político foi
estabelecido, re-ordenando as práticas administrativas sobre todo o domínio ultramarino
português. Estas práticas eram constituídas pela adesão das administrações lusitanas e
catalãs, apropriadas no período em que os Filipes governaram Portugal.
Essa prática administrativa reformada pela restauração portuguesa em 1640 que vai
ditar a política da Corte lusitana em todo o seu Império Ultramarino é baseada na Razão
de Estado251. Essa Razão de Estado, oriunda de doutrinas tradicionais medievais da ratio
Status, sofreu modificações a ponto de se adequar a realidade dos Estados Católicos
251
Essa Razão de Estado é o conjunto de teorias políticas baseadas em preceitos teleológicos cristãos para a
autoridade do monarca absolutista dos Estados católicos. Seus principais teóricos são: o jesuíta Giovanni
Botero e o neo-escolástico Sebastião César de Meneses. O primeiro, em 1588 com seu tratado Della ragion di
Stato discute os fundamentos que sustentam a autoridade e autonomia do poder régio absolutista. O segundo,
em 1650 com seu tratado Summa política, oferecida ao príncipe d. Theodosio de Portugal, propõem uma
“verdadeira Razão de Estado” constituída nas virtudes cristãs, e desta forma sofrendo influência do papa.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
264
Ibéricos, principalmente pós-restauração. Essa doutrina, por sua vez tem raízes nos estudos
clássicos da antiguidade latina, e foi debatida fortemente no século XVI.
Os estudos clássicos da antiguidade e da idade média influíram nas formulações das
doutrinas do poder monárquico absolutista252. Destes estudos surgiu duas linhas
divergentes que procuravam fundamentar o poder do príncipe: a Razão de Estado cristã e a
não-cristã253. De um lado, estava a Razão de Estado formulada por escolásticos de Roma,
portanto, ligando o poder do príncipe ao poder espiritual do papa. Do outro, estava a
Razão de Estado desenvolvida por teóricos como Maquiavel, Lutero, e os defensores de
James I.
Maquiavel, em seu livro O Príncipe, responder uma nova realidade expondo um novo
tipo de governante. Assim como o tirano italiano César Bórgia, o novo governante chega
ao poder através das armas. O Maquiavelismo, uma concepção negativa das idéias de
Maquiavel, é formulado pelos seus opositores católicos que corrompem o pragmatismo das
formulações de Maquiavel que dizem que as ações dos soberanos são fundamentadas nas
necessidades254 imediatas de resolução dos conflitos internos ou externos de seus governos.
A crítica cristã às idéias de Maquiavel é dada pela inexistência de vontade divina na
relação entre soberanos e súditos, e na autonomia das ações desses soberanos. Segundo
Maquiavel, isso se explica por ser a guerra o único meio necessário para a conservação e
manutenção do Estado – entenda-se, o poder do monarca. Já as formulações neoescolásticas sobre o poder entendem a política teleologicamente, em que o fim último das
ações do Estado seja a assunção do soberano e seus súditos a um patamar superior255.
O direito divino dos reis, defendido por Martin Lutero, vai contra as idéias
defendidas pelo jesuíta Giovanni Botero e os juristas da Contra-Reforma. Para Lutero o
poder e o direito monárquico são dados diretamente por Deus, sem a mediação do povo.
Sendo assim contrárias as formulações cristãs defendidas por Botero que acreditam que o
252
São essas obras: a República, de Platão; o De officiis, de Cícero; os Annales, de Tácito; a Cidade de Deus, de
santo Agostinho; o Etimologias, de Isidoro de Sevilha; o Policratus, de John de Salisbury; o De regno, de santo
Tomás de Aquino. Em todas, a Razão de Estado é apropriada como a ação na qual o poder absoluto
transgride o direito, sob a justificativa do interesse público – “bem comum”.
253 A divisão é proveniente da Reforma religiosa e da Contra-Reforma. Pois, por se tratarem de teorias
formuladas de acordo com as escrituras. Assim, por comodidade lógica da escrita, adotei essa dicotomia
cristã::não-cristã, para tal divisão teórica.
254 Segundo Hansen, o conceito de necessitas (necessidade), oriundo do direito romano, foi incorporado pelas
doutrinas de governos a partir do século XII para justificar os estados de exceção, segundo o axioma “A
necessidade não conhece lei”, ou seja, as ações de governantes que burlam as próprias leis que dá legitimidade
ao seu poder. (HANSEN, 1996:145)
255 Essa elevação a um patamar superior do suserano e seus vassalos é baseada nas qualidades cristãs
indispensáveis ao governante. Elas buscam emular as qualidades da divina trindade – Potência do Pai, Amor
do Espírito Santo e a Sabedoria do Filho – nas ações do Estado representadas pelos reis.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
265
direito divino e o poder conferido ao rei são dados por Deus através do povo. A seção da
liberdade de ação do povo ao monarca é definida como Soberania.
O direito divino e a natureza do poder dos reis defendidos por Lutero justificam as
pretensões do rei James I da Inglaterra de aglutinar em suas mãos os poderes terrestres e
espirituais. Enquanto que para os reis ibéricos, o poder espiritual é reconhecido ao papa
que por sua vez o transfere aos monarcas. Essa diferença entre concepções do poder real,
ou da Razão de Estado, vão contribuir para delimitar as ações dos monarcas cristãos,
anglicanos e luteranos na Europa moderna.
Voltando para o contexto ibérico pós-restauração portuguesa de 1640. A política da
Casa de Bragança na administração do seu Império Ultramarino é baseada nessa Razão
de Estado Cristã que tem como finalidade a conservação pacífica do Estado, a moderação
do governante e a relação através das trocas econômicas entre Estados256. No entanto, para
que isso ocorra, a lógica absolutista da Razão de Estado implicará na ambigüidade da ação
da paz armada e a guerra.
Sob as premissas dessa razão de Estado pós-restauração de 1640 que a Casa dos
Bragança controlará o Império Ultramarino português, distribuindo os principais cargos
administrativos do império nas mãos da primeira nobreza lusitana. Essa primeira nobreza
era base que coroou o duque de Bragança em rei d. João IV. Naturalmente, essa base será
privilegiada com postos nobiliárquicos de destaque como Conselheiros reais, Secretários de
Estado, Presidentes do Conselho Ultramarino, da Casa de Suplicação, da Relação do Paço,
da Mesa de Consciência e Ordens, do Conselho da Fazenda, Vice-Reis, Governadores
Gerais e de Capitanias.
Pautado no que Antônio Manuel Hespanha apresenta como paradigma
jurisdicionalista dos séculos XVI e XVII, que por sua vez estava inserida na sociedade
corporativista em que o rei era a cabeça do corpo social do Antigo Regime. Esta primeira
nobreza lusitana eram os membros desse corpo, assegurando assim a hierarquia. Esse
paradigma pautava-se na distribuição dos cargos de justiça em todo o Império a membros
dessa nobreza, nem sempre por merecimento, mas sim pela posição social.
Daí, estas diversas instituições lusitanas citadas acima, representa não só a distinção
social para aquele que ocupa o cargo, como também o acúmulo de cabedais por meio da
formação de redes clientelares. Essas redes, como indicam os pesquisadores Nuno
Gonçalo Monteiro e Maria de Fátima Gouvêa, formadas por membros dessa primeira
256
Entendem-se aqui relações através das trocas econômicas entre Governos, entre Estados absolutistas.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
266
nobreza do reino lusitano espalhava-se por todo Império e possibilitava o controle
administrativo na mão de poucas famílias.
No trabalho de Maria F.B. Bicalho Redes governativas portuguesas e centralidades régias no
mundo português, c.1680-1730. A autora destaca a rede comercial de tráfico negreiro montada
pela rede clientela e familiar entre os governadores do Estado do Brasil Luís Gonçalves da
Câmara Coutinho 1690-1694, o governador Geral de Angola João de Lencastre 1688-1692,
e o governador da Capitania do Rio de Janeiro Luís César de Meneses 1690-1693. Rede
familiar pelo fato de João de Lencastre ser primo da mulher de Câmara Coutinho, e
cunhado de César de Meneses.
Já o trabalho de Nuno Gonçalo Monteiro O “Ethos” Nobiliárquico no final do Antigo
Regime: poder simbólico, império e imaginário político, apresenta de forma elucidativa a formação
dessa primeira nobreza, e o processo degenerativo do status nobre na sociedade lusitana
com a criação de várias casas de armas e distribuição de títulos da Ordem de Cristo,
vulgarizando-os. Mesmo com a vulgarização, o status de nobreza possibilitava a ascensão
social no Antigo Regime.
Dentro de redes clientelares como a formada por João de Lencastre, César de
Meneses e Câmara Coutinho, membros da primeira nobreza do reino e destacados
funcionários régios no Império Ultramarino, produzia-se e transmitia-se o poder, mas
também se transmitia conhecimentos necessários para a governação. O poder para Maria
de Fátima Gouvêa “se apresenta aqui enquanto algo necessariamente “relacional”, que se
movimenta e circulava em cadeias de reação”. (GOUVÊA, 2004:102)
Assim, fazer parte de um grupo social reduzido, e privilegiado, e que seus membros
faziam parte dos aparelhos administrativos no Império Ultramarino, ou tinham contato
com alguém que viviam neste meio. Portanto, fazer parte deste grupo era primordial para
quem almejasse elevar o nome de família, e angariar pecúlios e prestígio aos olhos do
monarca. Desta forma, fazer parte desta rede era agregar conhecimento sobre a prática
administrativa e a política portuguesa, e com isso obter poder e mobilidade social.
A família era uma instituição na sociedade do Antigo Regime em que sua finalidade ia
além da procriação, era fundada em regras que perpassam o amor entre membros, que era a
da constante busca pela ascensão social. Para tanto a constituição do matrimônio era mais
um contrato político entre famílias e menos a união afetuosa entre gêneros. O alcance da
rede familiar ultrapassava o que hoje conhecemos como família nuclear e se estendia por
todos os membros, agregados da casa e empregados, formando uma grande rede clientelar.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
267
As redes clientelares semelhantes à formada pelo trio – João de Lencastre, César de
Meneses e Câmara Coutinho – apontam para o alcance em poderiam alcançar essa primeira
nobreza lusitana no quadro político/administrativo do Império Ultramarino Português.
Em que neste caso chegaram a comandar, segundo Maria Fernanda Bicalho, as principais
praças colônias do tráfico negreiro no final do século XVII.
Serviços prestados ao rei, como os dos agentes régios d. João de Lencastre e sua rede
são fundamentais para se conseguir mercês e postos maiores dentro da sociedade da Corte
portuguesa, e com isso muito mais poder e honra para o indivíduo e sua família. Isso
acarreta em uma mobilidade social maior, em maior poder de barganha para postos
destacados na política e administração, e uniões mais vantajosas com outras famílias da alta
nobreza na lusitana.
Depois de falar do novo quadro político português pós-restauração, da importância
da alta nobreza lusa para a manutenção da monarquia, e das estratégias utilizadas por esta
para conseguir os principais postos políticos/administrativos, é necessário enfocar à
importância dada pela Corte ao Brasil no final do século XVII e início do XVIII devido a
descoberta do ouro no sertão da Capitania de São Vicente. Para tanto, abordaremos a
administração dos três primeiros governadores da recém criada Capitania de São Paulo e
Minas do Ouro.
“Meu avô temia e devia; meu pai devia; eu não temo nem devo”, essa frase, atribuída
ao rei D. João V, retrata a segurança que o ouro das Minas, e a importância da Colônia
americana ao rei em seu governo. Governo que não era tão dependente da Corte como
seus antecessores, e com estabilidade política externa e financeira. É verdade que essa
importância do Brasil para a política e economia portuguesa deve-se é fato com a
progressiva perda de espaço no oriente, o que é chamada pela historiografia como viragem
atlântica.
Como destacam Nuno Monteiro e Maria de Fátima Gouvêa, a lógica de nomeação
para os cargos administrativos de governadores gerais e de capitanias seguiam uma ordem
pré estabelecida, contando com a seleção de agentes pertencentes a primeira nobreza lusa,
com tradição nos serviços prestados ao rei. Eram em, sua maioria, experientes na arte
bélica, tendo participado de guerras e na defesa das diversas praças marítimas do Império
Ultramarino português.
Com a publicação da existência de ouro no sertão da Capitania de São Vicente no
final do século XVII, os portos do Brasil corriam riscos de invasões das potências
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
268
estrangeiras. Principalmente o porto da cidade do Rio de Janeiro que era desejada pela
França com seu projeto de França Antártica. Outro fator importante a analisar é o êxodo
populacional para a região aurífera, tornando cidades do reino257 e do Brasil258 quase
despovoadas.
A administração da região aurífera estava sob o encargo do governador do Rio de
Janeiro. Mas vários fatores tornavam essa tarefa impossível. A capitania do Rio de Janeiro
necessitava de mais corpos de milícia, fortificações melhores, no campo militar. O espaço
para sua administração era enorme para que houvesse uma administração eficiente. Além
disso, como fora dito antes, essa praça era interesse das potências estrangeiras, o que
impedia que o governador voltasse seus olhos para o interior da colônia.
A notícia de descoberta de ouro nos sertão paulista atraia estrangeiros de todas as
partes, e tornava o porto do Rio de Janeiro extremamente atraente, pois era a principal
praça comercial com as minas, e local onde era escoado o ouro para o reino. Diante disso, e
para melhor administrar a região mineradora, D. João V por ordem régia cria a Capitania de
São Paulo e Minas do Ouro em 1709. Tendo como seu primeiro governador D. Antônio
de Albuquerque.
A criação da capitania devia-se pelo enorme dificuldade de conter os ânimos daqueles
que viviam na região mineradora. Eram em sua maioria portugueses do reino e das ilhas,
tidos como reinóis, e colonos vindos de todas as partes do Brasil, em sua maioria
bandeirantes paulistas. O conflito territorial entre reinóis e paulistas pelas principais áreas
mineradoras, tida pela historiografia como Guerra dos Emboabas, em que a hegemonia
paulista sofreu um forte abalo que culminou com aumento do poder de reinóis ao fim
desta disputa, dividindo os diversos arraiais entre eles.
Não é o intuito deste trabalho aprofundar nas questões deste conflito, cabendo
apenas pontuar aquilo que foi determinante para o movimento gradual de controle régio
desta região aurífera. Isso não significa que houve um controle efetivo, ou mesmo uma
dominação da Coroa por meio de agentes régios sobre as minas do ouro, mas a mudança
do espaço geopolítico com a diminuição do poder de mando dos potentados. Com a
criação de mecanismos e instituições que favoreceram um maior diálogo entre o rei e seus
vassalos nas minas.
257
Existem estudos que demonstram o fluxo migratório que abarcam o final do século XVII e a primeira
metade do XVIII, que boa parte da migração era da região norte de Portugal.
258 No caso do Brasil, podemos notar esse despovoamento com as cartas das diversas Câmaras Municipais de
Salvador, Recife, São Paulo e Rio de Janeiro, reclamando da falta de homens que partiam para o sertão
paulista do sabarabuçu em busca de ouro.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
269
Com a expulsão do governador D. Luis Mascarenhas pelo grupo emboaba liderado
por Manuel Nunes Viana, a Corte viu a necessidade de separar dividir a Capitania do Rio
de Janeiro e criar a Capitania de São Paulo e Minas do Ouro. A insatisfação dos paulistas
que haviam perdido terras e poder político nas minas para os reinóis, tornava-se a situação
delicada de mais, necessitando de alguém experiente na arte do governo colonial. E o nome
escolhido foi o de D. Antônio de Albuquerque de Carvalho, que já havia governado o
Estado do Maranhão e conhecia a língua local dos bandeirantes.
Essa escolha demonstra, e reafirma o que Nuno Monteiro e Maria de Fátima Gouvêa
dizem sobre a dinâmica de seleção dos governadores para as colônias. Era D. Antônio
experiente no campo militar e hábil na política, sendo maleável o bastante para por fim ao
conflito entre emboabas e paulistas. Sua missão era apaziguar a região das minas e satisfazer
os anseios de ambos os partidos em disputa. Se bem sucedido, plantaria sementes que bem
cultivadas possibilitaria a Coroa um maior espaço de negociação com seus vassalos
coloniais na região.
É necessário ressaltar que parto do princípio que ações enérgicas próprias do
governo do Conde de Assumar no momento logo após do fim do conflito entre paulistas e
emboabas eram improváveis. Isso se dá pelo fato de acreditar que havia um dinamismo
muito grande, e realidades entre os governos eram incomparáveis. Como disse Laura de
Mello e Souza em sua obra O sol e a sombra, que o governo colonial nas minas iam
se tecendo ao sabor de conjunturas e de atuações individuais; situações e
personagens que obedeciam a normas e determinações emanadas do centro do
poder, mas que as recriavam na prática cotidiana, tornando às vezes o ponto de
chegada tão distinto do ponto de partida que, não raro, ocultava-se ou mesmo se
perdia a idéia e o sentido. (SOUZA,2006:14)
Partindo do suposto que é preciso dividir para melhor governar, D. Antônio de
Albuquerque dividiu a Capitania de São Paulo e Minas do Ouro em duas partes: uma com
sede em São Paulo que foi elevada a condição de cidade, com Câmara Municipal com
privilégios iguais a cidade do Porto e que compreendia a antiga área da Capitania de São
Vicente; o sertão paulista que compreendia a região do descoberto do ouro era a parte das
Minas do Ouro, que tinha como sede a Vila de Nossa Senhora do Carmo, local de moradia
do Governador D. Antônio de Albuquerque.
Essa parte das Minas do Ouro foi dividida em três comarcas, e em cada uma com sua
sede – cabeça de comarca. Para isso foram elevados os arraiais sedes das comarcas em vilas.
Cada uma dessas vilas com sua Câmara Municipal, seus oficiais, e seu termo próprio. Desta
forma foi assim separada a região das Minas do Ouro em 1711, pelo governador: comarca
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
270
do rio das mortes, com cabeça de comarca na Vila de São João Del Rey; comarca do rio
das velhas, com cabeça de comarca na Vila Real do Sabará; e por fim, a comarca do Ouro
Preto, com Vila Rica e Vila de Nossa Senhora do Carmo, com essa última como cabeça da
comarca.
A criação das Câmaras Municipais, uma tradicional instituição administrativa
portuguesa que tem relações diretas com o monarca, foi criada para satisfazer os anseios
dos principais moradores das minas. Esse desejo de representação foi evidenciado
principalmente pelo conflito entre os grupos envolvidos na dita guerra de 1707-1709. Os
principais destas vilas, chamados de homens bons, eram constituídos primordialmente dos
Potentados enriquecidos pela mineração e comércio nas Minas. O governo de D. Antônio
de Albuquerque termina em 1713 com o dever cumprido foi sucedido por D. Baltazar da
Silveira.
O ritual de pose dos governadores de São Paulo e Minas do Ouro seguiam uma
determinada lógica própria. Primeiro, era feito um edital no reino com a discriminação dos
possíveis nomes. Com a escolha do rei e sua Corte, o candidato jurava fidelidade ao
monarca e partia para a região ultramarina em que iria governar, neste caso, ao porto da
cidade do Rio de Janeiro. Do Rio o governador indicado partia para a cidade de São Paulo
onde tomava posse.
A passagem por São Paulo tem um grande simbolismo, pois era uma forma de
reconhecimento do Rei para com aqueles naturais do planalto do Piratininga por ter
descoberto ouro em seu sertão. Depois do discurso de posse na cidade – ato representativo
do juramento feito ao rei pelo governador, mas agora entre o rei – representado pelo
governador – e seus vassalos na colônia. Depois, o comandante partia para o a região das
minas. Esse ritual foi praticado pelos três governadores da Capitania até o ano de 1720,
quando a mesma se separou, formando as Capitanias de São Paulo, e de Minas Gerais.
A fim de assegurar o sossego das Minas e uma maior arrecadação dos quintos régios,
o governador D. Baltazar da Silveira procurou dividir os postos das Câmaras das Vilas
elevadas em 1711 pelo seu antecessor, para que conflitos entre grupos contrários como o
ocorrido entre paulistas e emboabas não se repetisse. Era atribuição das Câmaras
Municipais fazer o registro de entrada e saídas dos produtos e do ouro em pó que
circulavam dentro de seus termos. Desta forma, a arrecadação do quinto devido ao rei era
uma das principais funções desta instituição.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
271
Como os cargos das Câmaras eram ocupados pelos principais das Vilas, é
importante reproduzir aqui a constituição das primeiras mesas eleitas das Câmaras das vilas
de São João Del Rey, Vila Real de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, Vila Rica e Vila
Leal259 de Nossa Senhora do Carmo. Primeiro iremos apresentar a Câmara de Vila do
Carmo, por ser nosso enfoque principal, e local onde Paulo Rodrigues Durão, tema desse
estudo, fez parte no final da década de 20.
No momento de elevação à vila e criação de sua Câmara, dentre os principais desta
vila que assinaram o termo de sua criação e que tiveram posteriormente um cargo na
vereança até o ano de 1730, destacam-se: José Rabelo Perdigão – Mestre de Campo da Vila
–, Pedro Teixeira de Cerqueira, Rafael da Silva e Souza, Jacinto Barbosa Lopes, Torquato
de Teixeira de Carvalho, Antônio Rodrigues de Souza, Inácio de Sampaio260. Desta forma a
primeira mesa foi a seguinte:
Juiz Ordinário Mais Velho: Pedro Frazão de Brito
Juiz Ordinário Mais Novo: José Rebelo Perdigão
Vereadores:
Manuel Ferreira de Sáa
Francisco Pinto Almendra
Jacinto Barbosa Lopes
Procurador: Torquato Teixeira de Carvalho
Para a Vila Rica, os nomes eleitos para sua primeira mesa foram:
Juiz Ordinário Mais Velho: Coronel José Gomes de Melo
Juiz Ordinário Mais Novo: Fernando da Fonseca e Sá
Vereadores:
Manuel de Figueiredo Mascarenhas
Félix de Gusmão Mendonça e Bueno
Antônio de Faria Pimentel
Procurador: Manuel de Almeida e Costa
Já para a Vila de Sabará, formaram a primeira mesa da Câmara:
259
O título de Leal se deve ao fato desse antigo arraial de Nossa Senhora do Carmo ter sido fiel ao Rei e
tomado partido contrário ao governo provisório do reinol emboaba Manuel Nunes Viana. Não se pode
porem garantir que todos foram contrário a este governo, mas a maioria de seus moradores foram contrária
ao governo de Nunes Viana.
260 O historiador Diogo de Vasconcellos em sua obra escreveu Inácio de S. Paio, tratando-se de uma
corruptela do nome, ou uma abreviação. Já na Revista do Arquivo Público Mineiro, ano 2, n°2, fascículo 1 de
1897, pág.82, está escrito: Inácio de São Paio. Estas duas formas divergem da listagem feita da Câmara no
período colonial presente no livro da Casa de Vereança de Mariana, onde se reproduz o “Sampaio” do qual
utilizo.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
272
Juiz Ordinário Mais Velho: Frei José Quaresma Franco
Juiz Ordinário Mais Novo: Lourenço Pereira de Azevedo Coutinho
Vereadores:
Antônio Pinto de Carvalho Rodrigues
Domingos Dias da Silva Júnior
João Soares de Miranda
Procurador: D. Francisco Mateus Rondon
A Vila de São João Del Rey teve mesa da Câmara formada por último dentre aquelas
que eram cabeça das comarcas, sendo composta da seguinte forma:
Juiz Ordinário Mais Velho: Pedro de Morais Raposo
Juiz Ordinário Mais Novo: Ambrósio Caldeira Brant
Vereadores:
Francisco Pereira da Costa
Miguel Marques da Cunha
Pedro da Silva
Procurador: José Alves de Oliveira
Ainda em seu governo D. Braz Baltazar da Silveira criou mais três vilas: Vila Nova da
Rainha do Caeté, e a Vila do Príncipe no Serro Frio em 1714 e ambas faziam parte da
comarca do rio das velhas, no ano seguinte na comarca do rio das mortes foi criada a Vila
de Nossa Senhora da Piedade do Pitangui.
O mesmo governador teve grandes dificuldades, principalmente na forma de
arrecadação do quinto, sendo que tentara a forma de quinto por bateia que consistia uma
quantia de ouro por cada negro que bateasse. Foi diante disso formada uma junta com
todos os ouvidores das comarcas e as Câmaras e ficou decidido que a forma de cobrança
seria por cota anual de 30 arrobas que insidia não só aqueles que minerassem, mas também
ao comércio.
Ainda em seu governo D. Brás Baltazar enfrentou dois motins, um na Vila do
Pitangui e outra na Vila do Caeté. A primeira dera-se por conta dos conflitos ainda
remanescentes dos conflitos entre paulistas e emboabas, sendo a dita vila
predominantemente paulista. A segunda foi motivada pela forma de cobrança dos quintos,
e por meio de movimento popular botaram o ouvidor Luís Botelho pra fora da dita vila. A
Câmara de Caeté desejava não mais pagar os quintos.
No fim de seu governo D. Brás Baltazar da Silveira não conseguiu cumprir a missão
que lhe fora entregue, a de estabelecer a cobrança dos quintos sobre bateia. Mesmo que
tenha estabelecido a divisão entre as três comarcas, criação de vilas e ereção de suas
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
273
Câmaras, politicamente o dito governador esteve em mãos dos Potentados, pois não tinha
recursos que possibilitasse uma negociação com os povos das Minas. Ficaram algumas
questões graves para serem resolvidas: a demarcação dos limites das Minas com as
Capitanias de Pernambuco e Bahia ao norte; a regulamentação dos cleros e o bispado a
qual seriam sujeitos; o maior controle sobre as minas com a diminuição dos poderes dos
régulos mineiros.
D. Pedro Miguel de Almeida e Portugal, terceiro conde de Assumar chegara as Minas
por volta de 1717. Tinha como missão aumentar o controle régio sobre a região. Em seu
discurso de posse na cidade de São Paulo relembrara os feitos portugueses do qual sua
linhagem fazia parte, e mesmo enaltecendo os feitos bandeirantes nos séculos passados não
deixava de mostrar que eram todos vassalos do rei, portanto, deviam obediência ao
monarca. Era o conde-governador militar de carreira, e havia participado da guerra de
sucessão espanhola.
Ao vir para o Brasil, o governador trouxe um carregamento de escravos no montante
de 22:594$261 (vinte e dois contos quinhentos e noventa e quatro mil duzentos e sessenta e
um réis). De sua parte, e de sua esposa – por meio do dote – investira 14:194$261. Dentre
seus sócios estavam o próprio pai, D. João de Almeida – o segundo conde de Assumar – e
seu amigo, e representante do rei espanhol em Portugal, D. Pedro Martins com 8:400$000.
Dentre os credores do conde-governador encontrava-se o ex-governador da Capitania de
São Vicente em 1709 Francisco do Amaral Coutinho com o empréstimo de 2:000$000.
Essa carregação é importante para nós, pois nos dá margem para compreendermos o
governo de D. Pedro de Almeida de outra forma que não apenas de um governante
ultramarino, mas também de alguém que aproveitou de seu ofício e posição para fazer a
acumular pecúlios enquanto estava nas Minas. Dentre os procuradores do dito governador
e de Francisco do Amaral está à pessoa de Domingos Rodrigues Cobra, o sargento-mor
Antônio Ferreira Pinto261, e o padre Pedro Fernandes de Inojosa Velasco.
Estes três foram responsáveis por vendas de escravos, fazendas e terras em nome do
dito conde-governador no tempo de seu governo. Não é surpresa que estiveram ao lado de
D. Pedro de Almeida na contenção da Revolta de Vila Rica em 1720. O montante total
movimentado por estes procuradores chega a um total de 15:768$000 (quinze contos
setecentos e sessenta e oito mil réis), mais 1.250 oitavas de ouro.
261
Fora também juiz ordinário da Câmara da Vila de Nossa Senhora do Carmo no ano de 1714.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
274
Paulo Rodrigues Durão foi uma das testemunhas da venda de um sítio na freguesia
de São Sebastião pertencente à Vila Rica, no ano de 1719, em que o procurador fora
Domingos Rodrigues Cobra, e o montante o total de 5:284$800. Ainda no tempo de D.
Brás Baltazar, Paulo Rodrigues Durão teve seu carregamento de fazenda e escravos
apreendida na entrada do caminho da Bahia em 1712. O genealogista histórico Francisco
de Assis Carvalho Franco em seu livro Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil informa
que Paulo Rodrigues Durão fora “o primeiro que se estabeleceu nos primórdios do século
XVIII, no Morro Vermelho do Sabará e depois mudou para o Inficionado” era um dos
principais moradores desta localidade e que antes residia na Vila de Sabará.
Na revolta dos escravos em 1719-1721 Paulo Rodrigues Durão auxiliou o condegovernador com sua vida e fazenda. Em carta patente dada em 27 de outubro de 1722 por D.
Lourenço de Almeida, conferindo a ele patente de sargento-mor de Mato Dentro. Dentre
seus feitos por ter
executado pontualmente todas as ordens que lhe deu o Conde de Assumar D.
Pedro de Almeida, meu antecessor, assim no socorro que deu com seus negros
armados ao Tenente General Manoel da Costa Fragoso para se prenderem, e
castigarem alguns negros revoltosos de pessoas insolentes262, que no distrito das
Catas Altas em mato dentro andavam armados, e cometendo várias desordens
sem atenção e respeito aos bandos do dito Conde que com acertada
providência havia proibido aos negros o uso de armas para evitar os insultos
que até a sua chegada a estas Minas com esta ocasião sucediam, haver se com
muito zelo na sublevação que os moradores desta Vila Rica fomentados de
pessoas malignas, fizeram contra o dito Conde por esse os não deixar viver na
continuação dos roubos insultos, e vexações que sem temos a Deus e de Sua
Majestade faziam a estes Povos, procedendo o dito Paulo Rodrigues Durão
com conhecida fidelidade nesta ocasião porque logo que o Conde lhe fez aviso
a seu socorro, trazendo consigo todos os seus escravos armados que são
numerosos263, e muitas pessoas brancas, sustentando todos a sua custa no que
fez uma considerável despesa da sua fazenda, e sendo encarregado da cobrança
do distrito do Inficionado pertencente aos quintos nos anos de 1717, 1721,
1722 a fazer com grande atividade sem queixa dos moradores do dito
distrito...(RAPM - vol.IV, 1899: 101)
Como foi relatado nesta carta patente, Paulo Rodrigues Durão auxiliou o condegovernador na contenção da revolta escrava de 1719, no tumulto provocado por Manuel
Nunes Viana e seu primo Manuel Rodrigues Soares em Catas Altas em 1718, na cobrança
dos quintos em seu distrito e também na contenção da Revolta de Vila Rica em 1720.
Somado ao fato que fora testemunha de venda um sítio em nome do dito governador,
262 Acredito que estes “negros revoltosos de pessoas insolentes” tratam-se dos negros de Manuel Nunes
Viana e seu primo e sócio Manuel Rodrigues Soares, morador em Catas Altas. Estes por meio de seus negros
promoveram uma revolta a fim de apropriarem de terras em 1718.
263 O número de seus escravos na lista feita para o Inficionado nos anos de 1718-1720 era de 77. Em seu
inventário o número já era superior a 120 cativos.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
275
Paulo Rodrigues Durão se beneficiara da rede clientelar de D. Pedro de Almeida,
conseguindo posteriormente sesmaria ao redor do rio turvo no Inficionado no ano de
1733, pelo governador conde das Galveas.
Paulo Rodrigues Durão, segundo o trabalho de Simone Cristina de Faria tinha além
de seu Engenho de nome Nossa Senhora de Santa Ana na cata preta no Inficionado, tinha
também casa na rua direita de Vila do Carmo, elem de duas vendas em seu distrito. Em sua
rede clientelar se relacionava com outros cobradores dos quintos dos termos desta vila
como o juiz ordinário de Câmara em 1721 e ex-cobrador do Inficionado Coronel Caetano
Álvares Rodrigues da Horta, e também com outro dois cobradores do mesmo distrito:
Manoel Antônio Vergas e José Rodrigues Durão, seu sobrinho.
Dentre outras pessoas como os também cobradores Tomé Fagundes do Valle e
Domingos Nunes Neto – sargento-mor de Mato Dentro que fora sucedido por Rodrigues
Durão – em Catas Altas; Mestre de Campo Francisco Ferreira Sáa, Capitão Manoel
Cardozo Cruz e Manoel do Rego Tinoco, cobradores em Vila do Carmo; João Favacho
Roubão, tio de Paulo Rodrigues Durão, que fora cobrador no distrito de Bento Rodrigues.
Dentre eles, três ocuparam outros cargos relacionados à Câmara além a de
cobradores dos quintos. Manoel Cardozo Cruz em foi vereador em duas oportunidades,
em 1723 e 1744, e depois foi juiz ordinário em 1731; Francisco Ferreira Sáa foi juiz
ordinário em 1725; e José Rodrigues Durão, sobrinho de Paulo Rodrigues, fora vereador
1765 e oficial de barrete em 1747. O próprio Paulo Rodrigues fora vereador em 1735, e juiz
ordinário em 1729.
Isso tudo demonstra ser Paulo Rodrigues Durão uma pessoa muito bem relacionada,
tendo uma rede relacional que além do próprio governador D. Pedro de Almeida e
Portugal, ainda contava com comerciantes como Domingos Rodrigues Cobra e Manoel do
Rego Tinoco – que tinha uma venda em Vila do Carmo.
Ao entrar com o processo de inventário sua mulher Dona Ana Garcês de Morais,
Paulo Rodrigues Durão era uma das pessoas mais ricas das Minas com 53:196$265.
Segundo Simone Cristina de Faria, dentre os cobradores de Vila do Carmo, somente
Francisco Ferreira de Sáa com 58:882$767 tinha montante mor maior que Paulo Rodrigues
no momento de sua morte. Os pedidos de missas em seu nome contam o total de 200 nas
Minas, 900 no Rio de Janeiro e 200 em Portugal. O número elevado no Rio de Janeiro
demonstra que Paulo Rodrigues Durão tinha uma rede clientelar considerável ligada aquela
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
276
praça, e em seu testamento encontramos os nomes de Francisco da Silva Valle e o Doutor
Antônio de Almeida Viera, moradores do Rio de Janeiro.
Em Portugal encontramos os nomes dos doutores Alexandre Rodrigues de Souza e
Manoel Salgado de Araújo, para o Porto o Reverendo André Gomes Ribeiro. Na Bahia os
doutores Cristovão de Magalhães Pinto e João Vieira Macedo, além do Guarda-Menor da
Relação Miguel Pires de Lemos.
Potentados como Paulo Rodrigues Durão nos mostra as formas de enriquecimento
nas Minas, bem como a trajetória em busca de um enobrecimento de seu nome diante do
rei e de seus iguais. Reafirma o sistema clientelar do dom com as três obrigações: dar,
receber e retribuir que liga qualquer rede, desde a mais alta na Corte até a mais baixa entre
escravos. A busca pelas graças e mercês como os postos de militares e a conceição de
sesmarias, e a busca de enobrecimento como os ofícios camarários, além da demonstração
de lealdade ao rei ao auxiliar os agentes régios na conservação da ordem nas Minas,
fazendo deste potentado um exemplo de vassalo no Antigo Regime.
Referências Bibliográficas
BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário Histórico Geográfico de Minas Gerais. Belo
Horizonte: Ed. Itatiaia, 1995.
FARIA, Simone Cristina de. Os “homens do ouro”: perfil, atuações e redes dos Cobradores
dos Quintos Reais em Mariana Setecentista. Rio de Janeiro: UFRJ, PPGHIS, 2010. Dissertação
(Mestrado) – UFRJ/IFCS/ Programa de Pós-Graduação em História Social.
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil:
século XVI, XVII e XVIII. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1989.
KELMER-MATHIAS, Carlos Leonardo. No exercício de atividades comerciais, na busca da
governabilidade: D. Pedro de Almeida e sua rede de potentados nas minas do ouro durante
as duas primeiras décadas do século XVIII.___ In: Conquistadores e negociantes: Histórias de elites no
Antigo Regime nos trópicos. América lusa, Séculos XVI a XVIII. João Luís Ribeiro Fragoso, Carla Maria
Carvalho de Almeida, Antonio Carlos Jucá de Sampaio (organizadores). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007.
VASCONCELOS, Diogo de. História antiga de Minas Gerais. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia,
1999.
Revista do Arquivo Público Mineiro. Ano 1, vol.IV, 1899: 101.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
277
Categorias, anúncios e imagens: o negro no Brasil ao final dos oitocentos
Luiz Gustavo Vieira Santos
Mestrando em História do Direito pela USP/Bolsista FAPESP
luiz.vieirasantos@gmail.com
Resumo: Este trabalho busca demonstrar as possibilidades de construção da imagem do
negro, no Brasil, ao final da escravidão, e tem como objeto central a análise de anúncios
diversos inseridos no periódico Gazeta de Notícias dos meses de abril e maio de 1888 e fotos
que retrataram a época. É exposto o conceito de categoria e, após a identificação de
múltiplas categorias por meio de fotos e anúncios, são analisadas como parte de um enredo
social em mutação.
Palavras-chave: categorias; anúncios; abolição
Introdução
Anúncios de jornais, aliás, o periódico como um todo, e fotografias são fontes que
carregam construções imagéticas. Assim, o intuito deste este estudo é buscar identificar
essas construções e, ao final, pensar o papel das categorias nelas presentes como atores em
cena de uma luta social. Busca-se, enfim, as imagens e categorias representantes do
afrodescendente, no Brasil, ao final da escravidão, tendo como objeto central a análise de
anúncios diversos inseridos no periódico Gazeta de Notícias dos meses de abril e maio de
1888 e fotos que retrataram a época.
O recorte da fonte citada dá-se em virtude de trabalho iniciado pelo pesquisador,
concernente na demonstração da cultura jurídica abolicionista a partir de diferentes falas,
mormente, pelo entrecruzamento das notícias e anúncios exibidos no periódico, com nove
crônicas abolicionistas da série Bons Dias!,de Machado de Assis, publicada naquela gazeta.
Justifica-se, assim, a importância de estudo sistemático e crítico a respeito dos anúncios e
das categorias neles empregados para dar efetivo prosseguimento à pesquisa.
Como ponto de partida para a análise proposta, tem-se o artigo Categorias. Uma
reflexão sobre a prática de classificar, de Antônio Manuel Hespanha, em que o historiador reflete
o uso das categorias como portadoras de sentidos preterintencionais. A partir das
considerações feitas por Hespanha, toma-se, como referencia para este sucinto estudo, os
trabalhos de Hebe Mattos (sobretudo, Das Cores do Silêncio); Ana Maria Mauad
(especialmente, As fronteiras da cor: imagem e representação social na sociedade escravista imperial) e
Lilia Schwarcz (Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
278
XIX); e, ainda, por ter sido pioneiro no Brasil, Gilberto Freyre (com seu estudo O Escravo
nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX).
Essas obras são resenhadas com o fito de rever ou reafirmar alguns pontos da
análise sobre o tema; sem apresentar conclusões, apenas para alargar o debate e dar
subsídios à interação entre os anúncios e as crônicas de Machado de Assis, para, enfim,
poder ser esboçada a cultura jurídica da época.
1 Categorias
António Manuel Hespanha elucida, em artigo intitulado Categorias. Uma reflexão sobre a
prática de classificar, a existência de sentidos preterintencionais em determinados conceitos,
chamando-os categorias264. Faz essa distinção para demonstrar que (embora haja um embate
com aqueles resistentes a tipos de história que não a social) há autonomia na história dos
discursos, sendo esses considerados arenas de lutas sociais e, portanto, carregados desses
diferentes sentidos.
Aponta que “Realmente, muitos nomes não são apenas nomes. ‘Intelectual’,
‘burguês’, ‘proletário’, [...], são, além de sons e letras, estatutos sociais pelos quais se luta
para entrar neles ou para sair deles.” (HESPANHA, 2003: 827). Há, dessa forma, a
possibilidade de se mensurar representações, identificações ou renúncias de determinados
segmentos ou condições diante dos nomes que lhes são atribuídos265.
A partir da consideração supra, e dando continuidade ao rol apresentado (certamente
não é exaustivo), pode-se entender como objeto de análise da história do discurso o
conceito de negro, ou melhor, as várias categorias e seus diferentes sentidos de acordo como
contexto sob pesquisa, qual seja, a escravidão e sua abolição, ao final do século XIX no
Brasil: negro, preto, pardo etc. Assim, tem-se a possibilidade de classificar o indivíduo (no
caso, afrodescendente) e lhe marcar a posição social (jurídica e política).
Aceita a questão de categorias como múltiplos sentidos para designação de um ser,
passa-se à utilização dessa gama nos embates sociais, a partir dos discursos conformados
por vértices distintos.
264 “Existe, no entanto, uma segunda espécie de indisponibilidade: a dos conceitos tão carregados de sentido
que este sentido (positivo ou negativo) sobreinveste o sentido dos utilizadores. As categorias dizem mais do
que se quer, têm sentidos preterintencionais.” (HESPANHA, 2003: 826)
265 “Daí que, por outro lado, classificar alguém era marcar a sua posição jurídica e política. A mobilidade de
estatuto que então existia era não era tanto uma mobilidade social, nos termos em que hoje a entendemos [...],
era antes, e sobretudo, uma mobilidade onomástica ou taxinómica – conseguir mudar de nome, conseguir
mudar de designação, de categoria (discursiva), de estado [...].” (HESPANHA, 2003: 827).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
279
Nesse sentido, Hespanha apoia-se em Reinhart Koselleck para tratar da lógica interna
de cada discurso, já que “seus argumentos existem previamente nas memórias tópicas – no
senso comum – de uma cultura local” (HESPANHA, 2003: 829), ou seja, os argumentos
estão indisponibilizados, o que autoriza uma autônoma história das categorias e dos
discursos266, já que esses estariam, coerentemente, dentro de um espaço limitado de
variação e incerteza, provenientes de “práticas de discurso, em que, seguramente, há
sujeitos que falam e que escutam, mas em que uns e outros falam e escutam em lugares e
com meios sobre os quais não dispõem de um poder de conformação” (HESPANHA,
2003: 831).
No entanto, o historiador titubeia quanto à possibilidade de se chegar aos “universos
categoriais dadores de sentido” (HESPANHA, 2003: 838), já que admite desconhecer
método que garanta o desvelar do sentido apenas a partir da redução do macro para o
micro, ou seja, de categorias para práticas, de estruturas para indivíduos. Neste ponto, o
trabalho que se apresenta busca, por meio de análise de um periódico (anúncios, notícias e
demais informações contidas no suporte) e de fotografias de negros à época da abolição,
além de arrimo na literatura selecionada, demonstrar como se dão sentidos às categorias.
Não se deixa, todavia, de registrar o cuidado com que Hespanha encerrou o artigo que
serviu de fagulha para este estudo, ao discorrer sobre os interesses que cercam a dação de
sentidos às categorias:
Interesses são também, claramente, representações, neste caso acerca das
vantagens (ou inconvenientes) do alargamento do universo político a certas
categorias de pessoas. Mas, ao estudarmos estes interesses, não estamos a tocar
numa realidade bruta (isto é, não mediatizada por representações). Pelo
contrário, estamos em pleno mundo das imagens e de representações acerca de
categorias de pessoas e acerca de vantagens e desvantagens políticas.
Identificamos mulheres, dementes, falidos, loucos, menores, a partir de imagens
(dos esquemas de percepção) que aplicamos à realidade contínua do universo
dos nossos parceiros sociais. Atribuímos ou não vantagens à sua participação
política em função de imagens sobre as suas qualidades, sobre a ordem política,
sobre as nossas qualidades e, finalmente, sobre o que nos convém da ordem
política. (HESPANHA, 2003: 840).
Assim, este trabalho pretende, exatamente a partir das fontes secundárias que tanto
discorrem sobre o tema do escravo, do negro etc., no Brasil oitocentista, e da interação de
imagens múltiplas construídas em torno de diferentes categorias, compará-las, com o fito
266
“Na verdade, ele [Koselleck] sublinha o modo como o discurso conforma a própria vida: ao predeterminar
a sua apreensão (experiência).” (HESPANHA, 2003: 830)
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
280
de lhes atribuir sentido da forma mais legítima, mesmo que isso, em termos ideais, não seja
plenamente possível.
2Representações diversas: anúncios e fotografias
Discorrido acerca do que são categorias e como são utilizadas na conformação da
história do discurso, o que possibilita a estruturação de palcos de lutas sociais, bem como
tendo sido apontada, por António Manuel Hespanha, a ausência de um método capaz de
revelar sentidos a partir da decantação de uma representação, este trabalho passa a
explorar, inicialmente pautado em obra de Gilberto Freyre, a possibilidade de constituição
de uma história social a partir de anúncios de jornais. Em seguida, são trazidas as leituras de
Ana Maria Mauad e Lilia Schwarz acerca dessa possibilidade, bem como sobre a
representação dos negros em imagens fotográficas; concomitante a esses últimos pontos, é
apresentado o levantamento feito na fonte utilizada para este estudo. Ao final, tem-se a
exposição do trabalho de Hebe Mattos, pelo qual se faz uma análise crítica das categorias
presentes no levantamento realizado.
2.1 Anúncios
Este ponto inicia-se com a obra que foi pioneira267, no Brasil, no sentido de analisar
anúncios de jornais como fontes históricas, mormente para o estudo da escravidão. Assim,
é a partir de O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX, ensaio originado de
conferência feita na década de 1930 por Freyre, que se demonstra a possibilidade de
encontrar História em anúncios, textos e imagens de periódicos: uma anunciologia
(FREYRE, 2010: 127), muito embora o intuito de Freyre fosse mais de cunho
267 Na apresentação da obra de Freyre, Alberto da Costa e Silva registra que destaca “as datas para ressaltar o
caráter pioneiro desses ensaios de Gilberto Freyre. Ainda que Joaquim Nabuco, numa página de O
abolicionismo, se tivesse servido dos anúncios de escravos nos jornais para atacar o regime escravista, ninguém,
no Brasil, havia, até então, sobre eles se debruçado como fonte histórica.” (COSTA e SILVA, 2010: 11).
Imagina-se que Costa e Silva refere-se às páginas 87-88 de Nabuco: “Quem chega ao Brasil e abre um dos
nossos jornais encontra logo uma fotografia da escravidão atual, mais verdadeira do que qualquer pintura. Se
o Brasil fosse destruído por um cataclisma, um só número, ao acaso, de qualquer dos grandes órgãos da
imprensa, bastaria para conservar sempre as feições e os caracteres da escravidão, tal qual existe em nosso
tempo. Não seriam precisos outros documentos para o historiador restaurá-la em toda a sua estrutura e
seguí-la em todas as suas influências.” E, ainda: “Anúncios de compra, venda e aluguel de escravos, em que
sempre figuram as palavras mucama, moleque, bonita, rapaz pardinho, rapariga de casa de família (as
mulheres livres anunciavam-se como senhoras a fim de melhor se diferenciarem das escravas) [...] anúncios de
negros fugidos acompanhados em muitos jornais da conhecida vinheta do negro descalço com a trouxa ao
ombro, nos quais os escravos são descritos muitas vezes pelos sinais de castigos que sofrem [...] realmente
não há documento antigo, preservado nos papiros antigos ou, em caracteres góticos, nos pergaminhos da
Idade Média, em que se revele uma ordem social mais afastada da civilização moderna...” (NABUCO, 2003:
87-88).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
281
antropológico, para identificar características que levassem às origens dos escravos e
também das doenças que portaram.
Posteriormente, será apresentado levantamento realizado junto à fonte eleita neste
estudo para então se cuidar de categorizar e problematizar as representações encontradas,
com apoio no restante da bibliografia levantada.
São vários os argumentos utilizados por Freyre para utilização da anunciologia: além de
defender a leitura dos periódicos como ponto de contato com uma multidão de anônimos
(FREYRE, 2010: 70), o que nos é de suma importância, haja vista a concentração da análise
historiográfica sobre obras consideradas maiores; defende tratar-se a história econômica do
país, até a abolição, a história do trabalhador negro (FREYRE, 2010: 88), o que seria
possível analisar pelos anúncios de compra, venda, locação etc. E o que reflete,
diretamente, na estipulação de categorias; fala ainda de “surpresas e indiscrições diretas”
por meio de anúncios e notícias, geralmente a pedido, fora da parte editorial, que contêm
fatos constrangedores, inclusive com citação de nomes, provando-os (FREYRE, 2010: 93).
Freyre também considera os anúncios como matéria ainda virgem (claro, à época que
realizou seu estudo) até cunhá-los de “nossos primeiros clássicos [...]. Principalmente os
anúncios relativos a escravos – que são os mais francos, os mais cheios de vida, os mais
ricos de expressão brasileira.” (FREYRE, 2010: 84). E certamente o foram. Freyre traz
inúmeros exemplos, dos quais se destacam268 alguns para, posteriormente, contrapô-los à
fonte utilizada nesta pesquisa.
Em verdade, os anúncios colacionados aqui são de período relativamente afastado da
abolição, portanto, são mais expressivos do que os que encontramos na fonte eleita, a qual,
268“PROTESTA-SE
com todo rigor das leis contra quem tiver dado, e der coito a escrava do abaixo
assignado, fugida de seo poder na freguezia do Queimado desde 7 de fevereiro do corrente anno: e gratificase, conforme a trabalho de captura, á quem a prender, e levar ao dito seo senhor ali, ou mete-la nas cadêas da
capital. Essa escrava chama-se Roza, He parda, magra, baixa, anda sempre de vestido, porque foi creada no
mimo, tem cabello de pico, um tanto estirado hoje á força de pentes, cose de grosso, e He boa rendeira.
Levou uma filha de sua cor, que terá pouco mais de anno de idade.
O padre Duarte” (FREYRE, 2010: 85)
“ – Vende-se um mulato de 22 annos de idade, bom alfaiate, e bom boleeiro, e um negro também do mesma
idade, e uma negra de meia idade, que cozinha muito bem, e coze, de muito boa conducta, e outra negra de
22 annos, que cozinha muito bem: na rua do Livramento n. 4.” (FREYRE, 2010: 85)
“Compras: AVISO.
Precisa-se comprar uma mulata moça que seja perfeitamente costureira de agulha e tesoura, paga-se bem
agradando as suas qualidades: na rua do Trapiche, recife, n. 40, se dirá quem a pretende.” (FREYRE, 2010:
91)
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
282
por ser de mês imediatamente anterior à reforma servil, não registra tantos anúncios de
escravos. Freyre faz a ressalva269 na mesma direção:
Os negros fugidos foram [...] escondendo-se nos cantos das páginas, [...]
perdendo seu antigo luxo de pormenores, [...]. Era a abolição que se
aproximava. Jornais que aderiram ao movimento emancipador e por
escrúpulos, até então desconhecidos, de dignidade jornalística, recusavam-se a
publicar anúncios de compra e venda de gente e sobretudo fuga ou
desaparecimento de escravos. (FREYRE, 2010: 95).
Conclui-se, assim, pela imprescindibilidade do uso da matéria jornalística, sobretudo
seus anúncios, para o estudo da formação social do país, sem, no entanto (retomando o
cuidado pregado por Hespanha), tomar o periódico como portador de uma verdade
absoluta, reflexo da sociedade, mas como um espectro construído por determinado
segmento dominante. Em síntese, de acordo com Lilia Moritz Schwarcz, em quem nos
baseamos para dar continuidade a este estudo:
a nossa postura diante dos jornais será a de apreendê-los não enquanto
‘expressão verdadeira’ de uma época, ou como um veículo imparcial de
‘transmissão de informações’, mas antes como uma das maneiras como
segmentos localizados e relevantes da sociedade produziam, refletiam e
representavam percepções e valores da época. (Schwarcz, 1987: 17).
A partir da leitura de anúncios de locação do trabalho pessoal ou em busca dele, bem
como de notícias sobre libertações e outras em que aparecem escravos – o que foi muito
comum em período imediatamente anterior à emancipação do negro – este trabalho
sistematiza a aparição da figura afrodescendente na fonte escolhida270.
A leitura dos periódicos revelam, como expõe Ana Maria Mauad, “hábitos e
costumes nada modernos e bem próprios da sociedade escravista – os anúncios de venda,
aluguel e serviços de escravos.” (Mauad, 2000: 89), mas nem sempre com transparência, já
que, enquanto notícias sobre escravos e um anúncio de locação (busca ou oferta) da mãode-obra parecem bastante realistas para a época, não o são os cínicos anúncios – a pedido –
de libertações, algumas em massa, seguidas de festejos pelos proprietários benfeitores, que
teriam se adiantado (alguns dias!) à lei abolicionista271.
269
Ressalva, quanto às categorias, confirmada por Mattos, para o período pós-abolição: “após a extinção do
cativeiro, num quadro conturbado pelas instabilidades políticas da República nascente, libertos e ex-senhores
já não mais frequentavam com a mesma assiduidade as páginas dos jornais.” (MATTOS, 1998: 291).
270 A leitura dos jornais, disponibilizados na Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro – RJ) e no Arquivo Edgard
Lauenroth (Unicamp – Campinas –SP) foi concluída com as marcações necessárias para a pesquisa de
mestrado desenvolvida desde o início do ano, no entanto, a sistematização dos dados é parcial até o
momento, razão pela qual é apresentada de maneira bastante simples e resumida neste trabalho.
271 Neste ponto, podemos trazer entendimento de Freyre: “As alforrias, no Brasil patriarcal e escravocrático,
tendo sido numerosas – como comemorações, em fámília, várias delas, de nascimentos, batizados,
casamentos, sucessos patriarcais dessa espécie – , contam como aberturas a uma ascensão sócio-econômica
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
283
O dado apresentado é de suma importância para a pesquisa de mestrado em
andamento: a crônica de Machado de Assis, do dia 19 de maio de 1888, sobre o escravo
Pancrácio, por exemplo, foi baseada nesse tipo de anúncio citado, de senhores que teriam
se adiantado à lei emancipadora, recebendo glórias e dando continuidade à subordinação
do trabalhador negro. Em outras crônicas, como as dos dias 27 de abril e 11 de maio,
também há referencia aos anúncios e notícias do periódico.
O curioso é que, mesmo depois de publicada a notícia sobre a preparação da “Falla
do Throno” a respeito da abolição, em 29 de abril de 1888, o jornal continuou anunciando
as libertações em massa. O cinismo continua mesmo depois da referida fala e da aprovação
pela Câmara e, ainda, após declarada a abolição. Confiram-se alguns desses anúncios e
notícias272, dos quais os piores são os anúncios, a posteriori, de libertações realizadas,
teoricamente, antes da emancipação273. O jornal inclusive continuou a publicar a sessão
“libertações”.
Machado de Assis também atentou para o fato de “alforrias em massa nos últimos
dias, essas alforrias incondicionais, que vêm cair como estrelas no meio da discussão da
abolição [...]” (Gazeta de Notícias, Bons dias! 11 de maio de 1888) acontecerem em período
imediatamente anterior (e anunciadas até posteriormente!) à Lei, que há pelo menos duas
semanas antes de proclamada já era amplamente debatida.
de afro-negros que, em conjunto, pode-se dizer terem constituído antecipações nada insignificantes ao Treze
de Maio.” (Freyre, 2010: 34).
272 “O Sr. João Baptista Ferreira, lavrador na Vargem Grande de Jacarepaguáa, deu liberdade ao seuúnico
escravo, Justino, preto, de 25 annos de idade.” (Gazeta de Notícias, 13 de abril de 1888)
“Boletim Parlamentar Seguem hoje para Petrópolis, de onde regressarão amanhã, os Srs. Presidente do
Conselho e ministro da agricultura. Vão apresentar à Sua Alteza Imperial a Falla do Throno e a proposta
acerca do elemento servil. Segundo nos consta a proposta contem somente dous artigos. O 2o. É: Revoga-se a
legislação em contrario. Adivinhem agora os dizeres do 1o. Artigo.” (Gazeta de Notícias, 29 de abril de 1888)
“A família Sá Fortes libertou incondicionalmente 700 escravos.” (Gazeta de Notícias, 1o. De maio de 1888)
273 “TELEGRAMAS Volta Grande, 11 O Sr. Pedro Augusto Rodrigues da Costa communicou hoje que a 9
do corrente libertou incondicionalmente 42 escravos e desistiu do serviço de ingênuos, em numero de 23,
marcando salário aos que quisessem continuar na sua fazenda. Todos ficaram.” (Gazeta de Notícias, 12 de maio
de 1888)
“TELEGRAMAS Parahyba do Sul, 11 O tenente-coronel Luiz Carlos Mariano da Silva, hoje, anniversário de
sua esposa, libertou sem condição e com salário 70 escravisados.” (Gazeta de Notícias, 12 de maio de 1888)
“LIBERTAÇÕES O Sr. Barão de Tinguá, importante fazendeiro do município de Iguassú, acaba de libertar
todos os seus escravos, em numero superior a 150, continuando os mesmos na fazenda. Os ex-escravisados
fizeram-lhe estrondosa manifestação.” (Gazeta de Notícias, 12 de maio de 1888)
“AVISOS S. José do Ribeirão José Gothefredo Jordão e sua mulher Francisca Alexandrina Jordão, no dia 15
de abril próximo passado, deram liberdade, incondicional, a seus dous escravos de nomes Libarilino, de 25
annos de idade e Eva de 23 annos.” (Gazeta de Notícias, 19 de maio de 1888)
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
284
Merece atenção também estrondoso anuncio274, o qual não passou despercebido por
Machado de Assis em crônica de três dias depois:
[...] Sim, não se imagina como sou distraído. Para não ir mais longe, ainda
ontem estive a conversar com alguém, sobre estes negócios de abolição e
emancipação. A conversa travou-se a propósito dos vivas ao Partido Liberal,
dados por uns escravos de Cantagalo, no ato de ficarem livres, manifestação
política tão natural, que ainda mais me confirmou na adoção da natureza. E
dei um viva à natureza. [...] (Gazeta de Notícias, Bons Dias! 27 de abril de
1888)
Por fim, a crônica sobre o escravo Pancrácio, que merece ser trazida quase em
totalidade275.
274“LIBERTAÇOES EM CANTAGALO A grande obra civilizadora da abolição despertou os altos
sentimentos patrióticos dos fazendeiros do importante município de Cantagallo, muitos dos quais acabam de
libertar os seus escravisados, provando assim que não é aquele município um bainarte do esclavagismo, como
se dizia.
À frente d’esses dignos cidadãos estão os Srs. Visconde de S. Clemente e visconde de Nova Friburgo, que
incondicionalmente libertaram os seus escravisados, em número de 1909, e desistiram dos serviços dos
ingênuos. Estes illustres fazendeiros marcaram salários aos libertos, para a colheita d’este ano.
Um facto que prova a gratidão dos libertos, deu-se com os da fazenda da Aldeia, de que é proprietário o Sr.
Visconde de Nova Friburgo, esses libertos enviaram uma comissão ao seu generoso ex-senhor, incumbida de
declarar que desistiam dos salários marcados para aproxima
colheita.
Os da fazenda do Gavião, também do Sr. Visconde de Nova Friburgo, com a banda de musica Caliope
Cantagallense à frente, fizeram uma esplêndida manifestação ao seu ex-senhor, esplendida pela gratidão que
elles assim testemunhavam, em nome de todos, declarou um d’elles que jamais abandonariam o seulibertador
e que redobrariam de esforços para servi-lo.
Registrando este facto, dis o Voto Livre, que, entre os vivas erguidos pelos libertos, foram ouvidos estes:
‘Viva o senhor que restituiu a liberdade de Deus nos Deu!’
‘Viva o partido Liberal que ajudou.’” (Gazeta de Notícias, 24 de abril de 1888)
275 Em razão da limitação de espaço, registra-se parte da crônica em nota:
“Bons dias!
Eu pertenço a uma família de profetas après coup, post factum, depois do gato morto, ou como melhor
nome tenha em holandês. Por isso digo, e juro se necessário for, que toda a história desta Lei de 13 de
Maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar
um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era nada; entendi que,
perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar.
[...] No golpe do meio (coup du milieu, mas eu prefiro falar a minha língua), levantei-me eu com a taça de
champanha e declarei que acompanhando as idéias pregadas por Cristo, há dezoito séculos, restituía a
liberdade ao meu escravo Pancrácio; que entendia a que a nação inteira devia acompanhar as mesmas
idéias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os homens não
podiam roubar sem pecado.
Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio abraçar-me os pés. Um dos
meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho) pegou de outra taça, e pediu à ilustre assembléia que
correspondesse ao ato que acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo;
fiz outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos os lenços comovidos
apanharam as lágrimas de admiração. Caí na cadeira e não vi mais nada. De noite, recebi muitos
cartões. Creio que estão pintando o meu retrato, e suponho que a óleo.
No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:
— Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um
ordenado, um ordenado que...
— Oh! meu senhô! fico.
— ... Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste
imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho deste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa
ver; olha, és mais alto quatro dedos...
— Artura não qué dizê nada, não, senhô...
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
285
Portanto, a incongruência da sociedade brasileira, pautada em avanços bastante
duvidosos, já que nunca plenos e sempre carregados de manutenção de um estado de
dominação, é visível na leitura cuidadosa dos jornais da época. Deve-se ter em mente que,
nesta análise, o trabalho coaduna com a exposição feita por Schwarcz: “Através desses
fragmentos de textos de imprensa, desses ‘pedaços de significações’ [...], aqui se busca
reconstituir as visões com que se falou sobre a condição negra.” (Schwarcz, 1987: 15).
Algumas dessas perspectivas estarão presentes também em fotografias da época. Como
poderemos observar a seguir.
Ana Maria Mauad faz cuidadoso estudo do caso, e visa atentar, mais uma vez, às
contradições da época analisada, quando afirma que “Anúncios como este desapareceram
depois da abolição, neste permaneceram a atribuição da cor, mas com a omissão da cor:
‘Aluga-se dous rapazes de cor, um bom chacareiro e um copeiro, ambos de conduta
afiançada e diligentes [...]’ (J.C., 8/10/1888, p.6)” (Mauad, 2000: 95).
Por meio da análise de periódico distinto do utilizado pela pesquisadora e de seu
próprio texto (a historiadora debruçou-se sobre o Jornal do Commercio, este trabalho faz a
leitura da Gazeta de Notícias), confirma-se a presença dos anúncios com a categoria de cor e
outras relativas ao afrodescendente276.
— Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que a galinha enche o seu papo.
Tu vales muito mais que uma galinha.
— Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete.
Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem
as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não
podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor;
eram dois estados naturais, quase divinos.
[...] O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus eleitores, direi
que, antes, muito antes de abolição legal, já eu, em casa, na modéstia da família, libertava um escravo,
ato que comoveu a toda a gente que dele teve notícia; que esse escravo tendo aprendido a ler, escrever
e contar, (simples suposição) é então professor de filosofia no Rio das Cobras; que os homens puros,
grandes e verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela,
dizendo ao escravo: és livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e
incapazes de restaurar a justiça na terra, para satisfação do Céu.
Boas noites.”(Gazeta de Notícias, 19 de maio de 1888)
276“ALUGA-SE um preto muito próprio para servente de chácara, na rua Souza Franco, n. 2 A, Villa Isabel”
(Gazeta de Notícias, 10 de abril de 1888)
“PRECISA-SE de pretos velhos, bons vendedores de quitanda, na rua S. Luiz Gonzaga, n. 237.” (Gazeta de
Notícias, 13 de abril de 1888)
“ALUGA-SE uma criada livre, para lavar e engomar, afiançada, na rua da Colina, n. 6, por detraz da igreja
Estácio de Sá.” (Gazeta de Notícias, 17 de abril de 1888)
“ALUGA-SE uma boa escrava preta para lavar e engomar e cuidar da casa, não tem vicio algum e garante-se
na rua Victor Meirelles n. 2, estação Riachuelo.” (Gazeta de Notícias, 20 de abril de 1888)
“PRECISA-SE de uma criada de cor ou branca, de meia idade, para cozinhar e maisserviços de uma pequena
família, na rua do Sacramento n. 20” (Gazeta de Notícias, 23 de abril de 1888)
“PRECISA-SE de uma criada, branca ou de cor, na rua da Assembléia n. 12, sobrado.” (Gazeta de Notícias, 24
de abril de 1888)
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
286
Apontam-se, sucintamente, os dados277 recolhidos da fonte:
Anúncios contendo a fórmula “precisa-se
1ª Quinzena
2ª Quinzena
1ª Quinzena
de abril
de abril
de maio
278
310
429
6
5
10
8
15
14
3
4
8
15
6
8
4
6
8
3
31
8
13
40
34
de” / “aluga-se”
Anúncios contendo a fórmula “precisa-se
de” / “aluga-se” + referência a “de cor”
Anúncios contendo a fórmula “precisa-se
de” / “aluga-se” + referência a “de qualquer
cor” / “branco ou negro”
Anúncios contendo a fórmula “precisa-se
de” / “aluga-se” + referência à cor branca
Anúncios contendo a fórmula “precisa-se
de” / “aluga-se” + referência à cor negra
Anúncios contendo a fórmula “precisa-se
de” / “aluga-se” + outra especificidade 278
Anúncios referentes à concessão de
liberdade279
Anúncios inseridos na secção
“Libertações”280
“PRECISA-SE de um pequeno ou preto velho que dê fiança de sua conducta para vender doce, na rua
João Pereira n. 3.” (Gazeta de Notícias, 25 de abril de 1888)
277 O intuito do trabalho, em verdade, a partir da análise dos dados, era tecer algumas considerações sobre o
cinismo dos senhores, que aumentaram os anúncios de libertações com a iminência da Lei; e sobre a
quantidade de referências à cor presente nos anúncios de locação de trabalho (imaginamos que, com a
libertação, aumentou-se a procura pelo elemento negro; por outro lado, passam a constar outras
especificidades – branco, estrangeiro etc. – exatamente para excluir a massa de ex-escravos que buscava
trabalho).
278 Com “outra especificidade”, encontram-se anúncios contendo “portuguesa”; “francesa”; “livre ou não”;
“idosa”; “pardinho” etc.
279 Mesmo após a Lei Áurea, houve ainda anúncios desse tipo, no entanto, com data de concessão de
liberdade pretérita.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
287
2.2 Fotografias: retrato de quem?
Conforme expõe Mauad, a fotografia assistiu a intenso desenvolvimento no final do
século XIX, ao passar por um processo de popularização depois da redução do formato
para carte-de-visite. No entanto, é questionável essa dita popularização, uma vez que a
burguesia era a principal clientela do produto fotográfico, “Uma clientela enriquecida pela
disputa colonial e pelos contratos financeiros, mas alijada da ‘boa sociedade’[...]. Para este
público, a fotografia reordena as possibilidades de auto-representação.” (Mauad, 2000: 85).
Assim, se a fotografia consegue elevar, em termos de representação, uma categoria
que, embora não nobre, já é detentora de poder (pelo menos econômico nessa época) e sua
principal cliente; cogita-se muito poder fazer pelo negro – mas de maneira efetiva
socialmente ou apenas construindo uma alteridade?
A figura do negro passa a participar desse registro, o que nos leva novamente a uma
questão: de quem eram aqueles retratos? A indagação parte da análise do seguinte
fragmento: “O sucesso do retrato carte-de-visite deve-se justamente a capacidade de adaptar o
cliente à moldes pré-estabelecidos [...] para caracterizar diferentes papéis sociais que se quer
fabricar.” (Mauad, 2000: 85; sic).
A possibilidade da presença da figura negra nas fotografias não significa alguma
forma de democratização do acesso ao suporte, haja vista que, embora existam fotos
encomendas por/de negros, “o fotógrafo cria um padrão de representação que apaga o
indivíduo em prol de um estereótipo social.” (Mauad, 2000: 86), além de ter participado de
montagens fotográficas como figura periférica (ou marcadamente subordinada ou
diminuída em relação ao elemento branco na imagem).
Mauad explora a fotografia da época como produção de uma alteridade a ser
documentada e legada à posteridade, já que foi produzida
uma variada coleção de carte-de-visite, onde os escravos apareciam em atividades
quotidianas, encenadas no estúdio do fotógrafo, em outras posavam em trajes
bem cuidados, as mulheres com turbantes e os homens de terno, mas todos
sempre descalços. A escravidão era delineada, neste caso, pela estética do
exótico. (MAUAD, 2000: 90).
E, nesse sentido, lança-se um desafio ao historiador: “como chegar ao que não foi
imediatamente revelado pelo olhar fotográfico? Como ultrapassar a superfície da
mensagem fotográfica e, do mesmo modo que Alice nos espelhos, ver através da imagem?”
(Mauad, 1996: 5).
280
Tanto para anúncios de concessão de liberdade, quanto para a coluna “libertações”, foram contabilizados
não o número de aparições no jornal, mas o número de anúncios inseridos nessas categorias.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
288
No caso da descrição feita por Mauad, a própria categorização da figura negra pode
auxiliar nas respostas: o modo de vestir e de se portar será, algumas vezes, reflexo da
categoria a qual pertence; outras, a produção de uma alteridade. Fala-se, assim, de alteridade
e construção de uma imagem representativa de uma categoria específica, ponto pelo qual se
faz a ponte com a última sessão deste estudo.
Para fechar o ponto, são narradas três tipos de imagens fotográficas: (a) o negro
como figura periférica ou diminuída na montagem (demarcando, pois, seu papel mais
generalizado na organização da época: presente, mas à margem); (b) o negro como
representação da subordinação e do trabalho servil (quando encontra eco nos anúncios
encontrados no periódico analisado); e (c) a alteridade na construção da imagem do negro
(demonstrando, assim, a fabricação de um estereótipo alheio – ou bastante minoritário – à
população negra, pelo menos escravos e negros pobres).
3 Imagens múltiplas
Arrematam-se as leituras de Mauad, Schwarcz e do levantamento feito junto à fonte
para ser retomada a questão da categoria, como carregada de sentido questionável pelo
modo como é reproduzida, ou seja, externada em imagem. Assim, a obra de Hebe Mattos
fecha o trabalho para apontar quais eram as categorias presentes nos anúncios pesquisados,
à época da abolição, no jornal Gazeta de Notícias.
Da análise das fotografias e dos anúncios perquiridos, em consonância com a
literatura que deu suporte ao trabalho, temos que “todo documento é monumento, se a
fotografia informa, ela também conforma uma determinada visão de mundo.” (Mauad,
1996:8), bem como podemos concordar que “Não importa se a imagem mente; o
importante é saber porque mentiu e como mentiu.” (Mauad, 1996: 15), o que nos leva a
questionar a ideia de perpetuação da subordinação do negro ao domínio do senhor branco
ao mesmo tempo em que se tenta construir uma imagem-alteridade do elemento servil,
resultando num visual exótico.
Assim, tomamos por imagem tanto a fotografia da época, quanto a narrativa presente
no periódico. Dessa forma, reafirmamos as palavras da pesquisadora:
Os dois tipos de textos – anúncios e fotografias – veiculam imagens
diferenciadas sobre a condição de ser escravo e ex-escravo no Brasil
oitocentista. A fotografia [...] produz uma representação das relações sociais que
valoriza a convivência pacífica ao invés de uma conflituosa. Os anúncios, por
sua vez, denotam um outro tipo de representação, baseada na lógica da
mercantilização e valorização dos atributos da aparência do produto, própria à
publicidade da época. (Mauad, 2000: 97).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
289
Em relação aos anúncios, a breve pesquisa realizada com o Gazeta de Notícias
confirma a tese de Mauad de que “Por oposição às imagens visuais, a descrição do escravo
imputa ao negro e tipologiza seus atributos, criando uma representação que descaracteriza a
pessoa e sua humanidade ao valorizar o seu caráter de mercadoria e de trabalho
potencializado.” (Mauad, 2000: 95).
Ratifica-se também, através de anúncios a pedido e notícias de libertações, a ideia
pregada por Schwarcz de que, nessas publicações, “o tom era sempre o mesmo: a libertação
era uma concessão do proprietário branco aos seus escravos, que em troca deviam
fidelidade” (Schwarcz, 1987: 200). Não se vê, portanto, paralelos ideais entre as imagens
textuais e fotográficas, no entanto, vislumbra-se paralelo entre a condição de parcela dos
negros do país, à época da abolição, e as imagens construídas. Isso porque, veremos a
seguir, o afrodescendente também teve sua imagem construída a partir das categorias em
que se encontrava, ou que queria se encontrar.
Conclusão: categorias na construção de imagens múltiplas
Arremata-se este trabalho com a tentativa de exposição crítica das categorias que
foram encontradas na fonte pesquisada, o que se faz a partir da obra de Hebe Mattos, já
que a historiadora propõe “explorar os significados da liberdade” uma vez que “O silêncio
sobre a cor, que antecede o fim da escravidão, sem dúvida está relacionado a este
significado, assim como sua generalização sugere que, por trás dele, se encontra mais que
uma ideologia do branqueamento, construída e imposta de cima para baixo” (MATTOS,
1998: 19). Cabe, pois, o paralelo com este estudo, já que os anúncios encontrados, bem
como as fotografias analisadas, nem sempre trouxeram de forma expressa a colocação do
negro na sociedade, criando uma alteridade, um branqueamento ou um silêncio a serem
desvendados.
A pesquisa de Mattos pautou-se, sobretudo, na análise de ações de liberdade e
inventários do século XIX, em que a historiadora procurou referência a cores, assim como
traduziu a ausência delas como um silêncio eloquente, no sentido de busca por
transformação de status social. Dessa forma, seu trabalho é aqui interessante para auxiliar na
categorização das imagens encontradas nos anúncios e fotos analisados. São fontes
diferentes, sendo os processos judiciais materiais ricos em enredo que muito contribui para
o desvelar de uma época, o que não ocorre de imediato por meio do estudo de imagens.
No entanto, é crível a ponte que se faz entre os trabalhos.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
290
De início, registra-se a diferenciação exposta, pela autora, entre pardos, negros, pretos e
crioulos: o primeiro281 como categoria geral para o não-branco, afrodescendente, livre; crioulo
para escravos e forros brasileiros; preto para escravos e forros africanos; enquanto
negrocarregava componente racial, mormente em registros de censos282, para população livre
(MATTOS, 1998: 30).
A pesquisadora aponta que não se tratava apenas de uma ideologia do
branqueamento, mas de necessária busca por refutação de um “estigma de cativeiro” e
consequente busca por direitos de cidadãos. Assim, deixar de ser liberto para obter cidadania
assemelhou-se ao silêncio quanto às cores negro, preto e crioulo, antes sinônimas da
escravidão283, o que ocorreu não apenas em nível individual, mas de forma genérica
(refutando, pois, a ideologia do branqueamento na auto-identificação), demonstrando a
percepção de luta por colocação na sociedade284.
Da leitura do jornal e da análise das fotografias, em consonância com a tese de
Mattos, tem-se que o silêncio quanto às cores foi procedente no sentido de inserção social
e não de uma ideologia do branqueamento. A expressa alusão ao preto, ao pardo, ao negro etc.
nos anúncios, assim como os diferentes portes encontrados nas imagens fotográficas,
demonstra a existência da estratificação e do tratamento diverso existente na sociedade
escravista. No entanto, a ausência da especificação ou criação de alteridade não registra a
ausência material do ser, mas a busca por uma nova colocação, mais cidadã.
A conclusão, portanto é de que: “Negar-se como negro (liberto) significou,
fundamentalmente, rejeitar que o estigma da escravidão fosse transformado em estigma
281
“Desta forma, o qualificativo ‘pardo’ sintetizava, como nenhum outro, a conjunção entre classificação
racial e social no mundo escravista. Para tornarem-se simplesmente ‘pardos’, os homens livres descendentes
de africanos dependiam de um reconhecimento social de sua condição de livres, construído com base nas
relações pessoais e comunitárias que estabeleciam.” (MATTOS, 1998: 30)
282“A referência à cor, na qualificação de testemunhas livres, a partir da segunda metade do século, acontece
apenas como uma referência negativa. Em geral, calava-se sobre o item cor [...]. Tenho trabalhado com a
hipótese de que, quando a cor era mencionada por obrigatoriedade (como no caso dos censos e, depois, dos
registros civis), durante o século XIX, isto ainda se fazia majoritariamente como referência à condição cativa,
presente e pretérita, e à marca que esta impunha à descendência.” (MATTOS, 1998: 98); e“O crescente
processo de indiferenciação entre brancos pobres e negros e mestiços livres teria levado, por motivos
opostos, à perda da cor de ambos. Não se trata necessariamente de branqueamento. Na maioria dos casos,
trata-se simplesmente de silêncio. O sumiço da cor referencia-se, antes, a uma crescente absorção de negros e
mestiços no mundo dos livres, que não é mais monopólio dos brancos, mesmo que o qualificativo ‘negro’
continue sinônimo de escravo [...].” (MATTOS, 1998: 99)
283“Perder o estigma do cativeiro era deixar de ser reconhecido não só como liberto (categoria
necessariamente provisória), mas como ‘preto’ ou ‘negro’, até então sinônimos de escravo ou ex-escravo e,
portanto, referentes ao seu caráter de não-cidadãos.” (MATTOS, 1998: 284).
284“A ilusão historiográfica da marginalização e ‘anomia’ dos libertos se fez, em grande parte, porque a
maioria deles conseguiu, em poucos anos, recursos sociais suficientes para não mais ser atingida pelo estigma
da escravidão.” (MATTOS, 1998: 349).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
291
racial para mantê-los ‘libertos’, ao invés de livres.” (MATTOS, 1998: 361). Assim, parte da
população descategorizou-se para ser recebida sem a mácula da escravidão, permanecendo
com sua caracterização “racial”.
Bibliografia
Fontes primárias:
Gazeta de Notícias. Abril e Maio de 1888. Rio de Janeiro: 1888.
FERREZ, Gilberto. A fotografia no Brasil: 1840-1900. Rio de janeiro: FUNARTE, 1985.
KOSSOY, B. e CARNEIRO, M.I.T. O Olhar Europeu: o negro na iconografia brasileira do
século XIX. São Paulo: EdUSP, 1994.
LAGO, Pedro e Bia Corrêa do. Coleção Princesa Isabel. Fotografia do século XIX. Rio de
Janeiro: Capivara, 2008.
GOULART, Paulo Cesar Alves; MENDES, Ricardo. Noticiário Geral da Photographia
Paulistana 1839-1900. São Paulo: Imprensa Oficial, 2010.
Fontes secundárias:
CARVALHO, José Murilo. “Imagens da Abolição” In Revista de História da Biblioteca
Nacional. Ano 6, n° 68, Maio de 2011. Rio de Janeiro, 2011, pp. 34-39.
FREYRE, Gilberto. O escravo em anúncios de jornais brasileiros do século XIX. São Paulo:
Global, 2010.
HESPANHA, A. Manuel. “Categorias. Uma reflexão sobre a prática de classificar” In Análise
Social, vol. XXXVIII (168), 2003,pp. 823-840.
MATTOS, Hebe. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2004
______. Das Cores do Silêncio: Os significados da liberdade no sudeste escravista - Brasil,
Séc. XIX. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
______. “Raça e cidadania no crepúsculo da modernidade escravista no Brasil” In GRINBERG,
Keila e SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil Imperial – Vol. III – 1870-1889. Rio de Janeiro:
Civilização brasileira, 2009, p. 15-38.
MAUAD, Ana Maria.Sob o signo da imagem: a produção da fotografia e o controle dos
códigos de representação social, na cidade do Rio de Janeiro na primeira metade do século
XX. Tese programa de pós-graduação em História Social da Universidade Federal Fluminense,
1990.
______. “Através da imagem: fotografia e história interfaces” In Tempo, v. 1, n. 2. Rio de Janeiro:
UFF, 1996, pp. 73-98.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
292
______.Poses e Flagrantes: ensaios sobre História e fotografias. Niterói: Eduff, 2008. : UFF,
1996, pp. 73-98.
______. “As fronteiras da cor: imagem e representação social na sociedade escravista imperial” In
Locus revista de história, v. 6, n. 2. Juiz de Fora: editora UFJF, 2000, pp. 83-98.
NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Publifolha,
2000.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São
Paulo no final do século XIX. São Paulo: Cia das Letras, 1987.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
293
Ferreiros, Mestres de Forja, Fabricantes de ferro, engenheiros, operários:
considerações sobre o trabalho e a história social dos trabalhadores em metais em
Minas Gerais e Rio de Janeiro (1812-1900)
Marcus Vinícius Duque Neves
Mestre em História pela UFMG
duqueneves@yahoo.com.br
Resumo: A siderurgia de pequenos fornos em Minas Gerais iniciou-se com fornos
simples, de técnica africana, até a introdução de novas técnicas no início do século XIX
pelo engenheiro alemão von Eschwege. Desde então se modificou gradualmente o status
relativo das personagens sociais no trabalho siderúrgico, dividindo-o em diversas formas e
esquemas produtivos levando à diversificação em novas categorias e estatutos profissionais.
Buscando ir além da importante, mas nem sempre suficiente dicotomia “trabalho escravo x
trabalho livre”, identifica-se novas ‘camadas’ formadas no mundo do trabalho especializado
com metais durante o século XIX e interfaces, mudanças e permanências entre velhos e
novos estatutos das categorias que compunham as suas várias atividades. Para entender tais
mudanças é necessário perceber as mudanças ocorridas no primeiro grande polo industrial
do país, a cidade do Rio de Janeiro, e como os setores metalúrgicos e metal mecânicos ali se
relacionavam com as mudanças ocorridas em paralelo em Minas Gerais.
Palavras chave: Siderurgia, trabalho, especialização.
Abstract: Small furnaces metallurgy in Minas Gerais began with simple furnaces of african
techniques, until german engineer Von Eschwege, in the beginning of XIX century,
brought new techniques. Since then, the relative status of the social actors in the metallurgy
work scenario gradually changed, dividing it in several different ways of production, leading
to new professional categories and statutes. Looking forward to go beyond the important (
but not always sufficient) dichotomy “ slave labor X freemen labor” , new social strata in
the specialized metal labor world of the XIX century were identified, as well as the
changes brought by new statutes and the remaining of old statutes of the laboral categories
involved in this activity. To understand such changes it is necessary to realize the changes
that happened in the first big industrial hub in Brazil, the city of Rio de Janeiro, and how
the metallurgy and heavy-mechanics sectors in it interacted with the changes happening in
Minas Gerais.
Key-words: Metallurgy, work, specialization.
A vinda da Corte Portuguesa ao Brasil no ano de 1807 trouxe a necessidade de se
estabelecer manufaturas antes proibidas na colônia, como forma de fornecer tudo o que
antes era fabricado ou obtido por meio da Metrópole, agora ocupada por tropas francesas,
e tornar o Brasil, agora sede do Reino, um lugar apto a resistir a possíveis ameaças externas.
Entre as proibições já há algum tempo canceladas, estava a fabricação industrial do
ferro, que teve um impulso considerável pela iniciativa de técnicos estrangeiros
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
294
desembarcados no Rio de Janeiro e que se dirigiram gradualmente a locais escolhidos de
acordo com os novos planos da Corte, com o intuito de estabelecerem o primeiro parque
siderúrgico dotado de altos fornos ou de equipamentos e procedimentos tão modernos
quanto os existentes então na Europa.
Apesar das difíceis e custosas experiências com os altos fornos da Fábrica de
Ipanema em Sorocaba, São Paulo, e da Fábrica do Morro do Pilar no Serro, Minas Gerais,
sobressaiu-se em Minas Gerais outro estabelecimento que não foi dotado deste
equipamento, e, alternativamente, buscou maior produtividade pela adoção de
equipamentos de mais simples operação e manutenção, em vista das limitações de mão de
obra, transportes e valores para investimento. Esta iniciativa foi a Fábrica de Ferro
Patriótica ou do Ribeirão da Prata, próxima a Congonhas do Campo, que funcionou
utilizando fornos baixos catalães, sob a orientação e direção de Wilhelm Ludwig Von
Eschwege, fazendo sua primeira corrida de ferro líquido há exatamente duzentos anos, em
1812. (ESCHWEGE: 1979 e 2002)
Apenas esta última iniciativa fez escola, sendo reproduzidos seus modos de operar,
em todo ou em parte, por alguns antigos e novos pequenos produtores de ferro locais,
muitas vezes com o auxílio de antigos empregados livres e escravos que trabalharam na
Fábrica do Ribeirão da Prata em seus primeiros anos. (ESCHWEGE: 1979; LIBBY: 1988)
A produção protoindustrial de ferro nacional durante o período Joanino (1808 -1822)
estava relacionada principalmente às demandas locais em Minas Gerais, Capitania e depois
Província mais populosa, além das demandas de São Paulo e Rio de Janeiro, que recebiam
mais facilmente ferro importado, mas parcialmente sustentadas pela Fábrica de Ferro de
Ipanema, em Sorocaba. Exatamente pela facilidade de receber ferro importado, as grandes
oficinas metalúrgicas do país foram surgindo principalmente nas cidades portuárias, sendo
que no centro-sul, o Rio de Janeiro foi o primeiro centro de oficinas metalúrgicas e navais,
com os arsenais e os estaleiros da Ponta da Areia, em Niterói, comprado e aumentado em
1846 pelo Barão de Mauá. (CANABRAVA: 2005; MOMESSO: 2007)
Apesar de toda uma gama de usos dos metais relacionada ao mundo rural no interior
de Minas Gerais e São Paulo, por quase toda a primeira metade do século XIX houve
poucas empresas para trabalhar metais com equipamentos de grande tamanho e
transformá-lo em obras complexas, menos ainda em peças de máquinas modernas que
começariam a aparecer, adquiridas principalmente na Europa, e logo também nos Estados
Unidos.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
295
Assim, a protoindústria que fabricava o ferro nacional se desvinculava em grande
medida do mundo moderno das máquinas complexas que era representado então, e
principalmente, pela ferrovia e pela indústria naval. Por volta de 1850, no interior do país,
as oficinas anexas às fábricas de ferro, e os ferreiros, transformavam o ferro em
ferramentas básicas de trabalho para lavoura, mineração e produtos simples ordinários,
assim como partes de outras produções, como arreios, recipientes, gradis. Poucos
estabelecimentos estavam habilitados a transformar ferro em algo mais que isso, e talvez
apenas três oficinas, a da Mina de Morro Velho, em Congonhas do Sabará (atual Nova
Lima); a fábrica de ferro de Jean de Monlevade, em Piracicaba e a fábrica de ferro do
Girau, em Itabira, o realizavam constantemente e habitualmente.285 (LIBBY: 1984 e 1988;
BARROS; 1989)
Mesmo com estas limitações produtivas o mundo do trabalho em metais da região
sudeste do Brasil já se estratificava em muitos agrupamentos de trabalhadores, dependendo
do que faziam e onde estavam:
Nas oficinas de empresas estrangeiras, como na de Morro Velho, estavam geralmente
técnicos e trabalhadores estrangeiros com alguns auxiliares nacionais, por vezes alguns
escravos. Entre as fábricas de ferro do interior de Minas Gerais havia as grandes, como a
de Monlevade, onde predominavam os escravos sob a direção de um técnico; e as fábricas
de porte menor, onde havia por vezes apenas escravos sob a direção de um feitor,
tecnicamente auxiliados por técnicos itinerantes, contratados para montar as partes móveis
dos equipamentos e instruir sob seu funcionamento, além de esporadicamente serem
chamados a consertar e fazer manutenção destes mesmos. (SENA: 1881; BOVET: 1883;
LUCCOCK: 1975; BAETA: 1973; LIBBY: 1984 e 1988; GOMES: 1983; BARROS: 1989)
Por fim havia as fábricas pequenas de fornos de cadinhos, tocadas quase que
exclusivamente por escravos: aí dirigia o trabalho o escravo ladino que aprendera o ofício
na África ou aprendiz deste, sem interferência do proprietário da forja, e com a obrigação
de produzir uma quantidade fixa por período, que em alguns lugares como a região de
Itabira, em certa época era de cerca de 120 quilos de ferro por dia. (SANTOS: 1986)
Além das fábricas, havia os ferreiros ordinários que estavam longe de se constituir
em um grupo de trabalhadores homogêneo. Ferreiros urbanos atuavam muitas vezes entre
as categorias de artesão e dos “profissionais do arremate” nos trabalhos de finalização
285
Morro Velho: Peças de máquinas, reparos em grandes máquinas e artefatos específicos para o trabalho de
mineração industrial. Fábrica de Monlevade, grandes cabeças de pilão para mineração por encomenda da
própria Morro Velho. Fábrica do Girau: espingardas.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
296
relacionados ao que hoje chamamos de construção civil e tanto podiam ter origem europeia
ou ser libertos ou escravos. Em Minas Gerais predominavam os últimos nestas atividades.
Alguns realizavam trabalhos específicos como gradis, dobradiças, fechos e fechaduras –
muitas vezes complexos objetos de arte - dividindo o espaço urbano com ferreiros
generalistas que cuidavam de produzir cravos, grampos e tachas simples e consertar tudo
que lhes fosse levado. Já os ferreiros rurais, quase todos livres pardos instruídos ou
escravos de ganho, tinham um perfil generalista. Atendiam em suas próprias ferrarias;
estavam estabelecidos em algumas fazendas de grande porte; ou eram itinerantes, indo de
fazenda em fazenda, localidade em localidade, oferecendo serviços, e não poucas vezes
utilizavam pequenas forjas construídas especialmente para esperá-los.(SENA: 1881;
BOVET: 1883; LUCCOCK: 1975; BAETA: 1973; LIBBY: 1984 e 1988; GOMES: 1983;
BARROS: 1989; CUNHA: 2005)
Os instrumentos de trabalho dos trabalhadores das ferrarias (oficinas) e das fábricas
de ferro - que possuíam em anexo uma pequena oficina - eram os malhos e as safras
(bigornas) de diversos tamanhos, foles, tenazes, alicates, pinças e tesourões de corte, varetas
e não mais de uma dezena de ferramentas específicas para segurar, dobrar, cortar e medir.
Além destes instrumentos comuns a todos os trabalhadores em ferro, equipamentos mais
caros eram importados pelas empresas estrangeiras para suas oficinas, como os laminadores
da fábrica de Monlevade, e tornos e material moderno para serralheria em Morro Velho.
Estes instrumentos, também listados em inúmeras partilhas e inventários, sugerem, por
vezes, os limites do trabalho ali, em um dado momento. (SANTOS: 1986; NEVES: 2010)
Enquanto a realidade material do trabalho com o ferro assim se parecia no interior
do centro sul do Brasil, com o instrumental moderno e a complexidade sendo exceção, na
Corte do Rio de Janeiro da metade do século XIX cada vez mais tais instrumentos do que
seria chamado, em breve, de indústria metal-mecânica, se constituíam em regra.
Tais atividades encontraram grande crescimento no Rio de Janeiro imperial, ruas
batizadas ou apelidadas com nomes de setores de ofícios do trabalho com metais, como a
rua dos Latoeiros, demonstram a importância relativa destes setores, pela existência de
muitos que destes ofícios se sustentavam, apesar de só existirem dados incompletos nas
reminiscências destas atividades.286
286
Nas cidades de Minas Gerais essa concentração urbana de atividades não aconteceu, pelo menor tamanho
das Vilas e menor número absoluto de artífices. O termo ‘Quarteirão’ que surge em diversos documentos dos
séculos XVIII e XIX, como os Mapas de População e censos de Minas Gerais, é uma circunscrição geográfica
muito mais ampla que nosso atual quarteirão urbano delimitado por algumas ruas. Assim, vários fogos ou
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
297
Esta primeira vista geral teve o fim de demonstrar de forma simplificada o quanto foi
diversificada a produção e a utilização de metais, assim como sua distribuição espacial
básica, urbana, rural, no interior e litoral.
Em Minas Gerais a mão de obra das fábricas de ferro era constituída de uma
porcentagem significativa de escravos. No caso da primeira que adotou equipamentos mais
eficientes, a Fábrica Patriótica, seu planejador e responsável, o Barão de Eschwege, buscou
treinar homens livres inicialmente. Logo teve que utilizar escravos alugados para certos
serviços. Nesta fase inicial, quando buscou manter-se fiel ao repúdio que tinha ao trabalho
escravo, Eschwege registrou que 28 trabalhadores livres deixaram a fábrica para, em geral,
montarem as próprias forjas após de aprenderem o ofício. Os escravos alugados foram
retirados pelos seus donos após o mesmo período de aprendizado, pois desejavam que seus
escravos operassem forjas em suas próprias fazendas. Eschwege comprou então, a
contragosto, 20 escravos. Em 1831, a fábrica operava com 55 trabalhadores escravos.
(ESCHWEGE: 1979; LIBBY: 1988)
Além dos 28 trabalhadores livres e dos escravos treinados e remanejados, outros
trabalhadores estrangeiros do ferro vieram para Minas Gerais, assim como outros escravos
foram treinados em outros estabelecimentos. Há razoáveis fontes para comprovar mais
algumas dezenas desses estrangeiros e talvez uma centena ou mais de escravos treinados
para forjas, fábricas e oficinas. Além destes, nos Mapas de População e censos registraram
um grande número de ferreiros, caldeireiros, paneleiros, etc, sendo a sua maioria de pardos
livres, dos quais não se consegue indagar sobre as origens de suas habilidades. Para estes
últimos, a habilidade mais citada, margem para mais indagações, é a de saberem ler.
(LIBBY: 1988)
Em uma sociedade marcada pelo analfabetismo, saber ler é algo muito valioso, o que
abriria espaço para uma maior iniciativa pessoal no sentido do comércio e do aumento do
círculo de sociabilidades. A falta de livros técnicos ou outras fontes escritas impossibilitava,
ao que tudo indica, que a alfabetização levasse ao aperfeiçoamento do ofício de fabricar
ferro ou de manuseá-lo, e o indicativo disso é a falta crônica de modeladores e artífices
competentes, falta esta sentida por Eschwege entre 1812 e 1821; citada por Monlevade em
seu relatório de 1854; confirmada e lamentada pelos professores da EMOP na década de
1880 e sentida com pesar pela Usina Esperança e pela Usina Wigg na década de 1890.
estabelecimentos de trabalho com o ferro ou outros metais em um quarteirão significa, nestes documentos,
uma concentração em um distrito ou grande bairro.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
298
(SENA:
1881;
BOVET:
1883;
FERRAND:
1884;
O
PAÍZ:
10/04/1894,
19/09/1895,05/10/1897, 17/02/1898; LIBBY: 1988; ESCHWEGE: 2002; NEVES: 2010)
Para o escravo havia menores possibilidades de chegar ao domínio da leitura e da
escrita, mas é conhecido o fato de que eram procurados escravos ladinos que já fossem
conhecedores das técnicas dos fornos de cadinhos, técnica que trouxeram da África e que
prescindia das habilidades das letras, já que aprendidas e reforçadas por outros métodos
tradicionais de memorização.
Dos escravos que demonstravam capacidades de aprendizado pela observação,
muitos eram emprestados ou alugados aos donos de grandes fábricas para serem
reutilizados depois em outros estabelecimentos, como aconteceu com Eschwege na
Patriótica e a Monlevade na sua fábrica, chegando a valores bem mais altos do que outros
cativos. (ESCHWEGE: 1979; GOMES: 1983; BARROS: 1989)
Essa rotatividade de mão de obra pode significar a movimentação de conhecimentos,
o estabelecimentos de novos contatos e certo mercado, ainda que restrito, de mão de obra
semiespecializada. Estes escravos poderiam ter algum contato temporário com os pardos
livres ferreiros, pois estes poderiam também comprá-los ou treiná-los antes de revendê-los.
Nestas complexas negociações, um bom escravo ferreiro talvez tivesse alguma influência
sob o seu próprio destino, e poderia ter algumas vantagens frente aos outros que não
possuíam tal treinamento.
Sobre estes interstícios da escravidão real, onde o escravo se insinua como agente
através de suas habilidades e das concessões que arranca de seu proprietário, cabe uma nota
sobre o trabalho de Ciro Flamarion Cardoso que, a partir de estudos comparativos com a
realidade escravista em outros países, defendeu a possibilidade de uma “brecha
camponesa” no Brasil para os escravos na lavoura, já que estes conseguiam ser
‘camponeses’ na parte livre de seu tempo, concedida pela prática paternalista e dentro do
interesse do escravocrata de que o escravo se sustentasse por si mesmo, como ocorreu em
diversas outras colônias e no sistema escravista norte-americano pós-independência. Carlos
Magno Guimarães, estudando especificamente o Brasil, com ênfase em Minas Gerais,
identificou nos quilombos a ‘brecha camponesa’, já que o quilombo se inseria
comercialmente no âmbito do mercado, assim atuando no lugar do camponês inexistente
em uma realidade instituída de plantations. Apesar do foco no caso da lavoura se dar no
período colonial, aí se abre uma questão: Haveria também algo como uma ‘brecha artesã’
ou ‘brecha operária’ no século XIX, entre escravos operadores de fornos de cadinhos ou
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
299
ferreiros escravos que ganhassem benefícios pelo seu status diferenciado no trabalho,
ocupando posições sociais que se pensavam inexistentes no Brasil escravocrata?287
(CARDOSO: 1987; GUIMARÃES: 1989)
Para os ferreiros operadores das fábricas de ferro de cadinhos, parece muito difícil,
senão impossível por causa da produção geral dos fornos que operavam e o valor da
tamina diária exigida, que se igualavam um pouco acima dos cem quilos de ferro por dia, a
não ser que se conseguisse manter a produção constante em vários cadinhos.288 (SANTOS:
1986). As fábricas de ferro com fornos de cadinho eram locais de trabalho intensivo,
característica do trabalho siderúrgico moderno, e situadas no espaço rural eram em geral
distantes o suficiente para impedir um efetivo trânsito dos escravos, pelo menos no
período de produção.289 Estes dois fatores tolheriam o acesso dos artífices a uma rede
maior de sociabilidades por onde poderiam se libertar paulatinamente das amarras do
sistema escravista. Há casos, no entanto, de situações de negociação e maior abertura,
como o pagamento por lupa de cerca de 1$000 (Um mil réis), entre escravo produtor e seu
proprietário. 290 (SENA apud SANTOS: 1986).
Contudo, o professor da Escola de Minas de Ouro Preto, Armand de Bovet, afirma
que, por volta de 1883 observou como era comum a instituição do escravo de ganho.
Segundo ele muitos possuem escravos “carpinteiros, pedreiros ou alfaiates” trabalhando
estes “onde acham serviço”. Continuando, afirma que “vê-se que ao menos certos
proprietários de forjas fazem o mesmo”. (BOVET: 1883)
287
Esta suposição não é originalmente minha, mas não localizei nenhum texto em que ela esteja registrada.
Como fui aluno de Carlos Magno Guimarães em várias disciplinas, lembro-me vagamente de que em algum
momento tal possibilidade foi discutida brevemente entre alunos e mestre. José Newton Coelho de Meneses
cita casos de ferreiros, ainda no período colonial, em situações bem similares aos que se encontram depois na
documentação do século XIX, na sua história do abastecimento alimentar nas Minas Gerais setecentistas – O
Continente Rústico - de 2000. (ref. completa na bibliografia)
288 O autor consultado, Antônio César Santos, não explicita em sua dissertação se a tamina de cerca de 120
quilos diários era baseada em cada cadinho ou para a produção total das fábricas que utilizavam esta técnica, e
que, em geral, possuíam de 3 a 4 cadinhos funcionando. No primeiro caso, não haveria possibilidade de
apropriação excedente pelo escravo. Na segunda, parece inconsistente que a produção realizada pelo escravo
pudesse exceder em mais que o dobro o que ele deveria reverter ao seu dono. Isto significaria o absurdo do
enriquecimento do escravo em proporção maior do que de seu proprietário. Assim, o tema permanece em
aberto para maiores pesquisas, mas as fontes documentais neste sentido parecem ser muito escassas.
289 Em geral relacionado aos meses secos o suficiente para se produzir, transportar e estocar com sucesso o
carvão vegetal.
290 Afirmou-se constantemente que os donos eram ausentes, se constituindo proprietários, mas não
fabricantes de ferro. Já que eram ‘capitalistas não gerentes’, entregavam não só o poder de fazer, mas de como
fazer, ao escravo ou responsável indireto, sendo este último raro. Assim, os arranjos deveriam se assimilar
com o que vigorava entre os escravos de ganho, com as grandes aberturas para a busca da liberdade futura
pela acumulação pelo escravo, desde que esse pudesse trabalhar além do exigido para pagar ao patrão o
combinado.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
300
Nas fábricas maiores, que operavam no método Italiano ou Catalão291 o excedente
comercializável poderia, em tese, aparecer mais constantemente, mas não há dados. Na
unidade familiar do escravo/artesão/operário, também em tese, poderia aparecer
concessão de lotes para o plantio além de outras de natureza diversa, mas novamente
faltam dados.
Para os ferreiros urbanos ou para os itinerantes a possibilidade de ascensão parece,
por outro lado, ser real. Neste caso, não só a possibilidade de enriquecer com os ganhos
que excedessem o que teria que pagar diariamente, semanalmente ou mensalmente ao seu
dono, mas pela rede de sociabilidades que poderia acessar, demonstrando diligência e
intelecto que o levassem não só no rumo da liberdade, mas de um status social superior.
Apesar de tal possibilidade, é certo que essa ascensão deve ter ocorrido poucas vezes. O
exemplo mais radical, a história do ferreiro Francisco Paulo de Almeida, negro nascido em
1826 em Lagoa Dourada – MG, e que se tornou empresário e capitalista, chegando ao
baronato com o título de Barão de Guaraciaba, salta aos olhos. Construiu seus laços de
sociabilidade pela acumulação e sucessão de atividades de ferreiro, ourives e tropeiro.
(FERREIRA: 2008)
Assim a produção de excedentes ou produção independente fora do tempo de
trabalho, assim como a produção dos laços de sociabilidade parecem ser fatores
concomitantes para a existência de progressão na sociedade para estes artesãos.
Nos anos entre 1808 e 1824, ainda estava em questão a sobrevivência das
corporações de ofício, que atuavam muitas vezes tanto para os escravos quanto para os
libertos, nas irmandades religiosas. O trabalho de Mônica de Souza N. Martins, coloca
novas questões que indicaria um status claro de artífices entre seu grupo e perante a
sociedade, aspecto este que escapou à análise historiográfica tradicional, que negava
maiores possibilidades de inserção do escravo nas sociedades coloniais, reforçando apenas
o papel do trabalho forçado e sob violentas formas de coação. Tendo por base a realidade
dos ofícios no Rio de Janeiro de então, apesar de legalmente as corporações de ofício terem
sido abolidas pela constituição de 1824, isso não significa o imediato desaparecimento de
certos aspectos do status do artesão em toda a sociedade pós-colonial. Além do mais,
apesar do trabalho de Mônica Martins focar principalmente as corporações de ofício no
291
Métodos em que partes móveis, sopradores do forno e malho para estiramento da lupa, são movidos pela
força de rodas hidráulicas. Esses métodos poupam trabalho e aumentando o rendimento total da fábrica, mas
são mais exigentes no que toca a sua manutenção e operação, assim como dependem de local com
abundantes águas e desníveis apropriados.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
301
Rio de Janeiro, ela cita diversos aspectos das irmandades que as corporificavam, em
diversas regiões, inclusive nas Minas Gerais. (MARTINS: 2008)
Luiz Antonio Cunha já havia apontado que os trabalhadores em metais no Rio de
Janeiro e em outras grandes cidades como Salvador apareciam em várias bandeiras além da
de São Jorge, como os latoeiros de fundição sob a bandeira de São Miguel; os seleiros e
freeiros sob a Bandeira de Nossa Senhora da Conceição; os latoeiros de folha branca e de
folha amarela, além dos torneiros, sob a Bandeira de Nossa Senhora das Mercês; e os
picheleiros (trabalhos em folhas de flandres) na Bandeira de Nossa Senhora da Oliveira.
(CUNHA: 2005)
Assim, podemos considerar que a sobrevivência das Irmandades à abolição das
Corporações de Ofícios, passando aquelas a atuarem apenas em atividades assistenciais e
religiosas retirou as prerrogativas legais de exclusividade dos oficiais e aprendizes nelas
inscritos, mas não aboliu totalmente e imediatamente as relações sociais já existentes e a
visão social sobre o status e o local do artesão na sociedade. Apesar de toda a ênfase dada
pela historiografia no sentido da desclassificação do trabalho manual no Brasil escravista,
ela comporta certas exceções, não sendo absoluta, já que a ideia de trabalho artesanal
comporta tanto a parte manual quanto a intelectual do trabalho. Aliás, a erosão do status
do artesão se deu em um processo muito longo durante o século XIX e XX, processo
importante, mas que sugere muitas possibilidades futuras de pesquisas.
Nas entrelinhas ou silêncios das obras de Douglas Cole Libby podemos perceber que
haveria muito pouco espaço para o éthos corporativo do artesão no trabalho escravo
relacionado á produção de ferro nas fábricas, pelo aspecto local e apartado como esta mão
de obra aparece alocada no espaço (LIBBY: 1988; 2006). Porém, por outro lado, as
afirmações deste e de outros autores sobre a proeminência do trabalhador escravo
permitem supor que o escravo ladino, que já vinha da África formado nos saberes
tradicionais da fundição do ferro, podia, entretanto, já possuir e manter seu prestígio e éthos
de caráter mágico, religioso e artesão entre os seus próprios (SILVA: 2010). Também resta
ainda outra possibilidade, pois, a análise que a historiografia mais marcadamente econômica
e quantitativa tem feito ao longo de duas décadas não visou à totalidade das relações
culturais subjacentes possíveis, principalmente no que toca aos ferreiros urbanos ou
independentes.
Alguns europeus aparecem de vez em quando neste universo dominado pela mão de
obra escrava, atuando, talvez, como consultores. Por exemplo, nos Mapas de População
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
302
aparece em um fogo do então distrito de Itabira do Campo, hoje Itabirito, quatro alemães
ferreiros vivendo juntos sem nenhum escravo ou família, em 1833. (MAPA DE
POPULAÇÃO DE ITABIRITO: 1833). Seriam remanescentes dos trabalhadores que
abandonaram a fábrica Patriótica? Ou trabalhariam como técnicos itinerantes, como
aqueles que aparecem em referências fugazes como de Luccock, em 1817, e nos relatos dos
professores da Escola de Minas de Ouro Preto quando escrevem artigos para os Anais da
EMOP a partir da década de 1880? (SENA: 1881; BOVET: 1883; FERRAND: 1884;
LUCCOCK: 1975).
Douglas Cole Libby apontou recentemente as discussões que permanecem acerca do
papel das irmandades em Minas Gerais, com Silva Filho e José Newton de Meneses
reforçando a vertente dos que afirmam a irmandade como lugar de laços étnicos e sociais e,
de outro lado, Boschi e Alves, que veem as irmandades como intermediárias entre as artes
mecânicas. Libby opina que a percepção da força do mercado em fazer baixar os preços já
orientava as Câmaras no sentido de fazê-las contrárias a qualquer regulamentação de
profissões. (LIBBY: 2006). Independente da força de uma ou de outra argumentação, que
se dirigem fortemente orientadas em documentação do período colonial, e pode até ser
pertinente pelas pistas que dá, para o século XIX, que aqui nos interessa primeiramente, a
continuidade da erosão da categoria dos artífices é congruente com a leitura que a elite
começa a fazer do futuro de um mercado de trabalho em que máquinas irão nivelar todos
os estratos sociais em dois únicos níveis: operários e engenheiros, com estes últimos
representando a nova elite do trabalho e os aliados do capital. O que posso opor á evidente
erosão do mundo dos artífices, é que a linguagem desse mundo ainda se apresenta muito
forte nos textos dos técnicos do XIX, inclusive de todos os engenheiros professores da
EMOP, o que faz pensar que este mundo em erosão persiste e tenta sobreviver às lógicas
que buscam abatê-lo.
Referente ao tema, no XIX, Maura Silveira Gonçalves de Brito apontou
recentemente a possibilidade do ofício de ferreiro entre escravos e libertos ser um fator de
distinção social e da criação de relações de identidade, em uma análise preliminar que fez de
alguns inventários, testamentos e lista nominativas presentes no Museu do Ferro, como é
conhecido o Arquivo Público de Itabira, região onde durante o XIX houve a maior
concentração de fábricas de ferro conhecidas. É um fenômeno que parece ser, porém,
efêmero, mas pode com certeza extrapolar a região abordada. (BRITO: 2009 e 2011)
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
303
Seja como for temos um grande número de trabalhadores em um dinâmico quadro
geográfico, registrando-se deslocamentos constantes de fábricas e oficinas, em número
flutuante e deslocamento e flutuações igualmente intensos da mão de obra, seja livre ou
escrava. Estes deslocamentos formam alguma forma de rede social tênue e imprecisa, que
precisa ser mais bem estudada.
Numericamente, esta rede pode ser estimada: uma forja pequena possuía em geral
entre 9 e 12 trabalhadores, enquanto as maiores tiveram até 150 trabalhadores, e em termos
de numéricos a variação do número de estabelecimentos vai ao longo do século XIX de
cerca de 30 até 120 em alguns momentos, dependendo do documento em que nos
basearmos. A importância numérica dos trabalhadores em metais fica assim, bastante
evidente, chegando a alguns milhares, em uma população que se conta em poucas centenas
de milhares para a região central da Província. Se incluirmos os que utilizam elementos de
ferro em outras obras, tendo que manuseá-lo em pequenos fornos para dobrá-lo e dar-lhe
forma, o número pode aumentar consideravelmente nas décadas finais do século. Assim, o
número de artífices de ferro e metais na população de Minas Gerais no século XIX seria
proporcionalmente considerável.
A linguagem corporativa e seus usos continuam a existir nessa grande massa de
artífices, tanto quanto na dos engenheiros. Se não, como explicar textos tão efusivos como
os de Henri Gorceix ao exortar os Mestres de Forja, ou o manifesto dos alunos da Escola
de Minas contra um relatório de um agente governamental que se manifesta favorável ao
fabrico do ferro com carvão vegetal? Tais textos só podem ser compreendidos se
admitirmos que eles são motivados pela observação de conflitos e contradições sociais
bastante claros aos olhos de quem escreve, inclusive a dicotomia entre o mundo dos
artífices, que no segundo documento é o mundo do atraso; incompreensível aos novos e
futuros engenheiros. (GORCEIX: 1880; O PAÍZ, 18/12/1899, fl. 3)
Contudo, visões contemporâneas não enxergaram claramente tais conflitos, já que só
podem ser vistos de soslaio, já que alvos de pouca atenção, ou mesmo de negação por parte
da maior parte dos agentes públicos produtores dos documentos que nos chegaram
preservados.
Que papéis sociais se atribuíam Gorceix e os alunos da EMOP nestes dois
momentos?
Variadas formas de inserção social significam muitas visões possíveis dentro de uma
sociedade que se vê como um corpo orgânico. As teorias neo-escolásticas e corporativas
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
304
tinham lançado profunda influência na compreensão geral da distribuição de poder na
sociedade colonial, e esta influência talvez tenha se estendido, através da linguagem,
sutilmente ao século XIX antes de ser destronada de vez. O mundo artesão não só se
desestrutura, mas é incorporado pelo mundo dicotomizado entre operários e engenheiros,
sendo que partes diversas de seus valores se distribuem desigualmente entre estes herdeiros
de sua decadência.
Nesta aspecto, talvez seja melhor seguir a Thompson, que já enfatizara a
simultaneidade da manifestação de relações produtivas particulares em todos os sistemas e
áreas da vida social. Ele ainda deixou clara a necessidade de incorporar seriamente a análise
antropológica na perseguição da totalidade das relações sociais em que estão inseridas as
mudanças econômicas e culturais. (THOMPSON: 1998)
As parcelas de participação dos trabalhadores e patrões, em diversos níveis, no
planejamento, organização e desfrute do status, com benesses, ganhos ou perdas de
prestígio social, são dados que não podem ser separados dos dados econômicos ditos
‘puros’, já que, como advertia Thompson, todo trabalho é atividade criativa que faz do
homem, homem. (THOMPSON: 1998)
Também Pierre Bourdieu aborda diversas questões sobre o status cultural e sua
relação com o que é herdado e o que é aprendido, adquirido. Ao longo destas análises,
Bourdieu constrói diversas categorias de análise dos valores culturais postos e construídos,
além de como diversas influências estimulam a procura e a ocupação do que ele chama de
habitus e estilos de vida. Apesar de utilizar tais instrumentos de análise através de exemplos
contemporâneos, fica logo evidente que o instrumental criado por ele para a análise de
distinções culturais é prenhe de significados e modus operandi para a análise de outros
contextos em que se cruzem as variantes de nível de aprendizado, status social, referências
e heranças, juntamente com status profissional. (BOURDIEU: 1974)
Ser um engenheiro no século XIX era muito mais que pertencer a uma categoria
profissional. Desde a indumentária própria dos profissionais liberais (sapato bico fino,
terno, colete, sobrecasaca e chapéu coco), passando por uma série de formas de proceder e
o seguimento de regras não escritas dessa verdadeira ‘nobreza do trabalho técnico’, cria-se
uma visão comum de vida, além do partilhamento de um éthos que encontra ecos em
diversas outras profissões do passado.
A variabilidade das descrições e variações dos esquemas de trabalho que podem ser
inferidos pelos diversificados registros sobre os trabalhadores em ferro no século XIX em
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
305
Minas e Rio de Janeiro - áreas interligadas de muitas formas e que devem ser tratadas sob
muitos aspectos, em simultaneidade – faz inferir distinções tão grandes e interessantes
quantas as apontadas por Hobsbawn quando tratou da “Aristocracia do Trabalho” entre os
trabalhadores ingleses do século XIX. (HOBSBAWN: 2000)
Algumas distinções ocorridas cedo no parque industrial do Rio de Janeiro podem ter
similaridades às descritas por Hobsbawn para os trabalhadores ingleses do XIX, e assim
influenciado gradualmente a visão de trabalhadores que eram afetados pelas fortes
mudanças em Minas Gerais ao longo das décadas finais do mesmo século. (HOBSBAWN:
2000)
Talvez um novo ou velho aspecto dos engenheiros, a cultura do partilhamento do
risco com os operários, tenha sido necessário, na visão de alguns professores e
profissionais que tinham o poder de dizer o que era este éthos, um dos modos de combater
os tradicionais preconceitos ao trabalho braçal. Assim os engenheiros assumiriam parte do
éthos derivado da visão qualitativa dos artesãos, onde, na falta de um forte e completo éthos
artesão entre os artífices escravos, libertos, e mesmo entre os livres, fez com que os
engenheiros trouxessem para si a responsabilidade da qualidade final e da responsabilidade
moral e completa sobre obras de engenharia tratadas, sobretudo, como obras de um artista.
Devemos nos lembra de que uma das acepções do termo éthos é exatamente o de
hábito, o que nos aproxima novamente da obra de Pierre Bourdieu, e da lembrança de que
os estilos de vida e modos de encarar as relações de trabalho, assim como o proceder
socialmente, se encontram nas proximidades de seu conceito de habitus. (BOURDIEU:
1974)
J. J. Queirós Júnior, engenheiro e terceiro dono da Usina Esperança, por exemplo,
deixou clara a sua intenção de dinamitar a ponte que construíra em frente a Usina, sobre o
rio das Velhas, antes que uma enchente a levasse rio abaixo. Essa é uma atitude hoje
incompreensível. No entanto, para o éthos que partilhava com sua classe de engenheiros, a
resistência da sua ponte era o atestado de sua competência profissional. Não saber se ela
aguentaria era manter o éthos, mas deixar que a natureza a levasse, isso seria uma derrota
insuportável. (MENDONÇA: 1988; ATHAYDE: 2010)
Assim, a força que este éthos assumia nas mentalidades destes engenheiros, criados em
um contexto fatalista e romântico determinava linhas importantes das visões que os
engenheiros tinham de si mesmos. Impossível em uma sociedade marcada pelo escravismo
ou recém-saído dele, a existência de tal éthos do artesão-engenheiro (marcado pela qualidade
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
306
e garantia pessoais do artista) entre artesãos do passado, cujo prestígio social corroeu-se ao
longo do tempo, e cujo éthos presente (marcado mais pela fidelidade paternalista e
constância) estabelecia outro tipo de regras, prêmios e castigos entre pares, aprendizes e
superiores hierárquicos.
O Correio Mercantil do Rio de Janeiro, em 30 de julho de 1853, deixa antever que
em meados do século era claramente perceptível na visão geral sobre a indústria, a
interpenetração do status e um mesmo éthos entre artífices e engenheiros, situados em um
plano próximo:
Falta ao Brasil uma escola para operários e mecânicos, aonde possam formar
bons artífices, e contribuir a elevar a indústria do país ao grau mais alto de
engenheiros práticos. ...são precisos de conhecimentos práticos, sem os quais
nem artífices nem engenheiros podem chegar ao aperfeiçoamento, nem ao
ponto que os progressos da ciência hoje exigem, mesmo das classes menos
elevadas. ... torna-se indispensável o estabelecimento de escolas nacionais
mecânicas, quando não nas cidades provinciais, pelo menos na capital.
