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Anais Eletrônicos Vol. I Simpósios Temáticos: 01 - Culturas, poderes e trabalhos no Brasil nos séculos XVIII e XIX 02 - Família e História: perspectivas e abordagens 03 - História da Historiografia e Teoria da História Belo Horizonte 2012 1 Organizadores Ana Marília Carneiro Fabrício Vinhas Manini Angelo Gabriel da Costa Avila Mariana de Moraes Silveira Mariana Sousa Bracarense Raul Amaro de Oliveira Lanari Warley Alves Gomes Anais Eletrônicos do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – I Ephis: Volume I 1ª edição ISBN: 978-85-62707-34-6 Belo Horizonte Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – FAFICH / UFMG 2012 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 2 I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – I Ephis 23, 24 e 25 de maio de 2012 Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - Fafich Reitor Clélio Campolina Diniz Vice-reitor Rocksane de Carvalho Norton Diretor da Fafich Jorge Alexandre Barbosa Neves Vice-diretor Mauro Lúcio Leitão Condé Chefe do Departamento Cristina Campolina Coordenadora do Colegiado de Graduação Adriana Romeiro Subcoordenador do Colegiado de Graduação Luiz Duarte Haele Arnaut Coordenador do Programa de Pós-Graduação em História Kátia Gerab Baggio Subcoordenador do Programa de Pós-Graduação em História José Newton Coelho Meneses Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 3 Realização Programa de Pós-Graduação em História da UFMG – PPGHIS Comissão Organizadora Ana Marília Carneiro (mestranda,UFMG) Fabrício Vinhas Manini Angelo (mestrando, UFMG) Gabriel da Costa Ávila (doutorando, UFMG) Mariana de Moraes Silveira (mestranda, UFMG) Mariana Sousa Bracarense (mestranda, UFMG) Raul Amaro de Oliveira Lanari (doutorando, UFMG) Warley Alves Gomes (mestrando, UFMG) Design Gráfico Débora Lemos Apoio Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – FAFICH Programa de Pós Graduação em História da UFMG – PPGHIS Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 4 Índice Anais Eletrônicos Vol. I Apresentação....................................................................................................................................... .. 07 Simpósio Temático 01: Culturas, poderes e trabalhos no Brasil nos Séculos XVIII e XIX.......................................................................................................................... .. 08 Segurança, economia e moralidade: as fugas de escravos em Minas Gerais e São Paulo (1871 – 1888) Adriano Soares Rodrigues............................................................................................................................. ...08 Entre datas e festejos: a emancipação de Montes Claros e a polêmica do “3 de Julho” Aparecido Pereira Cardoso e Cristiane Aparecida Nunes Oliveira........................................ ..23 A inserção política dos intelectuais românticos e o debate sobre a escravidão e a força de trabalho: o caso de Francisco de Salles Torres Homem (1831-1839) Bruno Silveira Paiva......................................................................................................................................... ...32 Cartografia do distrito diamantino: as representações do espaço de extração e dominação Carmem Marques Rodrigues...........................................................................................................................48 Das teias de traições ao desejo local de reconhecimento pela Coroa Portuguesa nas Inconfidências Mineiras Cleidimar Rodrigues de Sousa Lima............................................................................................................61 Traços da mineiridade: influência nas atividades econômicas dos séculos XVIII e XIX Daniela Almeida Raposo Torres e Paula Belgo Moraes.......................................................... .........71 Labor mecânico: oficiais mecânicos arrematantes de obras junto ao Senado da Câmara de Mariana, século XVIII Danielle de Fátima Eugênio..............................................................................................................................87 Higiene, Controle e Disciplina no Asilo de Meninos Desvalidos - Rio de Janeiro (1875-1894) Eduardo Nunes Alvares Pavão........................................................................................................... ............97 Súplicas, suplicantes e suplicados: a relação e concepção do trabalho dos (des)empregados imigrantes ao longo do segundo reinado (1840-1889) Elizabeth Albernaz Machado Franklin de Sant’ Anna e Marconni Marotta.......... .............107 “Matei e não me arrependo”: a libertação antecipada em Itajubá pelo soslaio cativo Fábio Francisco de Almeida Castilho............................................................................................. .............118 Vivendo da arte mecânica: a importância social dos artífices em Mariana no século XVIII Fabrício Luiz Pereira............................................................................................................................... .............134 Formação militar e “amparo aos desvalidos” na Companhia de Aprendizes Militares de Minas Gerais (1876-1891) Felipe Osvaldo Guimarães.................................................................................................................. ...............145 Uma proposta comparativista no estudo da apropriação do Ideário Liberal durante o II Reinado (1831-1842/ 1871-1888) Glauber Miranda Florindo.................................................................................................................................155 Aprendendo o ofício da pintura em Minas Gerais (século XVIII e XIX); mestres, aprendizes e escravos Hudson Lucas Marques Martins....................................................................................................................163 Vadiagem, civilidade e crime: a casa de detenção como espaço educacional (1870-1880) Jailton Alves de Oliveira............................................................................................................ ........................178 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 5 A evolução econômica regional e o papel dos imigrantes na zona da Mata mineira: o caso de Juiz de Fora no século XIX Joanna Darc de Mello Croce e Marcus Antônio Croce........................................................ .............194 O Mundo da Justiça no Império Português: Um Estudo Sobre os Pareceres Jurídicos de Tomás Antônio Gonzaga. Larissa Cardoso Fagundes Mendes................................................................................................ ....220 Na esteia de um regressismo conservador: Joaquim José Rodrigues Torres e a presidência da província do Rio de Janeiro (1834-1836) Lívia Beatriz da Conceição................................................................................................................ ................229 A “Facção Áulica” e seus posicionamentos sobre a escravidão e a força de trabalho na imprensa periódica do Rio de Janeiro (1832-1834) Lucas Eduardo Pereira Silva............................................................................................................ ................246 Paulo Rodrigues Durão: atuações e redes relacionais de um camarista de Vila do Carmo na primeira metade do setecentos mineiro Lucas Moraes Souza.............................................................................................................................. ................262 Categorias, anúncios e imagens: o negro no Brasil ao final dos oitocentos Luiz Gustavo Vieira Santos............................................................................................................. .................277 Ferreiros, Mestres de Forja, Fabricantes de ferro, engenheiros, operários: considerações sobre o trabalho e a história social dos trabalhadores em metais em Minas Gerais e Rio de Janeiro (1812-1900) Marcus Vinícius Duque Neves........................................................................................................ ................293 Além das Senzalas: “amizades e legados” Roseli dos Santos.................................................................................................................................... ................310 Simpósio Temático 02: Família e História: perspectivas e abordagens............ ... .324 A mãe de família: construção de um ideal no jornal O Sexo Feminino Bárbara Figueiredo Souto................................................................................................................ ...................324 “Desejando deixar por socorridos por sua morte”: Famílias de padres: o caso do Vigário João da Costa Guimarães (1819-1836) Edriana Aparecida Nolasco......................................................................................................... .....................331 Memórias, vestígios e trajetórias que compõem a história de famílias cativas em Conceição dos Ouros Sul de Minas Gerais Elizabete Maria Espíndola e Viviane Tamíris Pereira..................................................... ...............347 Reprodução natural e população escrava de Piranga na segunda metade do Oitocentos Guilherme Augusto do Nascimento e Silva............................................................................... ..............362 Paulistas e Emboabas: quando se tornaram mineiros? Isaac Cassemiro Ribeiro....................................................................................................................... .............378 Bigamia e nulidade de casamento no Brasil do século XIX Isabela Guimarães Rabelo do Amaral........................................................................................... .............393 A conformação da elite marianense e sua relação com a força armada particular: 1707-1736 Izabella Fátima Oliveira de Sales.................................................................................................... .............405 Estrutura de Posse de Escravos e Família Escrava nos Plantéis de Guarapiranga: composição dos plantéis e transferências inter-parentela (1807-1885) Lucilene Macedo da Costa e Tiago Pereira Leal...................................................................... .............419 Expostos: das estruturas domiciliares à representação social – Mariana, 1737 – 1828 Nicole de Oliveira Alves Damasceno...........................................................................................................435 Parentelas de Forros: A constituição familiar entre os alforriados Mariana (1727-1838) Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 6 Rogéria Cristina Alves.......................................................................................................................... ...............448 Redes de sociabilidades da Família Ferreira Lage: a formação da coleção de fotografias oitocentistas no acervo do Museu Mariano Procópio – Juiz de Fora (MG) Rosane Carmanini Ferraz................................................................................................................... ...............462 Simpósio Temático 03: História da Historiografia e Teoria da História........... .. 475 Fundamentos da ciência da História a partir do pensamento de Jörn Rüsen Ana Paula Hilgert de Souza............................................................................................................... ...............475 Hegel e a Razão moderna radicalizada no Espírito Augusto Leite............................................................................................................................................. ...............485 Paul Ricoeur e a narrativa historiográfica: para além do debate epistemológico, a dimensão ética Breno Mendes.............................................................................................................................................. .............493 Michel Foucault e a historiografia pós-moderna da erótica grega Daniel Barbo................................................................................................................................................ ..............508 O caso de negação do Holocausto na Espanha Daniela Ferreira Felix..........................................................................................................................................525 Contenções contemporâneas em torno do cronótopo da modernidade Davidson de Oliveira Diniz.................................................................................................................. .............538 Aproximações entre a História e a História das Ciências: As teorias da historiografia das ciências e o estudo da astronomia de Abraham Zacuto Geraldo Barbosa Neto............................................................................................................................. .............547 Considerações sobre o Tempo Presente na História Econômica João Paulo de Oliveira Moreira............................,............................................................................ ..............556 Teoria e narrativa históricas na English Historical Review de 1886 a 1902. Leonardo de Jesus Silva......................................................................................................................... ..............570 Pensando a Literatura: o romance e suas possibilidades de análise Marcelle D. C. Braga................................................................................................................................... ...........581 História das Ideias: entre apropriações e ressignificações Marcelo Monteiro dos Santos............................................................................................................... ..........590 A literatura redescoberta: contribuições de Roger Chartier e Jean Starobinski para a análise de fontes literárias Marcus Vinicius Santana Lima............................................................................................................. ..........602 A Lei da Boa Razão (1769) e a Jurisprudence: uma análise do Iluminismo por meio das Culturas Políticas Sofia Alves Valle Ornelas.......................................................................................................................... .........612 Identidade narrativa em Evaldo Cabral de Mello: Rubro veio e a ipseidade de Pernambuco e do Brasil Walderez Simões Costa Ramalho......................................................................................................... .........623 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 7 Apresentação O I Encontro de Pesquisa em História da UFMG é uma iniciativa discente, que tem como objetivo principal promover um diálogo aberto e democrático entre os alunos de pós-graduação e de graduação em história e áreas afins. A intenção de realizar o evento surgiu a partir da consciência das limitações do espaço dedicado aos debates entre jovens pesquisadores em muitos grandes eventos. Propomos, então, um encontro feito por e para estudantes, voltado essencialmente para a troca de experiências, informações, inquietações – o que, acreditamos, muito pode contribuir para a atividade por vezes tão solitária que é a pesquisa. Por uma grata surpresa, o evento alcançou dimensões muito maiores do que imaginávamos inicialmente e cresceu em quantidade e qualidade. A proposta inicial de cinco Simpósios Temáticos voltados a proporcionar uma maior interação entre os alunos do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG adquiriu dimensões nacionais, atraindo participantes de diversas instituições e de muitas áreas afins que se distribuíram em dez Simpósios Temáticos que contemplam uma grande variedade de temas e de recortes temporais, em estreita relação com os movimentos mais recentes da historiografia. Para a realização do evento, contamos com o apoio constante de muitas pessoas e instituições. Por isso, gostaríamos de registrar os nossos agradecimentos ao Programa de Pós-Graduação em História e à Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, às Professoras Kátia Gerab Baggio e Adriana Romeiro, aos alunos do PPGHIS/UFMG e, em especial, àqueles que enviaram propostas de Simpósios Temáticos. Agradecemos também a todos que se inscreveram e acreditaram no projeto do encontro e aos convidados que se dispuseram gentilmente a participar do EPHIS: Professor Fernando Novais, Professora Miriam Hermeto, Ricardo Frei e Leandro Eymard. Comissão Organizadora Ana Marília Carneiro Fabrício Vinhas Manini Angelo Gabriel da Costa Avila Mariana de Moraes Silveira Mariana Sousa Bracarense Raul Amaro de Oliveira Lanari Warley Alves Gomes Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 8 Simpósio Temático 01: Culturas, poderes e trabalhos no Brasil nos séculos XVIII e XIX Segurança, economia e moralidade: as fugas de escravos em Minas Gerais e São Paulo (1871 – 1888) Adriano Soares Rodrigues Licenciado em História pela UFV adrianosrodriguess@yahoo.com.br Resumo: O presente trabalho tem como objetivo estabelecer uma análise sobre as fugas de escravos e sua possível contribuição para a reorganização de um mercado de trabalho nas províncias de Minas Gerais e São Paulo, entre os anos de 1871 e 1888. Buscaremos abordar qual o tratamento dado pela elite imperial a esta questão, através da análise de textos publicados em alguns dos principais periódicos destas localidades. Além disso, também utilizamos anúncios de fugas de escravos, que não só nos permitem esboçar o possível perfil dos foragidos, como também, sua possível direção e consequente inserção no mercado de trabalho. Palavras-chave: Escravidão, Imprensa, Reorganização do Mercado de Trabalho Summary: This article aims to provide an analysis on the leakage of slaves and their possible contribution to the reorganization of a labor market in the provinces of Minas Gerais and São Paulo, between the years 1871 and 1888. Which seek to address the treatment of the imperial elite to this question by analyzing some of the texts published in leading journals of these places. In addition, we also use ads leakage of slaves, which not only allow us to outline the possible profile of the fugitives, but also its possible direction and subsequent insertion into the labor market. Keywords: Slavery, Press, Restructuring the Labour Market Debate Ideológico Acerca das Fugas de Escravos nos Periódicos do Século XIX: A primeira parte deste trabalho busca identificar a perspectiva veiculada pela elite política mineira e paulista, em seus periódicos, acerca das fugas de escravos, entre os anos de 1871 e 1888. Inserimos este ponto por acharmos que seria importante perceber se a fuga poderia ser utilizada como objeto de discussão sobre a emancipação dos escravos, abolição ou permanência do sistema escravista. Grande parte da produção historiográfica sobre a escravidão, que trabalha com nosso recorte temporal, utiliza os periódicos para falar dos crimes, motins e revoltas de escravos. De início, pensamos que um fator tão corriqueiro nas páginas de anúncios Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 9 poderia ter sido abordado como ponto de discussão, também, nos editoriais e artigos de outras seções dos jornais. No entanto, no decorrer do processo de pesquisa, notamos que as fugas quase nunca era mencionado pelos autores. Os temas ligados aos escravos, em ambos os jornais das províncias estudas, além da seção de anúncios de fugas e vendas, ficavam em sua maioria restritos às páginas de “Noticiário”, onde eram dadas informações sobre os crimes que teriam sido cometidos por escravos. Os cativos apareciam nas primeiras páginas dos jornais quando eram citados assassinatos ou outros crimes que os envolviam, mas, as suas fugas quase nunca foram mencionadas nos textos argumentativos. Eram mencionados ou eram objetos de artigos, quando havia alguma discussão nas assembleias provinciais ou geral sobre temas ligados à escravidão. Era comum aparecerem propostas de emancipação e abolição dos escravos, principalmente nas "seções livres" dos jornais. As opiniões eram diversas e em sua maioria eram publicadas sob pseudônimos ou anonimamente. A exemplo disto, em novembro e dezembro de 1880, acerca da situação do sistema escravista e da ação dos chamados abolicionistas, em São Paulo, um autor chamado Dr. L. P. Barreto, escreveu uma série de quatorze artigos, no jornal A Província de São Paulo, onde busca possíveis soluções para a questão da mão-obra nas fazendas paulistas. Segundo ele, os abolicionistas eram aliados a uma “metafísica revolucionária”1. Criticava, ainda, a atuação dos lavradores, que estariam mudos “na attitude de quem se reconhece culpado ou medita uma vingança inconfessavel.” Ele traça uma possível saída para a emancipação, que deveria ser antecedida pela supressão da religião do estado, a realização do casamento civil, a secularização dos cemitério, a elegibilidade dos não católicos, a imigração europeia etc. Ele cita que a reforma na lavoura poderia ser feita da união da ordem com o progresso. Mas, como podemos perceber os escravos não aparecem como protagonistas nestas argumentações, a questão que move seus artigos é a busca por soluções aos problemas ligados à força de trabalho na lavoura. Mesmo que os escravos, ou a sua libertação, fossem a fonte dos problemas da força de trabalho nas lavouras paulistas, eles quase não são mencionados. Neste mesmo jornal, A Província de São Paulo, sete anos mais tarde, aos 20 de dezembro de 1887, ou seja, a pouco mais de cinco meses da assinatura da lei que libertaria os escravos, foi publicado um artigo, assinado por “O Solitario”, onde é apresentado mais 1 Os abolicionistas e a situação do paiz. A Provincia de São Paulo. São Paulo: 20/11/1880, N. 1721, seção Questões Sociais, p. 1. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 10 um plano de condução da emancipação escrava onde não só os escravos são citados, como também são, os possíveis fugitivos. O autor faz oposição às medidas tomadas na assembleia da “Sociedade Libertadora”, que teria decidido pela libertação total dos escravos sob prestação de serviços, em no máximo três anos. Fica claro no trecho a seguir, um dos pontos que mais aparece nos jornais de ambas as províncias e que expressa, de certa forma, um possível medo que a elite tinha sobre a libertação dos escravos, a moralidade e a “vadiagem” dos libertos. Se eu pudesse ter alguma influencia na questão suscitada, apresentaria o projeto que segues: Art. 1° - Da data da promulgação da presente lei , ficam livres todos os escravos existentes no Brazil. § 1° - A lei será acompanhada do regulamento indispensável do trabalho livre. § 2° - Os libertos serão obrigados ao serviço, em os quaes tem estado empregados e po[r] espaço de tres annos, mediante um salario modico, conforme suas edades, habilitações e sexo. § 3° - Os fugitivos serão forçados a recolherem-se ás suas antigas occupações. § 4°- Os vagabundos serão recrutados ou remettidos para as colonias militares.2 Como já falamos acima, projetos como este, eram publicados com frequência. Dificilmente tinha uma semana em que não era publicado pelo menos um artigo com propostas para a solução da falta de braços, defendendo ou não o sistema escravista. Mas não podemos deixar de citar este, pois é um dos poucos que toca no nosso objeto, mesmo que só em uma frase. O inciso terceiro nos leva a perceber que há uma preocupação com a situação do fugitivo, que possivelmente incomodava essa elite, já que ele deveria ser inserido na legislação. Vale lembrar a importância disto. Uma vez que a fuga não era considerada crime, escravo poderia fugir quantas vezes achasse necessário, ele não estaria cometendo nenhuma “infração”. Porém, acoitar, ou seja, esconder ou tomar um escravo fugitivo como seu, era considerado crime, pois caía sob o direito à propriedade que o senhor tinha sobre o escravo. Daí a explicação para a frase encontrada em, praticamente, todo anúncio de fuga de escravos: “protesta-se com todo o rigor da lei contra quem o acoutar”. No inciso quarto, há uma clara preocupação com a moralidade, ou seja, os escravos “vagabundos” deveriam ser submetidos ao poder do Império, afim de não ficarem ociosos. Visão semelhante a esta, também, encontramos em um artigo publicado num 2 SOCIEDADE LIBERTADORA. A Provincia de São Paulo. 20/12/1887, N. 3817, seção Secção Livre, p. 2. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 11 jornal da província de Minas Gerais. N’O Liberal Mineiro de 3 de Março de 1888, há um artigo onde o autor expressa a junção dos dois pontos que levantamos acima, as fugas e a moralidade. Ao que parece, o Partido Liberal de Minas Gerais teria recebido críticas e sido responsabilizado pelo “exodo de trabalhadores servis que tem procurado a capital como refugio para sua sorte miseranda.”3 E o autor faz uma retratação em nome do jornal que representa o partido. As fugas a que o autor se refere, na verdade não são as mesmas que lotaram a seção de anúncios. Seria a saída de escravos que teriam sido, recentemente, libertos das fazendas. A fuga das fazendas, sem o necessário “treinamento” dos escravos à sua nova condição seria uma ameaça à moralidade e defende que seria necessário que os novos libertos passassem um tempo nas fazendas, até se acostumarem com a liberdade, por isso defende, a libertação condicional aos escravos. Mas, toda a sua preocupação com a moral é desencadeada também, como vimos nos jornais paulistas, por uma preocupação com a economia e com a reorganização do mercado de trabalho. O preparo dos trabalhadores servis para o gozo da liberdade, nos proprios estabelecimentos agricolas em que servirão durante o tempo do seu captiveiro sem esperanças, é o systema que nos parece mais patriotico e efficaz nas actuaes condições economicas da nossa provincia.4 Como podemos perceber, no trecho citado, o autor demonstra claramente que a fuga das fazendas causa um impacto econômico na província. E, mesmo se declarando “insuspeito á causa do abolicionismo”, defende uma medida que seria encaixada mais com o chamado emancipacionismo, que defenderia a liberdade gradual ao escravo. A abolição imediata estaria gerando o grande êxodo nas fazendas. Este autor diz ainda que, Em tal disposição de espirito, demittindo de nós qualquer co-participação em actos menos regulares que se hajão praticado, diremos todo nosso pensamento a tal respeito: pensamos que, se é um crime ante a moral e um erro economico altamente fatal ao paiz a perduração do elemento servil, não é menos condemnavel deslocar o trabalhador dos estabelecimentos onde lhe irá procurar brevemente a liberdade para se o atirar á peior escravidão, a do vicio nas tavernas e nos prostibulos, caminho que o levará direto ás prisões.5 A fuga das fazendas causaria um impacto econômico e um desastre moral nas cidades, já que os libertos não saberiam como usufruir da sua liberdade entregando-se meramente ao ócio. E, chega a um ponto interessante, o da segurança, que nos permite dialogar com a pesquisadora Célia Maria Marinha Azevedo. 3 AS FUGAS DAS FAZENDAS. O Liberal Mineiro. Ouro Preto, 03/03/188, N. 16, [seção inlegível], p. 2. 4Idem. 5Idem. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 12 A autora analisa o imaginário das elites no final do século XIX. Diz que, principalmente, a partir da década de 1880 os negros teriam iniciado revoltas e insurreições em massa, andando armados pelas fazendas e “dispostos a tudo para se verem livres do cativeiro,” (AZEVEDO, 2004: 176) que ela chama de “onda negra”, cuja violência gerou um medo nas elites. O fenômeno teria criado uma pressão que teria sido responsável por fazê-las tomar as medidas que levariam ao fim da escravidão. Segundo a autora, “pela primeira vez na história da escravidão na província [São Paulo] presencia-se um momento de acerto geral de contas e nisto os brancos poderiam levar a pior.” (AZEVEDO, 2004: 176). Sendo assim, a abolição teria sido uma medida de segurança das elites, frente às “lutas” dos escravos. Encontramos alguns artigos no A Província de São Paulo, que falam de supostos crimes e revoltas cometidas por escravos, mas como nosso objetivo é tratar das fugas, não demos tanta atenção a eles. Se analisássemos as duas fontes citadas por nós sob a ótica de Célia Azevedo e dos historiadores que partilham da sua visão, concluiríamos que o autor daquela proposta para a abolição na província de São Paulo propunha uma medida para tentar manter os negros subordinados ao poder dos brancos, ou seja, tratar-se-ia de uma tentativa de controle sobre a possível “onda negra”, que ameaçaria as elites. Portanto, o artigo publicado pelo jornal mineiro expressaria claramente o medo que as elites teriam das possíveis revoltas que surgiriam das aglomerações dos escravos, mesmo aqueles que estivessem libertos sob prestação de serviços, já que ainda estariam sob poder do seu senhor. No entanto, não pensamos assim. Vemos que tais pontos defendidos pelos artigos que expomos são mais passíveis de uma análise voltada, não para um medo do negro, mas por uma preocupação com a força de trabalho e com o destino deste mercado. Mesmo que expressem com clareza a questão moral, como enfatizamos, e que citem o abalo de estabilidade da ordem social, parece-nos ser mais claro uma questão econômica, onde a segurança e a moralidade são usadas como ponto de argumentação, do que um medo de fato. Por exemplo, voltemos ao artigo d’O Liberal Mineiro, “As Fugas das Fazendas”. O autor diz que não vê sem desgosto “e apprehensões a agglomeração, na capital, de elementos que lhe podem perturbar a segurança e tranquillidade,” apresentando uma preocupação com a ordem e com a segurança. Mas isto nos parece mais uma maneira de Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 13 defender que os escravos ainda não estão prontos para serem liberados das fazendas, ou seja, uma tentativa de mantê-los no trabalho. Como o autor mesmo diz, seria necessário um “preparo dos trabalhadores servis para o gozo da liberdade, nos próprios estabelecimentos agrícolas”. Do contrário causaria danos econômicos à província devido à situação em que se encontrava a oferta de trabalho. Percebemos que sua argumentação, baseada na falta de preparo dos escravos para se tornarem livres, é usada como uma justificativa para prolongar o sistema escravista, já que os deixaria mais tempo ligados ou dependentes dos senhores. Para ele, como já citamos, esse sistema “parece mais patriótico e efficaz nas actuaes condições econômicas da nossa província.” E uma maneira de causar menos impacto à economia da província seria deixar os escravos na fazenda exercendo seus trabalhos para os senhores, sob condições. Se fossem declarados livres incondicionalmente, provavelmente abandonariam seus postos de trabalho. Assim sendo, preparar os escravos para a liberdade seria uma maneira de fazer com que a força de trabalho ficasse nas fazendas por mais tempo. Como argumentamos anteriormente, em poucos momentos as fugas de escravos foram objetos nos artigos dos jornais paulistas e mineiros que pesquisamos. No entanto, o mesmo não ocorre com a seção de anúncios, onde foram publicados milhares de apelos de senhores querendo capturar seu escravo fujão. É sobre esta fonte riquíssima que focaremos nossos olhares agora Os Anúncios das Fugas: Os anúncios de fugas de escravos foram frequentes em quase todos os jornais do século XIX até meados da década de 1880. Independente da posição política do periódico, conservador, liberal ou republicano, ele estava lá. Era usado como ferramenta de busca dos senhores, que ampliavam seus limites de busca para toda a população leitora, os anúncios traziam descrições físicas e comportamentais dos fugitivos, ora com informações detalhadas, ora muito rasas dependendo do grau de conhecimento que o senhor tinha do seu escravo. Nos anúncios de fuga, os senhores traçavam um verdadeiro retrato falado do escravo a que ele pretendia capturar. O número de escravos fugitivos que encontramos nos anúncios não pode, nem deve ser considerado como o número real de fugas. O autor Flávio dos Santos Gomes, que trabalha com a questão das fugas, argumenta que muitos escravos fugiam apenas por algum tempo e acabavam voltando para as fazendas. Às vezes, eles fugiam apenas por poucos Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 14 dias, iam pra cidade, ficavam nos ajuntamentos e rodas de escravos, dançavam e jogavam capoeira. Por ora, alguns escravos tinham laços familiares fora da fazenda a que pertenciam, então, acabavam fugindo para “visitá-los”, mas depois voltavam. Acostumados com essas fugas temporárias, anunciá-las era praticamente a última medida que o senhor tinha na procura do cativo. (GOMES, 2003) Trabalhamos com anúncios e artigos de cinco periódicos, sendo quatro de Minas Gerais (Diário de Minas 1873-1878, A Província de Minas 1878-1888, A Actualidade 1878-1881 e Liberal Mineiro 1882-1888) e um paulista (A Província de São Paulo 1875-1888). O anúncio era publicado a fim de que obtivesse qualquer informação sobre o paradeiro do fugitivo. Mas, o exercício da captura gerava uma série de contratempos a quem não via a escravidão com bons olhos. Indício disto são alguns textos que encontramos n’A Provincia de São Paulo de pessoas reclamando da captura de escravos. No dia 7 de Agosto de 1880, foi publicado n’A Provincia de São Paulo, um pequeno texto, sem autoria declarada, onde o autor reclama da dedicação da força policial à caça de fugitivos. Ao exm. chefe de policia Roga-se a sua exc. o favor de pôr cobro ao espirito mercantil com que o chefe de um certo posto de urbanos só trata de aceitar especulações para ganhar gratificações por negros fugidos; ainda em cima distrahindo camaradas com taes caçadas, com sacrificio do interesse publico, e vergonha para alguns soldados que tem brio e não apreciam sujar a farda n’aquele triste officio. consolação6 Neste caso, o autor diz que um posto inteiro seria destinado a busca de fugitivos, que seria uma função nada honrosa. Encontramos outros artigos como este argumentando que, enquanto, alguns praças ficavam somente a procura de escravos fugitivos e das respectivas recompensas, os crimes continuam ocorrendo e os criminosos soltos.7 Estes trechos nos fornecem indícios de que para algumas pessoas as fugas não representariam uma ameaça à segurança e à ordem, pelo contrário, a dedicação da força policial à captura de fugitivos é causaria alguma instabilidade. Segundo Ademir Gebara,8 algumas “posturas municipais”, foram criadas para diferenciar fugitivos das demais pessoas. Esses escravos que se destacavam, pelas vestimentas, por comercializar produtos ou vender sua força de trabalho sem autorização 6 Ao exm. chefe de policia. In: A Provincia de São Paulo. São Paulo: 07/08/1880, N. 2168, seção “Secção Livre”, p. 1. Grifos no original. 7A Policia e os escravos. In: A Provincia de São Paulo. São Paulo: 22/09/1883, N. 2553. p. 1. 8 Sobre posturas municipais e fugas ver: GEBARA, A. Escravos: fugas e fugas. Revista Brasileira de História, v. 6, n. 12. São Paulo: mar./ago. 1986. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 15 do senhor, eram recolhidos à cadeia e seu senhor tinha um tempo determinado para retirálos. Alguns anúncios eram parecidos e com poucas informações detalhadas. Encontramos um caso curioso em São Paulo. Um negro livre teria sido preso como fugitivo. E, algumas pessoas escreveram indignadas ao jornal dizendo que o sujeito tinha família e trabalhava. E, não seria só porque era parecido com um foragido que deveria ser preso, sem antes fazer uma investigação de quem se tratava. Os autores clamaram ao delegado e às autoridades que garantissem “a liberdade dos cidadãos, ainda mesmo dos desconhecidos.” 9 Neste caso, um negro livre teria sido preso por ser semelhante a um escravo foragido e, segundo a carta enviada ao jornal reclamando de sua prisão, a investigação necessária para a conclusão de que se tratava ou não de um foragido não teria sido realizada. Isto nos leva a pensar sobre os meios que buscados para obter um maior controle social. Para isto, teriam contribuído as posturas municipais que tentariam estabelecer regras de comportamento dos escravos nas cidades, a fim de diferenciar potenciais fugitivos dos outros escravos. Os anúncios também contribuiriam, já que colocariam a população em alerta para identificar um sujeito descrito. Como o porte de muitos escravos era parecido e muitos anúncios não eram claros, acreditamos que possíveis erros como os denunciados no trecho que citamos acima possam ter ocorrido. Este caso eventual nos dá uma dimensão de como teria funcionado as tentativas de controle social, o que nos leva a pensar, mais uma vez, que com a inserção de novos elementos na sociedade, ou seja, a quebra dos dois polos, escravo e livre, o controle teria se tornado mais difícil. Por este motivo, escravos foragidos que fossem mais qualificados poderiam “infiltrar-se” nesta sociedade, fugindo dos olhos da captura. É importante ressaltarmos que a utilização dos anúncios de fuga como fonte de pesquisa histórica é rara ou usada como fonte complementar a ela. Um dos primeiros autores a utilizá-la foi Gilberto Freyre em seu Escravosnos Anúncios de Jornais Brasileiros do Século XIX, lançado em 1979, onde ele faz uma análise etnológica/antropológica dos anúncios. Identifica neles as origens étnicas dos escravos, verticalizando sobre os africanos. Como já dissemos, os anúncios são um verdadeiro retrato falado do fugitivo, então, Freyre 9 Prisão injusta. In: A Provincia de São Paulo. São Paulo: 16/10/1878, N. 1097, seção “Secção Livre”. p. 1. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 16 foca-se nas descrições físicas, observando os símbolos e sinais que possam ligá-los a um determinado grupo étnico. Já na vertente historiográfica posterior a Gilberto Freyre, a chamada “escola sociológica paulista” dos anos 1960, que faz grandes críticas a este autor que teria uma visão paternalista e harmônica sobre a escravidão, os anúncios são utilizados como argumento para enfatizar o caráter violento da escravidão. Sendo assim, também ficam presos às descrições físicas dos escravos, prestando atenção aos sinais de castigos e informações sobre o comportamento agressivo de alguns escravos. Sendo que sua agressividade seria gerada, justamente, pela violência do sistema escravista. Esta vertente acredita que a elite agiria de forma articulada e teria planejado todo processo de emancipação, onde a fuga teria contribuído para a criação de um mercado de trabalho livre diminuindo, assim, os impactos do fim da escravidão no processo produtivo. Fazem parte desta gama de pensamento, autores como: Emília Viotti da Costa, 10 Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso. 11 Fazem análise semelhantes a eles, autores posteriores como, Suely Robles Reis de Queiroz 12 e Ademir Gebara. 13 Por volta dos anos 1980 surge outra visão historiográfica, a chamada história social da cultura, que tenta explicar o processo de emancipação da escravatura através da luta entre senhores e escravos. São autores desta vertente: Stuart Schwartz, Marinho Azevedo, 15 Sidney Chalhoub 16 14 Célia Maria e Flávio dos Santos Gomes17. A maioria da documentação que esta vertente utiliza são processos criminais e artigos de periódicos, onde esses historiadores buscam indícios para o que eles chamam de “luta dos escravos”. A ação dos escravos deixaria de ser um ato inconsciente gerado pela violência do sistema 10Ver: COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. 2ª ed. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas ltda, 1982. _______________. O Escravo na Grande Lavoura. In: HOLANDA, Sergio Buarque de. (org.). História Geral da Civilização Brasileira.2ª ed., São Paulo: Difel, 1969. P. 135-188. 11 Ver:CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional:o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. 2ª Ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997. 12Ver: QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Aspectos Ideológicos da Escravidão. In: Estudos Econômicos. Vol. 13, Nº1, São Paulo: 1983. p. 85-102. 13Ver: GEBARA, A. Escravos: fugas e fugas. Revista Brasileira de História, v. 6, n. 12. São Paulo: mar./ago. 1986. 14Ver: SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, Roceiros e Rebeldes.Bauru, Edusc, 2001. 15Ver: AZEVEDO, Célia Maria Marinho. Onda Negra, Medo Branco. 2ª ed. São Paulo: Annablume,2004. 16Ver: CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo, Cia das Letras, 1990. 17Ver: GOMES, Flávio dos Santos. A Hidra e os Pântanos: Mocambos, Quilombos e Comunidades de Fugitivos no Brasil (séculos XVII-XIX). São Paulo: Editora UNESP, 2005.; ____________. Experiências Atlânticas. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2003. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 17 escravista, passando a ser vista como uma luta consciente onde o escravo busca nos seus atos os caminhos para a liberdade. Sabemos que até meados do século XIX havia, praticamente, dois elementos na sociedade escravista, sendo eles escravos e homens livres. Portanto, seria muito fácil identificar um fugitivo. Com a inserção de novos elementos na sociedade - como imigrantes -, com o processo de urbanização e com a criação, expansão e demanda de um mercado de trabalho livre, após a primeira metade do século XIX, ampliou-se a dimensão de oportunidades para que o escravo obtivesse sucesso em sua fuga. Inclusive vendendo sua força de trabalho. Em certos anúncios é explícito que o fugitivo tinha pretensões de trabalhar livremente, pois, fugiam levando ferramentas de trabalho. Vendendo sua mão-de-obra, o fugitivo teria mais chances continuar em fuga. Como dissemos anteriormente, o desenvolvimento econômico e urbano permitia que ele interagisse com este mercado e com a comunidade sob o aspecto de um homem livre. Não eram apenas os escravos urbanos que fugiam e vendiam sua força de trabalho. Sim, trata-se de escravos que tinham um ofício específico, mas, o ponto a ser discutido é que os cativos das fazendas também tinham especializações no trabalho e, ao fugirem, procuravam se valer disso. Há de ser considerado também que eles poderiam empregar-se, não necessariamente, no espaço urbano, por ter ofícios tipicamente rurais, como podemos perceber nesses dois anúncios do dia 05 de março e 14 de setembro de 1882, publicados no A Província de Minas: [...]fugio da fazenda de Lamas, freguesia da cidade de Montes Claros, o escravo de nome Marcelo, pardo, idade de 30 annos (...) tem costume de viajar com tropa (...) é também acostumado a trabalhar em cortume de couros [...]18 Fugio da fazenda da Providencia, termo de Queluz, o escravo Luiz, creoulo, de 20 anos (...) trabalha de pedreiro e de carpinteiro [...] 19 Importante lembrarmos que com o anúncio o senhor quer capturar seu fugitivo, por isso ele traça uma descrição de tudo que pode ligar um “suspeito” a seu escravo, então, citar que ele possui ofício não necessariamente quer dizer que ele vá ser um trabalhador livre, mas sim que há essa possibilidade. Nos dois casos citados acima, o senhor faz questão de frisar o ofício do escravo fugido. Isso nos leva a pensar que estes escravos poderiam vender sua força de trabalho, mesmo sendo originários de fazendas. 18Francisco 19 Coutinho Durões. Escravo Fugido. In: A Província de Minas, Ouro Preto, nº 90, 05/03/1882. Antonio Moreira da Cunha. 400$000. In: A Província de Minas, Ouro Preto, nº 115, 14/09/1882. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 18 Em alguns casos, a possível incorporação ao mercado de trabalho fica nítida. O senhor supõe até em que tipo de “estabelecimento” o escravo provavelmente iria oferecer seu trabalho: “É provável que [o fugitivo] procure sentar praça em alguma cidade do interior, ou que se ajuste em algum hotel, por ser perfeito cozinheiro.” 20 De certo, a expansão econômica possibilitou ao escravo obter maior sucesso na sua fuga. Muitos iam trabalhar, nas cidades, como já foi dito, ou na construção das estradas-de-ferro. Como podemos notar em dois anúncios do A Província de Minas, de 18 de janeiro e 1 de fevereiro de 1883: Fugio da fazenda Ribeiro do Ouro, freguesia de Matheus Leme [região central de Minas Gerais] [...] o escravo José, [...] 21 annos de idade. Já fugio uma vez e foi encontrado indo para os lados da confusão [...]. Desconfia-se que esteja nos prolongamentos da estrada de ferro. 21 O escravo Manoel, crioulo, de idade de 20 a 22 anos, [...] dado à embraguez, bom pagem e optimo copeiro, que fugera no dia 14 de Novembro e havia sido preso na dia 25 de Dezembro de 1882 na linha ferrea – Rio Verde, onde trabalhava com o nome de Antonio Pedro, fugio de Novo antes de ser entregue a seu senhor [...]. Consta que [...] seguio para a linha ferrea de Pedro II afim de trabalhar alli, e levou a roupa em um mallote de viagem que furtou na via ferrea do Rio Verde [...].22 De José Pedrosa da Silva Campos, fugiu em dias do mez de Outubro proximo passado, o escravo Aniceto, de côr preta, altura regular, pés grandes, falla fanhosa, idade 30 e tantos annos; [...] Gosta de andar bem vestido, assim como de passear em praças. E’ Bahiano. Julga-se com probabilidade estar trabalhando em alguma estrada de ferro ou estação. 23 Nesses três casos fica explícita a relação dos escravos com o mercado de trabalho livre. Fogem uma, duas, três vezes para se empregarem na construção de estradas de ferro. Observamos que em Minas Gerais e em São Paulo, no período da expansão ferroviária, muitos anúncios traziam informações como estas indicando que o escravo estaria trabalhando na feitura das ferrovias, um dos meios de absorção de força de trabalho. É notável a diferença entre os anúncios mineiros e paulistas. Antes, é importante lembrarmos que apesar de falarmos Minas Gerais, restringimos nossa pesquisa ao centro da província, pois analisamos jornais da capital, Ouro Preto. O mesmo ocorre em São Paulo, quando analisamos um jornal publicado, também, em sua capital e que restringe a 20 Antonio Alves F. Campos. 200u000 de gratificação. In: A Província de Minas, Ouro Preto ,nº 104, 11/06/1882. 21 José Alves Ferreira Silva. 200$000. In: A Província de Minas, Ouro Preto, nº 135, 18/01/1883. 22 Francisco Carneiro Santhiago. Attenção. In: A Província de Minas, Ouro Preto, nº 137, 01/02/1883. 23 SÃO CARLOS DO PINHAL. In: A Provincia de São Paulo, São Paulo, nº 45, 02/03/1875, p. 3. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 19 publicação de anúncios de fugas das zonas cafeeiras do chamado oeste paulista e alguns do vale do Paraíba. A primeira diferença é na quantidade de informações que vêm em cada anúncio. Os publicados em Minas são majoritariamente mais detalhados e específicos, são relativamente maiores que os de São Paulo. Enquanto a maioria dos anúncios paulistas traziam apenas informações físicas dos fugitivos, os anúncios mineiros nos informam sobre o comportamento, qualificação e hábitos dos escravos. Estas informações também constam nas publicações de São Paulo, mas em Minas Gerais a riqueza de detalhes é bem maior, o que nos permite dizer que havia um maior conhecimento dos anunciantes sobre os fugitivos. Uma vez que ambos querem capturá-los, quanto mais informações forem citadas, maiores as chances de captura. Por isso, é praticamente impossível que o senhor não coloque no anúncio tudo aquilo que ele saiba sobre o escravo. Esta discrepância de quantidade de informações entre as duas províncias pode ter uma explicação ligada ao tipo de economia a que cada província se dedicava no período estudado. Como São Paulo, grande produtor de café, tinha uma economia ligada à plantation e possuía grandes fazendas produtoras que demandavam um grande número de escravos para a produção deste núcleo, seria muito difícil o senhor, ou o responsável pelos escravos, conhecerem um a um dos seus escravos detalhadamente. Além disso, segundo alguns autores, São Paulo foi um dos maiores centros de absorção da mão-de-obra advinda do tráfico interprovincial de escravos, muito forte nos anos 1870-80 (COSTA, 1982), e percebemos que vários fugitivos eram recém chegados das províncias do “Norte”, sendo assim os senhores não teriam muito conhecimento sobre eles. No caso de Minas Gerais, mesmo sendo a província que tinha o maior número de escravos do período, os plantéis de cada fazenda, na região em que pesquisamos (Ouro Preto, ou seja, região central de Minas Gerais), eram bem menores que os da província paulista. Assim os senhores tinham mais contato com escravos e saberiam mais detalhes dos fugitivos. Na historiografia sobre a economia mineira no século XIX, há um forte embate sobre o tipo de atividade econômica desenvolvida e o apego desta província à escravidão. De um lado está Roberto Borges Martins que afirma ter sido desenvolvida em Minas Gerais uma economia voltada para o consumo interno, cujo apego à mão-de-obra escrava seria explicado pelo grande número de terras livres para a produção, sendo assim seria Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 20 melhor para o homem livre produzir nestas terras e possuir escravos de que vender sua força de trabalho. (MARTINS, 1983: 181-209) Em contrapartida, do outro lado da discussão, Robert Slenes diz que, realmente Martins acerta quanto fala da questão das terras e do apego à escravidão, mas erra quando considera que sua economia não era exportadora. A justificativa utilizada por Slenes para criticar Roberto Martins é que havia de fato pequenas propriedades que produziam milho, algodão, atividades pecuárias etc., para o consumo interno. Mas, é exatamente aí que estaria o erro de Martins ao desconsiderar a relação desta produção com a cafeeira no sul e zona da mata mineira. Uma vez que ela seria direcionada para o consumo na zona cafeeira, que dedicava quase que exclusivamente ao café, o apego à escravidão estaria relacionado com uma produção exportadora. (SLENES, 1988: 449-496) Não podemos discordar ou concordar de nenhum dos dois porque não fizemos pesquisa sobre o tema. Fato é que ambos concordam que parte de Minas Gerais, a que analisamos, produzia com pequenos plantéis onde seria possível um contato mais individualizado do senhor com o escravo. Isto significa que em Minas seria possível que o senhor conhecesse melhor o seu escravo, devido a um plantel pequeno, comparado às lavouras cafeeiras de São Paulo, cujo número podia ultrapassar duzentos escravos por plantel. (SLENES, 1999) Acerca dos ofícios dos fugitivos, a quantificação dos anúncios nos possibilita comparar as duas províncias. Em Minas Gerais, por exemplo, os anúncios que constavam alguma especificação sobre os trabalhos exercidos pelos escravos chegam a 68% do total, enquanto os de São Paulo não ultrapassam 38%. É óbvio que, praticamente, todos os escravos desempenhavam alguma função produtiva, senão não seriam escravos. O que queremos dizer é que aqueles fugitivos que possuíam alguma qualificação específica, ou até mais de uma (e nesse caso Minas sai na frente de novo, já que 72% dos escravos que têm ofício citado, possuem mais de uma especialização; em São Paulo este número cai para 22%) têm mais chances de ser absorvido pelo mercado de trabalho livre, e assim, obterem êxito na sua fuga. Como base nestes dados, podemos dizer que os escravos da província de Minas Gerais tinham mais oportunidades de permanecerem em fuga, de não serem identificados como fugitivos, já que se camuflariam na sociedade, diminuindo as possibilidades de captura. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 21 Conclusões: Conclusões que chegamos é que tanto em Minas Gerais quanto em São Paulo, as questões ligadas à fuga não eram frequentes nos jornais. Quando era citada, vinha ligada a outros fatores como a reorganização do mercado de trabalho. Em ambas as províncias, ela é uma preocupação relacionada à falta de mão-de-obra nas lavouras. E, é objeto de discussão quando se fala na questão de braços para as lavouras, ficando no meio do embate entre os defensores do sistema escravista e os do emancipacionismo e abolicionismo. Quando analisamos os anúncios, vimos que há indícios de vários motivos para os escravos verem na fuga uma maneira de buscarem sua liberdade e que muitos encontram na venda sua força de trabalho um meio para driblar sua captura e permanecer fugido. Isso só teria sido possível com o avanço do processo de urbanização e expansão econômica que inseriram outros elementos na sociedade - como o imigrante - fazendo com que quebrasse a sociedade composta, meramente, por livres e escravos. Observando o aspecto da qualificação do escravo fugitivo, notamos que em Minas Gerais os escravos cujas fugas foram anunciadas nos jornais, eram mais qualificados que os de São Paulo. O que significa que eles poderiam ter mais chances de permanecerem fugidos, já que seria possível encontrar na venda de sua mão-de-obra uma forma de sobrevivência que não despertasse tanta atenção das pessoas para lhes entregarem aos seus senhores. Bibliografia: AZEVEDO, Célia Maria Marinho. Onda Negra, Medo Branco. 2ª ed. São Paulo: Annablume,2004. CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional:o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. 2ª Ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997. CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo, Cia das Letras, 1990. COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. 2ª ed. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas ltda, 1982. ______. O Escravo na Grande Lavoura. In: HOLANDA, Sergio Buarque de. (org.). História Geral da Civilização Brasileira.2ª ed., São Paulo: Difel, 1969. P. 135-188. FREYRE, Gilberto. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. 4. ed. rev. São Paulo: Global, 2010. GEBARA, A. Escravos: fugas e fugas. Revista Brasileira de História, v. 6, n. 12. São Paulo: mar./ago. 1986. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 22 GOMES, Flávio dos Santos. A Hidra e os Pântanos: Mocambos, Quilombos e Comunidades de Fugitivos no Brasil (séculos XVII-XIX). São Paulo: Editora UNESP, 2005.; ______. Experiências Atlânticas. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2003. MARTINS, Roberto Borges. Minas Gerais, Século XIX: Tráfico e Apego à Escravidão numa Economia Não-Exportadora. In: Estudos Econômicos. 13 (1), Jan./Abr. 1983, p.181-209. QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Aspectos Ideológicos da Escravidão. In: Estudos Econômicos. Vol. 13, Nº1, São Paulo: 1983. p. 85-102. SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, Roceiros e Rebeldes.Bauru, Edusc, 2001. SLENES, Robert. Os Múltiplos de Porcos e Diamantes: a economia escrava de Minas Gerais no Século XIX. In: Estudos Econômicos. 18, Set./Dez. 1988, p. 449-496. ______. Na Senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 23 Entre datas e festejos: a emancipação de Montes Claros e a polêmica do “3 de Julho” Aparecido Pereira Cardoso Mestrando em História pela Unesp apcmocmg@gmail.com Cristiane Aparecida Nunes Oliveira Mestranda em História pela Unimontes Cristiane.nunes.oliveira@gmail.com Resumo: Montes Claros viveu ao longo da década de 1950 entre a “esperança e a frustração”. A elite local imbuída na ideologia do governo JK esforçou-se para inserir a cidade dentro dos projetos do Plano de Metas do governo federal. A comemoração do 3 de julho de 1957 foi o ponto alto desse processo onde as lideranças políticas buscaram projetar a cidade enquanto polo regional carente de investimentos. Nesse sentido, o texto visa articular a comemoração em questão à cultura política inerente ao período em que ela foi instituída. Palavras-chave: Comemoração, cultura política, governo JK. Summary: Montes Claros lived throughout the 1950s between "hope and frustration." The local elite imbued with the ideology of the JK government struggled to enter the city projects within the Plan's goals of the federal government. The commemoration of the July 3, 1957 was the culmination of this process where political leaders sought to project the city as a regional center in need of investment. In this sense, the text aims to articulate the celebration in question to the political culture inherent in the period in which it instituted. Keywords: Celebration, political culture, the JK government. Na madrugada do dia 16 de outubro de 1832, os habitantes do então Arraial de Formigas foram acordados com 21 tiros. O motivo da comemoração que saudava o nascente dia estava localizado um ano antes, quando em 13 de outubro de 1831, a Regência Trina por meio de resolução elevou à categoria de vila o povoado de Formigas. Para o memorialista Hermes de Paula, o dia de 16 de outubro figura como “um dia de festa para nossos antepassados”, uma vez que política e administrativamente foi concedida autonomia à vila de Formigas, que se tornou sede de um vasto município no norte da província de Minas Gerais. (PAULA, 1979: 15) Na mesma ocasião em que as lideranças políticas de Formigas festejavam a instalação da vila, os habitantes da Barra do rio das Velhas protestaram com veemência a nova condição daquele lugarejo como sede de câmara e termo. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 24 Data de 2 de agosto de 1833 um longo abaixo-assinado enviado à presidência da província, onde os moradores da preterida Barra do Rio das Velhas lançaram uma série de queixas. Para eles, a Barra tinha mais condições de ser vila uma vez que sua localização hidrográfica favorecia em muito o desenvolvimento da vila e termo a serem ali instalados. No documento, o juiz de paz do distrito Antônio Hipólito Gomes de Magalhães afirmou que a Barra estava localizada “na margem de dois rios navegáveis o São Francisco e das Velhas” ficaria também em posição geográfica privilegiada, pois “ficaria no meio das vilas de Formigas, São Romão e do Salgado”. Além disso, a câmara “promoveria o desenvolvimento de uma região de grande movimentação mercantil e de produção agrícola e pecuária”.24 Em 1855 as lideranças da Barra do rio das Velhas ainda reclamavam a elevação de Montes Claros à condição de Vila, e esperavam ansiosos “a necessidade da criação de um centro municipal na mais importante posição desta província, a qual é a da Barra do Rio das Velhas e dos seus dois majestosos rios”. 25 O recuo histórico-temporal apresentado nos parágrafos anteriores denota os sentidos que os políticos do século XIX atribuíram às localidades com status de vila e aos anseios que muitos tinham em ter sua região inserida na mesma categoria. No entanto, a partir da segunda metade do século seguinte o ser vila não mais preocupava os políticos da região norte de Minas, uma vez que esse termo passou a ter outro sentido e significado na nomenclatura da divisão administrativa da federação e dos municípios brasileiros. (COSTA, 1970: 19) Se a elevação de Formigas à condição de vila proporcionou reclamações dos habitantes da Barra do rio das Velhas em fins de 1832, o mesmo não ocorreu quando a lei provincial nº 802 de 3 de julho de 1857, que atribuiu à vila de Montes Claros a categoria de cidade. Na correspondência dos juízes de paz das vilas de São Romão, Januária e do distrito de Barra do rio das Velhas com destino ao governo da província de Minas Gerais a partir de 1857 não aparece nenhuma reclamação quanto ao novo status atribuído a Montes Claros. (PAULA, 1979: 17) 24 ABAIXO-ASSINADO dos habitantes do distrito e freguesia da Barra do rio elevação à condição de vila. Barra do rio das Velhas, 19 de dezembro de 1832. Seção Provincial, SP/PP 212, Caixa 187, doc. 8. 25 ABAIXO-ASSINADO dos habitantes do distrito e freguesia da Barra do rio elevação à condição de vila. Barra do rio das Velhas, 23 de dezembro de 1855. Seção Provincial, SP/PP 213, Caixa 231, doc. 5. das Velhas pedindo a sua Arquivo Público Mineiro. das Velhas pedindo a sua Arquivo Público Mineiro. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 25 Segundo a estudiosa Fernanda Borges, a elevação de um distrito à categoria de vila tinha mais importância do ponto de vista político administrativo do que a atribuição do status de cidade. Tanto em Portugal continental como em suas colônias, o status de cidade implicava a concessão de certas prerrogativas de caráter honorífico às aglomerações de maior importância do ponto de vista política ou militar. Embora se deva destacar o fato de que uma vila ser elevada à categoria de cidade nem sempre significava a agregação de alguma prerrogativa política suplementar. (MORAES, 2007: 60) O Brasil depois de alcançada a sua independência herdou de Portugal a forma de organização administrativa dos municípios. Era reconhecido por parte da administração municipal de Montes Claros até 1957 o fato de que as comemorações acerca da emancipação política deveriam ocorrer no dia 16 de outubro. Em 1932 o centenário do município de Montes Claros foi lembrado em meio a festejos que duraram alguns dias. Como se explica então o 3 de julho como data da “emancipação político-administrativa” e não mais o 16 de outubro? (PEREIRA&OLIVEIRA, 2003: 2) Segundo Laurindo Mékie Pereira e Marcos Fábio Martins de Oliveira, a ideia de se comemorar o centenário da cidade foi lançada em 1955 quando foi divulgada nos jornais locais da época. O maior entusiasta da proposta foi o médico e memorialista de Montes Claros Hermes Augusto de Paula, que assinalou a importância das comemorações a serem feitas em 1957: Duzentos e cinquenta anos de fundação. Cem anos de cidade. 1957 será, para nós, um ano de significação especial. Será uma oportunidade para relembrarmos os feitos de nossos antepassados e um convite para celebrarmos novas realizações. (PAULA, 1979: 3) Os mencionados historiadores assinalam que Hermes de Paula não criou nenhuma relação direta entre o aniversário da cidade e a emancipação política e administrativa de Montes Claros. O 3 de julho só foi adquirindo o significado de data da emancipação política a medida em que a efeméride foi se consolidando no calendário das festividades da cidade. A data com o passar do tempo foi sendo reconhecida: pelas instituições públicas, pelos escritores, políticos e pela imprensa com o momento em que se comemora a criação do munícipio. Exemplo disso é o artigo de Éder de Oliveira Martins Júnior, então secretário de Gabinete do prefeito Luís Tadeu Leite, publicado na Gazeta Norte Mineira em 3 de julho de 2009. No texto repleto de elogios à cidade, o secretário parabenizou Montes Claros, que naquele dia estava “completando 152 anos de emancipação política e administrativa” Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 26 (MARTINS JÚNIOR, 2009: 13). Além desse artigo não seria difícil encontrar livros, reportagens e outros tipos de publicações em que o 3 de julho passou a ser visto como tal. Nas palavras de Laurindo Mékie Pereira e Marcos Fábio Martins Oliveira a festa de centenário em 1957 Insere-se no contexto de entusiasmo característico do período – o desenvolvimento levado a efeito pelo Plano de Metas do Governo Juscelino Kubitschek - e reflete a vitalidade da pecuária local, maior força econômica e braço direito da Prefeitura Municipal na promoção do evento. Mas, além disso, foi uma estratégia cuidadosamente planejada para construir a imagem de uma cidade moderna e pacífica, de um povo ordeiro e trabalhador e, por fim, atrair investimentos do Estado e da União (abertura e melhoria das estradas, construção de hidrelétricas, ampliação/melhoria dos serviços de telefone, água e esgoto, e apoio para a criação de um frigorífico na cidade. (PEREIRA&OLIVEIRA, 2003: 4) O questionamento acerca do 3 de julho em Montes Claros foi levado à público pela primeira vez pelos historiadores Marcos Fábio Martins de Oliveira e Tarcísio Rodrigues Botelho em 1988, quando escreveram uma série de artigos para os jornais que circulavam em Minas Gerais enfatizando a importância do dia 16 de outubro. Em 2001 outros artigos levaram a questão novamente ao público, e segundo os autores do artigo A invenção do 3 de julho em Montes Claros, a partir desse momento a forma de tratar a questão começou a mudar. Um jornal da cidade no mesmo ano assinalou que “A emancipação política de Montes Claros foi aprovada no dia 13 de outubro de 1831, foi concretizada em 16 de outubro do ano seguinte, quando ocorreu a eleição da primeira Câmara Municipal”; já outro artigo publicado no jornal Hoje em Dia em 16 de outubro de 2001 trazia o seguinte título: “Emancipação de Moc completa 169 anos sem comemorações oficiais”. (PEREIRA&OLIVEIRA, 2003: 8) Da imprensa a questão chegou à Câmara Municipal “e, no ano de 2001, foi objeto do Projeto de Lei de autoria da vereadora Fátima Macedo cujo ponto central era o reconhecimento de 16 de outubro como a data da efetiva emancipação de Montes Claros”. Aprovado pelos vereadores o projeto se transformou na lei 2.995 (de 5 de abril de 2.002) e reconheceu o dia 16 de outubro como o “dia do município”.(PEREIRA&OLIVEIRA, 2003:8) Ao propor uma análise sobre o significado do 3 de julho do ponto de vista histórico, não estamos aqui levantando uma bandeira de protesto contra as comemorações que ocorrem nesse dia e muito menos buscando uma retomada à antiga data. Mas torna-se necessário reconhecer que de fato o 16 de outubro foi a data em que se concretizou a emancipação político-administrativa de Montes Claros. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 27 A data de elevação à categoria de cidade não teve nenhum efeito do ponto de vista jurídico e legal na Vila que já existia desde 1832. Não se adicionou nenhuma prerrogativa legal e muito menos alterou a organização política do município. No estado de Minas Gerais, o caso de Montes Claros é considerado sui generis, pois comemora a data de elevação de sua sede municipal à categoria de cidade, em detrimento da data em que foi conquistada a sua emancipação política. Na primeira metade do século XX, uma revisão na legislação acerca da organização administrativa do Brasil, alterou significativamente os parâmetros para a criação de distritos e formação de novos municípios. Em consonância com essa nova legislação, ao ser criado um novo município, o distrito que seria a sede, automaticamente era elevado à categoria de cidade, logo no ato de sua instalação. Seria possível pensar o 3 de julho como uma tradição inventada no contexto de uma determinada cultura política? O estudo dos professores Laurindo Mékie Pereira e Marcos Fábio Martins Oliveira já demarcaram o 3 de julho como sendo uma tradição inventada. Agora nos resta identificar o contexto das comemorações do Centenário no bojo de uma determinada cultura política. Além de ter se consolidado como principal data comemorativa do calendário das festividades de Montes Claros nas últimas cinco décadas, o 3 de julho pode ser entendido também em uma perspectiva mais ampla, isto é, inserir a data no contexto nacional do momento em que ela foi criada. A historiadora Ana Maria Ribas Cardoso ao analisar a produção dos intelectuais ligados ao ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) durante o governo de Juscelino Kubistchek assevera ser possível delinear alguns aspectos que constituem “a cultura política que formata os anos JK” (CARDOSO, 2006: 1), notadamente os que se referem “à personalidade de Juscelino como ‘grande estadista” e ao projeto desenvolvimentista por ele levado a cabo, no slogan 50 anos em 5 e no Plano de Metas. “O nacionaldesenvolvimentismo, manufaturado na fábrica isebiana, representou a argamassa que modelou a cultura política na segunda metade dos anos cinquenta e correspondia à ilusão que há muito movia a intelligentsia brasileira: a de imaginar-se protagonista da revolução sinônimo de progresso” (CARDOSO, 2006: 2). Juscelino teve o ISEB como grande elaborador e divulgador da ideologia do seu governo, de forma a mostrar o Brasil arcaico frente ao Brasil que caminhava para o progresso. Para Ângela de Castro Gomes, o conceito de cultura política apresenta grande plasticidade, dado ao fato de ele “permitir explicações/interpretações sobre o comportamento políticos dos atores sociais, individuais Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 28 e coletivos, privilegiando-se seu próprio ponto de vista: percepções, vivências, sensibilidades”. (GOMES, 2005: 47-48) A primeira vez em que o 3 de julho foi festejado se inscreve na cultura política do governo JK. Trata-se de uma época em que o Brasil viveu perspectivas muito intensas de progresso, desenvolvimento, estabilidade política e liberdade de imprensa. Nessa época, o país sentia-se confiante no progresso, apesar do pouco investimento governamental na área social como educação, saúde e saneamento básico. O Plano de Metas, cuja síntese foi a construção de Brasília criou uma aura de euforia, apesar das deficiências e contradições do modelo desenvolvimentista. O otimismo verificado durante o governo de JK refletiu-se também na área cultural, onde uma onda de ideias novas se propagou pelos mais variados campos do conhecimento. O projeto urbanístico de Brasília e as linhas arrojadas de suas construções foram a consolidação de uma arquitetura moderna que vinha sendo desenvolvida no Brasil havia algumas décadas, como o complexo arquitetônico da Pampulha, projetada por Oscar Niemeyer, em Belo Horizonte em 1943. (SANTOS, 1998: 234) Os grupos políticos de Montes Claros – o PSD e PR – usaram a imprensa para divulgar as ideias do discurso desenvolvimentista, pois era de interesse destes que os benefícios e investimentos do Plano de Metas alcançassem o norte de Minas, e principalmente Montes Claros. De acordo com Laurindo Mékie Pereira, “os jornais legitimaram a ideologia oficial e procuraram construir a imagem de uma cidade ‘moderna’, ‘pacífica’ e ‘civilizada’”. (PEREIRA, 2002: 39) Com o intuito de atrair a atenção do governo federal as festividades do 3 de julho de 1957 foram marcadas pela euforia e expectativas frente às benesses que poderiam ser trazidas. Um ano antes, quando o executivo municipal criou a Comissão Organizadora das Festividades do Centenário. Foi uma semana de espetáculos. A cidade estava preparada: as ruas centrais foram calçadas, as ruas dos bairros próximos ao centro foram cascalhadas, os jardins das praças estavam bem cuidados, pontes foram construídas sobre o rio Vieira (que corta quase toda cidade), as construções velhas ostentavam pinturas novas, a passagem de gado pelas ruas do centro, velho costume local, foi proibida e o “majestoso parque” estava pronto. Durante o “centenário”, realizaram-se o I Congresso do Algodão, espetáculos pirotécnicos, cavalhadas no estádio João Rebelo, diversas solenidades religiosas e esportivas, um desfile, histórico-folclórico, diversas palestras acercas dos “homens importantes” de Montes Claros e a exposição agropecuária. As solenidades oficiais contaram com as presenças do governador Bias Fortes e do presidente Juscelino Kubitscheck. (PEREIRA&OLIVEIRA, 2003: 5) Torna-se importante salientar que a Sociedade Rural de Montes Claros teve papel decisivo das comemorações de julho de 1957, uma vez que o Parque de Exposições, Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 29 inaugurado no momento do centenário foi a principal obra construída. Essa relação ficou indelevelmente marcada nos calendário das festividades de cidade, pois o 3 de julho coincide com a Exposição Agropecuária de Montes Claros. FIGURA 1 JK sendo recepcionado pela população no Parque de Exposições de Montes Claros Fonte: www.montesclaros.com A visita de JK na ocasião do Centenário foi a oportunidade para as elites locais se mostrarem antenadas ao momento de euforia propiciada pelo projeto desenvolvimentista do governo federal. O momento seria propício para solicitar recursos e obras com o objetivo de projetar sobre a cidade o interesse e o desejo pelo progresso. FIGURA 2 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 30 Montes Claros em 1953 Fonte: www.montesclaros.com A partir de 1957, o 3 de julho foi inserido nos calendário das festividades do município. Se neste ano a comemoração estava justificada no centenário do status de cidade atribuída a Montes Claros, com o passar do tempo, a data passou a ser reconhecida como a da emancipação política do município. Sobre essa mudança, torna-se necessário investigar se houve por parte do Executivo municipal a implementação de medidas legais com o objetivo de suprimir as comemorações do 16 de outubro, ou se as datas chegaram a ser comemoradas alguns anos depois das festividades do centenário da cidade. Considerações Finais Montes Claros viveu ao longo da década de 1950 entre a “esperança e a frustração”. A elite local imbuída na ideologia do governo JK esforçou-se para inserir a cidade dentro dos projetos do Plano de Metas do governo federal. A comemoração do 3 de julho de 1957 foi o ponto alto desse processo onde as lideranças políticas buscaram projetar a cidade enquanto polo regional carente de investimentos. A aura de cidade sem problemas criada pelo Executivo Municipal destoava dos dilemas que vivam a população antes e também depois das festividades: deficiência de fornecimento da eletricidade, ausência de saneamento e insuficiência na distribuição de água potável continuaram a afligir a população. Enquanto tradição inventada, as comemorações do Centenário da Cidade foram criadas em consonância com o desenvolvimentismo do governo JK e foi se consolidando com o passar dos anos, não como o aniversário de criação da cidade e sim como o de emancipação política. Somente na década de 1960 “que os efeitos práticos da intervenção do Estado como promotor da industrialização” começaram a ser sentidos. A Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 31 viabilização “da infraestrutura energética e de transportes e os incentivos fiscais da SUDENE atraíram à região investimentos industriais em volume expressivo”. “Entretanto, a região não assistiu passivamente ao espetáculo do período”. “A cidade de Montes Claros foi o centro de mobilização das elites regionais em um esforço conjunto para atraírem os investimentos do Estado e se inserirem na política desenvolvimentista”. Referências Bibliográficas: Fontes: ABAIXO-ASSINADO dos habitantes do distrito e freguesia da Barra do Rio das Velhas pedindo a sua elevação à condição de vila. Barra do Rio das Velhas, 19 de dezembro de 1832. Arquivo Público Mineiro. Seção Provincial, SP-PP 212, Caixa 187, doc. 8. ABAIXO-ASSINADO dos habitantes do distrito e freguesia da Barra do Rio das Velhas pedindo a sua elevação à condição de vila. Barra do Rio das Velhas, 23 de dezembro de 1855. Arquivo Público Mineiro. Seção Provincial, SP-PP 213, Caixa 231, doc. 5. MARTINS JÚNIOR, Elder. Parabéns, Montes Claros. Gazeta do Norte, 3 de julho de 2009, p.13. Bibliografia: CARDOSO, Ana Maria Ribas. Oficina do mito: o ISEB nos anos JK. Anais... Rio de Janeiro, 2006. COSTA, Joaquim Ribeiro. Toponímia de Minas Gerais. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1970. GOMES, Ângela de Castro. História, historiografia e cultura política no Brasil: algumas reflexões. In: Bicalho, Maria Fernanda Batista; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva; SOIHET, Rachel (Orgs). Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de História. Rio de Janeiro: Mauad, 2005. MORAES, Maria Fernanda. Dos arraiais, vilas e caminhos: a rede urbana das Minas coloniais. In RESENDE, Maria Efigênia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos (Orgs). História de Minas Gerais – as minas setecentistas. Belo Horizonte: Autêntica-Companhia do Tempo, 2007, v. 1. PAULA, Hermes de. Montes Claros, sua história, sua gente e seus costumes. Montes Claros: Pongetti, 1979. PEREIRA, Laurindo Mékie; OLIVEIRA, Marcos Fábio Martins. A invenção do 3 de julho em Montes Claros. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes Claros, v.5, n.1, jan-jun.2003. PEREIRA, Laurindo Mékie. A cidade do favor: Montes Claros em meados do séc XX. Montes Claros: Editora Unimontes, 2002. SANTOS, Joaquim Ferreira dos. 1958: o ano que não deveria terminar. 5º ed. Rio de Janeiro: Record, 1998. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 32 A inserção política dos intelectuais românticos e o debate sobre a escravidão e a força de trabalho: o caso de Francisco de Salles Torres Homem (1831-1839) Bruno Silveira Paiva Mestrando em História pela UFSJ Bolsista CAPES/REUNI brunopaiva-bq@hotmail.com Resumo: Esta pesquisa busca lançar luz sobre o debate acerca da escravidão e das alternativas da força de trabalho entre os anos de 1831 a 1839 no Brasil Imperial. Neste momento, em que o Brasil se lançava na corrida para se constituir como uma nação moderna, a questão envolvendo a relação entre um Estado-nacional de caráter liberal e a escravidão era temática importante nos discursos dos homens públicos. Na historiografia brasileira contemporânea há duas vertentes de análise, uma que aponta a existência de compatibilidade entre os termos nação, liberalismo e escravidão para o Brasil do século XIX, e outra que aponta a incompatibilidade entre os termos após a independência. A partir destas diferentes perspectivas de análise, esta pesquisa busca traçar outras posturas internas à elite, que mostram uma relação tensa e dúbia entre nação e escravidão, impedindo tanto uma síntese que minimize as tensões internas como uma incompatibilidade entre os termos. Sendo assim, com a finalidade pensar a postura antiescravista, compartilhada por muitos homens públicos do Brasil Imperial, temos como objeto central da pesquisa os escritos de Francisco de Salles Torres Homem, nos periódicos em que foi redator durante os anos de 1837 a 1839, no caso o Jornal dos Debates Políticos e Literários no ano de 1837 e Aurora Fluminense em 1838 e 1839. Palavras-chave: imprensa periódica, escravidão, nação. Resumen: Esta investigaciónpretendearrojar luz sobreel debateacerca de la esclavitudy las alternativas dela mano de obraentre losaños1831a1839 enel Brasil imperial. En este momento, en la que Brasilfue lanzadoen la carrerapara calificar comouna nación moderna, el tema que involucra ala relación entre el Estado-nación de carácter liberal y la esclavitudfuetema importante enlos discursosde los hombres públicos. En la historiografíabrasileña contemporánea, hay dos formasde análisis: unoque apunta ala existencia decompatibilidad entre lostérminosde la nación, el liberalismo y la esclavituda laBrasildel siglo XIX, y otroque apunta auna incompatibilidad entrelos términosdespués de la independencia. A partir de estasdiferentes perspectivas deanálisis, estainvestigación tiene como objetivoelaborarotras posicionesdentro dela élite, que muestran una relación tensay ambiguaentre la nación yla esclavitud, evitando tantouna síntesisque reduzcan al mínimolas tensiones internascomouna falta de coincidenciaentre los términos. Por lo tanto,con el fin deque lapostura anti-esclavitud, compartida por muchoshombres públicosdelBrasilImperial, tenemos como el objeto central deestudio delos escritos deFrancisco deSallesTorresHomem, en lasrevistas en las quefue editordurante los1837años para1839, elsi elDiariode los debates políticosy literarios en1837 yAuroraFluminenseen1838 y 1839. Palabras clave:prensa periódica, esclavitud, nación. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 33 Introdução Esta pesquisa26 busca lançar luz sobre o debate acerca da escravidão e das alternativas da força de trabalho entre os anos de 1837 a 1839 no Brasil Imperial. Nesses anos, que fazem parte do período regencial (1831-1840), época marcadamente agitada e conturbada da história do Brasil, as discussões em torno do que viriam a ser o Estadonacional brasileiro se faziam presentes em todas as instâncias da sociedade, sendo o debate acerca da escravidão elemento determinante na formação da identidade nacional. Nesse momento, em que o Brasil se lançava na corrida para se constituir como uma nação moderna, a questão envolvendo a relação entre um Estado-nacional de caráter liberal e a escravidão era temática importante nos discursos dos homens públicos do país. Na historiografia brasileira contemporânea, alguns trabalhos já apontam a existência de compatibilidade entre os termos nação, liberalismo e escravidão para o Brasil do século XIX, sendo um dos autores de destaque dessa posição Rafael Marquese. Por outro lado, temos a perspectiva de José Murilo de Carvalho, que aponta a incompatibilidade entre os termos após a independência. A partir dessas diferentes perspectivas de análise, a presente pesquisa busca traçar outras posturas internas à elite, que mostram uma relação tensa e dúbia entre nação e escravidão, impedindo tanto uma síntese que minimize as tensões internas quanto uma incompatibilidade entre os termos. A fim de pensar a postura antiescravista, compartilhada por muitos homens públicos do Brasil Imperial, temos como objeto central da pesquisa a análise dos escritos de Francisco de Salles Torres Homem nos periódicos em que foi redator durante os anos de 1837 a 1839, no caso o Jornal dos Debates Políticos e Literários (JDPL) no ano de 1837 e Aurora Fluminense em 1838 e 1839. Para além desta análise interna, que prioriza o texto e as representações ali contidas, serão explicitados pontos referentes à sua inserção em condições sociais, econômicas e políticas da época, por serem fatores determinantes na produção do discurso sobre a temática da escravidão. Dedicaremos atenção principalmente às redes de sociabilidade pelas quais ele circulou, pois seu estudo é fator central para a história intelectual, permitindo uma reconstituição da evolução do meio intelectual em questão. Entre as redes de sociabilidade 26 O presente artigo é resultado de uma pesquisa de iniciação científica desenvolvida na Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ) entre agosto de 2010 e julho de 2011 sob orientação do Prof. Dr. Danilo José Zioni Ferretti Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 34 que aqui nos interessa, temos a Sociedade Defensora da Liberdade e Independência (SDLIN) do Rio de Janeiro. Discussão bibliográfica Na conformação dos diferentes projetos para a nação, a temática da escravidão aparece como elemento determinante na formação da identidade nacional, conforme apontado por István Jancsó e João Paulo Pimenta. Pois o escravismo era a “variável a determinar o horizonte mental desses homens, igualando-os quanto a esse ponto, para além das diferenças de visões de futuro e da cultura política que professavam” (JANCSÓ; PIMENTA, 2000: 172). Vemos, portanto, que estes autores apontam a proximidade existente entre nação e escravidão no Brasil Império. Seguindo esta linha historiográfica, que aponta para a compatibilidade entre os termos nação, escravidão e liberalismo no Brasil do século XIX, temos Rafael Marquese. Ao estudar as práticas e discursos legitimadores do escravismo no Brasil oitocentista, afirma a incorporação, sem grandes tensões e contradições, nos projetos das elites políticas para a elaboração do novo Estado-nacional, a continuidade da escravidão, sendo esta um projeto para o futuro. O entrelaçamento entre uma nação de caráter liberal e a escravidão, segundo Marquese, se daria principalmente pela reafirmação do princípio colonial da soberania doméstica, na qual a gestão dos escravos caberia somente aos senhores, com o Estado interferindo apenas em caso de insurreições ou assassinatos. Este argumento era reforçado nos discursos da economia política da época, que tinha como um dos pontos centrais, defender a separação entre a esfera de ação do Estado e a dos agentes econômicos individuais. Como desdobramento da perspectiva de Rafael Marquese, temos o trabalho de seu orientando Tamis Parron. Se pautando na análise das falas parlamentares tanto no Senado quanto na Câmara dos Deputados, pleiteia a existência de uma política da escravidão. Constituída a partir de “uma rede de alianças políticas e sociais costuradas em favor da estabilidade institucional da escravidão” (PARRON, 2009: 11-12), que fazendo uso dos órgãos do Estado procuraram beneficiar os interesses das classes senhoriais. E seria a partir da ascensão do movimento do Regresso, em 1835, que esta prática ganharia sua base política. Primeiramente sob a forma da política do contrabando negreiro (1835-1850), surgindo posteriormente a política da escravidão na era pós-contrabando (1850-1865). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 35 Em posição contrária aos autores acima referidos, temos a perspectiva de José Murilo de Carvalho, visto que ele aponta para existência de incompatibilidade entre nação e escravidão. Segundo este autor, após a independência, a escravidão passa a ser tratada não mais por autoridades coloniais, mas por cidadãos preocupados com a formação da nação, “a liberdade não é vista como problema individual, mas como questão pública” (CARVALHO, 1998: 35). Sendo assim, entra em pauta a dimensão da “razão nacional” como principal força de crítica a escravidão, que no caso brasileiro, substituiu o papel do cristianismo e dos ideais ilustrados na crítica a escravidão em outros contextos. Mesmo reconhecendo a contribuição dos estudos acima referidos, o presente trabalho busca ampliar o quadro de referências para o tratamento da temática escravista no Brasil Império. Sendo assim, daremos enfoque a outras posturas internas a elite, trazendo para o debate o posicionamento de grupos que entendiam nação e escravidão como elementos paradoxais, buscando assim reintroduzir o caráter contraditório e tenso da relação entre estes dois termos nos moldes do liberalismo. A atenção dada ao mundo texto se faz imprescindível no presente trabalho, visto que ele é central para a história intelectual, pois esta “passa obrigatoriamente pela pesquisa, longa e ingrata, e pela exegese de textos, e particularmente de textos impressos, primeiro suporte dos fatos de opinião, em cuja gênese, circulação e transmissão os intelectuais desempenham um papel decisivo”(SIRINELLI, 2003: 245). Mas a história intelectual não se pauta somente na análise interna do texto, ela privilegia também uma abordagem externa a ele, pois é necessário saber em quais condições econômicas, políticas e sociais que propiciaram sua elaboração e eventuais ressignificações. E nas palavras de Dosse: “a história intelectual só me parece fecunda no momento em que pensa juntos os dois pólos” (DOSSE, 2004: 299). Daí decorre a necessidade de darmos atenção as redes de sociabilidade pelas quais Torres Homem circulou, pois de acordo com Sirinelli, as redes de sociabilidade nos dizem sobre microclimas que organizam o mundo intelectual, permitindo uma reconstituição da evolução de tal meio. “E, assim entendida, a palavra sociabilidade reveste-se portanto de uma dupla acepção, ao mesmo tempo “redes” que estruturam e “microclima” que caracteriza um microcosmo intelectual particular”(SIRINELLI, 2003: 252). E para Dosse, esta abordagem nos permite desfazer da idéia bourdieusiana de sociabilidade apenas como estratégia de otimização dos interesses e conquista de poder. Coloca outros parâmetros em jogo, fazendo valer a complexidade e a contingência do Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 36 campo intelectual. “Assim, a leitura em termos de interesse pode ser substituída por uma abordagem que valorize o campo intelectual como campo magnético, sobretudo em torno do conceito de afinidade eletiva, como faz Michael Löwi”(DOSSE, 2004: 303). O jornalista como intelectual no Brasil Império e suas sociabilidades A figura do homem público de letras, intelectual que exercia atividades de jornalista (redator) ou panfletário (gazeteiro), surge entre meados do século XVIII e início do século XIX. Com heranças da República das Letras, em conjunto com as noções de modernidade política, entre elas a liberdade de expressão em espaços públicos, irá fazer uso da imprensa de opinião, também surgida neste contexto, para propagar suas idéias. Este novo ator histórico estava imbuído de pretensões tanto políticas como pedagógicas, “é o tipo do escritor patriota, difusor de idéias e pelejador de embates e que achava terreno fértil para atuar em uma época repleta de transformações”(MOREL, 2005: 167). Mas a existência de um meio intelectual, no qual o jornalista estaria imerso, exigia a existência de um espaço público. No Brasil, a cidade do Rio de Janeiro é um dos espaços públicos em transformação no século XIX, portador de uma dimensão política e de extrema importância para se entender os princípios da nação que estava se forjando. Frente ao papel marcadamente político que a opinião pública recebe, os jornalistas irão se apresentar como porta vozes da mesma. Eles seriam os agentes propagadores do esclarecimento em várias direções, visando construir uma opinião, reforçando a concepção de que estariam imbuídos de uma missão civilizadora, esclarecedora e pedagógica. No Brasil, a vacância do trono em 1831 após a abdicação de D. Pedro I, significou um relativo enfraquecimento do poder monárquico, a partir daí, a opinião pública se apresenta com tom mais exacerbado, fruto não só do crescimento da imprensa periódica, mas também pela proliferação de associações filantrópicas, maçônicas e patrióticas. E será sobre um destes espaços de sociabilidade emergentes, a Sociedade Defensora da Liberdade e Independência do Rio de Janeiro (SDLIN), que passaremos a dedicar atenção, visto ser este local um dos principais núcleos de aglomeração dos adeptos do liberalismo moderado, entre os quais se encontra Torres Homem. A Sociedade Defensora da Liberdade e Independência foi a pioneira entre estas novas formas de associação de caráter político, surgida primeiramente na cidade de São Paulo, em 29 de março de 1831, e posteriormente atingindo todo o país. A SDLIN do Rio de Janeiro foi fundada em 10 de maio de 1831 sobre a tutela do exaltado Antonio Borges Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 37 da Fonseca, que após a abdicação se converteria momentaneamente em moderado. Ela funcionaria, tendo como objetivos primordiais a defesa da liberdade e da independência nacional, princípios estes evocados de forma vaga. Porém, segundo Marcello Basile, ela contribuiria “para a preservação da ordem e da tranqüilidade pública, tão periclitante na época, constituindo-se em sustentáculo da Regência no seio do espaço público”(BASILE, 2004: 85). Assunto que diretamente nos interessa, e sem dúvida o mais polêmico, a questão do tráfico negreiro para o Brasil, foi colocada em pauta por Evaristo em janeiro de 1832. Ele então propôs a criação de uma comissão para averiguar e denunciar os abusos contra a lei de 7 de novembro de 1831, que proibia o comércio de escravos. O mesmo teor tinham as emendas propostas por Camara Lima e Januário da Cunha Barbosa, o primeiro queria por parte da Regência, sanções mais severas aos navios negreiros, e o segundo, pleiteava o envio de uma representação ao governo afim de protestar acerca da entrada ilegal de africanos (BASILE, 2004: 102-103). As propostas acima referidas deram fruto ao requerimento enviado à Regência em fevereiro de 1834, tendo como pontos principais o desrespeito ao tratado anglo-brasileiro de 1826 e à lei antitráfico de 1831. Denunciavam a continuidade do tráfico por toda a costa brasileira, a conivência de autoridades locais subornadas, pediam a ampliação da pena de pirataria para pessoas de outras nacionalidades, e também a necessidade de espalhar informantes por toda a costa, que ficariam encarregados de falar para onde estariam indo os africanos desembarcados e acionar os cruzeiros para a interceptação dos navios negreiros (BASILE, 2004: 104). Apesar da discordância de qual a melhor forma para combater o tráfico de escravos, havia na Defensora, a hegemonia da idéia de que a continuidade do tráfico era responsável pelo não andamento da civilização no Brasil, pois ela mantinha situações como a apatia do homem livre frente ao trabalho, estagnação do capital, depravação moral das famílias e atraso na indústria do país. Para reverter esta situação, era necessário promover o incentivo à vinda de imigrantes europeus, visto que estes teriam melhores condições intelectuais e morais do que os africanos para promover o tão ambicionado progresso da nação. Partiu também de Evaristo a idéia de promover um concurso, que oferecia prêmio de 400$000 mil réis a quem apresentasse a melhor memória analítica do tráfico de escravos, mostrando seus inconvenientes e odiosidades. Porém, até o fechamento da Defensora em Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 38 1835 não se tem nenhuma outra informação sobre o concurso, não sendo possível saber quem foram os candidatos. Sabe-se apenas que a Memória analítica acerca do comércio de escravos e acerca dos males da escravidão doméstica, de autoria de Frederico Leopoldo Cézar Burlamaque, foi preparada para o concurso. “Publicada somente em 1837, é possível que tenha sido a vencedora do concurso, mas nada garante, pois nem mesmo a obra apresenta qualquer menção a isto”(BASILE, 2004: 105). Mesmo não tendo informações precisas sobre o concurso promovido pela Defensora, conforme explicitado acima, colocamos como hipótese, que o texto escrito por Torres Homem, Considerações econômicas sobre a escravatura, publicado na revista Nitheroy, em 1836, foi outro desdobramento de tal concurso. Esta hipótese se coloca pelo fato de o texto em questão preencher todos os quatro pontos do programa relativo ao concurso, e ter sido publicado no contexto do mesmo, por um autor inserido na sociabilidade da SDLIN. Salles Torres Homem não pode acompanhar de perto todo o processo de fragmentação que deu fim a SDLIN do Rio de Janeiro e ao partido moderado, pois desde o ano de 1833 ele já se encontrava na França, como adido da legação diplomática do Brasil em Paris, ocupação conseguida por intermédio de seu padrinho político, Evaristo da Veiga. Durante os anos vividos em Paris, Torres Homem, conjuntamente com Domingos José Gonçalves de Magalhães e Manoel de Araújo Porto Alegre, realizou o projeto de publicação da Nitheroy – Revista Brasilense de Ciências, Letras e Artes. Essa obra é considerada o marco de fundação do movimento intelectual romântico no Brasil Império, com seus dois únicos volumes sendo publicados em 1836. Na volta ao Brasil, em 1837, Torres Homem, Gonçalves de Magalhães e Araújo Porto Alegre deram continuidade a suas idéias por meio da imprensa periódica. Eles criaram então, no Rio de Janeiro, em maio, o Jornal dos Debates Políticos e Literários (JDPL), cabendo a Torres Homem o papel de redator. No presente trabalho, como a centralidade gira em torno da questão da escravidão, será dada atenção apenas aos artigos que versem sobre tal temática, procurando levantar quais os principais argumentos levantados por Torres Homem para combater a instituição escravista, ao mesmo tempo, pretende-se situar o cenário político no qual ele escreve. A moderação no Jornal dos Debates Políticos e Literários Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 39 No fim de 1836 a regência do padre Diogo Antônio Feijó vivia um momento de grande instabilidade. Evaristo da Veiga, que era um dos seus principais aliados políticos e líder do governo na Câmara, decidiu afastar-se por não aceitar o arbítrio do regente na formação do governo. O rompimento final veio no início de 1837, após uma conversa com Feijó, na qual expôs suas insatisfações. Como Evaristo era o principal líder e articulador político de Torres Homem e seu grupo, e numa demonstração de fidelidade a ele, ganha ressonância nas páginas do JDLP, já em seu primeiro número, uma crítica as práticas políticas do governo Feijó. Esta atitude pode ser entendida como uma aliança pontual com o grupo articulado em torno de Pereira Vasconcellos, que desde a derrota nas eleições para regente passou a ser o líder de oposição ao governo Feijó. Tal aliança era pontual porque, no que diz respeito a escravidão e ao tráfico de escravos, Torres Homem mantém distância das idéias pró escravistas de Vasconcellos e seu grupo. O distanciamento nesta questão se faria presente nas páginas do JDPL, mesmo que de forma tímida, procurando não polemizar muito com o grupo do qual se encontrava próximo no momento. Sendo assim, os artigos sobre a escravidão que aparecem no JDPL, parecem se pautar apenas na desqualificação da instituição escravista, deixando de lado a questão do tráfico de escravos. Buscando maior publicidade para o artigo que havia publicado na Nitheroy em 1836, Considerações Econômicas sobre a Escravatura, Torres Homem reproduz trechos do mesmo nas páginas do JDPL. A primeira parte aparece no n°5, de 17 de maio de 1837, trazendo o paralelo entre o Norte e o Sul dos Estados Unidos. E a segunda parte vem no n° subseqüente, em 20 de maio de 1837, apresentando a influência desastrosa que a escravidão exerceu sobre a indústria dos Romanos. O exemplo dos Estados Unidos aparecia com o intuito de demonstrar como um país, com a mesma origem política, religiosa e social, apresentava enorme diferença no desenvolvimento e grau de riqueza entre suas regiões. O Sul, apesar de melhor clima e solo mais fértil, era inferior em prosperidade e opulência do que o Norte. Mas a diferença entre as duas regiões não derivava das leis tarifárias, como argumentavam os sulistas. Para Torres Homem “o verdadeiro motivo, a causa real daquele resultado está em outra parte mui diversa: procurai-a na escravatura, e nas suas funestas conseqüências” (JDPL, 17/05/1837: n°5). Entre os males provocados pela escravidão estaria o atraso sobre a atividade industrial das sociedades. Pois o escravo, não produzindo em benefício próprio e sem Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 40 perspectiva de futuro entrega-se a inércia e a preguiça, não tendo, portanto, o desejo de difundir sua capacidade produtora. Somente o trabalhador livre seria capaz de propiciar o desenvolvimento das capacidades industriais de um país. Isto porque, diferentemente do escravo, ele produz em benefício próprio, na busca por melhorar o seu destino, procurando assim desenvolver suas capacidades produtoras. Ou seja, a escravatura se apresenta como um instrumento ruinoso de produção pois, “o obreiro livre produz incomparavelmente mais que o escravo: do mesmo modo que a liberdade do trabalhador favorece a potencia da indústria, e o desenvolvimento da riqueza, a servidão produz o resultado inverso”(JDPL, 17/05/1837: n°5). Tomando como referência Adam Smith, Torres Homem também enfatizou a superioridade do trabalhador livre em relação ao escravo. Esta superioridade poderia ser verificada no fato do trabalhador livre ser capaz de trabalhar nos diferentes ramos da indústria, produzir sempre mais e em melhor qualidade, por sua inteligência e habilidade, condição da qual o escravo não desfrutava, devido ao embrutecimento causado por seu estado de servidão, “que o impedem de levantar-se acima de uma estúpida rotina, e de aplicar a produção outro trabalho além do físico, maquinal, esclarecido apenas de um pálido reflexo de inteligência”(JDPL, 17/05/1837: n°5). Recairia também sobre a escravidão, a responsabilidade de criar entre os homens da classe livre o desprezo pelas ocupações industriosas, valorizando apenas as profissões que exerçam influência e ação sobre outros homens e a sociedade. O habitante do Sul nasce como empregado público, e nada mais o serve, desdenha das profissões industriosas e as entrega aos negros. Já o do Norte, “que escravos não possui, nasce agricultor, manufatureiro, negociante, artista”(JDPL, 17/05/1837: n°5). Fazendo uso da obra de Tocqueville, publicada em 1835, Torres Homem ressalta as diferenças entre o Sul e o Norte. Na perspectiva de Tocqueville, a escravidão era mais funesta ao senhor do que ao escravo, esta circunstância poderia ser verificada facilmente seguindo o rio Ohio. Em uma margem a Kentucky escravista, inundada de florestas primitivas, a sociedade parece adormecida, só a natureza mostra vida. Do outro lado a Ohio livre, movimentada, cheia de indústrias, campos cultivados e abastança, o homem se encontra contente porque trabalha. Por fim, Torres Homem ataca a idéia de que o trabalho escravo é gratuito ao senhor. Pois se gastava muito na compra, manutenção de alimentação e vestimenta, cura de moléstias e constante necessidade de reposição do contingente, devido a alta taxa de Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 41 mortalidade entre os escravos africanos. Argumenta também ser a escravidão responsável pelo embargo do mercado consumidor de um país, outro meio de extrema importância para a produção de riquezas e prosperidade material. Entre os Romanos, a maciça introdução de escravos fizera com que eles perdessem o gosto pela indústria e agricultura, “que de primeiro tanto haviam honrado”. E continua dizendo que, “de dia em dia desmedrou a vida dos campos, e o amor do trabalho, e que a introdução de escravos torceu para o ócio o animo da população Romana”. A escravidão também gerava a concentração de terras, eliminando os pequenos proprietários livres, e como decorrência, tinha-se a completa decadência da agricultura (JDPL, 20/05/1837: n°6). Torres Homem reforçava, com o exemplo romano, o empecilho que a escravidão representava no desenvolvimento da indústria. Em suas palavras, “a mecânica prática dos antigos consistia essencialmente em um espantoso consumo de homens empregados como força muscular” (JDPL, 20/05/1837: n°6). Sendo assim, seria anacronismo para as sociedades modernas o uso do escravo como máquina. Pois os progressos na indústria não se dão mediante o trabalho muscular, mas sim pelo desenvolvimento das forças intelectuais, tendo o homem que criar as condições para operar sobre a matéria pelo intermédio da matéria. Esta idéia se faz presente no seguinte trecho: Recorrendo à potência do vapor, e das maquinas em vez do trabalho muscular do escravo, a sociedade moderna teria feito precisamente aquilo que reclamam os interesses da indústria, e o respeito para a natureza do homem, isto é, o operar sobre a matéria pelo intermédio da matéria, como condição única de sucesso, e reservar a intervenção do trabalho dos órgãos físicos a não ser outra coisa mais do que a expressão da inteligência, como na marcha do navio intervém a mão do piloto (JDPL, 20/05/1837: n°6). Após quatro meses sem aparecer nas folhas do JDPL, a temática da escravidão ganha espaço novamente no mês de outubro, nos números 36 e 37. Nestes dois números, aparecem dois artigos comentando a obra de Francisco Burlamaque, Memória analítica acerca do comércio de escravos e acerca dos males da escravidão doméstica, que havia sido publicada no ano de 1837. Nas linhas destes artigos aparecem palavras elogiosas ao trabalho de Burlamaque, por ressaltar a relutância do espírito humano as idéias de progresso, decorrente dos longos anos vividos sob os mesmos auspícios de uma razão pública. Tal é a posição moral do Brasil relativamente à servidão doméstica. Nós vivemos desde três séculos debaixo do jugo do prejuízo, que nos afigura a indústria servil como única possível e lucrativa sob o céu ardente dos trópicos, e opõem-se com a maior contumácia a toda inovação no sistema de trabalho. Contra estes prejuízos as leis penais, todas as medidas de repressão serão sempre ineficazes e impotentes, tanto que uma revolução moral não se operar Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 42 nos espíritos, e mudar os sentimentos públicos a este respeito (JDPL, 07/10/1837: n°36). Aponta que mesmo não se tratando de um trabalho original, por ser uma versão resumida do quarto volume do “Tratado de Legislação” de Charles Comte, a obra deixa de ser importante. Ela não fica devendo em nada nos pontos que se referem a imoralidade do comércio de escravos, a vantagem do trabalho livre sobre o escravo e nas influências que exercem sobre os costumes, civilização e liberdade. Ressalta a importância da Memória em demonstrar como a existência da escravatura está em desarmonia com os sentimentos morais e religiosos. Mas a parte de maior relevância da Memória vem em seu terceiro capítulo, quando se presta a mostrar o retardo causado pela escravidão na produção das riquezas de uma sociedade. Até o fim de 1837, momento no qual Torres Homem encerra sua atuação como redator do JDPL, a temática da escravidão não volta a ter espaço nas folhas deste periódico. Nota-se, portanto, que os artigos ali contidos parecem se pautar apenas na desqualificação da instituição escravista, deixando de lado a questão do tráfico de escravos. Vale ressaltar, que em setembro de 1837 Feijó havia renunciado ao cargo de Regente. Araújo Lima então assumiu o posto e formou o Gabinete de 19 de setembro, no qual estavam presentes figuras como Bernardo Pereira de Vasconcellos, Joaquim José Rodrigues Torres, José da Costa Carvalho e Calmom du Pin, dando início a política do Regresso nos órgãos do Estado. Tal governo se caracterizou pela proximidade de seus líderes com a classe senhorial, decorrendo daí uma prática política de incentivo a continuidade da escravidão e de intensificação do contrabando de escravos, que havia sido proibido com a lei de 7 de novembro de 1831. A Aurora Fluminense e a oposição ao Regresso Em maio de 1838, quando as práticas políticas do Regresso já estão em curso, Torres Homem refunda a Aurora Fluminense e assume o papel de redator. Esta folha, que havia circulado até o final de 1835 sob a direção de Evaristo da Veiga, reaparece como um dos periódicos de oposição política ao Regresso. Nota-se, portanto, que a aliança existente em 1837 entre Torres Homem e o grupo articulado por Vasconcellos, que visava acabar com o governo Feijó, havia sido desfeita. Frente a esta situação, Torres Homem estabelece como um dos pontos centrais de oposição política ao Regresso, o debate a cerca da escravidão e do tráfico de escravos. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 43 Sendo assim, no número 10 da Aurora, em 23 de maio de 1838, aparece um artigo no qual se definem os pontos que diferenciam politicamente a oposição do Ministério. Entre eles, “a questão da escravatura é uma das mais transcendentes das que desde alguns anos ventila-se no seio de nosso país”(Aurora Fluminense, 23/05/1838: n°10). Se fazia necessário então combater o contrabando de escravos, que a partir da ascensão do Gabinete de 19 de setembro, havia recebido um alento desconhecido nos anos anteriores. Segundo Torres Homem, esta tolerância para com o contrabando de escravos, seria fruto da conivência do “principal Ministro do Gabinete”, no caso Pereira Vasconcellos, que ocupava as pastas da Justiça e do Império, pois suas idéias e sentimentos “são mais que muito favoráveis a continuação deste horroroso flagelo de nosso país” (Aurora Fluminense, 25/05/1838: n°11), e que “nos últimos anos pronunciou-se formalmente em favor dos erros dos plantadores” (Aurora Fluminense, 23/05/1838: n°10). A continuidade do contrabando de escravos servia apenas para trazer prejuízos públicos, mas “a popularidade do Governo requer que se serre os olhos sobre a audácia do contrabando”. Porém, “os cidadãos superiores aos erros de seu tempo, e que vêm não só uma lepra corruptora da civilização do país, mais ainda um obstáculo imenso aos progressos da produção de riquezas, deploram profundamente a continuação desse tráfico”(Aurora Fluminense, 23/05/1838: n°10). Portanto, o melhoramento da condição material do país passava incondicionalmente pela substituição do trabalho servil pelo trabalho livre, visto que, a cessação do tráfico de escravos não é simplesmente um progresso moral, é ainda uma revolução industrial, que se fora efetuada, mudaria em poucos anos a face do Brasil. A presença da escravatura desonra o trabalho, afugenta o obreiro estrangeiro, impossibilita os progressos da agricultura, e das artes mecânicas, tão raras ou imperfeitas entre nós ” (Aurora Fluminense, 01/06/1838: n°14). Intentando fortalecer o combate ao tráfico de escravos, Torres Homem da publicidade nas folhas da Aurora, às constantes pressões britânicas para que o Brasil dê fim a este comércio ilícito. Cita uma matéria do jornal Times de Londres, a respeito de uma petição feita pelo Lord Bronghan, com 17.000 assinaturas de pessoas importantes de Leeds contra o comércio de escravos. Nesta petição pede-se grande atenção ao Porto do Rio de Janeiro, que em um só mês teve o desembarque de 4.500 escravos (Aurora Fluminense, 01/06/1838: n°14). Tem-se também a referência a uma nota do representante da Majestade Britânica na Corte, Sr. Ouseley, na qual faz reclamações ao Gabinete sobre o contrabando de africanos. E sem fazer cerimônia, “não repara em acusar pelo modo o mais explícito o Sr. Ministro da Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 44 Justiça de conivência e patrocínio a respeito daquele tráfico; e que em toda a sua nota a uma virulência tão estranha como ofensiva do decoro do governo Imperial”. Alguns ministros viram a importância desta nota, e que tratá-la com indiferença “equivaleria a expor o governo à reiteradas humilhações, as quais em último resultado refletem-se sobre a nação, cuja dignidade eles tinham por missão defender e sustentar” (Aurora Fluminense, 21/02/1839: n°112). Outra investida contra o tráfico de escravos aparece na Aurora de 11 de junho de 1838, quando abre-se espaço para uma carta enviada por leitor desconhecido. Na dita carta, o tráfico clandestino de escravos aparece como responsável por provocar, entre a população do Rio de Janeiro, vários males a saúde. Pois os escravos estavam sendo introduzidos diretamente no meio da população, com todas as moléstias adquiridas nos navios, e como resultado tinha-se “o desenvolvimento espantoso, que ultimamente se tem visto de moléstias tais com as bexigas, febres, infecções de olhos, etc, que vão ceifando a nossa descuidada população”. O autor da carta também cobra providências da própria nação para acabar com este comércio tão infame, antes que uma nação estrangeira resolva impor leis e ferir a dignidade de nosso país (Aurora Fluminense, 11/06/1838: n°17). O artigo de maior relevância contra a instituição escravista e o contrabando de escravos viria nas páginas do número 140 da Aurora, de 14 de maio 1839. Torres Homem começa alertando sobre a intensa atividade do tráfico de escravos, que continuava por toda a costa brasileira. Responsabiliza os lavradores, negociantes, Ministros, Juízes de Paz e autoridades subalternas de “comerciarem, ou de darem favor ao comércio de carne humana, aliciados uns pelo lucro, outros pelos perigos que vão correr, si pretenderem resistir a sanha do interesse individual, afrontar a massa dos erros”. Diz também, que tal comércio acontece intensamente porque os traficantes sabem da impunidade (Aurora Fluminense, 14/05/1839: n°140). Fala do prejuízo público com este contrabando, mas que ainda não imprime vergonha sobre esta espécie de crime. E para por termo a esta prática, confia na persuasão, mesmo que seja lenta e seus resultados incertos, “e muito se terá feito, si o pré-conceito favorável a introdução da escravatura no Brasil for substituída por idéias mais sãs e judiciosas” (Aurora Fluminense, 14/05/1839: n°140). Seria necessário ilustrar a massa dos cidadãos para se atentar a desumanidade deste comércio, o prejuízo causado a indústria do país e a cada um destes cidadãos. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 45 Chama os escravos de máquinas caducas, sem interesse pelo aperfeiçoamento dos métodos de produção, sem serventia para a arte e o custeio das manufaturas, que todos os anos levam para debaixo da terra grande quantidade de capitais. Por estes motivos, a escravidão é um fator que contribui para o atraso da lavoura e da indústria do país, perpetuando a ignorância e a apatia dos cultivadores. E estes, pela facilidade de achar a mão estas máquinas já feitas, impede que se lancem os olhos para tantos melhoramentos, introduzidos pela atividade do espírito Europeu nos processos da indústria, e que procuremos para o Brasil uma povoação melhor, convidando de outras nações colonos, que por conta de particulares venham cultivar nosso solo (Aurora Fluminense, 14/05/1839: n°140). No que diz respeito à corrupção dos costumes, outro argumento em voga na época para desqualificar a escravidão, Torres Homem identifica o desdenho da classe livre pelo trabalho, visto sempre como uma condição servil, o vício levado ao seio das famílias, afinal muitas crianças são confiadas a escravos que lhes dão exemplos de depravação e imoralidade, “só pedagogos da infâmia, e correio dos crimes”. E a pior das influências, seria o desdobramento da falta de moralidade na esfera pública. Afinal, como será livre e moral em carreira pública aqueles homens sempre acostumados com o despotismo e a tirania na esfera doméstica? Suas idéias de liberdade não se ressentiram destes hábitos? Como ratificar o coração dos homens com as relações entre senhores e escravos? Que facilidade aberta para toda a espécie de desordens morais! [...] E todavia, continua-se, sem consciência, e fechando-se os olhos aos perigos de um futuro medonho, a encher nosso país de recrutas da escravidão, cujo número sem exageração computasse a mais de 50 mil cada ano! (Aurora Fluminense, 14/05/1839: n°140) Torres Homem encerra a publicação da Aurora Fluminense em julho de 1839. Posteriormente, ele irá assumir a redação do jornal O Despertador, mas que pelo curto espaço de tempo para realização da presente pesquisa, não foi possível realizar a análise do mesmo. Considerações finais No Brasil Império, a fase que compreende o período regencial (1831-1840), foi marcada pelo grande número de projetos políticos visando à implementação do Estadonacional brasileiro. E em todos eles, a temática da escravidão aparece como elemento determinante, seja para se pensar suas relações com uma nação de caráter liberal, ou na formação da identidade nacional. Neste momento, assiste-se também uma expansão do espaço público, ganhando em importância a imprensa periódica. Frente a estas duas circunstâncias, os jornalistas Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 46 apresentam-se como intelectuais capazes de dotar a nação da dimensão simbólica da qual ela precisa ser investida, e mais uma vez a temática da escravidão se faz presente. Presença esta, que pudemos notar na análise dos periódicos em que Francisco de Salles Torres Homem, figura central de nossa pesquisa, atuou como redator durante os anos de 1837 a 1839, no caso o Jornal dos Debates Políticos e Literários em 1837, e Aurora Fluminense entre 1838 e 1839. Nos artigos analisados, foi possível detectar que as idéias antiescravistas com as quais teve contato no Rio de Janeiro, principalmente pelas estreitas relações com Evaristo da Veiga e sua convivência nos círculos do liberalismo moderado, com destaque para SDLIN do Rio de Janeiro, entram em voga na postura assumida por ele para combater a instituição escravista no Brasil. Daí a importância das redes de sociabilidade pelas quais Torres Homem circulou. Por fim, no que diz respeito aos argumentos usados por Torres Homem para desqualificar a instituição escravista e a continuidade do contrabando de escravos, pode-se notar a centralidade do argumento de atraso material da nação causado pela escravidão. E a resolução desta situação viria com substituição do trabalho servil pelo trabalho livre, mediante a inserção de colonos europeus por todo o território brasileiro. Referências Bibliográficas: ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989. 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Senhores, letrados e o controle dos escravos, 1660-1880. São Paulo: Cia das Letras, 2004. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 47 MOREL, Marco. As transformações dos espaços públicos. Imprensa, atores políticos e sociabilidades na Cidade Imperial (1820-1840). São Paulo: Hucitec, 2005. PARRON, Tamis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Dissertação (Mestrado em História) Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas, SP: Editora da Unicamp, CECULT, 2000. SIRINELLI, François. “Os intelectuais”. In: RÉMOND, Réne. Por uma história política. Rio de Janeiro: FGV, 2003. VIANNA, Hélio. “Francisco de Sales Torres Homem, Visconde de Inhomirim”. 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Apesar de todos os estudos da historiografia atual ainda não temos nenhum trabalho sistemático baseado nas representações construídas sobre “o lugar” distrito diamantino. Assim, para completar o esforço historiográfico atual, que vem problematizando cada vez mais as questões referentes ao distrito diamantino, é de fundamental importância analisar as representações cartográficas construídas sobre o distrito diamantino como peças fundamentais de sua própria história. Palavras-chaves: Cartografia, Distrito Diamantino, Território. Abstract:The purpose of this communication is to present to their classmates the Postgraduate the initial steps of the research that begins to be held in MA. Minas Gerais and its natural resources were the object of seeking political solutions to optimize the gains and the presence of the Crown, especially in the diamond district, a region bounded by the metropolis, where the use of cartography was an essential tool that gave way to territorial politics. As a place built from the outside, the space "diamond district" was born and legitimized as such by means of cartographic constructions. Although all studies of historiography today still have no systematic work based on the representations built on "the place" diamond district. Thus, to complete the current historiographical effort, which is increasingly questioning the issues of the diamond district, is of fundamental importance to analyze the cartographic representations built on the diamond district as centerpieces of their own history. Key Words:Cartography, diamond district, territory O objetivo da presente comunicação é compartilhar com os colegas estudantes de pós-graduação e graduação as primeiras pesquisas, dúvidas e as intenções do projeto de mestrado que inicio esse ano. O projeto deriva do desmembramento das pesquisas realizadas ainda na graduação durante a monografia para obtenção de título de bacharel, denominada Despotismo ilustrado e representação cartográfica: as políticas do marquês de Pombal para o distrito diamantino, sob orientação da professora Drª. Júnia F. Furtado. O distrito diamantino, ao longo das aulas e pesquisas na graduação, mostrou-se um lugar de intensas relações, envolto em uma memória de opressão e delimitação não só do espaço territorial, Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 49 mas também social. Dessa forma, um especial interesse foi se formando em torno das representações cartográficas construídas sobre a região “que durante o século XVIII se tornou o centro da extração mundial de diamantes.” (FERREIRA, 2009: 25) Primeiramente, a intenção era utilizar a cartografia como base documental, mas devido a natureza limitada da pesquisa monográfica, acabou-se dando mais ênfase ao seu aspecto ilustrativo do período em questão. A intenção agora em nível de mestrado é focar, mais atentamente, as construções cartográficas que marcaram a história do distrito diamantino durante o século XVIII, ou seja, o objetivo é analisar a cartografia como principal documento histórico da pesquisa, e não mais como um dos vários elementos, muitas vezes apenas ilustrativos, de uma pesquisa histórica. Para isso é preciso tomar os mapas como instrumentos formadores da territorialidade, um tipo de relação que vai além da ligação homem-território, pois não é constituída apenas pela demarcação de espaços, mas pelas relações sociais. A formação do espaço distrito diamantino foi construída e legitimada pelos mapas que realizaram a passagem do significante para o significado, da forma gráfica para o conceito, do uso das formas simbólicas para a tradução da realidade. Assim, é necessário realizar um processo de problematização do espaço para poder dialogar com as fontes cartográficas, “é necessário observar as forças e relações sociais, políticas e simbólicas que fizeram esse lugar colonial, definição de sua territorialidade. A análise (...) requer compreender os mecanismos ou dispositivos de ‘divisão’ do espaço que delimitam o lugar como uma região, em função do seu enquadramento territorial pelo Estado.” (ANDRADE, 2008: 15) Foram selecionados três mapas emblemáticos para serem analisados, e foi a partir deles que o marco temporal foi constituído. Apesar de não serem divididos de forma constante dentro do marco temporal selecionado todos os mapas representam momentos e conhecimentos de grande relevância. Os dois primeiros representam os momentos iniciais da exploração dos diamantes, 1729 e 1731, mas possuem uma diferença na forma de representação marcante, demonstrando claramente que foram construídos por pessoas diferentes, com objetivos totalmente diferentes, e embasados em conhecimentos empíricos distintos. Até chagarmos ao terceiro mapa, temos um longo espaço de tempo muito significativo, pois somente em 1770 encontramos outro mapa sobre o distrito diamantino, construído em moldes parecidos com o segundo, mas, novamente, ele é emblemático como representação fruto de novas preocupações, novos objetivos e conhecimentos sobre a extração dos diamantes. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 50 Figura 1 Mapa 1: Demarcação das terras que produz diamantes, post. 1729. Figura 2 Mapa 2: Carta topográfica entremeias do sertão do Serro frio com as novas minas de diamantes, 1731. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 51 O essencial é ver os mapas não apenas como imagens que se esgotam em si mesmas, mas como fontes históricas muito ricas, principalmente para a história cultural, pois por eles podemos identificar o modo como diferentes lugares e momentos de uma determinada realidade social foram construídos, pensados e lidos. Los mapas nunca son imágenes carentes de valor; excepto en el sentido euclidiano más estricto, por sí mismos no son ciertos o falsos. Tento en la selectividad de su contenido como en sus signos y estilos de representación, los mapas son una manera de concebir, articular y estructurar el mundo humano que se inclina hacia, es promovido por y ejerce una influencia sobre grupos particulares de relaciones sociales. (HARLEY, 2005: 80) Figura 3 Mapa 3: Carta topográfica das terras diamantinas em que se descrevem todos os rios e córregos e lugares mais notáveis que nela se contém, ca. 1770. Essa preciosa pedra já era conhecida e negociada por Portugal desde o início dos descobrimentos devido ao comércio de diamantes que se estabeleceu com as Índias. Desde o século XVII, Portugal concentrava a distribuição de diamantes na Europa, graças à presença de agentes comercias lusos juntos aos rajás das cidades indianas, especialmente em Bornéu e Golconda, de quem compravam as preciosas gemas. (FERREIRA, 2009: 25) Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 52 Dessa forma, com a colonização efetiva portuguesa no Brasil, logo se criou o desejo de aqui descobrir e explorar tão grande riqueza. Principalmente a partir do aumento das expedições para os vários sertões da nova colônia, também foram proliferando as notícias sobre diversas riquezas minerais em especial sobre as esmeraldas, sobre as quais se criou um grande imaginário.27 “Não se sabe ao certo a história dos diamantes no Brasil.” (FERREIRA, 2009: 25) Oficialmente os diamantes foram descobertos em carta de 22 de julho de 1729 quando o então governador Dom Lourenço de Almeida enviou o comunicado a Coroa, mas já se sabia que as pedras estavam sendo exploradas durante toda a década de 1720, inclusive era grande a probabilidade de que o próprio governador estivesse envolvido em tal comércio devido à imensa fortuna que acumulara. Após a descoberta oficial d. João V precisava organizar a exploração e a tributação sobre as pedras. No começo o próprio intendente do ouro era o encarregado pela distribuição e arrematação das lavras, que entre 1729 a 1734 ficaram sob exploração aberta, sendo apenas cobrada uma taxa, bem modesta de 5$000 por cada escravo empregado nas lavras, a taxa de capitação, que sofreu vários aumentos ao longo desses primeiros anos na tentativa de controlar o número de homens nas lavras, saltou dos iniciais 5$000 para 15$000 e depois 40$000 em 1732. Entre 1731 e 1734, período de notícias contraditórias desde que a ordem régia de proibição da mineração de diamantes não foi executada pelo governo da Capitania, os exploradores e negociantes aproveitavam a instabilidade reinantes, na mira do fisco da Coroa e do iminente despeja das lavras, para reputar os valores de datas e de escravos, e especular com os preços dos diamantes. (ANDRADE, 2008: 227-228) Em 1734 a mineração dos diamantes foi suspensa devido à interferência direta da exploração sem controle nas cotações internacionais do quilate, a Coroa apesar da experiência na comercialização das pedras, tinha pouco conhecimento sobre a mineração das mesmas, naquele momento se viu obrigada a interromper a produção para organizar tanto o sistema do fisco como o da exploração. A parada repentina na extração das pedras proporcionou a Coroa um período para repensar sua estratégia em relação à região. Assim no mesmo ano foi enviado para as Minas Gerais Martinho de Mendonça Pina e Proença (1693-1743) para avaliar a situação e Rafael Pires Pardinho, engenheiro-militar, responsável pela demarcação da região produtora. A 27 Uma extensa historiografia trata das várias lendas que percorreram os sertões das minas não só durante o período das expedições dos paulistas, mas que já desembarcaram no Brasil junto com os primeiros portugueses, em busca do sonho do eldorado. As lendas mais famosas giram em torno da Serra do Sabarabuçu ou Serra das Esmeraldas, que estaria no coração do sertão da colônia e guardaria imensas riquezas. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 53 partir desse momento iniciou-se uma estratégica relação entre as políticas de controle da coroa sobre a extração de diamantes e os mapas produzidos sobre a região. A extração das gemas passou a ser cuidadosamente delimitada e para exercer tal controle era imprescindível obter um conhecimento o mais exato possível da região. Assim foi criada a região da demarcação diamantina ou distrito diamantino que compreendia as áreas até então conhecidas, onde se poderia extrair os diamantes, e à medida que novas descobertas fossem feitas, seriam incorporadas a demarcação. Era uma área administrativa especialmente criada para controlar a extração das pedras, com sede no arraial do Tejuco sob a autoridade do intendente dos diamantes, cujo primeiro foi justamente Rafael Pires Pardinho. Com o fim do trabalho de reorganização da extração de diamantes, em 1739 o novo governador Gomes Freire de Andrade foi acompanhado de sua comitiva, especialmente ao arraial do Tejuco para reabrir a exploração e realizar o novo processo de extração, que seria agora sob a forma de contratos, um sistema que consiste no arremate, por qualquer vassalo ou grupo dos mesmos, do direito exclusivo de minerar e comercializar os diamantes. Dessa forma a Coroa pretendia obter um controle maior sobre a mineração e ao mesmo tempo garantir a arrecadação com a antecipação do pagamento do lance do contrato. Até o ano 1753 foram três contratos, os dois primeiros foram arrematados pelo sargento-mor João Fernandes de Oliveira, primeiramente em sociedade com Francisco Ferreira da Silva, depois sozinho, em 1740 e 1744. Em 1747 o contrato foi arrematado por Felisberto Caldeira Brant juntamente com Alberto Luís Pereira e Conrado Caldeira Brant, este último contrato ganhou notoriedade pelos grandes desvios realizados pelos contratadores, tornando-se um evento emblemático dento da história dos contratos dos diamantes. Até o ano de 1751 as fraudes de Caldeira Brant estavam encobertas pela fragilidade do então intendente dos diamantes, Plácido de Almeida Moutoso, e pelas fortes ligações de apadrinhagem com figuras fortes do governo das Minas, como o próprio governador Gomes Freire de Andrade. Brant também tinha na população do Tejuco uma grande aliada, pois, fazia vista grossa ao contrabando e ao mesmo tempo era uma fonte garantida de renda através dos aluguéis de escravos para a mineração do contrato. A sorte de Brant começou a mudar quando no ano de 1751 o novo intendente Sancho de Andrade Castro e Lanções chegou. O novo representante da Coroa chegou ao distrito imbuído da nova proposta do reinado de d. José I de combater a sonegação e assim aperfeiçoar os ganhos da Real Fazenda, dessa forma Lanções começou a vigiar as ações do contrato e Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 54 rapidamente percebeu que este se encontrava totalmente fora dos limites estabelecidos. Assim começou a pressionar Brant para que apresentasse os verdadeiros números, principalmente em relação ao controle do número de escravos na extração. (FURTADO In: SCHWARTZ e MYRUP, 2009: 217-262) Foi durante esse combate que surgiu a incrível denuncia sobre o roubo do cofre da intendência,28 uma ação arquitetada por Brant para desafiar o poder do Intendente, mas que acabou se voltando contra o contratador, quando descobriram seu plano, após uma grande devassa organizada pelo ouvidor do Serro do Frio, José Pinto de Morais Bacellar. Apesar dos insistentes pedidos de interferência para o lado de contratador feitos por Gomes Freire de Andrade para os dois principais secretários de d. José I – Diogo de Mendonça Corte Real e Sebastião José de Carvalho e Melo – a situação do mesmo tornou-se irreversível quando em março de 1753 chegou a Lisboa um grande carregamento de diamantes não oficiais. Pouco tempo depois saía de Portugal a ordem secreta para prender Brant e os outros contratadores, o que deveria ser pessoalmente executado pelo governador interino José Antônio Freire de Andrade. O cumprimento da ordem gerou grande alvoroço, sendo Brant levado para a prisão em segredo. Ao mesmo tempo começaram a se espalhar boatos sobre a insolvência do contrato, o que acabou sendo confirmado pelo ouvidor Bacellar. O público escândalo do contrato pôs em histeria os mercados financeiros tanto do Império como os de Londres e Amsterdã, obrigando o rei d. José I a garantir o pagamento das letras emitidas pelos contratantes. Brant foi enviado para o Reino onde acabou morrendo na cadeia em 1769, após o sequestro de seus bens e o parcial ressarcimento da Real Fazenda. Neste mesmo ano de 1753 a Coroa decidiu intervir mais na mineração dos diamantes pelo Alvará de 11 de agosto. Diante da “eminente ruína” em que se achavam os contratos pela ação dos “interesses particulares ao bem público”, tornou-se necessário colocar o comércio dos diamantes sobre a Real proteção.29 No documento há uma constante reafirmação do poder real sobre as pedras preciosas, decretando forte punição para aqueles que desobedecerem, e ao mesmo tempo reafirma o controle especial que 28 Evento bastante retratado pela historiografia tradicional que se posicionava ora a favor do contratante ora a favor da Coroa. Atualmente o evento teve vários pontos elucidados pelos trabalhos mais recentes da Profª. Júnia F. Furtado e é sempre lembrado pelos historiadores que estudam a região. Para saber mais, consulte a bibliografia. 29 Alvará de 11 de Agosto de 1753. Fixando o comercio exclusivo dos diamantes do Brasil, que fica baixo proteção real. Disponível em: >http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=105&id_obra=73&pagina=252 > Acesso em: 02/07/2012. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 55 deveria ser realizado dentro das terras diamantinas, controlando a entrada de comerciantes, de cobradores, proibindo a faiscação, a permanência de pessoas sem oficio na demarcação e repassando a responsabilidade sobre a fiscalização dos contrabandos não só sobre os representantes diretamente nomeados para o distrito, mas sobre todos os outros representantes reais na colônia. Após essa pequena reestruturação, a mineração dos diamantes continuou sob o comando dos contratos, o quarto e o quinto contratos de 1753-1758 e 1759-1761 foram novamente arrematados pelo sargento-mor João Fernandes de Oliveira, em sociedade com Antônio dos Santos Pinto e Domingos de Basto Vianna, mas como o sargento passou a morar no reino, enviou para os trabalhos no Tejuco seu filho homônimo, o desembargador João Fernandes, que no último contrato de 1762 a 1771, tornou-se sócio do pai. Enquanto o período de 1760-1770 representou o início da curva descendente da produção aurífera em Minas Gerais, temos esse período como o áureo da produção de diamantes. Segundo números da produção oficial de diamantes, no período de 1765-1771 foram retirados 489.108 quilates, com uma impressionante produção nos anos de 1765 com 84.862 quilates, e em 1766 com 91.382 quilates. (FURTADO In: SCHWARTZ e MYRUP, 2009: 217-262) As estimativas em relação ao arremate do comércio das gemas também eram impressionantes, se dos anos de 1757 a 1760 foram arrematados 115.659 quilates pelo valor de 1,067.198$850 por João Gore e Josué Van-Neck, no período seguinte constatamos a opulência da mineração pelo incrível aumento das cifras; de 1760 a 1771, Daniel Gil e Meeter arremataram 952.589 quilates por 8,144.165$537. (AZEVEDO, 2004: 122) A partir de 1771, a exploração dos diamantes deixa de ser estabelecida pelo sistema dos contratos e passar a ser um monopólio direto da Coroa. Dessa forma, fica claro que a exploração dos diamantes era bastante rentável para Portugal, mas, ao contrário da exploração do ouro, era necessária uma atenção especial para os diamantes devido a sua natureza de comercialização. A experiência mal sucedida dos primeiros anos de exploração, que produziram um verdadeiro estrondo nos preços internacionais, mostraram para as autoridades reais que era necessário introduzir alguma forma de controle da produção, tentando conciliar a rentabilidade da extração com a manutenção do preço do quilate nas praças internacionais, sendo assim, quanto mais conhecimento a Coroa obtivesse sobre a mineração dos diamantes, mais real e mais fácil seria esse controle. É claro que, assim como na mineração do ouro, os contrabandos, desvios, descaminhos eram enormes e na maioria das vezes fugiam as várias tentativas de Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 56 controle metropolitano, o caso das fraudes do contrato da família Brant é um exemplo clássico, que mostra como o contrabando de diamantes agregava uma vasta gama de pessoas que iam desde a relação micro dentro do distrito diamantino até as relações macroeconômicas dos contrabandistas internacionais, o que dificultava ainda mais um efetivo controle da mineração. No caso dos diamantes, cuja extração e comercialização na Europa eram controladas de perto pelo Conselho Ultramarino, os contrabandistas agiam em várias etapas. Os contraventores deviam atuar desde o momento da extração das pedras, que precisavam ser desviadas dos cofres da Intendência dos Diamantes e, então, eram conduzidas para além dos limites da demarcação diamantina, rumo a um porto para serem embarcadas tendo como destino final a Europa, onde agente do mercado paralelo as comprariam e as revenderiam aos joalheiros lapidários do continente, geralmente estabelecidos em reinos como Holanda e Inglaterra. (FERREIRA, 2009: 131) Como os mapas podem nos falar sobre os mundos do passado? (HARLEY, 2005: 80) A partir dessa pergunta de J.B. Harley que pretendemos, durante essa pesquisa, mostrar que os mapas selecionados podem nos contar sobre a história da invenção do distrito diamantino, como a construção desse espaço tornou-se um lugar fortemente marcado na historiografia e de como, a Coroa utilizava a tecnologia cartográfica para materializar seu conhecimento sobre a região. Inicialmente o caminho metodológico escolhido foi o delineado pelo historiador da cartografia J. B. Harley, uma trilogia da análise dos contextos da cartografia. Para esse estudioso inglês, para uma correta análise da cartografia história, que leve em consideração não só os aspectos técnicos, mas também as relações sociais e políticas contidas nos mapas, seria necessário percorre três etapas: 1) o contexto do cartógrafo, 2) o contexto dos mapas correlatos, 3) o contexto da sociedade. No primeiro momento é essencial identificar a autoria do mapa a ser analisado, o que já nesse primeiro momento pode representar um importante entrave na pesquisa, pois nem sempre a autoria dos mapas, realizados durante o período colonial está claramente demarcada, sendo, na maioria das vezes e inclusive em dois, dos três mapas, a serem analisados, um dado ainda não identificado. “Este requisito, la reconstrucción de los contextos técnicos del trazado de los mapas, implica una enorme exigencia de habilidades auxiliares del historiador.” (HARLEY, 2005: 65), sendo assim, para completar esse processo, é necessário realizar uma busca transdisciplinar que proporcione o embasamento técnico suficiente para a compreensão do trabalho do cartógrafo. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 57 Em um segundo momento seria necessário fazer o cruzamento entre os mapas analisados e a produção cartográfica correlata, pois é fato reconhecido que os mapas dialogavam entre si, não necessariamente, entre mapas de mesma autoria, mas os cartógrafos, especialmente durante o período colonial onde havia várias dificuldades técnicas e mesmo de deslocamento ao longo do território, utilizavam representações que já eram trabalhadas em outros mapas. “Ningún mapa está herméticamente cerrado en sí mismo, ni puede responder a todas las preguntas que despierta.” (HARLEY, 2005: 69) Dessa forma, podemos identificar a recorrência de topônimos, dos traçados dos rios, dos caminhos, a partir dessa análise cartobibliográfica. O terceiro momento é o da análise do contexto social daquele mapa, pois os mapas não são construções puramente técnicas isentas de envolvimento, muito pelo contrário, ainda mais durante a época colonial onde as técnicas cartográficas não eram tão avançadas como hoje. Os mapas deixam transparecer os aspectos políticos e sociais do momento em que foram construídos e dessa forma podem nos fornecer informações relevantes sobre o espaço e o tempo dos mundos históricos que poderiam permanecer obscuros em outras fontes. “El marco de las circunstancias y las condiciones históricas definidas produce un mapa que es, indiscutiblemente, un documento social y cultural.” (HARLEY, 2005: 72) Essas são as regras metodológicas gerais que Harley identifica como essenciais durante o processo analítico da cartografia. Mas além desse processo geral é de grande importância também realizar a análise pormenorizada e individual dos mapas, para o qual, novamente Harley propõe uma trilogia influenciada pela metodologia da história da arte: 1. Signos convencionais/descrição pré-iconográfica a. Descrição do objeto mais a identificação e reconstrução de sua temporalidade, os signos, símbolos e emblemas dos mapas vistos individualmente. 2. Identidade topográfica/análise iconográfica a. Relação entre objeto e o conceito, a identificação da representação com a realidade representada. 3. Significado simbólico/ interpretação iconológica a. Descoberta dos valores simbólicos, a analise do estrato simbólico do mapa, os mapas como metáforas visuais dos valores mais importantes do lugar representado. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 58 A proposta de Harley é estabelecer uma análise tanto micro, como macroespacial da cartografia, para dessa forma realizar uma pesquisa atenta aos vários detalhes que um mapa contém. Justamente por essa preocupação com a divisão das etapas de análise, com a correlação de dados, com a análise dos contextos, que a metodologia de Harley é inovadora, por agregar vários aspectos tomados de outras disciplinas tendo como objetivo lançar a história da cartografia como disciplina autônoma, que não seja apenas técnica, mas essencialmente histórica. Por outro lado, também é necessário tomar as propostas metodológicas de Harley de forma crítica, pois seu contexto de formação tanto histórica como cartográfica é bastante distinto do contexto luso-brasileiro. Cartógrafo e geógrafo de formação John Brian Harley foi professor na Inglaterra nas universidades de Birmingram, Liverpool e Exeter e nos Estados Unidos em Winsconsi, onde realizou extensas pesquisas sobre história da cartografia, publicou diversos livros e trabalhou no projeto History of Cartography, junto dom David Woodward. Seus trabalhos, focados nos contextos britânico e norte-americano, contam com uma vastíssima produção cartográfica, que especialmente durante o final do século XVIII e início do século XIX foi sendo absorvida pelo mercado editorial, que produzia atlas e versões impressas de mapas para colecionadores, além disso, os escritório estatais desses países tinham, e ainda, tem, uma grande preocupação com a constante realização e atualização dos mapas, incentivando o desenvolvimento do conhecimento técnico e mantendo, de forma constante, a produção de mapas. Um contexto de intensa produção que não foi seguido no contexto luso-brasileiro. Por outro lado, alguns críticos de Harley, como J. H Andrews, não encontram nenhum originalidade em suas ideias e inclusive as classificam como ingênuas. De qualquer forma, Harley foi responsável por um processo de renovação da história da cartografia e de sua aproximação com a história cultural que abriu portas para a leitura social dos mapas. Nesse primeiro momento de desenvolvimento da pesquisa de mestrado, estamos ainda nas primeiras etapas de análise dos mapas selecionados e ainda filtrando a documentação correlata. Felizmente, os estudos de história da cartografia no Brasil estão despertando o interesse de um número cada vez maior de pesquisadores, de várias áreas do conhecimento, o que proporciona um círculo de debates transdisciplinar que é essencial. O Brasil, especialmente durante o seu processo de formação territorial, durante o período Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 59 colonial e imperial, possui uma vasta produção cartográfica que ainda precisa de estudos mais específicos e pormenorizados. Especialmente sobre a história da mineração dos diamantes durante o século XVIII ainda encontramos muitas questões a serem problematizadas. Pouco de sabe sobre o processo de descobrimento dos diamantes, sobre a história da mineração no período dos contratos, de como Portugal comercializava e distribuía as pedras na Europa e de como o Conselho Ultramarino tinha conhecimento sobre o território do distrito diamantino, qual era o papel da cartografia nas políticas coloniais. Dessa forma, que a cartografia pode ser trabalhada como fonte histórica e não apenas como ilustração de uma história. O Brasil vem se destacando no cenário internacional desde a época colonial por suas riquezas naturais, durante o século XVIII foi o centro mundial de extração de ouro e diamantes, que abasteceu a Europa e financiou o desenvolvimento da revolução industrial, durante o século XIX foi o maior produtor mundial de café, extraindo da riqueza de seu solo os frutos que alimentavam a economia nacional e durante o século XX descobriu que também poderia extrair de seu solo, inclusive da parte que estava submersa no Oceano, o ouro negro que alimenta a indústria e o comércio mundial. Novamente, nesse início de século XXI descobrimos que ainda temos muito mais riquezas em nossas terras, a maior mina de ferro a céu aberto do mundo e um dos maiores reservatórios de petróleo se águas profundas. Diante desse cenário é essencial que sejamos capazes que compreender historicamente como lidávamos com nossas riquezas e de como podemos assim nos preparar para as riquezas do futuro. Bibliografia: Alvará de 11 de Agosto de 1753. Fixando o comercio exclusivo dos diamantes do Brasil, que fica baixo proteção real. Disponível em:>http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=105&id_obra=73&pagina=252 > Acesso em: 02/07/2012. ANDRADE, Francisco Eduardo de. A invenção das Minas Gerais. Empresa, descobrimentos e entradas nos sertões do ouro da América portuguesa. Belo Horizonte: Autêntica e Ed. PUC Minas, 2008. AZEVEDO, João Lúcio de. O marquês de Pombal e a sua época. São Paulo: Alameda, 2004. BLACK, Jeremy. Mapas e História: construindo imagens do passado. Bauru-SP: Edusc, 2005. COSTA, Antônio Gilberto (org.) Roteiro prático de cartografia: da América portuguesa ao Brasil imperial. Belo Horizonte: UFMG, 2007. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 60 FERREIRA, Rodrigo de Almeida. O descaminho de diamantes. Relações de poder e sociabilidade da demarcação diamantina no período dos contratos (1740-1771). Belo Horizonte: Fumarc, São Paulo: Letra&Voz, 2009. FURTADO, J. F. . Um cartógrafo rebelde? José Joaquim da Rocha e a cartografia de Minas Gerais. Anais do Museu Paulista (Impresso), v. 17, p. 155-187, 2009. FURTADO, Júnia F. Chica da Silva e o contratador de diamantes. O outro lado do mito. São Paulo: Cia das Letras, 2003. FURTADO, Júnia F. O livro da Capa Verde. O regimento diamantino de 1771 e a vida no distrito diamantino no período da Real Extração. 2ªed. São Paulo/Belo Horizonte: Annablume/ PPGHUFMG, 2008. FURTADO, Júnia Ferreira. Terra de estrelas: o distrito dos diamantes e a fortuna dos contratadores. In: SCHWARTZ, Stuart e MYRUP, Eric. (orgs.) O Brasil no império marítimo português. Bauru: Edusc, 2009, p.217-262 HARLEY, J. B. La nueva naturaleza de los mapas. Ensayos sobre la historia de la cartografia. México: FCE, 2005. HARLEY, J. B. Mapas, saber e poder. 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Belo Horizonte/São Paulo, 1976 (coleção reconquista do Brasil, v.26) Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 61 Das teias de traições ao desejo local de reconhecimento pela Coroa Portuguesa nas Inconfidências Mineiras Cleidimar Rodrigues de Sousa Lima Professora Assistente do Centro de Filosofia, Letras e Educação da UVA Doutoranda em História pela UFMG / CAPES cleidimary@hotmail.com Resumo: Esta comunicação pretende discutir as Inconfidências Mineiras que ocorreram entre 1760 e 1776, na Capitania das Minas Gerais, mais precisamente nas cidades de Curvelo (duas foram registradas), Mariana e Sabará, durante o período de Reformas Pombalinas, cujas especificidades organizativas merecem apreciação no conjunto de uma tessitura onde as traições e a falta de fidelidade ao Monarca, então D.José I, foram consideradas crimes que levaram pessoas e instituições a serem questionadas e punidas, a partir do ordenamento jurídico em vigor à época. Uma característica bastante peculiar a ser evidenciada é que nessas Inconfidências a população local não chegou a se levantar ou pegar em armas para defender seus próprios interesses, mas buscou conquistar um tipo especial de reconhecimento junto à Metrópole Portuguesa. Ressaltamos que tiveram como ideário comum a insatisfação com o processo de expulsão dos jesuítas do Brasil e com a concentração de poderes nas mãos do Marquês de Pombal. Nosso estudo, de caráter teórico-bibliográfico, associado à reflexão dialética, teve como sustentação as contribuições de autores renomados como CATÃO (2007), FURTADO (1999a), MONTESQUIEU (2004), VILLALTA (2007) que analisaram tais Inconfidências e suas repercussões na vida colonial do nosso país. O papel das oralidades das ideias libertárias, das leis e das Teorias Corporativas será percebido como importante elemento de conexão destes fatos históricos. Em Minas Gerais a Coroa Portuguesa foi posta à prova por suas práticas gerenciais e o seu poder foi visto como um espaço conflituoso de disputas entre grupos religiosos e laicos. Palavras-chave: Inconfidências Mineiras, Curvelo (1760-1763), Mariana (1769), Sabará (1775). Abstract: This communication discusses the Inconfidências Mining that occurred between 1760 and 1776, in the province of Minas Gerais, more precisely in the cities of Curvelo (two were recorded), Mariana and Sabará, during the reforms of Pombal, whose organizational characteristics deserve consideration in conjunction a fabric where the betrayals and lack of loyalty to the monarch, then D. José I, were considered crimes that led people and institutions to be questioned and punished, from the legal system in force at the time. A peculiar feature to be highlighted is that these Inconfidências local people did not stand up or take up arms to defend their own interests, but sought to gain a special kind of recognition by the Portuguese metropolis. We emphasize that such ideas were common dissatisfaction with the process of expulsion of the Jesuits from Brazil and the concentration of power in the hands of the Marquis of Pombal. Our study of the theoretical literature, associated with the dialectical reflection, was to support the contributions of renowned authors such as CATÃO (2007), FURTADO (1999a), MONTESQUIEU (2004), VILLALTA (2007) who analyzed such Inconfidências and its impact on colonial life in our country. The role of oralities of libertarian ideas, laws and theories Corporate will be perceived as an important connection of these historical facts. In Minas Gerais the Portuguese Crown was put to the test by their management practices and their power was seen as a space of contentious disputes between religious and secular groups. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 62 Keywords: Inconfidências Mining, Curvelo (1760-1763), Mariana (1769), Sabará (1775). Introdução Nos capítulos da História brasileira a Capitania das Minas Gerais figura como um lugar de reivindicações e de levantes significativos de suas diversas classes sociais contra o jugo da Coroa Portuguesa e de suas leis em relação à Colônia, com ditames que provocavam insatisfações, descréditos e revoltas. Este estudo, elaborado numa perspectiva de análise teórico-bibliográfica e reflexivo-dialética, pretende discutir as Inconfidências Mineiras que aconteceram em Curvelo (1760-1763), Mariana (1769) e Sabará (1775), três importantes locais econômicos e religiosos, anteriores à de 1789 (Conjuração Mineira), que ficou nacionalmente reconhecida, e suas repercussões históricas. Neste sentido, estabeleceremos breves olhares dos crimes cometidos, da participação dos envolvidos, dos interesses em conflitos e das ações da Coroa Portuguesa para solucionar tais movimentos, em prol da manutenção de seu domínio colonial. O embasamento teórico será apresentado mediante as contribuições de autores renomados, tais como CATÃO (2007), FURTADO (1999a), MONTESQUIEU (2004), VILLALTA (2007) que nos permitirão tecer três incursões metodológicas muito significativas, a saber: a) Os Cenários das Inconfidências Mineiras e suas Tramas de Interesses Políticos e Sociais; b) Os Crimes praticados e as Punições da Coroa Portuguesa; c) As Lições de Percurso das Teorias Corporativas. Embora seja perceptível a ampla complexidade e o difícil esgotamento da temática proposta, esperamos abrir novas trajetórias de sua percepção histórica, de sua projeção social e política no sentido de observar nas classes sociais das Minas Gerais um celeiro de combate ao poder da Metrópole, de cisão dos poderes locais e de disseminação de ideias libertárias no Brasil Colonial. Os cenários das inconfidências mineiras e suas tramas de interesses políticos e sociais Discutiras Inconfidências Mineiras que tiveram repercussão histórica antes de 1789 exige uma passagem por três locais desta Capitania: a) Curvelo; b) Mariana e c) Sabará. O primeiro era um arraial pertencente à Comarca do Rio das Velhas, canal de ligação com a Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 63 Bahia e centro econômico de abastecimento, sobretudo, alimentício, às regiões de mineração; o segundo, celeiro de formação religiosa; e o terceiro, importante região aurífera mineira. Nestes locais encontraram-se registros da presença e divulgação de “papéis sediciosos”, atacando a pessoa do rei D. José I, de seu mais ilustre Ministro Marquês de Pombal e que assinalavam à contraposição à saída da Companhia de Jesus do país. Nos três locais já descritos os interesses políticos eram forjados por sentimentos de insatisfação e de revolta, sendo que em Curvelo, na primeira inconfidência o “breve papal”30 foi usado para combater a tirania portuguesa e, por esta atividade, foram incriminados o franciscano Antão José de Maria e o leigo Lourenço Feliz de Jesus Cristo, considerados inimigos do vigário local. Por sua vez, na segunda inconfidência no mesmo local, o padre Carlos José de Lima foi acusado de comparar o monarca com os maiores perseguidores dos cristãos. No caso de Mariana, os próprios religiosos foram envolvidos em conflitos internos de suas congregações, de ordem capitular por disputas de jurisdições, denunciando uns aos outros – o que resultou na prisão do vigário Ignácio Correa de Sá. Na de Sabará, o fato ocorreu envolvendo o ouvidor local, José de Goés Ribeiro Lara de Morais e o vigário geral, José Correa da Silva, que foram acusados de inconfidência, descaminho de ouro e diamantes, manipulação de cargos públicos e ainda de “perturbação do sossego dos povos”31. Crimes muito graves ao domínio da Coroa na Colônia Portuguesa. Uma característica muito marcante destes fatos foi que as inconfidências foram marcadas pela presença de autoridades dos próprios locais, ocupantes de cargos e com influência no poder vigente. Elas deveriam zelar e preservar os seus cargos e a confiança nelas depositadas. Assim, as devassas, utilizadas para apuração e comprovação das denúncias, foram complexas e polêmicas porque tentaram identificar os entrelaçamentos das teias favoráveis de condições políticas dos envolvidos. Um emaranhado conflitante de interesses políticos e sociais que afetava a vida das pessoas e os costumes dos locais. 30 Era assim denominada a carta oficial escrita pelo Papa à comunidade cristã. Destacamos que os fatos descritivos em que figuram os crimes cometidos pelos inconfidentes e aqui estuados foram assinalados por Catão (2007) no texto base dessa discussão, intitulado “Inconfidência (a), jesuítas, e redes clientelares nas Minas Gerais”. 31 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 64 Nesses processos investigatórios pode-se apurar que as denúncias geralmente foram movidas por disputas internas nos grupos que destituídos de um lugar de poder queriam a ele retornar, naqueles que queriam mudar o seu lugar de poder, e também naqueles que, temendo a perda desse lugar, lutavam por sua manutenção a todo e qualquer custo. As teias envolviam rupturas, mas advogavam também continuidades, permanências e pequenas mudanças de percurso e de autoridade. Os populares, prejudicados em seus direitos e sem muitos mecanismos de reação contra o poder existente, ficavam divididos nestas disputas ou nem eram mencionados nessas tramas que traduziam um viés colonial do que também ocorria na Metrópole Portuguesa. Eles eram parte de um jogo político mais amplo entre os anti-pombalinos e os pró-jesuíticos. No caso de Sabará, a revolta foi além do esperado e registrou-se uma “representação”32 contra os abusos do ouvidor e do vigário- geral, pelos “vassalos oprimidos” ou “homens bons” da Vila, cuja interpretação recaiu sobre a História como uma defesa do povo em face dos fatos em ocorrência. O povo moveu-se contra a teia de interesses que o cercava e não os protegia de suas mazelas. Os crimes praticados e as punições da Coroa Portuguesa Devemos destacar que nasOrdenações Filipinas, o Livro V, título 6, trata do crime de "lesa-majestade"33·, que é definido como de "traição contra o rei". A punição aos que eram acusados deste crime deveria ser exemplar para afastar da sociedade o mal advindo de tal prática. Os punidos deveriam evitar com suas punições a reincidência no crime e a perpetuação do poder emanado da autoridade punitiva. Desta forma, o governante podia tudo e os seus vassalos deveriam respeitar as leis, as diferenças hierárquicas e todas as implicações do poder político34 e coercitivo. No crime 32Segundo Catão (2007, p.677) a representação foi assinada por “eclesiásticos, militares pertencentes á tropa paga, altas patentes das forças auxiliares, além de bacharéis, todas as pessoas abastadas e influentes”. A representação era um documento onde se pedia ao monarca para solucionar os problemas da Capitania e que exaltava as virtudes do povo de Sabará ao anotar que “só agora se queixa (va), quando se vê na última ruína”. 33O crime era tido como tão grave e tão abominável que era comparado à lepra. A enfermidade da lepra geralmente acometia todo o corpo humano, sem que houvesse cura para tal doença no campo científico. Mesmo descendentes de leprosos, que não contraíram a doença, eram julgados socialmente pela sua incidência na família e retirados do convívio social. Como a lepra, a traição contra o rei precisava ser combatida para não se propagar na sociedade e nem inflamar os descendentes daqueles que cometiam tal crime. 34Podemos pensar que há várias formas de poder do homem sobre os seus semelhantes. Identificamos três formas historicamente mais discutidas do poder: o paterno, o despótico e o político. Neste estudo nos interessa o poder político que se manifesta pelo interesse de quem governa e de quem é governado. Quando Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 65 de inconfidência as penas consistiam normalmente na prisão dos criminosos, na perda de cargo público que possuíam, no degredo para colônias portuguesas na África, podendo chegar até mesmo na morte dos implicados, com o esquartejamento dos membros do corpo e sua exposição em locais públicos. Após as devassas concluídas, as punições nessas Inconfidências35 - com todas as suas dificuldades de realização pelas teias de poder que engendravam principalmente disputas por cargos políticos – se restringiram às seguintes determinações e punições, a saber: em Curvelo, na primeira devassa, o franciscano Antão de Jesus Maria “fugiu para o mato” e o outro, irmão-leigo Lourenço de Jesus Cristo foi preso e encaminhado para Vila Rica; na segunda, o padre Carlos José de Lima foi preso e os que não o denunciaram nos seus testemunhos também foram condenados ao mesmo crime; na de Mariana, o capitular Ignácio Correa de Sá foi preso no Seminário da cidade e só saiu de lá com os benefícios do perdão de 177736, quando todos os demais presos políticos foram libertos em cumprimento de ordem de D.Maria Mariana. E na de Sabará, houve a prisão dos acusados - José de Goés Ribeiro Lara (ouvidor local) e José Correa da Silva (vigário geral)-, o degredo e o sequestro de seus bens. Nestes três casos aqui estudados o panorama político interferiu claramente nas decisões e punições exemplares tomadas pela Coroa Portuguesa que tinha em suas mãos um dos mais desafiantes jogos de interesses das oligarquias locais, que, por sua vez divergiam em seus próprios anseios no interior do mundo colonial. Embora não seja possível negar que representavam na Colônia os modelos políticos da Metrópole, em menor ou em maior escala de atuação. É também relevante mencionar que o ato de punir deveria ser o papel do Estado, representado pelas leis emanadas da Metrópole à Colônia; no entanto, as leis proferidas tão longe e distantes dos problemas concretos e imediatos dos locais eram burladas ou sofre vícios em sua utilização passa a ser um poder exercido em benefício dos governantes. E é praticado mediante atos de coação social. Sugerimos sobre este assunto as contribuições de Norbert Bobbio (2000), na obra Dicionário de Política, Pierre Ansart (1978), na obra Ideologias, Conflitos e Poder e Bernardo Ferreira (2004), na obra O Risco do Político: Crítica ao Liberalismo e Teoria Política no Pensamento de Carl Schmitt. Elas procuram explicitar os aspectos políticos do poder e sua gerência ou ingerência estatal nas decisões que afetam o povo na sua organização social e política. 35O crime de Inconfidência, de acordo com Catão (2007) podia se referir a uma verdadeira trama subversiva ou a tão-somente o hábito, que se tornaria recorrente após a expulsão dos jesuítas do Brasil, de proferir blasfêmias, insultos ou impropérios públicos contra o monarca. No período que compreendeu o governo de D. José I em Portugal, este se viu bastante contestado pelos súditos das Minas Gerais, principalmente depois que permitiu a expulsão dos jesuítas em 1759, sendo tal fato comandado pelo marquês de Pombal. 36 AHU, Cx. 113, doc. 25, fl.6. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 66 redefinidas para ajustar posições, garantir a permanência do poder ou até mesmo negociálo, quando fosse necessário. Citamos, como exemplo, o caso mais célebre de incapacidade e de incompetência ao cargo de ouvidor local de Sabará, do sr. José Goés Ribeiro Lara37, visto com espanto pelos que o conheciam de Coimbra e na Corte, quando era secretário de Estado dos Negócios do Reino Dr. José de Siebra da Silva e dos fatos que provocaram seu crime de inconfidência, denunciado por Manuel Figueiredo, sobre sua proclamação de “injustiça” da Coroa com o exílio do ex-secretário para Angola. As lições de percurso das teorias corporativas As Teorias Corporativistas da Segunda Escolástica exerceram umpapel significativo na montagem das estratégias políticas que fizeram funcionar essas inconfidências. O estudo destas teorias torna-se imprescindível porque elas tinham como princípios a justiça por parte dos governantes, o respeito às leis, às diferenças sociais de direito e de hierarquias, a capacidade do povo de honrar o pagamento de tributos, a felicidade no Reino, e a repartição, com a mesma justiça de prêmios e castigos. De acordo com Villalta (2007: 4) essas teorias enunciavam que o poder, embora tivesse a sua origem em Deus, “não transitava diretamente deste para o Rei, passando, ao contrário, pela mediação da comunidade, cujo bem estar deveria ser objeto de cuidado do soberano, o qual, caso se tornasse tirano, poderia ser deposto”. Neste diapasão, quando visto pelos seus vassalos como um governante tirano, por agir de forma oposta aos princípios que deveria respeitar e às leis estabelecidas pelo seu próprio governo, o rei deveria ser “julgado”. Tal julgamento podia significar a perda do seu direito de governar, corroborado pelo direito de insurreição. O direito de resistir à tirania era um direito considerado de caráter natural em face de um governo déspota. Os princípios postos nas teorias corporativas convergem em seu ideário com os das luzes, quando encontramos em Montesquieu (2004: 31) a assertiva de que os ”[...] monarcas, cujo poder parece ilimitado, são detidos pelos menores obstáculos e submetem seu orgulho natural às lamentações e súplicas”. 37 No dizer de Catão (2007, p.678) “referido magistrado não possuía nível cultural condizente com o cargo de ouvidor, nem fortaleza de espírito, qualidades tão inseparáveis de um juiz”. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 67 Nesse sentido, o governo despótico “submete tudo a sua vontade e caprichos”38, mas sendo juiz de sua própria regra não consegue “regular o coração de seus povos, e tampouco o seu”39. Em todas as inconfidências aqui estudadas pode se constatar o cerne entranhado da insatisfação com os desmandos e negligências da Coroa Portuguesa à Colônia em formação e desenvolvimento, cujo governante era quem menos respeitava suas próprias leis. Diante deste complexo contexto, sua forma de fazer justiça era diferenciada entre as categorias sociais; seus prêmios e seus castigos eram direcionados e suas cobranças, exacerbadas. Para Portugal, reconhecendo as fortes implicações do quadro descrito, era preciso combater os “jesuítas encobertos” 40 nas Minas Gerais, antes que a Coroa ficasse incapaz de governar. No entanto como as “[...] Redes clientelares, em muitos casos, extrapolavam os limites da América Portuguesa, atingindo o Reino e [...] frequentemente acabavam por infringir as leis do Império português” (FURTADO, (1999a:46-47), tornava-se difícil combater a política interna da Colônia e suas conexões com as tramas de privilégios da Coroa Portuguesa. Aos inconfidentes mineiros restavam os difíceis papéis de inconformidade, resistência e luta, com as estratégias políticas possíveis, para deter a extensão do poder da Coroa e a sua influência na Colônia. De acordo ainda com Montesquieu (2004: 32) “nos Estados despóticos, onde não existem leis fundamentais, não existe também repositário das leis”. Por esse motivo, nascem e proliferam os corruptos e as corrupções, a preguiça, a pobreza, a ambição e a morte dos valores morais, ficando o povo na desgraça, entregue a sua própria sorte e aos desígnios dos que governam. Tais Inconfidências guardavam no seu bojo o desejo de liberdade que aí se traduzia na compreensão de que as leis, quando justas e bem aplicadas, fomentam a harmonia social. E quando injustas devem ser motivo do direito de resistência dos que estão sob a sua égide. As ideias das Luzes, a partir do panorama enfocado, estiveram presentes nessas Inconfidências, servindo para combater a política repressora do Estado e suas arenas de 38 MONTESQUIEU. (2004, p. 23) MONTESQUIEU. (2004, p. 71) 40 Eram os que não aceitaram a expulsão dos padres da Companhia de Jesus do Império português em 1759. Também foram chamados de pró-jesuíticos. Na assertiva de Catão (2007), de acordo com a documentação contida no AHU (Cx, 91, doc. 29, fl. 1-2) já em 1767, Luís Diogo Lobo da Silva, então governador das Minas Gerais, informou à Corte Portuguesa que havia “jesuítas encobertos” nessa Capitania, e das providências tomadas para combatê-los. 39 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 68 perpetuação do poder em que as amizades, os parentescos, os cargos públicos e as corrupções estavam nitidamente em confrontos e múltiplas disputas. À guisa de possíveis conclusões Para que serve verdadeiramente o poder? E como o poder deve ser utilizado?Quando o poder do Rei cai em desgraça, as formas de contraposição a ele se manifestam e se proliferam, caso não sejam detidas a tempo e com as formas coercitivas apropriadas. No entanto, mesmo detidas, a História nos mostra que algumas dores ou chagas ainda abertas ressurgem em outras épocas e com novos fatos como uma “ferida de Narciso” 41, pronta para reivindicar suas necessidades no seio do poder. As Inconfidências Mineiras, anteriores à Conjuração de 178942 nos acenam para o panorama histórico, político e cultural acima descrito e suas faces de diversas representações sociais43 do poder. É importante destacar, diante das dimensões desse panorama, que do ponto de vista histórico criaram um conjunto preliminar de estratégias para combater o poder monárquico (“papéis sediciosos”); do político, usaram as armas de troca ou de barganha de influências que eram comuns na Metrópole, forçando Portugal a ceder para não perder mais em seu próprio terreno de tramas e intrigas; do cultural, estabeleceram interfaces com as ideias das Luzes, de uma sociedade que buscava sua liberdade e seu desejo de emancipação. Os “jesuítas encobertos” em Minas Gerais reconheciam as teorias corporativistas de poder e agiam de forma a manter em suas práticas uma dinâmica de convergência com elas. Preceitos retóricos à parte, tais Inconfidências estabeleceram críticas ao despotismo de Portugal e buscaram deduzir do binômio tirania-despotismo as possibilidades do direito à resistência. 41 Termo usado no Livro intitulado Ferida de Narciso, um ensaio de História Regional, em que o autor Evaldo Cabral de Melo analisa o domínio holandês em Pernambuco, buscando compreender e explicar as guerras e as negociações com a Coroa Portuguesa e com os Holandeses nessa Capitania, seus desdobramentos sociais, políticos e históricos na formação do nativismo pernambucano e da Historiografia Brasileira. 42Foram levantadas pelos inconfidentes de 1789 discussões que envolviam aspectos intrigantes e entrelaçados das relações sociais da Metrópole Portuguesa com a Colônia, da propriedade e de uma nova ordem política, embora as aspirações tivessem conotações mais amplas e, em alguns casos, diversas das que foram anteriores a ela. 43De acordo com Motta (1996, p. 86) “Imaginário ou imaginação social, como preferem alguns autores, passou a ser considerado um objeto de estudo fundamental para compreensão não somente das representações mentais, mas também para o equacionamento da lógica das práticas e dos comportamentos coletivos”. Para tal autor, seria ainda a “representação ou conjunto de representações imagéticas de determinados aspectos ou fenômenos da vida social como anseios, temores, utopias, valores, crenças, etc.”. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 69 Segundo Berstein as noções de uma possível cultura política estão ligadas à cultura global da sociedade, sem se confundir totalmente com ela, porque o seu campo de aplicação incide exclusivamente sobre o político sendo necessário “perceber o papel fundamental que ela desempenha na legitimação de regimes ou na criação de identidades, sendo seus usos extremamente eficientes e pragmáticos”. (BERSTEIN, 1997, p.384). Ela também determina a representação que uma sociedade faz de si mesma, do seu passado e do seu futuro. Sua ação é variada e por vezes, contraditória, fruto da composição de influências diversas, resultantes de uma mensagem com caráter unívoco. As Inconfidências mineiras em análise, numa dimensão de culturas políticas, foram tecendo fios que não desapareceram no tempo e no espaço contra o jugo português, e embora não se possa asseverar no seu todo e nas suas fragmentações locais que foram o nascedouro da mais famosa Conjuração das Minas Gerais, elas podem ter servido para germinar progressivamente o solo mais fecundo de 1789, abrindo os caminhos necessários aos processos na Colônia de dessacralização da Coroa Portuguesa. Referências: AHA-Arquivo Histórico Ultramarino.Caixa 91, documento 29, fl.1-2. AHA-Arquivo Histórico Ultramarino. Caixa 113, documento 25, fl.6. CATÃO, Leandro Pena. Inconfidências, jesuítas e redes clientelares nas Minas Gerais. In: VILLALTA, Luiz Carlos; RESENDE, Maria Efigênia Lage de. História de Minas Gerais: As Minas setecentistas. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. ______. As outras Inconfidências Mineiras. Revista História da Biblioteca Nacional, São Paulo, n. 31, 01 abr. 2008. Mensal. Disponível em: http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=1517. Acessada em: 03/12/2011. BERSTEIN, Serge. « La Culture Politique ». IN: GIROUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean- François (org.). Pour une histoire culturelle.Paris: Seuil, 1997, p.384. FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócios: a Interiorização da Metrópole e do Comércio nas Minas Setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999a MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis. 2ªed. São Paulo: Martin Claret, 2004. ______. Cartas Persas.Um Estudo de Abel Grenier. Tradução e Notas de Mário Barreto. 1ªed. Belo Horizonte: Itatiaia Limitada. Coleção: Clássicos Itatiaia. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A História Política e o conceito de Cultura Política. Mesa Redonda proferida no dia 23 de julho de 1996. Anais X Encontro Regional de História da ANPUH-MG, Mariana (22 a 26 de julho de 1996). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 70 VILLALTA, Luiz Carlos. As origens intelectuais e políticas da Inconfidência Mineira. In: VILLALTA, Luiz Carlos; RESENDE, Maria Efigênia Lage de. História de Minas Gerais: As Minas setecentistas. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 71 Traços da mineiridade: influência nas atividades econômicas dos séculos XVIII e XIX Daniela Almeida Raposo Torres Professora do Departamento de Ciências Econômicas da UFSJ daniraposo@ufsj.edu.br Paula Belgo Moraes Graduada em Ciências Econômicas pela UFSJ paulabelgomoraes@yahoo.com.br Resumo: Este trabalho analisa a mineiridade enquanto identidade mineira e característica sócio cultural do povo mineiro interligando a sua formação e a sua influência nas atividades econômicas desenvolvidas no espaço mineiro setecentista e oitocentista. Busca-se demonstrar como os traços da mineiridade se construíram a partir da atividade mineradora e como se fizeram presentes nas optativas e no desenvolvimento das atividades econômicas nos séculos XVIII e XIX. Os aspectos qualitativos dos mineiros quanto sua formação social, cultural e econômica foram explorados pela análise de obras que pesquisaram as peculiaridades mineiras neste período. Conclui-se pela influência da mineiridade na formação da economia mineira. Palavras-chave: mineiridade, economia mineira, atividades econômicas dos séculos XVIII e XIX. Abstract: This paper analyzes the mineiridade while identity mineira and socio-cultural characteristics of the people mining linking its formation and its influence on economic activities in the eighteenth and nineteenth-century. It aims to demonstrate how the features of mineiro were built from the mining activity and how they were present in electives and the development of economic activities in the eighteenth and nineteenth centuries. The qualitative aspects of the miners and their social, cultural and economic analysis were explored by works that investigate the peculiarities of mining in this period. It is concluded that the influence of mineiridade the formation of the State economy. Keywords: mineiridade, mineira economy, economic activities of the eighteenth and nineteenth centuries. A mineiridade enquanto identidade mineira Minas Gerais traz em sua identidade cultural traços fortemente consolidados e disseminados ao longo de sua historia. Seus traços de caráter regional são únicos e porque não dizer indissolúveis. Levando-se em consideração a força que uma identidade deve ter para se perpetuar na linha do tempo vislumbramos a tenacidade da mineiridade. “Todas as compreensões comuns numa sociedade existem só na medida em que os grupos determinados sejam capazes de assegurar sua continuidade no tempo e no espaço.” (ARRUDA, 1990, p.25).Enraizado na sua formação primordial os traços da mineiridade permanecem presentes e influenciantes no desenvolvimento de Minas Gerais. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 72 A província de Minas Gerais surge motivada por uma atividade econômica, a mineração, que foi a responsável pela construção dos primeiros traços da mineiridade. Por sua vez quando das minas já não se brotavam mais tantos metais e pedras preciosas na sua busca por um novo esteio econômico os traços da mineiridade, formados no processo minerador, foram determinantes na sua optativa econômica. “Na construção mitificada de Minas é comum encontrar-se o juízo de que o espírito mineiro forjou-se na zona mineradora, ou que o quadrilátero mineral conteria as raízes primeiras da mineiridade.” (ARRUDA, 1990, p.111). A mineração promoveu no estado mineiro uma explosão demográfica e com ela uma urbanização precoce e imatura, sem precedentes rurais. Esta população foi formada por imigrantes de variadas regiões, países e classes sociais. Motivados pela “mística de Midas”, iludidos com a possibilidade do enriquecimento fácil pela descoberta de pedras ou metais preciosos, esses habitantes povoaram a região montanhosa e isolada. Muitas foram às privações e dificuldades encontradas pelos primeiros a povoar Minas Gerais, em particular a aquisição de alimentos, serviços básicos e estrutura urbana mínima, todos os problemas foram ainda acentuados pela dificuldade de transporte e distancias dos centros marítimos. “(...) as minas nasceram diferenciadas no conjunto da colônia. Vieram ao mundo envolvida pela mística de Midas. Mesmo no futuro, quando o espaço regional estava delimitado, elas continuaram a ser pensadas como o coração a emitir fluxos vitais para o corpo.” (ARRUDA, 1990, p.55.) A atividade mineradora condicionou a sociedade mineira a características singulares fundadas pela forma como ela se desenvolveu e se instalou na província. Além de todas as restrições que ela impôs ao novo povoamento ela também atraiu a atenção da metrópole para a colônia criando uma presença forte e repressora do Estado, ainda não vivida pela colônia. As relações sociais mineiras instituídas no período minerador e suas atipicidades fizeram com que elas se fortalecessem e adquirissem uma importância superior para seus habitantes mostrando-se presentes nas suas relações economicas. O conteúdo da atividade mineradora cria na região que se instala traços característicos devido as particularidades do seu processo. São eles: exigência de poucos recursos para ser desenvolvida, a não concentração de propriedade, atividade que origina um produto de alto valor e de fácil transporte e origina um padrão monetário, no caso o ouro e o diamante. Sendo assim Minas Gerais adquiriu com essa atividade uma diferenciada e numerosa quantidade de mão de obra, recursos financeiros abundantes frutos da própria extração e ainda um crescente e Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 73 vasto mercado interno criado pela explosão demográfica e pelos inúmeros núcleos urbanos estabelecidos. Minas Gerais viveu durante a época aurífera seu período de gloria e crescimento. Com a decadência da extração sua economia interna já era aquecida e diversificada. Porém, mesmo possuindo os pré-requisitos básicos para a implantação de manufaturas e indústrias em seu território, estas não foram desenvolvidas. Houve um retrocesso para a economia rural, reprimindo o progresso e a evolução de seu sistema econômico, já forte desde a sua formação. Dado importância dos aspectos sociais para os mineiros e sua singular e única identidade, a mineiridade, seus traços são percebidos nesta optativa de retrocesso e travamento na implantação de manufaturas, não como causa única, mas como fatores fortemente influenciantes na determinação dessa rearticulação econômica mineira pósmineração. Na medida em que o futuro é construído com bases no passado, o povo mineiro “cheio” de passado trouxe para o seu futuro moldes de desenvolvimento carregados dos seus traços daquilo que se denominam mineiridades. A influência da atividade mineratória na construção da mineiridade O ouro e o diamante construíram o estado mineiro, envolvendo de fascínio e ilusão seus habitantes. A mística de Midas enfeitiçou o mineiro. Toda a identidade mineira foi construída pela mística presença do ouro ou por sua escassez. A mineiridade, enquanto identidade mineira se formou conjuntamente ao processo produtivo mineiro. Ela começa a ser construída no período aurífero, com a decadência, seus traços se ampliaram e se consolidaram. Por sua vez, os traços da mineiridade se perpetuaram pelo tempo não se desvinculando da sua formação original. “Chamo intemporalismo esse desdém pelo tempo que se manifesta nas menores coisas em minas.” (ARRUDA, 1990, p.122) A explosão demográfica ocorrida no ciclo do ouro trouxe a urbanização e as instituições públicas para o território. Em contrapartida, não havia na região estrutura prévia para absorver as necessidades básicas desta população. Muitas foram às privações e dificuldades para os pioneiros da mineração. A precária forma de abastecimento, a dificuldade de transporte, a geografia montanhosa e a distância do litoral, somaram-se à dedicação exclusiva a exploração aurífera tornando a população carente dos mais diversos bens e serviços, principalmente de alimentos. “A população que se precipitou para Minas era submetida a uma impiedosa seleção natural, tais as dificuldades iniciais encontradas e os trabalhos de Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 74 desbravamento e exploração.” (LUCAS, 1991, p.20). Dos tempos de privação e abastecimento defasado emergiram na sociedade mineira traços singulares de solidariedade, de altruísmo, de gosto pela abundancia alimentar e também o medo da abstinência. Após a descoberta do ouro a província mineira sofreu profunda pressão por parte da colônia. Essa pressão se deu a partir da imposição de impostos, represálias, fiscalizações intensas e forte presença da Coroa em todos os aparatos da província mineira. “Acontece que de todas as províncias desse imenso território, a mais fiscalizada, a mais oprimida, a mais explorada era sem contradição, a de Minas Gerais” (ARRUDA, 1990, p.65). A presença e a forte opressão da Coroa sobre a colônia e seus habitantes foi um dos fatores condicionantes a instituição de traços da mineiridade, na medida em que moldou certos comportamentos tipicamente mineiros. O constante temor de represálias e a exploração fiscal incentivavam o contrabando, e a desconfiança rodeou a população. O isolamento montanhês foi pela coroa acentuado como forma de restringir a fuga do ouro. Na idéia de sobrevivência nota-se outro traço de mineiridade nascida no ciclo do ouro, o caráter hospitaleiro do povo mineiro. Essa característica pode estar relacionada à miscelânea de imigrantes nacionais e estrangeiros que ocuparam e fundaram o espaço mineiro no período da mineração. A escassez e as dificuldades em adquirir o básico para a sobrevivência, dado pela distância dos centros de abastecimento são aspectos que geraram no mineiro considerações altruístas, de ajuda mútua. Os tempos de privação tornaram o mineiro indubitavelmente altruísta e afetuoso, sentem gosto em ajudar a “outrem”. Pelos viajantes não acostumados com a hospitalidade e a generosidade, essa característica soou como defeito da personalidade a ser corrigido.“È preciso se desterrar a ociosidade que muito impera em todo o Brasil, e principalmente nas Minas Gerais, em conseqüências da facilidade de se subsistir, graças à hostilidade e generosidade da gente mineira.” (ARRUDA, 1990, p.53) A idéia da descoberta de novas minas, o encanto do enriquecimento rápido e fácil foi o fator preponderante na atração desse povoamento e das primeiras impressões do caráter mineiro observado pelos viajantes.“(...) Sempre entregues à perspectiva de enriquecer subitamente, imaginavam estar isento da lei universal da natureza, que obriga o homem a ganhar o pão com o suor do seu rosto.” (ARRUDA, 1990, p.57). O ócio, desprazer pelo trabalho e a preguiça, rondou a perspectiva do povo mineiro por toda a sua formação. Por vezes essa característica foi colocada como responsável pela desarticulação mineira para as demais atividades econômicas. Ademais, considera-se que a mineração moldou esse traço, tão presente e tão realçado pelos viajantes. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 75 A Mística de Midas envolveu a identidade mineira com outro sentimento motivador dessa ilusão que foi, a esperança. Ao acompanhar fatos de indivíduos de repente enriquecerem, de escravos se alforriarem por conta própria e a facilidade da extração nos primeiros anos do ciclo geraram a crença na loteria das minas. Essa crença contaminava o ensejo ao trabalho desvalorizando as atividades desvinculadas da mineração, por estas serem demoradas, árduas e menos lucrativas. Dessa forma, ao exercer outras atividades os mineiros almejavam encontrar nelas as mesmas características da mineração, como a facilidade, lucro rápido e pouco dispêndio de tempo. O clima e a geografia das terras mineiras também foram apontados como causadoras do marasmo mineiro. A geografia das montanhas configurou um caráter de tristeza, apatia e reclusão. Assim como a generosidade e a proximidade social existente entre os donos das terras e os trabalhadores, o conformismo e a submissão são traços que vão de encontro à ambigüidade mineira, na proporção que são também dotados de revoltas e indolências assim como de esperança viva. Sustenta-se que a formação urbanizada de Minas Gerais, ocasionada pela mineração, foi uma grande e importante condicionante na formação da mineiridade. Lucas (1991) faz referencia a Washington Albino, autor de Ensaios sobre o ciclo do ouro (1978), onde este mostra a relativa autonomia da formação urbana mineira e como ela condiciona a economia local. Núcleos urbanos constituídos para determinada finalidade produtiva, já trazem na sua fisionomia inicial os traços de um condicionamento econômico e pragmático. Diferentemente do que ocorreu na colonização espanhola e em outras experiências portuguesas, foi possível a combinação imediata de espaço, população e cultura, sem passar, antes, pela experiência de destruir uma cultura local, de deslocar valores tradicionais ou de pilhar e saquear nativos. (LUCAS, 1991, p.66) A formação cultural emergida na extração aurífera mineira deu-se de forma tão singular, que sua própria formação corroborou para o pleno estabelecimento da mineiridade. Note-se que o fato de ser uma região vazia e inexplorada possibilitou a criação de traços “originais”, de traços primeiros, sem o peso da destruição ou modificações de culturas para se estabelecer. Ao se propagar a mineiridade não carregou o peso do massacre e da morte o que possibilitou seu desvinculamento de um peso negativo na sua posteridade, o que gestou bases para o seu estabelecimento e perpetuação. As minas foram o começo e fim de tudo, o ponto vital da identidade mineira. Ao se compreender a mística do ouro e tudo que a ela está vinculada, consegue-se absorver a essencialidade mineira. Assim, como o metal e as pedras preciosas, tudo que se fundou a Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 76 partir deles absorveu também a sua essência de cunho eterno e indissolúvel. Por isso em Minas a construção social, a tradição, o conservadorismo, a religiosidade, entre outros traços se disseminaram com as mesmas características indissolúveis e brilhantes do ouro e do diamante. Os aspectos sócio culturais na formação do povo mineiro A formação e transformação das atividades econômicas mineiras, agregadas a sua atípica e diferenciada formação, veio a traçar características particulares de sua “gente”. A urbanização, a religiosidade, o caráter político e desenvolvimentista, a personalidade desconfiada e retraída, a fama de “bom sujeito”, tímido e acolhedor, assim como as especialidades alimentares, foram construídas, dentre os demais fatores, pela influência das atividades econômicas desenvolvidas no espaço mineiro setecentista e oitocentista. Ao isolar-se nas montanhas nos primeiros anos de exploração, no período de mazelas vivido pelos pioneiros, associados ao vinculo urbano propiciou a essa sociedade a assimilação de construções sociais sólidas. Os vínculos da sociedade mineira com os aspectos sociais e morais são indiscutivelmente consolidados e também desarticulados das demais regiões. O esforço em preservá-los por meio da memória representa para a sociedade mineira, condição essencial a eternização de seu espírito e uma forma de distinguir-se do todo. “O memorialismo mineiro mobiliza as concepções da mineiridade, numa espécie de sacralização das lembranças da terra.” (ARRUDA, 1990, p.29) Neste contexto, pode-se afirmar que há uma profunda relação entre o comportamento social do mineiro e sua formação econômica. O regionalismo mineiro absorveu do ouro a característica do brilho e da durabilidade. Do atraso rural absorveu a simplicidade e a timidez. Das privações retirou o gosto pela mesa farta e pela abundância do alimento. A mística de Midas, por sua vez, gestou profunda aversão ao novo, a mudança, e ao que não possui a materialidade, a essencialidade dos metais preciosos. No ideário mineiro, ainda que o ouro esgotasse e que a reclusão rural fosse imprescindível, as características sociais e culturais seriam mantidas irrefutavelmente como modo de preservar sua identidade. Com esperteza e astúcia preservou sua identidade, reafirmando suas particularidades. Reservado como as montanhas e dotado de expressiva perspicácia arraigada nos tempos da exploração e da opressão metropolitana tornou-se ensimesmado e contemplativo. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 77 A religiosidade sempre foi marcante e presente no ideário mineiro, fonte de estabilidade e consolidação de características sócio culturais. Facilmente disseminada nos meios urbanos, a religiosidade fundamenta valores morais e comportamentais e os justifica. Lucas (1991) considera que o sentimento religioso se originou da luta pela existência em condições de insegurança física e social. Nas concentrações tripuladas de Minas com tendencialismo ao misticismo, a religiosidade encontrou terreno fértil. A perpetuação do caráter religioso mineiro se confundiu com a resistência a mudanças existida em outros preâmbulos da caracterização mineira como, escravidão, hierarquização social, persistência em atividades fracassadas entre outros. “É preciso notar que, em certas áreas, a intolerância religiosa, ou racial, ou política se confunde com a resistência à mudança, isto é, com o mais paralisante conservadorismo.” (LUCAS, 1991, p.108). Nesse conceito os aspectos sócio culturais encontram em Minas Gerais ampla consolidação e importância. Disseminam-se e ditam um padrão, tipicamente mineiro, de influenciar suas relações, inclusive nas bases econômicas. Traços da mineiridade: influência das atividades econômicas dos séculos XVIII e XIX A exploração de metais preciosos fortaleceu a metrópole e as atividades urbanas diversificando a economia. Essa atividade também estimulou as ligações entre os setores econômicos e fornecedores destinados aos bens de primeira necessidade, voltados ao interesse de viabilizar a ocupação no território mineral. A economia mineradora reafirma-se como atípica no cenário econômico brasileiro, quando comparada a outras atividades econômicas brasileiras. A formação de núcleos urbanos viabilizaram o processo exploratório suprindo a população dos mais variados bens, produtos e serviços necessários, principalmente os de primeira necessidade. Essa malha urbana não era autossuficiente e era totalmente concentrada na exploração. Assim, o desenvolvimento das demais atividades em torno do processo de urbanização proporcionou, além de diferenciação social e de ocupação, a intensificação dos fluxos monetários. Como dependia do fornecimento de alimentos, transporte e demandava bens e serviços diversos inerentes de uma população altamente concentrada e urbanizada, apresentava transações comerciais elevando o grau de monetização da economia. A distância do litoral favoreceu emergir a procura por bens e serviços correntes, e a aquisição Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 78 e pagamento desses bens e serviços espalhavam a renda para fora dos limites da mineração.44 De acordo com Coutinho (2008), ao admitir-se o inegável dinamismo da economia mineira setecentista e oitocentista questiona-se quais seriam as supostas razões ao fracasso das manufaturas mineiras, já que dentro dos conceitos básicos, Minas Gerais possuía a contento todas as condições favoráveis ao desenvolvimento dessa atividade. Segundo ele, analisando a obra de Celso Furtado quanto à economia de Minas e a economia dos três grandes ciclos econômicos brasileiros – açúcar, mineração e café – em relação às demais, a mineração apresenta singularidades e particularidades exclusivas a essa atividade bem como aos padrões como ela se estabeleceu. As diferenciações não observadas nos demais ciclos tornaram-na ímpar em sua análise.45 No território mineiro setecentista e oitocentista foi possível observar pré-requisitos básicos que viabilizariam a implantação de manufaturas e de uma estrutura industrial favorável. Atentaremos a presença de três fatores fundamentais que por si só já seriam suficientes ao desenvolvimento destas: o mercado, a mão de obra e o capital. Temos que em termos de mão de obra que em Minas Gerais consolidou-se uma imensa gama de imigrantes vindos de diversas partes e também dotados de habilidades diversas, ainda que ao imigrarem e se estabelecerem em solo mineiro esses imigrantes não exerciam sua profissão original eles ainda continuavam dotados das habilidades a elas pertinentes.46 A escravidão em Minas Gerais, por sua vez, foi então consideravelmente atípica. “A escravidão ‘normal’ seria a do plantation; as demais, exceções à regra.” (VERSIANI, 1998, p.40). No escravismo mineiro, diferentemente do açucareiro, os escravos não chegaram a constituir a maioria da população, tem-se ainda que estes possuíssem maior iniciativa e também recebiam incentivos que propiciavam a conquista da liberdade. (LUCAS, 1991, p.19). Versiani (1998) aponta ainda que na extração mineral para minimizar as perdas era necessário aplicar atenção ao trabalho exercido pelo escravo tornando, portanto essa tarefa “intensiva em habilidade”. A escravidão em Minas se diferencia fortemente da escravidão do plantation. Na mineração a coerção era mais voltada a coibir os furtos e não em maximizar a produção, que por ser intensivo em habilidade ocasionaria perdas. Os escravos 44Para mais detalhes sobre a economia provincial mineira ver: O mercado interno provincial: um estudo dos preços de mercado dos gêneros da produção mineira em 1839/40, RESTITUTTI(s/d). 45 Para mais detalhes sobre os ciclos produtivos da economia colonial brasileira ver, entre outros, Furtado (1970). 46Para mais detalhes sobre os imigrantes e suas habilidades ver WIRTH, 1982, p.53 entre outros. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 79 por sua vez trabalhavam visando seus próprios ganhos, caracterizado pela possibilidade de recompensas ou por pequenos furtos, modificando os parâmetros de escravidão.47 Quanto ao mercado, Minas Gerais ao se urbanizar criou um expressivo e múltiplo mercado interno e também por intermédio do esvaziamento do ouro abriu portas ao mercado interprovincial. A densa demografia e a formação de núcleos urbanos desenvolveu o setor de serviços e o comercio. Incentivados e essenciais ao desenvolvimento da mineração, como forma de viabilizar a presença dos mineradores na região, esses setores não foram vistos com maus olhos pela coroa, como as manufaturas. Isso contribuiu para o seu crescimento e sua fácil implantação em toda a zona mineral. A própria escravidão mineira que se deu em contesto diferenciado, acrescentou ainda que timidamente um começo a possibilidade da população negra a participar do mercado interno através das recompensas e dos furtos que eles realizavam48. Por se tratar de um padrão monetário de alta aceitação e comercialidade o ouro e o diamante estabeleceram a monetização da economia mineira no período. Os recursos desviados ao pagamento de impostos deixaram na província um excedente econômico que chegou a possibilitar no período da decadência aurífera a implantação de indústrias têxteis, pastoril e siderurgia em Minas. Por meio das lucrativas lavras do inicio da exploração e da monetização propiciada pelas pedras e metais preciosos houve no território mineiro formação de capital. Mesmo com a forte evasão das divisas pressionadas pela metrópole e seus pesados impostos e forte fiscalização o mercado mineiro ainda conseguia produzir excedentes e reter parcela da produção.49 A mercantilização do território mineiro setecentista e oitocentista era inquestionável e se justifica com base ainda que somente, na grande massa populacional e predominantemente urbana. Distinguiu-se em forma e intensidade de acordo com as regiões e suas formações. As regiões de Minas não diretamente ligadas à mineração dedicaram-se a prover as necessidades de abastecimento destas, principalmente na agricultura e na pecuária. Nas zonas mineradoras a alta monetização promoveu o aumento dos preços, esse aumento foi ainda intensificado pela prevalência da exploração mineral frente às outras atividades. 47Para mais detalhes sobre o trabalho escravo em Minas Gerais ver VERSIANI, 1998, p.53 entre outros. mais detalhes sobre a economia provincial mineira ver: O mercado interno provincial: um estudo dos preços de mercado dos gêneros da produção mineira em 1839/40, RESTITUTTI(s/d). 49Para mais detalhes sobre a monetização da economia mineira ver LUCAS, 1991, p.19 entre outros. 48Para Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 80 Coutinho (2008) ao questionar as transações monetárias e o pagamento de fatores sob os traços básicos do modelo de Furtado na economia aurífera do século XVIII e sua posterior fase de decadência pondera: “se houve disseminação dos pagamentos na forma monetária, por um período razoável, apenas razões bem especiais poderiam impedir a formação de fluxos autossustentados de expansão da renda.” (COUTINHO, 2008, p.373). Sabe-se que em Minas Gerais no período aurífero houve disseminação dos pagamentos na forma monetária propiciada pelo mercado interno e também interprovincial assim como pelo dinamismo oferecido pela rede urbana e diversidade de mão de obra. As Minas setecentista com a exploração aurífera gestou a formação de mercado, capital e mão de obra que conduziriam a expansão manufatureira da província. Observa-se que mesmo com o estruturado desenvolvimento dessas bases, mercado – mão de obra – capital, com a decadência aurífera a economia do Estado mineiro, voltou-se de forma significativa para as bases rurais em proporções nunca antes vividas pela província, contrariando o fluxo lógico do desenvolvimento do processo produtivo. O relativo atraso à implantação de manufaturas e o retrocesso à economia rural Os traços da mineiridade, fatores sócios culturais mineiros, construídos e estabelecidos na sua formação, são, em conjunto com outros fatores, responsáveis pela optativa mineira ao retrocesso a economia rural e no relativo atraso ao desenvolvimento de manufaturas e indústrias em Minas, a exemplo de São Paulo.“(...) Trata-se de reconhecer, que toda a modernidade mineira tinha um decisivo travamento: seu compromisso com o passado.” (DE PAULA, 2000, p.47). A idéia do sonho dourado está diretamente relacionada com os traços da mineiridade. A esperança mineira de se deparar com a descoberta de pedras e metais preciosos permitia a mobilidade social desconhecida até então para as demais regiões colonizadas no Brasil. O ambiente urbanizado, a ausência da concentração de terras, como na monocultura da cana de açúcar, além do pouco interesse atribuído a esse bem (terra) possibilitou a facilitação do cultivo de subsistência do povo. Dado pelos viajantes como povo habituado ao não trabalho, ou seja, ao ócio, construíram na visão deles a imagem do mineiro como um povo cultivador da idéia de sobrevivência desvinculada da necessidade de grande trabalho. O que afasta os habitantes desta cidade do habito de uma indústria regular, é a esperança continua que alimentam de se tornarem repentinamente ricos pela descoberta de minas. Estas idéias enganosas (...) dão-lhes invencível aversão ao Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 81 trabalho, embora todos vivam miseravelmente, e, muitas vezes dos obséquios de outrem. (ARRUDA, 1990, p 57.) Diversas são as passagens em quem os viajantes chamam a atenção ao caráter preguiçoso e tendido ao ócio dos mineiros. Essa marcante característica, ou defeito dos mineiros foi criado a partir da mística de Midas. Esse processo ilusório de enriquecimento, de trabalho a subsistência e de dedicação apenas às lavras foi também incentivado pelas articulações da metrópole para manter todos os esforços da provincia voltados à mineração. A mais marcante interferência metropolitana na investida de coibir a descentralização de esforços da extração foi o Alvará de 5 de Janeiro de 1785, que instituía a proibição de manufaturas têxteis nas capitanias da Brasil. Varnhagem (s/d) descreve essa proibição como “ato mais arbitrário e opressivo da metrópole contra o Brasil desde o reinado anterior” (VARNHAGEN, s/d, p.374, APUD, NOVAIS,2000, p.214). A coroa alegava que a dedicação ao trabalho nas fabricas causaria prejuízos ao trabalho no campo e nas minas. Desta forma, o trabalho apenas nas lavras foi realçado com o referido decreto da coroa. Na já influenciada província mineira, à dedicação exclusiva a extração esta foi mais uma reafirmava de dedicação a essa atividade. Apela também para o temor de preservar o sustento alimentar que já havia afetado a população no inicio do povoamento. Assim criouse mais um fator a expugnação das tendências ao progresso e evolução de fábricas e manufaturas na região. De fato o trabalhador das gerais não era em sua essência ocioso. Eram envolvidos intensamente pela mística de Midas e por sua vez encontrou incentivos governamentais para seu comportamento. Tornou-se inapropriado e inadequado ao mineiro, já intensamente ligado aos padrões sociais de tradicionalismo e essencialismo a dedicar-se a outros afazeres tidos como “prejudiciaes e nocivos”. Atribuindo as manufaturas um caráter prejudicial à lavoura e a mineração facilmente os mineiros se convenceram a submeter-se à proibição. As atividades prejudicadas eram para os mineiros, as que eles mais zelavam e temiam de extinção, ouro e o alimento. Observa-se, porém, que a implementação das proibições pouco afetou, ou contrariaram a tendência vigorosa mineira ao emprenho mineral. Os dados disponíveis da aplicação do alvará sugerem que pouco foi encontrado para apreender. Novais (2000) cita José Vieira Couto “nunca em Minas se fabricara senão teçume próprio para os escravos e gente miúda”, produção que não era proibida pelo alvará. (NOVAIS, 2000, p.232). As considerações relativas às instalações das manufaturas na província de Minas Gerais retratam os traços sociais inseridos no contexto de formação econômica mineira no Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 82 período aurífero. Ainda que diversos fatores corroborassem para mitigar o processo industrial no estado, estes por si só não explicam o travamento nas proporções inibidoras que estas atingiram. Essa idéia é reforçada por Coutinho (2008), referindo às relações colocadas por Furtado em Formação Econômica do Brasil sobre o desenvolvimento da Austrália no século XIX. Percebe-se que há fatores não explorados nessa investigação a despeito do relativo atraso mineiro ao progresso manufatureiro e industrial, mesmo tendo a província mineira condições a sua plena e forte instalação. Editos governamentais não conseguem suprimir tendências econômicas vigorosas. Formação Econômica do Brasil utiliza o exemplo da Austrália do século XIX para mostrar como o declínio de uma atividade mineradora pode levar a uma diversificação econômica. Em Minas, ao contrário do que viria a acontecer na Austrália (100 anos depois...), o declínio da mineração levou a uma regressão da atividade econômica. (COUTINHO, 2008, p.365 - 366.) O vigor econômico da mineração era inquestionável. Tem-se ainda que o povo mineiro desde sua primordial formação era considerado como “povo dado a motins e conflitos”, “tumba da paz”, portanto um edito governamental não justificaria o travamento ao desenvolvimento econômico manufatureiro. Muito menos se justificaria por fatores como a inexistência de pré-requisitos básicos a produção manufatureira. Para o mineiro, a questão da tradição foi utilizada como forma de resguardar e preservar sua identidade. O caráter desconfiado e temeroso criado pelo período minerador e suas implicações persistiram nos processos econômicos mineiros subseqüentes. A mineiridade destaca-se no comportamento do homem mineiro nas descrições dos viajantes, que apontam as habilidades destes ao processo industrial e ao mesmo tempo suas diferenciações comportamentais frente aos demais. (...)os mineiros formam por assim dizer uma população a parte entre a população brasileira.(...) No geral as singularidades são marcantes: o habitante de minas não se distingue somente por sua sagacidade natural, por sua franqueza, por seus hábitos de hospitalidade, mas depois do Rio de Janeiro nenhuma região neste vasto império apresenta reunidos melhor do que em Minas tantos elementos próprios para desenvolver um movimento industrial favorável(...). (ARRUDA, 1990, p. 85) Tem-se ainda que o caráter temeroso do mineiro provocou certa aversão ao que “vem de fora”, considerando que tudo de fora das montanhas, perturbavam, tumultuavam e incomodavam a sua vangloriada solidão. “Os sertanejos demonstravam: profunda indiferença por tudo que existe além da sua solidão, é o sinal distintivo do seu caráter.” (ARRUDA, 1990, p.85). O que transcende as montanhas gera desconfiança e resguardo, são intuídos como fatores que viriam a destituí-los de algo muito preservado como a tradição e a identidade. Nessa Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 83 perspectivaa aversão às mudanças, ao novo e desconhecido, ao irreal e palpável, facilmente negociável, e principalmente essencial era objeto de repulsa. Os aspectos sociais dos mineiros foram assim influenciantes no relativo atraso manufatureiro. Optar pela manufatura e pelas indústrias parecia redundante na visão do viajante visto a própria dinâmica do processo de evolução econômico. Porém, para o mineiro realizar essa opção significava cortar seus laços tradicionais. Seria romper seu sonho dourado, desbravar um “mundo” desconhecido, ao lado da solidez do metal, representava perigo e descontentamento. O sonho do metal e das pedras preciosas, aliados ao temor das privações do passado fizeram do ouro e do alimento fundadores da essencialidade mineira, destinados à preservação permanente. No período da decadência do ciclo do ouro, a economia mineira apresentou-se reclusa, mas não estagnada, mantendo seu dinamismo através das demais atividades que se desenvolveram na região para viabilizar a mineração. Com a decadência das extrações a economia mineira teve de se readaptar frente ao novo contexto. Estudos realizados referentes ao período demonstram que a economia interna, apesar da optativa ao travamento manufatureiro, manteve-se aquecida em outros setores, particularmente rurais, e apresentava forte dinamismo. Cabe então compreender o que levou a economia mineira e retroceder para as bases rurais. Sabe-se que as interferências sociais e econômicas se fundiram se influenciando mutuamente em Minas Gerais. No retrocesso a economia rural também pode apontar traços da mineiridade que o influenciaram. Faz-se necessário entender que para o mineiro o fim do período do ouro representava o fim do sonho dourado, portanto representava a desesperança, a vergonha, à derrota, depois de tanta espera e dedicação. “Ao mesmo tempo quando o fausto do ouro tornou-se passado, a decadência que se segue pode gerar certa rejeição em face do mundo, criando um lastro comum aos períodos decadentes.” (ARRUDA, 1990, p 61). Para alcançar seu sonho o povoador mineiro desbravou as montanhas, passou por restrições, faltas e construiu um padrão de costumes e tradições vinculados ao processo economico. As derrotas mineiras recriaram em seu âmago profunda vergonha e descontentamentos geradores de características sociais marcantes. “Esse conjunto de vexames e afrontas havia necessariamente de robustecer nos mineiros o complexo de desconfiança.” (ARRUDA, 1990, p 107). Assim não é de se surpreender que com o fim do ouro os mineiros voltassem sua atenção a sua próxima grande preocupação e ocupação, o sustento alimentar. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 84 Ao repensar o campo como sua nova principal atividade econômica ele conquistou além da segurança de provimentos para o tempo futuro a possibilidade de reclusão. Se o sentimento de vergonha e derrota não podiam ser menosprezados pelo mineiro eles podiam se esconder no meio rural. É importante nesta compreensão a noção de que com o fim do ouro a economia mineira não tinha como única opção retroceder ao meio rural, sua estruturação de mão de obra, capital e mercado no período possibilitariam outras optativas. Seus precedentes de formação desvinculados dessa atividade como central fortaleceriam as propensões à escolha de outras atividades econômicas, que não a um retrocesso rural. Considerações finais A construção primitiva da mineiridade se deu na atividade mineradora, primeira e certamente a mais significativa atividade econômica desenvolvida no território mineiro desde seu desbravamento até a atualidade. Em torno do ouro, a mineiridade se fundou e se consolidou. Quando a atividade mineratória chegou à exaustão, o espírito mineiro já estava entranhado de características socioculturais fortes, que moveram esta sociedade a uma optativa econômica atípica e diferenciada quebrando o percurso convencional de direcionamento. Ao mesmo tempo em que a atividade econômica mineradora do século XVIII foi responsável, inegavelmente, pela construção dos traços da mineiridade, estes por sua vez passaram a ser um dos principais fatores influenciadores das optativas econômicas posteriores a mineração. O intemporalismo, em outras palavras, o desdém pelo tempo, essa típica confusão mineira entre presente, passado e futuro, dada nas experiências econômicas mineiras vivenciadas nos séculos XVIII e XIX, fizeram de Minas um grande baú que preservou características do passado. Ao considerar um recomeço econômico no período da “decadência”, os traços da mineiridade podem ser encontrados e analisados neste processo. Mesmo sendo um território dotado de qualificações econômicas que viabilizariam o desenvolvimento de suas atividades, como demonstrado através da sua atípica construção urbanizada, da sua numerosa e diversificada população, do capital e mercado entre outros atributos, o mineiro preferiu retroceder ao meio rural a desenvolver sua atividade manufatureira. Os aspectos sociais, o apego às tradições e o dever indelével de sacralizar as lembranças do passado foram sempre ativos na formação mineira. Então, como poderiam elas se distanciar das suas optativas econômicas? Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 85 A atípica formação do território fez com que na província mineira se trava-se um conflito interno de valores de uma sociedade diferenciada. O vexame do empobrecimento, o endurecimento a manter empreendimentos fracassados e a mística de Midas talvez jamais se separasse da sua trajetória econômica. Sobre o entendimento de que preservar seria até mesmo manter as particularidades que pudessem vir a prejudicar Minas Gerais, o estado carregou no seu processo produtivo o peso das considerações sócio culturais. Em termos nacionais a formação de Minas Gerais teve importância relevante. O ideário de liberdade, democracia, igualdade e acessibilidade do espaço nacional, certamente tiveram seus primeiros passos fundados em território mineiro. Estes fortaleceram e ampliaram com bases na solidez da mineiridade. A busca do ouro e das pedras preciosas contribuiu para efetivar o caráter nacional, mas principalmente o caráter mineiro. As glórias antigas passaram, mas muitos traços culturais ficaram e outros surgiram. A situação material e espiritual moldou as perspectivas econômicas mineiras e desvinculá-las representaria modificar a essência do caráter mineiro. “De qualquer forma um caráter foi forjado. Dele, centenas de estribas tem-se aproveitado”. (LUCAS, 1991, p.101) Referências Bibliográficas: ARRUDA, Maria A. do Nascimento. Mitologia da Mineiridade. 1º ed.: São Paulo: Brasiliense, 1990. COUTINHO, Mauricio C. Economia de Minas e economia da mineração em Celso Furtado. Nova economia. Belo Horizonte 18(3), p.361-378, setembro-dezembro de 2008. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-63512008000300002&script=sci_arttext>. Acesso em 14 junho 2011. DE PAULA, João Antônio. Raízes da Modernidade em Minas Gerais. Belo Horizonte: Editora Autêntica 2000. LUCAS, Fabio. Mineiranças. Belo Horizonte: Oficina de livros, 1991. NOVAIS, Fernando Antônio. A proibição das manufaturas no Brasil e a política econômica portuguesa do fim do século XVIII. Revista de História. 142-143 (2000), 213-237. Disponível em <http://www.revistasusp.sibi.usp.br/scielo.php?pid=S003483092000000100005&script=sci_arttext>. Acesso em 14 junho 2011. RESTITUTTI, Cristiano Corte. O mercado interno provincial: um estudo dos preços de mercado dos gêneros da produção mineira em 1839/40. (s/d). Disponível em <http://www.cedeplar.ufmg.br/seminarios/seminario_diamantina/2006/D06A035.pdf>. Acesso em 14 junho 2011. VERSIANI, Flávio Rabelo. Os escravos que Saint-Hilaire viu. Diamantina, 1998, VIII Seminário de economia mineira. Disponível em Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 86 <http://historia_demografica.tripod.com/bhds/bhd37/versaint.pdf saint hilaire>. Acesso em 14 junho 2011. WIRTH, John D. O Fiel da Balança: Minas Gerais na Federação Brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 87 Labor mecânico: oficiais mecânicos arrematantes de obras junto ao Senado da Câmara de Mariana, século XVIII Danielle de Fátima Eugênio Mestranda em História pela UFOP/ Proext - Ministério da Educação daniellef.eugenio@gmail.com Resumo: Este trabalho busca abordar o tema do oficialato mecânico na capitania de Minas Gerais, através da análise de um determinado grupo de oficiais mecânicos, composto por arrematantes de contratos de obras públicas, em Mariana, durante o século XVIII (especialmente a segunda metade). Para tanto utilizaremos registros encontrados na documentação arrolada, que consiste em testamento e inventários post-mortem. Informações como: indicação do ofício mecânico praticado, realização de outras atividades paralelas ao exercício do ofício, registros de licenças ou cartas de exame, número de arrematações contratadas, registros de dívidas ativas e passivas, formação de sociedades, levantamento dos bens móveis e imóveis, composição dos plantéis de escravos que possuíam, se pertenciam a agremiações leigas, naturalidade e cor da pele. Desse modo, analisaremos como alguns dos arrematantes de obras públicas viviam, se representavam, inseriam e ascendiam socialmente. Contudo, estamos nos referindo ao perfil social e às relações sociais estabelecidas no cotidiano dos trabalhadores manuais que satisfizeram as necessidades da Câmara de Mariana em executar as construções propostas. Palavras-chave: Oficiais mecânicos; arrematantes de obras públicas; século XVIII Abstract: This work looks to analize the privileged group of craftsmen, formed by public works’ bidders in the Eighteen Century Mariana, Minas Gerais. For that, we will use data from wills and inventories like: the mechanical craft practiced, the realization of other activities besides the craft, registration of licences or letter of examination, number of buildings, debt’s registration, formation of societies, collection of real estate and movables, the application of slave labor, the participation in lay brotherhoods, place of birth and skin collor. So, we will analyze how some craftsmen lived, were inserted and ascented in a colinial society. We are refering about the social profile and relations made in craftsmen’s daily who satisfied the Câmara of Mariana needs to execute the buildings. Keywords: Mechanical craftsmen, public works’ bidders, eighteenth century. Introdução Nesta comunicação buscaremos abordar o tema do oficialato mecânico na capitania de Minas Gerais, através dos perfis sócio-econômicos de um determinado grupo de oficiais mecânicos, composto por arrematantes de contratos de obras junto ao Senado da Câmara de Mariana. Contemplaremos os oficiais que se destacaram quanto ao número de trabalhos contratados na segunda metade do Setecentos e apresentaremos como viviam, se representavam, inseriam e ascendiam socialmente. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 88 Arrematantes de obras públicas na cidade de Mariana Inicialmente, fazemos uma ressalva acerca do uso da palavra labor que fora utilizada no título desse trabalho. Não fazemos referência ao conceito Thompsiano de labor (Labour), mas sim, e simplesmente, ao trabalho manual desempenhado pelos arrematantes. Como consta no dicionário de D. Raphael Bluteau, quando descreve trabalho: “dado ao trabalho. Laboriosus (...) Trabalhosamente. Com trabalho. Laboriosé. Cic. Laboriosiús , & Laboriosissimé, são usados (...). Trabalhoso. Cousa, que dá trabalho. Laboriosus, a, um. Cic.” (BLUTEAU, 1712: 230,231 - l.8). E no dicionário de Antonio de Moraes Silva, quando descreve trabalhador: “s.m. Obreiro (...) Trabalhador: Dado ao trabalho. (...) Trabalhar: v. n. Usar das forças, e engenho para fazer alguma obra rústica, d’arquitectura, ou de entendimento, ou mecânica (...) Trabálho, s.m. Exercício corporeo, rustico,ou mecânico (SILVA, 1789: 792 – v. II). Feita a ressalva, iniciaremos o estudo proposto. Durante a segunda metade do Setecentos, mesmo com o declínio da mineração, houve aumento da demanda por ofícios mecânicos em diversas porções da colônia. No caso de Mariana, em um contexto de reconstrução do núcleo urbano, assolado pelas enchentes do Ribeirão do Carmo e preparativos para se tornar o centro religioso das Minas. Ao longo do século XVIII, o núcleo urbano da região do Ribeirão do Carmo sofreu lentas, porém importantes transformações em sua organização. Deixou de ser arraial para ser elevado à categoria de Leal Vila e no ano de 1745, foi elevada ao patamar de Cidade devido à instalação da sede do Bispado e à chegada do bispo Dom Frei Manoel da Cruz para sua definitiva consagração em fins de 1748. Nesse período, a Câmara proporcionou uma ampla demanda por quem executasse suas obras. Faz-se necessário, portanto, a reflexão sobre as seguintes indagações: quem executava as atividades in loco na lide diária dos canteiros de obras? Quem arrematava as obras requeridas pelo Senado da Câmara de Mariana nesse momento de reconstrução do núcleo urbano? Qual o perfil sócio-econômico desses trabalhadores? Alguns se destacavam quanto ao número de contratos de obras arrematados? A partir do Índice de Obras Públicas de Mariana (1715-1863) feito pela equipe de pesquisadores do Programa Cantaria, elencamos sete oficiais mecânicos: o alferes Sebastião Pereira Leite, Sebastião Martins da Costa, o alferes Francisco Álvares Quinta, Bento Marinho de Araújo, João de Caldas Bacelar, Cosme Fernandes Guimarães e o alferes José Pereira Arouca. Quanto às obras públicas arrematadas pelos referidos oficiais constam a Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 89 construção de calçadas, pontes, pinguelas, fontes, chafarizes, paredões, muros e edifícios públicos. Todos estes nomes são encontrados no Dicionário de Artistas e Artífices de Judith Martins, podemos ver a referência ao ofício na seguinte tabela TABELA 1 Identificação do ofício Arrematantes Ofício identificado no Dicionário Sebastião Pereira Leite Calceteiro Sebastião Martins da Costa Carpinteiro Francisco Álvares Quinta Pedreiro Bento Marinho de Araújo Pedreiro João de Caldas Bacelar Pedreiro Cosme Fernandes Guimarães Carpinteiro José Pereira Arouca Pedreiro e Carpinteiro Fonte: MARTINS, Judith. Dicionário de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas Gerais, Rio de Janeiro: Departamento de Assuntos Culturais/MEC, 1974. Como consta no Índice dos Registros de Carta de exame de ofício (1737-1806), a prática legal dos oficiais mecânicos era concedida pela Câmara, através do registro de uma carta de exame em livro. O processo tinha início com um requerimento de exame de ofício encaminhado à Câmara pelo requerente. Havia uma avaliação realizada pelo juiz e escrivão do respectivo ofício e quando aprovado, o oficial encaminhava à Câmara uma petição requerendo a carta de exame. Assim os camaristas (juiz, vereadores, procurador) confirmavam o exame realizado e o escrivão da Câmara registrava a certidão. No referido índice foi localizado apenas o registro da carta de exame do oficial Cosme Fernandes no ofício de carpinteiro (em 1739, na Vila de Nossa Senhora do Carmo, constando como examinadores Paulino Henriques e Manoel Martins Mendes). No entanto, alguns oficiais aparecem como examinadores: Sebastião Martins da Costa, em 1747; Bento Marinho de Araújo, em 1756 e 1757; Cosme Fernandes Guimarães, em 1757 e 1778. No clássico estudo de Salomão de Vasconcellos, Os ofícios mecânicos em Vila Rica no século XVIII, também há referência a Sebastião Martins da Costa, nos termos de arrematações do período de 1737 a 1745, em meio a relação dos nomes de oficiais que Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 90 registraram licenças e cartas de exames ou foram eleitos juizes de oficio. Dentre os registros das cartas de ofícios e provisões dos anos de 1741 a 1744, ele figura entre os juízes de carpinteiro; nas Atas da Câmara referentes ao período de 1742 a 1745, consta como eleito ao cargo de escrivão do ofício de carpinteiro. Contudo, mesmo não sendo encontrados os registros das cartas de exames dos demais oficiais, podemos considerá-los mestres de ofício, pois, além do considerável número de arrematações, atuaram como examinadores de ofício. Recorrendo aos inventários post-mortem encontramos importantes registros, como a naturalidade de cada oficial, sendo que todos os trabalhadores analisados vieram do Reino. O que corrobora as observações do historiador Fabiano Gomes da Silva: No século XVIII, milhares de portugueses cruzaram o Atlântico sonhando com melhores dias na afamada região das pedras e dos metais preciosos do Brasil, deixando para trás famílias, parentes e amigos que dificilmente tornariam a ver. Muitos desses homens eram oficiais e mestres em suas comunidades, com experiência em ofícios necessários para as vilas e arraiais mineiros (SILVA, 2006: 286).50 TABELA 2 Naturalidade Oficiais mecânicos Local de origem Sebastião Pereira Leite Freguesia de São Pedro de Alvinho Cabeceiros de Basto, Arcebispado de Braga, Comarca de Guimarães Bento Marinho de Araújo Freguesia de Santa Maria termo de Valença do Minho, Arcebispado de Braga João de Caldas Bacelar Freguesia de São Pedro de Cima, termo de Valadares, Arcebispado de Braga Francisco Alves Quinta Freguesia do Couto de São Miguel de [?], termo da Ponte de Lima, Arcebispado de Braga Sebastião Martins da Costa Freguesia de São Pedro [corroído] Arcebispado de Braga Cosme Fernandes Guimarães Natural de São Romão [?] termo de Guimarães Arcebispado de Braga 50 SILVA, Fabiano Gomes da. Trabalho e escravidão nos canteiros de obras em Vila Rica, no século XVIII. In: Brasil-Portugal: sociedades, culturas e formas de governar no mundo português (século XVI-XVIII). São Paulo: Annablume, 2006, p. 286. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 91 José Pereira Arouca Natural da Freguesia de São Bartholomeu da Villa de Arouca Bispado de Lamego Fonte: AHCSM, Livro de Registro de Testamentos 1º Oficio, Nº 45, fl. 160; Nº 76, fl. 46; Nº 41, fl. 27 v. AHCSM, Inventários 1º Oficio, Códice 154, Auto 3244; Códice 116, Auto 2330. Inventários 2º Ofício, Códice 139, Auto 2801; Códice 89, Auto 1923. Chamou-nos a atenção, além da origem portuguesa dos oficiais, o número de imóveis que possuíam, suas dívidas e seus plantéis de escravos. Quanto aos bens imóveis temos: TABELA 3 Bens Imóveis Oficiais Imóveis (montante) Sesmarias/ Terras minerais Bento Marinho de Araújo 2:161$600 _ João de Caldas Bacelar 2:195$000 1:000$000 (1) Francisco Alves Quinta 600$000 _ Sebastião Martins da Costa 800$000 600$000 (2) 5:756$600 1:600$000 Total Fonte: AHCSM, Inventários 1º e 2º Ofícios, Códices: 89, 92 e 139. (1) “uma sesmaria de terras de planta que partem com Constantino da Silva fica no rio do Casca infestada dos gentios; tem outra sesmaria no dito rio do casca que partem com o Capitão Francisco Luiz Manoel Rodrigues Coura”; “uma sesmaria de terras brutas que partem com a fazenda da sociedade com o Padre José Lopes João Rodrigues”. (2) “uma roça com terras e águas minerais com casas de vivenda e mais pertences comprada de Pedro da Fonseca Magalhães na freguesia de Guarapiranga na paragem de Nossa S da Conceição”. Estes dados, são indícios de que os oficiais mecânicos escolhidos realizavam outras atividades além do exercício de seus ofícios. Essa possibilidade foi levantada por depararmos nos inventários de alguns dos oficiais com a posse de sesmarias, terras minerais e um grande volume de dívidas, principalmente dívidas ativas. Nos inventários de Sebastião Pereira Leite, João de Caldas Bacelar, Francisco Álvares Quinta e Bento Marinho de Araújo, encontramos o registro de dívidas ativas, listadas de forma a apresentar o nome dos devedores (pessoas ou instituições), o valor da dívida, o documento utilizado para registrála e, algumas vezes, a data de vencimento para pagamento do crédito. Através dos registros das dívidas podemos verificar a formação de redes de crédito consideravelmente extensas. Tomamos como exemplo principal as dívidas de João de Caldas Bacelar, sendo que o Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 92 número de devedores envolve mais de cinquenta nomes diferentes. Assim, podemos concluir que dentre os ditos arrematantes, alguns se destacaram como importantes credores. TABELA 4 Dívidas Inventariado Montemor Dívidas ativas Dívidas passivas Outras dívidas Sebastião Pereira Sem registro (1) Leite 973$708 ------------ 2:950$000 João de Caldas 14:199$299 e ½ Bacelar 3:384$450 10$012 303$920 Francisco Quinta 519$636 e ½ ----------- 453$827 99$562 Alves 2:317$654 Bento Marinho 4:520$551 e ½ de Araújo ------------ Fonte: AHCSM, Inventários 1º Ofício, Códices 135, 92, 139 e 89. (1) Não há o item monte-mor neste inventário. Mas a soma de todos os bens arrolados, é de aproximadamente 4:406$788. Segundo Fabiano Gomes da Silva, para assegurar sua participação no mercado de trabalho, era importante para esses oficiais a formação de redes de sociabilidade e camaradagem, sendo imprescindível o estabelecimento de boas relações com as pessoas ligadas ao Estado, a irmandades, a ordens terceiras, a membros das elites locais e a fiadores respeitáveis. Esses últimos eram pré-condição para o estabelecimento de uma arrematação, o que contribuía para formação de redes clientelares (SILVA, 2006: 290). Acreditamos que tais redes de crédito possibilitaram a formação de vínculos sociais por prestação de favores, o que pode ter servido para que se inserissem e acomodassem na sociedade marianense, além de poderem demonstrar sua condição de homens abastados, seja pelo empréstimo de dinheiro ou pelo montante que recebiam com as obras arrematadas ou contratadas. Outro importante dado consiste no plantel de escravos pertencentes a cada trabalhador: TABELA 5 Plantéis por oficial Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 93 Oficiais Número de escravos Inventariados Especializados Mulheres Homens Nascidos na colônia Africanos(1) Outros Total Sebastião Leite 0 1 5 4 1 1 6 1 4 10 2 10 2 14 1 5 7 10 3 _ 13 0 3 9 4 8 _ 12 1 11 19 21 8 1 30 21 1 25 4 21 1 26 24 25 72 45 51 5 101 Álvares Bento Marinho de Araújo João de Bacelar Total Pereira Sebastião Martins da Costa Francisco Quinta Origem Caldas José Pereira Arouca Totais Fonte: AHCSM, Códices 89, 139, 135, 154 e 116. (1)Etnias dos escravos africanos: África Ocidental – Cabo Verde, Fula, Mina, Nagô e Sabaru, Costa do Marfim, Guiné e Nação Courana; África Central Atlântica – Angola, Basa, Bemba, Benguela, Cabinda, Cassange, Congo, Ganguela, Massangano, Monjolo, Muhembé, Mutemo, Quissama, Rebolo e Xamba, e São Tomé; África Central da Costa do Índico – Moçambique; Indefinida – Xará, Nação Fam, Cobú, Nação Ladano, Nação Cambudá, Bique e Moconco (PAIVA, 2001: 71).51 Em uma amostragem de 101 escravos apresentados nos inventários, 24 foram especificados como especializados, ou seja, detinham o conhecimento de determinado oficio e podiam auxiliar seus donos na execução de seu labor, como nas obras arrematadas junto a Câmara de Mariana. Dessa maneira, temos o seguinte questionamento: tendo em vista o considerável número de obras públicas arrematadas e considerando as obras contratadas por particulares, podemos afirmar que apenas esse reduzido número de escravos especializados ajudava na lide diária dos canteiros de obras? A documentação consultada é lacunar a respeito da condição de escravo especializado. Todavia, ressaltamos 51 Em nosso levantamento há referências apenas às etnias Mina, Angola, Benguela, Cabinda (ou Cabunda), Congo, Monjolo, Rebolo e Moçambique. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 94 que esses cativos eram avaliados com um preço maior do que o dos escravos não especializados. A exemplo, no inventário de Sebastião Martins da Costa consta que seu “mulato Serrador Manoel 28 anos” foi avaliado em 200$000; o cativo de Francisco Álvares Quinta, “Francisco Angola Pedreiro 40 anos”, em 160$000; o de Bacelar, “Joao Carapina Benguela 42 anos [em] 130$000”.52 Como a posse de escravos era um indício de riqueza e predominavam nas vilas mineiras plantéis de quatro a seis cativos por proprietário, estamos diante de um pequeno grupo de homens abastados que se destacavam socialmente mesmo sendo oficiais mecânicos. Como já dito, os oficiais arrolados se destacaram quanto ao número de arrematações das obras do Senado da Câmara. Segundo o Índice de arrematação de obras públicas, foram arrematados 240 contratos de obras no período de 1745 a 1800, por 85 oficiais diferentes. Os sete oficiais presentes em nosso estudo arremataram 95 contratos, ou seja, aproximadamente 8% (8,24%) dos oficiais arremataram 40% dos contratos de obras públicas. Sebastião Pereira Leite arrematou um total de 14 obras públicas entre os anos de 1746-1756, Sebastião Martins da Costa, 6 construções entre 1746 e 1753, Francisco Alves Quinta, 14, em 1790-1806, Bento Marinho de Araújo, 7, em 1755-1769, João de Caldas Bacelar, 15, de 1758 a 1773, Cosme Fernandes Guimarães, 14, em 1753-1778 e José Pereira Arouca, aproximadamente 25 obras no período de 1768-1794. No que concerne às irmandades e ordens terceiras, buscamos as informações que constam nos testamentos: Bento Marinho de Araújo foi irmão professo na Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, em Mariana, e desejou ser sepultado em sua capela,Francisco Alves Quinta também pertencia à mesma Ordem e às irmandades do “Santissimo desta Catedral e do Senhor dos Passos” e Sebastião Martins da Costa declarou ser professo na Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo da Cidade de Mariana.Segundo Caio César Boschi, nas Ordens Terceiras a admissão era mais seletiva que nas demais irmandades, porquanto dentre os irmãos terceiros estavam aqueles de camadas mais elevadas, sendo a composição de seu quadro social mais sofisticada. Essas agremiações leigas configuram-se como importante componente da História Social do Setecentos mineiro (BOSCHI, 1986). Acreditamos ter sido através delas que grande parte dos oficiais 52 Mesmo quando a documentação não traz a informação da condição de escravo especializado, através da indicação do ofício exercido pelo cativo, podemos observar que há um preço elevado sobre estes escravos, mesmo quando possuem idade mais avançada. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 95 mecânicos conseguiram se acomodar socialmente, além de representar sua ascensão econômica. Conclusão Sabemos que a condição mecânica, foi importante obstáculo à nobilitação no Antigo Regime, sendo que a noção de defeito mecânico consiste na mancha que caracterizava a atividade manual. Segundo o historiador José Newton Coelho Meneses, o oficial mecânico nas sociedades de Antigo Regime é aquele indivíduo que tem atividade laboral essencial para a fundamentação da sociedade, mas que, por outro lado, possui um estatuto que o coloca em uma condição jurídica inferior ao da elite social, a nobreza, não assumindo posições e funções a ela destinadas (MENESES, 2003: 33). Contudo, no estudo de caso dos sete arrematantes apresentados, podemos extrair que o estigma do defeito mecânico e o fato de não serem, stricto sensu, cidadãos não foram empecilho para que ascendessem econômica e socialmente, diferenciando-se da maior parte dos oficiais mecânicos do período. A documentação consultada indica que se tratavam de mestres de ofício que se destacaram, sendo que alguns foram mais abastados, possuíram um considerável montante de bens móveis, imóveis, escravos e uma importante gama de dívidas ativas. O que nos abre caminho para refletir acerca de uma possível hierarquização tanto de ofícios, como de oficiais mecânicos, sendo o acesso às arrematações um importante indício de diferenciação dentro do universo laboral na colônia. Referências bibliográficas: AHCMM. Índice de Obras Públicas de Mariana (1715-1863). Inédito. AHCMM. Índice das Cartas de exame de ofício (1737-1806). Inédito. BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o Poder: Irmandades Leigas e Política Colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Editora Ática, 1986. BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712 - 1728. 8 v. EUGÊNIO, Danielle de F. Arrematantes de obras públicas: oficialato mecânico na cidade de Mariana (1745-1800). Monografia (Bacharelado em História). Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, 2010. MARTINS, Judith. Dicionário de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas Gerais, Rio de Janeiro: Departamento de Assuntos Culturais/MEC, 1974. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 96 MENESES, José Newton Coelho. Artes fabris e serviços banais. Ofícios mecânicos e as Câmaras no final do Antigo Regime. Minas Gerais e Lisboa – 1750/1808. Tese (Doutorado em História). Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. Niterói: UFF, 2003. SILVA, Antonio Moraes. Diccionario da lingua portugueza - recompilado dos vocabularios impressos ate agora, e nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado, por ANTONIO DE MORAES SILVA. SILVA, Fabiano Gomes da. Trabalho e escravidão nos canteiros de obras em Vila Rica, no século XVIII. In: Brasil-Portugal: sociedades, culturas e formas de governar no mundo português (século XVI-XVIII). São Paulo: Annablume, 2006. PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na colônia: Minas Gerais, 1716-1789. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. VASCONCELLOS, Salomão. Ofícios Mecânicos em Vila Rica durante o Século XVIII, RSPHAN, Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, n.º 4, 1940. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 97 Higiene, Controle e Disciplina no Asilo de Meninos Desvalidos - Rio de Janeiro (1875-1894) Eduardo Nunes Alvares Pavão Doutorando em História pela UERJ enap2010@yahoo.com.br Resumo: O objetivo deste trabalho é compreender as condições históricas que possibilitaram o surgimento do Asilo de Meninos Desvalidos, inaugurado em 1975, na cidade do Rio de Janeiro, e suas políticas de ação cotidianas, marcadas por constantes relações de poderes e contrapoderes, disciplina e controle intensos. Além disso, interessa, especialmente, compreender como estes poderes que incidem sobre os corpos dessas crianças agem não apenas sobre estes corpos, mas também sobre seus modos de subjetivação transformando, em grande medida, “corpos desvalidos” em “corpos úteis”. E úteis não apenas no sentido marxista de corpos potentes para o trabalho, mas dispostos a contribuir para o novo conceito de nação e cidadania a ser forjado pela elite brasileira no último quartel do século XIX, sobretudo a partir de 1889 quando os ideais republicanos entram efetivamente em cena. Palavras-chave: Infância, desvalida; asilo. Abstract: The objective of this study is to understand the historical conditions that enabled the emergence of the Underprivileged Children of Asylum, opened in 1975, the city of Rio de Janeiro, and its political action daily, marked by constant power relations and counterweights, intense discipline and control . In addition, interested, especially, to understand how those powers which relate to the bodies of these children not only act on these bodies, but also about transforming their modes of subjectivity to a great extent, "helpless bodies" in "working bodies". And not only useful in the Marxist sense of powerful bodies to work, but willing to contribute to the new concept of nation and citizenship to be forged by the Brazilian elite in the last quarter of the nineteenth century, especially after 1889 when the republican ideals effectively enter on the scene. Keywords: Children, helpless and asylum. O interesse em trabalhar com a infância “desvalida” esteve presente em minha vida acadêmica desde finais dos anos de 1990 quando comecei a pesquisar o cotidiano de crianças e adolescentes de “rua” atendidos pela Associação Beneficente São Martinho, situada na Lapa, na cidade do Rio de Janeiro. Naquela ocasião, fortemente marcado pelo interesse em possibilitar a emergência das falas e gestos daqueles sujeitos e atores sociais, procurei identificar a relação dos mesmos com o espaço urbano (a rua), a família, o trabalho e a escola, evidenciando não apenas as formas e condições em que viviam, mas, sobretudo, suas representações e formas de significação do mundo. O resultado da pesquisa foi minha Dissertação de Mestrado, Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 98 defendida no ano de 2002 no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Ao terminar o curso de mestrado, o interesse em continuar pesquisando a “História de crianças e adolescentes de rua na cidade do Rio de Janeiro” ainda era grande, mas em decorrência de questões profissionais decidi seguir novos rumos e protelar o desejo. Passada quase uma década, desde a defesa do mestrado, eis que o interesse, ainda latente, ressurgiu, quando tive acesso ao Acervo do Arquivo do Asylo de Meninos Desvalidos (AMD)∗, inaugurado no ano de 1875, na cidade do Rio de Janeiro. Rico pela sua quantidade e diversidade de documentos, o acervo, doado em 1990, pelo Colégio Estadual João Alfredo, à Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é capaz de dar forte testemunho não só da História da Educação no Brasil, mas também da História da Assistência à infância desvalida e suas nuances sociais, políticas e econômicas. Diante daquele acervo imenso surgiram, então, algumas problemáticas: Por que a criação de um Asilo para Meninos “desvalidos” na cidade do Rio de Janeiro em finais do século XIX? Quem eram, como eram e de onde vinham as crianças admitidas naquela instituição? Quais eram os critérios usados para a classificação de uma criança como desvalida? Depois de admitidas na instituição como era o cotidiano dessas crianças? E mais, aquela instituição seguia apenas o seu objetivo explícito de educar as crianças pobres e inseri-las no mercado de trabalho ou atendia a outros interesses como, por exemplo, o projeto de higienização dos espaços públicos e controle social na cidade do Rio de Janeiro no último quartel do século XIX? Foi diante de tais perguntas que surgiu o meu interesse em investigar as condições históricas que possibilitaram o surgimento de uma instituição como o AMD e suas políticas de ação cotidianas, marcadas por constantes relações de poderes e contrapoderes, disciplina e controle intensos. Além disso, me interessa, especialmente, compreender como estes poderes que incidem sobre os corpos dessas crianças agem não apenas sobre estes corpos, mas também sobre seus modos de subjetivação transformando, em grande medida, “corpos desvalidos” em “corpos úteis”. E úteis não apenas no sentido marxista de corpos potentes para o trabalho, mas dispostos a contribuir para o novo conceito de nação e cidadania a ser forjado pela elite brasileira no último quartel do século XIX, sobretudo a partir de 1889 quando os ideais republicanos entram efetivamente em cena. Afinal de contas, foi justamente no período em que o Brasil vivia um afrouxamento da ordem ∗ Daqui em diante será utilizada a sigla AMD para se referir ao Asylo de Meninos Desvalidos. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 99 escravocrata e a reestruturação de novas formas de trabalho e inserção dos homens livres no meio social e, consequentemente, a necessidade da construção de um novo conceito de nação por parte da elite, principalmente intelectual, que surgiu esta instituição. Haveria alguma relação direta? Assistência aos desvalidos no Império No Império passa a vigorar, através de leis e decretos, o recolhimento. Esta preocupação aparece atrelada à primeira lei penal do Império, o Código Criminal de 1830. Essa lei estabelece a “responsabilidade penal para menores a partir dos 14 anos” (RIZZINI, 1995, p. 104).O recolhimento dos menores passa a visar sua correção em instituições denominadas Casas de Correção, que mantinham alas separadas. Umas de cunho correcional, para menores delinquentes, mendigos e vadios; e outra destinada à divisão criminal. Neste período, o recolhimento de crianças e órfãos, amparados na legislação da época, tem ainda sua tônica fundada na ideologia cristã. As medidas praticadas pela Igreja Católica eram de caráter “religioso e caritativo” (RIZZINI, 1995, p. 105). Na segunda metade do século XIX é que começa a aparecer mais claramente na legislação da época, outra característica das medidas de amparo à infância pobre no Império: a formação educacional das crianças. A atitude do Império em relação à infância está dentro do discurso da construção dos projetos políticos que visam a definir o futuro da ex-colônia. Essas perspectivas foram formuladas nos Anais da Assembleia Constituinte, de 1823, no Rio de Janeiro. Neste período, o tema infância ganha importância nas pesquisas acadêmicas. Foram registradas na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, de 1836 a 1870, 81 teses acadêmicas tendo como tema a criança. Sendo que 34 dessas se referiam à infância pobre; à exposição de órfãos na Santa Casa de Misericórdia; à prostituição infantil, à baixa frequência escolar, à higiene dos escravos, às altas taxas de mortalidade infantil - seja por doenças da puerícia, seja por abandono dos recém-nascidos. Por outro lado, a infância, sobretudo a infância pobre, passou a ser também um assunto de polícia. Em 1836, Euzébio Coutinho Mattoso de Queirós - Chefe de Polícia da Corte, intencionava mobilizar a polícia para “caçar”crianças “pobres”, “vadias” e “vagabundas” e encaminhá-las aos Arsenais de Marinha e Guerra e às Casas de Correção (ABREU & MARTINEZ, 1997, p. 22). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 100 Com a consolidação do Estado Imperial, a preocupação com as crianças e sua educação passou a envolver diferentes setores da sociedade. Em 24 de janeiro de 1874, pelo Decreto nº 5.532, são criadas dez escolas públicas de instrução primária na Corte. O ensino primário e secundário foi regulamentado pelos Decretos N° 630, de 17 de setembro de 1851, e N°1331-A, de 17-2-1854. As crianças pobres são contempladas por esses decretos. O artigo 57, de 1854, determina a admissão de “alunos pobres” em escolas da rede particular, mediante pagamento por parte do Governo, assim como a medidas quando estiverem pelas ruas em estado de “pobreza” ou “indigência”. A estes “se fornecerá igualmente vestuário decente e simples, quando seus pais, tutores, curadores ou protetores o não puderem ministrar, justificando previamente sua indigência perante o Inspetor Geral, por intermédio dos Delegados dos respectivos distritos” (VOGEL, 1995, p. 306). A partir de 1850, são regulamentadas as leis acerca de escravos e seus filhos. A chamada “Lei do Ventre Livre ou dos ingênuos”, Lei de n°2.040 de 28 de setembro de 1871, declarava livres os filhos de mulheres escravas nascidos após esta data. Estipulava obrigações para os senhores de escravos e para o governo, proibia a separação dos filhos menores de 12 anos do pai ou da mãe. Para Abreu & Martinez (1997), a lei de 1871, tem como preocupação o futuro dos descendentes de escravos, tônica dos debates públicos da época. A Lei 2040 obrigava os senhores a criarem os filhos das escravas até à idade de 8 anos, após este período poderiam receber uma indenização do Estado ou os usarem como trabalhadores até à idade de 21 anos. Num quadro econômico agroexportador, escravista e monocultor, a postura dos senhores de escravos tinha muitos defensores. Após 1871, descendentes de escravos libertos, menores em geral (imigrantes e mestiços) se tornaram objeto da elite pensante no Brasil. A partir desse período, os discursos dos homens públicos, dos reformadores e dos filantropos propunham a “fundação de escolas públicas, asilos creches, escolas industriais e agrícolas de cunho profissionalizante, além de uma legislação para menores”.Buscava-se inserir nas práticas jurídico-policiais o encaminhamento para Casas de Educação, Educandários e Reformatórios “para os chamados menores abandonados e delinquentes” (ABREU & MARTINEZ, 1997, p. 25). No Império começa-se a traçar também metas para a formação da futura nacionalidade, calcadas em padrões europeus, numa ordem científica. Corrigindo tudo aquilo ou todo aquele que divergisse da ordem estabelecida e considerada condição sine qua non para o desenvolvimento de uma nação moderna e civilizada. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 101 Chácara da família Rudge.... O AMD, para cuja criação estava o poder executivo autorizado por decreto, desde fevereiro de 1854, só foi finalmente criado vinte anos depois pelo decreto nº 5532 de 24 de janeiro de 1874, sendo inaugurado no dia 14 de maio de 1875, com 13 meninos, pelo então Ministro do Império João Alfredo Corrêa d’Oliveira, que o regulamentou por decreto nº 5849 de nove de janeiro de 1875. O Asilo tinha como objetivo fundamental a assistência à infância desvalida, sobretudo, meninos órfãos de pai e/ou mãe que não tinha quem os sustentasse e garantisse a continuidade de seus estudos. Localizado em Vila Isabel, Rio de Janeiro, essa instituição sofreu várias mudanças em sua denominação ao longo de sua história – Asylo dos Meninos Desvalidos (18751894), Instituto Profissional (1894-1898), Instituto Profissional Masculino (1898-1910), Instituto Profissional João Alfredo (1910-1933), Escola Secundária Técnica João Alfredo (1933-1934) e Escola Técnica Secundária João Alfredo (1934-1956), atualmente, Colégio Estadual João Alfredo. Essas nominações diferenciadas no decorrer dos anos corresponderam às mudanças estruturais pelas quais passou esse estabelecimento. A procura pela instituição era feita, em geral, por pessoas extremamente pobres que não tinham meios para manter-se e aos filhos. Geralmente, recolhia meninos pobres, “de rua”, “indigentes” e “órfãos”, crianças, entre seis e doze anos de idade, que perambulavam pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro, sem terem para onde ir, cometendo, às vezes, furtos e outros crimes. Uma vez no Asylo, tendo terminado a educação de primeiro grau e instrução em algum ofício, eram obrigados a trabalhar três anos nas oficinas da escola. Depois desse período, os “órfãos” ficavam à disposição do Estado, na figura de um “juiz de Órfãos”, enquanto os outros eram encaminhados às suas famílias. Ambos, entretanto, tinham como certa a sua inserção no processo de trabalho, em empresas públicas ou privadas (Cf. LOPES, 1994). A instituição era mantida com subvenção do Estado e, em grande medida, através de doações feitas por benfeitores, dentre eles empresários e industrialistas, interessados com a formação de jovens trabalhadores para suas fábricas. Estava inserida, portanto, em uma lógica de funcionamento social que correspondiam não apenas aos interesses do Estado, mas também de grupos privados: Daí, postulamos a idéia de um projeto educacional vinculado a um projeto social mais amplo e a uma estratégia geral de poder. Aqui, a compreensão da instituição enquanto um aparelho privado de hegemonia está calcada, dado Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 102 constituir-se um dos meios de atingir os objetivos da burguesia industrialista de várias formas: uma, formando força de trabalho qualificada e ‘adestrada’ do ponto de vista técnico e moral. Outra, constituindo-se alternativa efetiva de poder, já que consegue carrear par si a participação do Governo Imperial (LOPES, 1994, p. 88). Daí depreende-se que a construção do AMD decorre de projetos sociais muito mais amplos, que conformam a relação entre poderes públicos e privados em fins do século XIX. No entanto, penso que analisar as políticas de funcionamento de uma instituição com estas características, por um viés predominante econômico, que pensa o projeto pedagógico levado a cabo pelo controle e a disciplina, apenas interessado em formar mão de obra técnica e qualificada para o trabalho nesta sociedade que se desponta como industrial, é muito pouco e eu diria até mesmo pobre. Partilho, seguindo outro viés, das ideias de Michel Foucault que pensa a importância em trabalhar este modelo de instituição não do ponto de vista interno, de “dentro” para “fora”, mas partindo de “fora” para “dentro”, buscando compreender como esta “máquina” (instituição) funciona como a materialização de políticas sociais mais complexas que transcendem seus muros. Políticas estas que se concretizam e se materializam por via das estratégias de poder. Em outras palavras, não pretendo fazer uma História do AMD, mas compreender como as suas políticas de funcionamento interno conformam com as políticas sociais mais abrangentes em determinado contexto histórico. E mais, como estas políticas, tornadas possíveis através dos dispositivos de poder, atravessam corpos individuais e os transforma. Traçamos então como objetivos: 1) dentificar o perfil da clientela atendida pelo AMD neste período e suas formas de admissão; 2) Pesquisar a relação entre a Medicina e as políticas de educação, principalmente no que diz respeito à higiene física e mental das crianças, políticas públicas de saúde e profilaxia das doenças; 3) Entender o processo de “atravessamento” da instituição educação, AMD, por outras instituições como a saúde, a religião, a política, a economia, a prisão, o quartel, o hospital, etc.; 4) Identificar as estratégias de poder utilizadas e suas formas de funcionamento no cotidiano, considerando também a possibilidade da existência de contra poderes por parte dos asilados, manifestos através de resistências, indisciplinas e formas mais sutis, como processos de somatização, etc.; 5) Verificar as condições de moradias, vestimentas, alimentação das crianças asiladas. O pensamento higienista, fundamentado nos valores da ciência, tinha como objetivo, em sua ação, a prevenção da desordem. As instituições de amparo social criadas para servir aos “desprovidos”, aos desvalidos, tinham como objetivo, neste sentido, Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 103 prevenir a delinquência, proteger a infância e fazer de sua saúde física e de sua adaptação moral a mais grave preocupação da sociedade (Cf. RIZZINI, 1997). Como vimos anteriormente o Decreto Nº 5849 de nove de Janeiro de 1875 estabelecia que o Asilo era um internato destinado a recolher e educar meninos de 6 a 12 anos de idade. O artigo 2º salientava como primeira ação a se dar: a vacinação dos meninos recolhidos, no caso da falta desta. No entanto os que porventura viessem a sofrer algum tipo de doença, exteriormente ao Asilo teriam tratamento. Continua este mesmo artigo enfatizando que “Não serão admitidos os que sofrerem de moléstias contagiosas ou incuráveis, nem os que tiverem defeitos physicos que os impossibilitem para os estudos e para a aprendizagem de arte ou officios”. Considerações Finais O tema de criança desvalida, desamparada, desfavorecida, desassistida, desprovida de condições de subsistência já foi objeto de inúmeras abordagens. Neste texto procuramos discorrer algumas considerações sobre controle, vigilância. Primeiramente, esta assistência teve um cunho religioso, sendo praticada pelos jesuítas que, além de um interesse humanitário, procuravam atrair seguidores para o catolicismo. A assistência, neste sentido, tinha uma característica de caridade atrelada a interesses religiosos. Somente mais tarde é que aparecem políticas de Estado para a assistência à Infância Desvalida. Sobretudo a partir dos anos 1850, quando os escravos começaram a figurar na ordem dos homens livres e o governo teve que se preocupar com os filhos que passaram a circular pelo centro urbano. Neste contexto, a assistência assume um caráter de ordem e controle social, a fim de se evitar a violência e criminalidade. A medicalização da sociedade, das relações sociais, a assistência as crianças desvalidas, assim como nas distintas esferas de poder se deu gradativamente. Bibliografia: ANTUNES, José Leopoldo Ferreira. Medicina, leis e moral: pensamento médico e comportamento no Brasil (1870-1930). São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999. ARAÚJO, Inês Lacerda. Formação discursiva como conceito chave para a arqueogenealogia de Foucault. Revista Aulas, n. 3, dezembro 2006/março 2007. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 104 ARAÚJO, Rosa Maria Barboza. A vocação do prazer: A cidade e a família no Rio de Janeiro republicano. 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Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 107 Súplicas, suplicantes e suplicados: a relação e concepção do trabalho dos (des)empregados imigrantes ao longo do segundo reinado (1840-1889) Elizabeth Albernaz Machado Franklin de Sant’ Anna Licenciada em História pela UFOP bethamf@yahoo.com.br Marconni Marotta Graduando em História pela UFOP marconnimarotta@gmail.com Resumo:O objetivo deste presente trabalho é identificar e analisar dentre as súplicas escritas ao imperador D. Pedro II, ao longo do período de 1840 – 1889, na cidade do Rio de Janeiro, os perfis dos suplicantes imigrantes - trabalhadores e/ou desempregados, que pedem emprego, dinheiro, proteção, recursos e socorros – e suas condições materiais de vida ao longo do segundo reinado. Os elementos analisados nas fontes evidenciam estratégias de caráter popular, individuais e coletivas (a exemplo das sociedades beneficentes fundadas por imigrantes) que nos permitem refletir acerca de sua organização social e relação/concepção do trabalho, através das estratégias discursivas e argumentativas, mobilizadas pelos suplicantes a fim de conseguirem o bem suplicado. Dessa forma, ao compreendemos as sociedades beneficentes de imigrantes enquanto modalidade de organização social, amplamente difundida entre os imigrantes trabalhadores, destacamos sua relevância, ou mesmo viabilidade, para uma escrita da História Social do Trabalho. Palavras-chave: Imigração; Súplicas; Associativismo. Abstract:The objective of this study is to identify and analyze among the supplications written to the emperor D. Pedro II, during the period 1840 - 1889 in the city of Rio de Janeiro, the profiles of the supplicants immigrants - workers and / or unemployed, who ask for jobs, money, protection, resources and aid - and their material conditions of life during the second reign. The elements analyzed in the sources show individual and collective popular strategies, (for example, the mutual benefit societies founded by immigrants) that allow us to reflect on their social organization and relationship / conception of work, through argumentative and discursive strategies mobilized by the supplicants in order to achievesuccess intheir interests. Thus, to understand the mutual benefit societies of immigrants as a form of social organization, widespread among the immigrant workers, we highlight their relevance, or even the viability, to Social History of Labor writing. Keywords: Immigration; Supplications; Associativism. Em 1875, o pintor espanhol Miguel Alsina, residente na cidade do Rio de Janeiro, escreve por duas vezes à Dom Pedro II. Na primeira carta relatava que havia deixado a Espanha por motivos políticos e que estava a confeccionar um quadro, cujo tema figurava sobre o término da escravidão, em que contemplava a “Justiça e a Caridade” do imperador, da família real e dos políticos mais importantes da época, no qual pretentia: Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 108 [...] poner en vista de las geraciones venideras, y principalmente á los hijos de los esclavos, los sufrimentos de que les ten apartado sua nobles libertadores; y como es de esperar, que habia agradecidos de los que tan grande bien les ten echo, asi los he representado por medio de los niños que estan hablando. (Casa Imperial: Caixa 16, Pacote 14, Documento 323) Ressaltava que passava por algumas dificuldades na confecção do referido quadro e do desejo que nutria, mesmo antes do término da obra, de que o monarca e seus familiares fossem os primeiros a apreciarem sua arte. Na segunda carta, voltou a se dirigir ao imperador, então com a tela terminada. Anexo à essa missiva havia um parecer de um funcionário, certamente escalado pelo mordomo da Casa Imperial, em que este fazia uma descrição pormenorizada da obra, destacando a necessidade de correções nas proporções e o assentimento do artista em realizar as devidas alterações. Em um trecho transcrito da carta, Miguel afirma que aceitaria que lhe fossem apresentados candidatos a compradores do quadro, ou que a coroa viabilizasse sua participação em exposições importantes na corte, e, que inclusive, aceitaria modificar a obra de acordo com a preferência dos interessados. Temo molestar a tencion de V. E. por tanto concluir é diciendo que, si em esta corte hai algun personaje, que me envite llevando á vender á outra ocasion, yo em cambio estoy dispuesto em modoficar la figura que pega o negro, convertiendola en compassiva hacia el y em obstáculo para que no se mate, a lo que convengamos asi quedará dulcificada a crueldade que V. E. le encuentra. Aun que no he representado nada que no suseda muchas veces. (Casa Imperial: Caixa 16, Pacote 14, Documento 323) Inferimos pelo referido trecho, o possível intuito desse pintor imigrante espanhol em usar a retórica, que envolvia a figura do monarca, em benefício próprio. Das duas vezes em que escreveu ao imperador, Miguel ressaltava a imagem deste como a de um monarca culto, generoso e defensor dos interesses dos menos favorecidos e dos cativos. Podemos dizer que o pintor espanhol se utilizava de uma construção do ethos de D. Pedro II em torno do “Pai dos pobres” e do mecenas Patrono das artes. Entendendo-se por ethos, segundo Amossy (2011), como a imagem de si mesmo que o locutor constrói em seu discurso para garantir a adesão de seu interlocutor. Cabe-se a pertinente observação, segundo Ronaldo P. de Jesus (2009: 38), de que a disseminação da imagem de um monarca esclarecido, patrono das artes, pai dos pobres e preocupado com a condição dos escravos partiu dos esforços do próprio imperador e da coroa, no sentido de conquistar a simpatia dos setores menos favorecidos da população, como também da corte. De acordo com Ekkehard Eggs (2011: 33), na perspectiva da retórica aristotélica, podemos compreender esse ethos solidário (criado por D. Pedro II e a coroa), “não só como a expressão de uma simpatia para com o outro, mas também de uma disposição ativa para prestar serviços ao Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 109 outro, caso ele necessite”. Nesse sentido, nada mais faz Miguel do que se utilizar da construção de um ethos criado como estratégia de adesão pelo monarca, para utilizá-lo como estratégia argumentativa em proveito próprio. Com isso, podemos inferir que possivelmente Miguel se utilizou de estratégias discursivas e argumentativas, que por meio de uma narrativa que evidenciava suas dificuldades pessoais, visava sensibilizar D. Pedro II criando certa proximidade com este. Desta forma, o pintor espanhol se reapropria do ethos, (da imagem) paternalista forjada pelo próprio imperador e pela coroa, assentada nos padrões de dominação pessoal característicos da sociedade escravista, como recurso argumentativo a fim de obter sucesso em seu empreendimento. Destacamos que Miguel faz uma abordagem pragmática e personalista do imperador e da coroa - abordagem esta recorrente em outras súplicas53 analisadas enviadas à D. Pedro II pela gente comum54, dentre as quais incluem-se alguns imigrantes. Embora Ronaldo P. de Jesus endosse os dizeres de José Murilo de Carvalho, de que a gente comum era indiferente e distante do regime monárquico, ele observa que uma reduzida parcela das pessoas comuns, a maioria habitantes livres e pobres da corte, escrevia ao imperador e à família real na tentativa de sensibilizar o poder monárquico com a finalidade de pleitear auxílio material diante da pobreza e da doença. Nesse sentido, se o povo era distante e até apático ao regime, ele procurava se aproximar no discurso, se reapropriando do próprio ethos paternalista do monarca, como força argumentativa para que seus anseios fossem atendidos. O que nos revelaria um “significativo pragmatismo na apropriação da imagem de D. Pedro II e do regime imperial” (JESUS, 2009: 37). Assim, com relação as súplicas, 53 Pertencentes ao gênero epistolar, as quarenta e uma súplicas analisadas, em termos gerais, possuem uma estrutura textual padronizada do tipo requerimento administrativo, que obedecem à forma de tratamento na relação entre o suplicante, que formula o requerimento, e o “suplicado”, nesse caso, o imperador, um membro da família real ou a coroa. Estruturalmente as súplicas são compostas por uma identificação inicial sobre o suplicante, acompanhadas por uma explicação sobre suas condições gerais – em alguns casos, anexos à documentos comprobatórios - como também o uso de argumentos para o merecimento do benefício, a formulação expressa e concreta do pedido, e a conclusão com reverências e assinatura. Das quarenta e uma súplicas relativas ao fundo Casa Imperial, no Arquivo Nacional e do Museu Imperial, a grande maioria são referentes à pedidos de dinheiro (30), pequenos “auxílios pecuniários” ou “esmolas” (19) para os problemas mais imediatos, pensões (11) e solicitação de favores (11) relacionado com a sobrevivência material do suplicante, como emprego, inclusão em lista de pagamento, casa, etc. Das referidas súplicas analisadas, cinco suplicantes eram imigrantes e/ou descendentes de imigrantes, dentre os quais, o pintor espanhol Miguel Alsina utilizado neste trabalho. 54 Segundo Jesus (2009, p.26) “entre as classes populares, ou a gente comum da corte, havia um setor mais diretamente ligado à instituição do cativeiro, composto pelos escravos e libertos, negros e mulatos. Outro grupo era formado pelos homens livres pobres (miseráveis, mendigos, “vadios” ou “desclassificados”). E, por fim, havia o segmento social que incluía pequenos comerciantes, artesãos, executores de ofícios indignos e outros (barbeiros, boticários, alfaiates), militares de baixa patente, funcionários públicos do baixo escalão e operários. Este último, portanto, bastante próximo do que se poderia chamar de classes médias urbanas da época”. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 110 Jesus (2009: 38) esclarece que “a abordagem pragmática e personalista do imperador e da coroa, surgia como estratégia possível, tendo em vista as pressões e dificuldades de sobrevivência individual [...]”. Nesse sentido, não era incomum que a imagem de D. Pedro II se confundisse com a do próprio regime monárquico, de forma que ao recorrerem “ao imperador para conquistar alguma forma de inserção social e política, ou proteção econômica, diretamente ligada à atuação protetora do Estado [...] não pressupunha demandas relacionadas à conquista de direitos civis, [...] à cidadania [...]”, mas “que buscavam algo semelhante a ‘estadania’”. José Murilo de Carvalho (1998: 96-97) define a estadania, como uma longa tradição estadista do País, de herança portuguesa, em que aqueles “insatisfeitos com os baixos salários e com os minguados orçamentos”, recorriam ao “emprego público ou à intervenção do Estado para abrir perspectivas na carreira”, de forma que “todos acabavam olhando para o Estado como porto de salvação” em que a “inserção de todos eles na política se dava mais pela porta do Estado do que pela afirmação dos direitos de cidadão”. Portanto, podemos compreender as súplicas de alguns imigrantes, no âmbito das estratégias pessoais, que nos padrões de dominação senhorial, se reapropriaram da imagem de D. Pedro II e da coroa, de forma paternalista e pragmática, com o fim de pedir amparo material e financeiro, por meio da concepção da estadania, definida por José Murilo de Carvalho. *** Em 6 de maio de 1861 a Seção dos Negócios do Império do Conselho de Estado, atendendo solicitação de D. Pedro II de 28 de fevereiro do mesmo ano, realizou consulta acerca do requerimento em que a Sociedade Belga de Beneficência “ped[ia] permissão para continuar em exercício, e também a aprovação dos [seus] estatutos”55. Segundo o parecer dos conselheiros de estado a “associação não se dirig[ia] a outro fim que não seja o de socorrer e proteger” os belgas necessitados, conforme os termos do artigo 1º dos estatutos: Artigo 1º O fim da sociedade é vir em auxílio dos Belgas necessitados e prestar-lhes o seu apoio em quaisquer circunstâncias em que será útil e honrável fazê-lo. (Caixa 528, Pacotilha 3, Envelope 2, Documento 37) Os conselheiros de estado José Antônio Pimenta Bueno, o Visconde de Sapucaí e o Marquês de Olinda, após diligências necessárias acerca do pedido, indicaram apenas uma 55 Caixa 528, Pacotilha 3, Envelope 2, Documento 37. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 111 alteração nos estatutos da sociedade. Propuseram uma modificação no artigo 21 dos estatutos que deveria ser reformulado por entenderem que “qualquer alteração ou aditamento feita aos estatutos não ter[ia] execução sem que preceda a necessária aprovação do Governo”. Desse modo, os conselheiros achavam por bem conceder à sociedade Belga “autorização para continuar a exercer suas funções”56. A partir da promulgação da Lei 1.083 de 22 de agosto 1860 e dos decretos 2.686 de 10 de novembro e 2.711 de 19 de novembro, tornou-se obrigatório os pedidos de autorização para funcionamento e aprovação dos estatutos para diversas formas de associações fundadas ou em funcionamento no Brasil. No mês de novembro, o governo através do Decreto 2.686 colocou em execução a Lei 1.083 determinando que os bancos, monte de socorros, caixas econômicas “e outras companhias de qualquer natureza sem firma social, administrada por mandatários revogáveis”, ainda que estas entidades fossem beneficentes, e que “[funcionassem] sem autorização e aprovação de seus estatutos ou escrituras de associação” a partir de então seriam obrigados “a solicitá-las dentro do prazo de 60 dias contados a partir da publicação do [...] Decreto”.57 O conjunto normativo lançado ao longo do ano de 1860 objetivou colocar sob o controle do Estado imperial a organização econômica, social e institucional de quaisquer grupos sociais. Desse modo, trabalhadores nacionais e estrangeiros quando desejassem fundar novas associações, ou, regularizar a situação de associações já existentes, precisavam apresentar o pedido de consulta e aprovação no Ministério da Fazenda que os enviaria ao Ministério do Império, que por sua vez, os encaminharia para apreciação do Conselho de Estado. A capital do Império do Brasil na segunda metade dos oitocentos apresentava um cenário de “dinamização e rearticulação das atividades mercantis” favorecido com a “promulgação do Código Comercial, da Lei de Terras e do fim do tráfico Atlântico de cativos” ocasionando mudanças substanciais no mercado de trabalho da Corte (LACERDA, 2011: 17). Sobretudo após 1870 os padrões demográficos alteraram-se significativamente pela incorporação de libertos e imigrantes pobres, cenário em que acentuaram as clivagens sociais jurídicas e raciais nas relações de trabalho (JESUS, 2011: 14). Segundo Ronaldo Pereira de Jesus (2011) os trabalhadores que viviam na Corte nas últimas décadas do século XIX sofreram com intensas variações dos salários e dos preços dos alimentos, fatores que geravam instabilidade e crise nas condições de vida de variados 56 57 Caixa 528, Pacotilha 3, Envelope 2, Documento 37. Decreto 2.686 de 10 de Novembro de 1860. Disponível em <http://www6.senado.gov.br>. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 112 segmentos sociais. Nesse contexto, o associativismo se manifestava de modo expressivo, na medida em que exercia importante papel de segurança social, material e moral de artesãos, operários, ex-excravos, industriais, comerciantes, profissionais liberais, entre outros. Sendo assim, visando a conquista de direitos civis, reconhecimento e seguridade social, nos termos da “estadania”, a gente comum da Corte organizou-se em sociedades de caráter popular – sociedades de socorros mútuos (ou beneficentes) de classe; Comemorativas; Emancipadoras; Empresários e Comerciantes; Filantrópicas; Imigrantes; Mutuais Gerais; Ofícios; Regionais. – cada uma delas com suas representações e práticas direcionadas ao governo imperial (JESUS, 2009: 93-94). Gráfico I: Total de associações de socorros mútuos identificadas na cidade do Rio de Janeiro entre 1840 e 1889, classificadas segundo tipo: 97 94 71 46 40 23 25 37 21 Total por tipo Classe Comemorativas Emancipadoras Empresários e Comerciantes Filantrópicas Imigrantes Ofícios Regionais Mutuais Gerais O gráfico I demonstra a expressividade e o alcance do fenômeno associativo no Rio de Janeiro. Entre os anos de 1840 e 1889 foram identificados a existência de no mínimo 497 sociedades de socorros mútuos. Através da análise das características de organização de cada entidade chegamos à divisão tipológica das entidades nas seguintes categorias: Classe; Comemorativas; Emancipadoras; Empresários e Comerciantes; Filantrópicas; Imigrantes; Mutuais Gerais; Ofícios; Regionais. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 113 O gráfico permite inferir algumas hipóteses acerca das dinâmicas internas do mercado de trabalho urbano da Corte. Sobretudo, nos interessa os dados que revelam o montante total de associações de socorros mútuos organizadas por imigrantes. Em nossos dados, essas sociedades perfazem o percentual total de 19% sob o total de entidades identificadas. Nesse sentido, no presente estudo estamos considerando as associações que se organizaram com base na nacionalidade. Estas associações ao mesmo tempo em que “unem conterrâneos em torno de interesses comuns, são, inexoravelmente, também locais de exclusão, na medida em que delas não podem participar indivíduos que pertencem a outras nacionalidades” (FONSECA, 2008: 362). A expressividade de associações fundadas por imigrantes está intrinsecamente relacionada à grande presença de estrangeiros na cidade do Rio de Janeiro, fator facilmente demonstrável através dos dados disponíveis no recenseamento58de1872 para a cidade: Quadro I: “População considerada em relação à nacionalidade estrangeira (1872)” Nacionalidade População Africanos (Livres) 7092 Alemães 1459 Belgas 145 Suecos 33 Franceses 2884 Espanhóis 1451 Ingleses 966 Italianos 1738 Norte-Americanos Portugueses Suíços 211 55933 275 Total: 72187 Já para a década de 1890, segundo Vitor da Fonseca (2008: 382-383), 29,70% da população da cidade era estrangeira, sobressaindo a população de nacionalidade portuguesa que perfazia 20,37% do total de estrangeiros. 58 Recenseamento de 1872. Disponívelem < http://ww.ibge.gov.br>. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 114 Os dados indicados no texto apresentam a dinâmica de um mercado de trabalho cujos espaços eram disputados por nacionais e estrangeiros que lutavam entre si, e que, de algum modo, em conjunto, contribuíram para construção de uma “cultura do trabalho” pela valorização das atividades comerciais e artesanais, fabris e manufatureiras, contra a tradicional depreciação promovida pelo trabalho escravo no contexto de predominância da economia agrária escravista. Analisando a trajetória da Associação Nacional dos Artistas Brasileiros: Trabalho, União e Moralidade, Ronaldo Pereira de Jesus (2009: 108) observa que “havia grande preocupação com o mercado de trabalho no contexto da gradual extinção da escravidão”, pois, a associação orientava seus membros artesãos a “não receber em sua loja ou obra que dirigia, escravos ou aprendizes” servindo-se de “operários nacionais, e sobretudo membros da Associação”. No artigo 31 do Decreto 2.711 a “ajuda mútua” exercida pelas entidades de socorros mútuos se encerrava em: [...] terão unicamente por objeto prestar auxílios temporários aos seus respectivos sócios efetivos nos casos de enfermidade, ou inutilização de serviço, e ocorrer, no caso de seu falecimento, ás despesas do seu funeral. (Decreto 2.711 de 19 de Dezembro de 1860) Como pode ser observado o texto do Decreto fixou limites para a atuação das associações de socorros mútuos que poderiam prestar auxílios temporários de natureza material a seus associados, porém, na prática as associações ultrapassaram esses objetivos oferecendo um conjunto amplo de auxílios e que não eram necessariamente temporários e materiais. A sequência do artigo 1º dos estatutos da Sociedade Belga de Beneficência exemplifica bem como os sujeitos coletivos envolvidos na prática do socorro mútuo atribuíram diferentes significados a esta forma de organização: A sociedade não lhes prestará unicamente socorros pecuniários; tratará também de proporcionar-lhes o trabalho necessário para poderem obter os meios de subsistência. Entra no ânimo dos fundadores que a beneficência praticada [...] não seja tão somente [...] material, fria e indiferente, mas antes, que [...] seja animada de um verdadeiro sentimento de caridade cristã, a qual realça, tanto o valor dos socorros, aos olhos dos infelizes. (Caixa 528, Pacotilha 3, Envelope 2, Documento 37) Em pedido de autorização e consulta datado de 21 de agosto de 1868 informam os estatutos da Sociedade Italiana de Socorros Mútuos, em seu artigo 8º os fins da entidade: O fim da Sociedade é: 1.º Unir os Italianos residentes no Rio de Janeiro. 2.º Promover o bem estar dos sócios. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 115 3.º Socorrer aos sócios que caírem doentes, fornecendo-lhes médico e remédio, e um subsídio diário [...]. 4.º Pagar as despesas de passagem para voltar à pátria aos sócios que em causa de alguma enfermidade, depois de ter pertencido à sociedade por três anos, fossem pelo médico da sociedade julgados incuráveis, permanecendo no Brasil. A viagem para pátria será feita pelo meio de transporte mais econômico. 5.º Subsidiar aos sócios impotentes ao trabalho [...] [que] durante dez anos tiverem feito parte da sociedade mediante uma pensão mensal que será determinada cada vez pela Assembleia Geral [...]. 6.º Pagar as despesas funerárias dos sócios [...]. 7.º Procurar emprego e trabalho aos sócios que precisarem. 8.º Promover a instrução e a moralidade dos sócios, conforme os meios dos quais a sociedade poderá dispor [...]. (Caixa 544, Pacotilha 3, Envelope 1, Documento 46) O principal objetivo da Sociedade Italiana de Socorros Mútuos era “promover o bem estar” de seus membros. Observa-se que a sociedade era composta de trabalhadores imigrantes envolvidos em diversificadas atividades econômicas, em outras palavras, gente comum que estavam à mercê dos abusos do capital. “[N]ão existia [...] a menor preocupação em garantir que o trabalhador não se desgastasse ao ponto de tornar-se inapto para a produção. Quando isso se dava, operário rompia a tênue linha que o separava da miséria” (LUCA, 1990: 25). Algo comum aos italianos e outros imigrantes envolvidos no mercado de trabalho urbano do Rio de Janeiro. Pela análise dos estatutos identificados para a década de 1860, 70% das entidades ofereciam auxílio a seus membros “enfermos ou impossibilitados de trabalhar por moléstia”, evidenciando as precárias condições de vida e trabalho as quais estavam sujeitos a gente comum da Corte. Segundo Tânia Regina de Luca (1990), o imigrante na maioria das vezes era atraído para um país através de propagandas que em diversas situações ocultou as reais dificuldades que o estrangeiro encontraria na nova terra. Soma-se a isso, as dificuldades econômicas e os novos referenciais culturais que a cada instante impulsionava-os a redimensionar sua identidade. Segundo a autora muitos possuíam uma auto-imagem desvalorizada, fator que certamente influenciou na elaboração do parágrafo 8º dos objetivos da SISM, definindo a necessidade de “promover a instrução e a moralidade dos sócios” e “procurar emprego e trabalho”, objetivos encontrados em 23% dos estatutos localizados para a década de 1860. O fenômeno associativo voltado para o mutualismo praticado no Rio de Janeiro ao longo de todo segundo reinado, apresentou a característica marcante da promoção de Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 116 práticas de socorros pecuniários contra os riscos sociais enfrentados pelos trabalhadores urbanos, no entanto, não podemos desconsiderar as demandas que não se restringem às dimensões materiais de seguridade. Entre os imigrantes, o mutualismo ampliou seus objetivos dos socorros mútuos para a conquista de bens materiais e culturais como bibliotecas, publicação de jornais, montagem de oficinas, premiação por inventos, incentivo à instrução, procura de emprego e entretenimento educativo. *** Portanto, podemos evidenciar nas súplicas de alguns imigrantes, como Miguel, “atitude que assentada nos padrões de dominação pessoal, característicos da sociedade escravista, combinava a indiferença, o distanciamento e o personalismo, partindo da gente comum em direção ao imperador e ao regime monárquico” (2009: 38). Dessa forma, podemos compreender que tanto as súplicas, no âmbito das estratégias individuais da gente comum, como as sociedades, no âmbito das estratégias coletivas de grupos organizados, se apropriavam do ethos paternalista do monarca, compreendido no regime de dominação senhorial, e que nos moldes da estadania recorriam à atuação protetora do Estado a fim de conquistarem alguma forma de inserção social e política, ou mesmo proteção econômica. Bibliografia AMOSSY, Ruth. O ethos na intersecção das disciplinas: retórica, pragmática, socieologia dos campos. In. AMOSSY, Ruth (org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2011. EGGS, Ekkehard. Ethos aristotélico, convicção e pragmática moderna. In. AMOSSY, Ruth (org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2011. CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. CARVALHO, José Murilo de. Pontos e bordados – escritos de história e política. Belo Horizonte, UFMG, 1998. FONSECA, Vitor Manoel Marques da. Imigração: Identidade e integração, 1903-1916. In. MATOS, Maria I; SOUZA, Fernando de; HECKER, Alexandre (Org.). Deslocamentos e Histórias: os portugueses. Bauru, SP: Edusc, 2008. LUCA, Tania Regina de. O sonho do futuro assegurado (O mutualismo em São Paulo). São Paulo: Editora Contexto, 1990. JESUS, Ronaldo Pereira. Dinâmica Associativa entre Imigrantes Portugueses no Rio de Janeiro Imperial. XXX Encontro da Associação Portuguesa de História Econômica e Social, 2011. ____. Associativismo no Brasil do Século XIX: Repertório crítico dos registros de sociedades no Conselho de Estado (1860-1889) Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 117 ____.Visões da Monarquia: escravos, operários e abolicionismo na Corte. Belo Horizonte, MG: Argvmentvm, 2009. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 118 “Matei e não me arrependo”: a libertação antecipada em Itajubá pelo soslaio cativo Fábio Francisco de Almeida Castilho Doutorando em História pela UNESP-Franca /Bolsista Fapesp fabiofacastilho@hotmail.com Resumo: Em meio às transformações que se apresentavam no mundo do trabalho durante a década de 1880, existiu em Itajubá uma comissão disposta a resolver os problemas acarretados pela crise da mão de obra através da abolição da escravidão no município e arrabaldes. Participaram desta comissão elementos grados da sociedade itajubense e os mesmos conseguiram colocar fim a instituição escravista meses antes da instauração da Lei Áurea. A história contada por estes personagens privilegia apenas os seus atos e não esclarece a participação dos cativos no processo, estes são vistos como simples objetos da ação da elite, que se beneficiam do processo, mas não participam do mesmo. Nesta comunicação abordamos alguns artigos publicados na imprensa itajubense que demonstram a participação dos cativos no processo de conquista da liberdade, ou, ao menos, desvendam aspectos do cotidiano de constante negociação que os mesmos estabeleceram com seus senhores. São atos de revolta, fugas, assassinatos, mas também de negociação, casamentos e de busca de vantagens econômicas, corroborando com uma historiografia consolidada que assinala a clara participação dos cativos nos ganhos auferidos e a sua condição de agentes históricos, negociadores e jamais simples “coisas”. Palavras Chave: Escravidão, libertação, periódicos. Abstract: Among the changes that were in the world of work during the 1880s, there was a commission in Itajubá willing to solve the problems caused by the crisis of labor through the abolition of slavery in the city and suburbs. Elements of Itajubá’s society grads participated in this committee and they ended up with the institution of slavery months before the opening of the Golden Law. The story told by these characters favors only their acts and does not explain the participation of prisoners in the process, these are seen as mere objects of action of the elite, who benefit from the process but not part of it. In this communication we discuss some Itajubá’s press articles that demonstrate the participation of prisoners in the process of gaining freedom, or at least, reveal aspects of everyday life of constant negotiation that they have established with their masters. There are acts of rebellion, escape, murder, but also negotiation, marriages and seeking economic benefits, corroborating a consolidated historiography that marks the clear involvement of the captives and gains earned its status as a historical agent, negotiators and never simple "things ". Keywords: Slavery, Liberation, journals. Introdução A transição da mão de obra foi um dos temas mais presente na imprensa nacional do final do século XIX. Desde 1870 os periódicos de todo o país repercutiam questões referentes ao final do escravismo e as novas formas de trabalho que deveriam surgir nas Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 119 lavouras. Com o iminente final do regime escravista um novo braço precisava ser arregimento para dar prosseguimento à produção nacional. Diante deste problema diversas propostas foram discutidas, passando da importação de trabalhadores estrangeiros, principalmente vindos da Europa, ao aproveitamento do trabalhador nacional, embora muitas vezes olhado com desconfiança devido aos discursos racistas, como o darwinismo social, em voga na época. A classe produtora precisava resolver este intrincado problema posicionando-se diante da imperiosa crise da mão de obra que se agravava no país com o final da escravidão. De acordo com Silvia Lara (1988), falar em escravidão e falar por si só em um regime violento.59 Sem o direito a liberdade o escravo estava sujeito aos mandos de seus senhores, embora de algumas maneiras pudesse fazer sentir seu inconformismo perante tal situação. Exemplos mais claros de descontentamento eram as fugas e as violências cometidas contra os senhores, no entanto, outros atos dos cativos também poderiam demonstrar sua insatisfação. Consideramos desnecessária a reprodução da extensa bibliografia produzida ao longo das décadas de 1980 e 1990 acerca do debate historiográfico da escravidão por não ser este o mote do presente artigo. Tal bibliografia enfatizou a subjetividade da mão de obra escrava, estes trabalhos se preocuparam em desmistificar a imagem do escravo-coisa, visto como simples mercadoria e teve como resultado a construção de uma nova perspectiva das relações entre senhor e escravo, num contexto de negociações no qual o cativo também aparece na condição de sujeito histórico e possuidor de espaços de autonomia (Cf. FREYRE, 2001; FERNANDES, 1981; MATTOSO, 1990; GORENDER, 1992; LARA, 1988; FLORENTINO, 1997; MATTOS, 1998; CHALHOUB, 1990; FARIA, 1998 e REIS, 2003). Nosso escopo é analisar o discurso da elite sobre a transição da mão de obra e sendo assim, as representações do cativo nos periódicos. Este prisma ressalta a opinião dos editores do século XIX e sua visão sobre a mão de obra que trabalhava suas lavouras. Trata-se de uma opção metodológica, de voltar-se, primordialmente, para as fontes primárias dando voz aos protagonistas do acontecimento histórico analisado. 59 Embora a assertiva da autora pareça ser repetitiva, ela é magistralmente utilizada, pois estava no contexto de embate com outra corrente historiográfica, os “sociólogos da USP” e era utilizada para marcar diferença, assinalando que a simples afirmação de que a escravatura era um regime violento era redundante, mais importante seria aprofundar as complexas questões envolvidas nas relações entre senhores e escravos no regime escravista, portanto, não se tratava de “reabilitar a escravidão”. Ver ainda: LARA, 1992 e GORENDER, 1992. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 120 Em nossa principal fonte, os periódicos do Sul de Minas, os escravos apenas aparecem como sujeitos de seus atos de duas maneiras: quando fugiam e eram procurados por seus senhores ou quando praticavam crimes.60 Ou seja, a elite que editava os periódicos apenas reconhecia humanidade nos cativos quando esse se portava como revoltoso. Nos periódicos analisados, que, evidentemente, apresentam a visão senhorial, podemos perceber como estes qualificavam seus cativos. O escravo era sempre representado apenas de duas maneiras: ora como inimigo, ora como “bom escravo”. Na primeira opção percebemos o quão agressivo era o regime, pois quando procurado o escravo foragido seria reconhecido graças as suas cicatrizes decorrentes de violências sofridas ao longo dos anos: O escravo tem os sinais seguintes:estatura regular, nariz fundo, corpo regular, pouca barba no queixo, falta de dentes na frente, tem sinal de uma brecha na cabeça, tem as duas pontas das orelhas viradas para fora ou murchas, muitas cicatrizes velhas nas costas, sinal de ferro no pescoço, esperto no andar, cara desencarnada, os ossos da cara muito salientes, tem idade de quarenta e tantos anos, crioulo de cor preta. (O Baependiano, 02 de janeiro de 1879, p.4.). A descrição acima, de um trabalhador cativo aos quarenta anos, demonstra como era rude o regime. As marcas (sinal de brecha na cabeça, cicatrizes velhas nas costas e sinal de ferro no pescoço) adquiridas ao longo da vida sugerem o motivo da fuga do escravo. No entanto, sua identidade era mantida, ainda “esperto no andar” este sujeito histórico fugiu da fazenda onde vivia em busca de uma vida melhor. A segunda maneira por meio da qual o escravo aparecia nos jornais do Sul de Minas era mais incômoda para a elite, pois neste caso a mesma era francamente ameaçada e seus membros eram as vítimas da “bestialidade” e da “brutalidade” dos negros “selvagens”. De grande repercussão no Sul de Minas, foi um caso ocorrido no interior de São Paulo, em Itu, quando o escravo Nazário assassinou seu senhor, suas filhas, uma empregada e outra escrava. O fato culminou na morte do escravo por apedrejamento pela população da cidade mesmo depois do mesmo já ter se entregado a polícia.61 O evento foi 60 No mais das vezes os escravos não apareciam como atores, mas apenas como objeto de estudo no discurso da elite, que buscava soluções para a crise da mão de obra, sem jamais se preocupar com a posição ou o papel dos cativos nesta questão. 61 No contexto do tráfico interno, quando escravos trazidos do Nordeste, principalmente da província da Bahia, se avolumavam nas lavouras do sul do país, os mesmos passaram a ser apontados como maiores responsáveis pelo aumento de crimes e revoltas. Era comum a prática de crimes e a apresentação a policia imediata, demonstrando que preferiam a cadeia a servir como escravos. No trecho apresentado temos a narração de dois casos semelhantes que além de comprovarem esta idéia também mostram a população que a pratica se repetia e se alastrava, provocando medo e exigindo rápida solução. Cf. AZEVEDO, 2004. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 121 repetidamente discutido no periódico liberal O Baependiano e seu editor, Amaro Carlos Nogueira, passou a exigir leis mais duras para coibir crimes semelhantes: Deu-se em Itu um crime horrível que assim referido pela Província de S. Paulo. Foram assassinados em Itu, na madrugada de ontem, 08 do corrente, o médico ali residente, Dr. João Dias Ferraz da Luz e toda sua família, composta de duas filhas moças, uma escrava e uma mulher idosa de nome Faustina. Escapando só uma netinha de 4 a 5 anos. Deu-se o fato na casa em que reside a família, no centro da cidade, rua do Comércio, esquina do Pastor do Bom Jesus. Acudiram na vizinhança e viram o seguinte: no quintal estava com a cabeça partida o Dr. Ferraz, no quarto das moças foi uma delas encontrada deitada sem vida e a outra morta aos pés da cama. Uma negra, escrava da casa agonizava ainda numa sala junto do cadáver da mulher Faustina. Só escapou desta hecatombe a netinha de que já falamos. O assassino, escravo comprado a pouco tempo nesta capital apresentou-se a polícia. Foi igualmente preso um crioulo menor que desconfia-se ser cúmplice do fato. Compareceram as autoridades policiais. A exaltação da população ituana é extraordinária. Foram todos mortos a machado. O caráter bondoso e dulgente (sic) do Dr. João Dias era fato notório. A senhora do finado esta ausente em Minas. Da repartição da polícia recebemos sobre o caso as seguintes informações: Foram ontem em Itu barbaramente assassinados o Dr. João Dias Ferraz da Luz, suas duas filhas, Albertina e Balbina e uma Senhora que lhes fazia companhia, ficando a expirar uma sua escrava, escapando uma sua neta menor de 4 anos. O autor de tão horrível crime foi um seu escravo de nome Nazário, que a golpes de machado praticou aquelas mortes. O assassino foi logo preso pelo respectivo delegado de polícia. Tal acontecimento causou a maior indignação e horror na população de Itu. No auge da indignação mais de 200 pessoas dirigiram-se de noite a cadeia para arrancar dali o assassino do Dr. João Dias. Os guardas resistiram e na luta que se travou foi morto um guarda e feridas algumas pessoas do povo. Como era natural isso incitou mais os ânimos. No dia seguinte, pelas duas horas da tarde, mais de mil pessoas, dentre as quais, homens, mulheres e crianças, fizeram igual tentativa com melhor êxito. O escravo, arrancado da prisão, foi apedrejado até expirar, o cadáver foi depois arrastado pelas ruas até a porta da casa do Dr. João Dias, onde ergueram-se (sic) vivas a justiça do povo. O cadáver foi depois depositado na porta da cadeia, retirando-se o povo pacificamente. ( O Baependiano, 23 de fevereiro de 1879, p.2). O crime cometido violentamente, por um escravo recém adquirido, a machadadas em um meio urbano, contra a conhecida “docilidade” do senhor, que não dera motivos para o crime e, principalmente, a forma como a narração foi construída pelo periódico, diz muito da crise da transição da mão de obra. A descrição minuciosa do assassinato tem por objetivo amedrontar a população e chamar a atenção da mesma para a situação crítica em Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 122 que se encontrava o regime escravista, conjuntura que exigia uma solução imediata. Diante desta constatação, diferentes posições surgiram. Uns defendiam o fim do escravismo, regime bárbaro que condenava o escravo a uma vida desregrada e que o levava a se revoltar e cometer tais crimes. Outra posição defendia maior rigidez das leis para combater esses assassinos. Cada grupo, com suas diferentes soluções, compuseram o debate que se formou em torno da transição da mão de obra. Neste texto apresentamos a visão dos abolicionistas republicanos, que eram contrários ao regime servil e se valeram tanto de argumentos humanitários como de ideias racistas para justificar o fim do regime. Analisamos as representações da transição da mão de obra no Sul de Minas pelo ponto de vista de um periódico liberal e abolicionista, A Verdade. Este jornal teve seu escritório sede localizado na cidade de Itajubá e ao longo de sua duração, 04 de março de 1886 a 09 de maio de 1896 - apesar de nos concentremos no período escravista -, desenvolveu intensa campanha pelo fim da escravidão no município antecipando-se a qualquer decisão imperial ou provincial e obteve êxito nesta empreitada. Através da formação de uma Comissão Libertadora, composta pelos editores do periódico e mais alguns membros da sociedade itajubense, o município teve a escravidão extinta em seu território meses antes do 13 de maio. Embora a emancipação já estivesse concluída em Itajubá desde março de 1888, com a promulgação da Lei Áurea, muitas comemorações aconteceram na cidade e freguesias. Nas edições subseqüentes ao 13 de maio foram reproduzidos artigos descrevendo as festas organizadas no município e arrabaldes, em todas elas não faltaram missas cantadas, marchas cívicas, edifícios públicos enfeitados com bandeiras e flores e a presença e fala de autoridades e grandes fazendeiros. Nas descrições das comemorações se repetiam nomes da alta sociedade que tomaram parte dos festejos cerimoniosos e com a seguinte assertiva resumiram os acontecimentos: “É esta a história do Abolicionismo entre nós, como perpetuam e autenticam os fatos cronologicamente registrados pela imprensa local” (Grifo nosso). Desta forma, os editores do periódico acreditavam não só serem os principais responsáveis pela abolição no município, como portadores da verdade, registrada e levada à posteridade nas folhas do seu periódico. Nos números seguintes a folha publicou os elogios que recebeu de periódicos de outros municípios vizinhos, conferindo-lhe o mérito de terem sido pioneiros no combate a escravidão e de tudo que fizeram em prol da causa da redenção dos cativos. Também Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 123 descreveu as festas nas freguesias de Itajubá, onde se repetiram o mesmo regozijo da elite e suas comemorações suntuosas, sem a participação dos libertos. Foram realizados bailes em grandes casarões e jantares em residências centrais, com a participação da mais alta sociedade do município e freguesias. Em São Sebastião do Paraíso, por exemplo, esteve uma festa imponente e além de missa cantada, passeio pela cidade e fala de autoridades, ainda houve um baile na Câmara Municipal. (A Verdade, 31 de maio de 1888). Em todos os artigos que descrevem as comemorações da libertação são registradas festas suntuosas, com a participação da elite, mas sem qualquer referência aos recém libertos. A partir de 21 de junho de 1888 o periódico fez um balanço da Abolição e suas características, nestes comentários ficou evidente o medo de ainda acontecerem perturbações da ordem, principalmente devido à falta de ação do Estado em apressar a organização do trabalho com leis mais específicas que o regulassem e a necessidade de implementar uma reforma criminal. Mas, em geral, a situação estava sob controle e a produção agrícola do Sul de Minas continuava seu desenvolvimento, agora realizada pelo braço livre e nacional, sem motivos para pânico entre os proprietários: Está acabando o susto e temor da lavoura pelos efeitos da lei redentora e tudo retomou o seu antigo aspecto, com a diferença, porem, que o trabalho de hoje é feito por homens livres que conhecem o seu sagrado direito de liberdade e que sentem as sua própria individualidade e autonomia nas diversas manifestações da atividade humana. O trabalho agrícola tem ocorrido perfeitamente entre nós. As colheitas foram feitas sem interrupção, com toda a regularidade. (A Verdade, 06 de setembro de 1888). Ainda neste mesmo artigo é informado que alguns proprietários do município até colheram mais. Apontando para uma das causas da necessidade da elite itajubense apressar a abolição no município, estavam preocupados com a nova colheita e queriam garantir a mão de obra para a mesma, e assim, negociaram com seus escravos uma liberdade associada ao condicionamento de prestarem serviço por alguns meses, medida que garantiu a colheita do ano e não desorganizou o trabalho na fazenda, como muitos proprietários temeram por todo o país. “Matei e não me arrependo”: a libertação em Itajubá pelo soslaio cativo. Como pudemos perceber no item anterior, o periódico A Verdade enalteceu a participação de alguns membros da elite e de alguns de seus editores no processo que Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 124 culminou na emancipação antecipada dos cativos de Itajubá. Embora este não seja um evento singular na história do país e tenha se repetido largamente por outros municípios e províncias, aqui tivemos a oportunidade de acompanhar o discurso da elite envolvida no processo, ressaltando suas preocupações com a adaptação de ideias e debates até a instauração da esperada abolição. No entanto, a história contada por estes personagens privilegia apenas os seus atos e não esclarece a participação dos cativos no processo, estes são vistos como simples objetos da ação da elite, se beneficiam do processo, mas não participam do mesmo. Das poucas vezes que se manifestam são vistos com um olhar preconceituoso e tachados de ignorantes ou bárbaros .62 Nos extensos artigos publicados quase semanalmente nas primeiras páginas do periódico os editores conferiam aos escravos a condição de pacientes e pacíficos, no entanto, ao analisarmos os pequenos artigos publicados esporadicamente e localizados em lugares sem nenhum destaque nas últimas páginas do periódico, podemos perceber que os cativos não eram tão pacientes assim, e desempenhavam, na medida do possível, seu papel de agente histórico. Neste item abordamos alguns artigos publicados na própria folha, A Verdade, que diferentemente do que diziam seus editores, demonstram a intensa participação dos cativos no processo de conquista da liberdade, ou, ao menos, desvendam aspectos do cotidiano de constante negociação que os mesmos estabeleceram com seus senhores. São atos de revolta, fugas, assassinatos, mas também de negociação, casamentos e de busca de vantagens econômicas, corroborando com uma historiografia já consolidada que demonstra a clara participação dos cativos nos ganhos auferidos com a liberdade e a sua condição de agentes históricos, negociadores e jamais simples “coisas”. Ao abordarmos este tema encontramos mais perguntas do que respostas, pois os artigos aqui analisados, em geral acanhados e encobertos, não têm a intenção de esclarecer o cotidiano dos escravos, ou tampouco conceder aos mesmos condições de escolherem e participarem do processo em desenvolvimento, na opinião dos editores do periódico, o poder decisório estava nas mãos apenas dos proprietários, enquanto aos cativos cabia a sujeição e o contentamento. 62 Em que pese toda consolidada historiografia nacional a respeito do tema da resistência e negociação presente no cotidiano dos escravos, aqui nos referimos, tão somente, a visão da elite, em seu discurso, objeto deste trabalho, o escravo era visto, como ficou demonstrado, como indivíduo que apenas aguardava pacificamente as decisões da elite. Por mais equivocada que seja esta visão é ela que esta presente no discurso da elite, principal objeto aqui em estudo. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 125 Um dos artigos que nos chamou a atenção quanto a este mote, e que infelizmente mereceu pouco cuidado dos editores da folha, foi uma notícia que informava a fuga do escravo Miguel da fazenda de seu proprietário, José Rodrigues dos Santos. Com efeito, era constante a vinculação desse tipo de notícia nos periódicos do século XIX, mas em folhas abolicionistas, como A Verdade, seus editores e proprietários não divulgavam tais anúncios de procura. De fato, ao longo dos onze anos analisados desta folha, embora apenas três deles no período escravista, jamais foi vinculado qualquer notícia sobre a fuga de escravos, constituindo o caso do escravo Miguel a única exceção. O artigo nada se diferencia aos demais encontrados em quase todas as folhas do período, informa o nome do proprietário, a recompensa oferecida e as condições da fuga, como data e demais características que poderiam colaborar para a localização do escravo fugido. Mas as semelhanças terminam por aí, o que desperta atenção na fuga de Miguel, além do fato de ser a única denunciada no periódico em análise, é o fato de ele ter levado consigo sua esposa, de nome Lúcia e mais cinco filhos ingênuos! Mais informações não são reveladas no curto artigo de “Procura-se”, mas a fuga de sete pessoas, constituindo uma família, foi condição definitiva para quebrar o silêncio de A Verdade quanto à fuga de escravos e colaborar no seu encontro. Cabem questionamentos quanto às intenções do periódico, o que mais estaria por trás do acontecido? São perguntas que ficam sem respostas, mas revelam o cotidiano do cativeiro, onde existiam famílias e fugas, que levaram uma folha abolicionista a romper com os “escrúpulos” apontados por Gilberto Freyre (1979) e denunciar a fuga da família, mesmo com intenções desconhecidas, que poderiam mesmo ser com o objetivo de ajudar o escravo, e não o senhor. (A Verdade, 13 de maio de 1886). De acordo com Silvia Lara (1988), a violência marcava a vida no cativeiro, com efeito, entre os meses de abril de 1886 a janeiro de 1887, A Verdade noticiou três crimes de assassinatos diferentes cometidos por escravos contra seus senhores. Em oposição a outros periódicos, não anunciou a emersão de uma onda negra, mas enfatizou a grave crise e a necessidade de solucionar o problema da transição da mão de obra o mais rápido possível. O primeiro crime, noticiado em 22 de abril de 1886, ocorreu em Campinas, no dia 12 do mesmo mês. Neste crime oSr. Carlos Augusto de Camargo, administrador da fazenda do Sr. Antônio Américo de Camargo, e genro do mesmo senhor, saiu no domingo pelas 9 horas da manhã em procura de três negros que fugiram. Não reaparecendo em casa até a noite, deram-se as providências a fim de encontrá-lo. “Efetivamente foi encontrado Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 126 hoje, no mato, em um estado horroroso já sem vida e barbaramente esfaqueado e mutilado”. Do estado horrível que o cadáver fora encontrado concluiu-se que a vítima fora morta a facadas, tiros e pancadas. O delegado de polícia, o escrivão e mais 23 praças seguiram para a dita fazenda, denominada das Sete Quedas, onde já encontraram os escravos presos, sendo apresentado à autoridade pelo Sr. Antônio Camargo o escravo José, feitor, como suspeito de haver praticado o crime. Destacamos o grande número de praças que acompanhou o delegado até a fazenda de Sete Quedas, em número de 23 homens, demonstrando a séria preocupação com as repercussões que um assassinato como este poderia proporcionar, principalmente envolvendo cativos e proprietários. Outro crime narrado pela folha ocorreu na freguesia do município de Itajubá, em Soledade, a 15 de julho de 1886. Neste caso: No dia 7 do corrente, às 7 horas da noite na fazenda da Queimada, freguesia da Soledade, deste município, o escravo Amaro, pertencente ao Sr. José Bertolino Ribeiro, em ato de desobediência e luta com o seu Sr., ofendeu a este com uma faca em ambos os braços, e na mesma ocasião também ferio mortalmente, na região bipogástrica, a sua jovem senhora, D. Ana Balbina da Fonseca, que veio em auxílio do seu marido (...).O assassino, que se apresentou nesta cidade como fugido, foi preso e recolhido a cadeia. Este crime também é bastante complexo e revelador do cotidiano vivido nas senzalas, pois no restante do artigo é informado ao leitor o motivo da luta entre senhor e escravo: “Estamos informados de que a causa do delito foi o reprovado comportamento da preta forra Felisarda, mãe do facínora, que morando com seu filho, praticou alguns furtos pelos quais foi advertida e despedida”. Ou seja, a advertência seguida de demissão da mãe de um cativo, mulher já livre, levou ao desentendimento entre senhor e escravo que culminou na morte da esposa do proprietário. Num cotidiano em que a condição da experiência do cativeiro e a proximidade de um passado ou antepassado escravo eram definidores da condição e de preconceitos (FARIA, 1998), os trabalhadores livres não admitiam a advertência e a comparação com o cativo, pois a mesma diminuía sua principal diferenciação conquistada naquela sociedade rigidamente hierarquizada, a conquista da liberdade (MATTOS, 1998). Por último, outro caso ocorrido no interior paulista é relatado na folha de Itajubá, e neste terceiro caso algumas tendências da folha são reveladas ao leitor mais atento. Em Batatais, uma escrava assassinou seu senhor, o proprietário Sr. Eloy Pompílio Franco, moço de 25 anos, filho de fazendeiro João Francisco de M. Octavio. No entanto, o artigo Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 127 informa que o senhor Ely era muito severo e “deu em resultado o ter sido ele assassinado (...) por uma preta” com dois golpes de machado sobre a fronte. Ou seja, há uma justificativa pelo crime da acusada, que sofria com o comportamento cruel do proprietário e mais ainda, dessa vez a visão da escrava é conhecida e esclarecida, justificando, cabalmente, o seu ato: “A escrava confessa o delito, dizendo: matei meu senhor para livrar meus filhos e marido dos castigos bárbaros que sofriam. Matei e não me arrependo!” (Grifo nosso). Informa ainda que o marido da preta assassina foi encontrado na fazenda “amarrado como Cristo, posição essa em que achava-se há mais de oito dias!” (A Verdade, 21 de janeiro de 1887). Neste evento nos é revelado às motivações dos escravos, seu ponto de vista e o que mais os movia, este exemplo de artigo constitui uma exceção no tipo de fonte que privilegiamos neste trabalho, os periódicos locais, e só foi revelado por se tratar de uma folha abolicionista, que apostou na justificativa do crime para inocentar a escrava envolvida no mesmo e demonstrar a injustiça do cativeiro e do regime que queriam ver extinto do país. Negociação, diferenciação, adaptação e resistência nos cativeiros do Sul de Minas: Onde andará Clemente? Os escravos não apareciam nas folhas de A Verdade apenas como praticantes de crimes, por vezes também eram vítimas, embora nestes casos a repercussão fosse muito menor, caso do crime narrado em 12 de agosto de 1886, quando dois escravos foram mortos em Paraíba do Sul quando condenados ao açoite. Outras notícias revelam apontamentos curiosos, como o caso de um jovem advogado de Campinas que “foi convidado a retirar-se daquela cidade, contendo o convite grande número de assinaturas. O motivo do fato é haver o dito advogado patrocinado abertamente causas da liberdade” (A Verdade, 27 de janeiro de 1887). Embora cidades do interior paulista sempre tenham aparecido na folha como exemplos adiantados de emancipação esta notícia contrariava o paradigma, informado a existência de um forte grupo escravocrata em Campinas, com poderes suficientes para expulsar um advogado abolicionista do município. Outros dois acontecimentos noticiados por A Verdade merecem destaque neste item. O primeiro deles, a invasão da delegacia de Penna do Rio de Peixe, também no Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 128 interior de São Paulo, seguida pelo assassinato do delegado por “um grupo numeroso de homens armados”, entre eles alguns escravos. A folha sintetizou a questão do assassinato em Penna do Rio como“fatal desenlace da questão social que se tem agitado no Império”(A Verdade, 01 de março de 1888). Para os editores da folha toda a questão social da transição da mão de obra se resumia nesta bárbara invasão de uma delegacia e no assassinato da autoridade. “O lutuoso acontecimento (...) magrou todo país, principalmente a província de S. Paulo, onde se trata de extinguir rapidamente o elemento servil”. Na opinião da folha, o ato destoava da índole generosa e dócil do brasileiro. De acordo com A Verdade, o próprio contexto nacional não era propício a execução de tais crimes, pois a situação caminhava para uma solução harmoniosa. Desta forma, os editores do periódico buscavam acalmar a população e não apostavam na emersão de uma onda negra, como tais crimes sugeriram para outras facções, ao contrário, buscavam disseminar a ideia de harmonia e breve encaminhamento das questões para uma solução satisfatória e pacífica. Para os editores do periódico o “monstruoso crime” ocorrido no interior paulista era reflexo da condição do trabalho no país, que exigia pronta solução. Crimes de tais montas eram utilizados, magistralmente, para corroborar com a argumentação e ideologia da folha, sempre favoráveis a libertação. Outro caso de violência noticiado em A Verdade, este com mais detalhes, ocorreu em Itajubá e revela de maneira cabal a participação dos escravos no dia-a-dia e suas estratégias para melhorar de vida, inclusive enfrentando seus senhores na justiça quando necessário. Trata-se de uma longa carta do proprietário Cândido Ribeiro da Costa, em defesa de seu genro, Manoel Custódio Santos, por acusações de ter causado muitos ferimentos em um seu escravo, de nome Clemente. Cândido Ribeiro da Costa afirma que ultimamente seu genro vinha sendo tripudiado por outra folha da cidade e em sua defesa publicava esta carta em A Verdade com detalhes do processo crime instaurado em juízo no município de Itajubá para fazer justiça. Além de alegar inocência do genro, que estava preso, descreve, sem ser sua intenção primordial, o cotidiano e as estratégias de alguns escravos. Constituindo importante fonte para o pesquisador: Contra meu genro, pelos ferimento que se diz, por ele praticado na pessoa do escravo Clemente – de sua propriedade. E nesse artigo é o mesmo tratado como um homem que não merece benevolência e por conseqüência um monstro, besta-fera, etc. Não posso deixar de protestar semelhantes insinuações infundadas, pois da inquirição de testemunhas no inquérito policial, somente dois menores – Pedro e Manoel – um, ingênuo e o outro escravo do mesmo Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 129 informaram ter visto se praticar o fato criminoso e isto mesmo em contradição no seus depoimentos. O ingênuo Pedro em seu depoimento (...) diz que viu o fato criminoso, estando ele no terreno da casa da fazenda, e que também viu a preta Justina e o escravo Manoel presenciarem o crime, olhando ambos pela fresta da porta que da sala dá comunicação para o interior da casa, Justina sendo inquerida disse que não viu nada, que não estava neste lugar e que nada sabe, e Manoel em seu depoimento disse que não estava na referida porta com Justina, mas sim com Pedro... É de notar, e isto é uma base principal de nenhum valor do depoimento de Pedro – que do terreiro da casa da fazenda não se pode ver o que se passa na sala (...). Outro fato que consta no processo e também é de bastante peso, é o seguinte: Clemente diz em seu interrogatório que a última vez que fugiu estava com uma pega no pé, e com os ferimentos descritos no auto do corpo de delito, ora, Clemente fugiu ultimamente na noite de 13 para 14 de fevereiro próximo passado e foi visto neste último dia nos subúrbios desta cidade, por uns trabalhadores de roça que estavam a beira da estrada, e tendo-lhes Clemente perguntado por uma preta da fazenda que tinha pouco antes passado e que também achava-se fugida, eles lhe disseram que a preta tinha passado há pouco e o referido Clemente seguiu logo pelo mesmo caminho, e com ligeireza. Dirigindo-se pois Clemente para esta cidade e estando já perto, aonde esteve ele até o dia primeiro de março? Dia este que se apresentou com ferimento tão grave? (...) Quinze dias que esteve gravemente ferido, sem procurar recursos, sem queixar-se (...) é uma coisa inacreditável!!! (Grifos originais).63 Ainda nesta extensa carta Cândido Ribeiro da Costa coloca outras argumentações em defesa do genro, como a recordação de um fato ocorrido em Itajubá tempos atrás, quando uma escrava se matou afogada e o seu marido feriu o cadáver em local mortal para atribuir o crime ao senhor. Costa via correlação neste tipo de crime acusando os escravos de, costumeiramente, produzirem este tipo de dificuldade para imputarem culpa aos seus senhores injustamente, valendo-se das táticas mais vis. Além disso, afirmava a docilidade do seu genro, que já libertara um outro escravo fugido, Thomé, pacificamente, mesmo depois de perder dinheiro com a recaptura do mesmo. Também enumerou as boas ações de seu genro, que ajudava órfãos, portanto não era nenhuma “besta-fera”. Citou nomes conhecidos da sociedade que conviviam e tinham amizade com o genro, ressaltando o fato do mesmo já ter sido sub-delegado do município. Por último, põe em questão a sua própria honestidade e prestígio ao dar sua palavra pela inocência do genro, afirmou morar próximo ao local do suposto crime e asseverou que não ouviu gritos, ficando sabendo das acusações posteriormente, por ouvir dizer e pela 63A Verdade, 21 de abril de 1887. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 130 folha Itajubá. Sua esposa e filhos também nada sabiam. Considerou que gritos não passariam despercebidos, ainda mais quando foram arrancados “os dentes com torques”. A intenção clara da carta é defender o acusado, mas revela aspectos daquela realidade dividida por senhores e escravos num mundo em avassaladora transformação. Mas, a violência no final do século XIX não estava apenas na relação senhor escravo. Neste complexo contexto de mudança do braço trabalhador, diferentes relações eram estabelecidas nas fazendas e a presença de nacionalidades diferentes e o preconceito contra o trabalho manual agravavam os desentendimentos entre elite e trabalhadores. No dia 10 de novembro de 1887, A Verdade noticiou um fato que corrobora com o exposto acima e demonstra o quão complexo eram as relações de trabalho no final do Império, em uma sociedade rigidamente hierarquizada e em franca transformação. Informa, que em Campinas, na fazenda do Sr. Carlos Olympio Leite Penteado, este senhor chamou a atenção do pedreiro português, José Joaquim da Silveira, criticando a obra que o mesmo realizava em sua propriedade. O Pedreiro português retrucou que a mesma ainda não estava pronta e para o senhor não questioná-lo antes que o trabalho estivesse concluído. Consta que o Sr. Penteado, irritado com a resposta do português, gritou exasperado. Ao que este último respondeu não ser escravo de ninguém! Enfurecido, Sr. Penteado partiu para agressão e “deu com cacete (...) uma forte pancada em José Joaquim (...) abrindo-lhe na cabeça uma grande brecha”. Neste evento, se o pedreiro respondeu irritadiço não ser escravo de ninguém, o proprietário ficou ainda mais zangado com a “insubmissão” e partiu para a agressão contra o trabalhador português. O trabalhador português, José Silveira, reagiu desferindo uma pedrada no Sr. Carlos Olympio, ferindo-o também na cabeça, ao que o Senhor avançou sobre o pedreiro, este se armou com um martelo e ameaçou Carlos Olympio. Sob a ameaça, o proprietário se retirou, mas em seguida mandou um grupo de escravos de sua propriedade cercar o trabalhador português, “esses escravos deram muitas pancadas, parando somente quando interveio o feitor Fabiano”. José Silveira ainda foi metido no tronco, por ordem do senhor e liberado apenas duas horas depois, quando prometeu não intentar processo algum contra a fazenda. Assim que saiu quebrou a promessa forçosa e fez exame de corpo de delito e queixou-se as autoridades. O envolvimento de escravos e de um trabalhador estrangeiro braçal que não admitia “ser escravo de ninguém!” e tampouco ser tratado como tal, deixava os membros Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 131 da elite em estado de perplexidade ao deparar-se com o fato de que ela, até então senhora de tudo e todos, também precisava se adaptar a nova ordem em constituição. Demonstrando que o problema da transição da mão de obra não era apenas adaptar o trabalhador nacional recém libertado ao afazeres da grande lavoura para não constituírem maltas de vadios, a questão se apresentava mais complexa, pois a elite também precisava se adaptar, convencendo-se que lidava com homens livres, que valorizavam imensamente sua dignidade advinda da liberdade recém adquirida. A análise das relações entre diferentes grupos demonstra o quão confuso e complexo eram as relações naquela sociedade. Festas populares Como mencionado acima, grandes manifestações comemorativas ocorreram em todos os pontos da freguesia de Itajubá com o fim da Escravidão. No entanto, as festas foram realizadas em grandes casarões luxuosos e entre os membros da elite. O cativo recém liberto, que realmente tinha motivos para comemorar a liberdade recém conquistada, como evidentemente deve ter comemorado, não mereceu o destaque da imprensa do período. Sobre as festas populares, uma nota tímida é encontrada na terceira página de A Verdade do dia 25 de maio de 1888. Nos artigos que descreviam estas festas populares os editores dos periódicos faziam questão de ressaltar a harmonia e o respeito à ordem por parte dos libertos, para não por em dúvida quem ainda estava no comando, pois até a libertação fora descrita como dádiva da elite e jamais como uma conquista dos cativos. Ao liberto cabia apenas a permanência no trabalho, agradecido pela oblata oferecida pela elite benevolente. Se os festejos populares não foram preservados propositadamente pelos periódicos da elite, outras evidências de que grandes mudanças ocorreram naquela sociedade com a promulgação da Lei Áurea ainda podem ser percebidas nestas mesmas folhas. No dia 09 de agosto de 1888 A Verdade vinculou um artigo que noticiou, se não um problema, ao menos uma dúvida, o que fazer com o dinheiro economizado por escravos para comprar sua liberdade, o chamado pecúlio? Deveria ser devolvido aos cativos? Em Itajubá os ex-escravos achavam que sim, e foram procurar o Coletor municipal e o Juiz de Órfão para receber o dinheiro economizado de volta (A Verdade, 09 de agosto de 1888). Importante neste evento é demonstrar a ação do recém liberto, um sujeito ciente de seus direitos, diferentemente daquele escravo descrito pelo próprio periódico como um mísero e paciente. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 132 O fato de ter conseguido ou não receber o seu dinheiro de volta não é o fundamental, ressaltamos que neste evento o liberto pressionou e protestou, demonstrando sua condição de sujeito histórico. O Último artigo para o qual chamamos a atenção foi publicado no dia 02 de agosto de 1888 e intitula-se “Casamento a granel”: Estamos sobre a influência d´uma epidemia casamenteira que é um Deus nos acuda! Já se casam às dúzias, e no domingo foram apregoados nada menos de 30! Mas, pergunta-se: Não se tem casado menores sem licença da autoridade competente? Os pretos e pardos, ex-escravos e ingênuos, são todos maiores de 21 anos? Só para os menores pobres que nasceram livres é que é necessário licença? Responda quem souber Ass.: O Coadjutor. (A Verdade, 02 de agosto de 1888). Embora a preocupação do responsável pela publicação do artigo seja outra, a necessidade de licença de menores para se casarem ou não, o artigo comprova que após a abolição uma verdadeira mudança ocorreu na vida da sociedade daquela época, muitos exescravos decidiram se casar, demonstrando sua segurança em um futuro melhor. A libertação provocou radical alteração na sociedade e os ex-cativos tiveram condições de mudar suas estratégias e modificar seu modo de vida. Por último, salientamos que os eventos considerados neste último tópico suscitam maiores questões do que oferecem respostas. No entanto, tal análise contribuiu com nosso escopo ao longo deste artigo, pois demonstraram a complexidade das relações entre senhores e escravos e as muitas outras maneiras de relacionamento que advieram com a extinção da escravidão no mundo do trabalho. A descrição de crimes e assassinatos convinha para amedrontar a elite e pressionar a mesma para encaminhar o fim do escravismo. Por outro lado, o crime contra escravos demonstra que esses eram as maiores vítimas do regime bárbaro, e por último, um universo de negociações nos é revelado com a leitura do ponto de vista dos cativos. Bibliografia AZEVEDO, Célia Maria Marinho. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites século XIX. 2ª edição. São Paulo: Annablume, 2004. CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade:uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Cia das Letras, 1990. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 133 FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. FERNANDES, F. A Integração do Negro na sociedade de classes. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1981. FLORENTINO, Manolo e GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, 1790-1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. 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Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 134 Vivendo da arte mecânica: a importância social dos artífices em Mariana no século XVIII Fabrício Luiz Pereira Mestrando pela UFOP / Bolsista CAPES fabricioluizp@yahoo.com.br Resumo:O termo oficial mecânico se designava ao profissional possuidor de destreza ou maestria na prática de determinado ofício. A principal particularidade do oficial era a liberdade para vender o seu produto ou mesmo a sua própria força de trabalho. Não estavam submetidos a instituições, somente ao mercado consumidor de sua arte, ainda que de forma limitada, pois esses trabalhadores, por vezes, estavam à mercê da câmara, como mostram as licenças, as cartas de exame, as posturas e os regimentos, além da regulamentação dos preços. Em geral, conseguiam seus contratos através dos leilões em praça pública, tanto para obras públicas quanto para obras religiosas. O objetivo dessa comunicação é apresentar, através do inventário e testamento de José Pereira Arouca, alguns aspectos sociais e econômicos relacionados ao trabalho manual em Mariana durante o período colonial. Propõe-se também delinear um panorama do modo de trabalho mecânico na América Portuguesa, a qual não seguiu os padrões metropolitanos das corporações medievais. Delimitaremos o período de 1745 a 1808, omarco temporal coincide com o momento de maior número de obras no centro urbano marianense. Para tal, privilegiaremos a documentação cartoráriado Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana e camarária do Arquivo Histórico da Câmara de Mariana. Palavras-Chave: Ofícios mecânicos, José Pereira Arouca, Escravos Ao analisar o universo das construções de prédios públicos e eclesiásticos nas Minas setecentistas, verifica-se que os projetos iam se concretizando a partir de uma ideia de um espaço urbano conveniente para uma boa acomodação do comércio e dos súditos. Acima de tudo, as intervenções no espaço urbano favoreciam a posse simbólica do território. O presente trabalho pretende apresentar algumas possibilidades de pesquisa sobre o tema “oficialato mecânico”, bem como debater sobre alguns aspectos que permeava a sociedade colonial mineira. Descobertas as minas de ouro, em fins do século XVII, o sertão, ambiente selvagem e inóspito, seria rapidamente habitado. Em pouco menos de um século, o vasto interior do Brasil passaria a sediar um dos mais complexos sistemas administrativos da Coroa Portuguesa. A extração mineradora , oscilante durante o século XVIII, propiciaria um rápido processo de urbanização, iniciado já em 1711, com a criação das primeiras vilas: Vila do Ribeirão de Nossa Senhora do Carmo, Vila Rica e Vila Real de Nossa Senhora da Conceição sob administração do Governador Antônio de Albuquerque. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 135 Os primeiros anos da região foram marcados por conflitos importantes para a história da região mineradora. Em 1709 eclodiu a conhecida guerra dos Emboabas, motivada por conflitos de interesses e por relações de forças entre paulistas e os “estrangeiros”. Em 1720, a Revolta de Felipe dos Santos, novamente coloca a fragmentação da autoridade e dos poderes às claras. Diante da riqueza da região e do desregramento evidente a Coroa passa a se preocupar com a administração nas Minas. A partir do governo de Gomes Freire de Andrade (1735-1763) nota-se um avanço no processo de institucionalização dos poderes municipais e régios na região; um processo marcado por um maior investimento na urbanização das vilas. A região centro-sul de região mineradora passaria a se tornar uma complexa sociedade marcada por uma mobilidade social pouco vista no Antigo Sistema Colonial, além de apresentar características econômicas importantes como a forte presença da agropecuária e a atuação do setor secundário, dentre os quais os artesãos. As construções que eram erguidas naquele espaço urbano nasciam das mãos de homens simples, jornaleiros e oficiais mecânicos licenciados pela Câmara. Alguns mestres de ofícios arrematariam grandes obras públicas, enquanto jornaleiros, negros e mulatos, ergueriam paredes de pau-a-pique em pequenas residências ou construíam grandes monumentos arquitetônicos de pedra e cal, servindo aos seus senhores ou contratantes. As atividades de ferreiro, latoeiro, carpinteiro, carapina, marceneiro, pedreiro, oleiro, arrieiro, cangalheiro, tecelão, ceramista, telheiro, sapateiro, alfaiate, dentre outros, são delineadas como ofícios mecânicos rústicos. Por definição, tais ofícios se diferenciam dos artífices ocupados com os trabalhos de imaginária, entalhe, escultura e pintura. Nesse sentido, o Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico64, do Padre Raphael Bluteau, o verbete “mecânico”, indica uma distinção clara entre os oficias mecânicos e os artistas liberais. De acordo com Bluteau; Artes mecânicas, ou servis, são as que são oppostas às artes liberaes, porque aquellas não só se occupão na fabrica de machinas mathematicas, mas tambem em todo o genero de obras manuaes, & officios necessários para a vida humana, como são os de Carpinteiro, Pedreiro, Alfayate, Sapateiro (...) (BLUTEAU, 1728: 380) Bluteau acrescentaria ainda que o homem que se dedicava ao trabalho mecânico seria baixo e humilde e, seguindo os ensinamentos clássicos, finalizaria o verbete com os 64 BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Português e Latino (1728). In. http://www.brasiliana.usp.br/dicionario .Acesso: 01/05/2011.p 379 – 380. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 136 estes dizeres: “Excogitou o sábio todas estas cousas, mas parecendo lhe indignas delle, entregou-as a homens mecânicos” (idem). Já o “artista liberal” seria nobre, “que mostra ser de pessoa de qualidade” (Ibdem, 109). As artes liberais seriam sete: gramática, retórica, lógica ou dialética, aritmética, música, geometria e astrologia. No vocábulo “arte liberal” mais uma vez verifica-se a distinção entre as artes servis e as artes liberais, conforme exposto a baixo: Da-se este epitheto às artes, que exercitando o engenho, sem ocupar as mãos [como as artes mecânicas] são próprias de homens nobres, & livres não só da escravidão alheya, mas tambem da escravidão das suas proprias paixões, & por isso se chamão liberaes (...) (ibdem). Bluteau adverte ainda no referido verbete que os romanos eram os mais “escrupulosos” nas artes liberais e explicava seu julgamento ressaltando a admissão da pintura, escultura e arquitetura como artes liberais. Alguns estudos historiográficos preocupados com essa distinção atribuíram à possibilidade de “inventar” a diferença entre os oficias mecânicos e os artistas liberais 65, incluindo entre eles os pintores e escultores, os quais, em princípio, estariam excluídos dessa categoria. As hierarquias no interior das artes e ofícios eram múltiplas e se complexificaram no decorrer do tempo. Em Portugal, por exemplo, os pintores instavam que fossem considerados artistas liberais. Conforme apresenta Georgina dos Santos ao analisar a Bandeira de São Jorge em Lisboa, verifica-se que, em 1577, o mestre Diogo Teixeira conseguiu dispensa dos encargos da bandeira de São Jorge argumentando que a pintura era uma das artes liberais, sendo assim, O conceito subjacente à fala do pintor da imaginária deitaria raízes em solo português, como fizera no território italiano. Aliado a um movimento mais amplo de promoção das artes plásticas, nas centúrias seguintes, pari passu ao galardão de nobre atribuído aos pintores da arte, estes artífices estariam ausentes da bandeira de São Jorge e de qualquer outra com assento na Casa dos Vinte e Quatro. Mas o processo de redefinição dos parâmetros de classificação das atividades profissionais, assinalado por mestre Diogo, atravessaria o mundo do trabalho durante toda a Era Moderna, derrubando velhas paredes e erguendo novos muros entre as artes liberais e as artes mecânicas.(SANTOS, 2005: p.123) O conceito de artista e artífice (ou artesão) pode se confundir para o período. Segundo Caio César Boshi, os limites que separavam as práticas do mundo do trabalho não se delineavam com clareza (Cf. BOSCHI, 1988). De maneira geral, o termo oficial 65 Segundo Maria Helena Ochi Flexor aos pintores, escultores e entalhadores havia a possibilidade de “inventar” e por isso eram considerados profissionais liberais, enquanto aos artífices cabia somente “copiar” e permanecer administrativamente atrelados às Câmaras. FLEXOR, Maria Helena Ochi. Mobiliário Bahiano. Brasília, DF: IPHAN/ Programa Monumenta, 2009. P.39. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 137 mecânico designava-se ao profissional possuidor de destreza ou maestria na prática de determinado ofício. Contudo, esse domínio prático não se constituía desassociado das clivagens próprias do campo social. Na colônia, de acordo com Fabiano Gomes da Silva, a principal particularidade do oficial era a liberdade para vender o seu produto ou mesmo a sua própria força de trabalho (Cf. SILVA, 2007) As particularidades atinentes à condição colonial não cessão diante da escravidão e do regime diferenciado de trabalho. Na América portuguesa, os oficiais mecânicos não estavam submetidos a instituições como as corporações de ofício, ao contrário do que normalmente ocorria na metrópole. Na Colônia, o oficial mecânico dependia de um mercado consumidor limitado, no qual se distinguia a Câmara e as irmandades. A câmara exerceria um controle desse oficial não apenas pela contratação da sua obras, mas também pela concessão de licenças e cartas de exame. A ordenação da execução das obras era estabelecida por meio do próprio contrato firmado no momento da contratação e licitação da obra. Para além desses instrumentos ordenadores, a câmara estabelecia posturas, os regimentos e a regulamentação dos preços. Por meio desses instrumentos administrativos, a Câmara buscava intervir e ornar o espaço urbano. As cartas de exame, conforme salientado fora um importante instrumento regulamentarizador por parte da Câmara. Entre 1737 a 180666, a instituição de poder local concedeu 360 cartas de exames em Mariana, conforme distribuídas no gráfico abaixo: GRÁFICO 1: Cartas de exames retiradas em Mariana entre 1737 – 1806 com seus respectivos ofícios. 66 Agradeço a pesquisadora Crislayne Gloss pela doação do levantamento das cartas de exame da Câmara realizados pela mesma. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 138 Série1; Série1; Pedreiros; Série1; Parteira, Ferreiros Ferradores Ourives; 13; 3% 13; 4% cirurgião e Ferreiros e ferradores Carpinteiros "sangrador"; 3; 1% Alfaiates Sapateiros Ourives Pedreiros Parteira, cirurgião e "sangrador" Série1; Sapateiros; 79; 22% Série1; Ferreiros; 82; 23% Série1; Ferradores; 66; 18% Série1; Alfaiates; 65; 18% Série1; Carpinteiros; 35; 10% Série1; Ferreiros e ferradores; 4; 1% Fonte: Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana – Códices: 146, 218, 381 Nota-se que os oficiais ferreiros foram os que mais procuraram a Câmara para tirar as cartas de exame, paripassu com eles estão os sapateiros, alfaiates e ferradores. Importante salientar que dentre os oficiais arrolados quatro foram examinados para exercer o oficio de ferreiro e ferrador em concomitância. Os oficiais de carpintaria e de pedreiro aparecem em pequeno número, sendo 35 o primeiro grupo e 13 o segundo. Três canteiros figuram na listagem, mas também tiraram suas cartas de exame juntamente com a de pedreiro. Podemos destacar alguns problemas quanto ao número de oficiais que obtiveram carta de exame pela Câmara de Mariana. Em primeiro lugar, o baixo número de oficiais que de fato prestavam tal exame. De acordo Fabiano Gomes da Silva, no caso de pedreiros, canteiros e carpinteiros verificou-se em Vila Rica que apenas um grupo reduzido de arrematantes monopolizaram as construções públicas, o que fez com que a grande maioria dos oficiais trabalhassem como jornaleiros. O mesmo ocorreu em Mariana, conforme aponta os dados iniciais da pesquisadora Danielle de Fátima Eugênio67. 67 Essas informações estão sendo analisadas pela pesquisadora no seu projeto de mestrado, também pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade de Ouro Preto, mas em conversa Danielle relatou que os seus estudos apontam para esses dados, ou seja, um pequeno grupo de homens que arrematam as principais obras Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 139 Mesmo sabendo que as cartas de exame são um conjunto de fonte que não abarca a totalidade dos oficiais que se dedicavam as artes mecânicas na colônia podemos inferir outras questões relativas aos que obtiveram tal recurso. Por que a grande maioria das cartas foram para pessoas que se dedicavam a ofícios que tinham como matéria-prima o ferro (148 cartas) e também às vestimentas (144)? Por que os ourives só conseguiram retirar suas cartas entre os anos de 1741-1750? O que explicaria um número tão pequeno de cartas para cirurgião, parteira e sangrador? Respectivamente uma para cada. Já que parcela pequena de artífices retiravam licença na Câmara, como que o poder local conseguia regulamentarizar o ofício na prática cotidiana? Essas e outras perguntas podem ser retiradas dessa fonte, no entanto para o presente artigo iremos utilizá-las somente como possibilidade para futuras pesquisas. Em obras de grande porte, conseguiam seus contratos através dos leilões em praça pública. No caso das obras públicas, “conforme lei e o estilo, um funcionário da câmara, o porteiro, lia em voz alta e inteligível na praça o edital da construção durante vários dias, estimulando os lançadores (arrematantes) a oferecerem o menor lanço (oferta)” (SILVA, 2007: p.98). O ritual só terminava com a eleição do arrematante com o menor preço, que recebia em suas mãos um ramo verde “como sinal público de sua obrigação com a obra”(idem). Com o afluxo populacional para as minas, criou-se um universo móbil e viável às trocas e misturas de raças e cultura. Na arte, notam-se as trocas culturais, as mudanças de modelos motivadas pela influência africana e pelos materiais da região. Vale lembrar que Manuel da Costa Ataíde famoso pintor mineiro, ensinava o oficio da pintura a seus escravos e contava com a ajuda deles em suas empreitadas. A condição mecânica que fora um obstáculo intransponível à nobilitação no Antigo Regime. Pessoas que viviam das artes mecânicas buscavam maneiras de ascender socialmente, vinculando-se às irmandades, estabelecendo relações, incluindo o compadrio, com os responsáveis por grandes arrematações no período. No entanto, embora alguns mecânicos possuíssem escravos, eles não deixavam a condição de plebeu na colônia. A distinção de qualidade era fator determinante para manter as estruturas sociais na colônia, embora os artífices tivessem grandes chances de enriquecimento, conforme elucidaremos a da Câmara de Marina no século XVIII. Conferir também em: EUGÊNIO, Danielle de Fátima. Arrematantes de Obras Públicas: oficialato mecânico na Cidade de Mariana. (1745-1800). Mariana: Instituto de Ciências Humanas e Sociais – UFOP. 2010. (Monografia de conclusão de curso). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 140 posteriori. Maria Beatriz Nizza da Silva elucida um caso interessante no qual percebemos que o enriquecimento do artífice Aleixo Lopes São Cristovão, no Pará, era desdenhado pelo então governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado, em 1757, de acordo com os relatos da autoridade: Este homem era um pobre carpinteiro que não passava de ter mais que os jornais de que se sustentava. Entrou neste contrato no fim do ano de 1751 e ainda que dele resulte conveniência à Fazenda de Sua Magestade, ele tem tirado tais lucros que já se acha nos termos dos homens de cabedais desta terra. (SILVA, 2005: 20) Estima-se que o carpinteiro arrematou a obra do pesqueiro real da ilha de Joanes por 2:000$000 réis, uma quantia considerada alta para o período. Provavelmente o oficial só havia conseguido tal arrematação por possuir tenda e escravos suficientes para a construção da obra. Silva chama atenção também para a formação de uma classe intermédia entre nobres e plebeus, visto no verbete no dicionário de Bluteau como “Estado do Meio”. Não seriam nem mecânicos e nem nobres, seriam tratados com certa distinção por andarem com cavalos e servindo-se como criados, além disso dedicava-se as artes mais estimadas, como pintores, escultores, ourives e cirurgiões (idem: 20-22) Talvez essa informação explique o baixo número de cartas de exame para ourives e cirurgiões expostos acima. Na tentativa de exemplificar as discussões expostas acima, apresenta-se o significativo inventário e testamento de um dos maiores arrematantes de obras em Mariana no século XVIII, José Pereira Arouca. O artífice atuava em três ofícios: carpintaria, cantaria e pedreiro, provavelmente teve sua carta de exame retirada em Portugal, pois em Mariana aonde residia não há registro de tal documento. Entre as principais obras arrematadas por Arouca destacam-se as obras na Matriz de São Sebastião, na Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, na Casa de Câmara e Cadeia, na Casa Capitular (em sociedade com outro importante arrematante do período João de Caldas Bacelar) e obras na Matriz do Senhor Bom Jesus do Furquim. Arouca ainda ocupou os cargos de: juiz de ofício de pedreiro e carpinteiro nos anos de 1762, 1772 e 1774; tesoureiro da Câmara em 1780; e arrendatário das aferições e meias patacas no anos de 1787 e 1788. Coincidência ou não, no ano de 1780, enquanto tesoureiro da Câmara, Arouca arrematou a obra mais cara ao Senado, a construção da nova Casa de Câmara e Cadeia (TEDESCHI, 2011: p.96-108). Em seu testamento redigido em 1793 o arrematante, natural da freguesia de São Bento da Vila de Arouca, Comarca do Porto – Portugal, dizia-se solteiro e sem filhos legítimos, portanto deixava sua alma como herdeira de seus bens. Pedia para ser sepultado Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 141 com o hábito da Ordem Terceira de São Francisco de Assis, da qual era irmão indigno, prometia esmolas aos irmãos das irmandades do Santana, arquiconfraria de São Francisco, Nossa Senhora das Mercês, do Rosário e de São Gonçalo que acompanhassem seu sepultamento, além deles deixava 200 oitavas de ouro como esmola para os pobres brancos que também estivesse no momento de seu enterro. Dos bens que possuía, Arouca dizia que possuía várias moradas de casas e dívidas a receber. Dizia também que possuía terras minerais no Morro de Santana em sociedade com Lizardo Coelho Martins e Manoel Jorge de Carvalho. A diversificação econômica é característica importante naquele universo social. Além das obras arrematadas e das terras minerais, Arouca também se dedicava as ordens militares, ele era alferes. O arrematante declarou em seu testamento que possuía mais de 50 escravos e que deixava quartados quatro deles: Joaquim Mina, Bernardo Mina, Thomas Mina e Sebastião Mina, com a condição de depois de seu falecimento finalizassem as obras arrematadas por seu senhor, conforme as condições expostas abaixo: Depois do meu falecimento quatro anos de serviços que hão de trabalhar nas obras em que hão de ser acabadas. E sendo os ditos quatro anos a lei para forras aos quais meu testamenteiro lhes passará suas cartas de liberdade no caso de lhes pedirem e lhes deixo a cada um deles sendo os quatro anos de serviço depois de meu falecimento cinquenta mil réis de esmola cada um para seu principio, e caso no tempo do meu falecimento eu tenha concluído as obras de pedreiro que tenho arrematado como tão bem as de carapina, neste caso meu testamenteiro lhes passará suas cartas de alforria, e não lhes dará a esmola acima declarada enquanto meu testamenteiro não lhes passar suas cartas de alforria os tratará com o necessário68. De seus “cinquenta” escravos apenas treze foram arrolados em seu inventário, conforme a tabela abaixo, outros onze não se apresentaram para serem avaliados por estarem no mato tirando madeiras com vários carros de bois69. TABELA 1: Escravos arrolados do inventário de José Pereira Arouca Nome e origem Idade Especialização Valor João Caetano Crioulo 33 anos Carpinteiro 160$000 João Angolla 44 anos Carpinteiro 150$000 68 Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana- Livro de Registro de Testamento 42 – 1º oficio – 17941796. 69 Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana. Inventários Avulsos – 1º ofício, caixa 1, códice 6. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 142 Matheus [Cabunda] 45 anos Pedreiro 140$000 Antonio Carioca 65 anos Pedreiro 70$000 Antonio Grande Angolla 50 anos Serrador 160$000 Domingos Angolla 58 anos Serrador 80$000 Miguel Angolla Candimba 45 anos Ferreiro 200$000 Joaquim Angolla 42 anos “cabouqueiro” 130$000 Andre Angolla 40 anos “cabouqueiro” 150$000 Pedro Angola 60 anos “capineiro” 30$000 Caetano Angola 35 anos Sem ofício 140$000 Lourenço Angola 55 anos Sem ofício 80$000 Antonia Mulata 55 anos Sem ofício 50$000 Valor total: 1: 540$000 Fonte: Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana. Inventários Avulsos – 1º ofício, caixa 1, códice 6. Na tabela acima se verifica que a especialização valorizava na avaliação do escravo, como Caetano Angola de 35 anos avaliado em 140$000 réis em comparação com Mateus Cabunda, pedreiro 10 anos mais velho avaliado no mesmo valor. Impressiona no inventário de Arouca a forte presença de escravos com especialização. A respeito daquela sociedade escravocrata percebe-se que a mobilidade social contribuiu para a criação de uma população escrava munida de desejos e direitos. Através das análises da devassas civis encontradas no Museu da Casa do Pilar em Ouro Preto, Marco Antônio Silveira propõe que as relações sociais vigentes para o período guiadas pela vontade da distinção. Dentro de uma sociedade norteada por valores patrimonialistas, “... a escravidão, embora assentada em bases institucionais, dependia em larga escala da legitimação cotidiana expressa por meio de gestos e comportamentos (SILVEIRA, 1997: p.124)”. Mais adiante Silveira afirma que, “as relações sociais do escravo não se restringiam ao contato com o senhor e seu círculo; pelo contrário, sabemos que a mobilidade permitia que elas ampliassem e definissem um campo próprio” (idem). Ao tratar da mobilidade do escravo africano Russel-Wood destacou que cerca 341 mil escravos vieram para as minas durante o século XVIII. Para o autor, não houve em Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 143 outro lugar da colônia uma relação entre senhor e escravo marcada por tamanha fluidez. O autor destaca ainda a aflição vivida pelo poder régio frente a essa enorme parcela da população que vivia nas minas. De acordo com Russel-Wood, “o impacto deste súbito fluxo de escravos na administração, na sociedade [e] na economia da região [...] levaram ao surgimento dos libertos de ascendência africana como um setor poderoso” (RUSSELWOOD, 2005: 164). Destaca-se também o fato de alguns escravos trazerem saberes técnicos para as minas, como os provenientes da Costa da Mina e muitos escravos especializados como ferreiros e ourives. No contexto urbano, Russell-Wood salienta ainda, que os escravos de ganho, para além da bateia, se envolviam em diferentes atividades como carregar madeira e limpar roçados. Embora não apresentado em sua totalidade pode-se perceber que o inventário e testamento de José Pereira Arouca suscitam diversas possibilidades de análises, tais como a relação entre o artífice e as irmandades, seu lugar na escala social, afinal o arrematante Irmão da Ordem Terceira do Carmo e mesmo envolvido com atividades mecânicas conseguiu certo distanciamento social. Além disso, pode-se analisar a ferramentaria e escravaria que facilitavam suas arrematações juntamente com seus contatos, como suas relações com a Câmara, conforme exposto. Esse artigo apresentou-se como uma análise incipiente sobre a temática, bem como possibilitando alguns problemas sobre o assunto. Referências: Fontes documentais Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana – Códices: 146, 218, 381 Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana. Inventários Avulsos – 1º ofício, caixa 1, códice 6. Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana - Livro de Registro de Testamento 42 – 1º oficio – 1794-1796. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Português e Latino. In. http://www.brasiliana.usp.br/dicionario. Acesso: 01/05/2011. Bibliografia BOSHI, Caio César. O Barroco Mineiro: artes e trabalho. São Paulo Brasiliense, 1988. EUGÊNIO, Danielle de Fátima. Arrematantes de Obras Públicas: oficialato mecânico na Cidade de Mariana. (1745-1800). Mariana: Instituto de Ciências Humanas e Sociais – UFOP. 2010. (Monografia de conclusão de curso). RUSSELL-WOOD, A.J.R. Escravos e libertos no Brasil Colonial. Tradução: Maria Beatriz Medina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. SANTOS, Georgina Silva dos. Ofício e sangue: A Irmandade de S. Jorge e a Inquisição na Lisboa Moderna. 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Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 145 Formação militar e “amparo aos desvalidos” na Companhia de Aprendizes Militares de Minas Gerais (1876-1891) Felipe Osvaldo Guimarães Mestrando em Educação pela UFMG / Bolsista CNPq-Capes felipeoguimaraes@yahoo.com.br Resumo: Esse estudo consiste em investigar as motivações expressas pelos organismos e intelectuais estatais para a instalação da Companhia de Aprendizes Militares de Minas Gerais. Criada em Ouro Preto em 1876, a companhia foi composta por crianças entre 7 e 12 anos, órfãs, pobres ou libertas pela lei do “Ventre Livre". Mantida pelo Ministério da Guerra, a Companhia foi extinta em 1891. O estudo permite observar uma articulação entre novas propostas de formação de recrutas e um esforço do Estado de prover assistência às camadas pobres, afastando-as da criminalidade e do ócio, dentro das particularidades do Exército, como saberes técnicos e um ethos próprio, baseado em valores como a hierarquia e a disciplina. As fontes utilizadas envolvem legislação, relatórios e correspondências governamentais, material articulado a uma discussão teórica com autores como Norbert Elias e Pierre Rosanvallon e áreas como a História da Infância, a Educação Militar e a História da Educação Social. Palavras-chave: educação militar, história da educação social, assistência aos pobres Abstracy: This study is to investigate the reasons expressed by intellectual sandstate agencies for the installationof the Company of Military Apprentices of Minas Gerais. Created in Ouro Preto in 1876, the company was composed of children between 7 and12 years, orphans, poor or freed by the "Ventre Livre" Law. Maintained by the Ministry ofWar, the Company was terminated in 1891. The study allows us to observe a link between new proposals for training of recruits and a State's effort to provide assistance to the poor, keeping them away from crime and idleness, within the particularities of Army, such as technical knowledge and anethos of its own,based on values such as hierarchy and discipline. The sources used involve legislation, government reports and correspondence, which werearticulatedwith atheoretical discussion with authors such as Norbert Elias and Pierre Rosanvallon and areas such asthe History of Childhood, Military Education and History of Social Education. Keywords: military education, social history of education, assistance to the poor Nas décadas finais do século XIX, ganhou força no Brasil o processo de escolarização do ensino profissional a partir da iniciativa do Estado, que começa nesse período a assumir a assistência aos “desvalidos” como uma questão importante para a ordem social70. No campo da produção econômica, esse movimento se caracterizou pela criação de instituições para o aperfeiçoamento agrícola, como Escolas agrícolas e Fazendas- 70 Trabalho apresentado no 1º Encontro de Pesquisa em História da UFMG, realizado em 2012 na cidade de Belo Horizonte, e baseado no projeto e nos levantamentos iniciais da pesquisa realizada no mestrado. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 146 modelo, e manufatureiro, como os Liceus de artes e ofícios, sendo um processo motivado pela necessidade de se melhorar a produtividade agrícola e a instalação de novas indústrias. Outra modalidade de formação profissional, a militar, também esteve inserida nesse processo, com a criação dos Depósitos de Aprendizes Artilheiros e das Companhias de Aprendizes Artífices em várias províncias do país, para a formação de recrutas ou oficiais inferiores e a fabricação de armamentos e materiais para suprimento do Exército, respectivamente. Nesse contexto, o Ministério da Guerra determina, em 1874, a criação de Companhias de Aprendizes Militares nas províncias onde não houvesse Arsenais de Guerra, a começar por Minas Gerais e Goiás, sendo instaladas as ditas companhias nas capitais de ambas as províncias em 1876. Essas iniciativas reportam a uma dupla série de motivações que se articulam nesse período. A primeira delas diz respeito a uma preocupação assistencialista, no sentido do Estado prover aos cidadãos “desvalidos da fortuna”, em especial as crianças e jovens, meios que assegurem sua subsistência, formando cidadãos “úteis a si mesmos e à pátria”, afastados dos perigos da criminalidade e do ócio. Ilustra essa motivação a descrição, no regulamento da Companhia, do público para o qual esta é criada: “órfãos, desvalidos, abandonados ou sem amparo da família, filhos dos praças do Exército ou da Armada, filhos de pessoas indigentes e ingênuos de que trata a Lei do Ventre Livre de 1871 e na falta de todos esses, com quaisquer outros menores apresentados pelos pais, que provem o estado de indigência” 71. A outra motivação presente nos discursos que as elites políticas do período emitiam pauta-se pela necessidade de modernização econômica, através da formação, nas instituições de ensino profissional, de trabalhadores que dominassem técnicas e métodos mais produtivos no campo e nas manufaturas. Essa temática também aparece no Exército, mas com as especificidades próprias da formação militar brasileira. Especialmente após o esforço de reorganização do Exército durante a Guerra do Paraguai, entre 1865 e 1870, a formação dos soldados tornou-se um tema recorrente de debate no interior da organização. Inspirando-se no modelo dos exércitos europeus, evidenciou-se a importância do ensino aos soldados de aspectos técnicos como o manuseio dos armamentos modernos e a aplicação dos princípios táticos e estratégicos. Mas, além disso, essa perspectiva educacional advoga a formação de um esprit 71 Decreto Imperial nº. 6304 de 12 de setembro de 1876, capítulo III, artigo 31. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 147 de corps, forjando a identidade de uma organização com abrangência nacional, baseada nos princípios da hierarquia e da disciplina. A própria estrutura da companhia, definida em seu regulamento, ilustra esse propósito, contratando professores para ministrar conhecimentos julgados importantes para a formação dos jovens, como as primeiras letras, música, ginástica, natação e ensino religioso, além, é claro, da instrução militar propriamente dita. O Ministério da Guerra e a Presidência da Província dividiam o custeio da instituição, que tinha capacidade para 40 alunos - composição raramente mantida, o que motivou o governo a requisitar aos juízes de órfãos o encaminhamento de crianças para a instituição. Os alunos recebiam alojamento, fardas e um auxílio financeiro, sendo transferidos para os corpos de infantaria ao completar os 14 anos e serem aprovados nos exames. Também era permitida a continuação dos estudos na Escola Militar ao aluno que melhor se saísse nos exames. Diante do quadro apresentado, evidenciam-se alguns problemas de pesquisa. Em que medida a criação da Companhia de Aprendizes Militares se insere em um quadro mais amplo de propostas de “amparo aos desvalidos”, assumido pelo Estado? Como essa inserção se relaciona com a importância, do ponto de vista estritamente militar, atribuída à formação “metódica” de recrutas? A percepção dessas motivações é a mesma entre Ministério da Guerra e Presidência da Província? O que as elites e o Estado do século XIX concebiam como “assistência” a crianças e jovens pobres, órfãos ou filhos de escravos? Quais são as especificidades de um estabelecimento de ensino militar para esse público? Por que houve a extinção da Companhia, exatamente no período em que os militares estavam no poder? A pesquisa em curso procura responder a essas perguntas, confrontando as fontes primárias com os referenciais teóricos. Estes são provenientes de autores que abordaram a questão da marginalidade e da ação do Estado no sentido de se combater esse fenômeno, inclusive através da educação. Na obra “Os Estabelecidos e os Outsiders”, de Norbert Elias (2000), um dos aspectos abordados pelo autor é o da elaboração, pelo primeiro grupo, de um estigma sob o segundo. Os oustsiders são caracterizados por sua anomia, sendo “vistos pelo grupo estabelecido como indignos de confiança, indisciplinados e desordeiros” (ELIAS, 2000, p. 27). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 148 Ainda segundo o autor, no caso especifico das crianças membros de grupos outsiders, esse estigma pode resultar inclusive em déficits intelectuais e afetivos, o que pode ser pensado no contexto brasileiro também em termos de sua origem pobre, órfã, abandonada ou negra. Assim, os investimentos em instrução militar e de ofícios poderiam ser pensados pelo Estado como uma tentativa de prevenção desse quadro de anomia entre os desvalidos, dentro da ótica de grupos estabelecidos da formação de cidadãos “úteis a si e à pátria”. Outra perspectiva importante para a pesquisa é a da chamada História da Educação Social, que não se confunde com uma História Social da Educação, uma vez que o que se está priorizando não é a abordagem teórica da história, mas o objeto de investigação. Entretanto, isso não excluir a possibilidade de emprego da História Social, haja vista as discussões deste campo teórico acerca da marginalidade e da pobreza. Julio Ruiz Berrio define a História da Educação Social como uma “história dos processos educativos destinados a equilibrar, superar ou prevenir duas categorias fundamentais: a marginalização e a exclusão, especialmente na infância e na juventude, através dos tempos” (BERRIO, 1999, p. 7). A expansão da autoridade do Estado, a maior complexidade das sociedades industriais e a mudança da concepção de infância no século XIX se articulariam na gestação dessa educação social, voltada para um público específico e desenvolvida de forma paralela aos esforços de expansão da educação formal. Dessa forma, discutem-se os propósitos e o papel formador das instituições voltadas para a educação profissional e militar de jovens e crianças desamparados. Essa perspectiva demonstra uma mudança na própria organização do Estado, como é investigado por Pierre Rosanvallon (1997). De acordo com este autor, o Estado moderno definiu-se enquanto um Estado-protetor, defendendo os direitos básicos, como a segurança e a propriedade, dos indivíduos. A partir do século XIX, o Estado-protetor estende-se e aprofunda-se na forma de um Estado-providência, no qual uma das transformações mais importantes é a substituição da incerteza da providência religiosa pela certeza da providência estatal. Assim, o autor afirma que “ele [o Estado] se dá por tarefa resgatar hic et nunc as desigualdades de ‘natureza’ ou os infortúnios da sorte” (ROSANVALLON, 1997, p.22). Assim, a perspectiva deste autor acerca do Estado-providência oferece uma ferramenta de compreensão das iniciativas de educação voltadas para os jovens e crianças marginalizados. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 149 Por ser um tema ainda pouco estudado, a educação militar para crianças marginalizadas exige a articulação entre obras com variados objetos de estudo para que se estabeleça um quadro de análise da pesquisa. Destacam-se três perspectivas de diálogo com a bibliografia: a da formação militar, a da educação voltada para a infância pobre e a que aborda especificamente a companhia mineira. Sobre a questão da formação militar propriamente dita, destoando de uma tradição historiográfica que caracteriza o Exército imperial como um agente social pouco relevante no século XIX, Cláudia Alves (2002b) apresenta o mesmo como um campo de debates não só sobre aspectos próprios da defesa nacional, mas também da organização social e educacional brasileira. Enquanto uma instituição também educadora, o Exército criou e manteve, entre outras organizações, estabelecimentos para a instrução militar das crianças e jovens, como o Companhia de Aprendizes Militares. Sobre essa instituição, e outras de caráter parecido, como os Depósitos de Aprendizes Artífices, a autora destaca como a profissionalização do Exército e sua posição desprivilegiada no organismo imperial acarretou a geração de um campo específico de ensino militar, com um modelo baseado em estabelecimentos similares existentes na Europa, mas com necessidades e clientela inseridas nas especificidades sociais brasileiras do século XIX (ALVES, 2002b). Estudando a constituição do exército enquanto uma instituição mais influente na política a partir do final do século XIX, inclusive com intervenções diretas, John Schulz (1994) destaca as mudanças da composição social dos oficiais da corporação e a produção de um conjunto de metas políticas muitas vezes divergentes dos objetivos de setores da elite. O autor ressalta que “a educação militar expandiu-se de maneira significativa e a promoção por tempo de serviço tornou-se a regra geral (...). Em consequência, a oficialidade emergiu como uma força profissional coesa, na qual o progresso dependia do talento” (SCHULZ, 1994, p. 13). Já Fábio Faria Mendes (2010) destaca, ao analisar os complexos elementos relacionados ao recrutamento militar durante o período imperial, que a rígida disciplina, os castigos físicos e o duro cotidiano de trabalhos criaram uma imagem negativa em relação ao serviço militar. Ele destaca também como as extremas dificuldades de recrutamento durante a Guerra do Paraguai levaram os reformistas militares a propor formas menos forçadas de composição dos efetivos. Isso se manifestou nas mudanças da organização militar em 1874, com a lei do sorteio (e sua tentativa fracassada de aplicá-la) e a abolição Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 150 dos castigos corporais. A criação das Companhias de Aprendizes Militares, exatamente nesse contexto, pode ter sido pensada nesse sentido. Abordando a temática da infância abandonada, destaca-se a obra de Maria Luiza Marcílio (2006). A autora destaca três grandes fases na história da proteção às crianças abandonadas ou pobres: a caritativa até o século XVIII, a filantrópica desse século ao início do XX e, a partir daí, a fase do Estado do Bem-Estar Social. No Brasil, a passagem entre a primeira e a segunda fase ocorreu no século XIX, com uma lenta transformação de um padrão de assistência baseado em princípios religiosos de caridade a uma ação laica de indivíduos ou grupos particulares, eventualmente com o apoio do Estado. É importante problematizar essa divisão em fases, haja vista a interpenetração entre as práticas desses modelos assistenciais, além da importância de se diferenciar as concepções de assistência do Estado no século XIX em relação às do século XX, sob o risco de ser incorrer em um anacronismo baseado no uso de premissas atuais de assistência para analisar aquele período. A autora destaca que o pensamento filantrópico visava preparar a criança desvalida para o mundo do trabalho, mantendo a ordem social e prevenindo males como o ócio e a criminalidade. Ao tratar das iniciativas militares de assistência (curiosamente, inseridas na fase caritativa, e não na filantrópica), Marcílio enfatiza mais a rígida disciplina e o uso de castigos físicos nos estabelecimentos criados durante o Império do que suas características particulares. Sabina Loriga (1996) pesquisou as transformações e as nuances do ofício militar para os jovens, destacando a formação de um perfil ideal de soldado para os grandes exércitos nacionais surgidos a partir da Revolução Francesa: jovem, másculo, treinado no uso de armamentos modernos e imbuído de valores nacionais. Sobre o ensino militar de crianças desvalidas, a autora explica que desde o final do século XVIII esse ramo da formação bélica ganhava força, na expectativa de que os órfãos, abandonados, bastardos e, sobretudo, os filhos dos soldados “demonstrassem acentuadas inclinações marciais” (LORIGA, 1996, p. 24). Sobre a própria companhia mineira, as referências são escassas e episódicas, não tomando a instituição como objeto de estudo mais sistemático. Em um pequeno capítulo da obra memorialística Ouro Prêto, Henrique Cabral (1969) comenta brevemente sobre a localização da instituição em Ouro Preto, alguns de seus funcionários e enaltece o estabelecimento de “espírito elevado” que “além de proteger o desamparado, ensinava-lhe Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 151 um ofício e dava-lhe instrução, afastando, por conseguinte, do ócio e do vício” (CABRAL, 1969, p. 154). Na dissertação de Lucílio Silva (2009), o autor descreve, também de forma muito breve, a companhia mineira, evidenciada como um exemplo de implementação do ensino profissional, inserido em uma lógica de controle e tutela dos aprendizes dessas instituições. Entretanto, ele não se aprofunda nas especificidades militares dessa iniciativa, sendo a companhia abordada de forma indistinta em relação aos outros estabelecimentos de ensino profissional criados em Minas Gerais no século XIX. Por fim, analisemos a documentação a partir da qual se elaborou a pesquisa, que abarca leis, regulamentos, correspondências e relatórios oficiais e artigos jornalísticos. À exceção destes, os conjuntos de fontes são de caráter oficial, o que limita a execução de um estudo aprofundado da recepção de regras e diretrizes entre alunos e professores da companhia. Além disso, como alerta o historiador Jacques Le Goff, a percepção do documento enquanto monumento é importante para se compreender o esforço de alguns grupos para impor ao futuro determinada imagem de si próprios (LE GOFF, 1984). No caso desse estudo sobre a Companhia, essa problematização é particularmente vital ao se estudar as fontes oficiais escritas, que exigem uma leitura atenta para que se compreenda esses discursos como produtores de uma memória selecionada da instituição, muitas vezes silenciando sobre a ação de atores como professores e alunos. Por outro lado, como é destacado por Luciano Faria Filho (1998), esse tipo de fonte, especialmente a legislação escolar, nos permite refletir sobre o ordenamento do processo pedagógico e o emaranhado de práticas e representações que constituem o “em torno” dessas leis, regulamentos e relatórios, influenciando sua concepção e aplicação no interior dos estabelecimentos de ensino. A legislação que deu origem à companhia é composta pelas leis 2530 e 2556, ambas de 1874, e os decretos 6205 e 6304, ambos de 1876. No caso das leis, os parágrafos dos artigos 2º e 7º, respectivamente, autorizam o governo a criar as companhias. Nos dois casos, as leis referem-se à questão do recrutamento e fixação de forças, dentro de um quadro de reforma do alistamento de 1874, o que exige uma reflexão sobre o porquê do estabelecimento dessas companhias nesse período. O decreto 6304, que é o regulamento da companhia, além de informar o público para o qual a companhia foi criada, como foi destacado acima, descreve as funções de cada cargo, os conteúdos das disciplinas, Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 152 alojamento, auxílio financeiro aos alunos e os procedimentos de exame dos aprendizes, o que oferece um quadro claro das expectativas relacionadas à instituição. Os Relatórios do Ministério da Guerra e os Relatórios dos Presidentes da Província de Minas Gerais, documentos anuais pesquisados no período entre 1876 e 1891, constituem fontes importantes, pois permitem observar as apreciações das autoridades acerca do funcionamento da companhia. No caso dos relatórios ministeriais, a ênfase recai sobre questões na contagem anual do número de alunos e o estado geral da companhia. Já os Presidentes de Província abordam em seus relatórios aspectos mais específicos e pragmáticos, como a necessidade de se suprir cargos vagos e as condições, em geral ruins, das instalações físicas da companhia. A análise da documentação diretamente relativa à companhia se encontra no Arquivo Público Mineiro, em especial no fundo Secretaria de Governo. Nas séries Força Pública e alistamento e Avisos do Ministério da Guerra há capítulos nos cadernos de correspondências expedidas pelo governo referentes à companhia, informando, por exemplo, sobre nomeações de professores ou suprimento de objetos, mas que em geral apenas repetem as determinações legais. Na pesquisa de matérias publicadas em jornais da cidade de Ouro Preto, um exemplo da presença de informações relativas à companhia é uma pequena matéria do Diário de Minas relativa à abertura da mesma (curiosamente chamada pelo jornal de “Escola militar de menores artífices”), destacando as autoridades presentes à abertura do “asilo oficial aos deserdados da fortuna”.72 Portanto, este estudo apresenta-se como uma oportunidade de se discutir em que medida havia ou não uma mudança nas propostas de assistência aos pobres no Brasil, e em especial em Minas Gerais no final do século XIX. Além disso, a pesquisa contribui para a compreensão das influências, entre crianças e jovens marginalizados, de um projeto de formação militar específico para esse grupo, pensado pela intelectualidade do Exército e assentado em um ethos que enfatiza valores como a disciplina e a hierarquia. Bibliografia: ALVES, Cláudia Maria Costa. A visão militar da educação no Império. In: GONDRA, José. Dos arquivos a escrita da historia: a educação brasileira entre o Império e a República. 2 ed. Bragança Paulista: Universidade São Francisco, 2002a. p.147-164. 72Diário de Minas. Edição 751, 28 de novembro de 1876. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 153 ______. Cultura e política no século XIX: o exército como campo de constituição de sujeitos políticos no Império. Bragança Paulista: EDUSF, 2002b. BERRIO, Julio Ruiz. Introducción a la Historia de la Educación Social en España. In.: Historia de la Educación: Revista Interuniversitaria. Nº 18. Ediciones Universidad de Salamanca, 1999. BOTELHO, Jorge Florentino. A formação do trabalhador do campo em Minas Gerais - o Instituto Agronômico de Itabira (1880-1898). Belo Horizonte: Centro Federal de Educação Tecnológica, 2009. Dissertação de Mestrado. CABRAL, Henrique Barbosa da Silva. Ouro Prêto. Belo Horizonte: (?), 1969. p. 153 e 154 CARVALHO, José Murilo de. 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Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 155 Uma proposta comparativista no estudo da apropriação do Ideário Liberal durante o II Reinado (1831-1842/ 1871-1888) Glauber Miranda Florindo Mestrando em História Comparada pela UFRJ gmfhis@gmail.com Resumo: Neste trabalho faremos uma breve exposição acerca da apropriação do liberalismo na política oitocentista. Proporemos uma abordagem na qual se estabeleça uma comparação sistemática do mesmo espaço em temporalidades diferentes, assim, chamaremos a atenção para a possibilidade de se problematizar a apropriação do “ideário liberal” pela elite política no decorrer do II Reinado. Palavras-Chaves: Ideário Liberal, Apropriação de Ideias, II Reinado. Abstract: In this work we will make a brief exposition about the appropriation of political liberalism in the nineteenth century. It is proposed an approach to establish a systematic comparison of the same space in different times, thereby, we will call attention to the possibility of analyzing the appropriation of the "liberal ideology" by the political elite during the Second Brazilian Reign. Keywords: Liberal Ideals, Appropriation of Ideas, Second Brazilian Reign. A construção do estado brasileiro no decorrer do II Reinado seria permeada de contradições e ambiguidades: da necessidade de reformas derivaria a necessidade de um Estado centralizado para fazê-las. Ao mesmo tempo em que se demandaria um menor controle sobre a economia e uma menor centralização, haveria a necessidade de um Estado forte para resolver questões como a da escravidão (CARVALHO, José Murilo de. 2008: 234). Grosso modo, podemos entender a questão da seguinte forma: embora a elite imperial do Brasil fizesse uso de teorias liberais advindas de correntes europeias e norteamericanas e as usasse como exemplos diante de questões políticas, o embate com o contexto brasileiro produziria paradoxos. Exemplo disso seria o processo abolicionista, pois, embora ele fosse produto de inúmeros fatores – resultado da causa abolicionista somada ao repúdio internacional em relação à escravatura, ao declínio gradual das relações econômicas e sociais após 1850, ao comércio interprovincial de escravos, às influências da abolição no EUA e a resistência dos escravos (C.f. CONRAD, Robert Edgar.1978). A abolição fez parte de um projeto, em sentido lato, de reforma do Estado.Nesse sentido, a abolição, pode ser entendida como uma série de politicas públicas, assim, tem-se a imagem de um Estado que paradoxalmente cerceou o trabalho escravo até seu fim, estando alicerçado sobre uma economia que dependia da mão-de-obra escrava, e uma sociedade Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 156 (produtores rurais, comerciantes) que demandaria e contribuiria à construção de um Estado forte para cuidar de seus vários interesses, dentre os quais, a manutenção da escravidão (CARVALHO. 2008: 293). Posto isso, definimos como problemática de nossa pesquisa a questão: como a elite politica imperial se articulou no decorrer do Segundo Reinado para construir um Estado forte e dele deliberar acerca de reformas tal qual a abolição? Podemos considerar a influência de um ideário liberal como justificativa para o processo de centralização do Estado, assim como justificativa para a empreitada abolicionista? Obviamente que não podemos pensar o Segundo Reinado com um todo homogêneo. Cada questão posta pela elite imperial tinhasuas próprias especificidades, mas como a elite lidava com elas? Como comparava as questões brasileiras com a de outros países? Como se apropriavam de produções teóricas e políticas formuladas em outros contextos? E por fim, como adequavam tais produções aos contextos do Brasil Imperial? Pretendemos analisar as discussões legislativas acerca da estruturação do Estado, comparando-as com as discussões das propostas de leis que resultaram no processo de abolição da escravidão. Para tanto consideraremos dois períodos distintos: o primeiro vai de 1831 a 1842, em que ocorre a promulgação da lei que estabelece o Código de Processo Criminal (1831), passando pelo Ato Adicional de 1834 até a lei que o interpreta em 1840 e a Lei de Reforma do Código de Processo Criminal (1842); o segundo período vai de 1871 até 1888, período em que se promulgam a Lei do Ventre Livre (1871), 1885 - Lei dos Sexagenários, até 1888 quando é promulgada a Abolição. Nosso intento será entender sob quais justificativas teóricas tais deliberações foram aprovadas, observaremos mais atentamente as justificativas embasadas em teorias de cunho liberal, por serem mais exploradas pela historiografia. Buscamos em nossa comparação, diferenças na forma como dada ideia seria apropriada pela elite imperial nos embates legislativos de cada período estudado, em outras palavras, tentaremos apreender sentido da justificativa dos agentes no emprego de dado embasamento teórico, tendo por vista, sempre, a relação com o contexto no qual ele estaria sendo empregado. Partimos do pressuposto denominado por Angela Alonso como “truísmo sociológico” em que “formas de pensar estão imersas em práticas e redes sociais” (ALONSO, Angela. 2002: 38). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 157 Propomos pensar uma amalgama de teorias apropriadas pela elite política para “dar cabo” das questões que iriam surgindo. Pretendemos demonstrar ao longo da pesquisa o equívoco de se pensar as apropriações teóricas descoladas de uma realidade de ação. Utilizaremos noções básicas de abordagem trabalhadas por Angela Alonso. A autora chama atenção, primeiramente, para cuidados a serem tomados, a começar por não restringir os atores estudados a grupos sociais, instituições, ou associações sob o risco de vincular as ideias por eles produzidas a rótulos superficiais que não condizem com a significação do produzido (ALONSO, Angela. 2000: 38-40). Outra questão a ser levada em conta, é a relação entre contextos diferentes que é dinâmica, não existindo no uso da ideia características imitativas, o que há, é um repertório que abarca tanto a ideia apropriada quanto a tradição nacional. A apropriação é sempre seletiva, passível de modificação e supressão (ALONSO. 2000: 41). Sublinhados tais cuidados, passamos agora a explicitar as opções metodológicas propostas pela autora. Quando se trata da compreensão da forma como dadas ideias foram apropriadas ou produzidas por um autor ou um grupo de autores, é necessário perceber que “formas de pensar estão imersas em práticas e redes sociais” (ALONSO. 2000: 41). Desse modo “dada a indistinção de campos no Império, uma manifestação intelectual era imediatamente política. Por isso, a própria dinâmica política – a performance política de agentes e argumentos, e não as ‘teorias’ ou os ‘intelectuais’ – oferece a melhor perspectiva de análise” (ALONSO. 2000: 41). Segundo Alonso, tal opção metodológica possibilita observar de forma clara a atividade dos agentes políticos brasileiros, permitindo identificar complementaridades entre suas ideias e as consequentes formas de ação (ALONSO. 2000: 41). Era comum durante o Império o uso de teorias estrangeiras como “armas retóricas” de combate, tendo isso em conta, o problema que se desenha é “como capacidades culturais criadas em um contexto histórico são reapropriadas e alteradas em novas circunstâncias” (ALONSO. 2000: 41). Diante disso, três “chaves de leitura” são propostas para a possibilidade de compreensão destas questões. O primeiro é a estrutura de oportunidades políticas: consiste na oportunidade gerada por algum fator que acaba permitindo a inserção de novas ideias e propostas diferentes das até então instituídas (ALONSO. 2000: 42-43). O segundo é a comunidade de experiência: diz respeito a fatores que fazem com que dado grupo se aglutine em torno de problemas ou circunstâncias comuns (ALONSO. 2000: 44). O Terceiro e último é o repertório: são “caixas Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 158 de ferramentas”, ideias, conceitos e teorias que, de acordo com a demanda da situação, são utilizadas tanto para a compreensão como para a definição das linhas de ação (ALONSO. 2000: 46). No que diz respeito à história comparada, nossa pesquisa parte da possibilidade de se empreender uma análise comparativista “em uma mesma realidade nacional em duas fases temporais de imediata sucessão” (BARROS, José D’Assunção. 2007: 12). Levamos em consideração os critérios destacados pelo professor José D’Assunção Barros. Intentaremos uma “abordagem comparatista diferenciadora”, segundo o autor tal abordagem “trata-se de submeter os diversos casos que estão sendo examinados a um certo conjunto de variáveis – alguns questionamentos que são escolhidos para efetuar as comparações – de modo a tirar conclusões sobre os diferenciais de cada caso” (BARROS. 2007: 12). Tendo em consideração que uma perspectiva comparada é uma análise interativa entre dois recortes (BARROS. 2007: 24), se faz indispensável definir uma “escala de inserção”, ou seja, uma definição dos limites do recorte escolhido (BARROS. 2007: 24). Enfim, em nossa pesquisa buscaremos compreender as diferenças na transposição e apropriação do ideário liberal frente às demandas de dois períodos distintos: o de formação do Estado e o do fim do trabalho escravo. Nosso recorte compreende o mesmo espaço em temporalidades distintas, permeadas pela adequação de uma ideia comum (o ideário liberal) formando assim um campo duplo de observação e consequentemente permitindo uma análise comparativa. Utilizaremos como fontes para o desenvolvimento desta pesquisa, discussões, opiniões, juízos de valor, dentre outros pareceres sobre o processo de estruturação do Estado ocorrido na primeira metade do XIX, assim como acerca do processo de Abolição ocorrido a partir da década de 1860. Isso significa analisar uma gama ampla de discursos veiculados na Câmara dos Deputados, no Senado Imperial, na imprensa, em panfletos de associações e clubes e em livros publicados. Acreditamos que através das análises dessas produções conseguiremos elaborar algumas conclusões sobre as questões postas pela problemática da nossa pesquisa Faremos uso de um amplo e diversificado número de documentos, embora o enfoque, como dito anteriormente será a análise das discussões legislativas. Portanto dividimos as fontes em dois conjuntos gerais: Documentos do governo – Relatórios do Ministério da Justiça, da Agricultura e do Império e Anais da Câmara e do Senado. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 159 Documentos da elite intelectual/política – livros, panfletos, manifestos e outras publicações. É importante ressaltar que tais fontes existem para ambos os períodos estudados. Optamos por separar nosso corpus documental nas categorias acima mencionadas, por levarmos em conta os espaços de produção de cada documentação: os documentos como anais e relatórios são produções governamentais em que consta o exercício prático de dado agente no cargo a ele atribuído, enquanto que os documentos produzidos em outros espaços são por nós entendidos como produções individuais ou de grupo, mas complementares aos embates políticos do Estado. Ainda se faz necessário deixar claro que consideramos para os períodos estudados “a inexistência de um campo intelectual autônomo no século XIX brasileiro, toda manifestação intelectual era imediatamente um evento político” (ALONSO. 2002: 38). Por fim, tendo em vista que efetuaremos, sobretudo, uma análise discursiva, e que, procuraremos perceber a “rede de dialogicidade” que há entre as fontes, tanto nos Documentos do governo. Quanto nos Documentos da elite intelectual/política. Consideramos tais documentos como “fontes dialógicas”, isto é, “aquelas que envolvem, ou circunscrevem dentro de si, vozes sociais diversas” (BARROS. 2010: 12). Desse modo a intencionalidade voluntária ou involuntária é de igual modo importante para nossa análise já que “há vários outros tipos de ‘fontes dialógicas’. Existem inclusive as fontes de ‘dialogismo implícito’, aquelas que dão voz a indivíduos ou grupos sociais pelas suas margens, pelos seus contracantos, ou mesmo através dos seus silêncios e exclusões” (BARROS. 2010: 14). Acerca da historiografia: Sérgio Adorno argumenta que o liberalismo serviu de base ideológica para a superação do estatuto colonial (ADORNO, Sérgio. 1988: 45). No momento pré-independência a sociedade brasileira teria atribuído aos princípios liberais um sentido predominantemente anti-metropolitano (ADORNO. 1988: 33), pois a elite proprietária de terras, embora concebesse o ideário liberal como sinônimo de progresso, modernidade e civilização, não traria à baila a abolição. O projeto político nacional, por eles proposto, não interferiria na manutenção da propriedade escrava (ADORNO. 1988: 34). Desse modo, Adorno procura demonstrar a permanência dessa forma de compreensão paradoxal do ideário liberal que teria acompanhado a vida social de politica da sociedade brasileira no decorrer o século XIX durante o processo de formação do Estado Nacional (ADORNO. 1988: 34). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 160 Segundo Maria Odila Leite da Silva Dias o ideário liberal no Brasil não surgiu de um programa modernizador das forças sociais, pois teria sido difundido por uma minoria ilustrada que, influenciada pelo despotismo ilustrado no século XVIII, buscaria modernizar e estruturar o arcabouço político e administrativo do Brasil sem que para isso colocasse em risco a continuidade social e econômica advinda da sociedade colonial (DIAS, Maria Odila Leite da Silva. 2009: 129). Sob este aspecto a autora defende que as reformas, consideradas liberais, duranteo período da Regência, de modo algum teriam como objetivo ampliar para outras classes a participação politica. Baseados nas instituições americanas, setores novos das classes dominantes buscariam apenas ampliar a própria participação política (DIAS. 2009: 142). A historiografia quando trata da influência do liberalismo no período que compreende a independência até meados da década de 1840, concorda que o ideário liberal transposto para a realidade brasileira só se aplicaria a elite imperial que faria uso deste artificio para ampliar seus poderes. O liberalismo no contexto brasileiro não teria nada a ver com direitos civis ou com o fim da escravidão. Isso, pelo menos, até a segunda metade do século XIX, pois o processo abolicionista forçaria uma revisão da apropriação do ideário liberal no Brasil. Célia Maria Marinho de Azevedo chama a atenção para a diferente forma como foi conquistada a independência nos dois países: no Brasil houve um acordo “pacífico” que derrotou a possibilidade de um republicanismo enquanto nos Estados Unidos houve a experiência de uma revolução, ou seja, a derrota do republicanismo no Brasil teria feito o abolicionismo se desenvolver de forma específica no que diz respeito pensar a identidade nacional e a cidadania se comparado com o caso norte americano (C.f. AZEVEDO, Célia Maria Marinho. 2003). Segundo Robert Conrad, somente na década de 1860 é que o movimento emancipacionista tomaria forma significante, o que viria a resultar na Lei do Ventre Livre de 1871 e daria folego para as restantes leis abolicionistas. Abolição era considerada impossível de se efetuar devido às características econômicas brasileiras, porém, já não se poderia ignorar o assunto que assolava o restante do mundo (CONRAD, Robert. 1978: 88). O conflito militar dos Estados Unidos teria, segundo o autor, enfraquecido a escravatura brasileira, pois o fim da escravidão após a Revolução de1776 fez com que muitos defensores da causa escravocrata no Brasil perdessem seus argumentos baseados na Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 161 não mais existente escravidão norte-americana. As novas condições mundiais e o consequente atraso do Brasil teria despertado a atenção do Imperador que procurou zelar pela boa imagem do Brasil frente à comunidade mundial (CONRAD, Robert. 1978: 89). No entanto, afirma Conrad, “o Imperador preocupado com assuntos do Estado e problemas estrangeiros, ousara fazer valer sua autoridade em desafio aos interesses das classes dos fazendeiros” (CONRAD, Robert. 1978: 98). O autor afirma que muito provavelmente, desde a década de 1840 não se teria uma crise política que fosse contra as intenções do Império, porém as novas influências “obrigaram” a sociedade a conceber o liberalismo de uma forma nova não permitindo mais a instituição escrava (CONRAD, Robert. 1978: 103). Embora os autores considerem as influências do liberalismo que corria o mundo, as pressões de caráter político-econômico da Europa e dos Estados Unidos e a tomada de consciência da população brasileira como determinantes no processo de abolição da escravatura, a forma como isso ocorreu ainda nos parece um campo fértil de estudo, ainda nos falta uma explicação para o fato ambíguo que se sucedeu no decorrer do Império, permitindo sob as apropriações de ideias liberais a formação de um Estado forte em prol da proteção das oligarquias tradicionais. E em seguida, a empreitada desse mesmo Estado contra um dos pilares das oligarquias: a escravidão. É sobre essa questão que nossa pesquisa pretende se assentar, propor perguntas e elaborar algumas conclusões. Bibliografia: ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder: o bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. ALONSO, Angela. Crítica e contestação: o movimento reformista da geração 1870. In: Revista Brasileira de. Ciências Sociais. Vol. 15, n. 44, out. 2000. ALONSO, Angela. Ideias em movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002. AZEVEDO, Célia Maria Marinho. Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, Uma história comparada (século XIX). São Paulo: Editora Annablume, 2003. BARROS, José D’Assunção. História Comparada: um novo modo de ver e fazer a História. Revista de História Comparada, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, 2007. BARROS, José D’Assunção. Fontes Históricas.Revista Albuquerque, v. 3, n 1, 2010 CARVALHO, José Murilo de. A construção da Ordem. A elite política imperial / Teatro de Sombras. A política imperial. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 162 CONRAD, Robert Edgar. Os Últimos Anos da Escravatura no Brasil (1850 – 1888).Trad. de Fernanda de Castro Ferro. 2ª Ed. São Paulo: Civilização Brasileira. 1978. DIAS, Maria Odila Leite da Silva. “Ideologia Liberal e Construção do Estado”. In: A interiorização da metrópole e outros estudos. 2ªed. São Paulo: Editora Alameda, 2009. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 163 Aprendendo o ofício da pintura em Minas Gerais (século XVIII e XIX): mestres, aprendizes e escravos Hudson Lucas Marques Martins Mestrando em História pela UFJF/ Bolsista CAPES-CNPq hudsonlmm@yahoo.com.br Resumo: Propomos nesse artigo discutir a formação e o aprendizado dos artífices coloniais em Minas Gerais, principalmente aqueles ligados à pintura de forros e painéis. Para tanto, usamos o pintor João Nepomuceno Correia Castro como exemplo e guia para nossa narrativa, esse pintor, um dos mais caros e ativos da segunda metade do século XVIII, nasceu e aprendeu o seu ofício na região das minas. Palavras chaves: Arte sacra, pintura colonial, Ciclo do Ouro mineiro. Abstract:We propose in thispaper to discussthe training andlearningofcolonialcraftsmenin MinasGerais,especially those relatedto the painting ofceilings andpanels. For this purpose, we use the painterJohnNepomucenoCastroCorreiaas an exampleand guide forour narrative, this painter, oneof the most expensiveassetsandthe second half ofthe eighteenth century, was born and learned his tradein the mining zone. Keywords: religious art, colonial painting,CycleGoldminer. Esse artigo pretende ser uma primeira explanação referente a uma questão complexa, que intriga vários pesquisadores que estudam a pintura colonial mineira. Por tanto, não espero chegar a conclusões ou verdades, e sim levantar hipóteses sobre um assunto que poucos autores se dedicaram: Como era o aprendizado dos pintores coloniais em Minas Gerais? Essa questão nos intriga ainda mais sabendo que não havia Academias de Belas Artes no Brasil, não havia organizações ou instituições que educassem e ensinassem os jovens pintores. A primeira Academia de Belas Artes no Brasil só viria a ser inaugurada no século XIX, mesmo assim no Rio de Janeiro e sobre preceitos artísticos completamente diferentes dos vigentes (e consumidos) na sociedade mineira colonial. O aprendizado dos artífices coloniais que nasceram e trabalharam em Minas Gerais era informal, o que se torna um grande desafio para os historiadores e suas fontes de pesquisa. João Nepomuceno Correia Castro foi um dos grandes pintores em atuação na capitania de Minas Gerais, trabalhando a partir da segunda metade do século XVIII. Ganhou altos valores por suas obras e nos legou um considerável número de pinturas documentadas e atribuídas. Reconhecido por estudioso e críticos de arte como um dos pintores mais importantes de seu tempo, ainda pouco se sabe sobre ele. As obras de João Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 164 Nepomuceno se encontram nas atuais cidades de Mariana, Ouro Preto, Itabirito e Congonhas; a última conserva o acervo de obras mais importantes pintor, no santuário Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas estão os 35 painéis distribuídos por todo o interior do templo e o forro da nave da capela. Para analisarmos a importância da obra executada por João Nepomuceno em Congonhas em relação ao contexto histórico de Minas Gerais, devemos ressaltar dois pontos importantes: Os valores recebidos por João Nepomuceno se comparados aos seus contemporâneos e a grande relevância do santuário Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas no contexto da sua construção, ou seja, como o grande canteiro de obras do período. João Nepomuceno recebeu pelas mencionadas obras de pintura no santuário Bom Jesus de Matosinhos um total de 1464/8as de ouro, entre os anos de 1777 e 179073. O outro grande pintor contemporâneo a João Nepomuceno é o pintor e guarda mor José Soares de Araújo, excelente artista que voltaremos a citar. Sua maior obra é toda a pintura interna da capela de Nossa do Carmo da cidade de Diamantina e sua atuação nesse templo vai dos anos de 1765 a 1784, recebendo um total aproximado de 1.080/8ªs de ouro74. Esse valor está inserido contando a pintura do tento da nave, do teto da capela mor, a douração dos altares colaterais, além de várias outras miudezas como, por exemplo, de dourar castiçais, de pintar o lavatório, de pintar flores para o trono entre outras. Outro importante pintor contemporâneo é João Batista Figueiredo, apesar da pouca documentação referente a ele, sabem que o mesmo arrematou a pintura e douramento da capela mor da igreja da Irmandade de São Francisco de Assis em Ouro Preto por 270 8/as de ouro entre os anos de 1773 e 177575. Aumentando as comparações monetárias recebidas por João Nepomuceno com outros artífices coloniais mineiros, vejamos o caso de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. O renomado escultor produziu no Santuário Bom Jesus de Matosinho em Congonhas o seu mais importante acervo de esculturas. São 64 peças em madeira referentes às capelas dos Passos e 12 em pedra sabão, os profetas. Por esse serviço, recebeu o equivalente a 1590/8as de ouro, entre os anos de 1796 a 180876, ressaltamos ainda que Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho contou com um grande número de oficiais 73. AEAM. Despesas do santuário Bom Jesus de Matosinhos, 1777 a 1790. In: Livro 1º de despesas do santuário de N. S. Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas do Campo. F. 9, 9 v., 12 v., 13, 13 v., 14, 14 v., 15, 16, 18 v., 20 v., 21, 22, 86 e 87 v., Prateleira H, códice 26. 74. MARTINS, 1974. v. I, p. 52 e 53. 75. MARTINS, 1974. v. I, p. 285. 76. OLIVEIRA, 2002. p. 27, 29 e 30. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 165 trabalhando nessa obra, feita no final de sua vida e em curto espaço de tempo. Arriscamos ainda uma comparação com Manuel da Costa Ataíde, pintor posterior a João Nepomuceno Correia Castro e em um contexto econômico um pouco diferente. Manuel da Costa Ataíde recebeu por todos os seus trabalhos documentados dentro da capela da Irmandade de São Francisco de Assis de Ouro Preto o equivalente aproximado de 1000 8/as de ouro77, entre os anos de 1791 a 1825. Incluído nesse valor está a pintura de forro mais famosa do período colonial, a Nossa Senhora Rainha dos Anjos no teto da nave da dita capela franciscana de Ouro Preto. Nota-se os altos valores recebidos por João Nepomuceno frente aos outros pintores coloniais, e até mesmo frente ao maior conjunto de obras do principal artífice mineiro, Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. Para demonstrarmos a importância do santuário Bom Jesus de Matozinhos em Congonhas em relação ao contexto de Minas Gerais no final do século XVIII e começo do XIX, vamos voltar à sua história. O santuário Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas foi construído como pagamento a uma promessa feita pelo português Feliciano Mendes. Encontrando-se muito enfermo, esse promete erguer uma ermida dedicada ao Bom Jesus de Matosinhos, caso se salve. Alcançado a graça pretendida, Feliciano Mendes começa a construir esse templo no Alto do Maranhão, morro defronte ao arraial de Congonhas do Campo, isso por volta de 175778. Doa todos os seus bens à ermita, peregrina atrás de novas verbas, dedica o resto da sua vida à essa causa. Veio a falecer em 176579, e a devoção que começou até os dias de hoje leva milhares de fiéis ao santuário todos os anos, movimentando o comércio e o turismo da região. Erguido através de doações dos fiéis, o santuário Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas foi construído pelas mãos dos grandes artistas e artífices do século XVIII e começo do XIX; atestado pela historiadora Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira como: “o que de melhor havia em Minas no momento”80. São vários os artistas e artífices que trabalharam nessa obra: pintores, escultores, entalhadores, carpinteiros e uma infinidade de outros profissionais. Entre os grandes nomes contratados está Antunes Carvalho81 e Jerônimo Félix Teixeira82 para talhar os altares. Para a pintura dos altares laterais, João de 77. MATINS, 1974, v. I, p. 81. FALCÃO, 1962, p. 45. 79. FALCÃO, 1962, 49. 80. OLIVEIRA, 2002. p. 18. 81. AEAM. Livro 1º de despesas do santuário de N. S. Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas do Campo. f. 9. Prateleira H, códice 26. 82. MARTINS, 1974. v. 2. p. 284. 78. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 166 Carvalhais83, para pintar o forro da capela mor foi contratado Bernardo Pires84; para pintar as imagens em madeira dos Passos e as suas respectivas capelas, foram contratado Francisco Xavier Carneiro85 e Manuel da Costa Ataíde86. O último ainda recebe por “Retocar a Capella mor”87 (sic) anos mais tarde. Temos ainda a presença do importante escultor Francisco Vieira Servas88. Não bastando todos esses grandes nomes da arte colonial mineira, é no santuário Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas que está o mais importante conjunto de obras de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, artista máximo de todo o período colonial. E entre todos esses grandes nomes das artes, trabalhou também João Nepomuceno Correia Castro89, pintor máximo desse templo. Em seu período de atuação no santuário, João Nepomuceno estava envolvido em um dos maiores canteiros de obras sacras da capitania, a construção do santuário Bom Jesus de Matosinhos, obra que se iniciou na segunda metade do século XVIII e adentrou no século XIX. Esse importante templo mineiro é um marco da história colonial mineira, as romarias que até os dias de hoje se voltam para o santuário e seu entorno movimenta milhares de fiéis; o seu cenário é recorrente na literatura90 e é um símbolo mineiro reconhecido com Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO desde 1985. Apesar de toda a documentação relativa aos pintores mineiros e às suas obras, pouco se sabe sobre o aprendizado desses oficiais em terras mineiras. Nascido em Mariana91, João Nepomuceno Correia Castro aparentemente não saiu da capitânia para aprender o seu ofício. Assim como ele, vários outros pintores aprenderam a pintar dentro da região mineradora. A meu ver, esse aprendizado passa por cinco questões básicas a todos os pintores: a organização do trabalho entre mestre, aprendiz e escravos; os ensinamentos práticos dos tratados de pintura; as imagens européias que serviam de modelos pictóricos; o aprendizado no canteiro de obras e a individualidade de cada artífice. Minha hipótese é que esse cinco fatores são os 83. AEAM. Livro 1º de despesas do santuário de N. S. Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas do Campo. f. 9 v. Prateleira H, códice 26. 84. AEAM. Livro 1º de despesas do santuário de N. S. Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas do Campo. f. 9 e 9v. Prateleira H, códice 26. 85. MARTINS, 1974. v. 2. p. 199. 86. AEAM. Livro 1º de despesas do santuário de N. S. Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas do Campo. f. 86 e 87 v. Prateleira H, códice 26. 87. Ibid. f. 87 v. 88. MARTINS, Judith. 1974. v. 2. p. 216. 89. AEAM. Livro 1º de despesas do santuário de N. S. Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas do Campo. f. 12 v., 13, 13 v., 14, 14 v., 15, 16, 18 v., 20 v., 21 e 22. Prateleira H, códice 26. 90. Ver entre outros; GUIMARÃES, 1991. 139 p. 91.AEAM.Registro de batismo de João Nepomuceno Correa Castro, 16 de maio de 1752. In:Livro de batismoda Catedral Basílica de Nossa Senhora da Assunção, Sé de Mariana. f. 13v-14. Prateleira O, códice 10. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 167 determinantes para o aprendizado e a atuação dos pintores coloniais dentro da própria capitania. Passar os ensinamentos do ofício da pintura aos mais novos era parte do trabalho do pintor, era conseqüência do próprio dia a dia do pintor e seus ajudantes, era natural. Os primeiros mestres que chegaram à região das Minas eram portugueses, eles vinham de todas as partes do reino e continuaram chegando durante todo o século XVIII. Da cidade do Porto eram, por exemplo, Antônio Rodrigues Belo (1738)92 e Jacó da Silva Bernardes (1764)93; da cidade de Braga, Antônio Gualter de Macedo (1738)94 e Manoel José Rebelo Sousa (1752 -75)95; da vila de Chaves, Manoel Gonçalves de Sousa (1744 - 61)96; de Lisboa, João de Deus Veras (1740)97, só para citar alguns exemplos de portugueses, há muitos outros. O mais interessante é a presença logo no começo do século de outro estrangeiro “vivendo da sua arte de pintor”, é o indiano Jacinto Ribeiro (1711-21)98 que atuou em Mariana e Camargos. Esses são alguns nomes que declaram a sua origem e que em sua maioria devem ter chegado à capitania com algum tipo de experiência no ofício da pintura. Esse seria o primeiro passo para o aprendizado dos novos pintores mineiros, a chegada de mão de obra minimamente especializada de outras partes do reino, principalmente de Portugal. Os pintores, assim como os demais artífices do período colonial, não trabalhavam sozinhos. O serviço era divido entre os diversos encarregados, havia os aprendizes mais experientes, que possivelmente preparavam as tintas, cuidavam das estampas, do material mais delicado e inclusive pintavam partes secundárias das obras. Interessante notar o caso do pintor João Nepomuceno Correia Castro, em testamento de 179599, ele deixa de heranças todas as suas: “estampas, riscos e debuxos100”101 a Francisco Xavier e Bernardo de Sena(ou Serra), seus aprendizes. Esse dois aprendizes de João Nepomuceno já deveriam estar chegando a esse grau de maturidade artística, pois doando o seu acervo de gravuras 92. MARTINS, Judith. 1974, v. I, p. 111. Idem. v. I, p. 114. 94. Idem. v. II, p. 7. 95. Idem. v. II, p. 173 e 274. 96. Idem. v. II, p. 271 e 272. 97. Idem. v. II, p. 300. 98. Idem. v. II, p. 163. 99. AEAM. Contas de testamento de João Nepomuceno Correia Castro, 1794 - 1806. In: Testamento de João Nepomuceno Correia Castro. f. 4. Testamentos, pasta 619. 100. “Debuxar; Diz do que se obra na pintura sem dar cor, nem sombras, mas só com lápis, & pena” in: BLUTEAU, 1712-28. v 3. p. 16. Desenhar, desenhos. 101. AEAM. Contas de testamento de João Nepomuceno Correia Castro, 1794 - 1806. In: Testamento de João Nepomuceno Correia Castro. f. 4. Testamentos, pasta 619. 93. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 168 européias aos seus aprendizes, estava legando parte do material necessário para o seu ofício aos novos pintores. Um documento muito interessante foi utilizado pela pesquisadora Célia Macedo Alves102 para explicar um pouco da dinâmica entre mestres e aprendizes, tratasse de um volumoso processo103 entre o pintor nativo João Batista de Figueiredo e o pintor português Manoel Rebelo de Souza. O primeiro abre o processo cobrando o outro uma dívida por pinturas executadas. Manoel Rebelo se defende dizendo que na época das pinturas João Batista era seu aprendiz, e por tanto não tinha direito a jornais104, e como prova mostra um contrato de aprendizagem de 1760, firmado entre Manoel Rebelo e o pai de João Batista. O contrato possuía duração de 6 anos, e o pai se via obrigado a “vesti-lo, calçá-lo e tudo mais” e ao mestre “ensiná-lo, doutriná-lo e sustenta-lo” e ainda havia cláusulas caso houvesse faltas do aprendiz. Após várias peripécias do interessante processo, João Batista Figueiredo se torna aprendiz de um outro importante pintor do período, Antônio Martins da Silveira. Há casos também de mestres e aprendizes serem pai e filho, como no caso do pintor português João Coelho Lamas, que em 1750 tinha como aprendiz o seu filho pardo, Antônio Coelho Lamas105. Ou ainda Manuel da Costa Ataíde, que tinha como aprendiz o seu filho Francisco Assis106 na época que o mesmo estava trabalhando na capela de Nossa Senhora do Rosário da cidade de Mariana. Mas a mão de obra utilizada pelos pintores não era apenas de aprendizes, quase sempre havia escravos. A maioria deles fazia o trabalho braçal que eventualmente os pintores necessitavam, deviam corta madeira, carregar andaimes, buscar ferramentas ou coisas do tipo. João Nepomuceno Correia Castro possuía em 1795 dois escravos homens, Pedro e Domingos ambos da nação Angola107. Manuel da Costa Ataíde em 1804 possuía como escravos Manoel de 22 anos, Ambrósio de 13 anos e Pedro Angola de 45 anos108, coincidência ou não, mas pelas datas, poderia ser o mesmo escravo de Ataíde o que pertenceu a João Nepomuceno? Depois da morte de João Nepomuceno em 1795, Ataíde pode ter comprado o escravo já habituado ao auxílio a pintores? Nunca saberemos. O grande pintor de Diamantina, o guarda mor José Soares de Araújo, possuía na época de seu 102. ALVES. 2003. p. 82 a 84. AHMIOP. Cód. 185. Auto 2535, 1º ofício. Citado por ALVES, 2003, p. 82 a 84. 104. Pagamentos diários. 105. ALVES. 2003. p. 84. 106. ACSM. Cód. 239, auto 5972, 2º ofício. Citado por ALVES, 2003. p. 86. 107. AEAM. Contas de testamento de João Nepomuceno Correia Castro, 1794 - 1806. In: Testamento de João Nepomuceno Correia Castro. f. 4. Testamentos, pasta 619. 108. CAMPOS, 2002. p. 257. 103. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 169 falecimento 26 escravos, mas a grande maioria não devia auxiliá-lo na pintura, pois o mesmo possuía diversos outros empreendimentos. Mas interessante notar no testamento do pintor de 1799 é a presença dos escravos “João cabundongo com princípios de pintor” e “Vidal, pintor e dourador”109. Dessa forma, os escravos podiam fazer parte da mão de obra especializada no “plantel de ateliê”110 dos pintores, mas na maioria das vezes eram legados os trabalhos mais pesados e não especializados. Há exemplos ainda de pintores mais humildes, que atuavam sozinhos, como o caso do pintor pardo José Gervásio de Souza Lopes atuando no final do século XVIII111 em Ouro Preto. Devemos enfatizar a presença marcante de escravos no processo de produção das pinturas, transformando a relação de mestres e aprendizes em mestres, aprendizes e escravos, todos com funções bem delimitadas no processo produtivo. A relação entre mestre e aprendiz em Minas Gerais no século XVIII está baseada no antigo sistema europeu das oficinas mecânicas, oriundas desde o Império Romano. Já no começo do século XVII, os pintores portugueses conseguiram maior autonomia em relação à estrutura corporativa que vigorava em Lisboa até então. Eles estavam até aquele momento, submetidos à bandeira de São Jorge, juntos aos demais oficiais mecânicos. A partir do século XVII eles não precisavam mais prestar contas à essa bandeira e ainda possuía alguns privilégios, como a não participação obrigatória nas procissões organizadas pelas Câmaras Municipais. Em Minas Gerais no século XVIII, todos os pedreiros, carpinteiros, entalhadores e demais oficiais tinham que prestar exames diante de dois juizes do seu respectivo ofício112 para poderem atuar nas vilas. Mas os pintores não estavam sujeitos a esse tipo de exame, só constam dois nomes em todos os censos, no de 1746 aparecem Joze Correa Gomes e Manoel Gonçalves de Souza113. Ou seja, o sistema de mestres e aprendizes mineiros era bem menos rígido que o europeu, não havendo os exames para a pintura, por exemplo. O único sistema de julgamento ao qual o pintor estava submetido se refere aos processos de Louvação. O processo de Louvação consiste em uma análise da obra pronta por dois árbitros, estes confrontam as especificações do contrato assinado entre a Irmandade e os oficiais 109. SANTIAGO. 2009. p. 104. Termo nosso, apenas para designar um grupo de indivíduos que eram ligados profissionalmente a algum mestre pintor, seja ele um aprendiz ou um escravo. Seria o conjunto desses indivíduos que atuam junto ao pintor, mas não são lançados separadamente nos livros de despesas das Irmandades, atuando sobre o nome e a orientação do mestre pintor. 111. Argumentos que sustentam sua atuação individual está em: CAMPOS. 2002. p. 249. 112. ARAÚJO. 2003. p. 93. 113. ARAÚJO. 2033. p. 93. 110. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 170 com o resultado final da pintura ou escultura em questão. Normalmente a Irmandade indica um arbitro e o pintor ou escultor que executou indica o outro. Mas sempre serão árbitros os envolvidos no ambiente de produção da decoração religiosa, geralmente padres ou outros escultores e pintores. No caso de João Nepomuceno Correia Castro, o primeiro documento que encontramos da sua atuação profissional é um processo de Louvação. Em 1774114, aos 21 anos, João Nepomuceno é contratado como louvado para analisar quatro pinturas na capela mor da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar em Ouro Preto. Pela importância do templo, pode-se concluir que nessa época João Nepomuceno não era mais um aprendiz. João Nepomuceno foi convidado para ser louvado pelo arrematante da obra, João de Carvalhães, para julgar os painéis feitos pelo pintor Bernardes Pires; e o padre Antônio Meireles Rabelo como louvado por parte da Irmandade do Santíssimo Sacramento. Depois de alguns retoques a obra foi aceita, mas o interessante é a presença de João de Carvalhães e Bernardo Pires, os dois voltariam a trabalhar com João Nepomuceno no santuário Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas. O historiador Rodrigo Mello Franco de Andrade assim se expressa em relação ao processo de Louvação feita por João Nepomuceno em 1774: ...tal circunstância demonstra que, na época, sua situação era de mestre ou, pelo menos, de oficial de capacidade reconhecida, pois a perícia para o julgamento de serviço daquela importância, executado em templo tão prestigioso, não poderia ser incumbida senão a profissional de idoneidade notória.115 Fundamental para o aprendizado dos pintores na região das Minas eram os tratados de pintura, em circulação na capitania durante os séculos XVIII e XIX. Esses livros eram importados da metrópole e vários pintores possuíam exemplares, como Manuel da Costa Ataíde e Francisco Xavier Carneiro, dentre muitos outros que constam ter-los em testamentos116. Esses livros trazem conhecimentos práticos que eram utilizados pelos pintores coloniais, são regras para preparação das tintas, para desenhos, técnicas do ofício e procedimentos para pinturas a têmpera, afresco e óleo. Por exemplo, veja a regra para recuperar as cores de um painel contida no livro Os Segredos Necessários para os ofícios, artes e manufaturas, de Du Fresnoy: “Corta huma cebola branca ao meio e molha-a em vinagre, e esfrega suavemente o painel até ver o efeito que produz”117. Há vários conhecimentos que 114. AHEPP. Termo que fazem os Irmãos da Irmandade do Santíssimo Sacramento da aceitação dos painéis e douramento feito na capela mor da matriz de Nossa Senhora do Pilar, 9 de fevereiro de 1774. In: Livro de termos da Irmandade do Santíssimo Sacramento de Ouro Preto. f. 139 v.. Volume 224. 115. ANDRADE, 1978. p. 29. 116. SANTIAGO, 2009. p. 138. 117. SANTIAGO, 2009. p. 138. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 171 poderiam ser colocados em prática a partir desses livros, essa edição de Du Fresnoy, por exemplo, é de 1744 e ainda traz muitas dicas extremamente úteis para os pintores mineiros, para se adquirir uma espécie de pigmento branco deve-se: “Toma cascas de ovos, tira-lhes as películas interiores, e lava-as muitas vezes em água clara e reduzindo-as a pó impalpável”118. Interessante notar que o santuário Bom Jesus de Matosinhos lança em seu livro de despesas quando João Nepomuceno Correia Castro estava trabalhando no santuário: “De que dei a Joze Roiz da Costa aconta do que mandou vir do Rio de Janeiro tintas, ovo, e outras muidezas para a capela”119. Possivelmente João Nepomuceno estava ciente do uso da casca de ovo para a obtenção de pigmentos, se o mesmo não teve acesso a esse tratado, teve acesso às informações contidas nele, seja através da leitura ou do aprendizado direto com o seu mestre ou ainda em intercâmbio com os seus contemporâneos. O tratado de pintura mais famoso em circulação em Minas Gerais no século XVIII foi o do português Felipe Nunes, sua primeira edição é de 1615 e foi reeditado em 1767. Esse livro traz vários conhecimentos práticos para os pintores mineiros, seus ensinamentos são didáticos e segundo o mesmo em sua introdução, foi feita para os leigos na arte de pintura. Para ele, por exemplo, o pau brasil para dar boa tinta deveria ser: “doce na língua”, ou, o verde bexiga seria obtido caso mantivesse a solução preparada guardada em uma bexiga de carneiro. A historiadora Camila Santiago120 faz uma complexa análise de todos os tratos em circulação em Minas Gerais no período colonial, a partir dos livros encontrados em testamentos de pintores e os seus possíveis usos e leituras. Interessante notar a vasta gama de informações presentes nesses livros, e a acessibilidade de sua linguagem e dos materiais empregados na confecção das tintas. Acredito que os diversos tratados de pintura davam suporte técnico necessários aos pintores, além de manterem os mesmo em diálogo com os mestres europeus contemporâneos a eles. Dessa forma, o conhecimento estabelecido pelos tratados de pintura européia era fundamental no aprendizado dos pintores mineiros, mesmo que os oficiais não os tenham lido, o conhecimento exposto por eles circulou entre os oficias e artífices coloniais. Assunto muito debatido dentro da historiografia da arte colonial brasileira é o uso das gravuras produzidas na Europa como fonte imagética para os pintores mineiros. A 118. SANTIAGO, 2009. p. 138. AEAM.Despesas do santuário Bom Jesus de Matosinhos, outubro de 1777 a 1781. In: Livro 1º de despesa do santuário de N. S. Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas do Campo. f. 12, 12v, 13, 13 v.. Prateleira H, códice 26. 120. SANTIAGO, 2009, 364 p. 119. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 172 primeira pesquisadora a escrever sobre o assunto em Minas Gerais foi Hanna Levy121 na década de 1940, mas, estudos mais recentes e abrangentes foram publicados, como a tese de doutoramento da historiadora Camila Santiago122. Não é mais surpresa para os pesquisadores do assunto a semelhança, próximo a uma cópia, entre as pinturas presentes nas nossas capelas e as gravuras dos missais e livros religiosos em circulação na região. Todos os artistas mineiros estavam sujeitos a essa prática, na verdade era o costume da época, ainda não existia a idéia de liberdade criadora, ou mesmo de autoria das pinturas123. Geralmente os contratantes mostravam aos pintores a imagem que gostariam de ver retratada em suas capelas, e cabia ao pintor ampliá-la e adaptá-la. Normalmente são retirados alguns personagens e a composição é simplificada. Esses modelos que chegavam à colônia por meio dos livros religiosos foram de extrema importância para a formação dos pintores mineiros, pois foi delas que os mesmo retiraram todo o seu vocabulário imagético. Analisaremos apenas um caso dessas gravuras relacionadas ao pintor João Nepomuceno Correia Castro, é um painel do interior do santuário Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas. Trata-se de uma representação da Natividade. Ainda na primeira metade do século XVIII o pintor italiano Sebastiano Conca estabeleceu a iconografia relacionada à passagem da Natividade. Natividade. Sebastiano Conca. Primeira metade do século XVIII. A historiadora Camila Santiago separou uma série de gravuras européias sobre o tema da Natividade que estavam em circulação em Minas Gerais durante os séculos XVIII 121. LEVY, 1978, p. 97. SANTIAGO, 2009. 123. A única pintura colonial que se tem notícia assinada, é a grande tela da Última Ceia que está no Colégio do Caraça, em Catas Altas, assinada por Manuel da Costa Ataíde. 122. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 173 e XIX. Uma delas nos chamou atenção pela aproximação com o painel pintado por João Nepomuceno Correia Castro em Congonhas. É uma gravura presente no Missal Romano editado em 1751, a imagem é de excelente qualidade, um dos livros que trazia as melhores gravuras sacras em circulação no período. Produzido na Antuérpia, esse missal possuía qualidade superior ao editados em Portugal e por isso eram mais caros124. Natividade. Missale Romanum. Antuerpiae. 1751. 124. Sobre as referências aos livros que os pintores possuíam, a origem dos exemplares, técnicas de edição e gráficas, consultar: SANTIAGO, 2009. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 174 Natividade. João Nepomuceno Correia Castro. 1777 a 1787. Santuário Bom Jesus de Matosinhos, Congonhas. Quanto ao tema, a gravura da Natividade escolhida por João Nepomuceno para ser representada no santuário Bom Jesus de Matosinhos insere-se “na opção iconográfica ocidental de privilegiar a Adoração do Santo menino em detrimento da representação da Virgem convalescendo do parto”125. Comparando as duas imagens, o modelo europeu e o painel de João Nepomuceno Correia Castro, logo se nota a ausência de dois elementos na pintura do santuário Bom Jesus de Matosinhos. O artífice suprimiu a mulher que carrega um jarro na cabeça ao lado direito, e o cachorrinho aos pés da figura masculina em primeiro plano. A mulher foi retirada para aliviar a composição da imagem, ressaltamos que, a estrutura em madeira ao lado esquerdo, que fazia a contraposição à mulher, também foi suprimida, deixando a imagem mais equilibrada. O cachorrinho deve ter sido retirado por orientação de algum religioso ligado à ornamentação do santuário, pois o Concílio de Trento já havia visto com maus olhos a presença do asno e o boi na representação da Natividade126. Outro ponto a se notar são os raios que emanam do menino Jesus na estampa européia que não são reproduzidos pelo pintor mineiro, apesar de na pintura a luz partir do menino Jesus para iluminar os diversos personagens, ele não foi representado com essa luz 125. 126. SANTIAGO, 2009. p. 259. SANTIAGO, 2009. p. 260. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 175 tão própria da santidade e divindade do personagem. Segundo a historiadora Camila Santiago citando Louis Réau: a iconografia da Natividade renovou-se a partir do sonho de Santa Brígida, em 1370. Um dos elementos destacados pela mística seria a exuberante iluminação emanada do menino Jesus, que teria, inclusive, ofuscado uma vela trazida por São José127. Mas a grande “liberdade” do pintor João Nepomuceno em relação ao seu modelo europeu foi o fundo da pintura. Na gravura européia há uma construção em último plano, arrematado pelo céu ao fundo. O pintor mineiro optou por uma paisagem, com muitas plantas e montanhas, além da feliz escolha das cores para o céu, que dá a impressão de um belo entardecer em Minas Gerais. Como já dissemos os pintores mineiros não possuíam muita liberdade criadora, e nem era essa as suas intenções e nem a dos seus contratantes. As pinturas deviam antes de tudo ser didática, devia mostrar o caminho da salvação para um público não alfabetizado, deviam ser o suporte imagético para a doutrina e os ensinamentos que os padres tentavam transmitir em seus sermões. A “liberdade” dos pintores consistia nessas pequenas alterações, nesses ajustes e muitas vezes simplificações dos modelos que tinham em mãos. Modelos esses importantíssimos não apenas para o aprendizado desses oficias, mas para todo o ofício da pintura do período colonial, sendo reproduzidas por mestres e aprendizes em seus trabalhos. Devemos voltar mais uma vez no tópico referente aos canteiros de obras e o aprendizado prático dos pintores mineiros. Como dissemos não havia instituições ligadas ao ensino da pintura em Minas Gerais durante todo o período colonial, e o grande aprendizado ocorria nos canteiros de obras, juntos aos mestres e demais pintores que atuavam juntos em um mesmo templo. Quanto a João Nepomuceno, destacamos, que Manuel da Costa Ataíde trabalhou no santuário quando ele estava em seu auge, em 1781, Ataíde recebeu 8/8as de ouro por encarnar128 uma imagem de cristo e 2/8as e meia de ouro por dourar e pintar 20 med rS (sic)129. O canteiro de obras era o ensino prático e a oportunidade dos novos artífices/oficiais de atuarem e verem os oficiais mais experientes em atuação. Não queremos dizer com isso que João Nepomuceno teve participação efetiva no aprendizado de Manuel da Costa Ataíde, mas ressaltamos que o último esteve presente no auge do primeiro, trabalhando em obras mais simples e menos remuneradas, enquanto 127. SANTIAGO, 2009. p. 260. termo de pintor A côr da carne em todas as partes nuas de hum corpo pintado” in: BLUTEAU, 1712-28, v. 3, p. 208. “Encarnar: Dar cor de carne a pinturas ou imagens, aplicando polimento às partes do corpo que devem aparecer” in: ÁVILA, 1979. p. 143. 129. MARTINS, 1973, v. I, p. 80. 128“Encarnação; Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 176 o primeiro era tido como o grande pintor do santuário Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas. Concluímos que o aprendizado em Minas Gerais se dava por uma série de fatores próprios do contexto do período colonial. Os pintores mineiros que aprenderam o ofício na capitania tiveram a ajuda e a orientação dos mestres portugueses, esses amparados na tradição pictórica do reino, trouxeram para a capitânia as primeiras técnicas de pintura. Juntos aos mestres pintores vieram da metrópole os tratados de pintura e as gravuras de missais, os primeiros eram responsáveis pelo conhecimento prático do oficio da pintura e as gravuras eram a bases imagéticas para as composições das obras de decoração. Tendo os jovens aprendizes da colônia o suporte de mestres minimamente experimentados, o auxílio dos tratados de pintura e as imagens a serem confeccionadas. Restava o aprendizado no canteiro de obras, na prática efetiva da decoração, em contato com outros oficiais e trabalhando em campo com os seus mestres. Esses fatores se juntam à capacidade e a história de cada indivíduo que atuou no ofício da pintura, cada um do seu jeito e da sua maneira. O desenvolvimento do aprendizado de João Nepomuceno se deu de maneira rápida, tanto que aos 21 anos já era reconhecido com um pintor importante, mas poucos sabemos dos detalhes sobre o aprendizado de todos os pintores mineiros no período colonial. Mais pesquisas vão ajudar a esclarecer todas as nossas dúvidas sobre a questão, que está apenas esboçada aqui. Arquivos consultados: ACSM – Arquivo da Casa Setecentista de Mariana. AHEPP – Arquivo Histórico Eclesiástico da Paróquia do Pilar. AHMIOP – Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência de Ouro Preto. AEAM – Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Bibliografia: ANDRADE, Rodrigo Mello Franco de. A Pintura colonial em Minas Gerais. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1978. p. 11-74. (Publicação da revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 18). ALVES, Célio Macedo. Pintores, policromia e o viver em colônia. Imagem Brasileira. Belo Horizonte: Centro de Estudos da Imaginária Brasileira, 2003. n.º 2. p. 81-86. ARAÚJO, Jeaneth Xavier de. O Trabalho artístico e artesanal na Vila Rica setecentista. . Imagem Brasileira. Belo Horizonte: Centro de Estudos da Imaginária Brasileira, 2003. n.º 2. p. 87-97. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 177 ÁVILA, Affonso. Barroco mineiro; glossário de arquitetura e ornamentação. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro; Rio de Janeiro: Fundação Roberto Marinho, 1979. 220 p. BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário histórico e geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte: Saterb, 1971. 549 p. BOSCHI, Caio César. Os Leigos no poder; irmandades leigas e a política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986. 254 p. (Ensaios, 116). BOSCHI, Caio César. O Barroco mineiro; artes e trabalho. São Paulo: Brasiliense, 1988. 78 p. (Tudo é história, 123). BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez, e latino, áulico, anatômico, architectonico,bellico, botânico... Coimbra: Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-28. 8 v. CAMPOS, Adalgisa Arantes. Vida cotidiana e produção artística de pintores leigos nas Minas Gerais: José Gervásio Souza Lobo, Manoel Ribeiro Rosa e Manoel da Costa Ataíde. In: (Org.) PAIVA, Eduardo França. ANASTASIA, Carla Maria Junho. O Trabalho Mestiço, maneiras de pensar e formas de viver séculos XVI a XIX. São Paulo: Annablume: PPGH/UFMG, 2002. p. 247-263. FALCÃO, Edgard de Cerqueira. A Basílica do Senhor Bom Jesus de Congonhas do Campo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1962. 336 p. GUIMARÃES, Bernardo. O Seminarista. Rio de Janeiro: Ediouro, 1991. 139 p. LEVY, Hannah. Modelos europeus na pintura colonial. Pintura e escultura I, São Paulo: FAUUSP/MEC/IPHAN, 1978. p. 97-154. (Textos Escolhidos da Revista do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 7). MACHADO, Lourival Gomes. Barroco Mineiro. 3 ª ed. São Paulo: Perspectiva S. A., 1978. 434 p. (Debates, 11). MARTINS, Judith. Dicionário de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas Gerais. Rio de Janeiro: SPHAN, 1974. 2 v. (Publicação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 27). OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. Aleijadinho; passos e profetas. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002. 74 p. OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. O Aleijadinho e o Santuário de Congonhas. Brasília: IPHAN/MONUMENTA, 2006. 133 p. RAMOS, Adriano (org.). GUTIERREZ, Ângela (coord.). Francisco Vieira Servas; e o ofício da escultura na capitania das Minas do ouro. Belo Horizonte: Instituto Cultural Flávio Gutierrez, 2002. 224 p. SALGADO, Graça (coord.). Fiscais e meirinhos; a administração no Brasil colonial. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 452 p. SANTIAGO, Camila Fernanda Guimarães. Usos e impactos de impressos europeus na configuração do universo pictórico mineiro (1777- 1830). Belo Horizonte, 2009. 364 p. (Dissertação de doutorado). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 178 Vadiagem, civilidade e crime: a casa de detenção como espaço educacional (18701880) Jailton Alves de Oliveira Mestrando em História da Educação pela UERJ/ Bolsita FAPERJ jailtonoliveira2016@hotmail.com Resumo: Após a ruptura política de Portugal, as elites imperiais, ancoradas por ideais liberais – como liberdade, prosperidade, igualdade, ordem e progresso - idealizam a construção de uma nação e a conseqüente inclusão de brancos pobres a esse modelo. No entanto, essa inclusão devia ser feita a partir da reeducação dos comportamentos, via vigilância e punição, de todos os que não se enquadrassem nos comportamentos considerados civilizados. Isso posto, o artigo tem como principal objetivo discutir como a antiga Casa de Detenção da Corte pode ser considerada como um espaço de educação para milhares de homens (livres e libertos), mulheres e crianças, que as elites imperiais incorporaram ao mundo da vadiagem. Para tanto, concentramo-nos em perceber imbricações entre educação, vadiagem e a instituição em discursos do período imperial, sobretudo em dispositivos legais como o Código Criminal do Império e o Código de Posturas Municipais. A partir das análises do Regulamento, destinado ao bom funcionamento da instituição, percebemos tentativas de “educar” os presos, produzindo comportamentos desejáveis. Palavras-chaves: Educação, Casa de Detenção, vadiagem. Abstract: After the break policy of Portugal, the imperial elites, anchored by liberal ideals like freedom, prosperity, equality, order and progress - the construction of an idealized nation and the consequent inclusion of poor whites in this model. However, this inclusion should be made from the reeducation of behaviors, via surveillance and punishment of those who do not fit in behaviors considered civilized. That said, the article's main objective to discuss how the old House of Detention Court can be considered as an area of education for thousands of men (free or freed), women and children, the imperial elites entered the world of vagrancy. To this end, we focus on realizing interplay between education, truancy and the institution discourses of the imperial period, especially in legal provisions as the Criminal Code of the Empire and the Municipal Code of Postures. From the analysis of the Regulation, for the proper functioning of the institution, we see attempts to "educate" prisoners, producing behaviors. Keywords: Education, House of Detention, vagrancy. Considerações iniciais A partir do século XVIII, quando a história passou a ser cunhada como ciência, os métodos de pensar e escrever as construções históricas sofreram transformações. A Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 179 historiografia passou por modificações metodológicas que permitiram abordagens distintas sobre o passado, através da incorporação de novos tipos de fontes. Ainda no final do século XIX, percebe-se um afastamento da descrição e da narrativa, da ênfase no singular e no individual, e uma aproximação da análise e da explicação, das regularidades e da generalização. No segundo quartel do século XX, no entanto, um movimento historiográfico foi importante e renovador, colocando em questionamento a historiografia tradicional e apresentando novos e ricos elementos para o conhecimento das sociedades. Apresentava uma história bem mais vasta do que era praticada até então, considerando aspectos distintos da vida humana e não apenas uma história política dos grandes homens e feitos. Um grupo de intelectuais, ligados à revista dos Annales, apresentava novas diretrizes teórico-metodológicas, promovendo movimentos no sentido de novas abordagens, métodos, objetos. As principais contribuições desse movimento foram: substituição de uma história narrativa, dos grandes homens ou eventos por uma história problematizada. Uma promoção da interdisciplinaridade (BURKE, 1989, p.12). Burke (op.cit.), problematizando o sentido do termo Nova História, sublinha que a expressão ganhou “força nos anos de 70 e 80” (p.19), quando a existência de reações ao “paradigma tradicional”(loc.cit.) tomou força entre diferentes profissionais, em diversos lugares do mundo. Verificou-se, pois, que novas propostas historiográficas passaram a constituir o primeiro movimento de tentativa de elaboração de uma história política que fosse, em primeiro lugar, melhor do que qualquer outra elaborada anteriormente. O historiador discorda que o termo Nova História esteja vinculado apenas ao movimento dos Annales, problematizando o fato de que Fevbre, Bloch, Braudel e outros fossem precursores de uma nova forma de fazer história. Antes, diferentes profissionais, em diferentes lugares do globo e em diferentes momentos da história, também indicaram novas perspectivas, novos rumos à história, enquanto ciência. Iniciativas como as de “Ranke, Coulanges, Marx, Spencer” (BURKE, op.cit., p.18) e outros, são exemplos desses movimentos. O que a Nova História significa à história da educação brasileira? Nunes (2005) salienta que no final do século XIX, com a criação da “história da educação brasileira, como disciplina” (p. 17), já era pensada a necessidade de ruptura com uma história positivista. A influência dos Annales, com perspectivas de uma Nova História, seria percebida a partir dos anos de 1960, com diferentes abordagens surgidas em trabalhos de cursos de pós-graduação. Além disso, a significativa ampliação de fontes e campos do saber Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 180 na história da educação brasileira, observada em dissertações e teses de doutoramento, produzidas nos diferentes programas de pós-graduação em educação, em diferentes instâncias e processos de difusão do saber, tem contribuído muito para as abordagens no campo da história da educação. Pensar a educação brasileira supõe, portanto, inscrever em nosso horizonte “os interesses que esse tipo de prática aciona e mobiliza” (GONDRA, 2004, p.185). Nesse movimento, é possível observar que a vontade de educar, de interferir no curso da vida, de modo “racional ou “científico”(loc.cit.) está presente em lugares variados. Dessa forma, considera-se a existência de forças distintas que agem, de modo solidário ou concorrente, às iniciativas educacionais. Gondra e Schueler (2008), ao ampliarem o termo educação no Brasil do século XIX, procuram perpassar o campo de visão da chamada educação formal. Para os autores, o espaço escolar dito formal oitocentista não pode ser considerado como único lugar de aprendizado. Nesse sentido, abrem oportunidades para se pensar em prisões, escolas, quartéis, manicômios, ordens religiosas, entre outros, também como espaços formais de educação, na medida em que buscam ensinar, via regularização dos corpos, modos de comportamentos ditos civilizados. Escolarização, portanto, que perpassa o campo de visão da chamada educação formal. Pensar na então Casa de Detenção da Corte como espaço educacional é ter em mente formas plurais de educação, no Brasil imperial. Pluralidades das possibilidades históricase “usos diversos que os agentes fazem das instituições educativas, escolares e nãoescolares, remodelando e reconstruindo os espaços, os saberes e os tempos sociais.” (Id. Loc.cit.). Os recentes estudos sobre o período, no campo educacional, demonstram intensidade nos debates sobre a escolarização de uma camada populacional como, por exemplo, dos negros, dos índios e das mulheres. Os estudos têm se distanciado daqueles que consideram o período como “idade das trevas” (FARIA FILHO, 2004, p.9) da educação brasileira. Os modelos de educação escolar para o país estavam diretamente ligados aos ideários civilizatórios, iluministas, segundo os quais para que houvesse progresso era preciso reeducar a população considerada perigosa para a ordem, como visto anteriormente. Inventar o Brasil passava pela necessidade de criar uma “instrução que possibilitaria arregimentar o povo para um projeto de país independente.” (loc.cit.). Discursos jurídicos e a educação na cidade imperial Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 181 A monarquia constitucional, imposta no Brasil Império, “regida por homens brancos e com a manutenção do trabalho escravo” (GONDRA & SHUELER, op.cit., p. 46), pareceu ser a solução quando se pensou a construção de um Estado-nação. A invenção do Brasil passava, dentre muitas outras circunstâncias, pela necessidade de civilizar a população dita perigosa. De acordo com Mattos (1987), a manutenção e a conservação de uma ordem político-econômica vigente a partir do segundo quartel do Oitocentos estiveram vinculadas à ideia da “construção de uma nação” (p.44). E isso significava interferir diretamente nos modos e costumes dos agentes que deveriam ocupar esse novo espaço. Para os idealizadores do Estado Imperial brasileiro não importava apenas prevenir ou reprimir crimes. Antes, era necessário conhecer a população que circulava pela corte, o que significava garantir uma “continuidade nas relações entre senhores e escravos, da casagrande e na senzala; dos sobrados e mocambos; da manutenção da terra pela minoria privilegiada” (p.57). A arte de prevenir e de curar, como nos lembra Foucault (2005), no caso do Brasil imperial, estava imbricada com a necessidade de educar uma população considerada perigosa para a ordem vigente. Faria Filho (op.cit.), em seus estudos sobre a política autoritária brasileira e a sua estreita relação com o povo, parte do princípio de que as propostas educativas estiveram vinculadas à necessidade de se construir uma nação nos trópicos. As fontes utilizadas deram a ele pistas sobre diferentes movimentos interessados em garantir a ordem vigente, a partir da educação das classes ditas perigosas. A educação era vista como “subserviência desses sujeitos e não como forma de emancipação social”(p.172). O gosto e o hábito pela leitura, por exemplo, ajudariam a todos fugirem “[...] da preguiça e dos vícios [...]” (p.173). A educação aperfeiçoaria a “sociedade, não só porque dá hábitos e costumes de regularidade, mas também porque substitui esses maus costumes pelos bons [...]”(loc.cit.). A concepção de punição aponta para ideia de prevenção, ou seja, prevenir o mal seria a solução para se evitar crimes. Há nítida associação entre falta de trabalho, ociosidade e vagabundagem. No dicionário de Moraes e Silva (1813), o termo vadio significa “alguém que não tem amo, ou senhor com que viva, nem trato honesto, negócio, ou mister, ou officio, emprego, nem modo de vida nem domicílio certo [...]” (p.875). Alguns anos mais tarde, no dicionário de Silva Pinto (1832), o termo é definido como o “que não tem officio, vagabundo” [...] não tem “domicilio certo” (p. 654). Nesses casos, há aproximações entre ocupação e moradia fixa. Nessa sociedade, que está sendo posta sob os auspícios do Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 182 trabalho escravo, o ócio estava disponível apenas para os homens da boa sociedade. No sentido inverso, o trabalho era direcionado para os escravos (a)s. Portanto, qualquer outra manifestação de trabalho era imediatamente combatida. O homem livre, ao se movimentar pela cidade, em busca de ocupação ou do seu próprio sustento, poderia ser considerado como quem anda a “[...] vadiar, isto é, anda ociosamente de uma parte para outra” (PECHMAN, p. 240). Ou seja, todos aqueles que não têm não tinham ofício ou endereço certo. Os códigos deveriam apontar para um ideal civilizatório. Nesse sentido, assumem caráter correcional e preventivo de ordem e segurança pública. No Brasil imperial, o Código de Posturas e o Código Criminal surgiram a partir da necessidade de um novo delineamento jurídico que desse conta das relações sociais, de produção e de uma nova ordem nas cidades. O ideal civilizatório, desejado para o país desde os tempos da pósindependência, trazia consigo a higienização de todo espaço urbano, fosse de cortiços, logradouros; de vadios e prostitutas; dos mendigos e demais personagens da cidade. Polir os comportamentos requeria a construção de um aparato administrativo-burocráticojudiciário que tomasse como parâmetro os modelos de dominação presentes nos estados nacionais burgueses europeus. Modelo fundamentado em uma “concepção liberal de Estado e de justiça, e que serviria de base ideológica e política para a construção do Estado e da formação social brasileira” (NEDER, 1996, p.36). O Código de Posturas da cidade do Rio de Janeiro130 pode ser analisado como um conjunto de discursos jurídicos que objetivava organizar, separar, dividir, para melhor controlar os moradores nos diferentes cantos da cidade. Nas páginas do Código encontramos ordenações quanto à saúde pública, polícia, calçamentos, tráfego da cidade, pinturas emplacamento das casas, tamanho dos muros das residências, prédios comerciais e públicos, entre muitas outras. Embora constituído em 1838, pouco mudou em suas ordenações até o final do império, principalmente as destinadas à ordem pública. As novas determinações para o funcionamento de fábricas de velas e o emplacamento de carroças de limpeza e de café; novas medidas para a remoção do lixo; novas determinações para as albergarias, entre alguns outros, são exemplos de algumas modificações feitas no Código entre 1880 e 1889. 130 Arquivo Geral da cidade do Rio de Janeiro. Código de Postura Municipal do Rio de Janeiro, 1838. Título IV, §1º. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 183 Todos os habitantes desta cidade serão alistados nas freguesias de suas residências. Todos os chefes de família deveriam listar seus habitantes com nome, ocupação, nome da rua, número, parentes, agregados, escravos, idades, empregos, e estados de origem. Eles, os chefes, assignam e são responsáveis pelos dados. O chefe de quarteirão com uma cópia e outro para o juiz. E uma outra na Câmara.131 Assim, os moradores da cidade também deveriam ter seus nomes e demais dados arrolados em livros de registros. Sob um olhar hierárquico que contava com a participação do Ministro da Justiça, do juiz de paz, do chefe de polícia, do chefe de quarteirão e do inspetor de quarteirão, livros, mapas e relatórios eram usados para esquadrinhar os espaços, classificar e distribuir cada morador ou forasteiro nos diferentes cantos da cidade. Nada fugia ao “olhar” desses mecanismos de controle. Esse aparato servia para cadastrar moradores e recém chegados à cidade. E eram os inspetores de quarteirões, últimos da hierarquia citada anteriormente, os homens responsáveis pelo cadastro e controle de todos os moradores. Existiam também mapas para controle de forasteiros, ou seja, para visitantes que chegavam à cidade para visitar parentes ou simplesmente para procurar trabalho. E qualquer um que desejasse mudar deveria se apresentar “ao inspetor para que esse lhe de uma guia em que declare seu nome, número da casa que residia e a que vai morar”.132 Toda Pessoa de qualquer sexo, cor ou idade, que for encontrada vadio, ou como tal reconhecida, sem occupação honesta ou sufficiente para sua subsistência, será multado em 10$000, e soffrerá 8 dias de cadeia, sendo posta em custodia até a decisão do auto, e depois remetida ao chefe de polícia para lhe dar destino. 133 Os discursos do Código associavam desocupado à figura do vadio, pois qualquer pessoa que tivesse uma “casa ou loja de comprar e vender trastes e roupas usadas, sem que assine termo nesta Câmara de não comprar nada de escravos ou de pessoas suspeitas” (CÓDIGO DE POSTURAS, op.cit., TÍTULO VII). Diferentemente da Europa, onde os meios de produção capitalista esboçavam o desejo por um tipo de trabalhador livre, no Brasil imperial os perigosos à ordem eram todos que não se inserissem nos padrões de trabalho ditados pela obtenção do lucro imediato. Era obrigação dos diferentes inspetores de quarteirões registrarem, nos mapas de moradores, “quaisquer desconfianças, que haja sobre sua conduta, os ociosos, os vadios, os bêbados, os sem profissão, turbulentos [...] e achando desconfiança proceda sobre elles como perturbadores públicos” (CÓDIGO, op.cit., loc.cit.). 131 Código de Postura Municipal. op.cit., Titulo XI. §3º. Ibid., Titulo VII. §8º. 133 Ibid. Título V. §12º. 132 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 184 Tendo vigorado entre 1831 e outubro de 1890, o Código Criminal do Império do Brasil (1831), imbuído pelo ideal de modernização do sistema jurídico-penal, veio em substituição às leis contidas no livro V das Ordenações Filipinas que, embora muito alteradas, ainda mantiveram algumas disposições em vigência no Brasil até o ano de 1916, quando da promulgação do Código Civil brasileiro. Juridicamente, o Código é uma observância da Constituição Imperial de 1824 que previa a constituição de um “Código Criminal, fundado nas sólidas bases da justiça e da equidade”.134 Os discursos encontrados no Código Criminal dão conta da necessidade de ordenar uma camada populacional, com intuitos educacionais. O simples fato de não “tomar uma ocupação honesta, útil de que possa substituir [...] era suficiente para enquadrar qualquer um no mundo da vadiagem, pois depois de [...] ser advertido pelo juiz de paz, não tendo renda suficiente, pena de prisão com trabalho de oito a vinte e quatro dias, simplesmente por ser vadio [...].” (CÓDIGO CRIMINAL, op.cit., p.16). O dispositivo educacional também pode ser percebido quando informa que haverá pena de prisão “com trabalho segundo o estado de forças do mendigo, de oito dias a um mês, por estar simplesmente andar mendigando”(p.18). Interessante notar que não clara especificação se o criminoso é um vadio. Apenas há formulações subjetivas sobre quem deveria ser o criminoso. O crime é definido como “toda acção, ou ommissão voluntária contrária ás leis penaes” (p.19) e os criminosos são os “os autores, os que commeterem, constrangerem ou mandarem, alguém commetercrimes” (loc.cit.). Os decretos que compõem à categoria de crime policial, por exemplo, são destinados a “manter a civilidade e os bons costumes” (loc.cit.) e isso incluía perseguição a “vadios, desordeiros, capoeiras, prostitutas e sociedade secreta” (loc.cit.). Dentre todos os artigos contidos no Código, o de nº 295135 foi o que mais enviou detentos e detentas para a Casa. Determinava para toda pessoa que “não tomar uma occupação honesta, e útil [...] não tendo renda sufficiente [...] pena de prisão com trabalho por oito a vinte e quatro dias” (Ib., p. 33). O ano de 1889 foi de intensa movimentação na instituição. A aproximação do fim do regime imperial, a chegada cada vez maior de estrangeiros e de ex-escravos, vindos do interior da Província do Rio de Janeiro, o surgimento da guarda negra e a atividade frenética da polícia em meio a essas tensões, contribuíram para uma maior repressão por parte da polícia e, consequentemente, mais 134 135 APERJ. Constituição Política do Império do Brasil de 25 de março de 1824.Artigo 179, inciso XVIII. Artigo que especifica os crimes a vadios e mendigos. Código Criminal do Império, 1831. Artigo IV. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 185 prisões. Entre os dias 29 setembro e 15 de novembro de 1889, por exemplo, os escrivães registraram a entrada de seiscentos e sessenta e duas pessoas na instituição.136 Os principais motivos das detenções foram a “desordem” (LIVRO DE MATRÍCULAS DE DETENTOS, NOTAÇÃO 61, p. 01 passim),137 com 232 prisões e a “vadiagem” (Ib.loc.cit.) com 123. Denotando uma imensa preocupação com os ociosos e desordeiros da cidade. A Casa de Detenção como espaço educacional No ano de 1856, uma comissão de inspeção apresentou seus relatórios ao então Chefe de Polícia, informando sobre as péssimas condições da então prisão do Aljube.138 O chefe de Polícia, remetendo o relatório ao Ministro da Justiça, aproveita para manifestar a sua opinião sobre a situação: “[...] essa prisão afronta a capital do Império, sede dos Poderes Gerais e centro da nossa civilização [...]”.139 Ela foi desativada e todos os presos transferidos para um dos prédios existentes nos terrenos da Casa de Correção da Corte:140 “Em quanto não for construído o edifício para a construção da Casa de Detenção, servirá para este fim a parte do primeiro Raio da Casa de Correção, contando das mansardas e andar térreo [...]” (REGULAMENTO, 1856, p.295). Nunca houve uma construção para a Casa, como previsto no Regulamento. Durante todo o tempo de funcionamento esteve vinculada à Casa de Correção. Moreira de Azevedo (1877), que fez várias visitas à instituição entre 1872 a 1877, salienta que esse “Raio”, na década de 1870, por exemplo, servia para “prisão de escravas, enfermaria, quarto dos médicos, sala de curativos e a cozinha” (p.155). A Casa de Detenção da Corte foi criada pelo decreto nº. 1774, de 02 de julho de 1856, einstalada nas dependências da Casa de Correção da Corte do Rio de Janeiro. Embora também pudesse abrigar presos condenados, sua principal função era manter 136 Foram 750 prisões no período. No entanto, devido às condições do livro, só conseguimos verificar esses seiscentos e sessenta e dois casos. 137 Os presos por furto estiveram logo atrás com 14 prisões. 326 pessoas foram consideradas ”brancas” e 134 “pretas”. 411 arrolados como solteiros; 41 casados e 11 viúvos. 300 pessoas tinham entre 21 e 50 anos. 347 pessoas eram “nacionais”. Encontramos aproximadamente 40 ocupações diferentes. 138 A prisão do Aljube era uma antiga masmorra eclesiástica, localizada na antiga Rua da Prainha - atual Rua do Acre, região portuária da cidade do Rio de Janeiro. (HOLLOWAY apud MAIA, Clarice, 2009, p.275301). 139 Arquivo Nacional. Ofício do chefe de polícia da Corte do dia 23 de fevereiro de 1856. Série Justiça e Negócios Interiores. Códice IIIJ6-222. 140Atual Penitenciária Lemos de Brito que está localizada nas dependências do complexo penitenciário de Bangu, Rio de Janeiro. Disponível em: www.correiodobrasil.com.br/inauguradas-em-japeri> Acesso em: 25 jan.2012. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 186 detidos aqueles que ainda não tivessem sido condenados ou tivessem cometido pequenos delitos sem pena (REGULAMENTO, op.cit., loc.cit.). A reorganização do serviço policial do distrito federal, em 1900, estabeleceu a instituição como órgão integrante do Ministério da Justiça e Negócios interiores. De sua criação até 1889 esteve sob as ordens do Ministro da Justiça do Império. Com o advento da República, passou a ser subordinada ao governo federal até 1960, quando o Rio de Janeiro deixou de ser capital do Brasil. A partir daí pertenceu ao recém-criado estado da Guanabara até 1974, quando se deu a fusão com o estado do Rio de Janeiro, ao qual pertence até hoje. Em 1941 passou a ser denominado presídio do Distrito Federal. Em 1963 desvinculou-se administrativamente da Penitenciária Lemos de Brito, recebendo o nome de Penitenciária Milton Dias Moreira.141 Durante o regime imperial, houve apenas mais um Decreto modificando o regulamento da instituição, mas nada de muito significativo (REGULAMENTO, 1881, 01 passim). Apenas determinava que o diretor fosse chamado de administrador, e que suas atribuições e vantagens fossem mantidas. Outras alterações, no entanto, foram de caráter administrativo, como a mudança das atribuições do médico e a supressão de frases e revogação de artigos do decreto anterior, o de nº 1774 de 02 de julho de 1856. No final da década de 1870, o Rio de Janeiro contava com um complexo penitenciário, compreendido pelas Casas de Detenção e Correção, bem como o Calabouço. Dentre esses, a instituição era a mais importante, pois para lá convergiam todos os dias uma massa de deserdados, desocupados e desvalidos que caíam na malha fina do poder jurídico-policial da época. A maioria das prisões era feita sob prerrogativa da manutenção da ordem constituída. Pedreiros, fundidores, latoeiros, guardas freio, ostreiros, lavadeiras, lustradores, estivadores, barbeiros, quitandeiros, escravos ao ganho, pautadores, alfaiates, cigarreiros, calafates, cafeteiros, entre outros trabalhadores, eram encaminhados à instituição por incorrerem em delitos como vadiagem, mendicância, embriaguez, desordem, ofensas públicas, agressões, insultos, portar navalha, entre outros (LIVRO DE MATRÍCULAS, op.cit., loc.cit.). Conflitos resultantes de uma associação perversa entre crime e vadiagem, e que refletiam diretamente na movimentação diária de detentos e detentas. As distinções, promovidas pela linha abissal, que estruturam a realidade social, baseadas na invisibilidade “[...] das distinções entre este e o outro lado da linha” (p.33), 141 Atualmente a Penitenciária, com capacidade para 768 detentos, encontra-se localizada no município de Japeri, Rio de Janeiro. Disponível em: <www.correirodobrasil.com.br>Acesso em: 20 de jan.2012. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 187 permaneceram nos espaços intramuros da Casa. Ao dar entrada na instituição, o detento passava por uma triagem composta por dois itens: “averiguação do crime e condição do preso” (REGULAMENTO, 1856, p.295). O objetivo da mesma seria discriminar os detentos e, a partir dessas informações, encaminhar este ou aquele lugar dentro da Casa: os detentos condenados a “galés, galés perpétua, pena de morte e trabalhos forcçados por mais de dez anos” (loc.cit.) deveriam ocupar o andar superior. Os detentos por infração de posturas “municipaes, regulamentos policiaes [...]” (loc.cit.) juntamente com os que padecessem de moléstias contagiosas, ou repugnantes, cuja presença seja nociva aos outros, deveriam “occupar o andar térreo” (loc.cit.). Poderia haver, no entanto, outras divisões. No Regulamento encontram-se recomendações para que se observem “[...] além dessas, divisões outras que se julguem convenientes, tendo em vista a posição social, costumes e circunstancias individuaes” (p.295). O termo, referente à posição social do detido, deixa claro haver tratamento diferenciado para os detidos. O fato de alguns presos poderem manter um escravo ou criado dentro da prisão, de outros a “[...] humaração de vinho que não exceda de meia garrafa, cassando a permissão quando della haja abuso” (loc.cit.) só confirma esta hipótese. O detento deveria também assinar um termo, declarando-se pobre ou não: Preso que for pobre houver de ser sustentado á custa do Estado receberá logo a sua entrada a vestimenta da casa, deixando na arrecadação a roupa que entrou, para lhe ser entregue no acto da sahida. Os presos que não forem sustentados á custa do Estado, receberão de fora a roupa de uso e de cama, sendo obrigados a mudarem aquella duas vezes, e esta huma por semana; a tabela 2 marca a ração dos presos pobres: aquelles, porém, que quiserem trabalhar receberão a ração da tabela 3, iguaes à dos condennados na penitenciária [...](REGULAMENTO, op.cit.,p.295). No primeiro caso, teria toda a “vestimenta da casa” que se baseava em uniforme, roupa de cama e banho, utensílios para higiene pessoal e alimentação. Para os outros, a vida dentro da prisão parecia ser um pouco mais confortável, pois além de todos esses benefícios também teriam direito a uma “ração” melhor, bem como a visita semanal de advogado, caso tivesse um.142 A “ração da tabela 3’ era a mais pobre. Constava apenas do necessário para sobrevivência como, por exemplo, um pouco “de farinha e fubá”.143 Experiências intramuros que exprimem a manutenção da divisão social nos espaços extramuros, ou seja, a manutenção de uma linha abissal. 142 Contudo, os presos considerados pobres poderiam ser atendidos pela Casa de Detenção, no que diz respeito à comida, roupas de cama, uniforme e utensílios de higiene, desde que os mesmos pagassem pelo serviço( REGULAMENTO, p.296). 143 Relatório de despesas da Casa de Detenção da Corte, feita ao Presidente da Província do Rio de Janeiro, ano de 1857, informando sobre os valores gastos na alimentação dos presos. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 188 O castigo era um dos mecanismos para ensinar os detentos e detentas a manterem a ordem. Os presos que infringirem o presente Regulamento, ou não se comportarem na prisão com a decencia e moderação necessária, ficarão sujeitos ás penas correcionaes que lhe serão impostas pelo Director. Essas penas são: Advertência em separado, reprehensão, mudança de prisão, prisão em solitária e jejum (p.301). Até o presente momento, devido aos livros pesquisados, temos poucas informações sobre os castigos que os presos sofreram. Destacamos, no entanto, o caso do carpinteiro José Manoel Machado, solteiro, 17 anos, branco, olhos pretos, rosto redondo que foi preso por vadiagem no dia 01 de janeiro de 1881. Durante dois dias foi “advertido pelo diretor por não se comportar com decência necessária [...]” (LIVRO DE MATRÍCULAS, op.cit., p. 222). Como foi solto somente no dia 20 de fevereiro teve algum tempo para ser enquadrado no padrão prisional. É certo, porém, que esses castigos eram para os presos que não fossem escravos. Para esses, havia determinação para o castigo corporal. Como nesse artigo, bem como na pesquisa, não há maiores investigações nos livros de matrícula para escravos, não há como precisar sobre os castigos. Holloway (2002), no entanto, observa que o castigo físico, especialmente o “açoite como sentença judicial” (p.214), empregado sobre os escravos havia diminuído muito desde o final da década de 1860. O autor salienta que no ano de 1873, por exemplo, havia inúmeras reclamações da parte dos senhores acusando os guardas do Calabouço de não estarem sendo severos com os escravos. Nesse sentido, há remotas possibilidades de haver castigos corporais aos escravos detidos na Casa. O trabalho era outra forma de educar esses presos. A ordem que deve reinar nas cadeias pode contribuir fortemente para regenerar os condenados; os vícios da educação, o contágio dos maus exemplos, a ociosidade originam crimes [...] que sejam praticadas regras de sã moral nas casas de detenção; que, obrigados a um trabalho de que terminarão gostando, quando dele recolherem o fruto, os condenados contraiam o hábito, o gosto e a necessidade da ocupação; que se dêem respectivamente o exemplo de uma vida laboriosa; ela logo se tornará uma vida pura: logo começarão a lamentar o passado, primeiro sinal avançado de amor pelo dever (FOUCAULT, 2005, p.129). De acordo com Foucault (op.cit.), o capitalismo exigiu cada vez mais trabalhadores produtivos; dóceis e úteis. Nesse sentido, esse sistema exigiu uma economia do corpo para que esses respondessem melhor aos padrões exigidos. Multidões de trabalhadores, portanto, deveriam se adequar a um padrão onde economizar movimentos e evitar o ócio seriam regras a serem seguidas. A prisão - como escolas, hospitais, quartéis e outros - seria Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 189 mais um lugar onde esses mecanismos também devessem ser utilizados a fim de tornar todo o tempo vigiado produtivo. Nessas décadas finais do sistema imperial, os homens da boa sociedade viam no ócio uma forma de vadiagem, como visto anteriormente. O mesmo era privilégio apenas para essa camada populacional. Dessa forma, mesmo os presos na Casa eram estimulados, a despeito do tempo de permanência, a trabalharem em uma das oficinas existente no complexo penitenciário: “os presos pobres que quiserem trabalhar serão admitidos nas oficinas de trabalho do Estabelecimento [...] vencendo o jornal que será marcado pelo Director”. (REGULAMENTO, op.cit., p.298). O complexo penitenciário contava, no período proposto por esse artigo, com uma escola, padaria, oficina de carpinteiros, de calçados, de encadernação, de ferreiro. O trabalho “[...] começa ás 5hs no verão e ás 6 no inverno” (AZEVEDO, 1877, p.404). Foi solicitado, em 1876, que os presos produzissem “[...] 192 pares de sapatos grafos para os bombeiros, e havendo neste estabelecimento uma officina de calçados, rogo que vossa senhoria de declarar-me qual o valor de cada par dos mesmos sapatos, e o tempo em que eles podem ser fornecidos”;144 como também a confecção de “[...] bancos com carteiras para a Escola pública de meninos da Freguesia do Espírito Santo”.145 Esses exemplos denotam, a princípio, que mesmo de “passagem” todos estavam submetidos aos mesmos procedimentos reeducacionais daqueles que estavam cumprindo pena. Outro distanciamento parece ter sido quanto à funcionalidade da instituição. Se realmente foi uma instituição de “passagem”. Joaquim Coelho da Costa, nº de registro 3446, preso por vadiagem e declarado pobre. Portanto duas condições que o colocam “do outro lado da linha”. Entrou conduzido pelo “carro da caza”,146 com a guia do subdelegado de polícia.147 Era filho de Antonio José da Crua e Maria, natural de Boa Esperança, trabalhador, solteiro, 20 anos, pardo, rosto cumprido, olhos escuros, cabelos carapinhas, nariz regular, morador da Rua do Lavradio. No momento da prisão trajava “camiza de chita, calça de brim, paletó preto e chapéu preto”. Como todos os outros, passou pelo ritual de passagem: teve cabelos e barba raspados, recebeu as vestimentas, foi conduzido a uma cela e ouviu dos guardas as normas rígidas impostas do Regulamento como, por exemplo, horário “do silêncio e do despertar”. O que diferencia Félix de outros presos foi 144 Pedido feito pela diretoria central da Sociedade d’ajuda do Estado dos Negócios da Agricultura Comércio e Obras Públicas ao diretor da Casa de Correção, em 1876. 145 Pedido recebido, pelo diretor da instituição, da Inspetoria Geral da Instituição Primária e Secundária do Ministério da Corte. 146 Era uma carroça gradeada, que desfilava com os presos pelas ruas da cidade (SOARES, 1994, p.123). 147 Que pode ter sido um sido um policial ou um simples guarda urbano (Id. loc.cit.). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 190 o tempo de permanência: quatro meses por um crime que, segundo o Código Criminal, deveria ser de oito a vinte e quatro dias. A hipótese é a de que quanto mais tempo preso, mais tempo teria para ser reeducado. A justiça contribuía com esse ideal. De acordo com Azevedo (op.cit.), a justiça era lenta e que os processos judiciais não davam conta das “[...] custas, e as pretorias deixam dormir em paz a formação da culpa, enquanto a indolência dos cubículos [...] rapazes, dias antes honestos, fazem o mais completo curso de delitos e infâmias [...]” (p. 397). A instituição, de passagem, parece ter passado a permanente. O problema ficou tão sério que no ano de 1885, com o agravamento do problema da superlotação, o próprio Ministro da Justiça solicitou a “[...] a construção de um novo prédio [...]” (WOLLOWAY, 1997, p. 232), pois o mesmo não mais condizia com o “estado de civilização” (loc.cit.). Porém, o problema da superlotação não foi solucionado. Tão pouco houve construção de outro prédio. Então, o mesmo Ministro, no ano de 1888, pediu às autoridades competentes para que as pessoas presas devessem ser “formalmente acusadas de crime ou liberadas“ (loc.cit.). Parece que as autoridades judiciais tinham conhecimento de que a instituição não era mesmo um lugar de passagem, mas sim de permanência. Considerações finais Disciplinar para educar a população pareceu ser um dos principais ingredientes para o envio de tanta gente à prisão da corte. Nessa direção, a instituição deveria ser um prolongamento dos acontecimentos sociais, políticos e econômicos do espaço da cidade. Deveria se a escola para educar, produzir comportamentos desejáveis, ensinar o vadio a ser produtivo, mediante as oportunidades de trabalhos nas diversas oficinas da instituição. Deveria contribuir com o processo de construção da nação. E não por acaso a instituição chega ao final do império superlotada; correcionais e apenados, na mesma cela, participantes de uma teia de poder onde as múltiplas relações ocasionassem, por exemplo, em motins, assassinatos, promiscuidade, jogos de azar, suborno a policiais, brigas entre outros. A instituição como uma escola de todas as perdições. Os mundos idealizados pela boa sociedade acabaram por demarcar as relações ambíguas e perversas entre os diferentes personagens. Os pertencentes ao “outro lado” viram-se perseguidos e presos na Casa de Detenção. E a instituição deveria ser a escola para educar, produzir comportamentos desejáveis. Tornar o vadio útil e produtivo. E, não Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 191 por acaso, a instituição chega ao final do império superlotada. Correcionais e apenados dividindo a cela com crianças. A instituição como uma escola de todas as perdições. Enquanto sujeitos históricos, quando, de maneira geral, os considerados vadios saíram do espaço apropriação/violência? Qual foi o ponto de viragem? Ele realmente existiu? Este trabalho não traz respostas a todas essas perguntas, mas propõe reflexões posteriores sobre alguns pontos. Seria possível imaginar que a linha abissal, no caso dos vadios, corta a história brasileira após o Império? O sistema legal destinado a manter vadiagem “do lado de lá” da linha, permaneceu após esse período? Essa associação entre crime e vadiagem persistiria no Brasil República. O código Penal de 1890 também tipifica a vadiagem como crime quando previa pena de reclusão para aqueles que deixassem de “exercer profissão, ofício [...] prover subsistência por meio de ocupação proibida por lei [...]” (MENEZES, 1996, p.132). Fontes manuscritas: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro: Posturasdas Câmaras Municipais do Rio de Janeiro,1838-1881. Arquivo Nacional: Ministério da Justiça. Auto de revistas de prisões. Série Justiça e Negócios Interiores, códice III J7-7. _____. Ofícios do chefe de polícia da Corte, 23 de fevereiro de 1856. Códice IJ6 222. _____. Fundo Estado dos Negócios da Agricultura Comércio e Obras Públicas. 2 secção, RJ, 1876). Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro: Fundo Casa de Detenção do Rio de Janeiro: Livros de Matrícula de Detentos e Detentas. _____. Coleção de Leis do Império do Brasil: Regulamento da Casa de Detenção da Corte. 1856 e 1881. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1857, p. 294-305. _____. Fundo Presidência da Província do Rio de Janeiro: 1786-1889. Referências bibliográficas: ANAIS da Câmara dos Deputados do Rio de Janeiro. Sessão do dia 27 de agosto de 1874. Disponível em:<www.imagem.camara.gov.br> Acesso em: 20 mar.2012. AZEVEDO, Duarte Moreira de Azevedo. Rio de Janeiro: Sua história, monumentos, homens notáveis, usos e curiosidades. Biblioteca Garnier, 1877. 425p. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 192 BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos: Um Haussmann Tropical. Biblioteca Carioca, 210p. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário portuguez & latino: áulico, anatômico, architectonico. 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Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 194 A evolução econômica regional e o papel dos imigrantes na zona da Mata mineira: o caso de Juiz de Fora no século XIX Joanna Darc de Mello Croce Graduação em Turismo pela UFJF joannacroce@hotmail.com Marcus Antônio Croce Doutorando em Economia pela UFMG/Bolsista Capes-Reuni mc1967@ig.com.br Resumo: Nosso trabalho busca focar como a chegada de imigrantes, tanto nacionais como estrangeiros na cidade pólo da zona da Mata mineira, Juiz de Fora, consolidou uma dinâmica econômica ascendente. Tudo começou devido a construção da Estrada União Indústria, ligando Juiz de Fora ao Rio de Janeiro no século XIX, que atraiu a presença de trabalhadores estrangeiros na construção da rodovia, e, ao mesmo tempo, atraiu investidores como industriais, comerciantes e dentre outros de outras localidades contribuindo para um evolução econômica regional. Palavras Chave: Imigrantes; economia; desenvolvimento Abstract: Our paper aimstofocus onthe arrival of immigrants, both domestic and foreignin the citycenterofZona da Mataof Minas Gerais,Juiz deFora,aconsolidatedupwardeconomic dynamics. It all startedbecauseofthe constructionIndustryUnionRoad, linking Juiz de Forain Rio de Janeiroin the nineteenth century, which attracted the presenceof foreign workersin the constructionof the highway,and at the sametime,attractedinvestors andindustrialists, tradersand amongothersother locationscontributing toregional economicdevelopment. Keywords:Immigrants; economicdevelopment Introdução O trabalho ora apresentado tem como objetivo central contribuir com o estudo sobre a imigração ocorrida na cidade mineira de Juiz de Fora, durante a segunda metade do século XIX. A expansão da economia cafeeira na região da zona da Mata mineira propiciou os agentes agrários juntamente com o governo imperial à inaugurarem a rodovia União e Indústria, fato esse que trouxe uma grande leva de imigrantes alemães, franceses e outros a se instalarem na cidade através de colônias. Tais imigrantes paralelamente à construção da Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 195 estrada foram inaugurando ramos de produção com suas economias, tanto individuais como também em sociedade, contribuindo significativamente com o crescimento da cidade. A força de trabalho especializada desses imigrantes juntamente com o crescimento da cidade e sua proximidade com a capital do Brasil nesse período, a cidade do Rio de Janeiro, atraiu também imigrantes nacionais, em sua maioria do próprio estado de Minas Gerais que já se instalaram em Juiz de Fora consolidados e passaram a investir na cidade com seus ramos de produção. A diversificação setorial desses investimentos contribuiu na junção de capitais de imigrantes nacionais, estrangeiros e agentes agrários da cidade gerando um número representativo de sociedades anônimas que geraram inovações no contexto brasileiro dessa época como a Cia. Mineira de Eletricidade, primeira hidrelétrica da América Latina e a Academia do Comércio, primeira instituição de curso superior na América do Sul. Metodologicamente, o desenvolvimento de nossa pesquisa se divide em três partes. Na primeira expomos uma visão geral da relação entre imigração e produção cafeeira na região sudeste, focando mais precisamente os estados de Minas Gerais e São Paulo que vivenciaram esse contexto. No segundo tópico, o enfoque é direcionado aos imigrantes estrangeiros e suas atuações na conjuntura econômica que a cidade de Juiz de Fora presenciava. Pequenas fábricas, porém com grande diversificação produtiva fazem parte dessa dinâmica. Na terceira e última parte do artigo, destaca-se a participação maciça dos imigrantes nacionais que, associando-se a cafeicultores locais deram a oportunidade da cidade alavancar sua importância no cenário econômico nacional. Eventos como luz elétrica, formação superior para administradores e gerentes, sistema financeiro, industrial e comercial sólidos foram algumas características da contribuição dos imigrantes em Juiz de Fora. Esperamos por fim, respeitando todas as especificidades socioeconômicas do estado de Minas Gerais, demonstrar como o fator imigração trouxe uma constelação de fatores que transformaram o cotidiano de toda uma sociedade. 1 - A Visão Geral da Imigração no Brasil no século XIX: Uma análise da região sudeste. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 196 Segundo Celso Furtado, em um momento em que a população brasileira se encontrava com sete milhões de habitantes dos quais dois milhões eram escravos, o Brasil pressionado pela Inglaterra, em 1850, decreta a Lei Eusébio de Queiróz com o objetivo encerrar o tráfico de escravos oriundos da África ao país. Em 1872, o primeiro censo demográfico do Brasil já demonstrava uma redução da população escrava, onde se detectou a presença de um milhão e meio deles na sociedade (FURTADO, 1980 p. 117). O fim do tráfico refletiu diretamente na economia do Brasil nesse período uma vez que, o tráfico representava a maior quantidade de importação do país, envolvendo muitos negociantes de distintas esferas sociais nesse empreendimento. Gerou também uma grande inversão de ativos, como por exemplo, transferência de capitais destinados à imóveis, compra de escravos para outros setores como bancos de emissão e papéis da dívida pública (HOLANDA, 1995 p. 88). O episódio da extinção do tráfico negreiro no Brasil pode ser enxergado como um ensaio para a Abolição que ocorreria em 1888, uma vez que já estavam sendo elaboradas e implantadas formas de se substituir a mão-de-obra escrava pela força de trabalho dos imigrantes (COSTA, 1998 pp. 159-93). A transição da força de trabalho, do escravo para o livre, juntamente com o desenvolvimento da produção cafeeira gerou uma situação conflituosa. Latifúndios começaram a se dividir na questão de mão-de-obra entre escravos, meeira e imigrante que haviam sido informados de uma forma de trabalho, mas se deparavam com uma realidade bem diferente, chegando a existir até uma “quase escravidão por dívida”148. Tais conflitos entre fazendeiros e imigrantes ocasionaram em 1859 uma proibição de imigração por parte da Alemanha ao Brasil (BOCCHI, 2003 p. 82). Em 1837 entra em vigor uma legislação que regulamenta o trabalho de imigrantes estrangeiros, a lei nº 108 de 11 de outubro, onde existia uma política voltada para a criação de “colônias de parceria” financiadas por investidores particulares porém com ônus para os imigrantes e uma política de subsídio tratada entre o governo imperial e os governos provinciais que acabou sendo prevalecida. Na década de 1870, com a ascensão contínua da produção de café e a Lei do Ventre Livre promulgada em 1871, a força de trabalho tornou-se mais necessária, pois além de 148 Existiam contratos que os imigrantes que assumiam um papel de colonos assinavam na Europa fazendo com que estes ficassem atrelados ao serviço nas fazendas até o pagamento final de suas dívidas. Tais colonos tinham seu transporte desde a Europa até as fazendas pagos e todas as despesas envolvendo manutenção e transportes teriam de ser pagas no momento em que o imigrante pudesse sustentar-se, além de ser cobrado um juros sobre a quantia investida de 6% ao ano. Ver: COSTA, 1998 p. 81. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 197 reduzir o número de escravos, a convivência entre cativos e ex-cativos desencadeou revoltas nos centros de produção (BOCCHI, 2003 p. 82). Os fatos acima geraram incentivos à imigração de trabalhadores assalariados e participações em subsídios envolvendo o império e governos provinciais. Entre 1860 e 1869, 108.187 imigrantes pisaram em solo brasileiro, sendo que entre 1881 e 1930, eram 3.964.300 (PAULA, 2012 p. 27). No ano de 1879 ocorre um fato que levará a um grande contigente imigratório para o Brasil que irá se estabelecer durante toda a década de 1880: a promulgação da lei de 1879. Tal lei que trazia em seu bojo pontos como, parceria agrícola e pecuária como também locação de serviços permitiu uma entrada significativa de imigrantes principalmente direcionados para a cafeicultura. As regiões de estados como a zona da Mata em Minas Gerais e o Oeste de São Paulo dinamizando sua economia através de diversificação setorial oriunda do capital obtido das receitas do café foi um exemplo disso. Verifica-se o caso de São Paulo na tabela abaixo: TABELA 01 Subsídios à imigração: 1885-1900 (em libras esterlinas) Ano Governo Federal (A) Governo Estadual (B) TOTAL B/C % A+B=C 1885 80.430,78 28.343,82 180.774,01 15,68 1886 160.619,27 88.172,13 194.179,40 45,41 1887 251.734,00 299.447,62 551.181,62 54,33 1888 405.395,21 304.383,88 709.779,09 42,88 1889 703.153,53 17.541,18 720.694,71 2,43 1890 327.322,21 83.918,70 411.240,91 20,41 1891 1.224.275,18 37.382,66 1.281.657,84 2,92 1892 346.374,96 75.565,31 421.940,27 17,91 1893 301.319,60 180.554,46 481.874,06 37,47 1894 99.067,25 51.318,40 150.385,65 34,12 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 198 1895 339.878,38 301.398,25 641.276,63 47,00 1896 679.561,38 175.406,26 854.967,64 20,52 1897 30.887,30 190.619,57 221.506,87 86,00 1898 40.485,88 82.039,20 122.525,08 67,00 1899 7.942,15 70.607,19 78.549,34 90,00 1900 75.213,94 44.685,92 119.899,86 37,26 Fonte: GRAHAM, D. H. Migração estrangeira e a questão da oferta de mão-de-obra no crescimento brasileiro. Estudos Econômicos 1880-1930, v. 3 n.1 A imigração que ocorreu na região sudeste do Brasil, mais precisamente nos estados de Minas Gerais e São Paulo no século XIX se deram com maior incidência devido à produção cafeeira. Em São Paulo os dados abaixo corroboram esse fato: TABELA 02 Produção de café e imigração (1880-1897) Ano Produção de café Nº de imigrantes 1880 5.783 22.520 1881 5.691 23.766 1882 6.852 24.306 1883 5.166 25.449 1884 6.492 29.935 1885 5.770 35.688 1886 6.320 56.606 1887 3.165 64.818 1888 6.925 79.224 1889 4.405 115.879 1890 5.525 121.927 1891 7.695 122.238 1892 6.535 121.245 1893 5.040 133.274 1894 7.235 121.548 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 199 1895 6.005 133.580 1896 9.315 122.241 1897 11.210 120.970 Total 115.129 1.475.214 Fonte: Departamento Nacional do Café – Anuário Estatístico, 1938 e Secretaria da Agricultura de São Paulo, Relatório, vários anos. (1) Em milhares de sacas de 60 kg, colocadas no porto de Santos. In: Formação Econômica do Brasil/ organizadores: José Márcio Rego, Rosa Maria Marques – São Paulo: Saraiva, 2003. Como coloca João Antônio de Paula, não será reducionismo afirmar que o núcleo principal destas mudanças foi a economia cafeeira (PAULA, 2012 p. 27). A imigração na região sudeste do Brasil na segunda metade do século XIX de fato em sua grande parte atrelada ao café, Temos que reconhecer então, que esse fator contribuiu significativamente para o deslocamento de pessoas estrangeiras e também de outras localidades do país, principalmente nos estados de São Paulo e Minas Gerais, onde a produção cafeeira se encontrava em franca ascensão nessa época. No caso da zona da Mata de Minas Gerais e seu pólo urbano, a cidade de Juiz de Fora, objeto de nosso interesse nesse artigo, na segunda metade do século XIX a imigração se concentrou mais nessa região devido ali ser o centro cafeeiro mineiro nesse período. A construção de uma rodovia, a “União e Indústria”, voltada para o escoamento do café para o porto do Rio de Janeiro, contribuiu diretamente nesse contexto, atraindo mãode-obra estrangeira e conseqüentemente atraindo empresários e outros trabalhadores de outras localidades para o município, fato esse que veremos mais detalhadamente no próximo tópico. 2- A imigração para a cidade pólo da zona da Mata mineira: Juiz de Fora No que se refere à questão da imigração em Minas Gerais no século XIX, a relação desse contexto com a industrialização em Juiz de Fora é um fato pertinente (ARANTES,1991; BIRCHAL, 1998; CROCE, 2008; GIROLETTI, 1988).Tal relação nos permite uma visualização geral de como esse processo influiu no panorama econômico de Juiz de Fora chegando a ponto da cidade ficar conhecida como "Manchester Mineira". Sérgio Birchal (1998) contribuiu no campo dessas especificidades com uma pesquisa na qual se refere às diferenças regionais do empresariado brasileiro. Birchal destaca que a classe empresarial oriunda de imigrantes teve uma expressão muito limitada em Minas Gerais, porém coloca que a participação dessa classe foi significativa somente na Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 200 zona da Mata mineira (BIRCHAL, 1998 p. 18). Mais uma vez percebemos a desarticulação e as especificidades de cada sub-região mineira, devido à grande dimensão territorial do Estado149. No período que envolve os anos de 1858/1912, 66% das indústrias de Juiz de Fora pertenciam a imigrantes. Birchal aponta então que o imigrante industrial mineiro se difere do imigrante industrial paulista, denominado como o "imigrante burguês" (BIRCHAL, 1998 p.19). A diferença é demonstrada através do início das atividades desses imigrantes no Brasil. Segundo Birchal, o imigrante industrial mineiro começa a trabalhar como operário e em outras atividades secundárias, na expectativa de conseguir um pedaço de terra, diferente dos imigrantes paulistas (BIRCHAL, 1998 p. 19). A análise de Birchal nesse contexto comparativo merece ser relativizada. Quanto ao setor agrário, podemos assimilar as diferenças, se levarmos em conta que, enquanto as fronteiras na zona da Mata mineira no período já se encontravam fechadas, São Paulo no período pós-abolição dispunha de fronteiras abertas. Tal fato resulta no desenvolvimento cafeeiro, impulsionado pelos "contratos de colonos" (LIMA, 1981 pp. 30 a 35). Quanto ao "imigrante burguês", o qual é um investidor presente no meio urbano-industrial de grandes empreendimentos, não assimilamos a diferença entre o imigrante mineiro e o imigrante paulista. Imigrantes investidores realizaram grandes empreendimentos na zona da Mata mineira como o feito em São Paulo. Vejamos o caso de Pantaleoni Arcuri, estabelecido na cidade de Juiz de Fora. Pantaleoni Arcuri foi pioneiro em fabricar e comercializar no Brasil telhas de amianto, além de fabricar ladrilhos hidráulicos (GIROLETTI, 1988 p. 78), assim como muitos imigrantes inovaram em seus ramos em São Paulo. Muitos imigrantes que se instalaram em Minas Gerais, mais precisamente na zona da Mata mineira, como apontou Birchal, realmente pretendiam um pedaço de terra que esperavam adquirir com suas economias extraídas de serviços operários. Porém outros recém-chegados já pretendiam investir com uma economia externa. Estudos apontam esse fato, demonstrando a entrada de imigrantes ingleses, que já fixados no Rio de Janeiro investem em Juiz de Fora (PIRES, 1999 p. 299)150. 149 A respeito dessa desarticulação entre as regiões de Minas Gerais ver WHIRTH, John. O Fiel da Balança: Minas Gerais na Confederação Brasileira: 1889/1937. Paz e Terra, São Paulo, 1982. 150É importante assinalar que, como aborda Anderson Pires, o investimento da Companhia Industrial Mineira foi concretizado por comerciantes ingleses radicados no Rio de Janeiro, e por isso afirma que Maria Teresa Versiani aponta erroneamente que tal investimento foi um investimento de origem estrangeira. Nossa Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 201 Consideramos extremamente importante analisar a imigração na cidade de Juiz de Fora focando os fatores mão-de-obra e o empresarial na constituição no desenvolvimento econômico local. Dentro do primeiro fator, a construção da rodovia União e Indústria foi o marco da chegada dos imigrantes no município. O desenvolvimento dessa obra, administrada pela Cia. União e Indústria geraram resultados diretos e indiretos que a diferiram das outras companhias do país (GIROLETTI, 1988 p. 55). As outras referidas companhias eram conhecidas como "Cias. relâmpago", direcionadas por tecnologia e administração estrangeira, enquanto a companhia local possibilitou relações duradouras, que influíram no processo produtivo endógeno. A Companhia União e Indústria "contribuiu para diversificação de forças produtivas; não só introduziu como facultou a mão-de-obra livre e a mão-de-obra qualificada" (GIROLETTI, 1988 pp. 55-56). Devido às necessidades qualitativas do empreendimento, o idealizador da obra rodoviária União e Indústria, Mariano Procópio, buscou nos imigrantes serviços relacionados à engenharia, arquitetura, desenho, técnico em pontes e dentre outros, sendo que a maioria dos imigrantes iria compor o quadro de operários. Diante desse quadro foi criada então a Colônia D. Pedro II, local de moradia desses imigrantes recém-chegados. Em uma iniciativa que envolveria os setores público/privado, o empreendimento buscou solucionar objetivos de ambos os lados. O setor privado, representado pelos cafeicultores, estabeleceu que a rodovia atendesse a seus interesses, necessitando de serviços especializados dos imigrantes. Já o governo, buscou fortalecer a agricultura, reforçando o contingente agrário associado a técnicas européias. No acordo entre as partes, celebrado em 1852, ficou constatado que a Cia. União e Indústria trouxesse 2.000 colonos, sendo que 400 famílias encampariam o setor agrícola. Entre maio de 1858 e dezembro de 1860, a colônia abrigou 1.144 pessoas, sendo os residentes dessa colônia agricultores e agentes especializados em diversas categorias como: professores primários, oleiros, pedreiros, jardineiros, sapateiros e tecelões(GIROLETTI, 1988 pp. 57-58) . As inovações que os imigrantes trouxeram, refletiram no cotidiano da colônia. Os trabalhadores da colônia se dividiam em suas funções, enquanto uns trabalhavam na companhia, outros trabalhavam por conta própria e outros na agricultura. A agricultura colocação a esse respeito é a colaboração de investimentos proporcionados por imigrantes em Juiz de Fora, sendo que o investimento mencionado partiu de imigrantes ingleses. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 202 exercida pelos imigrantes se voltou para o mercado interno, cultivando produtos como mandioca, milho, arroz, feijão, inhame e fumo. Criaram também abelhas e porcos, além de melhorarem a questão de pastagem para o gado (GIROLETTI, 1988 pp. 57-58). A mentalidade self made man que os imigrantes possuíam, ou seja, uma mentalidade direcionada para a disciplina e a produtividade, seriam elementos fundamentais na mão-deobra qualificada. Os imigrantes tinham então uma grande perspectiva de que, através de seu trabalho, e conseqüentemente adquirindo uma poupança proveniente desse, conseguiriam o enriquecimento e a posse de terra (GIROLETTI, 1988 pp. 57-58- 59). Tal mentalidade resultou em fatores contributivos na esfera local, como acumulação de capital através dessas poupanças, abertura de ramos de produção e organização de empreendimentos (BIRCHAL, 1998 pp. 18-19). Vejamos a tabela abaixo referente a 1889-1930. Tabela 03 Participação dos Imigrantes em Abertura de Ramos de Produção em Juiz de Fora IMIGRANTES NÃOIMIGRANTES TOTAL Alimentação (bebidas) 22 38 60 Tecidos (em geral) 15 16 31 Couros (em geral) 22 17 36 Marcenaria (em geral) 17 04 21 Cerâmica (em geral) 11 09 20 Construção 03 05 08 11 11 RAMOS Fumos (em geral) Tipografia e Litografia 11 12 23 Indústrias Diversas 10 27 37 TOTAL 141 145 286 Fonte: ESTEVES, A. Álbum...op. cit. p.291-6. Apud: GIROLETTI, D. A Industrialização...op. cit.p. 79. Um fator pertinente para investimentos na cidade, resultante da presença de imigrantes, foi a atração de industriais de outras localidades a investirem em Juiz de Fora, devido constatarem que na cidade haveria mão-de-obra qualificada. As indústrias atraídas por esse fator juntamente com as obras ferroviárias em expansão na região, aumentaram o Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 203 volume de imigração A necessidade de uma mão-de-obra qualificada para se trabalhar com ferrovias foi a causa desse aumento imigratório (PIRES, 1999 p. 54). O interesse dos cafeicultores e dos industriais locais em buscarem subsídio do governo em relação aos imigrantes era uma via de ampliar o mercado através de um maior número de mão-de-obra qualificada a baixo custo. Tal interesse resultou na fundação da Sociedade Promotora de Imigração em 1887, que teria como premissa promover a entrada de imigrantes em toda a província de Minas Gerais. Associamos a iniciativa dessa Sociedade com a pesquisa de Sérgio Birchal, onde é demonstrado que o fluxo imigratório em Minas Gerais foi significativo apenas na zona da Mata mineira (BIRCHAL, 1998 p. 18). A criação da Hospedaria Horta Barbosa, núcleo que receberia os imigrantes recém-chegados, instalada em Juiz de Fora em 1889, resultou na maior porcentagem de imigrantes a se fixarem na cidade (GIROLETTI, 1988 p. 57). O fator empresarial é o fator onde podemos perceber a maior contribuição dos imigrantes na esfera econômica local. Podemos dividir o processo industrial de Juiz de Fora em duas fases. A primeira é quando surgem as primeiras fábricas, com baixa produção e tecnologia, onde o proprietário é, ao mesmo tempo, o agente produtor. Tal fase permanece até o fim de 1880. A segunda fase é o início de pequenas e médias empresas, resultantes das já instaladas ou novas, que acompanham o avanço do capitalismo brasileiro. As novas instalações, nessa fase, produzem em série, contam com mais tecnologia e o proprietário não é mais o produtor direto. Percebe-se que "é um período em que as empresas se diferem das médias para o emprego, maior quantidade de mão-de-obra, ou pela maior soma de capital investido"(GIROLETTI, 1988 p. 74). Associamos tal fase ao crescimento de sociedades anônimas em Juiz de Fora, sendo esse mecanismo um forte elemento no mercado de capitais. Voltando à primeira fase, estudos apontam que os imigrantes vão se inserir na constituição do mercado de trabalho e organização dos primeiros investimentos industriais. Para alguns autores existe a hipótese de que os imigrantes operários da Cia. União e Indústria teriam consciência de que faziam parte de um mercado de trabalho temporário. De acordo com esse pensamento, teriam que buscar alternativas de sobrevivência ao fim dessa obra (GIROLETTI, 1988 pp. 74 a 77). Associando tal consciência com a mentalidade self made man, os imigrantes fazem uma poupança de seus salários e com o recurso acumulado associam-se entre si, reunindo habilidades afins, ou abrem ramos individuais, tendo como força de trabalho a família. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 204 Ficam demonstrados nesse contexto empreendimentos individuais e em sociedade abertos em Juiz de Fora, de propriedade dos imigrantes desde 1858, como fábricas de carroças, lojas comerciais, cervejarias, curtume, dentre outros (GIROLETTI, 1988 pp. 73 a 81). Os empreendimentos da primeira fase passam para a segunda através da concentração de capitais e ampliações verticais e horizontais. O caso da firma Pantaleoni Arcuri é um exemplo claro da mobilidade vertical. A firma surge em 1895, exercendo serviços de serraria, carpintaria e marcenaria, com um departamento em materiais de construção. Em 1905, ampliava seus segmentos fabricando mosaicos e ladrilhos hidráulicos e em 1909 fabricava telhas de cimento e amianto, sendo pioneira desse produto no Brasil. Em 1908, possuía 156 operários; em 1914 possuía 200 operários. O exemplo horizontal, que é uma loja de revenda, passar a fabricar, é o que podemos constatar com a Fábrica Meurer. Através de seu estabelecimento que vendia armarinhos e fazendas, o proprietário, Antônio Meurer, percebeu a grande procura por meias importadas, importou uma máquina da Alemanha e começou a fabricação de meias em sua própria casa. O início de uma pequena produção, composta de uma força de trabalho familiar, chegou em 1914 produzindo 120.000 dúzias de meias ao ano, com 300 operários e um capital de 500 contos (GIROLETTI, 1988 pp. 80-81). A contribuição dos imigrantes no desenvolvimento local como podemos visualizar com os exemplos acima, fica evidente, e, é de consenso entre historiadores regionais que estudam a zona da Mata mineira: "se não fossem os imigrantes Juiz de Fora não poderia se beneficiar tão rapidamente do surto de progresso que a estrada lhe deu" (ALVARENGA FILHO, 1987 p. 34). Em 1991, surge uma pesquisa envolvendo o tema relacionado aos imigrantes em Juiz de Fora, As Origens da Burguesia Industrial em Juiz de Fora, do autor Luiz Antônio Valle Arantes. Este trabalho é de alta valia para a historiografia local, pois se contrapõe aos argumentos da maioria dos historiadores regionais. Arantes concorda que o início do processo de industrialização de Juiz de Fora se deve aos imigrantes, porém aborda que os historiadores locais não buscam explicar suas razões. Arantes aponta que as explicações historiográficas existentes referentes à participação dos imigrantes no processo de desenvolvimento econômico de Juiz de Fora foram insuficientes para explicar o que chama de "fenômeno" (ARANTES, 1991 p. 83). Dentro de uma teoria weberiana, Arantes aborda que a mentalidade do imigrante germânico, que majoritariamente fizeram parte da primeira leva de imigrantes que Juiz de Fora acolheu, está direcionada para a ética protestante. É tal elemento, segundo Arantes, Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 205 que definirá a iniciativa de empreendimentos suas diversificações setoriais e não a mentalidade self made man colocada por Giroletti(ARANTES, 1999 p. 84). O projeto da Cia. União e Indústria, elemento responsável pela chegada dos primeiros imigrantes a Juiz de Fora é visto por Arantes como fracasso e sucesso ao mesmo tempo. O fracasso é relacionado com a falência da empresa, o sucesso relacionado com a entrada de imigrantes, formadores de um mercado consumidor e empreendedores dos primeiros investimentos industriais. Arantes divide então os germânicos que chegaram a Juiz de Fora em duas categorias: os católicos e os protestantes. De acordo com o autor, é importante observar que o vínculo existente entre os imigrantes era de caráter religioso e não de nacionalidade. Em seu trabalho de campo empírico, Arantes detecta que, de todos os empreendimentos industriais iniciados em Juiz de Fora com a participação de imigrantes germânicos, só se concretizaram e se desenvolveram aqueles relacionados com os imigrantes protestantes. Através da associação entre o nome do proprietário(s), com fontes empíricas (Livros de Registros e Históricos Evangélicos), dos quais consta a presença dos participantes em fundações de cultos evangélicos, Arantes absorve sua conclusão (ARANTES, 1999 p. 89). Arantes aponta que a religião protestante sofria certa resistência no Brasil, e esse fator levava os membros dessa religião a aumentarem seus laços de solidariedade e confiança mútua, o que se refletia no campo dos negócios. Tais relações resultariam em parcerias e sociedades bem sucedidas. Abordando como elementos de acumulação de capitais, além dos já expostos nesse tópico, Arantes acrescenta o laço matrimonial existente entre os protestantes e a facilidade de acesso a fontes de capital externo (ARANTES, 1999 pp. 103-104). O autor destaca também, o papel de imigrantes de outras nacionalidades dentro do contexto econômico de Juiz de Fora. Evidencia a importância do capital inglês, que foi responsável pela instalação da maior fábrica da cidade e do Estado. Quanto aos imigrantes portugueses e espanhóis o autor aponta a participação destes relacionado com investimentos em ramos de laticínios, gelo e vinhos (ARANTES, 1999 pp. 115-122). O setor ferroviário, segundo Arantes, foi um elemento fundamental para a entrada de imigrantes italianos, que predominaram na segunda fase da industrialização de Juiz de Fora. Além da ferrovia, é abordado também, dentro da imigração italiana, o interesse de grupos da cidade em promover sua imigração. Dentre esses grupos estariam os Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 206 cafeicultores visando substituir a mão-de-obra escrava, e os industriais buscando a qualificação de trabalhadores deserdados, que venderiam sua força de trabalho a baixo custo, uma vez que o principal motivo da imigração italiana foi a fome e a miséria que rondavam aquele país (ARANTES, 1999 p. 117). A conclusão da pesquisa de Arantes demonstra que apesar de incidentes ocorridos, como a exploração de cafeicultores sobre imigrantes, problemas referentes à higiene, salubridade e superlotação na hospedaria que abrigou os imigrantes, a cidade alcançou certa progressão no setor de mão-de-obra. No período de 1886-96, a cidade recebeu 7.000 imigrantes, em sua maioria italianos que, além de comporem o mercado de trabalho, fundaram fábricas de alta relevância na cidade. Tais fábricas operavam no ramo de funilarias, calçados, móveis, tonéis, curtume, dentre outras, atingindo uma grande expressividade no ramo de construção civil (ARANTES, 1999 pp. 121-122-123). É importante ressaltar também a significância de imigrantes nacionais em Juiz de Fora. A presença de investidores locais e imigrantes nacionais juntamente com os imigrantes estrangeiros formou o pilar do desdobramento industrial em Juiz de Fora. O desdobramento referido provém de avanços como o aperfeiçoamento do sistema de comunicações (ferrovia, rodovia, telefone urbano e telégrafo), a organização de um sistema financeiro local (bancos e mecanismos de crédito à indústria), criação de escolas secundárias e superiores destinadas à formação de mão-de-obra e energia elétrica, servindo como a nova força motriz para a indústria. Os fatores colocados acima formam a infra-estrutura de uma nova conjuntura que a cidade vivenciou. Iniciativas essas que se concretizaram através de investidores que influenciaram diretamente na história sócio-econômica de Juiz de Fora. São esses investimentos e seus agentes que abordaremos no próximo tópico. 3 – A atração dos imigrantes nacionais através dos imigrantes estrangeiros e o desdobramento industrial. A estrada União e Indústria gerou dois fatos para despertar a transferência de investidores de outras localidades para Juiz de Fora: mão-de-obra qualificada e barata, uma vez que muitos imigrantes estrangeiros estavam disponíveis com sua força de trabalho com o fim da obra da rodovia e terras possíveis de adquirir por um custo acessível e próximas do maior centro consumidor e distribuidor do país, a cidade do Rio de Janeiro. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 207 Orlando Valverde em sua análise de geografia demográfica, demonstra que a zona da Mata constitui uma região povoada, na qual a densidade de população gera taxas das mais elevadas em todo o estado. Valverde aponta que tal densidade demográfica se encontra ao longo de rodovias, e as principais cidades estendem-se ao longo de caminhos tradicionais: "Quanto mais velhas as estradas, mais importantes as cidades" (VALVERDE, 1958 p. 01). A colocação de Valverde corrobora a concepção de Domingos Giroletti, que aponta a rodovia União e Indústria como elemento primordial para o desenvolvimento sócioeconômico da cidade de Juiz de Fora (GIROLETTI, 1988 p. 113). Ao analisarmos que a industrialização tem seu princípio em centros onde o mercado de exportação é a atividade principal, como o caso do café em Juiz de Fora, a expansão da exportação promove a dinamização do mercado interno, cujas necessidades não podem ser satisfeitas somente com bens importados. Tal ampliação do mercado interno provoca a aceleração do crescimento das cidades, gerando investimentos e força de trabalho (GIROLETTI, 1988 p. 40). É muito interessante observarmos que, como citamos anteriormente, o aperfeiçoamento do sistema de transportes em Juiz de Fora preparou o terreno para que a cidade engendrasse uma realidade capitalista depois dos anos de 1880. Tal realidade atraiu e fez que imigrantes investidores nacionais se fixassem na cidade. Ao pesquisarmos atas de resoluções da Câmara Municipal da década de 1870, presenciamos uma parceria público/privada em obras de infra-estrutura pública, como instalação de rede de esgotos, pontes, iluminação a querosene, dentre outros151. Maria Bárbara Levy aborda que, no Rio de Janeiro, grupos sociais cobrem os gastos públicos através de compra de títulos da dívida pública (LEVY, 1994 p. 89). Percebemos que o mesmo acontecia em Juiz de Fora, onde grupos sociais, como grande parte de fazendeiros e uma pequena parcela de comerciantes, financiavam infra-estruturas públicas através da compra de títulos de dívida pública lançados pela Câmara Municipal de Juiz de Fora. Inicia-se então a formação de grupos sociais que, ao investir em sua localidade, passam a exigir também formas de melhorias dessa infra-estrutura. O papel exercido pelos comerciantes locais demonstra que, apesar de serem pequenos contribuintes frente aos fazendeiros, reivindicavam melhorias na infra-estrutura urbana. Conforme cita Sônia Regina Miranda, em 1871 comerciantes locais organizam 151 Livro de Atas e Resoluções da Câmara Municipal de Juiz de Fora (1888-96) sob custódia do Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 208 uma representação exigindo a instalação de uma estação ferroviária no centro da cidade. O motivo da manifestação se dava devido à longa distância do terminal rodoviário da Cia. União Indústria e também ao monopólio exercido pelo seu acionista majoritário Mariano Procópio (MIRANDA, 1990 pp. 103-104). A chegada da ferrovia em Juiz de Fora em 1875 permitiu a Juiz de Fora se tornar um entreposto regional de abastecimento. Na década de 1880 a cidade já vai dispor de um sistema de transportes urbanos, com a organização da Cia. Carris Urbanos de Juiz de Fora, e o sistema de comunicação também se aperfeiçoa com a instalação de telefonia urbana em 1883 e os serviços de telégrafos em 1885 (MIRANDA, 1990 p. 105). Os comerciantes exerceram um papel fundamental em serviços de infra-estrutura urbana. Além da representação citada acima exigindo a estação ferroviária em um ponto central, exigiram também melhorias no abastecimento de água e limpeza pública, sendo que em 1885 a cidade já possui o sistema de água encanada e iluminação a gás (MIRANDA, 1990 p. 105). Em 1887 a cidade inaugura uma agência bancária, privilégio de poucas localidades do país fora do centro do Rio de Janeiro152, o Banco Territorial e Mercantil de Minas Gerais. O banco era uma sociedade anônima constituída por quatro fazendeiros e políticos da região e um comerciante. Os fazendeiros/políticos eram o Barão de Santa Helena, chefe do Partido Conservador, senador do império e vice-presidente da província, o Cel. Vidal Barbosa Lage, principal acionista da ferrovia Juiz de Fora/Piau, Barão de Monte Mário, chefe do Partido Liberal (imigrante) e Visconde de Morais, apenas fazendeiro. O comerciante era Francisco Batista de Oliveira (imigrante), dono de uma das maiores casas comerciais da cidade, exercendo um importante papel de importação na cidade. O Banco Territorial e Mercantil de Minas Gerais possuía uma carteira comercial onde eram destinados recursos para operações como descontos, empréstimos à lavoura, exercendo assim um papel de crédito interno. Expandiu suas atividades inaugurando agências na praça da capital do Estado, a cidade de Ouro Preto, e no maior centro financeiro do país, a cidade do Rio de Janeiro (CROCE, 2008 p. 174). Os desdobramentos dos investidores acima demonstrados levariam ainda a um maior encadeamento de investimentos de suma importância na infra-estrutura urbana a partir de 1889, envolvendo investidores externos. 152 A respeito de existirem poucas agências bancárias fora da praça do Rio de Janeiro ver: FRANCO, G. H. B. Reforma Monetária... op. cit. pp. 27-28. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 209 Associamos então três fatores relevantes que influíram na preparação da cidade a viver dentro de uma lógica capitalista. 1) O acumulo de capital dos fazendeiros locais, que, como apontamos anteriormente, foram beneficiados economicamente através do investimento de transportes, aumentando sua produção e reduzindo os custos, o que resultou em maior acumulação de capital a ser reinvestido em outros setores estruturais urbanos. O impulso cafeeiro era tão ascendente, que o café, um produto que representava apenas 3% da exportação do estado de Minas Gerais no início do século XIX, passa a 45% três décadas depois (ALMICO, 2001 p. 37). 2) O papel representativo exercido pelos comerciantes que, junto com outros investidores, financiavam obras de infra-estrutura pública, adquirindo títulos de dívida pública. Os benefícios conquistados pelos comerciantes locais são claramente demonstrados pelo crescimento no número de estabelecimentos comerciais da cidade. Em 1870, a cidade dispunha de 153 casas comerciais, chegando a 692 casas comerciais em 1905 (PIRES, 1999 p. 108). 3) A transferência de investidores de outras localidades, dispostos a investir em Juiz de Fora pelo fato desta cidade possuir elementos estruturais como comunicação, transportes, setor financeiro e disponibilidade de mão-de-obra qualificada (imigrantes) a baixo custo. Um bom exemplo desse fato é a carta escrita por um dos maiores industriais a se transferirem para a cidade, onde depois de comentar sobre a existência da Hospedaria do Imigrantes, escreve: "muito facilitará o engajamento do pessoal de primeira ordem e a preço mais módico que na Corte"153. Associamos também a localização geográfica da cidade, próxima do maior centro consumidor do país, a cidade do Rio de Janeiro. A partir de 1889, com as transformações decorridas até então na estrutura urbana, a cidade se torna um palco de novas inaugurações, principalmente no campo de sociedades anônimas. Dos vários empreendimentos concretizados no período, destacamos duas sociedades anônimas idealizadas por imigrantes nacionais em Juiz de Fora que consolidaram o pensamento moderno dentro de uma base de investimentos capitalistas: o Banco de Crédito Real de Minas Gerais e a Companhia Mineira de Eletricidade. A primeira sociedade anônima referida, respondeu pela consolidação do sistema financeiro 153 JACOB, R. Carta de Mascarenhas de 16/11/1888. In: GIROLETTI, D. A Industrialização...op. cit. p. 67 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 210 local e a segunda pelo empreendimento pioneiro da energia elétrica, permitindo que a cidade de Juiz de Fora fosse o primeiro local da América Latina a possuir uma usina hidrelétrica. O impacto do fenômeno da eletricidade rendeu comentários por todo o país, e como cita Gustavo Pena em um jornal mineiro: "Quando em Juiz de Fora havia já a luz elétrica, ali, na Capital do país, ao empardecer das tardes, saiam, como insetos noturnos, para os pontos, os acendedores, os profetas, empunhando varas escuras e compridas, tendo na extremidade uma chamazinha, com que iam acendendo os lampiões nas ruas." (Gustavo Pena, Minas Gerais de 5 de fevereiro de 1927. In: MASCARENHAS 1954 - p. 150). A Cia. Mineira de Eletricidade é um exemplo de como Juiz de Fora alavancou seu desenvolvimento de estrutura urbana através de parcerias envolvendo agentes agrários, industriais oriundos de outras localidades, comerciantes e políticos. Dentro dessa aliança de investidores, o idealizador da Cia. Mineira de Eletricidade foi o industrial Bernardo Mascarenhas. Em 1887 Bernardo Mascarenhas mudava-se para Juiz de Fora, trazendo consigo grandes planos para o desenvolvimento e a industrialização. Era um empresário bem sucedido, que começou a vida trabalhando no comércio, vendendo seus produtos como tropeiro (GIROLETTI, 1988 p. 86). Vale a pena lembrar que além de Bernardo Mascarenhas trabalhar como comerciante, ele era também um grande estudioso. Fez o curso de Humanidades no Colégio do Caraça, concluindo este em São João Del Rey, além de ter feito cursos de Física e Mecânica nos Estados Unidos, gerando um conhecimento relativo a equipamentos importados, o que se refletiria mais tarde em suas fábricas (RIBEIRO, 1990 p. 10). Trabalhando dessa forma, juntamente com seu irmão Caetano, conseguiu acumular um capital, construindo em 1872 uma fábrica de tecidos em uma região mineira conhecida como Cedro, perto da cidade de Sete Lagoas. Depois do sucesso dessa fábrica montaram outra, a Fábrica da Cachoeira, com seus outros irmãos, e em 1885, as duas fábricas se juntaram formando assim a Fábrica Cedro Cachoeira com um grande conceito no mercado da época (GIROLETTI, 1988 pp. 86-87). Bernardo Mascarenhas com o dinheiro que conseguiu juntar do lucro dessa fábrica em sociedade montou em Juiz de Fora sua própria fábrica, a Tecelagem Bernardo Mascarenhas.Sendo assim, o industrial com seu conhecimento técnico, produzia tecidos de ótima qualidade para o padrão da época (GIROLETTI, 1988 p. 87). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 211 A Tecelagem Bernardo Mascarenhas foi inaugurada em 14 de maio de 1888, e em 1897 já duplicava a quantidade de suas máquinas (as máquinas na época eram teares). Empregava 120 operários e produzia 2.000 metros de tecidos por dia. Em 1914, funcionava com mais máquinas e já empregava 526 operários produzindo 188.000 metros de tecidos por dia (GIROLETTI, 1988 p. 87). Ao mudar-se para Juiz de Fora, Bernardo Mascarenhas comprou um terreno no qual se situava a Cachoeira dos Marmelos. Tal cachoeira permitia o fornecimento de energia hidráulica para sua fábrica de tecidos, fato esse que permitiu ao empresário a idealização de construção naquele local de uma companhia de eletricidade que fornecesse energia, não só para sua fábrica, mas também para iluminação pública e particular, e em período integral para o funcionamento das fábricas que já existiam na cidade e para as que começassem a surgir (GIROLETTI, 1988 p. 87). A iluminação da cidade na época era feita com gás, e para Bernardo Mascarenhas conseguir concretizar seu plano de passar essa iluminação para elétrica era preciso conseguir a transferência de contrato de iluminação pública. A participação do comerciante e imigrante Francisco Batista de Oliveira foi fundamental na negociação com o engenheiro Maurício Arnade na questão da transferência, pois esse engenheiro era o detentor da concessão de iluminação pública a gás do município (GIROLETTI 1988 p. 87). Em 1887 foi concretizado o acordo com a permissão e apoio da Câmara dos Vereadores, e em 1888 já estava em construção a Companhia Mineira de Eletricidade. Bernardo Mascarenhas daria os terrenos e sua cachoeira para a construção da usina em troca de 35 anos de energia elétrica gratuita para sua fábrica. A firma Westinghouse foi contratada para os serviços de construção da companhia, trabalhando e estudando o aproveitamento da água, a colocação de dínamos, a rede de iluminação da cidade, o número de lâmpadas, e a especificação de velas e todo o material necessário. Em 1889 começam a chegar os materiais enviados pela Westinghouse, e a população acompanhava esse período com muita ansiedade, pois a obra demoraria devido às dificuldades da época. Até que em setembro é concretizada, e começa a funcionar a Usina Hidrelétrica de Marmelos, pertencente à Cia. Mineira de Eletricidade (GIROLETTI, 1988 p. 88). Inaugurada em 5 de setembro de 1889, a Usina Hidrelétrica de Marmelos escreveria para sempre o nome da cidade de Juiz de Fora na história da energia elétrica do Brasil. O investimento proporcionou um grande impacto devido a esta hidrelétrica ser a primeira na Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 212 América Latina, começando a funcionar apenas sete anos depois da primeira do mundo, a Hidrelétrica de Appleton Wisconsis, nos Estados Unidos154. A hidrelétrica construída a seis quilômetros de Juiz de Fora, às margens da estrada União e Indústria, gerou uma certa revolução nas indústrias e fábricas de Juiz de Fora, pois era a primeira vez que recebiam energia elétrica em seus locais de produção. Bernardo Mascarenhas escreve uma carta em 1887, pronunciando: "Me considerarei muito feliz se for o primeiro a transmitir força elétrica, praticamente utilizável, no Brasil ou talvez na América do Sul."155Para se ter idéia da dimensão dessa obra, o Jornal "Gazeta de Notícias", do Rio de Janeiro escreve se referindo à Hidrelétrica: "Não podemos deixar de render congratulações aos habitantes de Juiz de Fora, não só pelo empreendimento, que foi elevar mais, se é possível, a sua importância, como também porque está livre do gás, que tanto escurece." (Jornal "Gazeta de Notícias” In: Usina de Marmelos. Edição Comemorativa p. 02). A consolidação desse investimento proporcionouuma significativa dinamização industrial na cidade: “Nos dezesseis anos que se seguiram (1898-1914) fundaram-se mais de 160 indústrias em Juiz de Fora (...) Há registro da data de fundação de 160 indústrias cuja data de fundação se desconhece. É bem provável que parte delas tenha sido criada no período assinalado. Por isso se estima que foram fundadas mais de 160 empresas no período”. (GIROLETTI, 1988 pp.90-91). O Banco de Crédito Real de Minas Gerais também foi um empreendimento de capital local com a participação de investidores imigrantes ligados a atividades industriais, agrárias, comerciais e de profissões liberais. Tal iniciativa libertou de forma significativa a dependência do crédito externo propiciando aos fazendeiros de café da região a obterem crédito em sua própria praça. De acordo com a tabela abaixo vemos uma inversão desse fato: TABELA 04 Participação do Banco de Crédito Real de Minas Gerais na Distribuição de Capital para a Lavoura Cafeeira de Juiz de Fora 1890/1919. (valores em mil-réis) Década DIV.TOTAL B.C.R. % R.J. % 1870/79 309.819 ------ ----- 144:477 46,63 154Usina Marmelos Zero. Um marco na história da energia elétrica no Brasil. CEMIG e Governo de Minas Gerais. Edição Comemorativa, p.02 155 Trecho da carta de Bernardo Mascarenhas em 1887. Dois anos depois, sua Cia. Mineira de Eletricidade instalava à beira do Rio Paraibuna, a primeira hidrelétrica de porte da América do Sul. In:Usina Marmelos...op. cit. p. 01. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 213 1880/89 1.022:570 ------ ----- 768:649 75,16 1890/99 199:209 143:939 72,46 1:211 0,60 1900/09 613:996 438:776 71,46 73:868 12,63 1910/19 109:517 73:000 66,65 2:263 2,06 FONTE: Inventários Juiz de Fora - 1870/1929 Apud: PIRES, Anderson. Café, Finanças...op. cit. p- 202. Autorizado a funcionar por um decreto assinado pelo Imperador D. Pedro II, em 22 de agosto de 1889, o Crédito Real ultrapassou a marca de funcionar por mais de um século (RIBEIRO, 1990 p. 10). O Banco desenvolveu uma trajetória de crescimento impressionante. Iniciando suas atividades com um capital de apenas 100 contos, em 1889, direcionava suas atividades ao empréstimo agrícola com garantias hipotecárias. Em menos de um ano de existência, o balanço de 30 de junho de 1890 aponta um lucro líquido de 5.697$050 (GIROLETTI, 1988 P. 84). Em 1891 é concedida pelo governo a autorização de abertura de uma carteira comercial envolvendo operações de descontos, depósitos, contas correntes e cauções, e no mesmo ano seu capital era elevado para 3.000 contos, distribuído em 15.000 ações. Em 1892 o Banco abria uma agência na capital do estado, Ouro Preto, e em 1894 firma um acordo com o governo, tornado-se administrador dos fundos do Tesouro do estado na agência de Ouro Preto. Em contrapartida faria adiantamentos necessários aos cofres da Fazenda (GIROLETTI, 1988 pp. 84-85). Apesar do entrelaçamento do Banco com o governo, não podemos associar o desenvolvimento dessa instituição bancária atrelada somente ao Estado. O banco atuou com uma base sólida em suas operações ativas e passivas, ou seja, com grande evolução de depósitos na sua carteira passiva, era possível operar com um grande desempenho na carteira de ativos, no desconto de letras. A prática de desconto fortalece o sistema financeiro local, oferecendo sempre maior disponibilidade de capital de giro para os agentes produtivos locais (PIRES, 1999 p. 209). O desdobramento industrial dos investidores locais e imigrantes, investindo em segmentos de infra-estrutura urbana, e empreendimentos além dos que citamos acima, permitiu a criação de diversos ramos de produção, constituídos por sociedades anônimas conforme tabela abaixo. TABELA 05 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 214 Sociedades Anônimas Fundadas em Juiz de Fora - 1854/1899 Companhia Capital Nominal Fundação Liquidação Setor Cia. União e Indústria 5.000.000$ 1854 1872 Transporte Cia. Est. De Ferro J. Fora a Piau 1.200.000$ 1871 1898 Estrada de Ferro Cia. Est. De Ferro União Mineira -------------- 1878 1884 Estrada de Ferro Empresa dos Lavradores 80.000$ 1882 1885 Agrícola Cia. de Ferro Carril Bonds de Juiz de Fora 100.000$ 1882 1897 Transporte Urbano Cia. Industrial Mineira 1.200.000$ 1883 1933 Têxtil Estrada de Ferro Carril Parahybuna e Porto das Flores --------------- 1884 1888 Estrada de Ferro Associação Promotora de Imigração 400.000$ 1887 n.d. Imigração Banco Territorial e Mercantil de M.G. 1.000.000$ 1887 1892 Financeiro Cia. de Gás de Juiz de Fora 200.000$ 1887 n.d. Serviço Público Cia. Pastoril Mineira 1.000.000$ 1888 1896 Agrícola Cia. Mineira de Eletricidade 150.000$ 1888 Cia. Organização Agrícola Mineira 300.000$ 1896 1896 Agrícola Cia. Estrada de Ferro Santa Izabel do Rio Preto ------------- 1889 1899 Estrada de Ferro Banco de Crédito Real de Minas Gerais 500.000$ 1889 Financeiro Academia de Comércio 200.000$ 1890/91 Ensino Energia Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 215 Cia. Construtora Mineira 500.000$ 1890 1892 Construção Civil e Industrial Cia. Industrial de Juiz de Fora 1.000.000$ 1890 1897 Couro e materiais graxos Cia. Indústria Mineira 300.000$ 1890 1892 Calçados Cia. Agrícola de Juiz de Fora 2.200.000$ 1891 1896 Agrícola Cia. Chimico Industrial Mineira 500.000$ 1891 1900 Química e famácia Cia. Mechânica Mineira 500.000$ 1891 1895/96 Mecânica Banco de Crédito Popular de M.G. 1.400.000$ 1891 1893 Financeiro Cia. de Tecidos de Juta ---------------- 1894 1901 Têxtil Empresa Tipográfica de Juiz de Fora - "O Pharol" 300.000$ 1899 1901 Jornalismo Fonte: Jornais locais - vários anos Apud. PIRES, Anderson. Café, Finanças...op. cit. p. 291 As transformações ocorridas provenientes dos investimentos locais ficam claramente expostas quando analisamos os novos modos de aplicação de capitais desses agentes. Os investimentos que eram majoritários no período de 1870-88, como escravos e benfeitorias, perdem posição para os que ocupavam lugares modestos no mercado local, como títulos, ações e dívida pública. Verifiquemos as tabelas abaixo, baseadas em inventários post-mortem: TABELA 06 Médias de Participação dos Ativos no Montante da Riqueza do Período - 1870/1879 Escravos Café Animais Terras Casas Benfeitoria Objetos Alimentos Dív At. Títulos Ações Terrenos 32,68 16,65 2,64 17,70 6,01 2,76 2,32 0,77 11,76 4,50 1,93 0,18 Médias de Participação dos Ativos no Montante da Riqueza do Período - 1880/1888 Escravos Café Animais Terras Casas Benfeitoria Objetos Alimentos Dív At. Títulos Ações Terrenos 16,04 15,87 2,18 14,54 9,19 2,92 1,74 0,42 23,74 7,96 5,01 0,43 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 216 Médias de Participação dos Ativos no Montante da Riqueza do Período - 1889/1898 Escravos Café Animais Terras Casas Benfeitoria Objetos Alimentos Dív At. Títulos Ações Terrenos 0 12,86 2,97 19,64 16,13 2,37 3,15 0,45 18,22 16,55 6,77 0,93 Fonte: inventários post-mortem - Arquivo Histórico da Universidade Federal de Juiz de Fora. Adaptado: ALMICO, Rita C. Fortunas em movimento...op. cit. pp. 72, 93 e 117. O outro empreendimento de muita importância idealizado por um imigrante em Juiz de Fora no século XIX foi a inauguração da Academia de Comércio que foi fundada sob forma de sociedade anônima e teve como idealizador Francisco Baptista de Oliveira. O crescimento da área industrial e comercial em Juiz de Fora exigia também a qualificação de seus colaboradores. O objetivo desse empreendimento se destinava a formar “negociantes, banqueiros, diretores e empregados de estabelecimentos comerciais”. Lembramos que o comerciante Francisco B. de Oliveira, idealizador dessa sociedade, possuía um capital financeiro diversificado. Além de sua atuação à frente de um estabelecimento comercial considerado um dos principais da cidade, teve seu nome vinculado á significativa contribuição nas inaugurações de sociedades anônimas dos setores de energia e financeiro. Ao colocarmos a idéia educacional dessa sociedade anônima, frente ao panorama da conjuntura econômica desse período, percebemos as transformações que esse momento injetava no quadro da nova mentalidade do ensino financeiro brasileiro. Através de consulta na Coleção de Leis e Decretos do estado de Minas Gerais no arquivo desse período, observamos um aumento substancial de criação de novas escolas técnicas, que assim como a Academia de Comércio em Juiz de Fora, buscavam suprir a qualificação dos meios de serviços. Um exemplo desse fato é o surgimento das Escolas Técnicas Agrícolas, como a da cidade de Ponte Nova em 1894, dentre outras propiciadas pelas leis de incentivo governamentais. Aliomar Baleeiro coloca que dentro do conjunto de idéias e conceitos de Rui Barbosa, ministro da Fazenda nesse momento, estava: “categórica repulsa ao protecionismo como meio idôneo para a industrialização, que deveria assentar numa imediata intensificação de serviços educacionais, considerando-se investimento dos mais remuneradores e os sacrifícios tributários que o país fizesse para tal fim.”(BALEEIRO, 1949 pp. 37-38). A inauguração da Academia do Comércio teve a presença do então presidente do Estado de Minas Gerais e futuro Presidente da República, Afonso Pena, o qual demonstrava apoio às necessidades da instituição. A iniciativa privada, através do mercado acionário, também apontava a solidez do empreendimento. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 217 A Academia do Comércio carregava consigo então, a marca de ser o primeiro Instituto Superior de Ensino Comercial da América do Sul. (CROCE, 2008 p. 182). Diante desse quadro então podemos acompanhar uma mudança conjuntural na cidade de Juiz de Fora sendo que a participação dos imigrantes nacionais e estrangeiros influenciou diretamente nesse contexto. Considerações Finais Nas últimas linhas desse artigo podemos concluir que a participação dos imigrantes tanto estrangeiros como nacionais atrelados ao capital cafeeiro da cidade de Juiz de Fora fizeram da região da zona da Mata mineira a referência do contexto imigratório no século XIX. Os imigrantes estrangeiros contribuíram diretamente na construção de uma rodovia que ligou Juiz de Fora à capital do país, alavancando a economia local, gerando uma poupança social. A contribuição socioeconômica teve continuidade ao final dessa obra que ao se fixarem na cidade tais imigrantes inovaram na criação de um parque comercial e industrial com pequenas fábricas de bebidas, carroças, curtumes etc. Os imigrantes nacionais por sua vez se caracterizaram por inaugurarem grandes ramos de produção, como foi o caso da indústria têxtil, do comércio e das sociedades anônimas, sendo esse último fator, em nossa concepção o mais significativo. Mais significativo no sentido de trazer conseqüências benéficas ao município e para a região como um todo, como por exemplo, a “independência” do setor financeiro fluminense através dos serviços prestados pela sociedade anônima dos bancos Crédito Real de Minas Gerais e do Territorial e Mercantil de Minas. Também no parque industrial que através da sociedade anônima Cia. Mineira de Eletricidade revolucionou esse setor sendo a cidade apelidada de “Manchester Mineira”. Concluímos então que Juiz de Fora foi uma cidade que viveu intensamente os resultados socioeconômicos que os imigrantes proporcionaram, inserindo na economia regional alguns empreendimentos inovadores e que passaram por grande longevidade, como foi o caso da Cia. Mineira de Eletricidade que hoje conhecemos como a Cemig, o Banco de Crédito Real de Minas Gerais que exerceu suas atividades no mercado financeiro por mais de 100 anos e a Academia do Comércio, instituição de educação atuante até os dias atuais. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 218 1 – Fontes Primárias: 1.1 –Jornal “Credireal, 101 anos”, edição comemorativa, Belo Horizonte, 1990. 1.2 - Coleção de Leis e Decretos do Governo de Minas Gerais, sob Guarda do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte – MG. 2 – Fontes Impressas 2.1 - ESTEVES, Albino. Álbum do Município de Juiz de Fora. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1915. 2.2 - Revista Cultura em Voga. M.R. Publicidade e Promoções, Juiz de Fora, nov/2005. 2.3 - Usina Marmelos Zero. Um marco na história da energia elétrica no Brasil. CEMIG e Governo de Minas Gerais. Edição Comemorativa Bibliografia: ALMICO, Rita C. S. . Fortunas em Movimento: Um Estudo sobre a Transformação de Riqueza Pessoal em Juiz de Fora (1870-1914). Universidade Estadual de Campinas, 2001, (Dissertação). ARANTES, L. A. As Origens da Burguesia Industrial em Juiz de Fora. (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1999. BALEEIRO, A . Rui, um Estadista no Ministério da Fazenda. Fundação Casa de Rui Barbosa, 1949. Rio de Janeiro. BOCCHI, J. I. In: Formação Econômica do Brasil/organizadores: José Márcio Rego, Rosa Maria Marques – São Paulo: Saraiva, 2003. COSTA, E. V. Da monarquia à República: momentos decisivos. 7 ed. Unesp, 1999. CROCE, M. A. O Encilhamento e a Economia de Juiz de Fora: O Balanço de uma Conjuntura. FUNALFA Edições. Juiz de Fora, 2008. FRANCO, Gustavo B.. A 1o Década Republicana. In: ABREU, M. P.. A Ordem do Progresso: 100 anos de Política Econômica Republicana 1889-1989. 11o ed. Rio de Janeiro, Campos, 1990. FURTADO, C. Formação Econômica do Brasil. 17 ed. São Paulo: Nacional, 1980. GIROLETTI, Domingos A. Industrialização de Juiz de Fora 1850-1930. Juiz de Fora, EDUFJF, 1988. GRAHAM, D. H. Migração estrangeira e a questão da oferta de mão-de-obra no crescimento brasileiro, Estudos Econômicos 1880-1930, v. 3 n.1 HOLANDA, S. B. de (Dir.). O Brasil monárquico; declínio e queda do império. História geral da civilização brasileira. 5 ed. Rio de Janeiro: Bertrand, Brasil 1995. t. 2, v. 4. LEVI, Maria B.. A Indústria do Rio de Janeiro através de suas sociedades anônimas. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1994. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 219 MASCARENHAS, N. L Bernardo Mascarenhas e o Surto Industrial de Minas Gerais. Rio de Janeiro, Aurora, 1954. MIRANDA, S. R. Cidade, Capital e Poder: políticas públicas e questão urbana da velha Manchester Mineira. Dissertação de Mestrado, UFF, 1990. PIRES, Anderson. Café, Bancos e Finanças em Minas Gerais. Uma Análise do Sistema Financeiro da Zona da Mata Mineira - 1889/1930. In: 3o Congresso Brasileiro de História Econômica. ANAIS. Curitiba: UFPR, 1999. RIBEIRO, J. "Banco de Crédito Real de Minas Gerais". In: Um Banco de todos os Tempos Credireal 101 anos. Edição Comemorativa. 1990 p. 10. VALVERDE, Orlando. 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O estudo da forma como Gonzaga lidou com estas idéias em seus pareceres nos permitiu observar alguns resultados práticos das reformas, e se podemos falar em um predomínio do “império da lei” no final do século XVIII dentro do mundo luso-americano ou se devemos tomar cuidado com tal afirmação, considerando-o mais como uma tendência que um fato concreto. Palavras-chaves:Gonzaga, Política e Poder Abstract:The work examines the official documents issued by Thomas Antonio Gonzaga as ombudsman in Vila Rica. The goal is to see how he dealt with the notions of law, power, justice, customs and privileges as a magistrate. We know that poetry and theoretical Gonzaga´s books was written over a period of reforms, trying to take the Portuguese Empire ideas of discipline and good politics. The study of how Gonzaga dealt with these ideas in their official documents enabled us to observe some practical results of reforms, and if we can speak of a predominance of the "rule of law" in the late eighteenth century in the Luso-American world or whether we should take careful with this affirmation, considering it more as a tendency than a concrete fact. Key-words: Gonzaga, Politic and Power. O conjunto de fontes formado pelos pareceres jurídicos é composto por uma série de documentos escritos por Tomás Antônio Gonzaga enquanto ele ocupou a Ouvidoria Geral de Vila Rica. Hoje estes escritos se encontram distribuídos em vários arquivos, sendo que os remetidos ao Conselho Ultramarinho estão no Arquivo Histórico Ultramarinho de Lisboa, e os remetidos à Câmara de Vila Rica estão divididos entre o Arquivo Público Mineiro, a Casa Setecentista do Pilar de Ouro Preto, o Arquivo Nacional e a Biblioteca Nacional. Como veremos, em muitos destes pareceres Gonzaga fala sobre as leis, algumas vezes com argumentos “normativos” e disciplinadores, outras recorrendo aos preceitos coorporativos. Outro aspecto importante dos pareceres de Gonzaga é que muitos deles tratam de temas que também são relatados nas Cartas Chilenas, o que nos permite comparar Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 221 como ele lidou com assuntos relacionados à política tanto como poeta quanto como magistrado. Os altos magistrados enviados para o ultramar recebiam do rei o poder de fazer valer a ordem e de exercer a justiça oficial. Sobre o trabalho dos ouvidores, as Ordenações Filipinas afirmam que o ouvidor nomeado para exercer suas funções no ultramar possuía as mesmas atribuições do corregedor nomeado para as comarcas do reino. A principal função do ouvidor era fazer cumprir a justiça em nome del Rey. Porém, apesar de no final do século XVIII já começar a se formar uma estrutura burocrática no reino que controlava o ofício dos ouvidores, devemos ter em mente que estes magistrados sabiam manusear mecanismos de distorção do poder político central em prol de seus interesses. Além disto, na prática, como mostra Antônio Manuel Hespanha, os ouvidores tinham seu espaço de poder atrelado a outras jurisdições como, por exemplo, os governadores, os membros da Câmara e outros representantes do poder local (HESPANHA, 2006: 134). Tudo isso junto com a existência nas sociedades de Antigo Regime de mecanismos informais de normação social (o costume e o direito local, por exemplo), em relação aos quais, como temos visto, o direito oficial era muito complacente. Uma das chaves que usamos para compreender o processo de tomada de decisão de Gonzaga na ouvidoria é seu relacionamento com a Câmara e com os governadores bem como com figuras importantes daquela sociedade. Assim podemos ver como afetos, alianças e inimizades influenciavam seu trabalho e suas idéias. Sobre Minas Gerais, Álvaro Antunes afirma que em Vila Rica e Mariana, os dois principais centros urbanos e administrativos da comarca, a justiça oficial ficava a cargo da Junta de Justiça, dos ouvidores e das Câmaras (ANTUNES, 2007: 172). A Junta de Justiça era presidida pelo governador e formada pelos quatro ouvidores de Minas, pelo provedor da Fazenda e pelo juiz de fora de Ribeirão do Carmo, atual Mariana. Sobre o ouvidor, Antunes afirma que ele representava a segunda instância judicial no termo de Vila Rica, sendo responsável por conferir os processos julgados e apurar apelações e agravos contra sentenças judiciais passadas por juízes de primeira instância (ANTUNES, 2007: 173). O saber jurídico dos magistrados que, como Gonzaga, eram formados em Coimbra, não era, segundo Hespanha, um fator que obrigatoriamente promovesse a disciplina e o cumprimento da lei real no ultramar, pois, o fato destes magistrados se envolverem em redes locais, fazia com que muitas vezes, se interessassem primeiramente em fazer vingar os pontos de vista de seus clientes (HESPANHA, 2006: 44). Além disto, como mostra Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 222 Xavier Pujol, à distância para com a metrópole fazia com que muitas medidas tivessem que ser tomadas sem maiores planejamentos, para fazer frente a contingências inesperadas (PUJOL, 1991: 133). Agindo de acordo com as tendências legalistas de seu tempo, e querendo mostrar-se um bom funcionário régio, Gonzaga abre muitos de seus pareceres intitulando-se um “fiel executor das leis de Sua Majestade” ou dizendo-se “movido pelo grande zelo com que se emprega no Real Serviço” que, segundo ele, consiste “na fiel execução das leis”. Tais declarações obviamente são passíveis de suspeita devido a seu caráter bajulatório e ao claro interesse de Gonzaga em mostrar-se um bom funcionário para a Coroa. No entanto, vemos que, assim como em seus textos teóricos onde defende o cumprimento das leis reais, Gonzaga em muitos pareceres de fato, nega pedidos da Câmara de Vila Rica e de particulares, alegando que tais demandas vão contra as determinações da Soberana. Seguindo esta mesma lógica Gonzaga responde da seguinte forma um pedido do governador da capitania de Minas Gerais Luís da Cunha e Menezes, para aprovação de umas festas que seriam realizadas em Vila Rica para a comemoração do casamento dos infantes portugueses. Recebi de V. M. carta em que pede a minha aprovação para as festas que hão de fazer em obséquio dos felizes desponsórios dos nossos Sereníssimos Infantes. Venho dizer a V. M., que não me pertence o aprovar ou desaprovar algum ato desse respeito, que deve ser decidido em ato de eleição conforme as leis de Sua Majestade, de que sou um mero executor156. Este parecer é muito interessante, pois vemos que Gonzaga teve uma oportunidade de opinar sobre a realização dos festejos que ele tanto critica nas Cartas Chilenas. Como vemos em tal oportunidade ele preferiu não se manifestar em nome do cumprimento das leis. A resposta breve e ríspida deste parecer também nos mostra um pouco da animosidade em o Ouvidor e o Governador. Outros pareceres, entretanto, nos mostram que apesar de aparentemente seguir a tendência normatizadora e ser “um mero executor das leis de Sua Majestade”, Tomás Antônio Gonzaga, da mesma forma que fazia em seus textos teóricos, não hesitava, quando era necessário, em recorrer à força dos costumes, da tradição e das ideias de bem comum para tomar suas decisões práticas. Quando tal medida se fazia necessária, Gonzaga não via problemas em interpretar as leis à sua maneira. Vejamos o exemplo de um parecer 156 Arquivo Público Mineiro (APM), Fundo da Câmara Municipal de Ouro Preto, Caixa 60, documento 19. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 223 dado por Gonzaga para a Câmara de Vila Rica sobre o uso de mão de obra escrava em uma obra pública: Vejo que V.M. me participam sobre a necessidade de fazer uma nova cadeia para o que há já licença de Sua Majestade: o que é absolutamente indispensável. Vejo a dificuldade que V. M. igualmente me propõe por se achar essa Câmara com um grande empenho e sem rendas para suprir a tão avultada despesa, o que também é certo. Vejo finalmente o adjutório que V. M. lhe pretendem dar, querendo que nela trabalhem os forçados para assim pouparem os gastos dos jornais, concorrendo essa Câmara unicamente com o sustento deles. Para que não aceite esse grande adjutório, creio que não pode haver razão alguma: por inda que a lei manda que as obras das Câmaras se façam por arrematações, esta lei, contudo não deve se entender tão rigorosamente. O seu espírito é de querer que as obras se façam mais comodamente e sendo nas circunstâncias presentes o meio mais cômodo o aceitar-se sem ofertarão, fica manifesto que este meio inda que pareça oposto ao rigor das palavras é, contudo o mais conforme com o seu verdadeiro espírito157. Vemos claramente neste exemplo que as circunstâncias e as necessidades locais influenciavam Gonzaga no momento de interpretar as leis e tomar suas decisões como Ouvidor, o que comprova a teoria de Xavier Pujol de que muitas medidas tomadas pelos funcionários régios eram feitas para atender as demandas locais e não as leis (PUJOL, 1991: 133). Tal fato mostra também que a clássica visão dicotômica que enfatiza uma profunda dualidade entre metrópole e colônia é errônea. Como afirma Maria Fernanda Bicalho era enorme a capacidade de negociação e de incorporação dos vassalos no ultramar (BICALHO, 2005: 94 e 95). Este parecer sobre a construção da cadeia também é importante para ser contraposto com as Cartas Chilenas. Como se sabe, nestas Gonzaga critica duramente a “soberba obra” que, apesar de toda a sua grandiosidade, serviria para abrigar “uns negros que vivem quando muito em vis cabanas” (GONZAGA, 2006: 61). Gonzaga também lamenta que a cadeia estivesse sendo levantada “sobre os ossos de inocentes, construída com lágrimas dos pobres forçados que trabalham sem outro algum jornal mais que o sustento” (GONZAGA, 2006: 60 e 62). Portanto, é interessante observar que foi o próprio Ouvidor Gonzaga quem autorizou que fosse utilizada mão de obra escrava na construção e que ele não fez nenhuma critica e tampouco criou algum obstáculo para o bom andamento da obra. É claro que devemos nos lembrar que por se tratar de um poema, as Cartas Chilenas possuem toda uma liberdade literária que Gonzaga obviamente não tinha como magistrado. No poema, protegido por um pseudônimo, Gonzaga ficaria mais a vontade para fazer suas 157 Arquivo Público Mineiro (APM), Coleção Casa dos Contos (CC), caixa 10, documento 10201. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 224 criticas, enquanto no parecer pode ter agido com mais cautela para não entrar em conflito com os membros da Câmara de Vila Rica. Da mesma forma que no parecer visto acima, é em nome dos benefícios que seriam trazidos para a população local que Gonzaga permite a construção de um hospital na cidade de Mariana pela Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, ainda que os terceiros não tivessem provado que as terras onde seria o dito hospital lhe foram aforadas: É certo que a Ordem de Nossa Senhora do Carmo aforou à Câmara desta Vila setenta braças de terra em circunferência da sua capela com o fim de edificar um hospital para os seus terceiros pobres. Ouvi a Câmara e ela não afirma essa confirmação. Contudo, esta obra não deixa de ser útil a esta mesma Vila, pois havendo nela um hospital insignificante, agora ao menos os terceiros pobres terão o benefício desta casa de piedade158. Tais exemplos, para além de nos mostrar que assim como no Tratado de Direito Natural, no cargo de Ouvidor Gonzaga continuava dividido entre o cumprimento das leis e o direito comum, deixam claro que a aplicação das leis no ultramar, como afirma Júnia Furtado, deve ser estudada como um instrumento dinâmico, que refletia os embates enfrentados pela sociedade e que procurava se enquadrar e se adaptar à realidade da capitania (FURTADO, 2009: 34). É interessante também observar que estas acusações tecidas por Gonzaga contra o governo de Cunha e Menezes nas Cartas Chilenas, também foram feitas através de pareceres oficiais mandados diretamente para a Rainha D. Maria I. Contra o governador, Gonzaga afirma em seus pareceres que encontrava dificuldades em cumprir adequadamente suas funções de Ouvidor (denúncia que também aparece nas Cartas Chilenas) devido ao despotismo do governador Luís da Cunha e Menezes e às intromissões e desmandos do mesmo em assuntos que eram da alçada do judiciário. Tais pareceres nos mostram que o duelo entre o governador e o ouvidor era público e notório, a ponto de Gonzaga escrever também em documentos oficiais as criticas que ele anonimamente tecia nas Cartas Chilenas. É interessante também observarmos que os argumentos de ambas as denúncias, tanto a oficial quanto a anônima são os mesmos: despotismo, falta de respeito às leis e intromissões. Argumentos estes que em muito convergem com alguns ideias do Tratado de Direito Natural. É claro que não devemos tomar ao pé da letra todas estas acusações feitas por Tomás Antônio Gonzaga contra o governador Luís da Cunha e Menezes, mas, inseri-las em um envolvente jogo de forças em curso na América Portuguesa que, ao mesmo tempo em que 158 Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa (AHU), caixa 124, documento 1, rolo 110. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 225 promovia uma instabilidade social de facções em rivalidade, viabilizava uma maior vigilância entre as partes. Mas ainda que relativizemos as acusações de Gonzaga, o “sistema” administrativo descrito por ele em seus pareceres e nas Cartas Chilenas nos mostra que os funcionários régios que prestavam serviços em Minas Gerais no final do século XVIII estavam longe de se basear na máxima ilustrada de que o “bom governo é aquele que segue as leis”. Pelo contrário, o que vemos é a existência de um governo que ainda se baseava em improvisações; de pessoas favorecidas por estarem inseridas em certas redes e de uma justiça que atende a interesses particulares. Não podemos dizer que tais características fossem uma particularidade do governador Luís da Cunha e Menezes, pois, como já vimos, o próprio Gonzaga em seus pareceres muitas vezes adotava soluções divergentes do que as leis mandavam. É interessante também observar como as afinidades e redes tecidas por Tomás Antônio Gonzaga em Vila Rica o influenciavam na hora de tomar decisões. Como se sabe, ao contrário de sua relação com Luís da Cunha e Menezes, Gonzaga se deu muito bem com Dom Rodrigo José Menezes, governador da Capitania de Minas Gerais em seus primeiros anos como Ouvidor (1782-1783). Nas Cartas Chilenas,por exemplo, para contrapor a figura de Dom Rodrigo com a de Luís da Cunha e Menezes, Gonzaga chama Rodrigo de “benigno chefe”. De fato, pudemos observar que Gonzaga nunca deu nenhum parecer contrário a Dom Rodrigo, chegando a elogiá-lo para a rainha159 e até a apoiá-lo quando o governador mandou prender um juiz, um procurador e um vereador por não atenderem uma ordem sua160. Neste caso, Gonzaga não achou a atitude do então governador despótica, mostrando-nos que na prática, alianças e afinidades refletiam na forma como Gonzaga interpretava o mundo político. Outra amizade feita por Gonzaga ao chegar em Minas e que é refletida em muitos de em seus pareceres foi a como o rendeiro João Rodrigues de Macedo, que era um dos homens mais poderosos, economicamente falando, da capitania. Em correspondência datada de 1787, Macedo oferece dinheiro a Gonzaga, que em resposta afirma que não recorreria a mais ninguém caso precisasse de recursos. Como ouvidor, Gonzaga deu vários pareceres a favor de João Rodrigues de Macedo, principalmente notificações para que devedores quitassem suas dívidas com o rendeiro sob pena de terem seus bens 159 160 Arquivo Histórico Ultramarinho (AHU), documentos relativos à Minas Gerais:cx 124, doc. 2. Arquivo Público Mineiro: Fundo da Câmara Municipal de Ouro Preto (CMOP), cx 58, doc 22. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 226 penhorados.161 A relação entre estes dois homens talvez pudesse então se encaixar no que Hespanha chama de “economia do dom”, onde um favor é agraciado por uma recompensa (HESPANHA E XAVIER, 1994: 120). Ou seja, seria uma relação baseada em hábitos e valores coorporativos onde as relações pessoais de Gonzaga influenciavam em seu trabalho. Por fim, é importante destacarmos que em seus pareceres, sempre que tem de dar uma ordem judicial para coibir um abuso ou deter um criminoso ou devedor, Gonzaga afirma que “na falta de oficiais de justiça, poderão fazer-lo quaisquer um das milícias ou capitão do mato162”. Ou seja, até mesmo o ouvidor geral da Comarca recorria em seus documentos oficiais aos poderes locais. Tal fato muito recorrente nos pareceres de Tomás Antônio Gonzaga comprova que a existência de um universo da política e da justiça baseado nas máximas das leis, da normatização e da centralização estava longe de ser uma realidade em Minas Gerais no final do século XVIII. Desta forma, através de todos os exemplos tirados dos textos de Tomás Antônio Gonzaga que vimos até aqui, vamos comprovando a teoria de que o Império Português do final do século XVIII não tinha ainda se livrado dos usos dos costumes, dos privilégios e das tradições locais e, como conseqüência, não tinha completado sua centralização por meio da normatização. Tal questão se torna ainda mais clara em um interessantíssimo parecer enviado por Gonzaga à Rainha D. Maria I, relatando os problemas que a Real Fazenda sofria devido ao fato dele estar cumprindo uma ordenação real que proibia o uso dos costumes introduzidos contra as leis. Vejamos segundo as palavras de Gonzaga: O zelo com que devo servir Vossa Majestade no emprego de Juiz dos Feitos, que atualmente ocupo, me obriga a por na presença de Vossa Majestade o grande dano que se segue a Real Fazenda na execução de uma Ordenação do Reino. As grandes distâncias deste continente e a falta de tabelião fizeram com que os primeiros habitantes daqui introduzissem o ato de celebrarem seus contratos por escritos particulares. Este costume, introduzido no princípio por uma desculpável necessidade passou ao excessivo abuso de praticar nas mesmas vilas onde havia tabeliões de notas, e o mais é que passou a ser autorizado por sentenças dos juízes que atendendo mais ao uso, do que as leis julgarão por certo ainda quando as partes impugnavam a sua validade. Foi Vossa Majestade servida ordenar que não se julgasse mais pelos costumes introduzidos contra a aplicação das leis, declarando a todos como abusos. Por virtude de tão sábia legislação se principiou a absorver a todos os devedores que eram declarados por sem obrigação e estas sentenças se tem confirmado na relação do continente. Daí vem que se devem respeitar como perdidas quase todas as dívidas contraídas nesta capitania o que resulta em um grande dano aos 161 162 Arquivo Público Mineiro: Coleção casa dos contos (CC), cx. 57, doc 30496. Biblioteca Nacional (BB), 1-25,02,039, documento número 53. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 227 particulares e à Real Fazenda de Vossa Majestade. Assim, eu me vejo nas circunstâncias de sentenciar conforme a lei em dano da Fazenda de Vossa Majestade163. Este último parecer nos mostra que Xavier Gil Pujol está certo ao afirmar que muitas vezes foram os encarregados de aplicar a justiça no mundo local que tiveram de se adaptar aos valores da comunidade (PUJOL, 1991: 132). Vemos que, neste caso descrito por Tomás Antônio Gonzaga, tal adaptação era necessária para os interesses da própria Coroa, mostrando-nos que por mudar antigas e arraigadas práticas, as tentativas de normatização acabavam por gerar uma série de situações peculiares e conflituosas. O parecer nos mostra também que que mesmo nas últimas décadas do XVIII a questão do direito comum estava longe de ser resolvida e que não havia um poder que poderíamos chamar de “absoluto”. De fato pudemos observar que em sua vida de magistrado, assim como fez em seus textos teóricos e poéticos deste a juventude, Tomás Antônio Gonzaga encontrava-se dividido entre um ideal de Estado forte e centralizado por meio da lei, e o uso dos costumes e práticas comuns no mundo da justiça. Pois bem, a partir da atitude de Gonzaga diante dos conflitos e relações de sua época, pudemos observar como fenômenos de seu tempo refletiam em sua trajetória, tornando-o assim um convincente exemplo das incertezas político-jurídicas do Império Português do século XVIII. Fontes Impressas: GONZAGA, Tomás Antônio. Cartas Chilenas. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. GONZAGA, Tomás Antônio. Tratado de Direito Natural. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1957. Fontes Manuscritas: Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa (AHU), caixa 124, documento 1, rolo 110. Arquivo Histórico Ultramarinho (AHU), documentos relativos à Minas Gerais:cx 124, doc. 2. Arquivo Público Mineiro: Fundo da Câmara Municipal de Ouro Preto (CMOP), cx 58, doc 22. Arquivo Público Mineiro (APM), Fundo da Câmara Municipal de Ouro Preto, Caixa 60, documento 19. Arquivo Público Mineiro (APM), Coleção Casa dos Contos (CC), caixa 10, documento 10201. Arquivo Público Mineiro: Coleção casa dos contos (CC), cx. 57, doc 30496. Biblioteca Nacional (BB), 1-25,02,039, documento número 53. Fontes na Internet: 163 Arquivo Público Mineiro (APM), Coleção Casa dos Contos (CC), caixa 10, documento 10201 de 09-091786. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 228 Código Filipino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal. Livro Primeiro. Título LIX. Pg.112. In: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/. Bibliografia Citada: ANTUNES, Álvaro de Araújo. Administração da justiça nas Minas setecentistas. In: REZENDE, Maria Efigênia Lage de & VILLALTA, Luís Carlos (orgs). História de Minas Gerais: As Minas Setecentistas Volume 1. Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo, 2007. BICALHO, Maria Fernanda. Elites coloniais: a nobreza da terra e o governo das conquistas. História e historiografia. In: MONTEIRO, Nuno Gonçalo F.; CARDIM, Pedro & CUNHA, Mafalda Soares da (orgs). Optima Pars: Elites Ibero-Americanas do Antigo Regime. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais (ICS), 2005. FURTADO, Júnia Ferreira. Diálogos Oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para o império marítimo português no século XVIII. In: BICALHO, Maria Fernanda; FURTADO, Júnia Ferreira & SOUZA, Laura de Mello e (orgs). O Governo dos Povos. São Paulo: Alameda, 2009 GIL PUJOL, Xavier. Centralismo e localismo. Sobre as relações políticas e culturais entre capital e territórios nas monarquias européias dos séculos XVI e XVII. Penélope: Fazer e Desfazer História, n. 6, Lisboa, 1991. HESPANHA, Antônio Manuel. Por que foi “portuguesa” a expansão portuguesa ou O revisionismo nos trópicos. In: BICALHO, Maria Fernanda; FURTADO, Júnia Ferreira & SOUZA, Laura de Mello e (orgs). O Governo dos Povos. São Paulo: Alameda, 2009, pg. 45. XAVIER, Ângela e HESPANHA, Manuel. A representação da sociedade e do poder. In: MATTOSO, José (org). História de Portugal. O Antigo Regime (1620-1807) vol. IV. São Paulo: Editorial Estampa, 1994. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 229 Na esteia de um regressismo conservador: Joaquim José Rodrigues Torres e a presidência da província do Rio de Janeiro (1834-1836) Lívia Beatriz da Conceição Doutoranda em História Social pela UFRJ/ FAPERJ - Nota 10 liviabeatrizd@ig.com.br Resumo: Este artigo pretende fazer uma análise sobre as propostas de ação política de Joaquim José Rodrigues Torres como presidente da província do Rio de Janeiro. Em diálogo com os usos do biográfico, o personagem em questão é tomado como o fio da narrativa para pensarmos sobre alguns assuntos relacionados à recém instaurada administração provincial, num momento de emergência do regressismo como movimento político de defesa de algumas reformas e ações. Para tanto, nos utilizaremos de seus dois relatórios dirigidos à Assembléia Legislativa Provincial, construindo uma problematização acerca dos seus projetos de experimentação política enquanto presidente de província, com vias à formação do povo e da nação do jovem império em constituição. Palavras-chave: História Política, Biografia, Império do Brasil. Résumé: Dans cet article nous réalisons une analyse des propositions d´action politique de Joaquim José Rodrigues Torres comme président de province à Rio de Janeiro. Nous avons choisi ce personnage pour penser sur quelques sujets liés à l´administration provinciale, dans un moment d´émergence du pensement régressif comme mouvement politique qui a défendu des réformes. Nous nous utilisons de deux rapports qu´il a envoyé pour l´Assemblée Législative Provinciale pour construire une analyse sur ses projets comme président de province, qui avaient comme objectif former le peuple et la nation du jeune empire qui était en construction. Mots-clé: Histoire politique, biographie, Empire du Brésil. Que fontes de riquezas e prosperidade borbulham, Srs., em todos os pontos do nosso país!! Que risonho futuro nos aguarda, se a Divina Onipotência, livrandonos dos abalos, e comoções políticas, inspirar-nos assaz constância, e esforço para mantermos as formas governativas, que possuímos, e com elas os benefícios da paz, e duradoura tranqüilidade!!164 Estas idéias cunhadas por Joaquim José Rodrigues Torres encontram-se presentes em seu segundo relatório enviado à Assembléia Legislativa Provincial fluminense. Rodrigues Torres assumiu a presidência da província do Rio de Janeiro em outubro de 1834, dois meses após a promulgação do Ato Adicional de 12 de agosto do mesmo ano. Neste artigo, defendemos a idéia de que através de seus dois relatórios enviados à assembléia provincial, o primeiro de 1º de fevereiro de 1835 e o outro de 1º de março de 1836, esse personagem teve uma peculiar oportunidade de trazer ao debate assuntos considerados por ele da mais urgente resolução! Momento singular de construção e 164 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “s/título, 1836”, p. 24 (disponível em www.crl.edu/brazil). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 230 discussão dos seus projetos de ação política para a recém criada administração provincial num contexto político específico de constituição do regressismo conservador e, a partir dele, de revisão das reformas consideradas como descentralizantes elaboradas nos anos iniciais das regências (BASILE, 2009). Tomamos seus relatórios, nesse sentido, como espaço não somente de discussão de questões relacionadas à como bem gerenciar o orçamento público da província, mas, sobretudo, como uma possibilidade de configuração de algumas de suas propostas de ação relacionadas a duas grandes questões consideradas por ele das mais importantes nesse momento de “tão funestas paixões”165: a manutenção da ordem política e social e a civilização/integração territorial da província; forjando assim em nível local projetos que se estenderiam a uma percepção de como o Estado imperial no Brasil deveria ser pensado. É nesse sentido, como procuraremos mostrar, que assuntos como o da Guarda Nacional, do culto público, a iluminação das ruas das vilas da província, a criação e/ou reparo das estradas, pontes, canais e das casas de caridade e a construção ou não de cadeias e casas de correção foram levados a ser debatidos na assembléia provincial. Livrar a província, e, por conseguinte o “país”, “dos abalos e comoções políticas”, conseguindo, a partir disso, “riqueza e prosperidade” e um “risonho futuro”; assim como “curar”166 da falta de civilização e integração a jovem pátria em formação. Essas eram, seguramente, algumas das suas principais estratégias de ação, assim como da facção regressista em constituição, conforme procuraremos problematizar nas linhas que se seguem. Ordenar, civilizar e integrar para prosperar! Em 12 de agosto de 1834 fora promulgado o ato complementar à Constituição de 1824167. Uma medida tida por alguns como muito descentralizadora, e que, logo após a sua aprovação, já seria revista por aqueles que o consideravam uma verdadeira “carta da anarquia”, nos dizeres de Bernardo Pereira de Vasconcelos, por se contrapor a uma ordem pública que deveria ser resguardada, e que poderia levar à tão temida fragmentação 165 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “Fala com que o presidente da Província do Rio de Janeiro o conselheiro Joaquim José Rodrigues Torres abriu a 1ª sessão da 1ª Legislatura da Assembléia Legislativa da mesma Província no dia 1º de fevereiro de 1835”. Niterói, Typ. de Amaral e irmão, 1850, p. 34 (disponível em www.crl.edu/brazil). 166 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “s/título, 1836”, p. 16 (disponível em www.crl.edu/brazil). 167 Ato Adicional de 1834. In: ANDRADE, Paulo Bonavides Paes de. História Constitucional do Brasil.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, pp. 593-600. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 231 territorial. Configurar-se-ia ele, assim, como um divisor de águas das ações empreendidas pelas facções políticas imperiais do período (BASILE, 2009). Uma de suas principais decisões dizia respeito à separação entre a província do Rio de Janeiro e a Corte, capital do Império. Passando aquela a ter administração própria, com capital em Niterói, determinações legais para a sua organização e gerenciamento precisavam e estavam sendo pensadas; e Joaquim José Rodrigues Torres, como seu primeiro presidente de província, tinha uma oportunidade ímpar, nesse contexto, de sugerir idéias, de “emitir” a sua “opinião”168, tecendo assim suas propostas de ação política para os mais diversificados assuntos relacionados à administração provincial, como a defesa da idéia da construção de uma casa de caridade na Vila de Magé, havendo, segundo ele, através desse ato um “asilo para os infelizes, que a fragilidade, ou a miséria e indigência de seus progenitores levaram a abandoná-los nas estradas e portas dos particulares, onde muitas vezes” terminavam “na aurora da existência dias que poderiam tornar-se úteis à Pátria”.169 A Câmara da Vila de Magé recorreria ao governo provincial solicitando uma ajuda de 500 mil réis para a realização desse projeto de criação de uma casa de caridade, e Joaquim José Rodrigues Torres considerou esse assunto de tão significativa importância que o levou para ser debatido na assembléia legislativa, afirmando que “algumas somas prestadas pelos cofres da Província, e engrossadas pela caridade de nossos concidadãos” poderiam “concorrer para o estabelecimento, ao menos em cada Comarca, de uma casa que” servisse “de refúgio à desvalida inocência dos expostos”.170 Desvalidos, infelizes, contudo inocentes estes que, com isso, teriam a chance de, ao serem resgatados de tamanha desgraça e abandono, tornarem-se verdadeiros “úteis à Pátria” em formação. Mas outro grupo de miseráveis e infelizes, todavia nada cândidos, assim não eram percebidos por nosso personagem. Quando o assunto eram os presos e a construção para estes de casas de correção, sua posição era bem diferente: Não me parece ainda praticável a construção de uma casa de correção em qualquer ponto da parte do território sobre que se estende a autoridade provincial. As somas que semelhante obra exigiria para ser acabada em poucos anos estão acima das 168 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “Fala com que o presidente da Província do Rio de Janeiro o conselheiro Joaquim José Rodrigues Torres abriu a 1ª sessão da 1ª Legislatura da Assembléia Legislativa da mesma Província no dia 1º de fevereiro de 1835”. Niterói, Typ. de Amaral e irmão, 1850, p. 1 (disponível em www.crl.edu/brazil). 169 Idem, Ibidem, p. 11 (disponível em www.crl.edu/brazil). 170Idem, Ibidem, p. 11 (disponível em www.crl.edu/brazil). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 232 forças dos cofres provinciais que aliás tem de acudir a despesas muito mais urgentes171. E o que fazer então com os condenados da província? Enviá-los para “a Capital do Império onde uma casa de correção se” estava “edificando”172. Uma forma certamente engenhosa de se ver livre dos desordeiros. Mas seria possível livrar-se de todos os que atentaram contra a segurança pública? Seguramente não! Por isso era sugerido ser “absolutamente necessário (...) a existência em cada Termo Municipal de uma prisão limpa, segura, e bem arejada, onde se” guardassem “os réus, que em virtude” da “Legislação Penal” deveriam “neles ser julgados e os que” fossem “condenados a simples prisão”.173 Aos que ficassem, era necessária segura vigilância e mínimas condições de estadia, através de “concertos e reparos das cadeias existentes”174; a exemplo da cadeia da vila de Magé, cuja “estreiteza e insalubridade”175 poderiam ser “perniciosas à saúde dos delinqüentes”176. Podemos nos arriscar a dizer que cadeias apertadas, insalubres e com falta de ventilação seriam um perigo não somente à saúde dos presos, mas às intenções desse sujeito da história de que esses homens da desordem bem guardados estivessem.177 No relatório de 1836, ficaria registrada por Joaquim José Rodrigues Torres a ação da assembléia provincial que no ano anterior havia posto a disposição do governo provincial “os armazéns da Armação que haviam sido requisitados com o fim de fazer-se ali a Cadeia” 178 da vila de Niterói. Considerada por Rodrigues Torres como uma “obra de urgente e absoluta precisão” 179, ele prestava esclarecimentos sobre a “despesa orçada” e afirmava ser “evidente a necessidade de marcar no Orçamento do ano futuro a consignação que” era “de mister para o seu completo acabamento, ou ainda” que ele fosse autorizado “a empregar nesta obra o que” pudesse “sobejar em outros títulos da despesa do ano financeiro corrente”.180 Neste mesmo relatório, ponderações foram feitas a respeito da construção das cadeias das vilas de Itaboraí, Maricá, Campos e do termo de Rezende, assim como sobre o 171Idem, Ibidem, pp. 11-12 (disponível em www.crl.edu/brazil). Ibidem, p. 12 (disponível em www.crl.edu/brazil). 173Idem, Ibidem, p. 12 (disponível em www.crl.edu/brazil). 174Idem, Ibidem, p. 12 (disponível em www.crl.edu/brazil). 175Idem, Ibidem, p. 13 (disponível em www.crl.edu/brazil). 176Idem, Ibidem, p. 12 (disponível em www.crl.edu/brazil). 177 Para uma discussão a respeito do funcionamento do “poder disciplinar” nas casas de correção vista, assim, como uma “instituição disciplinar”, ver FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. 178 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “s/título, 1836”, p. 11 (disponível em www.crl.edu/brazil). 179Idem, Ibidem, p. 11 (disponível em www.crl.edu/brazil). 180Idem, Ibidem, p. 12 (disponível em www.crl.edu/brazil). 172Idem, Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 233 reparo de outras que já existiam. Curiosa foi a forma através da qual a cadeia de Rezende estava sendo construída. Seus “habitantes” 181 haviam enviado a Joaquim José Rodrigues Torres um pedido, que ele considerava mais do que justo, de auxílio financeiro para terminarem a construção que eles próprios haviam iniciado. Através da “detenção dos criminosos” 182 do termo de Rezende, era opinião de seus habitantes, estaria assegurada, assim, a tranqüilidade pública em nível local. Nesse objetivo de manutenção da ordem política e social, outro assunto mereceu especial atenção de nosso personagem em seu primeiro relatório: a Guarda Nacional, cuja falta de armamento e desorganização era considerada um verdadeiro perigo! A sugestão era a de que “anualmente uma porção deste armamento [,] indispensável para que a força cívica” pudesse “em ocasião de necessidade prestar os serviços que” tinha “a pátria direito de esperar dela” 183, fosse sendo comprado. Tamanha era a preocupação de Joaquim José Rodrigues Torres com o segurança pública que além dessas estratégias de ação políticas outra se fazia urgente: a iluminação das ruas das vilas da província. Duas delas mereceram especial atenção no relatório de 1835, a Vila de Campos e a da Praia Grande, capital provincial. A primeira pela “crescida população e [seu] comércio”184; e a da Praia Grande “não só pela sua extensão e crescida população, mas ainda pela circunstância de ser continuamente freqüentada por grande número de pessoas Nacionais e Estrangeiras de todas as classes”185. A iluminação das vilas, em sua opinião, traria “não só comodidade para os habitantes e pessoas que (...) [as] transitam, mas ainda facilidade para a manutenção da tranqüilidade e polícia da povoação”!186 A atenção dada à preservação da ordem política e social do império em formação não era uma exclusividade de Rodrigues Torres em sua atuação enquanto presidente de província. Aqui, porém, ele e seu espaço particular de experimentação política que foi a província do Rio de Janeiro são tomados como o fio da trama para podermos pensar nessa questão inclusive em escala mais ampla. 181 Idem, Ibidem, p. 12 (disponível em www.crl.edu/brazil). Ibidem, p. 12 (disponível em www.crl.edu/brazil). 183 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “Fala com que o presidente da Província do Rio de Janeiro o conselheiro Joaquim José Rodrigues Torres abriu a 1ª sessão da 1ª Legislatura da Assembléia Legislativa da mesma Província no dia 1º de fevereiro de 1835”. Niterói, Typ. de Amaral e irmão, 1850, p. 14 (disponível em www.crl.edu/brazil). 184Idem, Ibidem, p. 15 (disponível em www.crl.edu/brazil). 185Idem, Ibidem, p. 15 (disponível em www.crl.edu/brazil). 186Idem, Ibidem, p. 15 (disponível em www.crl.edu/brazil). 182Idem, Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 234 Joaquim José Rodrigues Torres e outros tantos personagens desses chamados “anos da ordem” (MATTOS, 2005) representaram “os elementos de uma geração de construtores do Império cujas trajetórias interagiram diretamente com a afirmação do projeto regressista/conservador [em constituição] na consolidação do Estado Imperial” no Brasil (GONÇALVES, 1985: 89-90). Facção regressista esta que se formava em oposição às medidas consideradas por eles muito liberalizantes, como o Código do Processo Criminal de 1832 e o Ato Adicional de 1834 (BASILE, 2009), e que, devido a isto, estariam sendo possibilitadoras de uma idéia equivocada de liberdade (CONCEIÇÃO, 2004). Homens como Bernardo Pereira de Vasconcelos187, que passaram a defender que deveria haver um novo equilíbrio entre a autoridade do Estado e as liberdades políticas. Esta nova autoridade, mais conservadora/centralizadora, devia ser garantida porque este era visto como o único meio para a consolidação da ordem e para a preservação da unidade territorial do Império, ameaçadas pelos constantes conflitos sociais do período.188 Entre os anos de 1835 e 1837, cresceria a idéia entre estes que se denominavam regressistas de que estaria havendo uma incompatibilidade entre a administração localista e a preservação das liberdades civis. As liberdades permitidas esbarravam, desta forma, no limite da desordem política e no perigo da fragmentação.189 Nessa conjuntura de disputas e, certamente, de incertezas, as ações empreendidas por Joaquim José Rodrigues Torres como presidente da província do Rio de Janeiro deveriam ser inovadoras e eficazes no objetivo de elaborar uma revisão conservadora das reformas 187 Assim como, a título de exemplo, Carneiro Leão, Araújo Lima, Miguel Calmon e, mais tarde, Paulino José Soares de Souza e Eusébio de Queiróz. 188 Como, por exemplo, a Cabanagem no Pará, a Farroupilha no Rio Grande do Sul, a Sabinada em Salvador, a Balaiada no Maranhão e o emblemático Levante dos Malês na Bahia. Para uma discussão sucinta a respeito dessas revoltas ver, por exemplo, MOREL, Marco. O período das Regências, (1831-1840). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. Segundo este autor “nenhum momento da história do Brasil concentrou tanta violência num tempo tão curto e em extensões de terra tão largas quanto essa fase da monarquia. Violência social e política. (...) A engrenagem nacional centralizadora, modernizante e defensora da ordem social, urdia por agentes históricos, incorpora e homogeneíza os multifacetados rebeldes, não somente eliminando-os, mas digerindo-os e assimilando os pedaços partidos na busca de uma nação próspera e desigual”. Idem, Ibidem, p. 65-66. Marcelo Basile apresenta um quadro das revoltas do período em BASILE, Marcelo. O laboratório da nação: a era regencial (1831-1840). In: GRINBERG, Keila e SALLES, Ricardo. O Brasil Imperial, volume II: 1831-1870. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p.69. Essa mudança de posição política fora conseqüência também de outro fator. Não havia mais o porquê do medo de uma ameaça “restauradora” a qual suas novas idéias poderiam levar, uma vez que D. Pedro I havia falecido em Portugal no ano anterior. 189 Ilmar Mattos caracteriza este período do final dos anos trinta até o ano de 1852 como o período da reação conservadora; com o “avanço do princípio da autoridade”, ou seja, da prevalência do Executivo. Mas não seria um absolutismo, já que “não implicava a eliminação da liberdade, e sim a sua requalificação”, num contexto de desordem social, que demonstrava os limites dessa liberdade. MATTOS, Ilmar. O tempo saquarema: a formação do Estado Imperial. Rio de Janeiro: ACCESS, 1994, p. 131. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 235 descentralizantes, promulgadas nos anos iniciais das regências, buscando por uma liberdade dentro da ordem e garantidora, assim, da unidade territorial.190 Nesse objetivo, nenhum outro assunto mereceu tanto a sua atenção em seus meses iniciais enquanto presidente de província do que a questão da criação e/ou reparo das estradas, pontes e canais: Em um País exclusivamente agrícola, como o nosso, onde até a indústria comercial das grandes Cidades é inteiramente vivificada pelo trabalho rural; o meio que há para com melhor resultado promover-se o aumento da riqueza pública é, sem dúvida, depois da segurança pessoal e de propriedade, o estabelecimento de meios de fácil comunicação. Bem conheço que mal serão suficientes nossos recursos pecuniários para concertar e melhorar as estradas que temos; mas também a época parece aproximar-se em que o espírito de associação para empresas desse gênero começa no nosso abençoado Pais a produzir os mesmos efeitos que tem opulentado outras nações191. A “riqueza pública” e uma aproximação possível do ideal de civilização de “outras nações”, idéia que aprofundaremos abaixo, far-se-ia assim a partir do “estabelecimento de meios de fácil comunicação”. Nota-se, contudo que, antes das estradas, esta magnificência se faria através da “segurança pessoal e de propriedade”. Uma de suas sugestões para que o “estado deplorável de quase todas as estradas da Província”192 fosse amenizado seria “a criação de uma administração especial e local convenientemente organizada, e com rendas privativamente destinadas aos [seus] consertos e reparações”193, sendo este “um dos grandes benefícios que a Assembléia Legislativa” poderia “fazer à indústria e agricultura”194 provincial. 190 Segundo Marcel Basile, “o governo centralizado não era mais entendido como sinônimo de despotismo, e sim, ao contrário, como único capaz de garantir a liberdade, ao conter os arbítrios dos poderes locais facciosos”. BASILE, Marcelo. Op.Cit., p. 93. De acordo com Marco Morel, para o liberalismo moderado, cujos preceitos muitos dos adeptos do regressismo defendiam, “a definição de liberalismo (...) [passava] pela preocupação de fixar os limites da liberdade. [Esses limites deveriam] partir da lei, da Constituição, mas também de um Estado forte (...) sem rupturas com a ordem”. MOREL, Marco. As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na cidade imperial (1820-1840). São Paulo: Hucitec, 2010, p. 121. 191 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “Fala com que o presidente da Província do Rio de Janeiro o conselheiro Joaquim José Rodrigues Torres abriu a 1ª sessão da 1ª Legislatura da Assembléia Legislativa da mesma Província no dia 1º de fevereiro de 1835”. Niterói, Typ. de Amaral e irmão, 1850, p. 34 (disponível em www.crl.edu/brazil). 192Idem, Ibidem, p. 26 (disponível em www.crl.edu/brazil). 193Idem, Ibidem, p. 6 (disponível em www.crl.edu/brazil). No relatório de 1836, Rodrigues Torres fala em “uma administração privativa” para administrar não somente as estradas, mas todas as demais “obras da Província”. Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “s/título, 1836”, p. 25 (disponível em www.crl.edu/brazil). Ainda que esta renda privada viesse de capital externo, como no caso da abertura do Canal de Campos à Macaé. Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “s/título, 1836”, p. 24 (disponível em www.crl.edu/brazil). 194 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “Fala com que o presidente da Província do Rio de Janeiro o conselheiro Joaquim José Rodrigues Torres abriu a 1ª sessão da 1ª Legislatura da Assembléia Legislativa da mesma Província no dia 1º de fevereiro de 1835”. Niterói, Typ. de Amaral e irmão, 1850, p. 6 (disponível em www.crl.edu/brazil). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 236 Apesar de Joaquim José Rodrigues Torres ter tido “pouco tempo (...) para calcular o total das despesas que seus reparos e melhoramentos”195 exigiam, esta seria, a seu ver, uma das “primeiras necessidades”196, qual seja: a de tratar “dos meios de facilitar a condução dos produtos do interior da província para os diferentes mercados”197. Produtos como o café, que sendo produzido como exemplo no distrito de São João do Príncipe e suas vizinhanças, precisava ser levado por uma estrada a ser consertada na Vila de Mangaratiba até seu porto para ser escoado para o restante da província. Grande parte do relatório de 1835 foi dedicado a este tema. Estas eram requisições das Câmaras Municipais das vilas de Itaboraí, Macacú, Magé, Praia Grande, Campos, Ilha Grande, Barra Mansa, Valença, Rezende, Paraíba do Sul, Vassouras, Nova Friburgo, Cantagalo, além da própria vila de Mangaratiba e do distrito de São João de Príncipe.198 Parte significativa do relatório de 1836 também se deteve nessa questão da construção e/ou reparo das estradas, pontes e canais como referentes à parte das “obras públicas [que] mais” reclamavam “o estado da Província”199. O café, ponderava Rodrigues Torres, era o produto mais rentável para os cofres provinciais, com o dízimo sobre este produto tendo aumentado significativamente no primeiro semestre do ano200. E assim vinha ocorrendo desde pelo menos 1833, questionando-se ele sobre “quem” poderia saber “quanto de contínuo aumento (...) a cultura deste rico produto” seria “permitido pensar”201. No entanto, reconhecia ele “uma verdade”202: O grande número de estradas, que em todos os sentidos cortam a Província, e o mal estado da maior parte delas, não permite ocuparmo-nos de repará-las simultaneamente: mais vale abandonar algumas, e curar de tornar as outras transitáveis, do que conservá-las todas no estado atual. Escolher as mais necessárias para facilitar as comunicações do interior, e promover os interesses da agricultura, e do comércio: e, sem pretendermos por ora torná-las perfeitas estradas, darmo-nos pressa em repará-las; e fazer-lhes os melhoramentos compatíveis com as faculdades da Província, estabelecendo depois barreiras nos 195Idem, Ibidem, pp. 26-27 (disponível em www.crl.edu/brazil). Ibidem, p. 7 (disponível em www.crl.edu/brazil). 197 Idem, Ibidem, p. 7 (disponível em www.crl.edu/brazil). 198 Estas demandas, certamente, relacionavam-se à expansão dos cafezais na região fluminense. Ver a respeito em SALLES, Ricardo. E o vale era o escravo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. 199 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “s/título, 1836”, p. 16 (disponível em www.crl.edu/brazil). 200 Segundo Arnaldo Fazoli Filho, a partir de 1835, o café “começava a representar o primeiro produto na pauta das exportações” do Império. FAZOLI FILHO, Arnaldo. O período regencial. São Paulo: Editora Ática, 1994, p. 31. 201 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “s/título, 1836”, p. 27 (disponível em www.crl.edu/brazil). 202Idem, Ibidem, p. 16 (disponível em www.crl.edu/brazil). 196Idem, Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 237 lugares mais apropriados, cujas taxas (que devem ser mui módicas) se apliquem para a conservação das estradas respectivas203. Joaquim José Rodrigues Torres sugeriria então quais seriam aquelas que fariam parte de seu projeto de ação política, figurando-se como “as mais necessárias para facilitar as comunicações do interior, e promover os interesses da agricultura, e do comércio” da província: a do Termo de Cartagalo, a estrada do Comércio, da Estrela, de Itaguaí e a da Polícia. Retornava também ao debate a estrada que ligava São João do Príncipe a Mangaratiba204, vista como sendo: Incontestável sua grande utilidade: (...) [bastava] para reconhecê-la atender quanto é mais fácil aos Lavradores deste Município, e dos lugares circunvizinhos, enviarem seus produtos à Mangaratiba, em vez de mandar a outros portos muito mais distantes, ao que (...) [eram] todavia amiudadas vezes forçados, mormente na estação chuvosa, por evitarem os incômodos e prejuízos que lhes resultavam (...) do mau estado do caminho205. Na vila de Paraíba do Sul, a Câmara Municipal alegava que a construção de uma ponte sobre o rio que levava o mesmo nome não seria muito “dispendiosa à Fazenda Pública, não só porque” havia “ali pedra em abundância, mas ainda pela boa vontade dos Povos visinhos em concorrerem em donativos para auxílio da construção”206 dela. A participação dos “Cidadãos”207 da província na construção desse relatório não ocorreu apenas a partir de oferecimento de ajuda financeira para a concretização de obras públicas, mas, inclusive, através de pedidos enviados diretamente a Joaquim José Rodrigues Torres: Há poucos dias chegou-me às mãos uma representação de vários Cidadãos da Vila da Ilha Grande em que fazendo-me constar haver-se promovido uma subscrição entre os habitantes do lugar para concerto das estradas que daquela vila se dirigem às de São João de Príncipe, e Rezende, ao Bananal e Áreas, de cuja direção se achavam pelos subscritores encarregados, pediam ao Governo da Província uma cota mensal para o mesmo fim208. 203Idem, Ibidem, p. 16 (disponível em www.crl.edu/brazil). Sobre as pontes citadas no relatório de 1836, Rodrigues Torres sugeria a construção e/ou reparo destas sobre os rios Paraíba, Sarapui, Palmitar, Santa Anna, Itaguaí e Teixeira. Nota-se que a maior parte dessas pontes seriam construídas sobre os rios que atravessavam as estradas “cujos reparos (...) (deveriam, em sua opinião,) por agora serem preferidos”. Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “s/título, 1836”, p. 17 (disponível em www.crl.edu/brazil). 205 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “s/título, 1836”, p. 21 (disponível em www.crl.edu/brazil). 206 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “Fala com que o presidente da Província do Rio de Janeiro o conselheiro Joaquim José Rodrigues Torres abriu a 1ª sessão da 1ª Legislatura da Assembléia Legislativa da mesma Província no dia 1º de fevereiro de 1835”. Niterói, Typ. de Amaral e irmão, 1850, p. 25 (disponível em www.crl.edu/brazil). 207 Idem, Ibidem, p. 23 (disponível em www.crl.edu/brazil). 208Idem, Ibidem, p. 23 (disponível em www.crl.edu/brazil). 204 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 238 Pedido encaminhado à Assembléia Legislativa Provincial e prontamente atendido pelo seu então presidente de província, que já no mês de março seguinte enviava essa “cota” para o “concerto das estradas que d’Angra dos Reis” conduziam “aos Municípios de S. João do Príncipe, Areias e Bananal (...)”209. Obra esta que estava tendo “regular andamento”, de acordo com as informações enviadas a Rodrigues Torres pelo “Cidadão João Pedro de Almeida, encarregado de sua administração”210. Nesse sentido, os relatórios enviados à Assembléia Legislativa Provincial, com os assuntos considerados dos mais “urgentes”211, são construídos por Joaquim José Rodrigues Torres a partir de um diálogo estreito não somente com os pedidos das respectivas câmaras municipais, mas também a partir de reivindicações diretas dirigidas a ele pelos próprios “Cidadãos” da província.212 Chamamos atenção para este fato com o objetivo de pensarmos sobre a idéia de que, como presidente de província, o nosso indivíduo-personagem não impunha o que precisava ser feito. Negociações certamente eram construídas entre esses sujeitos, num jogo relacional onde se estabelecia uma diferença entre quais eram os seus projetos de ação política e o que era possível de ser posto em prática (VELHO, 1994), entrando aí também seguramente em pauta o fato de que esses relatórios precisavam ser discutidos e aprovados pela assembléia provincial. Um exemplo disso foi a sua idéia de “abertura do canal da Nogueira ao Norte do Rio Paraíba, no Termo de Campos”213. A obra “continuou até ao mês de Junho do mesmo ano [1835]; época em que se mandou sobrestar nos trabalhos, por se oporem alguns proprietários da margem do rio, a que o canal passasse por suas terras”214. Julgando “a utilidade de obra tal”215, Joaquim José Rodrigues Torres elaborou a seguinte manobra: além dos gastos já orçados para a abertura do canal listados no relatório do ano anterior (1835); 209 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “s/título, 1836”, p. 21 (disponível em www.crl.edu/brazil). 210 Idem, Ibidem, p. 21 (disponível em www.crl.edu/brazil). 211 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “Fala com que o presidente da Província do Rio de Janeiro o conselheiro Joaquim José Rodrigues Torres abriu a 1ª sessão da 1ª Legislatura da Assembléia Legislativa da mesma Província no dia 1º de fevereiro de 1835”. Niterói, Typ. de Amaral e irmão, 1850, p. 34 (disponível em www.crl.edu/brazil). 212 Sobre o conceito de cidadão nesse momento, e suas mudanças, entre o final do século XVIII e meados do século XIX no Brasil, ver: SANTOS, Beatriz Catão Cruz e FERREIRA, Bernardo. Cidadão. In: FERES JÚNIOR, João. Léxico da História dos conceitos políticos no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, pp. 4364. 213 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “s/título, 1836”, p. 22 (disponível em www.crl.edu/brazil). 214 Idem, Ibidem, p. 22 (disponível em www.crl.edu/brazil). 215Idem, Ibidem, p. 22 (disponível em www.crl.edu/brazil). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 239 no relatório do ano seguinte (1836) ele deliberava “progredir na continuação do Canal”216 através de uma “indenização”217 aos proprietários para a “desapropriação do terreno necessário”218. Uma despesa extra que ele procurava justificar devido à importância da referida obra, e que poderia ser “compensado pelo produto das taxas, que” era “de justiça” serem “impostas sobre as Embarcações que o”219 navegassem. Outro indício de que os “Cidadãos”220 desse império em construção participaram ativamente da elaboração desses relatórios, e, por conseguinte, da própria constituição das estratégias de ação de nosso personagem-mediador221, foi o caso já citado acima sobre a construção de uma cadeia no Termo de Rezende. Ou ainda o pedido encaminhado a Rodrigues Torres por “um grande número de habitantes do Sertão da Nogueira, representando ao Governo sobre a vantagem, se não necessidade de um caminho que” facilitasse “a comunicação (...) daqueles férteis lugares com a Cidade de Campos”222. Eles ofereciam a Joaquim José Rodrigues Torres abrir esse caminho com suas despesas, se lhes fosse permitido. Idéia prontamente aceita, devido à “incontestável vantagem do referido caminho”223, que levou a uma ordem de “desapropriação dos terrenos por onde” tinham “eles de passar; cujos proprietários pela mor parte os” cediam “voluntariamente cônscios do aumento que daí lhes” resultaria “para suas terras e mais propriedades”224. Uma astuta e delicada negociação precisava e estava sendo construída em suas ações como presidente da província fluminense. A própria abertura à possibilidade desses canais 216 Idem, Ibidem, p. 22 (disponível em www.crl.edu/brazil). Ibidem, p. 22 (disponível em www.crl.edu/brazil). 218Idem, Ibidem, p. 22 (disponível em www.crl.edu/brazil). 219Idem, Ibidem, p. 22 (disponível em www.crl.edu/brazil). 220 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “Fala com que o presidente da Província do Rio de Janeiro o conselheiro Joaquim José Rodrigues Torres abriu a 1ª sessão da 1ª Legislatura da Assembléia Legislativa da mesma Província no dia 1º de fevereiro de 1835”. Niterói, Typ. de Amaral e irmão, 1850, p. 23 (disponível em www.crl.edu/brazil). 221 Trabalhamos aqui com uma perspectiva dialógica da escrita biográfica como forma de conhecimento histórico, defendendo que para se entender as ações de um dado sujeito histórico em sociedade se faz de suma importância que nos preocupemos em perceber e analisar as redes de sociabilidade nas quais ele se acha inscrito. Nesse sentido, Rodrigues Torres, “como qualquer indivíduo, se encontra inscrito em uma rede social específica definida por relações herdadas ou tecidas ao longo de sua vida (...). Ele não escapou à rede de obrigações, de expectativas e de reciprocidade que caracterizam a vida social”. SOUZA, Adriana Barreto de. Duque de Caxias:o homem por trás do monumento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 34. O conceito de mediador remete-se as reflexões de Gilberto Velho e Karina Kuschnir em Mediação. Cultura e política. 222 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “s/título, 1836”, p. 23 (disponível em www.crl.edu/brazil). 223Idem, Ibidem, p. 23 (disponível em www.crl.edu/brazil). 224Idem, Ibidem, p. 23 (disponível em www.crl.edu/brazil). 217Idem, Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 240 de comunicação entre as regiões provinciais serem taxados é exemplo disso225. Idéia esta proposta por Joaquim José Rodrigues Torres ainda no relatório de 1835, tornada lei pelo artigo 4º da Lei Provincial de 14 de abril do mesmo ano - poucos meses após a sua primeira fala à sssembléia legislativa em fevereiro- e que lhe resultou em alguns aborrecimentos. No relatório de 1836, ele prestaria esclarecimentos à assembléia provincial do porque “a organização de um adequando sistema de barreiras para as diferentes estradas da Província, ajuntando-lhes a tarifa das taxas que nelas se devem pagar”226 não estava em processo. Sua explicação do porque não ter procedido como determinava a legislação, pedindo “permissão de adiar ainda a organização de semelhante trabalho”227, era a de que “as informações em que” devia “fundar-se um tal sistema” demandavam “acurados exames, que não” tinham “sido ainda possível finalizar, e nem mesmo” parecia “de justiça que se” estabelecesse “barreiras senão depois de consertarem-se as respectivas estradas228”. Assim, o valor das experiências de nosso indivíduo-mediador são tomadas aqui como um campo de possíveis de configurações de suas ações, escolhas e, certamente, limitações (GONÇALVES, 2009); uma vez que escrever sua história de vida é estar sempre atento aos projetos e desejos que ele e outros tantos diferentes atores que com ele estabeleceram relações construíram e desconstruíram com o passar do tempo (GOMES, 2009).229 Não é nosso objetivo aqui falarmos sobre o lugar da indústria, do comércio e da agricultura mercantil-escravista na estratégia de ação política de Joaquim José Rodrigues Torres como presidente de província230. O que gostaríamos de chamar a atenção é para o fato de que assim como as estradas, pontes e canais eram, seguramente, utilizadas para o escoamento desses produtos, o eram para a circulação de pessoas e idéias e para a 225 Idéia já aqui levantada por algumas das situações tratadas, como o exemplo da abertura do canal da Nogueira ao Norte do Rio Paraíba, no Termo de Campos. 226 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “s/título, 1836”, p. 26 (disponível em www.crl.edu/brazil). 227Idem, Ibidem, p. 26 (disponível em www.crl.edu/brazil). 228Idem, Ibidem, p. 26 (disponível em www.crl.edu/brazil). 229 Ideia esta também cunhada por Gilberto Velho como forma de evitarmos, numa análise sobre trajetórias e biografias, “um voluntarismo individualista agonístico ou um determinismo sociocultural rígido”. VELHO, Gilberto. Op.Cit., p.40. 230 Para uma discussão a respeito ver, por exemplo, DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interiorização da metrópole. In: MOTA, C. G. (org.) 1822: Dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1972, pp. 160-184. Este texto é importante para entendermos a expansão desse feixe de relações pelo centro-sul da América Portuguesa, o que inclui o sul de Minas Gerais. Ver também LENHARO, Alcir. As tropas da moderação. O abastecimento da Corte na formação política do Brasil, 1808-1842. 2ª ed. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1993; MATTOS, Ilmar. A região de agricultura mercantil-escravista. In: MATTOS, Ilmar. Op.Cit., pp. 45-91; FRAGOSO, João. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992 e SALLES, Ricardo. E o vale era o escravo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 241 construção em nível local de um projeto de integração territorial que se queria “nacional”.231 O micro-espaço provincial de exercício de algumas idéias de ação política de nosso personagem em muito, certamente, tinha correlação com um escala maior de percepção de que Estado era este que deveria ser criado232, onde a integração territorial era percebida como um dos meios através dos quais a nação imaginada Brasil estava sendo formada (ANDERSON, 1989). Em suas palavras: Estender-me, Senhores, sobre a necessidade da abertura e conservação de meios que facilitem o transporte dos produtos da nossa agricultura, e tornem mais rápidas as comunicações, e as viagens do comércio interior, fora por certo mais do que ocioso. Ninguém há aí que hoje desconheça quanto a riqueza e a civilização de um País cresce na razão direta de seus meios de comunicação.233 Assim, na esteira de um regressismo conservador, para Joaquim José Rodrigues Torres, civilizar era integrar; e integrar era aproximar-se de um ideal de civilização e riqueza, e, certamente, com isso afastar o perigo da fragmentação política; a ponto desta idéia, a seu ver, ter a força de pôr fim às dissidências dentro tanto da própria assembléia legislativa quanto do corpo social: Os esforços que empregardes em promover nossa nascente indústria não só acrescentarão a riqueza e prosperidade material desta província, mas podem também concorrer para diminuir e ao fim fazer de todo desaparecer do Solo Brasileiro os funestos efeitos das discórdias civis. Vosso exemplo, Legisladores, pode servir de estímulo a nossos compatriotas. Vós lhes mostrareis por certo o majestoso espetáculo da concórdia de cidadãos que sabem esquecer dissentimentos políticos para reunidos oferecerem à Pátria o tributo de suas lucubrações.234 Firmando que: A vós, Senhores, cumpre alentar o seu desenvolvimento, e enquanto lamentáveis dissensões políticas e ódios de partidos continuar ainda a desunirnos, será para vós glorioso mostrardes o meio de dar útil distração a tão funestas paixões.235 231 De acordo com Ilmar Mattos, “impossibilitado de expandir suas fronteiras, o Estado imperial era obrigado a empreender uma expansão diferente: uma expansão para dentro”. MATTOS, Ilmar. Construtores e herdeiros: a trama dos interesses na construção da unidade política. Almanack Braziliense. Maio 2005, p. 26. 232 Recorremos aqui ao método microanalítico. Ver, por exemplo, REVEL, Jacquel (Org.). Jogos de Escalas:a experiência da micro-análise. Rio de Janeiro. FGV, 1998. 233 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “Fala com que o presidente da Província do Rio de Janeiro o conselheiro Joaquim José Rodrigues Torres abriu a 1ª sessão da 1ª Legislatura da Assembléia Legislativa da mesma Província no dia 1º de fevereiro de 1835”. Niterói, Typ. de Amaral e irmão, 1850, p. 15 (disponível em www.crl.edu/brazil). 234Idem, Ibidem, pp. 34-35 (disponível em www.crl.edu/brazil). Grifos nossos. 235Idem, Ibidem, p. 34 (disponível em www.crl.edu/brazil). Grifos nossos. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 242 Não por acaso, dentre “todas as necessidades e providências que” reclamava “a Província”236, “o primeiro lugar”237 no projeto de ação política de Joaquim José Rodrigues Torres era ocupado por esse tema, qual seja, o da unidade territorial como recurso simbólico238 de pôr fim aos “funestos efeitos das discórdias civis”, num contexto específico de disputas e de incertezas e da emergência do regressismo como movimento político na defesa de ações como esta. Exatamente por isso o custo desta ação, nos seus dizeres, “produziria vantagens mui superiores aos sacrifícios”239; sendo ele taxativo ao afirmar que “o melhoramento de estradas e pontes” seria “um dos fins para que a Assembléia Legislativa Provincial” poderia “com mais vantagem pública usar a faculdade que lhe concedeu o 3º do artigo 11 da Carta de Lei de 12 de Agosto de 1834”240, ao possibilitar que se construísse através desse ato um “meio de dar útil distração a tão funestas paixões”. “Riqueza”, “civilização”, fim dos “dissentimentos políticos” e das “funestas paixões”, “o majestoso espetáculo da concórdia” entre os “cidadãos”, tudo isso a partir da construção e/ou recuperação das estradas, pontes e canais provinciais, numa construção simbólica do significado desse integrar os “compatriotas” dessa “Pátria” em formação. Nesse ínterim, outro tema que mereceu a atenção de Joaquim José Rodrigues Torres como presidente de província no relatório enviado à Assembléia Legislativa Provincial em 1836 foi o culto público. Nos seus dizeres, “a religião, cujos preceitos tanto” concorriam “para manter e estreitar os laços sociais, consolidar a ordem e firmar a moral pública, não” poderia “deixar de merecer (...) a mais solícita consideração”241 na lei do orçamento da província. O culto público, nesse sentido, serviria como elo entre os principais objetivos do seu projeto de ação política como presidente da província do Rio de Janeiro, quais seriam: a preservação da ordem política e social e a manutenção e estreitamento dos “laços sociais” entre os “cidadãos” da província. 236Idem, Ibidem, p. 26 (disponível em www.crl.edu/brazil). Ibidem, p. 34 (disponível em www.crl.edu/brazil). 238 Trabalhamos aqui com a perspectiva de “sistemas simbólicos” de Pierre Bourdieu. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. 239 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “Fala com que o presidente da Província do Rio de Janeiro o conselheiro Joaquim José Rodrigues Torres abriu a 1ª sessão da 1ª Legislatura da Assembléia Legislativa da mesma Província no dia 1º de fevereiro de 1835”. Niterói, Typ. de Amaral e irmão, 1850, p. 30 (disponível em www.crl.edu/brazil). 240Idem, Ibidem, p. 31 (disponível em www.crl.edu/brazil). 241 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. “s/título, 1836”, p. 5 (disponível em www.crl.edu/brazil). 237Idem, Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 243 Para finalizar, retomemos a citação de abertura deste artigo. Através dessas medidas/assuntos levados por Joaquim José Rodrigues Torres para serem debatidos na Assembléia Legislativa Provincial acreditava ele poder alcançar, ainda que a “Divina Onipotência” não o ajudasse, os “benefícios da paz, e duradoura tranqüilidade” de um projeto de ação política regressista que percebia questões como a civilização, a integração e a ordem de formas correlacionadas no objetivo maior de construir um “risonho futuro” para o jovem império em formação! Referências Bibliográficas. ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional.Tradução: Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo: Editora Ática, 1989. ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2010. BASILE, Marcelo. O laboratório da nação: a era regencial (1831-1840). In: GRINBERG, Keila e SALLES, Ricardo. O Brasil Imperial, volume II: 1831-1870. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 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Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 246 A “Facção Áulica” e seus posicionamentos sobre a escravidão e a força de trabalho na imprensa periódica do Rio de Janeiro (1832-1834) Lucas Eduardo Pereira Silva Mestrando pela UFSJ/Bolsista CAPES/DS lucaseduardopsilva@gmail.com Resumo: Este trabalho empreende traçar o debate entre os membros do grupo político conhecido como “Clube da Joana” – posteriormente chamado de “Facção Áulica” –, e seu principal adversário, Bernardo Pereira de Vasconcelos, acerca do fim do tráfico ilegal de escravos e das alternativas de mão-de-obra no Brasil dos primeiros anos do Período Regencial. Recorremos à imprensa periódica, lançando mão dos jornais A Verdade (entre 1832 e 1834), Correio Oficial (ao longo do ano de 1834), e O Sete de Abril (especialmente 1834), para analisar as posturas e estratégias do grupo à luz dos diversos projetos de formação e consolidação da nação brasileira. Palavras-chaves: Facção Áulica, Tráfico Negreiro, Mão-de-Obra. Abstract: This paperundertakesto trace thedebate between membersof the political groupknown as"Clube da Joana" -later called"Facção Áulica" - andhis main challenger, BernardoPereira deVasconcelos, about the endof theslaves trade andalternatives forhandlaborin Brazil in theearly years of theRegencyPeriod. We appeal to theperiodical press, making use of thenewspaperA Verdade(between 1832 and 1834), Correio Oficial(over 1834) and O Sete de Abril(especially1834), to analyzethe attitudesand strategiesin light ofthe groupseveral projects offormation and consolidationof the Brazilian nation. Keywords:Facção Áulica, Slave Trade, Hand-to-Work. Introdução Edificar uma Nação, consolidar um Estado nos moldes modernos, desenhar um Povo que o preencha242. Para João Paulo Pimenta, o longo processo de queda do Antigo Regime e as instabilidades a que ele abriu caminho desde meados do século XVIII, para o caso da região dos ex-Impérios Ibéricos no Prata, fizeram-se sentir fortemente na primeira metade do século XIX (PIMENTA, 2006: 15). É exatamente durante a década de 1830 que se localizam, no Brasil, os maiores embates entre os muitos projetos para a construção de um Estado nacional brasileiro. A Independência de Portugal, em 1822, ao mesmo tempo em que libertava definitivamente da condição de Colônia o vasto território do novo país, deixava evidente a inexistência de uma identidade nacional. Sustentávamos ainda o bastião da escravidão. A gigantesca população negra, africana e crioula, só fazia tornar a sociedade do tempo das Regências ainda mais multifacetada, 242 Este artigo apresenta discussões e resultados alcançados em pesquisa do Programa de Bolsas de Iniciação Científica da Universidade Federal de São João del-Rei, sob orientação do Prof. Dr. Danilo J. Zioni Ferretti, com financiamento do CNPq/UFSJ. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 247 além de nos manter umbilicalmente ligados ao Antigo Regime que se queria abandonar, com suas cores de absolutismo, dominação e violência. Ademais, a abdicação de D. Pedro I, na “revolução de 7 de Abril”, em 1831, viera incendiar mais o campo político, evidenciando ao menos três grandes grupos políticos – caramurus, liberais moderados, e liberais exaltados – Governo. com diversos vieses internos, que disputariam a hegemonia no Mesmo com esse cenário de tensões, e talvez, até em função dessa efervescência, o período Regencial deflagrou uma explosão da palavra pública, pondo em discussão nos mais variados meios as formas de Governo, a própria escravidão, dentre muitas outras temáticas outrora inauditas (MOREL, 2003: 9-10). Esta pesquisa intenta, voltando-se para o período Regencial, compreender o envolvimento de membros do chamado “Clube da Joana” com o fim do tráfico negreiro, e suas alternativas ao problema da mão-de-obra. Esse grupo, reunido sob a liderança de Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho, Ministro das Pastas da Justiça e dos Negócios Estrangeiros entre 1833 e 1835, compôs-se por Paulo Barbosa, Porteiro do Paço e depois Mordomo da Casa Imperial que cedia sua casa na “Chácara da Joana” para as reuniões do clube – o que justifica o apelido dado –, Saturnino de Souza e Oliveira, irmão de Aureliano e Inspetor da Alfândega, além de políticos, como Odorico Mendes, literatos como o poeta e pintor Araújo Porto Alegre, e funcionários do Governo, como Ernesto Frederico de Verna Magalhães, filho da Condessa de Belmonte e funcionário da Alfândega (LACOMBE, 1994: 103). Se a esfera pública sofreu um inchaço, foi na imprensa que isso se fez sentir com mais pujança. Conhecendo “desenvolvimento sem precedentes na década de 1830”, a imprensa foi o principal vetor de pedagogia política e alardeou idéias e os projetos das diferentes facções (BASILE. In.: GRIMBERG; SALLES, 2009: 65). É, pois, por meio da imprensa, especificamente da análise de três periódicos de redação liberal moderada – A Verdade, Correio Oficial, e O Sete de Abril243, que buscamos elementos para nossa análise. Revisão de Literatura Os anos de 1831 a 1840, Período Regencial brasileiro, foram por longo tempo, tratados como época de desordem política e desagregação. Boa parte da historiografia 243 Os jornais serão referenciados, respectivamente como AV, CO, OSA, sendo seguidos por data de publicação e página, quando houver. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 248 apoiada, sobretudo, no discurso conservador de muitos políticos do período e também do Segundo Reinado, reproduziu essa perspectiva em certa medida negativa das Regências. Na década de 1970, favorecido pela abertura dos cursos de pós-graduação no país, o Período Regencial passou a ser revisitado pelas pesquisas, promovendo novas abordagens e suscitando novas temáticas (BASILE. In.: GRIMBERG; SALLES, 2009: 55-58). Dentre a gama de objetos que ganharam a atenção dos historiadores, figuram os grupos políticos, sua organização e pressupostos teóricos, além de suas estratégias de ação. Nesse último ponto, destaca-se a atuação dos homens públicos na imprensa, que funcionou como campo aberto aos debates entre as facções que compunham o cenário político regencial, num movimento de expansão da esfera pública e difusão dos projetos de nação (MOREL. In.: LUCA; MARTINS, 2008: 34). O tema da escravidão viera à tona no frenético ritmo dos prelos da imprensa daqueles anos. As questões acerca do tráfico negreiro ganharam as páginas em inflamadas discussões, ora para sua defesa, ora para sua desqualificação. Jaime Rodrigues atenta para o fato de que dois paradigmas têm norteado os olhares sobre o término da escravidão no Brasil. De um lado, tem-se tratado a abolição da escravidão como um projeto de Estado, de longo prazo, gradual, e iniciado com a primeira lei anti-tráfico de 7 de Novembro de 1831. De outro, o enfoque atribui às pressões britânicas, intensificadas no segundo quartel do século XIX, o protagonismo naquele processo (RODRIGUES, 2009: 299-301). Em seu livro, O Infame Comércio, Rodrigues trabalha na observância das duas tendências em confluência com as descobertas de suas pesquisas, lançando novos questionamentos e afirmando, por exemplo, que: No Brasil, foi sobretudo na primeira metade do século XIX que surgiram falas identificando os supostos males que a presença dos africanos trazia à sociedade e à segurança pública. De forma cumulativa, o africano (escravo ou liberto) foi sendo responsabilizado pela “corrupção dos costumes” num processo que se acentuou nos anos de 1830 e 1840 (RODRIGUES, 2009: 31). Uma vez que, como já se ressaltou, fora a imprensa o catalisador das disputas pela construção da razão nacional, perceber como o grupo de “palacianos” liderado por Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho244 imprimiu em seus jornais o rechaço ao tráfico, e de que forma isso influiu para a evidente tensão com o Deputado Bernardo Pereira de Vasconcelos, se justifica no intento de colaborar com as pesquisas que se assentam nesse mote. 244 Para se conhecer mais sobre o secto de Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho, inicialmente chamado de Clube da Joana, e que posteriormente ficou conhecido como facção áulica: ver: LACOMBE, Américo L. Jacobina. “O Clube da Joana”. In: IDEM. O mordomo do Imperador. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora; 1994. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 249 As balizas que orientaram a análise dos periódicos para a efetivação desta pesquisa dizem respeito à edificação concomitante do Estado e da nação, em consonância com a formação de grupos que se lançaram nessa tarefa. Assim, seguimos na senda traçada por Eric Hobsbawm, que admitindo o caráter de comunidade imaginada postulado por Benedict Anderson, assevera que o nascimento do Estado-nação moderno é caudatário das diretrizes do liberalismo burguês. (HOBSBAWM, 2008: 50). Em prefácio a livro de João Paulo Pimenta, István Jancsó vem corroborar, afirmando que os Estados nacionais são “construções políticas cujo paradigma emergiu da longa crise que envolveu o universo europeu, revolucionando-o” (JANKSÓ. In. PIMENTA, 2006: 9). Interessa-nos inscrever os redatores dos periódicos no rol dos intelectuais que propugnaram o edifício da nação brasileira durante a Regência. Para isso, valemo-nos das diretrizes da história intelectual. Jean-François Sirinelli, a isso nos habilita, ao destacar o valor das redes de sociabilidade como espaços de “fomentação intelectual”, funcionando como um “microclima” capaz de expressar afinidades de grupo em diversas frentes (SIRINELLI, 2003: 248-253). Entendemos os periódicos como sendo o espaço par excellence da efervescência da idéias da intelectualidade política daquele período, dando-nos a perceber as representações de Brasil que se vinha construindo pelos diversos grupos inseridos na sociedade. Isso se evidencia na luta dos redatores liberais moderados pelo fim do tráfico de africanos e pela empresa imigrantista. Por fim, como nos aconselha François Dosse, desejamos levar a efeito uma abordagem cultural e intelectual que não se restrinja nem á compreensão única das formas internas dos artigos contidos nos jornais visitados, nem tão pouco se fixe exclusivamente numa abordagem externa e contextual da produção dessas Folhas. Queremos, antes, trabalhar num exercício de mescla, que dê conta da complexidade dos processos de fortificação da imprensa, da formação de grupos, da profusão de idéias e o embate de projetos nacionais bem como da sua recepção (DOSSE, 2004: 296-299). Uma luz sobre A Verdade Nas páginas d’A Verdade245, o que mais se pode destacar dos artigos é o fato de, em sua maioria, atacarem aos caramurus e aos exaltados, enaltecendo os liberais moderados. 245 O periódico A Verdade foi criado na Corte do Rio de Janeiro pelo futuro Mordomo da Casa Imperial, o Sr. Paulo Barbosa, que também era seu redator. Circulou entre os anos de 1832 e 1834 e levou para a esfera pública as discussões com que se preocupavam os membros da elite política palaciana, organizada em Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 250 Entre as temáticas abordadas, subjazem discussões sobre as relações sociais no país e no mundo, em especial na Europa. Escreve-se pela defesa do casamento civil, pela flexibilização e liberdade de culto religioso, pela instrução pública, e até mesmo sobre a importância de se dar educação às mulheres, que “só em países bárbaros” são escravizadas. Tema presente, ainda que não prioritário, e que reflete as discussões acerca da mão-de-obra a ser utilizada, a manutenção ostensiva de braços escravos, em detrimento da elaboração de políticas de inserção do trabalho de estrangeiros livres, movimenta redatores e correspondentes. O problema dos males que a massiva presença de negros provoca, desde a corrupção dos costumes até a baixa produtividade dos campos brasileiros, são tópicos recorrentes: A agricultura no Brasil vai-se diminuindo por falta de braços, e não vemos tomarem-se medidas para que não desappareça de todo. As cidades estão atulhadas de negros que são nellas tão nocivos, quanto seriam úteis na lavoira (A Verdade nº 17 – 03 de abril de 1832/Seção – INTERIOR: 66). Tributos cobrados aos Senhores por cada escravo que mantivessem nas áreas urbanas, pela sugestão do mesmo artigo, [...] pode[riam] entrar para cofres especiaes para ser empregado[s] em Colonisação Estrangeira. Pode se obter esta fazendo se espalhar pela Europa resumos de noticias do Brasil, em que se mostrem as vantagens de vir para cá (como fazem os Americanos do Norte) [...] (AV nº 17 – 03/04/1832/Seção INTERIOR: 66). E os vivas à entrada de “estrangeiros industriosos” no território brasileiro tornam a ganhar corpo num elogio que os redatores fazem à Administração do Presidente da Província das Minas Gerai, Manoel Inácio de Mello e Souza, pelo desvelo que tem despendido em fazer daquela Província, boa hospitaleira aos europeus que ali vêm se estabelecer, e trabalhar nas atividades agropecuárias e fabris: “Abramos os braços à Estrangeiros, e povoemos nossos bellos desertos, imitemos a politica dos Estados Unidos, e unamo-nos que nosso sollo nos promette mais promptos resultados” (AV nº24 19/04/1832/Seção RIO DE JANEIRO: 94-96). A sustentação do Governo Monárquico Constitucional também perfaz as pautas dos redatores, que, ora buscam apontar graves problemas do regime republicano (AV nº18 – 05/04/1832/Seção INTERIOR: 70-71), ora reforçam o amor à ordem e à temperança, inabilitando o teor exaltado dos defensores da instalação da República (AV nº22 – 14/04/1832/Seção INTERIOR: 85). derredor de Aureliano Coutinho, político forte da Administração regencial, e amigo pessoal de Paulo Barbosa, como aponta LACOMBE, Américo L. Jacobina. “O Clube da Joana”. In: IDEM. Op. cit., passim. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 251 Os redatores empenharam-se, especialmente, em denunciar os desmandos e a conduta autoritária e tortuosa de José Bonifácio, Tutor do Menino Imperador, que junto de seu irmão, “parece obrar para retirar do herdeiro do trono a coroa” (AV nº 10 – 17/03/1832/Seção INTERIOR: 1-2). Por isso, são recorrentes ao longo de todos os números d’AVerdade publicados em 1832, artigos e correspondências carregados de desaprovação ao que chamou-se, pejorativamente, “Ministério dos Andradas”, abarcando o Tutor de D. Pedro II, e seus irmãos Martim Francisco e Antônio Carlos de Andrada, que durante a década de 1820, acompanharam-no expressivamente. Tratava-se de uma estratégia cujo resultado foi fundamental para a afirmação política do grupo. Quanto a isso, atestam os trechos transcritos a seguir: Muito se tem queixado o Sr. Martim Francisco das censuras que o nosso jornal tem feito aos Srs. Andradas: nem o Redactor responsavel, nem os mais (dos 40 socios, que garantem a existencia d’esta folha) que para ella tem dado alguns artigos ácerca da conducta politica d’estes Srs., tem contra elles motivos de odios particulares; não lhes dezejamos males, nem mesmo que sejam vottados á obscuridade; dezejamos só não vermos outra vez o nosso paiz entregue ao sistema de espionagem, arbitrariedades, e proscripções, que elles seguirão no tempo de sua administração; dezejamos em fim que uma nova revolução não succeda á de 7 de Abril, seja ella para elevar anjos, porque encaramos uma nova revolução como a precursora d’um cento de outras successivas, como o principio da dilaceração da nossa Pátria [...] (AV nº 50 – 26/05/ 1832/Seção INTERIOR: 1). Em 1833 retiram Bonifácio da Tutoria e tomam-na para si, consolidando-se em um espaço importante no Paço Imperial, sendo Paulo Barbosa, instituído Mordomo, e Manuel Inácio de Andrade, o Marquês de Itanhaém, como o novo Tutor – ambos alinhados às orientações de Aureliano Coutinho. Aos 17 de dezembro de 1833, publicara-se o Decreto da Regência Permanente de 14 daquele mês, pelo qual ficara o Conselheiro Andrada suspenso da Tutoria do pequeno D. Pedro II e suas irmãs. Acompanhava o Decreto uma PROCLAMAÇÃO repleta de júbilo e exortação à Regência que “está vigilante, e tem tomado todas as medidas ao seu alcance para frustrar as insídias dos conspiradores”, saudando-a, excepcionalmente, por retirar do Palácio de São Cristóvão “o homem que servia de centro e de Instrumento aos facciosos”. (AV nº 257 – 17/12/1833/Seção DECRETOS: 3-4) Note-se que é possível identificar uma constância das temáticas que são abordadas no jornal. Ela permanece até pelo menos os meses finais de 1833, quando um novo e fortíssimo ponto de discussão passa a preencher as seções d’A Verdade: a contenda com Bernardo Pereira de Vasconcelos, chamado de “inimigo rusguento” do Governo e Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 252 sobremaneira desafeto ao Juiz de Órfãos e futuro Ministro da Justiça e dos Negócios Estrangeiros, o Sr. Aureliano Coutinho. Esta recorrência de algumas pautas pode suscitar diferentes observações e mesmo implicar conclusões a respeito dos objetivos políticos encampados pelos redatores d’A Verdade. Para Julio Bentivoglio, a publicação desse periódico teve como fulcro, criar no espaço público, uma opinião coesa de descontentamento com os ditames de José Bonifácio durante o período em que atuou como Tutor do menino D. Pedro II. Esse seria apenas um dos passos para que a estratégia de criação de um ambiente de homens liberais moderados, encabeçados pelo líder da chamada facção áulica – Aureliano – alocados no entorno mais próximo do futuro imperador se consolidasse. A derrocada de Bonifácio era, portanto, indispensável, e quando em 14 de dezembro de 1833 ele fora, por Decreto da Regência, retirado do cargo, aos olhos de Bentivoglio, A Verdade começou a padecer de um arrefecimento do número de artigos, indicando que a “a causa maior defendida pelo periódico havia sido ganha. Ele havia cumprido seu papel” (BENTIVOGLIO, 2010: 18). Menos do que discordar daquilo que supõe o historiador supracitado, preferimos aqui priorizar, como é o foco desta pesquisa, justamente a percepção das estratégias e mecanismos adotados pelos redatores d’A Verdade, bem como do Correio Oficial, tomando-os como porta-vozes de uma linha política que acenava de uma forma particular a respeito da escravidão e alternativas de mão-de-obra, avançando para além das invectivas ao Tutor. Além do mais, pela análise dos periódicos, podemos perceber que, frente às críticas lançadas por Vasconcelos, formara-se uma falange de jornais moderados composta por: A Aurora Fluminense de Evaristo da Veiga, o próprio A Verdade de Paulo Barbosa e de Saturnino de Souza e Oliveira (que posteriormente lançaria a sua Sentinela da Liberdade), o Correio Oficial, que apesar de ministerial retumbava sob a pena do Cônego Januário da Cunha Barbosa e mesmo do então Ministro Aureliano Coutinho. Sem restringir-se a diatribes unicamente desfechadas a José Bonifácio, tais Folhas demonstram mais a faceta de difusoras dos ideais e propostas dessa fração da elite intelectual e política, para a fortificação do nascente Estado-nação brasileiro. Logo, é nesse projeto que encontramos a luta aberta dessas personagens contra o comércio de negros, tido como aviltante, luta essa indissociável do incentivo à agricultura e à utilização de mão-de-obra livre, preferencialmente estrangeira e européia, conditio sine qua non para o alcance do progresso em direção à formação de um povo para um Brasil caucado na Civilização. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 253 Eis, portanto, que a 03 de janeiro de 1833, A Verdade estampa um artigo que lamenta não serem conhecidas na Europa as muitas vantagens de estabelecerem-se amplos cultivos agrícolas em solo brasileiro, ressaltando que, “se tivéssemos promovido convenientemente a emigração de companhias, veríamos crescer nossa exportação em uma espantosa progressão” (AV nº 125 – 03/01/1833/Seção INTERIOR: 1). De forma incisiva, o correspondente que assina como Um Simples Plebeo, em carta ao Redator, se mostra aflito com a morosidade do desenvolvimento do país. Comparando o clima e a fertilidade das terras brasileiras à realidade norte-americana, ele assevera a superioridade do Brasil e culpa dois fatores da idiossincrática conjuntura nacional como “os cancros assoladores da nossa pátria”. Em primeiro lugar, a frouxa administração da Justiça que não pune exemplarmente os criminosos, protegidos por uma imprensa conivente. Em segundo, o “enxame da escravatura”, que ainda mais contribui para o embargo da imigração européia, que a exemplo do que ocorre na “América Inglesa”, muito engrandeceria este país (AV nº 128 – 10/01/ 1833/Seção CORRESPONDÊNCIAS: 1-2). Persistem os reproches a exaltados e caramurus, feitos pelos redatores, que, comentando a tentativa de assassinato sofrida por Evaristo da Veiga no dia 08 dezembro de 1832, imputaram aos últimos a pecha de mentirosos e sem vergonhas (AV nº 131 – 17/01/1833: 2-3). O tom dos ataques por vezes assumia o sarcasmo. Ao noticiar episódio de novembro de 1832 em que o Rei de França sofrera atentado a tiro, do qual escapou ileso, aproveita-se, o redator, para dizer que o disparo fora feito “por um Caramuru de lá” (AV nº 136 – 29/01/1833/Seção EXTERIOR: 4). Mereceu também grande espaço e suscitou discussões nas linhas d’A Verdade a Sedição de Ouro Preto. Noticiou-se no início de abril de 1833 a deflagração da revolta, ocorrida em 22 de março daquele ano (AV nº 162 – 06/04/1833/PROCLAMAÇÃO: 4), e em praticamente todos os números seguintes publicaram-se moções de desaprovação aos atos dos insurretos por parte de muitas Vilas mineiras como São João del-Rei, Barbacena, Queluz, Lavras, São José, etc. Os redatores da A Verdade, aproveitando-se da ocorrência da rebelião, atribuíram-na aos “planos concertados nas cavernas caramuruanas” (AV nº 185 – 09/06/1833/PROCLAMAÇÃO: 2-3) e fizeram o mesmo ao responsabilizá-los por terem incitado os negros revoltosos que em 13 de maio de 1833, promoveram a chacina da família de seu senhor, o Deputado mineiro Gabriel Francisco Junqueira, em suas fazendas Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 254 na Freguesia de Carrancas246. Para tanto, publicaram por vários números ao longo do mês de maio, trechos de depoimentos dos negros insurretos, que diziam, em sua maioria, que Francisco Silvério vindo de Ouro Preto disse [...] que alli os Caramurus estavam matando os brancos, e que eram á favor dos pretos, e que por isso, era boa occasião delles alli se levantarem, e matarem a seus Senhores, para depois [...] irem encontrar com os Caramurus de Ouro Preto [...] (AV nº 223 – 19/09/1833/Seção MINAS GERAIS: 4) (grifos originais). Diante da situação extrema da insurreição, até a Bernardo P. de Vasconcelos, costumeiramente infenso à A Verdade, fora dada voz ao publicarem-se em 20 e 23 de abril, respectivamente, uma PROCLAMAÇÃO (AV. nº 167 – 20/04/1833/ PROCLAMAÇÃO: 3-4) e um Manifesto aos Mineiros (AV nº 168 – 23/04/1833/Seção MINAS GERAIS: 1-2) assinados por ele. No entanto, as fontes indicam que o “posto” efetivo d’O Sete de Abril, e, por conseguinte, do apoiador Vasconcelos, pela pena que riscava A Verdade, era mesmo o de imoral e revoltante. Assim, depois de muitas admoestações que a ele já se vinham fazendo, em 19 de setembro de 1833, os redatores do jornal repreendem o redator d’O Carioca, por ter em seu nº 4, afirmado que O Sete de Abril era um jornal da Moderação, o que “é falso, e os Periodicos da Moderação, principalmente A Verdade muitas vezes tem energicamente batido o Sete de Abril, censurando suas doutrinas estouvadas” (AV nº 223 – 19/12/1833/Seção INTERIOR: 1-2). Se a Vasconcelos e aos caramurus e exaltados restavam sempre farpas agudas, em todas as vezes que logrou ver estampado seu nome n’A Verdade, Aureliano Coutinho recebeu louros e lisonjas. Por ocasião de sua subida à Pasta da Justiças, em 10 de outubro de 1833 (a qual já ocupava interinamente desde 04 de junho daquele ano), se disse que o “Sr. Aureliano tem satisfeito de tal maneira os desejos dos amigos da Liberdade legal, que geralmente todos estimarão que S. Exa. continuasse na Justiça, repartição que tem a seu cargo a segurança publica [...]” (AV nº 233 – 12/10/1833/Post-Iscriptum: 4). Fechamos este tópico, ratificando o papel d’A Verdade de propagador das perspectivas negativas de grupos da intelectualidade e da política com os rumos do Brasil diante da permanência do: [...] vergonhoso tráfico de carne humana com a importação de escravos para a Costa de Africa, em despeito do Tratado de 26 de Novembro de 1826, e Carta de Lei de 07 de Novembro de 1831. A nossa honra como Nação civilisada, a nossa ventura e desenvolvimento como Estado livre, reclamam providencias do Governo de V.M.I. He notório, Senhor, que por toda a Costa desta província desenbarcão diariamente centos e centos de infelizes Africanos, importados por contrabando, que são recebidos em depósito nas próximas Fazendas, e que 246 Sobre a revolta escrava ocorrida em 13 de maio de 1833 no Curato de São Tomé das Letras, Freguesia de Carrancas da Comarca do Rio das Mortes, ver: ANDRADE, Marcos Ferreira de. Rebeldia e resistência: as revoltas escravas na província de Minas Gerais. Belo Horizonte, FAFICH/UFMG, dissertação de mestrado, 1996. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 255 algumas Authoridades locaes desses districtos, conniventes em tão vergonhoso crime, partilhão do contrabando o lucro e a infâmia.247 A publicação de um documento proveniente da Sociedade Defensora da Liberdade e Independência Nacional do Rio de Janeiro é reveladora. Com sócios predominantemente liberais moderados, dentre os quais, Evaristo da Veiga, os irmãos Saturnino e Aureliano de Souza, e Januário da Cunha Barbosa, o combate aos caramurus e ao tráfico de escravos marcaram as pautas da Defensora248, desvelando a complementaridade da orientação política e das ações daquela Sociedade e dos redatores, seja d’A Verdade, seja do Correio Oficial. Julgamos, enfim, que tanto mais valiosa se torna a análise desse periódico, quanto mais o tomemos como participando da disputa entre facções políticas, representadas nos jornais pela figura central do redator ou redatores. Ao defender a necessidade de que o Governo franqueasse a vinda de estrangeiros aptos a oferecerem seus braços livres ao trabalho, e ao rebater as posturas caramurus – identificadas ao atraso e ao embargo na edificação do Estado-nação brasileiro – A Verdade aglutinou idéias do projeto liberal moderado pelo viés palaciano, difundindo os males da escravidão e rechaçando fortemente o tráfico negreiro. As vozes do Correio Oficial Ao final do trabalho de levantamento de dados pela leitura do periódico Correio Oficial, optamos por privilegiar a análise do ano de 1834. Entendemos, pois, que fora nesse momento que se desnudaram aspectos mais relevantes a esta pesquisa, redefinindo, assim, nosso recorte, originalmente mais amplo. A leitura d’O Sete de Abrilserviu-nos de subsídio para melhor compreender as rusgas entre os redatores e seus posicionamentos. Ensejamos neste tópico, elaborar um panorama do que se publicou nas páginas do Correio Oficial, bem como fora feito para A Verdade, dando destaque especial aos artigos que nos possam clarificar o tratamento dado às problemáticas do fim do tráfico e questões acerca da mão-de-obra naqueles anos por seus redatores, subscritores, enfim, pelo grupo do qual emanava. 247 AV nº 280 – 27/02/1834/Seção – RIO DE JANEIRO: 2 – Requerimento da Sociedade Defensora da Liberdade e Independência Nacional do Rio de Janeiro contra o tráfico de Africanos – Sala das Sessões do Conselho, em 16 de Fevereiro de 1834 – João Silveira do Pilar, Presidente. – Evaristo Ferreira da Veiga, 1º Secretário. – Joaquim Antônio Caminha, 2º Secretério. 248 Sobre a composição, diretrizes e ações da Sociedade Defensora da Liberdade e Independência Nacional do Rio de Janeiro, ver: BASILE, Marcelo. Sociabilidade e ação políticas na Corte regencial: a Sociedade Defensora da Liberdade e Independência Nacional. Dimensões: Revista de História da Ufes nº18. O3 de outubro de 2006. Disponível em: http://www.ufes.br/ppghis/dimensoes/artigos/Dimensoes18_MarcelloBasile.pdf. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 256 Indubitavelmente, nos idos de 1834, o embate de forças entre o grupo afeito ao Governo Imperial de maioria liberal moderada, e a oposição a ele, composta tanto por liberais exaltados como caramurus, é a grande divisa desta Folha. Sobressaem, no entanto, as altercações entre o Deputado Bernardo P. de Vasconcellos e o Ministro Aureliano Coutinho, dois pólos dentro das facções liberais moderadas do quadro político. O primeiro “seguia os passos de Evaristo da Veiga, redator d’ Aurora Fluminense249, contra cujo espírito liberal ninguém ousa articular palavra” (LACOMBE, 1994: 121). Por sua vez, Vasconcelos, que naquele momento começava a demonstrar sua insatisfação com o Ato Adicional de agosto de 1834, ainda que não o renegasse (CARVALHO, 1999: 22-23), iniciava seu afastamento de alguns cânones da tendência liberal moderada, entre os quais a briga contra o tráfico de africanos. Segundo os redatores do Correio Oficial, Vasconcelos atribuía à ação de Aureliano o fato de não ter assumido a Pasta da Fazenda naquele ano, o que o tornou constante inimigo do Ministro (CO, nº 98 – 25/10/1834/Seção – ARTIGOS NÃO OFICIAIS). Assim, a 06 de outubro de 1834, publica-se resposta, carregada de desagravos, ao que disse Vasconcelos em carta veiculada em seu periódico. Enquanto o Deputado acusa o Ministro da Justiça de conduzir um “Ministério parcial e parente”, e de sustentar-se sobre “o côro de seus apaniguados e zangões” (OSA, nº 184 – 30/09/1834), noCorreio Oficial, ressalta-se que, sendo o dito Ministro alvo principal de Vasconcelos, suas palavras injuriosas só vêm confirmar o que se ouvia falar “dos proprios amigos do Sr. Bernardo Pereira de Vasconcellos, que no manejo da intriga era elle terrível quando queria chegar a seus fins [...]” (CO, nº 81 – 06/10/1834/Seção ARTIGOS NÃO OFICIAIS). O imbróglio em torno da carta de Vasconcelos continua no nº 85 da Folha dirigida pelo Cônego Januário da Cunha Barbosa. Desta vez, o artigo apresenta pormenorizada análise de cada um dos argumentos de que o Deputado lançou mão para caluniar o Ministro da Justiça, sendo todos desconstruídos pelo redator. Vasconcelos imputa aos atos do Ministério a insídia de serem frutos do “Gabinete Secreto” e ações da “potência invisível”, ao que lhe rebate o redator, acusando-o de usar a mesma linguagem outrora utilizada em “Folhas restauradoras [...] de que todo mundo se ria” (CO nº 85 – 10/10/1834/Seção ARTIGOS NÃO 249 A Aurora Fluminense figurou ao longo de seus oito anos de publicação ininterrupta (dezembro de 1827 a dezembro de 1835), como a mais relevante folha de orientação liberal moderada da Corte e também do Império. ANDRADE, Marcos Ferreira de. Imprensa moderada e escravidão: o debate sobre o fim do tráfico e temor do haitinismo no Brasil Regencial (1831-1835) In. IV Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Universidade Federal do Paraná – Textos Completos. Disponível em: http://www.labhstc.ufsc.br/ivencontro/completos.html. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 257 OFICIAIS). Sendo o núcleo da discussão as determinações da “Lei novissima sobre os Africanos importados no Brasil”, das quais discorda Vasconcelos, indaga-se no artigo, referenciando-se o Deputado: “Não tinha elle toda a influencia na Camara, fora della, e no Conselho dos Ministros em 1831, para não deixar passar, nem sancionar Lei tão danosa?” – e arremata: Nos concordamos que a Lei he má, tem graves inconvenientes, sendo um dos maiores o não se ter logo feito outra, ou adoptado nella mesma providencias eficazes para a prompta introdução de braços livres, o que faria que os Lavradores não buscassem comprar Africanos para a sua lavoura, nem em outras classes, escravos para o serviço domestico; porem o que ora cumpre he emendar a Lei, torná-la exeqüível, tirar a necessidade de escravo; mas o Sr. Deputado, que vê a Lei danosa, o que fez para esse fim, e para outros remédios de que a Patria carece? O que fez? (CO nº 85 – 10/10/1834/Seção – ARTIGOS NÃO OFICIAIS). As reprimendas a Vasconcelos naquele nº 85 do Correio Oficial se completam na correspondência assinada pelo Anti Mercadista, para quem “o Sete he um enigma em Politica [...]”, já que “[...] infenso á Opposição, não o he menos á Administração actual [e] sustentador dos principios da Revolução de Abril250, cobre de ridículo e sarcasmos; as personagens que nella tomaram parte [...]” (CO, nº 85 – 10/10/1834/Seção ARTIGOS NÃO OFICIAIS). A troca de farpas foi motivada pela Seção da Câmara dos Deputados de 25 de Setembro de 1834, na qual Vasconcelos, reforçando sua cisão com a Maioria, posicionou-se contrário a posturas administrativas e ordens expedidas pelos Ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Justiça. Nelas, Aureliano sustentava a legitimidade do julgamento de brasileiros por Juízes ingleses, como previam as regulamentações das Comissões Mistas para os crimes do contrabando de escravos, e ainda ressaltava a importância da vigilância das autoridades sobre a arrematação dos serviços de negros contrabandeados após 1831, que se achavam sob os cuidados do Governo Imperial – tema que, aliás, reaparecerá ainda em muitas discussões entre as referidas personagens. As providências de Aureliano contra o tráfico negreiro avultam. Entre 07 de outubro e 05 de novembro de 1834, em 6 números do Correio Oficial, o Ministro expede ordens a Juízes, Chefes de Polícia, e solicita do Ministério da Guerra a ceção de embarcações e efetivo militar para auxiliar na repressão ao contrabando negreiro na região da Illha Grande, no Rio de Janeiro (CO nº 82 – 07/10/1834; nº 91 – 17/10/1834; nº 93 – 20/10/1834; nº 95 – 22/10/1834; nº 104 – 03/11/1834; nº 106 – 05/11/1834). 250 Sobre o cariz que a glorificada “Revolução do 7 de Abril” assumiu para as elites dirigentes, e mesmo sobre a polissemia do termo no Período Regencial, ver: MOREL, Marco. O Período das Regências (1831-1840). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, Cap.II – O “carro da revolução”.pp. 20-31. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 258 As medidas de aumento do efetivo policial para fiscalização e repreensão do crime que atenta contra a Lei 1831, e para que sejam levados a julgamento os Juízes e demais autoridades locais que venham tratando com “connivencia do deshumano trafico de Africanos, que nesse Districto continua a praticar-se com a maior offensa das Leis”, compõem as respostas aos Ofícios enviados ao Ministério pelo Juiz de Direito daquela Comarca. Nelas, Aureliano chama às responsabilidades o Sr. Promotor Público do Município de Ilha Grande, e o Juiz de Direito e consegue que da Regência se expeça ordem para deslocamento de forças da Legião das Guardas Nacionais para aquele lugar, onde muitos dos que deveriam zelar pela legalidade mostravam-se “ommissos no cumprimento de seus deveres, ou conniventes com os crimminosos” (CO nº 91 – 17/10/1834/Seção MINISTÉRIO DA JUSTIÇA). Quanto a Vasconcelos, é notável que a rusga se acirrava a cada ato ministerial de Aureliano. Em sua Folha, o Deputado zombava, apelidando de Padre Mosca ao Cônego Januário da Cunha Barbosa, de Cupidinho ao Inspetor da Alfândega, Saturnino de Souza, e de Laureano a Aureliano Coutinho. Fazia troça ao referir-se a estes como Sacra Camarilha, identificando, portanto, antes mesmo da existência do termo “facção áulica”, cunhado na década de 1840, o cerne do daquele grupo. Assim ocorreu quando o Ministro interveio nos processos de comutação das penas dos condenados Barão de Bulow, e de quatro dos insurretos da Sedição de Ouro Preto. A estes procederes, tanto Vasconcelos como seu “séquito”, representado, por exemplo, no campo da imprensa, pelo jornal O Astro de Minas, de São João del-Rei, bradavam contrariadamente. Foi o que se viu na dita Folha mineira em números do mês de outubro de 1834, em que, deixando-se levar pelo “dedo do gigante”, os redatores indagavam a Evaristo da Veiga como podia ele, na Aurora Fluminense, tanto elogiar e defender a um Ministro de atitudes tão condenáveis (CO nº 98 – 25/10/1834/Seção ARTIGOS NÃO OFICIAIS). No nº 197 d’O Sete de Abril, desqualificam-se as instruções ministeriais para a arrematação do serviço dos africanos livres, afirmando serem demasiado restritivas (OSA, nº 197 – 18/11/1834 – COMUNICADO: 2). Das fundamentações teóricas que orientavam o grupo a que pertenciam os redatores do Correio Oficial, pouco se deixa entrever em suas páginas, ainda que de maneira esparsa deparemo-nos com a utilização de pressupostos de filósofos, antigos ou modernos, ou discursos de políticos denodados. Um artigo publicando no nº 99 do periódico torna-se, pois, precioso nesse sentido. Além de ser um “repositório” de idéias e nomes reveladores, Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 259 ele traz dois trechos muito significativos, uma vez que deixam entrever uma tendência antiescravista – tímida, ou mesmo nas entrelinhas – mas, que converge no sentido da defesa da imigração européia, e principalmente justifica a luta pelo fim das atividades do tráfico de cativos: Licurgo, Platão, Aristoteles, escreverão sobre a Politica e Leis excelentes obras para o seu tempo, e todos admitem a escravidão como de necessidade absoluta! Na vida da humanidade, as ultimas paginas nos mostram como loucura o que parecia sabedoria nas primeiras (CO nº 99 – 27/10/1834/Seção – VARIEDADES. – Dos diversos modos de considerar e escrever a Historia. escrito por Hippolyte Roux Ferrand e traduzido por João Candido de Deus Silva). E ainda: O que não se poderem fazer as especulações dos Philosophos, e as theorias dos homens d’Estado, o conseguirá a industria. Ella o fará sem esforços, sem abalos, e mesmo sem pensar nisso, e só pela força de seu desenvolvimento. He ella o mais poderoso vehiculo dessa civilisação que tudo abrange [...]porque ella tem ajudado a felicidade dos homens, e tende a faze-la cada vez mais avultada, instruindo e melhorando a humana espécie (COnº 99 – 27/10/1834/Seção – VARIEDADES. – Dos diversos modos de considerar e escrever a Historia. escrito por Hippolyte Roux Ferrand e traduzido por João Candido de Deus Silva). A publicação de um artigo tão eloqüente, ao mesmo tempo em que reitera o papel de difusão da instrução aos leitores do Correio Oficial, consegue compilar e justificar a empresa liberal moderada, seja na pena dos redatores dos periódicos que a ela se filiam, seja nas ações dos Políticos como Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho, claramente empenhado em pôr termo ao tráfico da escravatura, ao que depõem suas muitas ordens e decisões para esse fim, publicadas na Seção MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Conclusões As disputas políticas que avultaram no interregno Regencial desnudam a multiplicidade de projetos de implantação da Nação brasileira. Dominado, grosso modo por três principais tendências – liberais moderados, liberais exaltados e caramurus – o cenário político do decênio de 1830 fora palco de ferrenhos embates de idéias travados no crescente espaço público. Quanto à desqualificação da escravidão, diferentemente do que ocorreu no caso dos projetos abolicionistas europeu e norte-americano, para o caso brasileiro, fora a necessidade de se edificar as bases do Estado-nação que encaminharam as elites dirigentes à formação de grupos, que em seus clubes, jornais ou Sociedades Defensoras, discutiam e propalavam suas idéias, fosse pela manutenção ou pelo término da instituição escravista. Embora Rafael Marquese demonstre que a manutenção da exploração da mão-de-obra escrava teve uma defesa bastante significativa naquele período, Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 260 postulando que para uma parcela daquelas elites dirigentes não havia incompatibilidade entre os fundamentos liberais e o escravismo moderno (MARQUESE, 2002: passim), Tâmis Parron é categórico ao afirmar que: Com efeito, na turbulenta quadra inicial da Regência (1831-1835), quase não houve discursos a favor do cativeiro. Bem ao contrário, aprovou-se ali uma determinação que libertava escravos africanos contrabandeados para o Brasil, discutiam-se projetos que visavam aperfeiçoá-la, foram ensaiadas companhias de colonização européia, abriu-se concurso público para a condenação do tráfico e jornais publicaram artigos diversos contra a escravidão (PARRON, 2009: 67). A análise dos periódicos A Verdade e Correio Oficial, numa relação de contrapartida ao que se publicava n’O Sete de Abril, nos permitiu constatar essas tensões acerca da razão nacional, naquilo em que delas se pode entrever na luta expressa contra o tráfico negreiro, delineado pelas decisões governamentais do Ministro da Justiça e dos Negócios Estrangeiros, Aureliano Coutinho, e apoiadas pelo grupo “palaciano”. Grupo, que, por seu turno, usou das páginas de suas Folhas para denunciar os males da escravidão – ainda que isso tenha se feito de maneira secundária – e exortar a importância da imigração européia, como ferramenta para a substituição da mão-de-obra cativa, pelo trabalho livre, produtivo, e alinhado ao progresso almejado. A postura do Deputado Bernardo Pereira de Vasconcelos, nos faz notar a força aos poucos adquirida, estrategicamente, pelos integrantes do Clube da Joana, que para Paulo Pereira de Castro, assumiram a postura palaciana, como forma de submeter o Parlamento aos desígnios do Imperador, podendo, assim – já que extremamente próximos de D. Pedro II – comandar os rumos políticos do país (CASTRO. In: HOLANDA, 1964: 520). Outrossim, esboçava-se nas críticas de Vasconcelos, o descontentamento com a administração liberal moderada, que o encaminharia, dentro em pouco, ao posto de chefe do partido regressista da década seguinte. Referências Bibliográficas BASILE, Marcelo. “O laboratório da nação: a era regencial (1831-1840). In.: GRIMBERG, Keila; SALLES, Ricardo. (org.) O Brasil Imperial, volume II: 1831-1870. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.53-119 BENTIVOGLIO, Julio. 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Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 262 Paulo Rodrigues Durão: atuações e redes relacionais de um camarista de Vila do Carmo na primeira metade do setecentos mineiro Lucas Moraes Souza Mestrando em História pela UFOP lmsichs@gmail.com Resumo:Este trabalho tem como objetivo apresentar a atuação e as redes relacionais do juiz ordinário da Câmara da Vila do Carmo em 1730, Paulo Rodrigues Durão. Desta forma, busca relacionar suas ações antes e depois da Revolta de Vila Rica de 1720 com os benefícios conquistados por sua escolha em favor do Conde de Assumar na contenção do motim. Idéias presentes nos trabalhos de Maria de Fátima Gouvêa, Maria Fernanda Baptista Bicalho, Maria Verônica Campos e Carlos Leonardo Kelmer Mathias, sobre as Câmaras e a Revolta serão utilizados nesta apresentação como fundamentos teóricos de debate. Dentre os documentos utilizados estão: inventários, lançamento e arrolamento de escravos, registros de editais de lançamento dos quintos, além de cartas régias que abrangem o período de 1717-1721. O uso destes documentos almeja compreender as atuações deste poderoso local, e as possibilidades de ganho dentro de uma sociedade do Antigo Regime na América portuguesa. Para tanto, leva-se em conta os pressupostos atuais dessa historiografia que privilegia um novo direcionamento sobre as políticas desta nobreza da terra dentro do Império Ultramarino português. Palavras-chave: Rede relacional, Câmara, Revolta. Abstract:This paper aims to present the work and the relational networks of ordinary judge of the Board of the Village of Carmo in 1730, Paulo Rodrigues Durao. Thus, seeks to relate his actions before and after revolt of Village Rica from 1720 to the benefits earned by their choice in favor of the Count of Assumar in curbing the riot. Present ideas in the works of Maria de Fatima Gouvea, Maria Fernanda Baptista Bicalho, Maria Veronica Campos and Carlos Leonardo Kelmer Mathias on the Boards and the Revolt in this presentation will be used as theoretical discussion. Among the documents used are: inventories, launch and inventory of slaves, records of calls for release of the 5th, and royal letters covering the period 1717-1721. The use of these documents aims to understand the working of this powerful place, and the possibility of gains within a society of the Ancien Regime in Portuguese America. To do so, it takes into account the assumptions that current historiography that favors a new direction on the policies of this noble land within the Portuguese Overseas Empire. Keywords: Relational Networks, Board, Revolt. Uma sociedade corporativista, burocrática e barroca, eis a configuração das Minas ao longo do século XVIII. Como entendê-la, e quais indivíduos a formaram? Por meio destas indagações e com o auxílio teórico de historiadores sobre o tema aqui proposto procuro dar forma a esta sociedade mineira do início do século XVIII. Para tanto, o recorte temporal adotado é do início da criação das primeiras vilas e de suas Câmaras em 1711 até o fim do governo de dom Pedro de Almeida e Portugal no ano de 1721. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 263 A revolta de Vila Rica no ano de 1720, muito debatida pela historiografia mineira, é aqui tema principal deste trabalho, pois é um evento determinante para a independência administrativa da Capitania, além de iniciar um período de domínio da Coroa portuguesa sobre a região. Desta forma, uma breve descrição da Revolta é primordial para o desenvolvimento do trabalho. Será feita uma abordagem desta revolta sob a perspectiva da repressão, dos principais de Vila do Carmo que auxiliaram o conde de Assumar. Na historiografia sobre a Revolta não é novidade o conhecimento daqueles que ajudaram o governador dom Pedro de Almeida Portugal na contensão desta revolta. Mas ainda são poucos os trabalhos que dedicam analisar a participação destes homens aliados ao governador, ainda mais daqueles que moravam na mesma vila que o conde governador. E é na participação de um destes homens da Vila do Carmo que consiste o esforço maior deste artigo. Fundada na figura do potentado Paulo Rodrigues Durão que pretendo apresentar as motivações, as estratégias e as ações daqueles que contribuíram para o fim da revolta de Vila Rica em 1720. Conhecer os mecanismos que possibilitavam as adesões destes poderosos locais às causas da Coroa lusitana é fundamental para compreender esta sociedade em formação. O imaginário da época e as ideologias existentes são chaves importantes para o funcionamento destes mecanismos. A descoberta do ouro nas Minas, sua exploração, e o povoamento da região fez-se em um contexto de restauração portuguesa, com o fim da união ibérica e a ascensão da Casa de Bragança ao trono lusitano. Com isso, um novo panorama político foi estabelecido, re-ordenando as práticas administrativas sobre todo o domínio ultramarino português. Estas práticas eram constituídas pela adesão das administrações lusitanas e catalãs, apropriadas no período em que os Filipes governaram Portugal. Essa prática administrativa reformada pela restauração portuguesa em 1640 que vai ditar a política da Corte lusitana em todo o seu Império Ultramarino é baseada na Razão de Estado251. Essa Razão de Estado, oriunda de doutrinas tradicionais medievais da ratio Status, sofreu modificações a ponto de se adequar a realidade dos Estados Católicos 251 Essa Razão de Estado é o conjunto de teorias políticas baseadas em preceitos teleológicos cristãos para a autoridade do monarca absolutista dos Estados católicos. Seus principais teóricos são: o jesuíta Giovanni Botero e o neo-escolástico Sebastião César de Meneses. O primeiro, em 1588 com seu tratado Della ragion di Stato discute os fundamentos que sustentam a autoridade e autonomia do poder régio absolutista. O segundo, em 1650 com seu tratado Summa política, oferecida ao príncipe d. Theodosio de Portugal, propõem uma “verdadeira Razão de Estado” constituída nas virtudes cristãs, e desta forma sofrendo influência do papa. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 264 Ibéricos, principalmente pós-restauração. Essa doutrina, por sua vez tem raízes nos estudos clássicos da antiguidade latina, e foi debatida fortemente no século XVI. Os estudos clássicos da antiguidade e da idade média influíram nas formulações das doutrinas do poder monárquico absolutista252. Destes estudos surgiu duas linhas divergentes que procuravam fundamentar o poder do príncipe: a Razão de Estado cristã e a não-cristã253. De um lado, estava a Razão de Estado formulada por escolásticos de Roma, portanto, ligando o poder do príncipe ao poder espiritual do papa. Do outro, estava a Razão de Estado desenvolvida por teóricos como Maquiavel, Lutero, e os defensores de James I. Maquiavel, em seu livro O Príncipe, responder uma nova realidade expondo um novo tipo de governante. Assim como o tirano italiano César Bórgia, o novo governante chega ao poder através das armas. O Maquiavelismo, uma concepção negativa das idéias de Maquiavel, é formulado pelos seus opositores católicos que corrompem o pragmatismo das formulações de Maquiavel que dizem que as ações dos soberanos são fundamentadas nas necessidades254 imediatas de resolução dos conflitos internos ou externos de seus governos. A crítica cristã às idéias de Maquiavel é dada pela inexistência de vontade divina na relação entre soberanos e súditos, e na autonomia das ações desses soberanos. Segundo Maquiavel, isso se explica por ser a guerra o único meio necessário para a conservação e manutenção do Estado – entenda-se, o poder do monarca. Já as formulações neoescolásticas sobre o poder entendem a política teleologicamente, em que o fim último das ações do Estado seja a assunção do soberano e seus súditos a um patamar superior255. O direito divino dos reis, defendido por Martin Lutero, vai contra as idéias defendidas pelo jesuíta Giovanni Botero e os juristas da Contra-Reforma. Para Lutero o poder e o direito monárquico são dados diretamente por Deus, sem a mediação do povo. Sendo assim contrárias as formulações cristãs defendidas por Botero que acreditam que o 252 São essas obras: a República, de Platão; o De officiis, de Cícero; os Annales, de Tácito; a Cidade de Deus, de santo Agostinho; o Etimologias, de Isidoro de Sevilha; o Policratus, de John de Salisbury; o De regno, de santo Tomás de Aquino. Em todas, a Razão de Estado é apropriada como a ação na qual o poder absoluto transgride o direito, sob a justificativa do interesse público – “bem comum”. 253 A divisão é proveniente da Reforma religiosa e da Contra-Reforma. Pois, por se tratarem de teorias formuladas de acordo com as escrituras. Assim, por comodidade lógica da escrita, adotei essa dicotomia cristã::não-cristã, para tal divisão teórica. 254 Segundo Hansen, o conceito de necessitas (necessidade), oriundo do direito romano, foi incorporado pelas doutrinas de governos a partir do século XII para justificar os estados de exceção, segundo o axioma “A necessidade não conhece lei”, ou seja, as ações de governantes que burlam as próprias leis que dá legitimidade ao seu poder. (HANSEN, 1996:145) 255 Essa elevação a um patamar superior do suserano e seus vassalos é baseada nas qualidades cristãs indispensáveis ao governante. Elas buscam emular as qualidades da divina trindade – Potência do Pai, Amor do Espírito Santo e a Sabedoria do Filho – nas ações do Estado representadas pelos reis. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 265 direito divino e o poder conferido ao rei são dados por Deus através do povo. A seção da liberdade de ação do povo ao monarca é definida como Soberania. O direito divino e a natureza do poder dos reis defendidos por Lutero justificam as pretensões do rei James I da Inglaterra de aglutinar em suas mãos os poderes terrestres e espirituais. Enquanto que para os reis ibéricos, o poder espiritual é reconhecido ao papa que por sua vez o transfere aos monarcas. Essa diferença entre concepções do poder real, ou da Razão de Estado, vão contribuir para delimitar as ações dos monarcas cristãos, anglicanos e luteranos na Europa moderna. Voltando para o contexto ibérico pós-restauração portuguesa de 1640. A política da Casa de Bragança na administração do seu Império Ultramarino é baseada nessa Razão de Estado Cristã que tem como finalidade a conservação pacífica do Estado, a moderação do governante e a relação através das trocas econômicas entre Estados256. No entanto, para que isso ocorra, a lógica absolutista da Razão de Estado implicará na ambigüidade da ação da paz armada e a guerra. Sob as premissas dessa razão de Estado pós-restauração de 1640 que a Casa dos Bragança controlará o Império Ultramarino português, distribuindo os principais cargos administrativos do império nas mãos da primeira nobreza lusitana. Essa primeira nobreza era base que coroou o duque de Bragança em rei d. João IV. Naturalmente, essa base será privilegiada com postos nobiliárquicos de destaque como Conselheiros reais, Secretários de Estado, Presidentes do Conselho Ultramarino, da Casa de Suplicação, da Relação do Paço, da Mesa de Consciência e Ordens, do Conselho da Fazenda, Vice-Reis, Governadores Gerais e de Capitanias. Pautado no que Antônio Manuel Hespanha apresenta como paradigma jurisdicionalista dos séculos XVI e XVII, que por sua vez estava inserida na sociedade corporativista em que o rei era a cabeça do corpo social do Antigo Regime. Esta primeira nobreza lusitana eram os membros desse corpo, assegurando assim a hierarquia. Esse paradigma pautava-se na distribuição dos cargos de justiça em todo o Império a membros dessa nobreza, nem sempre por merecimento, mas sim pela posição social. Daí, estas diversas instituições lusitanas citadas acima, representa não só a distinção social para aquele que ocupa o cargo, como também o acúmulo de cabedais por meio da formação de redes clientelares. Essas redes, como indicam os pesquisadores Nuno Gonçalo Monteiro e Maria de Fátima Gouvêa, formadas por membros dessa primeira 256 Entendem-se aqui relações através das trocas econômicas entre Governos, entre Estados absolutistas. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 266 nobreza do reino lusitano espalhava-se por todo Império e possibilitava o controle administrativo na mão de poucas famílias. No trabalho de Maria F.B. Bicalho Redes governativas portuguesas e centralidades régias no mundo português, c.1680-1730. A autora destaca a rede comercial de tráfico negreiro montada pela rede clientela e familiar entre os governadores do Estado do Brasil Luís Gonçalves da Câmara Coutinho 1690-1694, o governador Geral de Angola João de Lencastre 1688-1692, e o governador da Capitania do Rio de Janeiro Luís César de Meneses 1690-1693. Rede familiar pelo fato de João de Lencastre ser primo da mulher de Câmara Coutinho, e cunhado de César de Meneses. Já o trabalho de Nuno Gonçalo Monteiro O “Ethos” Nobiliárquico no final do Antigo Regime: poder simbólico, império e imaginário político, apresenta de forma elucidativa a formação dessa primeira nobreza, e o processo degenerativo do status nobre na sociedade lusitana com a criação de várias casas de armas e distribuição de títulos da Ordem de Cristo, vulgarizando-os. Mesmo com a vulgarização, o status de nobreza possibilitava a ascensão social no Antigo Regime. Dentro de redes clientelares como a formada por João de Lencastre, César de Meneses e Câmara Coutinho, membros da primeira nobreza do reino e destacados funcionários régios no Império Ultramarino, produzia-se e transmitia-se o poder, mas também se transmitia conhecimentos necessários para a governação. O poder para Maria de Fátima Gouvêa “se apresenta aqui enquanto algo necessariamente “relacional”, que se movimenta e circulava em cadeias de reação”. (GOUVÊA, 2004:102) Assim, fazer parte de um grupo social reduzido, e privilegiado, e que seus membros faziam parte dos aparelhos administrativos no Império Ultramarino, ou tinham contato com alguém que viviam neste meio. Portanto, fazer parte deste grupo era primordial para quem almejasse elevar o nome de família, e angariar pecúlios e prestígio aos olhos do monarca. Desta forma, fazer parte desta rede era agregar conhecimento sobre a prática administrativa e a política portuguesa, e com isso obter poder e mobilidade social. A família era uma instituição na sociedade do Antigo Regime em que sua finalidade ia além da procriação, era fundada em regras que perpassam o amor entre membros, que era a da constante busca pela ascensão social. Para tanto a constituição do matrimônio era mais um contrato político entre famílias e menos a união afetuosa entre gêneros. O alcance da rede familiar ultrapassava o que hoje conhecemos como família nuclear e se estendia por todos os membros, agregados da casa e empregados, formando uma grande rede clientelar. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 267 As redes clientelares semelhantes à formada pelo trio – João de Lencastre, César de Meneses e Câmara Coutinho – apontam para o alcance em poderiam alcançar essa primeira nobreza lusitana no quadro político/administrativo do Império Ultramarino Português. Em que neste caso chegaram a comandar, segundo Maria Fernanda Bicalho, as principais praças colônias do tráfico negreiro no final do século XVII. Serviços prestados ao rei, como os dos agentes régios d. João de Lencastre e sua rede são fundamentais para se conseguir mercês e postos maiores dentro da sociedade da Corte portuguesa, e com isso muito mais poder e honra para o indivíduo e sua família. Isso acarreta em uma mobilidade social maior, em maior poder de barganha para postos destacados na política e administração, e uniões mais vantajosas com outras famílias da alta nobreza na lusitana. Depois de falar do novo quadro político português pós-restauração, da importância da alta nobreza lusa para a manutenção da monarquia, e das estratégias utilizadas por esta para conseguir os principais postos políticos/administrativos, é necessário enfocar à importância dada pela Corte ao Brasil no final do século XVII e início do XVIII devido a descoberta do ouro no sertão da Capitania de São Vicente. Para tanto, abordaremos a administração dos três primeiros governadores da recém criada Capitania de São Paulo e Minas do Ouro. “Meu avô temia e devia; meu pai devia; eu não temo nem devo”, essa frase, atribuída ao rei D. João V, retrata a segurança que o ouro das Minas, e a importância da Colônia americana ao rei em seu governo. Governo que não era tão dependente da Corte como seus antecessores, e com estabilidade política externa e financeira. É verdade que essa importância do Brasil para a política e economia portuguesa deve-se é fato com a progressiva perda de espaço no oriente, o que é chamada pela historiografia como viragem atlântica. Como destacam Nuno Monteiro e Maria de Fátima Gouvêa, a lógica de nomeação para os cargos administrativos de governadores gerais e de capitanias seguiam uma ordem pré estabelecida, contando com a seleção de agentes pertencentes a primeira nobreza lusa, com tradição nos serviços prestados ao rei. Eram em, sua maioria, experientes na arte bélica, tendo participado de guerras e na defesa das diversas praças marítimas do Império Ultramarino português. Com a publicação da existência de ouro no sertão da Capitania de São Vicente no final do século XVII, os portos do Brasil corriam riscos de invasões das potências Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 268 estrangeiras. Principalmente o porto da cidade do Rio de Janeiro que era desejada pela França com seu projeto de França Antártica. Outro fator importante a analisar é o êxodo populacional para a região aurífera, tornando cidades do reino257 e do Brasil258 quase despovoadas. A administração da região aurífera estava sob o encargo do governador do Rio de Janeiro. Mas vários fatores tornavam essa tarefa impossível. A capitania do Rio de Janeiro necessitava de mais corpos de milícia, fortificações melhores, no campo militar. O espaço para sua administração era enorme para que houvesse uma administração eficiente. Além disso, como fora dito antes, essa praça era interesse das potências estrangeiras, o que impedia que o governador voltasse seus olhos para o interior da colônia. A notícia de descoberta de ouro nos sertão paulista atraia estrangeiros de todas as partes, e tornava o porto do Rio de Janeiro extremamente atraente, pois era a principal praça comercial com as minas, e local onde era escoado o ouro para o reino. Diante disso, e para melhor administrar a região mineradora, D. João V por ordem régia cria a Capitania de São Paulo e Minas do Ouro em 1709. Tendo como seu primeiro governador D. Antônio de Albuquerque. A criação da capitania devia-se pelo enorme dificuldade de conter os ânimos daqueles que viviam na região mineradora. Eram em sua maioria portugueses do reino e das ilhas, tidos como reinóis, e colonos vindos de todas as partes do Brasil, em sua maioria bandeirantes paulistas. O conflito territorial entre reinóis e paulistas pelas principais áreas mineradoras, tida pela historiografia como Guerra dos Emboabas, em que a hegemonia paulista sofreu um forte abalo que culminou com aumento do poder de reinóis ao fim desta disputa, dividindo os diversos arraiais entre eles. Não é o intuito deste trabalho aprofundar nas questões deste conflito, cabendo apenas pontuar aquilo que foi determinante para o movimento gradual de controle régio desta região aurífera. Isso não significa que houve um controle efetivo, ou mesmo uma dominação da Coroa por meio de agentes régios sobre as minas do ouro, mas a mudança do espaço geopolítico com a diminuição do poder de mando dos potentados. Com a criação de mecanismos e instituições que favoreceram um maior diálogo entre o rei e seus vassalos nas minas. 257 Existem estudos que demonstram o fluxo migratório que abarcam o final do século XVII e a primeira metade do XVIII, que boa parte da migração era da região norte de Portugal. 258 No caso do Brasil, podemos notar esse despovoamento com as cartas das diversas Câmaras Municipais de Salvador, Recife, São Paulo e Rio de Janeiro, reclamando da falta de homens que partiam para o sertão paulista do sabarabuçu em busca de ouro. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 269 Com a expulsão do governador D. Luis Mascarenhas pelo grupo emboaba liderado por Manuel Nunes Viana, a Corte viu a necessidade de separar dividir a Capitania do Rio de Janeiro e criar a Capitania de São Paulo e Minas do Ouro. A insatisfação dos paulistas que haviam perdido terras e poder político nas minas para os reinóis, tornava-se a situação delicada de mais, necessitando de alguém experiente na arte do governo colonial. E o nome escolhido foi o de D. Antônio de Albuquerque de Carvalho, que já havia governado o Estado do Maranhão e conhecia a língua local dos bandeirantes. Essa escolha demonstra, e reafirma o que Nuno Monteiro e Maria de Fátima Gouvêa dizem sobre a dinâmica de seleção dos governadores para as colônias. Era D. Antônio experiente no campo militar e hábil na política, sendo maleável o bastante para por fim ao conflito entre emboabas e paulistas. Sua missão era apaziguar a região das minas e satisfazer os anseios de ambos os partidos em disputa. Se bem sucedido, plantaria sementes que bem cultivadas possibilitaria a Coroa um maior espaço de negociação com seus vassalos coloniais na região. É necessário ressaltar que parto do princípio que ações enérgicas próprias do governo do Conde de Assumar no momento logo após do fim do conflito entre paulistas e emboabas eram improváveis. Isso se dá pelo fato de acreditar que havia um dinamismo muito grande, e realidades entre os governos eram incomparáveis. Como disse Laura de Mello e Souza em sua obra O sol e a sombra, que o governo colonial nas minas iam se tecendo ao sabor de conjunturas e de atuações individuais; situações e personagens que obedeciam a normas e determinações emanadas do centro do poder, mas que as recriavam na prática cotidiana, tornando às vezes o ponto de chegada tão distinto do ponto de partida que, não raro, ocultava-se ou mesmo se perdia a idéia e o sentido. (SOUZA,2006:14) Partindo do suposto que é preciso dividir para melhor governar, D. Antônio de Albuquerque dividiu a Capitania de São Paulo e Minas do Ouro em duas partes: uma com sede em São Paulo que foi elevada a condição de cidade, com Câmara Municipal com privilégios iguais a cidade do Porto e que compreendia a antiga área da Capitania de São Vicente; o sertão paulista que compreendia a região do descoberto do ouro era a parte das Minas do Ouro, que tinha como sede a Vila de Nossa Senhora do Carmo, local de moradia do Governador D. Antônio de Albuquerque. Essa parte das Minas do Ouro foi dividida em três comarcas, e em cada uma com sua sede – cabeça de comarca. Para isso foram elevados os arraiais sedes das comarcas em vilas. Cada uma dessas vilas com sua Câmara Municipal, seus oficiais, e seu termo próprio. Desta forma foi assim separada a região das Minas do Ouro em 1711, pelo governador: comarca Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 270 do rio das mortes, com cabeça de comarca na Vila de São João Del Rey; comarca do rio das velhas, com cabeça de comarca na Vila Real do Sabará; e por fim, a comarca do Ouro Preto, com Vila Rica e Vila de Nossa Senhora do Carmo, com essa última como cabeça da comarca. A criação das Câmaras Municipais, uma tradicional instituição administrativa portuguesa que tem relações diretas com o monarca, foi criada para satisfazer os anseios dos principais moradores das minas. Esse desejo de representação foi evidenciado principalmente pelo conflito entre os grupos envolvidos na dita guerra de 1707-1709. Os principais destas vilas, chamados de homens bons, eram constituídos primordialmente dos Potentados enriquecidos pela mineração e comércio nas Minas. O governo de D. Antônio de Albuquerque termina em 1713 com o dever cumprido foi sucedido por D. Baltazar da Silveira. O ritual de pose dos governadores de São Paulo e Minas do Ouro seguiam uma determinada lógica própria. Primeiro, era feito um edital no reino com a discriminação dos possíveis nomes. Com a escolha do rei e sua Corte, o candidato jurava fidelidade ao monarca e partia para a região ultramarina em que iria governar, neste caso, ao porto da cidade do Rio de Janeiro. Do Rio o governador indicado partia para a cidade de São Paulo onde tomava posse. A passagem por São Paulo tem um grande simbolismo, pois era uma forma de reconhecimento do Rei para com aqueles naturais do planalto do Piratininga por ter descoberto ouro em seu sertão. Depois do discurso de posse na cidade – ato representativo do juramento feito ao rei pelo governador, mas agora entre o rei – representado pelo governador – e seus vassalos na colônia. Depois, o comandante partia para o a região das minas. Esse ritual foi praticado pelos três governadores da Capitania até o ano de 1720, quando a mesma se separou, formando as Capitanias de São Paulo, e de Minas Gerais. A fim de assegurar o sossego das Minas e uma maior arrecadação dos quintos régios, o governador D. Baltazar da Silveira procurou dividir os postos das Câmaras das Vilas elevadas em 1711 pelo seu antecessor, para que conflitos entre grupos contrários como o ocorrido entre paulistas e emboabas não se repetisse. Era atribuição das Câmaras Municipais fazer o registro de entrada e saídas dos produtos e do ouro em pó que circulavam dentro de seus termos. Desta forma, a arrecadação do quinto devido ao rei era uma das principais funções desta instituição. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 271 Como os cargos das Câmaras eram ocupados pelos principais das Vilas, é importante reproduzir aqui a constituição das primeiras mesas eleitas das Câmaras das vilas de São João Del Rey, Vila Real de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, Vila Rica e Vila Leal259 de Nossa Senhora do Carmo. Primeiro iremos apresentar a Câmara de Vila do Carmo, por ser nosso enfoque principal, e local onde Paulo Rodrigues Durão, tema desse estudo, fez parte no final da década de 20. No momento de elevação à vila e criação de sua Câmara, dentre os principais desta vila que assinaram o termo de sua criação e que tiveram posteriormente um cargo na vereança até o ano de 1730, destacam-se: José Rabelo Perdigão – Mestre de Campo da Vila –, Pedro Teixeira de Cerqueira, Rafael da Silva e Souza, Jacinto Barbosa Lopes, Torquato de Teixeira de Carvalho, Antônio Rodrigues de Souza, Inácio de Sampaio260. Desta forma a primeira mesa foi a seguinte: Juiz Ordinário Mais Velho: Pedro Frazão de Brito Juiz Ordinário Mais Novo: José Rebelo Perdigão Vereadores: Manuel Ferreira de Sáa Francisco Pinto Almendra Jacinto Barbosa Lopes Procurador: Torquato Teixeira de Carvalho Para a Vila Rica, os nomes eleitos para sua primeira mesa foram: Juiz Ordinário Mais Velho: Coronel José Gomes de Melo Juiz Ordinário Mais Novo: Fernando da Fonseca e Sá Vereadores: Manuel de Figueiredo Mascarenhas Félix de Gusmão Mendonça e Bueno Antônio de Faria Pimentel Procurador: Manuel de Almeida e Costa Já para a Vila de Sabará, formaram a primeira mesa da Câmara: 259 O título de Leal se deve ao fato desse antigo arraial de Nossa Senhora do Carmo ter sido fiel ao Rei e tomado partido contrário ao governo provisório do reinol emboaba Manuel Nunes Viana. Não se pode porem garantir que todos foram contrário a este governo, mas a maioria de seus moradores foram contrária ao governo de Nunes Viana. 260 O historiador Diogo de Vasconcellos em sua obra escreveu Inácio de S. Paio, tratando-se de uma corruptela do nome, ou uma abreviação. Já na Revista do Arquivo Público Mineiro, ano 2, n°2, fascículo 1 de 1897, pág.82, está escrito: Inácio de São Paio. Estas duas formas divergem da listagem feita da Câmara no período colonial presente no livro da Casa de Vereança de Mariana, onde se reproduz o “Sampaio” do qual utilizo. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 272 Juiz Ordinário Mais Velho: Frei José Quaresma Franco Juiz Ordinário Mais Novo: Lourenço Pereira de Azevedo Coutinho Vereadores: Antônio Pinto de Carvalho Rodrigues Domingos Dias da Silva Júnior João Soares de Miranda Procurador: D. Francisco Mateus Rondon A Vila de São João Del Rey teve mesa da Câmara formada por último dentre aquelas que eram cabeça das comarcas, sendo composta da seguinte forma: Juiz Ordinário Mais Velho: Pedro de Morais Raposo Juiz Ordinário Mais Novo: Ambrósio Caldeira Brant Vereadores: Francisco Pereira da Costa Miguel Marques da Cunha Pedro da Silva Procurador: José Alves de Oliveira Ainda em seu governo D. Braz Baltazar da Silveira criou mais três vilas: Vila Nova da Rainha do Caeté, e a Vila do Príncipe no Serro Frio em 1714 e ambas faziam parte da comarca do rio das velhas, no ano seguinte na comarca do rio das mortes foi criada a Vila de Nossa Senhora da Piedade do Pitangui. O mesmo governador teve grandes dificuldades, principalmente na forma de arrecadação do quinto, sendo que tentara a forma de quinto por bateia que consistia uma quantia de ouro por cada negro que bateasse. Foi diante disso formada uma junta com todos os ouvidores das comarcas e as Câmaras e ficou decidido que a forma de cobrança seria por cota anual de 30 arrobas que insidia não só aqueles que minerassem, mas também ao comércio. Ainda em seu governo D. Brás Baltazar enfrentou dois motins, um na Vila do Pitangui e outra na Vila do Caeté. A primeira dera-se por conta dos conflitos ainda remanescentes dos conflitos entre paulistas e emboabas, sendo a dita vila predominantemente paulista. A segunda foi motivada pela forma de cobrança dos quintos, e por meio de movimento popular botaram o ouvidor Luís Botelho pra fora da dita vila. A Câmara de Caeté desejava não mais pagar os quintos. No fim de seu governo D. Brás Baltazar da Silveira não conseguiu cumprir a missão que lhe fora entregue, a de estabelecer a cobrança dos quintos sobre bateia. Mesmo que tenha estabelecido a divisão entre as três comarcas, criação de vilas e ereção de suas Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 273 Câmaras, politicamente o dito governador esteve em mãos dos Potentados, pois não tinha recursos que possibilitasse uma negociação com os povos das Minas. Ficaram algumas questões graves para serem resolvidas: a demarcação dos limites das Minas com as Capitanias de Pernambuco e Bahia ao norte; a regulamentação dos cleros e o bispado a qual seriam sujeitos; o maior controle sobre as minas com a diminuição dos poderes dos régulos mineiros. D. Pedro Miguel de Almeida e Portugal, terceiro conde de Assumar chegara as Minas por volta de 1717. Tinha como missão aumentar o controle régio sobre a região. Em seu discurso de posse na cidade de São Paulo relembrara os feitos portugueses do qual sua linhagem fazia parte, e mesmo enaltecendo os feitos bandeirantes nos séculos passados não deixava de mostrar que eram todos vassalos do rei, portanto, deviam obediência ao monarca. Era o conde-governador militar de carreira, e havia participado da guerra de sucessão espanhola. Ao vir para o Brasil, o governador trouxe um carregamento de escravos no montante de 22:594$261 (vinte e dois contos quinhentos e noventa e quatro mil duzentos e sessenta e um réis). De sua parte, e de sua esposa – por meio do dote – investira 14:194$261. Dentre seus sócios estavam o próprio pai, D. João de Almeida – o segundo conde de Assumar – e seu amigo, e representante do rei espanhol em Portugal, D. Pedro Martins com 8:400$000. Dentre os credores do conde-governador encontrava-se o ex-governador da Capitania de São Vicente em 1709 Francisco do Amaral Coutinho com o empréstimo de 2:000$000. Essa carregação é importante para nós, pois nos dá margem para compreendermos o governo de D. Pedro de Almeida de outra forma que não apenas de um governante ultramarino, mas também de alguém que aproveitou de seu ofício e posição para fazer a acumular pecúlios enquanto estava nas Minas. Dentre os procuradores do dito governador e de Francisco do Amaral está à pessoa de Domingos Rodrigues Cobra, o sargento-mor Antônio Ferreira Pinto261, e o padre Pedro Fernandes de Inojosa Velasco. Estes três foram responsáveis por vendas de escravos, fazendas e terras em nome do dito conde-governador no tempo de seu governo. Não é surpresa que estiveram ao lado de D. Pedro de Almeida na contenção da Revolta de Vila Rica em 1720. O montante total movimentado por estes procuradores chega a um total de 15:768$000 (quinze contos setecentos e sessenta e oito mil réis), mais 1.250 oitavas de ouro. 261 Fora também juiz ordinário da Câmara da Vila de Nossa Senhora do Carmo no ano de 1714. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 274 Paulo Rodrigues Durão foi uma das testemunhas da venda de um sítio na freguesia de São Sebastião pertencente à Vila Rica, no ano de 1719, em que o procurador fora Domingos Rodrigues Cobra, e o montante o total de 5:284$800. Ainda no tempo de D. Brás Baltazar, Paulo Rodrigues Durão teve seu carregamento de fazenda e escravos apreendida na entrada do caminho da Bahia em 1712. O genealogista histórico Francisco de Assis Carvalho Franco em seu livro Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil informa que Paulo Rodrigues Durão fora “o primeiro que se estabeleceu nos primórdios do século XVIII, no Morro Vermelho do Sabará e depois mudou para o Inficionado” era um dos principais moradores desta localidade e que antes residia na Vila de Sabará. Na revolta dos escravos em 1719-1721 Paulo Rodrigues Durão auxiliou o condegovernador com sua vida e fazenda. Em carta patente dada em 27 de outubro de 1722 por D. Lourenço de Almeida, conferindo a ele patente de sargento-mor de Mato Dentro. Dentre seus feitos por ter executado pontualmente todas as ordens que lhe deu o Conde de Assumar D. Pedro de Almeida, meu antecessor, assim no socorro que deu com seus negros armados ao Tenente General Manoel da Costa Fragoso para se prenderem, e castigarem alguns negros revoltosos de pessoas insolentes262, que no distrito das Catas Altas em mato dentro andavam armados, e cometendo várias desordens sem atenção e respeito aos bandos do dito Conde que com acertada providência havia proibido aos negros o uso de armas para evitar os insultos que até a sua chegada a estas Minas com esta ocasião sucediam, haver se com muito zelo na sublevação que os moradores desta Vila Rica fomentados de pessoas malignas, fizeram contra o dito Conde por esse os não deixar viver na continuação dos roubos insultos, e vexações que sem temos a Deus e de Sua Majestade faziam a estes Povos, procedendo o dito Paulo Rodrigues Durão com conhecida fidelidade nesta ocasião porque logo que o Conde lhe fez aviso a seu socorro, trazendo consigo todos os seus escravos armados que são numerosos263, e muitas pessoas brancas, sustentando todos a sua custa no que fez uma considerável despesa da sua fazenda, e sendo encarregado da cobrança do distrito do Inficionado pertencente aos quintos nos anos de 1717, 1721, 1722 a fazer com grande atividade sem queixa dos moradores do dito distrito...(RAPM - vol.IV, 1899: 101) Como foi relatado nesta carta patente, Paulo Rodrigues Durão auxiliou o condegovernador na contenção da revolta escrava de 1719, no tumulto provocado por Manuel Nunes Viana e seu primo Manuel Rodrigues Soares em Catas Altas em 1718, na cobrança dos quintos em seu distrito e também na contenção da Revolta de Vila Rica em 1720. Somado ao fato que fora testemunha de venda um sítio em nome do dito governador, 262 Acredito que estes “negros revoltosos de pessoas insolentes” tratam-se dos negros de Manuel Nunes Viana e seu primo e sócio Manuel Rodrigues Soares, morador em Catas Altas. Estes por meio de seus negros promoveram uma revolta a fim de apropriarem de terras em 1718. 263 O número de seus escravos na lista feita para o Inficionado nos anos de 1718-1720 era de 77. Em seu inventário o número já era superior a 120 cativos. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 275 Paulo Rodrigues Durão se beneficiara da rede clientelar de D. Pedro de Almeida, conseguindo posteriormente sesmaria ao redor do rio turvo no Inficionado no ano de 1733, pelo governador conde das Galveas. Paulo Rodrigues Durão, segundo o trabalho de Simone Cristina de Faria tinha além de seu Engenho de nome Nossa Senhora de Santa Ana na cata preta no Inficionado, tinha também casa na rua direita de Vila do Carmo, elem de duas vendas em seu distrito. Em sua rede clientelar se relacionava com outros cobradores dos quintos dos termos desta vila como o juiz ordinário de Câmara em 1721 e ex-cobrador do Inficionado Coronel Caetano Álvares Rodrigues da Horta, e também com outro dois cobradores do mesmo distrito: Manoel Antônio Vergas e José Rodrigues Durão, seu sobrinho. Dentre outras pessoas como os também cobradores Tomé Fagundes do Valle e Domingos Nunes Neto – sargento-mor de Mato Dentro que fora sucedido por Rodrigues Durão – em Catas Altas; Mestre de Campo Francisco Ferreira Sáa, Capitão Manoel Cardozo Cruz e Manoel do Rego Tinoco, cobradores em Vila do Carmo; João Favacho Roubão, tio de Paulo Rodrigues Durão, que fora cobrador no distrito de Bento Rodrigues. Dentre eles, três ocuparam outros cargos relacionados à Câmara além a de cobradores dos quintos. Manoel Cardozo Cruz em foi vereador em duas oportunidades, em 1723 e 1744, e depois foi juiz ordinário em 1731; Francisco Ferreira Sáa foi juiz ordinário em 1725; e José Rodrigues Durão, sobrinho de Paulo Rodrigues, fora vereador 1765 e oficial de barrete em 1747. O próprio Paulo Rodrigues fora vereador em 1735, e juiz ordinário em 1729. Isso tudo demonstra ser Paulo Rodrigues Durão uma pessoa muito bem relacionada, tendo uma rede relacional que além do próprio governador D. Pedro de Almeida e Portugal, ainda contava com comerciantes como Domingos Rodrigues Cobra e Manoel do Rego Tinoco – que tinha uma venda em Vila do Carmo. Ao entrar com o processo de inventário sua mulher Dona Ana Garcês de Morais, Paulo Rodrigues Durão era uma das pessoas mais ricas das Minas com 53:196$265. Segundo Simone Cristina de Faria, dentre os cobradores de Vila do Carmo, somente Francisco Ferreira de Sáa com 58:882$767 tinha montante mor maior que Paulo Rodrigues no momento de sua morte. Os pedidos de missas em seu nome contam o total de 200 nas Minas, 900 no Rio de Janeiro e 200 em Portugal. O número elevado no Rio de Janeiro demonstra que Paulo Rodrigues Durão tinha uma rede clientelar considerável ligada aquela Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 276 praça, e em seu testamento encontramos os nomes de Francisco da Silva Valle e o Doutor Antônio de Almeida Viera, moradores do Rio de Janeiro. Em Portugal encontramos os nomes dos doutores Alexandre Rodrigues de Souza e Manoel Salgado de Araújo, para o Porto o Reverendo André Gomes Ribeiro. Na Bahia os doutores Cristovão de Magalhães Pinto e João Vieira Macedo, além do Guarda-Menor da Relação Miguel Pires de Lemos. Potentados como Paulo Rodrigues Durão nos mostra as formas de enriquecimento nas Minas, bem como a trajetória em busca de um enobrecimento de seu nome diante do rei e de seus iguais. Reafirma o sistema clientelar do dom com as três obrigações: dar, receber e retribuir que liga qualquer rede, desde a mais alta na Corte até a mais baixa entre escravos. A busca pelas graças e mercês como os postos de militares e a conceição de sesmarias, e a busca de enobrecimento como os ofícios camarários, além da demonstração de lealdade ao rei ao auxiliar os agentes régios na conservação da ordem nas Minas, fazendo deste potentado um exemplo de vassalo no Antigo Regime. Referências Bibliográficas BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário Histórico Geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1995. FARIA, Simone Cristina de. Os “homens do ouro”: perfil, atuações e redes dos Cobradores dos Quintos Reais em Mariana Setecentista. Rio de Janeiro: UFRJ, PPGHIS, 2010. Dissertação (Mestrado) – UFRJ/IFCS/ Programa de Pós-Graduação em História Social. FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil: século XVI, XVII e XVIII. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1989. KELMER-MATHIAS, Carlos Leonardo. No exercício de atividades comerciais, na busca da governabilidade: D. Pedro de Almeida e sua rede de potentados nas minas do ouro durante as duas primeiras décadas do século XVIII.___ In: Conquistadores e negociantes: Histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, Séculos XVI a XVIII. João Luís Ribeiro Fragoso, Carla Maria Carvalho de Almeida, Antonio Carlos Jucá de Sampaio (organizadores). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. VASCONCELOS, Diogo de. História antiga de Minas Gerais. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1999. Revista do Arquivo Público Mineiro. Ano 1, vol.IV, 1899: 101. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 277 Categorias, anúncios e imagens: o negro no Brasil ao final dos oitocentos Luiz Gustavo Vieira Santos Mestrando em História do Direito pela USP/Bolsista FAPESP luiz.vieirasantos@gmail.com Resumo: Este trabalho busca demonstrar as possibilidades de construção da imagem do negro, no Brasil, ao final da escravidão, e tem como objeto central a análise de anúncios diversos inseridos no periódico Gazeta de Notícias dos meses de abril e maio de 1888 e fotos que retrataram a época. É exposto o conceito de categoria e, após a identificação de múltiplas categorias por meio de fotos e anúncios, são analisadas como parte de um enredo social em mutação. Palavras-chave: categorias; anúncios; abolição Introdução Anúncios de jornais, aliás, o periódico como um todo, e fotografias são fontes que carregam construções imagéticas. Assim, o intuito deste este estudo é buscar identificar essas construções e, ao final, pensar o papel das categorias nelas presentes como atores em cena de uma luta social. Busca-se, enfim, as imagens e categorias representantes do afrodescendente, no Brasil, ao final da escravidão, tendo como objeto central a análise de anúncios diversos inseridos no periódico Gazeta de Notícias dos meses de abril e maio de 1888 e fotos que retrataram a época. O recorte da fonte citada dá-se em virtude de trabalho iniciado pelo pesquisador, concernente na demonstração da cultura jurídica abolicionista a partir de diferentes falas, mormente, pelo entrecruzamento das notícias e anúncios exibidos no periódico, com nove crônicas abolicionistas da série Bons Dias!,de Machado de Assis, publicada naquela gazeta. Justifica-se, assim, a importância de estudo sistemático e crítico a respeito dos anúncios e das categorias neles empregados para dar efetivo prosseguimento à pesquisa. Como ponto de partida para a análise proposta, tem-se o artigo Categorias. Uma reflexão sobre a prática de classificar, de Antônio Manuel Hespanha, em que o historiador reflete o uso das categorias como portadoras de sentidos preterintencionais. A partir das considerações feitas por Hespanha, toma-se, como referencia para este sucinto estudo, os trabalhos de Hebe Mattos (sobretudo, Das Cores do Silêncio); Ana Maria Mauad (especialmente, As fronteiras da cor: imagem e representação social na sociedade escravista imperial) e Lilia Schwarcz (Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 278 XIX); e, ainda, por ter sido pioneiro no Brasil, Gilberto Freyre (com seu estudo O Escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX). Essas obras são resenhadas com o fito de rever ou reafirmar alguns pontos da análise sobre o tema; sem apresentar conclusões, apenas para alargar o debate e dar subsídios à interação entre os anúncios e as crônicas de Machado de Assis, para, enfim, poder ser esboçada a cultura jurídica da época. 1 Categorias António Manuel Hespanha elucida, em artigo intitulado Categorias. Uma reflexão sobre a prática de classificar, a existência de sentidos preterintencionais em determinados conceitos, chamando-os categorias264. Faz essa distinção para demonstrar que (embora haja um embate com aqueles resistentes a tipos de história que não a social) há autonomia na história dos discursos, sendo esses considerados arenas de lutas sociais e, portanto, carregados desses diferentes sentidos. Aponta que “Realmente, muitos nomes não são apenas nomes. ‘Intelectual’, ‘burguês’, ‘proletário’, [...], são, além de sons e letras, estatutos sociais pelos quais se luta para entrar neles ou para sair deles.” (HESPANHA, 2003: 827). Há, dessa forma, a possibilidade de se mensurar representações, identificações ou renúncias de determinados segmentos ou condições diante dos nomes que lhes são atribuídos265. A partir da consideração supra, e dando continuidade ao rol apresentado (certamente não é exaustivo), pode-se entender como objeto de análise da história do discurso o conceito de negro, ou melhor, as várias categorias e seus diferentes sentidos de acordo como contexto sob pesquisa, qual seja, a escravidão e sua abolição, ao final do século XIX no Brasil: negro, preto, pardo etc. Assim, tem-se a possibilidade de classificar o indivíduo (no caso, afrodescendente) e lhe marcar a posição social (jurídica e política). Aceita a questão de categorias como múltiplos sentidos para designação de um ser, passa-se à utilização dessa gama nos embates sociais, a partir dos discursos conformados por vértices distintos. 264 “Existe, no entanto, uma segunda espécie de indisponibilidade: a dos conceitos tão carregados de sentido que este sentido (positivo ou negativo) sobreinveste o sentido dos utilizadores. As categorias dizem mais do que se quer, têm sentidos preterintencionais.” (HESPANHA, 2003: 826) 265 “Daí que, por outro lado, classificar alguém era marcar a sua posição jurídica e política. A mobilidade de estatuto que então existia era não era tanto uma mobilidade social, nos termos em que hoje a entendemos [...], era antes, e sobretudo, uma mobilidade onomástica ou taxinómica – conseguir mudar de nome, conseguir mudar de designação, de categoria (discursiva), de estado [...].” (HESPANHA, 2003: 827). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 279 Nesse sentido, Hespanha apoia-se em Reinhart Koselleck para tratar da lógica interna de cada discurso, já que “seus argumentos existem previamente nas memórias tópicas – no senso comum – de uma cultura local” (HESPANHA, 2003: 829), ou seja, os argumentos estão indisponibilizados, o que autoriza uma autônoma história das categorias e dos discursos266, já que esses estariam, coerentemente, dentro de um espaço limitado de variação e incerteza, provenientes de “práticas de discurso, em que, seguramente, há sujeitos que falam e que escutam, mas em que uns e outros falam e escutam em lugares e com meios sobre os quais não dispõem de um poder de conformação” (HESPANHA, 2003: 831). No entanto, o historiador titubeia quanto à possibilidade de se chegar aos “universos categoriais dadores de sentido” (HESPANHA, 2003: 838), já que admite desconhecer método que garanta o desvelar do sentido apenas a partir da redução do macro para o micro, ou seja, de categorias para práticas, de estruturas para indivíduos. Neste ponto, o trabalho que se apresenta busca, por meio de análise de um periódico (anúncios, notícias e demais informações contidas no suporte) e de fotografias de negros à época da abolição, além de arrimo na literatura selecionada, demonstrar como se dão sentidos às categorias. Não se deixa, todavia, de registrar o cuidado com que Hespanha encerrou o artigo que serviu de fagulha para este estudo, ao discorrer sobre os interesses que cercam a dação de sentidos às categorias: Interesses são também, claramente, representações, neste caso acerca das vantagens (ou inconvenientes) do alargamento do universo político a certas categorias de pessoas. Mas, ao estudarmos estes interesses, não estamos a tocar numa realidade bruta (isto é, não mediatizada por representações). Pelo contrário, estamos em pleno mundo das imagens e de representações acerca de categorias de pessoas e acerca de vantagens e desvantagens políticas. Identificamos mulheres, dementes, falidos, loucos, menores, a partir de imagens (dos esquemas de percepção) que aplicamos à realidade contínua do universo dos nossos parceiros sociais. Atribuímos ou não vantagens à sua participação política em função de imagens sobre as suas qualidades, sobre a ordem política, sobre as nossas qualidades e, finalmente, sobre o que nos convém da ordem política. (HESPANHA, 2003: 840). Assim, este trabalho pretende, exatamente a partir das fontes secundárias que tanto discorrem sobre o tema do escravo, do negro etc., no Brasil oitocentista, e da interação de imagens múltiplas construídas em torno de diferentes categorias, compará-las, com o fito 266 “Na verdade, ele [Koselleck] sublinha o modo como o discurso conforma a própria vida: ao predeterminar a sua apreensão (experiência).” (HESPANHA, 2003: 830) Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 280 de lhes atribuir sentido da forma mais legítima, mesmo que isso, em termos ideais, não seja plenamente possível. 2Representações diversas: anúncios e fotografias Discorrido acerca do que são categorias e como são utilizadas na conformação da história do discurso, o que possibilita a estruturação de palcos de lutas sociais, bem como tendo sido apontada, por António Manuel Hespanha, a ausência de um método capaz de revelar sentidos a partir da decantação de uma representação, este trabalho passa a explorar, inicialmente pautado em obra de Gilberto Freyre, a possibilidade de constituição de uma história social a partir de anúncios de jornais. Em seguida, são trazidas as leituras de Ana Maria Mauad e Lilia Schwarz acerca dessa possibilidade, bem como sobre a representação dos negros em imagens fotográficas; concomitante a esses últimos pontos, é apresentado o levantamento feito na fonte utilizada para este estudo. Ao final, tem-se a exposição do trabalho de Hebe Mattos, pelo qual se faz uma análise crítica das categorias presentes no levantamento realizado. 2.1 Anúncios Este ponto inicia-se com a obra que foi pioneira267, no Brasil, no sentido de analisar anúncios de jornais como fontes históricas, mormente para o estudo da escravidão. Assim, é a partir de O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX, ensaio originado de conferência feita na década de 1930 por Freyre, que se demonstra a possibilidade de encontrar História em anúncios, textos e imagens de periódicos: uma anunciologia (FREYRE, 2010: 127), muito embora o intuito de Freyre fosse mais de cunho 267 Na apresentação da obra de Freyre, Alberto da Costa e Silva registra que destaca “as datas para ressaltar o caráter pioneiro desses ensaios de Gilberto Freyre. Ainda que Joaquim Nabuco, numa página de O abolicionismo, se tivesse servido dos anúncios de escravos nos jornais para atacar o regime escravista, ninguém, no Brasil, havia, até então, sobre eles se debruçado como fonte histórica.” (COSTA e SILVA, 2010: 11). Imagina-se que Costa e Silva refere-se às páginas 87-88 de Nabuco: “Quem chega ao Brasil e abre um dos nossos jornais encontra logo uma fotografia da escravidão atual, mais verdadeira do que qualquer pintura. Se o Brasil fosse destruído por um cataclisma, um só número, ao acaso, de qualquer dos grandes órgãos da imprensa, bastaria para conservar sempre as feições e os caracteres da escravidão, tal qual existe em nosso tempo. Não seriam precisos outros documentos para o historiador restaurá-la em toda a sua estrutura e seguí-la em todas as suas influências.” E, ainda: “Anúncios de compra, venda e aluguel de escravos, em que sempre figuram as palavras mucama, moleque, bonita, rapaz pardinho, rapariga de casa de família (as mulheres livres anunciavam-se como senhoras a fim de melhor se diferenciarem das escravas) [...] anúncios de negros fugidos acompanhados em muitos jornais da conhecida vinheta do negro descalço com a trouxa ao ombro, nos quais os escravos são descritos muitas vezes pelos sinais de castigos que sofrem [...] realmente não há documento antigo, preservado nos papiros antigos ou, em caracteres góticos, nos pergaminhos da Idade Média, em que se revele uma ordem social mais afastada da civilização moderna...” (NABUCO, 2003: 87-88). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 281 antropológico, para identificar características que levassem às origens dos escravos e também das doenças que portaram. Posteriormente, será apresentado levantamento realizado junto à fonte eleita neste estudo para então se cuidar de categorizar e problematizar as representações encontradas, com apoio no restante da bibliografia levantada. São vários os argumentos utilizados por Freyre para utilização da anunciologia: além de defender a leitura dos periódicos como ponto de contato com uma multidão de anônimos (FREYRE, 2010: 70), o que nos é de suma importância, haja vista a concentração da análise historiográfica sobre obras consideradas maiores; defende tratar-se a história econômica do país, até a abolição, a história do trabalhador negro (FREYRE, 2010: 88), o que seria possível analisar pelos anúncios de compra, venda, locação etc. E o que reflete, diretamente, na estipulação de categorias; fala ainda de “surpresas e indiscrições diretas” por meio de anúncios e notícias, geralmente a pedido, fora da parte editorial, que contêm fatos constrangedores, inclusive com citação de nomes, provando-os (FREYRE, 2010: 93). Freyre também considera os anúncios como matéria ainda virgem (claro, à época que realizou seu estudo) até cunhá-los de “nossos primeiros clássicos [...]. Principalmente os anúncios relativos a escravos – que são os mais francos, os mais cheios de vida, os mais ricos de expressão brasileira.” (FREYRE, 2010: 84). E certamente o foram. Freyre traz inúmeros exemplos, dos quais se destacam268 alguns para, posteriormente, contrapô-los à fonte utilizada nesta pesquisa. Em verdade, os anúncios colacionados aqui são de período relativamente afastado da abolição, portanto, são mais expressivos do que os que encontramos na fonte eleita, a qual, 268“PROTESTA-SE com todo rigor das leis contra quem tiver dado, e der coito a escrava do abaixo assignado, fugida de seo poder na freguezia do Queimado desde 7 de fevereiro do corrente anno: e gratificase, conforme a trabalho de captura, á quem a prender, e levar ao dito seo senhor ali, ou mete-la nas cadêas da capital. Essa escrava chama-se Roza, He parda, magra, baixa, anda sempre de vestido, porque foi creada no mimo, tem cabello de pico, um tanto estirado hoje á força de pentes, cose de grosso, e He boa rendeira. Levou uma filha de sua cor, que terá pouco mais de anno de idade. O padre Duarte” (FREYRE, 2010: 85) “ – Vende-se um mulato de 22 annos de idade, bom alfaiate, e bom boleeiro, e um negro também do mesma idade, e uma negra de meia idade, que cozinha muito bem, e coze, de muito boa conducta, e outra negra de 22 annos, que cozinha muito bem: na rua do Livramento n. 4.” (FREYRE, 2010: 85) “Compras: AVISO. Precisa-se comprar uma mulata moça que seja perfeitamente costureira de agulha e tesoura, paga-se bem agradando as suas qualidades: na rua do Trapiche, recife, n. 40, se dirá quem a pretende.” (FREYRE, 2010: 91) Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 282 por ser de mês imediatamente anterior à reforma servil, não registra tantos anúncios de escravos. Freyre faz a ressalva269 na mesma direção: Os negros fugidos foram [...] escondendo-se nos cantos das páginas, [...] perdendo seu antigo luxo de pormenores, [...]. Era a abolição que se aproximava. Jornais que aderiram ao movimento emancipador e por escrúpulos, até então desconhecidos, de dignidade jornalística, recusavam-se a publicar anúncios de compra e venda de gente e sobretudo fuga ou desaparecimento de escravos. (FREYRE, 2010: 95). Conclui-se, assim, pela imprescindibilidade do uso da matéria jornalística, sobretudo seus anúncios, para o estudo da formação social do país, sem, no entanto (retomando o cuidado pregado por Hespanha), tomar o periódico como portador de uma verdade absoluta, reflexo da sociedade, mas como um espectro construído por determinado segmento dominante. Em síntese, de acordo com Lilia Moritz Schwarcz, em quem nos baseamos para dar continuidade a este estudo: a nossa postura diante dos jornais será a de apreendê-los não enquanto ‘expressão verdadeira’ de uma época, ou como um veículo imparcial de ‘transmissão de informações’, mas antes como uma das maneiras como segmentos localizados e relevantes da sociedade produziam, refletiam e representavam percepções e valores da época. (Schwarcz, 1987: 17). A partir da leitura de anúncios de locação do trabalho pessoal ou em busca dele, bem como de notícias sobre libertações e outras em que aparecem escravos – o que foi muito comum em período imediatamente anterior à emancipação do negro – este trabalho sistematiza a aparição da figura afrodescendente na fonte escolhida270. A leitura dos periódicos revelam, como expõe Ana Maria Mauad, “hábitos e costumes nada modernos e bem próprios da sociedade escravista – os anúncios de venda, aluguel e serviços de escravos.” (Mauad, 2000: 89), mas nem sempre com transparência, já que, enquanto notícias sobre escravos e um anúncio de locação (busca ou oferta) da mãode-obra parecem bastante realistas para a época, não o são os cínicos anúncios – a pedido – de libertações, algumas em massa, seguidas de festejos pelos proprietários benfeitores, que teriam se adiantado (alguns dias!) à lei abolicionista271. 269 Ressalva, quanto às categorias, confirmada por Mattos, para o período pós-abolição: “após a extinção do cativeiro, num quadro conturbado pelas instabilidades políticas da República nascente, libertos e ex-senhores já não mais frequentavam com a mesma assiduidade as páginas dos jornais.” (MATTOS, 1998: 291). 270 A leitura dos jornais, disponibilizados na Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro – RJ) e no Arquivo Edgard Lauenroth (Unicamp – Campinas –SP) foi concluída com as marcações necessárias para a pesquisa de mestrado desenvolvida desde o início do ano, no entanto, a sistematização dos dados é parcial até o momento, razão pela qual é apresentada de maneira bastante simples e resumida neste trabalho. 271 Neste ponto, podemos trazer entendimento de Freyre: “As alforrias, no Brasil patriarcal e escravocrático, tendo sido numerosas – como comemorações, em fámília, várias delas, de nascimentos, batizados, casamentos, sucessos patriarcais dessa espécie – , contam como aberturas a uma ascensão sócio-econômica Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 283 O dado apresentado é de suma importância para a pesquisa de mestrado em andamento: a crônica de Machado de Assis, do dia 19 de maio de 1888, sobre o escravo Pancrácio, por exemplo, foi baseada nesse tipo de anúncio citado, de senhores que teriam se adiantado à lei emancipadora, recebendo glórias e dando continuidade à subordinação do trabalhador negro. Em outras crônicas, como as dos dias 27 de abril e 11 de maio, também há referencia aos anúncios e notícias do periódico. O curioso é que, mesmo depois de publicada a notícia sobre a preparação da “Falla do Throno” a respeito da abolição, em 29 de abril de 1888, o jornal continuou anunciando as libertações em massa. O cinismo continua mesmo depois da referida fala e da aprovação pela Câmara e, ainda, após declarada a abolição. Confiram-se alguns desses anúncios e notícias272, dos quais os piores são os anúncios, a posteriori, de libertações realizadas, teoricamente, antes da emancipação273. O jornal inclusive continuou a publicar a sessão “libertações”. Machado de Assis também atentou para o fato de “alforrias em massa nos últimos dias, essas alforrias incondicionais, que vêm cair como estrelas no meio da discussão da abolição [...]” (Gazeta de Notícias, Bons dias! 11 de maio de 1888) acontecerem em período imediatamente anterior (e anunciadas até posteriormente!) à Lei, que há pelo menos duas semanas antes de proclamada já era amplamente debatida. de afro-negros que, em conjunto, pode-se dizer terem constituído antecipações nada insignificantes ao Treze de Maio.” (Freyre, 2010: 34). 272 “O Sr. João Baptista Ferreira, lavrador na Vargem Grande de Jacarepaguáa, deu liberdade ao seuúnico escravo, Justino, preto, de 25 annos de idade.” (Gazeta de Notícias, 13 de abril de 1888) “Boletim Parlamentar Seguem hoje para Petrópolis, de onde regressarão amanhã, os Srs. Presidente do Conselho e ministro da agricultura. Vão apresentar à Sua Alteza Imperial a Falla do Throno e a proposta acerca do elemento servil. Segundo nos consta a proposta contem somente dous artigos. O 2o. É: Revoga-se a legislação em contrario. Adivinhem agora os dizeres do 1o. Artigo.” (Gazeta de Notícias, 29 de abril de 1888) “A família Sá Fortes libertou incondicionalmente 700 escravos.” (Gazeta de Notícias, 1o. De maio de 1888) 273 “TELEGRAMAS Volta Grande, 11 O Sr. Pedro Augusto Rodrigues da Costa communicou hoje que a 9 do corrente libertou incondicionalmente 42 escravos e desistiu do serviço de ingênuos, em numero de 23, marcando salário aos que quisessem continuar na sua fazenda. Todos ficaram.” (Gazeta de Notícias, 12 de maio de 1888) “TELEGRAMAS Parahyba do Sul, 11 O tenente-coronel Luiz Carlos Mariano da Silva, hoje, anniversário de sua esposa, libertou sem condição e com salário 70 escravisados.” (Gazeta de Notícias, 12 de maio de 1888) “LIBERTAÇÕES O Sr. Barão de Tinguá, importante fazendeiro do município de Iguassú, acaba de libertar todos os seus escravos, em numero superior a 150, continuando os mesmos na fazenda. Os ex-escravisados fizeram-lhe estrondosa manifestação.” (Gazeta de Notícias, 12 de maio de 1888) “AVISOS S. José do Ribeirão José Gothefredo Jordão e sua mulher Francisca Alexandrina Jordão, no dia 15 de abril próximo passado, deram liberdade, incondicional, a seus dous escravos de nomes Libarilino, de 25 annos de idade e Eva de 23 annos.” (Gazeta de Notícias, 19 de maio de 1888) Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 284 Merece atenção também estrondoso anuncio274, o qual não passou despercebido por Machado de Assis em crônica de três dias depois: [...] Sim, não se imagina como sou distraído. Para não ir mais longe, ainda ontem estive a conversar com alguém, sobre estes negócios de abolição e emancipação. A conversa travou-se a propósito dos vivas ao Partido Liberal, dados por uns escravos de Cantagalo, no ato de ficarem livres, manifestação política tão natural, que ainda mais me confirmou na adoção da natureza. E dei um viva à natureza. [...] (Gazeta de Notícias, Bons Dias! 27 de abril de 1888) Por fim, a crônica sobre o escravo Pancrácio, que merece ser trazida quase em totalidade275. 274“LIBERTAÇOES EM CANTAGALO A grande obra civilizadora da abolição despertou os altos sentimentos patrióticos dos fazendeiros do importante município de Cantagallo, muitos dos quais acabam de libertar os seus escravisados, provando assim que não é aquele município um bainarte do esclavagismo, como se dizia. À frente d’esses dignos cidadãos estão os Srs. Visconde de S. Clemente e visconde de Nova Friburgo, que incondicionalmente libertaram os seus escravisados, em número de 1909, e desistiram dos serviços dos ingênuos. Estes illustres fazendeiros marcaram salários aos libertos, para a colheita d’este ano. Um facto que prova a gratidão dos libertos, deu-se com os da fazenda da Aldeia, de que é proprietário o Sr. Visconde de Nova Friburgo, esses libertos enviaram uma comissão ao seu generoso ex-senhor, incumbida de declarar que desistiam dos salários marcados para aproxima colheita. Os da fazenda do Gavião, também do Sr. Visconde de Nova Friburgo, com a banda de musica Caliope Cantagallense à frente, fizeram uma esplêndida manifestação ao seu ex-senhor, esplendida pela gratidão que elles assim testemunhavam, em nome de todos, declarou um d’elles que jamais abandonariam o seulibertador e que redobrariam de esforços para servi-lo. Registrando este facto, dis o Voto Livre, que, entre os vivas erguidos pelos libertos, foram ouvidos estes: ‘Viva o senhor que restituiu a liberdade de Deus nos Deu!’ ‘Viva o partido Liberal que ajudou.’” (Gazeta de Notícias, 24 de abril de 1888) 275 Em razão da limitação de espaço, registra-se parte da crônica em nota: “Bons dias! Eu pertenço a uma família de profetas après coup, post factum, depois do gato morto, ou como melhor nome tenha em holandês. Por isso digo, e juro se necessário for, que toda a história desta Lei de 13 de Maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar. [...] No golpe do meio (coup du milieu, mas eu prefiro falar a minha língua), levantei-me eu com a taça de champanha e declarei que acompanhando as idéias pregadas por Cristo, há dezoito séculos, restituía a liberdade ao meu escravo Pancrácio; que entendia a que a nação inteira devia acompanhar as mesmas idéias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os homens não podiam roubar sem pecado. Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio abraçar-me os pés. Um dos meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho) pegou de outra taça, e pediu à ilustre assembléia que correspondesse ao ato que acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos os lenços comovidos apanharam as lágrimas de admiração. Caí na cadeira e não vi mais nada. De noite, recebi muitos cartões. Creio que estão pintando o meu retrato, e suponho que a óleo. No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza: — Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que... — Oh! meu senhô! fico. — ... Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho deste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos... — Artura não qué dizê nada, não, senhô... Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 285 Portanto, a incongruência da sociedade brasileira, pautada em avanços bastante duvidosos, já que nunca plenos e sempre carregados de manutenção de um estado de dominação, é visível na leitura cuidadosa dos jornais da época. Deve-se ter em mente que, nesta análise, o trabalho coaduna com a exposição feita por Schwarcz: “Através desses fragmentos de textos de imprensa, desses ‘pedaços de significações’ [...], aqui se busca reconstituir as visões com que se falou sobre a condição negra.” (Schwarcz, 1987: 15). Algumas dessas perspectivas estarão presentes também em fotografias da época. Como poderemos observar a seguir. Ana Maria Mauad faz cuidadoso estudo do caso, e visa atentar, mais uma vez, às contradições da época analisada, quando afirma que “Anúncios como este desapareceram depois da abolição, neste permaneceram a atribuição da cor, mas com a omissão da cor: ‘Aluga-se dous rapazes de cor, um bom chacareiro e um copeiro, ambos de conduta afiançada e diligentes [...]’ (J.C., 8/10/1888, p.6)” (Mauad, 2000: 95). Por meio da análise de periódico distinto do utilizado pela pesquisadora e de seu próprio texto (a historiadora debruçou-se sobre o Jornal do Commercio, este trabalho faz a leitura da Gazeta de Notícias), confirma-se a presença dos anúncios com a categoria de cor e outras relativas ao afrodescendente276. — Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha. — Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete. Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos. [...] O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes de abolição legal, já eu, em casa, na modéstia da família, libertava um escravo, ato que comoveu a toda a gente que dele teve notícia; que esse escravo tendo aprendido a ler, escrever e contar, (simples suposição) é então professor de filosofia no Rio das Cobras; que os homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na terra, para satisfação do Céu. Boas noites.”(Gazeta de Notícias, 19 de maio de 1888) 276“ALUGA-SE um preto muito próprio para servente de chácara, na rua Souza Franco, n. 2 A, Villa Isabel” (Gazeta de Notícias, 10 de abril de 1888) “PRECISA-SE de pretos velhos, bons vendedores de quitanda, na rua S. Luiz Gonzaga, n. 237.” (Gazeta de Notícias, 13 de abril de 1888) “ALUGA-SE uma criada livre, para lavar e engomar, afiançada, na rua da Colina, n. 6, por detraz da igreja Estácio de Sá.” (Gazeta de Notícias, 17 de abril de 1888) “ALUGA-SE uma boa escrava preta para lavar e engomar e cuidar da casa, não tem vicio algum e garante-se na rua Victor Meirelles n. 2, estação Riachuelo.” (Gazeta de Notícias, 20 de abril de 1888) “PRECISA-SE de uma criada de cor ou branca, de meia idade, para cozinhar e maisserviços de uma pequena família, na rua do Sacramento n. 20” (Gazeta de Notícias, 23 de abril de 1888) “PRECISA-SE de uma criada, branca ou de cor, na rua da Assembléia n. 12, sobrado.” (Gazeta de Notícias, 24 de abril de 1888) Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 286 Apontam-se, sucintamente, os dados277 recolhidos da fonte: Anúncios contendo a fórmula “precisa-se 1ª Quinzena 2ª Quinzena 1ª Quinzena de abril de abril de maio 278 310 429 6 5 10 8 15 14 3 4 8 15 6 8 4 6 8 3 31 8 13 40 34 de” / “aluga-se” Anúncios contendo a fórmula “precisa-se de” / “aluga-se” + referência a “de cor” Anúncios contendo a fórmula “precisa-se de” / “aluga-se” + referência a “de qualquer cor” / “branco ou negro” Anúncios contendo a fórmula “precisa-se de” / “aluga-se” + referência à cor branca Anúncios contendo a fórmula “precisa-se de” / “aluga-se” + referência à cor negra Anúncios contendo a fórmula “precisa-se de” / “aluga-se” + outra especificidade 278 Anúncios referentes à concessão de liberdade279 Anúncios inseridos na secção “Libertações”280 “PRECISA-SE de um pequeno ou preto velho que dê fiança de sua conducta para vender doce, na rua João Pereira n. 3.” (Gazeta de Notícias, 25 de abril de 1888) 277 O intuito do trabalho, em verdade, a partir da análise dos dados, era tecer algumas considerações sobre o cinismo dos senhores, que aumentaram os anúncios de libertações com a iminência da Lei; e sobre a quantidade de referências à cor presente nos anúncios de locação de trabalho (imaginamos que, com a libertação, aumentou-se a procura pelo elemento negro; por outro lado, passam a constar outras especificidades – branco, estrangeiro etc. – exatamente para excluir a massa de ex-escravos que buscava trabalho). 278 Com “outra especificidade”, encontram-se anúncios contendo “portuguesa”; “francesa”; “livre ou não”; “idosa”; “pardinho” etc. 279 Mesmo após a Lei Áurea, houve ainda anúncios desse tipo, no entanto, com data de concessão de liberdade pretérita. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 287 2.2 Fotografias: retrato de quem? Conforme expõe Mauad, a fotografia assistiu a intenso desenvolvimento no final do século XIX, ao passar por um processo de popularização depois da redução do formato para carte-de-visite. No entanto, é questionável essa dita popularização, uma vez que a burguesia era a principal clientela do produto fotográfico, “Uma clientela enriquecida pela disputa colonial e pelos contratos financeiros, mas alijada da ‘boa sociedade’[...]. Para este público, a fotografia reordena as possibilidades de auto-representação.” (Mauad, 2000: 85). Assim, se a fotografia consegue elevar, em termos de representação, uma categoria que, embora não nobre, já é detentora de poder (pelo menos econômico nessa época) e sua principal cliente; cogita-se muito poder fazer pelo negro – mas de maneira efetiva socialmente ou apenas construindo uma alteridade? A figura do negro passa a participar desse registro, o que nos leva novamente a uma questão: de quem eram aqueles retratos? A indagação parte da análise do seguinte fragmento: “O sucesso do retrato carte-de-visite deve-se justamente a capacidade de adaptar o cliente à moldes pré-estabelecidos [...] para caracterizar diferentes papéis sociais que se quer fabricar.” (Mauad, 2000: 85; sic). A possibilidade da presença da figura negra nas fotografias não significa alguma forma de democratização do acesso ao suporte, haja vista que, embora existam fotos encomendas por/de negros, “o fotógrafo cria um padrão de representação que apaga o indivíduo em prol de um estereótipo social.” (Mauad, 2000: 86), além de ter participado de montagens fotográficas como figura periférica (ou marcadamente subordinada ou diminuída em relação ao elemento branco na imagem). Mauad explora a fotografia da época como produção de uma alteridade a ser documentada e legada à posteridade, já que foi produzida uma variada coleção de carte-de-visite, onde os escravos apareciam em atividades quotidianas, encenadas no estúdio do fotógrafo, em outras posavam em trajes bem cuidados, as mulheres com turbantes e os homens de terno, mas todos sempre descalços. A escravidão era delineada, neste caso, pela estética do exótico. (MAUAD, 2000: 90). E, nesse sentido, lança-se um desafio ao historiador: “como chegar ao que não foi imediatamente revelado pelo olhar fotográfico? Como ultrapassar a superfície da mensagem fotográfica e, do mesmo modo que Alice nos espelhos, ver através da imagem?” (Mauad, 1996: 5). 280 Tanto para anúncios de concessão de liberdade, quanto para a coluna “libertações”, foram contabilizados não o número de aparições no jornal, mas o número de anúncios inseridos nessas categorias. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 288 No caso da descrição feita por Mauad, a própria categorização da figura negra pode auxiliar nas respostas: o modo de vestir e de se portar será, algumas vezes, reflexo da categoria a qual pertence; outras, a produção de uma alteridade. Fala-se, assim, de alteridade e construção de uma imagem representativa de uma categoria específica, ponto pelo qual se faz a ponte com a última sessão deste estudo. Para fechar o ponto, são narradas três tipos de imagens fotográficas: (a) o negro como figura periférica ou diminuída na montagem (demarcando, pois, seu papel mais generalizado na organização da época: presente, mas à margem); (b) o negro como representação da subordinação e do trabalho servil (quando encontra eco nos anúncios encontrados no periódico analisado); e (c) a alteridade na construção da imagem do negro (demonstrando, assim, a fabricação de um estereótipo alheio – ou bastante minoritário – à população negra, pelo menos escravos e negros pobres). 3 Imagens múltiplas Arrematam-se as leituras de Mauad, Schwarcz e do levantamento feito junto à fonte para ser retomada a questão da categoria, como carregada de sentido questionável pelo modo como é reproduzida, ou seja, externada em imagem. Assim, a obra de Hebe Mattos fecha o trabalho para apontar quais eram as categorias presentes nos anúncios pesquisados, à época da abolição, no jornal Gazeta de Notícias. Da análise das fotografias e dos anúncios perquiridos, em consonância com a literatura que deu suporte ao trabalho, temos que “todo documento é monumento, se a fotografia informa, ela também conforma uma determinada visão de mundo.” (Mauad, 1996:8), bem como podemos concordar que “Não importa se a imagem mente; o importante é saber porque mentiu e como mentiu.” (Mauad, 1996: 15), o que nos leva a questionar a ideia de perpetuação da subordinação do negro ao domínio do senhor branco ao mesmo tempo em que se tenta construir uma imagem-alteridade do elemento servil, resultando num visual exótico. Assim, tomamos por imagem tanto a fotografia da época, quanto a narrativa presente no periódico. Dessa forma, reafirmamos as palavras da pesquisadora: Os dois tipos de textos – anúncios e fotografias – veiculam imagens diferenciadas sobre a condição de ser escravo e ex-escravo no Brasil oitocentista. A fotografia [...] produz uma representação das relações sociais que valoriza a convivência pacífica ao invés de uma conflituosa. Os anúncios, por sua vez, denotam um outro tipo de representação, baseada na lógica da mercantilização e valorização dos atributos da aparência do produto, própria à publicidade da época. (Mauad, 2000: 97). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 289 Em relação aos anúncios, a breve pesquisa realizada com o Gazeta de Notícias confirma a tese de Mauad de que “Por oposição às imagens visuais, a descrição do escravo imputa ao negro e tipologiza seus atributos, criando uma representação que descaracteriza a pessoa e sua humanidade ao valorizar o seu caráter de mercadoria e de trabalho potencializado.” (Mauad, 2000: 95). Ratifica-se também, através de anúncios a pedido e notícias de libertações, a ideia pregada por Schwarcz de que, nessas publicações, “o tom era sempre o mesmo: a libertação era uma concessão do proprietário branco aos seus escravos, que em troca deviam fidelidade” (Schwarcz, 1987: 200). Não se vê, portanto, paralelos ideais entre as imagens textuais e fotográficas, no entanto, vislumbra-se paralelo entre a condição de parcela dos negros do país, à época da abolição, e as imagens construídas. Isso porque, veremos a seguir, o afrodescendente também teve sua imagem construída a partir das categorias em que se encontrava, ou que queria se encontrar. Conclusão: categorias na construção de imagens múltiplas Arremata-se este trabalho com a tentativa de exposição crítica das categorias que foram encontradas na fonte pesquisada, o que se faz a partir da obra de Hebe Mattos, já que a historiadora propõe “explorar os significados da liberdade” uma vez que “O silêncio sobre a cor, que antecede o fim da escravidão, sem dúvida está relacionado a este significado, assim como sua generalização sugere que, por trás dele, se encontra mais que uma ideologia do branqueamento, construída e imposta de cima para baixo” (MATTOS, 1998: 19). Cabe, pois, o paralelo com este estudo, já que os anúncios encontrados, bem como as fotografias analisadas, nem sempre trouxeram de forma expressa a colocação do negro na sociedade, criando uma alteridade, um branqueamento ou um silêncio a serem desvendados. A pesquisa de Mattos pautou-se, sobretudo, na análise de ações de liberdade e inventários do século XIX, em que a historiadora procurou referência a cores, assim como traduziu a ausência delas como um silêncio eloquente, no sentido de busca por transformação de status social. Dessa forma, seu trabalho é aqui interessante para auxiliar na categorização das imagens encontradas nos anúncios e fotos analisados. São fontes diferentes, sendo os processos judiciais materiais ricos em enredo que muito contribui para o desvelar de uma época, o que não ocorre de imediato por meio do estudo de imagens. No entanto, é crível a ponte que se faz entre os trabalhos. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 290 De início, registra-se a diferenciação exposta, pela autora, entre pardos, negros, pretos e crioulos: o primeiro281 como categoria geral para o não-branco, afrodescendente, livre; crioulo para escravos e forros brasileiros; preto para escravos e forros africanos; enquanto negrocarregava componente racial, mormente em registros de censos282, para população livre (MATTOS, 1998: 30). A pesquisadora aponta que não se tratava apenas de uma ideologia do branqueamento, mas de necessária busca por refutação de um “estigma de cativeiro” e consequente busca por direitos de cidadãos. Assim, deixar de ser liberto para obter cidadania assemelhou-se ao silêncio quanto às cores negro, preto e crioulo, antes sinônimas da escravidão283, o que ocorreu não apenas em nível individual, mas de forma genérica (refutando, pois, a ideologia do branqueamento na auto-identificação), demonstrando a percepção de luta por colocação na sociedade284. Da leitura do jornal e da análise das fotografias, em consonância com a tese de Mattos, tem-se que o silêncio quanto às cores foi procedente no sentido de inserção social e não de uma ideologia do branqueamento. A expressa alusão ao preto, ao pardo, ao negro etc. nos anúncios, assim como os diferentes portes encontrados nas imagens fotográficas, demonstra a existência da estratificação e do tratamento diverso existente na sociedade escravista. No entanto, a ausência da especificação ou criação de alteridade não registra a ausência material do ser, mas a busca por uma nova colocação, mais cidadã. A conclusão, portanto é de que: “Negar-se como negro (liberto) significou, fundamentalmente, rejeitar que o estigma da escravidão fosse transformado em estigma 281 “Desta forma, o qualificativo ‘pardo’ sintetizava, como nenhum outro, a conjunção entre classificação racial e social no mundo escravista. Para tornarem-se simplesmente ‘pardos’, os homens livres descendentes de africanos dependiam de um reconhecimento social de sua condição de livres, construído com base nas relações pessoais e comunitárias que estabeleciam.” (MATTOS, 1998: 30) 282“A referência à cor, na qualificação de testemunhas livres, a partir da segunda metade do século, acontece apenas como uma referência negativa. Em geral, calava-se sobre o item cor [...]. Tenho trabalhado com a hipótese de que, quando a cor era mencionada por obrigatoriedade (como no caso dos censos e, depois, dos registros civis), durante o século XIX, isto ainda se fazia majoritariamente como referência à condição cativa, presente e pretérita, e à marca que esta impunha à descendência.” (MATTOS, 1998: 98); e“O crescente processo de indiferenciação entre brancos pobres e negros e mestiços livres teria levado, por motivos opostos, à perda da cor de ambos. Não se trata necessariamente de branqueamento. Na maioria dos casos, trata-se simplesmente de silêncio. O sumiço da cor referencia-se, antes, a uma crescente absorção de negros e mestiços no mundo dos livres, que não é mais monopólio dos brancos, mesmo que o qualificativo ‘negro’ continue sinônimo de escravo [...].” (MATTOS, 1998: 99) 283“Perder o estigma do cativeiro era deixar de ser reconhecido não só como liberto (categoria necessariamente provisória), mas como ‘preto’ ou ‘negro’, até então sinônimos de escravo ou ex-escravo e, portanto, referentes ao seu caráter de não-cidadãos.” (MATTOS, 1998: 284). 284“A ilusão historiográfica da marginalização e ‘anomia’ dos libertos se fez, em grande parte, porque a maioria deles conseguiu, em poucos anos, recursos sociais suficientes para não mais ser atingida pelo estigma da escravidão.” (MATTOS, 1998: 349). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 291 racial para mantê-los ‘libertos’, ao invés de livres.” (MATTOS, 1998: 361). Assim, parte da população descategorizou-se para ser recebida sem a mácula da escravidão, permanecendo com sua caracterização “racial”. Bibliografia Fontes primárias: Gazeta de Notícias. Abril e Maio de 1888. Rio de Janeiro: 1888. FERREZ, Gilberto. A fotografia no Brasil: 1840-1900. Rio de janeiro: FUNARTE, 1985. KOSSOY, B. e CARNEIRO, M.I.T. O Olhar Europeu: o negro na iconografia brasileira do século XIX. São Paulo: EdUSP, 1994. LAGO, Pedro e Bia Corrêa do. Coleção Princesa Isabel. Fotografia do século XIX. Rio de Janeiro: Capivara, 2008. GOULART, Paulo Cesar Alves; MENDES, Ricardo. Noticiário Geral da Photographia Paulistana 1839-1900. São Paulo: Imprensa Oficial, 2010. Fontes secundárias: CARVALHO, José Murilo. “Imagens da Abolição” In Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 6, n° 68, Maio de 2011. Rio de Janeiro, 2011, pp. 34-39. FREYRE, Gilberto. O escravo em anúncios de jornais brasileiros do século XIX. São Paulo: Global, 2010. HESPANHA, A. Manuel. “Categorias. 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Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 293 Ferreiros, Mestres de Forja, Fabricantes de ferro, engenheiros, operários: considerações sobre o trabalho e a história social dos trabalhadores em metais em Minas Gerais e Rio de Janeiro (1812-1900) Marcus Vinícius Duque Neves Mestre em História pela UFMG duqueneves@yahoo.com.br Resumo: A siderurgia de pequenos fornos em Minas Gerais iniciou-se com fornos simples, de técnica africana, até a introdução de novas técnicas no início do século XIX pelo engenheiro alemão von Eschwege. Desde então se modificou gradualmente o status relativo das personagens sociais no trabalho siderúrgico, dividindo-o em diversas formas e esquemas produtivos levando à diversificação em novas categorias e estatutos profissionais. Buscando ir além da importante, mas nem sempre suficiente dicotomia “trabalho escravo x trabalho livre”, identifica-se novas ‘camadas’ formadas no mundo do trabalho especializado com metais durante o século XIX e interfaces, mudanças e permanências entre velhos e novos estatutos das categorias que compunham as suas várias atividades. Para entender tais mudanças é necessário perceber as mudanças ocorridas no primeiro grande polo industrial do país, a cidade do Rio de Janeiro, e como os setores metalúrgicos e metal mecânicos ali se relacionavam com as mudanças ocorridas em paralelo em Minas Gerais. Palavras chave: Siderurgia, trabalho, especialização. Abstract: Small furnaces metallurgy in Minas Gerais began with simple furnaces of african techniques, until german engineer Von Eschwege, in the beginning of XIX century, brought new techniques. Since then, the relative status of the social actors in the metallurgy work scenario gradually changed, dividing it in several different ways of production, leading to new professional categories and statutes. Looking forward to go beyond the important ( but not always sufficient) dichotomy “ slave labor X freemen labor” , new social strata in the specialized metal labor world of the XIX century were identified, as well as the changes brought by new statutes and the remaining of old statutes of the laboral categories involved in this activity. To understand such changes it is necessary to realize the changes that happened in the first big industrial hub in Brazil, the city of Rio de Janeiro, and how the metallurgy and heavy-mechanics sectors in it interacted with the changes happening in Minas Gerais. Key-words: Metallurgy, work, specialization. A vinda da Corte Portuguesa ao Brasil no ano de 1807 trouxe a necessidade de se estabelecer manufaturas antes proibidas na colônia, como forma de fornecer tudo o que antes era fabricado ou obtido por meio da Metrópole, agora ocupada por tropas francesas, e tornar o Brasil, agora sede do Reino, um lugar apto a resistir a possíveis ameaças externas. Entre as proibições já há algum tempo canceladas, estava a fabricação industrial do ferro, que teve um impulso considerável pela iniciativa de técnicos estrangeiros Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 294 desembarcados no Rio de Janeiro e que se dirigiram gradualmente a locais escolhidos de acordo com os novos planos da Corte, com o intuito de estabelecerem o primeiro parque siderúrgico dotado de altos fornos ou de equipamentos e procedimentos tão modernos quanto os existentes então na Europa. Apesar das difíceis e custosas experiências com os altos fornos da Fábrica de Ipanema em Sorocaba, São Paulo, e da Fábrica do Morro do Pilar no Serro, Minas Gerais, sobressaiu-se em Minas Gerais outro estabelecimento que não foi dotado deste equipamento, e, alternativamente, buscou maior produtividade pela adoção de equipamentos de mais simples operação e manutenção, em vista das limitações de mão de obra, transportes e valores para investimento. Esta iniciativa foi a Fábrica de Ferro Patriótica ou do Ribeirão da Prata, próxima a Congonhas do Campo, que funcionou utilizando fornos baixos catalães, sob a orientação e direção de Wilhelm Ludwig Von Eschwege, fazendo sua primeira corrida de ferro líquido há exatamente duzentos anos, em 1812. (ESCHWEGE: 1979 e 2002) Apenas esta última iniciativa fez escola, sendo reproduzidos seus modos de operar, em todo ou em parte, por alguns antigos e novos pequenos produtores de ferro locais, muitas vezes com o auxílio de antigos empregados livres e escravos que trabalharam na Fábrica do Ribeirão da Prata em seus primeiros anos. (ESCHWEGE: 1979; LIBBY: 1988) A produção protoindustrial de ferro nacional durante o período Joanino (1808 -1822) estava relacionada principalmente às demandas locais em Minas Gerais, Capitania e depois Província mais populosa, além das demandas de São Paulo e Rio de Janeiro, que recebiam mais facilmente ferro importado, mas parcialmente sustentadas pela Fábrica de Ferro de Ipanema, em Sorocaba. Exatamente pela facilidade de receber ferro importado, as grandes oficinas metalúrgicas do país foram surgindo principalmente nas cidades portuárias, sendo que no centro-sul, o Rio de Janeiro foi o primeiro centro de oficinas metalúrgicas e navais, com os arsenais e os estaleiros da Ponta da Areia, em Niterói, comprado e aumentado em 1846 pelo Barão de Mauá. (CANABRAVA: 2005; MOMESSO: 2007) Apesar de toda uma gama de usos dos metais relacionada ao mundo rural no interior de Minas Gerais e São Paulo, por quase toda a primeira metade do século XIX houve poucas empresas para trabalhar metais com equipamentos de grande tamanho e transformá-lo em obras complexas, menos ainda em peças de máquinas modernas que começariam a aparecer, adquiridas principalmente na Europa, e logo também nos Estados Unidos. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 295 Assim, a protoindústria que fabricava o ferro nacional se desvinculava em grande medida do mundo moderno das máquinas complexas que era representado então, e principalmente, pela ferrovia e pela indústria naval. Por volta de 1850, no interior do país, as oficinas anexas às fábricas de ferro, e os ferreiros, transformavam o ferro em ferramentas básicas de trabalho para lavoura, mineração e produtos simples ordinários, assim como partes de outras produções, como arreios, recipientes, gradis. Poucos estabelecimentos estavam habilitados a transformar ferro em algo mais que isso, e talvez apenas três oficinas, a da Mina de Morro Velho, em Congonhas do Sabará (atual Nova Lima); a fábrica de ferro de Jean de Monlevade, em Piracicaba e a fábrica de ferro do Girau, em Itabira, o realizavam constantemente e habitualmente.285 (LIBBY: 1984 e 1988; BARROS; 1989) Mesmo com estas limitações produtivas o mundo do trabalho em metais da região sudeste do Brasil já se estratificava em muitos agrupamentos de trabalhadores, dependendo do que faziam e onde estavam: Nas oficinas de empresas estrangeiras, como na de Morro Velho, estavam geralmente técnicos e trabalhadores estrangeiros com alguns auxiliares nacionais, por vezes alguns escravos. Entre as fábricas de ferro do interior de Minas Gerais havia as grandes, como a de Monlevade, onde predominavam os escravos sob a direção de um técnico; e as fábricas de porte menor, onde havia por vezes apenas escravos sob a direção de um feitor, tecnicamente auxiliados por técnicos itinerantes, contratados para montar as partes móveis dos equipamentos e instruir sob seu funcionamento, além de esporadicamente serem chamados a consertar e fazer manutenção destes mesmos. (SENA: 1881; BOVET: 1883; LUCCOCK: 1975; BAETA: 1973; LIBBY: 1984 e 1988; GOMES: 1983; BARROS: 1989) Por fim havia as fábricas pequenas de fornos de cadinhos, tocadas quase que exclusivamente por escravos: aí dirigia o trabalho o escravo ladino que aprendera o ofício na África ou aprendiz deste, sem interferência do proprietário da forja, e com a obrigação de produzir uma quantidade fixa por período, que em alguns lugares como a região de Itabira, em certa época era de cerca de 120 quilos de ferro por dia. (SANTOS: 1986) Além das fábricas, havia os ferreiros ordinários que estavam longe de se constituir em um grupo de trabalhadores homogêneo. Ferreiros urbanos atuavam muitas vezes entre as categorias de artesão e dos “profissionais do arremate” nos trabalhos de finalização 285 Morro Velho: Peças de máquinas, reparos em grandes máquinas e artefatos específicos para o trabalho de mineração industrial. Fábrica de Monlevade, grandes cabeças de pilão para mineração por encomenda da própria Morro Velho. Fábrica do Girau: espingardas. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 296 relacionados ao que hoje chamamos de construção civil e tanto podiam ter origem europeia ou ser libertos ou escravos. Em Minas Gerais predominavam os últimos nestas atividades. Alguns realizavam trabalhos específicos como gradis, dobradiças, fechos e fechaduras – muitas vezes complexos objetos de arte - dividindo o espaço urbano com ferreiros generalistas que cuidavam de produzir cravos, grampos e tachas simples e consertar tudo que lhes fosse levado. Já os ferreiros rurais, quase todos livres pardos instruídos ou escravos de ganho, tinham um perfil generalista. Atendiam em suas próprias ferrarias; estavam estabelecidos em algumas fazendas de grande porte; ou eram itinerantes, indo de fazenda em fazenda, localidade em localidade, oferecendo serviços, e não poucas vezes utilizavam pequenas forjas construídas especialmente para esperá-los.(SENA: 1881; BOVET: 1883; LUCCOCK: 1975; BAETA: 1973; LIBBY: 1984 e 1988; GOMES: 1983; BARROS: 1989; CUNHA: 2005) Os instrumentos de trabalho dos trabalhadores das ferrarias (oficinas) e das fábricas de ferro - que possuíam em anexo uma pequena oficina - eram os malhos e as safras (bigornas) de diversos tamanhos, foles, tenazes, alicates, pinças e tesourões de corte, varetas e não mais de uma dezena de ferramentas específicas para segurar, dobrar, cortar e medir. Além destes instrumentos comuns a todos os trabalhadores em ferro, equipamentos mais caros eram importados pelas empresas estrangeiras para suas oficinas, como os laminadores da fábrica de Monlevade, e tornos e material moderno para serralheria em Morro Velho. Estes instrumentos, também listados em inúmeras partilhas e inventários, sugerem, por vezes, os limites do trabalho ali, em um dado momento. (SANTOS: 1986; NEVES: 2010) Enquanto a realidade material do trabalho com o ferro assim se parecia no interior do centro sul do Brasil, com o instrumental moderno e a complexidade sendo exceção, na Corte do Rio de Janeiro da metade do século XIX cada vez mais tais instrumentos do que seria chamado, em breve, de indústria metal-mecânica, se constituíam em regra. Tais atividades encontraram grande crescimento no Rio de Janeiro imperial, ruas batizadas ou apelidadas com nomes de setores de ofícios do trabalho com metais, como a rua dos Latoeiros, demonstram a importância relativa destes setores, pela existência de muitos que destes ofícios se sustentavam, apesar de só existirem dados incompletos nas reminiscências destas atividades.286 286 Nas cidades de Minas Gerais essa concentração urbana de atividades não aconteceu, pelo menor tamanho das Vilas e menor número absoluto de artífices. O termo ‘Quarteirão’ que surge em diversos documentos dos séculos XVIII e XIX, como os Mapas de População e censos de Minas Gerais, é uma circunscrição geográfica muito mais ampla que nosso atual quarteirão urbano delimitado por algumas ruas. Assim, vários fogos ou Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 297 Esta primeira vista geral teve o fim de demonstrar de forma simplificada o quanto foi diversificada a produção e a utilização de metais, assim como sua distribuição espacial básica, urbana, rural, no interior e litoral. Em Minas Gerais a mão de obra das fábricas de ferro era constituída de uma porcentagem significativa de escravos. No caso da primeira que adotou equipamentos mais eficientes, a Fábrica Patriótica, seu planejador e responsável, o Barão de Eschwege, buscou treinar homens livres inicialmente. Logo teve que utilizar escravos alugados para certos serviços. Nesta fase inicial, quando buscou manter-se fiel ao repúdio que tinha ao trabalho escravo, Eschwege registrou que 28 trabalhadores livres deixaram a fábrica para, em geral, montarem as próprias forjas após de aprenderem o ofício. Os escravos alugados foram retirados pelos seus donos após o mesmo período de aprendizado, pois desejavam que seus escravos operassem forjas em suas próprias fazendas. Eschwege comprou então, a contragosto, 20 escravos. Em 1831, a fábrica operava com 55 trabalhadores escravos. (ESCHWEGE: 1979; LIBBY: 1988) Além dos 28 trabalhadores livres e dos escravos treinados e remanejados, outros trabalhadores estrangeiros do ferro vieram para Minas Gerais, assim como outros escravos foram treinados em outros estabelecimentos. Há razoáveis fontes para comprovar mais algumas dezenas desses estrangeiros e talvez uma centena ou mais de escravos treinados para forjas, fábricas e oficinas. Além destes, nos Mapas de População e censos registraram um grande número de ferreiros, caldeireiros, paneleiros, etc, sendo a sua maioria de pardos livres, dos quais não se consegue indagar sobre as origens de suas habilidades. Para estes últimos, a habilidade mais citada, margem para mais indagações, é a de saberem ler. (LIBBY: 1988) Em uma sociedade marcada pelo analfabetismo, saber ler é algo muito valioso, o que abriria espaço para uma maior iniciativa pessoal no sentido do comércio e do aumento do círculo de sociabilidades. A falta de livros técnicos ou outras fontes escritas impossibilitava, ao que tudo indica, que a alfabetização levasse ao aperfeiçoamento do ofício de fabricar ferro ou de manuseá-lo, e o indicativo disso é a falta crônica de modeladores e artífices competentes, falta esta sentida por Eschwege entre 1812 e 1821; citada por Monlevade em seu relatório de 1854; confirmada e lamentada pelos professores da EMOP na década de 1880 e sentida com pesar pela Usina Esperança e pela Usina Wigg na década de 1890. estabelecimentos de trabalho com o ferro ou outros metais em um quarteirão significa, nestes documentos, uma concentração em um distrito ou grande bairro. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 298 (SENA: 1881; BOVET: 1883; FERRAND: 1884; O PAÍZ: 10/04/1894, 19/09/1895,05/10/1897, 17/02/1898; LIBBY: 1988; ESCHWEGE: 2002; NEVES: 2010) Para o escravo havia menores possibilidades de chegar ao domínio da leitura e da escrita, mas é conhecido o fato de que eram procurados escravos ladinos que já fossem conhecedores das técnicas dos fornos de cadinhos, técnica que trouxeram da África e que prescindia das habilidades das letras, já que aprendidas e reforçadas por outros métodos tradicionais de memorização. Dos escravos que demonstravam capacidades de aprendizado pela observação, muitos eram emprestados ou alugados aos donos de grandes fábricas para serem reutilizados depois em outros estabelecimentos, como aconteceu com Eschwege na Patriótica e a Monlevade na sua fábrica, chegando a valores bem mais altos do que outros cativos. (ESCHWEGE: 1979; GOMES: 1983; BARROS: 1989) Essa rotatividade de mão de obra pode significar a movimentação de conhecimentos, o estabelecimentos de novos contatos e certo mercado, ainda que restrito, de mão de obra semiespecializada. Estes escravos poderiam ter algum contato temporário com os pardos livres ferreiros, pois estes poderiam também comprá-los ou treiná-los antes de revendê-los. Nestas complexas negociações, um bom escravo ferreiro talvez tivesse alguma influência sob o seu próprio destino, e poderia ter algumas vantagens frente aos outros que não possuíam tal treinamento. Sobre estes interstícios da escravidão real, onde o escravo se insinua como agente através de suas habilidades e das concessões que arranca de seu proprietário, cabe uma nota sobre o trabalho de Ciro Flamarion Cardoso que, a partir de estudos comparativos com a realidade escravista em outros países, defendeu a possibilidade de uma “brecha camponesa” no Brasil para os escravos na lavoura, já que estes conseguiam ser ‘camponeses’ na parte livre de seu tempo, concedida pela prática paternalista e dentro do interesse do escravocrata de que o escravo se sustentasse por si mesmo, como ocorreu em diversas outras colônias e no sistema escravista norte-americano pós-independência. Carlos Magno Guimarães, estudando especificamente o Brasil, com ênfase em Minas Gerais, identificou nos quilombos a ‘brecha camponesa’, já que o quilombo se inseria comercialmente no âmbito do mercado, assim atuando no lugar do camponês inexistente em uma realidade instituída de plantations. Apesar do foco no caso da lavoura se dar no período colonial, aí se abre uma questão: Haveria também algo como uma ‘brecha artesã’ ou ‘brecha operária’ no século XIX, entre escravos operadores de fornos de cadinhos ou Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 299 ferreiros escravos que ganhassem benefícios pelo seu status diferenciado no trabalho, ocupando posições sociais que se pensavam inexistentes no Brasil escravocrata?287 (CARDOSO: 1987; GUIMARÃES: 1989) Para os ferreiros operadores das fábricas de ferro de cadinhos, parece muito difícil, senão impossível por causa da produção geral dos fornos que operavam e o valor da tamina diária exigida, que se igualavam um pouco acima dos cem quilos de ferro por dia, a não ser que se conseguisse manter a produção constante em vários cadinhos.288 (SANTOS: 1986). As fábricas de ferro com fornos de cadinho eram locais de trabalho intensivo, característica do trabalho siderúrgico moderno, e situadas no espaço rural eram em geral distantes o suficiente para impedir um efetivo trânsito dos escravos, pelo menos no período de produção.289 Estes dois fatores tolheriam o acesso dos artífices a uma rede maior de sociabilidades por onde poderiam se libertar paulatinamente das amarras do sistema escravista. Há casos, no entanto, de situações de negociação e maior abertura, como o pagamento por lupa de cerca de 1$000 (Um mil réis), entre escravo produtor e seu proprietário. 290 (SENA apud SANTOS: 1986). Contudo, o professor da Escola de Minas de Ouro Preto, Armand de Bovet, afirma que, por volta de 1883 observou como era comum a instituição do escravo de ganho. Segundo ele muitos possuem escravos “carpinteiros, pedreiros ou alfaiates” trabalhando estes “onde acham serviço”. Continuando, afirma que “vê-se que ao menos certos proprietários de forjas fazem o mesmo”. (BOVET: 1883) 287 Esta suposição não é originalmente minha, mas não localizei nenhum texto em que ela esteja registrada. Como fui aluno de Carlos Magno Guimarães em várias disciplinas, lembro-me vagamente de que em algum momento tal possibilidade foi discutida brevemente entre alunos e mestre. José Newton Coelho de Meneses cita casos de ferreiros, ainda no período colonial, em situações bem similares aos que se encontram depois na documentação do século XIX, na sua história do abastecimento alimentar nas Minas Gerais setecentistas – O Continente Rústico - de 2000. (ref. completa na bibliografia) 288 O autor consultado, Antônio César Santos, não explicita em sua dissertação se a tamina de cerca de 120 quilos diários era baseada em cada cadinho ou para a produção total das fábricas que utilizavam esta técnica, e que, em geral, possuíam de 3 a 4 cadinhos funcionando. No primeiro caso, não haveria possibilidade de apropriação excedente pelo escravo. Na segunda, parece inconsistente que a produção realizada pelo escravo pudesse exceder em mais que o dobro o que ele deveria reverter ao seu dono. Isto significaria o absurdo do enriquecimento do escravo em proporção maior do que de seu proprietário. Assim, o tema permanece em aberto para maiores pesquisas, mas as fontes documentais neste sentido parecem ser muito escassas. 289 Em geral relacionado aos meses secos o suficiente para se produzir, transportar e estocar com sucesso o carvão vegetal. 290 Afirmou-se constantemente que os donos eram ausentes, se constituindo proprietários, mas não fabricantes de ferro. Já que eram ‘capitalistas não gerentes’, entregavam não só o poder de fazer, mas de como fazer, ao escravo ou responsável indireto, sendo este último raro. Assim, os arranjos deveriam se assimilar com o que vigorava entre os escravos de ganho, com as grandes aberturas para a busca da liberdade futura pela acumulação pelo escravo, desde que esse pudesse trabalhar além do exigido para pagar ao patrão o combinado. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 300 Nas fábricas maiores, que operavam no método Italiano ou Catalão291 o excedente comercializável poderia, em tese, aparecer mais constantemente, mas não há dados. Na unidade familiar do escravo/artesão/operário, também em tese, poderia aparecer concessão de lotes para o plantio além de outras de natureza diversa, mas novamente faltam dados. Para os ferreiros urbanos ou para os itinerantes a possibilidade de ascensão parece, por outro lado, ser real. Neste caso, não só a possibilidade de enriquecer com os ganhos que excedessem o que teria que pagar diariamente, semanalmente ou mensalmente ao seu dono, mas pela rede de sociabilidades que poderia acessar, demonstrando diligência e intelecto que o levassem não só no rumo da liberdade, mas de um status social superior. Apesar de tal possibilidade, é certo que essa ascensão deve ter ocorrido poucas vezes. O exemplo mais radical, a história do ferreiro Francisco Paulo de Almeida, negro nascido em 1826 em Lagoa Dourada – MG, e que se tornou empresário e capitalista, chegando ao baronato com o título de Barão de Guaraciaba, salta aos olhos. Construiu seus laços de sociabilidade pela acumulação e sucessão de atividades de ferreiro, ourives e tropeiro. (FERREIRA: 2008) Assim a produção de excedentes ou produção independente fora do tempo de trabalho, assim como a produção dos laços de sociabilidade parecem ser fatores concomitantes para a existência de progressão na sociedade para estes artesãos. Nos anos entre 1808 e 1824, ainda estava em questão a sobrevivência das corporações de ofício, que atuavam muitas vezes tanto para os escravos quanto para os libertos, nas irmandades religiosas. O trabalho de Mônica de Souza N. Martins, coloca novas questões que indicaria um status claro de artífices entre seu grupo e perante a sociedade, aspecto este que escapou à análise historiográfica tradicional, que negava maiores possibilidades de inserção do escravo nas sociedades coloniais, reforçando apenas o papel do trabalho forçado e sob violentas formas de coação. Tendo por base a realidade dos ofícios no Rio de Janeiro de então, apesar de legalmente as corporações de ofício terem sido abolidas pela constituição de 1824, isso não significa o imediato desaparecimento de certos aspectos do status do artesão em toda a sociedade pós-colonial. Além do mais, apesar do trabalho de Mônica Martins focar principalmente as corporações de ofício no 291 Métodos em que partes móveis, sopradores do forno e malho para estiramento da lupa, são movidos pela força de rodas hidráulicas. Esses métodos poupam trabalho e aumentando o rendimento total da fábrica, mas são mais exigentes no que toca a sua manutenção e operação, assim como dependem de local com abundantes águas e desníveis apropriados. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 301 Rio de Janeiro, ela cita diversos aspectos das irmandades que as corporificavam, em diversas regiões, inclusive nas Minas Gerais. (MARTINS: 2008) Luiz Antonio Cunha já havia apontado que os trabalhadores em metais no Rio de Janeiro e em outras grandes cidades como Salvador apareciam em várias bandeiras além da de São Jorge, como os latoeiros de fundição sob a bandeira de São Miguel; os seleiros e freeiros sob a Bandeira de Nossa Senhora da Conceição; os latoeiros de folha branca e de folha amarela, além dos torneiros, sob a Bandeira de Nossa Senhora das Mercês; e os picheleiros (trabalhos em folhas de flandres) na Bandeira de Nossa Senhora da Oliveira. (CUNHA: 2005) Assim, podemos considerar que a sobrevivência das Irmandades à abolição das Corporações de Ofícios, passando aquelas a atuarem apenas em atividades assistenciais e religiosas retirou as prerrogativas legais de exclusividade dos oficiais e aprendizes nelas inscritos, mas não aboliu totalmente e imediatamente as relações sociais já existentes e a visão social sobre o status e o local do artesão na sociedade. Apesar de toda a ênfase dada pela historiografia no sentido da desclassificação do trabalho manual no Brasil escravista, ela comporta certas exceções, não sendo absoluta, já que a ideia de trabalho artesanal comporta tanto a parte manual quanto a intelectual do trabalho. Aliás, a erosão do status do artesão se deu em um processo muito longo durante o século XIX e XX, processo importante, mas que sugere muitas possibilidades futuras de pesquisas. Nas entrelinhas ou silêncios das obras de Douglas Cole Libby podemos perceber que haveria muito pouco espaço para o éthos corporativo do artesão no trabalho escravo relacionado á produção de ferro nas fábricas, pelo aspecto local e apartado como esta mão de obra aparece alocada no espaço (LIBBY: 1988; 2006). Porém, por outro lado, as afirmações deste e de outros autores sobre a proeminência do trabalhador escravo permitem supor que o escravo ladino, que já vinha da África formado nos saberes tradicionais da fundição do ferro, podia, entretanto, já possuir e manter seu prestígio e éthos de caráter mágico, religioso e artesão entre os seus próprios (SILVA: 2010). Também resta ainda outra possibilidade, pois, a análise que a historiografia mais marcadamente econômica e quantitativa tem feito ao longo de duas décadas não visou à totalidade das relações culturais subjacentes possíveis, principalmente no que toca aos ferreiros urbanos ou independentes. Alguns europeus aparecem de vez em quando neste universo dominado pela mão de obra escrava, atuando, talvez, como consultores. Por exemplo, nos Mapas de População Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 302 aparece em um fogo do então distrito de Itabira do Campo, hoje Itabirito, quatro alemães ferreiros vivendo juntos sem nenhum escravo ou família, em 1833. (MAPA DE POPULAÇÃO DE ITABIRITO: 1833). Seriam remanescentes dos trabalhadores que abandonaram a fábrica Patriótica? Ou trabalhariam como técnicos itinerantes, como aqueles que aparecem em referências fugazes como de Luccock, em 1817, e nos relatos dos professores da Escola de Minas de Ouro Preto quando escrevem artigos para os Anais da EMOP a partir da década de 1880? (SENA: 1881; BOVET: 1883; FERRAND: 1884; LUCCOCK: 1975). Douglas Cole Libby apontou recentemente as discussões que permanecem acerca do papel das irmandades em Minas Gerais, com Silva Filho e José Newton de Meneses reforçando a vertente dos que afirmam a irmandade como lugar de laços étnicos e sociais e, de outro lado, Boschi e Alves, que veem as irmandades como intermediárias entre as artes mecânicas. Libby opina que a percepção da força do mercado em fazer baixar os preços já orientava as Câmaras no sentido de fazê-las contrárias a qualquer regulamentação de profissões. (LIBBY: 2006). Independente da força de uma ou de outra argumentação, que se dirigem fortemente orientadas em documentação do período colonial, e pode até ser pertinente pelas pistas que dá, para o século XIX, que aqui nos interessa primeiramente, a continuidade da erosão da categoria dos artífices é congruente com a leitura que a elite começa a fazer do futuro de um mercado de trabalho em que máquinas irão nivelar todos os estratos sociais em dois únicos níveis: operários e engenheiros, com estes últimos representando a nova elite do trabalho e os aliados do capital. O que posso opor á evidente erosão do mundo dos artífices, é que a linguagem desse mundo ainda se apresenta muito forte nos textos dos técnicos do XIX, inclusive de todos os engenheiros professores da EMOP, o que faz pensar que este mundo em erosão persiste e tenta sobreviver às lógicas que buscam abatê-lo. Referente ao tema, no XIX, Maura Silveira Gonçalves de Brito apontou recentemente a possibilidade do ofício de ferreiro entre escravos e libertos ser um fator de distinção social e da criação de relações de identidade, em uma análise preliminar que fez de alguns inventários, testamentos e lista nominativas presentes no Museu do Ferro, como é conhecido o Arquivo Público de Itabira, região onde durante o XIX houve a maior concentração de fábricas de ferro conhecidas. É um fenômeno que parece ser, porém, efêmero, mas pode com certeza extrapolar a região abordada. (BRITO: 2009 e 2011) Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 303 Seja como for temos um grande número de trabalhadores em um dinâmico quadro geográfico, registrando-se deslocamentos constantes de fábricas e oficinas, em número flutuante e deslocamento e flutuações igualmente intensos da mão de obra, seja livre ou escrava. Estes deslocamentos formam alguma forma de rede social tênue e imprecisa, que precisa ser mais bem estudada. Numericamente, esta rede pode ser estimada: uma forja pequena possuía em geral entre 9 e 12 trabalhadores, enquanto as maiores tiveram até 150 trabalhadores, e em termos de numéricos a variação do número de estabelecimentos vai ao longo do século XIX de cerca de 30 até 120 em alguns momentos, dependendo do documento em que nos basearmos. A importância numérica dos trabalhadores em metais fica assim, bastante evidente, chegando a alguns milhares, em uma população que se conta em poucas centenas de milhares para a região central da Província. Se incluirmos os que utilizam elementos de ferro em outras obras, tendo que manuseá-lo em pequenos fornos para dobrá-lo e dar-lhe forma, o número pode aumentar consideravelmente nas décadas finais do século. Assim, o número de artífices de ferro e metais na população de Minas Gerais no século XIX seria proporcionalmente considerável. A linguagem corporativa e seus usos continuam a existir nessa grande massa de artífices, tanto quanto na dos engenheiros. Se não, como explicar textos tão efusivos como os de Henri Gorceix ao exortar os Mestres de Forja, ou o manifesto dos alunos da Escola de Minas contra um relatório de um agente governamental que se manifesta favorável ao fabrico do ferro com carvão vegetal? Tais textos só podem ser compreendidos se admitirmos que eles são motivados pela observação de conflitos e contradições sociais bastante claros aos olhos de quem escreve, inclusive a dicotomia entre o mundo dos artífices, que no segundo documento é o mundo do atraso; incompreensível aos novos e futuros engenheiros. (GORCEIX: 1880; O PAÍZ, 18/12/1899, fl. 3) Contudo, visões contemporâneas não enxergaram claramente tais conflitos, já que só podem ser vistos de soslaio, já que alvos de pouca atenção, ou mesmo de negação por parte da maior parte dos agentes públicos produtores dos documentos que nos chegaram preservados. Que papéis sociais se atribuíam Gorceix e os alunos da EMOP nestes dois momentos? Variadas formas de inserção social significam muitas visões possíveis dentro de uma sociedade que se vê como um corpo orgânico. As teorias neo-escolásticas e corporativas Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 304 tinham lançado profunda influência na compreensão geral da distribuição de poder na sociedade colonial, e esta influência talvez tenha se estendido, através da linguagem, sutilmente ao século XIX antes de ser destronada de vez. O mundo artesão não só se desestrutura, mas é incorporado pelo mundo dicotomizado entre operários e engenheiros, sendo que partes diversas de seus valores se distribuem desigualmente entre estes herdeiros de sua decadência. Nesta aspecto, talvez seja melhor seguir a Thompson, que já enfatizara a simultaneidade da manifestação de relações produtivas particulares em todos os sistemas e áreas da vida social. Ele ainda deixou clara a necessidade de incorporar seriamente a análise antropológica na perseguição da totalidade das relações sociais em que estão inseridas as mudanças econômicas e culturais. (THOMPSON: 1998) As parcelas de participação dos trabalhadores e patrões, em diversos níveis, no planejamento, organização e desfrute do status, com benesses, ganhos ou perdas de prestígio social, são dados que não podem ser separados dos dados econômicos ditos ‘puros’, já que, como advertia Thompson, todo trabalho é atividade criativa que faz do homem, homem. (THOMPSON: 1998) Também Pierre Bourdieu aborda diversas questões sobre o status cultural e sua relação com o que é herdado e o que é aprendido, adquirido. Ao longo destas análises, Bourdieu constrói diversas categorias de análise dos valores culturais postos e construídos, além de como diversas influências estimulam a procura e a ocupação do que ele chama de habitus e estilos de vida. Apesar de utilizar tais instrumentos de análise através de exemplos contemporâneos, fica logo evidente que o instrumental criado por ele para a análise de distinções culturais é prenhe de significados e modus operandi para a análise de outros contextos em que se cruzem as variantes de nível de aprendizado, status social, referências e heranças, juntamente com status profissional. (BOURDIEU: 1974) Ser um engenheiro no século XIX era muito mais que pertencer a uma categoria profissional. Desde a indumentária própria dos profissionais liberais (sapato bico fino, terno, colete, sobrecasaca e chapéu coco), passando por uma série de formas de proceder e o seguimento de regras não escritas dessa verdadeira ‘nobreza do trabalho técnico’, cria-se uma visão comum de vida, além do partilhamento de um éthos que encontra ecos em diversas outras profissões do passado. A variabilidade das descrições e variações dos esquemas de trabalho que podem ser inferidos pelos diversificados registros sobre os trabalhadores em ferro no século XIX em Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 305 Minas e Rio de Janeiro - áreas interligadas de muitas formas e que devem ser tratadas sob muitos aspectos, em simultaneidade – faz inferir distinções tão grandes e interessantes quantas as apontadas por Hobsbawn quando tratou da “Aristocracia do Trabalho” entre os trabalhadores ingleses do século XIX. (HOBSBAWN: 2000) Algumas distinções ocorridas cedo no parque industrial do Rio de Janeiro podem ter similaridades às descritas por Hobsbawn para os trabalhadores ingleses do XIX, e assim influenciado gradualmente a visão de trabalhadores que eram afetados pelas fortes mudanças em Minas Gerais ao longo das décadas finais do mesmo século. (HOBSBAWN: 2000) Talvez um novo ou velho aspecto dos engenheiros, a cultura do partilhamento do risco com os operários, tenha sido necessário, na visão de alguns professores e profissionais que tinham o poder de dizer o que era este éthos, um dos modos de combater os tradicionais preconceitos ao trabalho braçal. Assim os engenheiros assumiriam parte do éthos derivado da visão qualitativa dos artesãos, onde, na falta de um forte e completo éthos artesão entre os artífices escravos, libertos, e mesmo entre os livres, fez com que os engenheiros trouxessem para si a responsabilidade da qualidade final e da responsabilidade moral e completa sobre obras de engenharia tratadas, sobretudo, como obras de um artista. Devemos nos lembra de que uma das acepções do termo éthos é exatamente o de hábito, o que nos aproxima novamente da obra de Pierre Bourdieu, e da lembrança de que os estilos de vida e modos de encarar as relações de trabalho, assim como o proceder socialmente, se encontram nas proximidades de seu conceito de habitus. (BOURDIEU: 1974) J. J. Queirós Júnior, engenheiro e terceiro dono da Usina Esperança, por exemplo, deixou clara a sua intenção de dinamitar a ponte que construíra em frente a Usina, sobre o rio das Velhas, antes que uma enchente a levasse rio abaixo. Essa é uma atitude hoje incompreensível. No entanto, para o éthos que partilhava com sua classe de engenheiros, a resistência da sua ponte era o atestado de sua competência profissional. Não saber se ela aguentaria era manter o éthos, mas deixar que a natureza a levasse, isso seria uma derrota insuportável. (MENDONÇA: 1988; ATHAYDE: 2010) Assim, a força que este éthos assumia nas mentalidades destes engenheiros, criados em um contexto fatalista e romântico determinava linhas importantes das visões que os engenheiros tinham de si mesmos. Impossível em uma sociedade marcada pelo escravismo ou recém-saído dele, a existência de tal éthos do artesão-engenheiro (marcado pela qualidade Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 306 e garantia pessoais do artista) entre artesãos do passado, cujo prestígio social corroeu-se ao longo do tempo, e cujo éthos presente (marcado mais pela fidelidade paternalista e constância) estabelecia outro tipo de regras, prêmios e castigos entre pares, aprendizes e superiores hierárquicos. O Correio Mercantil do Rio de Janeiro, em 30 de julho de 1853, deixa antever que em meados do século era claramente perceptível na visão geral sobre a indústria, a interpenetração do status e um mesmo éthos entre artífices e engenheiros, situados em um plano próximo: Falta ao Brasil uma escola para operários e mecânicos, aonde possam formar bons artífices, e contribuir a elevar a indústria do país ao grau mais alto de engenheiros práticos. ...são precisos de conhecimentos práticos, sem os quais nem artífices nem engenheiros podem chegar ao aperfeiçoamento, nem ao ponto que os progressos da ciência hoje exigem, mesmo das classes menos elevadas. ... torna-se indispensável o estabelecimento de escolas nacionais mecânicas, quando não nas cidades provinciais, pelo menos na capital. Fica claro mais uma vez que para se construir uma visão ampla sobre o trabalho em ferro no século XIX em Minas Gerais devemos aproximar e comparar a fabricação do insumo básico ferro, de sua utilização para o fabrico de utilidades, e não segregá-los como dois objetos distintos e incomunicáveis. Isso provoca necessariamente o efeito colateral de ampliação geográfica da análise sobre o mercado mais dinâmico, onde novos modelos de relações de trabalho e atividades manufatureiras poderiam se estender, provocar intercâmbios ou influenciar realidades em Minas Gerais. O estabelecimento de certas relações entre o interior pode ser comprovada facilmente a partir da década de 1890, intuída e parcialmente documentada a partir da chegada da ferrovia, na década de 1880, mas precisa ser mais bem sondada daí para trás. O período Joanino estabeleceu um marco em 1812, com o estabelecimento da Patriótica, e que se estendeu até 1821 em profusa documentação. Entre 1821 e a criação da Escola de Minas em 1876, ainda há muito que pesquisar e escrever. A fabricação do ferro, base da indústria moderna foi aferido como um ícone da modernização e independência nacionais durante o século XX, mas para os interesses da história social do trabalho no século XIX faz pouca ou nenhuma diferença averiguar se os trabalhadores utilizavam o ferro nacional ou importado. Como os mais antigos trabalhos em que se marcou tal anacronismo, sobrepondo a visão do século XX sobre as que existiam no XIX. Assim como esta limitação autoimposta por tal historiografia, outras, relacionadas aos ideais republicanos e marxistas dominantes em alguns estudos sobre o tema estão já há Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 307 muito sendo revistos sob o viés cultural, na expectativa de reinterpretar o mundo do trabalho do século XIX no Brasil, como recentemente fizeram Claúdio Batalha e Ronaldo P. de Jesus, por exemplo. Esses autores com suas novas interpretações têm mostrado faces diferentes das “heranças partilhadas e experiências comuns” vividas pelos trabalhadores do Rio de Janeiro do século XIX, sobre clara influência de Edward P. Thompson, principalmente pelas obras Costumes em comum (cap.6 Tempo, disciplina de trabalho e Capitalismo Industrial) e As peculiaridades dos Ingleses e outros artigos (na parte que trata da critica que ele faz da ideia de classe como um grupo quantificável, somando-se trabalhadores de diversos ramos de forma simplista). (BATALHA: 2009; JESUS: 2009) Estes estudos estendem a noção de classe operária além do conceito marxista de classe como dependente da existência da ‘consciência de classe’ em seu viés revolucionário. Assim apresentam a possibilidade de existir algo como uma classe operária entre os operários do século XIX e XX, ainda que se organizem sob outros pretextos e lutas que não a revolução. Também como demonstrado, a obra de de Pierre Bourdieu, A Economia das Trocas Simbólicas, em seu capitulo em que trata da diferença entre condição de classe e posição de classe, trata de discutir certas posições Weberianas que situam as classes e grupos de status em estruturas que possibilitam sua comparação em situações homólogas. Práticas sociais ou profissionais idênticas quando ocupam posições estruturalmente diferentes; ou práticas com condições de existência e práticas profissionais diferentes podem apresentar propriedades comuns porque ocupam posições homólogas em estruturas diferentes. As obras de Thompson e Pierre Bourdieu, ainda que indiretamente, estão eivadas de questões com as quais nos deparamos em nossas pesquisas. Para os historiadores do século XIX, podem estas obras ainda iluminar novas formas e abordagens dos problemas que pretendemos tentar resolver. Bibliografia: ATHAYDE, Roberto. O Bandeirante do Ferro. São Paulo: Global, 2010. BAETA, Nilton. 