Fica claro mais uma vez que para se construir uma visão ampla sobre o trabalho em
ferro no século XIX em Minas Gerais devemos aproximar e comparar a fabricação do
insumo básico ferro, de sua utilização para o fabrico de utilidades, e não segregá-los como
dois objetos distintos e incomunicáveis. Isso provoca necessariamente o efeito colateral de
ampliação geográfica da análise sobre o mercado mais dinâmico, onde novos modelos de
relações de trabalho e atividades manufatureiras poderiam se estender, provocar
intercâmbios ou influenciar realidades em Minas Gerais. O estabelecimento de certas
relações entre o interior pode ser comprovada facilmente a partir da década de 1890,
intuída e parcialmente documentada a partir da chegada da ferrovia, na década de 1880,
mas precisa ser mais bem sondada daí para trás. O período Joanino estabeleceu um marco
em 1812, com o estabelecimento da Patriótica, e que se estendeu até 1821 em profusa
documentação. Entre 1821 e a criação da Escola de Minas em 1876, ainda há muito que
pesquisar e escrever.
A fabricação do ferro, base da indústria moderna foi aferido como um ícone da
modernização e independência nacionais durante o século XX, mas para os interesses da
história social do trabalho no século XIX faz pouca ou nenhuma diferença averiguar se os
trabalhadores utilizavam o ferro nacional ou importado. Como os mais antigos trabalhos
em que se marcou tal anacronismo, sobrepondo a visão do século XX sobre as que
existiam no XIX.
Assim como esta limitação autoimposta por tal historiografia, outras, relacionadas
aos ideais republicanos e marxistas dominantes em alguns estudos sobre o tema estão já há
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
307
muito sendo revistos sob o viés cultural, na expectativa de reinterpretar o mundo do
trabalho do século XIX no Brasil, como recentemente fizeram Claúdio Batalha e Ronaldo
P. de Jesus, por exemplo. Esses autores com suas novas interpretações têm mostrado faces
diferentes das “heranças partilhadas e experiências comuns” vividas pelos trabalhadores do
Rio de Janeiro do século XIX, sobre clara influência de Edward P. Thompson,
principalmente pelas obras Costumes em comum (cap.6 Tempo, disciplina de trabalho e
Capitalismo Industrial) e As peculiaridades dos Ingleses e outros artigos (na parte que trata da
critica que ele faz da ideia de classe como um grupo quantificável, somando-se
trabalhadores de diversos ramos de forma simplista). (BATALHA: 2009; JESUS: 2009)
Estes estudos estendem a noção de classe operária além do conceito marxista de
classe como dependente da existência da ‘consciência de classe’ em seu viés revolucionário.
Assim apresentam a possibilidade de existir algo como uma classe operária entre os
operários do século XIX e XX, ainda que se organizem sob outros pretextos e lutas que
não a revolução.
Também como demonstrado, a obra de de Pierre Bourdieu, A Economia das Trocas
Simbólicas, em seu capitulo em que trata da diferença entre condição de classe e posição de classe,
trata de discutir certas posições Weberianas que situam as classes e grupos de status em
estruturas que possibilitam sua comparação em situações homólogas. Práticas sociais ou
profissionais idênticas quando ocupam posições estruturalmente diferentes; ou práticas
com condições de existência e práticas profissionais diferentes podem apresentar
propriedades comuns porque ocupam posições homólogas em estruturas diferentes.
As obras de Thompson e Pierre Bourdieu, ainda que indiretamente, estão eivadas de
questões com as quais nos deparamos em nossas pesquisas. Para os historiadores do século
XIX, podem estas obras ainda iluminar novas formas e abordagens dos problemas que
pretendemos tentar resolver.
Bibliografia:
ATHAYDE, Roberto. O Bandeirante do Ferro. São Paulo: Global, 2010.
BAETA, Nilton. A Indústria siderúrgica em Minas Gerais. Belo Horizonte: S/Ed, 1973.
BARROS, Geraldo Mendes. História da Siderurgia no Brasil: Século XIX. Belo Horizonte: Imprensa
Oficial, 1989.
BATALHA, Cláudio H. M. (Coord.) Dicionário do movimento operário: Rio de Janeiro do século XIX aos
anos 1920 – militantes e organizações. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2009.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
308
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. (Org. Sérgio Miceli). São Paulo. Editora
Perspectiva, 1974.
BOVET, Armand de. A Indústria Mineral na Província de Minas Gerais. Primeira parte. p. 23-103.
In: Annaes da Escola de Minas de Ouro Preto, n. 2. Ouro Preto: Livraria Mineira, 1883.
BRITO, Maura Silveira Gonçalves de. O ofício de ferreiro entre escravos e libertos: Minas Gerais,
século XIX. In: II Encontro Memorial do ICHS. Mariana, 2009.
______.Artes do ferro entre escravos e libertos: as práticas e a aprendizagem – Minas Gerais,
século XIX. In: Ars Histórica. N.3. junho, 2011.
CANABRAVA, Alice Piffer. História Econômica: Estudos e pesquisas. São Paulo: Hucitec; UNESP;
ABPHE, 2005.
CARDOSO, Ciro Flamarion S. Escravo ou camponês? O protocampesinato negro nas Américas. São Paulo.
Editora Brasiliense, 1987.
CUNHA, Luiz Antônio. O ensino de ofícios artesanais e manufatureiros no Brasil escravocrata. 2ª ed. São
Paulo: Editora UNESP; Brasília, DF; FLACSO, 2005.
ESCHWEGE, Wilhelm Ludwig von. Jornal do Brasil (1817-1821). Belo Horizonte. Ed. Fundação
João Pinheiro. 2002.
______. Pluto Brasiliensis. Vols. I e II. Belo Horizonte. Editora Itatiaia, 1979.
FERRAND, Paul. A indústria do ferro no Brasil – Província de Minas Gerais. In: Annaes da Escola
de Minas de Ouro Preto, n. 3. p. 122-139. Ouro Preto. Typographia Machado, 1884.
FERREIRA, Carlos Alberto Dias. Francisco Paulo de Almeida — Barão de Guaraciaba: Biografia de um
negro no Brasil Império. Rio de Janeiro. Anais Eletrônicos do XIII Encontro de História da Anpuh –
Rio, 2008.
GOMES, Francisco de Magalhães. História da Siderurgia no Brasil. Belo Horizonte/São Paulo;
Itatiaia/USP, 1983.
GORCEIX, Henri. O Ferro e os mestres de forja na Província de Minas Gerais. Parte I e II. In: A
Actualidade, 25 de agosto de 1880, p. 2 e A Actualidade, 1 de setembro de 1880, p. 2.
GUIMARÃES. Carlos Magno. Quilombos e brecha camponesa – Minas Gerais (Século XVIII). In:
Revista Vária História. n.8. UFMG/Fafich. Departamento de História. Belo Horizonte, Jan. 1989.
HOBSBAWN, Eric J. Os Trabalhadores: Estudo sobre a história do operariado. São Paulo: Paz e Terra,
2000.
JESUS, Ronaldo P. de. Visões da Monarquia: escravos, operários e abolicionistas na Corte. Belo Horizonte:
Argumentum, 2009.
LIBBY, Douglas Cole.Trabalho escravo e capital estrangeiro no Brasil – O caso de Morro Velho. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1984.
______. Transformação e trabalho em uma Economia Escravista: Minas Gerais no Século XIX. São Paulo:
Brasiliense, 1988.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
309
______. Habilidades, artífices e ofícios na sociedade escravista do Brasil colonial. In: LIBBY,
Douglas Cole & FURTADO, Júnia Pereira. (orgs.) Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil e Europa,
séculos XVIII e XIX. São Paulo: Annablume, 2006.
LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia;
São Paulo, Edusp, 1975.
MARTINS, Mônica de Souza N. Entre a cruz e o capital: as corporações de ofícios no Rio de Janeiro após a
chegada da Família Real (1808-1824). Rio de Janeiro. Garamond, 2008.
MENESES, José Newton Coelho de. O Continente Rústico: abastecimento alimentar nas Minas Gerais
setecentistas. Diamantina, MG. Maria Fumaça, 2000.
MENDONÇA, Anna Amélia de Queiroz Carneiro de. et alli. O Bandeirante do Ferro. Rio de Janeiro:
Arquimedes Edições, 1988.
MOMESSO, Beatriz Piva. Indústria e trabalho no século XIX: O Estabelecimento de Fundição e Máquinas de
Ponta D’Areia. Niterói – RJ. Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. PPGHis. Dissertação de
Mestrado. 2007.
NEVES, Marcus Vinícius Duque. Modernizações, projetos econômicos, percepções locais: Mineração e
Siderurgia em Minas Gerais (1850-1921). (Dissertação de Mestrado). UFMG - PPGHis – FAFICH.
2010.
SENA, Joaquim Cândido da Costa. Viagem de Estudos Metallurgicos no Centro da Província de
Minas Gerais.p. 106/143. In: Annaes da Escola de Minas de Ouro Preto, n. 1, 2ª ed.Ouro Preto:
Typographia Medeiros, 1881.
SILVA, Juliana Ribeiro da.Homens de Ferro: os ferreiros na África central no século XIX. São Paulo.
Alameda, 2011.
THOMPSON, Edward P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. Trad. Rosaura
Eichemberg. São Paulo. Companhia das Letras, 1998.
______. As peculiaridades dos Ingleses e outros artigos. Orgs. Antonio Luigi Negro e Sérgio Silva.
Campinas/SP. Editora da Unicamp, 2001.
JORNAIS:
O PAÍZ. Terça feira, 19 de dezembro de 1899, p.3. Escola de Minas, Nosso Protesto.
O PAÍZ. Anúncios: 10/04/1894.
O PAÍZ. Anúncios: 19/09/1895.
O PAÍZ. Anúncios: 05/10/1897.
O PAÍZ. Anúncios: 17/02/1898.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
310
Além das Senzalas: “amizades e legados”
Roseli dos Santos
Mestranda em História pela UFSJ/Capes
selix07@hotmail.com
Resumo: O presente artigo verifica testamentos do meado do século XIX, quando
senhores com a ameaça da morte deixaram verbas testamentárias às pessoas mais próximas.
Constatou-se que, desses, somente alguns testadores legaram a escravos e/ou libertos
benefícios post-mortem. Esse fator nos levou aindagar como se dava a aquisição desses
legados, num contexto de uma Barbacena predominantemente agrária, vinculada ao sistema
escravista e envolta às mudanças legislativas que restringiam a continuidade da escravidão e
modificava as formas de posses de terras no país. Os testadores selecionados fazem parte
do grupo dos 79 senhores dentro de um panorama de 388 testamentos encontrados no
Arquivo Municipal de Barbacena entre os anos de 1850 a 1888, que legaram benefícios a
escravos e libertos. Ao agrupá-los observa-se que, uma parcela considerável, possuía
algumas características semelhantes, conquanto haja diferenciações em suas relações
escravistas. A principal se deve ao estado matrimonial dos senhores. Não é de se estranhar
que a medida mais utilizada por esses senhores em busca da manutenção da ordem
escravista, e que ia diretamente ao anseio dos escravos, era a possibilidade desses homens
se tornarem livres e, quem sabe possuidores de bens que lhes favorecessem condições
estáveis de vida, conquistadas por meio de legados materiais.
Palavras-chaves: Escravidão, alforria, legados materiais.
Abstract: This article examines wills the mid-nineteenth century, when gentlemen with the
threat of death left money legacies to those closest. It was found that, of those, only a few
testers bequeathed the slaves and / or benefits delivered post-mortem. This factor led us to
ask how was the acquisition of these legacies in the context of a predominantly agrarian
Barbacena, linked to the slave system and involved legislative changes restricting the
continuation of slavery and modified forms of land holdings in the country. Testers
selected part of the 79 lords within a 388 panorama of wills found in the Municipal Archive
of Barbacena between the years 1850 to 1888, who bequeathed benefits to slaves and
freedmen. By grouping them shows that a significant portion, had some similar features,
although there are differences in their slave relationships. The principal is due to the marital
status of lords. No wonder that the most used by these gentlemen in search of slave law
enforcement, and went directly to the yearning of slaves, was the possibility of these men
become free, and who knows who hold assets that they favored a stable condition life,
achieved by means of legacy materials.
Keywords: Slavery, emancipation, material legacies.
Antônio Alves de Maria diz ser filho legítimo de José Alves de Maria e Thereza Alves
Malta; que nascera em Portugal, mais especificamente na freguesia de São Miguel; que
estava de cama, mas em boas condições mentais; que atualmente é casado com Dona
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
311
Porfiria e que não possui filhos legítimos nem naturais. Observa que, estando seus pais
vivos seriam considerados seus herdeiros necessários. Em caso contrário, sua esposa será
herdeira de sua meação. 292
O testamento de Antônio segue as determinações da legislação brasileira que
vigorava no século XIX sobre as transmissões de heranças, estabelecidas há três
séculospelas normas das Ordenações Filipinas.293 De acordo com estas, todos os
proprietários, com posses e com herdeiros forçados ou necessários, deveriam dispor seus
bens em inventários. Por herdeiros se entende, nesta ordem, os filhos (descendentes), os
pais (ascendentes), os irmãos e os parentes até o quarto grau consanguíneo (colaterais).
Caso não houvesse herdeiros, o Estado se encarregaria de gerenciar os bens fúnebres. Os
cônjuges eram meeiros e não herdeiros necessários, havendo assim, como declarado por
Antônio, a necessidade de serem indicados como herdeiros na partilha do casal. 294
Os testamentos eram documentos geralmente escritos diante da ameaça da morte e
podem ser considerados dos registros históricos, mais complexos que o pesquisador
encontra nos arquivos brasileiros. Testemunham relatos individuais que, nas palavras de
Paiva, “não raro, expressam modos de viver coletivos e informam sobre o comportamento,
quando não de uma sociedade, pelo menos de grupos sociais”.295
Neles aparecem tanto elementos definidores do mundo material do testador quanto à
agonia do corpo doente que procura espaço para uma narrativa vista pelos que o rodeiam –
exceto em casos comprovados de delírios, por isso a necessidade da citação do testador
comprovando a sanidade mental - como vontades verídicas. É neste momento que
segredos são revelados, e os sentimentos cristãos muitas vezes se sobressaem aos interesses
materiais, em busca de acerto de contas terrestres que visam à absolvição divina. Também
podem indicar preocupações com a continuidade de seus bens post-mortem e a segurança
material de pessoas queridas.
Soares observa que, em Campos dos Goitacazes, entre 1750 e 1830, eram os
testadores solteiros, sem filhos ou sem pais como herdeiros necessários, quem mais
292AHMPAS.
Testamento de Antônio Alves de Maria, 1850. 1SVC. Cx. 282 ord. 08 fl.1v.
Havia a necessidade de reformas das Ordenações Manuelinas, a qual só ocorreu após o reinado de D.
Sebastião, sob o reinado de D. Felipe I (entre os anos de 1583 a 1585), sendo concluída em 1595, mas
entrando em vigência no reinado de D. Felipe II. As Ordenações Filipinas sobreviveriam à Revolução de
1640 e D. João IV, sancionou toda a legislação proveniente do tempo do governo castelhano. Para saber
mais, ler: LARA (1999).
294 Refiro aos trabalhos de FARIA (2001, p. 292-3) e também o trabalho de Marcio Soares que esclarece em
nota de rodapé a especificidade encontrada em Campos quanto á distribuição dos bens por certos testadores,
para saber mais, ver: SOARES (2009).
295 PAIVA (2009, p. 193-219).
293
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
312
livremente dispunha de seus bens, deixando muitas vezes de fora dos legados, seus
herdeiros colaterais (irmãos ou parentes).296
Em Barbacena, entre esses senhores encontra-se o testador Fernando. Em 1857, lega
à Juliana, sua escrava africana, benefícios impensados a condição de cativa tornou-a sua
testamenteira e única herdeira, embora houvesse uma herdeira colateral, uma irmã, que, de
acordo com suas próprias palavras, “o ajudou enquanto doente” 297 e por reconhecer a sua
“misericórdia” retribui-lhe a assistência com bens monetários de baixo valor. A atitude de
Fernando denota a influência conquistada pela cativa Juliana, tanto na relação com o
senhor (ao receber os melhores bens) quanto com a sociedade em que estava inserida. Pois,
seria necessário mostrar-se capaz de cumprir com precisão as disposições testamentárias
para não sofrer proibições legais.
Ao reler o testamento de Fernando, com o cuidado de agrupar suas especificidades,
deparamos com afirmações que indicam relações comuns existentes entre senhores e
escravos do Termo de Barbacena.
Em princípio algumas indagações podem ser formuladas com base nos fragmentos
do testamento de Fernando:
(...) sou solteiro e neste estado me conservo e não tenho herdeiros forçados. [...]
tenho uma escrava de nome Julianna africana, a qual depois de minha morte
ficará liberta em remuneração aos bons serviços e assim também ficarão
libertos seus filhos João, Poncianno, Evaristo, Lino e Virginia e todos mais que
tiver durante minha vida [...].298
Estaria a confiança do testador, em relação à Juliana, a indicar um romance entre
senhor e escrava? Seriam seus filhos os escravos relacionados como filhos de Juliana? Nem
todas as respostas estão dispostas nos documentos. Contudo, é provável que existisse uma
relação afetiva entre o senhor e a escrava, embora seja possível não haver necessariamente
ligação consanguínea com os filhos de Juliana. Fernando não parece se importar em deixar
público à proximidade existente com sua herdeira ao torná-la responsável pelos seus bens e
disposições post-mortem, o que leva a crer que não se incomodaria em assumir
publicamente a paternidade de filhos naturais.299
296SOARES
(2009, p.126).
Arquivo Municipal Altair Savassi – Barbacena. Registro de testamento de Fernando da Costa Pereira
Osório. Caixa 282, ordem 6, fl. 154. Data 1857.
298AHMPAS. Registro de testamento de Fernando da Costa Pereira Osório. Caixa 282, ord. 6, fl. 154. Data
1857.
299FARIA, em um balanço historiográfico sobre as alforrias e alforriados dos setecentos a meados dos
oitocentos, alega que vários testadores alforriavam não só os filhos naturais, como também as mães escravas.
Fato diferente acontecia com testadores, pais de filhos ilegítimos, oriundos de adultérios que não os
297
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
313
Não foram apenas os testadores do sexo masculino, que se dispunha a beneficiar
suas escravas. Muitas mulheres, sem herdeiros descendentes ou ascendentes necessários, ao
legarem seus bens, lembravam-se da amizade dispensada por seus escravos. Casos como o
de Dona Ana Maria de Araújo, solteira, que, em seu testamento, demonstra a proximidade
existente na relação quotidiana com sua escrava Quintiliana. Deu a esta alforria como
também a “todos os seus filhos que há e possa haver”, liberdade que se tornaria efetiva
logo depois da morte da testadora. Também devolveu um empréstimo, adquirido com
Quintiliana em “momento de aperto”, no valor de 1:000$000 (um conto de réis). Fê-lo,
deixando-lhe, como pagamento, uma escrava de nome Januária crioula. Dona Ana, ao
finalizar o testamento, alega que, por gratidão aos serviços e à “amizade que a sempre
tratou”, instituía Quintiliana parda e Vicente Ferreira Barbosa, sobrinho da senhora,
herdeiros em igualdade de direitos dos seus bens post-mortem. 300
A atitude da testadora comprova o grau de autonomia conseguido pela escrava tanto
em amizade e confiança quanto em possibilidade de exercer trabalhos extras que a
favorecesse acumular pecúlios. Dona Ana, além de libertar Quintiliana, alforria outros
quatro escravos, mas somente esta alcança legados raros à sua situação de cativa.
Na abertura do inventário em 1861301, um ano depois da escrita do testamento, o
monte mor dos bens de Dona Ana chegava a 19:979$500 (dezenove contos, novecentos e
setenta e nove mil e quinhentos réis), em terras, benfeitorias e vinte escravos. Ao reduzir os
valores com as dívidas passivas e despesas do funeral, restou um monte líquido de
10:949$400 (dez contos, novecentos e quarenta e nove mil e quatrocentos réis) que,
conforme solicitação da testadora deveria ser repartida em igualdade com seus herdeiros,
Vicente e Quintiliana. Dona Ana solicita que a escrava Severina fique na meação
pertencente à Quintiliana.
O sobrinho e testamenteiro de Dona Ana (Vicente) prefere como pagamento de sua
parte, sete escravos, com idade que variava de três a quatorze anos. Deixa a Quintiliana as
terras de campo, benfeitorias, casa e quatro escravos: Miguel crioulo, de vinte anos e três
filhos de Severina, com idade de três, seis e sete anos. Quanto à Severina, esta foi
inventariada para pagamento de dívidas do testamento, contrariando o pedido da testadora.
reconheciam e nem os tornavam seus herdeiros. Legando-os muitas vezes apenas alforrias e bens retirados de
suas terça. FARIA (2007, p. 18).
300 AHMPAS. Livro de Registros de Testamentos. Caixa 278, ordem 09, fls.69. Testamento de Dona Anna
Maria de Araújo. Data: 1860. 1SVC.
301 AHMPAS. Inventário de Anna Maria de Araújo. Cx. 43, ord. 04. Data: 1861. ISVC.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
314
A princípio, o fato de o testamenteiro desrespeitar uma solicitação de sua tia, não
deixando Severina na meação de Quintiliana e distanciando-a de seus filhos menores,
deduziria certa negligência, não titubeando em desfazer a família de escravos e causando
tensão na “senzala.” Poderia ser também uma atitude realizada pela impossibilidade
financeira de cumprir à risca as normas testamentárias. Todavia, felizmente o documento
deixa à mostra a relação de Vicente com a falecida; além de seu testamenteiro, era seu
maior credor, com uma dívida que chegava a seis contos de réis. Foram inventariados, para
pagamento dessa dívida, sete escravos. Outros dois cativos do plantel de Dona Ana foram
vendidos e seus valores utilizados para saldar os custos do testamento e do funeral da
testadora.
Ao analisar a quantidade de escravos adquiridos por Vicente na herança e no
pagamento da dívida, esse adquire quatorze escravos de sua finada tia. Severina, como
consta na partilha do inventário foi incluída no pagamento da dívida, dessa forma, fica sob
domínio do testamenteiro e sobrinho. Avaliada em 1: 300$000 (um conto e trezentos mil
réis), preço que além de mostrar seu alto valor de mercado, comprova encontrar-se em
idade fértil (os documentos não mencionam sua idade, mas, como declarado, seus filhos
tinham entre três e sete anos) e exercer profissão que gerasse produtos, como foi
mencionado pela testadora.
Teria Quintiliana se contrariado com as escolhas de Vicente, não deixando Severina
em seu poder, conforme solicitação de Dona Ana?
É provável que não, pois Vicente não tenta driblar os demais desejos fúnebres de
Dona Ana. Dividiu com igualdade a herança com Quintiliana, como se verifica no
inventário e nas prestações de contas, o que sugere relação sem muitos conflitos entre os
herdeiros, tal situação facilitaria o convívio da escrava Severina (pertencente à meação de
Vicente) com seus três filhos que passaram a pertencer à herdeira Quintiliana.
Quintiliana e Juliana são alguns dos exemplos de normalidade verificada nas relações
escravistas com plantéis pequenos ou com escravos com maior proximidade com a casa grande, os quais souberam dentro do mundo de “batalhas” que envolvem as relações de
poder, aproveitar as brechas existentes nos sistemas normativos e se aproximar de forma
significativa da possibilidade de alcançar, além da liberdade, recursos que lhe garantissem
viver com dignidade.
Os testadores citados fazem parte do grupo de 79 senhores num panorama de 388
testamentos encontrados no Arquivo Municipal de Barbacena para o período de 1850 a
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
315
1888, que legaram benefícios a escravos e libertos. Esses testadores representam 20,3% do
total.
Ao agrupar os 79 testadores, observa-se que uma parcela considerável possuía
algumas
características
semelhantes,
conquanto
haja
diferenciações
em
suas
relaçõesescravistas. A principal se deve ao estado matrimonial dos senhores. Ao juntar
homens e mulheres, solteiros e sem herdeiros necessários totalizam 39, 2%, contra casados
e viúvos que alcançam 30,4%, como demonstrado na tabela.
Tabela 1- Relação dos testadores quanto ao sexo, estado civil e herdeiros / 1850-1888
Fonte: testamentos do Arquivo Municipal de Barbacena “Altair Savassi”
*Incluindo um celibatário sem herdeiros forçados.
**Quanto aos testadores casados considerou seus cônjuges como herdeiros forçados, tanto por
receberem metade dos bens como meeiros, quanto pela maior parte dos testadores indicarem seus
parceiros como herdeiros de seus remanescentes.
Dessa forma, os testadores solteiros de Barbacena confirmam a expectativa de terem
maior liberdade para dispor dos bens, em razão da ausência de herdeiros forçados e das
características de plantéis menores. 302
A predominância desses plantéis em relação aos existentes em áreas voltadas ao
mercado externo é explicada, na afirmação de Paiva, pela diversidade econômica alcançada
por Minas Gerais desde o período colonial. Ela ia da atividade de mineração, passava pela
agricultura e pecuária, chegava ao comércio - e porque não dizer – e à prestação de serviços
como fornecimento de créditos. Formava assim um emaranhado social diferente do de
outras regiões do Brasil. 303
Entre os legados direcionados aos cativos no Termo de Barbacena, estavam alguns
predeterminados com condições senhoriais, tais como: não vender o legado, casar-se,
torna-se padre, obter um ofício, pagar dívidas, servir por um período a herdeiros, seguir
normas do testamenteiro ou somente segui-las depois da morte deste ou do testador,
alcançar maioridade e/ou serem obedientes aos testamenteiros e demais herdeiros. Isso se
302
Apesar deste trabalho não se pautar somente nas concessões de alforrias, mas também, a legados materiais
Viúvos c/ em meados
Viúvos s/
Solteiros
c/
Solteiros
s/
destinados aos Casados**
escravos por testadores,
dos oitocentos, tomamos
a liberdade
de comparar
os
herdeiros
herdeiros
Viúvos
herdeiros
herdeiros
Solteiros
Sexo encontrados no Termo
resultados
de Barbacena
quanto ao estado
matrimonial
dos testadores,
com os dados
#
%de Guedes #sobre as alforrias
# em Porto Feliz,
% para o período
# final do século
# XVIII e%
fornecidos no trabalho
Homens
07 dos testadores
05 escravistas 15
10*
inicio
do XIX. 18
O autor23constata que
analisados para 07
aquela região paulista,
foram21
Mulheres
06 os08
01
11
também
os solteiros
que mais libertaram
seus escravos,
graças15
a possibilidade02
de disporem de12seus bens de18
forma
livre devido/
de herdeiros
forçados.
Total
24 ausência
31
08
16Para saber mais,
30 ver: GUEDES
09 (2008, p. 193).
22
39
303 PAIVA (1995, p.80).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
316
Tabela 2 - NÚMERO DE ESCRAVOS BENEFICIADOS EM TESTAMENTOS*
ALFORRIAS**
1850-1860
1861-1870
1871-1880
1881-1888
Total
117
27
102
330***
576
LEGADOS CONDICIONADOS
1850-1860
1861-1870
1871-1880
1881-1888
Total
49
13
69
08
139
LEGADOS SEM CONDIÇÕES
1850-1860
1861-1870
1871-1880
1881-1888
Total
85
19
35
14
153
ESCRAVOS BENEFICIADOS COM ALFORRIAS E BENS MATERIAIS****
260
deve talvez à incerteza dos senhores quanto às reações dos escravos depois de terem
ciência dos benefícios a eles destinados ou por estarem convencidos da incapacidade dos
cativos em gerenciar seus negócios. As diferenciações econômicas dos proprietários – os
mais abastados se viam diretamente afetados pelas transformações sociopolíticas do Brasil
oitocentista - e o tipo de relações estabelecidas com seus escravos também poderiam
influenciar nas disposições dos legados.
Tabela 2 – Escravos Beneficiados em Testamentos
Fonte: Testamentos - Arquivo Histórico Municipal “Altair Savassi” / Barbacena.
*Informamos que os valores correspondem apenas aos escravos citados pelos senhores e confirmados em
seus respectivos inventários. No entanto, alguns documentos não mencionaram o número exato de cativos
beneficiados pelo testador.
** Nem todos os escravos alforriados receberam legados materiais de seus senhores. Dessa forma explica-se a
diferença entre o total de cativos alforriados (576) e os que receberam legados (292).
*** Entre os 330 alforriados no período de 1881 a 1888, encontram-se os 299 escravos libertos pelo Dr.
Camillo Maria Ferreira Armonde (Visconde de Prados), falecido em 1882.
**** Somente 260 cativos receberam de seus senhores, liberdade e legados em testamento. Alguns testadores
legaram benefícios a escravos e libertos de outros proprietários.
Retornando à análise dos tipos de legados descritos nos testamentos pesquisados e
selecionados, constata-se, em determinados períodos, diferentes determinações. Por
exemplo. Para que cativos e libertos fizessem jus ao legado que lhes tocava, determinados
ônus, às vezes, eram exigidos; outras vezes, não o eram.
Selecionamos os dois períodos em que a maioria dos testadores impunha ao escravo
ou ao liberto condições para receberem seus benefícios, fossem eles alforrias, fossem eles
bens materiais. O primeiro aumento ocorreu entre os anos de 1850 a 1860, época em que
vigorou com mais rigidez, imposta pelo governo brasileiro, a proibição do tráfico
internacional de escravos. Também se controlaram a aquisição de terras com a implantação
da Lei de Terras no Brasil; o segundo aumento dá-se entre os anos de 1871 a 1880,
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
317
justamente quando a sociedade escravocrata brasileira vê suas relações escravistas
bruscamente afetadas pela implantação da Lei do Ventre Livre. Os dados demonstrados no
gráfico abaixo sugerem íntima ligação entre as alterações legislativas e os legados
condicionados, talvez como resposta às pressões sociais antiescravistas e aos receios quanto
aos bens senhoriais:
GRÁFICO 1
testamentos
LEGADOS CONDICIONADOS E LIVRES
CONDIÇOES
LIVRES
1850 -1860
12
1861-1870
4
1871-1880
10
1881-1888
4
24
10
9
5
NULO
1
Fonte: Testamentos - Arquivo Histórico Municipal “Altair Savassi” / Barbacena.
A Lei Eusébio de Queiroz erradicou o tráfico negreiro. Isso trouxe consequências
desvantajosas aos senhores escravistas. Eis algumas:
- rareou-se paulatinamente a mão de obra escrava e seu valor, no mercado, se elevou;
- incentivou-se a reprodução endógena, mas seu efeito não correspondeu ao
esperado;
- elevou-se a taxa de libertação de mulheres e crianças;
- deu-se o mesmo com a taxa de mortalidade escrava, em virtude de precárias
condições de trabalho;
- necessitava-se urgentemente de novas “peças” para a lavoura, mormente nas áreas
vinculadas à exportação.
Esse aflitivo “status quo” levou senhores escravistas a pensar novas estratégias,
objetivando salvaguardar o que ainda restava de favorável do escravismo.
Entre as novas estratégias senhoriais, inicia-se, com intensidade, tanto o tráfico
interno de cativos (compravam-se os escravos excedentes de determinadas regiões) quanto
à diminuição da política de alforrias. Na visão de Mattos, ao se legar ao escravo a
possibilidade de se tornar homem livre [e com bens materiais que aumentavam seu grau de
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
318
autonomia dentro de uma sociedade escravista, podendo torna-se também senhor de
escravos e se firmar como homem livre], combinava-se autonomia escrava com autoridade
senhorial. Completava-se assim a política de dominação e de legitimação do sistema
escravista.
Contudo isso não deixava de criar perspectivas concretas ao escravo de libertar-se do
cativeiro.
304
Assim, a lei de fim do tráfico negreiro forçou os senhores a planejar a
mantença da “paz nas senzalas”. Anteriormente, a expectativa de alforria fomentada no
escravo “merecedor”, mantinha essa paz. Caso o escravo não fosse “merecedor”, seria
substituído por novos africanos que, posteriormente, também buscariam meios para
alcançar sua liberdade.
Para Silva, os senhores, diante das novas conjunturas, reagem de acordo com a
estrutura econômica de cada região: naquelas onde há declínio na produção, desfazem-se
dos cativos aproveitando seus valores de mercado; aquelas onde há prosperidade buscam
aproveitar, durante o máximo de tempo possível, a mão de obra escrava existente. Ambas
as situações não são bem vistas pelos cativos, que sofrem graves prejuízos, com suas
existências.305
Barbacena participa ativamente do tráfico interno de escravos, importando, entre os
anos 1852 e 1871, 5.528 cativos de outras regiões. Esse número comparado ao da
importação de cativos feita, no mesmo período, por Santo Antônio do Paraibuna – Juiz de
Fora (9.140) mostra que a sociedade barbacenense estava apegada à mão de obra cativa no
pós 1850. Dessa forma torna-se esclarecedor o aumento dos legados condicionados entre
1850 e 1860. Era a tentativa de manter, sob o domínio senhorial, os braços cativos. Ao
mesmo tempo buscava-se manter a estabilidade entre a casa-grande e senzala legando
benefícios com determinações que deveriam ser cumpridas.
Como afirma Mattos, entre a liberdade e a escravidão na região Sudeste, a relação
entre senhores e escravos era mais do que simples ligação de propriedade. Nessa relação,
consideravam-se deveres de fidelidade e de amizade. Se assim não fosse, ganhos já
alcançados correriam riscos. Por exemplo: suspensão do direito à alforria, mesmo a
escravos já libertados.
Essa política de negociação, entretanto, não favorecia somente o
“poder moral dos senhores”, pois a repercussão de atos considerados pelos escravos como
304
305
MATTOS (1998, p.143).
SILVA (2007, p.53).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
319
reprováveis poderia desencadear reações impensadas e perigosas para a própria
manutenção do sistema.306
Outro fator a considerar, quando da análise do aumento de legados condicionados
nos anos de 1850, foi à perturbação causada pela aprovação da Lei de Terras. Ela teria
influenciado os senhores do Termo quanto à distribuição dos benefícios post-mortem,
principalmente numa região predominantemente rural. Desde a suspensão das sesmarias e
o início do registro das terras em cartório, estas tiveram alta em seus valores, o que tornaria
seus proprietários mais cautelosos quanto à perpetuação dos bens agrários.
Barbacena, embora não estivesse inserida diretamente na economia de exportação,
obtém sua posição de entreposto de comércio e de abastecimento do mercado interno.
Também utiliza suas terras de pastagens e de cultivos de hortaliças para se enriquecer e
dinamizar sua produção.307 Mesmo com a diferenciação econômica em relação à cidade de
Juiz de Fora, não viabilizou os proprietários rurais do Termo a restringir seus bens de raiz
ao seu reduto familiar ou a preservá-los de diferentes formas.
O segundo aumento dos legados condicionados, apresentados no gráfico 1
começam, justamente, com a implantação da Lei do Ventre Livre em 1871. Esta, além de
beneficiar os ingênuos nascidos de mães cativas, proibia a utilização da lei costumeira
senhorial, se, em caso de “ingratidão”, revogar benefícios já concedidos aos escravos, e
oficializava a prática do pecúlio como meio de alcançar a liberdade. Assim, os proprietários
escravistas se viram de mãos e pés atados diante das pressões escravas e de leis
abolicionistas. Era necessário, portanto, novo instrumento coercitivo para a manutenção do
poder moral dos proprietários escravistas.308
Nas pesquisas que abordam casos de ascensão social do escravo, citamos o trabalho
de Guedes sobre as experiências de egressos do cativeiro. Esse pesquisador inicia suas
explicações contestando as hipóteses lançadas por outros historiadores que afirmam que as
concessões de alforrias aos escravos, por parte de seus senhores, podem ser consideradas
engodo senhorial de um lado e sintoma da resistência do outro. Para o autor, o seguir tal
pensamento dicotômico, “implica afirmar que os escravos conquistaram um engodo e
caíram na armadilha do senhor, contribuindo para a manutenção e estabilidade do sistema.”
309
306
MATTOS (1998, p. 192).
MASSENA (1985).
308 CUNHA (1985, pp.45-60).
309 GUEDES (2008, p.183).
307
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
320
A seu ver, o que ocorria era o contrário. As concessões de alforrias pertenciam ao
poder moral do senhor. Era uma troca equitativa em busca da estabilidade, porém, não
eliminava tensões e pressões estimuladas pelos escravos. Estes sabiam que precisavam ser
cautelosos para adquirir uma mobilidade social que lhes possibilitasse viver com
tranquilidade. É claro que houve aqueles que reagiram de forma agressiva ao cativeiro, que
se rebelaram ou fugiram mato adentro, mas esses, conforme o autor, “viam sua liberdade
social cada vez mais distante”.
Seguindo o pensamento de Guedes, as alforrias, por ser concessão dos senhores,
facilitava a estes serem os “manipuladores” do sistema escravista. No entanto, tais
manipulações sofriam influências das pressões e inseguranças surgidas dentro da relação
senhor e escravo. O cativo, apesar das limitações impostas pela escravidão, mostrava-se
atento às determinações senhoriais, o que fazia com que senhores agissem com cautela em
relação a eles.
Desde a década de 70, as cartas e legados condicionados passaram a estabelecer uma
data para a concessão, talvez devido aos receios quanto à continuidade da escravidão.
Como afirma Pires, “utilizar uma carta, como expediente de controle, sem delimitar um
período para sua efetivação, talvez não se revelasse uma estratégia mais eficiente naquele
momento.”
310
Por outro lado, a extensão dos prazos mostra a crença na longevidade do
sistema escravista. Assim, o aumento das condições, na década de 70, dos legados
distribuídos pelos testadores barbacenenses aos cativos confirma a visão de Guedes sobre a
necessidade da continuidade do poder moral dos senhores sobre seus escravos, diante das
instabilidades políticas da manutenção do sistema. Ao aceitar tais benefícios não fazia dos
escravos iscas fáceis às armadilhas senhoriais. Apesar da imposição das condições, em caso
de serem contrariados em suas expectativas escravas, poderiam eles transformar-se em
“homens perigosos” à continuidade do sossego senhorial.
A presença, no gráfico, de um testamento nulo deve-se ao descumprimento das
disposições testamentarias, diante da inexistência de bens suficientes para pagamento das
despesas e legados post-mortem. Foi o que se deu com o testamento de Antônio
Gonçalves de Andrade.311
310
PIRES, Maria de Fátima Novaes. Cartas de alforria: “para não ter o desgosto de ficar no cativeiro”.
Revista Brasileira de História, São Paulo, v.26, n.52, 2006, p.152.
311AHMPAS Registro de testamento. Caixa 286, ordem 08, livro 18, fl. 48. Antônio Gonçalves de Andrade.
Data 1871. 1SVC.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
321
Os legados livres, apresentados no gráfico constituíam em muitos casos, uma
estratégia senhorial que visava à formação de agregados. Não eram eles demonstração de
generosidade. Como sugere Pires, ao analisar as cartas de alforrias incondicionais no alto
sertão da Bahia – cujas observações estendemos às distribuições de legados de Barbacena o fato de testarem incondicionalmente benefícios a determinados escravos, apesar de não
descartar as relações de amizade, afeto e gratidão, também se pautavam na necessidade de
assegurar trabalhos gratuitos ou a preços irrisórios desses libertos.312 Na verdade, a
incondicionalidade nada mais era do que o pagamento por anos de dedicação e trabalhos
prestados aos senhores. Há anos tais cartas e legados já haviam sido pagos de diversas
formas.
A família Sá Fortes fornece informações sobre as estratégias escravistas utilizadas
pelos antigos senhores com a desarticulação da mão de obra compulsória em Barbacena.
Procedendo ao inventário e às contas testamentárias dos bens de D. Maria Luísa Sá
Fortes em 1889, os recibos dos legatários (ex-cativos) demonstram terem recebido
benefícios próximo de 13 de maio de 1888. Realizou-se, no mesmo mês, um contrato entre
o testamenteiro Manoel Maria de Sá Fortes e os libertos, firmando o agenciamento dos
trabalhos dos ex-escravos por um prazo inicial de três meses na Fazenda do Curral Novo
(na parte da fazenda pertencente à finada, contavam-se 599 alqueires de terras de culturas e
campos, mais casas, moinho, monjolo, senzala, ranchos para porcos, paiol e dezenas de
animais como bois, vacas, bezerros, porcos, burros e cavalos). Pagava-se aos homens um
salário de 8$000 (oito mil réis); às mulheres o mesmo valor, só que trimestralmente. Mais
tarde, o período seria renovado somente com os trabalhadores necessários à manutenção
dos serviços da fazenda em troca de salário e médico. Os demais libertos eram instalados
em pequena área da fazenda para “agricultarem”, e receberia a metade dos produtos
originários em terra boa, a terça parte em terra regular e o razoável em terra ruim. 313
Dentro dessa visão, não é de se estranhar que a medida mais utilizada pelos senhores
em busca da manutenção da ordem escravista, e que ia diretamente ao anseio dos escravos,
era a possibilidade desses homens se tornarem livres e, quem sabe possuidores de bens que
lhes favorecessem condições estáveis de vida, conquistadas por meio de cartas de alforrias e
de legados deixados por seus senhores.
312
PIRES (2006, pp.141-174).
Inventário de D. Maria Luiza de Sá Fortes, caixa 79, ordem 08, ano 1889. Contas
Testamentárias, caixa 141, ordem 01, 1889. 1SVC.
313AHMPAS.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
322
Faria corrobora com a idéia de que a alforria poderia ser resultado tanto do acúmulo
de pecúlios, depois de anos de trabalhos por parte do cativo, quanto da recompensa por
sua “dedicação, amizade e bons serviços prestados” ao senhor. Em suas palavras, para o
escravo “o ganho mais evidente era o exercício da liberdade de movimento.” 314
Por ora, observamos que a relação de proximidade entre senhores e escravos foi uma
marca das disposições testamentárias que favorecia os cativos, com liberdade e bens
materiais, e também aos escravos já retirados das garras da escravidão, mas com forte
ligação com a casa senhorial. Eram benefícios que ampliavam a autonomia alcançada. Tais
relações eram consequência da ausência de parceiros e herdeiros necessários e da
conjuntura porque passava o sistema escravista brasileiro. Necessitavam ambos os lados de
readaptações em suas atitudes, fato que não descarta previsões erradas ou mal formuladas
que os deixavam (senhores e escravos) à mercê de perigos.
Bibliografia
CUNHA, Manuela Carneiro da.Sobre os silêncios da lei costumeira e positiva nas alforrias de
escravos no Brasil do século XIX. In. Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, s.n. v.28, n.1,
1985, pp.45-60.
LARA, Silva H. (org.). Ordenações Filipinas V. São Paulo, Cia das Letras, 1999.
FARIA, Sheila de C. A Colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 135.
______. A riqueza dos libertos: os alforriados no Brasil Escravista. In: CHAVES, Cláudia Maria das
Graças, SILVEIRA, Marco Antonio (orgs.). Território, Conflito e Identidade. Belo Horizonte:
Argvmentvum, 2007, p. 18.
______. “Sinhás Pretas: acumulação de pecúlio e transmissão de bens de mulheres forras no
sudeste escravista (século XVIII e XIX)”. In: SILVA, Francisco; MATTOS, Hebe e FRAGOSO,
João (org.) Escritos Sobre História e Educação: homenagem a Maria Yedda Linhares. RJ,
Mauad/ FAPERJ, 2001, p. 292-3.
GUEDES, Roberto. Egressos do Cativeiro: Trabalho, família, aliança e mobilidade social: (Porto
Feliz, São Paulo, c.1798 – c. 1850). Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2008, p. 193.
MASSENA, Nestor. Barbacena: a terra e o homem. Belo Horizonte: imprensa Oficial, 1985.
MATTOS, Hebe M. Das cores do Silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista,
Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 192.
314
FARIA (1998, p. 135).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
323
PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas MG do século XVIII: estratégias de resistência
verificadas em testamentos. São Paulo, Annablume, 1995, p.80.
______. Frágeis fronteiras: relatos testamentais de mulheres das Minas
setecentistas.Anuário de Estudios Americanos (Ed. Imprensa), v. 66, p. 193-219, 2009.
Gerais
PIRES, Maria de Fátima Novaes. Cartas de alforria: “para não ter o desgosto de ficar no
cativeiro”. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.26, n.52, 2006, p.152.
SILVA, Ricardo Tadeu Caíres. Caminhos e descaminhos da abolição. Escravos, senhores e
direitos nas últimas décadas da escravidão (Bahia, 1850-1888). Curitiba: UFPR/SCHLA, 2007. p.53.
SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos
escravos nos Campos de Goitacazes, c.1750- c.1830. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009, p.126.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
324
Simpósio Temático 02:
Família e História: perspectivas e abordagens
A mãe de família: construção de um ideal no jornal O Sexo Feminino
Bárbara Figueiredo Souto
Mestranda em História Social pela USP
barbarasouto@hotmail.com
Resumo: Analisamos o jornal O Sexo Feminino, de propriedade de Francisca Senhorinha da
Motta Diniz, o qual começou a circular no dia 7 de setembro de 1873, na cidade da
Campanha. Após um ano de publicação em Minas Gerais, a proprietária mudou-se para o
Rio de Janeiro, onde continuou suas publicações até o ano de 1890 com algumas
interrupções. A partir de novembro de 1889, o jornal passou a ser intitulado O Quinze de
Novembro do Sexo Feminino, em homenagem à mudança política, pela qual o país passou.
Focamos a análise na construção do ideal de mãe de família elaborado nas páginas do
jornal. Logo no primeiro número do periódico, Francisca Diniz apresentou a questão
central de sua luta: a educação da mulher. Para a autora, a mãe era peça fundamental na
família e na sociedade, pois ela era a responsável pela educação dos filhos. Entretanto, a
redatora denunciava que em sua época, os homens negligenciavam a educação feminina.
Tal fato seria prejudicial para a família e para a civilização como um todo, pois como
poderia a mulher educar a humanidade, se a própria mãe de família não recebia ensino de
qualidade? Ao longo da leitura do periódico, percebemos que o ideal construído sobre a
mãe de família estava relacionado com moral, virtude, religião, independência, inteligência e
ação política.
Palavras-chave: Imprensa, Maternidade, Família
Abstract: The journal analyzed O Sexo Feminino, property of Francisca Senhorinha da
Motta Diniz, which began circulating on September 7, 1873 the city’s Campanha. After a
year of publication in Minas Gerais, the owner moved to Rio de Janeiro, where she
continued her publications until the year 1890 with some interruptions. From November
1889, the journal came to be called O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, in honor of the
political change, in which the country has. We focus the analysis on the construction of the
ideal mother of the family prepared in the journal pages. On the first issue of the journal,
Francisca Diniz presented the central issue of her struggle: the education of women. For
the author, the mother was a key player in the family and society, for she was responsible
for the education of children. However, the editor complained that in her time, men
neglected the education of women. This fact would be detrimental to the family and to
civilization as a whole, for how could the woman educate humanity if the mother of the
family herself was not receiving quality education? Throughout the reading of journal,
noticed that the ideal built on the mother of the family was related to morality, virtue,
religion, independence, intelligence and political action.
Keywords: Press, Maternity, Family
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
325
O periódico O Sexo Feminino tinha como subtítulo “dedicado aos interesses da
mulher”. Esse jornal tinha como redatora e proprietária a professora Francisca Senhorinha
da Motta Diniz, natural de São João Del Rey. Ainda não há muitos trabalhos sobre esse
importante jornal do século XIX,315 mas existentes revelam que não foram encontrados
registros de nascimento e morte de Francisca Diniz, nem a data em que ela mudou-se de
Campanha. Entretanto, seus pensamentos, defesas e projetos ficaram registrados nas
páginas de seus periódicos, que felizmente estão conservados em microfilme no acervo da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
A proposta principal do periódico era veicular ideias em prol da melhoria de vida das
mulheres. A principal defesa de Francisca Diniz era a educação feminina de qualidade,
como podemos ver nesse trecho veiculado no primeiro número do seu periódico:
Em vez de paes316 de familia mandarem ensinar suas filhas a coser, engomar, lavar,
cosinhar, varrer a casa etc., etc., mandem-lhes ensinar a ler, escrever, contar,
grammatica da lingua nacional perfeitamente, e depois, economia e medicina domestica, a
puericultura, a litteratura (ao menos a nacional e portugueza), a philosophia, a historia, a
geographia, a chimica, a historia natural, para coroar esses estudos a instrucção moral e
religiosa; que estas meninas assim educadas não dirão quando moças estas tristes
palavras:
“Si meu pai, minha mãi, meu irmão, meu marido morrerem o que será de mim!!”
Não sirva de cuidado aos paes que suas filhas, assim educadas e instruidas, não
saibão coser, lavar, engomar, cortar uma camisa, etc.etc. (DINIZ, 07/09/1873, p.1)
É importante observar nesse trecho que para Francisca Diniz a educação da mulher
mão se limitava às habilidades domésticas, nem ao conhecimento científico. Para a
professora, a mulher tinha que saber como cuidar da casa, do marido e dos filhos, mas tais
habilidades não eram incompatíveis com a ciência, por isso, a mulher devia se instruir, para
conseguir entrar no mercado de trabalho e ganhar seu próprio dinheiro, o que era
fundamental para a independência do sexo feminino. Portanto, para a redatora a
emancipação da mulher ocorreria por meio da instrução. Na atualidade, essas ideias podem
parecer simples, mas para a segunda metade do século XIX era um tipo de pensamento que
distoava dos ideais da sociedade patriarcal. Além das ideias avançadas, outro grande mérito
de Francisca Senhorinha era divulgar esses pensamentos na imprensa – espaço que era
comumente atribuído como de exclusividade masculina – e ainda covocar suas
conterrâneas para aderirem à sua luta:
315
Até agora encontramos apenas as seguintes dissertações: NASCIMENTO, 2004; ANDRADE, 2006;
ROSA, 2011.
316 Nas transcrições e nomes próprios manteremos a grafia original.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
326
Instrucção para o sexo feminino minhas caras patricias! Não cessemos de pugnar e
clamar até que completamente consigamos este desideratum [...] Principiemos a
reagir contra o despotismo do homem, e o primeiro passo seja este, habituandonos a vir á imprensa exprimir os nossos pensamentos [...] Pela discussão
persuadiremos, e conquistando palmo a palmo o terreno que nos hão roubado,
seremos um dia independentes e felizes.
O hymno da victoria sera nosso. Avante pois. (DINIZ, 14/09/1873, p.2)
Francisca Senhorinha acusava o homem de colocar a mulher na condição de
submissa, mas não deixava de alertar as suas companheiras, que muitas vezes a própria
mulher permitia tal condição. Por isso, clamava para que as mulheres se instruissem e
saissem da condição de “traste de casa”. Apesar da professora ter dirigido seus escritos às
mulheres em geral, ela tinha preocupação especial com as mães de familia. A própria
redatora era casada, com um professor e também proprietário de um jornal na cidade de
Campanha, e mãe de três filhas Amelia, Albertina e Elisa Diniz. Portanto, a professora
conhecia bem a vida de mãe, de esposa, além de professora e jornalista. É provável que o
magistério, que no século XIX muitas vezes era compreendido como uma extensão da
maternidade, e as leituras de autores como Aimé Martin317 e Rousseau tenham-na
influenciado na construção de seu ideal sobre a mãe de familia.
Francisca Diniz acreditava que a mãe de família era elemento fundamental na
sociedade, por isso, para que um país se desenvolvesse era preciso que o grau de instrução
das mulheres fosse elevado, já que eram elas as responsáveis pela educação dos futuros
cidadãos. Por esse motivo, a redatora suplicava em seu jornal:
Prepare-se o futuro pela educação e instrucção do sexo fragil.
Formem-se as mãis de familia, que por seu turno vão erguer escolas e collegios,
nos campos, nas villas e nas cidades; que ensinem á mocidade de ambos os
sexos os sãos principios de uma instrucção moral e religiosa, e a face da sociedade
se ha de mudar.
Mãis de familia assim formadas prepararão a mocidade que futuramente possa
ornar as diversas carreiras a que póde aspirar um moço ou uma moça desde a mais
alta escala social até o mais modesto emprego official.
Só ha um meio de regenerar a sociedade, de mudar moralmente a face da terra,
de emancipar a mulher, de salvar-lhe um futuro – é pela educação e instrucção no collegio,
ou no lar domestico por pedagogos da escolha paterna, e isto emquanto não se
preparão as mães de familias.
E’ tal a preponderancia materna que a respeito Aimé Martin assim se exprime:
“No coração maternal se nutrem o espirito dos povos, os seus costumes, prejuizos, virtudes, e
por outros termos, a civilisação do genero humano.(DINIZ, 14/09/1873, p.2)
317 Loius-Aimé Martin, foi um literato francês do século XIX que publicou um número considerável de obras.
Alguns estudiosos da área de gênero remetem a ele devido a sua obra que trata da educação da mulher,
mesma obra na qual Francisca Diniz retirou a frase citada acima: De l’éducacion dês méres de fammille, ou de la
civilisation du genre humain par les femmes, publicada em Paris, pela editora Gosselin, em 1834. Ver, por exemplo:
PERROT, 1988, p. 177.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
327
Não podemos deixar de observar que na concepção de Francisca Senhorinha, a
moral e a religião eram elementos fundamentais na educação e, portanto, seriam
elementares na formação feminina. Para entender melhor essa ideia, vale dizer que para a
redatora instrução e educação tinham significados distintos. A instrução era o acesso aos
conhecimentos científicos, ou seja, era o desenvolvimento das habilidades intelectuais. Esse
tipo de conhecimento, geralmente, era ensinado na escola e poderia ser transmitido por
professores ou professoras – para Francisca Diniz, a mulher tinha a mesma capacidade
intelectual que o homem, ideia fortemente contestada no século XIX, inclusive por
médicos e cientistas.318 Já a educação era dividida em três categorias: intelectual, física e
moral. Para a redatora, a educação intelectual era o mesmo que a instrução; a educação
física referia-se aos cuidados com o corpo e a saúde; e, por fim, a educação moral tratava-se
dos ensinamentos religiosos e das virtudes (DINIZ, 04/10/1873; p.1-2; DINIZ,
11/10/1873, p.1-2). Desta forma, a professora afirmava que apenas as mulheres eram
capazes de educar, os homens só conseguiam instruir, pois era da “natureza feminina” ter
virtude e moral. Baseada nessa ideia, Francisca Diniz escreveu diversos artigos criticando a
presença de professores na educação infantil, para ela apenas as professoras deviam ocupar
a profissão de professora primária, pois a criança devia formar sua personalidade com
virtude e caráter, que só as mulheres tinham habilidade de moldar. Para ela, as crianças
educadas pelos homens cresciam cheias de vícios (DINIZ, 01/11/1873, p.1; DINIZ,
31/10/1875, p.1-2). Veja esse trecho de um artigo escrito pela professora Francisca Diniz:
Si a pureza de costumes é tão importante no professor, o pudor é dos
indispensaveis requisitos n’uma professora.
A missão do professor é difficil; mas a da professora é sempre muito mais
ardua. A mulher foi predestinada para o sacrario dos affectos mais intensos do
lar, a sua educação requer por consequencia cuidados especiaes.
A sociedade avalia pelo pudor da mulher a sua corôa de virgem, a sua virtude
de esposa e a pureza de sua maternidade. E’ ainda este sentimento o maior
vinculo que lhe prende na fronte o respeito da familia.
A mulher póde, e honrozissimo exemplos existem, accumular para com a prole
os deveres de pai, quando perante a sua virtude nenhum olhar malicioso se
levante; e nesse caso a sua sublimidade não tem limites. A maternidade é pois o
mais sancto dos encargos sociaes.
E si da educação da mulher pendem tantos e tão valiosos interesses; á
professora que tem entre suas mãos as mães do futuro, cabe a mais ardua, a
mais difficil e a mais importante das missões.
Como pregar a moral, senão quando deveras se sente? Como edificar a
esperança de um povo inteiro sinão com o exemplo? O mais recatado pudor e a
mais rigida moral devem ser os principaes adornos das professoras.( DINIZ,
12/03/1874, p.1)
318
Sobre a inferioridade feminina, nos discursos médicos e científicos ver: ENGEL, 2000.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
328
Devido à importância que Francisca Diniz legava à mãe de familia, ela não
descuidava em incentivar o aprimoramento intelectual das mulheres. Como vimos nos
trechos anteriores, ela convidava as mulheres a se expressarem na imprensa, mas também
incentivava a leitura:
Mães de familia, acordai desse vosso somno prejudicial – reservai alguns
momentos para lêrdes, para vos instruirdes a fim de que comprehendendo o
que é educação, possais da-la a vossos filhos, que por seu turno a transmittirão
aos seus descendentes (DINIZ, 04/10/1873, p.2)
As mães de familia para poderem bem comprehender esta tarefa tem absoluta
necessidade de ler e ler muito, ter conhecimento do que se passa no mundo pela
leitura reflectida dos periodicos (DINIZ, 11/10/1873, p.1)
Além do incentivo à leitura e à escrita de artigos, Francisca Diniz também aceitava
colaborações literárias, ou seja, contos e poesias. Devido ao receio de mostrar seu
pensamento, muitas colaboradoras enviaram poemas sem a assinatura. Anônimos, com
nomes ou pseudônimos, o importante é que em quase todos os números dos jornais de
Francisca Diniz havia uma expressão literária de suas colaboradoras. Os temas expressos
em forma de poesia eram variados, desde amor, familia e Deus à emancipação feminina. A
título de exemplo, segue o poema de S.Q:
Conselhos à minha filha
Filha, cultiva o entendimento
O estudo augmenta sempre o talento,
Quando a belleza do corpo finda
O espirito vive e brilha ainda
Procura ornal-o com a riqueza
De sãns virtudes que dão nobreza,
N’arte mesquinha do toucador
Só as vaidosas achão valor.
Estes enfeites que o corpo adornão
A presumida, bella não tornam
Belleza d’alma só deve ornar
Quem quer no mundo fazer-se honrar.
Nada entre os homens tem mais valor
Que o precioso santo pudor,
Guarda no seio a piedade
Doce indulgencia e a castidade.
O mundo engana com mil trapaças
Dão seus prazeres, vicio e desgraça,
Foge dos laços desse traidor
Que alma enôdoa fingindo amor.
Foge aos deleites da ruim vaidade
Que nunca trazem felicidade,
E quer na alegre ou triste sorte
Seja a virtude sempre teu norte.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
329
(S.Q. 26/12/1875, p.2-3)
No poema escolhido a temática e argumentos dialogam diretamente com o programa
do jornal O Sexo Feminino, mas vale alertar que isso não era regra, as mulheres deviam
escrever poesias mais para praticar a escrita que defender uma ideia, mas caso fosse
possível conciliar os dois melhor. Outra estratégia utilizada pela professora, com o intuito
de melhorar o intelecto de suas leitoras era a veiculação de charadas. Sempre no número
posterior ao da publicação da charada, Francisca Diniz revelava a resposta.
Para uma mulher ser uma boa mãe de família era preciso mais que um intelecto
desenvolvido. Segundo Francisca Diniz, a mulher exercia grande influencia nos filhos e
esse fato não era novidade, por isso, mencionou grandes homens que foram influenciados
por suas mães, como Voltaire, Napoleão e Lamartine (DINIZ, 31/07/1874, p.3) Uma boa
mãe, aos olhos de Francisca Senhorinha, devia abrir mão do luxo e da vaidade para focar
na educação de seus filhos, além disso, a mãe devia ser recatada e não gastar seu tempo
com bailes e teatros. (SEM AUTOR, 30/08/1874, p.1-3). A redatora não construiu tal ideal
de mãe de familia sozinha, as colaboradoras do jornal corroboravam as concepções de
Francisca Diniz, veja esse pensamento:
[...] si não tiver no coração o germen de uma religião pura e santa, si não possuir
uma educação apurada, jámais será uma virtuosa filha, uma mãi de familia modelo,
uma verdadeira educador de sua prole; não passará de uma figura de cêra, ou de
uma estatua de carne. (SEM AITOR, 18/10/1873, p.4)
Concluímos então, que Francisca Senhorinha da Motta Diniz, juntamente com as
colaboradoras do jornal O Sexo Feminino, construíram um ideal de mãe de família, em fins
do século XIX, que estava pautado, em primeiro lugar na instrução feminina, que era
elemento fundamental para a mulher educar os futuros cidadãos e ser independente dos
homens. Entretanto, outros quesitos formavam esse ideal, como o desenvolvimento das
habilidades domésticas e das virtudes, além da religião e da moral.
Referências bibliográficas
ANDRADE, Fernanda Aline de Almeida. Estratégias e Escritos: Francisca Diniz e o Movimento
Feminista no século XIX (1873/1890).Dissertação de mestrado apresentada a Universidade Federal
de Minas Gerais, em 2006.
ENGEL, Magali. Psiquiatria e feminilidade. In: PRIORE, Mary Del (org). História da Mulheres no
Brasil. 3ª ed. São Paulo: Contexto, 2000.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
330
NASCIMENTO, Cecília Vieira. O Sexo Feminino em Campanha pela Emancipação da Mulher.
(1873-1874). Dissertação (mestrado), Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de
Educação, 2004.
PERROT, Michelle. Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. 3ª ed. Trad. de
Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
ROSA, Gerlice Teixeira. Ethos e argumentação de Senhorinha Diniz em O Sexo Feminino.
Dissertação (mestrado), Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras, 2011.
Referências das fontes
DINIZ, Francisca Senhorinha da Motta. A educação da mulher. O Sexo Feminino, Campanha,
07/09/1873, p.1. [grifos no original]
DINIZ, Francisca Senhorinha da Motta. A minhas patricias. O Sexo Feminino, Campanha,
14/09/1873, p.2.
DINIZ, Francisca Senhorinha da Motta. Emancipação da mulher. O Sexo Feminino, Campanha,
14/09/1873, p.2. [grifos no original]
DINIZ, Francisca Senhorinha da Motta. Educação physica, moral e intellectual. O Sexo Feminino,
Campanha, 04/10/1873, p.1-2.
DINIZ, Francisca Senhorinha da Motta. Educação moral. O Sexo Feminino, Campanha,
11/10/1873, p.1-2.
DINIZ, Francisca Senhorinha da Motta. Como devem trabalhar as mães de familia para fortificar o
caracter de suas filhas. O Sexo Feminino, Campanha, 01/11/1873, p.1.
DINIZ, Francisca Senhorinha da Motta. O pudor em uma mestra. O Sexo Feminino, Campanha,
12/03/1874, p.2. [grifos no original]
DINIZ, Francisca Senhorinha da Motta. O professorado feminino na instrucção primaria. O Sexo
Feminino, Rio de Janeiro, 31/10/1875, p.1-2. [grifos no original]
DINIZ, Francisca Senhorinha da Motta. Educação physica, moral e intellectual. O Sexo Feminino,
Campanha, 04/10/1873, p.2. [grifos no original]
DINIZ, Francisca Senhorinha da Motta. Educação moral. O Sexo Feminino, Campanha,
11/10/1873, p.1. [grifos no original]
S.Q. Conselhos à minha filha. O Sexo Feminino, Campanha, 26/12/1875. p.2-3.
DINIZ, Francisca Senhorinha da Motta. Educação moral. O Sexo Feminino, Campanha,
31/07/1874, p.3.
SEM AUTOR. Anjos e deminios. O Sexo Feminino, Campanha, 30/08/1874, p.1-3.
SEM AUTOR. Belleza femenina. O Sexo Feminino, Campanha, 18/10/1873, p.4.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
331
“Desejando deixar por socorridos por sua morte”:
Famílias de padres: o caso do Vigário João da Costa Guimarães (1819-1836)
Edriana Aparecida Nolasco
Mestranda em História pela UFSJ / CAPES/DS
drinasco@yahoo.com.br
Resumo: O debate acerca da história da família tem possibilitado uma revisão dos diversos
tipos de organização familiar ainda que estes fossem constituídos aquém do modelo
patriarcal. Assim, analisando as práticas de alguns padres através de fontes primárias
percebemos a possibilidade da constituição de famílias por parte destes na Comarca do Rio
das Mortes. Estes elementos, analisados à luz de uma série de documentos e tendo por
base as teorias acerca dos diversos arranjos familiares, permitem através do
reconhecimento de filhos e da trajetória de vida observada na pesquisa, constatar a
existência de laços consanguíneos ao longo do tempo. As ações do padre João da Costa
Guimarães torna-se um exemplo em relação aos seus filhos reconhecidos em Escritura de
Perfilhação. Sobretudo, se considerarmos que a revisão do termo “patriarcal” proposta por
alguns estudiosos da história da família comprovaram que estes valores estiveram presentes
em arranjos familiares constituídos à margem da legitimidade.
Palavras-chave: Família, Padres, Sociabilidade
Abstract: The discuss about family history has possibilited a review of the various types of
family organization even though these were constituted below the patriarchal model. So,
analyzing the practices of some priests through primary sources we can perceive the
possibility of formation of these families in the County of Rio das Mortes. These elements,
examined through a series of documents and based on theories about the different family
arrangements, allows through the recognition of children and the trajectory of life observed
in the research,verify the existence of consanguine nooses to the long of time. The actions
of Priest João Guimarães da Costa turn a example in relation to his sons recognized in
Escritura de Perfilhação. Especially if considers that the revision of the term "patriarchal"
proposed by some scholars of the history of the family proves that these values were
present at family arrangements constituted to the margin of legitimacy.
Keywords: Family, Priests, Sociability
Os estudos sobre a família têm avançado no sentido de compreendê-la nos seus mais
diversos modelos de organização. O pioneiro das teorias que trataram da importância e da
organização familiar brasileira foi Gilberto Freyre, que “reduziu” de certa forma, a
compreensão da família nos moldes patriarcais. O autor, ao estudar o Nordeste açucareiro
no período colonial, propôs uma análise sobre a família brasileira considerando-a como
fundamental na organização política, social e econômica do país. Para ele as condições da
sociedade colonial brasileira pautavam-se na estabilidade patriarcal da família. A casa grande
era representante de todo o sistema econômico, social e político no território brasileiro.
(FREYRE, 2006: 65) Tal teoria lança luz sobre a nossa proposta de pesquisa à medida que
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
332
atribuímos ao tipo de família estudado, estratégias de inserção e conformação nos aspectos
sociais, políticos e econômicos na Comarca do Rio das Mortes.
A interpretação de Gilberto Freyre perdurou durante muito tempo como única chave
explicativa da história da família na sociedade brasileira. Entretanto, alguns estudiosos da
antropologia, sociologia e, posteriormente da história, relativizaram esta explicação e a
criticaram, na medida em que a tendência da família nos moldes patriarcais não
correspondia aos diversos modelos familiares que compuseram a sociedade brasileira no
período colonial e posterior.
A pioneira nestas críticas foi a antropóloga Mariza Corrêa e a partir da mesma foram
formuladas outras explicações, nas quais as famílias foram compreendidas dentro de
diversos arranjos distintos do protótipo da família extensa descrita por Freyre. Neste
sentido, outros formatos familiares foram considerados, tais como, a relação de
concubinato, os lares chefiados por mulheres solteiras, viúvas, a não-coabitação etc.
(CORRÊA, 1982: 13-36) A referida autora, precursora nestes debates, criticou severamente
a interpretação de Freyre interpretando-a como sendo tradutora de uma homogeneização
social desprezando a complexidade da sociedade brasileira em termos familiares. Deste
modo, contribuiu significativamente para as críticas, ao chamar a atenção para a
homogeneização social derivada da perspectiva freiriana. Para a autora, não se trata de
negar a existência da família patriarcal e sua importância no cenário brasileiro, mas admitir
a coexistência deste modelo com outros tipos de arranjos familiares. Segundo a autora,
(...) a ‘família patriarcal’ pode ter existido, e seu papel ter sido extremamente
importante, apenas não existiu sozinha nem comandou do alto da varanda da
casa grande o processo total de formação da sociedade brasileira. Para ambos
os autores parece não ter havido, neste país onde a colonização se fez de
maneira tão díspar, um processo de constituição de unidades domésticas de
variedade equivalentes nas muitas regiões onde se instalaram os primeiros
colonizadores. A história da família brasileira torna-se, em suas mãos, um
objeto dado, individualizado, e é apenas no seu interior que ocorrem as
transformações: (...). (CORRÊA, 1982: 25)
Como podemos perceber, as críticas relativas à teoria freiriana tem por base esta
generalização aplicada à sociedade brasileira relativa à composição familiar. Sem negar,
portanto, a importância da família nesse contexto, tais críticas procuraram validar outras
formas de arranjos familiares que coexistiam com o sistema patriarcal.
Os diversos tipos de interpretações sobre a constituição familiar na sociedade
brasileira, embora divergentes em determinados aspectos, consideraram a família como
fundamentalmente importante na estruturação econômica, política e social. Sheila Faria
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
333
resumiu a família como sendo fundamentalmente importante para a “montagem e
funcionamento das atividades econômicas coloniais.” (FARIA, 1998: 21) Contribui com
essa ideia, Eni Samara, ao afirmar que a família teve uma importante e real participação no
povoamento das regiões do interior, bem como na organização e estruturação do poder
local e na circulação de riquezas.” (SAMARA, 1989: 07) Tais considerações permitem
percebermos que a família foi fundamentalmente importante na organização das atividades
socioeconômicas. Daí, a importância de seus estudos para compreensão da sociedade nos
seus mais diversos aspectos.
As pesquisas que promoveram o avanço na questão das concepções familiares se
relacionaram à demografia, por meio desta foi constatado uma variedade de modelos
familiares distintos da perspectiva patriarcal. Conforme Sheila Faria, no Brasil os estudos
pautados na demografia, descortinaram estruturas e organizações de domicílios bastante
diversificados. (FARIA, 1997: 47) Contribui com esta ideia, Mariana Muaze, em seus
estudos sobre família e poder no Brasil Império, segundo a autora, “as análises
demográficas ressaltaram outros tipos de formação familiar e abriram espaço para a
discussão de questões como o papel da mulher, os tipos de casamento, as relações de
concubinato, a ilegitimidade, os laços de compadrio, etc.” (MUAZE, 2008: 10) Por sua vez,
Eni Samara apontou para este fato, ao considerar que nos processos sociais era possível
perceber a existência de arranjos familiares alternativos, concubinatos e participação das
mulheres na formação da sociedade. Deste modo, a existência destas múltiplas formas
distintas do modelo patriarcal possibilitou a concepção de que as famílias se organizavam
de acordo com os mais variados contextos brasileiros. (SAMARA, 1989: 08)
Neste sentido, o predomínio da interpretação “reducionista” do sentido patriarcal
perdurou durante muito tempo, sem levar em conta as contribuições que o mesmo legou
para as novas abordagens sobre a história da família. Gilberto Freire, apesar da adoção da
família como protótipo da ordem patriarcal, não desprezou outras abordagens que podem
ser verificadas através de diversas fontes primárias. Estas, na perspectiva do autor, podem
auxiliar “o estudioso da história íntima da família brasileira.” Dentre os exemplos destas
fontes, o autor destaca os inventários, as cartas de sesmarias, os testamentos, as diversas
correspondências da Corte e ordens reais, pastorais e relatórios de bispos, atas de sessões
de Ordens Terceiras, confrarias, além de assentos de batismos, casamentos e óbitos, autos
de processos matrimoniais e outros. (FREYRE, 2006: 46)
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
334
Além desta contribuição, alguns historiadores propuseram uma revisão do termo
patriarcal e perceberam neles determinados valores que se contrapõem às suas diversas
críticas interpretativas. Ronaldo Vainfas, em seus estudos sobre a associação do
patriarcalismo e misoginia, assinalou para o fato de que, os autores clássicos, ao atribuir
valores patriarcais nas famílias extensas, não negaram, portanto, a existência de outras
formas familiares que compuseram a sociedade brasileira. Para o autor, as preocupações
dos clássicos era acentuar as estruturas de poder, rejeitando as estruturas domiciliares.
(VAINFAS, 2010: 152-153) Neste sentido, fica evidente que a análise das estruturas
domiciliares pode favorecer outro tipo de concepção de família e valores. Sílvia Brugger,
por sua vez, também considerou a importância de se pensar tais valores como insertos nas
diversas formas de relações familiares na medida em que interpretou a noção freiriana a
partir da sustentação de que o patriarcalismo naquela sociedade, embora fosse
predominante, não era o único a ser considerado. (BRUGGER, 2007: 49)
Para a região da Comarca do Rio das Mortes, de modo específico a Vila de São João
del-Rei, os estudos de Sílvia Brugger, amparados em dados demográficos, constataram uma
série de relações baseadas para além do matrimônio cristão, em concubinatos e também a
existência de lares chefiados por mulheres solteiras. A autora propõe em seus estudos uma
releitura do patriarcalismo inserindo-o nas diversas relações existentes. (BRUGGER, 2007:
71-72) Assim, as características que balizavam a organização das famílias patriarcais foram
percebidas nestes tipos de arranjos específicos estudados pela autora. Deste modo, foi
possível considerarmos que, por meio das relações que buscaremos observar através da
constituição das famílias do clero e na relação destes com seus filhos, possa haver a
presença de valores patriarcais dominando essas esferas domiciliares específicas.
Os estudos de Sílvia Brugger sobre as relações familiares em São João del-Rei,
apontaram para essa realidade ao constatar que a existência das relações consensuais não
deve ser interpretada como ausência dos valores patriarcais. A autora propõe uma revisão
do conceito de família patriarcal de Gilberto Freyre e, discutindo o conceito de
patriarcalismo, demonstrou que o mesmo estava associado à representação do poder que
tinha a família naquela sociedade, que representava uma significação simbólica de valores.
Assim, numa revisão da obra de Gilberto Freyre, aponta para a existência dos valores
patriarcais na Vila ainda que esta seja fortemente marcada pelo concubinato. Segundo a
autora,
(...) é interessante sublinhar que os trabalhos demográficos sobre Minas Gerais
se têm baseado, principalmente em mapeamentos populacionais feitos em 1804
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
335
e na década de 1830, momentos nos quais os índices de legitimidade de São
João del-Rei indicam tanto nos batismos realizados apenas na Matriz quanto na
região como um todo, um aumento das relações extraconjugais entre a
população livre. (...) O que concluo é que a existência de relações consensuais
não deve ser interpretada - como o fizeram alguns historiadores - como indício
de ausência ou debilidade do patriarcalismo ou das relações familiares. Antes, o
concubinato fazia parte e tinha papel importante na constituição destes valores
na sociedade. (BRUGGER, 2002: 89)
Do exposto, fica claro que na análise das relações familiares baseadas no concubinato
e/ou em outros domicílios chefiados por mulheres, a autora percebeu que os traços
patriarcais que caracterizavam as famílias extensas estiveram presentes também neste
modelo familiar na Comarca do Rio das Mortes. É exatamente neste ponto que a
historiadora Sílvia Brugger define o patriarcalismo. Este não se configura como um regime
cristalizado, mas pode ser compreendido como um sistema de valores, nos quais as práticas
internas no seio familiar refletem a dominação por meio da família dos aspectos sociais,
políticos e econômicos da sociedade. Tais valores não dependem necessariamente do
formato da família extensa, conforme a teoria de Gilberto Freire, mas das ações que
revelam a importância da família em estratégias que lhe garantissem a sobrevivência, o
prestígio social, a manutenção das relações sociais e de poder. Neste sentido, na análise de
outros tipos de famílias, há a possibilidade da existência destes valores, daí a possibilidade
de percebermos tais valores nas famílias específicas constituídas pelo clero.
As práticas do concubinato e da procriação de filhos por parte dos padres se
configuravam como um fato comum e era investido da ilegitimidade familiar. Conclusão
semelhante foi observada, também em relação às outras formas de relações familiares que
foram constituídas à margem do matrimônio cristão, pois estas também eram concebidas
como famílias ilegítimas. Tal ilegitimidade foi atrabuída pela Igreja, além do Estado, pois
tendo como princípio o casamento religioso como meio de legitimação familiar, condenava
as relações que não correspondessem a tais valores. Segundo Ida Lewkowicz, “à Igreja não
importavam somente as vocações religiosas e o crescimento de seus próprios quadros.
Coube-lhe o papel de dirigir a política familiar colonial, (...) A ação disciplinadora da Igreja
fez-se por meio da perseguição aos concubinários, aos amancebados e aos desviantes.”
(LEWKOWICZ, 2007: 532)
Em seus estudos sobre a família em Minas Gerais, Luciano Figueiredo afirmou que
havia uma parceria entre a Igreja e o Estado no sentido de disseminar a preservação da
família legítima. (FIGUEIREDO, 1997: 21) Corrobora com esta afirmativa, Ana Luiza
Pereira, ao afirmar que, “a Igreja Católica e o Estado português compartilhavam, no século
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
336
XVIII, objetivos muito semelhantes no que diz respeito à composição da sociedade na
América portuguesa, sendo a união matrimonial seu expoente.” (PEREIRA, s/d) Ronaldo
Vainfas, nesta mesma perspectiva, afirmou que na tentativa de controlar de perto a vida
dos fiéis a Reforma católica, além de reafirmar dogmas e regras sobre o casamento, ainda
preocupou-se com a vida das famílias, nas relações entre pais e filhos e marido e mulher.
(VAINFAS, 2010: 36) Deste modo, as uniões que se davam fora deste contexto
moralizador eram consideradas ilegítimas.
Para além do princípio de legitimidade pulverizado pela Igreja, os padres ainda
possuíam o impedimento ao matrimônio pelo fato de serem ordenados sacerdotes. Porém,
fazia parte do cotidiano na Comarca do Rio das Mortes as relações vividas pelos padres
com mulheres e filhos expressando, neste caso, um arranjo familiar ilegítimo, mas aceito
socialmente dentro dos padrões da época.319
Neste sentido, nossa pesquisa tem como pressuposto básico compreender as famílias
dos padres como representante destes novos arranjos familiares na Comarca do Rio das
Mortes, no século XIX. O que pretendemos é, sobretudo, através da análise das possíveis
relações entre padres, mulheres e filhos percebermos a presença dos valores considerados
patriarcais.
O próprio Gilberto Freyre abriu precedente para este tipo de análise na medida em
que admitiu que os alguns elementos do clero, também foram responsáveis pela formação
de famílias reais. Nas palavras do autor,
Dos próprios padres, vigário e frades sabe-se que muitos, quando prósperos,
em vez de apenas simbolicamente paternais, tornaram-se desde cedo, no Brasil,
fundadores e pais de famílias reais, cuidando delas – embora não fossem, para
os moralistas, famílias em sua ‘expressão integral’ – com o maior zelo e
tornando-se rivais dos senhores das casas-grandes como povoadores,
colonizadores e dominadores da América portuguesa através da família ou do
familismo. (FREYRE, 2006: 130)
Diante disto, podemos conjecturar que o próprio Freire, apesar das inúmeras críticas,
demonstrou um avanço significativo no contexto de sua obra, pelo fato de admitir a
existência de formas de famílias antipatriarcais na sociedade brasileira. Para o autor, “desde
os dias coloniais vêm se mantendo no Brasil, e condicionando sua formação, formas de
organização de famílias extrapatriarcais, extracatólicas que o sociólogo não tem, entretanto,
o direito de confundir com prostituição ou promiscuidade.” (FREYRE, 2006: 130) E ainda,
319
Ao que tudo indica as relações de concubinato mantidas pelos padres era aceito socialmente. De forma
específica no caso que pretendemos analisar neste artigo, o padre João reconheceu seus filhos em cartório
público na presença de testemunhas, além de outros indicativos que revelam a convivência do mesmo com
seus herdeiros, portanto, revelando a publicidade desta relação.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
337
conforme a citação acima demonstrou que os padres podem ser pensados e analisados
como elementos formadores de famílias.
São poucos os trabalhos que tem como objeto de investigação exclusivo, os padres,
mais especificamente, a constituição de famílias por parte dos mesmos. Os que existem, em
sua maioria, se prendem nas práticas imorais do clero, reduzindo-as como uma forma de
desvio. A maioria dos trabalhos realizados nessa temática concebe a formação de famílias
por parte dos padres como sendo de caráter desviante, devemos, pois considerar que tais
pesquisas se baseiam em fontes inquisitoriais de denúncia.
No nosso caso, defendemos a autenticidade de tais famílias pautada em documentos
pessoais dos padres que reconheceram seus filhos e cruzando tais fontes com documentos
de seus herdeiros tendo por base os valores patriarcais da sociedade. Com isto, não
negamos a importância dos estudos desenvolvidos por meio de outras abordagens que
analisam as práticas do clero como sendo imorais e a constituição destas relações sob o
estigma da ilegitimidade. Porém, observarmos através de uma nova perspectiva, a existência
deste tipo de família atribuindo a ela valores patriarcais.
A prática de reconhecimento de filhos em testamentos e/ou escrituras de perfilhação
se configurou como uma atitude comum de um grupo de padres constantes nos
documentos pesquisados. Portanto, nossa proposta conforme mencionado anteriormente
consiste em analisar tais ações, e, a partir delas formular uma explicação geral específica
dentro de uma lógica familiar pautada nos valores patriarcais. Tal proposta se conforma
com a perspectiva micro-analítica à medida que nossa atenção se dirige às “singularidades
das trajetórias individuais” de um grupo de padres (grifo meu). (LIMA, 2006: 147)
Desta forma, nosso objeto de investigação é o padre João da Costa Guimarães. Este
fora natural e batizado na Freguesia de Nossa Senhora do Pilar da vila de São João del-Rei,
nascido em 1754 e filho legítimo de Domingos da Costa Guimarães e de sua mulher Dona
Rita de Souza do Nascimento.320 Consta ainda em seu Processo de Habilitação que desde
criança o habilitando ajudava na Igreja, tanto na vila de São João del-Rei como no arraial de
Conceição da Barra e que seus pais moravam na lavra da Lagoa Verde, eram brancos e
legítimos. O referido padre João da Costa, ordenado por volta de 1766, com 22 anos teve
uma filha em 1794. No caso do filho João Pedro Celestino que o padre João da Costa
Guimarães reconheceu em sua escritura não encontramos seu registro de nascimento que
320 Processo De Genere Vitae et Moribus do padre João da Costa Guimarães, 1776. Arquivo Eclesiástico da
Arquidiocese de Mariana (AEAM). Armário 05. Pasta 791.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
338
torna impossível sabermos qual deles nasceu primeiro, Ana Custódia ou João Pedro, e se
eram filhos da mesma mulher. Em 1819, o padre em questão vai ao cartório e faz uma
Escritura de Perfilhação, revelando o reconhecimento de dois filhos.
Escritura de Reconhecimento de Filhos Naturais e Perfilhação e Instituição de
herdeiros que faz o Padre João da Costa Guimarães a João Pedro Celestino da
Costa e Ana Custódia da Costa, casada com o Tenente Joaquim Bonifácio
Brasiel
(...) sendo no Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil
oitocentos e dezenove aos doze dias do mês de Dezembro do dito ano, nesta
Vila de São João del-Rei, Minas e Comarca do Rio das Mortes em casas de
morada do Padre João da Costa Guimarães, (...) e aí compareceu o mesmo
Padre João da Costa Guimarães, morador nesta mesma Vila que reconheço
pelo próprio (...), e por ele me foi dito em presença das testemunhas (...), que
desejando deixar por socorridos por sua morte a João Pedro Celestino da Costa
e Ana Custódia da Costa, mulher do Tenente Joaquim Bonifácio Brasiel para se
escaparem das mãos da pobreza e miséria e arredarem de si as desgraças a que
estas arrastam e conduzem os míseros mortais vendo-se obrigados a violarem o
Sagrado das Leis Divinas e Humanas e tendo em vista serem já falecidos os pais
e avós dele Outorgante e reconhecendo serem os dois Outorgados João Pedro
Celestino da Costa e Ana Custódia da Costa seus filhos naturais por tais os
declara e por serem tidos por sua fragilidade depois de sacerdote secular do
Hábito de São Pedro os perfilha, e há por perfilhados pela presente Escritura
para entrarem na herança dos bens dele Outorgante por sua morte (...) E logo
por se acharem presentes os Outorgados João Pedro Celestino da Costa e Ana
Custódia da Costa com seu marido Tenente Joaquim Bonifácio Brasiel
moradores nesta mesma Vila (...) foi dito em presença das mesmas testemunhas
que aceitavam esta Escritura na forma e para o fim nela declarado. (...) O Padre
João da Costa Guimarães.321
O fator curioso neste caso é que o Padre João da Costa Guimarães reconheceu seus
filhos apenas nesta escritura, omitindo a existência dos mesmos em seu testamento, no qual
declara,
Eu o Padre João da Costa Guimarães querendo firmar a minha última vontade
faço o meu testamento na forma seguinte: Sou natural desta Freguesia de São
João del-Rei filho legítimo de Domingos da Costa Guimarães e Rita de Souza
do Nascimento, já falecidos, presbítero secular e não tenho herdeiros
necessários.322
Podemos conjecturar a partir desta observação, que poderia ter sido comum a
omissão na escrita dos testamentos por parte de alguns padres no que se refere à existência
de filhos ilegítimos, ou ainda o fato destes filhos já serem falecidos no momento da morte
do testador. Neste sentido, em relação ao herdeiro João Celestino, não encontramos
321
Escritura de Perfilhação do Padre João da Costa Guimarães. 1819. Livro de Notas 03 - 2º ofício. 18181821. Arquivo Histórico do Escritório Técnico II do IPHAN. p. 47v.
322 Testamento do Padre João da Costa Guimarães. Arquivo Histórico do Escritório Técnico II do IPHAN.
1836, caixa 60. p. 3.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
339
nenhuma outra informação que revelasse a continuidade da sua existência, o único dado
que temos dele é o reconhecimento do padre na Escritura de Perfilhação. Por outro lado,
no caso da herdeira Ana Custódia esta se encontrava viva no momento da escrita do
testamento de seu pai, o padre João. Tal afirmação foi constatada através do registro de
casamento323 de seu filho, neto do Padre, herdeiro instituído por ele em testamento Lúcio
Bonifácio Costa Brasiel324, este tendo se casado em 1839, sua mãe aparece no registro ainda
viva, sem a observação de ter falecido. Portanto, entendemos que a filha do padre Ana
custódia estava viva ao tempo do falecimento de seu pai.
Analisando o inventário do padre João da Costa Guimarães feito em 1836,
observamos que o mesmo ao final da vida possuía poucos bens, conforme consta nesta
declaração, “diz o Sargento Mor Joaquim Bonifácio Fernandes Brasiel testamenteiro do
falecido Padre João da Costa Guimarães que quer proceder inventário nos bens do mesmo,
mas estes são insignificantes (...).”325 Além disto, percebemos que o inventariante é o seu
genro o Sargento Mor Joaquim Bonifácio Fernandes Brasiel, o que evidencia a proximidade
na relação entre o falecido e o mesmo. No seu inventário foram arrolados, além de alguns
trastes, poucos móveis, alguns livros, peças de roupas e enxoval, entre elas uma batina,
existia também um escravo velho e doente. Não encontramos qualquer indício da mãe de
sua filha Ana Custódia, a escrava Jacinta Custódia, a não ser no registro de casamento da
filha, portanto, não temos como afirmar se esta também era mãe do herdeiro João Pedro
Celestino da Costa e qual o seu destino durante a trajetória desta família.
Mas, o importante, neste caso, é que através do texto da escritura podemos
perceber que houve evidentemente uma preocupação com o bem estar destes filhos após a
sua morte, nos seguintes termos, “desejando deixar por socorridos por sua morte”. Esta
atitude demonstra a atenção e preocupação do destino dos filhos por alguns padres no ato
do reconhecimento, procurando assegurar o futuro dos mesmos em termos econômicos.
Suely Almeida apontou para esta mesma característica ao destacar que a legitimação de
filhos em escrituras públicas de perfilhação demonstrava que os padres se mantiveram de
323
Registro de Casamento de Lúcio Bonifácio da Costa Brasiel. 1839. Livro de Registros de Casamentos.
Arquivo Eclesiástico da Diocese de São João del-Rei. Livro 11, p. 123.
324 Nota-se que o nome do referido neto do padre João da Costa Guimarães, no registro de casamento foi
lançado como Lúcio, sendo que no testamento o padre o nomeia Luis, fato este comum em documentos
escritos.
325 Inventário do padre João da Costa Guimarães. Arquivo Histórico do Escritório Técnico II do IPHAN.
1836, caixa 48. p. 2.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
340
certa forma, próximos de seus filhos e, por isso, nas palavras da autora, podem ter sido
“bons pais” (grifo da autora. (ALMEIDA, s/d: 04)
O falecimento do dito Padre ocorreu somente em 31 de maio de 1832, treze anos
depois do registro da escritura em cartório.326 Em seu testamento, nomeia como
testamenteiros em conjunto seu genro e filha e institui por herdeiros os filhos dos seus
primeiros testamenteiros, “Instituo por meus herdeiros do resto dos meus bens aos filhos
dos primeiros testamenteiros acima nomeados João Norberto da Costa e Luis Bonifácio da
Costa.”327 Tendo em vista que seus primeiros testamenteiros são o Sargento Mor Joaquim
Bonifácio Fernandes Brasiel e sua mulher Ana Custódia da Costa, esta sua filha
reconhecida na Escritura de perfilhação, seus herdeiros então, são os seus netos.
Percebemos então a estratégia familiar de transmissão de herança por parte deste
padre. Tendo em vista que reconhecendo seus filhos em carta de perfilhação garantiu, de
certa forma, a sucessão dos bens, e ainda se preocupou em transferir o restante dos bens
que lhe eram de direito aos seus netos. A legitimação de filhos, através de mecanismos
como o testamento e a escritura de perfilhação garantia aos mesmos o direito de sucessão.
Segundo Júnia Furtado, no Brasil colonial e em Portugal, de acordo com as Ordenações
Filipinas, “os filhos ilegítimos podiam ser legitimados e/ou herdar mediante algumas
condições.” (FURTADO, 2011: 98)
Na busca da existência de outros documentos cartoriais pertencentes aos filhos deste
Padre, no sentido de verificar as articulações entre pais e filhos, infelizmente não foi
encontrado nenhum deles, nem mesmo do seu genro o Sargento Mor Joaquim Bonifácio
Fernandes Brasiel. Porém, em relação ao cruzamento deste documento com registros
eclesiásticos encontramos o nascimento e o casamento da herdeira Ana Custódia. Esta
nasceu em 1794, foi batizada na Matriz de Nossa Senhora do Pilar e consta como filha
natural de Jacinta, escrava do dito padre João da Costa Guimarães.328 O que nos chamou a
atenção neste registro é que a criança foi alforriada na pia batismal pelo padre João da
Costa, prática esta comum, no que se refere à filiação ilegítima oriundas da relação entre
senhores e escravas. Segundo Vitória Andrade, as alforrias concedidas na pia batismal nos
faz pensar numa complexa relação pautada muitas vezes na solidariedade, afinidade e/ou
ligação de paternidade. (ANDRADE, 2011: 02) É o que foi constatado na observação deste
326
A data do falecimento do mesmo consta no Termo de Abertura lavrado no processo de Testamento.
Testamento do Padre João da Costa Guimarães. Arquivo Histórico do Escritório Técnico II do IPHAN.
1836, caixa 60. p. 3.
328 Registro de Batismo de Ana Custódia. Livro de Batismos. Arquivo Eclesiástico da Diocese de São João
del-Rei. 1794. Livro 16. p. 207.
327
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
341
registro. O padre João da Costa Guimarães teve dois filhos, apesar de não sabermos se
ambos foram tidos da mesma escrava Jacinta, porém preocupou-se em alforriar a filha na
pia batismal, evidenciando uma ligação de paternidade com a mesma. A herdeira Ana
Custódia se casou em 1811, com a idade de 17 anos329, e em 1819, quando tinha 25 anos foi
reconhecida em cartório por meio da sobredita Escritura de Perfilhação.
Quanto ao genro do padre, o Sargento mor Joaquim Bonifácio Fernandes Brasiel,
este foi detectado como inventariante de outro de igual sobrenome, o seu pai, Lourenço
José Fernandes Brasiel em 1833.330 Na pesquisa deste inventário, qual foi a nossa surpresa
ao descobrirmos que ambos, o inventariado e seu filho, genro do padre João da Costa
Guimarães, eram músicos. Tais conclusões foram possíveis, a partir da descrição dos bens
do dito Lourenço, onde apareceram diversos instrumentos musicais e várias partituras
relacionadas às músicas sacras. Outro fator indicativo foi percebido através de uma petição
formulada pelo genro do falecido, João Leocádio do Nascimento, viúvo e responsável
pelos netos deste, o qual declarou que vivia do ofício da música. “(...) o Suplicante vive da
Arte de Música da qual igualmente viveu o dito seu sogro e vive o inventariante seu
cunhado, (...).”331 O cunhado citado neste caso é o tal genro do padre, o Sargento Mor
Joaquim Bonifácio Fernandes Brasiel. Deste modo, percebemos que os familiares do genro
do padre João da Costa Guimarães, incluindo seu pai e cunhado viviam da arte da música.
Outras suposições podem ser inferidas ao analisarmos a lista dos bens do inventário
de Lourenço José Fernandes Brasiel, nesta continha vários elementos relacionados à
religião, como, quadros de santos, livro do Novo Testamento, catecismo, missais e
formulários de oração. Este é um fator indicativo da vivência religiosa pelo músico,
podendo revelar uma possível proximidade com o padre João da Costa Guimarães, já que
este como padre, obviamente, exercia funções de cunho religioso. Tendo o músico diversos
instrumentos musicais e partituras relacionadas à religião, e sendo constatado que o mesmo
vivia da música, bem como outros elementos da sua família, provavelmente eles atuavam
em diversas festividades da Igreja e por isso, o estabelecimento de uma relação mais estreita
com o padre João da Costa Guimarães.
O que pretendemos afirmar é o fato de que esta proximidade pode ter influenciado o
padre João da Costa na escolha de um noivo para sua filha Ana Custódia da Costa e ter
329 Registro de casamento de Ana Custódia. Livro de Casamentos. Arquivo Eclesiástico da Diocese de São
João del-Rei. 1811. Livro 2. p. 641.
330 Inventário de Lourenço José Fernandes Brasiel. Arquivo Histórico do Escritório Técnico II do IPHAN.
1833, caixa 128.
331 Idem. p. 4.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
342
contratado o casamento da mesma com o dito filho do músico o Sargento Mor Joaquim
Bonifácio Fernandes Brasiel. Neste sentido, a Igreja, além de ser um local destinado ao
exercício e cumprimento das funções espirituais e religiosas, poderia também representar
espaços de sociabilidade nos quais os padres negociavam o futuro matrimonial de suas
filhas com aqueles que nela atuavam nas diversas funções, como neste caso, a da música.
Sílvia Brugger, ao analisar as estratégias familiares e alianças matrimoniais, assinalou que
tais práticas foram bastante comuns naquela sociedade, tendo em vista que o casamento na
época, não tinha como escopo principal a satisfação dos noivos, mas, sobretudo, visava os
interesses familiares. (BRUGGER, 2007: 222)
Marcos Andrade, em seus estudos sobre a elite sul-mineira, afirmou, ao analisar as
características patriarcais da família Junqueira, que entre os elementos que caracterizam a
presença do patriarcalismo nestas famílias se inseriam as alianças matrimoniais, as
ocupações de cargos políticos, administrativos e eclesiásticos, etc. (ANDRADE, 2008: 253254) De acordo, com o autor, considerando que as estratégias matrimoniais características
das famílias patriarcais buscavam contratar casamentos de suas filhas com pessoas
semelhantes no aspecto econômico, é possível perceber tal estratégia na atitude do padre
João da Costa Guimarães.
Tais iniciativas evidenciam não apenas as alianças pautadas na endogamia,332 mas
também as escolhas baseadas na igualdade das famílias. Sobre a questão da igualdade, Sílvia
Brugger afirma que, ser igual, na concepção patriarcal daquela sociedade, era “ter o que
trocar” entre as famílias que se uniam através do matrimônio arranjado de seus filhos. “(...)
as uniões matrimoniais selavam alianças entre grupos familiares que tinham algo a se
oferecer, reciprocamente, fosse prestígio social, riqueza, acesso a redes de poder, entre
tantas outras possibilidades.” (BRUGGER, 2007: 226) Assim, o fato do genro do padre
João da Costa Guimarães, possuir a patente de Sargento Mor, demonstrando, portanto,
determinado poder e prestígio social, pode ter influenciado na escolha do mesmo para
casar-se com sua filha.
Outro fator a ser considerado é que, dois dos irmãos do genro do padre também
eram sacerdotes. Os filhos do músico Lourenço eram o Padre Francisco de Assis Brasiel e
332
A endogamia, segundo Marcos Andrade, representava um recurso eficiente na medida em que os
casamentos realizados entre pessoas da mesma família evitavam a dispersão da herança. Para maiores
informações ver: (ANDRADE, 2008: 248-252).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
343
outro falecido por nome Padre Antônio da Trindade.333 Este fato ratifica outra
característica de famílias patriarcais, na medida em que o músico Lourenço José Fernandes
Brasiel direcionou dois de seus filhos para se tornarem padres. Sabemos que o fato de ser
padre conferia status familiar, conforme afirmou Ida Lewcowicz, “é necessário lembrar que
foi prática comum entre as famílias, na sociedade colonial, a reserva de um filho para padre
ou uma filha para freira, garantia de prestígio social e possibilidade de ascensão (...).”
(LEWCOWICZ, 2007: 56) Assim, podemos supor que a família do genro do referido padre
pode ser considerada igualmente importante à do padre João da Costa Guimarães, daí a
estratégia em unir as famílias “iguais” para consequente ampliação do poder e prestígio
social.
Através deste estudo de caso, foi possível percebermos, que os documentos
utilizados para análise expressam em sua conjuntura o estabelecimento das relações entre
os padres e seus filhos. As disposições da escritura e testamentos analisados revelaram os
cuidados e atenção do padre João da costa Guimarães manifestados através da proximidade
familiar. Deste modo, concluímos que partindo do reconhecimento dessa filiação, seguida
da análise e cruzamento das fontes, e ainda de documentos dos herdeiros e/ou pessoas
relacionadas ao padre, foi possível entendermos os mecanismos utilizados por este tipo
específico de família.
Podemos supor que os padres ao reconhecerem seus filhos, o faziam, sobretudo,
buscando garantir-lhes certa estabilidade econômica. Marcos Andrade admite ao analisar as
características patriarcais da família Junqueira que uma delas era a preocupação em
acumular fortuna. (ANDRADE, 2008: 253-254) Neste sentido, podemos perceber através
da análise dos inventários que os padres da Comarca do Rio das Mortes souberam se
inserir na dinâmica econômica presente naquela sociedade. Estes elementos, além de
consorciar suas funções sacerdotais com a constituição de famílias, ainda trabalhavam para
a aquisição de bens se envolvendo em atividades econômicas de toda ordem, estas para
aqueles que possuíam famílias eram fundamentais à sobrevivência dos seus.
Quanto à inserção econômica dos padres, Kenneth Serbin chamou atenção para este
fato ao afirmar que, “a vida material reinou suprema na história do clero católico. (...) No
Brasil colonial, os padres exerciam considerável poder econômico.” E continua o mesmo
autor, ao considerar que no “final da era colonial e durante o Império, padres especulavam
333
Inventário de Lourenço José Fernandes Brasiel. Arquivo Histórico do Escritório Técnico II do IPHAN.
1833, caixa 128.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
344
com terras, cultivavam açúcar e tabaco, vendiam mercadorias, alugavam escravos e
investiam em empreendimentos marítimos.” (SERBIN, 2008: 52) Marcos Andrade, ao
analisar a trajetória de todos os herdeiros da família Junqueira percebeu também essa
tendência econômica dos padres, demonstrando que o padre Francisco Antônio Junqueira,
além de ser proprietário de Fazenda e Sesmarias, exerceu diversas atividades econômicas
cuidando de seus animais e plantações. Segundo o autor, este padre, “como muitos vigários
de seu tempo, acabou deixando expressiva descendência. Teve vários filhos em união
ilegítima, (...)”. (ANDRADE, 2008: 216)
através da análise da convivência entre padres e seus filhos, expressa em testamentos
e inventários no sistema de transmissão de herança e legados, e ainda nas determinações
testamentarias que revelavam cuidados e outras atitudes, seja possível perceber formas de
inserção e organização social através da família. O reconhecimento público dessa filiação
ilegítima, seguida da análise e cruzamento das fontes, pode revelar essa convivência, como
foi demonstrado no exemplo acima.
Referências:
Fontes primárias
Escritura de Perfilhação do padre João da Costa Guimarães. 1819. Livro de Notas 03 - 2º ofício.
1818-1821. Arquivo Histórico do Escritório Técnico II do IPHAN. p. 47v.
Inventário de Lourenço José Fernandes Brasiel. Arquivo Histórico do Escritório Técnico II do
IPHAN. 1833, caixa 128.
Inventário do padre João da Costa Guimarães. Arquivo Histórico do Escritório Técnico II do
IPHAN. 1836, caixa 48.
Processo De Genere Vitae et Moribus do padre João da Costa Guimarães, 1776. Arquivo Eclesiástico
da Arquidiocese de Mariana (AEAM). Armário 05. Pasta 791.
Registro de Batismo de Ana Custódia. Livro de Registros de Batismos. Arquivo Eclesiástico da
Diocese de São João del-Rei. 1794. Livro 16, p. 207.
Registro de casamento de Ana Custódia. Livro de Registros de Casamentos. Arquivo Eclesiástico
da Diocese de São João del-Rei. 1811. Livro 2. p. 641.
Registro de Casamento de Lúcio Bonifácio da Costa Brasiel. Livro de Registros de Casamentos.
Arquivo Eclesiástico da Diocese de São João del-Rei. 1839. Livro 11, p. 123.
Testamento do padre João da Costa Guimarães. Arquivo Histórico do Escritório Técnico II do
IPHAN. 1836, caixa 60.
Bibliográficas e virtuais
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
345
ALMEIDA, Suely C. Cordeiro de. Os religiosos e as mulheres: um olhar sobre as famílias constituídas pelos
clérigos. Disponível em: http://people.ufpr.br/~vii_jornada/ALMEIDA_ SuelyC.pdf. Acesso em
21 de outubro de 2011.
ANDRADE, Marcos Ferreira de. Elites regionais e a formação do Estado imperial brasileiro: Minas Gerais
Campanha da princesa (1799-1850). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008.
ANDRADE, Vitória Fernanda Shettini de. “Declaro como plenamente livre e dispensados das condições da
lei”. Alforrias de pia e redes de sociabilidades. São Paulo do Muriaé, 1852-1888. Artigo científico.
HTTP://www.uss.br/arquivos/pdfsDisponível
em:
simpósios2/Vitória_Schettini_Declaro_como_plenamente_livre_e_dispensada.pdf. s/d. Acesso em
19 de outubro de 2011.
BRUGGER, Sílvia Maria Jardim. Minas patriarcal: família e sociedade (São João del-Rei – séculos XVIII e
XIX). São Paulo: Annablume, 2007.
___________________________. Minas Patriarcal – família e sociedade – São João del-Rei, séculos
XVIII e XIX.Tese de doutorado. UFF. Niterói, 2002.
CORRÊA, Mariza. Repensando a família patriarcal brasileira. In: ALMEIDA, Maria S. K.;
ARANTES, Antonio A.; e outros. Colha de Retalhos: estudos sobre a família no Brasil. Brasiliense,
1982.
FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1998.
____________________. História da família e demografia histórica. In: CARDOSO, Ciro F. &
VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Domínios da História: ensaios de teorias e metodologia. Rio de Janeiro:
Campus, 1997.
FIGUEIREDO, Luciano Raposo. Barrocas famílias: vida familiar em Minas Gerais no século XVIII. São
Paulo: HUCITEC, 1997.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal.
51ª ed. São Paulo: Global, 2006.
FURTADO, Júnia Ferreira. A morte como testemunha da vida. In: PINSKI, Carla Bassanezi; DE
LUCA, Tânia Regina. (orgs.). O historiador e suas fontes. 1 ed. São Paulo: Contexto, 2011.
LEWKOWICZ, Ida. Concubinato e casamento nas Minas setecentista. In: RESENDE, Maria E. L.
de; VILLALTA, Luiz C. História de Minas Gerais: as Minas setecentistas. Vol. 2. Belo Horizonte:
Autêntica, Companhia do Tempo, 2007.
LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2006.
MUAZE, Mariana. As memórias da Viscondessa: família e poder no Brasil Império. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2008.
PEREIRA, Ana Luiza de Castro. A ilegitimidade nomeada e ocultada na Vila de Nossa Senhora da
Conceição
do
Sabará.
Artigo
Científico.
Disponível
em:
http://www.cedeplar.ufmg.br/diamantina2004/textos/D04A021.P DF. s/d. Acesso em 19 de
outubro de 2011.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
346
SAMARA, Eni de Mesquita. As mulheres, o poder e a família: São Paulo, século XIX. São Paulo: Marco
Zero, 1989.
SERBIN, Kenneth P. Padres, celibato e conflito social: uma história da Igreja católica no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008.
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2010.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
347
Memórias, vestígios e trajetórias que compõem a história de famílias cativas em
Conceição dos Ouros Sul de Minas Gerais
Elizabete Maria Espíndola
Doutoranda em História pela UFMG
beth_spindola@hotmail.com
Viviane Tamíris Pereira
Graduanda em História pela UNIVÁS
vivianetpereira@yahoo.com.br
Resumo: Os estudos acerca das relações familiares entre escravos é temas frequente na
historiografia. Entretanto, esses trabalhos em sua maioria foram produzidos sobre áreas
com grande participação na economia do Brasil escravista, a região do sul de Minas, cuja
produção em pequenas propriedades era significativa, ainda carece de estudos. Esse artigo é
fruto de um trabalho realizado durante o ano de 2011 através do Programa de Iniciação
Cientifica da Universidade do Vale do Sapucaí – PIBIC/UNIVAS, que buscou analisar e
compreender a formação de famílias cativas e libertas na freguesia de Conceição dos Ouros
abordando o período de 1862 a 1888. Através de pesquisa realizada nos registros
paroquiais, nos foi possível identificar o número (aproximado) de famílias formadas, as
uniões entre cativos realizadas sob a benção da Igreja e também as consensuais, bem como
parte da trajetória dos filhos dessas uniões.
Palavras chave: Família escrava, Sociabilidades, Sul de Minas Gerais.
Abstract: Studies about family relationships between slaves are frequent in historiography.
However, those studies were mostly based on areas with large participation on Brazil's
slavery economy, the South area of Minas Gerais, which production in small property is
significant, still lacks studies. This article is consequence of a research made in the year of
2011 by the Scientific Initiation Program of UNIVÁS, that seeked to analyse and
comprehend the formation of captive and freed families (from 1872) in the parish of
Conceição dos Ouros between 1862 and 1888. Through this research made on parochial
records, we could identify the (estimated) number of families formed, marriages between
captives realized under Church blessing also consensual unions, as well as the trajectory of
the sons of those unions.
Keywords: Slave family, Sociabilities, South of Minas Gerais.
O presente artigo insere-se na perspectiva histórica desenvolvida no Brasil a partir da
década de 1970334, que busca através da inserção de novas fontes e de novos processos
metodológicos ao trabalho do historiador social reaver a condição dos escravos durante o
regime escravocrata brasileiro, retirando-os da condição de “peças” desprovidos de anseios
próprios e submissos as vontades de seu senhor. Recuperando-os como agentes históricos
334
Essa revisão no “olhar” sobre o regime escravista brasileiro surge em consonância com as mudanças
historiográficas que ocorreram em âmbito internacional, que buscavam através da História Social resgatar a
história das “camadas subalternas” da população.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
348
capazes de atuar construindo laços, resistindo, negociando e se movendo dentro da
sociedade em que viviam – apenas parcialmente limitados por sua condição social.
Dentre os primeiros historiadores que buscaram abordar o sistema escravocrata
brasileiro, como uma instituição formada por agentes históricos múltiplos (senhores e
escravos), destaca-se o trabalho de: Robert Slenes, Manolo Florentino, Sidney Chalhoub,
Sheila de Castro Faria, João José Reis, Stuart Schwartz, Hebe M. Matos, entre tantos
outros. Estes estudaram os mais variados temas ligados à escravidão: religião, resistência,
formação de laços, práticas, lutas pela liberdade, negociação, fugas, quilombos etc.
Contribuindo de forma ímpar para um novo olhar da historiografia sobre o “ser escravo no
Brasil”.
A partir das décadas de 50 nos Estados Unidos, surgem estudos que acrescentam
novos contornos ao olhar sobre a formação de famílias escravas dentro do cativeiro, como
as obras: de Eugene D. Genovese: “A Terra prometida o mundo que os escravos criaram” (1974) e a de
Hebert Gutman: “The black family in slavery and freedom” (1976). Com o auxílio de fontes
demográficas, estas pesquisas demonstraram que os escravos teciam laços dentro e fora dos
domínios da senzala. Que as relações poderiam ser estabelecidas, tanto com pessoas de sua
mesma condição social, quanto com livres, forros e libertos. Esses trabalhos contestavam
uma antiga visão, que apontava a incompatibilidade entre o cativeiro e relações familiares.
Com relação aos significados da família para os escravos e seus senhores, os
historiadores possuem diferentes opiniões. Para Slenes, pioneiro nos estudos demográficos
acerca dos lares negros no cativeiro, a família escrava representava ao cativo uma
autonomia maior dentro dos plantéis – pois, poderia adquirir privilégios como uma
moradia separada e um pedaço de terra para plantar. Ela também se mostrava benéfica ao
seu proprietário que, tendo seu cativo preso a laços familiares, possuía uma garantia maior
contra fugas e rebeliões (SLENES, 1999: 45-50). Assim essas relações familiares
implicavam em “perdas” e “ganhos” para ambas as partes, pois ao mesmo tempo em que
proporcionava ao escravo a chance de “se encontrar” dentro do cativeiro, tornava-o
“refém” de seu senhor (no sentido de poder ter sua família e laços ameaçados a qualquer
momento). Para o senhor, era necessário abrir mão de possuir plenos poderes sobre a
escravaria e pensar em novos meios para exercer seu controle (SLENES, 1999: 47-48).
No estudo desenvolvido por Manolo Florentino e José Roberto Goés a família
escrava é entendida como uma instituição capaz de promover “a paz nas senzalas”.
Segundo os autores os cativos viviam em “estado de guerra”, devido ao choque causado
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
349
pela constante chegada de novos membros ao cativeiro, que possuíam etnias e culturas
diferentes (FARIA, 2006: 124-125). Para Florentino e Goés, as relações familiares se
constituíam numa das bases para o escravismo, uma vez que, ao cativo representavam a
formação de solidariedades dentro da senzala e aos senhores trariam a “paz”, necessária
para o bom rendimento do trabalho escravo que era realizado em grupos.
Sobre os trabalhos dedicados a analisar a formação de famílias escravas convém
ressaltar que eles centram-se em áreas que constituíam pólos importantes para a economia
do Brasil, como: a região do sudeste (que fazia parte do eixo da economia Imperial),
algumas áreas do nordeste que foram importantes produtores de açúcar e as cidades
mineradoras. Nas regiões onde a economia não era significativa e a produção destinava-se
ao comércio interno - espaços que foram parcialmente tocados pelo tráfico negreiro - há
carência de estudos no que tange a organização familiar dos cativos (SLENES; FARIA,
1998: 6).
As pesquisas acerca dos laços familiares de cativos em regiões que não se encontram
inseridas na rota do ouro em Minas Gerais, nos últimos anos, tem despertado o interesse
de inúmeros historiadores e a produção de estudos dedicados a este tema se encontra,
atualmente, em constante desenvolvimento.
O trabalho que desenvolvemos sobre a
presença escrava em Conceição dos Ouros, localizado no sul de Minas, busca contribuir
para uma releitura da história do município e para a escrita de mais um capítulo na história
sul mineira.
Com a decadência da exploração do ouro, a economia de grande parte da província
de Minas Gerais já se encontrava consolidada na produção de gêneros de subsistência. O
cultivo desses produtos surgiu junto à necessidade de abastecimento das regiões
mineradoras, ainda no século XVIII. O sul de Minas possuía uma economia consonante a
essa produção para consumo interno.Seu clima e terras férteis também se constituíam em
fatores favoráveis ao plantio e a pecuária. Isaías Pascoal cita como gêneros de destaque da
produção sul mineira, o milho, arroz, feijão, fumo, gado, porcos, queijos e carnes salgada.
Durante o século XIX os frutos dessa produção seriam destinados ao abastecimento da
Corte no Rio de Janeiro (PASCOAL, 2007: 272 - 273).
O distrito de Conceição dos Ouros se inseria nesse contexto de lavouras de
subsistência. Os primeiros moradores da região335, pertencentes à Família Motta Paes,
335
Há indícios de que havia moradores em terras pertencentes à Conceição dos Ouros antes da chegada dos
Motta Paes, no entanto pela falta de documentos que ajudem a firmar um perfil para esta evidência, optamos
por tratar da produção agrícola do distrito a partir da chegada dessa família.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
350
possuíam vastas propriedades rurais onde eram produzidos gêneros como: milho, feijão,
arroz, batata-doce, algodão, mandioca etc. Suas terras se localizavam na parte leste do
município, segundo a memorialista Mercedes C. Campos, a família era proprietária: “das
terras que se estendem do Ribeirão dos Rezendes (próximo a Cachoeira de Minas) aos
limites com o município de Brazópolis e Paraisópolis (Ribeirão Pequeno e Lagoa),
atingindo, no sentido oeste, o bairro dos Rochas.”. Ao todo, encontramos o número de 10
fazendas pertencentes a membros da Família Motta Paes. Quanto às propriedades no
perímetro urbano, Campos indica a construção, por volta de 1870, de apenas dois casarões
localizados no centro do município (CAMPOS, 2002: 33, 128-131). Com isso, acreditamos
que os Motta Paes davam prioridade a vida em suas fazendas.
Imagem 1: Mapa de Conceição dos Ouros (CAMPOS, 2002: 10)
Na parte oeste do município nos locais onde hoje se encontram os bairros Três
Cruzes, Ouros Velho, Barbosas e Broxados encontravam-se propriedades de porte menor
que exerciam o cultivo de lavouras variadas e a criação de suínos. Essa área possuía um
número maior de habitantes como podemos constatar na análise dos assentos paroquiais.
Ali também se encontravam grandes propriedades rurais, porém em menor extensão que as
pertencentes aos Motta Paes.
A partir da segunda metade do século XIX o cultivo de fumo, algodão e cana de
açúcar crescem no distrito. A produção de fumos e velas de cera desponta como um dos
primeiros produtos ourenses a serem exportados, segundo o Almanak Sul-Mineiro de
Bernardo Saturnino da Veiga: “na povoação de Conceição dos Ouros se cultiva em grande
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
351
escala o fumo, que é o mais importante gênero de exportação”. A rapadura e a aguardente
também são citadas como mercadorias de grande comercialização em Ouros, sua produção
se dava através de engenhos movidos pela força de água ou animais (CAMPOS, 2002: 32,
43).
O cultivo de café também se fez presente em Conceição dos Ouros, no entanto, o
clima frio e as constantes geadas dificultavam à concorrência comercial, em detrimento às
lavouras de localidades que possuíam condições climáticas mais estáveis (como as do Vale
do Paraíba). Mesmo assim, o plantio de café era significativo para o distrito, considerando
o número de produtores que se dedicavam a essa plantação. Em 1884 o Almanak Laemmert
informa que em Conceição dos Ouros haviam plantados cerca de 80 mil pés de café. Um
número que nos anos seguintes tende a crescer com a valorização do grão no cenário
nacional.
A mão de obra cativa foi empregada no distrito ao cultivo de gêneros agrícolas de
subsistência (e mais tarde no café), nos engenhos produtores de aguardente e rapadura, nas
pequenas indústrias de vela de cera e fumo, no transporte de produtos para o comércio e
em serviços domésticos e de carpintaria. O trabalho escravo parece-nos ter possuído pouca
expressão dentro dos limites urbanos do município, pois, como dito anteriormente, as
grandes propriedades possuidoras de cativos e a maioria da população residia nos bairros
rurais do distrito ourense.
Através de uma análise empreendida nos registros eclesiásticos da Secretaria
Paroquial Nossa Senhora da Conceição, conseguimos realizar um levantamento
aproximado do número de proprietários que possuíam escravos no distrito e da quantidade
de cativos que estes tinham em sua posse.
O trabalho realizado teve como primeiro objetivo organizar as fontes disponíveis na
Paróquia Nossa Senhora da Conceição em ordem cronológica, pois os livros há alguns
anos atrás foram “desmanchados” pelo sacristão e tiveram suas páginas colocadas em duas
pastas de forma aleatória, com o objetivo de preservá-los melhor. No total foram
arrumadas 207 páginas manuscritas. Em um segundo momento, fizemos um levantamento
das fontes que seriam utilizadas em nossa pesquisa. Para nosso recorte temporal
encontramos o número de cinco livros que se dividem em: dois livros de assentos de
batismo (sendo um deles misto e outro dedicado ao batismo de ingênuos), dois livros de
assentos de óbito (um deles se encontrava misturado aos gastos da freguesia) e um livro de
assentos de casamentos misto.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
352
As informações coletadas nesses registros foram separadas e organizadas em fichas
catalográficas elaboradas por nós em parceria com a Acervo/FUVS336, estas buscam trazer
as principais informações sobre a documentação analisada de maneira simples e objetiva
para colaborar não só em nossa pesquisa, mas em trabalhos futuros e se encontram
disponíveis no Laboratório de Documentação Cartorial da Univás – LabDoc.
Modelo de ficha usada para catalogação dos batizados de escravos
encontrados nos livros de registro da Secretaria Paroquial de Nossa Senhora da
Conceição
Ano: 2011
Total de itens: 05
Pesquisadora:Viviane Tamíris Pereira
Palavrachave
Registro do
Escravo
Registro
de
Batismo
de
escravo
Nome: Jose
Idade: 51 dias
Pai: Incógnito
Mãe: Joaquina
Registro
de
batismo
de
escravo
Registro
de
batismo
de
escravo
Registro
de
batismo
de
escravo
Origem:
Conceição dos
Ouros
Nome: Romana
Idade: 30 dias
Pai: Ignacio
Mãe: Generosa
Origem:
Conceição dos
Ouros
Nome: Getulio
Idade: 15 dias
Pai: Mariano
Mãe: Thereza
Origem:
Conceição dos
Ouros
Nome: Levidiana
Idade: 20 dias
Pai: Benedito
Mãe: Rosa
Origem:
Conceição dos
Ouros
Localização Física
Local
Código de
Arranjo
Casa
Paroquial
de
Conceição
RB/COA001
dos Ouros
Casa
Paroquial
de
Conceição
dos Ouros
Casa
Paroquial
de
Conceição
dos Ouros
Casa
Paroquial
de
Conceição
dos Ouros
RB/COA002
RB/COA003
RB/COA004
Tipo Doc
Data do
Batizado
Pasta
Plastificada
preta
contendo 85
páginas
manuscritas
17/08/186
2
Pasta
Plastificada
preta
contendo 85
páginas
manuscritas
17/08/186
2
Pasta
Plastificada
preta
contendo 85
páginas
manuscritas
04/10/186
2
Pasta
Plastificada
preta
contendo 85
páginas
manuscritas
04/10/186
2
Observações
Nome do proprietário:
Tenente Francisco da
Motta Paes
Padrinhos: Antonio e
Ana (casados) escravos
do Major Felix da Motta
Paes
Nome do proprietário:
Tenente Coronel João
Pinto da Fonseca
Padrinhos: Bento
Antonio Ribeiro e
Beatriz Maria
Nome do proprietário:
Maria do Carmo Ribeiro
da Fonseca
Padrinhos: Manoel
Rosa Furtado e Carolina
Candido Campos
Nome do proprietário:
Francisco Pinto da
Fonseca
Padrinhos: Manoel
Rosa Furtado e Joana
escrava do Tenente
Coronel João Pinto da
Fonseca
336
Acervo FUVS/ Univás: Atua na organização da documentação iconográfica com o objetivo do resgate da
memória institucional e disseminação da informação, tendo o predicado de sedimentar, na Univás, uma área
dedicada à guarda, preservação e disseminação de documentos e informações.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
353
Registro
de
batismo
de
escravo
Nome: Libana
Idade: 28 dias
Pai: Incógnito
Mãe: Eva
Casa
Paroquial
de
Conceição
dos Ouros
RB/COA005
Origem:
Conceição dos
Ouros
Pasta
Plastificada
preta
contendo 85
páginas
manuscritas
05/10/186
2
Nome do proprietário:
Major Felix da Motta
Paes
Padrinhos: Baldino e
Maria (solteiros) escravos
do Major Felix da Motta
Paes
Os campos requisitados foram formulados de modo a possibilitar uma visão geral
dos dados contidos na documentação voltados à presença de escravos nos livros da Casa
Paroquial de Conceição dos Ouros, as informações foram transcritas respeitando a grafia
da época e mantendo todas as observações realizadas nos registros.
O primeiro campo ‘palavra-chave’ traz o tipo de documento/fonte ao que este
arquivo se refere, no caso da tabela acima: registro de batismo de escravo.
O segundo traz informações sobre o escravo como o nome, idade com que foi
batizado, sua filiação, nome do pai e da mãe e sua origem (município) onde nasceu e reside.
Estes dados são cruciais para o cruzamento com outras fontes em busca de reconstituir a
família e a trajetória deste sujeito social.
O terceiro item localização física: local onde se encontra a fonte pesquisada, código
de arranjo: código a ser cadastrado em futuro banco de dados pertencente ao LabDoc.
O quarto item tipo de documento: fornece informações a respeito do documento
pesquisado suas características e seu estado físico. Facilitando a pesquisa de campo.
No quinto item: data do batizado. No sexto item: observações; estão dados que em
união aos demais são fundamentais para se reconstituir a família e as relações de compadrio
dos cativos citados nos registros, contribuem também para um levantamento dos principais
proprietários do município. Nessa seção também serão citadas informações extras, que
estão ausentes no documento. Como por exemplo: páginas rasgadas, palavras ilegíveis e
alguma observação do pároco celebrante.
As fichas de registros de casamentos e óbitos seguem o mesmo modelo, porém com
algumas alterações em itens de preenchimento nos campos, necessárias para a pesquisa.
Através dos dados levantados podemos observar as formações familiares, o período
de maior recorrência e a procedência destes escravos, a que fazendas e a que proprietários
pertenciam. A participação dos senhores ou de outros escravos tomados muitas vezes
como testemunhas do sacramento. A filiação dos casais nos ofereceu a possibilidade de
percebermos a formação familiar bem como a trajetória destes sujeitos.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
354
Convém ressaltar que os dados presentes neste artigo não são definitivos, e podem
sofrer alterações conforme os estudos de novas documentações forem realizados.
Para a contagem dos escravos do distrito, consideramos a metodologia empregada
por Clotilde Paiva (2006) na definição do tamanho das propriedades escravistas. Paiva
delimita os plantéis como: pequenos (1 a 3 escravos), médios (4 a 10 escravos), grandes (11
a 49 escravos) e muito grandes (acima de 50 escravos)337.
Tabela 1: Número de proprietários de escravos na Freguesia Nossa Senhora
da Conceição 1862-1888*
Número de escravos por
proprietário
1 a 3 escravos
Pequenos plantéis
4 a 10 escravos
Médios plantéis
11 a 49 escravos
Grandes plantéis
Mais de 50 escravos
Plantéis muito grandes
TOTAL
Número de Proprietários
Total de escravos
112
67,4%
209
22,8%
36
21,6%
219
23,9%
15
9,2%
299
32,6%
03
1,8%
188
20,5%
166
100%
915
100%
*Fonte: Livros de Registros de Batismo nº 1 (1862–1882); Livro de Registros de Batismo nº 2 (1876–1888);
Livro de Registros de Casamentos nº 1 (1862-1890); Livro de Registros de Óbitos nº 1 (1862–1896) da
Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, Conceição dos Ouros – MG.
Conforme mostra a tabela em Conceição dos Ouros, prevaleciam os pequenos
plantéis, dentre os 112 pequenos proprietários identificados 36 possuíam apenas 1 escravo.
Havia 55 donos de 2 escravos e 21 senhores que contavam com 3 escravos em sua posse.
Ao todo, os cativos pertencentes a esses proprietários representavam 22,8% do total de
escravos do distrito.
Em relação aos plantéis de tamanho médio, eles abrangiam 23,9% dos escravos
pertencentes ao distrito. O número de cativos por proprietário variava da seguinte forma: 9
proprietários possuíam 4 cativos, 8 senhores contavam com 5, havia 15 donos com a
quantidade entre 6,7 e 8 cativos – 5 donos para cada respectivamente. Adiante constatamos
nos registros que 4 proprietários somavam o contingente de 11 escravos. E duas duplas de
senhores obtinham 9 e 10 mancípios em sua posse.
337
Segundo DELFINO (2009, p. 86) essa classificação acerca do tamanho dos plantéis é realizada de modo
proporcional entre o número de cativos e o uso da terra nestas propriedades, que se reflete na média de
escravos adquiridos em determinada região. Assim, em áreas de grande lavoura esses números tendem a
variar dos que utilizamos.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
355
Os plantéis de tamanho grande e muito grande do distrito somam o total de 53,1%
dos cativos da região, estes se encontram divididos entre a posse de 18 senhores.
Para essas propriedades conseguimos através de consulta a alguns assentos de óbito
(que contam com alguns poucos detalhes sobre a vida de alguns sujeitos) e ao livro “Salve
Ouros, cidade querida” (CAMPOS, 2002) identificar maiores detalhes sobre 11 destes
domicílios escravistas, esses dados foram organizados na tabela seguinte:
Tabela 2: Principais propriedades e gêneros produzidos pelos plantéis
grandes e muito grandes em Conceição dos Ouros*
Proprietários
Propriedades
Produção
Número de
escravos
Major Felix da Motta
Paes – Fazendeiro e
fundador de Conceição
dos Ouros
Fazenda do Ribeirão do Carmo
(700 alqueires); Fazenda das
Dores (mais de 300 alqueires);
Fazenda Boa Vista do Capivari
(Fazenda Pinhal).
Fazenda de Café e
gêneros de subsistência.
76
Joaquim da Motta Paes
(Barão de
Camanducaia)
Fazendeiro e político
da região
Cel. Lucio da Motta
Paes – Fazendeiro e
Tropeiro
Fazenda de café e
gêneros de subsistência;
pequena produção de
açúcar em engenho e
pecuarista.
Fazenda de Café e
gêneros de subsistência,
Fazenda Ribeirão Pequeno e
outros terrenos no bairro Ribeirão produção de aguardente
e rapadura. Transporte e
Pequeno
comércio de mercadorias
Fazenda da Chapada (3 mil
alqueires); Fazenda da Lagoa;
Fazenda dos Ouros (800
alqueires).
56
56
Ten. Cel. João Pinto
da Fonseca
Fazendeiro
-
Lavouras variadas
46
José Ribeiro da Motta
Paes (Barão da Motta
Paes) Fazendeiro
Fazenda Beira-Rio Sapucaí (800
alqueires) e Fazenda Cachoeira
(300 alqueires)
Fazenda de Café com
engenho de cana e
alambique.
15
José Dionísio Telles do
Nascimento
-
Lavouras variadas
38
Dâmazo da Motta
Paes
Fazenda Monjolinho (260
alqueires)
Francisco da Motta
Paes
-
Pedro Antonio Marçal
-
Francisco Custódio
dos Santos
-
Lavoura de Café,
produção de rapadura e
aguardente.
Plantação de lavouras
variadas de gêneros de
subsistência
Lavouras variadas e
produção do “Fumo
Marçal”
Engenho de cana
produtor de rapadura e
aguardente
30
29
24
14
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
356
Joaquim Pereira da
Silva
-
Lavouras variadas
15
*Fonte:Livros de Registros de Batismo nº 1 (1862–1882); Livro de Registros de Batismo nº 2
(1876–1888); Livro de Registros de Casamentos nº 1 (1862-1890); Livro de Registros de Óbitos nº 1
(1862–1896) da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, Conceição dos Ouros – MG. “Salve Ouros,
cidade querida” (CAMPOS, 2002: p. 32-34)
Os demais plantéis possuíam o número de 11, 12 e 13 cativos divididos entre 4, 2 e 1
proprietário respectivamente.
Analisando a tabela percebemos que os integrantes da Família Motta Paes eram
donos de importantes propriedades escravistas do distrito. Ao todo, apenas nas mãos de
seis proprietários estiveram concentrados 28,6% dos cativos da região.
Após o levantamento do número de plantéis existentes em Conceição dos Ouros,
realizamos uma contagem das famílias cativas presentes nestas propriedades. Para isso
cruzamos as informações presentes nos registros de batismo, casamento e óbito.
Tabela 3: Número de famílias cativas e libertas na freguesia Nossa Senhora
da Conceição 1862-1888*
Tamanho da
Propriedade
Famílias
Matrifocais
Famílias Nucleares
Total de Famílias
Pequenos plantéis
(1 a 3 escravos)
51
33,5%
18
15,3%
69
25,6%
Médios plantéis
(4 a 10 escravos)
45
29,6%
25
21,3%
70
26,0%
Grandes plantéis
(11 a 49 escravos)
30
19,7%
56
47,8%
86
31,9%
Plantéis muito grandes
(acima de 50 escravos)
26
17,1%
18
15,3%
44
16,3%
TOTAL
152
100%
117
100%
269
100%
*Fonte:Livros de Registros de Batismo nº 1 (1862–1882); Livro de Registros de Batismo nº 2 (1876–1888);
Livro de Registros de Casamentos nº 1 (1862-1890); Livro de Registros de Óbitos nº 1 (1862–1896) da
Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, Conceição dos Ouros – MG.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
357
Para a construção desta tabela classificamos as famílias encontradas em matrifocais e
nucleares, essa separação seguiu os seguintes critérios: por famílias matrifocais contamos
aquelas que só constavam com a presença da mãe (solteira) nos registros de batismo. Nos
assentos em que encontramos pai e mãe batizando seus filhos consideramos como famílias
nucleares, nesta categoria também foram inclusos casais que não possuíam filhos, mas que
foram citados em outras partes dos registros como padrinhos ou testemunhas.
O número de famílias matrifocais (56,5%) e nucleares (43,5%) no distrito apresentou
pouca variação, nota-se que a maior parte das famílias formadas encontra-se inseridas nos
grandes plantéis onde conforme mostra a tabela 1 concentrou-se o maior número de
escravos de Conceição dos Ouros. Entre as famílias nucleares encontramos o registro de
apenas 27 matrimônios no período estudado, consideramos que outras uniões tidas como
legítimas pelos vigários tenham sido realizadas em outras paróquias vizinhas.
A análise dos registros eclesiásticos também nos tornou possível, ainda que de forma
precária, acompanhar a trajetória de algumas dessas famílias ao longo do tempo,
contribuindo para que possamos compreender um pouco desses sujeitos e de suas
experiências familiares.
Tomemos a trajetória de algumas delas. Em 23 de outubro do ano de 1869, o escravo
João, filho da crioula Theresa, e a cativa Leocádia, filha de Felipi e Caitana, uniram-se em
matrimônio na Igreja Nossa Senhora da Conceição. O casamento ocorreu perante a
testemunha de Euzebhio e Matheos, provavelmente seus companheiros de escravidão,
todos pertencentes ao fazendeiro Joaquim Pereira da Silva. A união gerou frutos, e, ao
longo de 13 anos, conseguimos encontrar oito filhos registrados pelo casal. São eles:
Antônio
(03/05/1870),
José
(07/11/1871),
Cândida
(04/12/1872),
Magdalena
(18/07/1874), Dionísio (31/10/1875), Marianna (09/06/1878), Celestina (28/05/1880) e
Dominciana (26/03/1882). Notamos nesta família a presença de três gerações, um dado
significativo que mostra um ciclo de relações longo e estável.
A união de Antônio e Anna escravos do Major Felix da Motta Paes, provavelmente
ocorreu em Pouso Alto antigo local de residência do Major. Constatamos, através de um
registro de óbito de uma das filhas do casal, Gabriela, em junho de 1865, que a união já
completava cerca de 9 anos. Em Conceição dos Ouros encontramos registrados pelo casal
o assento de mais duas filhas: Lucinda (25/12/1862) e Francisca (16/04/1865).
Na propriedade de Ladislau Lopes da Silva encontramos outra união de longa data, o
casal de crioulos: Cipriano e Angela. Estes estiveram juntos ao longo de mais ou menos 13
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
358
anos. Conforme notamos nos assentos de seu primeiro e último filho batizados, ao todo o
casal levou a pia batismal quatro filhos: Simão (12/10/1873), Serapião (12/12/1875),
Simão (25/07/1880) e Eva (22/04/1886).
Dentre os 117 casais encontrados nos registros paroquiais, encontramos a presença
de pelo menos um filho em 87 destas uniões.
Relacionamentos duradouros como os de João e Leocádia, Antonio e Anna e
Cipriano e Angela demonstram que a família escrava era uma realidade constante dentro do
cativeiro. No entanto, as teias familiares construídas por estes e outros sujeitos não se
limitaram exclusivamente à propriedade de seu senhor e não se constituíram apenas de
laços consanguíneos.
O sacramento do batismo foi o mais comum entre os escravos, e também foi
responsável pelas relações de compadrio, um “parentesco espiritual” muito comum nas
comunidades
cativas
e
de
extrema
importância
numa
sociedade
que
era
predominantemente católica.
O ato de batizar uma criança representava abrir a ela uma porta de entrada para a
Igreja Católica. Através do batismo, o indivíduo obteria acesso a todos os outros
sacramentos como a eucaristia, a crisma, o matrimônio e a extrema unção. Segundo a
Igreja, inserir um cativo na vida sacramental era responsabilidade de seu proprietário. Além
disso, no Brasil Imperial a Coroa Portuguesa devota da religiosidade católica ordenava que
todos os escravos fossem batizados, sob pena de confisco para aqueles que não
cumprissem com a ordem. Por meio do batismo o padrinho se tornava um intermediário
entre o batizando e Deus, se transformando num “segundo pai” de seu afilhado e sendo
responsável por sua conduta moral e religiosa.
Para os mancípios, as redes tecidas pelo compadrio estabeleciam vínculos morais e
familiares com classes sociais diferentes, como: livres e forros. Esses laços poderiam servir
como um “atalho” em busca da tão sonhada liberdade e de outros favores possíveis.
Quando essa relação era formada entre escravos, ela contribuía para reforçar laços e
parentescos já existentes, buscar aliados ou consolidar relações sendo no mesmo cativeiro
ou em propriedades diferentes.
Tabela 4: Condição dos Casais que apadrinhavam Filhos de Cativos em
Conceição dos Ouros no período de 1862 – 1888*
Condição dos
padrinhos/madrinhas
1862 – 1870
1871 – 1880
1881 - 1888
Total
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
359
Casal de Escravos
Casal de Forros
Casal de Livres
Casal de Escravo e Forro
Casal de Escravo e Livre
Casal de Forro e Livre
Só 1 padrinho
Dois padrinhos
Padrinho e Nossa Senhora
Não constam nome dos
padrinhos
TOTAL
44
01
65
03
12
02
02
32,5%
0,7%
48,1%
2,2%
8,8%
1,4%
1,4%
-
06
4,4%
135
100%
24
01
111
01
08
04
03
02
02
02
158
15,1%
0,6%
70,2%
0,6%
5,0%
2,5%
1,8%
1,2%
1,2%
1,2%
100%
13
16,6%
-
42
53,8%
-
18
23,0%
-
02
03
2,5%
3,8%
-
78
100%
81
02
218
04
38
06
05
04
05
08
371
21,8%
0,5%
58,7%
1,0%
10,2%
1,6%
1,3%
1,0%
1,3%
2,1%
100%
*Fonte:Livros de Registros de Batismo nº 1 (1862–1882); Livro de Registros de Batismo nº 2
(1876–1888); Livro de Registros de Casamentos nº 1 (1862-1890) da Paróquia de Nossa Senhora da
Conceição, Conceição dos Ouros – MG.
Para os cativos de Conceição dos Ouros as escolhas de padrinhos/madrinhas
parecem se voltar preferencialmente a pessoas livres (58,7%). O estabelecimento de laços
com sujeitos sociais de condição mais elevada poderia servir aos cativos como uma
estratégia em busca de aliados, que mediassem conflitos e negociações com seus senhores,
ou que ajudassem na compra de alforrias para seus afilhados. Segundo Robert Slenes essas
escolhas revelavam: “a necessidade, num mundo hostil, de criar laços morais com pessoas
de recursos, para proteger-se a si e aos filhos” (SLENES, 1997: p. 271). A presença de
senhores batizando seus escravos não foi encontrada nos registros analisados.
Em um segundo momento, a escolha de escravos para o apadrinhamento também
parecia ser comum aos cativos (21,8%). Dentre os cativos escolhidos, 51 casais pertenciam
à mesma propriedade/proprietário que as crianças batizadas, e 30 pertenciam a
propriedades diferentes. Quando o compadrio entre cativos era tecido, ele podia criar
vínculos entre eles ou reforçá-los.
É interessante notar o crescimento no número de padrinhos livres batizando filhos
de cativos a partir do ano de 1871, quando foi proclamada a Lei do Ventre Livre. Podemos
associar esse aumento a uma possível preocupação em se criar meios para que essas
crianças quando atingissem a maioridade conseguissem se inserir no mundo dos livres com
maior facilidade. Os padrinhos assumiriam então o papel de intercessores, auxiliando em
favores que para eles seriam mais fáceis de adquirir do que por cativos.
Nesse caso específico da Paróquia Nossa Senhora da Conceição, observando os
assentos de batismo percebemos que os laços tecidos pelo compadrio eram sempre
realizados com pessoas que possuíam condição social melhor ou igual ao do batizando e
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
360
seus pais. Esse interesse presente na construção de sociabilidades revela um aspecto social
de uma instituição que possuía caráter espiritual. Revela também uma possibilidade de
mobilidade social em uma sociedade extremamente estratificada.
No entanto, essa preferência por padrinhos de condição social semelhante ou mais
elevado não foi regra na Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Encontramos nos
registros analisados a presença de 4 crianças livres que tiveram entre seus padrinhos
escravos. Questionamos-nos sobre como seriam as relações entre estes sujeitos sociais? O
que os levou a escolherem padrinhos cativos para serem os “pais espirituais” de seus filhos
dentro de uma sociedade que via no escravo uma serie de características negativas? Essas
perguntas nos levaram a refletir sobre como as relações no período escravista eram
complexas, sobre os laços afetivos, sobre as relações de solidariedades constituídas e nos
esforços empreendidos por estes cativos em conquistarem a confiança e se aliarem a
pessoas livres.
Enfim através dessa pesquisa nos foi possível observar que os mancípios do distrito
de Conceição dos Ouros, mesmo inseridos em uma região de pequenos e poucos plantéis
foram capazes de constituir famílias dentro do cativeiro e manterem uniões estáveis. Esses
relacionamentos se formaram dentro e fora das bênçãos da Igreja Católica. Percebemos
também as estratégias tecidas por estes cativos através dos parentescos espirituais,
formando aliados na luta contra o difícil peso da escravidão. Os resultados desse estudo
aliados a trabalhos de outras regiões vizinhas podem contribuir para um maior
entendimento da dinâmica da escravidão na região sul-mineira.
Fontes
Livro de Registros de Batismo nº 1 [dividido em duas pastas] (1862, abril – 1882, setembro) da
Paróquia Nossa Senhora da Conceição, Conceição dos Ouros – MG.
Livro de Registros de Batismo nº 2 (1876, fevereiro – 1888, fevereiro) da Paróquia Nossa Senhora
da Conceição, Conceição dos Ouros – MG.
Livro de Registros de Casamentos nº 1 (1862, maio - 1890, abril) da Paróquia de Nossa Senhora da
Conceição, Conceição dos Ouros – MG.
Livro de Registros de Óbitos nº 1 (1862 abril – 1896 janeiro) da Paróquia de Nossa Senhora da
Conceição, Conceição dos Ouros – MG.
CAMPOS, Mercedes de Carvalho. “Salve Ouros Cidade Querida”. Conceição dos Ouros, 2002.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
361
Bibliografia
CASTRO, Hebe. História Social. In: Cardoso, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo. (Org.)
Domínios da História: ensaios de teoria emetodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. Uma história das ultimas décadas da escravidão na corte.
São Paulo: Cia das Letras, 1990.
DELFINO, Leonara L. A famílianegra na Freguesia de São Bom Jesus dos Mártires: incursões em uma
demografia de escravidão no Sul de Minas (1810-1873). Dissertação de Mestrado. Juiz de Fora:
UFJF, 2010.
FARIA, Sheila S. de Castro. Identidade e Comunidade escrava: um ensaio. Revista Tempo, vol.11 – nº22,
2007.
FREIRE, Jonis. Compadrio em uma freguesia escravista: Senhor Bom Jesus do Rio Pardo (MG) (1838-1888).
Trabalho apresentado no XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais da ABEP. Caxambu,
2004.
PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de
resistência através dos testamentos. São Paulo: Annablume, 1995.
PASCOAL, Isaías. Economia e Trabalho no Sul de Minas no Século XIX. Economia e Sociedade,
Campinas, v. 16, n. 2 (30), 2007.
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (Bahia,
1550-1835). (trad.) São Paulo: Companhia das Letras, 1988 (1985).
SLENES, Robert. Senhores e subalternos no Oeste Paulista. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de.
(Org.). História da vida privada no Brasil. Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia
das Letras, 1997.
__________, Robert W. FARIA, Sheila S. de Castro. Família escrava e trabalho. Revista Tempo, vol.3
– nº6, 1998
__________, Robert. Na Senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava no Brasil
Sudeste século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
362
Reprodução natural e população escrava de Piranga na segunda metade do
Oitocentos
Guilherme Augusto do Nascimento e Silva
Mestrando UFSJ/ Bolsista CAPES-DS
guilnascimento@yahoo.com.br
Resumo: Neste artigo, discutimos a regionalização da província mineira em áreas de
desenvolvimento econômico e social, procurando demonstrar que nossa região de estudo
se inseria na Zona da Mata. Analisamos as características produtivas da região do Termo de
Piranga, integrando-a ao amplo debate sobre a natureza da economia mineira oitocentista.
Destarte, apresentamos a análise da demografia escrava da região no decorrer do século
XIX, a partir da utilização de uma base de dados formada por 218 inventários post-mortem.
Para fins de comparação das diferenças populacionais através da referida centúria,
conjugamos nosso estudo ao exame das Listas Nominativas de 1831/32 e do Censo
Imperial de 1872. Assim sendo, nossa exposição enfoca os aspectos de composição
demográfica dos escravos em questão, como a estrutura de posse, etnicidade, índices de
masculinidade e idade da escravaria. Por fim, discutimos a questão da reprodução natural
dos cativos, aventando sobre a possibilidade de crescimento vegetativo da população
escrava da localidade.
Palavras-chave: Escravidão, Demografia, Reprodução Natural.
Abstract: In this article we discuss the regionalization of the mining province in areas of
economic and social development, seeking to demonstrate that our study area fell within
the Forest Zone. We analyze the productive characteristics of the Piranga’s region,
integrating it to the broad debate about the nature of nineteenth-century mining economy.
Thus, we present an analysis of slave’s demography of the region during the nineteenth
century, from the use of a database consisting of 218 postmortem inventories. For
comparison of population differences through that century, conjugate our study to examine
the Nominative Lists of 1831/32 and the Imperial Census of 1872. Therefore, our
discussion focuses on aspects of demographic composition of the slaves in question, such
as ownership structure, ethnicity, indices of masculinity and age of the slaves. Finally, we
discuss the issue of natural reproduction of captive suggesting the possibility of natural
growth of the slave population of the locality.
Keywords: Slavery, Demography, Natural Reproduction.
Região e economia piranguense no século XIX
A definição da região a ser estudada é de suma importância para o desenvolvimento
da pesquisa histórica. O comum seria nos atermos à delimitação administrativa da
localidade no século XIX, mas Graça Filho chama a atenção para o fato de que “é possível
e necessário problematizar esse recorte fundado na burocracia de um Estado, e assim,
justificar uma delimitação espacial mais coerente para seu objeto de estudo” (GRAÇA
FILHO, 2009: 9). Desta forma, nenhuma delimitação espacial deve se impor de forma
natural ao historiador. Uma análise pormenorizada de fontes diversas se faz necessária para
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
363
que possamos definir com mais precisão os próprios limites administrativos da
freguesia/vila no decorrer do século XIX. Como nos alerta Graça Filho, em Minas Gerais
“a extrema maleabilidade desta política administrativa, [...] gerou uma sobreposição dos
níveis de competência e um constante desmembramento, reagrupamento, supressão e
reinstalação de distritos, vilas e comarcas” (GRAÇA FILHO, 2002: 31).
Primeiramente, devemos pensar a questão da regionalização mineira, de modo a
inserir o estudo da localidade no seio das tentativas de entendimento da província de Minas
Gerais a partir de sua divisão em regiões com características singulares. Clotilde Andrade
Paiva e Marcelo Magalhães Godoy partiram em busca de uma divisão da província mineira
mais condizente com as realidades regionais do Oitocentos. Desta forma, foi proposta
pelos autores uma divisão de Minas Gerais em 18 regiões, tendo como base,
preponderantemente, suas características econômicas, mas levando em conta também os
seus aspectos físicos, demográficos, administrativos e históricos. A freguesia de
Guarapiranga, segundo estes autores, está inserida na região Mineradora Central Oeste.
(PAIVA & GODOY, 2010).
Marcelo Godoy e Alexandre Cunha conferem a esta região uma identidade
proveniente da mineração aurífera, sendo que seus limites foram definidos principalmente
em relação a esta atividade econômica. Sabemos que, apesar de possuir atividade
mineradora no século XVIII, a freguesia se dedicou majoritariamente à atividade agrícola
no século seguinte, de modo que a mineração estava quase extinta já nas primeiras décadas
do Oitocentos. Entretanto, Godoy e Cunha levam estas particularidades intra-regionais em
consideração dizendo que algumas porções da região apresentavam o desenvolvimento da
agricultura e da pecuária, visto que “estas áreas respondiam pelo abastecimento do centro
da região e representavam a transição para as regiões vizinhas, onde o cultivo e a criação
eram atividades centrais” (CUNHA & GODOY, 2003).
Segundo Douglas Libby, a freguesia pertence à Zona da Mata. Em sua descrição
sobre a referida região, Libby põe em evidência sua economia cafeicultora, representada
pelo município de Juiz de Fora, argumentando que a produção do café, no século em foco,
transformou a economia da região na mais dinâmica da província (LIBBY, 1988: 43).
Temos consciência que esta não é a realidade para a freguesia em questão e que a mesma
não se caracterizava como um setor agroexportador, mas sim como uma localidade
predominantemente voltada para o abastecimento do mercado interno provincial e ao
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
364
autoconsumo, enquadrando-se na chamada agricultura mercantil de subsistência
(LIBBY, 1988: 14).
Angelo Alves Carrara, ao discorrer sobre a ocupação territorial da Zona da Mata
norte, cita o vale do rio Piranga como um dos primeiros alvos desta ocupação, ocorrida nas
primeiras décadas do século XVIII. Assim sendo, percebemos que, para o autor, a freguesia
de Guarapiranga se localizava na divisa entre duas regiões, a Mineradora Central e a Mata
norte. A porção norte da Zona da Mata, região de fronteira e expansão agrária no XVIII,
além de se identificar com a exploração aurífera, se caracterizou no século seguinte pela
agricultura de subsistência, investindo também na cultura mercantil da cana-de-açúcar
(CARRARA, 1999: 13-15).
O que pretendemos mostrar, nestas breves considerações, é que a definição da região
é complexa, repleta de imprecisões. Acreditamos que, pelas características apresentadas por
Carrara e também a partir do estudo de Patrício Carneiro, parece apropriado considerar
que no século XIX – principalmente em sua segunda metade – a região seja considerada
como pertencente à Zona da Mata e não à Mineradora Central Oeste. Mas é necessário,
como nos lembra Carneiro, relativizar a compreensão que temos sobre a Zona da Mata, e
não tomar estudos que focalizam sua porção sul (vale do Paraibuna, tendo como emblema
Juiz de Fora), como passíveis de generalização para toda a região (CARNEIRO, 2008: 2).
Para que possamos estudar a região de Piranga no decorrer do século XIX se faz
necessário sabermos claramente a situação dos distritos que compuseram a região. Desta
forma, não haverá perigo de incorrermos no erro de analisarmos distritos que deixaram de
fazer parte da localidade no decorrer do tempo, evitando, deste modo, análises
comparativas que não condizem com a realidade estudada. Com a intenção de
circunscrevermos a região pesquisada, tomamos como ponto de partida os inventários postmortem pesquisados, nos quais estão presentes as localidades abrangidas pelo Juizado de
Órfãos de Piranga, que ultrapassam sua divisão meramente administrativa. Assim sendo,
propomos uma delimitação regional que parta da abrangência da justiça local, o que, a
nosso ver, não deixa de refletir uma situação socioeconômica, que tomava Piranga como
centro de convergência regional.
Como iremos trabalhar com duas contagens populacionais, tentamos adaptá-las da
melhor maneira possível à dinâmica territorial regional sugerida a partir da análise da
documentação. Ao trabalhar com dados seriais e comparações temporais, o historiador que
se aferra a uma delimitação regional, que o poder administrativo pode alterar, corre o risco
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
365
de cair em armadilhas, como a de uma falsa variação populacional dentro de sua área de
estudo, ocasionada pelas adições e supressões de distritos.
Os estudos historiográficos relativos à província de Minas Gerais no século XIX há
vários anos colocaram por terra a teoria segundo a qual a economia mineira entrou em
decadência após o fim do ciclo minerador. Como ponto de partida deste novo quadro
interpretativo, a discussão acerca da economia escravista mineira oitocentista sofre uma
grande reformulação a partir do trabalho de Roberto Borges Martins. O autor destacou que
a região não se caracterizou como fornecedora de mão de obra escrava para áreas de
predomínio da grande lavoura exportadora através do tráfico interprovincial, contestando
esta visão ao fornecer dados sobre o vigoroso crescimento da população escrava mineira
no decorrer daquela centúria. Possuindo a maior população escrava do Império, Minas
Gerais se manteve fortemente apegada ao regime escravista até seu último suspiro
(MARTINS, 1983).
Prosseguindo com seu estudo, o autor nos traz outro argumento importantíssimo, ao
desvincular o trabalho escravo da agroexportação, afirmando que o núcleo da economia
mineira não era composto por plantations, nem era orientado para o mercado internacional.
Mesmo assim, Minas possuía o maior plantel escravo do Império, sendo suas características
principais o isolamento de mercados externos à província, diversificação produtiva e autosuficiência (MARTINS, 1983).
Os estudos de Douglas Cole Libby e Robert W. Slenes seguiram a vertente
revisionista da economia mineira, cada um a seu modo. O primeiro autor chama a atenção
para a importância do mercado interno no dinamismo econômico da província, baseado
em atividades agrícolas, mineradoras e proto-industriais. Libby argumenta que a
agricultura mercantil de subsistência seria o sustentáculo da economia mineira no
decorrer do século XIX, e que foi o trabalho escravo que possibilitou a manutenção desta
economia, sendo que os agricultores sem escravos participavam apenas ocasionalmente da
mesma. Para o autor, a produção de alimentos básicos destinados tanto ao autoconsumo
quanto ao mercado interno, intra e interprovincial, é o que define a chamada agricultura
mercantil de subsistência. Além disso, Libby ressalta a crescente importância de
atividades de transformação para a economia provincial, como as manufaturas de fios e
panos e o surgimento de verdadeiras indústrias de ouro e tecidos (LIBBY, 1988).
Por outro lado, Robert Slenes, em debate com as teses de Roberto Martins,
argumenta que a província de Minas Gerais conseguiu importar e manter tantos escravos
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
366
justamente porque havia um dinâmico setor exportador, que criava o mercado interno e
determinava como os cativos seriam empregados. Para este autor, são dois os fatores que
determinaram o apego à escravidão em Minas, expressão tão cara a Martins: a força do
setor de exportação da província e o alto custo de transporte de mercadorias do litoral,
estimulando a produção interna. Com estes argumentos, Slenes relativiza a visão de uma
economia não-exportadora proposta por Martins, demonstrando que seria difícil custear as
grandes importações de escravos em uma economia pouco mercantilizada (SLENES,
1988).
Pelos indícios encontrados, a região de Piranga estava em pleno desenvolvimento no
decorrer do Oitocentos, reforçando a historiografia discutida, que aponta uma economia
dinâmica nas Minas, desvinculada em certo grau dos setores agroexportadores, com ampla
e variada produção de gêneros alimentícios, enquadrando-se na chamada agricultura
mercantil de subsistência.
Entre os tipos de atividade econômica da freguesia de Guarapiranga, Gusthavo
Lemos aponta que a produção agrícola foi atividade primordial, em relação a atividades
como pecuária e extração mineral. Dentre estas atividades agrícolas, o cultivo da cana de
açúcar e a produção de seus derivados – açúcar, aguardente e rapadura – era predominante.
A produção canavieira da região é seguida de um grande cultivo de milho. Eram
principalmente as produções destas duas culturas agrícolas que se direcionavam aos
mercados intraprovinciais e talvez até interprovinciais. Além destas culturas, advindas
principalmente de fazendas de maior porte, havia também uma produção diversificada de
alimentos, como o feijão, a mandioca e o arroz, destinada principalmente ao autoconsumo
e à manutenção das escravarias. Estes alimentos eram amplamente produzidos pelas
pequenas unidades agrícolas. (LEMOS, 2009).
Foi uma sociedade com este perfil econômico que sustentou a considerável
população escrava mineira, que trabalhava principalmente em pequenas unidades
produtoras, configurando um perfil democrático de posse de escravos, segundo a
interpretação de Douglas Libby.
Demografia escrava em Piranga
Analisar as características das populações é de extrema importância para o estudo da
história social e da família. Como explanado anteriormente, fizemos algumas alterações nas
duas contagens da população piranguense, de forma a abarcar uma realidade demográfica
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
367
mais condizente com a dinâmica territorial da região. Na tabela 1, estão expostos os
números dos habitantes de Piranga em dois momentos, depois das alterações feitas.
Tabela 1: População de Piranga por período e condição – Lista Nominativa e Censo Imperial
Adaptados
Ano
Livre
%
Escrava
%
Total
1831
8305
67,01
4088
32,99
12393
1872
30478
82,84
6313
17,16
36791
Fonte: Lista Nominativa de 1831/32; Recenseamento Geral do Império de 1872
Ao analisarmos a Tabela 2, percebemos que a população escrava de Piranga no ano
de 1831 se inseria nos padrões médios das regiões expostas, tendo praticamente o mesmo
percentual de escravos da província e também da região Mineradora Central-Oeste. Apenas
a Zona da Mata analisada por Libby tem cerca de 3% a mais de escravos que as outras
regiões. Estes dados demonstram que a freguesia estava inserida no sistema escravista de
forma ativa.
Tabela 2: População por região e condição – Lista Nominativa de 1831
Região
Livre
%
Escrava
%
Zona da Mata*
8819
63,23
5129
36,77
Mineradora Central-Oeste**
85.246
66,62
42.722
33,38
Minas Gerais**
275.988
66,83
136.989
33,17
Total
13948
127.968
412.977
Fonte: Lista Nominativa de 1831/32. *Números extraídos da amostra regional feita por Douglas Libby em Transformação e
Trabalho..., p. 367. ** Dados coletados do site: http://www.poplin.cedeplar.ufmg.br/.
Notamos, ao analisar a Tabela 3, que a escravaria de Piranga em 1872 ficou 1%
abaixo da média mineira. Em relação à região em que estava inserida, Zona da Mata, a
diferença foi grande, cerca de 8% menos. Esta variação significativa para sua própria região
se deve ao amplo dinamismo econômico do vale do rio Paraibuna – que tem o município
de Juiz de Fora como principal representante – na segunda metade do XIX, região
produtora em larga escala de café para exportação (FREIRE, 2009).
Tabela 3: População por região e condição – Censo 1872
Região
Livre
%
Escrava
%
Zona da Mata*
279.206
74,70
94.559
25,30
Minas Gerais**
1.669.276
81,84
370.459
18,16
Total
373.765
2.039.735
Fontes: *Douglas Libby, Transformação e Trabalho..., p. 367. **Recenseamento Geral do Império de 1872.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
368
Percebemos um crescimento significativo da população tanto livre quanto escrava da
localidade no decorrer dos quarenta anos que separam as contagens analisadas. Como
vemos na Tabela 1, os livres e libertos tiveram um enorme aumento, passando de 8305
para 30478 pessoas. É inquestionável que o rápido crescimento da população livre se
deveu, em ampla medida, ao grande número de alforrias, somado a taxas positivas de
crescimento natural. Como as mulheres foram mais suscetíveis às manumissões no Brasil, é
de se supor que a capacidade de reprodução natural dos livres e libertos de cor tenha
aumentado, em detrimento da dos cativos (LUNA & KLEIN, 2010: 271-314; FARIA, 2004:
111).
De 1831 a 1872, os escravos passaram de 4088 para 6313 (Tabela 1), um aumento de
35,24%. Para uma região à margem do setor agroexportador da Zona da Mata, não era fácil
manter as escravarias após o fim do tráfico atlântico de escravos. Se comparado com áreas
de plantation, este crescimento em Piranga é quase irrisório. Mas justamente por se tratar de
uma economia mercantil de subsistência, é que podemos perceber o apego à escravidão
dos agricultores da localidade. Acreditamos que o crescimento vegetativo teve grande
importância na manutenção das escravarias piranguenses, aspecto que iremos em outra
oportunidade.
Desproporção entre os sexos, baixa expectativa de vida, altos índices de mortalidade
infantil e uma grande taxa de alforrias eram os principais fatores de diminuição das
escravarias no Oitocentos. Por outro lado, o tráfico transatlântico vigente até 1850 e o
subseqüente tráfico interno eram os principais provedores de escravos das lavouras
brasileiras. O crescimento via reprodução natural ainda gera calorosos debates no meio
acadêmico, e o cenário mineiro é um dos seus principais palcos. (LUNA & KLEIN, 2010:
167-202; PAIVA & LIBBY, 1995; LIBBY, 2008; CANO & LUNA, 1983).
Ainda está em aberto um amplo debate acerca dos papéis e dos graus de importância
dos dois modos de manutenção do sistema em Minas no século XIX: importação e
reprodução natural. Clotilde Paiva e Douglas Libby acreditam na conjugação das duas
tendências demográficas para explicarem o fenômeno de Minas como maior província
escravista do Império brasileiro (PAIVA & LIBBY, 1995). Em estudo sobre o tráfico
negreiro para as Minas Gerais, tendo como base os registros eclesiásticos de batismo, Libby
argumenta que a partir de meados da década de 1830 houve uma queda brusca nos
batismos de africanos novos, demonstrando uma tendência à consolidação dos padrões de
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
369
reprodução natural, em um crescente processo de crioulização das escravarias (LIBBY,
2008: 471).
Segundo a Lista Nominativa, 37% dos 4088 escravos de Piranga no ano de 1831
procediam do tráfico atlântico. É uma taxa pequena de africanos, se comparada com outras
localidades, no mesmo período, dentro e fora da província. Segundo Libby, as décadas de
1810 e 1820 testemunharam um grande aumento no volume do tráfico para a província,
segundo os assentos de batismos de adultos africanos. Esta tendência teria uma queda
sensível em meados da década de 1830, sugerindo um colapso do tráfico para as Minas,
possivelmente em decorrência da consolidação de padrões de reprodução natural, como
dito anteriormente (LIBBY, 2008: 471).
A pequena participação de africanos na nossa amostra é significativa. Acreditamos
que a tendência à crioulização das escravarias, processo sugerido por Libby como inibidor
do tráfico em Minas, é anterior à década de 1830 no caso piranguense. Desta forma, a
porcentagem de africanos em Piranga, num momento posterior a uma grande entrada de
cativos via tráfico na província, indica que os produtores da região não estavam tão
dependentes deste comércio para a manutenção das escravarias – que possivelmente se
reproduziam naturalmente – precisando recorrer menos intensamente ao mercado para
repor a mão de obra necessária ao desenvolvimento da produção.
Piranga possuía uma escravaria africana com índices de masculinidade bem
superiores à média geral do tráfico. Há muito já se sabe que eram os traficantes africanos
que controlavam as condições de oferta de cativos nos portos. Embora o preço dos
escravos homens fosse ligeiramente maior na América, somente isto não explicaria a
minoria de mulheres submetidas ao cativeiro. Na verdade, características peculiares das
sociedades africanas influenciaram fortemente este padrão. Desta forma, em razão destas
características sociais africanas, a oferta de homens nos mercados de cativos litorâneos era
superior. A preferência de senhores por escravos do sexo masculino parece não ter surtido
efeito nos padrões demográficos do tráfico. O mais provável é que estes comprassem o que
lhes fosse ofertado (LUNA & KLEIN, 2010: 176).
Em relação à distribuição etária dos africanos em 1831, nada menos que 76,8% dos
1513 escravos estavam inseridos na categoria dos adultos, considerando a faixa de idade
produtiva entre 15 e 44 anos. Isto nos revela outra característica da demografia do tráfico
atlântico, que tinha preferência por adultos jovens e evitava o transporte de crianças por
possuírem um menor preço de mercado. Esta tendência, somada à grande desproporção
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
370
entre os sexos e a altos índices de mortalidade, influenciava preponderantemente nas
condições de reprodução natural destas populações, resultando, numa perspectiva ampla,
em seu declínio natural progressivo (LUNA & KLEIN, 2010: 177-181). Isso implica em
aventar a possibilidade de que a região foi capaz de renovar sua mão-de-obra escrava
naturalmente.
Avançando algumas décadas e observando o Recenseamento de 1872, se as
designações de origem forem condizentes com a realidade, é possível notar o enorme
declínio das pessoas de proveniência africana na população escrava de Piranga. Dos 6313
escravos recenseados, apenas 367 foram anotados como africanos. Uma participação de
apenas 5,8% do conjunto escravista regional. Neste grupo, a proporção de homens baixou
para 65%, em razão das condições expostas anteriormente e também provavelmente em
decorrência de uma maior taxa de mortalidade entre eles.
Tendo em conta o que foi argumentado em relação ao tráfico para as Minas Gerais e
dos números da década de 1830 apresentados, não é de se espantar que a participação dos
africanos mais de vinte anos após a cessação deste comércio seja tão pequena. Nos 218
inventários post-mortem consultados, entre 1850 e 1888, foram encontrados apenas 296
escravos africanos, 13,03% do total. Apesar de se tratar de uma média de quatro décadas, é
enorme a discrepância em relação aos dados aqui apresentados sobre a primeira metade do
século. O que fica evidente é a diminuição progressiva do grupo no decorrer das décadas.
Pouco menos da metade dos 296 escravos está situada na década de 1850, enquanto apenas
seis foram encontrados nos anos derradeiros da escravidão.
Em relação à idade, também é perceptível o declínio de africanos decorrente do fim
do tráfico atlântico. A cada decênio o número de idosos aumenta em relação aos adultos.
Somente nos anos iniciais da análise os escravos africanos em idade produtiva superam os
que tinham 45 anos ou mais. Já na década de 1860, os idosos predominam e a tendência de
envelhecimento do grupo se torna visível nos períodos subseqüentes.
A extinção do tráfico atlântico somada às possibilidades de crescimento vegetativo da
população escrava permitiu que cativos nascidos no Brasil se tornassem cada vez mais
numerosos; parcela esta da população que analisaremos a seguir.
Através da análise da documentação, temos a chance de visualizarmos a distribuição
dos escravos brasileiros de Piranga entre as principais designações pelas quais eram
identificados, em momentos distintos. Apenas três termos são utilizados na Lista
Nominativa na designação dos cativos nativos: crioulo, pardo e mestiço (termo que
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
371
englobava cabras e caboclos). É significativo observar, dentro deste universo amostral, que
quase 80% são crioulos e menos de 1% são considerados mestiços. Os pardos têm
participação de 19,45%.
Décadas depois, o Censo Imperial de 1872 registra os escravos em apenas duas
categorias: preto e pardo. O registro divide todos os homens e mulheres recenseados em
apenas quatro designações de cor distintas: branco, preto, pardo e caboclo. E os
escravos, brasileiros ou mesmo africanos, são identificados apenas como pretos ou
pardos. Desta forma, de um total de 5946 cativos brasileiros presentes no censo, há um
equilibro maior entre as duas categorias, com 58% de pretos e 42% de pardos.
Nos inventários post-mortem pesquisados, dos 2270 escravos arrolados, conseguimos
encontrar 1434 brasileiros (63%) com a designação de cor descrita. Destes, assim como na
Lista Nominativa, a maioria é crioulo, apesar de terem aberto certo espaço para escravos
descritos em outros termos. Os pardos perfazem 22,45% dos cativos.
É possível perceber, nos dados analisados, a grande eqüidade entre os sexos dos
escravos brasileiros de Piranga. A freguesia de Guarapiranga, em 1831, possuía escravos
nativos com uma razão de masculinidade de 102. Da mesma forma, os inventários
demonstram que entre 1850 e 1888 existiam entre os cativos 106 homens para cada 100
mulheres. Excepcionalmente, o Censo de 1872 destoa ligeiramente deste padrão de
igualdade, com uma taxa de masculinidade que resultou em 118.
Tendo em vista a Tabela 4, é possível observarmos os principais elementos que
compõe a diversidade escrava da região, excluindo a idade, item que será trabalhado mais a
frente. Brasileiros, africanos e escravos sem identificação de nacionalidade, homens e
mulheres integram este mosaico humano de cerca de quarenta anos.
Tabela 4: Escravos de Piranga por origem, sexo e período nos Inventários post-mortem, 1850-1888
Brasileiros
Africanos
Sem Identificação
H
M
S. Id.
H
M
H
M
Total
1850-59
281
283
0
117
23
25
26
755
1860-69
267
262
0
82
23
30
32
696
1870-79
231
164
2
38
7
88
81
611
1880-88
67
69
10
3
3
31
25
208
Total
846
778
12
240
56
174
164
2270
Fonte: Arquivo do Fórum de Piranga (AFP)/Arquivo Casa Setecentista de Mariana (ACSM), Inventários post-mortem.
Um ponto que merece nossa atenção são os escravos de nacionalidade não
identificada. Este é um problema que enfraquece nossa análise quantitativa. Tais escravos
somam 338, cerca de 15% do total da amostra. A razão para esta falha é a falta de zelo na
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
372
descrição, que geralmente apontava apenas o nome do escravo, sua idade e preço. Não
podemos fazer afirmações, mas acreditamos que se trate de um grupo composto
primordialmente de cativos nascidos no Brasil.
A crítica do contingente escravo por períodos é importante e faz necessária para
situarmos Piranga no contexto da crise da escravidão no Império. Pela análise da Tabela 4,
algumas variáveis são facilmente identificáveis. Primeiramente, salientamos mais uma vez a
brusca diminuição do elemento africano na composição do contingente. Enquanto que na
década de 1850, logo após a proibição do tráfico, contamos com 140 escravos,
encontramos apenas seis nos derradeiros anos do sistema.
Há uma progressiva diminuição do contingente escravo como um todo. Nos totais
por período (Tabela 4), este padrão é claramente notado. Na verdade, a diminuição nas três
primeiras décadas não é tão sensível, possivelmente demonstrando uma força produtiva na
região capaz de manter os níveis de presença escrava ligeiramente estáveis. As décadas de
1850, 1860 e 1870 possuíram respectivamente 33,3%, 30,7% e 26,9% dos escravos da
amostra. Por outro lado, registramos apenas 208 escravos na década de 1880, computando
9,1% do total. Sem dúvida, a Lei do Ventre Livre foi uma das principais responsáveis.
Privando-o de se renovar, mesmo que precariamente, a partir da reprodução natural de
seus escravos, o sistema vislumbrou seu fim num horizonte próximo.
Possibilidades de reprodução natural escrava
Entrando especificamente na questão da reprodução natural escrava, analisaremos
alguns dados relativos à idade dos cativos de Piranga. Esta heterogênea população escrava
piranguense, exposta acima, tinha também uma grande diversificação etária. Na Tabela 5
estão presentes todos os escravos com idade e sexo conhecidos, perfazendo 2051 dos 2270
escravos da região computados entre os anos de 1850 e 1888.
Separamos a idade em três grandes faixas para melhor visualizarmos a composição da
escravaria. O principal dado desta tabela, que nos salta aos olhos ao observá-la, diz respeito
à grande quantidade de crianças presentes nas escravarias piranguenses. Nada menos do
que 37,25% dos escravos tinha no máximo quatorze anos de idade. Uma quantidade
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
373
significativa de crianças, se observarmos que estão agregados os dados de escravos
brasileiros, africanos e não identificados.338
Tabela 5: Escravos de Piranga por origem, com sexo e idade conhecidos
nos Inventários post-mortem, 1850-1888
Brasileiros
Africanos
Sem Identificação
Idade
H
M
H
M
H
M
Total
0 a 14
381
366
1
0
10
6
764
15 a 44
338
309
106
22
86
85
946
Mais de 44
79
61
111
27
40
23
341
Total
798
736
218
49
136
114
2051
%
37,25
46,12
16,63
100,00
Fonte: AFP/ACSM, Inventários post-mortem.
No Gráfico 1, vemos a pirâmide etária dos escravos brasileiros encontrados nos
inventários, sendo que a população enfocada está dividida em faixas etárias de cinco anos.
Aqui, notamos uma estrutura etária completamente equilibrada, com os escravos de 0 a 4
anos perfazendo quase 20% do total. No total de crianças entre 0 e 14 anos, temos
impressionantes 48,7% dos escravos. Os adultos (15 a 44 anos) estão representados com
42,18% e os idosos (mais de 44 anos), são 9,13%. Mesmo que a amostra documental tenha
seus limites, a partir de dados como estes, podemos concluir que a população escrava de
Piranga possuía uma taxa de reprodução natural capaz de manter as escravarias em
crescimento.
338
Há que se fazer a ressalva de que estamos tratando dos dados agregados de um período de quatro décadas.
O ideal é fazer uma análise por décadas, de forma a termos uma visão mais abrangente e pormenorizada do
desenvolvimento etário desta população.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
374
Gráfico 1: Pirâmide etária dos escravos Brasileiros de Piranga -1850-1888
Homem
Mulher
Fonte: AFP/ACSM, Inventários post-mortem.
Acreditamos que os senhores tinham papel importante no crescimento vegetativo
dos escravos, na medida em que consideravam a reprodução natural como estratégia de
manutenção e crescimento de suas posses. Por outro lado, o tamanho das escravarias de
cada senhor influía diretamente na reprodução natural. Em relação às faixas de posse de
escravos dos senhores piranguenses, é possível perceber a clara relação entre tamanho da
posse e reprodução natural.
Podemos visualizar estes aspectos no Gráfico 2, no qual está disposta a divisão dos
escravos de Piranga entre grandes faixas de posse e grandes faixas etárias. Desta forma, o
aspecto mais importante a ser salientado se refere às porcentagens de escravos de 0 a 14
anos em cada uma das três faixas de posse. Há um crescimento progressivo das crianças em
relação às posses. De 32,95% de crianças nas propriedades com até dez escravos, temos
cerca de 40% delas nas posses com mais de vinte. Este dado demonstra a relação lógica
entre posse e reprodução: quanto mais escravos em uma propriedade, maiores as chances
de haver crescimento vegetativo.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
375
2: Escravos
de Piranga
por idade
faixas
0 a 14
15 a 44
Maisede
44 de posse nos
15 aGráfico
44; 1 a 10;
15 a 44; Mais de
Inventários post-mortem, 1850-1888
49,81
15 a 44; 11 a 20;
20;de45,65
0 a 14 ; Mais
43,10
0 a 14 ; 11 a 20;
20; 39,93
38,36
0 a 14 ; 1 a 10;
32,95
Mais de 44; 1 a
10; 17,23
Mais de 44; 11 a
20; 18,53
Mais de 44; Mais
de 20; 14,42
Fonte: AFP/ACSM, Inventários post-mortem.
Por fim, o último elemento que oferece suporte a nossa argumentação advém do
calculo da razão criança-mulher a partir dos dados provenientes dos inventários.339 A
Tabela 6 nos fornece duas variáveis deste calculo, com crianças de 0 a 4 anos em relação às
mulheres de 15 a 44 anos e com crianças de 0 a 9 anos em relação às mulheres de 15 a 49
anos. Utilizando todos os escravos com idade e sexo conhecidos, dividimos a análise pelas
quatro décadas de estudo.
Tabela 6: Razão Criança-Mulher nos Inventários post-mortem
0a4
0a9
1850-59
796,99
1368,06
1860-69
809,16
1328,47
1870-79
679,25
1140,35
1880-88
673,91
725,49
Total
757,21
1224,22
Fonte: AFP/ACSM, Inventários post-mortem.
Nas duas variáveis notamos uma presença expressiva de crianças em relação às
escravas em idade fértil de Piranga. A década de 1850 se caracteriza como a de maior
natalidade entre todos os períodos, com 1368 crianças para cada mil mulheres. Entretanto,
percebemos a diminuição progressiva da quantidade de crianças no decorrer das décadas
enfocadas, apesar de ainda serem dados contundentes em favor da hipótese de crescimento
endógeno da população escrava. As características peculiares da escravidão brasileira na
segunda metade do Oitocentos, momento no qual o sistema perde força a cada ano, pode
explicar a diminuição da razão criança-mulher em Piranga, pois as concessões de alforrias
339
A razão criança/mulher é a relação entre o número de crianças de 0 a 4 ou 0 a 9 anos por 1000 mulheres
em idade fértil, ou seja, de 15 a 44 ou 15 a 49 anos. A razão é expressa da seguinte forma: número de crianças
dividido pelo número de mulheres multiplicado por mil. RCM = (C/M) x 1000.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
376
aumentavam gradativamente e a partir da vigência da Lei do Ventre Livre as crianças
nascidas de escravas deixaram de ser contadas nas escravarias.
Ainda existem muitas variáveis a serem analisadas para que possamos fazer
afirmações concretas, mas estes poucos dados sobre composição etária nos indicam
caminhos a trilhar, no sentido de melhor compreendermos as dinâmicas populacionais que
proporcionaram diferentes graus de reprodução natural escrava.
Neste artigo, expusemos nossas tentativas de desvendar o mistério das categorias
administrativas e traçar uma divisão regional mais condizente com os registros judiciais de
uma região e período não trabalhados anteriormente pela historiografia. Mostramos,
apoiados em fontes inéditas, seu heterogêneo perfil populacional. Revelamos a diversidade
da escravaria piranguense, composta por uma ampla variedade de homens e mulheres,
africanos e brasileiros, pretos, pardos e crioulos. Aventamos, além do mais, a possibilidade
da reprodução natural positiva desta população cativa. Enfim, esperamos ter dado
contribuição ao debate historiográfico em relação à província mineira no Oitocentos.
Referências bibliográficas
CANO, Wilson & LUNA, Francisco Vidal. A Reprodução Natural de Escravos em Minas Gerais
(Século XIX) – uma Hipótese. In: Economia Escravista em Minas Gerais, Campinas, Cadernos IFCHUNICAMP, (10): 1-14, outubro de 1983.
CARNEIRO, Patrício Aureliano Silva. Conquista e Povoamento de uma Fronteira: a formação regional da
zona da mata no leste da capitania de Minas Gerais (1694 – 1835). Dissertação de Mestrado.
Universidade Federal de Minas Gerais, 2008.
CARRARA, Angelo Alves. Estruturas agrárias e capitalismo; contribuição para o estudo da ocupação do solo e
da transformação do trabalho na zona da Mata mineira (séculos XVIII e XIX). Série Estudos – 2. Núcleo de
História Econômica e Demográfica. Departamento de História. Universidade Federal de Ouro
Preto. Mariana, 1999.
CUNHA, Alexandre Mendes & GODOY, Marcelo Magalhães. O espaço das Minas Gerais:
processos de diferenciação econômico-espacial e regionalização nos séculos XVIII e XIX. In: Anais
do V Congresso Brasileiro de História Econômica e 6ª Conferência Internacional de História de Empresas.
Disponível em: http://ideas.repec.org/s/abp/he2003.html.
FARIA, Sheila de Castro. Sinhás pretas, damas mercadoras. As pretas minas nas cidades do Rio de
Janeiro e de São João Del Rey (1750-1850). Tese (Concurso de professor titular em História do
Brasil). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2004.
FREIRE, Jonis. Escravidão e família escrava na Zona da Mata Mineira oitocentista. Campinas, SP: [s. n.],
2009.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
377
GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. A princesa do oeste e o mito da decadência de Minas Gerais: São
João del Rei (1831-1888). São Paulo: Annablume, 2002.
______. História, Região & Globalização. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
LEMOS, Gusthavo. Família, propriedade e fortuna na freguesia de Guarapiranga na primeira metade do século
XIX. Monografia (Bacharelado em História). Universidade Federal de Viçosa, 2009.
LIBBY, Douglas C. Transformação e trabalho em uma economia escravista: Minas Gerais no século XIX.
São Paulo, Brasiliense, 1988.
______. O tráfico negreiro internacional e a demografia escravas nas Minas Gerais: um século e
meio de oscilações. In: FURTADO, Junia Ferreira. Sons, formas, cores e movimentos na modernidade
atlântica: Europa, Américas e África. São Paulo: Annablume, 2008.
LUNA, Francisco Vidal& KLEIN, Herbert S. Escravismo no Brasil. São Paulo: Edusp, 2010.
MARTINS, Roberto Borges. Minas Gerais, século XIX: tráfico e apego à escravidão numa
economia não-exportadora. Estudos Econômicos, 13(1), jan-abr, 1983.
PAIVA, Clotilde Andrade & LIBBY, Douglas Cole. Caminhos alternativos: escravidão e
reprodução em Minas Gerais no século XIX. Estudos Econômicos, São Paulo, v. 25, n. 2, p. 203-233,
maio-ago 1995.
______. & GODOY, Marcelo Magalhães. Território de contrastes: economia e sociedade das
Minas Gerais do século XIX. In: Anais do X Seminário sobre a Economia Mineira. Disponível em:
http://ideas.repec.org/s/cdp/diam02.html. Acessado em: 19/10/2011.
SLENES, Robert. Os múltiplos de porcos e diamantes: a economia escrava de Minas Gerais no
século XIX. Estudos Econômicos, v. 18, n. 3, pp. 449-495, set.-dez. 1888.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
378
Paulistas e Emboabas: quando se tornaram mineiros?
Isaac Cassemiro Ribeiro
Mestrando em História pela UFSJ/Bolsista Capes
isaac.ribeiro7@gmail.com
Resumo: A partir da descrição e da análise de dois conflitos ocorridos no final da Guerra
dos Emboabas – a saber, o “Capão da Traição” e “A Vingança dos Paulistas” –
investigamos o posterior povoamento da região da Vila de São João del-Rei. Para isso,
buscamos refletir sobre a composição de famílias do local e suas origens tanto paulistas
como emboabas. Dos dados levantados, nos perguntamos, até quando durou tal distinção?
Através de uma abordagem qualitativa e utilizando métodos da prosopografia,
apresentamos um estudo de caso buscando reconstituir a origem de dois núcleos familiares
da elite regional da comarca do Rio das Mortes, os “Pinto de Góes e Lara”, do Arraial da
Lage – hoje Resende Costa – e os “Alves Barbosa” do Arraial das Carrancas. O recorte
temporal abarca todo o século XVIII e a primeira metade do século XIX. Algumas dúvidas
nos ficam quanto ao destino dos paulistas após o ocorrido entre 1708 e 1709. O que teria
acontecido a suas lavras e terras? O que apresentaremos neste trabalho trata-se apenas de
um esboço do que poderia ter ocorrido em suas trajetórias, nas imediações da comarca do
Rio das Mortes.
Palavras-Chave: Família, Paulistas, Emboabas
Abstract: From the description and analysis of two events occurring at the end of
Emboabas War, "Capão da Traição" and "Vingança dos Paulista" - investigated the
subsequent settlement of the area of the village of Sao Joao del-Rei. For this, we reflect on
the composition of the local families and their origins as much as emboabas and paulista.
The data collected, we wonder, how long it lasted such a distinction? Through a qualitative
approach and methods of using prosopography, we present a case study seeking to trace
the origin of two families in the region of the regional elite of Rio das Mortes, the "Pinto
Goes e Lara," from Arraial da Lage- today Resende Costa - and "Alves Barbosa" of the
Arraial de Carrancas. The time frame covers the entire eighteenth century and the first half
of the nineteenth century. Some are in doubt about the fate of Sao Paulo after what
happened between 1708 and 1709. What would have happened to their mines and lands?
What we present in this work it is only an outline of what could have happened in their
trajectories, near the comarca do Rio das Mortes.
Keywords: Family, Paulistas, Emboabas
Introdução
A princípio gostaria de esclarecer que ao escolher o título para esta comunicação
propositalmente buscamos simplificar o tema de tal modo que, por sua abrangência,
trouxesse um maior número de interessados ao ambiente de debate possibilitado pelo 1º
Encontro de Pesquisa em História da UFMG. Fazendo isso corremos o risco de pelo
mesmo fato de abranger o tema, tornar o título vago aos nossos colegas de pesquisa,
parecendo sobremaneira um título de um trabalho memorialista. Mesmo assim assumimos
a responsabilidade do risco, acreditando ser o ambiente de debate de uma mesa temática o
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
379
lócus privilegiado para o aprofundamento do tema, sendo a isca de um título pouco preciso
a deixa que atrairia um maior número de interessados a discussão. De qualquer modo,
busquei elaborar também um título que se enquadrariam de modo mais acadêmico ao tema
da comunicação, ficando assim, nominalmente: Uniões matrimoniais entre nubentes de
ascendência paulista e portugueses após a Guerra dos Emboabas: Os “Góes e Lara” e os
“Barbosa Leme” (Comarca do Rio das Mortes, Minas Gerais, séc. XVIII).
Gostaria também de esclarecer nesta comunicação não trabalharei com o tema da
identidade mineira, como o título abrangente da comunicação pode deixar parecer. E sim,
trabalharei com as possíveis implicações que, a partir das disputas entre paulistas e
emboabas, puderam influenciar a prática dos casamentos que se sucederam aos conflitos de
1708-1709. E como as categorias de distinção “paulistas” e “emboabas” podem ou não ter
significados ao reconstituirmos trajetórias familiares e alianças matrimoniais.
Uma Comarca Mineira no Século XVIII
Rio das Mortes, pelas muitas que ali se fizeram. Esta deve ser a melhor explicação
para a origem do triste nome que o caudaloso rio empresta a uma das três primeiras
comarcas de Minas Gerais: a comarca do Rio das Mortes. Aos oito dias de Dezembro do
ano de 1713 o Arraial de Nossa Senhora do Pilar ou Arraial Novo do Rio das Mortes, foi
elevado à categoria de vila e recebeu o nome de São João del-Rei, em homenagem a Dom
João V, rei de Portugal. Transcorrido cerca de um ano, a vila torna-se sede da comarca do
Rio das Mortes340.
Em alvará de 6 de abril de 1714, presidida pelo governador D. Brás Baltazar da
Silveira, Minas Gerais dividir-se-ia em três comarcas, a comarca de Vila Rica, a de Vila Real
(Sabará) e a comarca do Rio das Mortes341.
A história da ocupação e da passagem de paulistas por essas imediações remonta, ao
menos, quatro décadas anteriores a elevação do Arraial Novo à vila de São João del-Rei.
Fato é que em 1674 a bandeira de Fernão Dias Paes Leme, Borba Gato, e seus homens,
fundam o povoado de Ibituruna, com roças e criações para o sortimento de suas
expedições. Este arraial situava-se apenas a 12 léguas do lugar onde se fundaria o arraial
Novo do Rio das Mortes. Muitas outras bandeiras paulistas passaram por estes sertões em
340 GUIMARÃES, Fábio Nelson. Fundação Histórica de São João del-Rei. In: Origens Históricas de São João delRei. BDMG Cultural: Belo Horizonte, 2006.p.48.
341VELLASCO, Ivan de Andrade. As seduções da ordem: violência, criminalidade e administração da justiça Minas
Gerais, século 19. Bauru/São Paulo: EDUSC/ANPOCS, 2004. p.38.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
380
busca do córrego do Tripuí, aos pés do pico do Itacolomi, onde o gentio da terra recolhera
ouro nas águas sujas de um córrego de mesmo nome do pico. Em 24 de Junho de 1698,
Antônio Dias de Oliveira descobriu o Ouro Preto, sucessivamente, em 1700 foram
manifestos342 os descobertos do Ribeirão do Carmo e do Sabarabuçú343.
Deu-se que ao fim do século XVII e começo do século XVIII, o taubateano Tomé
Portes del-Rei se fixou na paragem denominada Rio das Mortes. Sendo o primeiro
morador do lugar, “enquanto seus conterrâneos encaminharam-se em busca das minas,
Tomé Portes afazendou-se no vale do rio, plantou roça e, com familiares e escravos,
fundou um povoado” (GUIMARÃES, 2006:71). Posteriormente estabeleceu-se no mesmo
local o Porto Real da Passagem, nas imediações da ponte que liga o atual bairro de
Matozinhos em São João del-Rei ao município de Santa Cruz de Minas, região ainda hoje
nomeada de “Porto” por seus conterrâneos. Era parada obrigatória aos paulistas em
destino às “Minas dos Cataguases”. À Tomé Portes foi legado a cobrança do imposto real
sobre a travessia do dito rio em 1701. Na paragem, os viajantes vindos de terras distantes
ao sul se abasteciam do necessário em gêneros alimentícios, pois eram fartas as roças e
criações de vender. Rapidamente se constituiu um povoado ao redor da dita paragem, pois
no Rio das Mortes, e nos riachos que dele saiam, e nos ribeiros que nele davam, se
encontrava ouro. O povoado prosperou. Um ano depois, em 1702, Tomé Portes foi
nomeado guarda mor distrital pelo então governador Arthur de Sá Meneses, na repartição
do “Córrego”344. Imbuído deste cargo, Tomé Portes ficaria responsável pela distribuição e
repartição das terras minerais desta paragem345, em auxílio a Garcia Rodrigues Paes, filho
342 Adriana Romeiro atenta para que apenas depois do início das negociações de Arthur de Sá e Meneses,
governador das Capitanias da Repartição Sul, com os sertanistas paulistas, que estes passaram a manifestar os
descobrimentos de ouro no Sertão dos Cataguases. Sá e Meneses “fez o que todos seus antecessores
almejaram em vão: obter deles (os paulistas) o manifesto do ouro, em troca de privilégios, mercês e
recompensas”. Concedeu a Borba Gato a patente de tenente-general da jornada de descobrimento de prata de
Sabarabuçu. ROMEIRO, Adriana. Paulistas e Emboabas no Coração das Minas Gerais: Idéias, práticas e imaginário
político no século XVIII. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2008.p.54.
343 GUIMARÃES, Fábio Nelson. Op.cit.p.13.
344 “Foi nessa área, tudo indica, que Marçal Casado Rotier, senão o maior, pelo menos dos maiores e bem
afortunados mineradores do Rio das Mortes - sem dúvida o mais empreendedor -, aplicou suas atividades por
longos anos. Ainda se vê, à beira da estrada antiga para Tiradentes, uma velha construção, muito bem
conservada: a sede do que restou da sua Fazenda do Córrego.” (...) “Marçal Casado Rotier era português,
nascido em Lisboa, proprietário de vastas terras na vargem direita do Rio das Mortes, onde explorou com
sucesso ricas jazidas auríferas. Tal se pode deduzir pelos numerosos e volumosos vestígios deixados,
principalmente na região do antigo Arraial do Córrego, da atual Vila de Santa Cruz, encostas oeste da Serra de
São José, e proximidades do Rio Carandaí.” (...) “Em 1719 participava do Senado da Câmara da Vila de São
João del-Rei como juiz ordinário. Muito cooperou na construção da Matriz de Santo Antônio, da Vila de São
José del-Rei.”GUIMARÃES, Geraldo. São João del-Rei - Século XVIII - História sumária. Editora do Autor:
São João del-Rei, 1996. p.95.
345 GUIMARÃES, Fábio Nelson. Fundação Histórica de São João del-Rei. In: Origens Históricas de São João delRei. BDMG Cultural: Belo Horizonte, 2006.p.71
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
381
do então falecido bandeirante Fernão Dias. Segundo Adriana Romeiro, buscando garantir o
domínio político e administrativo da região das minas aos paulistas, o governador Sá e
Meneses reformulou completamente a legislação portuguesa precedente sobre a atividade
mineradora, criando o Regimento de 1700: “Nele, o principal cargo competia ao guardamor, que vinha substituir a figura do provedor, cuja principal função era apaziguar todo
tipo de conflito relativo aos trabalhos de mineração” (...) “Não resta dúvida que o cargo
havia sido criado para ser preenchido por um paulista poderoso, afeito ao universo da
extração aurífera” (ROMEIRO, 2008:57).
São provas da influência de Tomé Portes del-Rei nestes primeiros anos de
povoamento, o direito que lhe foi atribuído de cobrar pela passagem do rio das mortes em
1701, e sua nomeação à guarda-mor distrital em 1702. Tais honrarias se inseriam na política
do governo de Sá e Meneses que, favorável aos paulistas, buscou resguardar a hegemonia
política destes sobre a região das minas. Na paragem do Rio das Mortes não seria diferente.
Primeiro a povoar estes sertões onde surgiria a vila de São João del-Rei, Tomé Portes
veio a falecer em 1702. Coube a seu genro, Antônio Garcia da Cunha, sucedê-lo no cargo
de guarda-mor, encarregando-se de repartir as terras minerais na Repartição do Córrego.
Em 1704 o escrivão de datas de Antônio Garcia descobriu ouro no ribeirão São Francisco
Xavier346. Esse ribeirão se encontra no cume da “Serra do Lenheiro”, nas encostas adentro
do lugar onde hoje existe o bairro são-joanense do “Senhor dos Montes”. Os primeiros
mineradores da região haviam se destinado aos arraiais da Ponta do Morro e Santo Antônio
(Tiradentes), onde o ouro foi descoberto ainda em 1701. Ambos os arraias foram fundados
e suas terras minerais repartidas pelo falecido Tomé Portes. Os aventureiros que
procuravam pelo ouro no Arraial de Santo Antônio, quando souberam da nova descoberta
logo se deslocaram em grande número para as margens do córrego São Francisco Xavier a
procura de uma lavra para si. Um destes aventureiros encontrou logo abaixo das margens
do Ribeirão de São Francisco Xavier, entre o Morro das Mercês e o Córrego do Lenheiro,
grandes proporções de ouro, o primeiro a ser encontrado pelo campo, fora de rios e
córregos. Ali, “achava-se ouro pela raiz do capim”(GUIMARÃES, 2006:19), neste mesmo
lugar posteriormente se erigiu a vila de São João del-Rei.
Foi tanta a quantidade do metal encontrado na encosta, que logo o guarda mor
distribuiu todas as partes do dito morro, e os que não conseguiram terras, se associaram
aos proprietários das datas auríferas já distribuídas, e os proprietários de datas em grandes
346Idem.p71.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
382
proporções chamaram parentes e afins de todos os lados para ajudá-los. Construíram-se
casas de morada cobertas de sapé, se erigiu a capela dedicada a Nossa Senhora do Pilar,
coberta de mesmo modo. Foi fundado assim, em 1705, no Vale do Lenheiro, mais
aproximadamente, no Morro das Mercês, o Arraial Novo de Nossa Senhora do Pilar. Novo
em relação ao Arraial de Santo Antônio (Tiradentes), o Arraial Velho, fundado por Tomé
Portes.
Logo correu a notícia e a febre do ourolevou gente de todos os cantos do reino para
a mineração nas encostas das Mercês. O ouro era extraído com tanta facilidade e grandeza
que se chegou a pagar 68 oitavas do mesmo por um alqueire de milho; 100 oitavas, por um
boi ou cavalo; 40 oitavas, por um alqueire de farinha347. O ouro jazia por toda parte, os
veios eram colossais, o arraial se desenvolveu por sobre os veios – daí o comentário ainda
hoje comum em São João del-Rei de que a cidade está erigida acima de grandes vãos onde
se extraiu o ouro, os quais podem ser vistos pelas betas encontradas nos terreiros das casas.
Mas à bem aventurança se sucedeu a “desordem”. E a ganância e discórdia
dominaram os moradores do arraial. Duas facções existiam nas Minas por aqueles tempos,
os paulistas e os emboabas. Paulistas, homens do planalto de Piratininga e das vilas “Serra a
Cima”, ao sul dos Sertões dos Cataguases, andavam à pés descalços348, acostumados às
matas e convívio com os “negros da terra”, muitas vezes utilizavam-se mais das línguas dos
índios, o Tupí, do que da própria língua portuguesa349. Foram eles os descobridores das
“Minas dos Cataguases”, que em meio às suas viagens de apresamento indígena, as
Bandeiras, encontraram o precioso metal. De outro lado, formou-se o grupo a quem os
homens do planalto denominaram jocosamente de Emboabas, em analogia a um pássaro,
que parecia usar botas, assim como as usadas pelos portugueses. A segunda facção era
formada, sobretudo, por reinóis, os filhos de Portugal, e homens vindos de outras regiões
da América Portuguesa, principalmente da Bahia e de Pernambuco, atraídos pelo
descobrimento do ouro.
347
Nelson Guimarães citando a obra de 1859 do memorialista sãojoanense José Antônio Rodrigues:
GUIMARÃES, Fábio Nelson. In: Origens Históricas de São João del-Rei. BDMG Cultural: Belo Horizonte,
2006.p.23.
348 Segundo Sérgio Buarque de Holanda, esta prática tratar-se-ia mesmo de uma técnica ao andar indígena
comum em toda a América, nos termos do autor: “enquanto os brancos, por disposição natural ou educação,
costumam caminhar voltando para fora a extremidade de cada pé, o índio caminha de ordinário com os pés
para frente. (...) Com seu sistema peculiar, os índios não só economizam trabalho, pois a ponta do pé
encontra naturalmente menos superfície de resistência nos galhos e macegas, mas também, devido à
distribuição mais proporcional do peso do corpo, (...), torna-se possível percursos mais extensos”.
HOLANDA, Sergio Buarque de. Caminhos e Fronteiras.p.35.
349 HOLANDA, Sergio Buarque de. Caminhos e Fronteiras.p.184.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
383
Os primeiros conflitos entre as duas facções se deram mais ao norte da paragem do
Rio das Mortes, em 1707. Iniciou-se no Caeté, de lá ao Sabarabuçú (Sabará), e depois ao
Ouro Preto, se espalhando feito fogo ao vento por todos os arraiais e vilas de Minas. A
guerra se instaurou350. Foram dois anos de conflitos entre Paulistas e Emboabas, os
primeiros foram rechaçados de arraial a arraial, forçados a se retirarem para o sul, o destino
final de muitos deles seria o Rio das Mortes. Na noite de 15 de Fevereiro de 1709351,
liderados por Bento do Amaral Coutinho, um destacamento emboaba com cerca de
duzentos homens cercou uma “manga” de paulistas tendo por cabo Gabriel de Góes,
veterano das guerras coloniais, experiente nas táticas da guerra brasílica352, havia lutado ao
lado de Domingos Jorge Velho em Palmares, no ataque que dizimou aquele que foi um dos
maiores quilombos que os senhores das capitanias do Norte já haviam deparado353. No Rio
das Mortes tal experiência pouco adiantou, o capitão Gabriel de Goes e seus homens foram
rendidos, suas armas foram depostas – feitos prisioneiros, foram exterminados em grande
número. Diogo de Vasconcelos menciona a exagerada cifra de 300 mortos354. Certo é que
tal fatomarcou profundamente a memória dos mineiros, e os horrores desta noite ficaram
conhecidos como “o Capão da Traição”, pois o acontecido se deu em uma porção de mata,
formação esta conhecida por capão355.
Já esperando a vingança por parte dos Paulistas, o sargento mor José Matol –
personagem com cujo nome batizaram uma das encostas da cidade, o Morro do Matola –
determinou a imediata fortificação do povoado. Em relato detalhado redigido ainda em
1750, José Álvares de Oliveira, testemunha ocular dos acontecimentos, informa que foram
construídas paliçadas, e trincheiras ao redor do grupo de casas do arraial, uma ponte
350 Adriana Romeiro defende o emprego da terminologia “Levante dos Emboabas”, ao invés de “Guerra dos
Emboabas”. Embasa sua posição na afirmativa de que “do ponto de vista estritamente bélico, foram
raríssimas as batalhas, insignificantes as baixas, e rápido o desfecho”. Segundo a autora, para alguns
contemporâneos o levante sequer configurou um conflito. Para Romeiro o levante emboaba prestou-se a
diversas apropriações ideológicas filiadas a um nativismo histórico e ao mito da mineiridade, os quais a
terminologia de guerra, ligada a ideia de um grande conflito na origem de Minas, conferia uma dimensão
romântica à sua história. Diogo de Vasconcellos figuraria como um expoente desta visão romântica.
ROMEIRO, Adriana. Paulistas e Emboabas ...p.181/182.
351 GUIMARÃES, Fábio Nelson. Op.cite.2006.p.26.
352 Grifos Nossos.
353 VASCONCELOS, Diogo de. História Antiga de Minas Gerais. p.260.
354 GUIMARÃES, Fábio Nelson. Op.cite. 2006.p.26.
355 Apesar da áurea “mitológica” que envolve o “capão da traição”, Adriana Romeiro afirma que o episódio
não parece ter suscitado muito horror entre os contemporâneos, justamente por ser a execução sumária uma
prática comum na guerra brasílica, pratica de guerra bem conhecida dos paulistas. ROMEIRO, Adriana.
Paulistas e Emboabas no Coração das Mina. p.211.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
384
levadiça também foi erigida como proteção e único acesso à fortificação356. Naquele
momento, o povoado estabelecido no Morro das Mercês transformou-se em uma fortaleza.
Não haveria de ser diferente, os homens do planalto, não bastando a desonra de terem
perdido as batalhas e o domínio sobre as minas, ao chegarem em suas casas, foram
rechaçados por suas esposas e familiares, que lhes cobraram uma retaliação aos
Emboabas357. Prepararam-se então para a viagem serra acima buscando o contra ataque.
Pouco após o episódio do Capão da Traição, o Arraial Novo do Rio das Mortes se viu
sitiado por mais de dois mil homens armados e dispostos a acabar com o que restava de
“civilização” naquela paragem. Pouco antes, as forças paulistas lideradas por Amador
Bueno da Veiga encontraram-se na vila paulista de Guaratinguetá com o então governador
Antônio Albuquerque. O governador persuadiu aos paulistas não entrarem na região das
minas; persuasão que não surtiu efeito358. Amador Bueno havia sido eleito pelo senado da
câmara da vila de São Paulo, “cabo universal para qualquer invasão e defesa da pátria”
(ROMEIRO, 2008; 195). Chegando ao arraial Novo do Rio das Mortes, por três dias os
Emboabas se viram forçados a encarcerar-se dentro dos muros de madeira rodeados por
trincheiras que eles mesmos haviam construído, pois eram em número bem inferior aos
Paulistas, e com menor armamento. “As forças emboabas somavam perto de setecentos e
setenta (homens) assim divididos: duzentos e setenta brancos e cerca de quinhentos
negros” (ROMEIRO, 2008; 188). A situação dentro do fortim era precária, para
conseguirem água de uso, furaram um poço improvisada dentro da fortificação, por onde
se serviam de uma água barrenta. Mas os paulistas atacavam noite e dia, escondidos por trás
da igreja e das casas que ficaram fora da fortificação. Ávidos no exercício da “guerra
brasílica”, uma prática bélica completamente diferente dos padrões do velho mundo, os
paulistas empregaram-na no ataque à fortificação. Mas o ambiente era diferente das matas,
lugar natural para o qual a prática bélica havia sido concebida. De todo modo os paulistas
souberam muito bem reproduzi-la nesse cenário semiurbano, “escondendo-se por trás das
casas e da igreja, para daí darem assaltos e emboscadas ao inimigo” (ROMEIRO, 2008;
195).
356
OLIVEIRA, José Álvares. História do distrito do Rio das Mortes, sua descrição, descobrimento das suas
minas, casos nele acontecidos entre paulistas e emboabas e criação das suas vilas. In: Origens Históricas de São
João del-Rei. BDMG Cultural: Belo Horizonte, 2006.p.105.
357 Sobre o mito das mulheres paulistas obrigarem seus maridos a vingarem-se dos emboabas, Adriana
Romeiro diz não haver nada que comprove tal afirmação, tendo sido Rocha Pita o primeiro a invocar tal
mito. ROMEIRO, Adriana. Paulistas e Emboabas..p.194.
358 Romeiro, Adriana. Paulistas e Emboabas...p.195.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
385
Os emboabas chegaram a ter quarenta baixas, num total de mais de oitenta feridos.
Por outro lado, eles repetiram no Rio das Mortes a mesma estratégia que anteriormente
haviam empregado no Caeté, entrincheiraram-se “em fortificações, armazenando grandes
estoques de munição de guerra e boca” (ROMEIRO, 2008; 203), essa estratégia não foi
suficiente ao ataque incessante que os homens do planalto submeteram os emboabas. Na
tarde do terceiro dia, quando já era certa a invasão completa da fortificação, devido ao
grande número de baixas, os emboabas enviaram mensageiros para negociar uma possível
rendição aos paulistas. Surpreendentemente, neste momento crucial, os paulistas se foram
por sobre o caminho de volta às suas terras no sul, destruindo as canoas que possibilitavam
a travessia dos rios e derrubando as pontes que atravessavam para não serem seguidos359.
Haviam sido avisados por batedores sobre a vinda de um grande contingente de emboabas
das outras vilas e arraiais em reforço aos entrincheirados do Rio das Mortes. Este foi o
último conflito bélico entre as duas facções.
Findada as Guerras dos Emboabas, aquelas paragens passaram por um período de
relativa paz. O povoado prosperou. O arraial Novo de Nossa Senhora do Pilar elevou-se à
vila de São João del-Rei. Multidões de pessoas se dirigiam à região, de todas as partes do
reino. Em 1714 foi instituída a Comarca do Rio das Mortes tendo como sede a vila de São
João del-Rei.
Algumas dúvidas nos ficam quanto ao destino dos paulistas após o ocorrido entre
1708 e 1709. A historiografia não é muito clara quanto ao sucedido no convívio entre
paulistas e emboabas após o levante emboaba. Apresentado os principais conflitos
envolvendo paulistas e emboabas na região do Rio das Mortes, o que tentaremos a frente é,
a partir da reconstituição de dois grupos familiares, buscar esclarecer como se deu a
continuidade no povoamento da comarca do Rio das Mortes por famílias de origem
paulista após a “Guerra dos Emboabas”.
Uniões Matrimoniais entre Famílias de Ascendência Paulista e Portugueses
no Início do Século XVIII
O primeiro grupo familiar que abordaremos trata-se dos “Pinto de Góes e Lara” com
origem no casamento entre Ana Maria Bernardes de Góes e Lara e Francisco Pinto, a
359
OLIVEIRA, José Alvares.História do distrito do Rio das Mortes, sua descrição, descobrimento das suas
minas, casos nele acontecidos entre paulistas e emboabas e criação das suas vilas. In: Origens Históricas de São
João del-Rei. BDMG Cultural: Belo Horizonte, 2006.p.113.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
386
família teve como expoente o filho deste casal, o capitão Joaquim Pinto de Góes e Lara,
homem de grande fortuna e posses na região de São João del-Rei. Conforme o Diagrama I
–abaixo –, dona Ana Maria Bernardes, era filha do capitão Pedro Bernardes Caminha, um
português, e de dona Ângela de Góes e Lara que descendia de uma importante linhagem
paulista, figurando em sua ascendência materna o tataravô bandeirante, Lourenço Castanho
Taques, o velho. O pai de Ângela foi Manoel de Góes, contemporâneo de Gabriel de Góes,
este último aquele cabo da “manga de paulistas”, que, como vimos, foi executado no
episódio da Guerra dos Emboabas conhecido como o “capão da traição”, em 1709.
Diagrama I Ascendência Paulista
- Cap. Joaquim Pinto de Góes e
Lara (1600 - 1835)
? - 1671
?
Lourenço
Castanho
Taques c.1631
? - 1714
João
Pires
Rodrigues
Branca de
Almeida
Lara
?
?
? - 1728
? - 1712
Manoel
de
Góes
Maria
da Luz
Cardozo
João
Paes
Gago
Ana de
Porença
Lara
?
?
José de
Góes
Cardoso
Maria de
Almeida
Lara
c.1700
?
Pedro
Bernardes
Caminha
Legenda
? - 1708
?
c.+/- 1720
Angela
de
Góes
? - 1786
? - 1792
Ana
Maria
Bernardes
Francisc
Pinto
Rodrigues
Naturalidade Paulista
Naturalidade Portuguesa
1760 - 1835
1757 - 1830
Naturalidade Mineira c/
Ascendência Paulista
Naturalidade Mineira sem
Ascendência Paulista
cap. Joaquim
Pinto de
Góes e Lara
Ana de
Almeida
e Silva
73
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
Maria
de
Lara
387
FONTE: LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Nobiliarquia Paulistana Histórica e Genealógica. Inventário e
Testamento de dona Ana Maria Bernardes, 1786. Inventário e Testamento do capitão Francisco Pinto Rodrigues, 1792.
Inventário e Testamento de dona Ana de Almeida e Silva, 1830.
Em a Nobiliarchia Paulistana, de Pedro Taques de Almeida Paes Leme,360 encontram-se
algumas informações sobre a ascendência paulista do capitão Joaquim Pinto de Góes e
Lara. Seu quinto avô, o bandeirante Lourenço Castanho Taques, casou-se com dona Maria
de Lara em São Paulo no ano de 1631361. Indiferente ao assassinato de seu irmão, Pedro
Taques, na guerra aos Camargo362, e a subsequente mudança dos demais irmãos que
partiram da cidade de São Paulo, Lourenço Castanho Taques continuou residindo na vila
de São Paulo, devido ao grande respeito que nele havia e “a força de armas que o
prontificava para por em cerco aos inimigos do partido contrário”363. Em sua historia das
Bandeiras, Affonso de Taunay conta-nos que em 1668 partiu uma grande expedição de São
Paulo, liderada por Lourenço Castanho Taques. Empunhando uma carta escrita pelo
próprio rei Afonso VI, percorreu por dois anos a região que compreende hoje o Oeste e o
Triângulo Mineiro, a procura de ouro, nada encontrando364. O mesmo não se poderia dizer
do “gentio” a ser aprisionado, conduzido em muita quantidade a São Paulo. Faleceu o
bandeirante em 1671, pouco após retornar de sua jornada ao sertão. Uma de suas filhas,
dona Branca de Almeida Lara, foi casada com João Pires Rodrigues, paulista renomado. Ela
faleceu em 1714, juntos tiveram 12 filhos, dentre eles dona Ana de Proença, que foi casada
com João Gago Paes, esta falecera antes da mãe, ainda em 1712. Uma das filhas de dona
Ana de Proença, Maria de Almeida Lara, casou-se com João de Góes Cardoso, aos 21 dias
de Fevereiro de 1700, na matriz de São Paulo365. José de Góes era filho de Manoel de Góes,
ambos contemporâneos do cabo Gabriel de Góes, que lutou ao lado de Domingos Jorge
Velho na campanha contra Palmares366, e foi assassinado junto a uma manga de paulistas
por Bento do Amaral e sua tropa de emboabas no episódio do “Capão da Traição”. Gabriel
360
LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Nobiliarquia Paulistana Histórica e Genealógica. Tomo I. Livraria
Martins Ed: São Paulo, 1953. p.124.
361 LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Op.cite. p.124.
362 “Guerra dos Pires e Camargo” foi como ficou conhecido o conflito que se deu entre essas duas
importantes famílias da vila de São Paulo em meados do século XVII. O conflito entre os dois clãs teve início
por volta de 1640 quando Alberto Pires matou sua esposa, Leonor Camargo, e depois assassinou o homem
ao qual alegava ser amante de sua esposa. O assassinato de Leonor levou as milícias dos Camargo a matarem
Alberto Pires, quebrando um juramento feito à mãe deste de que Alberto seria levado a julgamento no
Tribunal Superior da Bahia. A luta entre os dois clãs durou por volta de vinte anos envolvendo diversos
assassinatos e confrontos aberto entre tropas de ambos os grupos. NAZZARI, Muriel. O Desaparecimento do
Dote: família, mulheres e mudança social em São Paulo, 1600-1900. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p.30.
363 LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Op.cite. p.5.
364 TAUNAY, Affonso de. História das Bandeiras Paulistas.V.1.p.98.
365 LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Op.cite. p.203.
366Idem.p.179.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
388
de Góes era contemporâneo de Manoel e José de Góes, paulistas, partilhavam os mesmos
pós-nomes, porém, as fontes não nos possibilitam afirmar se possuíam parentesco
consanguíneo. Destarte os episódios da Guerra dos Emboabas, ou Levante dos Emboabas,
como se prefira denominar – as gerações subsequentes destes paulistas se aliaram via
matrimonio a homens vindos de Portugal.
Ângela de Góes e Lara, filha dos paulistas João de Góes, e Maria de Almeida Lara,
ambos contemporâneos da Guerra dos Emboabas, casou-se com o capitão de ordenanças
da vila de São João del-Rei, Pedro Bernardes Caminha, português, natural de Trás-osMontes. Capitão Pedro Bernardes e dona Ângela de Góes casaram-se ainda na primeira
metade da séc. XVIII, uma ou duas décadas após a Guerra dos Emboaba e estabeleceramse em sua fazenda do Ribeirão de Santo Antônio, nas imediações das vilas de São José e
São João del-Rei. Sua filha, Ana Maria Bernardes de Góes e Lara casou-se com o capitão
Francisco Pinto Rodrigues, português da região de Braga. Ela faleceu em 1786 na fazenda
do Ribeirão de Santo Antônio na aplicação da Lage367, ele faleceu pouco depois, em 1792368,
na mesma fazenda. Do inventário dos bens que ficaram do falecimento de ambos podemos
inferir que eram grandes proprietários, possuindo, além da fazenda do Ribeirão de Santo
Antônio, partes nas fazendas da Boa Vista e Mosquito. Possuíam também uma morada de
casas na vila de São José del-Rei, “na esquina da rua que vai para casa das Almas e
Santíssima Trindade”369. Do casamento de ambos nasceu o capitão Joaquim Pinto de Góes
e Lara, que angariou uma fortuna dez vezes maior que a de seus pais, consolidando o
domínio político e econômico da família “Góes e Lara” ou “Pinto de Góes e Lara”, no
distrito da Lage e seu entorno. Quando sua mãe, dona Ana Maria Bernardes, faleceu em
1786, seus bens totalizaram 11:059$150 (onze contos, cinquenta e nove mil e cento e
cinquenta reis)370. Em 1830, quando falecera a esposa do capitão Joaquim Pinto, dona Ana
de Almeida, o inventário dos bens do casal foi avaliado em 101:927$805 (cento e um
contos, novecentos e vinte e sete mil, oitocentos e cinco réis)371. Guardada a inflação para o
período, e as mudanças econômicas como o declínio da extração aurífera e a consolidação
da economia de abastecimento do mercado interno, proporcionalmente, a fortuna do
capitão Joaquim Pinto ultrapassou em 92,16% a de seus pais.
367
Inventário e Testamento de dona Ana Maria Bernardes, ERIPHAN/SJDR, 1786.
Inventário e Testamento do capitão Francisco Pinto Rodrigues, ERIPHAN/SJDR, 1792.
369 Inventário e Testamento de dona Ana Maria Bernardes, ERIPHAN/SJDR, 1786.
370 Idem.
371 Inventário e Testamento de dona Ana de Almeida e Silva, ERIPHAN/SJDR,1830.
368
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
389
O outro grupo familiar que passaremos a descrever trata-se dos “Alves Barbosa” do
Arraial de Carrancas, comarca do Rio das Mortes. Como os “Pinto de Góes e Lara”, os
“Alves Barbosa” possuíam origem paulista e se aliaram por matrimônio a portugueses
ainda no século XVIII. No grupo encontramos o casamento entre uma descendente de
paulistas e um baiano, que, após falecer, foi sucedido por um português, conforme o
Diagrama II.
DIAGRAMA II - Ascendência Paulista de Genoveva Barbosa da
Trindade (sec.XVII e sec.XVIII)
?
Francisco
Alves
Barbosa
Isabel
Fragoso
? - 1765
?
Mathues
Leme
Barbosa
Rosária
Maria de
Jesus
Legenda
* Naturalidade Paulisa
* Naturalidde Portuguesa
* Naturalidade Baiana
* Naturalidade Mineira de
ascendência paulista
* Naturalidade Mineira de
ascendência portuguesa
* Naturalidade Mineira de
ascendência
portuguesa/paulista
?
? - 1759
Francisco
de Ávila
Fagundes
? - 1737
Maria Alves
Barbosa da
Porciúncula
Capitão Mor
Inácio Franco
Torres
c.1734
1737
1730 - 1808
1739 - ?
Antônio
Ribeiro
da Silva
Genoveva
da Trindade
Barbosa
c.1760
? - 1789
FONTE:Testamento Francisco de Ávila Fagundes (1759), Testamento Inácio Francisco Torres (1737),
Inventário de Maria Alves da Porciúncula (1798), Inventário e Testamento Antônio Ribeiro da Silva (1808).
Genoveva da Trindade Barbosa, batizada em 26 de Julho de 1739 em Carrancas, era
filha de Francisco de Ávila Fagundes e Maria Alves da Porciúncula, ambos moradores da
região. Francisco era natural da “ilha terceira da cidade de Angra”372, portanto, deve ter
migrado para a colônia durante a primeira metade do séc. XIX, na “corrida do ouro”. Em
seu testamento, transcrito em 1759, deixa à filha Genoveva, então com 20 anos, solteira373,
dois mil cruzados. Este provavelmente foi o dote que Antônio Ribeiro recebeu ao se casar
com Genoveva. O monte mor de Francisco Fagundes totalizou 15:284$410 ( quinze
contos, duzentos e oitenta quatro mil e quatrocentos e dez réis). Maria Alves Barbosa da
372
373
Testamento Francisco de Ávila Fagundes, ERIPHAN/SJDR, 1759. fl.7.
Grifos nossos, Idem.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
390
Porciúncula, mãe de Genoveva Barbosa, natural de Carrancas, era filha de paulistas
taubateanos. Segundo a genealogia da família, uma de suas irmãs teria se casado com o
renomado bandeirante Mateus Leme Barbosa, que requereu sesmaria em Carrancas no ano
de 1738374. Maria Porciúncula casara-se duas vezes, em segundas núpcias uniu-se ao pai de
Genoveva, Francisco Fagundes. A Fazenda das Carrancas foi legada a Maria Porciúncula
do seu primeiro casamento com o coronel Inácio Francisco Torres, filho de naturais da
Bahia, falecido em 1737. Com o primeiro marido teve apenas o filho Inácio Francisco (ou
Franco) Torres que viria a tornar-se padre. A Fazenda das Carrancas, segundo o inventário
do coronel Inácio Torres, constituía-se de “casas de vivenda de sobrado, com seu engenho
de moer cana e ou de farinha e outras duas moradas de casa térreas, casa de passageiros,
tudo coberto de telhas, com sua tenda e senzalas coberta de capim”375. A fazenda foi
avaliada em 2:820$000 (dois contos oitocentos e vinte mil réis) em 1737. Maria Porciúncula
uniu-se em segundas núpcias com Francisco Fagundes no mesmo ano do falecimento de
seu primeiro marido. Como vimos, Francisco era português, e com ela teve oito filhos,
dentre eles Genoveva Barbosa da Trindade, que prece ter sucedido a mãe na possa da
Fazenda das Carrancas, uma fazenda de considerável porte no arraial de mesmo nome.
Conclusão
Conforme os exemplos apresentados, podemos observar a sucessiva prática de
uniões matrimoniais entre descendentes de paulistas e portugueses. A princípio poderíamos
levantar a hipótese de que as diferenças entre paulistas e emboabas, ou portugueses, como
parece apontar este exemplo, não sobreviveram há tantos anos no decorrer do século
XVIII a ponto de criar hostilidades que impediriam alianças matrimoniais entre ambos os
grupos. Constatação esta que alinha a tese de Adriana Romeiro na qual o ocorrido seria
melhor denominado de “Levante Emboaba”, ao invés de “Guerra dos Emboabas”, pois o
conflito sobretudo se dera no campo da disputa pelo domínio político da região aurífera.
Por outro lado, Adriana Romeiro defende que:
(...) por todo século XVIII, paulistas e emboabas irão se enfrentar: as velhas
denominações nunca foram esquecidas e assumiram novos conteúdos,
inscrevendo-se em diferentes campos sociais. A aversão aos não paulistas,
associada ao ressentimento pela dupla derrota – imposta pelos emboabas e
depois por Albuquerque - , levaram os paulistas a perseguir por anos a fio o
sonho de um Eldorado dominado por seus patrícios, tanto em Pitangui quanto
em Goiás e Mato Grosso. (Romeiro, 2008:316)
374
375
AMATO, Marta. A Freguesia de Nossa Senhora das Carrancas e sua História. São Paulo: E. Loyola, 1996.p.26.
Testamento Inácio Francisco Torres, ERIPHAN/SJDR, 1737, fl.16.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
391
Acreditamos que a aparente contradição entre a constatação da autora – que paulistas
e emboabas irão se enfrentar por todo século XVIII – e a prática social por nós descrita
neste artigo – a constante união matrimonial entre descendentes de paulistas com
portugueses por todo século XVIII – poderia ser esclarecida com a mesma citação que
acima fizemos à Adriana Romeiro: as velhas denominações, “paulistas e emboabas”, não
esquecidas, assumiram novos conteúdos, inscrevendo-se em diferentes campos sociais. A
esta explicação acreditamos poder acrescentar que tais denominações conflituosas,
“paulistas e emboabas”, não se inscreveriam no campo das alianças matrimoniais, devido a
uma razão principal, que pode ser desmembrada em várias outras: por séculos as elites
coloniais casaram suas filhas com europeus recém chegados à América376. Esta prática
social já enraizada no comportamento das elites coloniais não sucumbiria a um conflito de
dois anos que, nos dizeres de Adriana Romeiro, não passou de um “levante”377. Muriel
Nazzari demonstrou que durante todo o século XVII as famílias paulistas buscaram
“melhorar sua raça” (NAZZARI, 2001:71) casando suas filhas mestiças com europeus que
em sua maioria das vezes traziam unicamente a pele branca como objeto de negociação à
família da noiva em seu casamento. Deste modo, o que se observava era uma busca
constante pela “infusão de sangue branco nas famílias paulistas mestiças” (NAZZARI,
2001:70). Esta prática certamente sobreviveu entre as famílias de origem paulista que se
mudaram para a região das minas ainda no começa do século XVIII.
Pesquisas recentes como a tese de doutorado Adriano Toledo Paiva, desenvolvidas
no âmbito do programa de pós-graduação da UFMG, demonstram, que apesar deste
aparente encobrimento da origem paulista observado nestes grupos familiares ao
observarmos fontes como testamentos e inventários, algumas outras famílias ligadas aos
primeiros povoadores paulistas em regiões como o entorno da cidade de Mariana, por todo
século XVIII enviaram sucessivas correspondências aos reis em Portugal requerendo
títulos nobiliárquicos por suas conquistas, e, como seus antepassados bandeirantes,
376
Dentre exemplos que podemos citar ainda no século XVII, o estudo de Muriel Nazzari sobre o
desaparecimento do dote. NAZZARI, Muriel. O Desaparecimento do Dote, p.71. Para o século XVIII a mesma
prática entre as elites da região de Campo dos Goitacases foi observada por Sheila de Castro Faria em Colônia
em Movimento. Sobre a preferência dos proprietários de terras em casar suas filhas com portugueses na região
de Campo dos Goitacases no sec. XVIII,Sheila de Castro Faria afirma:“Ser português, principalmente na
segunda metade do século XVIII, possibilitava o acesso ao matrimônio nas melhores famílias da região, mas
eram necessárias outras condições para transformar-se em rico e prestigiado senhor de terras e escravos.”
(FARIA, 1998:200) “Por outro lado, o interesse dos comerciantes em se ligarem a famílias já estabelecidas era,
ao que tudo indica, ditado pelo prestígio social que lhes traria, além do acesso a terras já trabalhadas, escravos
especializados e conhecimentos na fabricação do açúcar.” (FARIA, 1998:212)
377 ROMEIRO, Adriana. Paulistas e Emboabas. p.181/182.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
392
repetiram no séc. XVIII práticas de povoamento daqueles, como o emprego de mão de
obra escrava indígena, porém agora nos Sertões do Leste de Minas, região hoje
denominada Zona da Mata Mineira (PAIVA, 2012).
Referências Bibliográficas:
AMATO, Marta. A Freguesia de Nossa Senhora das Carrancas e sua História. São Paulo: E. Loyola, 1996.
FARIA, Sheila de Castro. Colônia em Movimento: Fortuna e Família no Cotidiano Colonial. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1998.
GUIMARÃES, Geraldo. São João del-Rei - Século XVIII - História sumária. Editora do Autor: São João
del-Rei, 1996.
GUIMARÃES, Fábio Nelson. Fundação Histórica de São João del-Rei. In: Origens Históricas de São
João del-Rei. BDMG Cultural: Belo Horizonte, 2006.
HOLANDA, Sergio Buarque de. Caminhos e Fronteiras.Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1975.
LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Nobiliarquia Paulistana Histórica e Genealógica. Tomo I.
Livraria Martins Ed: São Paulo, 1953.
ROMEIRO, Adriana. Paulistas e Emboabas no Coração das Minas Gerais: Idéias, práticas e imaginário
político no século XVIII. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2008.
PAIVA, Adriano Toledo. Caminhos da Memória Paulista no séc. XVIII. Comunicação apresentada no I
Encontro de Pesquisa em História da UFMG. 23 a 25 de Maio de 2012. Belo Horizonte, MG.
VASCONCELOS, Diogo de. História Antiga de Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999.
VELLASCO, Ivan de Andrade. As seduções da ordem: violência, criminalidade e administração da justiça
Minas Gerais, século 19. Bauru/São Paulo: EDUSC/ANPOCS, 2004.
Manuscritas:
Testamento Inácio Francisco Torres, ERIPHAN/SJDR378, 1737.
Testamento Francisco de Ávila Fagundes, ERIPHAN/SJDR, 1759.
Inventário e Testamento de dona Ana Maria Bernardes, ERIPHAN/SJDR, 1786.
Inventário e Testamento do capitão Francisco Pinto Rodrigues, ERIPHAN/SJDR, 1792.
Inventário e Testamento de dona Ana de Almeida e Silva, ERIPHAN/SJDR,1830.
378
Escritório Regional do IPHAN em São João del-Rei.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
393
Bigamia e nulidade de casamento no Brasil do século XIX
Isabela Guimarães Rabelo do Amaral
Mestranda em Direito pela UFMG / Bolsista do CNPq
belagramaral@yahoo.com.br
Resumo: Tendo em vista as relações familiares do século XIX e o valor dado ao
casamento, esse artigo pretendeu abordar a ocorrência do crime de bigamia e a decretação
de nulidade do matrimônio em sua perspectiva jurídica. O objetivo principal foi
compreender o tratamento jurídico e os efeitos legais e sociais no caso do duplo vínculo
matrimonial. Para tanto, foram analisadas as legislações penal e canônica, bem como alguns
processos coletados no Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Pôde-se perceber
de que forma a Igreja, responsável pelo casamento durante muito tempo no Brasil,
enxergava a questão da bigamia e o que o ligame posterior e o adultério poderiam significar
na vida daquelas pessoas que procuraram auxílio jurídico.
Palavras-chave: Brasil do século XIX, Bigamia, Nulidade de casamento.
Resumé: En considération à les relations de famille du XIXe siècle et le valeur du mariage,
cette article a eu l’intention d’approcher l’occurence du crime de bigamie et la nullité du
mariage em la perspective juridique. L’objectif general fut comprendre le traitement
juridique e les effets socials quand il avait doubler lien matrimonial. Pour arriver à ce
produit, les législations pénal et canonique ont été analysées et aussi quelques procès de
nullité de mariage recherchés dans l’Archive Ecclésiastique de l’Archidiocèse de Mariana.
On a constaté la forme comme l’Église, responsable pour le mariage pendant longtemps en
Brésil, voyait la question de la bigamie et qu’est que ce crime et le adultère pourraient
signifier dans la vie des personnes que ont cherché l’aide juridique.
Mots-clés: Brésil du XIXe siècle, Bigamie, Nullité de mariage.
No Brasil, pode-se dizer que adultérios e bigamias foram comuns e ocorreram desde
a colonização, permanecendo no período imperial e em todo o restante do século XIX.
Ambos eram crimes, estavam relacionados ao casamento e eram considerados pecado por
parte da Igreja Católica. Por isso mesmo, eram tratados rigorosamente pelas normas, tanto
penais, quanto canônicas.
Após a independência, o casamento permaneceu a cargo da Igreja Católica, uma vez
que as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia foram recepcionadas pelo Decreto
de 3 de Novembro de 1827 (MIRANDA, 1981: 72). Para Josette Lordello, a permanência
da regulamentação do matrimônio, por parte da Igreja Católica, no Brasil, após a
independência, conta com dois facilitadores. O primeiro deles é o fato de a Constituição
Imperial de 1824, por meio do seu artigo 5º, estabelecer que o catolicismo continuava a ser
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
394
a religião oficial no Brasil. O segundo, diz respeito à inexistência de um corpo sólido de
normas para o Estado recém independente que, emergencialmente, recepcionou, por meio
da Lei de 23 de outubro de 1823, as Ordenações, regimentos, alvarás, decretos e resoluções
dos reis de Portugal, que deveriam ser observados no Brasil, mesmo após a separação da
metrópole, até que as novas legislações fossem produzidas (LORDELLO, 2002: 65). A
Igreja Católica, portanto, controlou a normatização e organização do matrimônio durante
longo período na história do Brasil. Os problemas relacionados ao casamento eram, em
grande parte, solucionados por ela.
Veja-se o trecho abaixo da Carta do Vigário Francisco de Paula Ferreira Palhares
para o Cônego Júlio Bicalho, na cidade de Mariana, em 1894, no qual requer instruções
para um caso de bigamia em que houve condenação do autor do crime e a cônjuge
enganada desejava se casar novamente:
[...] Aqui em minha freguesia deu-se infelizmente um fato bem triste que um
tratante aqui casou-se pela terceira vez, tendo falecido a segunda mulher, e
existindo a que ele casou-se primeiramente, e ele aí estava iludiu ao Exmo
Senhor Bispo d’aonde trouxe esta portaria que aí vai, e depois que aqui casou-se
terceira vez, descobriu-se, e ele já está na cadeia de Ouro Preto há 3 para 4
anos, e agora a moça que ele casou-se aqui com ela quer casar-se, e achou um
bom casamento, mas como fatos d’esta ordem são muito raros de se dar, e eu
não sei como se faz nestas circunstâncias, por isso aí vai esta explicação e
juntamente o alvará de licença do Exmo. Senhor Bispo, e quero que V. Rma.
arranje lá este negócio, e mande-me com as devidas explicações de tudo o que
deverei fazer, pois a moça quer e precisa casar-se quanto antes, enfim V. Rma.
me guiará, e tudo fará a meu favor e d’esta infeliz moça, que foi iludida, porém
o homem está preso em O. Preto por esta e outros crimes por ele cometidos.
[...]
A oradora com quem ele casou-se aqui chama-se Rosa Ferreira da Silva, e agora
ela quer casar-se com Joaquim Ramos de Queiroz, e este viúvo que ficou de
Maria Joaquina de Jesus; [...].(AEAM, Libelos de divórcio e nulidade: número
3389).
O bígamo se encontrava cumprindo pena pelo seu crime e o vigário local desejava
receber instruções do bispo, pois a esposa enganada gostaria de contrair novas núpcias.
João Rodrigues de Brito se casou três vezes, tendo abandonado a primeira esposa e sendo
viúvo da segunda.
A Igreja Católica, então, já recomendava que os casais permanecessem juntos, e que
o cônjuge que abandonasse o outro, cometeria grave pecado:
301 E porque alguns maridos por andarem distraídos com outras mulheres, e por
outras causas, e respeitos se ausentam de suas legítimas mulheres, deixando-as,
indo, ou vindo viver a outras Freguesias, do que resultam grandes pecados, e
inconvenientes; mandamos a todos nossos súditos façam vida marital com suas
mulheres, e a elas que acompanhem a seus maridos, como são obrigadas, aos
lugares aonde com decência com eles puderem viver (VIDE, 1853a: 124).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
395
Era uma recomendação bastante aplicável ao período, principalmente para Minas
Gerais, que recebeu muitos migrantes, tanto de outras regiões do Brasil, quanto do Reino
português. A historiografia relata casos de bigamia desses homens, que largavam suas
esposas para tentar a sorte na terra do ouro, com a promessa de buscá-las, posteriormente,
e nunca mais retornavam, formando uma nova família, onde se estabeleciam.
Para combater esse “grave pecado”, a Igreja agia por meio de pregações e visitações
para julgar as condutas consideradas pecaminosas, como afirma Mary Del Priore:
Mais familiarizada com as condições das comunidades coloniais, a Igreja
perceberá que o discurso e as medidas necessárias para incentivar matrimônios
não podiam destinar-se apenas às elites, a cujas mulheres era dada a
possibilidade de um recolhimento, ou casamento além-mar. Ela empreende,
então, incursões doutrinárias e reformadoras na modalidade de Visitas e
Devassas a Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo, Mato Grosso e
Goiás com os mesmos frustrantes resultados. Ou seja, constata os
elevadíssimos índices de concubinato, a momentânea disposição das
populações de os corrigir, e a permanente reincidência nas “mesmas
faltas”(DEL PRIORE, 2000: 52).
A bigamia já era proibida desde as Ordenações do Reino, que também vigoraram no
Brasil. No Livro V, Título XIX, havia o crime “Do homem, que casa com duas mulheres, e
da mulher, que casa com dois maridos”. O tipo criminal era descrito da seguinte forma:
Todo homem, que sendo casado e recebido com uma mulher, e não sendo o
Matrimônio julgado por inválido per Juízo da Igreja, se com outra casar, e se
receber, morra por isso.
[...]
E esta mesma pena haja toda a mulher que dois maridos receber, e com eles casar
pela sobredita maneira, o que tudo haverá lugar, ora ambos os Matrimônios fossem
inválidos por Direito, ora um deles (ALMEIDA, 1870: 1170).
O Código Criminal do Império de 1830 manteve a incriminação da conduta, mas
amenizou a questão da pena. Como visto, pelas Ordenações Filipinas, a bigamia poderia
levar à pena de morte, embora houvesse determinadas atenuantes, por exemplo, a posição
social do autor, que resultavam na comutação da pena, como degredo para a África. O tipo
penal no Código Criminal do Império era de poligamia, previsto no artigo 249, do Título
“Dos crimes contra a segurança individual”, Capítulo “Dos crimes contra a segurança do
estado civil, e doméstico”:
Poligamia
Art. 249. Contrair matrimônio segunda, ou mais vezes, sem se ter dissolvido o
primeiro.
Penas - de prisão com trabalho por um a seis anos, e de multa correspondente á
metade do tempo (CÓDIGO CRIMINAL, 1830).
No primeiro Código Criminal da República, há pequenas alterações; o crime continua
a ser nomeado de poligamia, também localizado no capítulo de crimes contra a segurança
do estado civil e doméstico, mas há o acréscimo da atipicidade no caso de nulidade do
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
396
primeiro casamento ou morte do primeiro cônjuge. Foi incluído também o parágrafo
único, que trata da cumplicidade no cometimento do crime. A pena torna-se ainda mais
branda do que nos casos anteriores.
DA POLIGAMIA
Art. 283. Contrair casamento, mais de uma vez, sem estar o anterior dissolvido
por sentença de nulidade, ou por morte do outro cônjuge:
Pena – de prisão celular por um a seis anos.
Parágrafo único. Se a pessoa tiver prévio conhecimento de que é casado aquele
com quem contrair casamento, incorrerá nas penas de cumplicidade (CÓDIGO
PENAL, 1890).
No caso relatado pelo Vigário Francisco de Paula, pode-se notar que o Réu,
provavelmente, foi condenado na pena máxima, já que na carta há a informação de que ele
se encontrava na Cadeia de Ouro Preto já havia 3 ou 4 anos. Observando ainda o caso de
Mariana do ano de 1894, nota-se que a bigamia não trazia consequências apenas para o
campo criminal, mas também nas relações privadas. Dona Rosa Ferreira da Silva, enganada
por seu cônjuge, desejava se casar com Joaquim Ramos de Queiroz. O que poderia ser
feito, tendo em vista o caráter perpétuo do matrimônio?
O único casamento válido no Brasil, para efeitos civis, era o religioso. Por isso
mesmo, sua regulação se encontrava nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia,
já que, até 1890, a Igreja Católica foi responsável pelas normas de casamento e divórcio.
Essas Constituições formavam um compêndio versando sobre normas eclesiásticas que
procuravam adequar os preceitos tridentinos às terras brasileiras e suas peculiaridades.
Desde o Concílio de Trento, o casamento foi reafirmado como um dos sete
sacramentos instituídos por Cristo e isso foi recepcionado nas Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia. O matrimônio era considerado, portanto, um contrato com vínculo
perpétuoe indissolúvel em que um homem e uma mulher se entregavam um ao outro, à
semelhança da união que há entre o Senhor e a sua Igreja. Segundo as Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia, ele era ordenado principalmente para três fins:
[...] O primeiro é o da propagação humana, ordenada para o culto, e honra de
Deus. O segundo é a fé, e lealdade, que os casados devem guardar mutuamente.
O terceiro é o da inseparabilidade dos mesmos casados, significativa da união
de Cristo Senhor nosso com a Igreja Católica. Além destes fins é também
remédio da concupiscência, e assim S. Paulo o aconselha como tal aos que não
podem ser continentes (VIDE, 1853a: 107).
Para o casamento ser considerado válido, deveria cumprir determinados requisitos de
legitimidade. O primeiro deles dizia respeito à idade dos nubentes: homens deveriam ter 14
anos e mulheres, 12 (nº. 267). O segundo requisito era saúde mental, para que a vontade
manifestada fosse livre e consciente (nº. 268). E, por fim, a comunicação da intenção dos
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
397
nubentes de se casarem ao pároco, para que fossem realizadas as denunciações dos nomes
dos noivos, seus pais e freguesia a que pertenciam, em três domingos ou dias santos,
durante a missa do dia, a fim de averiguar a existência de impedimentos (nº. 269). Se os
nubentes fossem viúvos, deveriam comprovar a morte do ex-cônjuge (nº. 271). Se os
nubentes fossem naturais de outra freguesia ou tivessem morado em outro local por mais
de seis meses, em todos eles deveriam providenciar denunciações e trazer certificado de sua
realização, a fim de comprovar a inexistência de impedimento (nº. 272). As denunciações
só tinham validade por dois meses e se a celebração não ocorresse nesse tempo, elas
deveriam ser repetidas. (nº. 274) (VIDE, 1853a: 109-112). Para que essa celebração fosse
válida, deveria ocorrer em presença de um pároco, ou outro sacerdote por ele licenciado, e
de duas ou três testemunhas, que atestassem o mútuo consentimento dos consortes (nº.
293) (VIDE, 1853a: 121-122). As denunciações poderiam ser dispensadas ou diferidas para
depois do matrimônio, por licença do Arcebispo ou, havendo impedimento, poderiam os
noivos ser autorizados a se casar por meio de uma sentença de dispensação (VIDE, 1853a:
119-120, 130).
Sendo válido o casamento, após o cumprimento de todos os requisitos citados
anteriormente, formava-se um vínculo perpétuo e indissolúvel, mas poderia haver
separação de corpos e de bens, dentro de determinados requisitos da lei, que era o
chamado divórcio nessa época. Algo bem diferente do que se entende por divórcio nos
dias de hoje e bem próximo ao chamado desquite, presente no Código Civil de 1916 e que
vigorou até a Lei nº. 6.515 de 26 de dezembro de 1977, que estabeleceu o divórcio como
rompedor do vínculo matrimonial. Fato é que no século XIX, no Brasil, sendo válido
apenas o casamento religioso, que era considerado um sacramento, não havia causa que
fosse capaz de romper o vínculo matrimonial e permitir novas núpcias.
Contudo, esse vínculo poderia ser considerado inválido, por meio da verificação da
nulidade do matrimônio. Seria essa a solução para o problema de Dona Rosa? Porque se a
Igreja não se manifestasse sobre o caso e ela insistisse em se casar com Joaquim cometeria
também ela crime de bigamia, tal qual seu primeiro cônjuge, ou, no mínimo, viveria em
concubinato, situação também condenada pela Igreja, embora não houvesse um controle
rígido sobre a situação, como constatado por Eni de Mesquita Samara:
[...] uma parcela representativa da população preferia permanecer no celibato ou
simplesmente aderia às uniões ilegítimas, apresentando uma certa resistência
aos apelos da Igreja em sacramentar essas relações. Isso ocorria também entre
as camadas mais pobres, onde a escolha do cônjuge obedecia a critérios bem
menos seletivos e preconceituosos (SAMARA, 1986: 44).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
398
Aliás, foi essa pressão da Igreja que fez Zacarias Augusto Lopes se casar às pressas
com Maria Carolina de Souza, sua concubina, após ter sido advertido por um bispo numa
visita Pastoral. Depois de viver muitos anos concubinado com Maria Carolina, eles se
casaram. Após um tempo, foram visitar parentes dela em S. Fidelis, quando Zacarias, com
desgosto, recebeu a notícia de que sua esposa já era casada naquela localidade e não viúva,
como declarava, e que o marido ainda era vivo ao tempo do casamento. Ou seja, Maria
Carolina era bígama. Zacarias a abandonou e não se preocupou em regularizar sua situação
de forma imediata. Mas o interesse surgiu, quando desejou se casar novamente e precisava
que o vínculo anterior fosse desfeito, ou melhor, declarado inexistente, tendo em vista a
ocorrência de bigamia de sua esposa. O próprio Zacarias, interessado na rapidez de sua
causa, escreveu uma carta à autoridade eclesiástica responsável pela decretação da nulidade:
Zacharias Augusto Lopes, residente na freguesia e arraial de S. Sebastião do
Herval, deste Bispado de Mariana, vem expor humildemente a Vossa
Reverendíssima o seguinte favor e pedir remédio oportuno. Quando em 1893 o
Exmo. e Reverendíssimo Bispo deste Bispado fez a visita pastoral à freguesia de
S. Antonio do Carangola achava-me por fraqueza humana vivendo com uma
mulher chamada Maria Carolina de Souza, que se dizia viúva de um indivíduo
chamado João, vulgo Cangica, que morava em São Fidelis do Bispado de
Petrópolis.
Profundamente tocado da graça e com desejos de corrigir minha vida por
aquela ocasião da visita episcopal recebi em matrimônio essa mulher na
presença de um dos Sacerdotes que acompanhavam o Exmo. Reverendíssimo
Bispo que então dispensou os proclamas, a justificação de óbito de João
Cangica etc.
Não muito tempo depois tendo eu ido a S. Fidelis com a minha reputada
mulher, tive a tristeza de saber pelos parentes dela que ainda era vivo João
Cangica seu primeiro e legítimo marido o qual ainda hoje vive, segundo me
consta. À vista disto e temente a Deus como sempre fui, repudiei a minha
reputada mulher, separando-me dela e aconselhando-lhe que procurasse ao seu
primeiro e legítimo marido e com ela nenhuma relação mais tive, nem mais a vi.
Agora desejando contrair segundas núpcias, venho rogar e requisitar V. Exmª.
Rn.ª, digo venho rogar a V, Exmª. Remª. a graça de requisitar a certidão do
primeiro matrimônio de Maria Carolina de Souza com João Cangica, e em falta
dela que se proceda uma justificação do dito casamento e profira sentença de
nulidade do meu casamento com a dita mulher dispensando as formalidades do
estilo porque sou pobre como afirmam os documentos juntos (AEAM, Libelos
de divórcio e nulidade: número 3462).
Nota-se como a Igreja, na prática, desconsiderava suas próprias regras, a fim de
realizar, a todo custo, casamentos, considerados núcleos mais sólidos de dispersão da fé
cristã. Embora tenha sido dito, anteriormente, que as denunciações eram um dos requisitos
essenciais, bem como a necessidade de se comprovar o óbito de ex-cônjuge no caso de
viúvo (a) que desejasse contrair segundas núpcias, o que se observa no caso de Zacarias foi
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
399
a preterição da legislação canônica em vigor, em prol do combate ao concubinato,
considerado, na visão dos párocos, mal maior a ser corrigido em detrimento de sua própria
burocracia. Percebe-se também que a bigamia e o adultério não eram prerrogativa dos
homens. As mulheres não eram tão submissas como a história faz crer. Elas também
tinham seus interesses e buscavam alternativas no meio social para alcançar seus objetivos.
Maria Carolina, segundo testemunhas, tinha um péssimo comportamento e, por esse
motivo, foi expulsa de casa pelo primeiro marido. Foi, então, para outra região e, a fim de
buscar proteção, mentiu para Zacarias que era viúva, pois foi o artifício por ela encontrado
para sobreviver na sociedade. Mas será que Dona Rosa e Zacarias conseguiram se casar
novamente? O vínculo matrimonial poderia ser desfeito? Como dito anteriormente, o
vínculo matrimonial era indissolúvel, mas poderia ser considerado inválido, e, neste caso, o
casamento seria nulo, permitindo aos ex-cônjuges se casarem novamente. A própria Igreja
mantinha uma regulamentação e cuidava dos casos de nulidade de casamento. A nulidade
provinha da desobediência aos impedimentos previstos em lei:
294 Grave pecado cometem, e dignos são de exemplar castigo, os que sem o
devido temor de Deus, em grande prejuízo de suas almas se casam, sabendo
que há entre eles impedimento dirimente, com o qual não val o Matrimônio, e
os contraentes ficam em estado de condenação. [...] [destaque nosso] (VIDE,
1853a: 122).
Os impedimentos eram de dois tipos: impedientes, que eram aqueles que impediam a
realização do matrimônio e os dirimentes, que “dissolviam” o vínculo matrimonial mesmo
após sua realização, devido à infração grave, que levava à nulidade do casamento. Os
padres incentivavam os fiéis a fazer as denúncias desses impedimentos, ainda que fossem
parentes próximos dos nubentes impedidos, pois, do contrário, cometiam grave pecado.
Os impedimentos dirimentes eram: erro da pessoa; condição de cativo; voto solene para
Ordens Sacras; ordenação Sacra; cognação natural (entre consanguíneos dentro do quarto
grau), espiritual (vínculo por batismo) ou legal (vínculo por adoção); crime cometido contra
ex-cônjuge da viúva ou viúvo com quem se pretendia casar, havendo ou não adultério
anterior; disparidade de religião; coação; ligame anterior (se um dos contraentes era casado
por palavras de presente com pessoa ainda viva); pública honestidade (quando um dos
nubentes tivesse prometido casamento para parentes de primeiro grau do outro, como
irmão, irmã, filho ou filha da pessoa com quem pretendia se casar ou tivesse se casado por
palavras presentes com qualquer parente até o quarto grau do nubente; parentesco por
afinidade (até o quarto grau, não poderia o nubente se casar com parentes de ex-cônjuge
morto); cópula ilícita (não poderia o nubente se casar com parentes consanguíneos até
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
400
segundo grau da pessoa com quem tivesse tido cópula ilícita); impotência perpétua para
gerar filhos; rapto consentido ou não, em desagrado da família; ausência do pároco e de
duas testemunhas (VIDE, 1853a: 116-119). Segundo Maria Beatriz Nizza da Silva, quando
a Igreja estabeleceu as diferenças entre impedimentos dirimentes e impedientes, tornou
possível o surgimento dos processos de nulidade de matrimônio no juízo eclesiástico
(SILVA, 1984: 243).
O crime de bigamia estava ligado ao impedimento do ligame, ou seja, “[...] se algum
dos contraentes é casado por palavras de presente com outra mulher, ou marido, ainda que
o Matrimônio seja somente rato, e não consumado, vivendo o tal marido, ou mulher, não
pode contrair matrimônio com outrem, e se de fato o contrair é nulo” (VIDE, 1853a: 118).
Esse é o impedimento que se aplica aos casos estudados. É como se o vínculo nunca
tivesse existido, devido à infração grave de uma norma cogente, que impedia a bigamia ou a
poligamia. Na seara criminal, já se pôde observar que a conduta era considerada crime e no
campo do direito privado, a conduta poderia levar à nulidade do segundo matrimônio
contraído.
O processo de nulidade de matrimônio era de competência do Juízo Eclesiástico,
pois, como foi visto, a Igreja Católica era a responsável pela regulamentação do vínculo
matrimonial e as matérias a ele correlatas. Em 24 de janeiro de 1890, foi promulgado o
Decreto nº. 181379, que estabeleceu o casamento civil como o único válido em território
brasileiro. Entretanto, devido à cultura religiosa arraigada na sociedade, as pessoas ainda
procuravam o Juízo Eclesiástico, após essa data, para anularem seus casamentos católicos e
poderem formalizar um novo matrimônio tanto no campo cível, quanto no religioso. O
primeiro ato do processo era a apresentação do libelo, peça em que o (a) autor (a) expunha
o motivo do requerimento de nulidade:
Diz Augusta Elisa da Costa Moreira filha legítima do finado João da Costa
Moreira e de D. Maria Porcina da Costa Moreira natural da Paróquia de Nossa
Senhora da Conceição da Cidade do Sabará e residente nesta de N. Senhora do
Pilar da cidade de S. João d’El Rey, ambas na Província de Minas Gerais,
Bispado de Mariana que a bem de seu direito e com o fim de obter sentença de
nulidade de matrimônio contraído entre a suplicante e Julio Augusto Saraiva
Pinheiro, filho legítimo de Antonio Joaquim Pinheiro e D. Carolina Candida
Saraiva Pinheiro, natural da Freguesia de S. Gonçalo, precisa ser admitida a
justificar perante V. S. R.ma
379
Informações
disponíveis
em
<http://www6.senado.gov.br/legislacao/DetalhaDocumento.action?id=65368>. Acesso em 09 de maio de
2012.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
401
1º Que a justificante é a própria e a mesma filha legítima do finado João da
Costa Moreira e D. Maria Porcina da Costa Moreira, natural de Sabará e
residente nesta Cidade de São João d’El Rey:
2º Que no dia sete de janeiro de mil oito centos e oitenta e seis, às dez horas da
noite em Oratório particular, ereto na casa de sua Mãe D. Maria Porcina da
Costa Moreira recebeu em matrimônio Julio Augusto Saraiva Pinheiro em
presença do Reverendo Cônego Francisco de Paula da Rocha Nunan, sendo
testemunhas além de outras pessoas, o Reverendo Padre João Baptista do
Sacramento, Doutor José Moreira Bastos, Médico, e D. Rita de Cássia Pinto de
Carvalho:
3º Que Julio Augusto Saraiva Pinheiro é o mesmo filho legítimo de Antonio
Joaquim Pinheiro e D. Carolina Candida Saraiva Pinheiro, e casado com D.
Carolina Domiciana Condet a dezoito de janeiro de mil oito centos e setenta e
três na Matriz de S. João Baptista de Niterói na presença do Reverendo
Antonio Mendes Fernandes de Paiva de licença do Reverendo Vigário dessa
Freguesia Antonio Gomes Xavier e das testemunhas Clemente José de Góes
Viana e Antonio Augusto Saraiva:
4º Que este casamento de Julio Augusto Saraiva Pinheiro não estava dissolvido
quando ele recebeu a justificante em matrimônio, tendo assim cometido o
crime de bigamia, sendo condenado por sentença do Tribunal do Júri do
Termo de São João d’El Rey de trinta de Dezembro de mil oitocentos e oitenta
e seis no grau máximo das penas do artigo duzentos e quarenta e nove do
Código Criminal [6 anos de prisão com trabalho e multa]:
5º Que o próprio Julio Augusto Saraiva Pinheiro já referido está cumprindo a
sentença também referida na Cadeia desta Cidade de S. João d’El Rey.
Assim pois a justificante
P. a V. S. R.ma que autuada esta e justificada quanto baste no dia, hora e lugar
que for designado e com citação do justificado preso na Cadeia desta Cidade,
seja julgada a presente justificação por sentença e entregue o original à
justificante, ficando traslado para ela fazer o uso que lhe convier (AEAM,
Libelos de divórcio e nulidade: número 3352).
Esse libelo relata um caso típico de bigamia, gerando efeitos tanto no campo cívelcanônico (nulidade do matrimônio), quanto no penal (condenação do bígamo). Augusta
Elisa casou-se com Júlio Augusto, sem saber que ele já era casado com Carolina Domiciana
em outra Freguesia. Embora não tenha nenhum motivo explícito em vista, como uma nova
proposta de casamento, Augusta Elisa busca o Juízo Eclesiástico para anular seu
casamento, porque, provavelmente era “cristã temente a Deus e mulher honesta”
(expressões comuns, à época, nos processos eclesiásticos, para descrever as mulheres) e
sabia que, se permanecesse casada com um bígamo, cometeria “grave pecado”. Também
não fazia sentido, numa sociedade que valorizava tanto o casamento, permanecer numa
união inválida, sendo que teria oportunidades de se casar novamente, principalmente se
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
402
tivesse um bom dote. Júlio Augusto sofreu as duas consequências previstas pela bigamia:
teve seu segundo casamento declarado nulo e foi condenado à pena máxima pelo crime
cometido, por isso se encontrava na Cadeia de São João Del Rey.
O libelo era apresentado em audiência, após requerimento prévio de citação para que
o réu também comparecesse, pois ele tinha direito de apresentar sua contrariedade ao
libelo. Após esse ato, ou havendo revelia do réu, ocorriam as dilações para produção de
prova (VIDE, 1853b: 32-59). Até a instrução, o processo corria na paróquia em que
residiam as partes e a competência era do Vigário da Vara. O processo, posteriormente, era
remetido para o Vigário Geral. Nos casos relatados aqui, o Vigário Geral residia no
Bispado de Mariana e coordenava-o, e era para lá que eram enviados os processos para
decisão final. Normalmente, o Vigário Geral pedia que se concedesse vista ao Defensor do
Matrimônio e, em alguns casos, também ao Promotor Eclesiástico, para emitirem seus
pareceres. O primeiro, como o próprio nome diz, defendia a manutenção do vínculo, por
ser perpétuo e indissolúvel, a todo custo, a não ser que as provas fossem incontestáveis. O
segundo atuava como custus legis, alegando nulidades no processo, principalmente aquelas
detectadas quando havia revelia.
Dos casos relatados, tanto Dona Rosa, quanto Zacarias e Augusta Elisa tiveram a
nulidade de seus matrimônios decretada, pois se considerou que a bigamia foi
suficientemente comprovada para, sendo ela causa explícita de nulidade, prevista em lei,
levar ao desfecho esperado pelos autores. Augusta Elisa, enganada pelo marido, enfim se
viu livre do falso casamento, para poder seguir sua vida. O processo de Zacarias tramitou
rapidamente e logo ele pôde desposar sua nova pretendente. O curioso é que, enquanto
não possuía objetivos de se casar novamente, ele não se preocupou com o fato de ainda ser
casado com sua antiga concubina. Mas quando surgiu a possibilidade, não titubeou para
procurar o Juízo Eclesiástico, a fim de anular seu primeiro casamento por bigamia da sua
ex-consorte, contando com a interseção do vigário de sua paróquia, muito empenhado em
conseguir a anulação, para evitar que Zacarias se concubinasse com a nova pretendente. A
agilidade do processo de Zacarias não esteve presente no caso de D. Rosa, que desejava
fortemente se casar com Joaquim de Queiroz. Como a sentença demorou muito, as
previsões do vigário local se concretizaram. O casal passou a viver em concubinato, antes
que a situação do casamento anterior fosse regularizada, embora o marido bígamo já
estivesse, inclusive, cumprindo pena pelo crime, como relatado pelo vigário:
Passo ao conhecimento de V.Ecia. que os oradores Joaquim Ramos de Queiroz
e Rosa Augusto Ferreira da Silva, esta bigamia [sic] com João Rodrigues de
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
403
Brito, e já V.Ecia.Rma. tendo ciência d’isto, por já se achar este processo aí nessa
Secretaria, e já tendo se mandado aí em dias do mês de outubro, um portador
buscando a sentença d’estes, e sendo esta prometida de vir, e não tendo assim
realizado, vou com este cientificar a V.Ecia. de que estes oradores acham-se
amasiados escandalosamente, e como eu detivesse este escândalo o quanto me
fosse possível, por isso julgo-me sem responsabilidade para com Deus, e
continuando a esperar que V.Ecia. se digne a dar a sentença nesses autos aí
guardados a tantos meses (AEAM, Libelos de divórcio e nulidade: número
3389).
Alguns párocos se empenhavam muito para evitar o concubinato e buscar a
regularização da vida marital de seus fiéis. Mas, nesse caso, o vigário Francisco de Paula
não obteve sucesso, pois o casal passou a co-habitar, antes que a sentença de nulidade
viesse da instância superior.
Num contexto em que as pessoas deveriam encontrar espaços de atuação e o
casamento era uma forma familiar restrita, burocrática e indissolúvel, a bigamia poderia
significar a sobrevivência de uma pessoa, uma relação de aceitação recíproca e consentida
ou, até mesmo, a realização de uma satisfação pessoal, tendo em vista que o vínculo
matrimonial não se dissolvia.
Isso porque o casamento no século XIX significou, muitas vezes, a realização de
interesses familiares, em detrimento do afeto entre os nubentes. Por isso, o concubinato e a
bigamia representaram, em alguns casos, a busca da realização pessoal, tendo em vista a
indissolubilidade do vínculo matrimonial. A verdadeira concretização dos desejos estava,
portanto, centrada na escolha pessoal e consciente, enfrentando todos os preconceitos e
convenções da época, independentemente da forma familiar escolhida.
Referências Bibliográficas:
ALMEIDA, Cândido Mendes de (org). Ordenações Filipinas. Vols. 1 a 5. Rio de Janeiro, 1870.
Disponível em <http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm>. Acesso em 09 de
maio de 2012.
BRASIL. Código Penal. Decreto nº. 847 de 11 de outubro de 1890. Promulga o Código Penal.
Disponível em <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ ListaPublicacoes.action?id=66049>.
Acesso em 09 de maio de 2012.
IMPÉRIO BRASILEIRO. Código Criminal do Império. Lei de 16 de dezembro de 1830. Manda
executar
o
Código
Criminal.
Disponível
em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-16-12-1830.htm>. Acesso em 09 de maio
de 2012.
DEL PRIORE, Mary. Mulheres no Brasil Colonial. São Paulo: Contexto, 2000.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
404
LORDELLO, Josette Magalhães. Entre o Reino de Deus e o dos Homens: a secularização do casamento
no Brasil do século XIX. Brasília: Editora UNB, 2002.
MIRANDA, Pontes de. Fontes e evolução do direito civil brasileiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981.
SAMARA, Eni de Mesquita. A família brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1986.
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento no Brasil colonial. São Paulo: T. A.
Queiroz/EDUSP, 1984.
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Typographia
2 de dezembro de Antonio Louzada Antunes, 1853a.
VIDE, Sebastião Monteiro da. Regimento do Auditório Eclesiástico do Arcebispado da Bahia. Metrópole do
Brasil e da sua Relação, e oficiais da Justiça Eclesiástica, e mais causas que tocão ao bom Governo do dito
Arcebispado, ordenado pelo ilustríssimo senhor D. Sebastião Monteiro da Vide. 5º Arcebispo da Bahia e do
conselho de sua Magestade. São Paulo: Na Typografia 2 de dezembro de Antonio Louzada
Antunes, 1853b.
Fontes manuscritas:
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana (AEAM). Libelos de divórcio e nulidade. Partes:
Augusta Elisa da Costa Moreira e Júlio Augusto Saraiva Pinheiro. Comarca de Rio das Mortes, São
João Del Rey, 1888. Número 3352.
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana (AEAM). Libelos de divórcio e nulidade. Partes:
Rosa Ferreira da Silva e João Rodrigues de Brito. Mariana, 1894. Número 3389.
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana (AEAM). Libelos de divórcio e nulidade. Partes:
Zacarias Augusto Lopes e Maria Carolina de Souza. Freguesia de São Sebastião do Herval, 1900.
Número 3462.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
405
A conformação da elite marianense e sua relação com a força armada particular:
1707-1736
Izabella Fátima Oliveira de Sales
Doutoranda em História pela UFJF / CAPES
izabellaieps@yahoo.com.br
Resumo: Esse trabalho pretende analisar as estratégias utilizadas pela “nobreza da terra”
do termo de Mariana, entre os anos de 1707 e 1736, no sentido de definir, manter ou elevar
sua posição na hierarquia social. Nesse processo, os indivíduos recorriam, especialmente, à
prestação de serviços à Coroa - como a contenção de revoltas ou o desmantelamento de
quilombos, por exemplo - atuação que requeria a posse de uma força armada particular.
Palavras Chave: Armas, poder, elite
Abstract: This work intends to analyze the strategies used by the "nobility of the land" in
the Termo de Mariana, between the years 1707 and 1736, to define, maintain or increase
their position in the social hierarchy. In this process, individuals resorted, especially, to the
provision of services to the Crown - as the containment of riots or dismantling of
quilombos, for example - work that required the possession of a private armed force.
Key Words: Weapons, power, elite
Esse trabalho pretende analisar as estratégias utilizadas pela elite do termo de
Mariana no sentido de definir, manter ou elevar sua posição na hierarquia social. O período
abordado pela pesquisa inicia-se no ano de 1707 e estende-se até 1736, tal recorte temporal
justifica-se por abranger o processo de conquista e povoamento da região, onde se destaca
a atuação de indivíduos cujas trajetórias foram definidas a partir de sua atuação neste
contexto. Ademais, este momento é marcado por vários conflitos, que envolviam disputas
por lavras, terras cultiváveis, lugares de mando, entre outros fatores. Acrescenta-se a esse
quadro a instauração das instituições representativas do poder reinol - como as câmaras e
as ordens militares, representadas pelos Dragões e pelas Companhias de Ordenança, além
do próprio governo da capitania de Minas Gerais, cuja constituição se deu no ano de 1720.
Nesse processo, os indivíduos recorriam, especialmente, à prestação de serviços à Coroa,
como a contenção de revoltas ou o desmantelamento de quilombos, por exemplo, atuação
que requeria a posse de uma força armada particular.
Estudos recentes vem demonstrando que na América Portuguesa, a dinâmica da
economia política dos privilégios,380 tinha como um de seus principais fundamentos a atividade
de desbravamento e ocupação das regiões inóspitas pelos fiéis vassalos do Rei, ação que
380
Este texto foi trabalhado por Antonio Manuel Espanha ao analisar as relações de poder que se
estabeleciam entre Portugal e suas conquistas. ( HESPANHA, 2001).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
406
possibilitava a efetivação e a ampliação das margens de poder da Coroa sobre território
Americano e que tinha como contrapartida todo um conjunto de recompensas que
favoreceu em grande medida o processo de constituição das elites coloniais brasileiras.
O processo de desbravamento, povoamento e exploração dos sertões, inclusive os
que compreendiam a região mineradora, envolveu diretamente a questão da difusão de
armas e o controle exercido pelas autoridades locais e metropolitanas sobre as mesmas. A
posse de armas, naquele período, contribuía para que os conquistadores pudessem se
defender dos perigos encontrados nas matas e nos caminhos - como os embates contra o
gentio, a defesa contra animais ferozes, entre outros fatores. No caso das Minas
setecentistas, a posse e o uso de armas foi de fundamental importância na disputa entre os
grupos pelas melhores lavras.
Assim, a prestação de serviços à Coroa através do uso de uma força armada
particular contribuiu para a constituição de uma nobreza da terra nas diversas capitanias da
América Portuguesa, na medida em que tais serviços eram retribuídos pelo poder
metropolitano através de diversos tipos de privilégios, como a ocupação de cargos
camarários, a concessão de patentes militares e de títulos nobiliárquicos, por exemplo.
(SALES, 2009)
Afim de identificarmos os indivíduos que teriam maior poder de agir ao lado da
Coroa em caso de eventualidades, procuramos definir a dinâmica de distribuição das armas
no termo de Mariana, utilizando como base os dados retirados da análise de 145
inventários existentes no Arquivo da Casa Setecentista de Mariana, referentes ao período
compreendido entre os anos de 1713 a 1736.
É importante salientar que a difusão dos armamentos não estava relacionado apenas
à sua importância enquanto instrumento de ataque e defesa, mas também ao fato de
representar um elemento de diferenciação social. Ademais, a definição dos grupos que
compunham a sociedade marianense naquele período representa uma tarefa bastante
complicada, pois, os inventários deixam abertas várias lacunas, como por exemplo, o fato
de haver a possibilidade da patente de um indivíduo não ser mencionada no processo.
Além disso, a distinção social era uma característica que não se definia apenas pela posse de
bens materiais. Tais dificuldades nos levaram a adotar alguns critérios que a historiografia
vem definindo como princípios fundamentais para a constituição das elites locais, são eles:
as patentes militares, a ocupação de cargos camarários e a posse de cabedais. (ALMEIDA,
2007).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
407
No que diz respeito a essa última variável, consideraremos um elemento que
correspondia a uma parte significativa dos bens inventariados, ou seja, o número de
escravos. Segundo Francisco Vidal Luna, (1982) durante o período de exploração aurífera
na região das Minas, a posse da mão-de-obra cativa era primordial para o processo de
acumulação de riquezas, visto que, os escravos eram responsáveis pela realização dos
serviços destinados a prática da mineração- tanto no que se refere à extração do metal
propriamente dito, como na construção das estruturas físicas exigidas por tal atividade.
Além disso, as datas eram distribuídas pela Coroa de acordo com o potencial da força de
trabalho apresentada pelo senhor. (Ibidem, p.6-9)
Tomando então, como base os elementos que podem nos ajudar a identificar os
grupos privilegiados- seja pelas condições econômicas ou pelo status correspondente a cada
indivíduo – procuramos diferenciar a posse de armas entre a elite e a população em geral.
Patentes Militares: Entre um total de 145 indivíduos inventariados381, verificamos a
presença de 21 possuidores de patentes militares, que por sua vez, detinham 154 armas, o
que correspondia a uma média de 7,3 armas para cada um deles. Esse valor está bem acima
do número médio por inventariado, que é de 3,4. Dessa maneira, percebe-se a existência de
uma estreita relação entre posse de patente militar e número de armas.
Também observamos os tipos de armas pertencentes aos possuidores de patentes e
conseguimos definir algumas proporções. Encontramos 29 espadas entre os bens materiais
deixados por eles, o que determinava uma média de 1,4 para cada, número que também
está acima da média geral de 0,7 espadas por inventariado.
Quanto às espingardas e pistolas, a relação entre patenteados e inventariados segue
os parâmetros descritos acima. Encontramos 54 espingardas e 24 pistolas, ou seja, 2,5 e 1,1
por oficial respectivamente. Fica claro que esses dados também estão acima da média geral
que é de 1,0 espingardas e 0,5 pistolas por inventariado.
Além de espingardas, espadas e pistolas, foram encontrados outros tipos de armas
nos arsenais constituídos pelos patenteados, entre elas temos clavinas (9 unidades),
bacamartes (10 unidades) e catanas (5 unidades). Essa última, não foi oúnico tipo de arma
branca descrita nos inventários, pois, achamos também espadim, bastão, adaga, faca, baeta
e traçado, entretanto, para cada um desses modelos contabilizamos entre uma e duas
unidades.
381
Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Marina
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
408
Acreditamos que a relação entre patentes e posse de armas se deve à importância das
mesmas para que esses indivíduos pudessem prestar serviços à Coroa, especialmente no
que se refere à conquista e povoamento dos sertões, à defesa do território, à luta contra o
gentio e quilombolas e à contenção de revoltas. Além disso, no caso de Minas Gerais a
força armada foi essencial na disputa pelas melhores lavras e na luta pelos lugares de
mando. A concessão ou a manutenção de patentes militares seria uma forma de retribuição
dada pelo governo em reconhecimento aos serviços prestados por seus vassalos e esse
processo significava um espaço de negociação entre o grupo e o centro de poder.
Ocupação de cargos camarários: A observação do perfil apresentado pelos
camaristas também foi outro caminho que procuramos traçar para alcançarmos o objetivo
de descobrir as principais características referentes à posse de armas no universo dos
grupos sociais privilegiados. Dentre os 145 inventários analisados, dez se referiam aos
bensdeixados por oficiais que ocupavam cargos na municipalidade382. Foram encontradas
para esse grupo um total de 62 armas, o que nos permite definir uma média de 6,2 armas
para cada indivíduo, número que ultrapassa o valor encontrado para a média geral que é de
3,4.
As espingardas aparecem em maior quantidade, somando um total de 22 unidades, o
que corresponde a uma média de 2,2 armas para cada oficial, número que está acima da
média geral por inventariado que é de 1,0 e abaixo da média para patenteados que é de 2,5.
O segundo lugar é ocupado pelas 11 espadas contabilizadas, indicando a proporção de 1,1
por indivíduo, que por sua vez está acima da média geral que é de 0,7 e abaixo da média
para patenteados que é de 1,4. A seguir vem a pistola representada por 6 unidades,
equivalendo assim a uma proporção de 0,6 unidades por indivíduo. Comparando esses
dados com aqueles encontrados para os patenteados, percebemos que os oficiais da câmara
estão abaixo da média em relação à posse desse tipo de arma, contudo, permanecem acima
da média geral que é de 0,5. Deste modo, no contexto analisado a presença na Câmara
parece ocupar posição secundária em relação à posse de patente, no que se refere à posse
de armas.
382
Com relação a esses camaristas, é importante salientar que nos inventários de três deles não havia menção
à posse de patentes militares. Dessa maneira, percebemos que os dados referentes a esse grupo serão muito
aproximados daqueles que verificamos ao analisar o perfil dos patenteados.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
409
Ao refletirmos sobre os indícios trazidos pelos dados acima mencionados, a pergunta
sobre a importância que a posse de armas constituía na trajetória desses camaristas é
bastante óbvia. Sendo assim, para que seja possível encontrarmos algumas respostas, o
diálogo com trabalhos que tratam do governo das municipalidades torna-se muito
significativo.
A historiografia que se dedica ao estudo do período colonial brasileiro vem se
debruçando sobre o poder desempenhado pelas câmaras neste período e como a
possibilidade de ocupação destes postos foi importante para a conformação das elites
locais. Essa instituição desempenhava funções políticas, administrativas, judiciais e
assistenciais, apresentando-se ainda como um importante veículo de negociação entre a
localidade e a Coroa (VENÂNCIO, 1998).
As Câmaras se constituíram em um dos pilares fundamentais da sociedade
portuguesa e o acesso aos seus cargos era monopolizado pela nobreza da terra. O Estado
agia para que os cargos nas milícias e nas ordenanças, assim como os ofícios no governo da
municipalidade, fossem ocupados somente por esses homens. Eram muitasas restrições
sobre a elegibilidade, desta maneira, previa-se que os selecionados estivessem entre aqueles
que já haviam desempenhado cargos no governo da República, o que também permitia o
acesso aos seus filhos e netos (BICALHO, 2001).
Observando esse contexto, nos vem a
seguinte questão: a ocupação de ofícios na câmara, tanto nas conquistas quanto no centro
do império, possuía o mesmo efeito no processo de nobilitação?
Nuno Monteiro aponta para um alargamento do conceito de nobreza, que passa a se
relacionar mais com a qualidade do que com a função de cada um. Esse fato teria sido uma
consequência do crescimento dos estratos sociais urbanos. Para evitar que o conceito se
tornasse banal, a doutrina jurídica criou um novo estatuto diferenciando aqueles que
ocupavam as novas funções sociais. E é dessa forma que surge o Estado do Meio, onde os
indivíduos não possuíam a distinção da antiga nobreza, mas se destacavam em relação ao
povo mecânico. Tal ascensão se dava pela prática de ações valorosas em benefício do
Império e pelo exercício de cargos da República, ou seja, do governo da comunidade.
(MONTEIRO, 1993)
Partindo das proposições desse autor, Bicalho comenta que em Portugal o acesso aos
mais altos graus de nobreza era dado pela participação nos cargos das instituições centrais
da monarquia. Geralmente, quem conseguia atingir este patamar fazia parte da nobreza de
sangue. Os ofícios na Câmara não tinham efeito comparável aos hábitos de cavaleiro das
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
410
ordens militares, no sentido de auferir projeção social, pois a composição da nobreza
institucional não se fazia entre os indivíduos considerados nobres no plano do direito. Nas
pequenas localidades até mesmo os mecânicos podiam ocupar as vereações. As relações de
força definidas a partir do contexto de cada região é que determinavam o acesso aos cargos
das Câmaras. Dessa maneira, o reconhecimento dos camaristas enquanto nobres teria um
caráter local. A historiadora brasileira relativiza esta ideia demonstrando a especificidade
das conquistas, argumentando que neste caso, os postos das vereanças seriam um meio
fundamental para o processo de nobilitação, de obtenção de privilégios e honras, na
medida em que os homens da terra não conseguiam atingir as principais distinções da
monarquia (BICALHO, 2001).
No que diz respeito ao caráter local da nobilitação na Colônia, Almeida afirma que,
para alguns membros da elite mineira do século XVIII, foi possível o reconhecimento
dessa condição no âmbito do Império. Mas, para isso, era necessário que os súditos se
constituíssem enquanto nobreza da terra, estabelecessem laços fortes com o centro do
Império - através do sistema de casamentos e do envio de filhos ou aparentados para o
reino - e mantivessem relações de proximidades com os principais representantes do poder
metropolitano, como governadores e vice-reis (ALMEIDA, 2007).
Mesmo a câmara não auferindo diretamente um reconhecimento da condição de
nobreza que ultrapassasse o âmbito local, ela se constitui em um dos pontos fundamentais
do caminho a ser traçado em busca de um reconhecimento a nível Imperial, mesmo porque
apenas os “principais” de cada terra ascendiam a estes postos. Sendo assim, a ocupação de
um cargo nessa instituição era, sem dúvida, um forte elemento de negociação entre os
interesses locais e a monarquia.
O fato dos inventariados ocuparem cargos na câmara da Vila de Ribeirão do Carmo,
além de indicar que os mesmos atuaram no processo de conquista do território383,
demonstra que eles seguiram as estratégias comumente traçadas por aqueles que
procuravam se distinguir em uma sociedade regida pela lógica de Antigo Regime. Era a
atuação na conquista que legitimava o estatuto desse grupo, e neste sentido a posse de
armas era fundamental, pois, como já foi dito anteriormente, os perigos do sertão eram
imensos e o uso da força se fazia fundamental para a definição do poder naquela sociedade
383
Sobre esse aspecto destacamos o estudo de Antonio Carlos Jucá de Sampaio, ao analisar a formação da
comunidade mercantil carioca, no período colonial. O autor argumenta que a antiga nobreza defendia que por
atuarem na conquista do território, tinham direito de exercer o poder político. (SAMPAIO, 2006).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
411
em constituição. Ademais, em momentos de distúrbios que poderiam colocar em risco a
ordem estabelecida, o braço armado dos vassalos era de fundamental importância para a
manutenção dos interesses imperiais e a prestação desses serviços se apresentava como um
elemento indispensável no processo de negociação com a Coroa pela busca de privilégios.
Destaca-se, pois, a atuação na conquista e a manutenção da governabilidade régia como
pilares que assentavam o poderio deste grupo.
Posse de escravos: De acordo com o já mencionado estudo de Luna (1982), nas
Minas setecentistas prevaleciam as unidades produtivas onde a mão-de-obra era constituída
por 5 ou menos cativos, fazendo-se minoria aqueles proprietários de grande escravaria.
Dessa maneira, selecionamos entre os inventariados, aqueles que possuíam 40 escravos ou
mais e consideramos esse fator como indicativo de riqueza. Entre os 145 inventariados,
encontramos um total de 19 senhores (13,1%) com plantéis que apresentavam tais
características e esses, por sua vez, possuíam uma parte significativa do montante das armas
discriminadas nos processos, mais precisamente 174. Dessa maneira, temos uma média de
9,15 armas para cada grande proprietário de escravos, número que está bem acima da
média geral (3,4) e dos valores referentes aos patenteados (7,3) e camaristas (6,2).
Mais uma vez a espingarda constitui elemento de destaque diante dos arsenais
verificados, visto que, foram contabilizados 65 exemplares, o que nos leva a apresentar o
valor aproximado de 3,5 para cada senhor. A seguir temos 34 espadas, com uma média de
1,8 por indivíduo, acompanhadas por 29 pistolas que garantiam a proporção de 1,5 armas
para cada senhor.
Essas proporções, que dizem respeito às armas que apresentavam uma maior
recorrência entre os bens descritos nos inventários de uma forma geral, demonstram que as
médias desse último grupo estavam bem acima daquelas encontradas para os perfis
anteriores.
Diante desses indícios colocam-se várias questões: os grandes proprietários possuíam
muitas armas para evitar a insubordinação dos escravos? A quantidade de armas era maior
quando o número de escravos se elevava porque os senhores tinham o costume de armar
seus cativos, ou seja, o poderio bélico desses indivíduos dependia da conjugação desses
dois fatores? O fato dos senhores armarem seus escravos pode representar um grau
significativo de negociação entre os mesmos? O poderio bélico dos principais da terra
aumentava seu poder de barganha com a Coroa? Tais questionamentos nos remetem a
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
412
estudos que tratam da questão da escravidão no Brasil, onde aparecem visões que nem
sempre estão em acordo.
Alguns historiadores da década de 1960 e 1970 apontaram a violência como um dos
instrumentos principais para a dominação do escravo pelo senhor. Essas perspectivas
procuravam construir interpretações generalizantes sobre as relações de poder que se
estabeleciam em uma sociedade escravista, não conseguindo atingir as especificidades e a
própria experiência dos cativos. Esses eram vistos como coisa, ou seja, indivíduos, cujo
destino seria completamente definido pelos interesses senhoriais, caso os mesmos ão se
opusessem ao cativeiro, fugindo, formando quilombos ou se rebelando contra seus
proprietários (CARDOSO, 1962; GORENDER, 1990).
Na década de 1980 surgiram novos olhares sobre a questão da escravidão no Brasil.
Essas pesquisas valorizavam as experiências dos cativos e suas ações passaram a ser
consideradas como elementos fundamentais para a compreensão da escravidão e de suas
transformações. Segundo Silvia Lara “muitos estudos voltaram-se então para a análise das
práticas cotidianas, costumes, enfretamentos, resistências, acomodações e solidariedades,
modos de ver, viver, pensar e agir dos escravos.”(2005, p.25) Neste sentido, além dos
grandes quilombos e das insurreições, as pesquisas também passaram a analisar as lutas
cotidianas, o que permitiu uma rearticulação das dimensões da resistência escrava.
Esses estudos apontam para uma diversidade de relações que envolviam a
experiência do cativeiro e a conquista da liberdade. Neste caso, a ação dos escravos variava
entre a negociação e o conflito. E no que diz respeito aos aspectos metodológicos nota-se a
utilização de novas fontes e procedimentos analíticos que atingem variantes nas ações de
resistência, assim como espaços de autonomia para a formulação de uma cultura escrava.
Ademais, a perseguição das estratégias estabelecidas por cativos e libertos permite a
compreensão dos significados e das transformações contextuais que marcaram tais
estratégias. (Ibidem)
A mesma autora questiona a não abordagem da escravidão pelos historiadores que se
dedicam ao estudo do período colonial embasados em novas perspectivas. Como essas
pesquisas estão voltadas para a elite, não teríamos a construção de conhecimento que se
dedique à história social (Ibidem). Diante dessa limitação é conveniente recorrer a trabalhos
que tratam desses aspectos, mesmo que de forma tangencial e contribuem para o
desenvolvimento de nossa pesquisa.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
413
Um texto de João Fragoso que se refere especialmente à nobreza, mas que ainda
assim traz novos olhares para a questão da escravidão no período colonial é A nobreza vive
em Bandos. (2003) Neste trabalho, o autor se dedica à análise de importantes elementos que
permitem compreender não só as relações entre senhores e escravos, mas também as
experiências e os interesses vividos pelos últimos. Seu objetivo é estudar a formação da
elite carioca no século XVII e para isso investiga as redes de reciprocidade estabelecidas
pelo grupo – não só entre si – mas também com outros segmentos da população, como
índios e escravos. Ao se debruçar sobre os laços estabelecidos entre senhores e escravos,
Fragoso argumenta que para a interpretação da escravidão é preciso considerar o conflito e
a tensão, visto que as fugas, formação de quilombos e revoltas foram recorrentes.
Entretanto, não é possível fechar os olhos para os espaços de negociação que se faziam
presentes. (FRAGOSO, 2003)
Observando a atuação de alguns bandos da nobreza, o autor verificou que os
escravos se sentiam enquanto parte dos mesmos. Isso se explica porque em vários
momentos houve uma convergência de interesses entre senhores e cativos. Na cidade do
RJ era comum que os escravos constituíssem famílias e tivessem espaço para o cultivo de
roças usadas para seu sustento. O historiador também verificou que nos momentos de
confronto entre os bandos, os senhores armavam seus escravos para a luta. Neste caso, o
que temos não é apenas a vontade do proprietário em defender seus bens e o seu lugar de
poder na sociedade, mas o interesse dos cativos em garantir a manutenção de seus roçados.
Estes fatos representam um grau significativo de negociação na senzala. (Ibidem)
Fica claro através da presente pesquisa, que o reconhecimento do escravo enquanto
tal, não se fazia exclusivamente pela violência, mas tinha na política a sua principal
característica, pois o escravo deveria se reconhecer em uma condição de qualidades inferior
à de seus senhores. (Ibidem)
No processo de negociação, ambas as partes estavam sempre ganhando e ao mesmo
tempo abrindo mão de algo. Por exemplo, ao conceder o direito de cultivar roças aos seus
escravos, o senhor perdia espaço de produção e tempo de mão-de-obra trabalhando em seu
benefício direto. Entretanto, o escravo agraciado se acomodaria ao cativeiro e se
constituiria em um braço armado para lutar ao seu lado.
Acreditamos que em Minas Gerais essas condições também podem ser percebidas.
Os laços definidos pela nobreza da terra com seus escravos foram fundamentais para que
os primeiros pudessem prestar serviços à Coroa, recebendo em troca disso, privilégios,
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
414
honras e mercês, elementos que lhes confiariam um caráter de distinção na sociedade, pois
a ação dos senhores dependia da possibilidade que os mesmos tinham de confiar armas aos
seus cativos.
Análises que se focam na trajetória de alguns indivíduos são especialmente relevantes
para um maior entendimento sobre essa questão. Ao estudar a elite mineira setecentista,
Carla Almeida afirma que o Coronel Caetano Álvares Rodrigues usou sua bem-sucedida
trajetória militar para acumular um número considerável de serviços prestados, que depois
foram usados na negociação com a Coroa pela concessão de mercês. Como já foi citado,
entre suas várias atuações é interessante mencionar, para o objetivo deste texto, a que
ocorreu durante a Revolta de Vila Rica em 1720: atendendo ao pedido do Conde de
Assumar, atuou na contenção do conflito e na punição dos culpados e para isso contou
com a ajuda de 20 negros amados (ALMEIDA, 2006).
Acreditamos assim, que em Minas Gerais o poderio bélico senhorial não era utilizado
apenas para subjugar os escravos ao cativeiro, pois, verifica-se que os laços de
reciprocidade definidos pela nobreza da terra com seus escravos foram fundamentais para
que os primeiros pudessem prestar serviços à Coroa, recebendo em troca disso, privilégios,
honras e mercês, elementos que lhes confiariam um caráter dedistinção na sociedade, na
medida em que a ação dos senhores dependia da possibilidade que os mesmos tinham de
confiar armas aos seus cativos.
A análise dos dados presentes nos inventários permite-nos constatar que havia uma
estrita relação entre patentes militares, número de armas e de escravos, posse de cabedal
considerável, local de moradia e, em alguns casos, a ocupação de cargos camarários.
Através dessa comparação foi possível traçar um tipo de indivíduo que reunia as condições
de prestar serviços para a Coroa, o que lhe garantiria o espaço de barganha necessário para
a aquisição de privilégios, cargos e honras, elementos essenciais no processo de distinção
social. Essa é uma generalização que obviamente marginaliza algumas especificidades.
Entretanto, sua validade consiste em nos informar sobre o universo de possibilidades que
envolvia os sujeitos, no período e na região sobre a qual se dedica essa pesquisa.
A partir desse quadro tivemos a possibilidade de selecionar a trajetória do Capitão
Mor Pedro Frazão de Brito, que pode nos oferecer uma análise mais aprofundada das
questões propostas. Entendemos que, somente uma investigação mais pontual é capaz nos
informar sobre parte das especificidades da vida colonial, como o processo de
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
415
hierarquização da sociedade e o grau de independência frente aos pressupostos coloniais,
visto que as relações entre metrópole e colônia eram marcadas pela constante negociação.
O perfil apresentado pelo Capitão - Mor Pedro Frazão de Brito também nos fornece
significativos indícios sobre a importância das armas como elemento de distinção social e
como instrumento indispensável que compunha as bases necessárias para a prestação de
serviços à Coroa e consequentemente para o acúmulo de privilégios e honrarias. Natural de
São Paulo, filho legítimo de Manuel de Brito Nogueira e Ana Proença, estava casado no
ano de 1702 com Izabel Buena da Silva, na Vila de Parnaíba. Ainda no final do século XVII
atuou no processo de exploração das mias de Curitiba edepois partiu para a grande
empreitada do descobrimento das Minas, destacando-se como um dos principais
povoadores da região do Ribeirão do Carmo (FRANCO, 1989).
Além disso, tudo indica que a participação desse sertanista não ficou restrita apenas
ao desbravamento do sertão e seu respectivo povoamento, pois, alguns relatos destacam
que durante a Guerra dos Emboabas este potentado local teria oferecido forte resistência
contra o ataque de Manoel Nunes Viana à região de Guarapiranga, derrotando-o,
finalmente, no arraial do Carmo e contribuindo assim para o desmantelamento das
investidas dos forasteiros naquela região (Ibidem).
Apesar de não termos encontrado outras evidências relacionadas a esse episódio e de
levarmos em conta as lacunas deixadas pelo uso dos relatos como fonte de investigação,
acreditamos que essa descrição demonstra, pelo menos, a imagem construída em torno de
Pedro Frazão de Brito, apontado como um indivíduo que tinha forças para contribuir com
a manutenção da ordem. Esse fato poderia ser um indicativo de poderio bélico, já que esse
tipo de atuação certamente demandava o uso da força.
Morador na freguesia de Antonio Pereira, o potentado faleceu em março de 1722
deixando sete herdeiros legítimos e três bastados, filhos de uma mulher livre. Seu plantel
era constituído por 68 escravos, sendo 12 deles representados por gentio da terra. Durante
a descrição dos bens percebemos a constituição de laços familiares entre alguns cativos,
fato que também pode ser comprovado através do testamento deixado pelo inventariado. É
o caso, por exemplo, da família de Ignácio, mulato e Vissência, crioula -avaliados em 256
oitavas de ouro e 180 oitavas respectivamente - de cuja união nasceram quatro filhos. Além
desse, temos mais dois casos de famílias constituídas por marido, mulher e filhos. Outros
arranjos também compõem os laços de parentesco, pois temos três famílias formadas por
marido e mulher e duas representadas por mãe e filhos.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
416
Os créditos arrolados constituíam grande parte de sua fortuna e também podem nos
trazer informações sobre as relações estabelecidas entre o potentado e aqueles que estavam
relacionados de alguma maneira ao universo da escravidão. Sendo assim, temos uma dívida
de Ignácio, preto “que se obrigou a pagar por seu pai Francisco de Oliveira preto, oitenta
oitavas de ouro.” Outro crédito correspondia a 40 oitavas de ouro, valor que deveria ser
quitado por Paulo Fernandes, preto.96 Sabemos que esse é um número pequeno se
compararmos com os 24 indivíduos relacionados como devedores.
Entretanto, mesmo não sendo possível saber exatamente os motivos que levaram ao
endividamento, parece-nos plausível deduzir que esse seria mais um indício que demonstra
a complexa relação que se estabelecia entre senhores e escravos ou ex-escravos. Neste caso,
se a concessão de crédito foi garantida a indivíduos que pertenciam a um grupo social de
“condição inferior”, isso significa que provavelmente haveria uma contrapartida
direcionada ao benefício daquele que está oferecendo, que não estaria restrita apenas aos
lucros adquiridos através do empréstimo de dinheiro a juros.
Com relação aos armamentos temos um total de 15 instrumentos dessa natureza.
Podemos observar que o número de armas que estava sobre a posse desse indivíduo
superava em demasia a média geral que era de 3,4, Além disso, parte considerável de suas
armas eram ornamentadas com prata, o que já indicava um sinal de status. Ademais, o valor
correspondente a cada uma delas está bem acima da média geral encontrada nos
inventários analisados.Dessa maneira, além de refletir a riqueza acumulada pelo sertanista, a
posse dessas armas, juntamente com a presença de um grande número de escravos, cujas
relações com seu senhor provavelmente não se baseavam apenas na violência, garantiam a
possibilidade que este indivíduo tinha de prestar serviços à Coroa, assim como de defender
seus interesses que estavam direcionados não só à região das Minas Gerais, mas também a
outras localidades.
As atividades econômicas às quais se dedicava também refletem a amplitude de suas
ações. Como um dos principais fornecedores de gado para a região das Minas, suas
comitivas deveriam se precaver dos perigos oferecidos pelas estradas e caminhos, como,
por exemplo, ataques de índios, quilombolas, salteadores. Os vários negócios nos quais
estava envolvido muitas vezes o colocavam em situações de tensão e conflito, como
podemos perceber em passagens de seu testamento nas quais ele menciona antigas
pendências, que diziam respeito a cobranças de dívidas. Um homem com negócios desse
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
417
porte e que provavelmente construiu desafetos ao longo de sua vida, teria que contar com a
proteção de uma força bélica considerável.
Pelo que foi colocado até aqui, pudemos observar alguns fatores que demonstram as
condições que tornavam Pedro Frazão de Brito um homem capaz de prestar serviços à
Coroa, especialmente no que se refere ao apoio oferecido através de homens armados.
Sendo assim, fica fácil compreender como esse indivíduo teria alcançado posições tão
destacadas na sociedade marianense. Foi oficial da câmara da Vila de Ribeirão do Carmo
por três vezes entre 1711-1712, ocupando o cargo de juiz ordinário, desfrutava da patente
de Capitão Mor da Companhia de Ordenança e desempenhou a função de regente das
minas, através de patente concedida por D. Bras Baltazar da Silveira.
Observamos então, a estreita relação estabelecida entre a posse de armas e as
variáveis que indicavam a posição dos indivíduos enquanto nobreza da terra, ou seja,
patentes militares, ocupação de cargos camarários e/ou em outras instâncias governativas,
número de escravos e posse de cabedais. Percebemos que vários homens que compunham
a elite local apresentavam um arsenal considerável para os padrões da região. Através da
análise da trajetórias do Capitão Mor Pedro Frazão de Brito, foi possível verificar que uma
de suas principais estratégias para adquirir honras e privilégios perante a Coroa era a
prestação de serviços, como a atuação do processo de conquista dos sertões inóspitos.
Bibliografia:
ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Uma nobreza da terra com projeto Imperial: Maximilianno
de Oliveira Leite e seus aparentados. In: FRAGOSO, João; SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de;
ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. (Org.). Conquistadores e negociantes: histórias de elites no Antigo
Regime nos Trópicos. América Lusa, séculos XVI a XVIII. 1a ed. V.1. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007.
______.Do Reino às Minas: O “Cosmopolitismo” da elite mineira setecentista. In: FRAGOSO,
João; FLORENTINO, Manolo; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de; CAMPOS, Adriana Pereira
(Orgs). Nas Rotas do Império: eixos mercantis, tráfico e relações sociais no mundo português. Ilha de
Vitória: EDUFES. 2006.
CARDOSO, Fernando Henrrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. SP: Diefel,1962.
BICALHO, Maria Fernanda Baptista. As câmaras ultramarinas e o governo do Império. In:
FRAGOSO, João. BICALHO, Maria Fernanda Baptista. GOUVEA, Maria de Fátima. O Antigo
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
418
Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI – XVIII) (orgs). RJ: Civiliza\cão
Brasileira, 2001.
_____.A nobreza vive em bandos: a economia política das melhores famílias da terra do Rio de
Janeiro, séc XVII. Algumas notas de pesquisa. In: Tempo – Revista do Departamento de História da
UFF. Niterói, v.8, n.15, p.11-35.
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanista do Brasil. Belo
Horizonte: Iatatiaia, São Paulo: Editora da USP, 1989.
GORENDER, J. A escravidão reabilitada. SP: Ática, 1990
HESPANHA, Antonio Manuel. A constituição do Império Português. Revisão de alguns
enviesamentos teóricos. In: FRAGOSO, João. BICALHO, Maria Fernanda Baptista.
GOUVEA, Maria de Fátima. O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa
(séculos XVI – XVIII) (orgs). RJ: Civiliza\cão Brasileira, 2001.
LARA, Silvia Hunold. Conectando historiografias: a escravidão africana e o Antigo Regime na
América portuguesa. In: BICALHO, Maria Fernanda e FERLINI, Vera Lúcia Amaral (orgs).Modos
de Governar: idéias e práticas políticas no Império português – séculos VXI-XIX. SP: Alameda, 2005
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia.
In:MATTOSO, José (dir). História de Portugal. O antigo Regime (1620-1807), vol.4.Lisboa: Editorial
Estampa, 1993.
SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá.A família Almeida Jordão na formação da comunidade mercantil
carioca (1690-1750). In: Almeida, Carla M.C de e OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de (orgs). Nomes e
números: alternativas metodológicas para a história econômica e social. Juiz de Fora: Editora UFJF,
2006.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
419
Estrutura de Posse de Escravos e Família Escrava nos Plantéis de Guarapiranga:
composição dos plantéis e transferências inter-parentela (1807-1885)
Lucilene Macedo da Costa
graduada em História pela UFV
lucilene.costa@ufv.br
Tiago Pereira Leal
graduado em História pela UFV
tiago.leal@ufv.br
Resumo: A partir dos métodos nominativos da demografia histórica e história da família,
nosso trabalho analisa os padrões de organização da família escrava na região de
Guarapiranga, através do cruzamento de dados dos Inventários Post Mortem, Testamentos e
Listas Nominativas. Acompanhamos a trajetória dos plantéis de um núcleo familiar, através
dos processos de sucessão e partilha dos bens. Procuramos analisar as mudanças na
composição dos plantéis, assim como os laços de parentesco no interior de suas
escravarias. Assim, através da reconstrução de redes sociais dos senhores escravistas da
região, desejamos indicar as mudanças na composição de sexo, idade e origem dos cativos
dos plantéis e identificar o destino que as escravarias tomam após a morte dos senhores, as
características dos laços e das relações de parentesco entre os escravos.
Palavras- chaves: Família Escrava, Escravidão, Guarapiranga.
Abstract: Based on the nominative methods of the historical demography and family’s
history, our work analyzes the patterns of slave family organization in the Guarapiranga
region, through the data cross-checking of the Post Mortem Stocktaking, Wills and
Nominative Lists. We accompanied the trajectory of squads from a family nucleus through
the succession processes and sharing of assets. We tried to analyze the changes on the
squad composition, as well as the kinship bows between the slaves. Thus, through the
social networks reconstruction of the slavery masters of the area, we want to indicate the
changes in the sex composition, age and the origin of the captives that compose the squad,
and identify the destiny that the slaves take after the death of the master, the characteristics
of the ties and the family relationship between the slaves.
Keywords: Slave Family, Slavery, Guarapiranga.
1. Introdução:
No Brasil, é bastante recente a utilização de fontes cartoriais (registros de batismo,
casamento e óbito, Inventários Post-mortem, etc.) na pesquisa histórica. Os estudos
fundamentados por essas fontes se intensificaram a partir das décadas de 1980 e 1990.
Particularmente, os Inventários Post-mortem ajudaram no desenvolvimento do
estudo da família e de todas as suas ramificações (composição, reprodução, herança,
processo de acumulação de fortuna, entre outros). Com base nessas fontes, a historiografia
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
420
das décadas de 1980 e 1990 pôde contrapor as teses generalizantes sobre a família
brasileira, como a de Gilberto Freyre e de Oliveira Vianna e, por outro lado, reinterpretar e
reescrever a história de Minas Gerais, fundamentalmente no que se refere à ideia de
decadência da economia e sociedade mineiras subsequente ao ciclo minerador, que
dominou o pensamento histórico até então (FURTADO, 1989; PRADO Jr., 1989).
Os Inventários Post- mortem e as Listas Nominativas384 foram utilizados por nós para
o estudo sobre a escravidão, mais especificamente, sobre a família escrava. A partir dos
métodos nominativos da demografia histórica nosso trabalho analisa os padrões de
organização da família escrava na região de Guarapiranga.
Acompanhamos a trajetória dos plantéis de um núcleo familiar, através dos
processos de sucessão e partilha dos bens. A partir daí, procuramos analisar as mudanças
na composição dos plantéis, assim como os laços de parentesco no interior de suas
escravarias. Através da reconstrução de redes sociais dos senhores escravistas da região,
conseguimos estabelecer padrões de posse de cativos e identificar o destino que as
escravarias tomam após a morte dos senhores, as características dos laços sociais e das
relações de parentesco entre os escravos.
A presente análise utiliza 12 inventários de uma mesma parentela que abrange três
gerações, para identificar a estrutura e os fluxos dos plantéis escravos e a Lista Nominativa
de 1831-32. A partir de variáveis demográficas, como origem, idade e sexo, identificaremos a
presença de escravos africanos e nativos, assim como a reprodução natural. Dessa forma,
poderemos perceber algumas estratégias adotadas por esse núcleo familiar senhorial para gerir
seus investimentos e escravaria.
2. A Família Escrava e a Historiografia:
O desenvolvimento da demografia histórica, ampliação das fontes e uma nova maneira
de explorá-las, viabilizou a constatação de formas familiares distintas, inclusive a cativa,
proporcionando assim um avanço nos estudos da família escrava no Brasil.
Esses estudos ganharam maior consistência a partir da década de 1980, quando
começam a surgir várias análises dando outro olhar para a escravidão e as relações dos cativos,
384 A utilização dessas fontes foi possível devido ao trabalho desenvolvido pelo Professor Doutor Fábio Faria
Mendes na Universidade Federal de Viçosa, que coordena um grupo de estudantes que desenvolve atividades
financiadas pelos órgãos fomentadores de pesquisa (CNPq e FAPEMIG) e de extensão (PROEXT), visando
dar continuidade aos projetos articulados de identificação, digitalização e conservação preventiva de acervos
documentais das Minas dos setecentos e oitocentos.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
421
entre eles os trabalhos de Iraci del Nero da Costa (1981), Francisco Vidal Luna (1981), Horácio
Gutiérrez (1984), Stuart Schwartz (1987), Robert Slenes (1987,1988 e 1999), Manolo Florentino e
José Roberto Góes (1997) e outros.
Antes da década de 1980 os autores da denominada “escola sociológica paulista”385
inviabilizavam a análise das relações entre os cativos, pois enfatizavam a coisificação do escravo e
negavam a possibilidade de existência de laços familiares sólidos entre os cativos.
Conforme Tarcísio Botelho, a historiografia progressivamente, começou a superar a
ênfase na questão do casamento de escravos. “A família escrava, principalmente nos trabalhos de
demografia histórica, passou a ter uma definição mais ampla, pensada em termos de convívio
familiar e de comunidade escrava” (BOTELHO, 2007: 456). Assim, já não se referia apenas
àquelas legitimamente constituídas através do matrimônio, mas também a mães e pais solteiros
convivendo com filhos, viúvos(as) com seus filhos e outros arranjos. Além disso, a família escrava
passa a ser compreendida como um elemento estrutural da escravidão no Brasil, e não como uma
exceção.
Manolo Florentino e José Roberto Góes (1997) procuram abordar a família escrava
detento-se, sobretudo, em suas relações entre o tráfico atlântico. Classificando as uniões
matrimoniais ou mesmo consensuais como um elemento pacificador das senzalas. Pois, ao fim do
tráfico essas uniões iriam possibilitar ao senhor um aumento de seu plantel através da reprodução
natural e uma maior estabilidade na vida dos cativos, mesmo após a divisão da herança, caso o
casamento destes fosse legítimo.
No entanto, os autores não consideram que a procriação representasse o fim da
dependência da escravidão para com o tráfico atlântico e nem ocorria ao descompasso de regras
que expressavam a vontade da comunidade. Pelo contrário, muitas vezes as relações dentro dos
plantéis, eram organizadas conforme o movimento dos desembarques.
Florentino e Góes consideram que uma das práticas de instauração da paz nas senzalas é
o nascimento, há uma percepção de que os escravos se casavam ou amancebavam-se para gerar
filhos. A idade de procriação das cativas era bem baixa, e estas deveriam encerrar essa fase de suas
vidas quando se tornassem avós, obedecendo a costumes africanos. Mas, a concepção de família
dos escravos ultrapassava os limites consanguíneos primários e até mesmo o âmbito do próprio
plantel e as condições jurídicas dos cativos, como os laços de compadrio, pois através do batismo
os escravos tinham a oportunidade de estabelecerem laços de proteção e ajuda mútua.
Segundo Graça Filho, “atualmente, a relevância da família escrava na historiografia
brasileira se relaciona às estratégias de forjar redes de solidariedade e resistência no cativeiro”
385 Dentro desse grupo de pesquisadores podemos citar os nomes de Florestan Fernandes, Fernando
Henrique Cardoso e Octávio Ianni.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
422
(2007:185). Assim, a família escrava impunha limites à ação dos senhores que se deparavam com a
oposição dos laços conjugais e de solidariedade comunitária.
Hebe Maria Mattos (1998), por exemplo, mostra que havia dificuldades de constituição
destas redes de solidariedade por conta do consentimento de pequenos privilégios por parte dos
senhores aos casais de escravos.
Para Robert Slenes (1999) o fortalecimento dos laços comunitários poderia trazer
insegurança ao sistema escravista. Teixeira complementa afirmando que para Slenes,
a família contribuiu decisivamente para a criação de uma “comunidade”
escrava, unida em torno de experiências, valores e memórias compartilhados.
Nesse sentido, a família escrava minava constantemente a hegemonia dos
senhores, criando condições para a subversão e a rebelião. (2006; 96).
Sheila de Castro Faria acredita que os laços familiares entre os cativos ajudavam aos
senhores na manutenção do sistema escravista. “A organização familiar escrava foi uma das formas
exploradas pelos senhores para manter e ampliar suas bases escravistas, não importando os padrões
destas uniões, se ocidentais, africanas ou criados pela vivência no cativeiro.” Mas ao mesmo tempo,
a autora concorda que a formação de laços entre os escravos também os favorecia, pois “para
cativos, o acesso à família era uma das formas de melhorar suas condições de sobrevivência dentro
do cativeiro forçado” (1998; 300 e 303).
A abordagem sobre a família escrava pode nos trazer aspectos que estão muito além da
simples identificação dos laços de parentesco. Ela nos faz pensar sobre os motivos das uniões, as
estratégias utilizadas pelos cativos para construírem seus laços de parentesco, as relações que
ultrapassavam o núcleo familiar primário, até que ponto essa prática guardava costumes africanos e
até que ponto os senhores interferiam nas relações de seus cativos.
3. A Região de Guarapiranga
Algumas regiões brasileiras viveram conjuntamente a escravidão urbana e rural
circunscritas em pequenos arraiais, aplicações, freguesias, vilas e cidades que
proporcionavam aos cativos, estratégias diversas de se integrarem ao mundo dos libertos.
O meio social mineiro, dotado de conflitos e negociações foi acompanhado pelo
dinamismo econômico que sustentava a economia mineira com “estagnação” de ouro e
proporcionava a essa província ser o principal destino das escravarias que desembarcavam
nos portos cariocas (FLORENTINO, 1997: 38).
Esse foi o contexto das Minas Gerais subscrita por uma escravidão urbana nas
principais vilas onde havia uma diversificação das atividades econômicas (mineração,
comércio, agricultura, pecuária, artesanato e prestação de serviços). Essa região também era
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
423
entrelaçada por uma escravidão rural subsidiada por uma economia agropastoril destinada
ao mercado interno.
A região de Guarapiranga, localizada na Zona da Mata mineira, estava às margens
da região mineradora, Mariana e Ouro Preto, e no contexto do século XVIII e XIX essa
região integrava o Termo da cidade de Mariana. Sendo freguesia até metade do século XIX
e tornando-se Vila a partir da segunda metade, essa região foi composta por vários
distritos, alguns com pequenos núcleos urbanos, mas na sua totalidade com perfil rural e
toda a região apresentava grande apego a escravidão386.
Guarapiranga se enquadra no perfil que a historiografia mineira chama de
“período de acomodação”. Tal período corresponde à transição de uma economia centrada
na mineração para uma economia articulada pela agricultura mercantil (LIBBY, 1988).
Por meio de pesquisas desenvolvidas acerca dessa região, vimos que, pelo menos
desde o final dos Setecentos, a freguesia apresentava, em relação às outras freguesias
mineiras, considerável contingente populacional, seja de população livre ou cativa. As
Listas Nominativas dos anos de 1831-32 e 1838-39 são fontes privilegiadas para a
observação destes dados demográficos. Por sua vez, a partir da análise de Inventários Postmortem da primeira metade do século XIX, encontramos uma sólida elite agrária, detentora
de grandes porções de terras e de grandes plantéis escravistas.
O primeiro gráfico apresentado abaixo representa os padrões de posse de cativos
dos senhores escravos da região de Guarapiranga. Como podemos observar, a maioria dos
senhores possuíam um plantel que tinha entre 1 a 20 cativos, sendo que aquelas escravarias
com um número acima desse podem ser consideradas médias e grandes.
O segundo gráfico apresenta a ração de africanidade dos plantéis da região de
Guarapiranga. Como podemos perceber há uma diminuição do número de africanos a
partir das décadas de 1840 e 1850 e concomitantemente um aumento do número de
crianças menores de 15 anos nos plantéis, o que pode estar relacionado ao aumento da
reprodução natural dentro das escravarias387.
386
Por meio da análise dos inventários encontramos descrições de algumas poucas terras minerais e uma
constante descrição de produção de bens de raiz, principalmente milho e cana-de-açúcar. Mais informações
ver o conjunto de inventários disponíveis no 1º e 2º ofício do arquivo da Casa Setecentista de Mariana
(ACSM) e Arquivo do Fórum de Piranga (AFP).
387 Agradecemos ao Professor Doutor Fábio Faria Mendes a disponibilidade desses gráficos.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
Título do Eixo
424
% escravos com <15
anos
% Escravos
Africanos
%Africanos
Escravos Adultos
4. Estrutura de Posse de Escravos e Família Escrava nos Plantéis de Guarapiranga
Começamos nossa análise com o inventário do Capitão Antonio Gomes Sande do
ano de 1807 (ACSM, 1º Ofício, 25, 645). Ele era natural de Portugal, foi casado com Dona
Francisca Clara Umbelina de Jesus com a qual teve cinco filhos, Francisca Cândida, Tereza
Altina, Feliciana Isabel, Antonia Lemes, Antonio Gomes Oliveira Sande.
Seu plantel era composto por 59 escravos, mas cinco deles foram citados como
falecidos no acréscimo de bens. Através da análise dessa escravaria podemos identificar 6
famílias cativas, das quais 4 eram compostas apenas pelos casais e podemos pressupor que,
apesar de não estar explícito, quase todos esses tinham filhos ou haviam mães sem
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
425
referência aos cônjuges que não foram citadas, pois é possível a identificação de nove
crianças cuja idade varia de 0 a 13 anos388.
A diferença de idade entre cônjuges era uma característica desse plantel, e, esse
fato era expressivo em dois casais, João Benguela com Apolonea Crioula e Salvador Congo
junto à Theodosia Crioula, os homens apresentam uma diferença de 20 e 27 anos de idade,
respectivamente.
A ausência de escravas africanas não deixou muito escolha aos homens africanos,
que estabeleceram laços de parentesco com companheiras nativas. Também conseguimos
identificar entre as famílias analisadas um casal de crioulos, formado por Jerônimo e
Emericiana.
Em 1820, temos o inventário de Francisca Cândida de Oliveira Sande (ACSM, 1º
Ofício, 97, 2032), uma das filhas de Antonio Gomes Sande e Francisca Clara Umbelina de
Jesus, a primeira esposa de Antonio Pedro Vidigal de Barros. Ao falecer Francisca Cândida
deixou cinco filhos legítimos, Maria, Theresa, Antonia, Francisco e Joaquim.
No arrolamento de seus bens só foram citados 6 escravos, sendo apenas uma
mulher. Apenas um escravo desse plantel era crioulo, os demais tinham origem africana. O
inventário de Francisca Cândida não contribui muito para a nossa análise na perspectiva da
família escrava, mas podemos deduzir que seus cativos foram adquiridos principalmente
por meio da compra de escravos provenientes do tráfico atlântico, devido a maior presença
de africanos.
Nesse plantel não identificamos a repetição de nenhum cativo de Antonio Gomes
Sande, mas dois dos cativos aqui arrolados, Manoel Crioulo e Joana Rebola, aparecem mais
tarde, na Lista Nominativa de 1831, no plantel de Antonio Pedro Vidigal de Barros. O
mesmo Manoel aparece novamente em 1833, no inventário da mãe de Francisca Cândida.
Na Lista Nominativa de 1831, o Cirurgião Mor Antonio Pedro Vidigal de Barros,
aparece encabeçando o primeiro fogo. Já estava em seu segundo matrimônio, com Tereza
Altina Sande Barros, irmã de Francisca Cândida de Oliveira Sande. Sua sogra, Francisca
Clara Umbelina de Jesus, aparece como uma de suas agregadas, juntamente com o seu filho
388
A idade de 13 anos me foi sugerida pelos estudos de Stuart Schwartz (1988), Kátia Mattoso (1982) e Sheila
de Castro Faria (1998). Conforme Faria, nos inventários post-mortem, do século XVIII, nenhum escravo com
esta idade foi indicado como filho de alguém da mesma unidade produtiva. Passavam a ter, portanto, sua
própria identidade e ser considerados como adultos. Apesar de encontrarmos escravos com idades superiores
a 13 anos com referência a seus pais para Guarapiranga, encontramos também casais nos quais as cônjuges
eram bem mais novas que seus companheiros. Também é possível percebermos que a partir do momento que
um cativo se casa, seus laços de parentesco anteriores não são citados.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
426
Padre Antonio Gomes Oliveira Sande. Além dos cinco filhos do seu primeiro matrimônio,
constava na fonte os filhos do segundo matrimônio, João, Maria e Anna.
Nessa data o plantel de Antonio Pedro era composto por 44 escravos, sendo
possível a identificação de 3 casais e outros 10 escravos que já estavam presentes no
inventário de seu sogro, somando-se ainda os dois escravos, que já citamos acima, que em
1820 apareciam como de sua primeira esposa. Além disso, é possível a identificação de um
novo casal, João Crioulo e Placida Benguela, que nos apresenta uma situação bem
interessante, pois na maioria dos casos de união entre africanos e crioulos, o africano é o
cônjuge masculino.
A fonte não faz referência à prole dos casais cativos, mas os dados nos leva a
pensar na possibilidade de alguns escravos serem frutos de uma reprodução natural.
A taxa de masculinidade é de 68,1%. Entre os homens a presença dos africanos é
marcante de 30 cativos 16 têm origem africana, o que corresponde a uma taxa de 53,3% de
africanos. Entre as mulheres, que somavam 10 cativas e representavam 22,7%, apenas duas
são africanas. No total a fonte indica a presença de apenas 4 crianças cativas.
Em 1833 temos o inventário de Francisca Clara Umbelina de Jesus (ACSM)389,
viúva do Capitão Antonio Gomes Sande, tendo como inventariante o seu genro Antonio
Pedro Vidigal de Barros. Além do seu inventariante, foram listados como herdeiro os filhos
de Francisca Candida de Oliveira Sande, o Padre Antonio Gomes de Oliveira Sande (filho)
e D. Thereza Altina de Oliveira Sande (filha).
Entre os seus 54 cativos conseguimos identificar a presença de apenas um núcleo
familiar cativo ainda formado no plantel de seu marido, Salvador Congo e Theodosia
Crioula juntamente com o filho, Inocencio Crioulo. Angelica Crioula e João Benguela que
já estavam presentes no plantel de Antonio Gomes Sande como parte de dois casais
aparecem sem seus respectivos cônjuges. A presença da família escrava é bem tímida, mas
não podemos deixar de considerar a presença de crianças sem indicação dos seus pais.
Ao todo temos 8 escravos que se repetem no plantel de seu marido, 11 que se
repetem nos plantéis de seu marido e seu genro, 4 que se repetem no plantel de seu genro,
1 que se repete no plantel de sua filha Francisca Cândida.
As partilhas ocorridas entre os três inventários analisados acabaram desfazendo
laços de parentesco estabelecidos desde o primeiro plantel, fato que pode ter sido
389 Os inventários ainda estão passando por um processo de identificação, então não temos a referência
completa de todos.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
427
ocasionado pela morte, venda ou mesmo alforria de um dos membros do núcleo familiar.
Além disso, é importante observarmos a taxa de africanidade dos plantéis, pois apesar dos
inventários não explicitarem mais laços de parentesco entre os cativos, podemos perceber
que todas as escravarias analisadas até o momento, exceto a de Francisca Cândida, temos a
presença de crianças e mulheres nativas.
A tabela abaixo representa as famílias escravas que se repetiram nos plantéis de
Antonio Gomes Sande, Antonio Pedro Vidigal de Barros e Francisca Clara Umbelina de
Jesus.
Fonte: Inventário de Antonio Gomes Sande, ACSM, 1º Ofício, Códice 25, Auto 645; Lista Nominativa de
Guarapiranga de 1831; Inventário de Francisca Clara Umbelina de Jesus, ACSM.
Podemos considerar que apesar de nem todos os núcleos familiares não se manterem
até o último plantel analisado, os laços dos dois casais que se repetiram foram duradouros.
Além disso, um núcleo familiar conseguiu se manter durante duas partilhas sem separações.
Prosseguindo em nossa análise temos novamente o plantel de Antonio Pedro
Vidigal de Barros (ACSM) em seu inventário de 1839. No arrolamento de bens
conseguimos identificar 42 escravos, mas três deles são declarados como falecidos. Se
compararmos com a Lista Nominativa de 1831-32 e os demais inventários já analisados,
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
428
apesar da repetição de alguns cativos, não se nota nenhum núcleo familiar antes
identificado.
A partir da análise do inventário de Antonio Pedro, conseguimos perceber a
repetição de 3 cativos que estavam no plantel de Antonio Gomes Sande, do próprio
Antonio Pedro em 1831 e do plantel de Francisca Clara; 2 cativos que estavam no plantel
de seu sogro e mais tarde no plantel de sua sogra; 1 cativo que aparece no inventário de sua
primeira esposa e depois no de sua sogra; 3 cativos que estavam no plantel de sua primeira
esposa e 5 cativos que estavam no plantel de sua sogra.
Nesse plantel conseguimos identificar apenas dois casais, ambos sem referência a
filhos. O primeiro casal é formado por Domingas Crioula e João Congo, essa cativa
aparece no inventário de Antonio Gomes Sande e Francisca Clara Umbelina de Jesus e o
seu cônjuge aparece no inventário da primeira esposa de Antonio Pedro, na Lista
Nominativa e no inventário de sua sogra. O segundo casal, Joana Rebola e Antonio Congo,
foram herdados de sua primeira esposa, mas só foram identificados como casados neste
plantel.
O fato de ser arrolada apenas uma criança crioula com a idade de 3 anos nos leva a
pensar que esses casais tinham uma relação recente dentro do plantel e ainda não haviam
aumentado a soma de escravos do seu senhor através da reprodução natural.
A novidade desse plantel é a grande presença de crianças africanas. Um detalhe
intrigante, mas que talvez não tenha grandes significados, é que todas as crianças de origem
afro foram listadas com a idade de 12 anos.
Depois de oito anos de falecimento de Antonio Pedro Vidigal de Barros temos o
inventário de seu filho, o Padre Francisco Vidigal de Barros (AFP) no ano de 1847, fruto
de seu primeiro matrimônio com Francisca Cândida de Oliveira Sande.
Seus herdeiros foram o Sargento Mor Joaquim Pedro Vidigal; Dona Maria, casada
com José de Araújo Ribeiro; Dona Teresa, casada com Antonio Alves Guimarães e Dona
Maria do Carmo, todos irmãos, filhos do primeiro matrimônio de Antonio Pedro.
O inventariado possuía apenas 4 escravos, sendo todos homens e não havendo
referência ao nome de um deles. Dois escravos, Bernardo Congo e Antonio Rebolo,
estavam presentes no inventário de sua avó, Francisca Clara Umbelina de Jesus.
Em 1854, temos o inventário de Antonia Cândida de Jesus Vidigal (AFP), irmã do
Padre Francisco Vidigal de Barros, também filha do primeiro matrimônio de Antonio
Pedro Vidigal de Barros.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
429
Antonia Cândida possuía 26 escravos, entre os quais foram identificados 3 casais,
mas nenhum faz referência à sua (possível) prole. A presença de apenas uma criança
africana talvez seja um indicativo de que a fonte esconde casos de reprodução natural.
As taxas calculadas para esse inventário talvez pudessem apresentar alguma variação
se a fonte trouxesse dados completos para todos os cativos, pois temos vários escravos sem
referência à idade e também alguns sem referência à origem étnica. 390
Jose de Araujo Ribeiro Vasconcelos (AFP) que foi casado com dona Maria Micaela
Cândida Vidigal (filha de Antonio Pedro e Francisca Cândida), foi um dos inventariados do
ano de 1861. Sua inventariante foi sua esposa, que juntamente aos seus filhos compunha o
seu rol de herdeiros.
Esse inventário apresenta uma novidade que acaba facilitando nossas análises, pois
em um primeiro momento são arrolados 24 escravos não contendo mais do que
informações como nome, sexo, idade e preço. Posteriormente, a fonte nos apresenta uma
reavaliação dos escravos, na qual conseguimos contar 26 cativos e obtemos mais algumas
informações sobre a vida de alguns escravos dentro desse cativeiro.
Essa escravaria era composta por 9 homens (34,6%), 7 mulheres (26,9%) e 10
crianças (38,4%). Aqui encontramos uma variação dos dados encontrados nos plantéis
anteriores, pois a quantidade de homens e mulheres fica bem próxima, sem falarmos no
fato do número de crianças ser a maior porcentagem encontrada.
Todas as crianças eram nascidas no Brasil, sendo 4 pardas e 6 crioulas. Como temos
um casal de pardos na escravaria podemos deduzir que essas crianças pardas nasceram
nesse plantel. Já os crioulos, podemos relacioná-los aos demais casais, já que os 3 casais
restante eram compostos por um cônjuge africano e outro crioulo.
Depois de um espaço de 16 anos temos o inventário de João Pedro Vidigal de Barros
(AFP, Auto 332) em 1877. Filho de Antonio Pedro Vidigal de Barros e Tereza Altina Sande
Barros. Teve como herdeiros a sua segunda esposa, Maria José Carneiro Vidigal, e seus
filhos do primeiro e segundo matrimônio.
O plantel de João Pedro era formado por 25 escravos, dos quais não conseguimos
calcular a proporção de escravos africanos, pois é utilizado termos diferentes (“cor preta”,
“cor preta fula” e “cor fula”) para indicar a designação racial dos cativos.
390
Para os cativos que não tinham referência à idade consideramos todos adultos e os que não indicavam a
origem étnica contamos como crioulos (ou nativos).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
430
É possível a identificação de três núcleos familiares, sendo que dois fazem referência
aos cônjuges e filhos e outro há indicação apenas da mãe e sua prole. São famílias com um
número significativo de cativos. Os dois casais tem indicação de 2 filhos legítimos e a cativa
que aparece sem referência a seu cônjuge está acompanhada de 4 filhos naturais.
Apenas dois cativos, Januario e Antonio Jacinto, estavam anteriormente no
inventário de seu pai, Antonio Pedro Vidigal de Barros.
Logo em seguida, em 1880, temos o inventário de Manoel Pedro Vidigal (AFP, Auto
356), irmão de João Pedro Vidigal de Barros, também filho do segundo matrimônio de
Antonio Pedro Vidigal de Barros.
Manoel tinha como herdeiros sua esposa Maria Perpetua Carneiro Vidigal e seus
filhos e genros. A sua escravaria era composta por 10 escravos, sendo possível a
identificação de dois núcleos familiares, sendo que um é composto apenas pelos cônjuges e
outro além de indicar o nome do casal informa o nome dos filhos.
Esse inventário também é complicado de se analisar dentro da nossa perspectiva,
pois além de não fazer referência a origem/designação racial dos cativos há uma renovação
da escravaria, ou seja, não identificamos nenhum escravo que Manoel Pedro Vidigal tenha
recebido pela transferência de bens dos inventários analisados anteriormente.
Cinco anos depois temos o inventário de Dona Tereza Altina Sande de Barros (AFP,
322), uma das filhas e herdeiras de Antonio Gomes Sande e Francisca Clara Umbelina de
Jesus. Seus herdeiros foram seus filhos ainda vivos, os genros e netos (filhos de João Pedro
Vidigal de Barros e Manoel Pedro Vidigal).
Seu plantel era composto por 17 escravos, um dos escravos não é citado o nome no
inventário e nada que possa nos informar sobre ele. É possível a identificação de dois
núcleos familiares com a indicação dos cônjuges e filhos.
Apesar de termos indicação dos filhos dos casais cativos, nenhum deles estava na
faixa etária que classificamos como criança, o que pode indicar uma duração relevante entre
os laços familiares dos cativos desse plantel.
O inventário de Tereza Altina também nos traz uma complicação para a identificação
de origem/designação racial, os africanos e nativos não recebem nenhum termo nominal
que possa diferenciá-los.
Em 1886 temos o inventário de Manoel Pedro Vidigal (AFP, 361), homônimo de seu
pai, neto de Antonio Pedro Vidigal de Barros e Tereza Altina Sande Barros. Seu inventário
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
431
não acrescenta nenhuma informação à nossa análise, pois possuía apenas uma escrava
chamada Florinda, que não repete em nenhum plantel anterior.
O último inventário analisado é o de Maria Micaela Cândida de Jesus (1890) (AFP).
Apesar desta inventariada não conter mais escravos devido a Lei da Abolição de 1888 é um
inventário que fecha as nossas análises, pois nele podemos perceber que mesmo não
havendo mais escravos esse núcleo familiar, através de estratégias nos momentos de
partilha conseguiu manter e transferir seus bens e riquezas.
É importante resaltarmos que durante as partilhas Maria Micaela sempre que
apareceu como herdeira, recebeu números significativos de cativos, que podem ter
contribuído até o fim da escravidão para o acúmulo de riqueza e desenvolvimento da
propriedade da inventariada.
A tabela abaixo apresenta dados referentes às taxas e números encontrados durante a
análise de cada plantel.
Composição das Escravarias – (1807-1877)
Nome do
Quantidade de
Inventariado
Escravos
Antonio
Gomes
54
Sande (1807)
Homens
Mulheres
Crianças
Africanos
Africanas
Crianças
Africanas
36
10 (18,5%)
8
(66,6%)
24
0 (0%)
0 (0%)
(66,6%)
(14,8%)
Francisca
Cândida
6
de Oliveira Sande
5
1 (16,6)
0 (0%)
4 (80%)
1 (100%)
0 (0%)
8 (14,8%)
9 (16,6%)
23
2 (25%)
2 (22,2%)
6 (66,6%)
7 (87,5%)
(83,3%)
(1820)
Francisca
Clara
54
Umbelina de Jesus
37
(68,5%)
(62,1%)
(1833)
Antonio
Pedro
39
Vidigal de Barros
22
9 (23,1%)
8 (20,5%)
(56,4%)
19
(86,3%)
(1839)
Francisco Vidigal de
4
3 (75%)
-
-
-
-
-
26
11
7 (26,9%)
8 (30,7%)
7 (63,6%)
1 (14,2%)
1 (12,5%)
7 (26,9%)
10 (38,4%)
4 (44,4%)
2 (28,5%)
0 (0%)
Barros (1847)
Antonia Cândida de
Jesus Vidigal (1854)
Jose Araujo Ribeiro
Vasconcelos (1861)
(42,3%)
26
9
(34,6%)
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
432
João Pedro Vidigal
25
11 (44%)
9 (36%)
5 (20%)
-
-
-
Pedro
10
5 (50%)
4 (40%)
1 (10%)
-
-
-
Tereza Altina Sande
17
10
6 (35,2%)
-
-
-
-
1 (100%)
-
-
-
-
de Barros (1877)
Manoel
Vidigal (1880)
de Barros (1885)
Manoel
Pedro
(58,8%)
1
-
Vidigal (1886)
Fontes: Inventários Post Mortem ACSM e AFP.
A partir da análise dessa tabela podemos perceber que nas escravarias maiores a
porcentagem de homens sempre foi bem superior que a porcentagem de mulheres, assim
como a taxa de africanos do sexo masculino. Enquanto as escravarias menores, o número
de mulheres e homens se aproximava bastante, sem falarmos na taxa relativamente alta de
crianças se comparadas às escravarias menores.
Outro fato que podemos analisar é que à medida que aproximamos nossa análise do
período da abolição da escravatura as escravarias vão diminuindo, assim como o número de
africanos. A razão de masculinidade também diminui e o número de crianças nativas vai
indicando cada vez mais uma maior taxa de reprodução natural que nos faz pensar na
possibilidade de relações consensuais além dos matrimônios comprovados entre os cativos.
5. Considerações Finais:
A análise dos inventários desse núcleo familiar nos mostra que a maioria dos plantéis
analisados estava acima da média prevista para a região de Guarapiranga, exceto o de
Francisca Cândida de Oliveira Sande, Francisco de Araujo Ribeiro Vasconcelos e Manoel
Pedro Vidigal.
As famílias escravas, com o decorrer das partilhas, acabavam se desfazendo ou não
tivemos acesso aos inventários dos herdeiros que as receberam. Por outro lado, é possível
perceber a formação de novos núcleos familiares. É importante destacarmos que a
formação dos casais, na maioria das vezes, se dava entre mulheres crioulas e homens
africanos, o que pode está relacionado ao baixo número das cativas de origem africana.
Não podemos deixar de mencionar que além das famílias escravas, foi possível a
identificação de vários cativos que se repetiam após as partilhas, assim ao analisarmos a
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
433
transferência de bens conseguimos reconstituir os plantéis desses senhores e a trajetória
dos cativos.
Os inventários, testamentos e Listas Nominativas são fontes que nos trazem poucas
informações que raramente nos apresenta dados qualitativos sobre a escravidão.
Acreditamos que o método utilizado para essa pequena análise pode trazer muitas
novidades se buscarmos o cruzamento das fontes aqui analisadas com registros de batismo
e casamento de escravos.
6. Bibliografias:
Fontes Manuscritas:
Arquivo da Casa Setecentista de Mariana (ACSM)
Arquivo do Fórum de Piranga (AFP)
Referências:
BOTELHO, Tarcísio R. A Família Escrava em Minas Gerais no Século XVIII. In: RESENDE,
Maria Efigênia Lage e VILLALTA, Luis Carlos (orgs.). As Minas Setecentistas, I. Belo
Horizonte: Autêntica, Companhia do Tempo, 2007. p.455-476.
CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Laços de Família e Direitos no Final da Escravidão. In:
ALENCASTRO, Luis Felipe de (org.). História da Vida Privada no Brasil: Império. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997. p. 337-381.
_______________. Das Cores do Silêncio. Os significados da liberdade no sudeste escravista –
Brasil - século XIX.Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.
COSTA, Iraci del Nero da. História e demografia. Revista de História. São Paulo, FFLCH-USP,
(109):195-203, 1977.
FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
FLORENTINO, Manolo Garcia & GOÉS, José Roberto. A Paz nas Senzalas: famílias escravas e
tráfico atlântico (Rio de Janeiro, 1790-1850).Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil.23ª. Ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional,
1989.
GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro; PINTO, Fábio Carlos Vieira & MALAQUIAS, Carlos de
Oliveira. Famílias escravas em Minas Gerais nos inventários e registro de casamento: o caso de São
José dos Rio das Mortes, 1743-1850. Varia História, 23 (37): 184-207, Jan/Jun 2007.
LUNA, Francisco Vidal Luna. Minas Gerais: escravos e senhores.São Paulo, FEA-USP, 1980, Tese
de doutorado, mimeografado.
PRADO Jr., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo.20ª. Ed. São Paulo: Brasiliense,1989.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
434
SLENES, Robert W. Senhores e Subalternos no Oeste Paulista. In: ALENCASTRO, Luis Felipe de
(org.). História da Vida Privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 233290.
_______________ & FARIA, Sheila de Castro. Família Escrava e Trabalho. In: Tempo, vol.3 – nº 6,
Dezembro de 1998.
_______________. Na Senzala uma Flor: esperanças e recordações na formação da família
escrava, Brasil Sudeste, século XIX.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
435
Expostos: das estruturas domiciliares à representação social
Mariana, 1737 – 1828
Nicole de Oliveira Alves Damasceno
Universidade Federal de Ouro Preto / PROPP – UFOP / ICAM-USIMINAS
nicole_damasceno@yahoo.com.br
Resumo: Este trabalho391 se insere nas discussões sobre a história da família e do
abandono de crianças em Minas Gerais no século XVIII e início do XIX. O nosso
principal objetivo é fazer uma análise geral das estruturas familiares da cidade de Mariana e
depois comparar essas estruturas com aquelas as quais viviam crianças expostas. Dessa
forma, podemos perceber qual era o papel dessas crianças abandonadas dentro da
sociedade e o que representava ser exposto na época analisada. Para isso, utilizamos a Lista
de Habitantes da cidade de Mariana de 1819 e algumas ações cíveis. Através da história
quantitativa e do estudo de casos, traçamos um perfil das organizações familiares da
localidade estudada e conseguimos perceber o ambiente familiar nos quais os expostos
residiam, destacando as características tanto dessas crianças como as dos chefes de
domicílio. Através das nossas análises percebemos que ser exposto na época colonial não
significava necessariamente ser um desclassificado social. Muitas crianças ao serem
abandonadas e inseridas em outras famílias adquiriam uma qualidade – termo utilizado nas
fontes documentais da época para designar a cor, sendo que essa estava totalmente
associada ao status social – que provavelmente não teriam se continuassem em suas famílias
de origem.
Palavras-chave: história da família, abandono de crianças e estruturas domiciliares
Abstract: This work is part of the discussions about family history and the abandonment
of children in Minas Gerais in the eighteenth and early nineteenth centuries. Our main goal
is to make a general analysis of family structures in the city of Mariana, and then compare
these structures with those which live exposed children. Thus, we can see what was the role
of these abandoned children into society and to be exposed at the time represented
analyzed. For this, use the List of Inhabitants of the city of Mariana, 1819, and some civil
lawsuits. Throughout the history of quantitative and case study, we draw a profile of the
organizations studied family of the town and we perceive the environment in which the
family resided exposed, highlighting the characteristics of both of these children as heads
of household. Through our analysis we realize that being exposed in the colonial era did
not necessarily mean being a social disqualified. Many children are abandoned to and
inserted into other families acquired a quality - a term used in the documentary sources of
the time to designate the color, and this was totally associated with social status - which
probably would not have remained in their families of origin.
Keywords: family history, abandonment of children and household structures
391
Esse trabalho faz parte da dissertação de mestrado intituladaSer exposto: a “circulação de crianças no Termo
de Mariana (1737 – 1828) defendida na Universidade Federal de Ouro Preto em setembro de 2011.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
436
O abandono de crianças nos séculos passados é um tema bastante discutido na
história da família e da sociedade. O número de crianças abandonadas certamente não era
insignificante, dado as medidas tomadas pelos governos que objetivavam prezar pela
sobrevivência dos pequenos abandonados. Ao observarmos apenas a legislação portuguesa,
vimos nas Ordenações Manuelinas (1521) e Filipinas (1603) a preocupação em se definir
alguma instituição responsável pelos expostos.392 A nível local, vimos essa responsabilidade
recair sobre as Santas Casas de Misericórdia ou sobre as Câmaras Municipais.393
Pouco se sabe sobre o destino que essas crianças tiveram após o abandono;
destinos esses que devem ser variados. Mas o nosso objetivo nesse trabalho é analisar o que
significava ser uma criança abandonada nos séculos XVIII e XIX em uma sociedade
urbana que cresceu rapidamente por causa do ouro. Iremos analisar, portanto, a cidade de
Mariana, que entre esses séculos viu parte dos recursos de sua Câmara Municipal ser
destinados ao pagamento de pessoas interessadas na criação de expostos.
A assistência, que era feita através pagamentos que variaram de 2 a 3 oitavas por
mês para cada pessoa que matriculasse uma criança na Câmara como exposta, chegou a
representar 30% nos cofres públicos depois de 1750 (DAMASCENO, 2011: 60 – 78,
passim). Para que uma pessoa começasse a receber esse pagamento bastava comunicar a
Câmara Municipal o interesse de criar a criança supostamente abandonada, certificando que
a filiação da mesma era desconhecida. Essa criança deveria ser batizada sob a condição de
exposta. A partir de então, a pessoa receberia da Câmara um pagamento, que poderia
permanecer até a criança completar sete anos de idade. A probabilidade de a Câmara
efetuar pagamentos a falsos expostos394é muito grande. No entanto, essas crianças, mesmo
continuando nas suas famílias de origem, ganhavam a condição de expostas ao serem
batizadas como tal.
E o que será que essas crianças representavam para a sociedade? Temos a tendência
a acreditar que o abandono é vinculado a ideia de uma desvalorização social, mas será que
esses expostos dos séculos XVIII e XIX eram vistos dessa forma? Vamos apontar algumas
392
O termo exposto é utilizado para designar crianças abandonadas. Nos documentos analisados nessa
pesquisa encontramos tanto essa designação como o termo enjeitado. Para o trabalho em questão,
utilizaremos apenas o primeiro termo citado.
393 Para saber mais sobre as legislações portuguesas acerca dos expostos, cf: SÁ, Isabel dos Guimarães. A
circulação de crianças na Europa do Sul: o caso dos expostos do Porto no século XVIII. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1995; VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias abandonadas: Assistência à criança de camadas
populares no Rio de Janeiro e em Salvador – Séculos XVIII e XIX. Campinas, SP: Papirus, 1999.
394 Aqueles que não haviam sido de fato abandonados, continuando em sua família de origem. Famílias
podiam tomar essa atitude com o objetivo de receber o pagamento da Câmara, criando seu próprio filho.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
437
hipóteses a essas perguntas através da análise de uma Lista de Habitantes da área urbana da
cidade de Mariana do ano de 1819.
Através de uma análise quantitativa elaboramos tabelas e gráficos com três tipos de
análises. A primeira delas, uma análise geral da estrutura da cidade de Mariana para que
pudéssemos comparar com as outras análises. Na segunda, separamos os domicílios os
quais residiam crianças expostas395. E em uma terceira análise, observamos os domicílios os
quais havia crianças que não residiam com os pais, mas que não apareciam com a condição
“exposto” no documento. Chamamos essas últimas de “crianças alheias”. A necessidade
dessa última análise se justifica, pois uma comparação entre crianças que receberam a
condição de exposta e outras que – apesar de não conviverem com seus pais biológicos –
não receberam essa condição, é essencial para apontarmos algumas hipóteses sobre o
significava ser exposto.
Importante destacar também a utilização de termo “circulação de crianças” em
nossa pesquisa. Termo atualmente utilizados por etnólogos, significa a transferência de
responsabilidade de uma criança, de um adulto para o outro. Nesses casos, a criança
passaria parte de sua infância e/ou de sua juventude em casas que não a de seus pais
biológicos, transitando entre as casas de avós, vizinhos, madrinhas, entre outros
(FONSECA, 2006: 14). No entanto, a “circulação” seria diferente do que conhecemos
como adoção plena. Esse próprio termo é uma noção recente e não se aplica a época
estudada. A “circulação” estaria mais vinculada a ideia do que Fonseca chama de filiação
aditiva, não representando necessariamente – como a adoção plena – uma ruptura da
família de origem com a criança. Para nossa pesquisa consideramos os casos dos expostos e
das “crianças alheias” como um processo de “circulação de crianças”. Dessa forma, para
nos ajudar a compreender o papel do exposto na sociedade, procuramos analisar também
se havia padrões diferentes de “circulação” ao comparar expostos e “crianças alheias”.
Vejamos, portanto, as Tabelas 1 e 2, que nos mostram respectivamente, o estado
civil e a idade dos chefes de domicílio.
Tabela 1 – Sexo / Estado Civil dos chefes de domicílio – Mariana (1819)
395
Para determinar qual idade seria usada para diferenciar a infância da fase adulta optamos utilizar como
referência o guia nomeado Orphanologia practica, em que se descreve tudo o que respeyta aos inventarios, partilhas & mais
de pendencias dos pupilhosdo autor Antonio de Payva Pona, encontrado no Arquivo Público Mineiro. Para esse
autor, podemos considerar infantes homens de até 14 anos e mulheres de até 12 anos de idade.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
438
Perfil geral da cidade de Mariana
Residências com crianças expostas
Residências com "crianças alheias"
Sexo / Estado
Sexo / Estado
Sexo / Estado
Civil
Número Porcentagem Civil
Número Porcentagem Civil
Número Porcentagem
Homens Homens –
Homens casados
77
23%
casados
6
23%
casados
10
22%
Homens Homens –
Homens solteiros
70
21%
solteiros
0
0%
solteiros
8
17%
Homens Homens –
Homens viúvos
16
5%
viúvos
2
8%
viúvos
3
7%
Mulheres Mulheres –
Mulheres casadas
8
2%
casadas
2
8%
casadas
0
0%
Mulheres Mulheres –
Mulheres solteiras
107
32%
solteiras
5
19%
solteiras
15
32%
Mulheres Mulheres –
Mulheres viúvas
59
17%
viúvas
11
42%
viúvas
10
22%
TOTAL
337
100%
TOTAL
26
100%
TOTAL
46
100%
Não consta o estado civil de um homem. Fonte: AHCMM, Lista de Habitantes, Distrito de Mariana
(1819), códice 651.
Tabela 2 – Sexo / Idade dos chefes de domicílio – Mariana (1819)
Perfil geral da cidade de Mariana
Sexo / Idade
Número Porcentagem
Homens –
menos de 20
0
0%
Homens – 20 a
29
16
5%
Homens – 30 a
39
27
8%
Homens – 40 a
49
40
12%
Homens – 50 a
59
43
13%
Homens – 60 a
69
21
6%
Homens – 70 ou
mais
17
5%
Mulher – menos
de 20
3
1%
Mulher – 20 a
29
12
3%
Mulher – 30 a
39
35
10%
Mulher – 40 a
49
37
11%
Mulher – 50 a
59
41
12%
Mulher – 60 a
69
29
9%
Mulher – 70 ou
mais
17
5%
TOTAL
338
100%
Residências com crianças expostas
Sexo / Idade
Número Porcentagem
Homens –
menos de 20
0
0%
Homens – 20 a
29
0
0%
Homens – 30 a
39
2
8%
Homens – 40 a
49
0
0%
Homens – 50 a
59
5
19%
Homens – 60 a
69
0
0%
Homens – 70
ou mais
1
4%
Mulher – menos
de 20
0
0%
Mulher – 20 a
29
1
4%
Mulher – 30 a
39
4
15%
Mulher – 40 a
49
3
12%
Mulher – 50 a
59
4
15%
Mulher – 60 a
69
4
15%
Mulher – 70 ou
mais
2
8%
TOTAL
26
100%
Residências com "crianças alheias"
Sexo / Idade
Número Porcentagem
Homens –
menos de 20
0
0%
Homens – 20 a
29
0
0%
Homens – 30 a
39
2
4%
Homens – 40 a
49
5
11%
Homens – 50 a
59
7
15%
Homens – 60 a
69
3
7%
Homens – 70
ou mais
4
9%
Mulher – menos
de 20
0
0%
Mulher – 20 a
29
4
9%
Mulher – 30 a
39
3
7%
Mulher – 40 a
49
5
11%
Mulher – 50 a
59
8
16%
Mulher – 60 a
69
4
9%
Mulher – 70 ou
mais
1
2%
TOTAL
46
100%
Fonte: AHCMM, Lista de Habitantes, Distrito de Mariana (1819), códice 651
O que podemos perceber é que em domicílios onde residiam expostos os chefes
eram principalmente mulheres viúvas e com mais de 30 anos. Há também os domicílios
chefiados por homens, mas além de ser a minoria, boa parte deles contavam com a
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
439
presença de alguma mulher. No caso das “crianças alheias” encontramos um número mais
significativo de homens chefiando domicílios. A presença de mulheres não era tão
marcante, havendo um considerável número de domicílios que contavam apenas com
homens. Interessante destacar que nessas residências as crianças que foram agregadas
também eram apenas homens, com idade acima de 8 anos e na residência havia pelo menos
uma pessoa com algum ofício. Se observarmos a Tabela 3, veremos que a diversidade e o
número de pessoas com alguma ocupação era mais marcante em domicílios com “crianças
alheias”.
Tabela 3 – Ocupações – Mariana (1819)
Residências com crianças expostas
Ocupação
Número
Nenhum
12
Advogado
1
Carapina
1
Carpinteiro
4
Escrevente
1
Escrivão de orfãos
1
Fazer esteiras
1
Negócio
2
Ouvires
2
Pintor
1
Sacristão
2
Solicitador
1
Venda
2
Residências com "crianças
alheias"
Ocupação
Nenhum
Número
19
Advogado
2
Alfaiate
1
Carcereiro
1
Carpinteiro
1
Chacareiro
1
Cobranças
1
Escrevente
1
Escrivão da Câmara
1
Escrivão do Juízo Eclesiástico
1
Estudante
5
Fazer esteiras
1
Matar gados
1
Mineiro
2
Moço do coro
2
Negócio
1
Ouvires
2
Pintor
1
Porteiro da missa
1
Sapateiro
1
Solicitador
1
Sua conezia
4
Sua faculdade
1
Venda
3
Fonte: AHCMM, Lista de Habitantes, Distrito de Mariana (1819), códice 651
Nas fontes que tratam sobre o abandono de crianças, o que percebemos é que os
expostos eram normalmente deixados na porta de alguma casa e que essas pessoas
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
440
poderiam ou não ficar com essas crianças. Provavelmente há casos em que a família
recusou criar o exposto, mas infelizmente os documentos não retratam esses tipos.
Partimos então da ideia de que a escolha pela família a qual criará a criança exposta parte
principalmente da família biológica ao escolher o lugar da exposição. E o fato dessa família
estar abandonando a criança não significa que não esteja preocupada com o bem estar da
mesma. Como bem observa Renato Pinto Venâncio, não podemos associar o abandono a
um ato de desamor da mãe; há vários outros fatores que podem justificar seus atos
(VENÂNCIO, 1999: 75-85, passim). Logo, a presença de uma mulher no domicílio parece
ter sido uma das preocupações da família biológica ao escolher o lugar para abandonar seu
filho.
No caso das “crianças alheias” a preocupação parece ter sido diferente: o interesse
dos pais biológicos e dos próprios filhos – já que esses circulam entre as famílias numa
idade superior, como veremos a seguir – em aprenderem algum ofício, assim como o
interesse de algum membro da família acolhedora em repassar seu conhecimento e até
mesmo contar com mão de obra.
A questão da idade das crianças reafirma a ideia defendida sobre a diferente forma
de “circulação”. Já que no caso dos expostos as crianças eram normalmente abandonadas
nas portas de casas de famílias, é essencial que ela seja bem novinha. Podemos perceber
esse fato ao compararmos a idade das crianças na Tabela 4, que nos mostra que entre os
expostos encontramos um número mais significativo de crianças entre 1 e 7 anos se
compararmos com as “crianças alheias”.
Tabela 4 – Idade dos expostos e das “crianças alheias”
Expostos
Idade
Número
“Crianças alheias”
Porcentagem
Idade
Número
Porcentagem
Menos de 1
1
3%
Menos de 1
1
2%
1a7
14
41%
1a7
15
23%
Acima de 7
19
56%
Acima de 7
48
75%
TOTAL
34
100%
TOTAL
64
100%
Fonte: AHCMM, Lista de Habitantes, Distrito de Mariana (1819), códice 651
A próxima análise diz respeito sobre a presença de filhos nos domicílios. No caso
dos expostos, esse parece ter sido outro fator que determinou a escolha dos pais biológicos.
Ou seja, uma família que já tivesse a experiência na criação de uma criança seria mais
adequada para criar uma outra criança. Como vemos na Tabela 5, em domicílios onde
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
441
residiam “crianças alheias” a presença de filhos não é tão significativa e parece não ter sido
determinante na hora da escolha.
Tabela 5 – Presença de filhos nos domicílios – Mariana (1819)
Expostos
Número de filhos dos
chefes de domicílios
Nenhum
1
2
3
4
5
Mais de 5
“Crianças alheias”
Número de
domicílios
10
6
4
4
2
0
0
TOTAL
Porcentagem
39%
23%
15%
15%
8%
0%
0%
26
100%
Número de filhos dos
chefes de domicílios
Nenhum
1
2
3
4
5
Mais de 5
TOTAL
Número de
domicílios
32
5
4
2
2
0
1
Porcentagem
70%
11%
9%
4%
4%
0%
2%
46
100%
Fonte: AHCMM, Lista de Habitantes, Distrito de Mariana (1819), códice 651
Porém, o aspecto mais interessante da nossa pesquisa diz respeito a qualidade
dessas crianças. A qualidade, sempre destacada na Lista de Habitantes, muito mais que
designar a cor e a raça de uma pessoa, estava relacionada com a representação que essa
tinha na sociedade (LARA, 2007: 141). E o que percebemos é um número bastante
significativo de expostos aparecendo na Lista como brancos; eles representavam 70%!
Enquanto para as “crianças alheias” os brancos apareciam apenas em terceiro lugar, depois
dos pardos e dos crioulos.
Gráfico 1
Qualidade dos expostos
24%
Branco
Crioulo
Pardo
6%
70%
Fonte: AHCMM, Lista de Habitantes, Distrito de Mariana (1819), códice 651
Tabela 6 – Qualidade dos expostos – Mariana (1819)
Qualidade Número Porcentagem
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
442
Branco
24
70%
Cabra
0
0%
Crioulo
2
6%
Pardo
8
24%
Preto
0
0%
TOTAL
34
100%
Fonte: AHCMM, Lista de Habitantes, Distrito de Mariana (1819), códice 651
Gráfico 2
Qualidade das "crianças alheias"
0%
17%
6%
Branco
Cabra
Crioulo
Índio
56%
19%
Pardo
2%
Fonte: AHCMM, Lista de Habitantes, Distrito de Mariana (1819), códice 651
Tabela 7 – Qualidade das “crianças alheias” – Mariana (1819)
Qualidade Número Porcentagem
Branco
11
17%
Cabra
4
6%
Crioulo
12
19%
Índio
1
2%
Pardo
36
56%
Preto
0
0%
TOTAL
64
100%
Fonte: AHCMM, Lista de Habitantes, Distrito de Mariana (1819), códice 651
É claro que há a probabilidade de famílias designadas brancas estarem
abandonando seus filhos, mas isso não justificaria os 70% encontrados. Nem o perfil geral
da sociedade de Mariana nos permite afirmar tal fato, já que entre os chefes de domicílios, a
maioria encontrada são de pardos, sendo que os brancos representam apenas 38% (Tabela
8). Logo, o que podemos supor é que ao serem abandonadas há um rompimento social da
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
443
criança com sua família de origem, pois ela perde a referência da qualidade de sua família
biológica e, em boa parte das vezes, se torna uma criança branca. O mesmo não acontece
com as “crianças alheias”. Essas apresentam um perfil muito mais próximo com o perfil da
sociedade geral, o que nos indica que elas não perdiam a referencia da qualidade de sua
família de origem ao serem agregadas na casa de terceiros.
Tabela 8 – Qualidade dos chefes de domicílio – Mariana (1819)
Perfil Geral
Qualidade Número Porcentagem
Branco
127
38%
Cabra
11
3%
Crioulo
43
13%
Pardo
144
42%
Preto
13
4%
TOTAL
338
100%
Expostos
Qualidade Número Porcentagem
Branco
15
58%
Cabra
0
0%
Crioulo
0
0%
Pardo
11
42%
Preto
0
0%
TOTAL
26
100%
"Crianças alheias"
Qualidade Número Porcentagem
Branco
30
65%
Cabra
3
7%
Crioulo
0
0%
Pardo
13
28%
Preto
0
0%
TOTAL
46
100%
Fonte: AHCMM, Lista de Habitantes, Distrito de Mariana (1819), códice 651
Após essas análises o que percebemos é que existiam padrões diferentes de
“circulação de crianças”. Ou seja, a prática de abandonar um filho e a de entregá-lo para
terceiros sem que isso representasse um abandono possuíam perfis diferentes, com
intenções diferentes por parte da família biológica e até mesmo da família criadeira.
Outra hipótese que podemos levantar através desses dados é que a criança ao ser
abandonada não se tornava uma desqualificada social. As famílias criadeiras poderiam
muito bem designá-las como pardas ou mulatas, mas não. Ao contrário do que se pensa, a
maioria dessas crianças adquiriram a qualidade de branca nas Listas Nominativas. Isso pode
nos apontar também uma ruptura social dessa própria criança com sua família de origem, já
que é bem provável que muitas delas não teriam essa qualidade caso continuassem em suas
famílias.
Como estudo de caso podemos apontar o caso de menino Joaquim. Exposto no
ano de 1751 na casa de Maria Pereira, que era uma parteira, ficou lá até que completasse a
idade de 8 anos. Como podemos ver a seguir, de acordo com seu batismo, Joaquim aparece
como uma criança parda.
[Fl. 3] Aos dezoito dias do mês de janeiro do ano de mil setecentos e cinquenta
e um na Capela de São Francisco de Brumadinho filial desta Matriz de Nossa
Senhora da Conceição de Catas Altas o Reverendo Felipe de Cerqueira Távora
de licença minhas batizou e pôs os santos óleos a Joaquim pardo [corroído]
exposto em casa de João Gomes da Silva, e Maria Pereira Dias todos desta
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
444
freguesia, de que fiz este assento [corroído] supra = o Vigário Manoel Ribeiro
Taborla (...).396 [grifo meu].
Joaquim só sai da casa de Maria quando um homem, chamado João Roubão,
requereu a guarda do menino, afirmando ter sido nomeado por seu pai biológico, já
falecido, o seu tutor. Durante o processo pela sua guarda, há a identificação de sua mãe
biológica, referida então como forra. No entanto, enquanto exposto ele perde sua condição
de forro e em nenhum momento aparece nos documentos como mulato, e sim como
pardo. Mas quando seu tutor assume a tutela, ele deixa de ser pardo e começa a aparecer
nos documentos como órfão, mulato e forro.
[Fl. 110] Recebi da mão do Capitão João Favacho Roubam dezesseis
oitavas de sustento de Joaquim órfão que ficou do defunto Alferes Francisco
Vieira da Silva a quais me pagou como tutor do dito órfão de sustento de um
ano que esteve em minha casa para ir a escola e por ser verdade e para seu
[ilegível] passei este hoje Inficcionado, 28 de junho de 1762.
José Pinto de [Fonseca] [Ass]
[Fl. 109] Recebi d Capitão João Favacho Roubam [tutor] pardo forro
por nome Joaquim Vieira para lhe ensinar o oficio de sapateiro por verdade
passei este por mim somente assinado. Inficcionado, 18 de abril de 1763.
Manoel Machado e [Sangalo] [Ass]
[Fl. 108] Recebi do Senhor Capitão João Favacho Roubam cinco oitavas
e meia de ouro que me pagou por ensinar o mulatinho Joaquim filho do
defunto Francisco Vieira da Silva por quais me pagou como tutor do dito órfão
e por ter pago e satisfeito do tempo que lhe ensinei a ler e escrever lhe passei
esta para sua clareza e verdade. Hoje, Inficcionado, 28 de junho de 1764.
Francisco Joseph de Almeida [Ass]
[Fl. 107] Recebi do Senhor Capitão Favacho a quantia de quinze oitavas
e doze vinténs que me pagou da receita abaixo que foi para o órfão Joaquim de
que ele dito Senhor é tutor a saber
cinco linhas de pano de linho para duas camisas ______ 2 “ 6
mais uma farda de pano e um sertum ______________ 8 ½ 7
mais um chapéu _______________________________ /2 [corroído]
mais um calção de pano azul _____________________ 2 ¼ 5
mais um sertum _______________________________ 1/4 6
__________
15 ¼ 4
e por ter pago e satisfeito da dita quantia a soma lhe passei este por mim
feito o assinado hoje Inficcionado, 3 de Maio de 1765.
José Correia Pereira [Ass]
[grifos meus].397
396
ACSM, Ação cível, 1º ofício, códice 390, auto 8533. Referência do documento cedida pelo professor Dr.
Renato Pinto Venâncio.
397 ACSM, Ação cível, 1º ofício, códice 391, auto 8549.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
445
Referências bibliográficas:
Fontes primárias manuscritas
Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana
- Listas de Habitantes (1819) – códice 651.
Arquivo da Casa Setecentista de Mariana
- Ações cíveis – 1º ofício, códice 390, auto 8533; 1º ofício, códice 391, auto 8549.
Fontes primárias impressas
ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Orphanologia practica, em que se descreve tudo o que respeyta aos
inventarios, partilhas & mais de pendencias dos pupilhos. MFN: 1323; Autor: PONA, Antonio de Payva e.
1655 – 1759?; N. de classificação: OR 0001 – Séc. XVIII; N. do microfilme: 63; N. do
flash/planilha: 3; Arquivo gaveta negativo: G-6. Coleção: Obras Raras.
COIMBRA. Código Filipino, ou, Ordenações e Leis do Reino de Portugal: recopiladas por mandato d’el-Rei
D. Felipe I. Ed. Fac-similiar da 14a ed., segundo a primeira, de 1603, e a nona, de Coimbra, de 1821
/ por Cândido Mendes de Almeida. – Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004. v.38 – 4
Tomos – (Edições do Senado Federal).
Bibliografia:
ARAÚJO, Cíntia Ferreira. A caminho do céu: a infância desvalida em Mariana (1800-1850).
Dissertação de Mestrado. UNESP, 2005.
______. O destino dos expostos: Trajetória social de crianças abandonadas em Mariana, 1800-1830.
Monografia de Bacharelado, UFOP, 2002.
ARIÈS, Philippe. Historiasocialda criança e da família. 2 ed. Rio de Janeiro: LTC, 2006.
BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. “Recuperando sociabilidades no passado”. In: BOTELHO,
Tarcísio Rodrigues et al. História quantitativa e serial no Brasil: um balanço. Goiânia: Anpuh – MG,
2001. pp.27 – 43.
BOSCHI, Caio César. “O assistencialismo na Capitania do Ouro”. Revista de História (nova série), n.
116, jan./jul. 1984, p. 35.
______. Os Leigos e o Poder. (Irmandades Leigas e Política Colonizadora em Minas Gerais). São
Paulo: Editora Ática S.A., 1986.
BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica’. In: AMADO, Janaina; FERREIRA, Marieta de Moraes
(orgs). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. 8.ed.
BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Minas patriarcal: família e sociedade (São João Del Rei - séculos
XVIII e XIX). São Paulo: Annablume, 2007.
CARDOSO, Ciro Flamarion S. & BRIGNOLI, Hector Perez. Os métodos da História. 3 ed. Tradução
de João Maia. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.
CASTRO, Iná Elias de. “Problemas e alternativas metodológicas para a região e para o lugar”. In:
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
446
SOUZA, Maria Adélia A. et. al. (orgs.). Natureza e sociedade de hoje: uma leitura geográfica. São Paulo:
Hucitec / Annablume, 2002.
DEL PRIORE, Mary. História da criança no Brasil. São Paulo: Contexto, 1991.
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento. Fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
FIGUEIREDO, Luciano Raposo. Barrocas famílias: vida familiar em Minas Gerais no século XVIII.
São Paulo: Hucitec, 1997.
FONSECA, Claudia. Caminhos da adoção. 3 ed. São Paulo: Editora Cortez, 2006.
GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Trad: Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2001.
GONÇALVES, Márcia de Almeida. “Expostos, Roda e mulheres: a lógica da ambigüidade medicohigienista”. In: Pensando a família no Brasil – da colônia à modernidade. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo,
1987.
GOUBERT, Pierre. “História Local”. História & Perspectiva, n. 6, pp. 45 – 57, 1992.
LALLEMAND, Suzanne. La circulation des enfants em societe traditionnelle: Prêt, Don, échange. Paris:
Editions L’Harmattan, 1993.
LEVI, Giovanni. “Usos da biografia”. In: AMADO, Janaina; FERREIRA, Marieta de Moraes
(orgs). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. 8.ed.
MARCÍLIO, Maria Luiza. História social da criança abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998.
MATTOSO, Katia M. de Queiros. Ser escravo no Brasil. Trad: James Amado. São Paulo: Brasiliense,
1982.
MORENO, Alessandra Zorzzeto. Vivendo em lares alheios: acolhimento domiciliar, criação e adoção
na cidade de São Paulo (1765-1822), 2007, Tese de Doutorado. UNICAMP.
POLLOCK, Linda A. Los niños olvidados: Relaciones entre padres e hijos de 1500 a 1900. Trad:
Agustín Bárcena. México: Fondo de Cultua Económica, 1993.
SÁ, Isabel dos Guimarães. A circulação de crianças na Europa do Sul: o caso dos expostos do Porto no
século XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.
SAMARA, Eni de Mesquita. “A História da Família no Brasil”. Família e Grupos de Convívio, São
Paulo, v.17, 1988/1989.
SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro – A pobreza mineira do século XVIII. Rio de Janeiro:
Graal, 1990.
_____. Norma e conflito: aspectos da história de Minas no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG,
1999.
Termo de Mariana: história e documentação. Mariana: Editora UFOP, 1998.
Termo de Mariana II: história e documentação. Editora UFOP, 2004.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
447
VENÂNCIO, Renato Pinto. Maternidade negada. In: DEL PRIORE, Mary. Historia das mulheres no
Brasil. São Paulo: Contexto, 1997.
______. Infância sem destino: o abandono de crianças no Rio de Janeiro no século XVIII. São Paulo:
[s.n],1998.
______. Famílias abandonadas: Assistência à criança de camadas populares no Rio de Janeiro e em Salvador –
Séculos XVIII e XIX. Campinas, SP: Papirus, 1999.
______. Infância e pobreza no Rio de Janeiro, 1750 – 1808. História: Questões & Debates, Curitiba, n.
36. Editora UFPR, 2002. pp. 129 – 159.
______. (org). Uma história social do abandono de crianças: de Portugal ao Brasil, séculos XVIII – XIX,
1º ed. São Paulo: Alameda, 2010.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
448
Parentelas de Forros: A constituição familiar entre os alforriados - Mariana (17271838)
Rogéria Cristina Alves
Mestre em História pela UFMG
rogeriaufmg@gmail.com
Resumo: Este trabalho tem como principal objetivo lançar luz sobre a situação familiar
dos alforriados - inventariados e testadores – da localidade do Termo de Mariana, durante
os anos de 1727 a 1838. A proposta inicial dessa investigação nasceu durante a elaboração
de minha dissertação de mestrado, que recebeu o título de “Mosaico de forros”: formas de
ascensão econômica e social entre os alforriados (Mariana, 1727-1838). Conhecer os tipos
de organizações familiares possíveis e existentes entre os libertos, especialmente entre
aqueles que experimentaram após a alforria algum tipo de ascensão econômica ou social,
revelou-se uma tarefa dinâmica. Diversos arranjos familiares foram sendo revelados ao
longo da documentação pesquisada e a única certeza que se pôde estabelecer é que não é
possível engessar os comportamentos familiares dos alforriados numa única fórmula, antes,
é preciso ponderá-los e investigá-los sob diferentes óticas.
Palavras-Chave: Alforriados, Famílias, Mariana.
Abstract: This work has as main objective to shed light on the family situation of the
freedmen - inventoried and testers - the location of the Term of Mariana, during the years
1727 to 1838. The initial proposal of this research was born during the preparation of my
dissertation, which received the title of "Mosaic of the freedmen": forms of economic and
social ascension among the freedmen (Mariana, 1727-1838). Knowing the types of family
organizations and possible between the freedmen, especially among those who experienced
some kind after the enfranchisement of social or economic rise has proved a dynamic task.
Several family arrangements were being revealed through the documentation and searched
only certainty is that it could establish that you cannot stifle the behaviors of the family
freed in a single formula, first we need to weigh them and investigate them under different
perspectives.
Keywords: Freedmen, Families, Mariana.
Lançar luz sobre a formação familiar dos alforriados testadores e inventariados - que
viveram na região do Termo de Mariana - é o principal intuito desse trabalho, que integra
parte da pesquisa que realizei durante o mestrado. Foram consultados, no total, 167
documentos pertencentes a homens e mulheres forros, sendo 97 testamentos e 70
inventários post-mortem. O espaço temporal abarcado por estas fontes contabiliza 111 anos,
sendo o documento mais antigo pesquisado, um testamento do ano de 1727 e o mais
recente, um inventário post-mortem datado de 1838. No entanto, ressalta-se que não foram
encontrados documentos para todos os anos desse extenso período e que grande parte dos
documentos concentra-se no período de 1750 a 1800.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
449
Optamos por não estabelecer um recorte temporal específico por acreditar que se
assim procedêssemos, limitar-se-ia a visão almejada sobre o grupo dos alforriados. Dessa
forma, o critério para a escolha do primeiro e do último documento pesquisado obedeceu
estritamente à disponibilidade das referidas fontes no arquivo consultado. A documentação
pesquisada encontra-se disponível para consulta no Arquivo Histórico da Casa Setecentista
de Mariana e está abrigada em diferentes grupos referentes aos Cartórios de 1º e 2º Ofícios.
O perfil dos forros testadores e inventariados do Termo de Mariana, com relação à
formação de famílias revelou-se diverso: alguns casaram e tiveram filhos; outros
permaneceram solteiros e sem filhos; outros ainda permaneceram solteiros, mas tiveram
filhos. Através da manipulação da documentação, em especial dos inventários post-mortem
foi possível extrair diversas informações referentes não só a formação familiar dos
alforriados, mas também referentes às condições materiais destes agentes. Assim sendo,
pudemos, por exemplo, alistar os alforriados que possuíam as maiores quantias de bens e
posses e verificar neste grupo, como eram constituídos os arranjos familiares. O quadro a
seguir demonstra essa listagem, que foi planejada baseada na análise do monte-mor – soma de
todos os bens – encontrado no inventário dos libertos.
Quadro 1: Os maiores montes-mores (em conto de réis) encontrados nos inventários dos forros no
Termo de Mariana (1727-1838)
Monte-mor:
Ano:
Forro inventariado:
3:217$500
1742
Rosa da Silva Torres
2:498$280
1781
Luiza da Silva Gama
1:827$000
1730
Úrsula Azeredo
1:666$854
1755
Mariana da Silva
1:418$100
1774
Joana Carvalho da Silva
1:342$500
1750
Joana do Rosário
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
450
1:160$875
1754
Josefa Martins
1:103$250
1778
Manoel Souza
Fontes: Testamentos e inventários post-mortem do AHCSM
Entre os alforriados mais ricos que encontramos existiram trajetórias familiares
interessantes. A forra Úrsula Azeredo, por exemplo, detentora da terceira maior fortuna
encontrada entre os alforriados pesquisados – algo em torno de 1:827$000 (um conto
oitocentos e vinte sete mil réis) - declarou que havia recebido a alforria incondicional de
seus ex-donos, o sargento Gaspar de Brito e a sua mulher, Dona Ana do Amaral, que já
haviam falecido. Em seu testamento, Úrsula revelou que seus três filhos – duas mulheres e
um homem – eram frutos do relacionamento que ela teve com seu ex-dono, o sargentomor Gaspar de Brito. Os filhos de Úrsula eram livres, mas viviam longe da mãe. Enquanto
Úrsula residia no Termo de Mariana, seus filhos viviam na região mineira do Rio das
Mortes, sob os cuidados do capitão-mor Antônio Caetano, genro de Gaspar de Brito.398
O fato mais curioso do testamento da liberta Joana Carvalho da Silva - liberta
também alistada entre os forros mais ricos - é que ela declarou ter três filhos, todos tidos
ainda quando era solteira. Ana, a filha mais velha é caracterizada pela mãe como sendo
preta e liberta. Ana era casada com Félix de Freitas, um pardo forro que foi nomeado como
um dos testamenteiros de Joana. Os dois outros filhos de Joana eram um casal de gêmeos:
Maria e Manoel, pardos, de idade de onze anos. Maria era liberta e vivia na companhia da
mãe, mas Manoel permanecia cativo, e em poder de Manoel de Oliveira que morava no
arraial do Sumidouro.399 Não podemos afirmar, devido à ausência de informações, mas
conjecturamos que Manoel de Oliveira fosse o antigo proprietário de Joana, que a libertou,
mas que não quis, por algum motivo, libertar Manoel. Não faltava a liberta Joana condições
materiais para comprar a liberdade do próprio filho, mas os motivos que a impediam de
fazê-lo, infelizmente, nos são desconhecidos.
Mariana da Silva – forra também alistada entre os libertos mais ricos – era viúva.
Mariana havia sido casada com um carijó chamado Luciano dos Santos. Desta união,
398Arquivo
Histórico da Casa Setecentista de Mariana (doravante citado apenas como AHCSM). 2º Ofício.
Inventário post-mortem de Úrsula Azeredo. Data: 1730. Códice 88, auto 1901.
399AHCSM. 1º Ofício. Inventário post-mortem de Joana Carvalho da Silva. Data: 1774. Códice 80, auto 1693.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
451
nasceram dois filhos: Theotônio e Ana. Mas depois que Luciano faleceu, Mariana teve
outros três filhos: Antônio, Manoel e Maria. Mariana fez questão de declarar em seu
testamento que o cônjuge não havia ajudado em nada para o acúmulo do patrimônio que
ela possuía. Segundo a liberta, não era da qualidade de seu marido adquirir riquezas.400
Sheila Faria chama a atenção para o fato de existirem nos testamentos exemplos de
mulheres forras que deixavam clara sua insatisfação para com os maridos, impedindo
qualquer tentativa de posse do cônjuge sobre os bens que elas possuíam (FARIA, 2004:
114). A liberta Tereza Loureiro, moradora no Morro da Passagem em 1750, por exemplo,
ao se casar com Félix Brandão, elaborou uma escritura de arras que dava garantias de que o
cônjuge não herdaria os bens que ela havia adquirido ainda quando era solteira.401
Eduardo Paiva identificou casos de cônjuges alforriados que faziam questão de
conservar, em suas disposições testamentárias, certa independência material entre marido e
mulher (PAIVA, 2009). Também foram encontrados neste trabalho exemplos semelhantes,
como é o caso da forra Joana Paes Pena. Na época da feitura de seu testamento ela era
solteira. No entanto, deixou expressa a preocupação com a partilha de seus bens, caso
viesse a se casar:
Declaro que hoje me acho no estado de solteira mas no caso que ao futuro, ou
ao tempo de meu falecimento estiver tomado estado de casada, mando e
ordeno ao meu testamenteiro que de tudo o que importar este meu testamento
e meu inventário de bens que nele deixo declarado se me distribuirão por
minha alma na forma que deixo apontado e o dito meu marido sairá com os
bens, com que ele entrar para o casal, porque não é minha vontade que ele
tenha meação do que é meu quando ele morra primeiro também eu não quero
entrar os bens que ele possa trazer, mas assim cada um de nós sairá com aquilo
que era seu por assim contratarmos [...].402
Marco Magalhães Aguiar observou que para os forros que alcançavam uma projeção
econômica e social o casamento era um ato importante e que na Vila Rica setecentista, 51%
dos forros testadores haviam experimentado a condição matrimonial (AGUIAR, 2001: 55).
Maria Inês Cortês de Oliveira, através de pesquisa realizada para a cidade de Salvador, a
partir de testamentos e inventários de alforriados, entre 1790 e 1890, encontrou os
seguintes dados: entre os homens forros, 25,9% eram solteiros. No entanto, a maior parte
dos forros havia experimentado a condição de casados, tendo em vista que 53,6% eram
casados e 20,5% eram viúvos. A situação se repetia entre as forras: 38,1% eram solteiras,
400AHCSM.
2º Ofício. Inventário post-mortem de Mariana da Silva. Data: 1755. Códice122, auto 2456.
AHCSM. 1º Ofício. Inventário post-mortem de Tereza Loureiro. Data: 1766. Códice 123, auto 2562.
402AHCSM. 1º Ofício.Testamento de Joana Paes Pena. Livro 50.
401
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
452
mas 23,1% eram casadas, 34,7% eram viúvas (ou seja, já haviam se casado) e 4,1% não
declararam seu estado civil (OLIVEIRA, 1988: 58-59).
Eduardo França Paiva identificou que para a Comarca do Rio das Velhas, entre 1720
e 1784, os homens forros experimentaram, mais que as mulheres, a condição matrimonial,
sendo que 34,78% deles eram casados e 17,40% integravam o grupo de viúvos, concubinos
e não identificados. Os solteiros representavam 47,82%. Entre as libertas, havia um
predomínio das solteiras: 63,01% eram solteiras, 21,92% eram casadas e 15,07% estavam
entre as viúvas, concubinas e não identificadas (PAIVA, 2009: 159).
Gráfico 1: Estado civil dos forros (homens e mulheres) testadores e inventariados no
Termo de Mariana (1727-1838)
Série1; Não
consta:; 33;
20%
Série1;
Casado:;
67; 40%
Série1;
Solteiro:;
54; 32%
Série1;
Viúvo:; 13;
8%
Fontes: Testamentos e inventários post-mortem do AHCSM
A condição matrimonial foi experimentada por 48% dos libertos que pesquisamos,
considerando-se que 40% dos libertos declararam ser casados e 8% declararam ser viúvos. Segundo
Ida Lewkowicz, os forros que ascenderam economicamente em Mariana no século XVIII
perceberam as vantagens econômicas do casamento: entre os casados, houve aumento da riqueza,
pois possuíam maior número de escravos – principal forma de investimento naquela sociedade
(LEWCOWICZ, 1989: 231).
Júnia Furtado destacou que os matrimônios eram assuntos de famílias e que o amor
não esteve associado ao casamento, nem era condição necessária para a realização da união.
Segundo a autora os matrimônios visavam à construção de alianças que promovessem
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
453
social e economicamente os envolvidos, levando menos em conta os interesses pessoais
dos participantes – daí a serem denominados “casamentos de razão”. Ainda segundo
Furtado, o espaço das paixões era outro, o do amor ilícito, das relações consensuais, sendo
que: “Nas Minas Gerais, com a enorme desproporção entre homens e mulheres que lá
havia e com o crescente número de negras e mulatas, tanto escravas como forras, as
relações licenciosas se multiplicaram, com inúmeras e variadas formas de arranjos
familiares.” (FURTADO, 2003: 115-116).
Dos sete libertos mais ricos que encontramos, quatro eram casados, uma era viúva e
apenas duas eram solteiras. Desta forma, a maioria deles havia experimentado a condição
matrimonial, o que parece corroborar as asserções de Lewkowicz, de que entre os casados,
houve um aumento da riqueza. No entanto é preciso ponderar que não há um caráter de
obrigatoriedade nessa relação. Ou seja, nem sempre o casamento significaria aumento da
riqueza haja vista as declarações de Mariana da Silva, liberta alistada entre os mais ricos, que
declarou que o marido não havia contribuído em nada para o aumento de suas posses, por
ser um carijó e por não ser de sua qualidade, o acúmulo de bens.403Outro exemplo nesse
sentido é a forra Luiza da Silva Gama, liberta com o segundo maior monte-mor alistado entre
os forros. Luiza era solteira e fazia questão de ressaltar em suas declarações tal condição:
Declaro que sou solteira, livre e desimpedida e que nunca fui casada [...].
Declaro que por não ter filhos ou outros herdeiros ascendentes ou
descendentes em razão da minha naturalidade e todos os bens que ao presente
possuo foram adquiridos por minha indústria e trabalho sem que deles herdei
cousa alguma [...].404
Gráfico 2: Estado civil entre as mulheres forras testadoras e inventariadas no Termo de
Mariana (1727-1838)
403
404
AHCSM. 2º Ofício. Inventário post-mortem de Mariana da Silva. Data: 1755. Códice122, auto 2456.
AHCSM. 2º Ofício. Inventário post-mortem de Luiza da Silva Gama. Data: 1781. Códice 72, auto 1575.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
454
Série1; Não
Consta:; 23;
19%
Série1;
Solteiras:;
46; 38%
Série1;
Viúvas:; 9;
7%
Série1;
Casadas:;
43; 36%
Fontes: Testamentos e inventários post-mortem do AHCSM
Entre as forras testadoras e inventariadas pesquisadas, boa parte delas experimentou
a condição matrimonial, haja vista que 36% declararam estarem casadas e 7% declararam
estarem viúvas. Assim, 43% das libertas estiveram ou estavam casadas no momento em que
elaboraram os seus testamentos ou em que tiveram seus bens inventariados. Já as solteiras,
contabilizavam 38% e aquelas que não declararam seu estado civil, 19%. Destarte, não é
possível afirmar qual era o estado civil predominante entre as forras pesquisadas, uma vez
que 19% delas não fizeram declarações a respeito.
Contudo fazemos algumas ressalvas a estes números. Primeiramente ressaltamos a
existência das inúmeras relações envolvendo homens brancos e suas concubinas negras.
Luciano Figueiredo chama a atenção para o fato das relações ilícitas, mais que as uniões
legítimas, serem praticadas em larga escala na sociedade mineira setecentista
(FIGUEIREDO, 1997: 21-22). Decerto que uma série de fatores contribuiu para o
delineamento desta situação, em especial, a falta de mulheres de origem portuguesa para
constituírem matrimônio com os homens brancos. Assim, muitos homens brancos
estabeleceram relações com as mulheres africanas e nativas (FIGUEIREDO, 1997: 146).
Dessa forma, embora 38% das forras estivessem solteiras, não significa que as mesmas não
mantinham algum tipo de relacionamento que não fosse oficializado pela Igreja.
Ressalta-se que nesse trabalho, lidamos com mulheres libertas, que ascenderam
econômica e socialmente, portanto deve-se também considerar os apontamentos de alguns
autores sobre a comprovada convivência de algumas libertas “ascendentes” com homens
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
455
brancos de elevada posição social. No entanto, como ponderou Júnia Furtado - em estudo
sobre as libertas no arraial do Tejuco - não se pode afirmar que esta era a melhor estratégia
de inserção social, uma vez que mesmo mantendo relacionamentos com importantes
homens brancos, estas mulheres sempre eram vistas com desconfiança e continuavam
solteiras, permanecendo ilícitos seus relacionamentos conjugais (FURTADO, 2001: 51).
Além disto, é necessário ressaltar que nem todas as libertas mantiveram relacionamentos
com homens brancos que as ajudaram financeiramente.
É muito comum as libertas declararem em seus testamentos que tudo o que tinham
amealhado, o tinham feito pela sua própria “indústria e trabalho”, sem a ajuda de ninguém,
como nas declarações da liberta Tereza de Jesus. Natural da Costa da Mina, ela declarou em
seu testamento elaborado em 1782, que todos os bens que possuía eram frutos de seu
“próprio trabalho e indústria pessoal.” 405
Gráfico 3: Estado civil entre os homens forros testadores e inventariados no Termo de Mariana
(1727-1838)
Série1; Não
Consta:; 10;
22%
Série1;
Viúvos:; 4;
9%
Série1;
Solteiros:; 8;
17%
Série1;
Casados:;
24; 52%
Fontes: Testamentos e inventários post-mortem do AHCSM
405
AHCSM. 1º Ofício.Testamento de Tereza de Jesus. Data: 1783. Livro 47.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
456
Os homens solteiros forros que elaboraram seus testamentos ou tiveram seus bens
inventariados no Termo de Mariana contabilizavam 17%. Já aqueles que não fizeram
declarações acerca do próprio estado civil, somavam 22%. Ainda que estes 22% que não
declararam seu estado civil, fossem solteiros em sua totalidade, não superariam a
porcentagem dos homens forros casados. Desta forma, entre os homens forros testadores
e inventariados, moradores do Termo de Mariana, pode-se afirmar que a maior parte deles
experimentou a condição matrimonial, uma vez que 52% declararam que eram casados e
9% declararam que estavam viúvos. Assim, 61% dos homens forros testadores e
inventariados estiveram casados em algum momento de suas vidas.
À primeira vista, estes dados sugeriram uma hipótese: seria o casamento, na
localidade de Mariana, no século XVIII, um mecanismo mais utilizado pelos homens
forros, do que pelas mulheres na busca pela ascensão econômica e social? Considerando o
fato de que estariam disponíveis às mulheres forras maiores possibilidades de acúmulo de
pecúlio que aos e ascender economicamente. E era também uma forma de assegurar uma
condição melhor de vida caso sua esposa falecesse, já que a maior parte das uniões
sacramentadas acontecia no regime de “carta ametade”. Tal regime determinava a divisão dos
bens adquiridos pelo casal no caso da morte de um dos cônjuges. Mas é preciso considerar
também que o envolvimento destes homens forros – em relações não oficializadas pela
igreja – com mulheres brancas, quando existiram, não foram tão comuns.
Segundo Maria Beatriz Nizza da Silva, casos de amancebamento entre brancas e
homens de cor eram mais difíceis de acontecer (SILVA, 1998: 193). Em um estudo para as
freguesias da comarca sul da Bahia, para ano de 1813, o pesquisador Luís Mott só
encontrou três mulheres brancas amasiadas com pardos e duas com negros (MOTT, 1982:
17). Em outras palavras, os forros que ascenderam economicamente, ao contrário das
libertas, estabeleceram uniões sacramentadas com maior frequência.
Outro fator que deve ser levado em conta é o fato de que os homens forros também
se preocupavam em não dividir com as esposas os bens adquiridos ainda no estado de
solteiros. João Pereira da Cunha, preto forro, morador na freguesia de Camargos, Termo da
cidade de Mariana, casou-se com Luiza Pereira da Cunha, sob a condição de passar para a
esposa, após o matrimônio, a carta de alforria e também “com condição dela não herdar
nada de minha fazenda, por minha morte.”
406
Não só as mulheres forras declararam em
seus testamentos que tudo que tinham era adquirido por seu próprio trabalho e indústria.
406
AHCSM. 1º Ofício.Testamento de João Pereira da Cunha. Livro 51.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
457
Prova disto são as declarações testamentárias do alforriado Manoel Lopes. Morador na
Freguesia do Furquim, em 1770, o alforriado, natural da Costa da Mina, era casado com
Josefa Lopes e declarou que a esposa era meeira de seus bens, mas que “todos os bens
foram adquiridos pelo seu próprio trabalho e indústria”, 407 sem a ajuda da esposa.
Há também relatos sobre a situação de homens alforriados que compravam as suas
esposas sob a condição de alforriá-las após o casamento. Os alforriados Antônio Pereira da
Silva e João Pereira da Cunha vivenciaram tal situação. Antônio Pereira da Silva elaborou
seu testamento em 1761. Morador no Morro de Santana, no Termo de Mariana, ele não
declarou qual era a sua naturalidade. Antônio era casado com Antônia Pereira da Silva e no
decorrer de seu testamento ele relatou que comprou a esposa por um crédito, para que ela
se casasse com ele, sob a condição, de ele a libertar da escravidão. Antônio Pereira
expressou sua preocupação com a situação da esposa: ele não havia passado para ela a carta
de alforria, mas advertia que a deixava “liberta sem sujeição alguma de escravidão”.408 João
Pereira da Cunha estava em situação semelhante. Ele casou-se com Luiza Pereira da Cunha
com a condição de libertar a esposa. No entanto, como não cumpriu o que havia
prometido, deixou expresso em seu testamento que a esposa ficaria alforriada.409
Se os objetivos do casamento para os homens forros fossem estritamente
econômicos e se relacionassem ao acúmulo de bens, certamente eles não se casariam com
escravas a fim de libertá-las posteriormente. Seria mais lógico que eles se envolvessem com
mulheres também libertas a fim de somar posses. Por meio destes exemplos, passou-se a
considerar o fato de que não só as mulheres forras entrariam para o matrimônio portando
maiores cabedais. Neste sentido, compreende-se que o matrimônio para o homem forro
representaria mais do que a concretização de objetivos econômicos. Assim, mais do que
empreender uma análise quantitativa sobre a proporção do estado civil entre os alforriados
que ascenderam economicamente, acredita-se que as circunstâncias que envolviam e
condicionavam as opções destes libertos pelo casamento ou pelo estado de solteiro, devem
ser melhor trabalhadas.
Outra característica que a análise dos testamentos e inventários post-mortem dos
alforriados permite verificar é a opção deles por terem ou não filhos. Sheila de Castro
identificou que entre as alforriadas testadoras de origem africana, especialmente aquelas
407
AHCSM. 1º Ofício. Testamento de Manoel Lopes. Data: 1776. Livro 52.
408AHCSM.
409
1º Ofício. Testamento de Antonio Pereira da Silva. Data: 1762. Livro 69.
AHCSM. 1º Ofício. Testamento deJoão Pereira da Cunha. Data: 1771. Livro 51.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
458
vindas da Costa da Mina, existiu certa prática: casadas ou solteiras, a maior parte delas não
possuía filhos. A autora desenvolve uma série de argumentos para corroborar a tese de que
a ausência de filhos entre estas mulheres devia-se a uma opção premeditada.
Penso em duas hipóteses para explicar a frequente ausência de filhos entre os
forros que fizeram testamento. A primeira é a de que a criação de filhos de
alguma forma impedia que essas pessoas acumulassem pecúlio, seja pelas
despesas com crianças não produtivas, seja pela impossibilidade de exercer
certos ofícios. Assim, os ex-escravos que puderam acumular bens e,
consequentemente, redigir testamento foram os que não tiveram prole. Esta é
uma situação possível, mas creio que não tenha sido a regra. [...] Outra hipótese,
mais provável, no meu entender, é que essas pessoas, principalmente as
mulheres, não queriam ter filhos e tinham alguma prática anticonceptiva ou
evitavam relacionamentos sexuais. A infertilidade é totalmente descartada
(FARIA, 2004: 298-299).
Gráfico 4: Paternidade e maternidade entre os forros testadores e inventariados no Termo
de Mariana (1727-1838)
Série1; Não
consta:;
11%; 11%
Série1;
Tinham
filhos:; 38%;
38%
Série1; Não
tinham
filhos:; 51%;
51%
Fontes: Testamentos e inventários post-mortem do AHCSM
Seis dos sete alforriados mais ricos que encontramos tinham filhos. E embora não
seja possível saber em que momento da vida eles tiveram filhos – se antes ou depois de
acumularem pecúlios – o fato é que estes libertos ajuntaram significativo conjunto de bens
materiais. Entretanto, de um modo geral, pode-se afirmar que entre os forros testadores e
inventariados no Termo de Mariana parece ter existido uma preferência por não se ter
filhos. Do total dos alforriados pesquisados, 51% deles não deixaram herdeiros que fossem
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
459
seus descendentes diretos. Em alguns relatos dos alforriados pôde-se levantar os possíveis
motivos para esta opção.
O liberto abastado Manoel Souza era casado com Brígida Correa de Oliveira e desta
união eles tiveram seis filhos, todos ainda muito pequenos na época da morte do pai, sendo
a mais velha, Vicência de onze anos e o mais novo, Bernardo de três anos.410 Assim
também aconteceu com a outra liberta abastada, Josefa Martins. Casada com o preto forro
Manoel Pinto, Josefa faleceu e deixou a única filha que tinha ainda pequena: Luna só tinha
três anos de idade.411 Estas situações ocorridas com Manoel e Josefa podem sugerir uma
hipótese: os libertos casar-se-iam tardiamente e quando optavam por ter filhos, dentro do
matrimônio, também o realizavam em uma idade mais avançada, o que pode ter favorecido
a ausência de filhos entre os libertos testadores e inventariados.
Casados, solteiros, com ou sem filhos, preocupados com os seus bens e posses: os
alforriados pesquisados desempenharam todos esses papéis e demonstraram, através dos
documentos que nos deixaram, que eram agentes ativos, que construíram famílias e
arranjos familiares que melhor lhes convieram. Ao investigar a vida desses homens e
mulheres forros pôde-se concluir que a diversidade de situações e arranjos familiares foi
uma constante. E que talvez essa diversidade fosse realmente a única constante na vida
desses agentes. Não há como estabelecermos um padrão de comportamento para a
formação familiar dos alforriados, ao menos para aqueles que habitaram a região do Termo
de Mariana, ao longo do século XVIII e início do século XIX.
Bibliografia:
AGUIAR, Marcos Magalhães. Quotidiano da população forra em Minas Gerais do período
colonial. In: Oceanos.Viver no Brasil Colônia.Lisboa: Comissão Nacional para as Construções dos
Descobrimentos Portugueses, no 42, abril/junho, 2001.
BOTELHO, Tarcísio R. & LEEUWEN, Marco H. D. van (Org.). Mobilidade social em sociedades
coloniais e pós-coloniais: Brasil e Paraguai, séculos XVIII e XIX. 1ª Edição. Belo Horizonte: Veredas &
Cenários, 2009.
FARIA, Sheila de C. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1998.
______. Sinhás pretas: acumulação de pecúlio e transmissão de bens de mulheres forras no sudeste
escravista (séculos XVIII-XIX). In: FRAGOSO, João (org.). Escritos sobre História e Educação: uma
homenagem a Maria Yeda Linhares. Rio de Janeiro: Mauad/SAPERJ, 2001.
410
411
AHCSM. 2º Ofício. Inventário post-mortem de Manoel Souza. Data: 1788. Códice 138, auto 2792.
AHCSM. 1º Ofício. Inventário post-mortem de Josefa Martins. Data: 1754. Códice 106, auto 2183.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
460
______. Sinhás pretas, damas mercadoras: As pretas minas na cidade do Rio de Janeiro e de São João
Del Rei.Tese apresentada ao Departamento de História da Universidade Federal Fluminense.
Concurso para professor titular em História do Brasil. Niterói: (manuscrito), 2004.
______. Aspectos demográficos da alforria no Rio de Janeiro e em São João Del Rey entre 1700 e 1850. In: XVI
Encontro Nacional de Estudos Populacionais: As Desigualdades Sócio -Demográficas e os Direitos
Humanos no Brasil. Caxambu, MG. 2008.
FIGUEIREDO, Luciano R. O avesso da memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no
século XVIII. Rio de Janeiro: José de Olympio, 1993.
______. Barrocas Famílias: vida familiar em Minas Gerais no século XVIII. São Paulo: Hucitec, 1997.
______. Mulheres nas Minas Gerais. In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das mulheres no Brasil.
São Paulo: Contexto, UNESP, 1997.
FLEXOR, Maria Helena Ochi. Inventários e Testamentos como fontes de pesquisa. In:
CASIMIRO, Ana P. B. S (Org.). A pesquisa e a preservação de arquivos e fontes para a educação, cultura e
memória. Campinas, SP: Editora Alínea, 2009.
FURTADO, Júnia F. Pérolas Negras: mulheres livres de cor no Distrito Diamantino. In:
FURTADO, Júnia Ferreira (Org.). Diálogos Oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma
história do Império Ultramarino Português. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001.
______. Chica da Silva e o contratador de diamantes. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
______. As mulheres nas minas do ouro e dos diamantes. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage de;
e VILLALTA, Luiz Carlos (Org.)s. As Minas setecentistas. Belo Horizonte: Companhia do Tempo:
Autêntica, 2007, v.2; p. 483 e 484.
______. A morte como testemunho da vida. In: PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA,Tânia Regina de.
O historiador e suas fontes. São Paulo: Editora Contexto, 2009.
______. Quem nasce, quem chega: O mundo dos escravos no Distrito Diamantino e no Arraial do
Tejuco. In: LIBBY, D. C. & FURTADO, J. F. (Org.)s. Trabalho livre, trabalho escravo:Brasil e Europa,
séculos XVII e XIX. São Paulo: Annablume, 2006. P. 248.
______. O retorno como missão: O mulato Cipriano Pires Sardinha e a viagem ao Daomé. In:
BOTELHO, T. R. & LEEUWEN, M. H. D. van (Org.)s. Mobilidade social em sociedades coloniais e póscoloniais: Brasil e Paraguai, séculos XVIII e XIX. 1ª Edição. Belo Horizonte: Veredas & Cenários,
2009.
______. Transitoriedade da vida, eternidade da morte: ritos fúnebres de forros e livres nas Minas
Setecentistas.
GONÇALVES, Andréa L. As margens da liberdade: um estudo sobre a prática de alforrias em Minas
colonial e provincial. Tese apresentada ao programa de pós-graduação em História da Universidade
de São Paulo. São Paulo, 1999.
LEWCOWICZ, Ida. Heranças e relações familiares: os pretos forros nas Minas Gerais do século
XVIII. Revista Brasileira de História. São Paulo: Nº 21, p. 227 – 240, Set. 1988/fev. 1989.
_______. Espaço urbano, família e domicílio (Mariana no início do século XIX). In: Termo de
Mariana: História e Documentação. Mariana: Imprensa Universitária da UFOP, 1998.
LIBBY, D.C. e PAIVA, C.A. Alforrias e forros em uma freguesia mineira: São José d’El Rey em
1795. In: Revista Brasileira de Estudos de População, v.17, n.1/2, jan./dez. 2000.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
461
MÓL, Cláudia C. Mulheres forras: cotidiano e cultura material em Vila Rica (1750 a 180). Dissertação
apresentada ao programa de pós-graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais.
Belo Horizonte, 2002.
MONTI, Carlo G. Por amor a Deus: o processo da alforria dos escravos de Mariana (1750 –
1759).Revista do Centro Universitário Barão de Mauá, v.1, n.1, jan/jun 2001.
MOTT, Luís. Os pecados da família na Bahia de Todos os Santos, 1813. In: Cadernos do Centro de
Estudos Baianos. Salvador: Publicação da Universidade Federal da Bahia, Vol. 98, p. 17, 1982.
OLIVEIRA, Maria Inês C. de. O liberto: o seu mundo e os outros; Salvador, 1790/1890. São Paulo:
Corrupio/CNPq, 1988.
PAIVA, Eduardo França. Discussão sobre fontes de pesquisa histórica: Os testamentos coloniais.
LPH: Revista de História, nº 4, 1993/1994.
______. Escravos e libertos em Minas Gerais: estratégias de resistências através dos testamentos. Belo
Horizonte: Annablume, 1995.
______. Pelo justo valor e pelo amor de Deus: as alforrias nas Minas. In:IX Seminário sobre a
Economia Mineira, 2000.
______. Escravidão e universo cultural na colônia: Minas Gerais, 1716 – 1789. Belo
Horizonte: Editora da UFMG, 2001.
______. Depois do cativeiro: a vida dos libertos em Minas Gerais no século XVIII. In: RESENDE,
Maria Efigênia L. de & VILLALTA, Luiz Carlos (Org.)s. História de Minas Gerais - As Minas
Setecentistas. Volume um. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
SILVA, Maria Beatriz. Nizza da. História da família no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1998.
SILVEIRA, Marco Antonio. O universo do indistinto: estado e sociedade nas Minas setecentistas
(1735-1808). São Paulo: Hucitec, 1997.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
462
Redes de sociabilidades da Família Ferreira Lage: a formação da coleção de
fotografias oitocentistas no acervo do Museu Mariano Procópio – Juiz de Fora
(MG)
Rosane Carmanini Ferraz
Doutoranda em História pela UFJF/ Bolsista da CAPES-REUNI
rocarmanini@hotmail.com
Resumo: O artigo busca contribuir para a análise das redes de sociabilidades construídas
pela Família Ferreira Lage – fundadora do Museu Mariano Procópio (MMP), que
contribuíram na formação da coleção de fotografias oitocentistas no acervo desta
instituição. É fundamental compreender como seu deu a formação desta coleção, sua
trajetória, os principais doadores e possíveis critérios de organização das imagens em
álbuns. Através da análise da documentação iconográfica e da documentação escrita relativa
à procedência do acervo, pode-se observar que a formação desta coleção se deu através da
doação, da atuação pública dos membros da família Ferreira Lage e através do uso das
imagens como forma de estreitamento dos laços sociais entre as famílias abastadas no
Brasil da segunda metade do século XIX. O estudo desta coleção busca contribuir para a
compreensão da fotografia oitocentista, do gosto e das características do colecionismo das
famílias da elite brasileira do século XIX.
Palavras-chave: Colecionismo, Fotografia oitocentista, Família Ferreira Lage.
Abstract: This paper aims to contribute to the analysis of the sociability networks built by
the Ferreira Lage family – founder of the Mariano Procopio Museum (MMP). Such
network played a critical role on the formation of the 1800s photography collection of the
afore mentioned institution. It is very important to comprehend how such collection came
to be, its trajectory, who were its main donators, as well as possible organization criteria of
the images in albums. Through the analysis of the iconographic documentation and the
written documentation about the precedence of the collection, it can be perceived that the
formation of this collection happened by means of donations, public performance of the
Ferreira Lage family, and through the use of the pictures as a way of bonding among
Brazilian rich families in the second half of the 19th century. The study of this collection
looks forward to contribute to the understanding of the photography in the 1800s, of the
taste and of the characteristics of the 19th century elite families’ collectionism.
Keywords: Collectionism, Photography in the 1800s, Ferreira Lage family.
A Família Ferreira Lage e a constituição do Museu Mariano Procópio
O Museu Mariano Procópio (MMP), localizado no município de Juiz de Fora, Minas
Gerais, abriga importante e heterogênea coleção que se iniciou como um acervo particular
da Família Ferreira Lage. O personagem que dá nome ao museu foi importante
empreendedor e homem público do Império Brasileiro, ocupando diversos cargos neste
período. Fazendeiro e engenheiro, Mariano Procópio, foi o construtor da primeira estrada
de rodagem do Brasil, ligando Juiz de Fora à Petrópolis, a Estrada União & Indústria, em
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
463
1861. Neste mesmo período, fundou importante colônia de imigrantes alemães, que
contribuiu para o desenvolvimento econômico da cidade. Foi eleito deputado geral por
Minas Gerais, além de ocupar os cargos de Diretor da Estrada de Ferro D. Pedro II e das
Docas da Alfândega do Rio de Janeiro. (MUSEU MARIANO PROCÓPIO, 2006)
Por ocasião da inauguração da Estrada União & Indústria, Mariano Procópio
ordenou a construção de sua nova residência, com o objetivo de abrigar a Família Imperial
Brasileira e sua comitiva. No entanto, a construção não ficou pronta à tempo da
inauguração da estrada, ficando a Família Imperial hospedada na nova residência em
ocasiões posteriores. Na residência, conhecida como a “Quinta do senhor Lage”412, se
constituiria mais tarde o Museu Mariano Procópio. (MUSEU MARIANO PROCÓPIO,
2006)
Figura 01: Quinta do Senhor Lage, R. H. Klumb, 1861. Acervo: MMP
Após a morte de Mariano Procópio, em 1872, sua esposa Maria Amália Ferreira Lage
e os filhos Frederico e Alfredo Ferreira Lage viajaram para a Europa. Os filhos do casal
foram educados na França, reconhecido centro de referência e propagação da visão de
mundo adotada pela elite brasileira do século XIX. Esse período contribuiu sobremaneira
para a formação dos Ferreira Lage e para caracterizar o colecionismo da família.
Posteriormente, outras viagens seriam feita à Europa, aprofundando o gosto pela cultura
europeia. Em 1890, Alfredo Lage formou-se em Direito pela Faculdade de São Paulo. No
412
Edificação projetada pelo alemão Carlos Augusto Gambs.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
464
entanto, não exerceu a profissão, administrando bens familiares e empreendimentos
culturais, inclusive alguns em sociedade com o irmão, Frederico Ferreira Lage. (MUSEU
MARIANO PROCÓPIO, 2006)
Alfredo Ferreira Lage (1865-1944) se dedicou à formação de um dos mais relevantes
acervos artísticos, históricos e de ciências naturais do país. Segundo Geralda Ferreira
Armond413, Alfredo Lage teria iniciado sua coleção ainda na infância, colecionando
minerais. (PREFEITURA MUNICIPAL DE JUIZ DE FORA, 1978) Em 1915, após
herdar a residência da família, Alfredo Ferreira Lage iniciou o planejamento e montagem de
um museu particular, com características de um “gabinete de curiosidades”, um projeto de
museu enciclopédico, com um acervo composto por diversos ramos do conhecimento da
história da humanidade.
Há poucos registros sobre a organização original da coleção após a constituição do
Museu. No entanto, é possível afirmar que parte do acervo exposto na ala residencial do
MMP pertenceu ao Palácio São Cristóvão, uma das residências da Família Imperial
Brasileira. (MUSEU MARIANO PROCÓPIO, 2006) Pelas fotografias do interior do
prédio, é possível observar que os objetos da coleção se misturavam ao mobiliário e aos
objetos decorativos da residência. Ou seja, não há uma distinção clara entre os objetos
familiares e os objetos do acervo.
Em 23 de junho de 1921, Alfredo Ferreira Lage inaugurou o Museu Mariano
Procópio, com mais de 5 mil peças, abrindo as portas ao público durante as comemorações
do centenário de nascimento de seu pai. A abertura do museu significava uma homenagem
ao pai e à visão de mundo representativa da elite brasileira de sua época414, concentrando-se
na manutenção da memória da família e da história do país, através do momento que
considerava mais significativo – o segundo reinado. (PINTO, 2008)
Em 13 de maio de 1922, o prédio anexo denominado Mariano Procópio foi
inaugurado, com abertura da Galeria Maria Amália, em homenagem à sua mãe. A Galeria
possibilitou a melhor exibição e acomodação de alguns objetos e telas. O primeiro museu
de Minas Gerais foi criado portanto, pela vontade e disponibilidade financeira do
colecionador Alfredo Ferreira Lage. Em 29 de fevereiro de 1936, Alfredo Ferreira Lage
413
Prima de Alfredo Ferreira Lage e Diretora do Museu Mariano Procópio entre os anos de 1944 e 1980.
O Museu Mariano Procópio é considerado o segundo museu do país em acervo relativo ao período
imperial brasileiro.
414
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
465
efetivou a doação do Museu Mariano Procópio para a cidade de Juiz de Fora415
compreendendo todo o seu acervo, os prédios históricos e o parque416. Em 1939 foram
criados o Arquivo Histórico e a Biblioteca da Instituição, sob a coordenação de Geralda
Ferreira Armond, uma das últimas realizações do colecionador. A iniciativa demonstrava a
preocupação de Alfredo Ferreira Lage em organizar o acervo de caráter histórico e
documental. O Arquivo Histórico abrigava também a coleção de fotografias. (MUSEU
MARIANO PROCÓPIO, 2006)
Em 1944, com o falecimento de Alfredo Ferreira Lage, é elaborado o Arrolamento
dos Bens Artísticos, Históricos e Científicos do Museu Mariano Procópio, importante
fonte de pesquisa da coleção.Neste período o MMP já contava com um acervo muito
heterogêneo: joias, moedas, medalhas, indumentárias, armas, móveis, pinturas, esculturas,
porcelanas, pratarias, cristais, animais empalhados, minerais, livros, documentos,
fotografias, gravuras, entre outras categorias de objetos, com forte influência dos séculos
XIX e início do XX, conforme o gosto do colecionador.
Pela descrição do Arrolamento de 1944, é possível saber, por exemplo, que várias
fotografias da Família Imperial, da Família Ferreira Lage e outros “personagens ilustres” e
das redes de sociabilidade da família eram expostas ao público no circuito expositivo. Ao
longo do tempo, por questões de conservação, esse acervo foi recolhido ao Arquivo
Fotográfico.
As coleções de Alfredo Ferreira Lage são oriundas de aquisições em viagens, em
leilões e casas especializadas, no Brasil e no exterior, de doações como as da Viscondessa
de Cavalcanti, e de relações sociais da Família Ferreira Lage com a Família Imperial
Brasileira e outras famílias atuantes no período imperial417. Entre os doadores, destacam-se
Duque de Caxias, a própria Viscondessa de Cavalcanti e Rodolfo Bernardelli418. Os grandes
doadores foram homenageados com o nome das salas à época de constituição do MMP.
415
Algumas condições foram estabelecidas no termo de doação: perpetuidade da denominação “Mariano
Procópio”; finalidade cultural, proibição da retirada dos bens incorporados (MUSEU MARIANO
PROCÓPIO, 2006)
416 O Parque do Museu Mariano Procópio atinge uma área de78 mil metros quadrados, com projeto atribuído
a paisagista francês Auguste Marie Glaziou. (MUSEU MARIANO PROCÓPIO, 2006)
417
As fotografias e cartões postais com correspondências e dedicatórias no Arquivo Fotográfico e as cartas,
bilhetes e telegramas no Arquivo Histórico do Museu Mariano Procópio demonstram a proximidade das
relações sociais entre a Família Imperial Brasileira, mesmo após a Proclamação da República, e a Família
Ferreira Lage e a Família Cavalcanti (FERRAZ, 2011).
418 A ligação de Alfredo Ferreira Lage com a pintora espanhola Maria Pardos, aluna da Escola Nacional de
Belas Artes, estreitou as relações com artistas como os irmãos Bernardelli e Rodolfo Amoêdo.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
466
O colecionismo de fotografias oitocentistas e a redes de sociabilidades tecidas pela
Família Ferreira Lage:
O colecionismo de fotografias se popularizou através da criação dos formatos carte-de
visite e carte-cabinet - fotografias montadas sobre cartão, nos formatos 10,5 x 6,5 cm e 16 x
10,5 cm, respectivamente, muitos populares no século XIX (FUNARTE, 2009). A
possibilidade de feitura de cópias propiciou a criação dos álbuns de retratos de família.
Estes álbuns eram peças de fabricação artesanal, muitos com encadernação em couro,
fechos e cantoneiras de metal ornamentado. Um álbum “podia condensar a saga familiar, já
que os antepassados falecidos antes do advento da fotografia poderiam ser contemplados
através da reprodução de desenhos, gravuras ou pinturas, numa versão visual das árvores
genealógicas” (VASQUEZ, 2002).
O gosto pelo colecionismo de fotografias incluía a aquisição de retratos de grandes
personalidades da cena política e cultural, adquiridos nos estúdios fotográficos. Parte destes
retratos eram reproduções de desenhos, gravuras ou pinturas. Na coleção de fotografias
oitocentistas do MMP estão presentes retratos de Napoleão Bonaparte e suas esposas, e de
grandes cientistas e músicos e artistas da história da humanidade, como Rafael Sanzio,
Chopin, Mozart, Wagner e Beethoven. Pensadores do iluminismo e filósofos também
tiveram pinturas ou desenhos retratados e integram a coleção, como Rousseau, Condorcet,
Voltaire, Kant e Spinoza, além de importantes escritores da literatura universal como
Cervantes, La Fontaine, Molière e Shakespeare. Os retratados contemplados nos álbuns
denotam a relevância da cultura universal no colecionismo da Família Ferreira Lage.
Segundo Philipp Blom,
Cada coleção é um teatro da memória, uma dramatização e uma mise-em-scène de
passados pessoais e coletivos, de uma infância relembrada e da lembrança após
a morte. Ela garante a presença dessas lembranças por meio dos objetos que as
evocam. É mais do que uma presença simbólica: é uma transubstanciação. O
mundo além do que podemos focar está dentro de nós e através delas, e por
intermédio da comunhão com a coleção é possível comungar com ele e se
tornar parte dele. (2003:219)
A origem da coleção de fotografias do Museu Mariano Procópio confunde-se com a
própria história da família Ferreira Lage. Há registros de álbuns que pertenceram à Mariano
Procópio419 e Maria Amália Ferreira Lage. Em viagem à Europa, Maria Amália foi retratada
419
Em viagem à Europa, Mariano Procópio teria conhecido Louis-Jacques-Mandé Daguerre e se interessado
pelo sucesso da daguerreotipia. (PINTO, 2008) Daguerre foi o primeiro inventor a patentear um processo
fotográfico, chamado daguerreotipo, em 1839, na França.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
467
por Eugène Disdéri, célebre inventor do formato carte de visite, como demonstra a figura
03.
Figura 02 (à esquerda): Mariano Procópio Ferreira Lage, Insley Pacheco, cerca de
1860. Acervo: MMP
Figura 03 (à direita): Maria Amália Ferreira Lage, Disdéri, c. de de 1866. Acervo:
MMP
Os filhos do casal, Alfredo e Frederico Ferreira Lage, eram fotógrafos amadores
vinculados ao fotoclubismo. Alfredo Ferreira Lage foi presidente do Photo Clube do Rio
de Janeiro. Segundo Adriana Pereira (2010), foi o mais ativo dos fotógrafos amadores do
Clube, chegando a publicar 11 fotografias na Revista Renascença. Foi premiado na Primeira
Exposição do Photo Club, em 1904. Foi premiado ainda com medalha de ouro na
Exposição Nacional de 1908, no Rio de Janeiro. Apresentou seus trabalhos na França e na
Exposição Internacional da Indústria e do Trabalho em Turim, em 1911 (FERRAZ, 2012).
Parte dessas imagens de Alfredo Ferreira Lage integrou o circuito expositivo do MMP,
conforme consta no Arrolamento de 1944, compondo dois grandes quadros (número de
arrolamento 233), com legendas em francês, que já ficavam expostos da Villa (“Castelo”),
no primeiro andar (hall e corredor).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
468
Figura 04: Alfredo Ferreira Lage, L. Musso & Cia, c. de 1905. Acervo: MMP
A prima de Alfredo e Frederico, Amélia Machado Cavalcanti420, Viscondessa de
Cavalcanti, também esteve intimamente ligada à cultura visual do século XIX e início do
século XX. Foi importante doadora de acervo ao Museu Mariano Procópio, especialmente
ao Arquivo Fotográfico, com álbuns de fotografias e cartões postais. Entre suas doações
destacam-se os álbuns da Exposição Universal de 1889421 e 1900 e vasta coleção de cartões
postais sobre temáticas diversas: a Família Imperial, paisagens e monumentos de diversas
regiões do Brasil e do mundo, catedrais, além de uma série alusiva à Primeira Guerra
Mundial.
420
Esposa de Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque, político e magistrado do Império Brasileiro.
Colecionadora de fundamental importância para o acervo do Museu Mariano Procópio. De cultura refinada,
era profunda conhecedora em numismática, era botânica, musicista, cartofilista. Dou estatuetas, leques, telas,
medalhas entre outros objetos ao Museu Mariano Procópio.
421 A Viscondessa de Cavalcanti atuou junto ao marido, que foi comissário-geral do Brasil na Exposição
Universal de 1889, em Paris, em que se comemorava o centenário da Revolução Francesa. O Museu Mariano
Procópio abriga significativo acervo sobre as Exposições Universais, entre objetos, documentos, livros e
fotografias, fruto da participação dos Cavalcanti no evento.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
469
Figura 05: Viscondessa de Cavalcanti, Numa Blanc Fils, cerca de 1880. Acervo: MMP
A identificação e análise das redes de sociabilidades construídas pela Família Ferreira
Lage – fundadora do Museu Mariano Procópio (MMP), na figura de Alfredo Ferreira Lage,
são fundamentais para a compreensão de como se deu formação da coleção de fotografias
oitocentistas no acervo deste museu. Nesse sentido, é importante compreender como seu
deu a formação desta coleção, sua trajetória, apontando os principais doadores, possíveis
critérios de organização das imagens em álbuns, os interesses e gostos no que se refere ao
colecionismo de fotografias no contexto do século XIX.
Em outras coleções do MMP, a procedência através de aquisição em leilões é
bastante comum. Através da análise da documentação iconográfica e da documentação
escrita relativa à procedência do acervo, pode-se observar que, na coleção de fotografias
oitocentistas, a formação se deu de formas variadas: a doação, aquisição, atuação pública de
membros da Família Ferreira Lage, e especialmente, o uso das imagens como forma de
estreitamento dos laços sociais entre as famílias abastadas no Brasil da segunda metade do
século XIX. As imagens da Coleção da Família Imperial. O acervo de caráter privado e
familiar, especialmente as fotografias, foi incorporado à coleção do MMP, assumindo um
caráter de documentação pública.
Dentre os temas que envolvem a fotografia oitocentista no acervo do MMP,
destacam-se a coleção de fotografias da Família Imperial Brasileira422, que evidenciam as
422A
presença de fotografias da Família Imperial Brasileira numa coleção, por si só, não representa estreitas
relações sociais e influência na corte, já que imagens da Família Imperial podiam ser livremente adquiridas em
ateliês fotográficos no Brasil e no exterior. Porém, este não é o caso da coleção do MMP, já que muitas dessas
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
470
relações entre a Família de Mariano Procópio e os soberanos do Império, que mesmo após
o exílio, continuaram mantendo relações e contatos com Alfredo Lage e a Viscondessa de
Cavalcanti. Algumas imagens registram as diversas visitas de membros da Família Imperial
à residência, desde a época de Mariano Procópio, até encontros com Alfredo Ferreira Lage
e Geralda Armond, já como Museu.
A coleção contempla ainda álbuns e fotografias avulsas, nos formatos “carte de
visite” e “carte cabinet”. Entre os retratados estão os membros da Família Imperial, a
própria Família Ferreira Lage e outros membros de famílias abastadas do Império,
personalidades e da nobreza da época, especialmente a europeia. A nobreza austríaca e
Napoleão III, imperador francês, tem papel de destaque na coleção. Os chamados “tipos
humanos”, de turcos a árabes, de negros a indígenas são significativos no acervo.
Destacam-se os tipos retratados em suas atividades profissionais como soldados,
bombeiros, vendedores dos mais variados, sacerdotes, engraxates, limpadores de chaminés,
entre outros.
Apesar de o retrato ter sido o tema predominante no século XIX, a coleção guarda
significativas imagens da cidade de Juiz de Fora, do Rio de Janeiro e outras cidades do
Brasil e do mundo em diversos períodos.
Uma das possibilidades de formação da coleção de fotografias do MMP se deu
através da aquisição. A Família Ferreira Lage e a Viscondessa de Cavalcanti adquiriram
alguns exemplares, tanto de retratos quanto de “vistas panorâmicas”, de fotógrafos
consagrados do século XIX, o que demonstra o gosto por colecionismo de fotografias,
comum entre a elite oitocentista. Entre os fotógrafos podemos citar Marc Ferrez,
Leuzinger, R. H. Klumb, e fotógrafos de referência internacional como Angerer,
Reutlingler, Nadar, Giorgio Sommer, Pascal Sebah e Neurdein. Entre os álbuns adquiridos,
importantes coletâneas de cidades europeias como Milão, Roma, Marienbad e
Constantinopla.
Acreditamos que as amplas redes de sociabilidade construídas ao longo do tempo
pela Família Ferreira Lage também possam ter contribuído de forma significativa para a
constituição do acervo fotográfico, especialmente do que diz respeito às fotografias
oitocentistas.
fotografias e cartões postais são autografados e vários contem algum tipo de comunicação escrita. Há ainda
diversos elementos que ratificam a relação entre a Família Imperial e a Família Ferreira Lage, que extrapolam
o objetivo deste artigo.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
471
Entre as redes de sociabilidades criadas pela Família Ferreira Lage, podemos as
relações com a Família Velho de Avelar. Um dos álbuns de retratos em formato carte de
visite, pertencente à coleção, foi doado pela Família da Baronesa de Muritiba423, Maria José
Velho de Avellar, filha do Visconde de Ubá, casada com Manoel José Vieira Tosta, barão
de Muritiba. A Baronesa de Muritiba era amiga íntima da Princesa Isabel e sua dama de
companhia. Residiu por um tempo em Juiz de Fora, onde o marido foi magistrado.
Raros daguerreótipos do Senador Firmino Rodrigues Silva e da esposa podem
demonstrar as relações deste importante politico mineiro do século XIX com a Família
Ferreira Lage. Nas fontes pesquisadas não foi possível identificar a forma de entrada desses
objetos, mas há possibilidade de que tenham entrado no acervo através de doação, uma vez
que o daguerreótipo é uma imagem única, sem cópias. Essas imagens certamente
pertenciam à família e podem ter entrado no MMP através de doação. No arrolamento de
1944, foi possível identificar que os daguerreótipos ficavam expostos na Galeria Maria
Amália, integrando a coleção de Alfredo Ferreira Lage. Há ainda outros objetos (uniforme
e placa da Ordem da Rosa) e documentos do Senador Firmino Rodrigues no acervo do
MMP. Alguns desses objetos ficavam expostos na Sala Conde de Prados, segundo o Guia
Histórico do MMP.
423 Descrição da doação: “Um álbum duplo CDV, com capa ornamentada e cantos lavrados, de origem alemã
(Munich), contendo photografias de testas coroadas, datando até 1868 e alguns posteriores da Família
Imperial etc. Ao todo 75 photographias”. Arquivo Histórico: Pasta MMP/AFL-02, álbum doado em 1929.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
472
Outro personagem presente na coleção é Pedro Antônio Freez, Tenente da Guarda
Nacional. Nas fontes pesquisadas não foi possível apontar a forma de entrada da fotografia
de grandes proporções no acervo, o que pode ter se dado por doação. O Guia Histórico do
MMP indicava que a imagem ficava exposta na Sala Duque de Caxias, com outros objetos
deste militar brasileiro.
Duas importantes fotografias da Guerra do Paraguai e uma fotografia do Barão João
Ribeiro de Almeida, conselheiro do Império e médico da Família Imperial, foram doadas
pela família, na figura da filha, Cecília Ribeiro de Almeida.
Há na coleção algumas fotografias do Conde Mota Maia e esposa, do Duque e
Duquesa de Caxias, Barão e Baronesa de São Joaquim e José Bonifácio de Andrada e Silva.
A Família Armond, lado paterno de Alfredo Ferreira Lage, também continuou fazendo
doações para o MMP, como as fotografias do Conde de Prados.
As trocas de fotografias e doações destes documentos ajudam a compreender “as
formas de ser e pensar do século XIX, assim como permitem compreender as complexas
redes de sociabilidade do período” (MUSEU MARIANO PROCÓPIO, 2006: 30) e as
práticas de auto-representação da elite oitocentista.
Essas redes de sociabilidades se mantiveram ao longo do tempo, mesmo após a
criação e transformação do Museu Mariano Procópio em uma instituição pública. Após o
falecimento de Alfredo Ferreira Lage, as doações não cessaram. Geralda Armond
mobilizou membros da família e amigos da rede de sociabilidade para a ampliação do
acervo. Os sobrinhos de Alfredo Ferreira Lage fizeram importantes doações neste período.
Muitos conselheiros do Conselho de Amigos do MMP424 são descendentes de
famílias com as quais os Ferreira Lage mantiveram laços sociais desde o século XIX e início
do século XX. Algumas dessas famílias se transformaram, além de membros do Conselho,
em importantes doadores de acervo ao MMP como a Família Ribeiro de Oliveira, Família
Surerus e Família Arcuri.
A atuação pública da família Ferreira Lage também contribuiu de forma decisiva para
a formação da coleção de fotografias oitocentistas. Há no acervo uma fotografia
panorâmica da propriedade de Mariano Procópio, intitulado “Chateau de Juiz de Fora”, de
fotógrafo não identificado. A panorâmica foi oferecida por Mariano Procópio à Comissão
424
Alfredo Ferreira Lage foi criador e o primeiro presidente do Conselho de Amigos do MMP. Sua criação
consta na cláusula sexta da escritura de doação da instituição ao município. Não tem função executiva e
administrativa, mas tem como objetivos principais zelar pelo cumprimento dos termos da doação e cooperar
pelo engrandecimento do museu. Composto por 30 membros. Os 30 primeiros foram nomeados pelo
próprio colecionador. (MUSEU MARIANO PROCÓPIO, 2006)
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
473
Imperial da Exposição Universal de 1867. Mariano Procópio participou desta exposição
como expositor e Membro da Comissão Imperial. Outro exemplo são os retratos
autografados por artistas que se apresentaram no Teatro Juiz de Fora, empreendimento dos
irmãos Alfredo e Frederico Ferreira Lage, criado em 1889 e que funcionou até a década de
1920.
A atuação pública da Família Cavalcanti também contribuiu para a formação da
coleção, com álbuns da Exposição Universal de 1889 e 1900. Há ainda o cartão de
credenciamento da Viscondessa na Exposição de 1889.
O gosto pelo colecionismo de fotografias no século XIX contempla a acumulação de
retratos de importantes personalidades da época, tanto no Brasil quanto no exterior, como
é o caso de Alan Kardec, da atriz francesa Sarah Bernhard, dos escritores Victor Hugo,
Alexandre Dumas, Theóphile Gautier, além de Garibaldi, e Agassiz425.
Parte das fotografias e cartões postais da coleção foi autografado e/ou contem
breves comunicações, o que demonstram o uso social dessas imagens neste período. A
análise dessas mensagens aliada à analise iconográfica são importantes ferramentas de
compreensão da tessitura dessas redes das famílias da elite no século XIX e início do século
XX.
O estudo sobre a relação entre as redes de sociabilidades da família Ferreira Lage e
formação da coleção de fotografias oitocentistas no acervo do MMP busca contribuir para
a compreensão da fotografia oitocentista, para a análise dos usos sociais da fotografia na
construção de redes de sociabilidade e do gosto e das características do colecionismo das
famílias da elite brasileira do século XIX.
Referências Bibliográficas:
BLOM, Philipp. Ter e Manter: uma história íntima de colecionadores e coleções. Rio de
Janeiro: Record, 2003.
FERRAZ, Rosane Carmanini (org.) Catálogo Família Imperial Brasileira no acervo do
Arquivo Fotográfico do Museu Mariano Procópio. Juiz de Fora (MG): Museu Mariano
Procópio, 2011.
425
Naturalista suíço que, em viagem no Brasil, visitou a Estrada União Indústria.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
474
FERRAZ, Rosane Carmanini (org.) Catálogo A fotografia amadora e a família Ferreira
Lage: Alfredo e Frederico Ferreira Lage. Juiz de Fora (MG): Museu Mariano Procópio,
2012.
Clara Mosciaro (org.). FUNARTE/ Diagnóstico de conservação fotográfica no Brasil.
Rio de Janeiro: FUNARTE, 2009.
MUSEU MARIANO PROCÓPIO. São Paulo: Banco Safra, 2006.
PEREIRA, Adriana Maria Pinheiro Martins. A cultura amadora na virada do século
XIX: a fotografia de Alberto de Sampaio (Petrópolis/Rio de Janeiro, 1888-1914). São
Paulo: PPGHS/USP, 2010 (tese de doutorado).
PINTO, Rogério Rezende. Alfredo Ferreira Lage, suas coleções e a constituição do
Museu Mariano Procópio – Juiz de Fora, MG. Juiz de Fora: PPGH/UFJF, 2008.
(dissertação de mestrado)
PREFEITURA MUNICIPAL DE JUIZ DE FORA. Arrolamento dos bens artísticos,
históricos e científicos do Museu Mariano Procópio. Juiz de Fora, 1944
Geralda Armond (org.). Guia histórico do Museu Mariano Procópio. Juiz de Fora:
PREFEITURA MUNICIPAL DE JUIZ DE FORA., 1978
VASQUEZ, Pedro Karp. A fotografia. In: MORAES ARGON, Maria de Fátima. Família
Imperial: álbum de retratos. Petrópolis: Museu Imperial, 2002. (cd-rom)
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
475
Simpósio Temático 03:
História da Historiografia e Teoria da História
Fundamentos da ciência da História a partir do pensamento de Jörn Rüsen
Ana Paula Hilgert de Souza
Mestranda em História pela UFGD / Bolsista CAPES
paulahilgert.ufgd@gmail.com
Resumo: A racionalidade é o eixo do pensamento histórico do alemão Jörn Rüsen. A
partir dela a práxis do historiador é estruturada, ou construída. Para conviver em harmonia
com a prática do trabalho de historiar, Jörn Rüsen identifica na reflexão, o elemento capaz
de fundamentar a ciência da história. Ao abordar na obra Razão Histórica o pensamento
histórico científico, Rüsen pretendeu evidenciar a questão da legitimidade e da
cientificidade na História. Discursando acerca da função racionalizadora da pragmática textual, o
autor em questão apontou o significado da teoria da história para a historiografia, fazendo
o uso e refletindo sobre o que ele chamou de teoria da teoria da história – metateoria. Nesse
artigo, pretendo propor diálogos e reflexões acerca do pensamento do alemão Jörn Rüsen,
articulando, entre outras abordagens, a maneira como o conhecimento histórico se
reestrutura. Assim, pretendo tornar perceptível que esse conhecimento não se modifica, o
que muda são as perspectivas de análise ou as ideias acerca de determinado objeto.
Palavras-chave: 1) Metateoria; 2) Racionalidade; 3) Conhecimento Histórico
Abstract: Rationality is the axis of the historical thought Jörn Rüsen. From there the
practice of the historian is structured or constructed. To live in harmony with the work
practice of recounting, Jörn Rüsen reflection identifies the element able to support the
science of history. Addressing the book Historical Reason scientific historical thought,
Rüsen intended to highlight the issue of legitimacy and in scientific history. Speaking about
the purpose of rationalizing pragmatic text, the author in question pointed out the
significance of the theory of history to historiography, making the use and reflecting on
what he called the theory of historical theory - metatheory. In this article, I propose
dialogues and reflections on the thought of German Jörn Rüsen, linking, among other
approaches, how historical knowledge is restructured. So, I want to become apparent that
this knowledge does not change, what changes are the analytical perspectives or ideas about
a given object.
Keywords: 1) metatheory, 2) Rationality, 3) Historical Knowledge
A obra Teoria da História: Os Princípios da Pesquisa histórica, dividida em três volumes é
o resultado de uma década de reflexões condizentes aos limites, fundamentos e
possibilidades do conhecimento histórico. Reflexões estas que foram elaboradas pelo
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
476
alemão Jörn Rüsen, historiador que desde a década de 1960 (com sua tese de doutorado
sobre o pensamento de Droysen) tem militado no campo da teoria da história.
Os três volumes da obra são: Razão Histórica, Reconstrução do Passado e
História Viva (publicados, respectivamente em sua versão original em 1983, 1986 e 1989).
Explanar-se-á a introdução e o capítulo 1 do terceiro volume da obra426.
O titulo: Razão histórica427 têm dois objetivos: indicar os fundamentos do
conhecimento científico e abordar a pretensão da racionalidade que a ciência da história
possui com relação a seu modo específico de pensar historicamente.
Jörn Rüsen questiona acerca da razão na história, indagando se a história
possui um sentido cognoscível na medida em que procura descobrir como se constitui o
pensamento sobre a história que se apresenta como ciência. Para o autor, há uma carência
que desafia a ciência por dois motivos: o primeiro é a racionalidade do tratamento da história e, o
segundo a reflexão humana sobre a história, cuja finalidade é obter um conhecimento histórico
com o qual se pode situar qualquer um no processo do tempo.
Rüsen elenca uma série de indagações em sua obra, tais como: É possível que a
ciência da história se considere racional e ao mesmo tempo, se declare incompetente para
tratar da questão acerca da razão na história? Como engajar a pretensão de racionalidade da
ciência da história justamente na questão referente à presença da razão na história? O que
tem a ver uma teoria sobre a ciência da história com a própria teoria da história? Por que
razão a pesquisa empírica deveria seguir as recomendações de pensar a si mesma e deixar-se
guiar por considerações teóricas, das quais não se tem certeza, desde o inicio, se o como
desembocariam na práxis da pesquisa histórica e na historiografia? Do que o pensamento
histórico deve prestar contas, se quiser ser científico? E que forma deve tomar essa
prestação, para poder ser reconhecida como um modo de pensar que a ciência da história
integre em seu potencial de racionalidade? De acordo com Jörn Rüsen, a teoria da história
tem por objetivo analisar o que sempre foi a base do pensamento histórico em sua versão
científica e que, sem a explicitação e a explicação por ela oferecidas, nunca passaria de
pressupostos e de fundamentos implícitos.
426
Contudo, a divisão desse volume pode ser dada da seguinte maneira: Rusen pretende definir os princípios,
tarefas e funções da teoria da história no capítulo 1. No capítulo 2, o autor verifica como na vida prática dos
homens o pensamento histórico se constitui. No terceiro capítulo o autor pretende analisar a constituição dos
métodos na ciência histórica e, por fim no capítulo 4,Rusen aborda a construção da narrativa na teoria da
história.
427Rüsen trabalha com os seguintes definições de: a) História: processo temporal do agir racional humano
em geral; b) Ciência da História: historia como produto da operação cientifica da história
acadêmica/investigativa; c) História enquanto e como ciência: processo histórico de regulação metódica
da pesquisa que leva ao conhecimento genético a plausibilidade racional e controlável da ciência.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
477
Com a teoria, o pensamento histórico expande sua capacidade de
fundamentar-se e de criticar-se. Razão, no pensamento de Jörn Rüsen, designa o que
caracteriza o pensamento histórico que se processa na forma de um debate movido pela
força do melhor argumento. Os conceitos tendem a esclarecer-se quando o pensamento
histórico reconhece sua aptidão à racionalidade também na operação de explicitar-se por
seus princípios.
A auto-reflexão é um elemento vital no dia-a-dia da ciência.
Não se pode de forma alguma pensar um processo histórico de conhecimento em que o
próprio sujeito do conhecimento deixasse de debruçar-se sobre si mesmo. Na concepção
de Rüsen, o cotidiano do historiador constitui a base natural da teoria da história e, a
efetivação teórica ganha, no paralelo com a prática, amplitude e profundidade.
A teoria da história é aquela reflexão mediante a qual o pensamento histórico se constitui como
especialidade científica. Mas isso não ocorre automaticamente, é necessário que os profissionais
sejam especialistas no manejo da especificidade científica do pensamento histórico.
A competência especializada do historiador começa no estudo da história, a fim de
formar um conjunto e é através da teoria que essa visão é adquirida. Mas o que a teoria da
história põe em evidência como a “totalidade” da ciência da história? O autor propõe uma
reconstituição do processo lógico dedutivo partindo do ponto onde a vida corrente surge
como consciência histórica ou o pensamento histórico que está instaurado na carência
humana de orientação do agir e do sofrer os efeitos das ações no tempo.
Os interesses são determinados por carências cuja satisfação pressupõe, da
parte dos que as querem satisfazer, que esses já as interpretem no sentido das respostas a
serem obtidas. Eles são abordados pela teoria da história a fim de poder expor, partir deles,
o que significa pensar historicamente e por que se pensa historicamente.
Rüsen propõe um modelo de estudo para explicar as funções da ciência da história.
Esse modelo estrutura-se sob a forma de uma matriz disciplinar. O primeiro fator da dela é
formado pelas carências fundamentais que se articulam na forma de interesses cognitivos
pelo passado. O segundo fator decorre da resposta à pergunta: como e possível que se
constitua algo chamado “história” quando as carências dos homens na prática de suas vidas
no tempo são satisfeitas? Devem-se instituir critérios de sentido porque são eles que
regulam o trato reflexivo dos homens com seu mundo e consigo mesmo.
O agir humano é sempre determinado por significados e é intencional. As
ideias são os referenciais supremos que emprestam significados à ação e à paixão. Elas
servem à transformação de carências motivadoras em interesses em agi e constituem as
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
478
perspectivas gerais nas quais o passado aparece como história, formando modelos de
interpretação e orientação da práxis humana no tempo.
As ideias também são fatores da matriz disciplinar da ciência
histórica que se incluem no segundo lugar. Delas depende o instrumental que o historiador
traz consigo, ao formular suas conjunturas e ao interrogar as fontes acerca do que ocorreu
no passado. Isso porque, nas fontes, não se pode reconhecer um passado que faça sentido
como história. É essa inclusão da experiência concreta do tempo do passado que constitui
propriamente o processo do conhecimento histórico. Os métodos da pesquisa empírica
constituem o terceiro fator dos fundamentos da ciência da história. Funcionam como
regulação do pensamento histórico, o que lhe possibilita produzir fundamentações
específicas e lhe permite assumir o caráter de pesquisa, cujo conhecimento se exprime na
historiografia (quarto fator), para a qual as formas de apresentação desempenham um papel
tão relevante quanto o dos métodos para a pesquisa.
A ciência da história assume funções de orientação existencial
(quinto fator) na medida em que se quer saber por que é racional fazer história como
ciência e em que consiste essa “racionalidade”.
A interdependência dos cinco fatores: interesses (carências
de orientação no tempo, interpretadas); ideias (perspectivas orientadoras da experiência do
passado); métodos (regras da pesquisa empírica); formas (de apresentação); funções (de
orientação existencial); do pensamento histórico é patente: em conjunto, eles constituem
um sistema dinâmico, no qual um leva ao outro, até que, do quinto volta-se ao primeiro.
Esses cinco fatores, ao se articularem na matriz disciplinar da ciência da história
adquirem a especificidade que permite distinguir o pensamento histórico constituído
cientificamente do pensamento histórico comum. A matriz disciplinar possui duas outras
vantagens que são interdependentes: a) ela esclarece o contexto em que se relacionam a
ciência da história e a vida prática dos homens no respectivo tempo; b) permite reconhecer
que a história como ciência contribui para as mudanças na vida pratica dos homens no
tempo.
Significado da Teoria da História para o estudo da História
Para responder a pergunta: Qual é a função da Teoria da História? Jörn Rüsen
propõe a seguinte resposta: é da teoria que necessitamos para aprendermos a ver
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
479
corretamente a floresta e não nos perdermos na imensidão das árvores.
Cientificamente, isso quer dizer que a teoria tem o papel de profissionalização
didática dos historiadores, em que, deve-se aplicar na práxis uma reflexão metateórica
acerca da matriz disciplinar.
Para aperfeiçoar o questionamento referente a função da teoria da historia, Jörn
Rüsen elencou 6 pontos de explicação ou 6 funções da teoria: propedêutica, coordenadora,
motivadora, organizadora, de fundamentação e mediadora.
A Função Propedêutica seria, tecnicamente, uma introdução correta para o estudo
da história ou entende-se essa função como a primeira da teoria da história na inicialização
dos estudos históricos.
A Função Coordenadora é entendida como a combinação eficaz de
diferentes disciplinas, benefícios da interdisciplinaridade. Rüsen fala da necessidade e da
capacidade de complementação da história.
Já, a Função Motivadora diz respeito ao dilema objetividade versus
subjetividade. O autor aponta que no início da carreira acadêmica há uma pressão nos
alunos acerca da necessidade da objetividade, mas para Rüsen levar a objetividade ao pé da
letra pode concorrer para a perda de potencial na pesquisa histórica.
Função Organizadora diz respeito à gestão da quantidade do
material de pesquisa. Aqui tentamos aplicar o entendimento acerca: da escolha do objeto;
do recorte temporal e da escolha da opção teórico-metodológica.
Na
Função
de
Fundamentação
estaria
a
correspondência entre o gerenciamento do material da pesquisa, conciliação entre os
requisitos científicos e a economicidade do trabalho e a justificativa das escolhas. Sempre
presente a auto-reflexão.
Por fim, apresenta-se a Função
Mediadora, a qual entende-se como a condução da futura prática profissional. Essa última
função elencada por Jörn Rüsen trata da mediação entre teoria e prática na
profissionalização do historiador, o que acarretaria em competência profissional.
Rüsen observa que a teoria da história não precisa, necessariamente, atuar como
instrumento da ciência para se atingir a profissionalização do historiador. O caminho para a
ocorrência da independência intelectual dar-se-ia por meio da auto-reflexão. Mais do que
profissionalizar a ciência histórica, o pensamento histórico científico deve condicionar a
união entre objetividade e subjetividade. Esse seria, entre outros, o sentido da teoria:
ocupar um papel fundamental na reflexão referente a elaboração do saber, refletir não é
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
480
somente elaborar mas também promover uma auto-reflexão do pensamento histórico que toma
forma no trabalho cotidiano da pesquisa histórica. (RUSEN, 2001: p.25-6)
Significado da Teoria da História para a pesquisa histórica
Com a pesquisa, criam-se instrumentos de análise e desenvolvem-se formas de
problematização, mas, a pesquisa não é concebível sem a reflexão acerca do processo de
investigação. Os interesses devem ser canalizados para a força que move o progresso
cognitivo da ciência da história, ou seja, as pesquisas que tem surgido nesse século precisam
direcionar-se para temáticas quem venham a contribuir com o progresso do conhecimento
histórico, para que se ampliem os debates referentes a cientificidade da história. Pesquisar
sustentadas e elaboradas podem legitimar o ofício do historiador.
Jörn
Rüsen
tenta
relacionar as seis funções trabalhadas anteriormente, aplicando-as na pesquisa histórica.
Contudo, é a função teórica de fundamentação a responsável por produzir um progresso
cognitivo (entendido como aperfeiçoamento do conhecimento científico). Portanto, a
condição para o processo de progresso cognitivo é a teoria historia, acompanhada da
metateoria (da teoria da teoria da história).
O
autor
lembra que as ideias, as perspectivas que orientam a pesquisa sobre o passado trazem para a
pesquisa histórica novas articulações com o conhecimento outrora produzido. Mas, ao
mesmo tempo, faz questão de apontar que a pesquisa não aperfeiçoa o conhecimento
acerca de um determinado objeto. Contudo, o autor identifica que a pesquisa é uma etapa
importante porque reestrutura um conhecimento sobre o passado.
Significado da Teoria da História para a historiografia
Nos últimos decênios do século passado, a escrita da história percorreu caminhos
que a levaram a passar por profundas transformações no que se refere as teorias do
conhecimento, em suas diversas áreas. Essas rupturas epistemológicas advindas com a
renovação historiográfica, sobretudo do Annales, passaram a debater questões que
priorizavam a dúvida e a incerteza da história enquanto campo de conhecimento.
A problematização das observações filosoficamente construídas acerca da narrativa
histórica – metanarrativa – concorreu para que a própria história fosse posta sob a dúvida,
sendo, por vezes “negada” por alguns escritores que passavam a desconfiar das verdades
históricas estabelecidas ao longo do tempo.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
481
É, por meio de um sistema de referências, que o historiador, faz, no dia a dia de seu
ofício, o enquadramento do que lhe convém para a historiografia e, também trata de excluir
os dados que não lhe proporcionam conteúdo empírico. Michel de Certeau, em A Escrita da
História (1982) indica que o historiador recorta a experiência e estabelece um jogo de afastar
e incluir dados para, posteriormente produzir sua obra – a operação historiográfica. Assim,
mais do que um procedimento epistemológico, a escrita da história seria determinada por
posicionamentos ora políticos, ora estratégicos, já que essa operação se relaciona com
posturas variadas. Nas palavras do autor,
(...) a historiografia tem, esta particularidade de aprender a invenção escrituária
na sua relação com os elementos que ela recebe, de operar onde o dado deve
ser transformado em construído, de construir as representações com os
materiais passados, de situar, enfim, nesta fronteira, do presente onde
simultaneamente é preciso fazer da tradição um passado (excluí-la), sem perder
nada dela (...). (CERTEAU, M. 2006, p. 18).
Ao praticar a historiografia, o historiador encontra-se em uma incessante busca
pelos resultados que melhor o satisfaça. Ele migra de fonte em fonte e fixa-se naquela que
lhe proporciona um diálogo capaz de normatizar a sua prática e tornar seu trabalho
peculiar, uma vez que, na consciência do historiador ele sabe que seus pares farão a leitura
de seu trabalho. É nesse ponto que Certeau argumenta que no trabalho da escrita histórica
não existe objetividade extrema, seu resultado foi articuladamente construído em meio a
diversas possibilidades, tendo sido feita sua escolha de maneira subjetiva, inerente ao
indivíduo historiador.
Para Jörn Rüsen, o significado da teoria da história para a historiografia –
considerada por ele como função racionalizadora da pragmática textual – enquanto constituição
da história como ciência é visto por alguns historiadores contemporâneos como uma
abordagem secundária. O autor critica esse posicionamento da teoria, sobretudo porque a
considera como produtora de reflexões responsáveis por formular conceitos condizentes
com os princípios que orientam o trabalho de produção da escrita da história.
Na concepção de Rüsen, é por meio da razão histórica que a história constitui-se
como ciência e, a partir desse aspecto, vê na tarefa historiográfica o dever de torná-la
acessível ao público a que se destina, ou seja, redigir o saber histórico. A etapa
historiográfica da pesquisa é ativa na ciência histórica e tem como função preservar o
progresso do conhecimento, o qual Rüsen nomeou como processo de progresso cognitivo.
Portanto, no significado da teoria da história para a historiografia, a teoria deve
aparecer sob muita reflexão acerca do “pensar sobre o pensamento histórico” para depois
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
482
barganhar pela sua racionalidade, sua legitimidade. Suas teses indicam que o caminho para a
ocorrência da independência intelectual dar-se-ia por meio da auto-reflexão, que é um
termo largamente utilizado pelo autor em suas obras. Mais do que profissionalizar a ciência
histórica, o pensamento histórico científico, para o autor, deve condicionar a união entre
objetividade e subjetividade.
Significado da Teoria da História para a formação histórica
Com o verbete Formação Histórica, Jörn Rüsen refere-se aos processos de
aprendizagem diversos, que não se vinculam propriamente a um espaço de competência
profissional.
Exemplos de mecanismos de aprendizado histórico que auxiliam na formação
histórica é um campo heterogêneo: o ensino de história nas escolas; a influência dos meios
de comunicação sobre a consciência histórica; o papel da história na formação dos adultos,
etc.
Nesse campo múltiplo do aprendizado histórico encontram-se os processos de
aprendizagem específicos da história e também nele estão presentes os processos
orientadores da vida dos homens por intermédio do que Rusen chama de consciência
histórica, forma de consciência que se relaciona com a vida prática, e que ocorre quando
interiorizam-se informações relevantes, tornando-se instrumentos da consciência, da mente
do homem para então usá-las como peças para orientar e dar sentido ao cotidiano do
sujeito.
Nas palavras do autor, a noção de consciência histórica,
não pode ser equacionada como simples conhecimento do passado, (...) [ela] dá
estrutura ao conhecimento histórico como um meio de entender o tempo
presente e antecipar o futuro. Ela é uma combinação complexa que contém a
apreensão do passado regulada pela necessidade de entender o presente e de
presumir o futuro. (RÜSEN, J. 2011, p. 36-37).
Ele ainda acrescenta que a consciência histórica pode ser analisada como um conjunto
de operações mentais que definem a peculiaridade do pensamento histórico e a função que ele exerce na
cultura humana428. Essa consciência manifesta-se através da narrativa, de seu uso e de sua
produção, e é, por sua vez, pela narrativa que se dá o aprendizado histórico.
Também é encaminhado para o entendimento da formação histórica, o significado
da teoria da história para a historiografia uma vez que, não importa a maneira como a
428
Idem, Ibidem p. 37.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
483
historiografia é apreendida pelo educador ou mesmo pelo aluno. É a função
racionalizadora da pragmática textual – a prática da narrativa do historiador – que atuará
como veículo profissionalizante do sujeito historiador.
Nessa etapa da escrita, deve haver uma imensa cautela do escritor para com o seu
ofício, pois, podendo ser a posteriori julgada por bom ou ruim, determinado texto
historiográfico influenciará o aprendizado da história através do ensino.
Isso ocorre porque o sujeito aluno faz escolhas na hora de receber os conteúdos
aprendidos na escola, ele filtra as informações que quer guardar e pode optar atentar-se a
determinada aula de história logo quando, justamente naquele dia, seu educador se
encontre desmotivado e escolhe não problematizar o texto agendado para aquela aula.
Outro mecanismo de formação histórica pode ser identificado nas aulas
digitais, disponíveis na web, as quais, muitos educadores fazem o download delas para
complementar suas aulas ou, ainda, os próprios alunos procuram assisti-las para ter um
suporte além da escola. Caso o aluno encontre nessa ferramenta alguma informação que ele
considere relevante, provavelmente essa informação será interiorizada e possivelmente, em
outra ocasião, essa informação será por ele lembrada durante suas aulas de história. Aqui,
entende-se a interiorização de um conceito que a partir da consciência histórica tornou-se
ferramenta mental do sujeito. Vale lembrar que grande parte das informações buscadas
pelos indivíduos tendem a orientar seu quotidiano.
Na concepção da formação histórica e sua relação com a teoria da história,
Jörn Rüsen também identifica uma função orientadora do conhecimento histórico, pois, a
teoria orienta os resultados cognitivos da ciência da história para os processos de
aprendizagem da formação histórica.
Assim, entende-se que essa função didática de orientação torna-se uma teoria do
aprendizado histórico, que, por sua vez, não deixa de transpor uma pretensão de
racionalidade. Para Rüsen essa não é uma preocupação apenas da academia como também
do ensino da disciplina história nas escolas. Ele concorda ser um equívoco a pretensão do
currículo de história tratar essa disciplina como uma miniatura da especialidade cientifica.
Há uma enorme diferença entre ensinar história nas escolas e o aprender (ou
construir o conhecimento histórico) na academia. Criticando a estrutura curricular do
ensino de história, Jörn Rüsen infere que os métodos da pesquisa histórica são distintos do
método do ensino de história.
Para
Rüsen, essa diferenciação fica evidente quando fazemos uma reflexão sobre os
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
484
fundamentos do ensino escolar e, separadamente uma reflexão dos fundamentos da teoria
enquanto disciplina especializada.
Caberia então, ao profissional da história a tarefa de racionalizar a prática da sua
escrita e, consequentemente do seu ensino para que as aulas de historia deixem de serem
entendidas como vazias de significado e passe a possibilitar aos educandos entenderem seu
sentido, passando a adquirir a consciência histórica e atuarem como protagonista no seu
cotidiano, contribuindo para o progresso do conhecimento.
Referências Bibliográficas:
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. . Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
RUSEN, JORN. Razão Histórica. Teoria da história: os fundamentos da ciência histórica.
Tradução de Estevão de Rezende Martins. Brasília: Ed. UNB, 2001.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
485
Hegel e a Razão moderna radicalizada no Espírito
Augusto Leite
Mestrando em História pela UFMG / Bolsista CAPES-Reuni
augustobrunoc@yahoo.com.br
Resumo: A Razão moderna, destituída do suposto “engano” da teologia cristã-medieval,
caracteriza-se pela sua humanização. Ao mesmo tempo, projeta-se a divinização do homem
enquanto ser imbuído de potência criativa e dominador da natureza. Por meio da ciência,
da metafisica, da matemática e da técnica o homem não só se torna parceiro de Deus na
criação como, na mentalidade moderna, aproxima-se cada vez mais de sua atualidade
divina, rememorando ou reconhecendo os nomes naturais dos seres, tal como Bacon
preconizava. É a Razão na história, realizando-se. A Vernunftglaube – fé na Razão –, não
renega a Deus, mas a necessidade de sua Graça para alcançar a salvação, agora, tarefa do
homem. A Razão na história tem em Hegel seu apóstolo maior. A Razão hegeliana,
confundindo-se com o próprio Deus, sintetizaria as leis da natureza geométrica – ciência
moderna – e da metafisica da lógica das ideias – filosofia idealista – na concepção de
Espírito, ou a História.
Palavras-chave: História, Espírito, Razão.
Abstract: The Modern Reason, devoid of supposed "mistake" of Christian medieval
theology, it is characterized by it is humanization. At the same time, the deification of man,
as being imbued with creative power and nature lord is projected. With science,
metaphysics, mathematics, technic, man not only becomes partner with God in creation but
also, in the modern mind, he is approaching more and more of his divine actuality,
remembering and recognizing the natural names of beings, as Bacon advocated. It is the
Reason in History, performing herself. The Vernunftglaube - Faith in Reason - does not
deny God, but deny the need for His grace for salvation, now a man's task. The Reason in
History have in Hegel his greater apostle. The Hegelian Reason, mingling with God
himself, summarize the laws of geometric nature - modern science - and the logic of
metaphysical ideas - idealist philosophy - in the conception of Spirit, or History.
Keywords: History, Spirit, Reason.
A retomada da Razão antiga como Razão purificada na modernidade
Do apogeu ao fim do mundo pós-romano – a chamada idade média –, sente-se a
presença de um sentimento de irrealização do plano de Deus – Razão – na terra, segundo o
historiador José Carlos Reis. A cidade de Deus de Santo Agostinho não vinga. E os
homens da cristandade ocidental, digladiando-se constantemente, descobrindo o novo –
Américas, Índias, extremo-Oriente –, sentem-se fora do plano de Deus que, então, não
condizia com a experiência que eles viviam.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
486
A partir do fim do que se entende como medievo, “a cultura profana retoma seu
combate à cultura sagrada” (REIS, 2003: 25); a Razão, axioma do Ser-ocidental, é acionada
para pensar a si mesma. E “o próprio homem europeu se contesta!” (REIS, 2003: 25). O
chamado Renascimento faz ressurgir as discussões pré-cristãs acerca da Razão. E se a
Razão-teológica, aquela de Justino de Roma429, não se mostra mais eficaz, era preciso
purificá-la, atualizando-a. Esse seria o movimento engendrado pelos renascentistas.
Auxiliados pelas escolas de tradução, os renascentistas acessam os textos antigos de
Aristóteles, Platão, Sócrates, Euclides, Arquimedes. Esses são nomes que Petrarca, Erasmo
de Roterdã, Giordano Bruno, Galileu, conhecem e discutem, atualizando-os e os
introduzindo nas questões dos séculos XV e XVI430. O homem moderno dirige sua vida,
seus planos, conforma e confronta sua identidade, cria e resolve problemas, tudo, fiando a
lógica de seu raciocínio, ainda, segundo a Razão. Mas se ela não se mostrou suficiente na
antiguidade e na cristandade, porque seria agora, na modernidade? Não era possível
solucionar tal questão fora dos limites da Razão, inexorável do Ser-ocidental; tanto que se
tornara seu axioma. Portanto, o problema não estaria na Razão em si, mas sim nos usos
que se fez dela. Era preciso purificá-la!
É esse homem moderno que se chama assim: moderno. É ele e seus historiadores
quem dão a alcunha de idade das trevas, moyen age, middle age, ao período compreendido
entre – no meio de – o classicismo antigo, grego e romano, e eles mesmos, os modernos: a
vanguarda que empreendia a purificação da Razão! “Se identificaban a sí mismos como
‘modernos’ que se oponían a los ‘antiguos’ [os teológicos] modos de pensamento y
prácticas” (SHAPIN, 2000: 22). Se não necessariamente promoveram uma revolução431,
sentiam-se de fato revolucionários.
(...) muchas figuras clave de finales del siglo XVI y del siglo XVII expresaron
energicamente su conviccíon de estar proponiendo algunos câmbios muy
nuevos y muy importantes en el conocimiento de la realidade natural y em las
prácticas mediante las que se podia adquirir, evaluar y comunicar el
conocimiento legítimo. (SHAPIN, 2000: 22)
429Flavius
Iustinus, ou São Justino, o mártir, consagra a expansão cristã através de suas apologias, as quais são
conhecidas por rearranjar os conceitos gregos de logos dentro de uma lógica judeo-helênica-cristã. (Cf.
BLUNT, 1911)
430 Segundo Alexandre Koyré num texto sobre a renascença em Estudos de História do Pensamento Científico: “os
grandes textos científicos gregos que eram desconhecidos ou mal conhecidos, na época anterior, são
traduzidos editados ou retraduzidos e reeditados” (KOYRE, 1982: 161).
431 Não interessa aqui discutir se houve ou não “Revolução Científica”, interessa discutir os discursos e sua
relação de dependência com a Razão; a re-apropriação do conceito na história para corroborar práticas,
discursos.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
487
O sentido revolucionário é latente nesses discursos que propõem um motivo
supremo, supra-individual, à vida humana. A capilaridade dessa Razão, irresistível ao
ocidente europeizado, foi de grande abrangência. Ela alcançou desde os limites sóciopolíticos, econômicos, até os teórico-cosmológicos, filosóficos. Ações de mimese da
moderna filosofia natural, ou Ciência moderna europeia – mecânica newtoniana e modelo
empirista-racional de Bacon e Descartes –, das convulsões Sociais – Inglesa, Francesa,
Socialistas – foram diversas. Isso, no mundo ocidental e oriental.
O Oriente, que nunca se deixara seduzir pelo mundo temporal, mantinha-se
dominado pela ética mística da recusa do mundo. E acabou sendo vítima dessa
revolução cultural europeia. Os outros continentes viram desembarcar em seus
litorais esse estranho homem europeu moderno, enlouquecido, articulando um
discurso religioso fanático e agindo furiosamente contra sua própria salvação!
(REIS, 2003: 25-26)
Essas ações eram enunciadas como parceiras da liberdade, igualdade, fraternidade e
atualidade! É a marcha do espírito hegeliano – fruto desse empreendimento – em ação. O
homem que antes agia sob a égide da Razão teológica, passivo diante dessa, atua agora
junto com a Razão purificada, destituída do que se entendia como o engano da teologia.
Entende o homem moderno ser ele parceiro de Deus na criação; a Razão é seu
instrumento, dadiva divina que serve ao homem. Immanuel Kant produz sua utopia
racional, onde a Razão purificada, decantada, livre do engano, espelho da verdade, não mais
a religião e sua Razão-teológica, traria a universalização, “reunificação da humanidade”
(REIS, 2003: 28). O homem moderno procura sua salvação, agora, fora dos limites da
religião.
A História como Espírito racional e salvador
A Razão pura da modernidade, destituída do que ela entendia como o engano da
teologia cristã-medieval, caracteriza-se pela sua humanização. Se antes a Razão era atributo
divino para descrever o divino, apenas, agora ela se humaniza; torna-se atributo humano,
como na antiguidade – Fílon de Alexandria432 – era. Ao mesmo tempo, projeta-se a
divinização do homem, enquanto ser imbuído de potência criativa e dominador da
natureza. Por meio da ciência, da metafisica, da matemática e da técnica o homem não só se
torna parceiro de Deus na criação, como, para a modernidade, aproxima-se cada vez mais
de sua atualidade divina, rememorando ou reconhecendo os nomes naturais dos seres, tal
432
Fílon de Alexandria foi um dos filósofos que se ocupou com a questão da Razão, ou logos, enquanto
faculdade humana e supra-humana.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
488
como Bacon433 preconizava. É a Razão na história, realizando-se. A Razão na história que
tem na figura de Hegel o seu apóstolo maior. A Razão hegeliana sintetiza as leis da natureza
geométrica – Newton – e a metafisica da lógica das ideias – Platão, Kant – na concepção de
Espírito – Geist – , ou a História.
O único pensamento que a filosofia traz para o tratamento da história é o
conceito simples de Razão, que é a lei do mundo e, portanto, na história do
mundo as coisas aconteceram racionalmente. Essa convicção e percepção é
uma pressuposição da história como tal; na própria filosofia a pressuposição
não existe. A filosofia demonstrou através de sua reflexão especulativa que a
Razão – esta palavra poderá ser aceita aqui sem maior exame da sua relação
com Deus – é ao mesmo tempo substância e poder infinito, que ela é em si o
material infinito de toda vida natural e espiritual e também é a forma infinita, a
realização de si como conteúdo. Ela é substância, ou seja, é através dela e nela
que toda a realidade tem o seu ser e a sua substância. Ela é poder infinito, pois a
Razão não é tão impotente para produzir apenas o ideal, a intenção,
permanecendo em uma existência fora da realidade – sabe-se lá onde – como
algo característico nas cabeças de umas poucas pessoas. Ela é o conteúdo infinito
de toda a essência e verdade, pois não exige, como o faz a atividade finita, a
condição de materiais externos, de meios fornecidos de onde extrair-se o
alimento e os objetos de sua atividade; ela supre seu próprio alimento e sua
própria referência. (HEGEL, 2001: 53)
Essa citação se faz necessária porque demonstra de forma sucinta a Razão absoluta
de Hegel, como Razão que se encerra em si, informa a si, e, ao mesmo tempo, realiza-se
dentro do sistema filosófico da história hegeliana que, também, propõe uma teoria do
conhecimento própria. Um olhar acurado sobre essa teoria do conhecimento de Hegel,
contida em sua filosofia da História, revelaria o uso por ele feito da Razão moderna,
enquanto Razão absoluta, tal qual a Razão da ciência natural de Newton. Essas razões estão
no mesmo debate que gira em torno da questão: que posso saber?
Em uma obra pequena e pouco explorada de Hegel chamada Fé e Saber,
precisamente, o filósofo delimita o problema que perpassa toda sua obra, em especial a
Fenomenologia do Espírito. Esse problema é informado por Hegel como uma questão própria
do idealismo de Kant, Fichte e Jacobi. É um problema de seu interesse e que, resolvido,
permitiria a ele concluir seu sistema apresentado na Fenomenologia do Espírito. Eis a
questão: as faculdades cognitivas humanas permitem o conhecimento do suprassensível, do
não empírico, do não-experimentável?
Segundo Kant, nas muitas incursões realizadas no terreno dos limites da Razão, “não
há nada nessas faculdades, essencialmente dependentes em relação à experiência que
433
O fim último do conhecimento do homem, segundo Bacon “(...) é a restituição e a restauração do homem
à soberania e ao poder que ele tinha no primeiro estágio da criação (porque quando ele for capaz de chamar
as criaturas pelos seus verdadeiros nomes, poderá novamente comandá-las)” (OLIVEIRA, 2010: 135).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
489
possibilite provar a existência de Deus” (HEGEL, 2007: 11), ou, em uma linguagem
profana, a realidade do absoluto enquanto ser finito, apreensível, passível de ser conhecido.
A querela provocada por Kant é retomada por Hegel, pois esse, diferentemente de Kant,
entende que o absoluto é tanto realidade quanto apreensível. E em seu sistema filosófico
coloca justamente a Razão a prova, trazendo o absoluto para dentro dos limites da Razão,
procedimento impensável por Kant.
A Razão hegeliana expressaria a consciência moderna. A conciliação das Razões que
se digladiavam, a metafisica e a física. A física entende que superou a metafisica por
expressar o absoluto universal e, por outro lado, a metafisica luta pelo estatuto de saber
privilegiado das origens. A filosofia e a história, em Hegel, caminham juntas na totalidade
que a Razão científica averiguou e corroborou por seu aparato matemático e metafísico,
especialmente em Newton. A consciência moderna, essencialmente histórica, assumiria
“uma posição reflexiva com relação a tudo que lhe é transmitido pela tradição”
(NIETZSCHE, 2003: 18). Os modernos, segundo o filósofo alemão Hans Gadamer, põem
às ciências humanas, em especial à história, um problema de filosofia. Essa reflexão sobre o
fazer histórico, sobre o pensar o passado, sobre o estar-no-tempo, antes e no porvir seria
essencialmente filosófica. A percepção do ser-no-tempo seria o triunfo da consciência da
realidade; a eficiência da história que se refigura a partir de seu tempo, sua experiência
própria, na qual o ser-no-tempo é agente consciente do processo em que está inserido.
Hegel é um apóstolo da Vernunftglaube, racionalização, a “fé na Razão”, de forma que
a fé seria em algo imanente, não transcendente; em uma Razão objetiva, realizável. Se para
Kant o suprassensível seria inapreensível pela Razão, para Hegel, por outro lado, a Razão,
que a esse ponto se confunde com a verdade, comporta um caráter metafisico e físico
simultaneamente, ela é imanente.
Para comportar objetos que ao primeiro olhar seriam dicotômicos, Hegel se explica
pela via dialética do pensamento lógico de Heráclito de Éfeso. Se Hegel concorda com as
filosofias modernas sobre o universo absoluto, ele as torna complexas introduzindo a ideia
– herdada de Heráclito – de um absoluto enquanto processo, enquanto limiar. “O ser não é
mais do que o não-ser”434; logo, as duas partes reservam uma a outra alguma substância,
informam uma a outra alguma identidade; ambas, ser e não-ser, seriam características do
mesmo, o absoluto, que se apresenta no limiar entre essas duas categorias. Assim, o que se
entende como uma verdade física, empírica-instrumentalizável, comporta, necessariamente,
434
Frase atribuída a Heráclito contida no livro IV da Metafísica de Aristóteles (SOUZA, 1978: 92).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
490
seu outro metafisico, a ideia. Tanto Bacon como Kant entendiam isso; no entanto, não
sistematizaram uma teoria que indicasse esse processo como busca do absoluto, o que fez
Hegel e sua dialética heraclitiana. A Razão absoluta e dialética hegeliana encontra na
História sua realização enquanto conceito a ser objetivado. Portanto, o absoluto histórico
vê seu complemento em seu outro, no devir.
O tempo para Hegel é o futuro. O passado é para ser lembrado, e observado; o
presente é guiado pelo Espírito, pela Razão na História, que se confunde com o próprio
Deus, a providência. Cabe então ao historiador, consciente disso, aprender a conhecer o
espírito, sua vontade racional necessária, em sua função orientadora. E, assim, conformarse da melhor forma na lógica que o Espírito outorga. Essa é a única forma de estar-notempo consciente na história hegeliana. Tudo conflui para a concretização e realização da
Razão. O espaço-da-experiência435 é determinado pela razão; o horizonte-de-expectativa436 é
guiado pelo Espírito. Logo, não há problema de consciência histórica, o ser deve apenas
saber dessa lógica e se sentir livre.
Como filósofo-teólogo, não hesita em colocar em questão a relação da crença na
Razão e na Providência, simultaneamente. A Razão, segundo Hegel, em sua forma religiosa
é a Providência. “(...) a Providência divina é a sabedoria dotada de infinito poder que realiza
o seu objetivo, ou seja, o objetivo final, racional e absoluto do mundo. A Razão é o
Pensamento determinando-se em absoluta liberdade” (HEGEL, 2001: 56).
A história natural não escapa da lógica universalizante da Razão de Hegel, pois:
O movimento solar continua segundo leis imutáveis e estas leis são a sua razão.
Mas, nem o sol nem os planetas, que, segundo tais leis, giram em torno dele,
têm qualquer consciência disso. Assim, não nos surpreende a ideia de que há
Razão na natureza, de que a natureza é governada por leis universais e imutáveis
(...) (HEGEL, 2001: 55).
O desafio de Hegel, a saber, conhecer a Razão, é um problema de filosofia, cujas
implicações epistemológicas extrapolam para as ciências naturais, metafísica e matemática,
pois são essas matérias necessárias uma a outra, tal qual Kant propõe nos Fundamentos
435Reinhart
Koselleck, historiador alemão, trás à luz um esclarecedor entendimento de experiência e
expectativa, ambas categorias meta-históricas, segundo o autor. Seriam a experiência e a expectativa,
articuladas, as feitoras da consciência de estar-no-tempo. Segundo Koselleck, “Na experiência se fundem
tanto a elaboração racional quanto as formas inconscientes de comportamento, que não estão mais, ou que
não precisam mais estar presentes no conhecimento.Além disso, na experiência de cada um, transmitida por
gerações e instituições, sempre está contida e é conservada uma experiência alheia.” (KOSELLECK, 2006:
309)
436“(...) a expectativa se realiza no hoje, é futuro presente, voltado para o ainda-não, para o não
experimentado, para o que apenas pode ser previsto. Esperança e medo, desejo e vontade, a inquietude, mas
também a análise racional, a visão receptiva ou a curiosidade fazem parte da expectativa e a constituem.”
(KOSELLECK, 2006: 310)
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
491
metafísicos da Ciência Natural437. Segundo Hegel, sabe-se que “(...) o mundo da inteligência e
da vontade consciente não está abandonado ao simples acaso, mas deve manifestar-se à luz
da Ideia racional” (HEGEL, 2001: 54). O Espírito é a síntese da História que passa ao
estatuto de Ser. A história é! Ela se evade do tempo, sendo ele apenas uma de suas
atribuições lógico-dialéticas. Hegel propõe a universalização da Razão de forma radical no
Espírito. Porém, essa Ideia racional, providencial, divina, é cognoscível? É possível
conhecer a providência, conhecer Deus? Eis um problema de teologia!
Hegel, em sua busca pela Razão absoluta encarnada no Espírito, consciente ou não,
envereda-se, também, na epistemologia. A luta intelectual de Hegel seria a de reconhecer a
realização de forma dinâmica do que ele chama de Espírito, da Razão, ao mesmo tempo no
reino da natureza e no reino do espírito, sendo um co-realizador do outro. Ele indica que
seu método seria uma teodiceia, uma justificação de Deus, “algo que Leibniz tentou
metafisicamente, à sua maneira, através de categorias abstratas indeterminadas” (HEGEL,
2001: 60). O processo que Hegel enxerga como “realizando-se”, seria o que Norbert Elias
chamou de “processo civilizador”, o homem moderno se recriando, conformando-se aos
moldes da Razão universal que a ciência propõe; rumo à salvação, um “reencantamento”;
projeto moral, fortemente marcado ainda pela Razão teológica cristã438, aquela da patrística,
de Justino de Roma. Uma característica chave desse processo averiguada por Elias, a
conscientização da Razão objetivada na supressão das pulsões e paixões do homem é
inclusive, também, presente da filosofia da História de Hegel. A Razão moderna, essa
sintetizada no Espírito hegeliano, abarca essas características da Razão antiga. Além das
capacidades de conhecer e criar dos logoi dos filósofos da antiguidade é também
característica dos logoi atribuições morais, tais como a supressão da raiva e de paixões da
alma que desviem o espírito do homem de seu objetivo, pois “the logoi en paideia educate
and teach men to restrain anger and desire, and to engage anger only occasionally”
(KAMESAR, 2004: 167).
Essa Razão que civiliza e homogeneíza, por enxergar a si como universal, presta-se
a universalidade e insere o mundo a sua volta na lógica universal típica da modernidade. A
ideia de realização da Razão moderna no Espírito, marca da filosofia da história hegeliana é,
437KANT, Immanuel; FRIEDMAN, Michael.Metaphysical foundations of natural science.Cambridge, UK; New
York: Cambridge University Press, 2004.
438 O filósofo e teólogo alemão Karl Löwith anui à ideia de que o esforço filosófico ocidental seria não apenas
influenciado pela teologia, mas, em si teológico. Ver LÖWITH, Karl. Meaning in History: The Theological
Implications of the Philosophy of History. University of Chicago Press, 1949.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
492
novamente, salvação; a marcha do Espírito em busca da liberdade e a redenção desse
mundo em nome da Razão universal e absoluta.
Bibliografia:
BLUNT, A. W. F. The Apologies of Justin Martyr (in Cambridge Patristic Texts). Cambridge, 1911.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A Razão na historia: uma introdução geral a filosofia da
historia. 2. ed. São Paulo: Centauro, 2001.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich; TOLLE, Oliver. Fé e saber. São Paulo: Hedra, 2007.
HORKHEIMER, Max. Eclipse da razão. 7.ed. São Paulo: Centauro, 2007.
KAMESAR, Adam. The Logos Endiathetos and the Logos Prophorikos in allegorical interpretation: Philo and
the D-Scholia to the Iliad. In: Greek, Roman and Byzantine Studies, Vol.44, nº 2 (2004), Duke
University. 163 – 181.
KANT, Immanuel; FRIEDMAN, Michael. Metaphysical foundations of natural science.
Cambridge, UK; New York: Cambridge University Press, 2004.
KOSELLECK, R. Espaço de Experiência e Horizonte de expectativa: duas categorias históricas. RJ:
Contraponto/PU[C]-RJ, 2006.
KOYRE, Alexandre. Estudos de historia do pensamento cientifico. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária; Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1982.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem
da história para a vida. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
OLIVEIRA, Bernardo Jefferson de. Francis Bacon e a fundamentação da ciência como tecnologia.
2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
REIS, José Carlos. História & teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de
Janeiro: FGV, 2003.
SHAPIN, Steven. La Revolucion Cientifica: Una Interpretacion Alternativa. Ed.: Paidos, 2000.
SOUZA, Jose Cavalcante de. Os Pre-socraticos: fragmentos, doxografia e comentarios. 2. ed. São
Paulo: Abril Cultural, 1978.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
493
Paul Ricoeur e a narrativa historiográfica: para além do debate epistemológico, a
dimensão ética
Breno Mendes
Mestrando em História pela UFMG
mendes.breno@gmail.com
Resumo: Esta comunicação visa traçar um panorama sobre as reflexões de Paul Ricoeur
sobre a narrativa, em especial, na escrita da história439. Neste sentido, a posição do filósofo
francês se singulariza por não se restringir a aspectos epistemológicos, mas também
contemplar a visada ontológica e a perspectiva ética. Iremos nos concentrar nas questões
epistemológicas e éticas. Começaremos com as posições presentes em Tempo e narrativa,
para em seguida, abordar as implicações éticas presente nesta obra e em Si mesmo como um
outro. Ao final, buscaremos avaliar qual o impacto da reflexão ricoeuriana para a História da
Historiografia Contemporânea no que tange a ligação entre o conhecimento histórico e a
vida prática.
Palavras-chave: Paul Ricoeur; narrativa; ética.
Résumé: Cette communication propose tracer un panorama sur les réflections de Paul
Ricoeur sur le récit, en particulier, dans l’écriture de l’histoire. Dans ce sens, la position du
philosophe français se singularize à cause de ne se limiter pas a des aspects
épistémologiques, mais considerer aussi la visée ontologique et la perspective éthique. Nous
nous concentrerons dans les questions épistémologiques et éthiques. On commence avec
des positions qui sont dans Temps et récit, ensuite on approche des implications étiques qui
sont dans ce livre et dans Soi-même comme un autre. Au fin, on cherche évaluer l’impacte des
réflections ricoeuriennes pour l’Histoire de Historiographie Contemporaine en ce qui
concerne au lien entre la connaissance historique et la vie pratique.
Mots-clés: Paul Ricoeur ; récit ; éthique.
Introdução
A obra de Paul Ricoeur foi marcada pelo signo do diálogo. Portador de uma sólida
formação erudita seus livros são permeados por profundas incursões na história da
filosofia. Com efeito, o autor também abriu seu pensamento a uma interação constante
com saberes externos à filosofia, especialmente com as ciências humanas. Nossa
comunicação pretende traçar um panorama sobre as reflexões ricoeurianas a respeito da
439 Essas reflexões foram anteriormente apresentadas no Congresso Latino Americano sobre a obra de Paul Ricoeur
Ética, Identidade e Reconhecimento, realizado em 2011 na PUC-RJ. Agradeço especialmente às observações críticas
feitas pelos filósofos João Batista Botton, Roberto Roque Lauxen e Hélio Salles Gentil. Esses comentários
ajudaram-me a melhorar o argumento central e a corrigir alguns equívocos, sobretudo aquele que concedia
uma primazia acentuada do julgamento ético ao 3º momento da mímesis. Espero ter desenvolvido uma análise
mais equilibrada sobre a tripla mímesis. Contudo, tenho consciência que este texto toca apenas em uma
pequena parte da dimensão ética em jogo no conhecimento histórico.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
494
narrativa, em especial, sobre a função que ela desempenha na escrita da história. Neste
sentido, a posição deste filósofo se singulariza por não se restringir aos aspectos
epistemológicos, mas também contemplar a visada ontológica e a perspectiva ética
implicadas na narrativa historiográfica.
Nossa exposição está dividida em 3 partes:
I) Discussão epistemológica sobre a narrativa na historiografia contemporânea, com
destaque para a intervenção de Ricoeur neste debate a partir da publicação de Tempo e
Narrativa.
II) Exame das implicações éticas da narrativa
III) Análise da relação entre narrativa historiográfica e vida prática; Confronto entre a
perspectiva de Ricoeur e o topos da história mestra da vida.
I) A narrativa na historiografia contemporânea e o impacto de Tempo e
Narrativa.
A relação entre a historiografia e a narrativa tem se mostrado conflituosa nos últimos
anos, sobretudo no contexto da historiografia francesa. Durante boa parte do século XX os
historiadores ligados às duas primeiras gerações da Escola dos Annales desqualificaram a
narrativa como um procedimento metodológico de pouca relevância adotado pela chamada
“historiografia tradicional”, ou “Escola Metódica” do século XIX. Na visão destes
historiadores franceses a narração inseria os eventos em uma continuidade linear,
cronológica e teleológica. Seguindo o adágio rankeano440 havia o anseio de extrair dos
documentos os fatos “tal como efetivamente se passaram”. Para tanto, o historiador
deveria permanecer imparcial, sem deixar que sua subjetividade fosse impressa no texto.
Este relato, na verdade, era uma biografia dos “grandes heróis” subserviente aos projetos
políticos de engrandecimento da nação. (FURET, S/D).
Em contrapartida, a proposta dos historiadores dos Annales era de uma históriaproblema que reconhece a impossibilidade do historiador narrar os fatos do passado “tal
como efetivamente se passaram”. Nesta perspectiva o historiador sabe que não consegue
apagar-se em sua análise, mas formula hipóteses e problemas que são motivados por
questões do presente. Aliada a esta crítica à narrativa factual houve um deslocamento do
440 A obra de Leopold Von Ranke não é o objeto de nosso estudo, contudo, não podemos deixar de
mencionar que esta leitura feita pelos historiadores dos Annales não condiz com a obra do autor e a
transforma em um ‘mito historiográfico’. O objetivo desta leitura é desqualificar parte da historiografia do
século XIX e assim legitimar a inovação, ou revolução metodológica empreendida pelos historiadores
franceses a partir de 1929. Cf. (MATA, 2010)
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
495
objeto da história que deixou de referir-se a eventos e indivíduos para concentrar-se em
civilizações, sociedades, estruturas econômicas e sociais de longa duração. A proposta era
de aliança da historiografia com as Ciências Sociais e de rompimento com a narrativa.
(REIS, 2004)
Com efeito, a partir da década de 1970 a narrativa voltou a estar no centro do debate
historiográfico. Para o historiador inglês Lawrence Stone houve um “retorno” da narrativa
à escrita da história devido ao enfraquecimento dos modelos econômicos e quantitativos.
O interesse das pesquisas deslocou-se então para as mentalidades e a cultura. Entretanto,
este relato que “retorna” é diferente daquele praticado pela Escola Metódica. Ele não se
refere mais aos “grandes heróis”, mas aborda personagens anônimos, seu método deixou
de ser a descrição linear para se dar pela análise e realização de problematizações. (STONE,
1991)
Além disso, destacamos também a publicação nesta década de importantes obras que
buscavam investigar a importância da narrativa para a historiografia, assim como suas
fronteiras com a ficção, são elas: Como se escreve a história de Paul Veyne [1971], A escrita da
história de Michel de Certeau [1975], Meta-história [1973] e Trópicos do discurso [1978] de
Hayden White.
White é, sem dúvida, o autor mais polêmico dentre os que interviram neste debate.
Em Meta-História o historiador estadunidense propõe um método formalista para a análise
de obras historiográficas e filosóficas do século XIX. Neste procedimento a intenção não é
dizer se a obra de determinado historiador é mais adequada ou correta que a análise de
outro filósofo ou historiador. O que se busca é explicar os componentes estruturais das
explicações históricas. Aquilo que transformou os trabalhos de Ranke, Michelet, Marx ou
Tocqueville em clássicos não foi sua base documental ou suas teorias, mas suas visões do
campo histórico. Segundo White, essa visão é pré-figurada linguisticamente em um ato
essencialmente poético em que o campo histórico é construído como domínio no qual é
possível aplicar teorias que visam explicar o que aconteceu no passado. Para analisar a
prefiguração recorre-se aos tropos da linguagem poética: metáfora, metonímia, sinédoque,
ironia. (WHITE, 2008) Vejamos a síntese do argumento:
Nesta teoria trato o trabalho histórico como o que ele manifestamente é: uma
estrutura verbal na forma de um discurso em prosa. As histórias (e filosofias da
história também) combinam certa quantidade de ‘dados’, conceitos teóricos
para ‘explicar’ esses dados e uma estrutura narrativa que os apresenta como um
ícone de conjuntos de eventos presumivelmente ocorridos em tempos passados
(...) eles comportam um conteúdo estrutural profundo que é em geral poético e,
especificamente, lingüístico em sua natureza (WHITE, 2008: 11).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
496
Em linhas gerais, este era o quadro do debate quando Ricoeur publica Tempo e
narrativa (3v.1983-85). Algo que o distingue dos demais filósofos que teorizaram sobre a
história é que ele demonstra um substancioso conhecimento das obras clássicas da
historiografia, sobretudo, a francesa. A postura ricoeuriana é modesta e paciente, seu
primeiro passo é o da escuta:
Aqui não compete ao filósofo dar lições ao historiador; é sempre o próprio
exercício de um ofício científico que instrui o filósofo. É-nos, pois, necessário
ouvir em primeiro lugar o historiador, enquanto reflete sobre seu ofício. (...)
(RICOEUR, 1968: 25).
A tese central de Tempo e narrativa, é que “O tempo se torna tempo humano na
medida em que está articulado de maneira narrativa; em contraposição, a narrativa é
significativa na medida em que desenha os traços da experiência temporal” (RICOEUR,
1991b, Tome I: 17). Ao enfatizar a relação entre a narratividade e a temporalidade Ricoeur
chama a atenção para um aspecto que até então não fora destacado pelos outros
narrativistas como H. White e Paul Veyne.
Ricoeur defende que há um vínculo indireto, entre história e narrativa. Segundo ele,
se a historiografia rompesse o laço com a “competência de base que temos de seguir uma
história” ela perderia sua especificidade no seio das Ciências Humanas e deixaria de ser
histórica. No primeiro tomo de Tempo e narrativa ele trilha um longo caminho mostrando
como a narrativa foi eclipsada, mas não eliminada, por duas correntes de pensamento - a
historiografia francesa dos Annales e a filosofia analítica de língua inglesa. De acordo com o
filósofo francês não houve durante o século XX uma plena separação entre história e
narrativa. Quanto a isso, Ricoeur alerta que na historiografia francesa o ocultamento que
eclipsou a narrativa é resultante de um deslocamento do objeto da história: passa-se do
indivíduo ao fato social total. Os historiadores dos Annales questionaram a noção de
acontecimento e o primado da história política, porém não problematizaram diretamente o
conceito de narrativa. Para eles uma história factual só poderia ser política e narrativa.
(RICOEUR, 1991b, Tome I)
A ruptura epistemológica entre a historiografia e a narrativa ocorreu em 3 níveis: 1)
No nível dos procedimentos a historiografia buscou se afastar da narrativa para ir ao encontro
de uma explicação científica para o passado, já que o relato era visto como um
procedimento meramente descritivo. 2) No nível das entidades houve um deslocamento do
objeto da historiografia. Na narrativa tradicional, ou mítica e na crônica a ação é atribuída a
agentes individuais que podem ser identificados por um nome próprio e que são
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
497
considerados responsáveis por suas ações. A história-ciência (dos Annales, por exemplo)
não aborda indivíduos, mas entidades anônimas tais como sociedades, civilizações,
mentalidades, classes sociais, economias, culturas. Essas forças sociais não podem ser
divididas em pequenas partes para que se atribua uma parcela dela a cada um dos agentes
individuais. A nouvelle histoire parece não ter personagens, e sem a presença destes a história
não pode permanecer com suas qualidades narrativas. 3) O corte operado no nível do tempo
histórico resulta dos dois anteriores. O tempo histórico parece não se referir ao tempo vivido na
consciência subjetiva dos agentes. Esse tempo vivido é constituído por lembranças,
expectativas e precisa ser organizado por um presente vivo. (Cf. Livro XI das Confissões de
Agostinho). A impressão é que o tempo histórico, o tempo semi-longo da conjuntura, e a
longa duração das civilizações não tem nenhuma relação com o tempo da ação humana.
(RICOEUR, 1991b, Tome I)
Apesar desta tripla tentativa, a ruptura entre historiografia e narrativa não foi total441.
Como dissemos, segundo Ricoeur, caso a historiografia rompesse completamente seu
vínculo com a narrativa ela perde seu caráter histórico. Por outro lado, esta relação entre
historiografia e narrativa deve ser indireta, para que a história não seja considerada como
uma espécie do gênero estória (story). Ou seja, para que a história não seja fundida ou
confundida com a ficção Ricoeur defende que é preciso haver uma dialética de novo tipo
entre a historiografia e a competência narrativa. Na leitura do filósofo, o esfacelamento do
modelo nomológico desligou a idéia de explicação causal em história do emprego de leis gerais.
A explicação histórica tornou-se assim próxima da competência narrativa sem com isso
perder seu estatuto de cientificidade. Para ele, narrar já é explicar. Ao tecer uma intriga o
historiador estabelece uma conexão lógica e causal entre os acontecimentos, o que
diferencia a narrativa histórica de uma mera descrição cronológica ou de uma crônica.
Na leitura ricoeuriana, a despeito de todas as críticas, nem mesmo em Braudel a
narrativa foi completamente abandonada. Embora tenha deslocado o objeto da análise
historiográfica dos indivíduos para o meio geográfico ou para forças econômico-sociais
anônimas, essas entidades continuam a guardar uma semelhança com a figura do
personagem de uma narrativa, na medida em que elas são colocadas como o sujeito que
441
No nível dos procedimentos a imputação causal singular combina elementos da explicação causal científica com
aspectos da causalidade narrativa; no nível das entidades ainda que o texto histórico aborde entidades sociais
estas guardam características análogas às de um personagem, na medida em que são colocadas como sujeitos
de determinadas ações; no nível do tempo histórico mesmo que o historiador opere no registro da longa duração
esta perderia sua inteligibilidade se não se referisse à estrutura dialética do tempo vivido que conjuga passado
e futuro pela mediação do presente. (Cf. o capítulo A intencionalidade histórica em Tempo e narrativa I)
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
498
pratica uma ação na história e contribui para seu desenvolvimento. Ademais, o conceito de
sociedade não pode ser construído sem se referir, ainda que indiretamente, aos indivíduos
que a compõem. Por isso, no discurso histórico a sociedade pode ser tratada como um
quase-personagem. (RICOEUR, 1991b, Tome I)
Nesse sentido, o que teria ocorrido foi um eclipse da narrativa, isto é, embora ela
permanecesse na prática historiadora foi, em parte, ocultada. Esta noção inviabiliza a idéia
de um “retorno” da narrativa como defende L. Stone, pois, como algo pode retornar, sem
mesmo ter partido? Para Ricoeur, por maiores que tenham sido as tentativas de escamoteála, a narrativa nunca foi abandonada completamente pela prática historiadora. Além disso,
podemos lembrar que a narrativa historiográfica que foi posta em evidência a partir da
década de 1970 está longe de ser como aquela metodologia descritiva, linear e teleológica
combatida pelos historiadores dos Annales. Portanto, parece-nos que o conceito de
“retorno” não é adequado para qualificar este debate.
O núcleo de Tempo e narrativa são os apontamentos sobre os três momentos da
mímesis. É através dela que ocorre a mediação entre o mundo que é configurado pela
narrativa e o mundo da ação, isto é, entre o mundo do texto e o mundo do leitor.
Ricoeur retém da Poética de Aristóteles a noção de que as narrativas são mímesis da
ação. Logo de saída é preciso enfatizar que o conceito de mímesis não deve ser entendido
aqui como cópia, imitação ou sombra do real. Segundo Luiz Costa Lima, importante teórico
brasileiro, existem duas principais vertentes de interpretação da noção de mímesis. A
primeira, - iniciada por Platão - associa a mímesis à idéia de cópia. Na leitura de Costa Lima,
Platão estabelece que as coisas que estão no plano visível imitam as idéias, (as formas, as
essências) e a as obras de arte imitam essas coisas. Logo, a mímesis, a representação,
produzida pelo poeta é apenas uma cópia da cópia442. Ela cria apenas sombras e enganos do
mundo das essências. (COSTA LIMA, 2003)
Entretanto, a concepção de mímesis ricoeuriana está próxima de uma outra vertente
- inaugurada por Aristóteles - e que se afasta da idéia de mímesis-cópia. A mímesis aristotélica
deve ser compreendida como uma operação produtora de sentido (COSTA LIMA, 2000).
“A imitação ou a representação é uma atividade mimética enquanto ela produz alguma
coisa, a saber, precisamente o agenciamento dos fatos pela composição da intriga (mise en
intrigue)” (RICOEUR, 1991b Tome I: 73). A composição narrativa ao colocar junto, numa
442
“O imitador não tem sem senão um conhecimento insignificante das coisas que imita e que a imitação não
passa de uma brincadeira indigna de pessoas sérias.” (PLATÃO apud COSTA LIMA, 2003: 61).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
499
mesma intriga, os fatos que antes eram dispersos, produz um sentido que esses
acontecimentos díspares não tinham. A ação dos homens torna-se mais inteligível quando
inserida em um enredo, em uma narrativa. A intriga não se limita a encadear os
acontecimentos em uma sucessão temporal (um após o outro), mas também estabelece
nexos causais entre eles, dizendo que um aconteceu por causa do outro.
Após este esclarecimento podemos prosseguir com nossa empreitada. O círculo
hermenêutico, ou a tripla mímesis constitutiva tanto das narrativas ficcionais quanto das
historiográficas tem início com a pré-figuração do campo prático em mímesis I. Uma das
teses da teoria ricoeuriana sustenta que ação possui uma estrutura pré-narrativa que
possibilita sua configuração em um texto. A ação se distingue do movimento físico, pois é
mediada por linguagem e produzida por sujeitos que possuem projetos, objetivos,
circunstâncias que, por sua vez, levam a interação e cooperação, ou a competição e luta.
Segundo a Poética aristotélica, a intriga imita – de maneira criativa e não reprodutiva – esta
estrutura do agir e sofrer humanos. A mesma inteligência que utilizamos para compreender
a ação é empregada para seguir uma história. (RICOEUR, 1991b).
Uma segunda ancoragem que a narrativa encontra no campo prático são os
recursos simbólicos imanentes à ação. Esta mediação simbólica também permite que a ação
seja narrada. Tal simbolismo, como sublinhou C. Geertz, não é uma operação psicológica,
mas constitui uma convenção social em função da qual é possível interpretar uma ação
particular. O gesto de levantar, por exemplo, o braço pode ser compreendido como uma
forma de cumprimento, de votar ou de chamar um táxi. O simbolismo confere uma
primeira legibilidade à ação.
Um terceiro traço pré-narrativo do campo prático concerne aos seus caracteres
temporais. Segundo Ricoeur, nossa práxis cotidiana é implicitamente temporal. Em nossa
ação diária não nos ocupamos apenas do presente, também fazemos projetos, nos
preocupamos com o futuro e nos lembramos de experiências passadas. O agir humano
busca coordenar a expectativa, a memória e a atenção ao presente. 443.
Em mímesisII se dá a configuração em intriga do campo prático, abre-se o reino
metafórico do como-se. Na tessitura da intriga o autor dá forma e extensão à experiência
443
Para Ricoeur os elementos temporais da ação também induzem à narrativa, já que a tese central da obra é
que “O tempo torna-se tempo humano na medida em que é articulado de maneira narrativa; em
compensação, a narrativa é significativa na medida em que desenha os traços da experiência temporal.”
(RICOEUR, 1991b, Tome I, p. 17).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
500
vivida. Na narração eventos episódicos, particulares, são inseridos em uma história mais
abrangente. São estabelecidas sucessões e relações de causalidade. A intriga compõe juntos
fatores heterogêneos como agentes, objetivos, meios, circunstâncias, resultados
inesperados, etc. Os eventos são colocados em um todo, com início, meio e fim, passível
de ser seguido, acompanhável. É construída uma síntese do heterogêneo, uma estrutura em
que a concordância prevaleça sobre a discordância. Mímesis II tem a função de mediar
mímesis I e mímesis III.
Em mímesis III se dá a refiguração do campo prático. Neste momento ocorre a
recepção da narrativa pelo leitor. É neste instante que o texto ganha seu sentido pleno, ao
ser restituído ao tempo do agir e sofrer humanos. Em mimeis III há o encontro entre o
mundo do texto e o do leitor. Este não é visto como mero receptáculo de informações,
mas como um sujeito que ao ter sua experiência modificada pelo reconhecimento que
encontra na narrativa tende a demandar uma nova mímesis II que reinicia a tripla mímesis,
numa espiral sem fim.
II) As implicações éticas da narrativa
Esta breve exposição do círculo hermenêutico nos permitirá fazer a transição da
dimensão epistemológica para as implicações éticas da narrativa. Com efeito, antes de
percorrer este caminho, cumpre explicitar a distinção assumida por Ricoeur entre ética e
moral. Embora um termo se origine do grego, e outro do latim, os dois remetem à idéia de
costumes (ethos, mores). Ricoeur prefere reservar o termo “ética” para “o visar de uma vida
que se realiza pelo signo de ações que são estimadas como boas” enquanto que o conceito
de “moral” é “destinado para o lado obrigatório, marcado por normas, obrigações e
interdições caracterizado por uma exigência de universalidade e por um efeito de
constrangimento.” (RICOEUR, 2007: 310). Em suma, a ética é associada à intenção da vida
boa, à perspectiva teleológica da herança aristotélica, enquanto a moral é relacionada à
obrigação da norma, ao ponto de vista deontológico da herança kantiana444.
Após fazer esta distinção Ricoeur estabelece três movimentos:
1) Defende o primado da ética sobre a moral;
2) Sustenta a necessidade da visada ética passar pelo crivo da norma;
444
Para Kant uma ação é ética na medida em que ela pode ser universalizada. Vejamos sua formulação do
imperativo categórico: “age somente de acordo com aquela máxima pela qual possas ao mesmo tempo querer
que ela se torne uma lei universal” (KANT, 2000: 121).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
501
3) Estabelece que a norma e visada ética passem pelo exercício de uma “sabedoria
prática” que está em jogo nas deliberações e juízos de situações específicas, concretas e
singulares. A perspectiva ética é definida pelo filósofo como a “visada da vida boa com e
para os outros nas instituições justas”.
Esta caracterização é importante para ressaltar que nossa proposta não é explorar as
interfaces entre a narrativa historiográfica e a moral, mas, a relação entre o texto histórico e
a ética. O que está em jogo na historiografia não é a descoberta de alguma norma
universalizante aplicável a qualquer contexto, mas a avaliação das ações praticadas pelos
homens no tempo em situações concretas e singulares. Neste sentido, remeto a uma citação
na qual Ricoeur estabelece um vínculo entre mímesisI (campo da pré-compreensão, do
mundo da experiência vivida) e às pressuposições éticas da Poética de Aristóteles.
A Poética não supõe apenas ‘agentes’, mas caracteres dotados de qualidades
éticas que os tornam nobres ou vis. Se a tragédia pode representá-los ‘melhores’
e a comédia ‘piores’ que os homens atuais é porque a compreensão prática que
os autores compartilham com seu auditório comporta necessariamente uma
avaliação dos caracteres e de sua ação em termos de bem e de mal.(RICOEUR,
1991b, Tome 1: 116)
Na esteira de Aristóteles, Ricoeur compreende a narrativa como mimese praxeos –
mímesis da ação. O termo práxis pertence tanto ao campo do real, das ações humanas,
como ao terreno do imaginário. A mímesis ricoeuriana visa concatenar esses dois campos.
Mímesis 1 é a referência que precede a composição poética e a análise historiográfica. Este
mundo da ação já é permeado por traços éticos que serão trabalhados pela narrativa.
(GENTIL, 2004)
Levando isso em consideração abre-se a possibilidade da narrativa poder iluminar
questões éticas do agir humano. Isto ocorre em mímesis III em virtude da dimensão
valorativa presente no campo da ação de onde a obra emerge: mímesis I. Na perspectiva
ricoeuriana a narrativa de ficção apresenta-se como um laboratório do imaginário no qual
são experimentadas novas maneiras de avaliar as ações, seus motivos e conseqüências. O
discurso ficcional está aberto às variações imaginativas e não está diretamente submetido a
uma norma moral. Por isso, ele apresenta-se como um lugar profícuo para a
experimentação de normas variadas, um espaço para ensaiar as implicações e conseqüências
destas normas para as ações dos personagens. (GENTIL, 2009)
O que pretendemos explorar é a idéia de que a leitura de uma narrativa
historiográfica também desvela a perspectiva ética do agir humano. Ao compor uma intriga
o historiador agencia fatos, põe juntos acontecimentos em uma trama. Ele conta quem fez o
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
502
quê, por que e como. A trama historiográfica ascreve a ação a um ou vários agentes, ela
confere ao sujeito, ao personagem, uma iniciativa, ou seja, o poder de começar uma série de
acontecimentos sem que isto se constitua em um início absoluto. (RICOEUR, 1991a)
No sexto estudo de O si mesmo como um outro Ricoeur retoma a concepção de
narrativa de Walter. Benjamin para melhor delinear as implicações éticas da narrativa.
Segundo Benjamin, a arte de narrar é a arte de trocar experiências (Erfahrung) (BENJAMIN,
1985). Aqui experiência não deve ser entendida como observação científica, mas como
exercício popular de sabedoria prática, algo que se passa de pessoa a pessoa. Esta sabedoria
comporta apreciações e avaliações das experiências narradas. (RICOEUR, 1991a)
Em Tempo e narrativa Ricoeur já sustentara que ainda que pretenda ser neutra no que
tange ao julgamento moral, a narrativa historiográfica jamais atinge um grau zero de
valoração. Essa neutralidade ética nunca é atingida porque a narrativa histórica sempre
emerge do campo da ação humana, mímesis I, e a práxis cotidiana nunca é eticamente
neutra, pois ela sempre envolve agentes, motivações e finalidades. O filósofo chega a dizer
que a historiografia possui uma dívida para com os homens do passado. Segundo ele,
quando confrontada com a figura do horrível, com a história das vítimas, esta relação se
transforma em um dever de não esquecer, em um dever de narrar a história dos vencidos.
(RICOEUR, 1991b, Tome I)
O conceito de identidade narrativa nos ajudará a explicitar as conexões entre narrativa
e ética. Esta noção foi introduzida nas conclusões de Tempo e narrativa quando foi definida
como um frágil rebento oriundo do entrecruzamento entre história e ficção na operação de
atribuição a um indivíduo ou a uma comunidade histórica de uma identidade específica. A
identidade é compreendida então como uma categoria da prática humana.
Dizer a
identidade de um indivíduo ou de uma comunidade histórica é responder à pergunta: quem
fez determinada ação? Quem é o seu agente? Ao responder a questão quem realizou tal ação
contamos a história de vida do sujeito ou de um povo, uma sociedade. A identidade do
quem não é senão uma identidade narrativa. (RICOEUR, 1991c, Tome III)
Segundo Ricoeur, sem o auxílio da narração o problema da identidade pessoal está
fadado a uma antinomia sem solução: de um lado, supõe-se um sujeito idêntico a si mesmo
na diversidade de seus estados como em Descartes e Kant; de outro, na esteira de Hume e
Nietzsche, o sujeito idêntico é considerado uma ilusão substancialista. No entanto, “o
dilema desaparece se a identidade compreendida no sentido de um mesmo (idem) for
substituída pela identidade compreendida no sentido de um si-mesmo (ipse)” (RICOEUR,
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
503
1991c, Tome III: 443). O pólo idem constitui a ‘mesmidade’ da identidade, aponta para a
permanência no tempo. Esta face objetiva responde a pergunta o quê? Já o pólo ipse inclui a
mudança temporal e responde a questão quem? A diferença entre idem e ipse é a distinção
entre identidade substancial, formal e identidade narrativa. A ipseidade escapa à antinomia
entre o Mesmo e o Outro, na medida em que sua identidade repousa em uma estrutura
temporal análoga ao modelo de dinâmico da composição poética de um texto narrativo. A
identidade narrativa, ao contrário da identidade abstrata do Mesmo (idem), pode incluir a
mutabilidade na coesão de uma vida.
Na compreensão ricoeuriana “o si-mesmo é refigurado pela aplicação reflexiva das
configurações narrativas.” Ao interpretar um texto o sujeito passa a compreender melhor a
si mesmo. No caso da narrativa historiográfica isto pode ocorrer através da avaliação ética
de um percurso percorrido pelas ações dos homens no tempo. No confronto com o texto
histórico o leitor poderá sopesar as conseqüências e implicações que ações concretas
tiveram em um contexto determinado. Assim, a narrativa historiográfica pode contribuir
para a sabedoria prática que o sujeito exerce quando se vê na necessidade de emitir juízos e
tomar decisões em situações concretas de sua vida cotidiana.
III) Narrativa e vida prática: aprender lições com a historiografia?
Antes de concluir nossa exposição uma dificuldade se coloca em nosso percurso: ao
traçar este liame entre a narrativa historiográfica e a possibilidade de orientação para a vida
prática será que Paul Ricoeur estaria retomando o velho topos da historia magistra vitae
(história como mestra da vida)? Ora, é do conhecimento dos historiadores que durante
bastante tempo o vínculo entre o conhecimento histórico e a vida prática era garantido pela
idéia de que a história poderia ensinar algo a partir de exemplos retirados das experiências
do passado. Mas, será que cabe ao historiador dar lições ao seu leitor prescrevendo normas
de conduta extraídas de exemplos históricos? Tal objeção é de grande relevância, na medida
em que a constituição do conceito moderno de história (Geschichte) tem como um de seus
pilares a dissolução, ou ao menos o enfraquecimento, do topos da historia magistra vitae.
Um dos pressupostos que sustentava a história mestra da vida, termo cunhado por
Cícero, é a noção de que a natureza humana era constante e que seus valores eram estáveis.
Nesta lógica os eventos do presente sempre apresentam similitudes ou analogias com
algum fato já ocorrido anteriormente. O historiador deveria apresentar em sua narrativa
exemplos do passado que instruíssem o presente de seus leitores. Cícero destacava a
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
504
existência de “leis sagradas da história” por meio das quais os homens conhecem seu
presente e são capazes de iluminar seu futuro. Nesta perspectiva, a dimensão moral do
conhecimento histórico estava restrita a aplicação e imitação de exemplos. (KOSELLECK,
2006 e ARAÚJO 2011). Se lembrarmos do vínculo entre tempo e narrativa podemos dizer
que este relato desenhava uma temporalidade circular e cíclica.
Com a emergência do conceito moderno de História em finais do século XVIII o
topos historia magistra vitae perdeu espaço gradativamente. Com efeito, é importante lembrar
que a consolidação da história científica no século XIX não se deu de forma rápida, nem
mesmo consensual. (CEZAR, 2004). O topos da história mestra da vida não se dissolveu de
uma só vez, nem desapareceu completamente, mas foi sendo estreitado, isto é, perdeu a
centralidade que tinha nas formas de experiência da história não moderna. (ARAÚJO,
2011) Segundo Sérgio Buarque de Holanda é sob uma perspectiva ética que se deve
compreender a máxima de Ranke segundo a qual a história deve mostrar os fatos “tal como
efetivamente se sucederam”. Esta seria uma advertência para que o historiador ao
desempenhar seu ofício não se erigisse em “um juiz supremo do passado, a fim de instruir
os contemporâneos em benefício das gerações vindouras” (HOLANDA, 1979: 14) Em
suma, estaria fora da alçada historiográfica a proposição de “lições de moral” ou exemplos.
A narrativa histórica moderna e científica apóia-se em uma cisão entre juízo de fato e juízo
de valor, ela procura relatar como os fatos realmente aconteceram, não como eles deveriam
ter ocorrido.
Na modernidade – retomando a célebre máxima de Tocqueville – o passado não é
mais capaz de iluminar o presente; a história científica e as filosofias da História, segundo
Gumbrecht, sustentavam que para aprender com a história não era mais viável a
transposição de padrões de comportamento do passado para o presente. “Pelo contrário, o
conhecimento histórico começou a se definir como a possibilidade de prever as direções
que a História, como um movimento progressivo e abrangente da mudança, tomaria no
futuro.” (GUMBRECHT, 1999: 461).
Do ponto de vista epistemológico poucos historiadores atualmente lamentam a
interdição do conhecimento histórico em propor “leis” ou em investigar “constantes” e
“regras” de comportamento. Todavia, o reverso desta medalha não é nada agradável,
especialmente da perspectiva ética. O preço a ser pago costuma ser uma perda de vínculo
entre a historiografia e o mundo da vida prática. Já que não é mais possível aprender lições
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
505
com a história parece que ela tornou-se um conhecimento incapaz de orientar a ação
humana.
Em nossa leitura os apontamentos das implicações éticas da narrativa feitos por
Ricoeur vislumbram um caminho para um possível enlaçamento entre o conhecimento
histórico e a vida prática que não percorra o toposhistoria magistra vitae. Vejamos em que
medida as duas perspectivas se diferenciam. Em primeiro lugar a noção de imutabilidade
ou constância da natureza humana não é endossada por Ricoeur. Seu recurso à identidade
narrativa se dá precisamente para evitar as aporias que podem ser encontradas na
identidade-idem, substancial, sempre idêntica a si. A identidade narrativa inscreve a
historicidade, o caráter temporal da mudança na coesão de uma vida. Ela permite o sujeito
ser si mesmo sem permanecer sempre o mesmo.
Em segundo lugar, retomando o sonho de Marcel Proust, o desejo de Paul Ricoeur é
que o sujeito seja constituído como leitor e também como autor de sua própria vida, sua
própria história. A sua história de vida é constantemente refigurada pelas histórias verídicas
ou fictícias que são contadas sobre o si mesmo. Essa refiguração faz da própria vida um
tecido de histórias narradas, o sujeito torna-se emaranhado em histórias. A ipseidade diz
respeito a um si instruído pelas obras de cultura que ele aplicou sobre si mesmo.
(RICOEUR, 1991a)
A narrativa, seja ela historiográfica ou ficcional, é uma experiência de pensamento na
qual exercitamos a capacidade de habitar mundos diferentes dos nossos. No ato de leitura
há um novo impulso para a ação, uma provocação a ser e agir de outro modo. A narrativa
não está, portanto, destituída de uma dimensão normativa e avaliativa. O narrador
apresenta ao leitor uma visão de mundo que jamais é eticamente neutra, mas que induz
(implícita ou explicitamente) a uma nova avaliação do mundo e do próprio leitor.
A narrativa já pertence ao campo ético em virtude da pretensão, inseparável da
narração, à justeza ética. Cabe ao leitor, que volta a ser agente, iniciador de ação,
escolher entre as múltiplas proposições de justeza ética veiculadas pela
leitura.(RICOEUR, 1991c: 447).
Acreditamos que esta citação torna claro o afastamento da teoria da narrativa
ricoeuriana do topos da história mestra da vida. Além de recusar a idéia de constância da
natureza humana, Ricoeur concede um lugar de destaque também ao leitor – e não apenas
ao autor - no julgamento ético da ação relatada. A teoria da leitura proposta em Tempo e
narrativa visa estabelecer ligações entre o mundo do texto e o mundo do leitor, uma vez que
sentido de um texto só é completado no momento do ato de ler. É em mímesis III que a
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
506
narrativa retorna ao mundo da ação, a partir do momento em que o leitor a aplica em sua
vida. A leitura de uma obra histórica pode contribuir para que o leitor modifique e amplie
sua compreensão de si. A narrativa historiográfica pode cooperar para que as ações
humanas ao longo do tempo tornem-se mais inteligíveis, podendo explorar inclusive os
resultados não intencionais das decisões tomadas pelos agentes em determinados
contextos. Longe de colocar sobre os ombros do historiador o peso de fornecer lições ao
presente a partir do passado, a perspectiva ricoeuriana abre a possibilidade do leitor avaliar
e se posicionar frente as ações de outrora, suas motivações, implicações éticas e normas
morais. Concluímos com uma passagem de Wilhelm Von Humboldt que possivelmente
seria endossada por Ricoeur:
A história não serve como exemplo a ser seguido ou a ser evitado. Exemplos
esses frequentemente enganosos e não raro pouco instrutivos. Seu verdadeiro e
incalculável proveito consiste antes em explicar e vivificar o sentido das ações
no mundo real antes pela forma que os acontecimentos assumem do que por si
própria. (HUMBOLDT apud KOSELLECK, 2006: 335).
Bibliografia:
ARAÚJO, Valdei Lopes de. Sobre a permanência da expressão historia magistra vitae no século XIX
brasileiro. In NICOLAZZI, Fernando, MOLLO, Helena Miranda, ARAÚJO, Valdei Lopes de
(orgs) Aprender com a história? O passado e o futuro de uma questão. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011.
BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In. Magia e
técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas, v.1 São Paulo:
Brasiliense, 1985.
CEZAR, Temístocles. Narrativa, cor local e ciência. Notas para um debate sobre o conhecimento
histórico no século XIX. História Unisinos. Volume 8, nº 10, jul-dez, 2004.
COSTA LIMA, Luiz. Mímesis e modernidade:formas das sombras. 2ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
COSTA LIMA, Luiz. Mímesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
FURET, François. Da história-narrativa à história-problema. In A oficina da história. V.1 Lisboa:
Gradiva, S/D.
GENTIL, Hélio Salles. Ficção e ética: uma perspectiva a partir da hermenêutica de Paul Ricoeur.
Comunicação apresentada no Congresso Deslocamentos na arte, Ouro Preto, 2009.
GENTIL, Hélio Salles. Para uma poética da modernidade: uma aproximação à arte do romance em Temps et
Récit de Paul Ricoeur. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
507
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Depois de aprender com a história. Em 1926. Vivendo no limite do
tempo. Rio de Janeiro, São Paulo: Editora Record, 1999.
HOLANDA. Sérgio Buarque de. O atual e o inatual em Leopold von Ranke.. In HOLANDA,
Sérgio Buarque de. (org) Ranke. São Paulo: Ática, 1979. Coleção Grandes Cientistas Sociais.
KANT, Immanuel. Fundamentação metafísica dos costumes. O imperativo categórico. In
MARCONDES, Danilo. Textos básicos de filosofia. Dos pré-socráticos à Wittgenstein. 3ª edição. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado – Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
PUC-RJ; Ed. Contraponto, 2006.
MATA, Sérgio da, Leopold von Ranke. Apresentação. In MARTINS, Estevão Rezende. (org) A
história pensada: teoria e método na historiografia do século XIX. São Paulo: Contexto, 2010.
REIS, José Carlos. Escola dos Annales: a inovação em história. 2ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
RICOEUR, Paul. Anthologie. Textes choisis et présentés par Michäel Foessel et Fabien Lamouche.
Paris: Éditions Points, 2007.
RICOEUR, Paul. História e verdade. Rio de Janeiro, Forense universitária, 1968.
RICOEUR, Paul. O si mesmo como um outro. Campinas: Papirus, 1991
RICOEUR, Paul. Temps et récit : l’intrigue et le récit historique. Paris: Éditions du Seuil, Tome I,
1991b. [Collection Points Essais]
RICOEUR, Paul. Temps et récit : le temps raconté. Paris: Éditions du Seuil, Tome III,
1991c.[Collection Points Essais]
STONE, Lawrence. O ressurgimento da narrativa. Reflexões sobre uma nova velha história. Revista
de História, nº 2/3. IFCH, Unicamp, 1991.
WHITE, Hayden. Meta-história. A imaginação histórica do século XIX. 2ª edição. São Paulo: Edusp,
2008.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
508
Michel Foucault e a historiografia pós-moderna da erótica grega
Daniel Barbo
Doutor em História pela UFMG
danielbarbo@yahoo.com.br
Resumo: A obra One hundred years of homosexuality and other essays on greek love, de David
Halperin, um dos representantes da Historiografia Construcionista, tem como base teórica
o pensamento do filósofo e historiador Michel Foucault, não somente porque este
descreveu a historicidade do fenômeno da sexualidade, redefinindo o seu conceito, mas
fundamentalmente por ter estabelecido novas bases para o reconhecimento do sujeito, não
mais pensável em termos modernos. Desfazendo-se da ilusão da essência e admitindo a
fragmentação do sujeito, Halperin pôde redimensionar e revelar aspectos do universo
erótico grego que a historiografia tradicional mal interpretava, ignorava ou não tinha
condições de perceber.
Palavras-chave: Michel Foucault, Historiografia, Erótica Grega.
Abstract: The book One hundred years of homosexuality and Other Essays on Greek love, by David
Halperin, one of the representatives of Constructionist Historiography, is based on
theoretical thinking of the philosopher and historian Michel Foucault, not only because it
described the historicity of the phenomenon of sexuality, redefining the concept, but
mainly for having established a new basis for the recognition of self, no more thinkable in
modern terms. Discarding the illusion of the essence and acknowledging the fragmentation
of the subject, Halperin could resize and reveal aspects of the Greek erotic universe that
traditional historiography have played poorly, ignored or was unable to perceive.
Key-words: Michel Foucault, Historiography, Greek Erotica.
Em 1990, foram publicadas três obras que inauguraram a abordagem construcionista
na encruzilhada da História da Sexualidade e da História Cultural: The constraints of desire: the
anthropology of sex and gender in Ancient Greece, de John J. Winkler, One hundred years of
homosexuality and other essays on Greek love, de David M. Halperin e Before sexuality: the
construction of erotic experience in the Greek world, editada por David M. Halperin, John J.
Winkler e Froma I. Zeitlin.
A série de ensaios que essas obras enfeixa emprega posturas teórico-metodológicas
em plena compatibilidade com as teses pós-estruturalistas foucaultianas no estudo dos
comportamentos eróticos no mundo grego antigo. A importância dessa trilogia como um
marco renovador na confluência da História da Sexualidade com a História Cultural foi
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
509
tematizada por diversos pensadores em muitas resenha e críticas445. Verstraete,
comentando a importância do surgimento dessa trilogia, observou que
Devido ao seu escopo abrangente e a originalidade e qualidade de sua erudição,
Before Sexuality deve ser acolhido como um trabalho verdadeiramente maior,
oferecendo uma cornucópia de insights novos e uma abertura ampla de
panorama para pesquisas e reflexões mais profundas. Juntamente com as
coleções de Halperin e Winkler e os livros prévios de Foucault e Dover, ele tem
preparado a fundação para uma fenomenologia legítima da sexualidade no
Mundo Grego antigo. (VERSTRAETE, 1991:293)
As perspectivas, as metodologias, as matrizes interpretativas fundamentais deste
conjunto de obras são tomadas de empréstimo da antropologia cultural, da crítica
feminista, do estruturalismo francês (VERSTRAETE, 1991:290), bem como da crítica
literária. Para analisarmos a matriz historiográfica construcionista, é necessário que se
coloque em perspectiva a questão das identidades culturais na Modernidade Tardia. Stuart
Hall distingue três concepções muito diferentes de identidade que se sucedem
temporalmente: o sujeito do Iluminismo, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno. O
sujeito do Iluminismo, ou cartesiano, estava baseado numa concepção de pessoa humana
dotada de um núcleo interior autônomo e autossuficiente, dotado das capacidades de razão,
de consciência e de ação. Embora esse sujeito tenha a capacidade de se desenvolver ao
longo da vida, ele permanecia essencialmente o mesmo, contínuo ou ‘idêntico’ a ele, ao
longo de sua existência. Com a crescente complexidade da sociedade moderna, surge a
noção de sujeito sociológico, cujo núcleo interior deixa de ser autônomo e autossuficiente,
já que sua formação estava na dependência de sua relação com os outros e com o exterior,
que mediavam para este sujeito os valores, os sentidos e os símbolos dos mundos que
habitava. A interação entre o eu e a sociedade seria a formadora da identidade desse sujeito
sociológico. Esses dois primeiros tipos de sujeito, produtos da Modernidade, são
conceituados como tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A marca
fundamental da Modernidade, no que tange às relações entre sujeito e sociedade, era a
estabilidade, a fixidez, a unicidade. Hall acredita que exatamente essa relação está se
desfazendo como resultado de mudanças estruturais e institucionais características da
Modernidade Tardia (a segunda metade do século XX)446, especialmente em função do
445 Cf. SUTTON Jr., 1991/1992; VERSTRAETE, 1991; THORP, 1992; DOVER, 1991; GOLDHILL, 1991;
LAIPSON, 1992.
446 HALL, 2006:34-46, aponta cinco grandes avanços na teoria social e nas ciências humanas ocorridos no
pensamento, ou que sobre ele tiveram seu principal impacto, no período da modernidade tardia, tendo como
maior efeito o descentramento final das noções que vêem o sujeito racional e a identidade como fixos e
estáveis (isto é, a morte do sujeito cartesiano): i) a releitura do marxismo pelo estruturalismo de Louis
Althusser; ii) a releitura da descoberta freudiana do inconsciente por pensadores psicanalíticos como Lacan;
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
510
último processo de globalização. Essas mudanças estão deslocando e fragmentado (ou
‘pluralizando’) as identidades, colocando em colapso a estabilidade, a fixidez e a unicidade
da relação moderna entre sujeito e estrutura. O processo de identificação, com o qual nos
projetamos em nossas identidades culturais, está se tornando cada vez mais provisório,
variável e problemático, uma vez que o sujeito pós-moderno está sendo visto como
“composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou
não-resolvidas” (HALL, 2006:10-12). Portanto, o sujeito pós-moderno é conceituado, na
visão de muitos pensadores, como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente.
Esta obra de Hall, mapeia
as mudanças conceituais através das quais, de acordo com alguns teóricos, o
‘sujeito’ do Iluminismo, visto como tendo uma identidade fixa e estável, foi
descentrado, resultando nas identidades abertas, contraditórias, inacabadas,
fragmentadas, do sujeito pós-moderno. (HALL, 2006:46)
Com essas mudanças estruturais e institucionais das últimas décadas, provocadoras
de descentralizações, deslocamentos, desestruturações e fragmentações na identidade do
sujeito e em sua relação com a estrutura, o que configura, para muitos pensadores, as novas
condições da pós-modernidade,
o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades
que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há
identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que
nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que
temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas
porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma
confortadora “narrativa do eu”. A identidade plenamente unificada, completa,
segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, na medida em que os sistemas
de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados
por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis,
com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos
temporariamente. (HALL, 2006:13)
Em tais condições, em que “a pós-modernidade desconstrói, deslegitima, deslembra,
desmemoriza o discurso da ‘Razão que governa o mundo’ ” (REIS, 2003:73), Reis afirma que
“o ser é diferença constante, isto é, temporal e inessencial, e aparece em linguagens
múltiplas. Sem pronunciar o ser, as linguagens múltiplas o constituem transitório e
diferente...” (REIS, 2003:73)
A nova abordagem da História Cultural está estreitamente vinculada a essa visão da
mutação da relação do sujeito com a estrutura, bem como da mutação do próprio sujeito,
iii) a linguística estrutural de Ferdinand de Saussure; iv) a ‘genealogia do sujeito moderno’ do filósofo e
historiador francês Michel Foucault; v) o nascimento histórico na década de 1960 da política de identidade, tanto
como crítica teórica quanto como movimento social, com a qual cada movimento apelava para a identidade
social de seus sustentadores: “o feminismo apelava às mulheres, a política sexual aos gays e lésbicas, as lutas
raciais aos negros, o movimento antibelicista aos pacifistas, e assim por diante”.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
511
mutações que criaram novas bases para o estatuto do conhecimento histórico e para a
escrita historiográfica. O percurso intelectual, filosófico, conceitual e historiográfico, que
explica a sexualidade como uma construção cultural emerge dessas mutações que nos
levam à condição pós-moderna.
Seguindo a análise de Reis, verificamos que essa mutação no estatuto da história e na
escrita historiográfica – fruto da transmutação do sujeito e das novas relações que se
estabelecem entre sujeito e estrutura, especialmente no processo de globalização – está
claramente evidenciada pela passagem que se verifica entre a história global (do século XIX
à segunda geração dos Annales) e a história em migalhas (a terceira geração dos Annales). A
história cultural parece ser o empreendimento intelectual mais bem sucedido nesse
processo de esmigalhamento da história. Reis contabiliza as perdas e os ganhos que a nova
forma de se perceber o real e a temporalidade e de se escrever a história representa e,
considerando os prós e os contras, enumera algumas características dessa transição ou
ruptura. Consideramos que os processos descritos por Hall e Reis, ligeiramente expostos
aqui, sobrepõem-se, recobrem-se e são, por conseguinte, complementares. Ou, antes,
perfazem as duas faces de Jano, passado e futuro, de um processo múltiplo. Descrevem, no
conjunto, a mutação do moderno ao pós-moderno, da história global à história em
migalhas, nos âmbitos teórico, historiográfico, conceitual, do sujeito e da relação do sujeito
com a estrutura, o que sinaliza as condições pós-modernas da escrita historiográfica da
história cultural.
Pensando na esfera das identidades eróticas, então, uma constatação possível a partir
da observação da transição da história global à história em migalhas descrita por Reis no
nível macroteórico, historiográfico e conceitual, e do processo descrito por Hall, processo
que este autor condensa e sistematiza a partir de vários autores (A. Giddens, D. Harvey, E.
Laclau) e é relatado aqui de forma muito esquemática – qual seja, a transmutação do
sujeito, e, portanto, das identidades no desenrolar da modernidade e da modernidade tardia
– é a afirmação de que, se a historiografia essencialista do homoerotismo grego está calcada
na concepção de sujeito cartesiano (sujeito do Iluminismo e/ou sujeito sociológico), a
historiografia construcionista reflete já (ou remete-nos para) uma concepção de sujeito pósmoderno, comprometida, nesse sentido, com a chamada Nova História Cultural. Partindo
de diferentes concepções de sujeitos e de diferentes interações entre sujeitos e estruturas,
cada uma dessas matrizes historiográficas produz discursos particulares e diversificados ao
estabelecer uma relação dialética entre as categorias eróticas do mundo grego antigo e as
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
512
categorias eróticas da modernidade e da pós-modernidade. Lugar comum: as narrativas
históricas, os produtos da escrita da história e as tendências historiográficas prendem-se
inexoravelmente às temporalidades ou, nas palavras de Koselleck, aos tempos históricos.
Constatamos, portanto, que a historiografia essencialista está vinculada à modernidade, ao
passo que a historiografia construcionista está vinculada à pós-modernidade. E entre elas
há diferenças profundas, pois, em função da vitória, nas últimas décadas, do individualismo
capitalista globalizante, acelera-se a fragmentação do sujeito (das identidades) e da escrita
histórica (História em migalhas); o historiador vê-se na impossibilidade de falar do todo, de
uma História Global, totalizante (a ilusão do universal), mas quer falar de tudo
(fragmentação extrema tendente à incongruência e à perda da especificidade lógica da
história); e o sentido da história (a ilusão das filosofias da história) esvazia-se cada vez mais
(que horizonte de expectativa pode-se esperar de histórias fragmentadas, desconectadas? O
horizonte da diversidade multifragmentada?).
Michel Foucault é um dos pensadores mais importantes deste processo. Em suas
obras, criativas e originais, Foucault, primeiro, analisou os saberes e seus discursos,
propondo um método, a arqueologia do saber. Como um saber se constitui? Como se
organiza? Em que condições ele aparece? Depois, analisou os poderes e suas estratégias. O
poder, para Foucault, não é um lugar ou algo que se possui, mas uma prática, uma relação
de forças com outras forças. Em seu novo método de investigação, o qual ele chama de
genealogia do poder, os saberes passam a ter uma função estratégica na rede de
dispositivos que constituem o poder. Por fim, ele analisou os modos de subjetivação que
nos constituíram em momentos determinados da história moderna ocidental. Assumiu um
desconstrutivismo filosófico e avançou, com suas investigações, sobre os saberes e os
poderes instituídos e sobre os próprios impasses que suas descobertas lhe colocaram
(RODRIGUES, 1998:41-42). O reconhecimento dos modos de subjetivação é um dos
pressupostos da genealogia foucaultiana, a qual não considera o homem apenas como
razão, consciência, “sujeito, mas também como resultado, objeto. [...] O homem não é
inteiramente sujeito e livre e a sociedade não é dominada por uma teleologia.” (REIS,
2003:71)
É nessa terceira fase de suas pesquisas, na qual ele chega aos processos de
subjetivação, que se encontra a contribuição fundamental de Foucault para a abordagem
construcionista. Em sua última obra, a trilogia que forma a História da Sexualidade, Foucault
analisou a constituição dessa categoria, a ‘sexualidade’, nos discursos das instituições e dos
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
513
saberes da Modernidade. No volume I, A vontade de saber, ele opõe-se à hipótese
repressiva e investiga a forma como o sexo não parou de ser estimulado e reverberado
pelos discursos produzidos a seu respeito por instituições como a família, a igreja, a escola
e o consultório médico, e por saberes como a medicina, a pedagogia, a psicologia e a
psiquiatria. Foucault demonstra que, desde o século XVI, e, com maior vigor, a partir do
século XIX, a colocação do sexo na ordem dos discursos foi a forma privilegiada de as
sociedades modernas produzirem a ‘sexualidade’, tanto a ‘normal’ quanto as ‘desviantes’,
sendo a vontade de saber sobre o sexo uma peça essencial de uma estratégia de controle do
indivíduo e das populações (RODRIGUES, 1998:42). Nos dois volumes seguintes, O uso
dos prazeres e O cuidado de si, Foucault chega a uma percepção ao mesmo tempo
surpreendente e, de certa forma, estarrecedora. Sua análise genealógica sobre as questões
do saber e do poder lança-o num impasse: se o indivíduo é um efeito do poder, quais as
suas possibilidades de singularização e de autonomia diante da sociedade? O poder é
relação de forças e se distribui em rede. Dessa forma, não há um lugar do poder e nada
está isento de poder. Se não há um lugar do poder, não pode haver um lugar da resistência.
As lutas são formas de resistência na própria rede de poderes. Assim como o poder, a
resistência se distribui, como uma rede, em pontos móveis e transitórios, em toda a
estrutura social. Seria possível ao indivíduo, como produto do poder, resistir ao que o
constitui? Portanto, se, por um lado, o poder é uma relação de forças com outras forças,
por outro, a subjetivação é uma relação de forças consigo mesmo. A partir dessas
conclusões, Foucault, formulando uma estilística da existência, tratará das possibilidades
de vida capazes de resistir ao poder e de se beneficiar do saber. (RODRIGUES, 1998:43)
Nesse percurso, Foucault desprendeu ‘sexualidade’ das ciências físicas e biológicas e
tratou-a, ao contrário, como o conjunto de efeitos produzidos nos corpos, nos
comportamentos e nas relações sociais por uma certa disposição de uma tecnologia
política complexa. Ele divorciou a ‘sexualidade’ da ‘natureza’ e interpretou-a, ao contrário,
como uma produção cultural. A partir desse enfoque, as perguntas que Foucault faz para
compreender historicamente a experiência sexual são: Como se constituía a experiência
sexual numa dada cultura? Em que termos era construída a experiência sexual? Como a
experiência sexual se distinguia de, e se relacionava com, outros tipos de experiências, e
como as fronteiras entre esses vários tipos de experiências estavam articuladas? Prazeres e
desejos sexuais eram diferentemente configurados para membros diferentes de uma dada
sociedade e, se sim, de acordo com quais princípios? Como os termos empregados pelos
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
514
vários membros dos grupos de seres humanos para organizar suas experiências sexuais
operavam conceitual e institucionalmente de forma a constituírem os seres humanos
enquanto sujeitos da experiência sexual? Quais outras áreas da vida estavam implicadas
nessa operação? Como a constituição de sujeitos sexuais relacionava-se com a constituição
de outras formas sociais, outras formas de poder e outras formas de saber? (HALPERIN,
1990:7)
Essas perguntas de Foucault recolocam a relação que existe entre identidades,
experiências e comportamentos eróticos e a sociedade como um todo, na qual eles estão
inscritos e foram constituídos, e levam o filósofo a uma chave analítica para compreender a
lógica dessas identidades, experiências e comportamentos: o processo de subjetivação ao
qual o indivíduo e os grupos sociais estão sujeitos em sua sociedade.
Quando, em 1976, Foucault recolocava a relação existente entre identidades,
experiências e comportamentos eróticos e a sociedade como um todo, ele estava
identificando uma das arestas dessa crise promovida pela aceleração das mudanças na
contemporaneidade tardia: a sua face erótica, que vem acompanhada pelo deslocamento
concomitante de outras identidades culturais: de classe, etnia, raça e nacionalidade. Nessa
atmosfera de aceleração da globalização, de descentramento e deslocamentos do sujeito,
“tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmo” (HALL, 2006:9),
veremos, adiante, a tendência à desestruturação, erosão, fragmentação (pluralização) das
identificações eróticas representadas pelo par homossexualidade e heterossexualidade,
iluminando uma das inúmeras possibilidades de “ ‘jogo de identidades’ e suas
conseqüências políticas” (HALL, 2006:20) entre os sujeitos na sociedade dita pós-moderna.
Decerto, todo o processo que levou a essa crise das identidades culturais no mundo
moderno e, consequentemente, às novas identificações culturais na pós-modernidade,
suscitaram no filósofo francês a necessidade de analisar, repensar, o processo de
subjetivação ao qual o indivíduo e os grupos sociais estão sujeitos em sua sociedade.
Retomando a tese foucaultiana da construção da sexualidade, os ensaios contidos na
obra One hundred years of homosexualityde David M. Halperin gravitam em torno do tema da
erótica da cultura masculina na antiguidade clássica, em particular, no mundo grego antigo.
O objetivo fundamental da obra é “[...] examinar mais intimamente os vários aspectos
pelos quais as práticas sexuais gregas diferem das ‘nossas próprias’ [...] e conceber uma
interpretação das experiências eróticas na antiguidade clássica que coloque em primeiro
plano a especificidade histórica e cultural daquelas experiências”. (HALPERIN, 1990:1-2)
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
515
Em termos macroteóricos, a rejeição de uma história global (a não totalidade) e a tônica
posta na fragmentação (o não sistema) já se enunciam no prefácio da obra. Estes ensaios,
diz Halperin,
não constituem um tratamento compreensivo e sistemático daquele (grande)
tópico [a erótica da cultura masculina no mundo grego antigo]. Antes, eles
focam aspectos selecionados deste e exploram uma variedade de questões que
emergiram dos esforços modernos para elucidá-lo. (HALPERIN, 1990:ix)
A obra não possui um ensaio exclusivo sobre a pederastia ateniense, ainda que dela
o autor faça uma brilhante análise. Antes, Halperin inquire
os componentes e contextos sociais mais amplos do ‘Amor Grego’,
acreditando que nós possamos chegar a um entendimento mais satisfatório da
pederastia ateniense clássica se não a virmos como uma instituição isolada, e
portanto ‘queer’, mas se a considerarmos, de preferência, como meramente um
fio numa rede maior e mais intricada de práticas eróticas e sociais na Grécia
antiga, que variam da amizade heróica ao sexo comercial. O resultado dessa
mudança de ênfase, eu espero, será o de ampliar o escopo do estudo da erótica
da cultura masculina na Grécia antiga, e de distanciar este estudo da moderna
categoria
médico/forense/social-científica
da
homossexualidade.
(HALPERIN, 1990:ix)
A obra está dividida em duas partes: os ensaios da primeira parte [1. One Hundred
Years of Homosexuality; 2. ‘Homosexuality: A Cultural Construct (An Exchange with
Richard Schneider); 3. Two Views of Greek Love: Harald Patzer and Michel Foucault]
são, em grande medida, teóricos e remetem para um número de questões relacionadas com
o método erudito e a prática crítica corrente. Os da segunda [4. Heroes and their Pals; 5.
The democratic body: Prostitution and Citizenship in Classical Athens; 6. Why is Diotima
a Woman?], são exemplos de crítica literária prática e análise histórica que ampliam alguns
dos princípios contidos nos ensaios anteriores para uma série de problemas concretos na
interpretação da cultura grega (HALPERIN, 1990:9).
No primeiro ensaio, One Hundred Years of Homosexuality, Halperin investiga o
surgimento dos neologismos “homossexual” e “homossexualidade” no século XIX,
demonstrando que o termo mais comumente usado naquele século para se referir ao
contato erótico entre pessoas do mesmo sexo ou ao comportamento desviante de gênero,
isto é, “inversão sexual”, não denotava o mesmo fenômeno conceitual que
“homossexualidade”. Segundo Halperin, de acordo com o estudo da literatura médica
sobre o assunto feito por George Chauncey em 1982-83,
‘Inversão sexual’ referia-se a uma larga variedade de comportamentos
desviantes de gênero da qual o desejo homossexual era somente um aspecto
lógico, mas indistinto, ao passo que ‘homossexualidade’ focava-se na questão
mais limitada da escolha de objeto sexual. A diferenciação do desejo
homossexual dos comportamentos ‘desviantes’ de gênero na virada do século
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
516
reflete uma reconceitualização maior da natureza da sexualidade humana, sua
relação com o gênero e seu papel na definição social do indivíduo.
(CHAUNCEY apud HALPERIN, 1990:15)
A verificação de tal reconceitualização, da “inversão sexual” à “homossexualidade”,
que explora e põe em relevo a formação de subjetividades e de identidades eróticas,
remete-nos à preocupação da História Cultural em colocar em primeiro plano na escrita
histórica não mais a estrutura, mas o indivíduo, não mais o social objetivo, mas o individual
subjetivo. O que reflete o descrédito, para a historiografia vinculada às mudanças pósmodernas, das abstrações estruturais, desencarnadas e irreais; a consideração como “reais”,
indivíduos concretos e singulares; a valorização da subjetividade e do tendencioso, por
representarem manifestações do indivíduo e não terem mais a pretensão do claro e do
distinto universal. (REIS, 2003:93)
Para Halperin, a evidência dos múltiplos fenômenos eróticos examinados no corpus
documental grego vem confirmar a tese foucaultiana de que as identidades eróticas são
socialmente construídas, além de fornecer um campo instigante de investigação para a
História da Sexualidade, fundamentalmente no que diz respeito às relações eróticas entre
pessoas de mesmo sexo, o que proporcionou os novos avanços alcançados pela
historiografia construcionista. Na sequência do capítulo One Hundred Years of
Homosexuality, o autor elabora uma primeira argumentação nesse sentido ao refutar a tese
fundamental das obras de John Boswell, a tese de que as identidades eróticas são essências
humanas, e, portanto, tendem à universalidade e à naturalidade. Por essa via de raciocínio,
mesmo bem antes de surgir o termo homossexualidade, existia já a sua prática e
identidade, da mesma forma como a gravidade já era experimentada antes de 1685, ano em
que Isaac Newton formulou a Lei da Gravitação Universal. Boswell afirmou que a
proposta do famoso mito de Aristófanes relatado no Banquete platônico “é explicar porque
os seres humanos são divididos em grupos de interesse predominantemente homossexual
ou heterossexual”. Portanto, para este autor, este mito, juntamente com vários outros da
Antiguidade Clássica, garantiria a existência da homossexualidade e da heterossexualidade
enquanto categorias eróticas antigas (senão universais) da experiência humana. A sua
interpretação do mito leva-o a concluir que, de acordo com o Aristófanes platônico,
interesses homossexuais e heterossexuais são “tanto exclusivos quanto inatos”.
(HALPERIN, 1990:18-19. Citado seletivamente)
A argumentação de Halperin para refutar essa tese de Boswell é convincente. Ela
desconstrói a ideia de que pudesse haver na cultura grega algum indício de que os gregos
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
517
compartilhassem de qualquer noção que fosse remotamente semelhante ao que hoje
podemos chamar de homo e heterossexualidade. Halperin defende a ideia de que não se
pode concluir tal divisão a partir deste mito já que, das consequências dele, o próprio
Aristófanes não apontara aquela conclusão. Pelo contrário, este mito ajuda a ilustrar o
quanto os atenienses clássicos desejavam evitar conceituar comportamentos sexuais em
acordo com uma oposição binária que polarizasse contatos sexuais entre pessoas de
mesmo sexo e contatos sexuais entre pessoas de sexo oposto. Os contra-argumentos são
dois:
Em primeiro lugar, o mito de Aristófanes gera não duas, mas pelo menos três
“sexualidades” distintas (homens atraídos por homens, mulheres atraídas por
mulheres, e – consignadas igualmente em uma única classificação,
evidentemente – homens atraídos por mulheres, bem como mulheres atraídas
por homens). Além do mais, não há a mais leve sugestão, em nada que
Aristófanes diz, de que os atos ou preferências sexuais de pessoas
descendentes de um original feminino sejam de algum modo similar aos, sem
falar congruente com ou isomórfico aos, atos e preferências sexuais daqueles
descendentes de um original masculino. Daí que nada no texto permite-nos
suspeitar da existência mesmo de uma categoria implícita à qual pertençam
tanto homens que desejam homens quanto mulheres que desejam mulheres
em contradição a alguma outra categoria contendo homens e mulheres que
desejam um ao outro. (HALPERIN, 1990:19-20)
Por esse modo de analisar o mito, a sua consequência é o de perceber o desejo
sexual de todos os seres humanos como formalmente idênticos: todos os humanos
estariam procurando “um substituto simbólico para um objeto originário uma vez amado
e subsequentemente perdido num trauma arcaico.” Nesse sentido, todos os humanos
pertencem a uma mesma “sexualidade” e, dessa forma, ninguém é individualizado ao nível
do ser sexual. (HALPERIN, 1990:20)
Em segundo lugar, e contrariando as implicações claras do mito expostas acima, o
relato de Aristófanes, argumenta Halperin, “figura uma distinção dentro da categoria de
homens que são atraídos por homens, um detalhe infraestrutural que não consta na
descrição de cada uma das outras duas categorias”. Halperin refere-se às características
fundamentais da pederastia grega, isto é, à condição de que tal homem é um paiderastes (o
adulto que ama o jovem) e um philerastes (o jovem que é receptivo ao adulto) em diferentes
momentos de sua vida, bem como às diferenças que caracterizam as “sexualidades” de
cada uma dessas categorias447. Assim,
447
Para uma análise mais ampla das diferenças entre as categorias paiderastes e philerastes, cf. HALPERIN,
1990, nota 31 do capítulo One hundred years of homosexuality; BARBO, 2008, capítulo 3: O homoerotismo
na cultura falocêntrica.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
518
diferentemente das pessoas que integram as duas primeiras categorias, aqueles
que descendem de um masculino original não atraem um ao outro sem
qualificação; Pelo contrário, eles desejam garotos quando são homens e obtêm
um certo prazer (não-sexual) no contato físico com homens, quando são
garotos. Então, desde que – como a passagem prévia sugere – os atenienses
clássicos distinguiam claramente os papéis de paiderastes e philerastes, relegandoos não somente a diferentes classes de idade, mas virtualmente a diferentes
“sexualidades”, o que Aristófanes está descrevendo aqui não é uma orientação
sexual homogênea e única comum a todos aqueles que descendem de um
masculino original, mas antes um conjunto de comportamentos distintos e
incomensuráveis os quais tais pessoas exibem em períodos diferentes de suas
vidas [...]. (HALPERIN, 1990:20)
Representações de distinções identitárias num mito num diálogo filosófico...
Representação é um conceito-chave para a história cultural. Roger Chartier, um autor
definitivamente associado à Nova História Cultural pensa que a importância deste
conceito está em permitir
articular três registros de realidade: por um lado, as representações coletivas
que incorporam nos indivíduos as divisões do mundo social e organizam os
esquemas de percepção a partir dos quais eles classificam, julgam e agem; por
outro, as formas de exibição e de estilização da identidade que pretendem ver
reconhecida; enfim, a delegação a representantes (indivíduos particulares,
instituições, instâncias abstratas) da coerência e da estabilidade da identidade
assim afirmada. A história da construção das identidades sociais encontra-se
assim transformada em uma história das relações simbólicas de força. Essa
história define a construção do mundo social como o êxito (ou o fracasso) do
trabalho que os grupos efetuam sobre si mesmos – e sobre os outros – para
transformar as propriedades objetivas que são comuns a seus membros em
uma pertença percebida, mostrada, reconhecida (ou negada).
Conseqüentemente, ela compreende a dominação simbólica como o processo
pelo qual os dominados aceitam ou rejeitam as identidades impostas que visam
a assegurar e perpetuar seu assujeitamento. (CHARTIER, 2002:11)
As identidades eróticas são socialmente construídas e suas representações codificamse na diversidade dos produtos culturais. Em relação ao mito analisado, Halperin evidencia
esses registros de realidade articulados por meio das representações, ao afirmar que
a imagem desenhada pelo Aristófanes de Platão é uma representação
historicamente precisa das convenções morais que governam o comportamento
sexual na Atenas Clássica, senão da realidade do próprio comportamento
sexual. (HALPERIN, 1990, nota 31)
Afloram neste ponto da análise de Halperin as emergências das questões pungentes
ligadas às multiplicações, as diversificações, as contradições identitárias postas pelos
desdobramentos, pelos deslocamentos sociais promovidos pela Modernidade tardia (ou, se
preferirem, pela pós-Modernidade). Se Boswell pretende ainda a clareza da estrutura, o
distinto universal, a essência da identidade, valores típicos do pensamento moderno,
Halperin ocupa-se com as múltiplas e complexas manifestações identitárias. Ele retorna a
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
519
este mito com outras perguntas, com o olhar iluminado por outras questões que só a
pressão dos deslocamentos do sujeito pós-moderno poderia proporcionar.
Halperin estabelece alguns pontos básicos a respeito do ato erótico na Atenas
Clássica. Sinteticamente, eles podem ser assim enumerados: (i) o ato erótico não é
intrinsecamente relacional ou colaborativo; (ii) ele é profundamente polarizador e
hierárquico: ele efetivamente divide, classifica e distribui seus participantes em duas
categorias distintas e radicalmente opostas: o papel ativo e o papel passivo; (iii) ele articulase com a política, expressando as relações de poder, isto é, as categorias eróticas ativo e
passivo são social e politicamente articuladas. (HALPERIN, 1990:29-30)
Na Atenas Clássica, o discurso público masculino tende a representar o ato erótico,
primeiro, não como um ato coletivo compartilhado, uma conjugalidade, mas como uma
ação praticada por uma pessoa sobre outra. Ele não produz uma relação de mutualidade,
mas um ato ou um impacto, de acordo com o ponto de vista do participante. Por isso, ele
não possui um caráter intrinsecamente relacional ou colaborativo, mas unilateral,
exclusivista e de dominação pessoal.
Segundo, precisamente porque ele é concebido como essencialmente centrado no
gesto assimétrico da penetração fálica, o ato erótico é uma experiência profundamente
polarizadora, dividindo, classificando e distribuindo seus participantes em categorias
distintas e radicalmente opostas, quais sejam, o parceiro insertivo ou ativo e o parceiro
receptivo ou passivo. Desde que o parceiro insertivo é interpretado como um agente
erótico, cuja penetração fálica expressa ‘atividade’ erótica, ao passo que o parceiro
receptivo é interpretado como um paciente erótico, cuja submissão à penetração fálica
expressa ‘passividade’ erótica, o ato erótico também é hierárquico.
Finalmente, essa hierarquia expressa uma dominação sociopolítica. A relação entre
os parceiros eróticos ativo e passivo reproduz a relação configurada entre superior e
subordinado nas esferas social e política. Estabelece-se, destarte, uma isomorfia entre o
papel erótico de um indivíduo e seu status sociopolítico. Isso implica em que um cidadão
masculino adulto só pode ter relações eróticas legítimas com pessoas de status sociopolítico
inferior, ou seja, mulheres, garotos, estrangeiros ou escravos. Um ato erótico reproduz o
diferencial em status sociopolítico que distingue os parceiros envolvidos: a autoridade e o
prestígio do cidadão masculino adulto expressam-se em seu privilégio erótico – em seu poder
de iniciar um ato erótico, em seu direito de obter prazer por meio desse ato e na própria
precedência do papel erótico insertivo.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
520
Assim, para um contato erótico entre dois homens ser considerado legítimo e
respeitável, as pessoas envolvidas não devem possuir o mesmo status sociopolítico. A
relação erastés/erómenos, ou pederastia, deve incluir obrigatoriamente uma pessoa de status
superior e uma de status inferior. Além disso, os atos eróticos nessa relação devem ser
congruentes com o diferencial de poder de acordo com o qual a relação foi estruturada.
Isso implica em que o parceiro superior tomava a precedência erótica – somente ele
poderia iniciar um ato erótico, penetrar o corpo de seu parceiro e obter prazer erótico. A
falta de reciprocidade social na relação acarretava a falta de reciprocidade erótica, e ambas
eram necessárias.
Em sua análise, Halperin chega a uma conclusão muito importante, pois reveladora
da interdependência cultural entre práticas sociais e experiências subjetivas:
Os autores gregos sugerem que as escolhas sexuais nem sempre expressam a
essência individual de um agente ou revelam a orientação profunda da vida
interna de uma pessoa, independentemente de sua vida política ou social. Pelo
contrário, as identidades sexuais dos atenienses clássicos – as experiências de si
próprios enquanto agentes sexuais e enquanto seres humanos possuidores de
desejos – parecem ser inseparáveis de, se não determinadas por, suas posições
públicas. (HALPERIN, 1990:32-33)
Sendo assim, o sistema erótico dos atenienses clássicos não pode ser entendido se
for descrito enquanto uma esfera autônoma da vida governada por leis internas próprias.
Suas atitudes e práticas eróticas só revelam sua coerência sistemática se as situamos no
amplo contexto social no qual elas estão mergulhadas, desde que a esfera erótica dos
atenienses clássicos, longe de ser independente e estar separada da política, era constituída
pelos mesmos princípios pelos quais se organizava a vida pública ateniense. (HALPERIN,
1990:31)
Diferentemente do mundo moderno ocidental, no qual as categorias sexuais (homo-,
hetero- e bissexualidade) são articuladas pela ‘sexualidade’, enquanto esfera ideologizante
autônoma, e não se relacionando de forma tão direta com questões sociopolíticas, na
Atenas Clássica, as categorias eróticas (ativo e passivo) são articuladas pelas relações de
poder e não podem ser entendidas sem referência a essas relações. Desse modo, podemos
pensar as categorias ativo e passivo para os atenienses clássicos, não apenas enquanto
categorias eróticas, mas enquanto categorias sócio-eróticas, pois elas exprimem uma
posição erótica e uma posição na hierarquia sociopolítica.
A cidadania para o homem ateniense, portanto, era um conceito (e uma experiência)
sociopolítico simultaneamente articulado com o gênero e com a prática erótica de seu
titular. (HALPERIN, 1990:11)
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
521
A partir desses pontos, Halperin pôde estabelecer que na Atenas Clássica vigorava
uma complexa estruturação que articulava estreita e intimamente a erótica e o poder
político. Essa estruturação concede a exclusividade do direito à voz política e do acesso ao
espaço público448 aos cidadãos atenienses em plena maturidade da atividade fálica (papel
erótico insertivo). Esse direito e esse acesso são vetados aos outros membros da cidadania
(mulheres e jovens) e aos outros membros da comunidade (escravos e estrangeiros), todos
em submissão real ou potencial ao falo através da passividade (papel erótico receptivo). A
articulação entre erótica e poder político plasma-se, assim, na polaridade ativo/passivo, o
que faz identificar a masculinidade com a atividade fálica (o ato de penetrar quem quer que
seja, do sexo masculino ou feminino) e considerar a passividade erótica voluntária,
condição identificada com a inferioridade política, um ato de submissão indigno para o
cidadão ateniense do sexo masculino, já que tal desejo representa o abandono voluntário
de uma identidade masculina a favor de uma identidade feminina, violando o senso de
congruência profundamente sentido e ansiosamente defendido no mundo grego, entre
gênero, práticas eróticas e identidade social de uma pessoa. Portanto, essa cultura erótica
masculina estabelece uma assimetria erótica estruturada por, e simultaneamente
estruturante de, uma assimetria sociopolítica.
O comportamento erótico, muito mais que expressar inclinações ou disposições
internas de alguém, servia para posicionar atores sociais nos lugares designados para eles
na estrutura hierárquica da política e da sociedade ateniense. Desse modo, o poder dessa
cultura erótica masculina era posto em funcionamento através de um dispositivo
complexo responsável por uma dupla dominação: uma dominação erótica configurada por
uma dominação sociopolítica. E essa dominação constitui-se em torno do falo, não
enquanto simplesmente pênis ou um mero equipamento da anatomia masculina, mas
enquanto um símbolo do poder sociopolítico construído culturalmente pelo discurso
erótico grego449.
448
Na democracia ateniense, apenas os cidadãos masculinos adultos tinham o direito de participar da
assembleia, fazer parte dos júris dos tribunais, ser eleito ou sorteado para um cargo público e lutar na guerra.
Na prática, e por diversos motivos, um grupo ainda menor dentro desse universo exercia efetivamente a
plenitude desses direitos da cidadania, caracterizando uma elite relativamente pequena em relação à população
total da Ática.
449 HALPERIN, 1990, capítulo 1, nota 83, chama o discurso erótico grego de fálico porque “(1) os contatos
sexuais são polarizados em torno da ação fálica, isto é, são definidos por quem tem o falo e pelo que é feito
com ele; (2) prazeres sexuais que não sejam prazeres fálicos não contam na categorização de contatos sexuais;
(3) para qualificar um contato de sexual, requer-se que um – e não mais do que um – dos dois parceiros tenha
um falo”.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
522
No ensaio “Heroes and Their Pals”, Halperin faz um estudo comparativo de três
tradições narrativas de amizade entre duplas de guerreiros: Gilgamesh e Enkidu na epopéia
babilônica, Davi e Jónatan nos livros de Samuel no Velho Testamento e Aquiles e Pátroclo
na Ilíada de Homero. A grande originalidade deste estudo comparativo encontra-se no
fato de não mais analisar o relacionamento entre Aquiles e Pátroclo, na Ilíada, como
meramente o ponto inicial, no registro literário, do ‘amor grego’. Convincentemente,
Halperin coloca esse relacionamento, numa perspectiva espaço-temporalmente muito mais
ampla, no contexto de uma tradição mais antiga de companheirismo heróico do oriente
próximo, conforme a tradição fica exemplificada nas mitografias babilônica e hebraica.
Verstraete sugerira que tal contexto remonta também a uma tradição indo-européia.
(VERSTRAETE, 1991:290-291)
Pode-se chegar à conclusão de que a interpretação construcionista, segundo a teoria
que David Halperin desenvolveu em One hundred years of homosexuality, baseia-se na
concepção foucaultiana de que subjetividades sexuais são socialmente construídas.
Referências bibliográficas
BARBO, Daniel. O Triunfo do Falo: Homoerotismo, Dominação, Ética e Política na
Atenas Clássica. Rio de Janeiro: E-Papers, 2008.
CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietude. Porto Alegre: Ed.
Universidade/UFRGS, 2002.
BOSWELL, John. Christianity, social tolerance and homosexuality: gay people in western
Europe from the beginning of the Christian Era to the fourteenth century. Chicago and London:
The University of Chicago Press, 1980.
BOSWELL, John. Same-sex unions in premodern Europe. New York: Vintage Books, 1994.
DOVER, Kenneth J. A homossexualidade na Grécia antiga. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.
DOVER, K. J. Review: Greek Sexual Choices. Reviewed work: One Hundred Years of
Homosexuality and Other Essays on Greek Love by David M. Halperin. The Classical Review,
New Series, Vol. 41, Nº 1, (1991), pp. 161-162.
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 6ª edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2002.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
523
______. As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins
Fontes, 1981.
______. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1978.
______. História da sexualidade: a vontade de saber. 13ª edição, Rio de Janeiro: Graal, 1988.
______. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1977a.
______. História da sexualidade: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
______. História da sexualidade: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
______. Microfísica do poder. 17ª edição, Rio de Janeiro: Graal, 2002.
______. Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro: Forense, 1980.
______. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1977b.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11ª ed., Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
HALPERIN, David M. Is there a History of Sexuality? In: ABELOVE, Henry; BARALE, Michèle
Aina; HALPERIN, David M. The Lesbian and Gay studies reader. New York, London:
Routledge, 1993.
HALPERIN, David M. One hundred years of homosexuality and other essays on Greek love.
New York, London: Routledge, 1990.
______. Saint Foucault. Towards a gay hagiography. New York: Oxford University Press, 1995.
HALPERIN, David M.; WINKLER, John J.; ZEITLIN, Fromma I. Before sexuality: the
construction of erotic experience in the Greek world.Princeton: Princeton University
Press, 1990.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à análise dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto: Ed. Puc-Rio, 2006.
NIETZSCHE, F. W. A Genealogia da Moral. 3ª edição, Lisboa: Guimarães, 1976.
______. Além do Bem e do Mal, ou, prelúdio de uma filosofia do futuro. São Paulo:
Hemus, 1977.
PADGUG, Robert A. Sexual Matters: On Conceptualizing Sexuality in History. Radical History
Review, (20): 3-23, 1979.
REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 3ª edição, Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2000.
______. As identidades do Brasil 2: de Calmon a Bomfim. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
______. História & Teoria: Historicismo, Modernidade, Temporalidade e Verdade. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2003.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
524
______. Tempo, História e Evasão. Campinas: Papirus, 1994.
RODRIGUES, Valter. Michel Foucault: o Pensamento como Máquina de Guerra. In:
Revista Educação. Número 205. São Paulo: Editora Segmento, p. 40-43, 1998.
VERSTRAETE, Beert C. [untitled] Reviewed works: One Hundred Years of
Homosexuality and Other Essays on Greek Love by David M. Halperin; The Constraints
of Desire: The Anthropology of Sex and Gender in Ancient Greece by John J. Winkler;
Before Sexuality: The construction of Erotic Experience in the Ancient Greek World by
David M. Halperin; John J. Winkler; Froma I. Zeitlin. Journal of the History of
Sexuality, Vol. 2, nº 2, Special Issue, Part 1: The State, Society, and the Regulation of
Sexuality in Modern Europe, (Oct., 1991), pp. 289-293.
WINKLER, John J. Las coacciones del deseo: antropología del sexo y el género en la
antigua Grecia. Buenos Aires: Manantial, 1994.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
525
O caso de negação do Holocausto na Espanha
Daniela Ferreira Felix
Mestranda em História pela UFRRJ/ Bolsista Capes-Reuni
danielaufrrj@yahoo.com.br
Resumo: Na Espanha o nome de Pedro Varela é conhecido por ser editor proprietário da
Livraria Europa, localizada em Barcelona. A Livraria é especializada em obras relacionada
à temática da Segunda Guerra Mundial, Hitler, nacional-socialismo e negação da morte de
judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Por conta do conteúdo que divulgava a partir de
sua livraria, Varela foi acusado pela Justiça espanhola de divulgar ideias genocidas e atentar
contra os direitos fundamentais e as liberdades públicas garantidas pela Constituição. Após
ser condenado e preso em 2010, Varela passa a fazer com regularidade a confecção de
escritos em formatos de cartas que tinham por objetivo divulgar seus ideais e se defender
das acusações que sofria, reclamando para si o direito a liberdade de expressão. Muitas
dessas cartas foram publicadas no blog oficial de apoio a Varela, o Libertad Pedro Varela. O
presente trabalho tem como objetivo apreender quais os caminhos que Varela utiliza para
divulgar suas ideias, quais são suas propostas, seus argumentos de defesa e, num certo
sentido, como se posiciona frente às acusações que sofre. Nas cartas é possível
identificarmos uma série de estratégias, em que o autor tem como intenção colocar-se
como um detentor da verdade acerca da história de perseguição de judeus.
Palavras-chave: Pedro Varela, judeus, negacionismo.
Abstract: In Spain the name of Pedro Varela is known to be editor and owner of Library
Europe located in Barcelona. The Library specializes in works related to the theme of
World War II, Hitler, National Socialism and denial of death of Jews during World War II.
On account of the content that promoted from his bookstore, Varela was accused by
Spanish court to divulge genocide ideas and undermining the fundamental rights and public
freedoms guaranteed by the Constitution. After being convicted and sentenced in 2010,
Varela regularly makes the production of written in letters formats that aimed to promote
his ideals and defend himself against charges that he suffered, claiming for itself the right to
freedom of expression. Many of these letters were published in the official blog to support
Varela, Pedro Varela Libertad. This study aims to grasp what steps Varela uses to
disseminate his ideas, what are his proposals, his defense and, in a sense, is positioned
facing the charges that suffers. In the letters it is possible to identify several strategies, in
which the author is intended to stand as a holder of the truth about the history of
persecution of Jews.
Keywords: Pedro Varela, Jews, Holocaust denial.
As décadas de 1930 e 1940 na Europa se apresentam como um período marcado
pelo processo de institucionalização do racismo e da intolerância, sendo o nacionalsocialismo alemão, talvez, o seu caso paradigmático e muitas são as produções acadêmicas
que buscam dar conta de explicar como se deu o massacre nos campos de extermínio
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
526
nazistas450. Ao falarmos do episodio da morte de judeus, ciganos e homossexuais nos
campos de concentração e extermínio nazistas estamos tratando de um tema ainda recente
nas páginas da história. A aproximação temporal entre o momento presente e um
acontecimento que teve a proporção do Holocausto gera-nos ainda um incômodo e uma
busca por respostas para compreender de que forma foi possível que se engrendrasse tal
plano de extermínio, com uma lógica muito própria, que determinava (e condenava) todos
que devessem ser eliminados da vida social alemã, sendo inseridos no plano de “limpeza
racial” promovido pelo regime nazista.
A perseguição aos judeus incorporava um discurso anti-semita e trazia em si uma
imagem dos judeus como o “o mal” do mundo. Eram tratados como “parasitas” que
pretendem a “dominação mundial”. Durante a República de Weimar, os nazistas ofereciam
uma alternativa de mudança e de reestruturação da sociedade alemã e em “1932 eram a
maior força política da Alemanha e sua retórica anti-semita tornou-se um ponto básico do
discurso político.”(DWORK;PELT,2004) A ideia do governo de Hitler era alimentar o
ódio e levantar a bandeira nacionalista. Ainda em 1919, Hitler declara que “os judeus
constituem uma raça à parte; suas preocupações puramente materiais e interesseiras
tornam-se inassimiláveis e é preciso tratá-los como estrangeiros.” (SORLIN,1974:77) Na
lógica nazista, combater os judeus significa combater uma doença, um povo sem pátria.
Pode-se dizer que uma “morte social” estava para ser carimbada na vida dos judeus e com
o início da guerra a estrela-de-davi deveria ser exibida, num sinal de diferenciação. Todos
esses procedimentos faziam parte do processo de arianização da Alemanha. Até 1941,
poucos haviam conseguido emigrar e cada vez mais a guerra política misturou-se a guerra
de raças. (FRIEDLANDER,1974) As ações de repressão do governo atingiram,
primeiramente, aos setores mais populares da sociedade e o “pior da repressão dentro da
Alemanha foi então suportado, acima de tudo, pelos ‘indesejáveis’ raciais - especialmente os
judeus...” (KERSHAW,1993:68) Dentro da política de exclusão e deportação, foi
naturalizado o processo de morte e através da Conferência de Wannsee, em 1942, Heydrich
apresentou um plano de extermínio de judeus. Com a conferência se iniciou um processo
de deportação e os campos de concentração e extermínio conheceram de perto as
450
Entre os trabalhos que tratam da política de Hitler e o genocídio de judeus destacamos: BAUMAN,
Zygmunt. Modernidade e o Holocausto Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998; DWORK, Debórah. PELT, R.
Jan Van, Holocausto. Uma História. Rio de Janeiro: Imago ,2004; KERSHAW, Ian. Hitler. Um perfil no
poder. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993; STACKELBERG, Roderick, A Alemanha de Hitler. Origens,
Interpretações, Legados. Rio de Janeiro: Imago, 2002; CYTRYNOWICZ, Roney. Memória da barbárie.
São Paulo: Nova Stella, Edusp,1990.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
527
atrocidades que mais tarde vieram à tona. As mortes que ocorreram nos campos “se deram
por condições naturais, trabalho, experiências médicas (exposição à alta pressão,
congelamento, vacinação com doenças infecciosas....)” e também inspiraram-se no
Programa T-4 quanto ao uso das câmaras de gás. Neste sentido, o Holocausto, um
fenômeno singular na história451, significou o ponto máximo da política excludente de
Hitler e seus colaboradores.
Reavivando a politica hitlerista: a existência dos negadores da História
Desde o fim da Segunda Guerra existiam declarações que tinham o intuito de
desacreditar a politica de extermínio engendrada pelo regime de Hitler. Isso significou, num
primeiro momento, relativizar aspectos do programa de exclusão e extermínio e, depois,
negar que este episódio tenha sido real, possível e da forma como a História o relata. A
tentativa de colocar a História em descrédito quanto a tal acontecimento partiu de um
grupo de intelectuais de extrema-direita. O que pretendem é oferecer algo que consideram
uma nova versão da História, como se o patamar por eles ocupados fosse o mesmo de
historiadores. Se auto intitulam revisionistas da História justamente com a intenção de
demarcar o lugar que é por eles ocupado para falar desse histórico e trágico episódio. Ao
colocarem-se como revisionistas, abriria-lhes campo e garantiria legitimidade para divulgar
suas “versões”. Porém, considerá-los como tais seria, de acordo com o historiador Luis
Edmundo Moraes, cair em sua própria rede (MORAES,2011:2). Pois não se tratam de
versões possíveis da História o que esse grupo nos traz, mas uma negação da História com
objetivos políticos muito próprios. Nosso interesse com este texto é falar brevemente de
um núcleo negacionista existente na Espanha, centralizado na figura do proprietário da
Livraria Europa, Pedro Varela. Trata-se de um negador da História que alcançou projeção
na Espanha, manifestando admiração pública por Adolf Hitler em diversas declarações, na
451
O historiador Roney Cytrynowicz fala de forma clara o que torna o genocídio de judeus único: “...em
primeiro lugar o fato de que toda a operação de extermínio nas câmaras de gás foi realizada, em seus
mínimos detalhes, como uma linha de produção da morte, medida em termos de custo e benefício.(...)O
segundo ponto a caracterizar a singularidade do genocídio dos judeus foi a existência de um plano
sistemático de extermínio, decidido e executado por um Estado moderno...” CYTRYNOWICZ, Roney.
Loucura coletiva ou desvio da História: as dificuldades de interpretar o nazismo. In: COGGIOLA,
Osvaldo.(org). Segunda Guerra Mundial - Um balanço histórico. 1995 O Holocausto significou a morte
em massa de judeus durante o regime de Hitler. Depois das deportações e confinamento de judeus em
guetos, Hitler decide exterminar fisicamente os judeus, que já não tinham participação pública nenhuma e
neste momento a emigração deles já estava proibida. Vários complexos são criados a fim de atender
confinar os judeus existentes em territórios que estavam sob controle alemão. O Holocausto significou o
funcionamento das estruturas da sociedade alemã a favor da eliminação dos “indesejados”. Para isso
contou com o apoio da sociedade alemã e dos funcionários do Terceiro reich, num processo em que cada
um realiza seu trabalho amparados no sentimento anti-semita.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
528
presidência do grupo Cedade452 e mais tarde a frente da Livraria Europa. É importante
esclarecermos o que significou o grupo nazi espanhol - Cedade. Criado em 1965, era
distinguido com uma associação cultural nazi e não como partido politico. Em 1978 passou
a ser presidida por Pedro Varela e foi ganhando cada vez contornos mais definidos de
caráter negacionista. Na mesma época patrocinou a publicação de O Mito dos Seis
Milhões, do negacionista espanhol Joaquin Bochaca e foi responsável por organizar uma
homenagem a Hitler pelo seu centenário nas ruas de Madri. O Cedade chega ao fim na
década de 90, quando Varela então passa a se dedicar a Livraria Europa, na comercialização
e produção de escritos negacionistas.
Através da Livraria Europa, Varela difunde obras de cunho racista e genocida. Com
isso, Varela foi condenado em 2010 e se transformou em figura de destaque na sociedade
espanhola podendo ser pensada, de uma maneira mais ampla, como representativa de uma
busca pela construção de uma nova memoria acerca dos episódios que retratam a Segunda
Guerra. Após ser condenado pela Justiça, Varela recorreu frequentemente ao argumento da
liberdade de expressão, o que esbarraria no acionamento de leis que criminalizam a negação
da morte de judeus na Segunda Guerra.
As cartas de Varela
Por conta da distribuição de material negacionista e racista a partir de sua livraria,
Varela foi acusado de divulgar ideias genocidas e atentar contra os direitos fundamentais e
as liberdades públicas garantidas pela Constituição, sendo levado à Justiça pelo grupo SOS
Racismo453. Após ser condenado a dois anos e nove meses pela Justiça espanhola, em
sentença proferida pela juíza Estela Pérez Franco em 2010, Varela foi encaminhado ao
presidio Lledoners em dezembro do mesmo ano. Durante o período em que esteve preso,
Varela deu prosseguimento a um tipo de escrita que fazia desde a década de 1990. Trata-se
de escritos em formato de cartas enviados a partir da prisão e que tinham por objetivo
discutir os motivos que o levaram a ser condenado, bem como também foi uma tentativa
de buscar se afirmar socialmente. As cartas foram o principal meio de comunicação de
Varela, que encontrou espaço para sua divulgação em sites negacionistas e no blog oficial
de apoio a sua causa, o Libertad Pedro Varela, que contem uma série de elementos que nos
452
Cedade – Circulo Espanhol de Amigos da Europa.
O grupo SOS Racismo foi criado primeiramente na França na década de 1980, e depois na Espanha em
1989. A intenção do grupo é denunciar crimes e manifestações de cunho racista, lutando em defesa dos
direitos humanos.
453
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
529
ajudam a pensar os instrumentos e procedimentos que foram por Varela utilizados numa
busca por reconhecimento e legitimidade no campo político.
As cartas encontram na internet um de seus maiores meios difusores, um caminho
que conhece grande alcance e poucas restrições. A fim de que se possa entender essa busca
de legitimidade através das cartas, recorreremos agora a uma análise de um conjunto delas.
Até o presente momento Varela já publicou cerca de 57 cartas e a maior parte delas foi
redigida enquanto esteve preso. As que foram por nós selecionadas compreendem o
período entre março de 2010 e novembro de 2011 e muitas delas estão disponíveis no blog
de apoio ao editor, Libertad Pedro Varela454.
Num universo de 57 cartas pode-se perceber que o conteúdo político é forte na
maioria delas. A mais recente a que tivemos acesso foi a de número 45, publicada em
novembro de 2011455 e a mais antiga que temos é a de número 10 publicada em 1996.
Durante esses 15 anos, percebe-se que a frequência de cartas emitidas por Varela é maior
durante sua prisão e o tema que envolve seu caso com a justiça e as restrições envolvendo a
Livraria Europa são temas recorrentes nelas. A frequência com que são divulgadas varia,
não sendo possível ter um padrão de produção destas.
Nas cartas é possível identificarmos uma série de procedimentos e estratégias. Um
dos primeiros temas presentes nas cartas é o de que Varela teve direitos violados pelo fato
de sua livraria ter sofrido restrições jurídica e por ter sido preso por comercializar obras
que negam a morte de judeus durante a Segunda Guerra. A notícia da prisão de Varela o
apresenta como um homem que, ainda que discorde da sentença, é obediente e está
consciente do erro cometido pela justiça contra ele. Esse tom de inconformismo pela
prisão é o questionamento que vai marcar as cartas desde que passa a cumprir a pena em
dezembro de 2010. As cartas trazem em si uma reprodução de elementos comumente
encontrados em outros textos negacionistas e, nesse sentido, percebemos que as
declarações de Varela fazem parte de uma articulação, um diálogo, com obras dessa mesma
natureza. Isto fica evidente, por exemplo, na carta de número 10, quando trata o caso de
Anne Frank456. As cartas de Varela, principalmente nos momentos em que ele pretende
454
Blog Libertad Pedro Varela. Endereço: www.libertadpedrovarela.org
Importante ressaltar que esse número das cartas varia de acordo com o andamento da pesquisa, uma
vez que, por se tratar de história do tempo presente, estamos lidando com um material que está em
constante atualização. Ou seja, as cartas continuam a ser elaboradas.
456
Carta nº 10 que trata o caso de Anne Frank: Nascida na cidade de Frankfurt, na Alemanha em 1929, a
menina judia Annelies Marie teve sua trajetória durante os anos da guerra, em que sofreu perseguição
nazista juntamente com sua família, editada em livro que se transformou em best seller. O livro é fruto
das anotações de Frank numa espécie de diário em que ali está problematizado os sofrimentos oriundos da
455
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
530
refutar episódios históricos evidentes, querem sempre aparentar que trazem conclusões a
respeito do caso dos judeus durante o regime nazista a partir do conhecimento produzido
por trabalhos de pesquisa em História. E, para buscarem se legitimar como capazes de falar de
um tempo passado, trazem como recurso uma mescla de dados atestados pela
historiografia com dados falseados pelos negacionistas:
Fue allí donde junto a otros compañeros del campo, Anne cayó enferma de
tifus, enfermedad de la que murió a mediados de Marzo de 1945. No fue
ejecutada ni asesinada. Anne Frank pereció -- al igual que millones de no judíos
en Europa durante los meses finales del conflicto --, como otra víctima
indirecta de la guerra más devastadora. Su padre, Otto Frank, cayó igualmente
enfermo de tifus y fue transferido por los alemanes a la enfermería del campo
de Auschwitz, donde se recuperó.(VARELA, 1996:s/p)
A menina Anne Frank de fato foi vítima de uma doença muito comum na época dos
campos nazistas, o tifo. Muitas foram as vítimas não só de tifo, como também de fome e
outras doenças, uma vez que as condições de vida dos campos eram precárias.
(CYTRYNOWICZ,1990) A historia de Frank, porém, tornou-se símbolo da juventude que
teve a vida interrompida nos campos arquitetados pelos nazistas. Ao se saber que Frank
não morreu gaseada, Varela pretende, influenciado pelo trabalho do negacionista francês
Robert Faurisson, colocar no campo do inexistente as instalações próprias para o
extermínio em massa. E isso faz parte de uma estratégia de legitimação em que os
negacionistas costuram pedaços da historia com retalhos da uma ficção construída
racionalmente, pretendendo trazer para si uma legitimidade a tais escritos. A morte de
Frank é ainda equiparada a todas as outras ocorridas com não-judeus durante a Guerra. A
originalidade do “Diario” é colocada em questão e todo seu conteúdo é tratado como fruto
de varias manipulações. Ao longo da carta se detecta a busca por argumentos “técnicocientíficos”, pretendendo demonstrar que “pesquisas” que foram elaboradas a partir do
diário original atestaram o uso de canetas que não existiam à época. Estas pesquisas foram
divulgadas, segundo Varela, pelo historiador inglês David Irving – este também
negacionista e influenciado por Robert Faurisson. Ainda desenvolvendo essa questão,
Varela continua a recorrer aos textos de Irving para dizer que a letra presente no escrito
original pertence a mesma pessoa, porém não aparenta ser a letra de uma adolescente
sendo incompatível com cartas que Frank teria enviado a suas amigas:
perseguição como também seus dilemas próprios da idade adolescente. Por conta dos problemas da
perseguição e morte, a família de Frank muda-se em 1942 para a Holanda e consegue apoio para refugiarse. Porém são descobertos em 1944 e enviados para o campo de Auschwitz. Meses depois ela é enviada
ao campo de Bergen-Belsen e lá morre aos 15 anos vítima de tifo. Os textos de Anne Frank são reunidos e
publicados em 1947 com o apoio do pai, Otto Frank, o único sobrevivente da família após a experiência
nos campos nazistas.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
531
Pero no acaba aquí todo, y nuestra duda se convierte en decepción cuando
descubrimos, como lo ha hecho el historiador británico David Irving tras su
investigación (31), que en el "Diario" de Anne Frank había tinta de bolígrafo.
Así lo determinaron unos expertos que acudieron expresamente a Suiza para
comprobar el manuscrito original en posesión de Otto Frank. Según estos,
parte de los diarios habían sido escritos con bolígrafo -- inventado en 1949 y
cuya aparición en el mercado data como temprano de 1951 -- algo imposible al
haber fallecido Anne Frank de tifus (32) en 1945(...)Para dilapidar este tema
sólo ha hecho falta acceder a las cartas auténticas que Anne Frank escribió de
niña a unas amigas, publicadas en los Estados Unidos; la letra de estas cartas sí
tiene el aspecto normal de una niña de 10 ó 12 años, lo que no es el caso del
"manuscrito original", que nos revelan a un autor de mayor edad. Las cartas
fueron adquiridas por el "Instituto Simon Wiesenthal" y, siempre según David
Irving, sí son auténticas, no así el diário. ” (VARELA, 1996)
Segundo Varela, a história falsificada de Frank estaria sendo imposta, na medida em
que teria se criado uma imagem da menina que não corresponderia a realidade e tal imagem
é estabelecida como verdade, sendo o diário “impuesto por las autoridades alemanas actuales como
´lectura obligatoria´ en las escuelas.”(VARELA, 1996) O que aqui Varela faz é lançar mão de uma
série de argumentos “técnico-cientificos” a fim de invalidar todo e qualquer testemunho e
documento que evidencie o genocídio e as condições de vida dos campos, que precisa ser
negado e colocado num patamar de como se fosse algo impossível de ter ocorrido. Ao
desenvolverem uma rede de argumentos amparados naquilo que consideram resultados de
pesquisas, Varela quer desacreditar tudo que se sabe da política nazista de extermínio.
Nesta carta se sobressai um Varela que apresenta resultados mas não cria nenhuma
argumentação nova entre os negacionistas.
Outro argumento constantemente utilizado por Varela é o de se colocar como
detentor da verdade: la verdad que incomoda e gera ódio. A verdade seria apenas uma, sendo
justamente as declarações negacionistas. Segundo a proposição de Varela, essa verdade
seria incômoda uma vez que não é a reconhecida pela história. Os que se decidissem por
sua versão dos fatos, seriam os perseguidos. E, consequentemente, levados a justiça e a
prisão, como foi o seu caso. Isso abre uma discussão com um ponto evidente nas cartas,
em que Varela confronta dois tipos de verdade. Uma é a chamada verdade política e a outra
seria a verdade científica. Na carta nº 26, Varela diz que a verdade política estaria imbuída da
necessidade de calar os que pregam a verdade científica e, ao afirmar que não é possível a
existência de duas verdades, assim define qual é a que embasa as teses negacionistas:
La nuestra es una verdad científica, por cuanto se basa en hechos
comprobados: Pedro Varela no ha cometido genocidio alguno, nunca ha
promovido nada semejante, y, a lo sumo, ha publicado las obras de autores que
dudan de que algo así tuviera lugar. Otros autores han denunciado el poder en
la sombra, lo que nada tiene que ver con un genocidio (VARELA, 2011).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
532
Essa questão entre verdade política e científica existe nos escritos do negacionista francês
Serge Thion,457 o que nos reforça mais uma vez o contato de Varela com outros autores
negacionistas e de certa forma nos ajuda a pensar no campo das influências e dos diálogos
que estabelece. Há uma intenção de Varela em se esquivar das acusações que sofre,
recorrendo mais uma vez, a explicações que demonstrariam que não é a favor do
genocídio.
Ao observar a fonte depara-se com a maneira como constrói suas defesas e
argumentos a fim de invalidar as acusações proferidas contra ele. Coloca-se como o único
que busca a verdade, ocupando posição de neutralidade frente a quaisquer circunstâncias.
Exemplo disso na carta é quando a juíza que tratou o caso de Varela em Barcelona é
acusada de ser “fácilmente presionable”, a fim de atender os interesses “según los deseos de la
política”. Tais interesses são localizados como uma tentativa de lutar contra a verdade que,
segundo Varela, seria a versão oferecida pelos negacionistas. Porém, nessa batalha, o editor
julga que “quienes me tienen aquí preso tienen esta batalla perdida, porque más que servir a la Verdad,
la temen y le han declarado la guerra.”(VARELA,2011)
Essa argumentação serve para desqualificar toda oposição que venha a encontrar e,
dessa forma, impor que a verdade política alienante dos vencedores da guerra entra
diretamente em conflito com aquilo que é objeto de investigação cientifica. Nesse tentativa
de sempre colocar-se com injustiçado, identificamos a necessidade de Varela sempre
ocupar uma posição de vitima das perseguições e das manipulações políticas levadas a cabo pelos
que ocupam cargos elevados dentro da sociedade, que estariam interessados em calar a voz
dos negacionistas a fim de manter seus planos de dominação e de ocultamento da verdade. Na
carta de nº 25 ainda demonstra a disposição de lutar contra a restrição dos livros editados
por sua Livraria. E numa estratégia de vitimização, Varela inverte os motivos que levam a
sua acusação como editor de livros com conteúdo segregacionista:
No entra en mi cabeza exigir a una librería la retirada de las obras del Marqués
de Sade, ciertamente decadentes, acusando al propietario de la existencia de los
sádicos que pueda haber en la sociedad que nos rodea. Menos aún ir a
manifestarme rodeado de violentos y fanáticos contra una librería comunista,
maoísta o estalinista, acusando al propietario de todos los sufrimientos que
aquellos regímenes históricos causaron a la humanidad; ni, teniendo el poder de
hacerlo como funcionario, enviar furgonetas policiales a vaciar las estanterías de
la librería talmudista del “Cal” de Girona, con la vaga acusación de que dichos
libros podrían tener que ver con discutidos y polémicos “crímenes rituales” que
457
Serge Thion tem um livro publicado em 1980 chamado Vérité Historique ou Vérité Politique ?,
editado pela negacionista La Vielle Taupe. Disponível na rede em
http://vho.org/aaargh/fran/histo/SF/SF1.html
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
533
alguna desviación sectaria pudiera haber cometido en el pasado (VARELA,
2011)
Clara está a intenção do editor espanhol de se colocar como vítima dos que estão no
poder e que controlariam o que pode e o que não pode ser expressado. A passagem da
carta acima faz alusão a interdição da livraria Europa e apreensão de livros. Quer concluir
que a verdade é incômoda para aqueles que pretendem afastá-la do povo por conta de suas
pretensões políticas. E acredita ser um absurdo uma aprovação de lei de que em que os que
negam os crimes nazistas devam também ser considerados criminosos.
Outro recurso encontrado nas cartas é relativo à equivalência de crimes de guerra aos
crimes nazistas. Durante todo o texto em que trata o caso de Anne Frank, por exemplo,
Varela quer dizer que tudo não passa de uma falsificação e equivale o caso de Frank a todos
os outros acidentes ocorridos durante a guerra. Nessa tentativa de colocar todos os crimes
de guerra no mesmo patamar que o genocídio de judeus, Varela diz:
Conocida en el mundo entero por su famoso Diario, Anne Frank es sin
duda la "víctima del Holocausto" más celebrada (...)Pero lo cierto es que el
caso de Anne Frank no es diferente al de muchos otros judíos sujetos a
la política de medidas antisemitas en tiempo de guerra llevadas a cabo
por las potencias del Eje, no en menor medida justificada por la
declaración de guerra que la nación judía realizó contra Alemania ya en
1933, es decir seis años antes de iniciarse el conflicto bélico(..)No fue ejecutada
ni asesinada. Anne Frank pereció -- al igual que millones de no judíos en
Europa durante los meses finales del conflicto --, como otra víctima indirecta
de la guerra más devastadora. (VARELA, 1996)
A intenção é retirar do episodio de Anne Frank qualquer singularidade em relação a
outros que morreram na guerra. Ele justifica as ações do governo nazi partindo do seguinte
argumento, bastante comum entre os negacionistas: quando Varela afirma que houve uma
declaração de guerra em 1933 dos judeus em relação à Alemanha ele pretende retirar dos
alemães a responsabilidade pelo inicio da guerra e trata-los apenas como aqueles que se
defenderam das ameaças judaicas da guerra e da dominação mundial.
Ainda dentro dessa rede de argumentos desenvolvida por Varela, percebemos que o
que faz é a criação de uma imagem favorável para si, como por exemplo ao relatar o quanto
era solidário na época de sua formação em História, ajudando pessoas carentes na Praça
Real de Barcelona. Quer demonstrar que não incita ódio e guerra, salvo a guerra nos casos
em que trata-se da busca da verdade, sem se importar se isso irá desagradar os poderosos que
a temem. Nesse sentido, o editor espanhol sempre quer se colocar como um convicto de
suas opiniões e vítima de perseguição. E, no processo de julgamento do caso de Varela é
possível encontrarmos que a Justiça fez a apreensão na Livraria Europa de um busto de
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
534
Hitler. Para justificar e se defender das acusações de possuir este tipo de objeto, argumenta
que trata-se de uma obra de arte que não pode ser censurada e que deveria ser visto como
obra de uma coleção. Varela inclusive recorre a uma comparação buscando legitimar e
colocar como algo legal o fato de possuir o objeto:
Ordenando destruir una obra de arte sólo porque representa a Adolf Hitler
(nacido en el siglo XIX) nos introduce en el mundo de los nuevos iconoclastas.
¿Se imaginan que un juez ordenara destruir bustos de Napoleón, Bismarck o
Julio Cesar? Entre los vecinos indignados, un señor ha jurado reproducir
centenares de bustos del Führer para ver si alguien se atreve a prohibirle su
venta junto a los otros que ofrece de Stalin, Mao y Lenin o los de auténticos
genocidas como Churchill o Truman. (VARELA,2010)
Varela quando coloca como algo normal possuir o busto de Hitler é justamente pelo
fato dele sustentar nas entrelinhas que o líder nazista não foi a figura que se partilha hoje
em nossa memoria, não tendo desenvolvido a política exterminacionista que se conhece.
Esta seria fruto dos “maestros do discurso”, que estão no poder e “manipulam a linguagem
política” a fim de ter um controle social cada vez maior.
Todo o processo de restrição das ideias politicas de Varela são tematizadas por ele
nas cartas, explorando uma imagem de que foi perseguido das mais diferentes formas,
tendo o intuito de calar sua voz. Ele porem apenas coloca-se como vítimas daqueles que
cerceiam seu direito à liberdade de expressão. Na parte final da carta de nº 39 ele faz uma
série de agradecimentos aos que “lutam pela liberdade”, às pessoas que mantém a livraria
funcionando apesar de sua prisão, aos que trabalham de uma forma ou de outra para dar
prosseguimento a livraria, aos que gerenciam o site da Livraria e ao blog em que tais cartas
são divulgadas. Para concluir, Varela diz que “los interesados en una versión alternativa de los
hechos” devem ter liberdade de comprar em sua livraria. E ainda utiliza a ironia para se
referir aos que o perseguiram:
Mi consejo: dejen a Librería Europa en paz y las aguas volverán a su cauce. Sólo
irán a comprar libros, voluntariamente, los interesados en una versión
alternativa de los hechos. Pero como son ustedes unos fanáticos, y además
cobran suculentos sueldos a final de mes, justificados con esta persecución, nos
seguirán haciendo famosos, de ahí que podamos celebrar hoy nuestro XX
aniversario, y que estemos trabajando ya en Librería Europa 2.0, o, si se
empeñan, y por si acaso, en Librería Europa 3.0. ¡Sea! (VARELA,2011)
Varela considera que o que faz é uma versão alternativa dos fatos e que todos podem
escolher ter acesso e compartilhar o material que comercializa. Além disso, se a perseguição
tem dado cada vez mais visibilidade à Livraria Europa, Varela ironiza sugerindo que os atos
contra ele e contra a livraria trarão a ela uma longa existência. Ao falar da perseguição que
sofre, Varela identifica seus opositores como intolerantes. Ele recusa o rótulo de ser
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
535
neonazista, apenas coloca-se como uma pessoa que sofre perseguição ideológica disfarçada
de perseguição criminal. E é justamente a partir desses procedimentos que Varela se
esquiva das acusações de apologia ao genocídio. Em seu processo na Justiça, Varela recorre
sempre ao argumento da liberdade de expressão a fim de legitimar toda a argumentação
presente em escritos acerca da negação do genocídio de judeus. E, com isso, tirar seus
escritos do patamar que permite a Justiça localizá-los como racistas e genocidas, tratando
os que o condenam como que afinados ideologicamente, sendo seus opositores: “En
realidad las muy fanáticas e intolerantes ideas de extrema izquierda han llegado al poder, y vestidos
ahora con uniforme de fiscal, policía u ONG, su intención declarada es eliminar a su enemigo. ”
(VARELA,2010)
Os conteúdos difundidos por Varela e pela Livraria Europa fazem parte de uma
manifestação política e ideológica relacionada a regimes de extrema-direita. É possível
identificarmos o lugar que Varela pretende enquadrar os que condenam suas publicações.
Trata-los como intolerantes que querem impor sua versão da História e suprimir sua fala é
a estratégia utilizada pelo livreiro espanhol reforçando a argumentação sempre presente de
que não se renderá ao que é imposto pelos“magos de la palavra, magos de la ley”
(VARELA,2010). O que Varela quer atribuir aos que condenaram a ação da Livraria
Europa e o conteúdo dos livros que publica é o de intolerantes que querem a todo custo
fazer valer uma versão fictícia da Historia e submetê-lo. Mais uma vez a ideia de que há
uma luta, um conflito entre as partes da História é explorada. Varela questiona o fato de ter
seus livros proibidos de comercialização, dizendo que isso é algo impensável na Europa e
que se trata de uma “perseguição absurda”. Nesse sentido, desenvolve o argumento de que
não existe lista de livros proibidos que justifique a restrição de vários títulos da Livraria
Europa – uma alusão ao Index da Inquisição – e afirma que sua livraria tem uma temática
especializada, tal como as demais livrarias especializadas na Europa.
A questão por qual respondeu Varela na Justiça não tem a ver com a venda de livros
em si, mas com o conteúdo das obras que comercializa. Varela, na sentença de condenação,
responde por crimes de apologia ao genocídio e difusão de ideias racistas.458Nas cartas
Varela coloca um apelo constante: que divulguem suas cartas, façam cópias e as distribuam.
Desta forma estariam distribuindo a memoria que pretendem partilhar socialmente. Varela
458
A sentença foi proferida em março de 2010, sendo Varela preso em dezembro do mesmo ano. Julgada
pelo Juizado 11 de Barcelona, ela contem detalhes dos materiais apreendidos na Livraria Europa e os
conteúdos por ela divulgados. Sentença disponível em
http://www.igualdadynodiscriminacion.org/novedades/novedades/2011/pdf/2010_sentencia_libreryaeuro
pa.pdf
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
536
define-se como o detentor de uma verdade que seria oposta aos que estão no poder.
Explora sempre a imagem de vítima das perseguições e manipulações políticas dos que se
sentem incomodados com seus ideais e de um homem que busca a paz entre os homens,
lutando sem cessar para que suas propostas alcancem a todos por meio da garantia do
direito à liberdade de expressão. O direito que Varela reclama para si fere princípios
constitucionais e estão impregnados de racismo, xenofobia e ideais nazistas.
Referências Bibliográficas:
CRUZ, Natália dos Reis. Negando a história: a Editora Revisão e o neonazismo. Rio de Janeiro,
UFF, 1997. (Dissertação de mestrado)
______. Os Fascismos e a Crise da Modernidade. In: Anais do IV Congresso Internacional de
História. Maringá, 2009. p. 1241-1252.
CYTRYNOWICZ, Roney. Memória da barbárie. São Paulo: Nova Stella, Edusp,1990.
______. As formas de lembrar e o estudo do Holocausto. In: MILMAN, Luis e VIZENTINI,
Paulo Fagundes (Orgs) Neonazismo, Negacionismo e Extremismo Político. Porto Alegre: Ed.
UFRGS, 2000.
______. Loucura coletiva ou desvio da História: as dificuldades de interpretar o nazismo. In:
BROUE, P. e COGGIOLA, Osvaldo.(org). Segunda Guerra Mundial. Um balanço histórico. São
Paulo: Depto de História da FFLCH – USP, 1995.
DWORK, Debórah. PELT, R. Jan Van. Holocausto. Uma História. Rio de Janeiro, Imago, 2004.
FRIEDLANDER, Saul. A Solução Final. In: ______. História do século XX. São Paulo, Abril
Cultural, 1974.
HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela Memória: arquitetura, monumentos, mídia. Tradução de
Sergio Alcides. Seleção de Heloisa Buarque de Hollanda. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.
JESUS, Carlos Gustavo Nóbrega de. Anti-semitismo e nacionalismo, negacionismo e
memória. Revisão Editora e as estratégias da intolerância (1987-2003). São Paulo: Editora Unesp,
2006.
KERSHAW, Ian. Hitler. Um perfil no poder. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
SORLIN, Pierre. O Anti-Semitismo Alemão. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1974.
MORAES, Luis Edmundo de Souza. O Negacionismo e as Disputas de Memória: Reflexões sobre
intelectuais de extrema-direita e a negação do holocausto. In: Anais do XIII Encontro Nacional
da ANPUH-Rio. Seropédica, 2008.
STACKELBERG, Roderick. A Alemanha de Hitler. Origens, Interpretações, Legados. Rio de
Janeiro: Imago, 2002.
VIDAL-NAQUET P. Os Assassinos da Memória. Campinas: Papirus, 1988.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
537
Fontes:
VARELA, Pedro. El caso de Ana Frank.
http://vho.org/aaargh/espa/PVcasoAna.html.
Carta
nº
10.
1996.
Disponível
em
VARELA, Pedro. Magos de la palavra, magos de la ley. Carta nº19. 2010. Disponível em
http://nuevaeuropa.mforos.com/1888931/9372893-pedro-varela-magos-de-la-palabra-magos-dela-ley/
VARELA, Pedro. Pensar en positivo. “Delete” y “New Input”. Carta nº25.2011 Disponível em
http://28760resiste.blogspot.com.br/2011_03_01_archive.html
VARELA, Pedro. La verdad engendra ódio. Carta nº 26. 2011. Disponível em
Disponível em http://auxilio-azul.blogspot.com/2011/03/pedro-varela-cartas-desde-prisionla.html.
Sentença
de
Pedro
Varela.
Disponível
em
http://www.igualdadynodiscriminacion.org/novedades/novedades/2011/pdf/2010_sentencia_libr
eryaeuropa.pdf
Último acesso em 07/06/2012
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
538
Contenções contemporâneas em torno do cronótopo da modernidade
Davidson de Oliveira Diniz
Doutorando em Literatura Comparada pela UFMG/ Bolsista Fapemig.
davis.diniz@gmail.com
Resumo: Analisamos aqui uma série de configurações discursivas a propósito da postulação de
tempo-espaço no conceito de modernidade, tendo em vista as posteriores abordagens e
apropriações de tal significante na nossa contemporaneidade. Focamos, para isso, a
interpolação através da qual se tem feito costumeiro ora o endosso, ora a negativa de uma
tendência crítica que se concebe já capaz de viger na dita pós-modernidade.
Palavras-chave: temporalização, cronótopo, modernidade.
Resumen: Se analiza aquí una serie de configuraciones discursivas relativas a la postulación
del espacio-tiempo en el concepto de modernidad, a la vista de los enfoques posteriores y
las apropiaciones de tal significante en nuestra contemporaneidad. Por ello, nos centramos
en la interpolación mediante la cual se ha hecho costumbre el resplado y, también, la
negativa de una tendencia crítica que se concibe como capaz de operar en la así dicha
posmodernidad.
Palabras-clave: temporalización, cronotopo, modernidad.
Introdução
Se tentarmos demarcar a inflexão entre os conceitos de modernidade e pósmodernidade será muito provavelmente na noção de tempo-espaço que encontraremos uma
das alterações decorrentes a propósito do referido processo: a passagem da estrutura
diacrônica para uma estruturação sincrônica do tempo sócio-histórico vivido. Isso
corresponde à tentativa de recompor a historicidade de uma época a despeito de outra.
Nem tudo, porém, é condenado nesse processo em que o termo “pós-modernidade”
pretende denegar o seguimento conceitual a que remonta. Antes de operar com
negatividade plena, o que faz a crítica abrigada sob dito vocábulo é subscrever graus de
modernidade de modo a recuperar o que lhe convém. Em suma: ocorre uma verdadeira
seleção de índices de legibilidade epistemológica através dos quais o que vem a ser definido
pela pós-modernidade está ora próximo, ora distante da modernidade a fim de estipular
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
539
uma razão crítica desta última e, assim mesmo, estabelecer-se como uma das tendências
determinantes do pensamento contemporâneo.
A seguir discutiremos tal ponto tomando em consideração as formações de ideias
que delimitam, de um lado, a) a prefiguração do cronótopo459 teleológico a propósito da
concepção meta-histórica de um “presente inacabado” e que deve, pois, ser ultrapassado
em direção a um télos, e, de outro, b) a reconfiguração deste cronótopo outrora vigente
nos inícios da modernidade, vislumbrando, de tal maneira, a espessura de um “presente
dilatado”, ou seja, uma dimensão do tempo presente supostamente capacitada a operar na
simultaneidade das temporalidades absorvidas a ponto de se deixar caracterizar como algo
limiar e, também, irradiadora de uma porosidade cronológica.
Modernidade | Temporalização
Reinhart Koselleck propôs em Futuro Passado que a modernidade somente veio a se
conceber como novo tempo – ou tempo moderno – uma vez o “horizonte de expectativa” tendo
sido deslocado do “espaço de experiência” anteriormente decorrido no processo histórico
(KOSELLECK, 1993: 324-351). A diferença entre experiência e expectativa,460diz o historiador
459Reporto-me à definição de Mikail Bakhtin, segundo a qual o cronotopo designa a interligação fundamental
das relações temporais e espaciais, artisticamente assimiladas pela literatura. Expressa, dessa maneira, a
indissolubilidade do espaço e do tempo enquanto índices da imagem-narrativa. “Os índices do tempo
transparecem no espaço, e o espaço reveste-se de sentido e é medido com o tempo. Esse cruzamento de
séries e a fusão de sinais caracterizam o cronotopo artístico” (BAKHTIN, 1988: 211). Daí o princípio
condutor do cronotopo, em literatura, ser o tempo. Da função cronotópica resulta, ainda, a organização dos
acontecimentos narrativos e a demonstração dos mesmos mediante a condensação e a concretização dos
índices temporais – tempo da vida humana, tempo histórico etc. – em regiões definidas do espaço. Em última
instância, configura a imagem-narrativa de tudo aquilo que é estático-espacial (por ex., o castelo, a estrada, o
salão de visita, a soleira), inserido-o numa série de mobilidade temporal a propósito dos acontecimentos
entrelaçados no enredo. O deslocamento a ser operado, aqui, reside em assimilar a maneira pela qual os
índices temporais – apreendidos mediante as figurações cronotópicas possíveis nas categorias conceituais
modernidade e pós-modernidade – permitem por um lado a sistematização da imagem-narrativa diacrônica, e, por
outro, da sincronia passível de ser assimilada das apropriações contemporâneas em torno da modernidade. E
sob tal perspectiva passarei a pontuar como as apropriações contemporâneas do cronotopo em torno da
categoria modernidade consistem na configuração de uma imagem narrativo-conceitual marcada pela póshistoricidade, i.e., pela desaceleração e, também, pela concomitância de dimensões espácio-temporais em
detrimento do historicismo decimonônico altamente marcado por ideias tais como linearidade, progresso e,
enfim, temporalização.
460 Por experiência Koselleck designa “un pasado presente, cuyos acontecimientos han sido incorporados y
pueden ser recordados. En la experiencia se fusionan tanto la elaboración racional como los modos
inconscientes del comportamiento que no deben, o no debieran ya, estar presentes en el saber”. E expectativa
seria, por sua vez, aquilo que se liga às pessoas na medida em que se experiencia a vida prática, “siendo a la
vez impersonal, también la expectativa se efectúa en el hoy, es futuro hecho presente, apunta al todavía-no, a
lo no experimentado, a lo que sólo se puede descubrir”. Tais categorias, entretanto, não devem ser operadas
separadamente, pois não há expectativa sem experiência, assim como, também, não há experiencia sem
expectativa. Consistem, , nesse sentido, num esboço para a dimensão meta-histórica da condição de histórias
possíveis, i.e., contingenciais. Para mais, não existe um enrijecimento entre elas. Segundo Koselleck, “está es
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
540
alemão, tende a ser cada vez maior com a modernidade. Isso implicou a emergência de uma
consciência mais precisa a propósito da oposição entre determinado presente e épocas
passadas, pois demarcaria gradualmente a perspectiva de um futuro aberto: movimento
rumo ao progresso, à aceleração dos acontecimentos históricos. Koselleck define tal processo
como temporalização. O termo usado descreve, entre outras coisas, um período
profundamente marcado pela mobilidade ascendente, assim como pela contínua
dinamização a respeito da estrutura temporal, daí resultando tanto a “antecipação da
providência” quanto a “exemplaridade das histórias antigas” (KOSELLECK, 1993: 316).
A secularização dos eventos, bem como a recusa das tradições delinearam não apenas
uma nova época, mas, também, configuraram uma temporalidade completamente distinta.
A aceleração vinda daí tornou-se a característica crucial do tempo moderno. E,
concomitante, foi formulada a noção de um presente inacabado, pois tal presente passou a
ser impreterivelmente considerado um instante transitório, concebido de modo que a
experiência, i.e., um passado ainda imediato, atual, esteja preparado para irrupção de um
futuro iminente.
Ao viés destas características, podemos pensar a modernidade como a atualidade de
uma época mais recente, tendo de reconstruir a ruptura com o passado como uma
“renovação contínua” (Cf. HABERMAS, 2002: 11). Auto-referencial em sua consciência
histórica, ela deseja ser uma época cuja nova temporalidade não está nos modelos de
épocas passadas, de modo que terá de extrair de si mesma os critérios de orientação no
presente e, ato seguido, a sua própria normatividade.
Tal particularidade foi uma das perspectivas cruciais ao longo da formulação do
pensamento oitocentista. E daí decorre a presença altamente determinante da teleologia na
época moderna; lembremos a Historia Magistra Vitae como propulsora de um futuro
arquetípico a ser perseguido pelo bem da humanidade muitas vezes em detrimento do
presente. A modernidade, desse modo, implica uma noção bastante clara de progresso,
reclamando, para tanto, a aceleração do tempo-histórico a fim de alcançar a historicidade
de um ininterrupto “por vir” cuja crítica, sabemos, somente seria formulada de maneira
decisiva a partir da Primeira Guerra Mundial.
Pós-modernidade | Destemporalização
sólo una fórmula subjetiva para la situación objetiva de que el futuro histórico no se puede derivar por
completo a partir del pasado histórico” (KOSELLECK, 1993: 336-338-341).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
541
A contrapelo da temporalização e do progresso que, em dicção benjaminiana (1994:
226), paralizara as asas do anjo da história, a pós-modernidade aparenta reconfigurar a
função cronotópica do ser moderno. Como seu preceito básico nós já não encontraremos a
historicidade diacrônica, pelo menos não aquela outrora desencadeadora de uma visão
nefasta do presente a ser superado. Muito pelo contrário, a historicidade até bem pouco
reivindicada pela linhagem pós-moderna é a da sincronicidade. Vejamos então como isto
ocorre.
O termo tem cunhagem nos anos 1950 pelo historiador britânico Arnold Joseph
Toynbee.
461
Porem, veio a irradiar os debates sobre arte, cultura e sociedade somente
durante os anos 1970, ganhando relevância a partir dos 80. Grosso modo, esteve inicialmente
acoplado à redefinição da situação sócio-histórica do pós-guerra, constituindo, assim, uma
tentativa de abandono do pensamento altamente instrumental com respeito a fins e que,
sob uma perspectiva weberiana, visava instituir a modernização da vida prática.
Na década de 1970, por exemplo, aparece o livro A condição pós-moderna, de François
Lyotard, obra que faz com que o conceito venha a emergir como formação discursiva nas
humanidades. Dito significante descreve ali uma fase do que ainda é moderno. Ganham
vulto, no entanto, noções como a “morte dos centros” e, também, o declínio das metasnarrativas, instâncias discursivas totalizadoras dos universais fundados com a modernidade.
Trocando em miúdos, podemos concluir que a proposição do crítico francês prescreve a
desconstrução das categorias iluministas outrora predominantes sob as noções de
racionalismo e progresso decimonônicos.
Enquanto pensamento crítico que pretendeu semear diretrizes discursivas no terreno
de nossa contemporaneidade, a pós-modernidade tem sido, via de regra, associada a uma
postura cética diante da identidade histórica adotada fortemente na Europa e redistribuída
com força desproporcional a outros mundos a partir do século XIX. Nesses termos, não
raramente soa como uma resignação em detrimento da auto-incumbência modern(ist)a de
contínua renovação do presente. A todo tempo parece auto-prescrever a desconjunção a
propósito daquilo tudo que fez da modernidade um movimento temporal cujo ápice
resultou ser a experiência da aceleração impulsionada pelo consenso de emancipação.
Desabilita, portanto, aquela tendência que, como já vimos, buscou fazer da modernidade a
461
Para uma exposição mais detalhada em torno das aparições e apropriações do termo, ver o capítulo
“Exaustão: pós-moderno e palinódia”, de Os cinco paradoxos da modernidade, de A. Compagnon, 1996: 103-124.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
542
consciência de um presente experimentado claramente como ponto de inclinação e
transição, assim parecendo implicar, em última instância, a própria transposição.
É em razão disso que a pós-modernidade (longe de ser uma enunciação discursiva
monolítica) veio sendo recorrentemente assimilada à superação da “alta-modernidade” cujo
zênite, durante os início do século XX, foi o modernismo europeu. Isso parece predicar
que, em princípio, seja apenas mais uma das tantas consequências da obsesssão por
inovação, legado da temporalização cujo modus operandi confirma o cronótopo instituído com
a modernidade. A lógica da ruptura, de tal maneira, acaba por vazar a culatra do escopo
conceitual disparado por certa vertente do pensamento crítico vinculado à pósmodernidade.
Apesar disso, pelo menos durante as duas últimas décadas é cada vez mais insurgente
um exercício crítico cuja tarefa consiste em ponderar a respeito da noção de ruptura, de
superação implicada no uso do conceito. A propensão, nesse sentido, é recusar uma
eventual leitura míope do “pós-” reduzindo-o a ideia de suplantação diacronica. Assim,
cristaliza-se uma espécie de contenção da noção de progresso, da temporalização
eminentemente moderna. E surgem daí propostas críticas que, já veremos, vislumbram a
simultaneidade de temporalidades, articulando-as sob a noção de sincronismo entre
acontecimentos emergentes num dado presente e, por isso mesmo, habilitadas a operar no
limiar dos fenômenos sócio-culturais com os quais devemos lidar a partir de
resignificações, sobretudo midiáticas, no âmbito da contemporâneidade de nossa vida
cotidiana.
Uma das proposições mais significativas da linhagem referida acima encontra-se na
perspectiva de Gumbrecht (1998: 285) quando este sugere, a propósito do conceito que
estamos discutindo, a noção de destemporalização. Para o crítico alemão, o que de fato vem
ocorrendo é uma dilatação do presente, i.e., a cristalização de um ponto de convergência
entre um passado que não nos sentimos dispostos a abandonar e um futuro no qual não
queremos ingressar. Daí ressultaria que a inovação dos hábitos e formas de
comportamento não é mais uma obrigação necessária. Consequentemente, o tempo deixa
de ser um agente absoluto de mudança e transformação, de modo que recusamos a
vivenciar o futuro como algo aberto. Para Gumbrecht, a pós-modernidade é aquilo que
justamente desfaz, neutraliza e transforma os efeitos acumulados através de “cascatas de
modernidade” que temos experimentado uma à uma desde o o século XV.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
543
Com suas particularidades, essa linhagem de pensamento pretende abalar a investida
metafísica do historicismo ora afirmado através da perspectiva do progresso oitocentista:
seja com o Iluminismo, seja, posteriormente, com o Positivismo, enfim, toda sorte de
proposições cuja síntese possível está no conceito hegeliano de filosofia da história,
característica determinante para interpelar o pensamento do período em questão.
Por sua vez, Gianne Vattimo (1996: XVI) nos fala da dissolução da noção de
“história universal” como aquilo que justamente nos mostrou a universalidade da história. Ou
seja: a multiplicação dos centros discursivos, opções políticas, etc. O oxímoro na expressão
do filósofo italiano atenta para o fato de como nossa contemporaneidade é nivelada pela
ideia de simultaneidade. Sai de cena, assim, o ethos da modernidade: o valor do novo, i.e., a
redução do “ser moderno” a esta origem ex machina. Para Vattimo (1996: 116) nós vivemos
“uma crise de futuro”, pois, a seu ver, aflora, agora, o problema do tempo e dos modos
peculiares de vivenciar a temporalidade fora da sua linearidade pretendidamente natural.
Com a “pós-historicização”, o pensamento crítico deve residir, ainda segundo
Vattimo (1996: 169-190), na tarefa de um “pensamento fraco”, uma “debilidade do ser”, ou
seja, algo “não mais orientado com base na origem ou no fundamento, mas na
proximidade”. E seu caminho será o “de uma aceitação-convalescença-distorção que não
tem mais nada do ultrapassamento crítico característico da modernidade”.
Pois bem. A ideia de simultaneidade, de uma historicidade sincrônica é tão
determinante na nossa contemporaneidade que aparece até mesmo em autores críticos da
perspectiva predicante de uma “ontologia fraca”.
Isso acontece, por exemplo, a propósito daquilo que lemos nas páginas de Jamais
fomos modernos, livro de Bruno Latour. A premissa básica do pensador francês é que “o pósmoderno é um sintoma e não uma solução” (LATOUR, 1994: 73). Quer dizer: não deve
premeditar uma verdade fraca que, entre outras coisas, leva à dispersão, à impotência e ao
anacronismo. Latour evoca, para tanto, uma “emenda” na Constituição moderna a fim de
reatar, uniformente, o problema da representação que, a partir da modernidade, diz ele,
havia sido divido, equivocadamente, em dois ramos irreconciliáveis e assim impedindo uma
organização holística do pensamento crítico (Cf. LATOUR, 1994: 141).
Latour aponta uma falta de habilidade crítica para manusear o que chama de “nó
górdio” atado desde que a modernidade se constituiu. Nesse sentido, o francês
problematiza a incompreensibilidade dos trabalhos mais recentes em razão de estes serem
recortados em três categorias usuais, ora dizendo respeito à natureza, ora à política, ou ora
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
544
ao discurso (LATOUR, 1994: 9). Decorre daí “a crise da crítica”, cujos repertórios distintos
foram desenvolvidos a partir da tripartição relativa à naturalização (Changeux), à
socialização (Bordieu), e à desconstrução (Derrida).
Assim as abordagens dos epistemólogos, dos sociólogos, e dos descontrutivistas,
segundo Latour, são recorrentemente mantidas a uma distância conveniente, alimentando
as suas análises com as fraquezas das outras duas demais. A resolução, para isso, consiste
numa conjectura retrospectiva – sempre dada via conjugação pretérita do tempo presente –
a fim de afirmar que “nunca entramos na época moderna”. Para o autor em questão, essa é
uma postura que “desdobra ao invés de desvelar, que acrescenta ao invés de amputar, que
confraternizar ao invés de denunciar”, algo característico do “não moderno (ou
amoderno)” (LATOUR, 1994: 51).
Clara impendência de retração da solução meta-histórica estipulada na modernidade,
ali a proposição se constitui a partir da compreensão do “início do tempo que passa”,
mensurando “o fim do passado ultrapassado” e, finalmente, ponderando sobre a “seleção e
tempos múltiplos” na dita Constituição do não moderno (LATOUR, 1994: 66-71-73).
O não moderno é, portanto, aquele capaz de agir na simultaneidade, de operar
criticamente levando em conta ao mesmo tempo a Constituição dos modernos e os
agenciamentos híbridos negados pela mesma. Dessa maneira, Latour descreve uma
reconfiguração do cronótopo da modernidade tal qual víamos em Gumbrecht e Vattimo.
Apesar de as divergências epistemológicas saltarem aos olhos, não há variação, porém, no
que respeita somente à realização cronotópica da nossa contemporaneidade em tais
autores.
Considerações finais
A inflexão a propósito do quadro comparativo supracitado nos permite notar uma
investida por reconfiguração da imagem espaço-temporal a partir das apropriações
contemporâneas referentes ao conceito de modernidade. Tendo em conta a estrutura de
campo semântico em torno do cronótopo podemos observar uma espécie de contenção do
progressivo deslocamento entre “horizonte de expectativa” e “campo de experiência”. Isso
se evidencia, por exemplo, quando estamos atentos ao fato de que é sempre através da
palavra simultaneidade (as variações notadas, terá percebido o leitor, são apenas ramificações
semânticas) que estará descrita a recusa por parte da crítica contemporânea no que diz
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
545
respeito à homogeneidade, buscando informar a natureza descontínua do tempo de modo a
estabelecer uma temporalidade conflitante com a linha diacrônica.
Da negação dessa historicidade caracteristicamente moderna decorre uma sorte de
pós-historicismo. Este implica uma cronologia na qual o passado e o presente aparecem
cada vez mais imiscuídos, acessíveis. Daí a especificidade histórica do presente (agora nem
inacabado, nem perfeito, nem tampouco transitório) residir no desaparecimento de metas
rumo às quais as inovações conduziriam. Não é que a inovação, a abertura para o futuro e
etc. tenham deixado de operar. Talvez apenas passaram de uma macro-escala para uma
micro. E assim já não podem compor mais uma plataforma programática e propulsora dos
desejos coletivos de uma dada época tal como foi recorrente quando nos movíamos pela
lógica de uma “história universal”. A aceleração do tempo, dessa maneira, não figura mais
verdadeiramente como agente absoluto de transformação.
Altamente poroso, o presente se expande como um ponto de convergência entre um
passado que não nos sentimos dispostos a abandonar e um futuro no qual recusamos
ingressar. Eis, portanto, a desaceleração que, segundo uma das linhagens críticas discutidas
aqui, determina nossa época. Dizer se para o bem ou para o mal, resultaria apenas na
estipulação de um juízo de valor verdadeiramente maniqueísta. Certo é estarmos, agora,
bem distante do historicismo metafísico que, durante o século XIX, parece ter se infiltrado
profundamente no “mundo da vida” daquele período, variando apenas quanto ao ritmo e
aos fins a serem alcançados.
Referências bibliográficas:
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São
Paulo: UNESP;Hucitec, 1988.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e
história cultural. São Paulo: Brasiliense, 1994.
COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte:
Editora da UFMG, 1996.
HABERMANS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins
Fontes, 2002.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos sentidos. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1998.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
546
JAUSS, Hans Robert. Tradição literária e consciência atual da modernidade. In: OLINTO,
Heidrun Krieger (org.). História da literatura. As novas teorias alemãs. São Paulo: Ática,
1996.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro pasado: para una semántica de los tiempos históricos.
Barcelona: Paidos, 1993.
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Rio de janeiro: Ed. 34, 1994.
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio,
2002.
VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade. Niilismo e hermenêutica na cultura pósmoderna. Martins Fontes: São Paulo, 2002.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
547
Aproximações entre a História e a História das Ciências: As teorias da
historiografia das ciências e o estudo da astronomia de Abraham Zacuto.
Geraldo Barbosa Neto
Mestrando em História pela PUC-SP/ Bolsista CNPQ
gbnetoindependente@hotmail.com
Resumo: A historiografia sobre Abraham Zacuto o analisou conforme uma definição
contemporânea de astronomia. Entre os teóricos da historiografia das ciências, se instrui
sobre a aprendizagem dos conceitos de acordo com eram empregados em sua época.
Assim, Esse erudito deveria ser interpretado consoante com sua definição sciencia de la
astronomia. Sob esse conceito se desvela uma prática astronômica intrinsecamente ligada aos
prognósticos astrológicos, levando à resultados substancialmente distintos e originais, em
relação ao que os historiadores escreveram sobre o repertório intelectual de Zacuto.
Palavras-chave: História, História das Ciências, sciencia de la astronomia.
Abstract: The historiography analyzed Abraham Zacuto with a contemporary astronomy
definition. Among the theorists of historiography of science, be instructed on the learning
of concepts were used in accordance with his age. Thus, this scholar should be interpreted
according to its definition sciencia de la astronomia. Under this concept unfolds a practical
astronomical intrinsically linked with astrological predictions, leading to results substantially
different and unique, in what historians have written about the intellectual repertoire of
Zacuto.
Key-words: History, History of the science, sciencia de la astronomia.
Este artigo tem como tema la sciencia de la astronomia de Abraham Zacuto (1452-1515).
A História e a História das Ciências, embora aparentadas, constituem campos de
investigação histórica autônomos, com domínios, abordagens e perspectivas próprias. Este
texto apresenta algumas considerações que assinalam a elucidação dessa figura intelectual
muito abordada na História sob a égide de teorias e conceitos engendrados na
historiografia das ciências. Assim, instruindo-se em historiadores das ciências se toma esse
erudito hebreu-espanhol como centro de estudo.
Uma proposta de pesquisa histórica bilíngue
Em 1986, em seu artigo Possible Worlds in History of Science, Thomas Kuhn apresentou
para a pesquisa histórica das ciências a teoria de que:
[...] o desenvolvimento científico resulta ser dependente não apenas da
eliminação, dentre o conjunto corrente de mundos possíveis, dos candidatos ao
mundo real, mas também das transições ocasionais a um outro conjunto,
viabilizado por um léxico de estrutura diferente. Quando tal transição ocorre,
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
548
alguns enunciados que antes descreviam mundos possíveis mostram-se
intraduzíveis na terminologia desenvolvida para a ciência subseqüente (KUHN,
1986: 99)
Ele formulou a premissa de que “[...] para compreender algum corpo de crenças
científicas passadas, o historiador precisa adquirir um léxico que, aqui e ali, difere
sistematicamente daquele corrente em sua própria época” (ibid: p. 78).
Thomas Kuhn definiu o termo possible worlds (mundos possíveis) “[...] como um
modo em que o nosso mundo poderia ter sido, e essa descrição informal praticamente
servirá para nossos propósitos presentes.” (KUHN, 1986: 83). Ganha expressão em
Abraham Zacuto uma das formas possíveis (possible worlds) que a astronomia poderia ter
assumido, se não tivesse ocorrido uma supressão de conhecimentos que a constituíram ou
uma reordenação dos saberes que a compunham consoante com os termos de um estatuto
científico consolidado historicamente.
Abraham Zacuto e a historiografia
Em 1912, a obra L'Astronomie nautique au Portugal à l'époque des grandes découvertes ,
publicada pelo historiador português Joaquim Bensaúde, marcou a historiografia
portuguesa. Com base nas proposições desse estudo, Abraham Zacuto foi considerado
pelos historiadores portugueses como um astrônomo, autor do Almanach Perpetuum, um
tratado de astronomia que serviu de modelo para a construção dos regimentos náuticos
portugueses quinhentistas462. Em Cerimônias de Posse na Conquista Européia do Novo Mundo,
Patrícia Seed escreveu que as tábuas astronômicas de Zacuto foram consultadas por Mestre
João Faras, em 1500, quando mediu o grau do Sol em um ponto da atual costa nordestina
brasileira para localizar a frota cabralina (SEED, 1999: 165).
Em Astronomy in the Iberian Peninsula: Abraham Zacut and the Transition from Manuscript
to Print, publicado por José Chabás e Bernard Goldstein em 2000, Abraham Zacuto foi
abordado conforme termos astronômicos recentes, pois esses astrônomos examinaram o
Almanach Perpetuum de Zacuto sob o prisma de sua especialidade.
Sua principal biografia, El judío salamantino Abraham Zacut, publicada em 1931, por
Francisco Cantera Burgos, fora acolhida na Revista de la Academia de Ciencias Exactas, Físicas e
462
Com referência em Bensaúde se publicou As tábuas náuticas portuguesas e o Almanach perpetuum de Zacuto
(publicado por Luciano Pereira da Silva, em 1915), O Almanach Perpetuum de Abraham Zacuto e as Tábuas
Náuticas Portuguesas (Antônio Barbosa, 1928), L’Almanach Perpetuum de Abraham Zacut. Leiria 1496 (Abel
Fontoura da Costa, 1934); Almanach perpetuum: reprodução em fac-símile do exemplar da Biblioteca Nacional (por Luís
Mendonça de Albuquerque, um dos principais expoentes dessa historiografia náutica, publicado em 1986).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
549
Naturales, ou seja, em um periódico voltado para as Ciências da Natureza, no sentido atual
dessa expressão.
Joaquim Barradas de Carvalho, publicou o Tratado breve en las ynfluencias del cielo e o De
los eclipses del sol y la luna, tratados de astrologia redigidos por Abraham Zacuto em 1486, na
vila de Gata, atual província espanhola de Cáceres, com o títuloDois Inéditos de Abraham
Zacuto. Ele escreveu que Zacuto “[...] fundira o aspecto científico da astronomia com as
quimeras astrológicas” (BARRADAS DE CARVALHO, 1947: 97).
No artigo La Medicina em un Manuscrito de Astrología del Siglo XV (2000), José Cobos
Bueno, analisou a medicina através desse Tratado breue en las ynfluencias del cielo. No estudo
recente Abraham Zacuto, astrólogo de Don Juan de Zúñiga, publicado em 2010, Marciano Martín
Manuel discutiu a importância do mecenato de Juan de Zuñiga, mestre da cavalaria de
Alcantara, no desenvolvimento da cultura intelectual da vila de Gata, atual província
espanhola de Cáceres.
Predominou nos estudos sobre Zacuto uma concentração em sua obra Almanach
Perpetuum, embora esse douto também tenha redigido os tratados ha-Hibbur ha-Gadol (O
Grande Compêndio), Tratado breue en las ynfluencias del cielo, De los eclipses del sol y la luna,
Mishpetei ha ‘istagnin (Juízos do astrólogo) e Sefer Yuchassin (Livro das Genealogias). Também
as análises sobre o Almanach Perpetuum realizadas pelos historiadores da náutica dos
descobrimentos basearam-se somente em nove fólios, dos 168 com seus respectivos versos
que compõem a obra, deixando de fora de seus exames um prolixo conjunto de tábuas
astronômicas que não foram aproveitados pelos mareantes lusos. Esses fólios que não
foram estudados e os tratados de Abraham Zacuto demonstram que a historiografia
eliminou da imagem erudita de Zacuto o que considerou uma impostura científica.
Abraham Zacuto e a Historiografia das Ciências
Em 1955, no artigo The True Place of Astrology in the History of Science, Lynn Thorndike,
escreveu que antes de serem suplantados pelas leis propostas por Isaac Newton, os
princípios gerais que organizavam o universo eram astrológicos. A cosmologia milenar dos
astrólogos, além de sistematizar a configuração celeste, a elegeu como causa primária dos
fenômenos que ocorriam no mundo natural. Esse foi o cenário cosmológico que serviu de
modelo para nomes de notoriedade na história da ciência como Isaac Newton, Thomas de
Aquino, Alberto Magno, Kepler e Francis Bacon (THORNIDIKE, 1955: 273-278).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
550
Eugênio Garin, em O Zodíaco da Vida, escreveu sobre a astrologia que “[...] por detrás
das fantasias mítico-religiosas das ‘influências’ e das ‘imagens’, existe uma trama racional,
suscetível de ser rigorosamente calculada e definida segundo os princípios do
conhecimento científico” (GARIN, 1988: 14).
Paolo Rossi, em A Ciência e a Filosofia dos Modernos, escreveu sobre os aspectos
centrais que a constituíram:
[...] um tipo de saber que jamais consegue configurar-se como um saber
rigoroso, e que, entretanto, queria ser considerado como tal. Para superar esta
dificuldade, os astrólogos misturam matemática com as cerimônias e,
simultaneamente, apelam para uma temática “religiosa” (ROSSI, 1992: 38).
Em O Nascimento da Ciência Moderna na Europa, Rossi registrou que na astrologia “[...]
convivem cálculos sofisticados e vitalismo antropológico” (ROSSI, 2001, p. 49).
Francis Amelia Yates, em sua obra Giordano Bruno e a Tradição Hermética,coloca a
questão de “[...] como eram incertas e movediças as fronteiras entre ciência genuína e o
hermetismo463 na Renascença” (YATES, 1995: 179).
Para Keith Thomas (1991: 237) “A despeito de alguns requintes nos detalhes [...]”, a
astrologia conhecida no século XVI “[...] era visivelmente a mesma exposta pelo egípicio
Ptolomeu em seu Tetrabiblos, no segundo século de nossa era”. Se a astronomia “[...] é o
estudo dos movimentos dos corpos celestes, a astrologia é o estudo dos efeitos desses
movimentos” (ibid: 238). Quanto a esses efeitos dos movimentos “Não havia nada de
esotérico nessas suposições gerais. No início do século XVI a astrologia fazia parte da
imagem que o homem culto tinha do universo e do seu funcionamento”(ibid: 238). A
astrologia era “[...] uma imagem do mundo aceita por todos” (ibid: 238). As mais variadas
áreas do conhecimento “[...] pressupunham uma boa quantidade de dogmas astrológicos”
(ibid: 238). Portanto, entre os historiadores das ciências, o cenário intelectual que abrigou a
redação dos tratados de Zacuto foi diferente daquele imposto pela historiografia.
A sciencia de la astronomia de Abraham Zacuto
Abraham Zacuto definiu assim astronomia: “[...] la sciencia de la astronomia adquire
e estudia de que parte uiene esta mu[ta]cion en el mundo de los elementos de las
463 Os magos renascentistas acreditavam em um conhecimento que advinha de uma fonte sagrada, de uma
versão gnóstica da filosofia grega presente nas reminiscências pagãs do cristianismo primitivo. Recuperando
os textos remanescentes da Antiguidade e empregando suas idéias, muitos filósofos modernos viram o
conhecimento como uma forma de ascensão espiritual e de intervenção nas forças do universo. Em linhas
gerais, a isso Yates denominou como hermetismo.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
551
ynf[lu]encias celestes [...]” (ZACUTO, 1486 apud CARVALHO, 1947: 109). O conceito de
astronomia de Zacuto enunciava outro sentido, um significado diferente do entendimento
de astronomia contemporâneo, um sentido mais dilatado.
O ha-Hibbur ha-Gaddol (O Grande Compêndio) foi um compêndio de astronomia
escrito por Abraham Zacuto, na cidade espanhola de Salamanca, em 1478. Nela Zacuto
demonstrou ter se inspirado em eruditos do medievo Com base nas obras Yesod Olam de
Isaac Israeli, onde se obtinha uma fórmula para calcular as regras do calendário (LEVI,
1990: 27) e Sefer Mihamot Adonai de Levi ben Gerson, obra que contém um tratado
astronômico (LEVI, 1990: 29), ambas datadas do século XIV, inseriu em seu compêndio as
“Tábuas para encontrar os dias do mês cristão correspondente ao início do calendário
judaico” (CHABÁS; GOLDSTEIN, 2000: 58).
Depois do manuscrito ha-Hibbur ha-Gaddol, em 1486, na vila de Gata, atual
província espanhola de Cáceres, Abraham Zacuto escreveu o Tratado breve en las
ynfluencias del cielo. Ele escreveu para os médicos-astrólogos de Juan de Zuñiga “[...] un
tratado breve en las ynfluencias del cielo para que con este mas se ayudassen los medicos
de su señoria sy fueren astrologos” (ZACUTO, 1486 apud CARVALHO, 1947: 111). Na
segunda parte desse Tratado breve en las ynfluencias del cielo, Zacuto escreveu: “[...] para
el que touiere almanaque diremos lo que escriujeron en esto los de patauia y de bolonja y
de rroma y otros grandes sabios y es mucho uniuersal para qualquier lugar [...]” (Ibid: 147148). Um dos temas centrais abordado nela foi os quatro tienpos, as quatro estações do
ano:
Lo primero que es de saber los quatro tienpos del año que la primauera que es
desde que entra el sol en aries hasta la cabeça de cancer es caliente e humjda y
en este tienpo se mueue la sangre. y e el estio [verão] que es de cancer hasta
libra es caliente y seco y tiene la colora. el otoño que es de libra hasta
capricornjo. es frio y seco y tiene la melancolia. y es inuerno que es de
capricornjo hasta el fin de picis es frio y humjdo (ZACUTO, 1486 apud
CARVALHO, 1947: 147-148)
A contagem e caracterização das estações do ano se organizavam pelos signos do
zodíaco. As estações eram descritas, assim, através do lugar do Sol nas figuras zodiacais.
Pelo almanaque se conhecia, portanto, as estações do ano. Nas estações do ano se
assinalava os prognósticos de enfermidades. Foi no saber que ganhou expressão nesse
tratado que auferiu sentido a tradução do manuscrito hebraico ha-Hibbur ha-Gaddol (O
Grande Compêndio) de Zacuto para o latim, o Almanach perpetuum celestium motuum
astronomi zacuti, publicado na cidade portuguesa de Leiria, em 1496.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
552
Em 1486, Abraham Zacuto, de quem José Vizinho se denominou discipulum, ensinara
no Tratado breve en las ynfluencias del cielo a doutrina dos cinco lugares principais para que os
astrólogos investigassem o nascimento:
Los cinco lugares principales del nascimjento que significan la uida y se
nonbran. ylex. son estos. el grado del ascendente. y el grado del sol. y el grado
de la luna. y el grado de parte fortuna. y el grado de la conjuncion o oposicion
precedente [...] (ZACUTO, 1486 apud BARRADAS DE CARVALHO, 1947:
158).
O segundo tópico enumerado por Zacuto na doutrina dos cinco lugares principales del
nascimjento foi el grado del sol (o grau do Sol). Vizinho traduziu no Almanach Perpetuum um
intervalo de tábuas astronômicas que cubria esse tema. Assim, a tradução da Tabula prima
solis cuium radix e anno 1473, o Residuum tabule prime Solis, a Tabula secunda Solis, o Residuum
tabule Solis secunde, a Tabula tertia solis, o Residuum tabule tertie Solis, a Tabula quarta solis e o
Residuum tabule quarte Solis (ZACUTO, 1496: 17-20.v) atendiam a doutrina de Zacuto.
Também publicou a Tabula declinationis planetas y solis ab eqnotiali junto com a Tabula eqtionis
solis (ibid: 21) que possibilitavam determinar e recalcular a posição do Sol para períodos
posteriores. Vizinho também contemplou em sua tradução as Tabula introitum solis in quolibet
signorum (Tábua da entrada do Sol em qualquer dos signos) (ibid: 22-25.v).
Tal como o tópico el grado del sol (o grau do Sol), a doutrina dos cinco lugares
principales del nascimjento também elencou el grado del ascendente (o grau do
ascendente). Articulado à essa doutrina, José Vizinho (ibid: 161.v) traduziu no Almanach
Perpetuum a Tabula more infantis in utero matris (Tábua da duração da criança no útero
materno), que, ajustada com a De animodar ptholomei, tábua retirada da obra Almagesto de
Ptolomeu, que possibilitava fixar os signos ascendentes.
O terceiro tópico indicado por Zacuto na doutrina dos cinco lugares principales del
nascimjento foi el grado de la luna (o grau da Lua). Vizinho traduziu a Tabula prima lune cuyus
radix e 1473, seguida de uma volumosa seqüência de tábuas cujo cabeçalho estampava o
título Tabula lune (ibid: 26-56.v).
E o último tópico dessa doutrina foi el grado de la conjuncion o oposicion precedente (o grau
da conjunção ou da oposição precedente). Vizinho traduziu um grande volume de tábuas
astronômicas que estampavam em seu cabeçalho o título Tabula coniuntionibum et oppositionum
(ibid: 57-64.v).
Portanto, o Almanach Perpetuum de Abraham Zacuto foi traduzido em Portugal nos
quadros do mesmo ambiente intelectual que o originou.
A historiadora Francis Amelia Yates (1995, p. 109-110) escreveu que:
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
553
Um dos métodos mais complicados utilizados na cabala [...] era a Gematria,
baseado nos valores numéricos designados para cada letra hebraica, que
envolvia um tipo extremamente intrincado de matemática, graças ao qual,
sendo as palavras calculadas em números e os números, em palavras, toda a
organização do mundo poderia ser lida em termos de palavras-números [...]
No ha-Hibbur ha-Gaddol, com referência na obra Sefer ha-‘Olam (Livro do Mundo) de
Abraham ibn ‘Ezra (1084-1164), Zacuto publicou as Tábuas das 120 conjunções na ordem dada
por Rabi Abraham ibn ‘Ezra em seu Livro do Mundo (CHABÁS; GOLDSTEIN, 2000: 65).
Abraham ibn ‘Ezra calculou o nome divino em números, obtendo – acreditava esse
astrólogo medieval - o equivalente numérico desse nome464. A soma do valor de Yodh (que
equivale numericamente a 10) com He (que equivale numericamente a 5) tem como
resultado o valor de 15. Deste modo, 15 equivale a Yodh e He, letras que formam o nome
divino Yah, se equiparando numericamente ao nome divino, conforme a interpretação de
Abraham ibn ‘Ezra. Esse erudito formulou nesse cálculo complexo a hipótese cosmológica
de que nele se assinalaria o verdadeiro cômputo das conjunções dos planetas. Somando o
primeiro número (1) com os números intermediários do equivalente numérico do nome
divino Yah (15), obteve o resultado de que “As conjunções [dos planetas] são 120” (IBN
EZRA, 2009: 53). A Tábua para encontrar o número de ciclos, anos e dias da Era da Criação
(CHABÁS; GOLDENSTEIN, 2000: 76-77) apresentada também no ha-Hibbur ha-Gaddol,
obedeceu ao mesmo raciocínio.
Os prognósticos conjuncionistas ganharam uma descrição clara na obra O Zodíaco da
Vida, escrita por Eugênio Garin, definidos como:
[...] uma ligação estreita entre alguns fenômenos celestes – recíprocas posições
de planetas – e grandes mutações na história da humanidade. Crises históricas
decisivas, tais como mudanças de hegemonia de povos e de civilizações, o
advento ou declínio das religiões, a firmação e a derrocada de reinos e impérios:
tudo isto seria medido segundo os movimentos do relógio celeste. Nos céus,
nas “danças” dos astros, nos seus encontros, seriam descritas as épocas da
história dos homens (GARIN, 1988: 33).
Na tabela dos eclipses solares (ZACUTO, 1496: 163), por exemplo, se calculou um
eclipse para junho de 1518. Além de datar esse fenômeno se estabeleceu matematicamente
sua magnitude, seu início e seu término. Esse evento celeste se encontrou no Mishpetei ha
‘istagnin (Juízos do astrólogo), no qual guerras, ódio e destruição da lavoura, previsões sobre
os cristãos, em especial os da Espanha, foram vinculados com esse eclipse solar:
[…] Year [5]278, 29 of Sivan [June 8, 1518]. the Sun will eclipsed; it indicates
great changes and that peace and agreements between kings and peoples will
464“If you add the square of one, the first number, to the square of five, the true middle number, you will get
the numerical equivalent of God’s name” (IBN EZRA apud SELA, 2003: 377).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
554
not be fulfilled; and sour fruits will be blighted; and it indicates hatred between
peoples, brothers, and loved ones; and gout (holi ha-niqris); and locusts that
will destroy the wheat in some countries; and woe for Christians, especially in
Spain (ZACUTO apud CHABÁS; GOLDSTEIN, 2000: 173).
Considerações finais
Nota-se que a astronomia que permeou a historiografia foi anacrônica ao ambiente
intelectual que abrigou a sciencia de la astronomia de Abraham Zacuto. Na historiografia, a
astrologia foi excluída do repertório intelectual desse erudito. Entretanto, em um dos
domínios da historiografia das ciências, as crenças científicas passadas ganharam espaço na
compreensão do desenvolvimento científico. No contexto dessa historiografia, o
astrônomo Zacuto da passagem ao astrólogo, e sua obra de astronomia cede espaço para
cálculos que aportavam prognósticos, que se inspiravam na literatura cabalística e que
serviam de aporte para a enunciação de profecias. Em suma, Nas teorias e conceitos da
historiografia das ciências, essa figura intelectual encontrou a possibilidade de ser elucidada
dentro dos quadros da integridade histórica que acolheu sua produção de conhecimento.
Referências bibliográficas:
BENSAÚDE, Joaquim. L’ Astronomie Nautique Au Portugal A L’Epoque des Grandes
Découvertes. Bern Akademische Buchhandlung von Max Drechsel, 1912.
BUENO, José M. Cobos, La Medicina en un escrito de astrologia del siglo XV. LULL, 2000.
p. 265-294. v. 23.
CANTERA BURGOS, Francisco, El Judio Salmantino Abraham Zacut, Madrid: C. Bermejo,
1931.
CARVALHO, Joaquim Barradas de. Estudos sobre a cultura portuguesa do século XVI.
Coimbra: Universidade de Coimbra, 1947.
CHABAS, J.; GOLDSTEIN, B. Astronomy in the Iberian Peninsula: Abraham Zacut and the
Transition from Manuscript to Print. Transactions of the American Philosophical Society, New
Ser., Vol. 90, No. 2 (2000).
GARIN, Eugenio. O zodíaco da vida: a polêmica sobre a astrologia do séc. XIV ao séc. XVI.
Lisboa: Estampa, 1988.
IBN EZRA, Abraham ben Meir. The Book of the World: a parallel Hebrew-English critical
edotion of the two versions of the text/ edited, translated and annoted by Shlomo Sela. BRILL,
2009.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
555
KUHN, Thomas. O caminho desde a Estrutura: ensaios filosóficos. São Paulo: Editora Unesp,
2006.
LEVY, B. Barry. Planets, Potions, and Parchments: Scientifica Hebraica from the Dead Sea
Scrolls to the Eighteenth Century. Montréal, Québec: McGill-Queen's Press, 1990.
MANUEL, Marciano Martín. ABRAHAM ZACUTO, astrólogo de Don Juan de Zúñiga.
Espanha: Editorial Renascimiento, 2010. (Coleción Biblioteca Judaica)
ROSSI, Paolo. A Ciência e a Filosofia dos Modernos: aspectos da revolução científica.Trad.
Álvaro Lorencini. São Paulo: Editora Unesp, 1992.
ROSSI, Paolo. O Nascimento da Ciência Moderna na Europa. Trad. Antonio Angonese. São
Paulo: Edusc, 2001.
SEED, Patricia. Cerimônias de posse na conquista européia do novo mundo (1492–1640). São
Paulo: Editora UNESP, 1999. (UNESP/Cambridge).
SELA, Shlomo. Abraham ibn Ezra and the rise of Medieval science. BRILL, 2003. (Brill’s
series in Jewish studies, v.32)
THOMAS, Keith. Religião e o Declínio da Magia: crenças populares na Inglaterra, séculos XVI
e XVII.São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
THORNDIKE, Lynn. The True Place of Astrology in the History of Science. Isis, Vol. 46, No. 3
(Sep., 1955), pp. 273-278. The University of Chicago Press on behalf of The History of Science
Society. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/226346. Acesso em: 29/01/2011.
YATES, F. A. Giordano Bruno e a tradição hermética. São Paulo: Cultrix, 1995.
ZACUTO, Abraão. Almanach Perpetuum. Leiria: Abraão da Ortas, 1496. Disponível em:
http://purl.pt/14708. Acesso em: 07/06/2011.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
556
Considerações sobre o Tempo Presente na História Econômica
João Paulo de Oliveira Moreira
Mestrando em História Social pela UFF
jpffpgramsci@hotmail.com
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo tecer algumas considerações acerca da
importância da História Econômica no Tempo Presente. Para tanto, será apresentado à
formação da “História do Tempo Presente” enquanto um campo disciplinar surgido no
pós Segunda Guerra Mundial, bem como as metodologias utilizadas neste campo
especifico. Tomando como estruturador teórico a corrente marxista, trabalharemos com a
hipótese defendida por Witold Kula (KULA, 1977:42) em que a partir de um método
retroativo de se analisar o tempo presente e o tempo passado, podemos dar conta da
questão do distanciamento e da aplicabilidade no real.
Palavras-Chave: Tempo Presente, História Econômica e Marxismo.
Resumen: El presente trabajo tiene como objetivo hacer algunas consideraciones acerca
de la importancia de la Historia Económica en el Tiempo Presente. Con este fin,se
mostrará la formación de la “Historia del Tiempo Presente” como un campo disciplinario
surgido después de la Segunda Guerra Mundial, y las metodologías utilizadas en este
campo especifico. Tomando como estructuración la teoría marxista,trabajaremos con la
hipótesis presentada por Witold Kula (KULA, 1977:42) donde a partir de un método
retroactivo para analizar el tiempo presente y el tiempo pasado,podemos hacer frente a la
cuestión de la distancia y de la aplicabilidad en la realidad.
Palabras-Clave: Tiempo Presente, Historia Económica y Marxismo.
1.
A História da “História do Tempo Presente” como um Campo Disciplinar:
Nesta seção o objetivo é apresentar a evolução da História do Tempo Presente
enquanto um campo disciplinar que surgiu logo após a Segunda Guerra Mundial, momento
em que a Europa se encontrava profundamente dividida acerca dos acontecimentos de sua
História recente.
A questão do recuo “necessário” para se responder as questões que emergiram neste
momento tais como: a ascensão do Nazi-Fascismo, o Socialismo Real, a Guerra Fria, o
Colaboracionismo, entre outros, foram levados a discussão nos principais países europeus.
Nesse caso, foram os historiadores que tomaram para si a responsabilidade de
responder tais problemas (LAGROU, 2009: www.tempopresente.org). O historiador belga
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
557
Pieter Lagrou, apontou que nesse momento foram diferentes os desafios para os diversos
países:
... a Alemanha derrotada, iniciadora da guerra acabara de assumir a
responsabilidade por seus crimes; triunfante, mas exausta, a França humilhada,
mas aspirante em atuar em primeiro plano. Com isso, as considerações de 1945
foram significativamente diferentes das feitas em 1918, quando historiadores
haviam desempenhado um papel fundamental na interpretação da Grande
Guerra, com resultados como a criação da Biblioteca Internacional de
Documentação Contemporânea pelo universitário Pierre Renouvin - ou pior como evidenciado pelos testemunhos historiográficos nacionalistas ativistas
sobre as responsabilidades pelo conflito ou "livros brancos" e "livros pretos"
sobre as atrocidades cometidas. Além disso, apesar de uma convergência sem
precedentes das sociedades européias após 1945, cada país escolheu um
caminho diferente de reconstrução nacional, com uma geometria política
bastante variável. A Itália pós-fascista; bipartidarismo na Áustria e a política
triunfante de consenso que na Holanda são exemplos da diversidade européia.
É neste contexto que devem ser situadas as historiografias nacionais, suas
articulações institucionais, políticas e intelectuais. (LAGROU, 2009:
www.tempopresente.org).
Nesse contexto de resolução das demandas internas de cada país, o historiador
aponta que a grande diferença da historiografia do pós Segunda Guerra Mundial, para a do
pós Primeira Guerra Mundial são os caminhos seguidos pelos países nas suas respectivas
reconstruções, o que nos leva a adotar aqui como parâmetro o pós-45 enquanto marco da
História do Tempo Presente, como um campo disciplinar, com suas raízes na europa,
diferente da posição de Hobsbawm, que aponta para o fim da Guerra da Argélia como
momento de surgimento deste campo (HOBSBAWM, 1992:95).
Exatamente por essas demandas de cunho político-econômico, este campo foi
devidamente desenvolvido por instituições ligadas ao Estado em seu sentido restrito, em
uma concepção gramsciana (GRAMSCI, 2006: 244), somente se integrando as
Universidades nos anos 1970.
Para Lagrou, a demora em se integrar a História do Tempo Presente a academia, foi
devido à hegemonia de toda uma geração de historiadores que evitaram esse campo e
desprezaram a História Política e Econômica, o belga se refere a “Nova História” ou
Terceira Geração dos Annales.
A obra de Henri Michel e Boris Mirkine-Guetzévitch, “Idées Politiques et Sociales de
la Résistance” , publicado pelas Imprensas universitárias da França em 1954 e prefaciado
por Georges Bidault, foi uma das primeiras publicações sobre a resistência francesa,
aspirante aos moldes de uma obra científica inserida no Tempo Presente.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
558
O que gerou críticas de Lucien Fevre465, ao considerar que os autores não escreveram
sobre o tema a partir de uma perspectiva da longa duração, “limitando-se a um
compartimento demasiado estrito e limitado do tempo”. Para Pieter Lagrou, a história do
tempo presente na perspectiva de Fevre, se faz mais do reconhecimento de uma dívida
moral para com os mártires e os testemunhos da resistência (Entenda-se Marc Bloch), do
que com a própria historiografia científica, o belga explicita essa posição no seguinte
trecho:
(...) A história de longa duração não aparecia então como um comportamento
de fuga intelectual? A tentação pode ser forte em declinar esta pergunta retórica
em acusações ad hominem. Não seria ela a resposta de uma trajetória pessoal que
os teriam inclinado a preferir a longa duração um Lucien Febvre ou ainda um
Fernand Braudel - sem dúvida, mas desprezando a linhagem intelectual em
detrimento da história contemporânea - e que foi cortada dos acontecimentos,
perturbando a sua própria época durante os seus cinco anos em um campo de
prisioneiros de guerra na Alemanha? (...) Dentro deste modelo de instituições é
bastante fácil ocorrer o discreto a uma corrente intelectual que dominou a
pesquisa francesa em ciências sociais por mais de 30 anos. Era bastante
cômodo para esta geração de historiadores de evitar a história recente e de
desprezar a história política. Portanto, eles testemunharam um outro tipo de
engajamento que nós poderíamos qualificar de progressista, ou para alguns, de
socialista, compartilhado, por exemplo, com a New History britânica, em torno
de historiadores como Eric Hobsbawm e Edward Thompson, ainda que estes
não tenham nunca desprezado o contemporâneo e o político. Se tratava da
convicção de que, em se analisando as estruturas profundas da sociedade em
sua perspectiva de longa duração, mais precisamente as estruturas de
desigualdade e de dominação, das quais os historiadores tinham um papel
crítico, muitas vezes um papel de propor soluções para remediar as injustiças
inerentes à essas estruturas, um papel de emancipação, para somente então
haver uma compreensão de todo este processo. (LAGROU, 2009:
www.tempopresente.org).
Tal posição de fuga intelectual e política dos Annales é apresentada pelo historiador
catalão Josep Fontana, em uma crítica incisiva do “grupo dos annales” em seu livro
“História: análise do passado e projeto social”, em que defende que este grupo desviou a
atenção para o método,renegando assim o pensamento teórico propriamente dito
(FONTANA, 1998:204),tendo seu apogeu em 1941 quando:
Data de 1941 precisamente a viragem “teórica” de Febvre, quando minimiza o
alcance do titulo que se deu à revista em 1929, dizendo que o “econômica” era
um “resíduo” das discussões suscitadas pelo materialismo histórico- o que
aproveita para desfazer qualquer suspeita de “economicismo subversivo”-tem
465
Michel, Henri et Mirkine-Guetzévitch, Boris. Les idées politiques et sociales de la résistance, avant-propos
de L. Febvre, Paris, Presses universitaires de France, 1954, p. VII.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
559
inclusive a capacidade de dizer que o “social” não significava nada e que “o
recolhemos por isso mesmo”. Poderia pensar-se que essas afirmações, com o
que têm de distanciamento com relação ao marxismo, eram fruto obrigatório da
necessidade de acomodar-se à situação vigente numa França dividida entre o
governo de Pétain e os ocupantes alemães. Porém o realmente significativo é
que esse texto de revisão e acomodamento foi recolhido por Febvre,em
1953,nos seus Combats pour l´histoire(...). (FONTANA,1998:205)
Portanto, logo no pós Segunda Guerra Mundial, as vanguardas intelectuais nas
universidades desprezavam a História do Tempo Presente, deixando a historia de eventos e
fatos, bem como as batalhas recentes da história aos historiadores da segunda zona.
Segundo Almeida (ALMEIDA, 2010:35), uma parte considerável dos historiadores
desse período, alegavam a impossibilidade de se aplicar regras cientificas a História do
Tempo Presente, assim, a disciplina no plano teórico deveria ser identificada com o
passado, excluindo o período mais recente.
No plano metodológico, colocavam-se em questão as fontes contemporâneas, cuja
dificuldade se encontrava nos limites legais de sua consulta, além disso, haveria o problema
do distanciamento temporal, na medida em que para os seus críticos a proximidade
cronológica entre o historiador e seu objeto seria responsável por rechear a produção
histórica das demandas sociais as quais o historiador estava submetido, o que acarretaria em
um caráter subjetivo à obra (NORA, 1992:47-49).
Fontana, também aponta que a História eminentemente Política e Econômica é
altamente combatida nesse momento, sem vislumbrar assim um projeto de sociedade e de
transformação e, sem integrar as explicações em um nível global (FONTANA, 1998:206208).
Nesse caso, de modo esquemático, pode-se apontar que a historiografia
contemporânea emergente em diferentes países da Europa ocidental, entre os anos de
1950-1970, foi produzida nos institutos dos Estados, criados pelos diferentes governos, que
tinham o objetivo de conservar as fontes do período de guerra, como mostrado no quadro
abaixo:
Quadro I
PAÍS
ANO
INSTITUTO/COMISSÃO
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
560
HOLANDA
1945
Instituto de Estado para a Documentação da Guerra
(Rijksinstituut voor Oorlogsdocumentatie)
FRANÇA
1946
Comissão Para a História da Ocupação e da Libertação
Comitê Francês Para a Segunda Guerra Mundial
1950
Instituto de Estudos do Tempo Presente, unidade
própria do CNRS (Centro National de Pesquisas
Científicas).
1980
ALEMANHA
1950
ITÁLIA
1949
Instituto nacional para a História do Movimento de
Libertação (Istituto Nazionale per la Storia del
Movimento di Liberazione)
1963
Arquivo de Documentação da Resistência Austríaca
(Documentationsarchiv des Österreichischen
Widerstandes)
1970
Centro de pesquisas e estudos históricos da Segunda
Guerra Mundial
ÁUSTRIA
BÉLGICA
Instituto de História do Tempo Presente (Institut für
Zeitgeschichte)
Fontes: http://www.niod.nl; http://www.ihtp.cnrs.fr; http://www.ifz-muenchen;
http://www.insmli.it; http://www.doew.at; http://www.cegesoma.be/
Todos os institutos supracitados não possuíam vínculos com as universidades, além
disso, vale citar que a pouca atenção dada ao genocídio da população judaica até meados
dos anos 60, fez com que fosse transferida a responsabilidade de pesquisa sobre o
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
561
holocausto para o Centro de Documentação Judaica Contemporânea na França, sob feito
de que as resistências era um assunto que interessava a todas às nações, enquanto à
perseguição aos judeus interessava, sobretudo, à comunidade judia, deixando assim claro
que essa historiografia oficial estava a serviço dos respectivos Estados que buscavam a
legitimação das suas políticas.
1.1-
Contraponto a “História Oficial dos Estados”:
Tal historiografia sofreu oposição de importantes historiadores, que vinculados às
universidades buscaram apontar para caminhos que não fossem aqueles propostos pelos
institutos financiadores de pesquisa, que tinham claramente um intuito de legitimar uma
determinada História Oficial.
Segundo a historiadora Monica Piccolo Almeida, a (re) valorização da História
Econômica e Política, com temáticas cronológicas próximas entre o historiador e o seu
objeto, foi beneficiada pelos seguintes motivos: a) redefinição do papel do Estado; b) a
pluridisciplinaridade; c) o interesse por parte de alguns historiadores na pluralidade de
ritmos temporais466, fundamentalmente nos anos de 1960-1970.
Esse processo, segundo Almeida, acarretou na transformação do entendimento do
que era o Tempo Presente, e de como o mesmo poderia ser usado nas análises econômicas
e políticas.
Tais motivos auxiliaram na inserção de temas mais recentes no campo de análise da
História, por parte de importantes historiadores como José Gotovitch e Jules GérardLibois467 e Albert de Jonghe468 na Bélgica. Na França, o núcleo central dos estudos do
Tempo Presente, desvinculados com a “História Oficial dos Estados”, se deu com a
Fundação Nacional de Ciências Políticas e com a Universidade de Paris X-Nanterre, tendo
historiadores de destaque como: René Rémond469, Serge Berstein470, Pierre Rosanvalon471,
Jean Pierre Rioux472, Phillippe Levillan473, Michel Winock474 e Antoine Prost475.
466
ALMEIDA, Monica Piccolo. “Por uma História do Tempo Presente”, In: Reformas Neoliberais no Brasil:
a privatização nos governos Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, Tese de doutoramento
defendida em 2010 pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal
Fluminense.
467 Jules Gérard-Libois e José Gotovitch, L’an 40. La Belgique occupée, Bruxelles, CRISP, 1971
468 Albert de Jonghe, Hitler en het politieke lot van België, 1940-1944, Antwerpen, De nederlandsche
Boekhandel, 1982.
469 RÉMOND,Réne. Pour une Histoire Politique.Paris,Editions du Seuil,1988.
Por que a História Politica?,Estudos Históricos, Rio de Janeiro, CPDOC-FGV, V.7, Nº13,
1994
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
562
Ainda na França, a revista Vingtième Siècle, assinalava que o estudo do século XX
constituia um campo a parte dos estudos da história contemporânea e que esta deveria ser
definida como “história do tempo presente476, Tais pesquisadores, bem como a revista
Vingtième Siècle, foram de fundamental importância para este campo da História, pois
impulsionaram sua inserção nos currículos universitários, nas revistas especializadas e
orientaram inúmeras pesquisas e teses de doutoramento.
2. Algumas Considerações teórico-metodológicas:
Atualmente as concepções hegemônicas nos estudos do Tempo Presente abordam as
temáticas por um viés pós-moderno, em que a sociedade é fluida ou “liquida”
477
, sendo a
mesma, uma escrita de um tempo à deriva ou o conhecimento sobre nosso tempo será
sempre incompleto, fragmentário e reducionista (MARANHÃO FILHO, 2010:
www.tempopresente.org;
MAYNARD,
2010:
www.tempopresente.org;CHAVES
e
OGASSAWARA, 2010: www.tempopresente.org).
No presente trabalho, a percepção é a de que para darmos conta das transformações
do Tempo Presente, devemos perceber os movimentos de continuidade e rupturas nas
sociedades, bem como a quem interessa esses movimentos, ou seja, os agentes envolvidos.
Para tanto lançaremos mão da proposta teórico-metodológica do marxista polonês
Witold Kula, em que
Além de o passado ter dado origem a tudo o que existe e ocorre no presente,
este constitui uma de nossas melhores fontes para o estudo daquele e,em
conseqüência não apenas temos de interrogar o passado para explicar os
acontecimentos atuais,como também precisamos investigar o presente para
poder inferir o que aconteceu no passado. Em outras palavras, devemos sempre
valer-nos de um procedimento alternado, em que nosso principal objeto de
estudo não é aquele representado pelo passado ou pelo presente em (ou por) si
mesmos, mas pelos mecanismos de mudança que levam de um para outro e de
ambos para o futuro (KULA, 1977:42)
470
BERSTEIN, Serge. L´Histoire ET LaCulture Politique, Revue d´Histoire,Paris,Presses de La Fondation
Nationale de Sciences Politiques,nº35,juillet-sept,1992.
471 ROSANVALON,Pierre. Democracy Past and Future, Columbia University Press, ed. Samuel Moyn, 2006
472 RIOUX,Jean-Pierre. La Guerre d’Algérie et les Français, Fayard, 1990.
473 LEVILLAN,Phillippe.Nations et Saint-Siège au XXe siècle, Fayard, 2003.
474 WINOCK,Michael. 1958. La naissance de la Ve République, Gallimard, Découvertes,, 2008.
475 PROST,Antoine.La Résistance, une histoire sociale, Paris, Éd. de l'Atelier, 1997.
476 Vingtième Siècle, Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques, janvier 1984.
477 BAUMAN, Zygmunt, Modernidade Liquida, Editora Zahar, 2001.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
563
Kula, sendo um especialista em metodologia da História Econômica, pensa esse
método retroativo de se analisar o Tempo Presente, com vistas à aplicabilidade no real e,
assim consegue dar conta de uma problemática muito cara aos pesquisadores que se
preocupam com períodos mais recentes, o da co-existência entre “objeto de pesquisa e o
pesquisador (HUFF, APUD: MARANHÃO FILHO, www.tempopresente.org).
Além do método retroativo, faz-se preponderante para a garantia de um padrão de
plausibilidade cientifico as pesquisas: a experimentação das hipóteses de trabalho pelo
historiador, o rigor de seus questionamentos e a ambição cientifica responsável pela
construção do objeto de estudo (MARANHÃO FILHO, www.tempopresente.org).
Com relação às fontes, a autora Sabrina Evangelista Medeiros (MEDEIROS,
www.tempopresente.org), nos propõe a utilização da internet como recurso arquivistico do
Tempo Presente, levando em conta que as fontes virtuais representam uma nova
materialidade das fontes.
Haja vista, que como a informação e o seu fluxo, engendram relações de poder, a
internet refaz as concepções da política e da economia atualmente, portanto, acompanha as
frações de classes que detêm o poder econômico e político, pois as mesmas estão inseridas
nas relações sociais como um todo.
Nesse caso, o trabalho histórico do Tempo Presente, deve-se imbuir com um
método rigoroso na busca pela inserção nas demandas da atualidade e da elaboração das
propostas de soluções para as principais problemáticas. Inclusive autores não marxistas,
como François Bedarida478, irão propor um compromisso com três prerrogativas
fundamentais para este campo: a) a verdade; b) a ética e c) a totalidade.
3. História Econômica situada no Tempo Presente: possibilidades de interpretar os
novos arranjos sociais e políticos no mundo:
Ao pensar as possibilidades da História do Tempo Presente como uma importante
ferramenta no auxilio da compreensão da atualidade, Eric Hobsbawm, aponta que a
disciplina é indispensável, pois nos situa no continuum de nossa própria existência e mais
478BÈDARIDA,
François. Tempo Presente e Presença da História, p. 223, In: Usos e Abusos da História
Oral. Rio de Janeiro. Fundação Getúlio Vargas. 1996. BÈDARIDA, François. Histoire, critique et
responsabilité. Paris. Editions Complexes/IHTP-CNRS. 2003.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
564
do que isso, pode nos fornecer um modelo para entendermos as transformações da
atualidade (HOBSBAWM, 1998:36-39).
Tendo como pressuposto a História como uma disciplina que pode auxiliar na
descoberta dos padrões e nos mecanismos de mudanças em geral, a prática do Tempo
Presente deve se estruturar na combinação entre experiência (individual e coletiva) e
perspectiva sócio-histórica, ou seja, uma alteridade do passado que nos afaste do
anacronismo.
Pensar a economia na atualidade por uma perspectiva histórica é, tentar retomar um
determinado campo que se tornou marginal entre os anos de 1970-1980, com uma razoável
“re-valorização” nos anos 1990479·. As inúmeras críticas ao “marxismo economicista” e aos
novos métodos cliométricos, relegaram a História Econômica a um campo marginalizado.
Contudo, aqui a economia é entendida como imbricada na transformação e na
continuidade da História, portanto, torna-se objeto de análise do Tempo Presente. E é
justamente criticando o marxismo economicista que autores também marxistas, como
Witold Kula, Michio Morishima e Josep Fontana irão pautar suas análises. Hobsbawm, irá
se deter mais no aspecto da crítica a cliometria e da função da História Econômica na
atualidade.
3.1 A Crítica a Cliometria e a Função da História Econômica na Atualidade:
Para Hobsbawm, a História Econômica, deve ter uma inserção nos problemas da
atualidade, propondo políticas e soluções dos problemas, levando em consideração os
aspectos extra-econômicos e sendo a disciplina preocupada com os fatos que sejam
verificáveis, ou seja, trabalhados nas economias reais, pois como o próprio afirmou “alguns
economistas recorrem à História, na esperança de que o passado forneça respostas que o presente
por si só parece relutante em produzir” (HOBSBAWM, 1998:110)
Para o historiador, com a 1ª Guerra Mundial a preocupação dos estudos com as
economias reais, dos seus respectivos tempos, tomam uma outra dimensão,pois a teoria
econômica facilitava a escolha entre as decisões,além de desenvolver técnicas para
implementá-las e monitorá-las
Paradoxalmente, os limites de uma abordagem historicista ou institucionalista
que rejeitava a teoria pura ficou evidente justamente no momento em que até
479Ver:FLORENTINO,Manolo e FRAGOSO,João. História Econômica,In: Domínios da História,(Orgs.)
Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
565
mesmo a economia capitalista,cada vez mais dependente ou dominada pelos
setores públicos,teve que ser deliberadamente administrada ou planejada. Isso
exigia ferramentas intelectuais que historicistas e institucionalistas não
forneciam, conquanto se inclinassem ao intervencionismo econômico.Durante
a era das guerras mundiais,assistimos ao surgimento de uma economia de base
teórica para o planejamento e a administração.(...) Ao mesmo tempo,tornavamse disponíveis instrumentos importantes de operacionalização,alguns deles
derivados da economia política clássica pré-marginalista ou da
macroeconomia,via marxismo,como a análise insumo-produto,que aparece pela
primeira vez no estudo preparatório de Leontiev para o plano soviético de
1925.Outros derivavam da matemática aplicada à pesquisa de operações
militares,como a programação linear.Embora o impacto da teoria econômica
neoclássica no planejamento socialista também se retardasse,por razões
históricas e ideológicas,na prática,a sua aplicabilidade às economias não
capitalistas também foi reconhecida a partir da Segunda Guerra Mundial
(HOBSBAWM,1998:114-115)
Portanto, a noção prática ou praxiológica como propõe Hobsbawm, no sentido de
ser a História Econômica uma ciência que nos auxilia na programação e nas formas de
atuação (HOBSBAWM, 1998:118) da Economia aplicada ao Tempo Presente, se
desenvolve de maneira proficua no entre guerras com as demandas de planejamento,
reconstrução e crescimento, ou seja, tendo em vista a realidade em que se viviam os
individuos.
Nesse caso, as economias imaginárias da Cliometria480 não podem fornecer os
subsídios necessários para uma análise substancial da sociedade, já que não tem a devida
preocupação com a “dessemelhança”, logo, com as formas de desenvolvimento econômico
...na medida em que projeta sobre o passado uma teoria essencialmente a histórica, sua relevância para os problemas maiores do desenvolvimento
histórico é vaga ou marginal. Os historiadores econômicos, mesmo os
cliometristas, reclamam da “incapacidade dos economistas de construírem
modelos que expliquem grandes eventos como a Revolução Industrial
(HOBSBAWM, 1998:128).
Os historiadores que se preocuparem com as economias reais do tempo presente,
devem buscar as explicações da situação em fatos verificáveis e ainda analisá-los
cuidadosamente segundo os métodos já citados anteriormente.
3.2 Por Uma Outra História Econômica:
480 A Cliometria,cujo maior expoente foi Robert Fogel,buscava testar proposições da teoria econômica, a
partir de dados que eram irreais.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
566
A História Econômica aqui defendida se coaduna com as proposições não só de
Hobsbawm, como também as de Josep Fontana, Witold Kula e Michio Morishima. Todos
marxistas e estudiosos do crescimento da economia481.
A preocupação com esta problemática,assim como o Tempo Presente enquanto
disciplina também surge no pós-guerra,tentando atender as necessidades emergentes.
Portanto, os marxistas aqui citados, se deparavam com um modelo de História
extremamente atrelado aos manuais soviéticos que propunham uma interpretação
canhestra do marxismo para aplicá-lo a realidade da economia planificada da Rússia pósrevolucionária.
O historiador basco Josep Fontana, em seu livro “La Historia Despues Del Fin De
La Historia”, faz uma forte defesa da criticidade na História, bem como utiliza uma série de
argumentos contrários ao Pós-Modernismo. Algumas das críticas deste movimento ao
marxismo, segundo o próprio Fontana, eram válidas como os esquematismos das
superestruturas e das infra-estruturas. Contudo, tais criticas não se renovaram, haja vista
que concomitantemente ao marxismo vulgar,ocorreram produções dinâmicas e vigorosas
teórico-metodologicamente, o que segundo o historiador basco acabou levando os pósmodernos a um erro
Há um momento em que você precisa fazer com que a crítica historiográfica
pare de demolir e passe a construir algo que seja uma nova produção, que
reconstrua uma história social. Isto continua sendo necessário. Porque o que se
faz deve ter utilidade para entender o mundo em que vivemos, ou não serve
para nada; ou as pessoas devem optar por se dedicar a atividades socialmente
mais úteis (FONTANA, 1992:47)
Ainda segundo Fontana, falar do passado de uma sociedade significa posicionar-se
quanto a seu tempo presente, com todos os problemas já explicitados no presente trabalho.
Ou seja, significa definir-se quanto às disputas e projetos sociais em conflito na sociedade
onde vive o historiador, desnudando suas desigualdades.
Por isso ao privilegiar o presente na sua concepção de História, e ao se pensar a
História Econômica, o autor trabalha a partir de uma relação coletiva, que tem clara função
social, propondo o método alternado que Kula já havia explicitado, em que se parte do
481
A questão do “crescimento econômico, não é exclusiva dos marxistas, liberais como Schumpeter disseram
o seguinte: “O desenvolvimento econômico constitui simplesmente o objeto da História Econômica, que,
por sua vez, não é mais que uma parte da história geral, separada do resto por meros propósitos de
exposição.Devido a essa fundamental dependência do aspecto econômico das coisas em relação a tudo o
mais,não é possível explicar a mudança econômica limitando-se às condições econômicas prévias.Porque o
estado econômico de um povo não surge simplesmente das condições econômicas anteriores,mas sim da
situação global anterior.” (SCHUMPETER,J.A,The Theory of Economic development,Oxford University
Press-Galaxy,Nova York,1941,p58-59)
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
567
estado atual das cosias para rastrear no passado, suas origens até as realidades atuais,
portanto a História (passado), a Economia Política (presente) e o Projeto Social (futuro) se
fundem numa temporalidade única para o historiador basco.
O marxista japonês Michio Morishima, faz uso da proposta de utilização social da
teoria e da metodologia da História Econômica, ao enfocar prioritariamente nos seus
estudos do Tempo Presente sete tópicos: 1) teoria do valor-trabalho, (2) a teoria da
exploração, (3) o problema da transformação, (4) reprodução do capital, (5) a lei da
população excedente relativa, (6) a queda da taxa de lucro, e (7) o volume de
negócios de capital482.
Nesse caso, Morishima buscou à luz do marxismo explicar as questões da exploração
e da geração do lucro positivo em seu tempo,utilizando-se de um refinadissimo método
matemático das desigualdades lineares. O japonês conseguiu através de seus estudos
apontar os principais problemas de desenvolvimento econômico do período em que vivia,
fazendo duras críticas a vulgata marxista soviética.
Conclusão:
O presente trabalho teve a pretensão de apresentar o surgimento da História do
Tempo Presente enquanto um campo disciplinar, surgido no pós 2ª Guerra Mundial, onde
inicialmente esteve atrelado a políticas de legitimação de governos. A partir da inserção
curricular deste campo nas universidades, os estudos do Tempo Presente deram um salto
qualitativo importante para seu desenvolvimento.
Tomando como estruturador a teoria marxista, tentou-se aqui apontar a importância
da análise da História Econômica, vista a partir da sua noção de totalidade, ou seja, levando
em consideração aspectos extra-econômicos com os aspectos econômicos “stricto sensu”,
para a abordagem da mesma no Tempo Presente, com vistas assim a aplicabilidade real.
Para tanto, defendeu-se aqui a utilização de fontes ampliadas como a internet para os
estudos atuais, bem como de um método retroativo tal qual propunha o marxista polonês
Witold Kula.
Referências Bibliográficas:
482
MORISHIMA,Michio.Introduction to Marx`s Economics,p.8. Cambridge University Press,1973
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
568
ALMEIDA, Monica Picollo. Reformas Neoliberais no Brasil: a privatização nos governos
Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso. Tese de doutoramento defendida em 2010 pelo
Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal Fluminense.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2001.
BÈDARIDA, François. Tempo Presente e Presença da História. In: Usos e Abusos da História
Oral. Rio de Janeiro. Fundação Getúlio Vargas. 1996.
______. Histoire, critique et responsabilité. Paris. Editions Complexes/IHTP-CNRS, 2003.
BERSTEIN, Serge. L´Histoire et La Culture Politique. Revue d´Histoire. Paris: Presses de La
Fondation Nationale de Sciences Politiques, nº35, juillet-sept, 1992.
CHAVES, Daniel Santiago e OGASSAWARA, Juliana. “Tempo presente: encontros possíveis
entre jornalistas e historiadores”. Disponível em: www.tempopresente.org. Acesso em: 25 jul 2012.
FONTANA, Josep. História: análise do passado e projeto social. Bauru: EDUSC, 2004.
______. La Historia Después del fin de La Historia. Barcelona: Editora Crítica, 1992.
FLORENTINO, Manolo e FRAGOSO, João. História Econômica, In: CARDOSO, Ciro
Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Domínios da História. Rio de Janeiro: Editora Campus,
1997.
GÉRARD-LIBOIS, Jules e GOTOVITCH, José. L’an 40. La Belgique occupée. Bruxelas: CRISP,
1971.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
JONGHE, Albert de. Hitler en het politieke lot van België, 1940-1944. Antwerpen: De
nederlandsche Boekhandel, 1982.
LAGROU, Pieter. A História do Tempo Presente na Europa depois de 1945 - Como se constituiu
e se desenvolveu um novo campo disciplinar. Disponível em: www.tempopresente.org. Acesso em:
25 jul 2012.
LEVILLAN, Phillippe. Nations et Saint-Siège au XXe siècle. Paris: Fayard, 2003.
MAYNARD, Dilton Cândido Santos. História, memória e horas extremas:reflexões sobre o tempo
presente. Disponível em: www.tempopresente.org. Acesso em: 25 jul 2012
MARANHÃO FILHO. Anotações sobre uma história do tempo presente. Disponível em:
www.tempopresente.org Acesso em: 25 jul 2012.
MEDEIROS, Sabrina Evangelista. Desafios do Tempo Presente: relações geopolíticas, fluxos
internacionais e métodos contemporâneos para a análise da contemporaneidade. Disponível:
www.tempopresente.org Acesso em: 25 jul 2012.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
569
MICHEL, Henri e MIRKINE-GUÉTZEVITCH, Boris. Les idées politiques et sociales de la
résistance, avant-propos de L. Febvre. Paris: Presses Universitaires de France, 1954.
MORISHIMA, Michio. Valor, Exploração e Crescimento: Marx à luz da Teoria Econômica
Moderna. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1980.
NORA, Pierre. De L´Histoire Contemporaine au Présent Historique. Actes de La Journée
d´etudes de l´http. Paris: CNRS, 1992.
PROST, Antoine. La Résistance, une histoire sociale. Paris: Éd. de l'Atelier, 1997.
RÉMOND,Réne. Pour une Histoire Politique. Paris: Editions du Seuil, 1988.
______. Por que a História Politica? Estudos Históricos. Rio de Janeiro: CPDOC-FGV, V.7,
Nº13, 1994.
RIOUX, Jean-Pierre. La Guerre d’Algérie et les Français. Paris: Fayard, 1990.
ROSANVALON, Pierre. Democracy Past and Future. Columbia University Press: Samuel Moyn,
2006.
SCHUMPETER, J.A. The Theory of Economic development. Oxford University Press-Galaxy:
Nova York, 1941.
WINOCK, Michael. 1958. La naissance de la Ve République. Gallimard: Découvertes, 2008.
KULA, Wiltord. Problemas y metodos de la Historia Económica. Barcelona: Eds. Peninsula,
1977.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
570
Teoria e narrativa históricas na English Historical Review de 1886 a 1902.
Leonardo de Jesus Silva
Mestrando em História pela UFG/Bolsista Reuni.
leonardosilva9@hotmail.com
Resumo: Esse trabalho pretende refletir sobre as discussões acerca da teoria e da narrativa
da história no estudo da história da historiografia. Focalizando a Revista Histórica Inglesa
como centro da profissionalização e cientifização da história na Inglaterra no final do
século XIX. Trata-se do ensaio de uma proposta de análise da fonte estudada e da teoria
em torno do pensamento histórico.
Palavras- chave: historiografia britânica; história intelectual; teoria.
Abstract: This work intend think about the discourses at theory and narrative history on
the study of historiography. Aproaching the English Historical Review as center of
professionalization of history at England in the late of nineteenth century. Take care of a
taste of a analysis proposal of source in study and of theory around of historical thinking.
Key- words: british historiography; intellectual history; theory.
É necessária cautela quanto a temática sobre narrativa que reivindico aqui. Os
historiadores ingleses, considerados “profissionais” pela historiografia contemporânea, se
opuseram a uma história narrativa como era praticada até meados do século XIX, que entre
os ingleses é caracterizado como história amadora. Minha idéia de narrativa aqui diz
respeito ao resultado desse processo de profissionalização e metodização, que são os textos
das revistas especializadas, notadamente de um caráter “nacional e narrativo dos eventos”
considerados históricos. Que não se confunda com a noção generalizadora arquitetada pela
historiografia dos Annales, por exemplo. Portanto, não ignoro um dos reais problemas da
narrativa na historiografia do século XIX, como considera Jörn Rüsen, a racionalidade da
pesquisa histórica que progrediu ao longo do tempo, pelo menos com respeito aos
métodos de investigação, era considerada incompatível com o princípio da narratividade
(RÜSEN, 2010, p. 153). Sirvo do termo narrativa para me referir a exposição dos fatos.
Não uma referência ao debate narrativista do século XX. Tentando enxergar além do que é
comum, e até mito, sobre a questão histórica do século XIX.
O objetivo do nosso trabalho é dar notícia da nossa pesquisa sobre historiografia
inglesa no seu momento de constituição científica e profissional, tendo como principal
fonte a English Historical Review (EHR). A idéia de buscar uma teoria assinalada no título esta
relacionada com nossa pergunta sobre como se desenvolveu a reflexão teórica da história
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
571
na Revista. Tendo em vista o ambiente historicista europeu naquele momento queremos
com isso perceber a leitura dos ingleses. A referência a narrativa faz menção ao âmbito
laboratorial, de trabalhos mais voltados para a pesquisa que para reflexão teórica e abstrata,
característica marcante da Revista. Não querendo indicar uma separação entre esses
campos, que não existe, nem uma classificação dessa historiografia como essencialmente
política e tradicional. Explicarei isso melhor mais a frente. É como se pensássemos com o
Professor José Carlos Reis em “História e Teoria”: termos que embora pareçam
assimétricos, são associados, remetem-se um ao outro, ligados implícita e profundamente
(REIS, 2003, p. 7).
Normalmente os estudos sobre o século XIX no que diz respeito a história da
historiografia consideram a sua produção histórica positivista, tradicionalista, ficando
presos a estudos de introdução, comentários e glosas483, sendo alguns com interesse político
marcante, e enfim, sem um estudo das fontes, refém da leitura de filtros.
Nosso estudo visa o estudo das fontes, interpretando alguns textos ainda
desconhecidos ou não traduzidos que podem contribuir, por exemplo, para os estudos da
história como ciência. O próprio recorte temporal mencionado aqui (1886-1902) diz
respeito a um historiador pouco estudado pela história da historiografia e de participação
fundamental na historiografia inglesa, e também da Revista: Lord Acton. Com este recorte
me refiro ao primeiro texto do periódico que é de sua autoria e o ano de sua morte (1902),
também o ano da primeira edição da Cambridge Modern History, “concebido e planejado”
pelo próprio Lord Acton. Até onde e como podemos relacionar a English Historical Review
com a Cambridge Modern History é uma de nossas tarefas. Tendo em vista leituras e pistas
sobre o tema como a de Rosemary Jann podemos perceber uma interessante questão
quanto a concepção de história. Entendendo a história profissional científica se opondo aos
erros da tradição amadora, da história “literária”, encontramos em Lord Acton e “sua
coletânea” uma realização de sua filosofia da história. A Cambridge Modern History
representou nem tanto um avanço acadêmico como uma codificação das suposições do
século XIX sobre o que constituía história universal (JANN, 1985, p. 230).
A English Historical Review tem seu primeiro número publicado em janeiro de 1886. O
objetivo era criar um local de encontro para os trabalhos já desenvolvidos no país e para os
483 Como explica o professor Jurandir Malerba: “As grandes glosas são e serão sempre importantes para nossa
formação intelectual. Porém, elas não bastam. Há que se ler os originais.”(MALERBA, 2010, p. 10).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
572
pesquisadores que se equiparavam aos de outros países europeus. Como é afirmado em sua
Prefatory Note:
Although the number of persons engaged in this study is large and constantly increasing
; although the work done is as thorough in quality as that even of the Germans, and
probably larger in quantity than that of the French or Italians ; although historical
schools of much promise have lately been developed at our universities, English
historians have not yet, like those of other countries, associated themselves in the
establishment of any academy or other organisation, nor founded any journal to
promote their common object (Prefatory Note, 1886, p. 1).
Para um estudo que privilegie a história da ciência histórica, esse prefácio e alguns
textos, entre artigos, notas e resenhas oferecem pistas da concepção histórica do periódico
e de seus autores. Ainda em seu prefácio são indicados alguns princípios da história de seus
promotores e o seu uso. O autor do texto, James Bryce, elabora três questões: uma
relacionada a concepção de história de seus autores; outra sobre a “suspeita de
partidarismo” relacionadas a questões políticas, eclesiásticas; e sobre qual seria o públicoalvo da revista.
Em relação a concepção de história existiriam duas concepções naquele momento
sobre o seu âmbito, uma que trata da “história como passado político” e a outra que a
entende como “um quadro de todo passado”, “tudo que o homem tem pensado ou feito”.
Considerando essas duas noções frágeis, o autor prefere “considerar a história como o
registro da ação humana, e do pensamento apenas em sua influência direta sobre a ação”.
Assim o “carro chefe” da Revista será o Estado e a política. A história política se revelaria
mais importante que a história dos cidadãos comuns. Exceto quando a história encontra
“homens que influenciaram outros de seu tempo, como Sócrates, São Paulo, Erasmo ou
Charles Darwin”. Porém a Revista não se limitaria a história política, ela quer “receber de
cada área específica a luz que eles podem lançar sobre a vida do homem no passado” 484.
Quanto ao perigo de partidarismo, o autor afirma que os artigos que indicarem esse
problema serão recusados. A principal preferência, ou dependência, dos promotores da
revista, é com um “espírito científico”, que esperam que seus “contribuidores tragam”
485
.
E quanto ao público-alvo, sendo ou os estudantes profissionais de história ou o leitor geral,
a Revista se destinaria a ambos, embora seja o grupo dos profissionais o interesse principal.
O que se percebe pelos debates que se desenvolvem desde os primeiros números. Além
dos textos carregados de notas e marcações de arquivos, sendo esses, por exemplo, o Public
Record Office. O leitor vitoriano, acostumado com a história literária, bem escrita, como a de
484
485
Prefatory Note, EHR (1886), p. 3.
Prefatory Note, EHR (1886), p. 4.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
573
Macaulay ou Carlyle, estranhou a nova prática, demonstra alguns estudos nesse âmbito
como o de Rosemary Jann.
Podemos inferir que não estavam alheios ao debate da história científica, pela
comparação com o trabalho de alemães e franceses, por exemplo. Aliás a discussão sobre a
profissionalização e cientifização da história é anterior ao final do XIX, desde as décadas de
1850 e 1860 entre os ingleses. Nessa questão costuma-se considerar a nomeação de William
Stubbs como professor de História Moderna em Oxford em 1866 e a nomeação de John R.
Seeley em Cambridge em 1869 como marcos do estabelecimento da história como
disciplina acadêmica na Inglaterra486.
A English Historical Review é publicada em 1886 pela editora Longmans, tendo como
primeiro editor o Professor de História Eclesiástica de Cambridge, Mandell Creighton,
também Bispo de Londres. Segundo alguns autores, como Doris Goldstein, vinte anos de
discussões e tentativas frustradas de criar um jornal histórico teriam precedido esse
primeiro número. Como na tentativa de James Bryce e A. W. Ward entre 1867 e 1870 com
a editora Macmillan, tendo como provável editor o historiador Richard Green.487 Entre
seus principais fundadores estão além de James Bryce, Adolphus W. Ward e Mandell
Creighton, Frederic York Powell, Reginald L. Poole e Lord Acton. Esse último era
admirado e inspirava os primeiros editores, além de considerarem que um artigo seu no
primeiro número chamaria de vez atenção para a Revista.
A Revista possui publicação quadrimestral. Ela se compõe de uma sessão de Artigos,
uma sessão de Notas e documentos e a sessão de Resenhas de Livros. Sendo talvez esses, as
resenhas, os principais textos a serem explorados, pelo recorte aqui proposto em investigar
a reflexão teórica da Revista e as leituras realizadas a tal respeito que foram expostas em
suas páginas. Além disso, ela traz em seus números informativos a respeito de Livros
Históricos recentemente publicados, Notas Diversas (Miscellaneous Notes, no volume I), com notícias
de congressos, associações, encontros de história. A partir de 1887 tem-se acesso através da
Revista, aos Conteúdos das Publicações de Periódico, como por exemplo, da Revue Historique, ou a
Historische Zeitschrift de Sybel, ou a Quartely Review, que é também inglesa. Sendo alguns
conteúdos brevemente comentados.
486
Informação tirada do texto de Eckardt Fuchs, “English Positivism and German Historicism”, no livro
Bristish and German Historiography: 1750 – 1950.
487GOLDSTEIN, Doris S. “The origins and early of the English Historical Review”. In: English Historical
Review, vol. 101. London: Longmans, Green and Co. 1986.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
574
O que chama atenção numa primeira análise é uma história factual, com diversos
temas, tendo predomínio da história política inglesa. Os episódios relacionados com a
Revolução Inglesa, o Parlamento, a formação da região dos bretões488, etc. Tendo
predomínio da história da Grã-Bretanha e da Europa. A Revista possui claro, um viés
nacional. Como afirmou o Professor Julio Bentivoglio, as revistas de história do século
XIX eram todas nacionalistas (BENTIVOGLIO, 2011, p. 85). Entendendo a Revista como
resultado da especialização da história, será criado um “consenso sobre o padrão de
pesquisa”, como afirma John Burrow. Os resultados das pesquisas eram inicialmente
publicados nos jornais acadêmicos especializados. Segundo Burrow, no final do século XIX
e início do século XX história significava, sobretudo história política, incluindo em história
moderna um foco sobre as relações dos estados no sistema inter-estados europeu, e ainda
história das origens constitucional e legal, com um crescente prestígio da história
econômica (BURROW, 2008, p. 428). O que podemos constatar na Revista.
Para facilitar nosso estudo realizamos uma catalogação dos arquivos489, tendo
estabelecido uma classificação quadripartite e por temas dos artigos e notas. Demonstro a
classificação quadripartite dos artigos onde podemos identificar o perfil da produção
historiográfica nessa sessão (cerca de 240 publicações) através da tabela:
Classificação Quadripartite TEHR: 1886 - 1902
Série1; história
moderna; 102
Série1; história
contemporâne
a; 59
Série1; história
antiga; 36
Série1; história
medieval; 47
488Alguns exemplos: The house of Bourbon, de J. R. Seeley, vol. I; The life of Justinian by Theophilus, de
James Bryce, vol. II; The political theory of Huguenots, de E. Armstrong, vol. IV; The comparative history
of France and England during the Middle Ages, de Charles V. Langlois, vol. V, entre outros.
489 Nosso estudo ainda possui duas lacunas, que são os arquivos dos anos de 1893, volume 8 e do ano de
1900, volume 15. Já temos alguns textos desses volumes, mas falta ainda uma boa parte que em breve
resolveremos esse problema.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
575
Na sessão de Notas e documentos, ainda sobre as narrativas da EHR, encontramos um
debate que se estabelece nos números de 1886 e 1887, intitulado The Squire Papers. Esses
papéis seriam as correspondências que Thomas Carlyle recebeu de William Squire como
legitimas de Oliver Cromwell, aaté então desconhecidas. Os historiadores britânicos Aldis
Wright, Samuel R. Gardiner e Walter Rye consideram forjadas, não autênticas. Acusam
Squire de propagador de um boato, de um trote - hoax. Outro exemplo dessa discussão
narrativa- argumentativa se dá nos trabalhos intitulados Cromwell and the Inssurection of 1655.
Ela começa no volume III quando C. H. Firth critica alguns equívocos no artigo de
Reginald Palgrave publicado em 1886 na Quartely Review, intitulado “Cromwell: his character
illustrated by himself”. C. H. Firth relata as origens do fato de 1655 e refuta os equívocos
sobre. Não trataremos de todo o debate, tendo em vista a análise incompleta dos textos e o
espaço desse texto. Queremos apenas indicar alguns apontamentos. No mesmo volume
encontramos a resposta de Palgrave [A Reply to Mr. Firth], onde se defende dizendo que seu
trabalho não foi feito sobre inferências, ou deturpando as palavras de alguém, mas sobre
evidências documentais490. Uma segunda parte da resposta sai no número de outubro do
volume de 1888. No primeiro número de 1889 continua a resposta de Palgrave. Firth volta
a atacar no segundo número de 1889 admitindo as mudanças no método de comprovação
de Palgrave. E volta, no terceiro número para analisar a teoria de seu interlocutor
historiográfico.
Chama-nos atenção esse debate por poder indicar, mesmo indiretamente, umas das
principais querelas da profissionalização da história na Inglaterra: a de uma transição da
história vitoriana, amadora, para uma história científica, profissional. Segundo analise de
Rosemary Jann, Reginald Palgrave é critico de Carlyle, por “florear” demais o texto,
enquanto Charles Firth, apesar dos princípios profissionais ainda considerava a história
como guia moral e político.
Essas contendas podem talvez ser encaradas como o que Eric Hobsbawm se referiu,
sobre os estudos daquela época, citando a sátira 1066 and All That, “1066 e aquela coisa
toda”, uma menção a discussão sobre a Batalha de Hasting, que na Revista Inglesa é tema
de um debate em 1894, envolvendo Edward Freeman. A leitura de Hobsbawm e outros,
talvez até mais descrentes com a história científica do século XIX, se justificaria também
pela ausência de uma história social e cultural. Robin George Collingwood em estudo sobre
490EHR,
vol. 3 (1888) p. 522.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
576
a historiografia inglesa do final do século XIX considerou que ela atuava ainda sobre a
sombra positivista. Excetuando algumas questões colocadas por Edward Freeman, nada
mais digno de nota foi produzido (COLLINGWOOD, 1989, p. 186). De fato os artigos da
Revista do final do XIX até as primeiras duas décadas do XX não refletem de maneira
direta as reflexões mais teóricas e críticas. Talvez até hoje sua preocupação seja voltada para
os debates de pesquisa. E Collingwood tinha conhecimento do processo historiográfico de
meio século atrás. Em seu livro encontramos referências a pelo menos três historiadores
que participaram d aRevista: F. W. Maitland, John B. Bury e Lod Acton. Sua reflexão crítica
da história talvez só não tenha objetivado uma analise apenas historiográfica. No
aniversário de 125 anos do periódico em 2011, foi elaborada uma lista de artigos para livre
acesso, selecionados entre os mais respeitados trabalhos publicados. Com um recorte de
1970 até hoje os temas predominantes são história política, religiosa, relacionados com a
identidade profissional etc.
Não podemos deixar de fora o debate sobre o historicismo. A influência dos grandes
mestres historicistas como Ranke, Mommsen, Droysen, é fácil de ser encontrada na
Revista, uma vez que foram lidos, resenhados e citados. Entendemos historicismo aqui
como a época do desenvolvimento da ciência histórica, na qual se constituiu, como ciência
humana compreensiva, sob a forma de uma especialidade acadêmica (MARTINS, 2002, p.
2). Normalmente os estudos fazem poucas, senão nenhuma referência aos ingleses nesse
processo.
A Inglaterra carregava uma tendência positivista e empirista muito fortes no século
XIX. Autores como Stuart Mill e Thomas Buckle tiveram uma ampla repercussão nos
debates. Segundo Eckhardt Fuchs (2008) em estudo sobre as relações entre o positivismo
inglês e o historicismo alemão, a historiografia inglesa se torna científica em meados do
século XIX, com o debate proposto por Buckle, sobre a relação entre ciência natural e
historiografia. O trabalho de Eckhardt Fuchs nos interessa porque ele vai além dos estudos
sobre a história da disciplina, relacionando apenas e institucionalização e a
profissionalização da história. Foi a partir da década de 1870, com um constante contato
com a historiografia alemã, com uma definição ideográfica e hermenêutica de historiografia.
Apenas quando o significado do termo ‘científico’ mudou entre os historiadores durante o
último quartel do século que o positivismo diminuiu sua influência (FUCHS, 2008, p. 248).
Se o positivismo na história é marcado por uma tentativa de definir uma base
nomotética da ciência da história, como argumenta ainda Fuchs, ele não será a base para
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
577
definir a disciplina entre os “profissionais” da Inglaterra e da Alemanha. “Na verdade, a
disciplina [História] começa a se definir em resposta ao modelo positivista” (FUCHS, 2008,
p. 249).
Para Peter Wende, outro historiador a pensar as relações entre alemães e ingleses na
virada para o século XX, essa relação se dá como mestres e púpilos. A Historische Zeitschrift
foi tomada como modelo por Acton para a constituição da English Historical Review
(WENDE, 2008, p. 174). Embora numa fonte historiográfica que tenho o relato sobre a
constituição da Revista não envolver diretamente desde o início Lord Acton. O trabalho de
Peter Wende sobre as resenhas de livros entre ingleses e franceses no final do século XIX
oferece o que ele chama de “percepeções mútuas” entre os historiadores. Não se restringe
às resenhas da English Historical Review, mas faz grande uso delas. Podemos localizar aqueles
que introduziram de maneira positiva em seus países os alemães, como Adolphus W. Ward
para os ingleses, ou os que rechaçaram como Freeman, alegando uma “independência” da
historiografia inglesa. Ambos com trabalhos na EHR.
Podemos considerar a English Historical Review como representante da
profissionalização da História na Inglaterra. E o que seria mais interessante, como sugere
Eckhardt Fuchs, perceber “quais as visões teóricas da história coexistiram com a idéia
fundamental de desenvolvimento da disciplina”. Compreendendo também nosso objetivo
de analisar a reflexão teórica da história na EHR. Por isso as resenhas, que demonstram as
leituras realizadas dentro desse campo que se constituía. Gostaria de citar alguns textos da
Revista Histórica Inglesa que nos indicam fontes para nossas reflexões. Que podem nos
indicam quais autores de outros países, que possuem um papel decisivo no cenário do final
do XIX, são analisados pelos britânicos; como fizeram suas interpretações; o que
privilegiaram; o que assimilaram, o que foi negado, comparado. Assim o estudo das revistas
serve para expressar as inquietações dos historiadores no seu presente (BENTIVOGLIO,
2011, p. 100), e um local privilegiado para o estudo da escrita da história, por possibilitar
um contato com a fonte.
Entre os artigos, dos 20 selecionados, podemos citar os seguintes:
ACTON, Lord. “German Schools of History” English Historical Review, 1 (Janeiro 1886), 742.
ACTON, Lord. “Wilhelm Von Giesebrecht” English Historical Review, 5 (abril 1890), 306310, 18.
ACTON, Lord. “Doellinger's Historical Work” English Historical Review, 5 (outubro 1890),
700-744, 20.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
578
BRYCE, James. “Edward Augustus Freeman” English Historical Review, 7 (julho 1892), 497509, 27.
JENKS, Edward. “Fustel de Coulanges as an historian” English Historical Review, 12 (abril
1897), 209-224.
MAITLAND, F. W. “William Stubbs, Bishop of Oxford” English Historical Review, 16 (julho
1901), 417-426, 43.
POWELL, F. York. “Samuel Rawson Gardiner” English Historical Review, 17 (abril 1902),
276-279.
POOLE, Reginal Lane. “John Emerich, Lord Acton” English Historical Review, 17 (outubro
1902), 692-699.
Entre os textos que destacamos da sessão de resenhas, dos cerca de 46, gostaria de
citar os seguintes:
Volume I - 1886
Mommsen (T.) Römische Geschichte, v.: por W. T. Arnold & T. F. Tout, 350-364.
Treitschke (H. von) Deutsche Geschichte im neunzehnten Jahrhundert, III: por Adolphus
Willian Ward, 809-815.
Volume II - 1887
Creighton (M.) History of the papacy, III. iv.: por Lord Acton, 571-581.
Freeman (E. A.) Methods of historical study: por A. W. Ward, 358-360
GARDINER (S. R.) History of the great civil war [1642-1649], I.: por A. W. Ward, 381385.
SEELEY (J. R.) Short history of Napoleon the First e John Codman ROPES, The First Napoleon:
a Sketch, Political and Military: por Lord Acton, 593-603.
Volume III - 1888
Lea (H. C.) History of the inquisition of the middle ages: por Lord Acton, 773-788.
Ranke (L. von) Zur Geschichte Deutschlands und Frankreichs im neunzehnten
Jahrhundert: por A. W. Ward, 184-186.
Volume IV - 1889
Bryce (James) The American Commonwealth: Lord Acton, 388-396.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
579
Langlois (C. V.) Le regne de Philippe le Hardi: por T. F. Tout, 364-369.
Volume VII - 1892
GARDINER (S. R.) History of the great civil war, III. [1647-1649] & A Student's History
of England: por A. W. Ward, Litt.D., 573-578.
Froude (J. A.) The divorce of Catherine of Aragon: por Augustus Jessopp, 360-365
Volume X - 1895
Flint (R.) Historical philosophy in France and French Belgium and Switzerland: por Lord
Acton, D.C.L., 108.
Volume XI - 1896
Acton (Lord) A lecture on the study of History: by S. R. Gardiner, 121-123.
Volume XIII - 1898
Langlois (C. V.) & Seignobos (C.) Introduction aux Etudes historiques : by S. R. Gardiner,
D.C.L., 327-329.
Volume XVII - 1902
Seignobos (M. C.) La methóde historique appliquée aux sciences sociales, 189 – W. G. P. S.
No final a produção arrolada aqui contribui para o conhecimento da escrita histórica
do final do século XIX, pois se trata de uma leitura das fontes que estamos realizando,
ajudando a desmitificar a classificação de história tradicional e positivista, para diferentes
historiografias desse período. Os textos revelam apropriações e seleção do que deveria ser
estudado e pensado sobre história. Podemos inclusive, com a analise mais profunda desses
textos e autores achar problemáticas e debates que já se encontravam naquele momento.
Como sugeriu Doris S. Goldstein, talvez muitos dos “pais” (os tradicionalistas) foram mais
complexos do que os “filhos” (os inovadores que os substituíram) poderiam considerar ou
admitir (GOLDSTEIN, 1977, P. 919).
Referências Bibliográficas
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
580
BENTIVOGLIO, Júlio. A Historische Zeitschrift e a historiografia alemã do século XIX. Revista
História e Historiografia. Ouro Preto, número 6, março 2011, pp. 81-101.
BURROW, John. A Professional Consensus: The German Influence. In: A History of Histories.
Published by Alfred A. Knopf, pp. 425-437, Nova Iorque, 2008.
COLLINGWOOD, R. G. A Ideia de História. Lisboa: Editorial Presença, 1989. 7° edição.
FUCHS, Eckhardt. English Positivism and German Historicism. The reception of ‘Scientific
History’ in Geramny. In: STUCHTEY, Benedikt; WENDE, Peter (org.). British and German
Historiography, 1750-1950. pp. 229-250. Londres: German Historical Institute London e Oxford
University Press, 2006.
GOLDSTEIN, Doris S. J. B. Bury’s Philosophy of History: A Reappraisal. In: The American
Historical Review, vol. 82, no. 4 (1977), pp. 896-919.
GOLDSTEIN, Doris S. The origins and the early years of the English Historical Review. In:
English Historical Review, vol. 101. Londres: Longmans, Green and Co. 1986.
MARTINS, Estevão de Rezende. Historicismo: tese, legado, fragilidade. In: História Revista, 7
(1/2): 1-22, 2002.
REIS, José Carlos. História e teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2003.
WENDE, Peter. Views and Reviews. Mutual Perceptions of Bristish and German Historians in the
Late Nineteenth Century. In: ______ (org.). British and German Historiography, 1750-1950. pp.
173-189. Londres: German Historical Institute London e Oxford University Press, 2006.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
581
Pensando a Literatura: o romance e suas possibilidades de análise
Marcelle D. C. Braga
Mestranda em História pela UFOP/ Bolsista UFOP
marcelledcbraga@gmail.com
Introdução
Os historiadores podem se verticalizar sobre diversos tipos de fontes, buscando
compreender e apreender formas de interpretação do mundo, formas de expressão e
modos de vidas. Deste modo, este texto propõe discutir as possibilidades de interpretação e
compreensão que a História, enquanto disciplina, pode dispor para se aproximar das fontes
literárias. Isto significa dizer que levantaremos questões refletidas nas áreas de ciências
humanas acerca de como pensar as obras literárias enquanto fonte e também enquanto
objetos textuais. Para tanto, nossa proposta se volta para o gênero romance, em específico,
tendo em vista que é o mais recorrente nos estudos historiográficos.
Algumas propostas da historiografia para a abordagem da literatura
Primeiramente levantamos duas formas de se compreender a literatura pelo viés da
historiografia, que nos possibilita visualizar um modo de interpretação da História Cultural
sobre esta fonte. Consideramos que Sandra Jatahy Pesavento e Roger Chartier sejam dois
importantes expoentes desta discussão.
Segundo Sandra Jatahy Pesavento, podemos pensar a escrita literária e a
historiografia como caminhos do imaginário, em busca de modos de vivência e expressão
do passado. Encarando o imaginário como elemento organizador do mundo, que dá coerência,
legitimidade e identidade. É sistema de identificação, classificação e valorização do real, pautando condutas
e inspirando ações.
491
Assim o imaginário é considerado como um mecanismo de
representações, que se assenta sobre o real, tendo-o como referência, porém sem misturarse com ele. O imaginário trocaria, substituiria e tomaria o lugar da realidade na medida em
que construiria uma representação social dela. Então, a representação passaria a ser
491 PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & literatura: uma velha-nova história. IN: Nuevo Mundo Mundos
Nuevos. Debates, 2006. IN: http://nuevomundo.revues.org/1560. Acessado em: 07-01-2011, p. 02.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
582
apreendida como o real.
492
Portanto, a autora considera a representação como externa à
realidade, podendo assumir essas diversas formas.
A literatura, nesse sentido, é ponte para o imaginário, permitindo acessar o subjetivo
de modo indireto ou metafórico. Pode também auxiliar o historiador a ver questões ou
pensar em outras fontes, abrindo possibilidades e hipóteses. Logo, o texto literário não
deve ser buscado pelo historiador como testemunha de autenticidade, o texto literário revela e
insinua as verdades da representação ou do simbólico, expressa modos de pensar e de agir, que
possuem sua própria significância.493 Por esses motivos, a literatura oferece campo fecundo
à História Cultural.
O francês Roger Chartier se aproxima das propostas de Pesavento, a respeito deste
tipo de fonte e, principalmente, no que concerne a essa configuração da História Cultural,
rejeitando o método quantitativo e das mentalidades. O historiador tem pesquisado sobre a
história da educação; história do livro, da leitura, das mudanças da materialidade dos textos
e das práticas culturais na Europa; contemplando desde o fim da idade moderna até o
presente. Seu viés interpretativo contempla, assim, o nível das ações dos indivíduos e de
suas relações. Desta forma, pensa a construção das leituras enquanto prática subjetiva que
dialoga com o universo de conhecimento do leitor, refletindo sobre as coerções e os
espaços de invenção que estes envolvem.
Segundo Roger Chartier, a literatura é um material sujeito a interpretações do
indivíduo e que, por isso, pode ganhar significados distintos de públicos diferentes. Há
ainda uma variabilidade de acordo com o conhecimento que está acessível a cada grupo,
sendo que a leitura dialogará, sempre, com a percepção de mundo de cada leitor. A forma
como o texto é apresentado também terá suas especificidades, distinguindo-se: os
encenados, escritos e lidos. Portanto, constituem elementos a serem contemplados no
trabalho historiográfico: o modo de transmissão do objeto literário, o seu destino e as
interpretações feitas destes. 494
Chartier destaca a necessidade de buscar uma análise dos textos, em suas estruturas
objetivas e nas pretensões do autor, e, por outro lado, a história do livro, em seus usos e
significações pelos diversos públicos. A materialidade dos textos também auxilia na sua
recepção e na formação de sentido pelo leitor. Observa também a importância da busca da
492Idem,ibdem,
p. 02-03.
Idem, ibdem, p. 07-08
494CHARTIER, Roger. O mundo como representação. : Estudosavançados. 1991, vol.5, n.11, pp.173-191.
IN:http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40141991000100010&script=sci_arttext. Acessado em: 2012-2010
493
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
583
intertextualidade, recorrendo às fontes e ao que se escreveu sobre as obras, como lhe foram
atribuídas construções e reconstruções. Aponta como é interessante pensar as redes de
práticas e os códigos de leituras próprias às várias camadas de leitores do autor nas suas
especificidades e totalidades. 495
Já o historiador anglófono John Pocock se difere bastante dos pesquisadores
supracitadas, pois trabalha com história do discurso político, preocupado em como os
diversos atores políticos mobilizam a linguagem para ler e responderem-se uns aos outros.
E, como Chartier e Pesavento, pensa seu recorte a partir do nível do indivíduo.
Verticalizando-se sobre a reconstrução das intenções dos autores dos discursos políticos, a
ação indireta destes sobre as leituras, sua ação póstuma e a ação mediada por outros atores
históricos. Refletindo sobre tendências ideológicas e o funcionamento do círculo
hermenêutico.
Pocock oferece interessante proposta teórica no que tange ao sentido do texto e a
reconstrução das intenções do autor, que pode ser refletido nas suas proximidades com o
tratamento das fontes literárias. Aponta a necessidade de o historiador abordar a literatura
da época, o mais abrangentemente possível, para perceber as mais diversas possibilidades
de cruzamento de discursos. Sendo interessante tornar explícitas as ideias que aparecem
implícitas no texto. Abalizar as regularidades e convenções da linguagem utilizada, da
mesma forma como as limitações que essa linguagem impunha no período àqueles
indivíduos.496 Assim, analisar os eventos políticos, culturais e sociais que o discurso
engendra e mobiliza. 497
O romance: Contribuições das ciências humanas ao estudo da literatura
As Ciências Humanas possui vasta bibliografia a respeito das diversas formas de se
aproximar das mais distintas obras. Aqui pretendemos trazer algumas reflexões de Mikhail
Bakhtin, Roland Barthes, Antonio Candido e Gerson Luiz Roani, Hayden White
Mikhail Bakhtin, em sua obra Questões de Literatura e de Estética, propõe pensar o
romance europeu nos seus primeiros desdobramentos, em contraste com uma literatura já
estabelecida e consagrada: as epopeias. Demonstra como o romance partiu de uma
495
CHARTIER, Roger, A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e
XVIII. Brasília:UnB, 1999. p. 11-14.
496 POCOCK, J. G. A. Introdução. In: Linguagens do ideário político. São Paulo: Editora da universidade de São
Paulo, 2003, p. 33-34.
497 Idem, ibidem, p. 37.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
584
perspectiva exatamente contrária: enquanto a epopeia se pautava no passado mítico, no
passado dos heróis nacionais, distanciando-se do presente; o romance partiu das questões
mais eloquentes do presente, a partir das linguagens mais corriqueiras, das experiências das
pessoas do período e suas opiniões.
Esse rompimento com a distância possibilita a
configuração de uma representação do homem radicalmente reestruturada, pautada na
constante construção, voltado para as possibilidades que o futuro lhe reserva. Aponta
como, nesses primeiros momentos, o cômico foi importante para aproximar o
leitor/ouvinte desta realidade contada, pois o riso, em especial, permite a melhor forma de
aproximação entre universo narrado e leitor.
Este novo gênero não se prende aos tradicionalismos estilísticos e nem se preocupa
em glorificar um passado distante. O romance surge pensando o presente, este novo foco
possui em si a dúvida, o inacabado, o instável e o transitório, pois não existe mais nem a
origem perfeita e nem a ultima palavra. Destrói as distancias e dessacraliza as memórias,
desconstruindo-as e colocando-as ao nível do cômico, na área do contato familiar. 498 Tudo
isto, possibilitou uma nova atitude perante a língua e palavra, desfrutando de grande
liberdade frente ao tempo e ao espaço, dando voz até aos personagens mortos.
O autor passa a aparecer no campo representado e, mais, passa a ter novas relações
com o representado. Assim, ele deixa seu campo estritamente formal e se aproxima ainda
mais do leitor. O romance é mobilizador e está em constante movimento, já que quer
profetizar os fatos, predizer o futuro real, o futuro do autor e dos leitores. Ele possui uma
especificidade marcante, é envolvente, abrindo espaço para se auto-identificar com os
personagens e envolver-se com os personagens. 499
O francês Roland Barthes (1915-1980)500 pode nos auxiliar com algumas ideias no
que se refere à compreensão dos romances. Mas é importante ressaltar que sua formação é
bastante específica, sendo a maior parte de seus trabalhos referentes à sociologia, crítica
literária, semiologia e filosofia; o pesquisador pode ser compreendido como uma das
expressões da escola estruturalista, se atentando para as propostas de Fernand Saussure.
498 Esses desdobramentos da nova forma de se escrever ocorriam em sincronia com as mudanças da forma de
pensar da sociedade europeia no período, que se desfazia desta distancia épica, se aproximando dessa
familiarização cômica do mundo e do homem, trazendo a realidade atual para as discussões, como
incompleta. (p. 427)
499 BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance.São Paulo: UNESP, 1993, p. 417-421.
500Formado em Letras Clássicas em 1939 e Gramática e Filosofia em 1943 na Universidade de Paris.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
585
Barthes afirma que a forma da narrativa é a mais recorrente na escrita dos romances,
e é sobre esses que dirigimos nossas considerações.501 O autor ressalta que o uso do tempo
– no caso, a articulação do tempo verbal – e da terceira pessoa são elementos
fundamentais para a configuração do gênero. Sua defesa se combina com a de Bakhtin, ao
pensar que construir um texto conjugando o verbo no pretérito perfeito (ex.: morreu, saiu,
passou) causa uma sensação no leitor de que a realidade tratada não é misteriosa ou
absurda. Isso autoriza ao autor abafar os elementos que apontam para qualquer tipo de
opacidade no texto.502 Ou seja, estas estratégias rompem com o distanciamento do tempo
mítico das epopeias e traz o leitor para dentro das tramas dos personagens.
Barthes aponta que, assim, o escritor tem o poder de exprimir ações iniciadas e
fechadas, mais tranquilizando e envolvendo o leitor do que o fazendo refletir. Enquanto
isso, a terceira pessoa é uma estratégia que seduz a leigos e acadêmicos, logo, atinge um
público mais amplo. O “ele” é sempre aquele que faz os fatos, enquanto o “eu” é,
geralmente, testemunha. Assim, esse uso possibilita ligar o Romance à sociedade e a
história que o circunda e que é movida. 503
Cremos que refletir sobre esse tipo de construção, ao escrever sobre os romances, é
fundamental para conjecturar quais as possíveis intencionalidades do autor. Por exemplo,
ao exprimir ações passadas e acabadas o escritor não dá margem para o questionamento
por parte do leitor.
Por outro lado, o pesquisador Antonio Candido, professor emérito da USP, caro à
Crítica Literária por seus estudos sobre a literatura brasileirae estrangeira, pode
complementar tais preocupações, referentes à estrutura do texto e os rudimentos movidos
para a configuração das imagens fictícias na mente do leitor. Chama atenção para outros
três constituintes do romance que são indissociáveis entre si: enredo, personagens e ideias
(enquanto sinônimo dos valores e significados que animam e envolvem a trama). Afirma
que se pode pensar nas personagens enquanto componente mais atuante ou comunicativo
no romance (nos séculos XVIII, XIX e começo do XX), mas que é errôneo pensá-los
como desligados dos demais. 504
501
BARTHES, Roland. A escrita do romance. In: O grau zero da escrita: seguido de novos escritos. São Paulo :
Martins Fontes, 2004, p. 26.
502 Idem, ibidem p 28.
503 Idem, ibidem, p. 29-33.
504 CANDIDO, Antonio. A personagem do Romance. In: CANDIDO, Antonio; ROSENFELD, Anatol;
ALMEIDA, Decio de; GOMES, Paulo Emílio Sales. A personagem de ficção. São Paulo : Perspectiva, 1968, p.
54.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
586
Candido ressalta que, assim como na vida, o romancista oferece fragmentos da
definição dos personagens, como características físicas e psicológicas, que possibilitam
formar uma imagem destes na mente dos leitores. Assim, os atos, as conversas, enfim, todo
tipo de relação social ofereceria “fragmentos de ser”. Embora no âmbito da vida, seja
impraticável compreensão una e completa de qualquer tipo de objeto, o romance buscaria
ultrapassar essa barreira, fornecendo as informações básicas para que o leitor não ficasse
com esta sensação de vazio ou de lacuna na configuração dos personagens, apresentandoos como completos.
505
Contudo, no século XIX houve uma mudança na construção dos
textos, onde os escritores começaram a buscar aumentar essa impressão de
descontinuidade, de contradição, de complexidade de seus personagens.
É claro que a noção do mistério dos seres, produzindo as condutas inesperadas,
sempre esteve presente na criação de forma mais ou menos consciente –,
bastando lembrar o mundo das personagens de Shakespeare. Mas foi
conscientemente desenvolvida por certos escritores do século XIX, como
tentativa de sugerir e desvendar, seja o mistério psicológico dos seres, seja o
mistério metafísico da própria existência.(p. 57)
Conforme Candido, a fonte de inspiração do romancista seria a memória, a qual será
submetida a uma série de invenções, oferecendo a base para se criar personagens. Mas, o
romancista somente extrairia da vida os “elementos circunstanciais” (maneira, profissão,
etc.); oessencialseria, via de regra,inventado. Portanto, o romance seria regido pelo
principio da modificação do real, acrescendo ou deformando. 506
O pesquisador em literatura portuguesa e Comparada Gerson Luiz Roani já
interpreta a literatura pensando de que forma se mobiliza e se altera informações dadas
como reais. Propõe-se a pensar a composição do texto literário, em termos de
representação e problematização do passado, em linha semelhante à de Chartier.
A literatura pode aliar-se à História e transformá-la, mesclando dados ficcionais com
históricos. Quando o autor da obra literária intensifica o uso da realidade e dialoga mais
diretamente com seu presente, essa construção passa a impor ao leitor uma série de
indagações, compelindo-o à reflexão. O escritor pode fazer uso de documentação e
reconstituir gestos, mentalidades, costumes, fatos e fenômenos, porém alterados com suas
intencionalidades e com elementos ficcionais. Assim, passa a transfigurar uma realidade
diferente. Nesse caso, segundo Roani, o escritor aparenta oferecer ao leitor um “pacto de
505
506
Idem, ibidem, p. 56
Idem, ibidem, p. 67.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
587
veracidade”, embora, geralmente, preencha as lacunas da historiografia com ficção.507 Essa
interpretação criativa da realidade pode reinventar e corrigir o passado. 508
Roani afirma que a ficção modifica e subverte o real com as intencionalidades do
autor, o que a faz bastante dinâmica e complexa. Ela pode se apresentar como um jogo,
que abraça autor, leitor e ambiente que os circunda. Quando consegue envolvê-lo nos
emaranhados da história narrada, ela se transforma em armadilha, conduzindo-o, fazendo-o
cúmplice e participante de um processo de ficcionalização da História. 509
O historiador estadunidense Hayden White, que desencadeou ampla discussão por
seus apontamentos sobre as relações entre História e literatura, oferece uma análise
diferenciada por pensar que as fronteiras referentes ao uso de uma subjetividade criativa na
historiografia não se diferem tanto da literatura. O pesquisador rompe profundamente
com as rígidas fronteiras entre as escritas, utilizando-se de pensamentos da teoria literária
no campo historiográfico. Assim sendo, se retém na estrutura e no processo de construção
do texto.
Acreditamos que suas contribuições podem nos são validas na medida em que
destaca, em sua obra O texto histórico como artefato literário, que o autor da literatura recorre à
imaginação, com o fim de ligar os fatos, interpretá-los, relacionando-os ou afastando-os,
para compor o texto. Os documentos seriam simplesmente dados que não possuiriam em
si um sentido, este sentido seria, sempre, conferido pelo homem. Aquele que articula os
inúmeros fatos destaca alguns e subordina outros, adotando pontos de vistas e estratégias
descritivas. Portanto, nenhum texto é neutro em nenhum sentido, sendo sua forma
(cômica, trágica, irônica ou romântica) uma escolha, assim como seu conteúdo. Logo seu
texto seria um fruto da invenção enquanto criação subjetiva, produto da interpretação e das
intenções. 510
Por fim, é importante lembrar que, como já apontou o célebre Mikhail Bakhtin
(1895-1975), no período em que o romance se estabeleceu como gênero predominante
(especialmente forte na segunda metade do século XVIII), muitas de suas características
foram apropriadas por outros gêneros. Pois o romance seguia uma evolução concomitante
a da sua realidade, expressando as tendências de seu momento histórico, e isso fez dele um
507ROANI,
G. L.. Espaços que a história tece na ficção de Saramago. Letras (Santa Maria), v. 27. IN:
http://w3.ufsm.br/revistaletras/artigos_r27/revista27_10.pdf. Acessado em: 07-01-2011. p. 99-100.
508 Idem, ibdem, p. 105.
509 Idem, ibdem, p. 101.
510 WHITE, Hayden. O texto histórico como artefato literário. In: Trópicos do discurso: ensaio sobre a crítica da
cultura. São Paulo: EDUSP, 2001, p. 98-101.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
588
contribuidor para os outros gêneros, os quais não acompanhavam essas mudanças,
induzindo-os a uma “reformulação radical”. Estes se tornaram mais livres e soltos, com
uma linguagem diferente da desfrutada até então – permeados pela ironia, humor, riso. E
ainda mais interessante, o romance trata do presente ainda inacabado, não mais com o
passado fechado. 511
Conclusão
Buscamos defender, com este texto, que a forma como o escritor constrói seu texto
interfere na recepção e interpretação deste, possibilitando certas ações em detrimento de
outras. Logo, a linguagem, a forma do texto, o uso do tempo, a posição do autor, são
elementos que movem e conduzem a leitura. Deste modo, propomos partir da hipótese de
que a conjugação desses fatores junto à esfera da construção do texto, das
intencionalidades do autor e da recepção pelo público leitor configure uma aproximação
mais completa das potencialidades da literatura enquanto documento. Dito de outra forma,
o que propomos é um dialogo maior entres as propostas metodológicas dos historiadores e
de demais pesquisadores das ciências humanas para um olhar mais apurado sobre a
Literatura.
Enfim, acreditamos que a literatura ultrapassa uma questão meramente estética e/ou
cultural, pensando que a ficção é capaz de construir representações do mundo expressando
a perspectiva do autor (e de sua época) sobre determinados assuntos. Ao mesmo tempo, a
leitura envolve e instiga agentes históricos, que também podem mobilizar respostas de
acordo com sua interpretação de certas ideias. Portanto, se torna fundamental analisar a
literatura como uma forma de expressão de determinado momento histórico, enquanto
fruto de compreensões de mundo.
Referências Bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo:
UNESP, 1993.
511
BAKHTIN, Op. Cit., p. 399-401.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
589
BARTHES, Roland. A escrita do romance. In: ______. O grau zero da escrita: seguido de novos
escritos. São Paulo : Martins Fontes, 2004.
CANDIDO, Antonio. A personagem do Romance. In: CANDIDO, Antonio; ROSENFELD,
Anatol; ALMEIDA, Decio de; GOMES, Paulo Emílio Sales. A personagem de ficção. São Paulo
: Perspectiva, 1968.
CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos
XIV e XVIII. Brasília: UnB, 1999.
CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos avançados. 1991, vol.5, n.11,
pp.173-191. In: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S00340141991000100010&script=sci_arttext. Acessado em: 20 dez 2010.
MELLO, Ludmila Giovanna Ribeiro De. Realidade Ou Criação? Um Panorama Sobre O Romance
Histórico. ÍCONE - Revista de Letras, São Luís de Montes Belos, v. 2, p. 123-135, jul. 2008.
ISSN:1982-7717. IN: http://www.slmb.ueg.br/iconeletras. Acessado em: 19-04-2012, p. 130.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & literatura: uma velha-nova história. Nuevo Mundo
Mundos Nuevos. Debates, 2006. IN: http://nuevomundo.revues.org/1560. Acessado em:07-012011, p. 02.
POCOCK, J. G. A. Introdução. In: ______. Linguagens do ideário político. São Paulo: EDUSP,
2003.
ROANI, G. L.. Espaços que a história tece na ficção de Saramago. Letras (Santa Maria), v. 27.
Disponível em: http://w3.ufsm.br/revistaletras/artigos_r27/revista27_10.pdf. Acessado em: 07 jan
2011. p. 99-100.
WHITE, Hayden. O texto histórico como artefato literário. In: ______. Trópicos do discurso:
ensaio sobre a crítica da cultura. São Paulo: EDUSP, 1996.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
590
História das Ideias: entre apropriações e ressignificações
Marcelo Monteiro dos Santos
Mestre em História Social pela USS/ Bolsista CAPES
madri_ms@hotmail.com
Resumo: O presente trabalho analisa como as ideias políticas podem ser estudadas a partir
do binômio apropriação/ressignificação. Metodologicamente nos apoiamos nos estudos
sobre os Conceitos desenvolvidos pelo historiador alemão Reinhart Koselleck que,
recentemente, vem ganhando espaço na historiografia brasileira. Buscamos ainda
desenvolver o conceito de “Ideas in context”, formulado pela Escola de Cambridge, na figura
de Quentin Skinner. Acreditamos ser possível uma articulação entre as duas propostas
metodológicas nos estudos de história das ideias, do pensamento político, bem como para
toda história política renovada. Testamos a aplicação desta proposta em um estudo que
procura mostrar como alguns conceitos desenvolvidos por Maquiavel (1469-1527) no
decorrer do seu pensamento político foram apropriados e ressignificados nos Cadernosdo
Cárcere de Antônio Gramsci (1891-1937).
Palavras-chaves: história das ideias; apropriação; ressignificação.
Abstract: This paper analyzes how political ideas can be investigated using the binomial
appropriation / new significaton. Methodologically, we rely on studies on the concepts
developed by the German historian Reinhart Koselleck which recently has been gaining
ground in the Brazilian historiography. We seek to further develop the concept of "Ideas in
context", made by the Cambridge School, the figure of Quentin Skinner. We believe a
possible link between the two methodological approaches in studies of history of ideas, of
political thought as well as any renewed political history. We tested the implementation of
this proposal on a study that seeks to show how some concepts developed by Maquiavel
(1469-1527) in the course of his political ideas were appropriated and reinterpreted in the
Cadernos do Cárcere of Antonio Gramsci (1891-1937).
Keywords: History of ideas; appropriation; new signification.
A História, cujo objeto precípuo é observar as mudanças que afetam a
sociedade, e que tem por missão propor explicações para elas, não
escapa ela própria à mudança.512
René Rémond
[...] cada época entende um texto transmitido de uma maneira
peculiar, pois o texto constitui parte do conjunto de uma tradição pela
512 RÉMOND, René. Uma História presente. In: Por uma História Política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006,
p.13.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
591
qual cada época tem um interesse objetivo na qual tenta compreender a
si mesma. O verdadeiro sentido de um texto, tal como este se apresenta
a sei intérprete, não depende do aspecto puramente ocasional que
representam o autor e o seu público originário. Ou, pelo menos, não se
esgota nisso. Pois este sentido está sempre determinado também pela
situação histórica do intérprete e, por consequência, pela totalidade do
processo histórico.513
Gadamer
Queremos começar nosso texto apontando os caminhos que iremos percorrer nesse
primeiro momento do nosso trabalho. O objetivo desta comunicação é traçar um
panorama da história política em suas principais linhas de pesquisa, desenvolvidas,
sobretudo, na segunda metade do último século. Partiremos de três eixos: as ideias
políticas, o contextualismo linguístico de Quentin Skinner e a História dos conceitos de
Reinhart Koselleck. Na história da historiografia, esses aportes metodológicos ligam-se as
discussões da História política, que aqui se desdobrarão na análise de conceitos e suas
ressignificações e apropriações. Propomos um debate metodológico. Temos então o estudo
de conceitos políticos sob a ótica de uma linguagem articulada em determinado tempo. A
partir daí pretendemos criar um aporte metodológico para propor o estudo do pensamento
gramsciano no tocante a apropriação e ressignificação do pensamento político
maquiaveliano.
A nova história política e a história das ideias
Ao lançar seu olhar sobre o político o historiador pode trazer problemas que já
figuram em outras disciplinas das ciências sociais (como sociologia e ciência política).
Objetos que não se definem com tempo e espaço fidedignamente delimitados. As
fronteiras são fluidas nesse campo. A preocupação consiste em lançar luz sobre a história
do pensamento político seja nos “grandes” autores ou nas linguagens políticas514 do cotidiano.
513
GADAMER, H. G, apud JASMIN, Marcelo G. História dos Conceitos e Teoria política e social:
referências preliminares. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 20, nº57, p.30.
514 Sobre a discussão acerca das linguagens políticas ver: POCOCK, J.G.A. Linguagens do ideário político. São
Paulo: Edusp, 2003. O historiador britânico pertence à chamada “Escola de Cambridge” que muito vem
contribuindo para a historiografia desde a década de 1960. Pocock analisa as linguagens políticas que
constituem a modernidade ocidental através de diversos pensadores e também como as mesmas se
apresentam de maneira ordinária na sociedade, de forma a construir o que o historiador chama de ideário
político.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
592
Das discussões travadas nos anos 1970 e 80 emerge um corpus renovado, que podemos
chamar aqui de nova história política (FALCON, 1997, p.78). Não nos aprofundaremos nas
questões que permitiram essa emergência embora seja necessário salientar que a história
política passou por um longo período de marginalidade após a crítica estabelecida pela
Escola dos Annales a partir da década de 1920. É importante esclarecer que a história política
não desapareceu com a crítica dos Annales, embora tenha sido rechaçada principalmente na
historiografia francesa. Aconteceu então uma vertiginosa aproximação com as outras
ciências sociais e uma fragmentação dos objetos da História. Imediatamente a história
política, identificada com portadora de um método tradicional e insuficiente de fazer
História, é eclipsada pelo novo paradigma estabelecido por Marc Bloch, Lucien Febvre e
Fernand Braudel, posteriormente, entre muitos outros. As implicações do político na
sociedade são muitas e cabe ao trabalho atento do historiador perceber essas influências e
modificações que ele promove. Segundo Rémond “o importante é deixar claro que o
político existe, distingue-se de outros tipos de realidades, constitui algo específico, […] é
capaz de imprimir sua marca e influir no curso da história […]” (RÉMOND apud FALCON,
1997, p.78, grifos nos original). No Brasil, os estudos da academia só receberam essas
transformações a partir da década de 1960. Vale salientar, entretanto, que essa crítica que
ocorre na historiografia francesa não se observa em outros países como o Brasil. Por aqui a
história política talvez nunca tenha conhecido, verdadeiramente, um momento de crítica e
abandono.
Podemos partir da premissa que o historiador nunca é estranho à realidade na qual
vive e, a partir daí, compreender a crítica feita sobre a história política, era fruto de um
movimento maior que colocava a prova a sociedade daquele momento. No século XX a
História escrita já não podia ser aquela que exaltava o Estado e a nação, tampouco seus
líderes e “fundadores”. Tudo isso estava sendo questionado. Segundo Rémond,
A história de fato não vive fora do tempo em que é escrita, ainda mais quando
se trata da história política: suas variações são resultado tanto das mudanças que
afetam o político como das que dizem respeito ao olhar que o historiador dirige
ao político. Realidade e percepção interferem. (RÉMOND, 2006, p.72)
Desta feita, podemos adiantar que uma das características mais enriquecedoras
dessa nova história política é a pluridisciplinaridade, seu caráter interdisciplinar faz com que
os trabalhos e o interesse pelo político leve o historiador a trabalhar não somente com a
historiografia, mas recorra de maneira muito produtiva à sociologia, a ciência política, a
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
593
linguística entre tantas outras áreas. Isso, pois, “[...] o político não constitui um setor
separado: é uma modalidade da prática social” (idem, p. 35-6).
A história política pode ser apreendida a partir de múltiplos anglos. Em nossa
pesquisa nos interessamos pela história das ideias. Mais precisamente como essas ideias se
articulam politicamente nos discursos/textos dos autores que são apresentados nessa
pesquisa. Tomemos como exemplo uma citação de René Rémond em um de seus artigos
quando nos diz que, “[...] os meios de comunicação não são por natureza realidades
políticas: podem tornar-se políticos em virtude de sua destinação, como de diz dos
instrumentos que são transformados em armas” (idem, p.441). Pode parecer redundante
classificar ideias como políticas, mas rejeitamos a premissa que toda ideia seja em si política.
Concebemos então que,
[...] o político é uma construção abstrata, assim como o econômico ou o social,
é também a coisa mais concreta com que todos se deparam na vida, algo que
interfere na sua atividade profissional ou se imiscui na sua vida privada [...] o
campo do político não tem fronteiras fixas e as tentativas de fechá-lo dentro de
limites traçados para todo o sempre são inúteis. (ibidem, p. 442-3)
Por história das ideias podemos entender também a história intelectual. Segundo o
historiador Francisco Falcon, “boa parte dos historiadores prefere hoje em dia a
denominação história intelectual, cujo campo abrangeria o conjunto das formas de
pensamento, em lugar da tradicional história das ideias” (FALCON op. cit. p.93). Para nós é
essencial compreender como atuam as ideias e de que maneira podemos percebê-las na
construção do nosso objeto, ela “remete a textos nos quais os conceitos articulados
constituem os agentes históricos primários [...]” somando-se a história intelectual que
“remete a textos bem mais abrangentes, uma vez que ela inclui as crenças não-articuladas,
opiniões amorfas, suposições não-ditas, além, é claro, das ideias formalizadas” (idem, p.93).
Essas proposições acerca de uma história intelectual apontam uma possibilidade para
perceber os autores e os textos estudados no decorrer do trabalho. Perceber o que o
Gramsci está fazendo ao utilizar os conceitos desenvolvidos por Maquiavel na construção
do seu pensamento político aponta, acreditamos, para a possibilidade de compreender
como ideias políticas são transpostas no tempo e ressignificadas.
Podemos enriquecer esse debate metodológico com algumas considerações do
historiador francês Pierre Rosanvallon. Em artigo publicado há quase três décadas, ele
propõe uma abordagem que aponte para uma “historie conceptualle du politique”
(ROSANVALLON, 1995, p.11). Ainda segundo o autor era preciso (e ainda o é) superar
fraquezas metodológicas que grassavam a história das ideias: “a tentação do dicionário, a
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
594
história das doutrinas, o comparativismo textual, o reconstrutivismo e o tipologismo” (idem,
p.12-5). A preocupação central reside no fato de que em diversas obras realizadas sobre
aquela metodologia o caráter histórico simplesmente estava ausente. Atentamos em nosso
trabalho para uma aproximação entre história e teoria política para mitigar tais “fraquezas”.
Para Rosanvallon, sobre essa nova abordagem das ideias,
Sua originalidade reside antes no seu método que em sua matéria. Este método é
ao mesmo tempo interativo e compreensivo. Interativo, pois consiste em analisar a
forma como uma cultura política, as instituições e os fatos interagem uns nos
outros compondo figuras mais ou menos estáveis [...]. Compreensivo, pois se
esforça por compreender uma questão re-situando-a em suas condições efetivas
de emergência. (ibidem, p.17, grifo nosso)
A dimensão compreensiva salientada pelo historiador francês nos parece evidente
num primeiro momento, entretanto, cabe ressaltar que quando nos debruçamos sobre uma
enormidade de trabalhos que tomam por objeto a análise do pensamento maquiaveliano,
por exemplo, observamos que uma série de questões que só são explicáveis analisando
minuciosamente o tempo e o espaço no qual o pensador estava inserido são tratadas de
forma descuidada e apressada. Em monografia de nossa autoria515 estabelecemos a hipótese
de que Maquiavel tinha como principal tarefa expor os problemas da “Itália” do seu tempo
e apontar as saídas possíveis, bem como acreditava que um governo republicano poderia
construir um estado nos moldes de França e Espanha, estados formados recentemente à
época.
Sustentamos a necessidade de atentar para o retorno do político e todas as dimensões de
análise que esse campo da história pode oferecer ao historiador. Mesmo com a advertência
de que esta frase encontra-se banalizada pelo uso.516 As ideias políticas nos moldes
propostos pelo historiador francês Michel Winock devem atentar para toda a tessitura
social. Deveria assim descer dos pináculos para compreender a articulação da linguagem
política nos vários níveis da sociedade. Dito de outra maneira não interessaria ao
historiador das ideias somente as grandes obras, tratados filosóficos e acadêmicos. Toda
produção e circulação de ideias que podemos encontrar na imprensa, nos panfletos, nos
discursos também se constituem em rica documentação. Para Winock, “as ideias políticas
não são apenas as dos filósofos e dos teóricos, mas também do homem comum”
515
Cf. SANTOS, Marcelo Monteiro dos. O século XVI e uma Itália possível na teoria de Maquiavel. Cabo Frio:
Universidade Veiga de Almeida [biblioteca], 2009.
516 ROSANVALLON, Pierre. Por uma história do político. São Paulo: Alameda, 2010. Este trabalho reúne alguns
textos importantes de Rosanvallon, historiador pouco traduzido entre nós.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
595
(ROSANVALLON, 2010, p.39). Podemos aqui aproximar nosso historiador das
proposições feitas por Rosanvallon. Segundo ele,
[...] nos últimos vinte anos, a história das ideias desceu daquele empíreo onde
frequentava apenas autores de renome; interessou-se pelas mil degradações do
modelo original, pelas formulações vulgares dos temas políticos, pelo
pensamento automático dos órgãos de opinião, pelos reflexos condicionados,
pela circulação dos mitos e dos estereótipos, pelos novos suportes dos
enunciados ideológicos. (idem, p.39)
Winock passa em revista uma série de autores e trabalhos dentro do campo das
ideias. Como citado acima, ele pretende demonstrar a necessidade de diversificação de
objetos estudados. Dito isso gostaríamos de destacar que nossa dissertação não se ocupa
desse tipo de fonte para análise. Entretanto, ao traçar um panorama metodológico acerca
da história das ideias não podíamos nos furtar a essas referências. Ao prosseguirmos, uma
digressão se faz necessário para entender que o “estado da arte” analisado por ele remete à
historiografia francesa. Os ecos da renovação desse corpus, ainda vibram com diferentes
intensidades em nossa historiografia. Na tarefa de síntese dos historiadores que fazem
história política cabe, insiste Winock,
A recuperação dos antecedentes, das filiações, das fusões, toda essa hidrologia
das correntes de pensamento continua sendo de sua competência: a duração, a
continuidade, o desaparecimento, o ressurgimento, a queda em catarata, a
convergência, a afluência, a canalização, o reservatório, a descarga, a derivação
– não acabaríamos nunca de brincar com a metáfora hidráulica, pois ela
simboliza bem essa história das ideias, ciência dos fluidos [...] cabe aos historiadores
descrever esses grandes feudos, esses panteões antagônicos, essas variações de fervor e essas
transferências de ideias nas longas frequências cronológicas. Dar novamente sentido ao
passado e tornar, por isso mesmo, o presente mais inteligível é a finalidade de
uma história política, para qual a história das ideias traz, pelo ajuste de seus
instrumentos a multiplicação de seus materiais, uma contribuição indispensável.
(WINOCK, 2006, p.269, grifos nossos)
No texto que ora citamos, a defesa de uma história das ideias ganha contornos de
engajamento. Concordamos com o autor, todavia, é preciso salientar que não acreditamos
que a diversificação de objetos a qual a história política é alvo venha necessariamente
desqualificar uma história que ainda se ocupe dos “pináculos”. Não queremos fazer a
defesa vazia dos estudos das grandes obras no sentido de produzir manuais de História das
Ideias, ainda comuns na Universidade e com seu mérito. Mas entender que essas ideias dos
“grandes autores”, como Maquiavel e Gramsci, analisados nesse trabalho, ainda podem
fornecer muitas compreensões sobre o momento de emergência de conceitos políticos e
como os mesmos foram utilizados. Se quisermos nos apropriar da metáfora hidráulica de
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
596
Winock podemos lançar luz sobre conceitos políticos e analisar seus “usos” e “desusos”.
Ressignificações e apropriações. Mostrando a fluidez dessas ideias.
História dos conceitos e Contextualismo linguístico: perspectivas de Reinhart
Koselleck e Quentin Skinner
Passemos a algumas considerações sobre a história dos conceitos, que pela
importância que adquire para nós deve figurar em todo o desenrolar da pesquisa. Para uma
história dos conceitos a obra de Reinhart Koselleck torna-se central. Essa metodologia tem
“a proposta de historiar elementos relacionados com a linguagem como indicador de
realidades mais globais ainda que a própria linguagem, ao mesmo tempo em que é também
uma história intelectual” (ARÓSTEGUI, 2007, p.229). Seria, segundo Koselleck, um
estudo da sociedade através da linguagem que emprega, fixando o foco nos conceitos, na
forma de denominar elementos fundamentais da cultura ou do pensamento. (idem, p.22930). Cabe ressaltar aqui, como o faz Julio Aróstegui, que a utilização deste modelo
historiográfico não é fácil e necessita de alto grau de especialização. (ibidem, p. 230). Colocase, dessa forma, uma dificuldade, contudo, não uma barreira para compreender o
pensamento gramsciano a partir de seus desdobramentos sobre os conceitos
maquiavelianos.
Passando as proposições de Koselleck, queremos explicitar a importância e a
motivação que nos faz recorrer à história dos conceitos. Para o historiador “sem conceitos
comuns não pode haver uma sociedade e, sobretudo, não pode haver unidade de ação
política. Por outro lado, os conceitos fundamentam-se em sistemas político-sociais que são,
de longe, mais complexos do que faz supor sua compreensão como comunidades
linguísticas organizadas sob determinados conceitos-chave” (KOSELLECK, 2006, p.98).
Temos então tese e antítese que se tornam o maior desafio do historiador que se propõe a
trabalhar com os conceitos. Essa advertência é no sentido de que compreendamos que nem
todas as palavras são conceitos. Esses carregam significados que extrapolam o léxico.
Acerca do caráter metodológico, entender os comentadores de Maquiavel ou a
própria obra de Gramsci é tomar seus textos enquanto documentos e a partir deles traçar
“uma exegese na crítica de fontes que decifre, particularmente, os conceitos neles contidos”
(idem, p.99). Complementa Koselleck que “na exegese do texto, o interesse especial pelo
emprego de conceitos político-sociais e a análise de suas significações ganham, portanto,
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
597
uma importância de caráter social e histórico” (ibidem, p.99). Ao construir um texto
procuramos conceitos “adequados”, para exprimir uma ideia ou opinião. Em resumo, “a
história dos conceitos é um método especializado da crítica de fontes que atenta para o
emprego de termos relevantes do ponto de vista social e político e que analisa com
particular empenho expressões fundamentais de conteúdo social ou político” (ibidem,
p.101).
Gostaríamos de insistir na capacidade e importância que o estudo dos conceitos
adquire em nossa pesquisa. Ao adotá-lo como método, e juntamente a obra de Koselleck
como referencial, acreditamos ser “a linguagem conceitual [...] um meio consistente para
problematizar a capacidade de experiência e a dimensão teórica” (ibidem, p.110). O
historiador alemão toca constantemente na questão da estrutura social. A história dos
conceitos criaria mecanismos, segundo ele, para compreender a trama histórica dando
respostas à história social. Ela aponta também para uma direção contextualista que há
aproxima com as ideias elaboradas pelo contextualismo linguístico skkineariano que
veremos a seguir, dessa forma:
[...] os conflitos políticos e sociais do passado devem ser descobertos e
interpretados através do horizonte conceitual que lhes é coetâneo e em termos
dos usos linguísticos, mutuamente compartilhados e desempenhados pelos
atores que participam desses conflitos. Desse modo o trabalho de explicação
conceitual quer precisar as proposições passadas em seus termos próprios,
tornando mais claras as “circunstâncias intencionais contemporâneas” em que
foram formuladas. (JASMIN, 2006, p.31)
Na última década, no Brasil, diversos esforços foram feitos para que a metodologia
desenvolvida por Koselleck, entre outros, ganhasse espaço em nossas academias. Desse
processo destacamos o trabalho do historiador Marcelo Jasmin, cujos artigos auxiliam esta
pesquisa. Em um de seus textos, Jasmin chama a atenção para um caráter da história dos
conceitos que vai além da análise pura e simples do conceito no tempo. Segundo ele,
[...] a história conceitual [...] está interessada nos modos pelos quais as gerações e os
intérpretes posteriores leram, alterando os seus significados, essas proposições políticas do
passado. Neste registro é possível afirmar, rigorosamente, que os conceitos em si
não têm história; mas também é possível afirmar, com rigor, que a sua recepção
tem. (idem, p.32, grifos nossos)
Interessamos-nos aqui, de maneira especial, pela alteração de significados que teriam
ocorrido, hipótese por nós apresentada, dos conceitos maquiavelianos na obra de Gramsci.
Insistiremos nesse ponto ainda à frente. O aporte metodológico se justifica pois, segundo
Koselleck: “O registro de como os seus usos foram subsequentemente mantidos, alterados,
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
598
ou transformados, pode, propriamente, ser chamado de história dos conceitos” (ibidem,
p.32).
Diante da exposição sobre os critérios metodológicos a serem trabalhados por nós,
colocamos uma última questão que nos auxiliará ainda mais na compreensão do nosso
objeto de pesquisa. Para o historiador alemão, “toda historiografia se movimenta em dois
níveis: ou ela examina fatos já articulados linguisticamente ou ela reconstrói fatos não
articulados linguisticamente no passado [...] mas que podem ser, de alguma maneira,
recuperados” (ibidem, p.116). Nosso trabalho se articula na primeira proposição, de
examinar “fatos” já articulados, pensamentos construídos e que se tornam objeto
historiográfico para nossa análise.
Ainda dentro dessa discussão metodológica que estamos desenvolvendo, é
importante destacar a contribuição da historiografia desenvolvida pelo historiador britânico
Quentin Skinner. De início já adiantamos que o ponto central será debater como o
contextualismo linguístico de Skinner se encaixa em nossa pesquisa. O historiador J.G.A.
Pocock fornece uma explicação bastante simplificada sobre a teoria de Skinner:
Era necessário, Skinner dizia, saber o que o autor estava fazendo: o que ele
pretendia fazer (o significado para si) e o que ele tinha conseguido fazer (o
significado para os outros). O ato e seu resultado haviam ocorrido em um
contexto histórico, constituído em primeiro lugar pela linguagem do discurso
em que o autor escrevera e fora lido. E, embora o ato de fala pudesse renovar e
redirecionar essa linguagem, modificando-a, ela não deixava de estabelecer
limites àquilo que o autor podia dizer, queria dizer e podia ser entendido como
dizendo. (POCOCK, 2011, p.02, grifos no original)
Skinner aponta para a necessidade de se evitar dois erros caros ao historiador: o
anacronismo e a prolepse. Atribuir a autores do passado ideias e conceitos que eles não
dispunham ou encará-los como portadores de referenciais que só viriam à luz
posteriormente como se fosse possível antever o futuro. Nesse ponto destacamos erros
comuns presentes em textos que se ocupam de Maquiavel ou da sua obra. Como destacado
na introdução deste trabalho, existem inúmeros autores que atribuem a ele um sem número
de ideias e opiniões, derivando do seu pensamento aforismos que o florentino jamais
escrevera. Para Skinner, essencial é perceber e apreender o contexto no qual as linguagens
foram articuladas. “Em 1969, Skinner publicou um artigo, ‘Meaning and Understanding in the
History of Ideas’, que acabou transformando-se no manifesto de um novo método de
interpretação da história do pensamento político” (ibidem, p.05). No desenvolvimento de
suas hipóteses que vão sustentar as “Ideas in context”, Skinner é provocativo ao afirmar que:
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
599
“Demandar da história do pensamento uma solução para os nossos próprios problemas
imediatos é perpetrar não só uma falácia metodológica, mas também algo como um erro
moral” (ibidem, p.30) Busca-se então articular as ideias ao seu tempo de produção. Segundo
ele,
Nesta chave interpretativa, sendo a elaboração de um tratado de filosofia
política e social uma ação, a questão de seu significado deveria se confundir
com aquela da sua intenção, sendo esta apreendida no ato de fazer (in doing) a
própria obra ou asserção. Daí a reivindicação metodológica mínima conformada na noção
de que, de um autor não se pode afirmar que fez ou quis fazer, que disse ou quis dizer, algo
que ele próprio não aceitaria como uma descrição razoável do que disse ou fez. (SKINNER
apud JASMIN, 2006, p.28, grifos nossos)
Podemos apontar nessa argumentação de Skinner nossa hipótese já colocada
anteriormente. Sustentamos a argumentação de que ao analisar os Cadernos de Gramsci no
tocante à alusão ao pensamento maquiaveliano não encontramos nele um mero intérprete.
A situação política da Itália e a própria situação do pensador sardo, enquanto preso político
do regime fascista, somados a urgência que demandava a escritura dos Cadernos colocava a
obra carcerária do nosso autor na posição de manifesto, reflexões que extrapolavam uma
mera revisão de autores. Retornaremos nessa questão mais adiante.
Em resumo, Skinner identifica a importância do contexto no qual se desenvolvem as
ideias, pois, “quando tentamos situar desse modo um texto em seu contexto adequado, não
nos limitamos a fornecer um ‘quadro’ histórico para nossa interpretação: ingressamos já no
próprio ato de interpretar” (SKINNER, 2006, p.13).
A partir daqui, depois de explicitar todo nosso aporte teórico e metodológico que
orienta esse trabalho sobre pensamento político gramsciano, pretendemos expor um pouco
mais demoradamente o par conceitual que sustenta nossa hipótese. Trata-se de perceber a
aproximação que Antonio Gramsci faz em sua obra do pensamento maquiaveliano
enquanto apropriação e ressignificação. Para a elaboração dessa dissertação não nos
aproximamos de forma significativa de teóricos que tenham constituído um corpus
investigativo para os conceitos apresentados para analisar o pensamento político
gramsciano. Procuramos nos deter na análise das obras, que aqui constitui nossa fonte de
pesquisa.
Poderíamos pensar então o conceito de representação, tão caro à história cultural
desenvolvida por Roger Chartier na década de 1980. E também utilizado nos trabalhos que
se orientam por uma história política renovada. Obviamente nossa intenção não se
constitui na análise de nenhuma representação feita por grupos situados em determinado
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
600
tempo e espaço. Embora, os textos, os discursos não deixem de ser, simultaneamente,
políticos e culturais.
Segundo Chartier, “as representações do mundo social assim construídas, embora
aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas
pelos interesses de grupo que as forjam” (CHARTIER, 1990, p.17). O historiador está
preocupado com em construir uma história da recepção e das práticas de leitura. Ele nos
diz sobre, “[...] o interesse manifestado pelo processo por intermédio do qual é
historicamente produzido um sentido e diferenciadamente construída uma significação”
(idem, p.24). Essa significação pode ser compreendida, acreditamos, também enquanto
ressignificação, até mesmo porque poderíamos inferir se toda significação não consiste em
um novo significado, a partir de uma leitura que sempre renova o texto. Sendo assim, “tal
tarefa cruza-se, de maneira bastante evidente, com a da hermenêutica, quando se esforça
por compreender como é que um texto pode ‘aplicar-se’ à situação do leitor [...] como é
que uma configuração narrativa pode corresponder a uma refiguração da própria
experiência (ibidem, p.24).
A proposta metodológica apresentada se detém também no conceito de apropriação,
talvez a definição deste esteja mais próxima do nosso objeto. Chartier declara que “a
apropriação, tal como a entendemos, tem por objetivo uma história social das
interpretações, remetidas para as suas determinações fundamentais (que são sociais,
institucionais, culturais) e inscritas nas práticas específicas que as produzem” (ibidem, p.26).
Chartier propõe o estudo do passado enquanto representação, prática e apropriação.
Uma metodologia que procura, segundo ele, romper
[...] coma a antiga ideia que dotada os textos e as obras de um sentido
intrínseco, absoluto, único [...] dirige-se às práticas que, pluralmente,
contraditoriamente, dão significado ao mundo. Daí a caracterização das práticas
discursivas como produtoras de ordenamento, de afirmação de distâncias, de
divisões; daí o reconhecimento das práticas de apropriação cultural como formas
diferenciadas de interpretação [...]. (ibidem, p. 27-8, grifos nossos)
Destacamos o trecho citado de Chartier para uma breve exposição: apontamos no
texto gramsciano, no que tange ao pensamento maquiaveliano, algo que vai muito além de
um mero objetivo interpretativo. Existem inúmeros trabalhos que tratam da relação entre
Gramsci e Maquiavel, infelizmente ainda poucos deles traduzidos para a nossa língua.
Passemos então ver como ocorre essa leitura maquiaveliana em Gramsci para que
possamos sustentar que ele objetivava algo além de uma mera interpretação do florentino.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
601
Encerramos dessa forma essa breve comunicação. Estabelecendo as bases
metodológicas para uma análise do pensamento político gramsciano a partir de sua leitura
de outro grande autor, Nicolau Maquiavel.
Referências bibliográficas
ARÓSTEGUI, Julio. A pesquisa histórica: teoria e método. São Paulo: EDUSC, 2007.
CARDOSO, Ciro F. & VAIFAS, Ronaldo. Domínios da História. Rio de Janeiro: Editora
Campus, 1997.
CHARTIER, Roger. A História Cultural. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1990.
JASMIN, Marcelo G. História dos Conceitos e Teoria política e social: referências preliminares.
Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 20, nº57.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.
POCOCK, J.G.A. Linguagens do ideário político. São Paulo: Edusp, 2003.
RÉMOND, René. Uma História presente. In: ______. Por uma História Política. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2006.
ROSANVALLON, Pierre. Por Uma História Conceitual do Político (nota de trabalho). Revista
Brasileira de História. São Paulo: Vol. 15, nº30, 1995.
ROSANVALLON, Pierre. Por uma história do político. São Paulo: Alameda, 2010,
SANTOS, Marcelo Monteiro dos. O século XVI e uma Itália possível na teoria de Maquiavel.
Cabo Frio: Universidade Veiga de Almeida [biblioteca], 2009.
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia
das Letras, 2006.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
602
A literatura redescoberta: contribuições de Roger Chartier e Jean Starobinski para a
análise de fontes literárias.
Marcus Vinicius Santana Lima
Mestrando em História Social pela USS/ Bolsista Capes
marcusdmba@gamail.com
Resumo: o artigo tentará evidenciar as maneiras pelas quais Roger Chartier, representante
da História Cultural, e Jean Starobinski, filósofo e linguista, contribuem para uma postura
renovada do historiador diante do texto literário enquanto fonte historiográfica. O primeiro
através de um modelo explicativo historiográfico, e o segundo, por meio de uma proposta
investigativa, compreendem, ambos, a escrita ficcional indissociável da conjuntura histórica
em que foi materializada, assim como, maculada pelas práticas de escrita e leitura e,
também, pela experiência social do leitor-intérprete que influem no processo de (re)
significação do texto. Desta forma, tais contribuições alimentam o debate contemporâneo
sobre a definição de História, as fontes permissíveis e as fronteiras de atuação.
Palavras-chave: História, Literatura e Roger Chartier e Jean Starobinski.
Abstract: the article attempts to highlight the ways in which Roger Chartier, Cultural
History representative, and Jean Starobinski, philosopher and linguist, contribute to a
renewed stance on the historian of the literary text as a source of historiography. The first
through an explanatory model historiographical, and second, by means of a research
proposal, comprises both the writing of the historical fictional inseparable in that was
reflected as well as by practice stained reading and writing, and also by social experience of
the reader-interpreter that influence the process of (re) signification of the text. Thus, such
contributions fuel the current debate on the definition of history, the sources and the
boundaries of permissible action.
Keywords: History, Literature and Roger Chartier e Jean Starobinski.
Esclarecer o que denominamos de redescoberta da literatura é em si um grande
risco teórico que estamos dispostos a correr, uma vez que, implica na divisão teórica e
temporal de perspectivas analíticas orientadas pela apropriação do texto literário. Ou seja,
afirmar que a literatura como campo de conhecimento artístico autônomo foi revisado por
teóricos específicos da história significa inferir que um determinado olhar sobre tal campo
não mais contempla com devida produtividade a análise das fontes literárias e, por outro
lado, que novas concepções de como interpretar a literatura estão em evidência. O objetivo
deste artigo é mapear essa divisão no campo da História Cultural, demonstrando
especialmente como as aproximações com a estrutura de pensamento de Roger Chartier e
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
603
algumas propostas metodológicas de Jean Starobinski estão no centro dessa divisão ou
redescoberta do objeto literário.
Parece-nos que mapear essa distinção entre perspectivas de análise do texto literário
por historiadores é ao mesmo tempo, discorrer sobre algumas mudanças na história da
historiografia, em suas maneiras de considerar qual o objeto da nossa ciência, como
trabalhar-lho, escrevê-lo em narrativas, bem como em estabelecer os limites da
pessoalidade entre pesquisador e pesquisa. Essas considerações se tornaram elementar no
transcurso do século XX e chegou ao XXI ainda com estranhamentos, suspeitas, mas,
indubitavelmente, com muitos ganhos teóricos e metodológicos.
Falemos dos ganhos. A História se estabeleceu como disciplina com regras e
técnicas próprias; o número de fontes históricas foi ampliado e a literatura como uma
dessas fontes tornou-se cada vez mais útil para o pensamento histórico; balizamos o
conceito de verdade retirando-o do nível absoluto e trouxemo-lo para a plausibilidade;
aproximamo-nos de disciplinas vizinhas, algumas mais distantes que outras, como
pressuposto de melhor compreendermos nossos paradigmas e, também, aumentar os
instrumentos de investigação. Essas mudanças no campo da História empreendidas a partir
dos annales nos permitiu praticar a História com mais clareza e objetividade, mais
conscientes de nosso métier e da nossa posição acadêmica. Em contrapartida, houve
estranhamento e suspeitas quanto à legitimidade de tantas alterações e do ritmo de
aproximações com outras áreas do conhecimento.517 O questionamento sobre o estatuto da
narrativa historiográfica é, em tempo, constantemente repensado quanto aos elementos que
o constitui. Para alguns historiadores os tropos lingüísticos da escrita histórica não lhe são
próprios, mas, emprestados da literatura o que levou à problematização da autonomia da
História. Isto quer dizer que ainda pisamos sobre um chão de bastante relevo onde o
conhecimento histórico oscila entre continuidades e rupturas. Acreditamos que Roger
Chartier, especialmente, situa-se entre essas regularidades e descontinuidades no sentido de
que avança na abertura de novos caminhos teóricos sem abster-se de regras metodológicas
específicas da História. Esse avanço que na década de 1970 foi sistematizado nas noções
teóricas de representações, práticas e apropriações tem sido continuamente renovado em
sub-noções518 fundamentais para a interpretação da literatura como fonte, por exemplo.
517
Ver esse debate em REIS, José Carlos. História & Teoria: Historicismo, Modernidade, Temporalidade, Verdade.
Rio de janeiro, FGV, 2003.
518 Referimo-nos às noções de materialidade textual e mobilidade do texto que definiremos melhor ao longo
do artigo.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
604
Proporemos aqui avaliar esse avanço teórico de Roger Chartier mediante a análise
de uma fonte literária específica, passagens da obra literária de Charles Bukowski, a partir
dos conceitos fundamentais da estrutura de pensamento de Chartier. Ou seja, avaliaremos
como a compreensão dos conceitos de representação, prática e apropriação podem auxiliar
o historiador a estabelecer um olhar atento e rico sobre o texto literário.
Em movimento posterior tentaremos o mesmo com os conceitos metodológicos de
Jean Starobinski visando demonstrar como os dois teóricos partem de um entendimento
comum e enriquecedor sobre o objeto literário e a postura do historiador-intérprete diante
de sua fonte. É pertinente estabelecer como esses dois teóricos se afastam da visão
simplista e diminutiva do objeto literário enquanto uma representação vazia da realidade
onde não há proposta de ação dos escritores literários sobre seus leitores, comunidades,
sociedades. Essa visão puramente mimética da literatura subordinada ao conhecimento
histórico das fontes oficiais e “inquestionáveis” que teria o papel apenas de corroborar o já
dito e escrito, reforçando-os, no melhor das hipóteses, não tem espaço nos apontamentos
teóricos de Roger Chartier e Jean Starobinski. Porque se para esse último o texto literário
tem uma autonomia própria que lhe confere determinada integridade aos abusos da
apropriação do leitor-intérprete, para o historiador francês, também, o texto literário deve
ser concebido por nós como uma prática de escrita inserida num tempo e espaço particular
e que se reporta a um conjunto de representações elaboradas por grupos sociais.
Façamos um breve passeio pelas definições das noções propostas por Chartier no
estudo da literatura enquanto prática de escrita e vejamos como podemos aplicar tais
noções em algumas passagens literárias do poeta e prosador norte americano Charles
Bukowski. Comecemos pelo que consideramos o conceito chave de Chartier, o de
representação. Ao defender a importância de estudos de história cultural que levem em
conta a função das representações sociais na compreensão de problemas históricos, Roger
Chartier assim as caracteriza:
Por isso esta investigação sobre as representações supõe-nas como estando
sempre colocadas num campo de concorrências e de competições cujos
desafios se enunciam em termos de poder e dominação. As lutas de
representações têm tanta importância como as lutas econômicas para
compreender mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua
concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio.
Ocupar-se dos conflitos de classificações ou de delimitações não é, portanto,
afastar-se do social – como julgou durante muito tempo uma história de vistas
demasiado curtas -, muito pelo contrário, consiste em localizar os pontos de
afrontamento tanto mais decisivos quanto menos imediatamente materiais
(CHARTIER, 1990: 17).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
605
As representações sociais assim compreendidas ganham forte valor analítico na
medida em que são concebidas como interesses específicos de grupos sociais e que através
delas podem constituir ou mesmo reforçar visões sobre a sociedade a que pertencem. O
caráter combativo dessas representações ou como prefere Chartier, a luta das
representações, torna-se clara quando investigamos as práticas culturais pelas quais essas
representações tentam se constituir ou dominar. Daí ser necessário evidenciarmos o que
Chartier denomina de práticas culturais:
A definição de história cultural pode, nesse contexto, encontrar-se alterada. Por
um lado, é preciso pensá-la como análise do processo de representação, isto é,
das classificações e das exclusões que constituem, na sua diferença radical, as
configurações sociais e conceptuais próprias de um tempo ou de um espaço. As
estruturas do mundo social não são um dado objectivo, tal como o não são as
categorias intelectuais e psicológicas: todas elas são historicamente produzidas
por práticas articuladas (políticas, sociais, discursivas) que constroem as suas
figuras. São estas demarcações, e os esquemas que as modelam, que constituem
o objecto de uma história cultural levada a repensar completamente a relação
tradicionalmente postulada entre o social, identificado com um real bem real,
existindo por si próprio, e as representações, supostas como reflectindo-o ou
dele desviando (CHARTIER, 1990: 27). O grifo é nosso.
São as práticas culturais, portanto, que materializam as representações sociais
elaboradas por grupos sociais e as tornam tão reais quanto as instituições nas quais se
aplicam. Essa redefinição da história cultural apresentada por Chartier onde as
representações e práticas ocupam o lugar privilegiado de investigação histórica é
importantíssima para concebermos a materialidade dos esquemas de classificações e
exclusões encontrados nas comunidades. Além dessas duas noções teóricas conceituadas
pelo historiador francês outra é essencial para considerarmos a operação historiográfica de
Roger Chartier. Trata-se do conceito de apropriação compreendido por esse teórico como
uma história social das interpretações, ou, a maneira pela qual podemos identificar como
um determinado conjunto de representações sociais é apropriado através de práticas
culturais. É a noção de apropriação que nos permite investigar a ocorrência do processo de
materialização das representações por suas práticas, descobrindo os desvios, as falhas, as
nuanças e como os sentidos dessas mesmas representações sofrem alterações, rupturas e
descontinuidades até suas respectivas materializações.
Representação, prática e apropriação são, enfim, conceitos referentes a uma
específica operação historiográfica que nos conduz a repensar os objetos de investigação
característicos da história cultural sem desconectá-la da história social, na medida em que
todas essas noções refletem processos sociais, grupos sociais, estratégias de organização
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
606
entre indivíduos, técnicas de trabalho, regras de escrita e leitura, esquemas de produção e
tantos outros artifícios caracterizadores das relações sociais.
Nesse sentido podemos pensar como a literatura, objeto de investigação no qual
Roger Chartier vem se dedicando com intensidade nos últimos anos, é mais bem
apreendida através dessa operação historiográfica em oposição ao trato puramente
mimético que lhe foi dado desde sua retomada enquanto fonte histórica a partir da década
de 1960. Para Chartier, existem dois caminhos pelos quais o historiador pode propor
análises de fontes literárias:
A primeira enfatiza o requisito de uma aproximação plenamente histórica dos
textos. Para semelhante perspectiva é necessário compreender que nossa
relação contemporânea com as obras e os gêneros não pode ser considerada
nem como invariante nem como universal. Devemos romper com a atitude
espontânea que supõe que todos os textos, todas as obras, todos os gêneros,
foram compostos, publicados, lidos e recebidos segundos os critérios que
caracterizam nossa própria relação com o escrito. Trata-se, portanto, de
identificar histórica e morfologicamente as diferentes modalidades de inscrição
e da transmissão dos discursos e, assim, de reconhecer a pluralidade das
operações e dos atores implicados tanto na produção e publicação de qualquer
texto, como nos efeitos produzidos pelas formas materiais dos discursos sobre
a construção de seu sentido. Trata-se também de considerar o sentido dos
textos como o resultado de uma negociação ou transações entre a invenção
literária e os discursos ou práticas do mundo social que buscam, ao mesmo
tempo, os materiais e matrizes da criação estética e as condições de sua possível
compreensão (CHARTIER, 1999: 197).
Por ora, fiquemos com essa forma de orientar os estudos históricos sobre o texto
literário e vejamos como pode ser rica uma análise baseada em tal orientação. Proporemos
a análise de passagens literárias do livro “Numa Fria” de Charles Bukowski para
exemplificar nossa escolha. Bukowski foi um escritor de prosa e poesia, norte americano,
nascido em 1920 e morto em 1994. É considerado representante da contracultura literária
americana justamente pela forma de seus textos, características dos personagens e dos
objetos literários que constituem sua obra, muitas vezes considerados elementos de uma
literatura marginal. Escolheremos passagens de sua obra onde possamos identificar
representações sociais, práticas culturais e a maneira pela qual o escritor se apropriou dessas
noções para criar um sentido literário. Sentido literário que propõe uma ação, que busca
intervir nos seus leitores e, assim, transgride o estado simplesmente mimético da literatura.
Faremos essa análise sem esquecer, como argumenta Chartier, que nossa interpretação é
sempre uma negociação de sentidos entre o que enxergamos na obra literária de Bukowski
e a autonomia desta.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
607
Em um livro de contos publicado em 1983, Hot Water Music, Charles Bukowski
manteve as características literárias que lhe deram notoriedade como escritor contracultural
nos Estados Unidos da América, ou seja, é possível perceber as representações de uma
América desiludida, enfraquecida, de indivíduos derrotados e trabalhadores mal
remunerados; uma América da escória, dos perdedores, das prostitutas, dos bêbados, dos
escritores fracassados e da fragilidade do american way of life. Esses elementos de composição
literária que já vinham sendo utilizados por ele desde suas primeiras aparições em revistas
underground e jornais alternativos até sua notoriedade como poeta e prosador estavam ali,
mais uma vez, presente em outro trabalho. De fato, se pudermos falar de uma proposta
literária ou sentido literário buscado por Charles Bukowski ao longo de sua trajetória de
literato diríamos que essa proposta ou sentido foi o de evidenciar a existência humana em
sua feição mais grotesca e visceral. Seus personagens são comumente compreendidos
enquanto o contraponto da imagem dos sujeitos livres e bem sucedidos que foi projetada
pela propaganda norte americana no pós-45.519 O apreço por personagens fracassados, sem
perspectivas, castigados por seus patrões, e mesmo os espaços representados em sua obra
bem diferentes daqueles onde o consumismo era o símbolo do progresso dão uma marca
própria aos trabalhos de Bukowski e acentuam sua posição na sociedade americana.
Crítico do modelo capitalista, que por vezes aparece sob a alcunha de sistema nas
suas narrativas, Bukowski compreendeu as representações sociais que circulavam em seu
tempo histórico e apropriou-se delas ao passo que as ressignificava. Ou seja, ao apropriarse de uma determinada forma das representações em jogo na estrutura social sobre a qual
atuou não só a fez através de uma prática de escrita literária específica, mas, também, gerou
novas representações sociais que intervieram nos leitores e nos grupos sociais que as
identificavam.
No conto intitulado “Mercadoria quebrada”, Bukowski conta a história de Frank,
embalador de mercadoria de uma empresa de Los Angeles:
Frank entrou no trânsito da auto-estrada. Era embalador da American Clock
Company. Há seis anos já. Nunca ficara seis anos num emprego e agora o filho
da puta estava realmente acabando com ele. Mas aos quarenta e dois anos, sem
educação superior e com o desemprego chegando a dez por cento, não tinha
muita escolha. Era seu décimo quinto ou décimo sexto emprego, e todos
tinham sido terríveis (BUKOWSKI, 2008: 203).
519
Um estudo dos Estados Unidos da América durante a Guerra Fria pode ser encontrado em FARIA,
Ricardo de Moura e MIRANDA, Mônica Liz; Da Guerra Fria à Nova Ordem Mundial. São Paulo: Contexto,
2003.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
608
Logo no início do conto o escritor contextualiza a vida do personagem e os
prováveis elementos subjetivos que constituem sua personalidade, evidenciando sua
posição social e a desilusão com as perspectivas de um emprego melhor. No decorrer do
conto o literato instaura conflitos entre o personagem principal, Frank, a esposa Fran e seu
supervisor, Meyers, o que denota claramente a visão de Bukowski sobre o espaço privado da
casa e o espaço público do trabalho e suas relações. Após apresentar o personagem
principal do conto é desta forma que ele conduz a narrativa:
Frank estava cansado e queria chegar em casa e tomar uma cerveja. Manobrou o
Fusca para entrar na pista de alta velocidade. Quando conseguiu, não estava mais
tão certo de que tinha pressa de chegar em casa. Fran estaria à espera. Quatro anos
já.
Ele sabia o que esperava. Fran mal podia esperar o primeiro tiro verbal. Ele
sempre esperava o primeiro tiro dela. Nossa, ela não podia esperar para lhe dar a
porrada. Depois porrada, porrada, porrada...
Frank sabia que era um perdedor. Não precisava que Fran lhe lembrasse desse
fato, o ilustrasse. Seria de pensar que duas pessoas que vivem juntas ajudariam uma
à outra. Mas não, caiam no hábito da crítica. Ele a criticava, ela o criticava. Eram
perdedores os dois. Agora só lhes restava ver quem podia ser mais sarcástico sobre
isso (Idem).
Essa tensão que Bukowski descreve entre o personagem Frank e sua esposa funciona
como um contraponto ao ideal da família enquanto instituição de laços sociais bem
definidos e compensadores. Ao invés do amor o escritor propõe o ódio, no lugar da união
o conflito. A estética literária bukowskiana baseada na figura do perdedor ou do fracassado
aflora na criação do autor e demonstra sua capacidade de intervir, de estabelecer uma ação
escrita sobre as representações sociais contemporâneas, por exemplo, aquelas contidas no
american dream. Se Frank não encontra paz ou felicidade dentro da própria casa, ideais caros
à propaganda oficial dos E.U.A durante a guerra fria, no mundo do trabalho não é
diferente, principalmente quando se é embalador:
E aquele filho da puta, Meyers. Ele voltara ao departamento de remessas dez
minutos antes da hora da saída e ficara lá parado.
- Frank.
- Sim.
- Está pondo rótulos de FRÁGIL em todas as embalagens?
- Estou.
- Está embalando com cuidado?
- Estou.
- Estamos recebendo um número cada vez maior de reclamações de clientes sobre
mercadorias quebradas.
- Acho que os acidentes em trânsito acontecem.
- Tem certeza de que está embalando os produtos corretamente?
- Tenho.
- Talvez a gente devesse experimentar empresas de caminhão diferentes.
- São todas iguais.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
609
- Bem, quero ver uma melhora. Menos coisas quebradas.
- Sim, senhor.
Meyers outrora controlara toda a American Clock Company, mas a bebida e um
mau casamento o tinham arruinado. Tivera de vender a maioria de suas ações, e
agora era apenas administrador assistente. Deixara a bebida, e em conseqüência
vivia sempre irritável. Meyers estava continuamente tentando provocar Frank para
deixá-lo furioso. Aí teria desculpa para despedi-lo.
Não havia nada pior que um bêbado reformado e um convertido religioso, e
Meyers era as duas coisas juntos... (BUKOWSKI, 2008: 203-204).
Frank é, portanto, a imagem representativa do individuo norte americano moderno
visto pelo prisma de um escritor atento às estratégias de dominação, ou seja, às
representações sociais dominantes que podiam ser facilmente detectadas no conjunto das
proposições reunidas em torno do american way of life. Na medida em que utiliza a prática
cultural literária para estabelecer outros olhares sobre as instituições e os espaços sociais,
Bukowski não só ressignifica aquelas proposições como entra no jogo das lutas de
representações, apontadas por Chartier. Esse caráter combativo perpassa por vários outros
trabalhos do literato norte americano e acena para a riqueza das fontes literárias na
investigação histórica. Utilizamos, entretanto, apenas um caminho possível no trato de
fontes literárias entre as duas possibilidades afirmadas por Roger Chartier. Olhar,
sorrateiramente, para a segunda proposta pode, ao menos, nos inquietar sobre outra
variedade analítica.
Para o historiador francês há outro viés teórico-metodológico capaz de devolver à
literatura sua riqueza histórica enquanto fonte e objeto de investigação. Trata-se de
evidenciar como os escritores literários criam narrativas fazendo-nos refletir sobre as
formas de produção do próprio texto ficcional. Perceber nas entrelinhas da ficção os
processos de fabricação ou feitura das obras literárias em si é desvendar os elementos,
regras e técnicas utilizadas na materialização do texto. Segundo Chartier, literatos como
Jorge Luis Borges e Cervantes nos permitem avaliar a fragilidade da autoria e a instabilidade
do sentido como características da produção de textos.
De acordo com essa postura teórica que procura esclarecer os parâmetros históricos
de elaboração e materialização dos livros, por exemplo, a busca pela originalidade do texto
não é mais tão importante quanto desvendar os processos que regem em várias etapas a
fabricação do escrito até sua forma final. É uma postura atenta às práticas culturais de
escrita, edição e recepção dos textos, sempre particularizadas. É, também, um viés teórico
que permite avaliar a mobilidade das obras literárias nos processos de tradução e reedição
por outros atores que não aqueles de sua primeira publicação. De fato, essa proposta de
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
610
Roger Chartier articulada a sociologia dos textos, aos estudos de cultura escrita e aos
conceitos de representações, práticas e apropriações instaurou um novo momento para a
literatura entre os historiadores, dando-lhe nova roupagem e opções investigativas de
grande potencial. É nessa condição que acreditamos ser Roger Chartier importantíssimo
para a continuidade dos estudos sobre a literatura. Marcar sua posição na historiografia é
reconhecer a dinamicidade de seu trabalho que inova sem se abster das regras de método
ensinadas pelas gerações anteriores.
Contudo, há ainda que considerar algumas outras noções teóricas e metodológicas
pertinentes à interpretação das fontes literárias. Nesse sentido, em artigo célebre Jean
Starobinski propõe ao historiador-leitor interessado na interpretação de textos literários que
ele leve em consideração durante todo o processo investigativo algumas noções necessárias
para tal tipo de análise. A primeira delas é a de que todo texto literário é formado a partir
de uma tensão, chamada de dualidade necessária. Esse duplo universo constituinte do
discurso literário é justamente a relação tênue e viva entre os aspectos próprios do discurso
postos ali pelo seu autor, mas não só por ele como bem lembra Chartier, e o olhar do
intérprete capaz de decodificar as influências externas ao discurso que ajudam na criação do
sentido da obra. Para o filósofo suíço “a análise interna das idéias e das palavras na obra
nada lucra em ignorar a sua proveniência e a sua harmonia externas” (STAROBINSKI,
1970: 134-135).
Para Starobinski, a interpretação da obra literária deve ser compreendida em sua
feição restituidora capaz de reconhecer as intenções daquele discurso. Porém, uma
atividade que restitui só o faz mediante a objetividade dos questionamentos previamente
estabelecidos pelo leitor intérprete para que não incorra numa subjetividade sem freios ou
vazia, insuficiente em estabelecer de forma clara o sentido contido no interior do texto
literário ou mesmo o que se propôs a analisar. Essa noção objetiva defendida por Jean
Starobinski lembra-nos a advertência de Roger Chartier sobre o rigor da pesquisa histórica,
mantido através de regras e técnicas específicas de nossa área de conhecimento. O
historiador deve saber o que quer ao debruçar-se sobre o objeto de investigação para que
estabeleça as perguntas certas e o caminho a ser percorrido:
Quero sobretudo lembrar que a energia da interrogação, a inventividade
desenvolvida na própria investigação restituidora, devem ser mantidas sem
vacilação, desde que se queira manter viva a relação crítica. É pela energia de
nossa intenção pessoal que o objeto (a obra) é chamada à presença. Que sobra
para a crítica, se a nossa interrogação é tímida, se nossa linguagem é
estereotipada? Se nossos conceitos são inseguros? O próprio objeto torna-se
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
611
banal e se enfraquece, por falta de uma vigorosa solicitação (STAROBINSKI,
1970: 136).
Em conjunto, a análise restituidora do discurso literário ao reconhecer seu duplo
universo constituinte a partir de proposições objetivas deverá permitir ao historiador leitor
e intérprete reconhecer o sentido do discurso em sua autonomia. Quer dizer, toda análise
bem projetada e respeitadora admite a autonomia textual de uma determinada obra em suas
intenções mesmo que possamos sempre inaugurar novas reflexões sobre a mesma. A
atualização de um texto literário é sempre possível mediante o limite que a autonomia desse
mesmo texto impõe, da mesma forma que nos lembrou Chartier sobre a negociação
prevista no jogo interpretativo da literatura.
É muito provável que existam outras propostas de avaliar a relação entre história e
literatura, entretanto, o propósito deste artigo era o de mapear e considerar duas visões
atualmente recorrentes nessa relação. Duas propostas de pensamento que acreditamos
serem complementares e pertinentes ao historiador interessado pelo universo literário e sua
importância na construção do conhecimento histórico.
Referências Bibliográficas
BUKOWSKI, Charles. Numa fria. Porto Alegre: L&PM, 2008.
CHARTIER, ROGER. A História cultural: entre práticas e representações. Rio de
Janeiro: Ed. Bertrand Brasil S.A., 1990.
CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2010.
CHARTIER, Roger. Literatura e História. Revista Topoi. Rio de Janeiro, n° 01, janeirodezembro, 2000. Disponível em:
www.revistatopoi.org/numeros_anteriores/topoi01/01_debate01.pdf
ROCHA, João Cezar de Castro (org.). Roger Chartier – a força das representações:
história e ficção. Chapecó: Argos, 2011.
STAROBINSKI, Jean. A literatura: o texto e seu intérprete. In: LE GOFF, Jacques;
NORA, Pierre (orgs.). História: novas abordagens. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976.
SOUNES, Howard. Charles Bukowski: vida e loucuras de um velho safado. São Paulo:
Conrad Editora do Brasil, 2000.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
612
A Lei da Boa Razão (1769) e a Jurisprudence: uma análise do Iluminismo por meio
das Culturas Políticas
Sofia Alves Valle Ornelas
Doutoranda em História pela UFMG
sofiavalle@bol.com.br
Resumo: O presente artigo consiste em uma breve análise do direito português
setecentista a partir da Lei da Boa Razão de 1769 e sua possível conexão com a gravura
abaixo disposta de Clément Pierre Marrilier (1740-1808) acerca da Jusrisprudência no
contexto intelectual do Iluminismo. Utilizaremos ainda nesta reflexão alguns conceitos do
quadro teórico culturalista desenvolvido por Antônio Manuel Hespanha e pela revisão
política historiográfica francesa iniciada nos trabalhos de René Remond. Por fim,
ressaltamos que o artigo também pretende demonstrar que a compreensão histórica de uma
Lei se estende muito além do texto legal ou do conteúdo jurídico que expressa, pois a
mesma atravessa as diversas manifestações culturais de um tempo e de uma época.
Palavras chave: Iluminismo, jurisprudência, Pombal.
Abstract: This paper is a brief analysis of eighteenth-century Portuguese law from the Law
of Good Reason (1769) and its possible connection to the picture below arranged Pierre
Clément Marrilier (1740-1808) about Jusrisprudence from the intellectual context of the
Enlightenment. This reflection will also use some concepts of the theoretical framework
developed by culturalist Antonio Manuel Hespanha and the policy review initiated in
French historiographical works of Rene Remond. Finally, we note that the article also aims
to demonstrate that the historical understanding of an act extends far beyond the legal text
or content expressed legal, because it goes through the various cultural manifestations of a
time and a season.
Keywords: Enlightenment, jurisprudence, Pombal.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
613
(http://bn.pt/purl.pt/4349/1/, acessado em 06 de dezembro de 2010.)
A gravura acima está arquivada na Biblioteca Nacional de Portugal em Lisboa e
disponível on-line pelo site dessa instituição. Trata-se de uma imagem produzida entre 17701800 pelo artista francês Clément Pierre Marrilier (1740-1808). Foi intitulada La
Jurisprudence. Existem várias outras gravuras de Marrilier digitalizadas pela Biblioteca
Nacional portuguesa, mas a Jurisprudence nos chamou a atenção porque data da mesma
década em que foi publicada a Lei da Boa Razão (1769) no governo de Dom José I. A
gravura apresenta como tema central a ciência do direito, ou seja, a Jurisprudência. A obra
pode ser interpretada de inúmeras maneiras, mas nos interessa o sentido jurídico que ela
carrega, bem como de que maneira pode ser associada à Lei da Boa Razão – lei essa
responsável por toda uma modernização no direito português.
O presente artigo consiste em uma breve análise do direito português setecentista a
partir da Lei da Boa Razão de 1769 e sua possível conexão com a gravura acima de
Clément Pierre Marrilier, uma vez que ambas foram elaboradas na época do auge do
movimento intelectual conhecido como Ilumismo. Em nossa concepção, a gravura e a Lei
revelam, de alguma forma, como as Luzes foram recebidas nas terras lusitanas. Tal relação
também pretende demonstrar que a compreensão histórica de uma Lei se estende muito
além do texto legal ou do conteúdo jurídico que expressa, pois a mesma atravessa as
diversas manifestações culturais de um tempo e de uma época.
Tratado como um objeto que espelhava, simplesmente, a história política dos
Estados e dos seus heróis, o direito e suas instituições não são mais estudados dessa
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
614
maneira pelos historiadores520. Como posto por Arno Wheling (2004), não compete ao
historiador do direito uma mera reconstrução histórica das instituições jurídicas ou legais
de certo período, mas deve-se buscar uma compreensão das mesmas a partir do chamado
“direito vivo”, ou seja, de um direito que pode representar mais do que a ordem legal do
Estado. O direito, enquanto ação histórica produzida pelo homem, faz parte essencial de
uma determinada cultura no tempo. Dessa forma, os valores sociais e econômicos, os
símbolos políticos, as crenças, os ideais de uma época também o perpassam. O direito pode
ser visto sob este prisma cultural, no sentido de buscar seus significados enquanto
fenômeno social produzido pela cultura humana.
Assim sendo, o direito, pensado como manifestação cultural da história política, pode
ser compreendido a partir das Culturas Políticas521. Por isso, utilizaremos alguns conceitos
do quadro teórico culturalista, em uma perspectiva ligada aos estudos culturais sobre o
direito desenvolvidos por Antônio Manuel Hespanha (1995) e pela revisão política
historiográfica francesa iniciada nos trabalhos de René Remond (1996), Serge Berstein e
Jean François Sirinelli.
No presente artigo, entendemos o conceito de Culturas Políticas como um “(...)
conjunto de valores, tradições, práticas e representações políticas partilhado por
determinado grupo humano, que expressa uma identidade coletiva e fornece leituras
comuns do passado, assim como fornece inspiração para projetos políticos direcionados ao
futuro.” (MOTTA, 2009, p. 21) Nessa perspectiva, trabalharemos o tema do Iluminismo
como uma cultura política desenvolvida ao longo do século XVIII.
René Rémond, organizador da obra “Por uma História Política” (2003), deflagrou
verdadeira revolução na história política no final do século XX522. Logo no primeiro
capítulo da obra, Rémond (2003) reconheceu as fragilidades do conhecimento histórico
político produzido até, especialmente, as condenações teóricas feitas pela Nova História. A
famosa escola historiográfica francesa denunciou a história política como sendo meramente
“factual, subjetivista, psicologizante, idealista” (RÉMOND, 2003, p. 18), ou seja, com
todos os defeitos que a tornavam “elitista e aristocrática” (RÉMOND, 2003, p. 18). Sob
520
Antônio Emanuel Hespanha (1995), José Reinaldo de Lima Lopes (2002) e Arno Wheling (2004)
podem ser apontados como autores que debatem as novas perspectivas culturais da história do direito.
521 Como posto por Rodrigo Patto (2009), a categoria de Culturas Políticas é discutível e merece inúmeros
cuidados ao ser trabalhada pelo historiador. No entanto, entendemos ser possível a aplicação desta no artigo
em questão.
522 Rémond (2006) reconheceu em sua obra que outros historiadores trabalharam com essa nova perspectiva
sobre a história política muito antes dele. Rodrigo Patto (2009) acredita que desde Alexis de Tocqueville, em
1835, temos trabalhos inspirados pela perspectiva das Culturas Políticas.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
615
essa perspectiva, a história política somente serviria de instrumento para enganar os leitores
e enaltecer o Estado (RÉMOND, 2003, p. 20). A Nova História consolidou todas essas
críticas ao designar a política como mera “espuma do oceano” dos objetos de estudos dos
historiadores.
Das duras discussões sofridas pela tradicional história política, Rémond (2003)
sugeriu outro olhar reflexivo sobre o político. Reconheceu que a história política não
poderia ser a mesma que exaltava os heróis e os Estados e percebeu a necessidade de
transformação na construção do objeto político. Além do mais, o próprio Estado Ocidental
desenvolvido no decorrer do século XX não era mais o mesmo, pois, provinha de uma
origem muito mais participativa. O cidadão nunca esteve tão presente na elaboração dos
governos ocidentais contemporâneos. A história política não poderia ignorar as massas523, a
democracia vigente na maior parte do Ocidente e que a nova ação política era também
coletiva. O novo olhar político contemplava, então, novos atores, novas experiências
políticas ou jurídicas que iam muito além do enaltecimento do Estado e dos fatos políticos
efêmeros, elitistas.
A renovação da história política também se deveu ao encontro da mesma com outras
disciplinas como a Antropologia e a Psicologia. As análises estatísticas e quantitativas
provindas das Ciências Sociais524 começaram também a ser utilizadas para se repensar o
conhecimento histórico político. A complementaridade das áreas só poderia ajudar essa
renovação da história política, na medida em que os horizontes da mesma foram em muito
ampliados. As conseqüências dessa renovação foram a busca de um conhecimento
histórico político mais aprofundado, que poderia ser trabalhado no âmbito da longa
duração e que sofre influência dos fenômenos culturais da sociedade. Os historiadores
políticos foram, definitivamente, seduzidos por essa nova proposta que passou a ser
intitulada como Culturas Políticas.
Após essa brevíssima exposição metodológica, retomamos a discussão central desse
artigo que diz respeito ao direito português que vigorou ao longo do século XVIII e foi
523
Edward Thompson, historiador marxista, reconheceu a importância dos estudos históricos e culturais e
deu novo sentido às massas operárias (MOTTA, 2009, p. 26).
524 Nas décadas de 50, 60, os cientistas sociais norte-americanos Gabriel Almond e Sidney Verba “criaram
uma complexa tipologia para enquadrar as diferenças formas de cultura política, culminando num esquema
num esquema que as resumia em três tipos básicos: cultura política paroquial, cultura política de sujeição e
cultura política participativa (...)” (MOTTA, 2009, p.17), no sentido de reestruturarem suas pesquisas acerca
do político. Seus estudos foram considerados uma espécie de defesa do etnocentrismo, mas as construções
teóricas utilizadas pelos mesmos foram apropriadas pelos historiadores políticos ao longo do século XX.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
616
modificado, especialmente, por meio da Lei da Boa Razão que fora concebida a partir de
idéias advindas do Iluminismo. Voltemos, também, à gravura por meio da Jurisprudence.
A Lei da Boa Razão de 1769 se inseriu no conjunto de medidas consideradas
ilustradas tomadas por Sebastião Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, entre 1750-1777.
Pombal pretendia modernizar Portugal e, entre outras coisas, precisava reformular o direito
português e o ensino jurídico. Antes dos estatutos de Coimbra serem propriamente
revistos, a Lei da Boa Razão enunciava que o direito moderno já estava chegando a
Portugal.
O Iluminismo foi o movimento intelectual mais importante do século XVIII no
continente europeu. Apesar das enormes divergências entre seus autores525, o conjunto de
idéias iluministas pode ser considerado como responsável pela construção de uma
autonomia racional frente a todos os dogmatismos (FLÓREZ MIGUEL, 2008). Na
concepção iluminista, não haveria de se considerar uma única verdade ou autoridade sobre
o conhecimento do mundo ou sobre o homem. O homem, no exercício racional, livre de
qualquer autoridade, deveria construir novas perspectivas sobre si mesmo e sobre a ciência.
O Iluminismo foi tão transformador das mentalidades que possibilitou a reavaliação de
todos os âmbitos da vida humana, inclusive do próprio direito (CASSIRER, 1997).
Os iluministas, não de maneira uniforme, apregoavam a valorização da razão,
questionavam a supremacia absoluta do monarca e a autoridade da Igreja Católica,
incentivavam as ciências na elaboração do conhecimento, buscavam o desenvolvimento
econômico de diversas maneiras e ainda procuravam encontrar na tolerância o caminho
para o bem comum.
Em Portugal, o Reformismo Ilustrado inaugurado pelo Marquês de Pombal pode ser
visto como uma “incorporação seletiva das idéias das Luzes.” (VILLALTA, 2002, p. 17)
Para o Pombal ilustrado, por exemplo, o rei continuava em sua posição inatingível e os
direitos do homem postulados pelo movimento não foram ainda devidamente protegidos.
O combate expresso aos jesuítas também fez parte da política ilustrada típica de Pombal.
Na área do direito, o Marquês de Pombal pretendia racionalizar a ciência jurídica. A
racionalização do direito significava aderir a uma nova concepção de direito natural
moderno (LOPES, 2002, p. 228) a partir dos ilustrados jusnaturalistas pertencente à Escola
525
Não existe uma plena uniformidade de pensamento entre os teóricos iluministas. Inclusive, existem sérias
divergências entre eles. Por isso, consideramos que houve autores mais radicais que outros dentro do mesmo
Iluminismo. Em Portugal, o Iluminismo pode ser considerado mais conservador. Sobre essa divergência, ver
a obra de Jonathan Israel (2009).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
617
Moderna de Direito Natural, como Grotius, Pufendorf, Heinécio e Cujácio (FALCON,
1982).
A Escola Jusnaturalista Moderna526 contribuiu com o movimento iluminista, na
medida em que seus membros realizaram as principais discussões a respeito do direito
moderno, sob as mesmas questões que orientaram outros pensadores iluministas, ou seja, a
ação contra o “costume, a tradição e a autoridade.” (CASSIRRER, 1997, p. 315) Daí o
direito natural moderno ter sido uma conquista também relacionada ao movimento
iluminista, pois era baseado na razão, no homem e independente da intervenção divina.
Essa necessária relação entre o direito natural e a intervenção de Deus passou a ser
questionada, especialmente, pela Escola Moderna de Direito Natural, em fins do século
XVII. Seu fundador, o holandês Hugo Grotius, inaugurou uma nova fase na teoria
jusnaturalista ao desvincular o direito natural da atuação do Criador. Estava sendo feita a
laicização do direito natural e dado o pontapé inicial para a sua maior racionalização. A
Escola Moderna de Direito Natural, além de estabelecer uma base racional para o direito
natural, pretendia organizar o direito por meio de um sistema racional-dedutivo. Partiu,
então, dessa escola a idéia moderna de codificação e sistematização do direito que se
efetivaria por completo nos séculos seguintes.
Pombal ainda reestruturou o currículo da Faculdade das Leis de Coimbra, no sentido
de adaptá-lo aos temas jurídicos da época, bem como afastar do ensino universitário a
presença dominante dos jesuítas. A Faculdade das Leis de Coimbra, após a reforma
pombalina, proibiu o uso do tradicional método escolástico e limitou o ensino do direito
romano, para que fosse dada maior ênfase ao direito nacional.
No trono desenhado por Marrilier, o encontramos vazio e apenas com uma faixa
onde se pode ler a palavra Jurisprudence que intitula a obra. Os romanos antigos fundaram a
ciência do direito no Ocidente e a definiram como a ciência da prudência, ou seja, a
Jurisprudência. Podemos perceber que, de alguma forma, a imagem acima consagra a
ciência do direito em um trono. Não há rei no trono e nem mesmo Deus, apenas a
Jurisprudência. Nessa parte, acreditamos que idéias das Luzes já podem ser notadas, pois a
gravura apresenta uma espécie de exaltação da ciência no trono. Ciência ilustrada que
significava um conhecimento mais empírico, racional. Também, para os iluministas, a
ciência impulsionava o homem ao progresso. A gravura parece partilhar desse ideal, no
526
Não existe uma uniformidade total de pensamento jurídico na Escola Jusnaturalista Moderna.
Mesmo defendendo o direito racional, seus autores tiveram idéias bastante diferentes sobre a ciência
do direito e a política moderna. Sobre essa ponderação ver José Reinaldo de Lima Lopes (2003).
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
618
sentido de também ter colocado a ciência do direito, a Jurisprudência, em um enorme
trono decorado por louros de oliveira527.
Como dito, a Lei da Boa Razão fez parte das transformações ilustradas sobre o
direito português no século XVIII. Anos antes da reforma de Coimbra, a Boa Razão já
anunciava as Luzes. Como nossa gravura, logo no título deste texto legal, não se tratava
mais da razão escolástica, mas da razão ilustrada.
Primeiramente, a Boa Razão significava a prevalência da lei geral sobre os costumes –
o que impediria a legitimação de vários privilégios costumeiros, outrora concedidos aos
homens do Reino. Em vista desse maior controle sobre os acordos e práticas
consuetudinárias, também o poder local de negociação frente à Coroa foi diminuído, pois
todo o campo jurídico de barganha estaria submetido ao estrito cumprimento do direito
proveniente da lei formal.
Sobre o costume acima da lei, dispunha o texto:
(...) que o costume deve ser somente o que a mesma Lei qualifica nas palavras –
longamente usado, e tal, que por direito se deva guardar – cujas palavras
mando; (...) que seja conforme às mesmas boas razões, que deixo determinado
que constituem o espírito de minha Leis; de não ser a elas contrário e coisa
alguma, e de ser tão antigo, que exceda o tempo de cem anos. (LEI DA BOA
RAZÃO, 2006: 161-169).
Para Hespanha (1995), a maior aplicação do costume jurídico durante todo o Antigo
Regime português favorecia a troca de privilégios entre o monarca e seus súditos. Pela
justificativa costumeira, os vassalos conseguiam, facilmente, o atendimento de seus pedidos
junto ao soberano sempre misericordioso e justo. O costume acabava por estabelecer uma
lei particular capaz de fundamentar prerrogativas e privilégios dos súditos em relação ao
domínio real. A Lei da Boa Razão não permitiria mais essas estratégias políticas legitimadas
pelo costume junto ao rei. Somente por meio da lei geral, expressão da racionalidade, os
atos dos súditos e do soberano seriam considerados legítimos. Notório salientar, ainda, que
a medida de defesa da lei sobre o costume favorecia a política centralizadora de Pombal nas
mãos do rei português.
A separação entre as leis pátrias e canônicas também esteve presente na Lei da Boa
Razão. O Marquês de Pombal defendia a supremacia do Rei frente à Igreja e a separação
das esferas cível da eclesiástica. Nesse sentido, prescrevia a Lei:
(...). Deixando-se os referidos textos de Direito Canônico para os Ministros, e
Consistórios Eclesiásticos os observarem (nos seus devidos e competentes
527 O Iluminismo resgatou alguns elementos da cultura greco-romana (CASSIRER, 1997). Acreditamos que
os ramos da oliveira, que ornam o trono da Jurisprudência, fazem uma alusão ao mundo antigo.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
619
termos) nas decisões da sua inspeção; e seguindo somente os meus Tribunais, e
Magistrados Seculares nas matérias temporais da sua competência as Leis
Pátrias, e subsidiárias, e os louváveis costumes, e estilos legitimamente
estabelecidos na forma que por esta Lei tenho determinado. (LEI DA BOA
RAZÃO, 2006: 161-169).
À medida que as Justiças da Igreja e do Estado foram sendo separadas, o direito foi
consolidando seu processo de laicização. A Lei da Boa Razão determinou que as questões
da Igreja fossem decididas somente por ela mesma. Além do mais, diferentemente das
Ordenações Filipinas (Livro III, Título LXIV) em que os pecados deveriam ser julgados
pela lei canônica, a Lei da Boa Razão utilizou a terminologia delitos de ordem eclesiástica
para se referir à Justiça Canônica. Percebemos, então, a maior distinção entre os espaços
jurisdicionais da Igreja e do monarca e a nova idéia jurídica trazida pela Boa Razão de que o
pecado, pertencente ao foro íntimo, não poderia ser alvo de julgamento.
A Lei de 1769 também restringiu o uso de doutrinas e do direito romano nas
sentenças do Reino. Ao que tudo indica, tratava-se de um afastamento das fontes
doutrinárias portuguesas mais usuais desde a Idade Média. Ao insistir na aplicação da lei
nacional, Pombal estaria adaptando o direito português aos novos parâmetros da ciência
jurídica que preconizava a elaboração de códigos escritos racionais e dedutivos:
(...) tanto para que nas alegações e decisões se vão pondo em esquecimento as Leis
Pátrias, fazendo-se uso somente da dos Romanos. (...) Mando por uma parte, que
debaixo das penas ao diante declaradas se não possa fazer uso nas ditas declarações,
e Decisões de Textos, ou de autoridades de alguns Escritores, enquanto houver
ordenações do reino, Leis Pátrias, e usos dos meus Reinos legitimamente (...). (LEI
DA BOA RAZÃO, 2006: 161-169).
Na imagem da Jurisprudence, quem escreve as leis é um anjo. Primeiro, notamos que o
costume nunca é escrito e somente a lei pode assim o ser. A Lei da Boa Razão, como a
gravura, também valorizava a lei pátria escrita em detrimento ao costume. Consideramos
que os iluministas não defendiam somente idéias laicas e a presença do anjo na gravura, não
significava, necessariamente, afastamento das Luzes. A aparente contradição pode ser vista
como relativa, na medida em que a maior parte da gravura apresenta aspectos mais ligados
às Luzes.
O anjo que elabora as leis também não as escreve baseado em inspiração divina ou
qualquer coisa do tipo. O anjo, como apregoado pelos iluministas, fazia as leis baseado nos
livros. O conhecimento não poderia se submeter mais à superstição ou algo que fosse
ligado à fé. O direito precisava da base sólida racional que poderia ser organizada por meio
dos livros ilustrados. Lembramos da imagem pintada de Pombal (XI retrato de Pombal,
atribuído a Jonas de Salitre, em 1769) em que o Primeiro Ministro aparece na frente de uma
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
620
biblioteca, escrevendo em um papel. O governante ilustrado precisava dos livros para
administrar o seu país. Os iluministas foram entusiastas da educação que poderia levar o
homem a se esclarecer e que deveria ser orientada por meio de livros, dos romances
ilustrados.
Ressaltamos ainda o caráter ilustrado da Lei de 1769 por ter impedido o uso
indiscriminado de interpretações doutrinárias pelos juízes. Está prescrito logo no
preâmbulo deste texto legal que a Justiça de Portugal estaria se precavendo das
“interpretações abusivas que ofendem a majestade das leis”. A autoridade doutrinária foi
questionada pelos iluministas, uma vez que não havia uma verdade advinda, simplesmente,
dos nomes consagrados pelo tempo. No entendimento dos iluministas, qualquer
pensamento era passível de crítica e de reprovação. A Lei da Boa Razão, notoriamente
esclarecida, não precisava mais das glosas de Bártolo ou Arcúsio, bastava a razão para a
compreensão e aplicação do direito.
Por fim, a gravura possui uma frase em francês: “O jovem homem defende a viúva e
o órfão”. O jovem homem pode ser até o anjo. O que nos intriga é que Deus não mais
protegia seus frágeis órfãos ou viúvas como dispõe, por exemplo, o texto bíblico. Também
não caberia ao rei tal proteção. Ao que nos parece, a lei seria o instrumento legítimo dessa
defesa. O anjo estava a escrever as leis, com base em uma ciência ilustrada. Os iluministas
apregoavam o limite ao poder real de diversas formas. Mas, era à lei que caberia esse papel
limitador. Também os direitos do homem e do cidadão foram garantidos pela lei. Assim
sendo, a frase em prol do amparo ao órfão e a viúva pode ser vista como participante do
ideal iluminista de defesa dos direitos do homem por meio de um Estado de direito.
Nosso artigo ousou pensar o direito português por meio de uma única Lei e uma
gravura francesa arquivada na Biblioteca Nacional. O espaço de nossa reflexão foi muito
curto e, por muitas vezes, fomos sintéticos demais na elaboração de nossos conceitos.
Procuramos demonstrar que o Iluminismo foi um movimento intelectual que se estendeu
em todos os campos do pensamento. Na arte, no direito, a língua franca (mesmo que fosse
refratária) entre os homens do século XVIII eram as Luzes. Em Portugal, podemos ver que
as Luzes foram mais conservadoras no governo pombalino. No entanto, no direito,
Pombal estava se aproximando dos juristas europeus mais esclarecidos desse tempo. Então,
apesar de todo discurso obscurantista sobre o iluminismo português, vimos que o direito
foi se tornando mais esclarecido no período pombalino. Também percebemos que a
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
621
gravura francesa estava repleta de significados que, provavelmente, foram discutidos pelos
juristas da época.
Mas, será que a imagem circulou pelos meios de Coimbra? E a Inquisição? Será que a
Igreja a proibiu para evitar a expansão das Luzes portuguesas? Tais perguntas nos instigam
a continuar a pensar sobre os novos sentidos da história política. O campo das Culturas
Políticas continua imenso para os historiadores, especialmente no que tange ao campo da
história do direito.
Referências Bibliográficas
CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. Trad.: Álvaro Cabral. 3a ed. Campinas:
Editora da Unicamp, 1997.
FALCON, Francisco C. A época pombalina:política econômica e monarquia ilustrada.
São Paulo: Ática, 1982.
FLÓREZ MIGUEL, Cirilo. La fílosofia em la Europa de la Ilustración. Madrid:
Síntesis, 2008.
HESPANHA, Antônio Manuel. História de Portugal Moderno. Lisboa: Universidade
Aberta, 1995.
______. A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos correntes.
In: FRAGOSO, J.; BICALHO, M.F.; GOUVÊA, M.F.S.(orgs.). O Antigo Regime nos
Trópicos: A Dinâmica Imperial Portuguesa (Séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001.
______. Panorama Histórico da Cultura Jurídica Européia. Lisboa: Publicações
Europa-América, 1998.
ISRAEL, Jonathan I. Iluminismo radical: a filosofia e a construção da modernidade. São
Paulo: Madras, 2009.
Lei da Boa Razão. São Paulo: Método, 2006.
LOPES, José Reinaldo de Lima. Curso de História do Direito. São Paulo: Método, 2006.
______. O direito na história: lições introdutórias. 2a ed. São Paulo: Max Limonad, 2002.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Org.). Culturas políticas na história: novos estudos. Belo
Horiznte: Argumentum, 2009.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
622
Ordenações filipinas. 5v. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985.
RÉMOND, Réne (Org.). Por uma história política. 2ª Ed.Rio de Janeiro: FGV, 2003.
VILLALTA, Luiz Carlos. 1789-1808: o Império luso-brasileiro e os brasis. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000. (Coleção Virando Séculos).
WEHLING, Arno, WEHLING, Maria José. Direito e justiça no Brasil colonial: o
Tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1751-1808). Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
623
Identidade narrativa em Evaldo Cabral de Mello: Rubro veio e a ipseidade de
Pernambuco e do Brasil
Walderez Simões Costa Ramalho
Graduado em História pela UFMG/ Bolsista PIBIC/CNPq
walderezramalho@gmail.com
Resumo: A relação entre história e identidade é um dos grandes problemas enfrentados
pela historiografia brasileira. Evaldo Cabral de Mello é um dos interlocutores mais
importantes desse debate, colocando-se como um crítico ferrenho das identidades, nacional
e mesmo pernambucana. Rubro veio, nesse sentido, constitui-se como sua obra central. A
sua posição negativa pode, contudo, ser problematizada a partir do conceito de identidade
narrativa proposta pelo filósofo francês Paul Ricoeur. É o que este artigo pretende
demonstrar, a fim de emergir um projeto de país que subjaz à recusa desse eminente
historiador pernambucano em reconhecer as identidades na história.
Palavras-chave: Rubro veio, identidade, Paul Ricoeur
Résumé: La relation entre l´histoire et l´identité est l´un des principaux problèmes
rencontrés par l´historiographie brèsilienne. Evaldo Cabral de Mello est un des principaux
intervenantes dans ce débat, se faisant passer como um critique féroce de l´identité,
nationel ou même de Pernambuco. Rubro veio, em cette sens, se constitue comme son travail
central. Sa position negative peut, cependant, être problématizer à partir du concept de
identité narrative, proposée par le philosophe français Paul Ricoeur. C´est ce que cet article
vise à démontrer pour émerger um projet de pays que se place dessous la rejet de l´eminent
historien de reconnâitre les identités dans l´histoire.
Mots-clés: Rubro veio, identité, Paul Ricoeur
I – Introdução
Quem são os brasileiros? Qual é a sua história, e qual será o seu destino? Essas
perguntas estão na base de grande parte da produção historiográfica no Brasil. Desde
Varnhagen e Capistrano de Abreu, passando por Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de
Hollanda, e até nos anos mais recentes com Darcy Ribeiro e José Carlos Reis – apenas para
citar alguns – todos eles se dedicaram, cada qual à sua maneira, a pensar esse problema,
indicando a sua relevância e dimensão para o pensamento historiográfico brasileiro.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
624
A obra de Evaldo Cabral de Mello constitui-se como uma das expressões mais
interessantes e instigantes de todo esse debate. Interessante porque oferece uma outra
forma de pensar o Brasil, numa perspectiva que enfatiza as diversidades regionais
(especialmente, no seu caso, de Pernambuco) sem aceitar como dado inelutável a “unidade
nacional”. E instigante pela forte crítica à concepção “hegemônica” da identidade nacional
brasileira, acusando-a de ser uma imposição violenta de uma cosmovisão fechada,
centralista, que ameaça inclusive a democracia por não aceitar as divergências ou
singularidades regionais. Nesse sentido, este texto visa demonstrar o que o historiador
pernambucano tem a dizer sobre o problema da identidade no Brasil, mesmo que seu
objeto seja especificamente a capitania – e depois província – de Pernambuco.
De acordo com Reis (2008), a identidade nacional é sempre mediada pela “linguagem
nacional”, isto é, os símbolos, valores, crenças, expressões artísticas e culturais, próprios de
uma “nação” e que permeiam e movimentam a vida cotidiana. “Essa identidade não é nem
essencial nem natural, nem ontológica, mas uma ‘imaginação compartilhada’, criada em
múltiplas linguagens, divergentes, discordantes, mas sobretudo ‘interlocutoras’ umas das
outras” (REIS, 2008: 4). Nessa perspectiva, pode-se ir além de uma ideia de nação sempre
atrelada ao Estado, e tomá-la como um sistema de representação cultural, que permite aos
indivíduos sentirem-se como pertencentes a uma identidade histórica singular: o Brasil. Isso
significa também que a linguagem nacional fornece a sustentação necessária aos inúmeros
discursos sobre a nação, aceitando assim as discordâncias em relação ao tema.
Será desde o ponto do vista que compreende a identidade nacional não como uma
coisa, mas antes uma “imaginação compartilhada” atravessada simbolicamente pelo ato
discursivo (e especialmente, como veremos, o discurso narrativo), que construiremos o
argumento deste texto. Essa perspectiva conjuga-se com o nosso objeto específico: a obra
Rubro veio: o imaginário da restauração pernambucana, de Evaldo Cabral de Mello (1ª edição de
1986). Neste livro, o autor traça as estruturas do imaginário nativista pernambucano,
fundado na guerra de expulsão dos holandeses (1654), e que influenciou profundamente as
formas específicas dos pernambucanos agirem e se representarem no mundo,
diferenciando-lhes radicalmente dos demais “brasileiros”, categoria que, segundo Cabral de
Mello, é uma invenção autoritária do centralismo lusitano – e mais tarde carioca. Para
reconstituir as estruturas internas e as modificações mais importantes desse imaginário, o
autor sempre tem em vista o simbólico – linguagem do imaginário – privilegiando as fontes
narrativas para seu estudo.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
625
Assim, o objetivo deste texto é discutir o pensamento historiográfico de Evaldo
Cabral de Mello, particularmente a sua obra Rubro veio, tendo em vista a sua importante
crítica à uma concepção de identidade nacional, tomando-a como algo forjado pelo
processo de centralização político-cultural iniciado no Império e continuado durante a
República brasileira. Para realizar essa tarefa, propomos uma interpretação de Rubro veio a
partir da teoria da narratividade de Paul Ricoeur, particularmente o conceito de “identidade
narrativa”, para evidenciar como essa crítica nos leva a uma reconstrução da própria noção
de identidade: não somente como algo fechado e sempre o mesmo, mas que também leva
em conta as transformações e as diferenças em seu interior e na sua relação com o outro.
Concluiremos o texto mostrando como esse brilhante historiador brasileiro traz uma
renovação importante no debate historiográfico atual indispensável para se pensar o Brasil
nos primeiros anos do século XXI.
II – Evaldo Cabral, Rubro veio e a identidade
A fundação do Instituto Histórico-Geográfico Brasileiro (IHGB), em 1838, cuja
produção foi marcada pelo questionamento do que é o Brasil e quem são os brasileiros, é
um fato marcante para o debate sobre a ideia de uma identidade especificamente brasileira.
Uma vez consolidado o Estado nacional, impunha-se como tarefa o delineamento de um
perfil para a nação brasileira, capaz de lhe garantir uma identidade própria no conjunto
mais amplo das nações, que norteou o pensamento político e a vida social durante o século
XIX. É, portanto, à tarefa de pensar o Brasil segundo os postulados próprios de uma
história comprometida com o desvendamento do processo de gênese da Nação que se
entregam os letrados reunidos em torno do IHGB(GUIMARÃES, 1988).
O grande problema, para Evaldo, é que somente o IHGB poderia tratar da questão,
sempre à luz da perspectiva monarquista, que via como necessária a formação de uma
nação una e indivisível, e cujo centro fosse o Rio de Janeiro. Evaldo qualifica essa leitura
como fechada, opressora, que abafa as divergências e as diversidades, sempre sob o prisma
da unidade total (territorial, político, cultural) próprio de uma posição imperialista – no
duplo sentido de um regime político imperial, quanto o de possuir uma tendência a se
expandir às demais regiões e culturas. Essa exclusividade do IHGB em tratar das questões
nacionais fica mais evidente se lembrarmos dos outros institutos históricos, como o
Instituto Arqueológico Geográfico Pernambucano (IAGP, 1862), que ficavam responsáveis
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
626
apenas por produzir as visões locais, enquanto que o “IHGB-RJ” era o único autorizado a
conectar todas elas e desvendar-lhes o sentido, que é o que interessa ao poder real. É nesse
sentido que o autor cria a desconcertante expressão “imperialismo historiográfico do Rio”.
Em contrapartida, Evaldo Cabral constrói uma outra forma de pensar a questão, não
em termos de unidade ou de necessidade histórica, mas levando em conta as peculiaridades
do regional, e até mesmo a contestação à perspectiva imperialista. Enquanto historiador do
regional, rótulo que ele mesmo assume em suas entrevistas528, o autor quer escapar à leitura
saquarema que deixou Pernambuco na sombra, sem nenhum papel de destaque. Para ele, o
Nordeste não é imperial e centralizador, é republicano e federalista: nesse sentido,
podemos dizer que o autor quer desconstruir a identidade nacional imperialista – fundada
na hegemonia do centro carioca – para propor uma reconstrução da identidade que vai das
partes para o todo, e não o contrário. Evaldo inclusive valoriza o IAGP por já nascer com
a preocupação de responder à
necessidade de uma versão pernambucana dos acontecimentos cruciais da nossa
(grifo meu) história, evitando que ela fosse tratada sob critério estranho, no caso,
imperial; ou, ao menos, corrigindo-se as deformações da perspectiva unitária e
fluminense da História geral do Brasil, de Varnhagen (1854), com sua condenação da
república de 1817 (MELLO, 2008: 57).
Nesse sentido, toda a produção de Evaldo Cabral é importante. Para este texto,
selecionamos um livro em especial, Rubro veio, por considerarmos, na esteira de outros
críticos529, como a sua obra fundamental e a mais adequada ao nosso questionamento. Ao
tratar do imaginário social (no sentido que Castoriadis dá a esse conceito) da restauração
pernambucana, o que o autor faz é perceber uma estrutura ideológica inerente à própria
realidade histórica, que marcou e diferenciou Pernambuco em relação aos demais estados
do Brasil. “O imaginário não é uma superestrutura ideológica, mas uma dimensão
constitutiva e reprodutiva das próprias relações sociais” (MELLO, 2008: 14). Nesse
sentido, o imaginário não está em oposição à realidade, mas compõe com ela uma relação
dialética, na qual um dinamiza e confere inteligibilidade ao outro. É por isso que o
movimento narrativo de Rubro veio se configura como uma constante “ponte-aérea” –
metáfora do próprio Evaldo Cabral – entre as questões de crítica histórica (relacionadas aos
528
Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. O acaso não existe: depoimento. [19 de maio de 2005]. Belo Horizonte:
Leituras críticas sobre Evaldo Cabral de Mello. Entrevista concedida a Lilia Schwarcz e Heloísa Starling.
529 SCHWARTZ, Stuart. O sexteto pernambucano; e ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Desagravo de
Pernambuco e glória do Brasil. In: idem.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
627
aspectos empíricos) e os temas envolvendo o imaginário social, “sempre em busca da
reciprocidade de perspectiva entre as concepções do cronista ou do historiador e as
representações coletivas” (MELLO, 2008: 14).Como foi dito na introdução, entendemos
esse sistema de representações coletivas, ancoradas num imaginário social, como a ideia da
identidade coletiva, isto é, pernambucana.
Por exemplo: a Guerra dos Mascates (1710-1711) foi um acontecimento real, mas
motivado também por fatos do imaginário, como a ideia da mutação da açucarocracia em
“nobreza da terra”, a qual afirmava uma suposta ancestralidade que os ligavam aos
primeiros nobres colonizadores da capitania530, e que desempenhou um papel fundamental
para a constituição de um dos grupos beligerantes. Para dar conta desse trabalho, uma vez
que o seu objeto pertence à longa duração, Evaldo Cabral lança mão de seu profundo
domínio das fontes de todo o período estudado (séculos XVII a XIX), reorganizando-as
segundo as grandes temáticas do discurso nativista, para assim destrinchar e reconstituir a
estrutura do imaginário social pernambucano, juntamente com suas transformações
históricas mais significativas.
Ao narrar a experiência pernambucana, tendo por fontes principais os discursos
políticos e, mais ainda, as narrativas locais, Evaldo Cabral coloca em primeiro plano a
especificidade do ser pernambucano, pois o imaginário nativista interferia sobretudo na
forma como este agia e se representava no mundo. E aí vai surgir o caráter próprio desse
ser, marcado pela bravura, pelo heroísmo, contestador, com vocação autonomista e
republicana. Desse modo, podemos dizer que o imaginário social confere um caráter
específico ao personagem por excelência da sua narrativa, o ser pernambucano. No
entanto, esse imaginário – consequentemente o caráter e o próprio ser pernambucano –
“morreu” com a consolidação do Estado nacional, empreendida principalmente por D.
Pedro II, daí o corte temporal do livro. Nas palavras de Evaldo Cabral, o pernambucano de
hoje está “abrasileirado”, ele perdeu a sua identidade, pois assimilou valores e práticas que
não lhe são próprios, isto é, “nacionais” – nesse sentido imperialista do termo. A voz
passiva empregada explicita bem que a crítica é feita a uma identidade que não foi
construída pelos próprios sujeitos.
Mas a questão de haver ou não uma identidade pernambucana não é um ponto
pacífico, nem mesmo para o próprio autor. É o que nos indica as modificações do texto
530
Evaldo demonstra , através da sua crítica histórica (isto é, baseado em dados empíricos) que tal suposição
não correspondia à realidade histórica, pois os primeiros senhores eram ou eram citadinos de origem popular,
ou cristãos-novos. Ver MELLO, 2008, p. 130- 133.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
628
feitas por Evaldo Cabral entre a 1ª edição e as posteriores – entre as quais privilegio aqui a
mais recente (3ª edição), de 2008. Elas podem ser vistas logo no prefácio, onde o autor
retira integralmente um excerto bastante significativo para o nosso problema: “Dessa
experiência [a restauração pernambucana], derivara a singularidade da história
pernambucana no conjunto da história brasileira (...). Nesta perspectiva, a restauração
tornara-se como que a experiência fundadora da identidade provincial [grifo meu]”(MELLO,
1986: 14). O abandono da expressão “identidade” em toda a 3ª edição confirma a sua
mudança de postura frente a essa questão.
E não é só isso: em duas entrevistas concedidas por Evaldo Cabral, parece haver de
fato uma contradição em relação ao problema da identidade. A primeira, concedida a Tiago
dos Reis Miranda (1990), Evaldo diz explicitamente que uma das razões pelas quais pode-se
dizer que existe uma unidade temática de seus livros subjaz na questão: “como se formou a
nossa identidade regional?”.
O Nordeste açucareiro desenvolveu, com anterioridade a outras populações
regionais do Brasil, uma identidade própria, e neste aspecto não foi pequeno o
papel desempenhado pela guerra e pela ocupação holandesas, como eu espero ter
demonstrado em Rubro veio (MELLO, 1990: 10).
Por outro lado, numa segunda entrevista, registrada na coletânea Leituras críticas sobre
Evaldo Cabral de Mello, em 2005, nosso autor é enfático:
Não, não e não, não há identidade pernambucana nenhuma. Identidade é um
conceito que abomino. O que é identidade? É aquilo que permanece igual a si
mesmo, É, portanto, o conceito mais anti-histórico que você pode conceber
(MELLO, 2005: 160).
Portanto, se num primeiro momento Evaldo aceita a questão da identidade como
tema central da sua obra como um todo, num segundo ele parece negar essa mesma
temática, colocando-a inclusive no campo do anti-histórico. Como entender essa aparente
contradição? É possível conciliar essas duas concepções?
A partir dessas colocações, este texto pretende propor uma interpretação de Rubro
veio a partir de uma perspectiva que consiga dar conta dessas questões e nos ajudem a
entender como se coloca nele o problema da identidade. Por trás da “desconstrução”, pode
haver uma “reconstrução”, dependendo do ponto de vista adotado. Nesse sentido,
buscando tal reconstrução, propomos uma releitura da obra em debate a partir da teoria da
narratividade de Paul Ricoeur, e particularmente no seu conceito de identidade narrativa. Em
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
629
outras palavras, queremos demonstrar que Evaldo Cabral constrói de fato uma identidade
pernambucana, e essa mudança de posição descrita acima consiste, essencialmente, em uma
confusão em relação aos dois sentidos possíveis de “identidade”: como idem (o mesmo), e
como ipse (o si-mesmo). Vejamos mais de perto este conceito, para a seguir colocá-la a
serviço de nossa investigação.
III – Paul Ricoeur e a identidade narrativa
O problema da identidade narrativa aparece pela primeira vez nas conclusões de
Tempo e narrativa (2010), quando Ricoeur se propõe a refletir sobre a primeira aporia da
temporalidade, isto é, ao problema da ocultação mútua531 entre as duas grandes perspectivas
sobre o tempo: a cosmológica e a fenomenológica. A primeira concebe o tempo como uma
dimensão objetiva, é o movimento dos astros, portanto numerável, mensurável, exterior ao
indivíduo. Já a segunda diz respeito ao tempo da consciência, o vivido humano, nãonumerável, qualitativo. Ricoeur vê nesse choque e distanciamento entre as duas
perspectivas do tempo um dos grandes impasses da história da filosofia ocidental, desde
Aristóteles (base da concepção cosmológica) e Santo Agostinho (tempo fenomenológico), e
repercutido por Kant, Husserl, Heidegger, e muitos outros grandes filósofos.
Para Ricoeur, que propõe uma solução poética (e não epistêmica) à aporia do tempo,
só a narrativa dá conta dessa problemática ao articular essas duas perspectivas e fazer
emergir um terceiro-tempo, o tempo da narrativa, que desenvolve uma dialética própria, não se
deixando reduzir nem à concepção cosmológica, nem à fenomenológica. Esse terceiro
tempo, construído pela operação de pôr-em-intriga, substanciado na atividade mimética que
constitui o círculo hermenêutico532, é comum aos dois tipos de narrativa, a histórica (que
trata dos fatos reais) e a ficcional (na qual a realidade é colocada em suspenso). É portanto
no entrecruzamento entre história e ficção que vai aparecer, como pretende Ricoeur, a réplica
poética da aporia do tempo. Por “entrecruzamento”, entendemos que o autor quer marcar
a diferença entre história e ficção, ao mesmo tempo em que marca seus elementos em
531
Ou seja, o fato de uma perspectiva impedir a compreensão da outra.
Em Ricoeur, a intriga é definida como “concordância-discordante”, é a composição textual de uma série
de acontecimentos individuais, formando um todo inteligível. Nesse trabalho de composição, o autor procede
por meio da atividade mimética, isto é, uma imitação criativa – no sentido de configurar um novo sentido –
dos eventos do mundo da ação, no intuito de ressignificar ou refigurar o próprio mundo da ação, por
intermédio da configuração textual. Esse movimento mimético (da prefiguração à refiguração do campo
prático por meio da configuração narrativa) se configura como um círculo, embora não vicioso, como
veremos mais à frente.
532
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
630
comum: toda narração recorre tanto a elementos históricos (que dizem respeito às ações
executadas no mundo) quanto a elementos fictícios (que dizem respeito as possibilidades
de composição da ação em uma ordem de inteligibilidade). É nessa área de confluência que
o terceiro tempo emerge como tempo da narrativa, que “imita” (no sentido aristotélico de
mimesis) a experiência do tempo, conferindo-lhe um sentido e, assim, tornando-o um tempo
humano533.
Esse entrecruzamento seria de todo inútil ou inadequado à aporia do tempo, “se não
nascesse dessa fecundação mútua um rebento, cujo conceito introduzo aqui e que
testemunha certa unificação dos diversos efeitos de sentido da narrativa” (RICOEUR,
2010: 424). Esse rebento é exatamente a identidade narrativa, ou seja, a atribuição de uma
identidade específica a um indivíduo ou a uma comunidade histórica.
Segundo Ricoeur, a única forma de dar conta da identidade do sujeito é contar a sua
história de vida, isto é, pela narração. Dizê-la é responder à questão Quem fez tal ação?,
Quem é o agente? “A história narrada diz o quem da ação. A identidade do quem é apenas,
portanto, uma identidade narrativa” (RICOEUR, 2010: 424). A identidade narrativa, dessa
forma, se caracteriza pela narração de uma história de vida de um indivíduo ou de um
povo. A história de vida, por sua vez, é construída a partir do entrecruzamento entre
história e ficção, fazendo emergir o terceiro-tempo, um tempo inteligível no qual a
compreensão de uma subjetividade se faz possível.
Feita essa rápida introdução, podemos nos dedicar mais ao conceito de identidade
narrativa. Ricoeur dissocia dois sentidos principais do conceito de identidade: como
“mesmidade” encontra-se subjacente a noção latina de idem que expressa a identidade
alcançada a partir da permanência no tempo. Em contrapartida temos a “ipseidade”, ancorada
no pronome ipse, si mesmo, que se constrói a partir da temporalização de si próprio, é a
realização da identidade no tempo, pressupondo a mutabilidade e a alteridade. A mesmidade
responde à questão o quê?..., já que se refere à face objetiva da identidade; por sua vez, a
ipseidade se dirige mais à questão quem?... por tratar do aspecto subjetivo. Nesse sentido,
Ricoeur associa a mesmidade à identidade substancial ou formal, enquanto a identidade
narrativa é constitutiva da ipseidade. Ademais, a ipseidade se “baseia numa estrutura
temporal conforme ao modelo de identidade dinâmica oriunda da composição poética de
um texto narrativo” (RICOEUR, 2010: 425). A dialética concordância-discordância que
533
Vale a pena citar a tese de Ricoeur neste livro: “o tempo devém tempo humano na medida em que é
articulado de modo narrativo, e em compensação, a narrativa é significativa na medida em que desenha os
traços da experiência temporal”. (RICOEUR, 2010, v1: 9)
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
631
constitui a intriga repercute no personagem, enquanto encontramos nele, de um lado, a
concordância da unidade singular de uma vida; de outro, a discordância dos acontecimentos
fortuitos que tendem a romper essa unidade e continuidade. A ipseidade do personagem
pode incluir, desse modo, a mudança, a mutabilidade, dentro da coesão de uma vida. Além
disso, a identidade-ipsepermite a constante refiguração de uma história de vida por todas as
histórias verídicas ou fictícias que um sujeito ou uma comunidade histórica conta sobre si
mesmo, fazendo da vida um “tecido de histórias narradas”. Dessa forma, a ipseidade leva a
um si constituído no tempo pela narração, diferentemente da mesmidade pura que
desemboca num eu abstrato, formal, puramente epistêmico, não passível de transformação.
Nesse sentido, o conhecimento de si nunca é imediato – como o cogito cartesiano –,
mas exige a mediação da linguagem e, especificamente, do discurso narrativo. Isso faz do
conhecimento de si próprio ser sempre uma interpretação de si próprio. Esse si é sempre
resultado de uma vida examinada, ou seja, explicada e refigurada pelas narrativas históricas
e ficcionais veiculadas por uma cultura. “A ipseidade é, assim, a de um si instruído pelas
obras da cultura que ele aplicou a si mesmo” (RICOEUR, 2010: 425). E isso vale tanto
para a identidade de uma pessoa quanto a identidade de uma comunidade histórica. Sobre
esta última, que interessa ao nosso estudo, o autor dá o exemplo do Israel bíblico, um povo
cujo caráter foi exprimido e refletido pelas narrativas consideradas canônicas. Mas ao
mesmo tempo, é ao (re)contar essas mesmas narrativas que o Israel bíblico se tornou a
comunidade histórica que traz esse nome. As narrativas que refletem o seu “caráter”
impulsionam essa mesma cultura a se ver e agir em conformidade aos textos sobre si
mesmos. A virtuosidade do círculo hermenêutico consiste justamente nessa elevação do
nível de compreensão de si de um sujeito ou povo, que refigura sua ação no mundo
prefigurado a partir da configuração narrativa. “A relação é circular: a comunidade histórica
que se chama o povo judeu tirou sua identidade da recepção mesma dos textos que ela
produziu” (RICOEUR, 2010: 427).
IV – Rubro veio e a identidade narrativa
Podemos agora estabelecer um diálogo entre essa ideia de identidade narrativa e a
questão de haver ou não Evaldo elaborado uma identidade pernambucana em sua
narrativa, particularmente em Rubro veio. A hipótese é que aquela contradição apontada mais
acima, como já foi adiantado, resulta da confusão em relação aos dois sentidos possíveis da
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
632
identidade segundo Paul Ricoeur. Isso fica claro se percebermos que, num primeiro
momento, quando o autor assume ter de fato refletido sobre a identidade pernambucana,
ele o faz pensando na “unidade temática dos meus livros”, ou seja, em relação às suas
narrativas sobre Pernambuco. Faz sentido, portanto, pensar na configuração de uma
identidade narrativa pernambucana empreendida pelo autor, e constitutiva – já dissemos –
da ipseidade. Por outro lado, quando ele nega a existência de uma identidade regional e
mesmo nacional, ele toma a identidade como algo que não permite transformações e/ou
diferenças, mas apenas a continuidade substancial no tempo de alguma coisa. Mas esse
sentido de identidade, como nos lembra Ricoeur, é o da mesmidade, que se relaciona com a
ipseidade, mas sem abarcá-la por completo. Essas duas assertivas, embora tenham
inicialmente a aparência de uma contradição, não são excludentes entre si, pois é
perfeitamente possível construir uma identidade-ipse criticando uma identidade-idem,
como no caso de Rubro veio.
Neste livro, o autor narra a história dos pernambucanos ao longo de mais de dois
séculos, através do estudo do imaginário que influenciou decisivamente a maneira como
eles viam a si mesmos no decorrer do tempo. O personagem principal dessa narrativa não
são os Vieiras, Dias, ou Cavalcantis, nem a nobreza da terra ou os revolucionários de 1817,
mas o ser pernambucano, dono de um caráter próprio que o imaginário lhe conferiu.
Construído na longa duração, esse caráter relaciona-se intimamente com o imaginário na
medida em que, como o Israel bíblico, Pernambuco se constituiu através da recepção das
narrativas e dos discursos que ele mesmo produziu sobre si próprio. Por outro lado, o
caráter não é a-histórico, ele se sedimenta no tempo, através do comprometimento dos
indivíduos a atuarem em conformidade com essas mesmas narrativas, ou seja, na sua
dimensão prática e temporal. “À força de reivindicarem um determinado caráter coletivo,
nacional, regional ou de classe, as sociedades acabam por se convencer da sua realidade,
passando a agir de acordo com tais modelos” (MELLO, 2008: 208). Vemos aqui como o
caráter – constitutivo da mesmidade – e o comprometimento – expressão da ipseidade – se
relacionam dialeticamente formando a identidade narrativa própria de Rubro veio.
Não por acaso, as fontes privilegiadas em Rubro veio não são outras senão as
narrativas que esse povo construiu sobre si mesmo. É principalmente – embora não
exclusivamente – através delas que Evaldo consegue perceber e dar forma à estrutura do
imaginário. Os cronistas, desde frei Calado ou Rafael de Jesus no século XVII, Jaboatão ou
Loreto Couto no XVIII, chegando a frei Caneca ou Fernandes Gama no XIX, são
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
633
revisitados e interpretados por todo o livro, demonstrando como os grandes topoi do
discurso nativista – a restauração como empreendimento exclusivo dos pernambucanos; a
formação da “nobreza da terra; o panteão restaurador; a atuação da Providência Divina;
etc. – refletiu e conferiu aos pernambucanos um caráter peculiar e um modo próprio de
agir e representar-se no mundo. Isso permite-nos interpretar Rubro veio também como uma
narrativa de uma vida que se constrói através da mediação das outras narrativas que essa
mesma vida produziu sobre si própria, tornando-a um “tecido de histórias narradas”.
Ainda sobre a questão do caráter, este conceito deve ser tomado no sentido que
Ricoeur dá ao termo, como disposições estáveis com que se reconhece uma pessoa ou um
povo, o que aliás constitui o “ponto limite em que a problemática do ipse torna-se
indiscernível da do idem”. (RICOEUR, 1991: 146). O caráter é constituído pelos hábitos e
pelas identificações adquiridas. Os hábitos, que se ligam aos elementos sedimentados do
caráter, são caracterizados, em relação aos pernambucanos, pela bravura, valentia,
heroísmo, catolicismo, republicanismo e a busca pela autonomia, elementos que se
encontram em todos os pernambucanos, homens, mulheres e crianças. É essa
sedimentação que confere ao caráter um aspecto de permanência no tempo, ou seja, o
recobrimento do ipse pelo idem. “Mas esse recobrimento não elimina a diferença das
problemáticas: mesmo como segunda natureza, meu caráter sou eu, eu próprio, ipse; mas
esse ipse anuncia-se como idem” (RICOEUR, 1991: 146). É por isso que o caráter
representa esse limite, ele é justamente o quê do quem.
Em relação às identificações, forma pela qual o outro entra na composição do si
mesmo, ela é feita das identificações com valores, normas, modelos, ideais, heróis, nos
quais a pessoa ou a comunidade se reconhecem. “A identificação com figuras heróicas
manifesta claramente essa alteridade assumida” (RICOEUR, 1991: 147). No caso de Rubro
veio, basta pensar no panteão da restauração (Fernandes Vieira – branco reinol; Vidal de
Negreiros – branco mazombo; Henrique Dias – negro; Felipe Camarão - índio), forjado
para representar a sociedade colonial, abarcando inclusive a segmentação dos dois estratos
brancos que a constituem, fato bastante expressivo de uma sociedade marcada pelos
conflitos entre pernambucanos e não-pernambucanos (principalmente portugueses, mas
também baianos ou cariocas). Essa tetrarquia foi uma ideia caríssima aos pernambucanos,
fonte de inspiração tanto no contexto dos Mascates, quanto na Revolução de 1817, ou na
Confederação do Equador. O panteão reflete, inclusive, o elemento racista do caráter
pernambucano, se lembrarmos – com Evaldo Cabral – a exclusão do mestiço em sua
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
634
composição, já que as etnias se apresentam separadas. O mestiço estava à margem do
sistema açucarocrático, sempre tratado como “sub-humano”, e representava, inclusive, uma
ameaça potencial ao mesmo sistema. Além disso, o mestiço é encarnado na figura do vilão,
Calabar, e sua traição é associada pelos cronistas à sua origem racial.
Nesse aspecto, na identificação com valores e particularmente com os heróis, os dois
polos da identidade se compõem, pois agora o caráter (mais próximo do idem) se constitui
também com a assimilação do outro na construção do si (noção própria do ipse). “Isso
prova que não podemos pensar até o fim o idem da pessoa sem o ipse, mesmo quando um
recobre o outro” (RICOEUR, 1991: 147). Nesse sentido é que o caráter constitui-se como
a personagem de uma história narrada, ao estabelecer uma dialética entre sedimentação
habitual (que nunca é imanente, mas construída no tempo, como Rubro veio demonstra tão
bem) e identificações adquiridas que formam o si mesmo a partir da assimilação do outro.
Por sua vez, o imaginário forjou esse mesmo caráter ao definir seus traços mais
significativos. E assim, construindo uma identidade narrativa própria de Pernambuco e dos
pernambucanos.
Mas não é só de permanências e/ou continuidadesque essa identidade narrativa é
constituída. Entre suas transformações, lembramos o aspecto de fidelidade, que nos séculos
XVII e XVIII foi um dos grandes topoi do discurso nativista. Ele fora forjado para
capitalizar o fato de que os pernambucanos expulsaram os holandeses sem o
consentimento da Coroa portuguesa, mas a seguir entregou a capitania à soberania do seu
“Rei natural”, sem qualquer ajuda do Reino. A intenção era tentar o seu apoio na querela
contra os mascates e, depois da derrota no conflito, amenizar os castigos e as restrições por
parte da Coroa. “Mas a revolução de 1817 veio demonstrar não ser assim tão sólida a
lealdade dos netos dos restauradores. O adesismo da administração foi geral” (MELLO,
2008: 106). O tópico ficara comprometido, pois os acontecimentos de 1817 mancharam a
tal lealdade dos pernambucanos, donde não voltará mais a ser utilizado, dado também o
caráter anti-lusitano mais acentuado do nativismo oitocentista. Esse exemplo mostra como
a identidade narrativa dos pernambucanos em Rubro veio permite considerar as mutações
internas dessa mesma comunidade na percepção que tem de si, caracterizando-a como uma
ipseidade rica e dinâmica.
V – Conclusão
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
635
A identidade narrativa construída em Rubro veio, que dá conta do ser pernambucano,
não seria mais interessante se não contivesse também uma dura crítica contra a imposição
de uma outra identidade, a imperial, que sufocou as diversidades em nome de uma
unificação fajuta, que não é própria dos pernambucanos, mas que no final acabou
vencendo e “abrasileirando” esse mesmo pernambucano. Evaldo acusa a ideia de
identidade nacional, relembramos, como uma construção imperialista, que forçou o
solapamento das divergências e discordâncias regionais em nome de uma unidade total,
empreendendo um nivelamento imposto de cima para baixo, opressor, que atua em nome
da subordinação das demais regiões em nome do centro, o Rio de Janeiro. É fácil perceber
como Evaldo toma essa identidade nacional no sentido da mesmidade, que não aceita a
diferença, que impõe uma permanência no tempo não construída pelo si, mas por um eu
abstrato, formal, deslocado da experiência histórica. Em contraponto a essa mesmidade,
Rubro veio reconstrói uma ipseidade que dá conta dessas fissuras, oferecendo um outro
projeto de Brasil, que não se imponha a partir do centro, mas que surja da diversidade
inerente à experiência histórica.
Tudo isso nos permite dizer que Rubro veio insere-se na discussão acerca da identidade
nacional no âmbito da historiografia brasileira, ao submetê-la a uma crítica forte e muito
bem articulada. Não podemos entender essa crítica como uma negação absoluta, mas antes
no sentido de uma reconstrução que dê conta das especificidades regionais, inclusive para
torná-la mais rica, dinâmica, republicana e democrática. É um projeto bastante atual,
necessário inclusive para o pleno desenvolvimento do país como um todo, e não apenas do
eixo Rio – São Paulo. O próprio fato do estado de Pernambuco ter hoje um crescimento
do PIB maior que o da média nacional (LINS, 2011), dá ainda mais credibilidade à
proposta evaldiana de fazer o Brasil pluralizar-se e reinventar-se a si mesmo. Em outras
palavras, transformar esse Brasil-idem em um Brasil-ipse.
Para tanto, seria preciso dar prosseguimento a essa abordagem regional para as outras
partes do Brasil. Alencastro resumiu muito bem essa ideia, ao sugerir que “além de
admirado, o autor deve ser um historiador imitado. Com Rubro veio debaixo do braço e uma
problemática regional na cabeça, os historiadores podem empreender um extraordinário
avanço das ciências sociais brasileiras” (ALENCASTRO, 2008: 44). Concordo plenamente.
Referências Bibliográficas
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012
636
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Desagravo de Pernambuco e glória do Brasil: a obra de
Evaldo Cabral de Mello. In: SCHWARCZ, Lilia M. (org.) Leituras críticas sobre Evaldo
Cabral de Mello. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Fundação Perseu Abramo, 2008. p. 35-55.
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Nação e civilização nos trópicos: O Instituto
Histórico Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional. Estudos históricos.
Rio de Janeiro, n.1, p. 5-27, 1988.
LINS, Letícia. PIB de Pernambuco cresce mais que o PIB do Brasil no 2º trimestre. Rio de
Janeiro: 06/09/2011. Disponível em:
<http://oglobo.globo.com/economia/mat/2011/09/06/pibdepernambuco-cresceu-mais-que-pib-do-brasil-no-2-trimestre-925298300.asp>. Acesso em:
07/11/2011.
MIRANDA, Tiago C. P. Dos Reis. Conversas do Recife, em Lisboa: entrevista com Evaldo
Cabral de Mello. Revista de História. São Paulo, n. 122, p. 135-146, jan/jul. 1990.
MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio: o imaginário da restauração pernambucana. 3 ed.
São Paulo: Alameda, 2008. 389 p.
______. O acaso não existe: depoimento. [19 de maio de 2005]. Belo Horizonte: Leituras
críticas sobre Evaldo Cabral de Mello. Entrevista concedida a Lilia Schwarcz e Heloísa Starling.
RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Tradução de Luci Moreira Cesar.
Campinas: Papirus, 1991.
______. Tempo e narrativa. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2010. Volume 1 e 3.
REIS, José Carlos. Identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 9 ed. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2007.
______. Pode se falar de uma identidade nacional brasileira? E por que falar? É necessário
que se fale? Belo Horizonte: 1º Encontro de Pesquisa em Filosofia no Brasil, 2008.
Disponível em: <http://www.fafich.ufmg.br/fibra/arq/reis_identidade.pdf>. Acesso em:
14/03/2012.
SCHWARTZ, Stuart. O sexteto pernambucano. In: SCHWARCZ, Lilia M. (org.) Leituras
críticas sobre Evaldo Cabral de Mello. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Fundação Perseu
Abramo, 2008, p. 13-34.
Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012