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Esse fator nos levou aindagar como se dava a aquisição desses legados, num contexto de uma Barbacena predominantemente agrária, vinculada ao sistema escravista e envolta às mudanças legislativas que restringiam a continuidade da escravidão e modificava as formas de posses de terras no país. Os testadores selecionados fazem parte do grupo dos 79 senhores dentro de um panorama de 388 testamentos encontrados no Arquivo Municipal de Barbacena entre os anos de 1850 a 1888, que legaram benefícios a escravos e libertos. Ao agrupá-los observa-se que, uma parcela considerável, possuía algumas características semelhantes, conquanto haja diferenciações em suas relações escravistas. A principal se deve ao estado matrimonial dos senhores. Não é de se estranhar que a medida mais utilizada por esses senhores em busca da manutenção da ordem escravista, e que ia diretamente ao anseio dos escravos, era a possibilidade desses homens se tornarem livres e, quem sabe possuidores de bens que lhes favorecessem condições estáveis de vida, conquistadas por meio de legados materiais. Palavras-chaves: Escravidão, alforria, legados materiais. Abstract: This article examines wills the mid-nineteenth century, when gentlemen with the threat of death left money legacies to those closest. It was found that, of those, only a few testers bequeathed the slaves and / or benefits delivered post-mortem. This factor led us to ask how was the acquisition of these legacies in the context of a predominantly agrarian Barbacena, linked to the slave system and involved legislative changes restricting the continuation of slavery and modified forms of land holdings in the country. Testers selected part of the 79 lords within a 388 panorama of wills found in the Municipal Archive of Barbacena between the years 1850 to 1888, who bequeathed benefits to slaves and freedmen. By grouping them shows that a significant portion, had some similar features, although there are differences in their slave relationships. The principal is due to the marital status of lords. No wonder that the most used by these gentlemen in search of slave law enforcement, and went directly to the yearning of slaves, was the possibility of these men become free, and who knows who hold assets that they favored a stable condition life, achieved by means of legacy materials. Keywords: Slavery, emancipation, material legacies. Antônio Alves de Maria diz ser filho legítimo de José Alves de Maria e Thereza Alves Malta; que nascera em Portugal, mais especificamente na freguesia de São Miguel; que estava de cama, mas em boas condições mentais; que atualmente é casado com Dona Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 311 Porfiria e que não possui filhos legítimos nem naturais. Observa que, estando seus pais vivos seriam considerados seus herdeiros necessários. Em caso contrário, sua esposa será herdeira de sua meação. 292 O testamento de Antônio segue as determinações da legislação brasileira que vigorava no século XIX sobre as transmissões de heranças, estabelecidas há três séculospelas normas das Ordenações Filipinas.293 De acordo com estas, todos os proprietários, com posses e com herdeiros forçados ou necessários, deveriam dispor seus bens em inventários. Por herdeiros se entende, nesta ordem, os filhos (descendentes), os pais (ascendentes), os irmãos e os parentes até o quarto grau consanguíneo (colaterais). Caso não houvesse herdeiros, o Estado se encarregaria de gerenciar os bens fúnebres. Os cônjuges eram meeiros e não herdeiros necessários, havendo assim, como declarado por Antônio, a necessidade de serem indicados como herdeiros na partilha do casal. 294 Os testamentos eram documentos geralmente escritos diante da ameaça da morte e podem ser considerados dos registros históricos, mais complexos que o pesquisador encontra nos arquivos brasileiros. Testemunham relatos individuais que, nas palavras de Paiva, “não raro, expressam modos de viver coletivos e informam sobre o comportamento, quando não de uma sociedade, pelo menos de grupos sociais”.295 Neles aparecem tanto elementos definidores do mundo material do testador quanto à agonia do corpo doente que procura espaço para uma narrativa vista pelos que o rodeiam – exceto em casos comprovados de delírios, por isso a necessidade da citação do testador comprovando a sanidade mental - como vontades verídicas. É neste momento que segredos são revelados, e os sentimentos cristãos muitas vezes se sobressaem aos interesses materiais, em busca de acerto de contas terrestres que visam à absolvição divina. Também podem indicar preocupações com a continuidade de seus bens post-mortem e a segurança material de pessoas queridas. Soares observa que, em Campos dos Goitacazes, entre 1750 e 1830, eram os testadores solteiros, sem filhos ou sem pais como herdeiros necessários, quem mais 292AHMPAS. Testamento de Antônio Alves de Maria, 1850. 1SVC. Cx. 282 ord. 08 fl.1v. Havia a necessidade de reformas das Ordenações Manuelinas, a qual só ocorreu após o reinado de D. Sebastião, sob o reinado de D. Felipe I (entre os anos de 1583 a 1585), sendo concluída em 1595, mas entrando em vigência no reinado de D. Felipe II. As Ordenações Filipinas sobreviveriam à Revolução de 1640 e D. João IV, sancionou toda a legislação proveniente do tempo do governo castelhano. Para saber mais, ler: LARA (1999). 294 Refiro aos trabalhos de FARIA (2001, p. 292-3) e também o trabalho de Marcio Soares que esclarece em nota de rodapé a especificidade encontrada em Campos quanto á distribuição dos bens por certos testadores, para saber mais, ver: SOARES (2009). 295 PAIVA (2009, p. 193-219). 293 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 312 livremente dispunha de seus bens, deixando muitas vezes de fora dos legados, seus herdeiros colaterais (irmãos ou parentes).296 Em Barbacena, entre esses senhores encontra-se o testador Fernando. Em 1857, lega à Juliana, sua escrava africana, benefícios impensados a condição de cativa tornou-a sua testamenteira e única herdeira, embora houvesse uma herdeira colateral, uma irmã, que, de acordo com suas próprias palavras, “o ajudou enquanto doente” 297 e por reconhecer a sua “misericórdia” retribui-lhe a assistência com bens monetários de baixo valor. A atitude de Fernando denota a influência conquistada pela cativa Juliana, tanto na relação com o senhor (ao receber os melhores bens) quanto com a sociedade em que estava inserida. Pois, seria necessário mostrar-se capaz de cumprir com precisão as disposições testamentárias para não sofrer proibições legais. Ao reler o testamento de Fernando, com o cuidado de agrupar suas especificidades, deparamos com afirmações que indicam relações comuns existentes entre senhores e escravos do Termo de Barbacena. Em princípio algumas indagações podem ser formuladas com base nos fragmentos do testamento de Fernando: (...) sou solteiro e neste estado me conservo e não tenho herdeiros forçados. [...] tenho uma escrava de nome Julianna africana, a qual depois de minha morte ficará liberta em remuneração aos bons serviços e assim também ficarão libertos seus filhos João, Poncianno, Evaristo, Lino e Virginia e todos mais que tiver durante minha vida [...].298 Estaria a confiança do testador, em relação à Juliana, a indicar um romance entre senhor e escrava? Seriam seus filhos os escravos relacionados como filhos de Juliana? Nem todas as respostas estão dispostas nos documentos. Contudo, é provável que existisse uma relação afetiva entre o senhor e a escrava, embora seja possível não haver necessariamente ligação consanguínea com os filhos de Juliana. Fernando não parece se importar em deixar público à proximidade existente com sua herdeira ao torná-la responsável pelos seus bens e disposições post-mortem, o que leva a crer que não se incomodaria em assumir publicamente a paternidade de filhos naturais.299 296SOARES (2009, p.126). Arquivo Municipal Altair Savassi – Barbacena. Registro de testamento de Fernando da Costa Pereira Osório. Caixa 282, ordem 6, fl. 154. Data 1857. 298AHMPAS. Registro de testamento de Fernando da Costa Pereira Osório. Caixa 282, ord. 6, fl. 154. Data 1857. 299FARIA, em um balanço historiográfico sobre as alforrias e alforriados dos setecentos a meados dos oitocentos, alega que vários testadores alforriavam não só os filhos naturais, como também as mães escravas. Fato diferente acontecia com testadores, pais de filhos ilegítimos, oriundos de adultérios que não os 297 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 313 Não foram apenas os testadores do sexo masculino, que se dispunha a beneficiar suas escravas. Muitas mulheres, sem herdeiros descendentes ou ascendentes necessários, ao legarem seus bens, lembravam-se da amizade dispensada por seus escravos. Casos como o de Dona Ana Maria de Araújo, solteira, que, em seu testamento, demonstra a proximidade existente na relação quotidiana com sua escrava Quintiliana. Deu a esta alforria como também a “todos os seus filhos que há e possa haver”, liberdade que se tornaria efetiva logo depois da morte da testadora. Também devolveu um empréstimo, adquirido com Quintiliana em “momento de aperto”, no valor de 1:000$000 (um conto de réis). Fê-lo, deixando-lhe, como pagamento, uma escrava de nome Januária crioula. Dona Ana, ao finalizar o testamento, alega que, por gratidão aos serviços e à “amizade que a sempre tratou”, instituía Quintiliana parda e Vicente Ferreira Barbosa, sobrinho da senhora, herdeiros em igualdade de direitos dos seus bens post-mortem. 300 A atitude da testadora comprova o grau de autonomia conseguido pela escrava tanto em amizade e confiança quanto em possibilidade de exercer trabalhos extras que a favorecesse acumular pecúlios. Dona Ana, além de libertar Quintiliana, alforria outros quatro escravos, mas somente esta alcança legados raros à sua situação de cativa. Na abertura do inventário em 1861301, um ano depois da escrita do testamento, o monte mor dos bens de Dona Ana chegava a 19:979$500 (dezenove contos, novecentos e setenta e nove mil e quinhentos réis), em terras, benfeitorias e vinte escravos. Ao reduzir os valores com as dívidas passivas e despesas do funeral, restou um monte líquido de 10:949$400 (dez contos, novecentos e quarenta e nove mil e quatrocentos réis) que, conforme solicitação da testadora deveria ser repartida em igualdade com seus herdeiros, Vicente e Quintiliana. Dona Ana solicita que a escrava Severina fique na meação pertencente à Quintiliana. O sobrinho e testamenteiro de Dona Ana (Vicente) prefere como pagamento de sua parte, sete escravos, com idade que variava de três a quatorze anos. Deixa a Quintiliana as terras de campo, benfeitorias, casa e quatro escravos: Miguel crioulo, de vinte anos e três filhos de Severina, com idade de três, seis e sete anos. Quanto à Severina, esta foi inventariada para pagamento de dívidas do testamento, contrariando o pedido da testadora. reconheciam e nem os tornavam seus herdeiros. Legando-os muitas vezes apenas alforrias e bens retirados de suas terça. FARIA (2007, p. 18). 300 AHMPAS. Livro de Registros de Testamentos. Caixa 278, ordem 09, fls.69. Testamento de Dona Anna Maria de Araújo. Data: 1860. 1SVC. 301 AHMPAS. Inventário de Anna Maria de Araújo. Cx. 43, ord. 04. Data: 1861. ISVC. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 314 A princípio, o fato de o testamenteiro desrespeitar uma solicitação de sua tia, não deixando Severina na meação de Quintiliana e distanciando-a de seus filhos menores, deduziria certa negligência, não titubeando em desfazer a família de escravos e causando tensão na “senzala.” Poderia ser também uma atitude realizada pela impossibilidade financeira de cumprir à risca as normas testamentárias. Todavia, felizmente o documento deixa à mostra a relação de Vicente com a falecida; além de seu testamenteiro, era seu maior credor, com uma dívida que chegava a seis contos de réis. Foram inventariados, para pagamento dessa dívida, sete escravos. Outros dois cativos do plantel de Dona Ana foram vendidos e seus valores utilizados para saldar os custos do testamento e do funeral da testadora. Ao analisar a quantidade de escravos adquiridos por Vicente na herança e no pagamento da dívida, esse adquire quatorze escravos de sua finada tia. Severina, como consta na partilha do inventário foi incluída no pagamento da dívida, dessa forma, fica sob domínio do testamenteiro e sobrinho. Avaliada em 1: 300$000 (um conto e trezentos mil réis), preço que além de mostrar seu alto valor de mercado, comprova encontrar-se em idade fértil (os documentos não mencionam sua idade, mas, como declarado, seus filhos tinham entre três e sete anos) e exercer profissão que gerasse produtos, como foi mencionado pela testadora. Teria Quintiliana se contrariado com as escolhas de Vicente, não deixando Severina em seu poder, conforme solicitação de Dona Ana? É provável que não, pois Vicente não tenta driblar os demais desejos fúnebres de Dona Ana. Dividiu com igualdade a herança com Quintiliana, como se verifica no inventário e nas prestações de contas, o que sugere relação sem muitos conflitos entre os herdeiros, tal situação facilitaria o convívio da escrava Severina (pertencente à meação de Vicente) com seus três filhos que passaram a pertencer à herdeira Quintiliana. Quintiliana e Juliana são alguns dos exemplos de normalidade verificada nas relações escravistas com plantéis pequenos ou com escravos com maior proximidade com a casa grande, os quais souberam dentro do mundo de “batalhas” que envolvem as relações de poder, aproveitar as brechas existentes nos sistemas normativos e se aproximar de forma significativa da possibilidade de alcançar, além da liberdade, recursos que lhe garantissem viver com dignidade. Os testadores citados fazem parte do grupo de 79 senhores num panorama de 388 testamentos encontrados no Arquivo Municipal de Barbacena para o período de 1850 a Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 315 1888, que legaram benefícios a escravos e libertos. Esses testadores representam 20,3% do total. Ao agrupar os 79 testadores, observa-se que uma parcela considerável possuía algumas características semelhantes, conquanto haja diferenciações em suas relaçõesescravistas. A principal se deve ao estado matrimonial dos senhores. Ao juntar homens e mulheres, solteiros e sem herdeiros necessários totalizam 39, 2%, contra casados e viúvos que alcançam 30,4%, como demonstrado na tabela. Tabela 1- Relação dos testadores quanto ao sexo, estado civil e herdeiros / 1850-1888 Fonte: testamentos do Arquivo Municipal de Barbacena “Altair Savassi” *Incluindo um celibatário sem herdeiros forçados. **Quanto aos testadores casados considerou seus cônjuges como herdeiros forçados, tanto por receberem metade dos bens como meeiros, quanto pela maior parte dos testadores indicarem seus parceiros como herdeiros de seus remanescentes. Dessa forma, os testadores solteiros de Barbacena confirmam a expectativa de terem maior liberdade para dispor dos bens, em razão da ausência de herdeiros forçados e das características de plantéis menores. 302 A predominância desses plantéis em relação aos existentes em áreas voltadas ao mercado externo é explicada, na afirmação de Paiva, pela diversidade econômica alcançada por Minas Gerais desde o período colonial. Ela ia da atividade de mineração, passava pela agricultura e pecuária, chegava ao comércio - e porque não dizer – e à prestação de serviços como fornecimento de créditos. Formava assim um emaranhado social diferente do de outras regiões do Brasil. 303 Entre os legados direcionados aos cativos no Termo de Barbacena, estavam alguns predeterminados com condições senhoriais, tais como: não vender o legado, casar-se, torna-se padre, obter um ofício, pagar dívidas, servir por um período a herdeiros, seguir normas do testamenteiro ou somente segui-las depois da morte deste ou do testador, alcançar maioridade e/ou serem obedientes aos testamenteiros e demais herdeiros. Isso se 302 Apesar deste trabalho não se pautar somente nas concessões de alforrias, mas também, a legados materiais Viúvos c/ em meados Viúvos s/ Solteiros c/ Solteiros s/ destinados aos Casados** escravos por testadores, dos oitocentos, tomamos a liberdade de comparar os herdeiros herdeiros Viúvos herdeiros herdeiros Solteiros Sexo encontrados no Termo resultados de Barbacena quanto ao estado matrimonial dos testadores, com os dados # %de Guedes #sobre as alforrias # em Porto Feliz, % para o período # final do século # XVIII e% fornecidos no trabalho Homens 07 dos testadores 05 escravistas 15 10* inicio do XIX. 18 O autor23constata que analisados para 07 aquela região paulista, foram21 Mulheres 06 os08 01 11 também os solteiros que mais libertaram seus escravos, graças15 a possibilidade02 de disporem de12seus bens de18 forma livre devido/ de herdeiros forçados. Total 24 ausência 31 08 16Para saber mais, 30 ver: GUEDES 09 (2008, p. 193). 22 39 303 PAIVA (1995, p.80). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 316 Tabela 2 - NÚMERO DE ESCRAVOS BENEFICIADOS EM TESTAMENTOS* ALFORRIAS** 1850-1860 1861-1870 1871-1880 1881-1888 Total 117 27 102 330*** 576 LEGADOS CONDICIONADOS 1850-1860 1861-1870 1871-1880 1881-1888 Total 49 13 69 08 139 LEGADOS SEM CONDIÇÕES 1850-1860 1861-1870 1871-1880 1881-1888 Total 85 19 35 14 153 ESCRAVOS BENEFICIADOS COM ALFORRIAS E BENS MATERIAIS**** 260 deve talvez à incerteza dos senhores quanto às reações dos escravos depois de terem ciência dos benefícios a eles destinados ou por estarem convencidos da incapacidade dos cativos em gerenciar seus negócios. As diferenciações econômicas dos proprietários – os mais abastados se viam diretamente afetados pelas transformações sociopolíticas do Brasil oitocentista - e o tipo de relações estabelecidas com seus escravos também poderiam influenciar nas disposições dos legados. Tabela 2 – Escravos Beneficiados em Testamentos Fonte: Testamentos - Arquivo Histórico Municipal “Altair Savassi” / Barbacena. *Informamos que os valores correspondem apenas aos escravos citados pelos senhores e confirmados em seus respectivos inventários. No entanto, alguns documentos não mencionaram o número exato de cativos beneficiados pelo testador. ** Nem todos os escravos alforriados receberam legados materiais de seus senhores. Dessa forma explica-se a diferença entre o total de cativos alforriados (576) e os que receberam legados (292). *** Entre os 330 alforriados no período de 1881 a 1888, encontram-se os 299 escravos libertos pelo Dr. Camillo Maria Ferreira Armonde (Visconde de Prados), falecido em 1882. **** Somente 260 cativos receberam de seus senhores, liberdade e legados em testamento. Alguns testadores legaram benefícios a escravos e libertos de outros proprietários. Retornando à análise dos tipos de legados descritos nos testamentos pesquisados e selecionados, constata-se, em determinados períodos, diferentes determinações. Por exemplo. Para que cativos e libertos fizessem jus ao legado que lhes tocava, determinados ônus, às vezes, eram exigidos; outras vezes, não o eram. Selecionamos os dois períodos em que a maioria dos testadores impunha ao escravo ou ao liberto condições para receberem seus benefícios, fossem eles alforrias, fossem eles bens materiais. O primeiro aumento ocorreu entre os anos de 1850 a 1860, época em que vigorou com mais rigidez, imposta pelo governo brasileiro, a proibição do tráfico internacional de escravos. Também se controlaram a aquisição de terras com a implantação da Lei de Terras no Brasil; o segundo aumento dá-se entre os anos de 1871 a 1880, Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 317 justamente quando a sociedade escravocrata brasileira vê suas relações escravistas bruscamente afetadas pela implantação da Lei do Ventre Livre. Os dados demonstrados no gráfico abaixo sugerem íntima ligação entre as alterações legislativas e os legados condicionados, talvez como resposta às pressões sociais antiescravistas e aos receios quanto aos bens senhoriais: GRÁFICO 1 testamentos LEGADOS CONDICIONADOS E LIVRES CONDIÇOES LIVRES 1850 -1860 12 1861-1870 4 1871-1880 10 1881-1888 4 24 10 9 5 NULO 1 Fonte: Testamentos - Arquivo Histórico Municipal “Altair Savassi” / Barbacena. A Lei Eusébio de Queiroz erradicou o tráfico negreiro. Isso trouxe consequências desvantajosas aos senhores escravistas. Eis algumas: - rareou-se paulatinamente a mão de obra escrava e seu valor, no mercado, se elevou; - incentivou-se a reprodução endógena, mas seu efeito não correspondeu ao esperado; - elevou-se a taxa de libertação de mulheres e crianças; - deu-se o mesmo com a taxa de mortalidade escrava, em virtude de precárias condições de trabalho; - necessitava-se urgentemente de novas “peças” para a lavoura, mormente nas áreas vinculadas à exportação. Esse aflitivo “status quo” levou senhores escravistas a pensar novas estratégias, objetivando salvaguardar o que ainda restava de favorável do escravismo. Entre as novas estratégias senhoriais, inicia-se, com intensidade, tanto o tráfico interno de cativos (compravam-se os escravos excedentes de determinadas regiões) quanto à diminuição da política de alforrias. Na visão de Mattos, ao se legar ao escravo a possibilidade de se tornar homem livre [e com bens materiais que aumentavam seu grau de Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 318 autonomia dentro de uma sociedade escravista, podendo torna-se também senhor de escravos e se firmar como homem livre], combinava-se autonomia escrava com autoridade senhorial. Completava-se assim a política de dominação e de legitimação do sistema escravista. Contudo isso não deixava de criar perspectivas concretas ao escravo de libertar-se do cativeiro. 304 Assim, a lei de fim do tráfico negreiro forçou os senhores a planejar a mantença da “paz nas senzalas”. Anteriormente, a expectativa de alforria fomentada no escravo “merecedor”, mantinha essa paz. Caso o escravo não fosse “merecedor”, seria substituído por novos africanos que, posteriormente, também buscariam meios para alcançar sua liberdade. Para Silva, os senhores, diante das novas conjunturas, reagem de acordo com a estrutura econômica de cada região: naquelas onde há declínio na produção, desfazem-se dos cativos aproveitando seus valores de mercado; aquelas onde há prosperidade buscam aproveitar, durante o máximo de tempo possível, a mão de obra escrava existente. Ambas as situações não são bem vistas pelos cativos, que sofrem graves prejuízos, com suas existências.305 Barbacena participa ativamente do tráfico interno de escravos, importando, entre os anos 1852 e 1871, 5.528 cativos de outras regiões. Esse número comparado ao da importação de cativos feita, no mesmo período, por Santo Antônio do Paraibuna – Juiz de Fora (9.140) mostra que a sociedade barbacenense estava apegada à mão de obra cativa no pós 1850. Dessa forma torna-se esclarecedor o aumento dos legados condicionados entre 1850 e 1860. Era a tentativa de manter, sob o domínio senhorial, os braços cativos. Ao mesmo tempo buscava-se manter a estabilidade entre a casa-grande e senzala legando benefícios com determinações que deveriam ser cumpridas. Como afirma Mattos, entre a liberdade e a escravidão na região Sudeste, a relação entre senhores e escravos era mais do que simples ligação de propriedade. Nessa relação, consideravam-se deveres de fidelidade e de amizade. Se assim não fosse, ganhos já alcançados correriam riscos. Por exemplo: suspensão do direito à alforria, mesmo a escravos já libertados. Essa política de negociação, entretanto, não favorecia somente o “poder moral dos senhores”, pois a repercussão de atos considerados pelos escravos como 304 305 MATTOS (1998, p.143). SILVA (2007, p.53). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 319 reprováveis poderia desencadear reações impensadas e perigosas para a própria manutenção do sistema.306 Outro fator a considerar, quando da análise do aumento de legados condicionados nos anos de 1850, foi à perturbação causada pela aprovação da Lei de Terras. Ela teria influenciado os senhores do Termo quanto à distribuição dos benefícios post-mortem, principalmente numa região predominantemente rural. Desde a suspensão das sesmarias e o início do registro das terras em cartório, estas tiveram alta em seus valores, o que tornaria seus proprietários mais cautelosos quanto à perpetuação dos bens agrários. Barbacena, embora não estivesse inserida diretamente na economia de exportação, obtém sua posição de entreposto de comércio e de abastecimento do mercado interno. Também utiliza suas terras de pastagens e de cultivos de hortaliças para se enriquecer e dinamizar sua produção.307 Mesmo com a diferenciação econômica em relação à cidade de Juiz de Fora, não viabilizou os proprietários rurais do Termo a restringir seus bens de raiz ao seu reduto familiar ou a preservá-los de diferentes formas. O segundo aumento dos legados condicionados, apresentados no gráfico 1 começam, justamente, com a implantação da Lei do Ventre Livre em 1871. Esta, além de beneficiar os ingênuos nascidos de mães cativas, proibia a utilização da lei costumeira senhorial, se, em caso de “ingratidão”, revogar benefícios já concedidos aos escravos, e oficializava a prática do pecúlio como meio de alcançar a liberdade. Assim, os proprietários escravistas se viram de mãos e pés atados diante das pressões escravas e de leis abolicionistas. Era necessário, portanto, novo instrumento coercitivo para a manutenção do poder moral dos proprietários escravistas.308 Nas pesquisas que abordam casos de ascensão social do escravo, citamos o trabalho de Guedes sobre as experiências de egressos do cativeiro. Esse pesquisador inicia suas explicações contestando as hipóteses lançadas por outros historiadores que afirmam que as concessões de alforrias aos escravos, por parte de seus senhores, podem ser consideradas engodo senhorial de um lado e sintoma da resistência do outro. Para o autor, o seguir tal pensamento dicotômico, “implica afirmar que os escravos conquistaram um engodo e caíram na armadilha do senhor, contribuindo para a manutenção e estabilidade do sistema.” 309 306 MATTOS (1998, p. 192). MASSENA (1985). 308 CUNHA (1985, pp.45-60). 309 GUEDES (2008, p.183). 307 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 320 A seu ver, o que ocorria era o contrário. As concessões de alforrias pertenciam ao poder moral do senhor. Era uma troca equitativa em busca da estabilidade, porém, não eliminava tensões e pressões estimuladas pelos escravos. Estes sabiam que precisavam ser cautelosos para adquirir uma mobilidade social que lhes possibilitasse viver com tranquilidade. É claro que houve aqueles que reagiram de forma agressiva ao cativeiro, que se rebelaram ou fugiram mato adentro, mas esses, conforme o autor, “viam sua liberdade social cada vez mais distante”. Seguindo o pensamento de Guedes, as alforrias, por ser concessão dos senhores, facilitava a estes serem os “manipuladores” do sistema escravista. No entanto, tais manipulações sofriam influências das pressões e inseguranças surgidas dentro da relação senhor e escravo. O cativo, apesar das limitações impostas pela escravidão, mostrava-se atento às determinações senhoriais, o que fazia com que senhores agissem com cautela em relação a eles. Desde a década de 70, as cartas e legados condicionados passaram a estabelecer uma data para a concessão, talvez devido aos receios quanto à continuidade da escravidão. Como afirma Pires, “utilizar uma carta, como expediente de controle, sem delimitar um período para sua efetivação, talvez não se revelasse uma estratégia mais eficiente naquele momento.” 310 Por outro lado, a extensão dos prazos mostra a crença na longevidade do sistema escravista. Assim, o aumento das condições, na década de 70, dos legados distribuídos pelos testadores barbacenenses aos cativos confirma a visão de Guedes sobre a necessidade da continuidade do poder moral dos senhores sobre seus escravos, diante das instabilidades políticas da manutenção do sistema. Ao aceitar tais benefícios não fazia dos escravos iscas fáceis às armadilhas senhoriais. Apesar da imposição das condições, em caso de serem contrariados em suas expectativas escravas, poderiam eles transformar-se em “homens perigosos” à continuidade do sossego senhorial. A presença, no gráfico, de um testamento nulo deve-se ao descumprimento das disposições testamentarias, diante da inexistência de bens suficientes para pagamento das despesas e legados post-mortem. Foi o que se deu com o testamento de Antônio Gonçalves de Andrade.311 310 PIRES, Maria de Fátima Novaes. Cartas de alforria: “para não ter o desgosto de ficar no cativeiro”. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.26, n.52, 2006, p.152. 311AHMPAS Registro de testamento. Caixa 286, ordem 08, livro 18, fl. 48. Antônio Gonçalves de Andrade. Data 1871. 1SVC. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 321 Os legados livres, apresentados no gráfico constituíam em muitos casos, uma estratégia senhorial que visava à formação de agregados. Não eram eles demonstração de generosidade. Como sugere Pires, ao analisar as cartas de alforrias incondicionais no alto sertão da Bahia – cujas observações estendemos às distribuições de legados de Barbacena o fato de testarem incondicionalmente benefícios a determinados escravos, apesar de não descartar as relações de amizade, afeto e gratidão, também se pautavam na necessidade de assegurar trabalhos gratuitos ou a preços irrisórios desses libertos.312 Na verdade, a incondicionalidade nada mais era do que o pagamento por anos de dedicação e trabalhos prestados aos senhores. Há anos tais cartas e legados já haviam sido pagos de diversas formas. A família Sá Fortes fornece informações sobre as estratégias escravistas utilizadas pelos antigos senhores com a desarticulação da mão de obra compulsória em Barbacena. Procedendo ao inventário e às contas testamentárias dos bens de D. Maria Luísa Sá Fortes em 1889, os recibos dos legatários (ex-cativos) demonstram terem recebido benefícios próximo de 13 de maio de 1888. Realizou-se, no mesmo mês, um contrato entre o testamenteiro Manoel Maria de Sá Fortes e os libertos, firmando o agenciamento dos trabalhos dos ex-escravos por um prazo inicial de três meses na Fazenda do Curral Novo (na parte da fazenda pertencente à finada, contavam-se 599 alqueires de terras de culturas e campos, mais casas, moinho, monjolo, senzala, ranchos para porcos, paiol e dezenas de animais como bois, vacas, bezerros, porcos, burros e cavalos). Pagava-se aos homens um salário de 8$000 (oito mil réis); às mulheres o mesmo valor, só que trimestralmente. Mais tarde, o período seria renovado somente com os trabalhadores necessários à manutenção dos serviços da fazenda em troca de salário e médico. Os demais libertos eram instalados em pequena área da fazenda para “agricultarem”, e receberia a metade dos produtos originários em terra boa, a terça parte em terra regular e o razoável em terra ruim. 313 Dentro dessa visão, não é de se estranhar que a medida mais utilizada pelos senhores em busca da manutenção da ordem escravista, e que ia diretamente ao anseio dos escravos, era a possibilidade desses homens se tornarem livres e, quem sabe possuidores de bens que lhes favorecessem condições estáveis de vida, conquistadas por meio de cartas de alforrias e de legados deixados por seus senhores. 312 PIRES (2006, pp.141-174). Inventário de D. Maria Luiza de Sá Fortes, caixa 79, ordem 08, ano 1889. Contas Testamentárias, caixa 141, ordem 01, 1889. 1SVC. 313AHMPAS. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 322 Faria corrobora com a idéia de que a alforria poderia ser resultado tanto do acúmulo de pecúlios, depois de anos de trabalhos por parte do cativo, quanto da recompensa por sua “dedicação, amizade e bons serviços prestados” ao senhor. Em suas palavras, para o escravo “o ganho mais evidente era o exercício da liberdade de movimento.” 314 Por ora, observamos que a relação de proximidade entre senhores e escravos foi uma marca das disposições testamentárias que favorecia os cativos, com liberdade e bens materiais, e também aos escravos já retirados das garras da escravidão, mas com forte ligação com a casa senhorial. Eram benefícios que ampliavam a autonomia alcançada. Tais relações eram consequência da ausência de parceiros e herdeiros necessários e da conjuntura porque passava o sistema escravista brasileiro. Necessitavam ambos os lados de readaptações em suas atitudes, fato que não descarta previsões erradas ou mal formuladas que os deixavam (senhores e escravos) à mercê de perigos. Bibliografia CUNHA, Manuela Carneiro da.Sobre os silêncios da lei costumeira e positiva nas alforrias de escravos no Brasil do século XIX. In. Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, s.n. v.28, n.1, 1985, pp.45-60. LARA, Silva H. (org.). Ordenações Filipinas V. São Paulo, Cia das Letras, 1999. FARIA, Sheila de C. A Colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 135. ______. A riqueza dos libertos: os alforriados no Brasil Escravista. In: CHAVES, Cláudia Maria das Graças, SILVEIRA, Marco Antonio (orgs.). Território, Conflito e Identidade. Belo Horizonte: Argvmentvum, 2007, p. 18. ______. “Sinhás Pretas: acumulação de pecúlio e transmissão de bens de mulheres forras no sudeste escravista (século XVIII e XIX)”. In: SILVA, Francisco; MATTOS, Hebe e FRAGOSO, João (org.) Escritos Sobre História e Educação: homenagem a Maria Yedda Linhares. RJ, Mauad/ FAPERJ, 2001, p. 292-3. GUEDES, Roberto. Egressos do Cativeiro: Trabalho, família, aliança e mobilidade social: (Porto Feliz, São Paulo, c.1798 – c. 1850). Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2008, p. 193. MASSENA, Nestor. Barbacena: a terra e o homem. Belo Horizonte: imprensa Oficial, 1985. MATTOS, Hebe M. Das cores do Silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista, Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 192. 314 FARIA (1998, p. 135). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 323 PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas MG do século XVIII: estratégias de resistência verificadas em testamentos. São Paulo, Annablume, 1995, p.80. ______. Frágeis fronteiras: relatos testamentais de mulheres das Minas setecentistas.Anuário de Estudios Americanos (Ed. Imprensa), v. 66, p. 193-219, 2009. Gerais PIRES, Maria de Fátima Novaes. Cartas de alforria: “para não ter o desgosto de ficar no cativeiro”. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.26, n.52, 2006, p.152. SILVA, Ricardo Tadeu Caíres. Caminhos e descaminhos da abolição. Escravos, senhores e direitos nas últimas décadas da escravidão (Bahia, 1850-1888). Curitiba: UFPR/SCHLA, 2007. p.53. SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos escravos nos Campos de Goitacazes, c.1750- c.1830. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009, p.126. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 324 Simpósio Temático 02: Família e História: perspectivas e abordagens A mãe de família: construção de um ideal no jornal O Sexo Feminino Bárbara Figueiredo Souto Mestranda em História Social pela USP barbarasouto@hotmail.com Resumo: Analisamos o jornal O Sexo Feminino, de propriedade de Francisca Senhorinha da Motta Diniz, o qual começou a circular no dia 7 de setembro de 1873, na cidade da Campanha. Após um ano de publicação em Minas Gerais, a proprietária mudou-se para o Rio de Janeiro, onde continuou suas publicações até o ano de 1890 com algumas interrupções. A partir de novembro de 1889, o jornal passou a ser intitulado O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, em homenagem à mudança política, pela qual o país passou. Focamos a análise na construção do ideal de mãe de família elaborado nas páginas do jornal. Logo no primeiro número do periódico, Francisca Diniz apresentou a questão central de sua luta: a educação da mulher. Para a autora, a mãe era peça fundamental na família e na sociedade, pois ela era a responsável pela educação dos filhos. Entretanto, a redatora denunciava que em sua época, os homens negligenciavam a educação feminina. Tal fato seria prejudicial para a família e para a civilização como um todo, pois como poderia a mulher educar a humanidade, se a própria mãe de família não recebia ensino de qualidade? Ao longo da leitura do periódico, percebemos que o ideal construído sobre a mãe de família estava relacionado com moral, virtude, religião, independência, inteligência e ação política. Palavras-chave: Imprensa, Maternidade, Família Abstract: The journal analyzed O Sexo Feminino, property of Francisca Senhorinha da Motta Diniz, which began circulating on September 7, 1873 the city’s Campanha. After a year of publication in Minas Gerais, the owner moved to Rio de Janeiro, where she continued her publications until the year 1890 with some interruptions. From November 1889, the journal came to be called O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, in honor of the political change, in which the country has. We focus the analysis on the construction of the ideal mother of the family prepared in the journal pages. On the first issue of the journal, Francisca Diniz presented the central issue of her struggle: the education of women. For the author, the mother was a key player in the family and society, for she was responsible for the education of children. However, the editor complained that in her time, men neglected the education of women. This fact would be detrimental to the family and to civilization as a whole, for how could the woman educate humanity if the mother of the family herself was not receiving quality education? Throughout the reading of journal, noticed that the ideal built on the mother of the family was related to morality, virtue, religion, independence, intelligence and political action. Keywords: Press, Maternity, Family Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 325 O periódico O Sexo Feminino tinha como subtítulo “dedicado aos interesses da mulher”. Esse jornal tinha como redatora e proprietária a professora Francisca Senhorinha da Motta Diniz, natural de São João Del Rey. Ainda não há muitos trabalhos sobre esse importante jornal do século XIX,315 mas existentes revelam que não foram encontrados registros de nascimento e morte de Francisca Diniz, nem a data em que ela mudou-se de Campanha. Entretanto, seus pensamentos, defesas e projetos ficaram registrados nas páginas de seus periódicos, que felizmente estão conservados em microfilme no acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. A proposta principal do periódico era veicular ideias em prol da melhoria de vida das mulheres. A principal defesa de Francisca Diniz era a educação feminina de qualidade, como podemos ver nesse trecho veiculado no primeiro número do seu periódico: Em vez de paes316 de familia mandarem ensinar suas filhas a coser, engomar, lavar, cosinhar, varrer a casa etc., etc., mandem-lhes ensinar a ler, escrever, contar, grammatica da lingua nacional perfeitamente, e depois, economia e medicina domestica, a puericultura, a litteratura (ao menos a nacional e portugueza), a philosophia, a historia, a geographia, a chimica, a historia natural, para coroar esses estudos a instrucção moral e religiosa; que estas meninas assim educadas não dirão quando moças estas tristes palavras: “Si meu pai, minha mãi, meu irmão, meu marido morrerem o que será de mim!!” Não sirva de cuidado aos paes que suas filhas, assim educadas e instruidas, não saibão coser, lavar, engomar, cortar uma camisa, etc.etc. (DINIZ, 07/09/1873, p.1) É importante observar nesse trecho que para Francisca Diniz a educação da mulher mão se limitava às habilidades domésticas, nem ao conhecimento científico. Para a professora, a mulher tinha que saber como cuidar da casa, do marido e dos filhos, mas tais habilidades não eram incompatíveis com a ciência, por isso, a mulher devia se instruir, para conseguir entrar no mercado de trabalho e ganhar seu próprio dinheiro, o que era fundamental para a independência do sexo feminino. Portanto, para a redatora a emancipação da mulher ocorreria por meio da instrução. Na atualidade, essas ideias podem parecer simples, mas para a segunda metade do século XIX era um tipo de pensamento que distoava dos ideais da sociedade patriarcal. Além das ideias avançadas, outro grande mérito de Francisca Senhorinha era divulgar esses pensamentos na imprensa – espaço que era comumente atribuído como de exclusividade masculina – e ainda covocar suas conterrâneas para aderirem à sua luta: 315 Até agora encontramos apenas as seguintes dissertações: NASCIMENTO, 2004; ANDRADE, 2006; ROSA, 2011. 316 Nas transcrições e nomes próprios manteremos a grafia original. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 326 Instrucção para o sexo feminino minhas caras patricias! Não cessemos de pugnar e clamar até que completamente consigamos este desideratum [...] Principiemos a reagir contra o despotismo do homem, e o primeiro passo seja este, habituandonos a vir á imprensa exprimir os nossos pensamentos [...] Pela discussão persuadiremos, e conquistando palmo a palmo o terreno que nos hão roubado, seremos um dia independentes e felizes. O hymno da victoria sera nosso. Avante pois. (DINIZ, 14/09/1873, p.2) Francisca Senhorinha acusava o homem de colocar a mulher na condição de submissa, mas não deixava de alertar as suas companheiras, que muitas vezes a própria mulher permitia tal condição. Por isso, clamava para que as mulheres se instruissem e saissem da condição de “traste de casa”. Apesar da professora ter dirigido seus escritos às mulheres em geral, ela tinha preocupação especial com as mães de familia. A própria redatora era casada, com um professor e também proprietário de um jornal na cidade de Campanha, e mãe de três filhas Amelia, Albertina e Elisa Diniz. Portanto, a professora conhecia bem a vida de mãe, de esposa, além de professora e jornalista. É provável que o magistério, que no século XIX muitas vezes era compreendido como uma extensão da maternidade, e as leituras de autores como Aimé Martin317 e Rousseau tenham-na influenciado na construção de seu ideal sobre a mãe de familia. Francisca Diniz acreditava que a mãe de família era elemento fundamental na sociedade, por isso, para que um país se desenvolvesse era preciso que o grau de instrução das mulheres fosse elevado, já que eram elas as responsáveis pela educação dos futuros cidadãos. Por esse motivo, a redatora suplicava em seu jornal: Prepare-se o futuro pela educação e instrucção do sexo fragil. Formem-se as mãis de familia, que por seu turno vão erguer escolas e collegios, nos campos, nas villas e nas cidades; que ensinem á mocidade de ambos os sexos os sãos principios de uma instrucção moral e religiosa, e a face da sociedade se ha de mudar. Mãis de familia assim formadas prepararão a mocidade que futuramente possa ornar as diversas carreiras a que póde aspirar um moço ou uma moça desde a mais alta escala social até o mais modesto emprego official. Só ha um meio de regenerar a sociedade, de mudar moralmente a face da terra, de emancipar a mulher, de salvar-lhe um futuro – é pela educação e instrucção no collegio, ou no lar domestico por pedagogos da escolha paterna, e isto emquanto não se preparão as mães de familias. E’ tal a preponderancia materna que a respeito Aimé Martin assim se exprime: “No coração maternal se nutrem o espirito dos povos, os seus costumes, prejuizos, virtudes, e por outros termos, a civilisação do genero humano.(DINIZ, 14/09/1873, p.2) 317 Loius-Aimé Martin, foi um literato francês do século XIX que publicou um número considerável de obras. Alguns estudiosos da área de gênero remetem a ele devido a sua obra que trata da educação da mulher, mesma obra na qual Francisca Diniz retirou a frase citada acima: De l’éducacion dês méres de fammille, ou de la civilisation du genre humain par les femmes, publicada em Paris, pela editora Gosselin, em 1834. Ver, por exemplo: PERROT, 1988, p. 177. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 327 Não podemos deixar de observar que na concepção de Francisca Senhorinha, a moral e a religião eram elementos fundamentais na educação e, portanto, seriam elementares na formação feminina. Para entender melhor essa ideia, vale dizer que para a redatora instrução e educação tinham significados distintos. A instrução era o acesso aos conhecimentos científicos, ou seja, era o desenvolvimento das habilidades intelectuais. Esse tipo de conhecimento, geralmente, era ensinado na escola e poderia ser transmitido por professores ou professoras – para Francisca Diniz, a mulher tinha a mesma capacidade intelectual que o homem, ideia fortemente contestada no século XIX, inclusive por médicos e cientistas.318 Já a educação era dividida em três categorias: intelectual, física e moral. Para a redatora, a educação intelectual era o mesmo que a instrução; a educação física referia-se aos cuidados com o corpo e a saúde; e, por fim, a educação moral tratava-se dos ensinamentos religiosos e das virtudes (DINIZ, 04/10/1873; p.1-2; DINIZ, 11/10/1873, p.1-2). Desta forma, a professora afirmava que apenas as mulheres eram capazes de educar, os homens só conseguiam instruir, pois era da “natureza feminina” ter virtude e moral. Baseada nessa ideia, Francisca Diniz escreveu diversos artigos criticando a presença de professores na educação infantil, para ela apenas as professoras deviam ocupar a profissão de professora primária, pois a criança devia formar sua personalidade com virtude e caráter, que só as mulheres tinham habilidade de moldar. Para ela, as crianças educadas pelos homens cresciam cheias de vícios (DINIZ, 01/11/1873, p.1; DINIZ, 31/10/1875, p.1-2). Veja esse trecho de um artigo escrito pela professora Francisca Diniz: Si a pureza de costumes é tão importante no professor, o pudor é dos indispensaveis requisitos n’uma professora. A missão do professor é difficil; mas a da professora é sempre muito mais ardua. A mulher foi predestinada para o sacrario dos affectos mais intensos do lar, a sua educação requer por consequencia cuidados especiaes. A sociedade avalia pelo pudor da mulher a sua corôa de virgem, a sua virtude de esposa e a pureza de sua maternidade. E’ ainda este sentimento o maior vinculo que lhe prende na fronte o respeito da familia. A mulher póde, e honrozissimo exemplos existem, accumular para com a prole os deveres de pai, quando perante a sua virtude nenhum olhar malicioso se levante; e nesse caso a sua sublimidade não tem limites. A maternidade é pois o mais sancto dos encargos sociaes. E si da educação da mulher pendem tantos e tão valiosos interesses; á professora que tem entre suas mãos as mães do futuro, cabe a mais ardua, a mais difficil e a mais importante das missões. Como pregar a moral, senão quando deveras se sente? Como edificar a esperança de um povo inteiro sinão com o exemplo? O mais recatado pudor e a mais rigida moral devem ser os principaes adornos das professoras.( DINIZ, 12/03/1874, p.1) 318 Sobre a inferioridade feminina, nos discursos médicos e científicos ver: ENGEL, 2000. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 328 Devido à importância que Francisca Diniz legava à mãe de familia, ela não descuidava em incentivar o aprimoramento intelectual das mulheres. Como vimos nos trechos anteriores, ela convidava as mulheres a se expressarem na imprensa, mas também incentivava a leitura: Mães de familia, acordai desse vosso somno prejudicial – reservai alguns momentos para lêrdes, para vos instruirdes a fim de que comprehendendo o que é educação, possais da-la a vossos filhos, que por seu turno a transmittirão aos seus descendentes (DINIZ, 04/10/1873, p.2) As mães de familia para poderem bem comprehender esta tarefa tem absoluta necessidade de ler e ler muito, ter conhecimento do que se passa no mundo pela leitura reflectida dos periodicos (DINIZ, 11/10/1873, p.1) Além do incentivo à leitura e à escrita de artigos, Francisca Diniz também aceitava colaborações literárias, ou seja, contos e poesias. Devido ao receio de mostrar seu pensamento, muitas colaboradoras enviaram poemas sem a assinatura. Anônimos, com nomes ou pseudônimos, o importante é que em quase todos os números dos jornais de Francisca Diniz havia uma expressão literária de suas colaboradoras. Os temas expressos em forma de poesia eram variados, desde amor, familia e Deus à emancipação feminina. A título de exemplo, segue o poema de S.Q: Conselhos à minha filha Filha, cultiva o entendimento O estudo augmenta sempre o talento, Quando a belleza do corpo finda O espirito vive e brilha ainda Procura ornal-o com a riqueza De sãns virtudes que dão nobreza, N’arte mesquinha do toucador Só as vaidosas achão valor. Estes enfeites que o corpo adornão A presumida, bella não tornam Belleza d’alma só deve ornar Quem quer no mundo fazer-se honrar. Nada entre os homens tem mais valor Que o precioso santo pudor, Guarda no seio a piedade Doce indulgencia e a castidade. O mundo engana com mil trapaças Dão seus prazeres, vicio e desgraça, Foge dos laços desse traidor Que alma enôdoa fingindo amor. Foge aos deleites da ruim vaidade Que nunca trazem felicidade, E quer na alegre ou triste sorte Seja a virtude sempre teu norte. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 329 (S.Q. 26/12/1875, p.2-3) No poema escolhido a temática e argumentos dialogam diretamente com o programa do jornal O Sexo Feminino, mas vale alertar que isso não era regra, as mulheres deviam escrever poesias mais para praticar a escrita que defender uma ideia, mas caso fosse possível conciliar os dois melhor. Outra estratégia utilizada pela professora, com o intuito de melhorar o intelecto de suas leitoras era a veiculação de charadas. Sempre no número posterior ao da publicação da charada, Francisca Diniz revelava a resposta. Para uma mulher ser uma boa mãe de família era preciso mais que um intelecto desenvolvido. Segundo Francisca Diniz, a mulher exercia grande influencia nos filhos e esse fato não era novidade, por isso, mencionou grandes homens que foram influenciados por suas mães, como Voltaire, Napoleão e Lamartine (DINIZ, 31/07/1874, p.3) Uma boa mãe, aos olhos de Francisca Senhorinha, devia abrir mão do luxo e da vaidade para focar na educação de seus filhos, além disso, a mãe devia ser recatada e não gastar seu tempo com bailes e teatros. (SEM AUTOR, 30/08/1874, p.1-3). A redatora não construiu tal ideal de mãe de familia sozinha, as colaboradoras do jornal corroboravam as concepções de Francisca Diniz, veja esse pensamento: [...] si não tiver no coração o germen de uma religião pura e santa, si não possuir uma educação apurada, jámais será uma virtuosa filha, uma mãi de familia modelo, uma verdadeira educador de sua prole; não passará de uma figura de cêra, ou de uma estatua de carne. (SEM AITOR, 18/10/1873, p.4) Concluímos então, que Francisca Senhorinha da Motta Diniz, juntamente com as colaboradoras do jornal O Sexo Feminino, construíram um ideal de mãe de família, em fins do século XIX, que estava pautado, em primeiro lugar na instrução feminina, que era elemento fundamental para a mulher educar os futuros cidadãos e ser independente dos homens. Entretanto, outros quesitos formavam esse ideal, como o desenvolvimento das habilidades domésticas e das virtudes, além da religião e da moral. Referências bibliográficas ANDRADE, Fernanda Aline de Almeida. Estratégias e Escritos: Francisca Diniz e o Movimento Feminista no século XIX (1873/1890).Dissertação de mestrado apresentada a Universidade Federal de Minas Gerais, em 2006. ENGEL, Magali. Psiquiatria e feminilidade. In: PRIORE, Mary Del (org). História da Mulheres no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Contexto, 2000. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 330 NASCIMENTO, Cecília Vieira. O Sexo Feminino em Campanha pela Emancipação da Mulher. (1873-1874). Dissertação (mestrado), Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Educação, 2004. PERROT, Michelle. Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. 3ª ed. Trad. de Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. ROSA, Gerlice Teixeira. Ethos e argumentação de Senhorinha Diniz em O Sexo Feminino. Dissertação (mestrado), Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras, 2011. Referências das fontes DINIZ, Francisca Senhorinha da Motta. A educação da mulher. O Sexo Feminino, Campanha, 07/09/1873, p.1. [grifos no original] DINIZ, Francisca Senhorinha da Motta. A minhas patricias. O Sexo Feminino, Campanha, 14/09/1873, p.2. DINIZ, Francisca Senhorinha da Motta. Emancipação da mulher. O Sexo Feminino, Campanha, 14/09/1873, p.2. [grifos no original] DINIZ, Francisca Senhorinha da Motta. Educação physica, moral e intellectual. O Sexo Feminino, Campanha, 04/10/1873, p.1-2. DINIZ, Francisca Senhorinha da Motta. Educação moral. O Sexo Feminino, Campanha, 11/10/1873, p.1-2. DINIZ, Francisca Senhorinha da Motta. Como devem trabalhar as mães de familia para fortificar o caracter de suas filhas. O Sexo Feminino, Campanha, 01/11/1873, p.1. DINIZ, Francisca Senhorinha da Motta. O pudor em uma mestra. O Sexo Feminino, Campanha, 12/03/1874, p.2. [grifos no original] DINIZ, Francisca Senhorinha da Motta. O professorado feminino na instrucção primaria. O Sexo Feminino, Rio de Janeiro, 31/10/1875, p.1-2. [grifos no original] DINIZ, Francisca Senhorinha da Motta. Educação physica, moral e intellectual. O Sexo Feminino, Campanha, 04/10/1873, p.2. [grifos no original] DINIZ, Francisca Senhorinha da Motta. Educação moral. O Sexo Feminino, Campanha, 11/10/1873, p.1. [grifos no original] S.Q. Conselhos à minha filha. O Sexo Feminino, Campanha, 26/12/1875. p.2-3. DINIZ, Francisca Senhorinha da Motta. Educação moral. O Sexo Feminino, Campanha, 31/07/1874, p.3. SEM AUTOR. Anjos e deminios. O Sexo Feminino, Campanha, 30/08/1874, p.1-3. SEM AUTOR. Belleza femenina. O Sexo Feminino, Campanha, 18/10/1873, p.4. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 331 “Desejando deixar por socorridos por sua morte”: Famílias de padres: o caso do Vigário João da Costa Guimarães (1819-1836) Edriana Aparecida Nolasco Mestranda em História pela UFSJ / CAPES/DS drinasco@yahoo.com.br Resumo: O debate acerca da história da família tem possibilitado uma revisão dos diversos tipos de organização familiar ainda que estes fossem constituídos aquém do modelo patriarcal. Assim, analisando as práticas de alguns padres através de fontes primárias percebemos a possibilidade da constituição de famílias por parte destes na Comarca do Rio das Mortes. Estes elementos, analisados à luz de uma série de documentos e tendo por base as teorias acerca dos diversos arranjos familiares, permitem através do reconhecimento de filhos e da trajetória de vida observada na pesquisa, constatar a existência de laços consanguíneos ao longo do tempo. As ações do padre João da Costa Guimarães torna-se um exemplo em relação aos seus filhos reconhecidos em Escritura de Perfilhação. Sobretudo, se considerarmos que a revisão do termo “patriarcal” proposta por alguns estudiosos da história da família comprovaram que estes valores estiveram presentes em arranjos familiares constituídos à margem da legitimidade. Palavras-chave: Família, Padres, Sociabilidade Abstract: The discuss about family history has possibilited a review of the various types of family organization even though these were constituted below the patriarchal model. So, analyzing the practices of some priests through primary sources we can perceive the possibility of formation of these families in the County of Rio das Mortes. These elements, examined through a series of documents and based on theories about the different family arrangements, allows through the recognition of children and the trajectory of life observed in the research,verify the existence of consanguine nooses to the long of time. The actions of Priest João Guimarães da Costa turn a example in relation to his sons recognized in Escritura de Perfilhação. Especially if considers that the revision of the term "patriarchal" proposed by some scholars of the history of the family proves that these values were present at family arrangements constituted to the margin of legitimacy. Keywords: Family, Priests, Sociability Os estudos sobre a família têm avançado no sentido de compreendê-la nos seus mais diversos modelos de organização. O pioneiro das teorias que trataram da importância e da organização familiar brasileira foi Gilberto Freyre, que “reduziu” de certa forma, a compreensão da família nos moldes patriarcais. O autor, ao estudar o Nordeste açucareiro no período colonial, propôs uma análise sobre a família brasileira considerando-a como fundamental na organização política, social e econômica do país. Para ele as condições da sociedade colonial brasileira pautavam-se na estabilidade patriarcal da família. A casa grande era representante de todo o sistema econômico, social e político no território brasileiro. (FREYRE, 2006: 65) Tal teoria lança luz sobre a nossa proposta de pesquisa à medida que Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 332 atribuímos ao tipo de família estudado, estratégias de inserção e conformação nos aspectos sociais, políticos e econômicos na Comarca do Rio das Mortes. A interpretação de Gilberto Freyre perdurou durante muito tempo como única chave explicativa da história da família na sociedade brasileira. Entretanto, alguns estudiosos da antropologia, sociologia e, posteriormente da história, relativizaram esta explicação e a criticaram, na medida em que a tendência da família nos moldes patriarcais não correspondia aos diversos modelos familiares que compuseram a sociedade brasileira no período colonial e posterior. A pioneira nestas críticas foi a antropóloga Mariza Corrêa e a partir da mesma foram formuladas outras explicações, nas quais as famílias foram compreendidas dentro de diversos arranjos distintos do protótipo da família extensa descrita por Freyre. Neste sentido, outros formatos familiares foram considerados, tais como, a relação de concubinato, os lares chefiados por mulheres solteiras, viúvas, a não-coabitação etc. (CORRÊA, 1982: 13-36) A referida autora, precursora nestes debates, criticou severamente a interpretação de Freyre interpretando-a como sendo tradutora de uma homogeneização social desprezando a complexidade da sociedade brasileira em termos familiares. Deste modo, contribuiu significativamente para as críticas, ao chamar a atenção para a homogeneização social derivada da perspectiva freiriana. Para a autora, não se trata de negar a existência da família patriarcal e sua importância no cenário brasileiro, mas admitir a coexistência deste modelo com outros tipos de arranjos familiares. Segundo a autora, (...) a ‘família patriarcal’ pode ter existido, e seu papel ter sido extremamente importante, apenas não existiu sozinha nem comandou do alto da varanda da casa grande o processo total de formação da sociedade brasileira. Para ambos os autores parece não ter havido, neste país onde a colonização se fez de maneira tão díspar, um processo de constituição de unidades domésticas de variedade equivalentes nas muitas regiões onde se instalaram os primeiros colonizadores. A história da família brasileira torna-se, em suas mãos, um objeto dado, individualizado, e é apenas no seu interior que ocorrem as transformações: (...). (CORRÊA, 1982: 25) Como podemos perceber, as críticas relativas à teoria freiriana tem por base esta generalização aplicada à sociedade brasileira relativa à composição familiar. Sem negar, portanto, a importância da família nesse contexto, tais críticas procuraram validar outras formas de arranjos familiares que coexistiam com o sistema patriarcal. Os diversos tipos de interpretações sobre a constituição familiar na sociedade brasileira, embora divergentes em determinados aspectos, consideraram a família como fundamentalmente importante na estruturação econômica, política e social. Sheila Faria Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 333 resumiu a família como sendo fundamentalmente importante para a “montagem e funcionamento das atividades econômicas coloniais.” (FARIA, 1998: 21) Contribui com essa ideia, Eni Samara, ao afirmar que a família teve uma importante e real participação no povoamento das regiões do interior, bem como na organização e estruturação do poder local e na circulação de riquezas.” (SAMARA, 1989: 07) Tais considerações permitem percebermos que a família foi fundamentalmente importante na organização das atividades socioeconômicas. Daí, a importância de seus estudos para compreensão da sociedade nos seus mais diversos aspectos. As pesquisas que promoveram o avanço na questão das concepções familiares se relacionaram à demografia, por meio desta foi constatado uma variedade de modelos familiares distintos da perspectiva patriarcal. Conforme Sheila Faria, no Brasil os estudos pautados na demografia, descortinaram estruturas e organizações de domicílios bastante diversificados. (FARIA, 1997: 47) Contribui com esta ideia, Mariana Muaze, em seus estudos sobre família e poder no Brasil Império, segundo a autora, “as análises demográficas ressaltaram outros tipos de formação familiar e abriram espaço para a discussão de questões como o papel da mulher, os tipos de casamento, as relações de concubinato, a ilegitimidade, os laços de compadrio, etc.” (MUAZE, 2008: 10) Por sua vez, Eni Samara apontou para este fato, ao considerar que nos processos sociais era possível perceber a existência de arranjos familiares alternativos, concubinatos e participação das mulheres na formação da sociedade. Deste modo, a existência destas múltiplas formas distintas do modelo patriarcal possibilitou a concepção de que as famílias se organizavam de acordo com os mais variados contextos brasileiros. (SAMARA, 1989: 08) Neste sentido, o predomínio da interpretação “reducionista” do sentido patriarcal perdurou durante muito tempo, sem levar em conta as contribuições que o mesmo legou para as novas abordagens sobre a história da família. Gilberto Freire, apesar da adoção da família como protótipo da ordem patriarcal, não desprezou outras abordagens que podem ser verificadas através de diversas fontes primárias. Estas, na perspectiva do autor, podem auxiliar “o estudioso da história íntima da família brasileira.” Dentre os exemplos destas fontes, o autor destaca os inventários, as cartas de sesmarias, os testamentos, as diversas correspondências da Corte e ordens reais, pastorais e relatórios de bispos, atas de sessões de Ordens Terceiras, confrarias, além de assentos de batismos, casamentos e óbitos, autos de processos matrimoniais e outros. (FREYRE, 2006: 46) Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 334 Além desta contribuição, alguns historiadores propuseram uma revisão do termo patriarcal e perceberam neles determinados valores que se contrapõem às suas diversas críticas interpretativas. Ronaldo Vainfas, em seus estudos sobre a associação do patriarcalismo e misoginia, assinalou para o fato de que, os autores clássicos, ao atribuir valores patriarcais nas famílias extensas, não negaram, portanto, a existência de outras formas familiares que compuseram a sociedade brasileira. Para o autor, as preocupações dos clássicos era acentuar as estruturas de poder, rejeitando as estruturas domiciliares. (VAINFAS, 2010: 152-153) Neste sentido, fica evidente que a análise das estruturas domiciliares pode favorecer outro tipo de concepção de família e valores. Sílvia Brugger, por sua vez, também considerou a importância de se pensar tais valores como insertos nas diversas formas de relações familiares na medida em que interpretou a noção freiriana a partir da sustentação de que o patriarcalismo naquela sociedade, embora fosse predominante, não era o único a ser considerado. (BRUGGER, 2007: 49) Para a região da Comarca do Rio das Mortes, de modo específico a Vila de São João del-Rei, os estudos de Sílvia Brugger, amparados em dados demográficos, constataram uma série de relações baseadas para além do matrimônio cristão, em concubinatos e também a existência de lares chefiados por mulheres solteiras. A autora propõe em seus estudos uma releitura do patriarcalismo inserindo-o nas diversas relações existentes. (BRUGGER, 2007: 71-72) Assim, as características que balizavam a organização das famílias patriarcais foram percebidas nestes tipos de arranjos específicos estudados pela autora. Deste modo, foi possível considerarmos que, por meio das relações que buscaremos observar através da constituição das famílias do clero e na relação destes com seus filhos, possa haver a presença de valores patriarcais dominando essas esferas domiciliares específicas. Os estudos de Sílvia Brugger sobre as relações familiares em São João del-Rei, apontaram para essa realidade ao constatar que a existência das relações consensuais não deve ser interpretada como ausência dos valores patriarcais. A autora propõe uma revisão do conceito de família patriarcal de Gilberto Freyre e, discutindo o conceito de patriarcalismo, demonstrou que o mesmo estava associado à representação do poder que tinha a família naquela sociedade, que representava uma significação simbólica de valores. Assim, numa revisão da obra de Gilberto Freyre, aponta para a existência dos valores patriarcais na Vila ainda que esta seja fortemente marcada pelo concubinato. Segundo a autora, (...) é interessante sublinhar que os trabalhos demográficos sobre Minas Gerais se têm baseado, principalmente em mapeamentos populacionais feitos em 1804 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 335 e na década de 1830, momentos nos quais os índices de legitimidade de São João del-Rei indicam tanto nos batismos realizados apenas na Matriz quanto na região como um todo, um aumento das relações extraconjugais entre a população livre. (...) O que concluo é que a existência de relações consensuais não deve ser interpretada - como o fizeram alguns historiadores - como indício de ausência ou debilidade do patriarcalismo ou das relações familiares. Antes, o concubinato fazia parte e tinha papel importante na constituição destes valores na sociedade. (BRUGGER, 2002: 89) Do exposto, fica claro que na análise das relações familiares baseadas no concubinato e/ou em outros domicílios chefiados por mulheres, a autora percebeu que os traços patriarcais que caracterizavam as famílias extensas estiveram presentes também neste modelo familiar na Comarca do Rio das Mortes. É exatamente neste ponto que a historiadora Sílvia Brugger define o patriarcalismo. Este não se configura como um regime cristalizado, mas pode ser compreendido como um sistema de valores, nos quais as práticas internas no seio familiar refletem a dominação por meio da família dos aspectos sociais, políticos e econômicos da sociedade. Tais valores não dependem necessariamente do formato da família extensa, conforme a teoria de Gilberto Freire, mas das ações que revelam a importância da família em estratégias que lhe garantissem a sobrevivência, o prestígio social, a manutenção das relações sociais e de poder. Neste sentido, na análise de outros tipos de famílias, há a possibilidade da existência destes valores, daí a possibilidade de percebermos tais valores nas famílias específicas constituídas pelo clero. As práticas do concubinato e da procriação de filhos por parte dos padres se configuravam como um fato comum e era investido da ilegitimidade familiar. Conclusão semelhante foi observada, também em relação às outras formas de relações familiares que foram constituídas à margem do matrimônio cristão, pois estas também eram concebidas como famílias ilegítimas. Tal ilegitimidade foi atrabuída pela Igreja, além do Estado, pois tendo como princípio o casamento religioso como meio de legitimação familiar, condenava as relações que não correspondessem a tais valores. Segundo Ida Lewkowicz, “à Igreja não importavam somente as vocações religiosas e o crescimento de seus próprios quadros. Coube-lhe o papel de dirigir a política familiar colonial, (...) A ação disciplinadora da Igreja fez-se por meio da perseguição aos concubinários, aos amancebados e aos desviantes.” (LEWKOWICZ, 2007: 532) Em seus estudos sobre a família em Minas Gerais, Luciano Figueiredo afirmou que havia uma parceria entre a Igreja e o Estado no sentido de disseminar a preservação da família legítima. (FIGUEIREDO, 1997: 21) Corrobora com esta afirmativa, Ana Luiza Pereira, ao afirmar que, “a Igreja Católica e o Estado português compartilhavam, no século Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 336 XVIII, objetivos muito semelhantes no que diz respeito à composição da sociedade na América portuguesa, sendo a união matrimonial seu expoente.” (PEREIRA, s/d) Ronaldo Vainfas, nesta mesma perspectiva, afirmou que na tentativa de controlar de perto a vida dos fiéis a Reforma católica, além de reafirmar dogmas e regras sobre o casamento, ainda preocupou-se com a vida das famílias, nas relações entre pais e filhos e marido e mulher. (VAINFAS, 2010: 36) Deste modo, as uniões que se davam fora deste contexto moralizador eram consideradas ilegítimas. Para além do princípio de legitimidade pulverizado pela Igreja, os padres ainda possuíam o impedimento ao matrimônio pelo fato de serem ordenados sacerdotes. Porém, fazia parte do cotidiano na Comarca do Rio das Mortes as relações vividas pelos padres com mulheres e filhos expressando, neste caso, um arranjo familiar ilegítimo, mas aceito socialmente dentro dos padrões da época.319 Neste sentido, nossa pesquisa tem como pressuposto básico compreender as famílias dos padres como representante destes novos arranjos familiares na Comarca do Rio das Mortes, no século XIX. O que pretendemos é, sobretudo, através da análise das possíveis relações entre padres, mulheres e filhos percebermos a presença dos valores considerados patriarcais. O próprio Gilberto Freyre abriu precedente para este tipo de análise na medida em que admitiu que os alguns elementos do clero, também foram responsáveis pela formação de famílias reais. Nas palavras do autor, Dos próprios padres, vigário e frades sabe-se que muitos, quando prósperos, em vez de apenas simbolicamente paternais, tornaram-se desde cedo, no Brasil, fundadores e pais de famílias reais, cuidando delas – embora não fossem, para os moralistas, famílias em sua ‘expressão integral’ – com o maior zelo e tornando-se rivais dos senhores das casas-grandes como povoadores, colonizadores e dominadores da América portuguesa através da família ou do familismo. (FREYRE, 2006: 130) Diante disto, podemos conjecturar que o próprio Freire, apesar das inúmeras críticas, demonstrou um avanço significativo no contexto de sua obra, pelo fato de admitir a existência de formas de famílias antipatriarcais na sociedade brasileira. Para o autor, “desde os dias coloniais vêm se mantendo no Brasil, e condicionando sua formação, formas de organização de famílias extrapatriarcais, extracatólicas que o sociólogo não tem, entretanto, o direito de confundir com prostituição ou promiscuidade.” (FREYRE, 2006: 130) E ainda, 319 Ao que tudo indica as relações de concubinato mantidas pelos padres era aceito socialmente. De forma específica no caso que pretendemos analisar neste artigo, o padre João reconheceu seus filhos em cartório público na presença de testemunhas, além de outros indicativos que revelam a convivência do mesmo com seus herdeiros, portanto, revelando a publicidade desta relação. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 337 conforme a citação acima demonstrou que os padres podem ser pensados e analisados como elementos formadores de famílias. São poucos os trabalhos que tem como objeto de investigação exclusivo, os padres, mais especificamente, a constituição de famílias por parte dos mesmos. Os que existem, em sua maioria, se prendem nas práticas imorais do clero, reduzindo-as como uma forma de desvio. A maioria dos trabalhos realizados nessa temática concebe a formação de famílias por parte dos padres como sendo de caráter desviante, devemos, pois considerar que tais pesquisas se baseiam em fontes inquisitoriais de denúncia. No nosso caso, defendemos a autenticidade de tais famílias pautada em documentos pessoais dos padres que reconheceram seus filhos e cruzando tais fontes com documentos de seus herdeiros tendo por base os valores patriarcais da sociedade. Com isto, não negamos a importância dos estudos desenvolvidos por meio de outras abordagens que analisam as práticas do clero como sendo imorais e a constituição destas relações sob o estigma da ilegitimidade. Porém, observarmos através de uma nova perspectiva, a existência deste tipo de família atribuindo a ela valores patriarcais. A prática de reconhecimento de filhos em testamentos e/ou escrituras de perfilhação se configurou como uma atitude comum de um grupo de padres constantes nos documentos pesquisados. Portanto, nossa proposta conforme mencionado anteriormente consiste em analisar tais ações, e, a partir delas formular uma explicação geral específica dentro de uma lógica familiar pautada nos valores patriarcais. Tal proposta se conforma com a perspectiva micro-analítica à medida que nossa atenção se dirige às “singularidades das trajetórias individuais” de um grupo de padres (grifo meu). (LIMA, 2006: 147) Desta forma, nosso objeto de investigação é o padre João da Costa Guimarães. Este fora natural e batizado na Freguesia de Nossa Senhora do Pilar da vila de São João del-Rei, nascido em 1754 e filho legítimo de Domingos da Costa Guimarães e de sua mulher Dona Rita de Souza do Nascimento.320 Consta ainda em seu Processo de Habilitação que desde criança o habilitando ajudava na Igreja, tanto na vila de São João del-Rei como no arraial de Conceição da Barra e que seus pais moravam na lavra da Lagoa Verde, eram brancos e legítimos. O referido padre João da Costa, ordenado por volta de 1766, com 22 anos teve uma filha em 1794. No caso do filho João Pedro Celestino que o padre João da Costa Guimarães reconheceu em sua escritura não encontramos seu registro de nascimento que 320 Processo De Genere Vitae et Moribus do padre João da Costa Guimarães, 1776. Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana (AEAM). Armário 05. Pasta 791. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 338 torna impossível sabermos qual deles nasceu primeiro, Ana Custódia ou João Pedro, e se eram filhos da mesma mulher. Em 1819, o padre em questão vai ao cartório e faz uma Escritura de Perfilhação, revelando o reconhecimento de dois filhos. Escritura de Reconhecimento de Filhos Naturais e Perfilhação e Instituição de herdeiros que faz o Padre João da Costa Guimarães a João Pedro Celestino da Costa e Ana Custódia da Costa, casada com o Tenente Joaquim Bonifácio Brasiel (...) sendo no Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e dezenove aos doze dias do mês de Dezembro do dito ano, nesta Vila de São João del-Rei, Minas e Comarca do Rio das Mortes em casas de morada do Padre João da Costa Guimarães, (...) e aí compareceu o mesmo Padre João da Costa Guimarães, morador nesta mesma Vila que reconheço pelo próprio (...), e por ele me foi dito em presença das testemunhas (...), que desejando deixar por socorridos por sua morte a João Pedro Celestino da Costa e Ana Custódia da Costa, mulher do Tenente Joaquim Bonifácio Brasiel para se escaparem das mãos da pobreza e miséria e arredarem de si as desgraças a que estas arrastam e conduzem os míseros mortais vendo-se obrigados a violarem o Sagrado das Leis Divinas e Humanas e tendo em vista serem já falecidos os pais e avós dele Outorgante e reconhecendo serem os dois Outorgados João Pedro Celestino da Costa e Ana Custódia da Costa seus filhos naturais por tais os declara e por serem tidos por sua fragilidade depois de sacerdote secular do Hábito de São Pedro os perfilha, e há por perfilhados pela presente Escritura para entrarem na herança dos bens dele Outorgante por sua morte (...) E logo por se acharem presentes os Outorgados João Pedro Celestino da Costa e Ana Custódia da Costa com seu marido Tenente Joaquim Bonifácio Brasiel moradores nesta mesma Vila (...) foi dito em presença das mesmas testemunhas que aceitavam esta Escritura na forma e para o fim nela declarado. (...) O Padre João da Costa Guimarães.321 O fator curioso neste caso é que o Padre João da Costa Guimarães reconheceu seus filhos apenas nesta escritura, omitindo a existência dos mesmos em seu testamento, no qual declara, Eu o Padre João da Costa Guimarães querendo firmar a minha última vontade faço o meu testamento na forma seguinte: Sou natural desta Freguesia de São João del-Rei filho legítimo de Domingos da Costa Guimarães e Rita de Souza do Nascimento, já falecidos, presbítero secular e não tenho herdeiros necessários.322 Podemos conjecturar a partir desta observação, que poderia ter sido comum a omissão na escrita dos testamentos por parte de alguns padres no que se refere à existência de filhos ilegítimos, ou ainda o fato destes filhos já serem falecidos no momento da morte do testador. Neste sentido, em relação ao herdeiro João Celestino, não encontramos 321 Escritura de Perfilhação do Padre João da Costa Guimarães. 1819. Livro de Notas 03 - 2º ofício. 18181821. Arquivo Histórico do Escritório Técnico II do IPHAN. p. 47v. 322 Testamento do Padre João da Costa Guimarães. Arquivo Histórico do Escritório Técnico II do IPHAN. 1836, caixa 60. p. 3. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 339 nenhuma outra informação que revelasse a continuidade da sua existência, o único dado que temos dele é o reconhecimento do padre na Escritura de Perfilhação. Por outro lado, no caso da herdeira Ana Custódia esta se encontrava viva no momento da escrita do testamento de seu pai, o padre João. Tal afirmação foi constatada através do registro de casamento323 de seu filho, neto do Padre, herdeiro instituído por ele em testamento Lúcio Bonifácio Costa Brasiel324, este tendo se casado em 1839, sua mãe aparece no registro ainda viva, sem a observação de ter falecido. Portanto, entendemos que a filha do padre Ana custódia estava viva ao tempo do falecimento de seu pai. Analisando o inventário do padre João da Costa Guimarães feito em 1836, observamos que o mesmo ao final da vida possuía poucos bens, conforme consta nesta declaração, “diz o Sargento Mor Joaquim Bonifácio Fernandes Brasiel testamenteiro do falecido Padre João da Costa Guimarães que quer proceder inventário nos bens do mesmo, mas estes são insignificantes (...).”325 Além disto, percebemos que o inventariante é o seu genro o Sargento Mor Joaquim Bonifácio Fernandes Brasiel, o que evidencia a proximidade na relação entre o falecido e o mesmo. No seu inventário foram arrolados, além de alguns trastes, poucos móveis, alguns livros, peças de roupas e enxoval, entre elas uma batina, existia também um escravo velho e doente. Não encontramos qualquer indício da mãe de sua filha Ana Custódia, a escrava Jacinta Custódia, a não ser no registro de casamento da filha, portanto, não temos como afirmar se esta também era mãe do herdeiro João Pedro Celestino da Costa e qual o seu destino durante a trajetória desta família. Mas, o importante, neste caso, é que através do texto da escritura podemos perceber que houve evidentemente uma preocupação com o bem estar destes filhos após a sua morte, nos seguintes termos, “desejando deixar por socorridos por sua morte”. Esta atitude demonstra a atenção e preocupação do destino dos filhos por alguns padres no ato do reconhecimento, procurando assegurar o futuro dos mesmos em termos econômicos. Suely Almeida apontou para esta mesma característica ao destacar que a legitimação de filhos em escrituras públicas de perfilhação demonstrava que os padres se mantiveram de 323 Registro de Casamento de Lúcio Bonifácio da Costa Brasiel. 1839. Livro de Registros de Casamentos. Arquivo Eclesiástico da Diocese de São João del-Rei. Livro 11, p. 123. 324 Nota-se que o nome do referido neto do padre João da Costa Guimarães, no registro de casamento foi lançado como Lúcio, sendo que no testamento o padre o nomeia Luis, fato este comum em documentos escritos. 325 Inventário do padre João da Costa Guimarães. Arquivo Histórico do Escritório Técnico II do IPHAN. 1836, caixa 48. p. 2. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 340 certa forma, próximos de seus filhos e, por isso, nas palavras da autora, podem ter sido “bons pais” (grifo da autora. (ALMEIDA, s/d: 04) O falecimento do dito Padre ocorreu somente em 31 de maio de 1832, treze anos depois do registro da escritura em cartório.326 Em seu testamento, nomeia como testamenteiros em conjunto seu genro e filha e institui por herdeiros os filhos dos seus primeiros testamenteiros, “Instituo por meus herdeiros do resto dos meus bens aos filhos dos primeiros testamenteiros acima nomeados João Norberto da Costa e Luis Bonifácio da Costa.”327 Tendo em vista que seus primeiros testamenteiros são o Sargento Mor Joaquim Bonifácio Fernandes Brasiel e sua mulher Ana Custódia da Costa, esta sua filha reconhecida na Escritura de perfilhação, seus herdeiros então, são os seus netos. Percebemos então a estratégia familiar de transmissão de herança por parte deste padre. Tendo em vista que reconhecendo seus filhos em carta de perfilhação garantiu, de certa forma, a sucessão dos bens, e ainda se preocupou em transferir o restante dos bens que lhe eram de direito aos seus netos. A legitimação de filhos, através de mecanismos como o testamento e a escritura de perfilhação garantia aos mesmos o direito de sucessão. Segundo Júnia Furtado, no Brasil colonial e em Portugal, de acordo com as Ordenações Filipinas, “os filhos ilegítimos podiam ser legitimados e/ou herdar mediante algumas condições.” (FURTADO, 2011: 98) Na busca da existência de outros documentos cartoriais pertencentes aos filhos deste Padre, no sentido de verificar as articulações entre pais e filhos, infelizmente não foi encontrado nenhum deles, nem mesmo do seu genro o Sargento Mor Joaquim Bonifácio Fernandes Brasiel. Porém, em relação ao cruzamento deste documento com registros eclesiásticos encontramos o nascimento e o casamento da herdeira Ana Custódia. Esta nasceu em 1794, foi batizada na Matriz de Nossa Senhora do Pilar e consta como filha natural de Jacinta, escrava do dito padre João da Costa Guimarães.328 O que nos chamou a atenção neste registro é que a criança foi alforriada na pia batismal pelo padre João da Costa, prática esta comum, no que se refere à filiação ilegítima oriundas da relação entre senhores e escravas. Segundo Vitória Andrade, as alforrias concedidas na pia batismal nos faz pensar numa complexa relação pautada muitas vezes na solidariedade, afinidade e/ou ligação de paternidade. (ANDRADE, 2011: 02) É o que foi constatado na observação deste 326 A data do falecimento do mesmo consta no Termo de Abertura lavrado no processo de Testamento. Testamento do Padre João da Costa Guimarães. Arquivo Histórico do Escritório Técnico II do IPHAN. 1836, caixa 60. p. 3. 328 Registro de Batismo de Ana Custódia. Livro de Batismos. Arquivo Eclesiástico da Diocese de São João del-Rei. 1794. Livro 16. p. 207. 327 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 341 registro. O padre João da Costa Guimarães teve dois filhos, apesar de não sabermos se ambos foram tidos da mesma escrava Jacinta, porém preocupou-se em alforriar a filha na pia batismal, evidenciando uma ligação de paternidade com a mesma. A herdeira Ana Custódia se casou em 1811, com a idade de 17 anos329, e em 1819, quando tinha 25 anos foi reconhecida em cartório por meio da sobredita Escritura de Perfilhação. Quanto ao genro do padre, o Sargento mor Joaquim Bonifácio Fernandes Brasiel, este foi detectado como inventariante de outro de igual sobrenome, o seu pai, Lourenço José Fernandes Brasiel em 1833.330 Na pesquisa deste inventário, qual foi a nossa surpresa ao descobrirmos que ambos, o inventariado e seu filho, genro do padre João da Costa Guimarães, eram músicos. Tais conclusões foram possíveis, a partir da descrição dos bens do dito Lourenço, onde apareceram diversos instrumentos musicais e várias partituras relacionadas às músicas sacras. Outro fator indicativo foi percebido através de uma petição formulada pelo genro do falecido, João Leocádio do Nascimento, viúvo e responsável pelos netos deste, o qual declarou que vivia do ofício da música. “(...) o Suplicante vive da Arte de Música da qual igualmente viveu o dito seu sogro e vive o inventariante seu cunhado, (...).”331 O cunhado citado neste caso é o tal genro do padre, o Sargento Mor Joaquim Bonifácio Fernandes Brasiel. Deste modo, percebemos que os familiares do genro do padre João da Costa Guimarães, incluindo seu pai e cunhado viviam da arte da música. Outras suposições podem ser inferidas ao analisarmos a lista dos bens do inventário de Lourenço José Fernandes Brasiel, nesta continha vários elementos relacionados à religião, como, quadros de santos, livro do Novo Testamento, catecismo, missais e formulários de oração. Este é um fator indicativo da vivência religiosa pelo músico, podendo revelar uma possível proximidade com o padre João da Costa Guimarães, já que este como padre, obviamente, exercia funções de cunho religioso. Tendo o músico diversos instrumentos musicais e partituras relacionadas à religião, e sendo constatado que o mesmo vivia da música, bem como outros elementos da sua família, provavelmente eles atuavam em diversas festividades da Igreja e por isso, o estabelecimento de uma relação mais estreita com o padre João da Costa Guimarães. O que pretendemos afirmar é o fato de que esta proximidade pode ter influenciado o padre João da Costa na escolha de um noivo para sua filha Ana Custódia da Costa e ter 329 Registro de casamento de Ana Custódia. Livro de Casamentos. Arquivo Eclesiástico da Diocese de São João del-Rei. 1811. Livro 2. p. 641. 330 Inventário de Lourenço José Fernandes Brasiel. Arquivo Histórico do Escritório Técnico II do IPHAN. 1833, caixa 128. 331 Idem. p. 4. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 342 contratado o casamento da mesma com o dito filho do músico o Sargento Mor Joaquim Bonifácio Fernandes Brasiel. Neste sentido, a Igreja, além de ser um local destinado ao exercício e cumprimento das funções espirituais e religiosas, poderia também representar espaços de sociabilidade nos quais os padres negociavam o futuro matrimonial de suas filhas com aqueles que nela atuavam nas diversas funções, como neste caso, a da música. Sílvia Brugger, ao analisar as estratégias familiares e alianças matrimoniais, assinalou que tais práticas foram bastante comuns naquela sociedade, tendo em vista que o casamento na época, não tinha como escopo principal a satisfação dos noivos, mas, sobretudo, visava os interesses familiares. (BRUGGER, 2007: 222) Marcos Andrade, em seus estudos sobre a elite sul-mineira, afirmou, ao analisar as características patriarcais da família Junqueira, que entre os elementos que caracterizam a presença do patriarcalismo nestas famílias se inseriam as alianças matrimoniais, as ocupações de cargos políticos, administrativos e eclesiásticos, etc. (ANDRADE, 2008: 253254) De acordo, com o autor, considerando que as estratégias matrimoniais características das famílias patriarcais buscavam contratar casamentos de suas filhas com pessoas semelhantes no aspecto econômico, é possível perceber tal estratégia na atitude do padre João da Costa Guimarães. Tais iniciativas evidenciam não apenas as alianças pautadas na endogamia,332 mas também as escolhas baseadas na igualdade das famílias. Sobre a questão da igualdade, Sílvia Brugger afirma que, ser igual, na concepção patriarcal daquela sociedade, era “ter o que trocar” entre as famílias que se uniam através do matrimônio arranjado de seus filhos. “(...) as uniões matrimoniais selavam alianças entre grupos familiares que tinham algo a se oferecer, reciprocamente, fosse prestígio social, riqueza, acesso a redes de poder, entre tantas outras possibilidades.” (BRUGGER, 2007: 226) Assim, o fato do genro do padre João da Costa Guimarães, possuir a patente de Sargento Mor, demonstrando, portanto, determinado poder e prestígio social, pode ter influenciado na escolha do mesmo para casar-se com sua filha. Outro fator a ser considerado é que, dois dos irmãos do genro do padre também eram sacerdotes. Os filhos do músico Lourenço eram o Padre Francisco de Assis Brasiel e 332 A endogamia, segundo Marcos Andrade, representava um recurso eficiente na medida em que os casamentos realizados entre pessoas da mesma família evitavam a dispersão da herança. Para maiores informações ver: (ANDRADE, 2008: 248-252). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 343 outro falecido por nome Padre Antônio da Trindade.333 Este fato ratifica outra característica de famílias patriarcais, na medida em que o músico Lourenço José Fernandes Brasiel direcionou dois de seus filhos para se tornarem padres. Sabemos que o fato de ser padre conferia status familiar, conforme afirmou Ida Lewcowicz, “é necessário lembrar que foi prática comum entre as famílias, na sociedade colonial, a reserva de um filho para padre ou uma filha para freira, garantia de prestígio social e possibilidade de ascensão (...).” (LEWCOWICZ, 2007: 56) Assim, podemos supor que a família do genro do referido padre pode ser considerada igualmente importante à do padre João da Costa Guimarães, daí a estratégia em unir as famílias “iguais” para consequente ampliação do poder e prestígio social. Através deste estudo de caso, foi possível percebermos, que os documentos utilizados para análise expressam em sua conjuntura o estabelecimento das relações entre os padres e seus filhos. As disposições da escritura e testamentos analisados revelaram os cuidados e atenção do padre João da costa Guimarães manifestados através da proximidade familiar. Deste modo, concluímos que partindo do reconhecimento dessa filiação, seguida da análise e cruzamento das fontes, e ainda de documentos dos herdeiros e/ou pessoas relacionadas ao padre, foi possível entendermos os mecanismos utilizados por este tipo específico de família. Podemos supor que os padres ao reconhecerem seus filhos, o faziam, sobretudo, buscando garantir-lhes certa estabilidade econômica. Marcos Andrade admite ao analisar as características patriarcais da família Junqueira que uma delas era a preocupação em acumular fortuna. (ANDRADE, 2008: 253-254) Neste sentido, podemos perceber através da análise dos inventários que os padres da Comarca do Rio das Mortes souberam se inserir na dinâmica econômica presente naquela sociedade. Estes elementos, além de consorciar suas funções sacerdotais com a constituição de famílias, ainda trabalhavam para a aquisição de bens se envolvendo em atividades econômicas de toda ordem, estas para aqueles que possuíam famílias eram fundamentais à sobrevivência dos seus. Quanto à inserção econômica dos padres, Kenneth Serbin chamou atenção para este fato ao afirmar que, “a vida material reinou suprema na história do clero católico. (...) No Brasil colonial, os padres exerciam considerável poder econômico.” E continua o mesmo autor, ao considerar que no “final da era colonial e durante o Império, padres especulavam 333 Inventário de Lourenço José Fernandes Brasiel. Arquivo Histórico do Escritório Técnico II do IPHAN. 1833, caixa 128. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 344 com terras, cultivavam açúcar e tabaco, vendiam mercadorias, alugavam escravos e investiam em empreendimentos marítimos.” (SERBIN, 2008: 52) Marcos Andrade, ao analisar a trajetória de todos os herdeiros da família Junqueira percebeu também essa tendência econômica dos padres, demonstrando que o padre Francisco Antônio Junqueira, além de ser proprietário de Fazenda e Sesmarias, exerceu diversas atividades econômicas cuidando de seus animais e plantações. Segundo o autor, este padre, “como muitos vigários de seu tempo, acabou deixando expressiva descendência. Teve vários filhos em união ilegítima, (...)”. (ANDRADE, 2008: 216) através da análise da convivência entre padres e seus filhos, expressa em testamentos e inventários no sistema de transmissão de herança e legados, e ainda nas determinações testamentarias que revelavam cuidados e outras atitudes, seja possível perceber formas de inserção e organização social através da família. O reconhecimento público dessa filiação ilegítima, seguida da análise e cruzamento das fontes, pode revelar essa convivência, como foi demonstrado no exemplo acima. Referências: Fontes primárias Escritura de Perfilhação do padre João da Costa Guimarães. 1819. Livro de Notas 03 - 2º ofício. 1818-1821. Arquivo Histórico do Escritório Técnico II do IPHAN. p. 47v. Inventário de Lourenço José Fernandes Brasiel. Arquivo Histórico do Escritório Técnico II do IPHAN. 1833, caixa 128. Inventário do padre João da Costa Guimarães. Arquivo Histórico do Escritório Técnico II do IPHAN. 1836, caixa 48. Processo De Genere Vitae et Moribus do padre João da Costa Guimarães, 1776. Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana (AEAM). Armário 05. Pasta 791. Registro de Batismo de Ana Custódia. Livro de Registros de Batismos. Arquivo Eclesiástico da Diocese de São João del-Rei. 1794. Livro 16, p. 207. Registro de casamento de Ana Custódia. Livro de Registros de Casamentos. Arquivo Eclesiástico da Diocese de São João del-Rei. 1811. Livro 2. p. 641. Registro de Casamento de Lúcio Bonifácio da Costa Brasiel. Livro de Registros de Casamentos. Arquivo Eclesiástico da Diocese de São João del-Rei. 1839. Livro 11, p. 123. Testamento do padre João da Costa Guimarães. Arquivo Histórico do Escritório Técnico II do IPHAN. 1836, caixa 60. Bibliográficas e virtuais Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 345 ALMEIDA, Suely C. Cordeiro de. Os religiosos e as mulheres: um olhar sobre as famílias constituídas pelos clérigos. 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Esse artigo é fruto de um trabalho realizado durante o ano de 2011 através do Programa de Iniciação Cientifica da Universidade do Vale do Sapucaí – PIBIC/UNIVAS, que buscou analisar e compreender a formação de famílias cativas e libertas na freguesia de Conceição dos Ouros abordando o período de 1862 a 1888. Através de pesquisa realizada nos registros paroquiais, nos foi possível identificar o número (aproximado) de famílias formadas, as uniões entre cativos realizadas sob a benção da Igreja e também as consensuais, bem como parte da trajetória dos filhos dessas uniões. Palavras chave: Família escrava, Sociabilidades, Sul de Minas Gerais. Abstract: Studies about family relationships between slaves are frequent in historiography. However, those studies were mostly based on areas with large participation on Brazil's slavery economy, the South area of Minas Gerais, which production in small property is significant, still lacks studies. This article is consequence of a research made in the year of 2011 by the Scientific Initiation Program of UNIVÁS, that seeked to analyse and comprehend the formation of captive and freed families (from 1872) in the parish of Conceição dos Ouros between 1862 and 1888. Through this research made on parochial records, we could identify the (estimated) number of families formed, marriages between captives realized under Church blessing also consensual unions, as well as the trajectory of the sons of those unions. Keywords: Slave family, Sociabilities, South of Minas Gerais. O presente artigo insere-se na perspectiva histórica desenvolvida no Brasil a partir da década de 1970334, que busca através da inserção de novas fontes e de novos processos metodológicos ao trabalho do historiador social reaver a condição dos escravos durante o regime escravocrata brasileiro, retirando-os da condição de “peças” desprovidos de anseios próprios e submissos as vontades de seu senhor. Recuperando-os como agentes históricos 334 Essa revisão no “olhar” sobre o regime escravista brasileiro surge em consonância com as mudanças historiográficas que ocorreram em âmbito internacional, que buscavam através da História Social resgatar a história das “camadas subalternas” da população. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 348 capazes de atuar construindo laços, resistindo, negociando e se movendo dentro da sociedade em que viviam – apenas parcialmente limitados por sua condição social. Dentre os primeiros historiadores que buscaram abordar o sistema escravocrata brasileiro, como uma instituição formada por agentes históricos múltiplos (senhores e escravos), destaca-se o trabalho de: Robert Slenes, Manolo Florentino, Sidney Chalhoub, Sheila de Castro Faria, João José Reis, Stuart Schwartz, Hebe M. Matos, entre tantos outros. Estes estudaram os mais variados temas ligados à escravidão: religião, resistência, formação de laços, práticas, lutas pela liberdade, negociação, fugas, quilombos etc. Contribuindo de forma ímpar para um novo olhar da historiografia sobre o “ser escravo no Brasil”. A partir das décadas de 50 nos Estados Unidos, surgem estudos que acrescentam novos contornos ao olhar sobre a formação de famílias escravas dentro do cativeiro, como as obras: de Eugene D. Genovese: “A Terra prometida o mundo que os escravos criaram” (1974) e a de Hebert Gutman: “The black family in slavery and freedom” (1976). Com o auxílio de fontes demográficas, estas pesquisas demonstraram que os escravos teciam laços dentro e fora dos domínios da senzala. Que as relações poderiam ser estabelecidas, tanto com pessoas de sua mesma condição social, quanto com livres, forros e libertos. Esses trabalhos contestavam uma antiga visão, que apontava a incompatibilidade entre o cativeiro e relações familiares. Com relação aos significados da família para os escravos e seus senhores, os historiadores possuem diferentes opiniões. Para Slenes, pioneiro nos estudos demográficos acerca dos lares negros no cativeiro, a família escrava representava ao cativo uma autonomia maior dentro dos plantéis – pois, poderia adquirir privilégios como uma moradia separada e um pedaço de terra para plantar. Ela também se mostrava benéfica ao seu proprietário que, tendo seu cativo preso a laços familiares, possuía uma garantia maior contra fugas e rebeliões (SLENES, 1999: 45-50). Assim essas relações familiares implicavam em “perdas” e “ganhos” para ambas as partes, pois ao mesmo tempo em que proporcionava ao escravo a chance de “se encontrar” dentro do cativeiro, tornava-o “refém” de seu senhor (no sentido de poder ter sua família e laços ameaçados a qualquer momento). Para o senhor, era necessário abrir mão de possuir plenos poderes sobre a escravaria e pensar em novos meios para exercer seu controle (SLENES, 1999: 47-48). No estudo desenvolvido por Manolo Florentino e José Roberto Goés a família escrava é entendida como uma instituição capaz de promover “a paz nas senzalas”. Segundo os autores os cativos viviam em “estado de guerra”, devido ao choque causado Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 349 pela constante chegada de novos membros ao cativeiro, que possuíam etnias e culturas diferentes (FARIA, 2006: 124-125). Para Florentino e Goés, as relações familiares se constituíam numa das bases para o escravismo, uma vez que, ao cativo representavam a formação de solidariedades dentro da senzala e aos senhores trariam a “paz”, necessária para o bom rendimento do trabalho escravo que era realizado em grupos. Sobre os trabalhos dedicados a analisar a formação de famílias escravas convém ressaltar que eles centram-se em áreas que constituíam pólos importantes para a economia do Brasil, como: a região do sudeste (que fazia parte do eixo da economia Imperial), algumas áreas do nordeste que foram importantes produtores de açúcar e as cidades mineradoras. Nas regiões onde a economia não era significativa e a produção destinava-se ao comércio interno - espaços que foram parcialmente tocados pelo tráfico negreiro - há carência de estudos no que tange a organização familiar dos cativos (SLENES; FARIA, 1998: 6). As pesquisas acerca dos laços familiares de cativos em regiões que não se encontram inseridas na rota do ouro em Minas Gerais, nos últimos anos, tem despertado o interesse de inúmeros historiadores e a produção de estudos dedicados a este tema se encontra, atualmente, em constante desenvolvimento. O trabalho que desenvolvemos sobre a presença escrava em Conceição dos Ouros, localizado no sul de Minas, busca contribuir para uma releitura da história do município e para a escrita de mais um capítulo na história sul mineira. Com a decadência da exploração do ouro, a economia de grande parte da província de Minas Gerais já se encontrava consolidada na produção de gêneros de subsistência. O cultivo desses produtos surgiu junto à necessidade de abastecimento das regiões mineradoras, ainda no século XVIII. O sul de Minas possuía uma economia consonante a essa produção para consumo interno.Seu clima e terras férteis também se constituíam em fatores favoráveis ao plantio e a pecuária. Isaías Pascoal cita como gêneros de destaque da produção sul mineira, o milho, arroz, feijão, fumo, gado, porcos, queijos e carnes salgada. Durante o século XIX os frutos dessa produção seriam destinados ao abastecimento da Corte no Rio de Janeiro (PASCOAL, 2007: 272 - 273). O distrito de Conceição dos Ouros se inseria nesse contexto de lavouras de subsistência. Os primeiros moradores da região335, pertencentes à Família Motta Paes, 335 Há indícios de que havia moradores em terras pertencentes à Conceição dos Ouros antes da chegada dos Motta Paes, no entanto pela falta de documentos que ajudem a firmar um perfil para esta evidência, optamos por tratar da produção agrícola do distrito a partir da chegada dessa família. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 350 possuíam vastas propriedades rurais onde eram produzidos gêneros como: milho, feijão, arroz, batata-doce, algodão, mandioca etc. Suas terras se localizavam na parte leste do município, segundo a memorialista Mercedes C. Campos, a família era proprietária: “das terras que se estendem do Ribeirão dos Rezendes (próximo a Cachoeira de Minas) aos limites com o município de Brazópolis e Paraisópolis (Ribeirão Pequeno e Lagoa), atingindo, no sentido oeste, o bairro dos Rochas.”. Ao todo, encontramos o número de 10 fazendas pertencentes a membros da Família Motta Paes. Quanto às propriedades no perímetro urbano, Campos indica a construção, por volta de 1870, de apenas dois casarões localizados no centro do município (CAMPOS, 2002: 33, 128-131). Com isso, acreditamos que os Motta Paes davam prioridade a vida em suas fazendas. Imagem 1: Mapa de Conceição dos Ouros (CAMPOS, 2002: 10) Na parte oeste do município nos locais onde hoje se encontram os bairros Três Cruzes, Ouros Velho, Barbosas e Broxados encontravam-se propriedades de porte menor que exerciam o cultivo de lavouras variadas e a criação de suínos. Essa área possuía um número maior de habitantes como podemos constatar na análise dos assentos paroquiais. Ali também se encontravam grandes propriedades rurais, porém em menor extensão que as pertencentes aos Motta Paes. A partir da segunda metade do século XIX o cultivo de fumo, algodão e cana de açúcar crescem no distrito. A produção de fumos e velas de cera desponta como um dos primeiros produtos ourenses a serem exportados, segundo o Almanak Sul-Mineiro de Bernardo Saturnino da Veiga: “na povoação de Conceição dos Ouros se cultiva em grande Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 351 escala o fumo, que é o mais importante gênero de exportação”. A rapadura e a aguardente também são citadas como mercadorias de grande comercialização em Ouros, sua produção se dava através de engenhos movidos pela força de água ou animais (CAMPOS, 2002: 32, 43). O cultivo de café também se fez presente em Conceição dos Ouros, no entanto, o clima frio e as constantes geadas dificultavam à concorrência comercial, em detrimento às lavouras de localidades que possuíam condições climáticas mais estáveis (como as do Vale do Paraíba). Mesmo assim, o plantio de café era significativo para o distrito, considerando o número de produtores que se dedicavam a essa plantação. Em 1884 o Almanak Laemmert informa que em Conceição dos Ouros haviam plantados cerca de 80 mil pés de café. Um número que nos anos seguintes tende a crescer com a valorização do grão no cenário nacional. A mão de obra cativa foi empregada no distrito ao cultivo de gêneros agrícolas de subsistência (e mais tarde no café), nos engenhos produtores de aguardente e rapadura, nas pequenas indústrias de vela de cera e fumo, no transporte de produtos para o comércio e em serviços domésticos e de carpintaria. O trabalho escravo parece-nos ter possuído pouca expressão dentro dos limites urbanos do município, pois, como dito anteriormente, as grandes propriedades possuidoras de cativos e a maioria da população residia nos bairros rurais do distrito ourense. Através de uma análise empreendida nos registros eclesiásticos da Secretaria Paroquial Nossa Senhora da Conceição, conseguimos realizar um levantamento aproximado do número de proprietários que possuíam escravos no distrito e da quantidade de cativos que estes tinham em sua posse. O trabalho realizado teve como primeiro objetivo organizar as fontes disponíveis na Paróquia Nossa Senhora da Conceição em ordem cronológica, pois os livros há alguns anos atrás foram “desmanchados” pelo sacristão e tiveram suas páginas colocadas em duas pastas de forma aleatória, com o objetivo de preservá-los melhor. No total foram arrumadas 207 páginas manuscritas. Em um segundo momento, fizemos um levantamento das fontes que seriam utilizadas em nossa pesquisa. Para nosso recorte temporal encontramos o número de cinco livros que se dividem em: dois livros de assentos de batismo (sendo um deles misto e outro dedicado ao batismo de ingênuos), dois livros de assentos de óbito (um deles se encontrava misturado aos gastos da freguesia) e um livro de assentos de casamentos misto. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 352 As informações coletadas nesses registros foram separadas e organizadas em fichas catalográficas elaboradas por nós em parceria com a Acervo/FUVS336, estas buscam trazer as principais informações sobre a documentação analisada de maneira simples e objetiva para colaborar não só em nossa pesquisa, mas em trabalhos futuros e se encontram disponíveis no Laboratório de Documentação Cartorial da Univás – LabDoc. Modelo de ficha usada para catalogação dos batizados de escravos encontrados nos livros de registro da Secretaria Paroquial de Nossa Senhora da Conceição Ano: 2011 Total de itens: 05 Pesquisadora:Viviane Tamíris Pereira Palavrachave Registro do Escravo Registro de Batismo de escravo Nome: Jose Idade: 51 dias Pai: Incógnito Mãe: Joaquina Registro de batismo de escravo Registro de batismo de escravo Registro de batismo de escravo Origem: Conceição dos Ouros Nome: Romana Idade: 30 dias Pai: Ignacio Mãe: Generosa Origem: Conceição dos Ouros Nome: Getulio Idade: 15 dias Pai: Mariano Mãe: Thereza Origem: Conceição dos Ouros Nome: Levidiana Idade: 20 dias Pai: Benedito Mãe: Rosa Origem: Conceição dos Ouros Localização Física Local Código de Arranjo Casa Paroquial de Conceição RB/COA001 dos Ouros Casa Paroquial de Conceição dos Ouros Casa Paroquial de Conceição dos Ouros Casa Paroquial de Conceição dos Ouros RB/COA002 RB/COA003 RB/COA004 Tipo Doc Data do Batizado Pasta Plastificada preta contendo 85 páginas manuscritas 17/08/186 2 Pasta Plastificada preta contendo 85 páginas manuscritas 17/08/186 2 Pasta Plastificada preta contendo 85 páginas manuscritas 04/10/186 2 Pasta Plastificada preta contendo 85 páginas manuscritas 04/10/186 2 Observações Nome do proprietário: Tenente Francisco da Motta Paes Padrinhos: Antonio e Ana (casados) escravos do Major Felix da Motta Paes Nome do proprietário: Tenente Coronel João Pinto da Fonseca Padrinhos: Bento Antonio Ribeiro e Beatriz Maria Nome do proprietário: Maria do Carmo Ribeiro da Fonseca Padrinhos: Manoel Rosa Furtado e Carolina Candido Campos Nome do proprietário: Francisco Pinto da Fonseca Padrinhos: Manoel Rosa Furtado e Joana escrava do Tenente Coronel João Pinto da Fonseca 336 Acervo FUVS/ Univás: Atua na organização da documentação iconográfica com o objetivo do resgate da memória institucional e disseminação da informação, tendo o predicado de sedimentar, na Univás, uma área dedicada à guarda, preservação e disseminação de documentos e informações. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 353 Registro de batismo de escravo Nome: Libana Idade: 28 dias Pai: Incógnito Mãe: Eva Casa Paroquial de Conceição dos Ouros RB/COA005 Origem: Conceição dos Ouros Pasta Plastificada preta contendo 85 páginas manuscritas 05/10/186 2 Nome do proprietário: Major Felix da Motta Paes Padrinhos: Baldino e Maria (solteiros) escravos do Major Felix da Motta Paes Os campos requisitados foram formulados de modo a possibilitar uma visão geral dos dados contidos na documentação voltados à presença de escravos nos livros da Casa Paroquial de Conceição dos Ouros, as informações foram transcritas respeitando a grafia da época e mantendo todas as observações realizadas nos registros. O primeiro campo ‘palavra-chave’ traz o tipo de documento/fonte ao que este arquivo se refere, no caso da tabela acima: registro de batismo de escravo. O segundo traz informações sobre o escravo como o nome, idade com que foi batizado, sua filiação, nome do pai e da mãe e sua origem (município) onde nasceu e reside. Estes dados são cruciais para o cruzamento com outras fontes em busca de reconstituir a família e a trajetória deste sujeito social. O terceiro item localização física: local onde se encontra a fonte pesquisada, código de arranjo: código a ser cadastrado em futuro banco de dados pertencente ao LabDoc. O quarto item tipo de documento: fornece informações a respeito do documento pesquisado suas características e seu estado físico. Facilitando a pesquisa de campo. No quinto item: data do batizado. No sexto item: observações; estão dados que em união aos demais são fundamentais para se reconstituir a família e as relações de compadrio dos cativos citados nos registros, contribuem também para um levantamento dos principais proprietários do município. Nessa seção também serão citadas informações extras, que estão ausentes no documento. Como por exemplo: páginas rasgadas, palavras ilegíveis e alguma observação do pároco celebrante. As fichas de registros de casamentos e óbitos seguem o mesmo modelo, porém com algumas alterações em itens de preenchimento nos campos, necessárias para a pesquisa. Através dos dados levantados podemos observar as formações familiares, o período de maior recorrência e a procedência destes escravos, a que fazendas e a que proprietários pertenciam. A participação dos senhores ou de outros escravos tomados muitas vezes como testemunhas do sacramento. A filiação dos casais nos ofereceu a possibilidade de percebermos a formação familiar bem como a trajetória destes sujeitos. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 354 Convém ressaltar que os dados presentes neste artigo não são definitivos, e podem sofrer alterações conforme os estudos de novas documentações forem realizados. Para a contagem dos escravos do distrito, consideramos a metodologia empregada por Clotilde Paiva (2006) na definição do tamanho das propriedades escravistas. Paiva delimita os plantéis como: pequenos (1 a 3 escravos), médios (4 a 10 escravos), grandes (11 a 49 escravos) e muito grandes (acima de 50 escravos)337. Tabela 1: Número de proprietários de escravos na Freguesia Nossa Senhora da Conceição 1862-1888* Número de escravos por proprietário 1 a 3 escravos Pequenos plantéis 4 a 10 escravos Médios plantéis 11 a 49 escravos Grandes plantéis Mais de 50 escravos Plantéis muito grandes TOTAL Número de Proprietários Total de escravos 112 67,4% 209 22,8% 36 21,6% 219 23,9% 15 9,2% 299 32,6% 03 1,8% 188 20,5% 166 100% 915 100% *Fonte: Livros de Registros de Batismo nº 1 (1862–1882); Livro de Registros de Batismo nº 2 (1876–1888); Livro de Registros de Casamentos nº 1 (1862-1890); Livro de Registros de Óbitos nº 1 (1862–1896) da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, Conceição dos Ouros – MG. Conforme mostra a tabela em Conceição dos Ouros, prevaleciam os pequenos plantéis, dentre os 112 pequenos proprietários identificados 36 possuíam apenas 1 escravo. Havia 55 donos de 2 escravos e 21 senhores que contavam com 3 escravos em sua posse. Ao todo, os cativos pertencentes a esses proprietários representavam 22,8% do total de escravos do distrito. Em relação aos plantéis de tamanho médio, eles abrangiam 23,9% dos escravos pertencentes ao distrito. O número de cativos por proprietário variava da seguinte forma: 9 proprietários possuíam 4 cativos, 8 senhores contavam com 5, havia 15 donos com a quantidade entre 6,7 e 8 cativos – 5 donos para cada respectivamente. Adiante constatamos nos registros que 4 proprietários somavam o contingente de 11 escravos. E duas duplas de senhores obtinham 9 e 10 mancípios em sua posse. 337 Segundo DELFINO (2009, p. 86) essa classificação acerca do tamanho dos plantéis é realizada de modo proporcional entre o número de cativos e o uso da terra nestas propriedades, que se reflete na média de escravos adquiridos em determinada região. Assim, em áreas de grande lavoura esses números tendem a variar dos que utilizamos. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 355 Os plantéis de tamanho grande e muito grande do distrito somam o total de 53,1% dos cativos da região, estes se encontram divididos entre a posse de 18 senhores. Para essas propriedades conseguimos através de consulta a alguns assentos de óbito (que contam com alguns poucos detalhes sobre a vida de alguns sujeitos) e ao livro “Salve Ouros, cidade querida” (CAMPOS, 2002) identificar maiores detalhes sobre 11 destes domicílios escravistas, esses dados foram organizados na tabela seguinte: Tabela 2: Principais propriedades e gêneros produzidos pelos plantéis grandes e muito grandes em Conceição dos Ouros* Proprietários Propriedades Produção Número de escravos Major Felix da Motta Paes – Fazendeiro e fundador de Conceição dos Ouros Fazenda do Ribeirão do Carmo (700 alqueires); Fazenda das Dores (mais de 300 alqueires); Fazenda Boa Vista do Capivari (Fazenda Pinhal). Fazenda de Café e gêneros de subsistência. 76 Joaquim da Motta Paes (Barão de Camanducaia) Fazendeiro e político da região Cel. Lucio da Motta Paes – Fazendeiro e Tropeiro Fazenda de café e gêneros de subsistência; pequena produção de açúcar em engenho e pecuarista. Fazenda de Café e gêneros de subsistência, Fazenda Ribeirão Pequeno e outros terrenos no bairro Ribeirão produção de aguardente e rapadura. Transporte e Pequeno comércio de mercadorias Fazenda da Chapada (3 mil alqueires); Fazenda da Lagoa; Fazenda dos Ouros (800 alqueires). 56 56 Ten. Cel. João Pinto da Fonseca Fazendeiro - Lavouras variadas 46 José Ribeiro da Motta Paes (Barão da Motta Paes) Fazendeiro Fazenda Beira-Rio Sapucaí (800 alqueires) e Fazenda Cachoeira (300 alqueires) Fazenda de Café com engenho de cana e alambique. 15 José Dionísio Telles do Nascimento - Lavouras variadas 38 Dâmazo da Motta Paes Fazenda Monjolinho (260 alqueires) Francisco da Motta Paes - Pedro Antonio Marçal - Francisco Custódio dos Santos - Lavoura de Café, produção de rapadura e aguardente. Plantação de lavouras variadas de gêneros de subsistência Lavouras variadas e produção do “Fumo Marçal” Engenho de cana produtor de rapadura e aguardente 30 29 24 14 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 356 Joaquim Pereira da Silva - Lavouras variadas 15 *Fonte:Livros de Registros de Batismo nº 1 (1862–1882); Livro de Registros de Batismo nº 2 (1876–1888); Livro de Registros de Casamentos nº 1 (1862-1890); Livro de Registros de Óbitos nº 1 (1862–1896) da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, Conceição dos Ouros – MG. “Salve Ouros, cidade querida” (CAMPOS, 2002: p. 32-34) Os demais plantéis possuíam o número de 11, 12 e 13 cativos divididos entre 4, 2 e 1 proprietário respectivamente. Analisando a tabela percebemos que os integrantes da Família Motta Paes eram donos de importantes propriedades escravistas do distrito. Ao todo, apenas nas mãos de seis proprietários estiveram concentrados 28,6% dos cativos da região. Após o levantamento do número de plantéis existentes em Conceição dos Ouros, realizamos uma contagem das famílias cativas presentes nestas propriedades. Para isso cruzamos as informações presentes nos registros de batismo, casamento e óbito. Tabela 3: Número de famílias cativas e libertas na freguesia Nossa Senhora da Conceição 1862-1888* Tamanho da Propriedade Famílias Matrifocais Famílias Nucleares Total de Famílias Pequenos plantéis (1 a 3 escravos) 51 33,5% 18 15,3% 69 25,6% Médios plantéis (4 a 10 escravos) 45 29,6% 25 21,3% 70 26,0% Grandes plantéis (11 a 49 escravos) 30 19,7% 56 47,8% 86 31,9% Plantéis muito grandes (acima de 50 escravos) 26 17,1% 18 15,3% 44 16,3% TOTAL 152 100% 117 100% 269 100% *Fonte:Livros de Registros de Batismo nº 1 (1862–1882); Livro de Registros de Batismo nº 2 (1876–1888); Livro de Registros de Casamentos nº 1 (1862-1890); Livro de Registros de Óbitos nº 1 (1862–1896) da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, Conceição dos Ouros – MG. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 357 Para a construção desta tabela classificamos as famílias encontradas em matrifocais e nucleares, essa separação seguiu os seguintes critérios: por famílias matrifocais contamos aquelas que só constavam com a presença da mãe (solteira) nos registros de batismo. Nos assentos em que encontramos pai e mãe batizando seus filhos consideramos como famílias nucleares, nesta categoria também foram inclusos casais que não possuíam filhos, mas que foram citados em outras partes dos registros como padrinhos ou testemunhas. O número de famílias matrifocais (56,5%) e nucleares (43,5%) no distrito apresentou pouca variação, nota-se que a maior parte das famílias formadas encontra-se inseridas nos grandes plantéis onde conforme mostra a tabela 1 concentrou-se o maior número de escravos de Conceição dos Ouros. Entre as famílias nucleares encontramos o registro de apenas 27 matrimônios no período estudado, consideramos que outras uniões tidas como legítimas pelos vigários tenham sido realizadas em outras paróquias vizinhas. A análise dos registros eclesiásticos também nos tornou possível, ainda que de forma precária, acompanhar a trajetória de algumas dessas famílias ao longo do tempo, contribuindo para que possamos compreender um pouco desses sujeitos e de suas experiências familiares. Tomemos a trajetória de algumas delas. Em 23 de outubro do ano de 1869, o escravo João, filho da crioula Theresa, e a cativa Leocádia, filha de Felipi e Caitana, uniram-se em matrimônio na Igreja Nossa Senhora da Conceição. O casamento ocorreu perante a testemunha de Euzebhio e Matheos, provavelmente seus companheiros de escravidão, todos pertencentes ao fazendeiro Joaquim Pereira da Silva. A união gerou frutos, e, ao longo de 13 anos, conseguimos encontrar oito filhos registrados pelo casal. São eles: Antônio (03/05/1870), José (07/11/1871), Cândida (04/12/1872), Magdalena (18/07/1874), Dionísio (31/10/1875), Marianna (09/06/1878), Celestina (28/05/1880) e Dominciana (26/03/1882). Notamos nesta família a presença de três gerações, um dado significativo que mostra um ciclo de relações longo e estável. A união de Antônio e Anna escravos do Major Felix da Motta Paes, provavelmente ocorreu em Pouso Alto antigo local de residência do Major. Constatamos, através de um registro de óbito de uma das filhas do casal, Gabriela, em junho de 1865, que a união já completava cerca de 9 anos. Em Conceição dos Ouros encontramos registrados pelo casal o assento de mais duas filhas: Lucinda (25/12/1862) e Francisca (16/04/1865). Na propriedade de Ladislau Lopes da Silva encontramos outra união de longa data, o casal de crioulos: Cipriano e Angela. Estes estiveram juntos ao longo de mais ou menos 13 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 358 anos. Conforme notamos nos assentos de seu primeiro e último filho batizados, ao todo o casal levou a pia batismal quatro filhos: Simão (12/10/1873), Serapião (12/12/1875), Simão (25/07/1880) e Eva (22/04/1886). Dentre os 117 casais encontrados nos registros paroquiais, encontramos a presença de pelo menos um filho em 87 destas uniões. Relacionamentos duradouros como os de João e Leocádia, Antonio e Anna e Cipriano e Angela demonstram que a família escrava era uma realidade constante dentro do cativeiro. No entanto, as teias familiares construídas por estes e outros sujeitos não se limitaram exclusivamente à propriedade de seu senhor e não se constituíram apenas de laços consanguíneos. O sacramento do batismo foi o mais comum entre os escravos, e também foi responsável pelas relações de compadrio, um “parentesco espiritual” muito comum nas comunidades cativas e de extrema importância numa sociedade que era predominantemente católica. O ato de batizar uma criança representava abrir a ela uma porta de entrada para a Igreja Católica. Através do batismo, o indivíduo obteria acesso a todos os outros sacramentos como a eucaristia, a crisma, o matrimônio e a extrema unção. Segundo a Igreja, inserir um cativo na vida sacramental era responsabilidade de seu proprietário. Além disso, no Brasil Imperial a Coroa Portuguesa devota da religiosidade católica ordenava que todos os escravos fossem batizados, sob pena de confisco para aqueles que não cumprissem com a ordem. Por meio do batismo o padrinho se tornava um intermediário entre o batizando e Deus, se transformando num “segundo pai” de seu afilhado e sendo responsável por sua conduta moral e religiosa. Para os mancípios, as redes tecidas pelo compadrio estabeleciam vínculos morais e familiares com classes sociais diferentes, como: livres e forros. Esses laços poderiam servir como um “atalho” em busca da tão sonhada liberdade e de outros favores possíveis. Quando essa relação era formada entre escravos, ela contribuía para reforçar laços e parentescos já existentes, buscar aliados ou consolidar relações sendo no mesmo cativeiro ou em propriedades diferentes. Tabela 4: Condição dos Casais que apadrinhavam Filhos de Cativos em Conceição dos Ouros no período de 1862 – 1888* Condição dos padrinhos/madrinhas 1862 – 1870 1871 – 1880 1881 - 1888 Total Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 359 Casal de Escravos Casal de Forros Casal de Livres Casal de Escravo e Forro Casal de Escravo e Livre Casal de Forro e Livre Só 1 padrinho Dois padrinhos Padrinho e Nossa Senhora Não constam nome dos padrinhos TOTAL 44 01 65 03 12 02 02 32,5% 0,7% 48,1% 2,2% 8,8% 1,4% 1,4% - 06 4,4% 135 100% 24 01 111 01 08 04 03 02 02 02 158 15,1% 0,6% 70,2% 0,6% 5,0% 2,5% 1,8% 1,2% 1,2% 1,2% 100% 13 16,6% - 42 53,8% - 18 23,0% - 02 03 2,5% 3,8% - 78 100% 81 02 218 04 38 06 05 04 05 08 371 21,8% 0,5% 58,7% 1,0% 10,2% 1,6% 1,3% 1,0% 1,3% 2,1% 100% *Fonte:Livros de Registros de Batismo nº 1 (1862–1882); Livro de Registros de Batismo nº 2 (1876–1888); Livro de Registros de Casamentos nº 1 (1862-1890) da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, Conceição dos Ouros – MG. Para os cativos de Conceição dos Ouros as escolhas de padrinhos/madrinhas parecem se voltar preferencialmente a pessoas livres (58,7%). O estabelecimento de laços com sujeitos sociais de condição mais elevada poderia servir aos cativos como uma estratégia em busca de aliados, que mediassem conflitos e negociações com seus senhores, ou que ajudassem na compra de alforrias para seus afilhados. Segundo Robert Slenes essas escolhas revelavam: “a necessidade, num mundo hostil, de criar laços morais com pessoas de recursos, para proteger-se a si e aos filhos” (SLENES, 1997: p. 271). A presença de senhores batizando seus escravos não foi encontrada nos registros analisados. Em um segundo momento, a escolha de escravos para o apadrinhamento também parecia ser comum aos cativos (21,8%). Dentre os cativos escolhidos, 51 casais pertenciam à mesma propriedade/proprietário que as crianças batizadas, e 30 pertenciam a propriedades diferentes. Quando o compadrio entre cativos era tecido, ele podia criar vínculos entre eles ou reforçá-los. É interessante notar o crescimento no número de padrinhos livres batizando filhos de cativos a partir do ano de 1871, quando foi proclamada a Lei do Ventre Livre. Podemos associar esse aumento a uma possível preocupação em se criar meios para que essas crianças quando atingissem a maioridade conseguissem se inserir no mundo dos livres com maior facilidade. Os padrinhos assumiriam então o papel de intercessores, auxiliando em favores que para eles seriam mais fáceis de adquirir do que por cativos. Nesse caso específico da Paróquia Nossa Senhora da Conceição, observando os assentos de batismo percebemos que os laços tecidos pelo compadrio eram sempre realizados com pessoas que possuíam condição social melhor ou igual ao do batizando e Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 360 seus pais. Esse interesse presente na construção de sociabilidades revela um aspecto social de uma instituição que possuía caráter espiritual. Revela também uma possibilidade de mobilidade social em uma sociedade extremamente estratificada. No entanto, essa preferência por padrinhos de condição social semelhante ou mais elevado não foi regra na Paróquia Nossa Senhora da Conceição. Encontramos nos registros analisados a presença de 4 crianças livres que tiveram entre seus padrinhos escravos. Questionamos-nos sobre como seriam as relações entre estes sujeitos sociais? O que os levou a escolherem padrinhos cativos para serem os “pais espirituais” de seus filhos dentro de uma sociedade que via no escravo uma serie de características negativas? Essas perguntas nos levaram a refletir sobre como as relações no período escravista eram complexas, sobre os laços afetivos, sobre as relações de solidariedades constituídas e nos esforços empreendidos por estes cativos em conquistarem a confiança e se aliarem a pessoas livres. Enfim através dessa pesquisa nos foi possível observar que os mancípios do distrito de Conceição dos Ouros, mesmo inseridos em uma região de pequenos e poucos plantéis foram capazes de constituir famílias dentro do cativeiro e manterem uniões estáveis. Esses relacionamentos se formaram dentro e fora das bênçãos da Igreja Católica. Percebemos também as estratégias tecidas por estes cativos através dos parentescos espirituais, formando aliados na luta contra o difícil peso da escravidão. Os resultados desse estudo aliados a trabalhos de outras regiões vizinhas podem contribuir para um maior entendimento da dinâmica da escravidão na região sul-mineira. Fontes Livro de Registros de Batismo nº 1 [dividido em duas pastas] (1862, abril – 1882, setembro) da Paróquia Nossa Senhora da Conceição, Conceição dos Ouros – MG. Livro de Registros de Batismo nº 2 (1876, fevereiro – 1888, fevereiro) da Paróquia Nossa Senhora da Conceição, Conceição dos Ouros – MG. Livro de Registros de Casamentos nº 1 (1862, maio - 1890, abril) da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, Conceição dos Ouros – MG. Livro de Registros de Óbitos nº 1 (1862 abril – 1896 janeiro) da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, Conceição dos Ouros – MG. CAMPOS, Mercedes de Carvalho. “Salve Ouros Cidade Querida”. Conceição dos Ouros, 2002. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 361 Bibliografia CASTRO, Hebe. História Social. In: Cardoso, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo. (Org.) Domínios da História: ensaios de teoria emetodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. 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Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 362 Reprodução natural e população escrava de Piranga na segunda metade do Oitocentos Guilherme Augusto do Nascimento e Silva Mestrando UFSJ/ Bolsista CAPES-DS guilnascimento@yahoo.com.br Resumo: Neste artigo, discutimos a regionalização da província mineira em áreas de desenvolvimento econômico e social, procurando demonstrar que nossa região de estudo se inseria na Zona da Mata. Analisamos as características produtivas da região do Termo de Piranga, integrando-a ao amplo debate sobre a natureza da economia mineira oitocentista. Destarte, apresentamos a análise da demografia escrava da região no decorrer do século XIX, a partir da utilização de uma base de dados formada por 218 inventários post-mortem. Para fins de comparação das diferenças populacionais através da referida centúria, conjugamos nosso estudo ao exame das Listas Nominativas de 1831/32 e do Censo Imperial de 1872. Assim sendo, nossa exposição enfoca os aspectos de composição demográfica dos escravos em questão, como a estrutura de posse, etnicidade, índices de masculinidade e idade da escravaria. Por fim, discutimos a questão da reprodução natural dos cativos, aventando sobre a possibilidade de crescimento vegetativo da população escrava da localidade. Palavras-chave: Escravidão, Demografia, Reprodução Natural. Abstract: In this article we discuss the regionalization of the mining province in areas of economic and social development, seeking to demonstrate that our study area fell within the Forest Zone. We analyze the productive characteristics of the Piranga’s region, integrating it to the broad debate about the nature of nineteenth-century mining economy. Thus, we present an analysis of slave’s demography of the region during the nineteenth century, from the use of a database consisting of 218 postmortem inventories. For comparison of population differences through that century, conjugate our study to examine the Nominative Lists of 1831/32 and the Imperial Census of 1872. Therefore, our discussion focuses on aspects of demographic composition of the slaves in question, such as ownership structure, ethnicity, indices of masculinity and age of the slaves. Finally, we discuss the issue of natural reproduction of captive suggesting the possibility of natural growth of the slave population of the locality. Keywords: Slavery, Demography, Natural Reproduction. Região e economia piranguense no século XIX A definição da região a ser estudada é de suma importância para o desenvolvimento da pesquisa histórica. O comum seria nos atermos à delimitação administrativa da localidade no século XIX, mas Graça Filho chama a atenção para o fato de que “é possível e necessário problematizar esse recorte fundado na burocracia de um Estado, e assim, justificar uma delimitação espacial mais coerente para seu objeto de estudo” (GRAÇA FILHO, 2009: 9). Desta forma, nenhuma delimitação espacial deve se impor de forma natural ao historiador. Uma análise pormenorizada de fontes diversas se faz necessária para Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 363 que possamos definir com mais precisão os próprios limites administrativos da freguesia/vila no decorrer do século XIX. Como nos alerta Graça Filho, em Minas Gerais “a extrema maleabilidade desta política administrativa, [...] gerou uma sobreposição dos níveis de competência e um constante desmembramento, reagrupamento, supressão e reinstalação de distritos, vilas e comarcas” (GRAÇA FILHO, 2002: 31). Primeiramente, devemos pensar a questão da regionalização mineira, de modo a inserir o estudo da localidade no seio das tentativas de entendimento da província de Minas Gerais a partir de sua divisão em regiões com características singulares. Clotilde Andrade Paiva e Marcelo Magalhães Godoy partiram em busca de uma divisão da província mineira mais condizente com as realidades regionais do Oitocentos. Desta forma, foi proposta pelos autores uma divisão de Minas Gerais em 18 regiões, tendo como base, preponderantemente, suas características econômicas, mas levando em conta também os seus aspectos físicos, demográficos, administrativos e históricos. A freguesia de Guarapiranga, segundo estes autores, está inserida na região Mineradora Central Oeste. (PAIVA & GODOY, 2010). Marcelo Godoy e Alexandre Cunha conferem a esta região uma identidade proveniente da mineração aurífera, sendo que seus limites foram definidos principalmente em relação a esta atividade econômica. Sabemos que, apesar de possuir atividade mineradora no século XVIII, a freguesia se dedicou majoritariamente à atividade agrícola no século seguinte, de modo que a mineração estava quase extinta já nas primeiras décadas do Oitocentos. Entretanto, Godoy e Cunha levam estas particularidades intra-regionais em consideração dizendo que algumas porções da região apresentavam o desenvolvimento da agricultura e da pecuária, visto que “estas áreas respondiam pelo abastecimento do centro da região e representavam a transição para as regiões vizinhas, onde o cultivo e a criação eram atividades centrais” (CUNHA & GODOY, 2003). Segundo Douglas Libby, a freguesia pertence à Zona da Mata. Em sua descrição sobre a referida região, Libby põe em evidência sua economia cafeicultora, representada pelo município de Juiz de Fora, argumentando que a produção do café, no século em foco, transformou a economia da região na mais dinâmica da província (LIBBY, 1988: 43). Temos consciência que esta não é a realidade para a freguesia em questão e que a mesma não se caracterizava como um setor agroexportador, mas sim como uma localidade predominantemente voltada para o abastecimento do mercado interno provincial e ao Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 364 autoconsumo, enquadrando-se na chamada agricultura mercantil de subsistência (LIBBY, 1988: 14). Angelo Alves Carrara, ao discorrer sobre a ocupação territorial da Zona da Mata norte, cita o vale do rio Piranga como um dos primeiros alvos desta ocupação, ocorrida nas primeiras décadas do século XVIII. Assim sendo, percebemos que, para o autor, a freguesia de Guarapiranga se localizava na divisa entre duas regiões, a Mineradora Central e a Mata norte. A porção norte da Zona da Mata, região de fronteira e expansão agrária no XVIII, além de se identificar com a exploração aurífera, se caracterizou no século seguinte pela agricultura de subsistência, investindo também na cultura mercantil da cana-de-açúcar (CARRARA, 1999: 13-15). O que pretendemos mostrar, nestas breves considerações, é que a definição da região é complexa, repleta de imprecisões. Acreditamos que, pelas características apresentadas por Carrara e também a partir do estudo de Patrício Carneiro, parece apropriado considerar que no século XIX – principalmente em sua segunda metade – a região seja considerada como pertencente à Zona da Mata e não à Mineradora Central Oeste. Mas é necessário, como nos lembra Carneiro, relativizar a compreensão que temos sobre a Zona da Mata, e não tomar estudos que focalizam sua porção sul (vale do Paraibuna, tendo como emblema Juiz de Fora), como passíveis de generalização para toda a região (CARNEIRO, 2008: 2). Para que possamos estudar a região de Piranga no decorrer do século XIX se faz necessário sabermos claramente a situação dos distritos que compuseram a região. Desta forma, não haverá perigo de incorrermos no erro de analisarmos distritos que deixaram de fazer parte da localidade no decorrer do tempo, evitando, deste modo, análises comparativas que não condizem com a realidade estudada. Com a intenção de circunscrevermos a região pesquisada, tomamos como ponto de partida os inventários postmortem pesquisados, nos quais estão presentes as localidades abrangidas pelo Juizado de Órfãos de Piranga, que ultrapassam sua divisão meramente administrativa. Assim sendo, propomos uma delimitação regional que parta da abrangência da justiça local, o que, a nosso ver, não deixa de refletir uma situação socioeconômica, que tomava Piranga como centro de convergência regional. Como iremos trabalhar com duas contagens populacionais, tentamos adaptá-las da melhor maneira possível à dinâmica territorial regional sugerida a partir da análise da documentação. Ao trabalhar com dados seriais e comparações temporais, o historiador que se aferra a uma delimitação regional, que o poder administrativo pode alterar, corre o risco Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 365 de cair em armadilhas, como a de uma falsa variação populacional dentro de sua área de estudo, ocasionada pelas adições e supressões de distritos. Os estudos historiográficos relativos à província de Minas Gerais no século XIX há vários anos colocaram por terra a teoria segundo a qual a economia mineira entrou em decadência após o fim do ciclo minerador. Como ponto de partida deste novo quadro interpretativo, a discussão acerca da economia escravista mineira oitocentista sofre uma grande reformulação a partir do trabalho de Roberto Borges Martins. O autor destacou que a região não se caracterizou como fornecedora de mão de obra escrava para áreas de predomínio da grande lavoura exportadora através do tráfico interprovincial, contestando esta visão ao fornecer dados sobre o vigoroso crescimento da população escrava mineira no decorrer daquela centúria. Possuindo a maior população escrava do Império, Minas Gerais se manteve fortemente apegada ao regime escravista até seu último suspiro (MARTINS, 1983). Prosseguindo com seu estudo, o autor nos traz outro argumento importantíssimo, ao desvincular o trabalho escravo da agroexportação, afirmando que o núcleo da economia mineira não era composto por plantations, nem era orientado para o mercado internacional. Mesmo assim, Minas possuía o maior plantel escravo do Império, sendo suas características principais o isolamento de mercados externos à província, diversificação produtiva e autosuficiência (MARTINS, 1983). Os estudos de Douglas Cole Libby e Robert W. Slenes seguiram a vertente revisionista da economia mineira, cada um a seu modo. O primeiro autor chama a atenção para a importância do mercado interno no dinamismo econômico da província, baseado em atividades agrícolas, mineradoras e proto-industriais. Libby argumenta que a agricultura mercantil de subsistência seria o sustentáculo da economia mineira no decorrer do século XIX, e que foi o trabalho escravo que possibilitou a manutenção desta economia, sendo que os agricultores sem escravos participavam apenas ocasionalmente da mesma. Para o autor, a produção de alimentos básicos destinados tanto ao autoconsumo quanto ao mercado interno, intra e interprovincial, é o que define a chamada agricultura mercantil de subsistência. Além disso, Libby ressalta a crescente importância de atividades de transformação para a economia provincial, como as manufaturas de fios e panos e o surgimento de verdadeiras indústrias de ouro e tecidos (LIBBY, 1988). Por outro lado, Robert Slenes, em debate com as teses de Roberto Martins, argumenta que a província de Minas Gerais conseguiu importar e manter tantos escravos Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 366 justamente porque havia um dinâmico setor exportador, que criava o mercado interno e determinava como os cativos seriam empregados. Para este autor, são dois os fatores que determinaram o apego à escravidão em Minas, expressão tão cara a Martins: a força do setor de exportação da província e o alto custo de transporte de mercadorias do litoral, estimulando a produção interna. Com estes argumentos, Slenes relativiza a visão de uma economia não-exportadora proposta por Martins, demonstrando que seria difícil custear as grandes importações de escravos em uma economia pouco mercantilizada (SLENES, 1988). Pelos indícios encontrados, a região de Piranga estava em pleno desenvolvimento no decorrer do Oitocentos, reforçando a historiografia discutida, que aponta uma economia dinâmica nas Minas, desvinculada em certo grau dos setores agroexportadores, com ampla e variada produção de gêneros alimentícios, enquadrando-se na chamada agricultura mercantil de subsistência. Entre os tipos de atividade econômica da freguesia de Guarapiranga, Gusthavo Lemos aponta que a produção agrícola foi atividade primordial, em relação a atividades como pecuária e extração mineral. Dentre estas atividades agrícolas, o cultivo da cana de açúcar e a produção de seus derivados – açúcar, aguardente e rapadura – era predominante. A produção canavieira da região é seguida de um grande cultivo de milho. Eram principalmente as produções destas duas culturas agrícolas que se direcionavam aos mercados intraprovinciais e talvez até interprovinciais. Além destas culturas, advindas principalmente de fazendas de maior porte, havia também uma produção diversificada de alimentos, como o feijão, a mandioca e o arroz, destinada principalmente ao autoconsumo e à manutenção das escravarias. Estes alimentos eram amplamente produzidos pelas pequenas unidades agrícolas. (LEMOS, 2009). Foi uma sociedade com este perfil econômico que sustentou a considerável população escrava mineira, que trabalhava principalmente em pequenas unidades produtoras, configurando um perfil democrático de posse de escravos, segundo a interpretação de Douglas Libby. Demografia escrava em Piranga Analisar as características das populações é de extrema importância para o estudo da história social e da família. Como explanado anteriormente, fizemos algumas alterações nas duas contagens da população piranguense, de forma a abarcar uma realidade demográfica Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 367 mais condizente com a dinâmica territorial da região. Na tabela 1, estão expostos os números dos habitantes de Piranga em dois momentos, depois das alterações feitas. Tabela 1: População de Piranga por período e condição – Lista Nominativa e Censo Imperial Adaptados Ano Livre % Escrava % Total 1831 8305 67,01 4088 32,99 12393 1872 30478 82,84 6313 17,16 36791 Fonte: Lista Nominativa de 1831/32; Recenseamento Geral do Império de 1872 Ao analisarmos a Tabela 2, percebemos que a população escrava de Piranga no ano de 1831 se inseria nos padrões médios das regiões expostas, tendo praticamente o mesmo percentual de escravos da província e também da região Mineradora Central-Oeste. Apenas a Zona da Mata analisada por Libby tem cerca de 3% a mais de escravos que as outras regiões. Estes dados demonstram que a freguesia estava inserida no sistema escravista de forma ativa. Tabela 2: População por região e condição – Lista Nominativa de 1831 Região Livre % Escrava % Zona da Mata* 8819 63,23 5129 36,77 Mineradora Central-Oeste** 85.246 66,62 42.722 33,38 Minas Gerais** 275.988 66,83 136.989 33,17 Total 13948 127.968 412.977 Fonte: Lista Nominativa de 1831/32. *Números extraídos da amostra regional feita por Douglas Libby em Transformação e Trabalho..., p. 367. ** Dados coletados do site: http://www.poplin.cedeplar.ufmg.br/. Notamos, ao analisar a Tabela 3, que a escravaria de Piranga em 1872 ficou 1% abaixo da média mineira. Em relação à região em que estava inserida, Zona da Mata, a diferença foi grande, cerca de 8% menos. Esta variação significativa para sua própria região se deve ao amplo dinamismo econômico do vale do rio Paraibuna – que tem o município de Juiz de Fora como principal representante – na segunda metade do XIX, região produtora em larga escala de café para exportação (FREIRE, 2009). Tabela 3: População por região e condição – Censo 1872 Região Livre % Escrava % Zona da Mata* 279.206 74,70 94.559 25,30 Minas Gerais** 1.669.276 81,84 370.459 18,16 Total 373.765 2.039.735 Fontes: *Douglas Libby, Transformação e Trabalho..., p. 367. **Recenseamento Geral do Império de 1872. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 368 Percebemos um crescimento significativo da população tanto livre quanto escrava da localidade no decorrer dos quarenta anos que separam as contagens analisadas. Como vemos na Tabela 1, os livres e libertos tiveram um enorme aumento, passando de 8305 para 30478 pessoas. É inquestionável que o rápido crescimento da população livre se deveu, em ampla medida, ao grande número de alforrias, somado a taxas positivas de crescimento natural. Como as mulheres foram mais suscetíveis às manumissões no Brasil, é de se supor que a capacidade de reprodução natural dos livres e libertos de cor tenha aumentado, em detrimento da dos cativos (LUNA & KLEIN, 2010: 271-314; FARIA, 2004: 111). De 1831 a 1872, os escravos passaram de 4088 para 6313 (Tabela 1), um aumento de 35,24%. Para uma região à margem do setor agroexportador da Zona da Mata, não era fácil manter as escravarias após o fim do tráfico atlântico de escravos. Se comparado com áreas de plantation, este crescimento em Piranga é quase irrisório. Mas justamente por se tratar de uma economia mercantil de subsistência, é que podemos perceber o apego à escravidão dos agricultores da localidade. Acreditamos que o crescimento vegetativo teve grande importância na manutenção das escravarias piranguenses, aspecto que iremos em outra oportunidade. Desproporção entre os sexos, baixa expectativa de vida, altos índices de mortalidade infantil e uma grande taxa de alforrias eram os principais fatores de diminuição das escravarias no Oitocentos. Por outro lado, o tráfico transatlântico vigente até 1850 e o subseqüente tráfico interno eram os principais provedores de escravos das lavouras brasileiras. O crescimento via reprodução natural ainda gera calorosos debates no meio acadêmico, e o cenário mineiro é um dos seus principais palcos. (LUNA & KLEIN, 2010: 167-202; PAIVA & LIBBY, 1995; LIBBY, 2008; CANO & LUNA, 1983). Ainda está em aberto um amplo debate acerca dos papéis e dos graus de importância dos dois modos de manutenção do sistema em Minas no século XIX: importação e reprodução natural. Clotilde Paiva e Douglas Libby acreditam na conjugação das duas tendências demográficas para explicarem o fenômeno de Minas como maior província escravista do Império brasileiro (PAIVA & LIBBY, 1995). Em estudo sobre o tráfico negreiro para as Minas Gerais, tendo como base os registros eclesiásticos de batismo, Libby argumenta que a partir de meados da década de 1830 houve uma queda brusca nos batismos de africanos novos, demonstrando uma tendência à consolidação dos padrões de Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 369 reprodução natural, em um crescente processo de crioulização das escravarias (LIBBY, 2008: 471). Segundo a Lista Nominativa, 37% dos 4088 escravos de Piranga no ano de 1831 procediam do tráfico atlântico. É uma taxa pequena de africanos, se comparada com outras localidades, no mesmo período, dentro e fora da província. Segundo Libby, as décadas de 1810 e 1820 testemunharam um grande aumento no volume do tráfico para a província, segundo os assentos de batismos de adultos africanos. Esta tendência teria uma queda sensível em meados da década de 1830, sugerindo um colapso do tráfico para as Minas, possivelmente em decorrência da consolidação de padrões de reprodução natural, como dito anteriormente (LIBBY, 2008: 471). A pequena participação de africanos na nossa amostra é significativa. Acreditamos que a tendência à crioulização das escravarias, processo sugerido por Libby como inibidor do tráfico em Minas, é anterior à década de 1830 no caso piranguense. Desta forma, a porcentagem de africanos em Piranga, num momento posterior a uma grande entrada de cativos via tráfico na província, indica que os produtores da região não estavam tão dependentes deste comércio para a manutenção das escravarias – que possivelmente se reproduziam naturalmente – precisando recorrer menos intensamente ao mercado para repor a mão de obra necessária ao desenvolvimento da produção. Piranga possuía uma escravaria africana com índices de masculinidade bem superiores à média geral do tráfico. Há muito já se sabe que eram os traficantes africanos que controlavam as condições de oferta de cativos nos portos. Embora o preço dos escravos homens fosse ligeiramente maior na América, somente isto não explicaria a minoria de mulheres submetidas ao cativeiro. Na verdade, características peculiares das sociedades africanas influenciaram fortemente este padrão. Desta forma, em razão destas características sociais africanas, a oferta de homens nos mercados de cativos litorâneos era superior. A preferência de senhores por escravos do sexo masculino parece não ter surtido efeito nos padrões demográficos do tráfico. O mais provável é que estes comprassem o que lhes fosse ofertado (LUNA & KLEIN, 2010: 176). Em relação à distribuição etária dos africanos em 1831, nada menos que 76,8% dos 1513 escravos estavam inseridos na categoria dos adultos, considerando a faixa de idade produtiva entre 15 e 44 anos. Isto nos revela outra característica da demografia do tráfico atlântico, que tinha preferência por adultos jovens e evitava o transporte de crianças por possuírem um menor preço de mercado. Esta tendência, somada à grande desproporção Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 370 entre os sexos e a altos índices de mortalidade, influenciava preponderantemente nas condições de reprodução natural destas populações, resultando, numa perspectiva ampla, em seu declínio natural progressivo (LUNA & KLEIN, 2010: 177-181). Isso implica em aventar a possibilidade de que a região foi capaz de renovar sua mão-de-obra escrava naturalmente. Avançando algumas décadas e observando o Recenseamento de 1872, se as designações de origem forem condizentes com a realidade, é possível notar o enorme declínio das pessoas de proveniência africana na população escrava de Piranga. Dos 6313 escravos recenseados, apenas 367 foram anotados como africanos. Uma participação de apenas 5,8% do conjunto escravista regional. Neste grupo, a proporção de homens baixou para 65%, em razão das condições expostas anteriormente e também provavelmente em decorrência de uma maior taxa de mortalidade entre eles. Tendo em conta o que foi argumentado em relação ao tráfico para as Minas Gerais e dos números da década de 1830 apresentados, não é de se espantar que a participação dos africanos mais de vinte anos após a cessação deste comércio seja tão pequena. Nos 218 inventários post-mortem consultados, entre 1850 e 1888, foram encontrados apenas 296 escravos africanos, 13,03% do total. Apesar de se tratar de uma média de quatro décadas, é enorme a discrepância em relação aos dados aqui apresentados sobre a primeira metade do século. O que fica evidente é a diminuição progressiva do grupo no decorrer das décadas. Pouco menos da metade dos 296 escravos está situada na década de 1850, enquanto apenas seis foram encontrados nos anos derradeiros da escravidão. Em relação à idade, também é perceptível o declínio de africanos decorrente do fim do tráfico atlântico. A cada decênio o número de idosos aumenta em relação aos adultos. Somente nos anos iniciais da análise os escravos africanos em idade produtiva superam os que tinham 45 anos ou mais. Já na década de 1860, os idosos predominam e a tendência de envelhecimento do grupo se torna visível nos períodos subseqüentes. A extinção do tráfico atlântico somada às possibilidades de crescimento vegetativo da população escrava permitiu que cativos nascidos no Brasil se tornassem cada vez mais numerosos; parcela esta da população que analisaremos a seguir. Através da análise da documentação, temos a chance de visualizarmos a distribuição dos escravos brasileiros de Piranga entre as principais designações pelas quais eram identificados, em momentos distintos. Apenas três termos são utilizados na Lista Nominativa na designação dos cativos nativos: crioulo, pardo e mestiço (termo que Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 371 englobava cabras e caboclos). É significativo observar, dentro deste universo amostral, que quase 80% são crioulos e menos de 1% são considerados mestiços. Os pardos têm participação de 19,45%. Décadas depois, o Censo Imperial de 1872 registra os escravos em apenas duas categorias: preto e pardo. O registro divide todos os homens e mulheres recenseados em apenas quatro designações de cor distintas: branco, preto, pardo e caboclo. E os escravos, brasileiros ou mesmo africanos, são identificados apenas como pretos ou pardos. Desta forma, de um total de 5946 cativos brasileiros presentes no censo, há um equilibro maior entre as duas categorias, com 58% de pretos e 42% de pardos. Nos inventários post-mortem pesquisados, dos 2270 escravos arrolados, conseguimos encontrar 1434 brasileiros (63%) com a designação de cor descrita. Destes, assim como na Lista Nominativa, a maioria é crioulo, apesar de terem aberto certo espaço para escravos descritos em outros termos. Os pardos perfazem 22,45% dos cativos. É possível perceber, nos dados analisados, a grande eqüidade entre os sexos dos escravos brasileiros de Piranga. A freguesia de Guarapiranga, em 1831, possuía escravos nativos com uma razão de masculinidade de 102. Da mesma forma, os inventários demonstram que entre 1850 e 1888 existiam entre os cativos 106 homens para cada 100 mulheres. Excepcionalmente, o Censo de 1872 destoa ligeiramente deste padrão de igualdade, com uma taxa de masculinidade que resultou em 118. Tendo em vista a Tabela 4, é possível observarmos os principais elementos que compõe a diversidade escrava da região, excluindo a idade, item que será trabalhado mais a frente. Brasileiros, africanos e escravos sem identificação de nacionalidade, homens e mulheres integram este mosaico humano de cerca de quarenta anos. Tabela 4: Escravos de Piranga por origem, sexo e período nos Inventários post-mortem, 1850-1888 Brasileiros Africanos Sem Identificação H M S. Id. H M H M Total 1850-59 281 283 0 117 23 25 26 755 1860-69 267 262 0 82 23 30 32 696 1870-79 231 164 2 38 7 88 81 611 1880-88 67 69 10 3 3 31 25 208 Total 846 778 12 240 56 174 164 2270 Fonte: Arquivo do Fórum de Piranga (AFP)/Arquivo Casa Setecentista de Mariana (ACSM), Inventários post-mortem. Um ponto que merece nossa atenção são os escravos de nacionalidade não identificada. Este é um problema que enfraquece nossa análise quantitativa. Tais escravos somam 338, cerca de 15% do total da amostra. A razão para esta falha é a falta de zelo na Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 372 descrição, que geralmente apontava apenas o nome do escravo, sua idade e preço. Não podemos fazer afirmações, mas acreditamos que se trate de um grupo composto primordialmente de cativos nascidos no Brasil. A crítica do contingente escravo por períodos é importante e faz necessária para situarmos Piranga no contexto da crise da escravidão no Império. Pela análise da Tabela 4, algumas variáveis são facilmente identificáveis. Primeiramente, salientamos mais uma vez a brusca diminuição do elemento africano na composição do contingente. Enquanto que na década de 1850, logo após a proibição do tráfico, contamos com 140 escravos, encontramos apenas seis nos derradeiros anos do sistema. Há uma progressiva diminuição do contingente escravo como um todo. Nos totais por período (Tabela 4), este padrão é claramente notado. Na verdade, a diminuição nas três primeiras décadas não é tão sensível, possivelmente demonstrando uma força produtiva na região capaz de manter os níveis de presença escrava ligeiramente estáveis. As décadas de 1850, 1860 e 1870 possuíram respectivamente 33,3%, 30,7% e 26,9% dos escravos da amostra. Por outro lado, registramos apenas 208 escravos na década de 1880, computando 9,1% do total. Sem dúvida, a Lei do Ventre Livre foi uma das principais responsáveis. Privando-o de se renovar, mesmo que precariamente, a partir da reprodução natural de seus escravos, o sistema vislumbrou seu fim num horizonte próximo. Possibilidades de reprodução natural escrava Entrando especificamente na questão da reprodução natural escrava, analisaremos alguns dados relativos à idade dos cativos de Piranga. Esta heterogênea população escrava piranguense, exposta acima, tinha também uma grande diversificação etária. Na Tabela 5 estão presentes todos os escravos com idade e sexo conhecidos, perfazendo 2051 dos 2270 escravos da região computados entre os anos de 1850 e 1888. Separamos a idade em três grandes faixas para melhor visualizarmos a composição da escravaria. O principal dado desta tabela, que nos salta aos olhos ao observá-la, diz respeito à grande quantidade de crianças presentes nas escravarias piranguenses. Nada menos do que 37,25% dos escravos tinha no máximo quatorze anos de idade. Uma quantidade Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 373 significativa de crianças, se observarmos que estão agregados os dados de escravos brasileiros, africanos e não identificados.338 Tabela 5: Escravos de Piranga por origem, com sexo e idade conhecidos nos Inventários post-mortem, 1850-1888 Brasileiros Africanos Sem Identificação Idade H M H M H M Total 0 a 14 381 366 1 0 10 6 764 15 a 44 338 309 106 22 86 85 946 Mais de 44 79 61 111 27 40 23 341 Total 798 736 218 49 136 114 2051 % 37,25 46,12 16,63 100,00 Fonte: AFP/ACSM, Inventários post-mortem. No Gráfico 1, vemos a pirâmide etária dos escravos brasileiros encontrados nos inventários, sendo que a população enfocada está dividida em faixas etárias de cinco anos. Aqui, notamos uma estrutura etária completamente equilibrada, com os escravos de 0 a 4 anos perfazendo quase 20% do total. No total de crianças entre 0 e 14 anos, temos impressionantes 48,7% dos escravos. Os adultos (15 a 44 anos) estão representados com 42,18% e os idosos (mais de 44 anos), são 9,13%. Mesmo que a amostra documental tenha seus limites, a partir de dados como estes, podemos concluir que a população escrava de Piranga possuía uma taxa de reprodução natural capaz de manter as escravarias em crescimento. 338 Há que se fazer a ressalva de que estamos tratando dos dados agregados de um período de quatro décadas. O ideal é fazer uma análise por décadas, de forma a termos uma visão mais abrangente e pormenorizada do desenvolvimento etário desta população. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 374 Gráfico 1: Pirâmide etária dos escravos Brasileiros de Piranga -1850-1888 Homem Mulher Fonte: AFP/ACSM, Inventários post-mortem. Acreditamos que os senhores tinham papel importante no crescimento vegetativo dos escravos, na medida em que consideravam a reprodução natural como estratégia de manutenção e crescimento de suas posses. Por outro lado, o tamanho das escravarias de cada senhor influía diretamente na reprodução natural. Em relação às faixas de posse de escravos dos senhores piranguenses, é possível perceber a clara relação entre tamanho da posse e reprodução natural. Podemos visualizar estes aspectos no Gráfico 2, no qual está disposta a divisão dos escravos de Piranga entre grandes faixas de posse e grandes faixas etárias. Desta forma, o aspecto mais importante a ser salientado se refere às porcentagens de escravos de 0 a 14 anos em cada uma das três faixas de posse. Há um crescimento progressivo das crianças em relação às posses. De 32,95% de crianças nas propriedades com até dez escravos, temos cerca de 40% delas nas posses com mais de vinte. Este dado demonstra a relação lógica entre posse e reprodução: quanto mais escravos em uma propriedade, maiores as chances de haver crescimento vegetativo. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 375 2: Escravos de Piranga por idade faixas 0 a 14 15 a 44 Maisede 44 de posse nos 15 aGráfico 44; 1 a 10; 15 a 44; Mais de Inventários post-mortem, 1850-1888 49,81 15 a 44; 11 a 20; 20;de45,65 0 a 14 ; Mais 43,10 0 a 14 ; 11 a 20; 20; 39,93 38,36 0 a 14 ; 1 a 10; 32,95 Mais de 44; 1 a 10; 17,23 Mais de 44; 11 a 20; 18,53 Mais de 44; Mais de 20; 14,42 Fonte: AFP/ACSM, Inventários post-mortem. Por fim, o último elemento que oferece suporte a nossa argumentação advém do calculo da razão criança-mulher a partir dos dados provenientes dos inventários.339 A Tabela 6 nos fornece duas variáveis deste calculo, com crianças de 0 a 4 anos em relação às mulheres de 15 a 44 anos e com crianças de 0 a 9 anos em relação às mulheres de 15 a 49 anos. Utilizando todos os escravos com idade e sexo conhecidos, dividimos a análise pelas quatro décadas de estudo. Tabela 6: Razão Criança-Mulher nos Inventários post-mortem 0a4 0a9 1850-59 796,99 1368,06 1860-69 809,16 1328,47 1870-79 679,25 1140,35 1880-88 673,91 725,49 Total 757,21 1224,22 Fonte: AFP/ACSM, Inventários post-mortem. Nas duas variáveis notamos uma presença expressiva de crianças em relação às escravas em idade fértil de Piranga. A década de 1850 se caracteriza como a de maior natalidade entre todos os períodos, com 1368 crianças para cada mil mulheres. Entretanto, percebemos a diminuição progressiva da quantidade de crianças no decorrer das décadas enfocadas, apesar de ainda serem dados contundentes em favor da hipótese de crescimento endógeno da população escrava. As características peculiares da escravidão brasileira na segunda metade do Oitocentos, momento no qual o sistema perde força a cada ano, pode explicar a diminuição da razão criança-mulher em Piranga, pois as concessões de alforrias 339 A razão criança/mulher é a relação entre o número de crianças de 0 a 4 ou 0 a 9 anos por 1000 mulheres em idade fértil, ou seja, de 15 a 44 ou 15 a 49 anos. A razão é expressa da seguinte forma: número de crianças dividido pelo número de mulheres multiplicado por mil. RCM = (C/M) x 1000. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 376 aumentavam gradativamente e a partir da vigência da Lei do Ventre Livre as crianças nascidas de escravas deixaram de ser contadas nas escravarias. Ainda existem muitas variáveis a serem analisadas para que possamos fazer afirmações concretas, mas estes poucos dados sobre composição etária nos indicam caminhos a trilhar, no sentido de melhor compreendermos as dinâmicas populacionais que proporcionaram diferentes graus de reprodução natural escrava. Neste artigo, expusemos nossas tentativas de desvendar o mistério das categorias administrativas e traçar uma divisão regional mais condizente com os registros judiciais de uma região e período não trabalhados anteriormente pela historiografia. Mostramos, apoiados em fontes inéditas, seu heterogêneo perfil populacional. Revelamos a diversidade da escravaria piranguense, composta por uma ampla variedade de homens e mulheres, africanos e brasileiros, pretos, pardos e crioulos. Aventamos, além do mais, a possibilidade da reprodução natural positiva desta população cativa. Enfim, esperamos ter dado contribuição ao debate historiográfico em relação à província mineira no Oitocentos. 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Dos dados levantados, nos perguntamos, até quando durou tal distinção? Através de uma abordagem qualitativa e utilizando métodos da prosopografia, apresentamos um estudo de caso buscando reconstituir a origem de dois núcleos familiares da elite regional da comarca do Rio das Mortes, os “Pinto de Góes e Lara”, do Arraial da Lage – hoje Resende Costa – e os “Alves Barbosa” do Arraial das Carrancas. O recorte temporal abarca todo o século XVIII e a primeira metade do século XIX. Algumas dúvidas nos ficam quanto ao destino dos paulistas após o ocorrido entre 1708 e 1709. O que teria acontecido a suas lavras e terras? O que apresentaremos neste trabalho trata-se apenas de um esboço do que poderia ter ocorrido em suas trajetórias, nas imediações da comarca do Rio das Mortes. Palavras-Chave: Família, Paulistas, Emboabas Abstract: From the description and analysis of two events occurring at the end of Emboabas War, "Capão da Traição" and "Vingança dos Paulista" - investigated the subsequent settlement of the area of the village of Sao Joao del-Rei. For this, we reflect on the composition of the local families and their origins as much as emboabas and paulista. The data collected, we wonder, how long it lasted such a distinction? Through a qualitative approach and methods of using prosopography, we present a case study seeking to trace the origin of two families in the region of the regional elite of Rio das Mortes, the "Pinto Goes e Lara," from Arraial da Lage- today Resende Costa - and "Alves Barbosa" of the Arraial de Carrancas. The time frame covers the entire eighteenth century and the first half of the nineteenth century. Some are in doubt about the fate of Sao Paulo after what happened between 1708 and 1709. What would have happened to their mines and lands? What we present in this work it is only an outline of what could have happened in their trajectories, near the comarca do Rio das Mortes. Keywords: Family, Paulistas, Emboabas Introdução A princípio gostaria de esclarecer que ao escolher o título para esta comunicação propositalmente buscamos simplificar o tema de tal modo que, por sua abrangência, trouxesse um maior número de interessados ao ambiente de debate possibilitado pelo 1º Encontro de Pesquisa em História da UFMG. Fazendo isso corremos o risco de pelo mesmo fato de abranger o tema, tornar o título vago aos nossos colegas de pesquisa, parecendo sobremaneira um título de um trabalho memorialista. Mesmo assim assumimos a responsabilidade do risco, acreditando ser o ambiente de debate de uma mesa temática o Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 379 lócus privilegiado para o aprofundamento do tema, sendo a isca de um título pouco preciso a deixa que atrairia um maior número de interessados a discussão. De qualquer modo, busquei elaborar também um título que se enquadrariam de modo mais acadêmico ao tema da comunicação, ficando assim, nominalmente: Uniões matrimoniais entre nubentes de ascendência paulista e portugueses após a Guerra dos Emboabas: Os “Góes e Lara” e os “Barbosa Leme” (Comarca do Rio das Mortes, Minas Gerais, séc. XVIII). Gostaria também de esclarecer nesta comunicação não trabalharei com o tema da identidade mineira, como o título abrangente da comunicação pode deixar parecer. E sim, trabalharei com as possíveis implicações que, a partir das disputas entre paulistas e emboabas, puderam influenciar a prática dos casamentos que se sucederam aos conflitos de 1708-1709. E como as categorias de distinção “paulistas” e “emboabas” podem ou não ter significados ao reconstituirmos trajetórias familiares e alianças matrimoniais. Uma Comarca Mineira no Século XVIII Rio das Mortes, pelas muitas que ali se fizeram. Esta deve ser a melhor explicação para a origem do triste nome que o caudaloso rio empresta a uma das três primeiras comarcas de Minas Gerais: a comarca do Rio das Mortes. Aos oito dias de Dezembro do ano de 1713 o Arraial de Nossa Senhora do Pilar ou Arraial Novo do Rio das Mortes, foi elevado à categoria de vila e recebeu o nome de São João del-Rei, em homenagem a Dom João V, rei de Portugal. Transcorrido cerca de um ano, a vila torna-se sede da comarca do Rio das Mortes340. Em alvará de 6 de abril de 1714, presidida pelo governador D. Brás Baltazar da Silveira, Minas Gerais dividir-se-ia em três comarcas, a comarca de Vila Rica, a de Vila Real (Sabará) e a comarca do Rio das Mortes341. A história da ocupação e da passagem de paulistas por essas imediações remonta, ao menos, quatro décadas anteriores a elevação do Arraial Novo à vila de São João del-Rei. Fato é que em 1674 a bandeira de Fernão Dias Paes Leme, Borba Gato, e seus homens, fundam o povoado de Ibituruna, com roças e criações para o sortimento de suas expedições. Este arraial situava-se apenas a 12 léguas do lugar onde se fundaria o arraial Novo do Rio das Mortes. Muitas outras bandeiras paulistas passaram por estes sertões em 340 GUIMARÃES, Fábio Nelson. Fundação Histórica de São João del-Rei. In: Origens Históricas de São João delRei. BDMG Cultural: Belo Horizonte, 2006.p.48. 341VELLASCO, Ivan de Andrade. As seduções da ordem: violência, criminalidade e administração da justiça Minas Gerais, século 19. Bauru/São Paulo: EDUSC/ANPOCS, 2004. p.38. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 380 busca do córrego do Tripuí, aos pés do pico do Itacolomi, onde o gentio da terra recolhera ouro nas águas sujas de um córrego de mesmo nome do pico. Em 24 de Junho de 1698, Antônio Dias de Oliveira descobriu o Ouro Preto, sucessivamente, em 1700 foram manifestos342 os descobertos do Ribeirão do Carmo e do Sabarabuçú343. Deu-se que ao fim do século XVII e começo do século XVIII, o taubateano Tomé Portes del-Rei se fixou na paragem denominada Rio das Mortes. Sendo o primeiro morador do lugar, “enquanto seus conterrâneos encaminharam-se em busca das minas, Tomé Portes afazendou-se no vale do rio, plantou roça e, com familiares e escravos, fundou um povoado” (GUIMARÃES, 2006:71). Posteriormente estabeleceu-se no mesmo local o Porto Real da Passagem, nas imediações da ponte que liga o atual bairro de Matozinhos em São João del-Rei ao município de Santa Cruz de Minas, região ainda hoje nomeada de “Porto” por seus conterrâneos. Era parada obrigatória aos paulistas em destino às “Minas dos Cataguases”. À Tomé Portes foi legado a cobrança do imposto real sobre a travessia do dito rio em 1701. Na paragem, os viajantes vindos de terras distantes ao sul se abasteciam do necessário em gêneros alimentícios, pois eram fartas as roças e criações de vender. Rapidamente se constituiu um povoado ao redor da dita paragem, pois no Rio das Mortes, e nos riachos que dele saiam, e nos ribeiros que nele davam, se encontrava ouro. O povoado prosperou. Um ano depois, em 1702, Tomé Portes foi nomeado guarda mor distrital pelo então governador Arthur de Sá Meneses, na repartição do “Córrego”344. Imbuído deste cargo, Tomé Portes ficaria responsável pela distribuição e repartição das terras minerais desta paragem345, em auxílio a Garcia Rodrigues Paes, filho 342 Adriana Romeiro atenta para que apenas depois do início das negociações de Arthur de Sá e Meneses, governador das Capitanias da Repartição Sul, com os sertanistas paulistas, que estes passaram a manifestar os descobrimentos de ouro no Sertão dos Cataguases. Sá e Meneses “fez o que todos seus antecessores almejaram em vão: obter deles (os paulistas) o manifesto do ouro, em troca de privilégios, mercês e recompensas”. Concedeu a Borba Gato a patente de tenente-general da jornada de descobrimento de prata de Sabarabuçu. ROMEIRO, Adriana. Paulistas e Emboabas no Coração das Minas Gerais: Idéias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2008.p.54. 343 GUIMARÃES, Fábio Nelson. Op.cit.p.13. 344 “Foi nessa área, tudo indica, que Marçal Casado Rotier, senão o maior, pelo menos dos maiores e bem afortunados mineradores do Rio das Mortes - sem dúvida o mais empreendedor -, aplicou suas atividades por longos anos. Ainda se vê, à beira da estrada antiga para Tiradentes, uma velha construção, muito bem conservada: a sede do que restou da sua Fazenda do Córrego.” (...) “Marçal Casado Rotier era português, nascido em Lisboa, proprietário de vastas terras na vargem direita do Rio das Mortes, onde explorou com sucesso ricas jazidas auríferas. Tal se pode deduzir pelos numerosos e volumosos vestígios deixados, principalmente na região do antigo Arraial do Córrego, da atual Vila de Santa Cruz, encostas oeste da Serra de São José, e proximidades do Rio Carandaí.” (...) “Em 1719 participava do Senado da Câmara da Vila de São João del-Rei como juiz ordinário. Muito cooperou na construção da Matriz de Santo Antônio, da Vila de São José del-Rei.”GUIMARÃES, Geraldo. São João del-Rei - Século XVIII - História sumária. Editora do Autor: São João del-Rei, 1996. p.95. 345 GUIMARÃES, Fábio Nelson. Fundação Histórica de São João del-Rei. In: Origens Históricas de São João delRei. BDMG Cultural: Belo Horizonte, 2006.p.71 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 381 do então falecido bandeirante Fernão Dias. Segundo Adriana Romeiro, buscando garantir o domínio político e administrativo da região das minas aos paulistas, o governador Sá e Meneses reformulou completamente a legislação portuguesa precedente sobre a atividade mineradora, criando o Regimento de 1700: “Nele, o principal cargo competia ao guardamor, que vinha substituir a figura do provedor, cuja principal função era apaziguar todo tipo de conflito relativo aos trabalhos de mineração” (...) “Não resta dúvida que o cargo havia sido criado para ser preenchido por um paulista poderoso, afeito ao universo da extração aurífera” (ROMEIRO, 2008:57). São provas da influência de Tomé Portes del-Rei nestes primeiros anos de povoamento, o direito que lhe foi atribuído de cobrar pela passagem do rio das mortes em 1701, e sua nomeação à guarda-mor distrital em 1702. Tais honrarias se inseriam na política do governo de Sá e Meneses que, favorável aos paulistas, buscou resguardar a hegemonia política destes sobre a região das minas. Na paragem do Rio das Mortes não seria diferente. Primeiro a povoar estes sertões onde surgiria a vila de São João del-Rei, Tomé Portes veio a falecer em 1702. Coube a seu genro, Antônio Garcia da Cunha, sucedê-lo no cargo de guarda-mor, encarregando-se de repartir as terras minerais na Repartição do Córrego. Em 1704 o escrivão de datas de Antônio Garcia descobriu ouro no ribeirão São Francisco Xavier346. Esse ribeirão se encontra no cume da “Serra do Lenheiro”, nas encostas adentro do lugar onde hoje existe o bairro são-joanense do “Senhor dos Montes”. Os primeiros mineradores da região haviam se destinado aos arraiais da Ponta do Morro e Santo Antônio (Tiradentes), onde o ouro foi descoberto ainda em 1701. Ambos os arraias foram fundados e suas terras minerais repartidas pelo falecido Tomé Portes. Os aventureiros que procuravam pelo ouro no Arraial de Santo Antônio, quando souberam da nova descoberta logo se deslocaram em grande número para as margens do córrego São Francisco Xavier a procura de uma lavra para si. Um destes aventureiros encontrou logo abaixo das margens do Ribeirão de São Francisco Xavier, entre o Morro das Mercês e o Córrego do Lenheiro, grandes proporções de ouro, o primeiro a ser encontrado pelo campo, fora de rios e córregos. Ali, “achava-se ouro pela raiz do capim”(GUIMARÃES, 2006:19), neste mesmo lugar posteriormente se erigiu a vila de São João del-Rei. Foi tanta a quantidade do metal encontrado na encosta, que logo o guarda mor distribuiu todas as partes do dito morro, e os que não conseguiram terras, se associaram aos proprietários das datas auríferas já distribuídas, e os proprietários de datas em grandes 346Idem.p71. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 382 proporções chamaram parentes e afins de todos os lados para ajudá-los. Construíram-se casas de morada cobertas de sapé, se erigiu a capela dedicada a Nossa Senhora do Pilar, coberta de mesmo modo. Foi fundado assim, em 1705, no Vale do Lenheiro, mais aproximadamente, no Morro das Mercês, o Arraial Novo de Nossa Senhora do Pilar. Novo em relação ao Arraial de Santo Antônio (Tiradentes), o Arraial Velho, fundado por Tomé Portes. Logo correu a notícia e a febre do ourolevou gente de todos os cantos do reino para a mineração nas encostas das Mercês. O ouro era extraído com tanta facilidade e grandeza que se chegou a pagar 68 oitavas do mesmo por um alqueire de milho; 100 oitavas, por um boi ou cavalo; 40 oitavas, por um alqueire de farinha347. O ouro jazia por toda parte, os veios eram colossais, o arraial se desenvolveu por sobre os veios – daí o comentário ainda hoje comum em São João del-Rei de que a cidade está erigida acima de grandes vãos onde se extraiu o ouro, os quais podem ser vistos pelas betas encontradas nos terreiros das casas. Mas à bem aventurança se sucedeu a “desordem”. E a ganância e discórdia dominaram os moradores do arraial. Duas facções existiam nas Minas por aqueles tempos, os paulistas e os emboabas. Paulistas, homens do planalto de Piratininga e das vilas “Serra a Cima”, ao sul dos Sertões dos Cataguases, andavam à pés descalços348, acostumados às matas e convívio com os “negros da terra”, muitas vezes utilizavam-se mais das línguas dos índios, o Tupí, do que da própria língua portuguesa349. Foram eles os descobridores das “Minas dos Cataguases”, que em meio às suas viagens de apresamento indígena, as Bandeiras, encontraram o precioso metal. De outro lado, formou-se o grupo a quem os homens do planalto denominaram jocosamente de Emboabas, em analogia a um pássaro, que parecia usar botas, assim como as usadas pelos portugueses. A segunda facção era formada, sobretudo, por reinóis, os filhos de Portugal, e homens vindos de outras regiões da América Portuguesa, principalmente da Bahia e de Pernambuco, atraídos pelo descobrimento do ouro. 347 Nelson Guimarães citando a obra de 1859 do memorialista sãojoanense José Antônio Rodrigues: GUIMARÃES, Fábio Nelson. In: Origens Históricas de São João del-Rei. BDMG Cultural: Belo Horizonte, 2006.p.23. 348 Segundo Sérgio Buarque de Holanda, esta prática tratar-se-ia mesmo de uma técnica ao andar indígena comum em toda a América, nos termos do autor: “enquanto os brancos, por disposição natural ou educação, costumam caminhar voltando para fora a extremidade de cada pé, o índio caminha de ordinário com os pés para frente. (...) Com seu sistema peculiar, os índios não só economizam trabalho, pois a ponta do pé encontra naturalmente menos superfície de resistência nos galhos e macegas, mas também, devido à distribuição mais proporcional do peso do corpo, (...), torna-se possível percursos mais extensos”. HOLANDA, Sergio Buarque de. Caminhos e Fronteiras.p.35. 349 HOLANDA, Sergio Buarque de. Caminhos e Fronteiras.p.184. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 383 Os primeiros conflitos entre as duas facções se deram mais ao norte da paragem do Rio das Mortes, em 1707. Iniciou-se no Caeté, de lá ao Sabarabuçú (Sabará), e depois ao Ouro Preto, se espalhando feito fogo ao vento por todos os arraiais e vilas de Minas. A guerra se instaurou350. Foram dois anos de conflitos entre Paulistas e Emboabas, os primeiros foram rechaçados de arraial a arraial, forçados a se retirarem para o sul, o destino final de muitos deles seria o Rio das Mortes. Na noite de 15 de Fevereiro de 1709351, liderados por Bento do Amaral Coutinho, um destacamento emboaba com cerca de duzentos homens cercou uma “manga” de paulistas tendo por cabo Gabriel de Góes, veterano das guerras coloniais, experiente nas táticas da guerra brasílica352, havia lutado ao lado de Domingos Jorge Velho em Palmares, no ataque que dizimou aquele que foi um dos maiores quilombos que os senhores das capitanias do Norte já haviam deparado353. No Rio das Mortes tal experiência pouco adiantou, o capitão Gabriel de Goes e seus homens foram rendidos, suas armas foram depostas – feitos prisioneiros, foram exterminados em grande número. Diogo de Vasconcelos menciona a exagerada cifra de 300 mortos354. Certo é que tal fatomarcou profundamente a memória dos mineiros, e os horrores desta noite ficaram conhecidos como “o Capão da Traição”, pois o acontecido se deu em uma porção de mata, formação esta conhecida por capão355. Já esperando a vingança por parte dos Paulistas, o sargento mor José Matol – personagem com cujo nome batizaram uma das encostas da cidade, o Morro do Matola – determinou a imediata fortificação do povoado. Em relato detalhado redigido ainda em 1750, José Álvares de Oliveira, testemunha ocular dos acontecimentos, informa que foram construídas paliçadas, e trincheiras ao redor do grupo de casas do arraial, uma ponte 350 Adriana Romeiro defende o emprego da terminologia “Levante dos Emboabas”, ao invés de “Guerra dos Emboabas”. Embasa sua posição na afirmativa de que “do ponto de vista estritamente bélico, foram raríssimas as batalhas, insignificantes as baixas, e rápido o desfecho”. Segundo a autora, para alguns contemporâneos o levante sequer configurou um conflito. Para Romeiro o levante emboaba prestou-se a diversas apropriações ideológicas filiadas a um nativismo histórico e ao mito da mineiridade, os quais a terminologia de guerra, ligada a ideia de um grande conflito na origem de Minas, conferia uma dimensão romântica à sua história. Diogo de Vasconcellos figuraria como um expoente desta visão romântica. ROMEIRO, Adriana. Paulistas e Emboabas ...p.181/182. 351 GUIMARÃES, Fábio Nelson. Op.cite.2006.p.26. 352 Grifos Nossos. 353 VASCONCELOS, Diogo de. História Antiga de Minas Gerais. p.260. 354 GUIMARÃES, Fábio Nelson. Op.cite. 2006.p.26. 355 Apesar da áurea “mitológica” que envolve o “capão da traição”, Adriana Romeiro afirma que o episódio não parece ter suscitado muito horror entre os contemporâneos, justamente por ser a execução sumária uma prática comum na guerra brasílica, pratica de guerra bem conhecida dos paulistas. ROMEIRO, Adriana. Paulistas e Emboabas no Coração das Mina. p.211. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 384 levadiça também foi erigida como proteção e único acesso à fortificação356. Naquele momento, o povoado estabelecido no Morro das Mercês transformou-se em uma fortaleza. Não haveria de ser diferente, os homens do planalto, não bastando a desonra de terem perdido as batalhas e o domínio sobre as minas, ao chegarem em suas casas, foram rechaçados por suas esposas e familiares, que lhes cobraram uma retaliação aos Emboabas357. Prepararam-se então para a viagem serra acima buscando o contra ataque. Pouco após o episódio do Capão da Traição, o Arraial Novo do Rio das Mortes se viu sitiado por mais de dois mil homens armados e dispostos a acabar com o que restava de “civilização” naquela paragem. Pouco antes, as forças paulistas lideradas por Amador Bueno da Veiga encontraram-se na vila paulista de Guaratinguetá com o então governador Antônio Albuquerque. O governador persuadiu aos paulistas não entrarem na região das minas; persuasão que não surtiu efeito358. Amador Bueno havia sido eleito pelo senado da câmara da vila de São Paulo, “cabo universal para qualquer invasão e defesa da pátria” (ROMEIRO, 2008; 195). Chegando ao arraial Novo do Rio das Mortes, por três dias os Emboabas se viram forçados a encarcerar-se dentro dos muros de madeira rodeados por trincheiras que eles mesmos haviam construído, pois eram em número bem inferior aos Paulistas, e com menor armamento. “As forças emboabas somavam perto de setecentos e setenta (homens) assim divididos: duzentos e setenta brancos e cerca de quinhentos negros” (ROMEIRO, 2008; 188). A situação dentro do fortim era precária, para conseguirem água de uso, furaram um poço improvisada dentro da fortificação, por onde se serviam de uma água barrenta. Mas os paulistas atacavam noite e dia, escondidos por trás da igreja e das casas que ficaram fora da fortificação. Ávidos no exercício da “guerra brasílica”, uma prática bélica completamente diferente dos padrões do velho mundo, os paulistas empregaram-na no ataque à fortificação. Mas o ambiente era diferente das matas, lugar natural para o qual a prática bélica havia sido concebida. De todo modo os paulistas souberam muito bem reproduzi-la nesse cenário semiurbano, “escondendo-se por trás das casas e da igreja, para daí darem assaltos e emboscadas ao inimigo” (ROMEIRO, 2008; 195). 356 OLIVEIRA, José Álvares. História do distrito do Rio das Mortes, sua descrição, descobrimento das suas minas, casos nele acontecidos entre paulistas e emboabas e criação das suas vilas. In: Origens Históricas de São João del-Rei. BDMG Cultural: Belo Horizonte, 2006.p.105. 357 Sobre o mito das mulheres paulistas obrigarem seus maridos a vingarem-se dos emboabas, Adriana Romeiro diz não haver nada que comprove tal afirmação, tendo sido Rocha Pita o primeiro a invocar tal mito. ROMEIRO, Adriana. Paulistas e Emboabas..p.194. 358 Romeiro, Adriana. Paulistas e Emboabas...p.195. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 385 Os emboabas chegaram a ter quarenta baixas, num total de mais de oitenta feridos. Por outro lado, eles repetiram no Rio das Mortes a mesma estratégia que anteriormente haviam empregado no Caeté, entrincheiraram-se “em fortificações, armazenando grandes estoques de munição de guerra e boca” (ROMEIRO, 2008; 203), essa estratégia não foi suficiente ao ataque incessante que os homens do planalto submeteram os emboabas. Na tarde do terceiro dia, quando já era certa a invasão completa da fortificação, devido ao grande número de baixas, os emboabas enviaram mensageiros para negociar uma possível rendição aos paulistas. Surpreendentemente, neste momento crucial, os paulistas se foram por sobre o caminho de volta às suas terras no sul, destruindo as canoas que possibilitavam a travessia dos rios e derrubando as pontes que atravessavam para não serem seguidos359. Haviam sido avisados por batedores sobre a vinda de um grande contingente de emboabas das outras vilas e arraiais em reforço aos entrincheirados do Rio das Mortes. Este foi o último conflito bélico entre as duas facções. Findada as Guerras dos Emboabas, aquelas paragens passaram por um período de relativa paz. O povoado prosperou. O arraial Novo de Nossa Senhora do Pilar elevou-se à vila de São João del-Rei. Multidões de pessoas se dirigiam à região, de todas as partes do reino. Em 1714 foi instituída a Comarca do Rio das Mortes tendo como sede a vila de São João del-Rei. Algumas dúvidas nos ficam quanto ao destino dos paulistas após o ocorrido entre 1708 e 1709. A historiografia não é muito clara quanto ao sucedido no convívio entre paulistas e emboabas após o levante emboaba. Apresentado os principais conflitos envolvendo paulistas e emboabas na região do Rio das Mortes, o que tentaremos a frente é, a partir da reconstituição de dois grupos familiares, buscar esclarecer como se deu a continuidade no povoamento da comarca do Rio das Mortes por famílias de origem paulista após a “Guerra dos Emboabas”. Uniões Matrimoniais entre Famílias de Ascendência Paulista e Portugueses no Início do Século XVIII O primeiro grupo familiar que abordaremos trata-se dos “Pinto de Góes e Lara” com origem no casamento entre Ana Maria Bernardes de Góes e Lara e Francisco Pinto, a 359 OLIVEIRA, José Alvares.História do distrito do Rio das Mortes, sua descrição, descobrimento das suas minas, casos nele acontecidos entre paulistas e emboabas e criação das suas vilas. In: Origens Históricas de São João del-Rei. BDMG Cultural: Belo Horizonte, 2006.p.113. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 386 família teve como expoente o filho deste casal, o capitão Joaquim Pinto de Góes e Lara, homem de grande fortuna e posses na região de São João del-Rei. Conforme o Diagrama I –abaixo –, dona Ana Maria Bernardes, era filha do capitão Pedro Bernardes Caminha, um português, e de dona Ângela de Góes e Lara que descendia de uma importante linhagem paulista, figurando em sua ascendência materna o tataravô bandeirante, Lourenço Castanho Taques, o velho. O pai de Ângela foi Manoel de Góes, contemporâneo de Gabriel de Góes, este último aquele cabo da “manga de paulistas”, que, como vimos, foi executado no episódio da Guerra dos Emboabas conhecido como o “capão da traição”, em 1709. Diagrama I Ascendência Paulista - Cap. Joaquim Pinto de Góes e Lara (1600 - 1835) ? - 1671 ? Lourenço Castanho Taques c.1631 ? - 1714 João Pires Rodrigues Branca de Almeida Lara ? ? ? - 1728 ? - 1712 Manoel de Góes Maria da Luz Cardozo João Paes Gago Ana de Porença Lara ? ? José de Góes Cardoso Maria de Almeida Lara c.1700 ? Pedro Bernardes Caminha Legenda ? - 1708 ? c.+/- 1720 Angela de Góes ? - 1786 ? - 1792 Ana Maria Bernardes Francisc Pinto Rodrigues Naturalidade Paulista Naturalidade Portuguesa 1760 - 1835 1757 - 1830 Naturalidade Mineira c/ Ascendência Paulista Naturalidade Mineira sem Ascendência Paulista cap. Joaquim Pinto de Góes e Lara Ana de Almeida e Silva 73 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 Maria de Lara 387 FONTE: LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Nobiliarquia Paulistana Histórica e Genealógica. Inventário e Testamento de dona Ana Maria Bernardes, 1786. Inventário e Testamento do capitão Francisco Pinto Rodrigues, 1792. Inventário e Testamento de dona Ana de Almeida e Silva, 1830. Em a Nobiliarchia Paulistana, de Pedro Taques de Almeida Paes Leme,360 encontram-se algumas informações sobre a ascendência paulista do capitão Joaquim Pinto de Góes e Lara. Seu quinto avô, o bandeirante Lourenço Castanho Taques, casou-se com dona Maria de Lara em São Paulo no ano de 1631361. Indiferente ao assassinato de seu irmão, Pedro Taques, na guerra aos Camargo362, e a subsequente mudança dos demais irmãos que partiram da cidade de São Paulo, Lourenço Castanho Taques continuou residindo na vila de São Paulo, devido ao grande respeito que nele havia e “a força de armas que o prontificava para por em cerco aos inimigos do partido contrário”363. Em sua historia das Bandeiras, Affonso de Taunay conta-nos que em 1668 partiu uma grande expedição de São Paulo, liderada por Lourenço Castanho Taques. Empunhando uma carta escrita pelo próprio rei Afonso VI, percorreu por dois anos a região que compreende hoje o Oeste e o Triângulo Mineiro, a procura de ouro, nada encontrando364. O mesmo não se poderia dizer do “gentio” a ser aprisionado, conduzido em muita quantidade a São Paulo. Faleceu o bandeirante em 1671, pouco após retornar de sua jornada ao sertão. Uma de suas filhas, dona Branca de Almeida Lara, foi casada com João Pires Rodrigues, paulista renomado. Ela faleceu em 1714, juntos tiveram 12 filhos, dentre eles dona Ana de Proença, que foi casada com João Gago Paes, esta falecera antes da mãe, ainda em 1712. Uma das filhas de dona Ana de Proença, Maria de Almeida Lara, casou-se com João de Góes Cardoso, aos 21 dias de Fevereiro de 1700, na matriz de São Paulo365. José de Góes era filho de Manoel de Góes, ambos contemporâneos do cabo Gabriel de Góes, que lutou ao lado de Domingos Jorge Velho na campanha contra Palmares366, e foi assassinado junto a uma manga de paulistas por Bento do Amaral e sua tropa de emboabas no episódio do “Capão da Traição”. Gabriel 360 LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Nobiliarquia Paulistana Histórica e Genealógica. Tomo I. Livraria Martins Ed: São Paulo, 1953. p.124. 361 LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Op.cite. p.124. 362 “Guerra dos Pires e Camargo” foi como ficou conhecido o conflito que se deu entre essas duas importantes famílias da vila de São Paulo em meados do século XVII. O conflito entre os dois clãs teve início por volta de 1640 quando Alberto Pires matou sua esposa, Leonor Camargo, e depois assassinou o homem ao qual alegava ser amante de sua esposa. O assassinato de Leonor levou as milícias dos Camargo a matarem Alberto Pires, quebrando um juramento feito à mãe deste de que Alberto seria levado a julgamento no Tribunal Superior da Bahia. A luta entre os dois clãs durou por volta de vinte anos envolvendo diversos assassinatos e confrontos aberto entre tropas de ambos os grupos. NAZZARI, Muriel. O Desaparecimento do Dote: família, mulheres e mudança social em São Paulo, 1600-1900. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p.30. 363 LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Op.cite. p.5. 364 TAUNAY, Affonso de. História das Bandeiras Paulistas.V.1.p.98. 365 LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Op.cite. p.203. 366Idem.p.179. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 388 de Góes era contemporâneo de Manoel e José de Góes, paulistas, partilhavam os mesmos pós-nomes, porém, as fontes não nos possibilitam afirmar se possuíam parentesco consanguíneo. Destarte os episódios da Guerra dos Emboabas, ou Levante dos Emboabas, como se prefira denominar – as gerações subsequentes destes paulistas se aliaram via matrimonio a homens vindos de Portugal. Ângela de Góes e Lara, filha dos paulistas João de Góes, e Maria de Almeida Lara, ambos contemporâneos da Guerra dos Emboabas, casou-se com o capitão de ordenanças da vila de São João del-Rei, Pedro Bernardes Caminha, português, natural de Trás-osMontes. Capitão Pedro Bernardes e dona Ângela de Góes casaram-se ainda na primeira metade da séc. XVIII, uma ou duas décadas após a Guerra dos Emboaba e estabeleceramse em sua fazenda do Ribeirão de Santo Antônio, nas imediações das vilas de São José e São João del-Rei. Sua filha, Ana Maria Bernardes de Góes e Lara casou-se com o capitão Francisco Pinto Rodrigues, português da região de Braga. Ela faleceu em 1786 na fazenda do Ribeirão de Santo Antônio na aplicação da Lage367, ele faleceu pouco depois, em 1792368, na mesma fazenda. Do inventário dos bens que ficaram do falecimento de ambos podemos inferir que eram grandes proprietários, possuindo, além da fazenda do Ribeirão de Santo Antônio, partes nas fazendas da Boa Vista e Mosquito. Possuíam também uma morada de casas na vila de São José del-Rei, “na esquina da rua que vai para casa das Almas e Santíssima Trindade”369. Do casamento de ambos nasceu o capitão Joaquim Pinto de Góes e Lara, que angariou uma fortuna dez vezes maior que a de seus pais, consolidando o domínio político e econômico da família “Góes e Lara” ou “Pinto de Góes e Lara”, no distrito da Lage e seu entorno. Quando sua mãe, dona Ana Maria Bernardes, faleceu em 1786, seus bens totalizaram 11:059$150 (onze contos, cinquenta e nove mil e cento e cinquenta reis)370. Em 1830, quando falecera a esposa do capitão Joaquim Pinto, dona Ana de Almeida, o inventário dos bens do casal foi avaliado em 101:927$805 (cento e um contos, novecentos e vinte e sete mil, oitocentos e cinco réis)371. Guardada a inflação para o período, e as mudanças econômicas como o declínio da extração aurífera e a consolidação da economia de abastecimento do mercado interno, proporcionalmente, a fortuna do capitão Joaquim Pinto ultrapassou em 92,16% a de seus pais. 367 Inventário e Testamento de dona Ana Maria Bernardes, ERIPHAN/SJDR, 1786. Inventário e Testamento do capitão Francisco Pinto Rodrigues, ERIPHAN/SJDR, 1792. 369 Inventário e Testamento de dona Ana Maria Bernardes, ERIPHAN/SJDR, 1786. 370 Idem. 371 Inventário e Testamento de dona Ana de Almeida e Silva, ERIPHAN/SJDR,1830. 368 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 389 O outro grupo familiar que passaremos a descrever trata-se dos “Alves Barbosa” do Arraial de Carrancas, comarca do Rio das Mortes. Como os “Pinto de Góes e Lara”, os “Alves Barbosa” possuíam origem paulista e se aliaram por matrimônio a portugueses ainda no século XVIII. No grupo encontramos o casamento entre uma descendente de paulistas e um baiano, que, após falecer, foi sucedido por um português, conforme o Diagrama II. DIAGRAMA II - Ascendência Paulista de Genoveva Barbosa da Trindade (sec.XVII e sec.XVIII) ? Francisco Alves Barbosa Isabel Fragoso ? - 1765 ? Mathues Leme Barbosa Rosária Maria de Jesus Legenda * Naturalidade Paulisa * Naturalidde Portuguesa * Naturalidade Baiana * Naturalidade Mineira de ascendência paulista * Naturalidade Mineira de ascendência portuguesa * Naturalidade Mineira de ascendência portuguesa/paulista ? ? - 1759 Francisco de Ávila Fagundes ? - 1737 Maria Alves Barbosa da Porciúncula Capitão Mor Inácio Franco Torres c.1734 1737 1730 - 1808 1739 - ? Antônio Ribeiro da Silva Genoveva da Trindade Barbosa c.1760 ? - 1789 FONTE:Testamento Francisco de Ávila Fagundes (1759), Testamento Inácio Francisco Torres (1737), Inventário de Maria Alves da Porciúncula (1798), Inventário e Testamento Antônio Ribeiro da Silva (1808). Genoveva da Trindade Barbosa, batizada em 26 de Julho de 1739 em Carrancas, era filha de Francisco de Ávila Fagundes e Maria Alves da Porciúncula, ambos moradores da região. Francisco era natural da “ilha terceira da cidade de Angra”372, portanto, deve ter migrado para a colônia durante a primeira metade do séc. XIX, na “corrida do ouro”. Em seu testamento, transcrito em 1759, deixa à filha Genoveva, então com 20 anos, solteira373, dois mil cruzados. Este provavelmente foi o dote que Antônio Ribeiro recebeu ao se casar com Genoveva. O monte mor de Francisco Fagundes totalizou 15:284$410 ( quinze contos, duzentos e oitenta quatro mil e quatrocentos e dez réis). Maria Alves Barbosa da 372 373 Testamento Francisco de Ávila Fagundes, ERIPHAN/SJDR, 1759. fl.7. Grifos nossos, Idem. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 390 Porciúncula, mãe de Genoveva Barbosa, natural de Carrancas, era filha de paulistas taubateanos. Segundo a genealogia da família, uma de suas irmãs teria se casado com o renomado bandeirante Mateus Leme Barbosa, que requereu sesmaria em Carrancas no ano de 1738374. Maria Porciúncula casara-se duas vezes, em segundas núpcias uniu-se ao pai de Genoveva, Francisco Fagundes. A Fazenda das Carrancas foi legada a Maria Porciúncula do seu primeiro casamento com o coronel Inácio Francisco Torres, filho de naturais da Bahia, falecido em 1737. Com o primeiro marido teve apenas o filho Inácio Francisco (ou Franco) Torres que viria a tornar-se padre. A Fazenda das Carrancas, segundo o inventário do coronel Inácio Torres, constituía-se de “casas de vivenda de sobrado, com seu engenho de moer cana e ou de farinha e outras duas moradas de casa térreas, casa de passageiros, tudo coberto de telhas, com sua tenda e senzalas coberta de capim”375. A fazenda foi avaliada em 2:820$000 (dois contos oitocentos e vinte mil réis) em 1737. Maria Porciúncula uniu-se em segundas núpcias com Francisco Fagundes no mesmo ano do falecimento de seu primeiro marido. Como vimos, Francisco era português, e com ela teve oito filhos, dentre eles Genoveva Barbosa da Trindade, que prece ter sucedido a mãe na possa da Fazenda das Carrancas, uma fazenda de considerável porte no arraial de mesmo nome. Conclusão Conforme os exemplos apresentados, podemos observar a sucessiva prática de uniões matrimoniais entre descendentes de paulistas e portugueses. A princípio poderíamos levantar a hipótese de que as diferenças entre paulistas e emboabas, ou portugueses, como parece apontar este exemplo, não sobreviveram há tantos anos no decorrer do século XVIII a ponto de criar hostilidades que impediriam alianças matrimoniais entre ambos os grupos. Constatação esta que alinha a tese de Adriana Romeiro na qual o ocorrido seria melhor denominado de “Levante Emboaba”, ao invés de “Guerra dos Emboabas”, pois o conflito sobretudo se dera no campo da disputa pelo domínio político da região aurífera. Por outro lado, Adriana Romeiro defende que: (...) por todo século XVIII, paulistas e emboabas irão se enfrentar: as velhas denominações nunca foram esquecidas e assumiram novos conteúdos, inscrevendo-se em diferentes campos sociais. A aversão aos não paulistas, associada ao ressentimento pela dupla derrota – imposta pelos emboabas e depois por Albuquerque - , levaram os paulistas a perseguir por anos a fio o sonho de um Eldorado dominado por seus patrícios, tanto em Pitangui quanto em Goiás e Mato Grosso. (Romeiro, 2008:316) 374 375 AMATO, Marta. A Freguesia de Nossa Senhora das Carrancas e sua História. São Paulo: E. Loyola, 1996.p.26. Testamento Inácio Francisco Torres, ERIPHAN/SJDR, 1737, fl.16. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 391 Acreditamos que a aparente contradição entre a constatação da autora – que paulistas e emboabas irão se enfrentar por todo século XVIII – e a prática social por nós descrita neste artigo – a constante união matrimonial entre descendentes de paulistas com portugueses por todo século XVIII – poderia ser esclarecida com a mesma citação que acima fizemos à Adriana Romeiro: as velhas denominações, “paulistas e emboabas”, não esquecidas, assumiram novos conteúdos, inscrevendo-se em diferentes campos sociais. A esta explicação acreditamos poder acrescentar que tais denominações conflituosas, “paulistas e emboabas”, não se inscreveriam no campo das alianças matrimoniais, devido a uma razão principal, que pode ser desmembrada em várias outras: por séculos as elites coloniais casaram suas filhas com europeus recém chegados à América376. Esta prática social já enraizada no comportamento das elites coloniais não sucumbiria a um conflito de dois anos que, nos dizeres de Adriana Romeiro, não passou de um “levante”377. Muriel Nazzari demonstrou que durante todo o século XVII as famílias paulistas buscaram “melhorar sua raça” (NAZZARI, 2001:71) casando suas filhas mestiças com europeus que em sua maioria das vezes traziam unicamente a pele branca como objeto de negociação à família da noiva em seu casamento. Deste modo, o que se observava era uma busca constante pela “infusão de sangue branco nas famílias paulistas mestiças” (NAZZARI, 2001:70). Esta prática certamente sobreviveu entre as famílias de origem paulista que se mudaram para a região das minas ainda no começa do século XVIII. Pesquisas recentes como a tese de doutorado Adriano Toledo Paiva, desenvolvidas no âmbito do programa de pós-graduação da UFMG, demonstram, que apesar deste aparente encobrimento da origem paulista observado nestes grupos familiares ao observarmos fontes como testamentos e inventários, algumas outras famílias ligadas aos primeiros povoadores paulistas em regiões como o entorno da cidade de Mariana, por todo século XVIII enviaram sucessivas correspondências aos reis em Portugal requerendo títulos nobiliárquicos por suas conquistas, e, como seus antepassados bandeirantes, 376 Dentre exemplos que podemos citar ainda no século XVII, o estudo de Muriel Nazzari sobre o desaparecimento do dote. NAZZARI, Muriel. O Desaparecimento do Dote, p.71. Para o século XVIII a mesma prática entre as elites da região de Campo dos Goitacases foi observada por Sheila de Castro Faria em Colônia em Movimento. Sobre a preferência dos proprietários de terras em casar suas filhas com portugueses na região de Campo dos Goitacases no sec. XVIII,Sheila de Castro Faria afirma:“Ser português, principalmente na segunda metade do século XVIII, possibilitava o acesso ao matrimônio nas melhores famílias da região, mas eram necessárias outras condições para transformar-se em rico e prestigiado senhor de terras e escravos.” (FARIA, 1998:200) “Por outro lado, o interesse dos comerciantes em se ligarem a famílias já estabelecidas era, ao que tudo indica, ditado pelo prestígio social que lhes traria, além do acesso a terras já trabalhadas, escravos especializados e conhecimentos na fabricação do açúcar.” (FARIA, 1998:212) 377 ROMEIRO, Adriana. Paulistas e Emboabas. p.181/182. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 392 repetiram no séc. XVIII práticas de povoamento daqueles, como o emprego de mão de obra escrava indígena, porém agora nos Sertões do Leste de Minas, região hoje denominada Zona da Mata Mineira (PAIVA, 2012). Referências Bibliográficas: AMATO, Marta. A Freguesia de Nossa Senhora das Carrancas e sua História. São Paulo: E. Loyola, 1996. FARIA, Sheila de Castro. Colônia em Movimento: Fortuna e Família no Cotidiano Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. GUIMARÃES, Geraldo. São João del-Rei - Século XVIII - História sumária. Editora do Autor: São João del-Rei, 1996. GUIMARÃES, Fábio Nelson. Fundação Histórica de São João del-Rei. In: Origens Históricas de São João del-Rei. BDMG Cultural: Belo Horizonte, 2006. HOLANDA, Sergio Buarque de. Caminhos e Fronteiras.Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1975. LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Nobiliarquia Paulistana Histórica e Genealógica. Tomo I. Livraria Martins Ed: São Paulo, 1953. ROMEIRO, Adriana. Paulistas e Emboabas no Coração das Minas Gerais: Idéias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2008. PAIVA, Adriano Toledo. Caminhos da Memória Paulista no séc. XVIII. Comunicação apresentada no I Encontro de Pesquisa em História da UFMG. 23 a 25 de Maio de 2012. Belo Horizonte, MG. VASCONCELOS, Diogo de. História Antiga de Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999. VELLASCO, Ivan de Andrade. As seduções da ordem: violência, criminalidade e administração da justiça Minas Gerais, século 19. Bauru/São Paulo: EDUSC/ANPOCS, 2004. Manuscritas: Testamento Inácio Francisco Torres, ERIPHAN/SJDR378, 1737. Testamento Francisco de Ávila Fagundes, ERIPHAN/SJDR, 1759. Inventário e Testamento de dona Ana Maria Bernardes, ERIPHAN/SJDR, 1786. Inventário e Testamento do capitão Francisco Pinto Rodrigues, ERIPHAN/SJDR, 1792. Inventário e Testamento de dona Ana de Almeida e Silva, ERIPHAN/SJDR,1830. 378 Escritório Regional do IPHAN em São João del-Rei. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 393 Bigamia e nulidade de casamento no Brasil do século XIX Isabela Guimarães Rabelo do Amaral Mestranda em Direito pela UFMG / Bolsista do CNPq belagramaral@yahoo.com.br Resumo: Tendo em vista as relações familiares do século XIX e o valor dado ao casamento, esse artigo pretendeu abordar a ocorrência do crime de bigamia e a decretação de nulidade do matrimônio em sua perspectiva jurídica. O objetivo principal foi compreender o tratamento jurídico e os efeitos legais e sociais no caso do duplo vínculo matrimonial. Para tanto, foram analisadas as legislações penal e canônica, bem como alguns processos coletados no Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Pôde-se perceber de que forma a Igreja, responsável pelo casamento durante muito tempo no Brasil, enxergava a questão da bigamia e o que o ligame posterior e o adultério poderiam significar na vida daquelas pessoas que procuraram auxílio jurídico. Palavras-chave: Brasil do século XIX, Bigamia, Nulidade de casamento. Resumé: En considération à les relations de famille du XIXe siècle et le valeur du mariage, cette article a eu l’intention d’approcher l’occurence du crime de bigamie et la nullité du mariage em la perspective juridique. L’objectif general fut comprendre le traitement juridique e les effets socials quand il avait doubler lien matrimonial. Pour arriver à ce produit, les législations pénal et canonique ont été analysées et aussi quelques procès de nullité de mariage recherchés dans l’Archive Ecclésiastique de l’Archidiocèse de Mariana. On a constaté la forme comme l’Église, responsable pour le mariage pendant longtemps en Brésil, voyait la question de la bigamie et qu’est que ce crime et le adultère pourraient signifier dans la vie des personnes que ont cherché l’aide juridique. Mots-clés: Brésil du XIXe siècle, Bigamie, Nullité de mariage. No Brasil, pode-se dizer que adultérios e bigamias foram comuns e ocorreram desde a colonização, permanecendo no período imperial e em todo o restante do século XIX. Ambos eram crimes, estavam relacionados ao casamento e eram considerados pecado por parte da Igreja Católica. Por isso mesmo, eram tratados rigorosamente pelas normas, tanto penais, quanto canônicas. Após a independência, o casamento permaneceu a cargo da Igreja Católica, uma vez que as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia foram recepcionadas pelo Decreto de 3 de Novembro de 1827 (MIRANDA, 1981: 72). Para Josette Lordello, a permanência da regulamentação do matrimônio, por parte da Igreja Católica, no Brasil, após a independência, conta com dois facilitadores. O primeiro deles é o fato de a Constituição Imperial de 1824, por meio do seu artigo 5º, estabelecer que o catolicismo continuava a ser Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 394 a religião oficial no Brasil. O segundo, diz respeito à inexistência de um corpo sólido de normas para o Estado recém independente que, emergencialmente, recepcionou, por meio da Lei de 23 de outubro de 1823, as Ordenações, regimentos, alvarás, decretos e resoluções dos reis de Portugal, que deveriam ser observados no Brasil, mesmo após a separação da metrópole, até que as novas legislações fossem produzidas (LORDELLO, 2002: 65). A Igreja Católica, portanto, controlou a normatização e organização do matrimônio durante longo período na história do Brasil. Os problemas relacionados ao casamento eram, em grande parte, solucionados por ela. Veja-se o trecho abaixo da Carta do Vigário Francisco de Paula Ferreira Palhares para o Cônego Júlio Bicalho, na cidade de Mariana, em 1894, no qual requer instruções para um caso de bigamia em que houve condenação do autor do crime e a cônjuge enganada desejava se casar novamente: [...] Aqui em minha freguesia deu-se infelizmente um fato bem triste que um tratante aqui casou-se pela terceira vez, tendo falecido a segunda mulher, e existindo a que ele casou-se primeiramente, e ele aí estava iludiu ao Exmo Senhor Bispo d’aonde trouxe esta portaria que aí vai, e depois que aqui casou-se terceira vez, descobriu-se, e ele já está na cadeia de Ouro Preto há 3 para 4 anos, e agora a moça que ele casou-se aqui com ela quer casar-se, e achou um bom casamento, mas como fatos d’esta ordem são muito raros de se dar, e eu não sei como se faz nestas circunstâncias, por isso aí vai esta explicação e juntamente o alvará de licença do Exmo. Senhor Bispo, e quero que V. Rma. arranje lá este negócio, e mande-me com as devidas explicações de tudo o que deverei fazer, pois a moça quer e precisa casar-se quanto antes, enfim V. Rma. me guiará, e tudo fará a meu favor e d’esta infeliz moça, que foi iludida, porém o homem está preso em O. Preto por esta e outros crimes por ele cometidos. [...] A oradora com quem ele casou-se aqui chama-se Rosa Ferreira da Silva, e agora ela quer casar-se com Joaquim Ramos de Queiroz, e este viúvo que ficou de Maria Joaquina de Jesus; [...].(AEAM, Libelos de divórcio e nulidade: número 3389). O bígamo se encontrava cumprindo pena pelo seu crime e o vigário local desejava receber instruções do bispo, pois a esposa enganada gostaria de contrair novas núpcias. João Rodrigues de Brito se casou três vezes, tendo abandonado a primeira esposa e sendo viúvo da segunda. A Igreja Católica, então, já recomendava que os casais permanecessem juntos, e que o cônjuge que abandonasse o outro, cometeria grave pecado: 301 E porque alguns maridos por andarem distraídos com outras mulheres, e por outras causas, e respeitos se ausentam de suas legítimas mulheres, deixando-as, indo, ou vindo viver a outras Freguesias, do que resultam grandes pecados, e inconvenientes; mandamos a todos nossos súditos façam vida marital com suas mulheres, e a elas que acompanhem a seus maridos, como são obrigadas, aos lugares aonde com decência com eles puderem viver (VIDE, 1853a: 124). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 395 Era uma recomendação bastante aplicável ao período, principalmente para Minas Gerais, que recebeu muitos migrantes, tanto de outras regiões do Brasil, quanto do Reino português. A historiografia relata casos de bigamia desses homens, que largavam suas esposas para tentar a sorte na terra do ouro, com a promessa de buscá-las, posteriormente, e nunca mais retornavam, formando uma nova família, onde se estabeleciam. Para combater esse “grave pecado”, a Igreja agia por meio de pregações e visitações para julgar as condutas consideradas pecaminosas, como afirma Mary Del Priore: Mais familiarizada com as condições das comunidades coloniais, a Igreja perceberá que o discurso e as medidas necessárias para incentivar matrimônios não podiam destinar-se apenas às elites, a cujas mulheres era dada a possibilidade de um recolhimento, ou casamento além-mar. Ela empreende, então, incursões doutrinárias e reformadoras na modalidade de Visitas e Devassas a Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo, Mato Grosso e Goiás com os mesmos frustrantes resultados. Ou seja, constata os elevadíssimos índices de concubinato, a momentânea disposição das populações de os corrigir, e a permanente reincidência nas “mesmas faltas”(DEL PRIORE, 2000: 52). A bigamia já era proibida desde as Ordenações do Reino, que também vigoraram no Brasil. No Livro V, Título XIX, havia o crime “Do homem, que casa com duas mulheres, e da mulher, que casa com dois maridos”. O tipo criminal era descrito da seguinte forma: Todo homem, que sendo casado e recebido com uma mulher, e não sendo o Matrimônio julgado por inválido per Juízo da Igreja, se com outra casar, e se receber, morra por isso. [...] E esta mesma pena haja toda a mulher que dois maridos receber, e com eles casar pela sobredita maneira, o que tudo haverá lugar, ora ambos os Matrimônios fossem inválidos por Direito, ora um deles (ALMEIDA, 1870: 1170). O Código Criminal do Império de 1830 manteve a incriminação da conduta, mas amenizou a questão da pena. Como visto, pelas Ordenações Filipinas, a bigamia poderia levar à pena de morte, embora houvesse determinadas atenuantes, por exemplo, a posição social do autor, que resultavam na comutação da pena, como degredo para a África. O tipo penal no Código Criminal do Império era de poligamia, previsto no artigo 249, do Título “Dos crimes contra a segurança individual”, Capítulo “Dos crimes contra a segurança do estado civil, e doméstico”: Poligamia Art. 249. Contrair matrimônio segunda, ou mais vezes, sem se ter dissolvido o primeiro. Penas - de prisão com trabalho por um a seis anos, e de multa correspondente á metade do tempo (CÓDIGO CRIMINAL, 1830). No primeiro Código Criminal da República, há pequenas alterações; o crime continua a ser nomeado de poligamia, também localizado no capítulo de crimes contra a segurança do estado civil e doméstico, mas há o acréscimo da atipicidade no caso de nulidade do Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 396 primeiro casamento ou morte do primeiro cônjuge. Foi incluído também o parágrafo único, que trata da cumplicidade no cometimento do crime. A pena torna-se ainda mais branda do que nos casos anteriores. DA POLIGAMIA Art. 283. Contrair casamento, mais de uma vez, sem estar o anterior dissolvido por sentença de nulidade, ou por morte do outro cônjuge: Pena – de prisão celular por um a seis anos. Parágrafo único. Se a pessoa tiver prévio conhecimento de que é casado aquele com quem contrair casamento, incorrerá nas penas de cumplicidade (CÓDIGO PENAL, 1890). No caso relatado pelo Vigário Francisco de Paula, pode-se notar que o Réu, provavelmente, foi condenado na pena máxima, já que na carta há a informação de que ele se encontrava na Cadeia de Ouro Preto já havia 3 ou 4 anos. Observando ainda o caso de Mariana do ano de 1894, nota-se que a bigamia não trazia consequências apenas para o campo criminal, mas também nas relações privadas. Dona Rosa Ferreira da Silva, enganada por seu cônjuge, desejava se casar com Joaquim Ramos de Queiroz. O que poderia ser feito, tendo em vista o caráter perpétuo do matrimônio? O único casamento válido no Brasil, para efeitos civis, era o religioso. Por isso mesmo, sua regulação se encontrava nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, já que, até 1890, a Igreja Católica foi responsável pelas normas de casamento e divórcio. Essas Constituições formavam um compêndio versando sobre normas eclesiásticas que procuravam adequar os preceitos tridentinos às terras brasileiras e suas peculiaridades. Desde o Concílio de Trento, o casamento foi reafirmado como um dos sete sacramentos instituídos por Cristo e isso foi recepcionado nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. O matrimônio era considerado, portanto, um contrato com vínculo perpétuoe indissolúvel em que um homem e uma mulher se entregavam um ao outro, à semelhança da união que há entre o Senhor e a sua Igreja. Segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, ele era ordenado principalmente para três fins: [...] O primeiro é o da propagação humana, ordenada para o culto, e honra de Deus. O segundo é a fé, e lealdade, que os casados devem guardar mutuamente. O terceiro é o da inseparabilidade dos mesmos casados, significativa da união de Cristo Senhor nosso com a Igreja Católica. Além destes fins é também remédio da concupiscência, e assim S. Paulo o aconselha como tal aos que não podem ser continentes (VIDE, 1853a: 107). Para o casamento ser considerado válido, deveria cumprir determinados requisitos de legitimidade. O primeiro deles dizia respeito à idade dos nubentes: homens deveriam ter 14 anos e mulheres, 12 (nº. 267). O segundo requisito era saúde mental, para que a vontade manifestada fosse livre e consciente (nº. 268). E, por fim, a comunicação da intenção dos Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 397 nubentes de se casarem ao pároco, para que fossem realizadas as denunciações dos nomes dos noivos, seus pais e freguesia a que pertenciam, em três domingos ou dias santos, durante a missa do dia, a fim de averiguar a existência de impedimentos (nº. 269). Se os nubentes fossem viúvos, deveriam comprovar a morte do ex-cônjuge (nº. 271). Se os nubentes fossem naturais de outra freguesia ou tivessem morado em outro local por mais de seis meses, em todos eles deveriam providenciar denunciações e trazer certificado de sua realização, a fim de comprovar a inexistência de impedimento (nº. 272). As denunciações só tinham validade por dois meses e se a celebração não ocorresse nesse tempo, elas deveriam ser repetidas. (nº. 274) (VIDE, 1853a: 109-112). Para que essa celebração fosse válida, deveria ocorrer em presença de um pároco, ou outro sacerdote por ele licenciado, e de duas ou três testemunhas, que atestassem o mútuo consentimento dos consortes (nº. 293) (VIDE, 1853a: 121-122). As denunciações poderiam ser dispensadas ou diferidas para depois do matrimônio, por licença do Arcebispo ou, havendo impedimento, poderiam os noivos ser autorizados a se casar por meio de uma sentença de dispensação (VIDE, 1853a: 119-120, 130). Sendo válido o casamento, após o cumprimento de todos os requisitos citados anteriormente, formava-se um vínculo perpétuo e indissolúvel, mas poderia haver separação de corpos e de bens, dentro de determinados requisitos da lei, que era o chamado divórcio nessa época. Algo bem diferente do que se entende por divórcio nos dias de hoje e bem próximo ao chamado desquite, presente no Código Civil de 1916 e que vigorou até a Lei nº. 6.515 de 26 de dezembro de 1977, que estabeleceu o divórcio como rompedor do vínculo matrimonial. Fato é que no século XIX, no Brasil, sendo válido apenas o casamento religioso, que era considerado um sacramento, não havia causa que fosse capaz de romper o vínculo matrimonial e permitir novas núpcias. Contudo, esse vínculo poderia ser considerado inválido, por meio da verificação da nulidade do matrimônio. Seria essa a solução para o problema de Dona Rosa? Porque se a Igreja não se manifestasse sobre o caso e ela insistisse em se casar com Joaquim cometeria também ela crime de bigamia, tal qual seu primeiro cônjuge, ou, no mínimo, viveria em concubinato, situação também condenada pela Igreja, embora não houvesse um controle rígido sobre a situação, como constatado por Eni de Mesquita Samara: [...] uma parcela representativa da população preferia permanecer no celibato ou simplesmente aderia às uniões ilegítimas, apresentando uma certa resistência aos apelos da Igreja em sacramentar essas relações. Isso ocorria também entre as camadas mais pobres, onde a escolha do cônjuge obedecia a critérios bem menos seletivos e preconceituosos (SAMARA, 1986: 44). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 398 Aliás, foi essa pressão da Igreja que fez Zacarias Augusto Lopes se casar às pressas com Maria Carolina de Souza, sua concubina, após ter sido advertido por um bispo numa visita Pastoral. Depois de viver muitos anos concubinado com Maria Carolina, eles se casaram. Após um tempo, foram visitar parentes dela em S. Fidelis, quando Zacarias, com desgosto, recebeu a notícia de que sua esposa já era casada naquela localidade e não viúva, como declarava, e que o marido ainda era vivo ao tempo do casamento. Ou seja, Maria Carolina era bígama. Zacarias a abandonou e não se preocupou em regularizar sua situação de forma imediata. Mas o interesse surgiu, quando desejou se casar novamente e precisava que o vínculo anterior fosse desfeito, ou melhor, declarado inexistente, tendo em vista a ocorrência de bigamia de sua esposa. O próprio Zacarias, interessado na rapidez de sua causa, escreveu uma carta à autoridade eclesiástica responsável pela decretação da nulidade: Zacharias Augusto Lopes, residente na freguesia e arraial de S. Sebastião do Herval, deste Bispado de Mariana, vem expor humildemente a Vossa Reverendíssima o seguinte favor e pedir remédio oportuno. Quando em 1893 o Exmo. e Reverendíssimo Bispo deste Bispado fez a visita pastoral à freguesia de S. Antonio do Carangola achava-me por fraqueza humana vivendo com uma mulher chamada Maria Carolina de Souza, que se dizia viúva de um indivíduo chamado João, vulgo Cangica, que morava em São Fidelis do Bispado de Petrópolis. Profundamente tocado da graça e com desejos de corrigir minha vida por aquela ocasião da visita episcopal recebi em matrimônio essa mulher na presença de um dos Sacerdotes que acompanhavam o Exmo. Reverendíssimo Bispo que então dispensou os proclamas, a justificação de óbito de João Cangica etc. Não muito tempo depois tendo eu ido a S. Fidelis com a minha reputada mulher, tive a tristeza de saber pelos parentes dela que ainda era vivo João Cangica seu primeiro e legítimo marido o qual ainda hoje vive, segundo me consta. À vista disto e temente a Deus como sempre fui, repudiei a minha reputada mulher, separando-me dela e aconselhando-lhe que procurasse ao seu primeiro e legítimo marido e com ela nenhuma relação mais tive, nem mais a vi. Agora desejando contrair segundas núpcias, venho rogar e requisitar V. Exmª. Rn.ª, digo venho rogar a V, Exmª. Remª. a graça de requisitar a certidão do primeiro matrimônio de Maria Carolina de Souza com João Cangica, e em falta dela que se proceda uma justificação do dito casamento e profira sentença de nulidade do meu casamento com a dita mulher dispensando as formalidades do estilo porque sou pobre como afirmam os documentos juntos (AEAM, Libelos de divórcio e nulidade: número 3462). Nota-se como a Igreja, na prática, desconsiderava suas próprias regras, a fim de realizar, a todo custo, casamentos, considerados núcleos mais sólidos de dispersão da fé cristã. Embora tenha sido dito, anteriormente, que as denunciações eram um dos requisitos essenciais, bem como a necessidade de se comprovar o óbito de ex-cônjuge no caso de viúvo (a) que desejasse contrair segundas núpcias, o que se observa no caso de Zacarias foi Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 399 a preterição da legislação canônica em vigor, em prol do combate ao concubinato, considerado, na visão dos párocos, mal maior a ser corrigido em detrimento de sua própria burocracia. Percebe-se também que a bigamia e o adultério não eram prerrogativa dos homens. As mulheres não eram tão submissas como a história faz crer. Elas também tinham seus interesses e buscavam alternativas no meio social para alcançar seus objetivos. Maria Carolina, segundo testemunhas, tinha um péssimo comportamento e, por esse motivo, foi expulsa de casa pelo primeiro marido. Foi, então, para outra região e, a fim de buscar proteção, mentiu para Zacarias que era viúva, pois foi o artifício por ela encontrado para sobreviver na sociedade. Mas será que Dona Rosa e Zacarias conseguiram se casar novamente? O vínculo matrimonial poderia ser desfeito? Como dito anteriormente, o vínculo matrimonial era indissolúvel, mas poderia ser considerado inválido, e, neste caso, o casamento seria nulo, permitindo aos ex-cônjuges se casarem novamente. A própria Igreja mantinha uma regulamentação e cuidava dos casos de nulidade de casamento. A nulidade provinha da desobediência aos impedimentos previstos em lei: 294 Grave pecado cometem, e dignos são de exemplar castigo, os que sem o devido temor de Deus, em grande prejuízo de suas almas se casam, sabendo que há entre eles impedimento dirimente, com o qual não val o Matrimônio, e os contraentes ficam em estado de condenação. [...] [destaque nosso] (VIDE, 1853a: 122). Os impedimentos eram de dois tipos: impedientes, que eram aqueles que impediam a realização do matrimônio e os dirimentes, que “dissolviam” o vínculo matrimonial mesmo após sua realização, devido à infração grave, que levava à nulidade do casamento. Os padres incentivavam os fiéis a fazer as denúncias desses impedimentos, ainda que fossem parentes próximos dos nubentes impedidos, pois, do contrário, cometiam grave pecado. Os impedimentos dirimentes eram: erro da pessoa; condição de cativo; voto solene para Ordens Sacras; ordenação Sacra; cognação natural (entre consanguíneos dentro do quarto grau), espiritual (vínculo por batismo) ou legal (vínculo por adoção); crime cometido contra ex-cônjuge da viúva ou viúvo com quem se pretendia casar, havendo ou não adultério anterior; disparidade de religião; coação; ligame anterior (se um dos contraentes era casado por palavras de presente com pessoa ainda viva); pública honestidade (quando um dos nubentes tivesse prometido casamento para parentes de primeiro grau do outro, como irmão, irmã, filho ou filha da pessoa com quem pretendia se casar ou tivesse se casado por palavras presentes com qualquer parente até o quarto grau do nubente; parentesco por afinidade (até o quarto grau, não poderia o nubente se casar com parentes de ex-cônjuge morto); cópula ilícita (não poderia o nubente se casar com parentes consanguíneos até Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 400 segundo grau da pessoa com quem tivesse tido cópula ilícita); impotência perpétua para gerar filhos; rapto consentido ou não, em desagrado da família; ausência do pároco e de duas testemunhas (VIDE, 1853a: 116-119). Segundo Maria Beatriz Nizza da Silva, quando a Igreja estabeleceu as diferenças entre impedimentos dirimentes e impedientes, tornou possível o surgimento dos processos de nulidade de matrimônio no juízo eclesiástico (SILVA, 1984: 243). O crime de bigamia estava ligado ao impedimento do ligame, ou seja, “[...] se algum dos contraentes é casado por palavras de presente com outra mulher, ou marido, ainda que o Matrimônio seja somente rato, e não consumado, vivendo o tal marido, ou mulher, não pode contrair matrimônio com outrem, e se de fato o contrair é nulo” (VIDE, 1853a: 118). Esse é o impedimento que se aplica aos casos estudados. É como se o vínculo nunca tivesse existido, devido à infração grave de uma norma cogente, que impedia a bigamia ou a poligamia. Na seara criminal, já se pôde observar que a conduta era considerada crime e no campo do direito privado, a conduta poderia levar à nulidade do segundo matrimônio contraído. O processo de nulidade de matrimônio era de competência do Juízo Eclesiástico, pois, como foi visto, a Igreja Católica era a responsável pela regulamentação do vínculo matrimonial e as matérias a ele correlatas. Em 24 de janeiro de 1890, foi promulgado o Decreto nº. 181379, que estabeleceu o casamento civil como o único válido em território brasileiro. Entretanto, devido à cultura religiosa arraigada na sociedade, as pessoas ainda procuravam o Juízo Eclesiástico, após essa data, para anularem seus casamentos católicos e poderem formalizar um novo matrimônio tanto no campo cível, quanto no religioso. O primeiro ato do processo era a apresentação do libelo, peça em que o (a) autor (a) expunha o motivo do requerimento de nulidade: Diz Augusta Elisa da Costa Moreira filha legítima do finado João da Costa Moreira e de D. Maria Porcina da Costa Moreira natural da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição da Cidade do Sabará e residente nesta de N. Senhora do Pilar da cidade de S. João d’El Rey, ambas na Província de Minas Gerais, Bispado de Mariana que a bem de seu direito e com o fim de obter sentença de nulidade de matrimônio contraído entre a suplicante e Julio Augusto Saraiva Pinheiro, filho legítimo de Antonio Joaquim Pinheiro e D. Carolina Candida Saraiva Pinheiro, natural da Freguesia de S. Gonçalo, precisa ser admitida a justificar perante V. S. R.ma 379 Informações disponíveis em <http://www6.senado.gov.br/legislacao/DetalhaDocumento.action?id=65368>. Acesso em 09 de maio de 2012. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 401 1º Que a justificante é a própria e a mesma filha legítima do finado João da Costa Moreira e D. Maria Porcina da Costa Moreira, natural de Sabará e residente nesta Cidade de São João d’El Rey: 2º Que no dia sete de janeiro de mil oito centos e oitenta e seis, às dez horas da noite em Oratório particular, ereto na casa de sua Mãe D. Maria Porcina da Costa Moreira recebeu em matrimônio Julio Augusto Saraiva Pinheiro em presença do Reverendo Cônego Francisco de Paula da Rocha Nunan, sendo testemunhas além de outras pessoas, o Reverendo Padre João Baptista do Sacramento, Doutor José Moreira Bastos, Médico, e D. Rita de Cássia Pinto de Carvalho: 3º Que Julio Augusto Saraiva Pinheiro é o mesmo filho legítimo de Antonio Joaquim Pinheiro e D. Carolina Candida Saraiva Pinheiro, e casado com D. Carolina Domiciana Condet a dezoito de janeiro de mil oito centos e setenta e três na Matriz de S. João Baptista de Niterói na presença do Reverendo Antonio Mendes Fernandes de Paiva de licença do Reverendo Vigário dessa Freguesia Antonio Gomes Xavier e das testemunhas Clemente José de Góes Viana e Antonio Augusto Saraiva: 4º Que este casamento de Julio Augusto Saraiva Pinheiro não estava dissolvido quando ele recebeu a justificante em matrimônio, tendo assim cometido o crime de bigamia, sendo condenado por sentença do Tribunal do Júri do Termo de São João d’El Rey de trinta de Dezembro de mil oitocentos e oitenta e seis no grau máximo das penas do artigo duzentos e quarenta e nove do Código Criminal [6 anos de prisão com trabalho e multa]: 5º Que o próprio Julio Augusto Saraiva Pinheiro já referido está cumprindo a sentença também referida na Cadeia desta Cidade de S. João d’El Rey. Assim pois a justificante P. a V. S. R.ma que autuada esta e justificada quanto baste no dia, hora e lugar que for designado e com citação do justificado preso na Cadeia desta Cidade, seja julgada a presente justificação por sentença e entregue o original à justificante, ficando traslado para ela fazer o uso que lhe convier (AEAM, Libelos de divórcio e nulidade: número 3352). Esse libelo relata um caso típico de bigamia, gerando efeitos tanto no campo cívelcanônico (nulidade do matrimônio), quanto no penal (condenação do bígamo). Augusta Elisa casou-se com Júlio Augusto, sem saber que ele já era casado com Carolina Domiciana em outra Freguesia. Embora não tenha nenhum motivo explícito em vista, como uma nova proposta de casamento, Augusta Elisa busca o Juízo Eclesiástico para anular seu casamento, porque, provavelmente era “cristã temente a Deus e mulher honesta” (expressões comuns, à época, nos processos eclesiásticos, para descrever as mulheres) e sabia que, se permanecesse casada com um bígamo, cometeria “grave pecado”. Também não fazia sentido, numa sociedade que valorizava tanto o casamento, permanecer numa união inválida, sendo que teria oportunidades de se casar novamente, principalmente se Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 402 tivesse um bom dote. Júlio Augusto sofreu as duas consequências previstas pela bigamia: teve seu segundo casamento declarado nulo e foi condenado à pena máxima pelo crime cometido, por isso se encontrava na Cadeia de São João Del Rey. O libelo era apresentado em audiência, após requerimento prévio de citação para que o réu também comparecesse, pois ele tinha direito de apresentar sua contrariedade ao libelo. Após esse ato, ou havendo revelia do réu, ocorriam as dilações para produção de prova (VIDE, 1853b: 32-59). Até a instrução, o processo corria na paróquia em que residiam as partes e a competência era do Vigário da Vara. O processo, posteriormente, era remetido para o Vigário Geral. Nos casos relatados aqui, o Vigário Geral residia no Bispado de Mariana e coordenava-o, e era para lá que eram enviados os processos para decisão final. Normalmente, o Vigário Geral pedia que se concedesse vista ao Defensor do Matrimônio e, em alguns casos, também ao Promotor Eclesiástico, para emitirem seus pareceres. O primeiro, como o próprio nome diz, defendia a manutenção do vínculo, por ser perpétuo e indissolúvel, a todo custo, a não ser que as provas fossem incontestáveis. O segundo atuava como custus legis, alegando nulidades no processo, principalmente aquelas detectadas quando havia revelia. Dos casos relatados, tanto Dona Rosa, quanto Zacarias e Augusta Elisa tiveram a nulidade de seus matrimônios decretada, pois se considerou que a bigamia foi suficientemente comprovada para, sendo ela causa explícita de nulidade, prevista em lei, levar ao desfecho esperado pelos autores. Augusta Elisa, enganada pelo marido, enfim se viu livre do falso casamento, para poder seguir sua vida. O processo de Zacarias tramitou rapidamente e logo ele pôde desposar sua nova pretendente. O curioso é que, enquanto não possuía objetivos de se casar novamente, ele não se preocupou com o fato de ainda ser casado com sua antiga concubina. Mas quando surgiu a possibilidade, não titubeou para procurar o Juízo Eclesiástico, a fim de anular seu primeiro casamento por bigamia da sua ex-consorte, contando com a interseção do vigário de sua paróquia, muito empenhado em conseguir a anulação, para evitar que Zacarias se concubinasse com a nova pretendente. A agilidade do processo de Zacarias não esteve presente no caso de D. Rosa, que desejava fortemente se casar com Joaquim de Queiroz. Como a sentença demorou muito, as previsões do vigário local se concretizaram. O casal passou a viver em concubinato, antes que a situação do casamento anterior fosse regularizada, embora o marido bígamo já estivesse, inclusive, cumprindo pena pelo crime, como relatado pelo vigário: Passo ao conhecimento de V.Ecia. que os oradores Joaquim Ramos de Queiroz e Rosa Augusto Ferreira da Silva, esta bigamia [sic] com João Rodrigues de Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 403 Brito, e já V.Ecia.Rma. tendo ciência d’isto, por já se achar este processo aí nessa Secretaria, e já tendo se mandado aí em dias do mês de outubro, um portador buscando a sentença d’estes, e sendo esta prometida de vir, e não tendo assim realizado, vou com este cientificar a V.Ecia. de que estes oradores acham-se amasiados escandalosamente, e como eu detivesse este escândalo o quanto me fosse possível, por isso julgo-me sem responsabilidade para com Deus, e continuando a esperar que V.Ecia. se digne a dar a sentença nesses autos aí guardados a tantos meses (AEAM, Libelos de divórcio e nulidade: número 3389). Alguns párocos se empenhavam muito para evitar o concubinato e buscar a regularização da vida marital de seus fiéis. Mas, nesse caso, o vigário Francisco de Paula não obteve sucesso, pois o casal passou a co-habitar, antes que a sentença de nulidade viesse da instância superior. Num contexto em que as pessoas deveriam encontrar espaços de atuação e o casamento era uma forma familiar restrita, burocrática e indissolúvel, a bigamia poderia significar a sobrevivência de uma pessoa, uma relação de aceitação recíproca e consentida ou, até mesmo, a realização de uma satisfação pessoal, tendo em vista que o vínculo matrimonial não se dissolvia. Isso porque o casamento no século XIX significou, muitas vezes, a realização de interesses familiares, em detrimento do afeto entre os nubentes. Por isso, o concubinato e a bigamia representaram, em alguns casos, a busca da realização pessoal, tendo em vista a indissolubilidade do vínculo matrimonial. A verdadeira concretização dos desejos estava, portanto, centrada na escolha pessoal e consciente, enfrentando todos os preconceitos e convenções da época, independentemente da forma familiar escolhida. Referências Bibliográficas: ALMEIDA, Cândido Mendes de (org). Ordenações Filipinas. Vols. 1 a 5. Rio de Janeiro, 1870. Disponível em <http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm>. Acesso em 09 de maio de 2012. BRASIL. Código Penal. Decreto nº. 847 de 11 de outubro de 1890. Promulga o Código Penal. Disponível em <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ ListaPublicacoes.action?id=66049>. Acesso em 09 de maio de 2012. IMPÉRIO BRASILEIRO. Código Criminal do Império. Lei de 16 de dezembro de 1830. Manda executar o Código Criminal. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-16-12-1830.htm>. Acesso em 09 de maio de 2012. DEL PRIORE, Mary. Mulheres no Brasil Colonial. São Paulo: Contexto, 2000. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 404 LORDELLO, Josette Magalhães. Entre o Reino de Deus e o dos Homens: a secularização do casamento no Brasil do século XIX. Brasília: Editora UNB, 2002. MIRANDA, Pontes de. Fontes e evolução do direito civil brasileiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981. SAMARA, Eni de Mesquita. A família brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1986. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento no Brasil colonial. São Paulo: T. A. Queiroz/EDUSP, 1984. VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Typographia 2 de dezembro de Antonio Louzada Antunes, 1853a. VIDE, Sebastião Monteiro da. Regimento do Auditório Eclesiástico do Arcebispado da Bahia. Metrópole do Brasil e da sua Relação, e oficiais da Justiça Eclesiástica, e mais causas que tocão ao bom Governo do dito Arcebispado, ordenado pelo ilustríssimo senhor D. Sebastião Monteiro da Vide. 5º Arcebispo da Bahia e do conselho de sua Magestade. São Paulo: Na Typografia 2 de dezembro de Antonio Louzada Antunes, 1853b. Fontes manuscritas: Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana (AEAM). Libelos de divórcio e nulidade. Partes: Augusta Elisa da Costa Moreira e Júlio Augusto Saraiva Pinheiro. Comarca de Rio das Mortes, São João Del Rey, 1888. Número 3352. Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana (AEAM). Libelos de divórcio e nulidade. Partes: Rosa Ferreira da Silva e João Rodrigues de Brito. Mariana, 1894. Número 3389. Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana (AEAM). Libelos de divórcio e nulidade. Partes: Zacarias Augusto Lopes e Maria Carolina de Souza. Freguesia de São Sebastião do Herval, 1900. Número 3462. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 405 A conformação da elite marianense e sua relação com a força armada particular: 1707-1736 Izabella Fátima Oliveira de Sales Doutoranda em História pela UFJF / CAPES izabellaieps@yahoo.com.br Resumo: Esse trabalho pretende analisar as estratégias utilizadas pela “nobreza da terra” do termo de Mariana, entre os anos de 1707 e 1736, no sentido de definir, manter ou elevar sua posição na hierarquia social. Nesse processo, os indivíduos recorriam, especialmente, à prestação de serviços à Coroa - como a contenção de revoltas ou o desmantelamento de quilombos, por exemplo - atuação que requeria a posse de uma força armada particular. Palavras Chave: Armas, poder, elite Abstract: This work intends to analyze the strategies used by the "nobility of the land" in the Termo de Mariana, between the years 1707 and 1736, to define, maintain or increase their position in the social hierarchy. In this process, individuals resorted, especially, to the provision of services to the Crown - as the containment of riots or dismantling of quilombos, for example - work that required the possession of a private armed force. Key Words: Weapons, power, elite Esse trabalho pretende analisar as estratégias utilizadas pela elite do termo de Mariana no sentido de definir, manter ou elevar sua posição na hierarquia social. O período abordado pela pesquisa inicia-se no ano de 1707 e estende-se até 1736, tal recorte temporal justifica-se por abranger o processo de conquista e povoamento da região, onde se destaca a atuação de indivíduos cujas trajetórias foram definidas a partir de sua atuação neste contexto. Ademais, este momento é marcado por vários conflitos, que envolviam disputas por lavras, terras cultiváveis, lugares de mando, entre outros fatores. Acrescenta-se a esse quadro a instauração das instituições representativas do poder reinol - como as câmaras e as ordens militares, representadas pelos Dragões e pelas Companhias de Ordenança, além do próprio governo da capitania de Minas Gerais, cuja constituição se deu no ano de 1720. Nesse processo, os indivíduos recorriam, especialmente, à prestação de serviços à Coroa, como a contenção de revoltas ou o desmantelamento de quilombos, por exemplo, atuação que requeria a posse de uma força armada particular. Estudos recentes vem demonstrando que na América Portuguesa, a dinâmica da economia política dos privilégios,380 tinha como um de seus principais fundamentos a atividade de desbravamento e ocupação das regiões inóspitas pelos fiéis vassalos do Rei, ação que 380 Este texto foi trabalhado por Antonio Manuel Espanha ao analisar as relações de poder que se estabeleciam entre Portugal e suas conquistas. ( HESPANHA, 2001). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 406 possibilitava a efetivação e a ampliação das margens de poder da Coroa sobre território Americano e que tinha como contrapartida todo um conjunto de recompensas que favoreceu em grande medida o processo de constituição das elites coloniais brasileiras. O processo de desbravamento, povoamento e exploração dos sertões, inclusive os que compreendiam a região mineradora, envolveu diretamente a questão da difusão de armas e o controle exercido pelas autoridades locais e metropolitanas sobre as mesmas. A posse de armas, naquele período, contribuía para que os conquistadores pudessem se defender dos perigos encontrados nas matas e nos caminhos - como os embates contra o gentio, a defesa contra animais ferozes, entre outros fatores. No caso das Minas setecentistas, a posse e o uso de armas foi de fundamental importância na disputa entre os grupos pelas melhores lavras. Assim, a prestação de serviços à Coroa através do uso de uma força armada particular contribuiu para a constituição de uma nobreza da terra nas diversas capitanias da América Portuguesa, na medida em que tais serviços eram retribuídos pelo poder metropolitano através de diversos tipos de privilégios, como a ocupação de cargos camarários, a concessão de patentes militares e de títulos nobiliárquicos, por exemplo. (SALES, 2009) Afim de identificarmos os indivíduos que teriam maior poder de agir ao lado da Coroa em caso de eventualidades, procuramos definir a dinâmica de distribuição das armas no termo de Mariana, utilizando como base os dados retirados da análise de 145 inventários existentes no Arquivo da Casa Setecentista de Mariana, referentes ao período compreendido entre os anos de 1713 a 1736. É importante salientar que a difusão dos armamentos não estava relacionado apenas à sua importância enquanto instrumento de ataque e defesa, mas também ao fato de representar um elemento de diferenciação social. Ademais, a definição dos grupos que compunham a sociedade marianense naquele período representa uma tarefa bastante complicada, pois, os inventários deixam abertas várias lacunas, como por exemplo, o fato de haver a possibilidade da patente de um indivíduo não ser mencionada no processo. Além disso, a distinção social era uma característica que não se definia apenas pela posse de bens materiais. Tais dificuldades nos levaram a adotar alguns critérios que a historiografia vem definindo como princípios fundamentais para a constituição das elites locais, são eles: as patentes militares, a ocupação de cargos camarários e a posse de cabedais. (ALMEIDA, 2007). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 407 No que diz respeito a essa última variável, consideraremos um elemento que correspondia a uma parte significativa dos bens inventariados, ou seja, o número de escravos. Segundo Francisco Vidal Luna, (1982) durante o período de exploração aurífera na região das Minas, a posse da mão-de-obra cativa era primordial para o processo de acumulação de riquezas, visto que, os escravos eram responsáveis pela realização dos serviços destinados a prática da mineração- tanto no que se refere à extração do metal propriamente dito, como na construção das estruturas físicas exigidas por tal atividade. Além disso, as datas eram distribuídas pela Coroa de acordo com o potencial da força de trabalho apresentada pelo senhor. (Ibidem, p.6-9) Tomando então, como base os elementos que podem nos ajudar a identificar os grupos privilegiados- seja pelas condições econômicas ou pelo status correspondente a cada indivíduo – procuramos diferenciar a posse de armas entre a elite e a população em geral. Patentes Militares: Entre um total de 145 indivíduos inventariados381, verificamos a presença de 21 possuidores de patentes militares, que por sua vez, detinham 154 armas, o que correspondia a uma média de 7,3 armas para cada um deles. Esse valor está bem acima do número médio por inventariado, que é de 3,4. Dessa maneira, percebe-se a existência de uma estreita relação entre posse de patente militar e número de armas. Também observamos os tipos de armas pertencentes aos possuidores de patentes e conseguimos definir algumas proporções. Encontramos 29 espadas entre os bens materiais deixados por eles, o que determinava uma média de 1,4 para cada, número que também está acima da média geral de 0,7 espadas por inventariado. Quanto às espingardas e pistolas, a relação entre patenteados e inventariados segue os parâmetros descritos acima. Encontramos 54 espingardas e 24 pistolas, ou seja, 2,5 e 1,1 por oficial respectivamente. Fica claro que esses dados também estão acima da média geral que é de 1,0 espingardas e 0,5 pistolas por inventariado. Além de espingardas, espadas e pistolas, foram encontrados outros tipos de armas nos arsenais constituídos pelos patenteados, entre elas temos clavinas (9 unidades), bacamartes (10 unidades) e catanas (5 unidades). Essa última, não foi oúnico tipo de arma branca descrita nos inventários, pois, achamos também espadim, bastão, adaga, faca, baeta e traçado, entretanto, para cada um desses modelos contabilizamos entre uma e duas unidades. 381 Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Marina Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 408 Acreditamos que a relação entre patentes e posse de armas se deve à importância das mesmas para que esses indivíduos pudessem prestar serviços à Coroa, especialmente no que se refere à conquista e povoamento dos sertões, à defesa do território, à luta contra o gentio e quilombolas e à contenção de revoltas. Além disso, no caso de Minas Gerais a força armada foi essencial na disputa pelas melhores lavras e na luta pelos lugares de mando. A concessão ou a manutenção de patentes militares seria uma forma de retribuição dada pelo governo em reconhecimento aos serviços prestados por seus vassalos e esse processo significava um espaço de negociação entre o grupo e o centro de poder. Ocupação de cargos camarários: A observação do perfil apresentado pelos camaristas também foi outro caminho que procuramos traçar para alcançarmos o objetivo de descobrir as principais características referentes à posse de armas no universo dos grupos sociais privilegiados. Dentre os 145 inventários analisados, dez se referiam aos bensdeixados por oficiais que ocupavam cargos na municipalidade382. Foram encontradas para esse grupo um total de 62 armas, o que nos permite definir uma média de 6,2 armas para cada indivíduo, número que ultrapassa o valor encontrado para a média geral que é de 3,4. As espingardas aparecem em maior quantidade, somando um total de 22 unidades, o que corresponde a uma média de 2,2 armas para cada oficial, número que está acima da média geral por inventariado que é de 1,0 e abaixo da média para patenteados que é de 2,5. O segundo lugar é ocupado pelas 11 espadas contabilizadas, indicando a proporção de 1,1 por indivíduo, que por sua vez está acima da média geral que é de 0,7 e abaixo da média para patenteados que é de 1,4. A seguir vem a pistola representada por 6 unidades, equivalendo assim a uma proporção de 0,6 unidades por indivíduo. Comparando esses dados com aqueles encontrados para os patenteados, percebemos que os oficiais da câmara estão abaixo da média em relação à posse desse tipo de arma, contudo, permanecem acima da média geral que é de 0,5. Deste modo, no contexto analisado a presença na Câmara parece ocupar posição secundária em relação à posse de patente, no que se refere à posse de armas. 382 Com relação a esses camaristas, é importante salientar que nos inventários de três deles não havia menção à posse de patentes militares. Dessa maneira, percebemos que os dados referentes a esse grupo serão muito aproximados daqueles que verificamos ao analisar o perfil dos patenteados. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 409 Ao refletirmos sobre os indícios trazidos pelos dados acima mencionados, a pergunta sobre a importância que a posse de armas constituía na trajetória desses camaristas é bastante óbvia. Sendo assim, para que seja possível encontrarmos algumas respostas, o diálogo com trabalhos que tratam do governo das municipalidades torna-se muito significativo. A historiografia que se dedica ao estudo do período colonial brasileiro vem se debruçando sobre o poder desempenhado pelas câmaras neste período e como a possibilidade de ocupação destes postos foi importante para a conformação das elites locais. Essa instituição desempenhava funções políticas, administrativas, judiciais e assistenciais, apresentando-se ainda como um importante veículo de negociação entre a localidade e a Coroa (VENÂNCIO, 1998). As Câmaras se constituíram em um dos pilares fundamentais da sociedade portuguesa e o acesso aos seus cargos era monopolizado pela nobreza da terra. O Estado agia para que os cargos nas milícias e nas ordenanças, assim como os ofícios no governo da municipalidade, fossem ocupados somente por esses homens. Eram muitasas restrições sobre a elegibilidade, desta maneira, previa-se que os selecionados estivessem entre aqueles que já haviam desempenhado cargos no governo da República, o que também permitia o acesso aos seus filhos e netos (BICALHO, 2001). Observando esse contexto, nos vem a seguinte questão: a ocupação de ofícios na câmara, tanto nas conquistas quanto no centro do império, possuía o mesmo efeito no processo de nobilitação? Nuno Monteiro aponta para um alargamento do conceito de nobreza, que passa a se relacionar mais com a qualidade do que com a função de cada um. Esse fato teria sido uma consequência do crescimento dos estratos sociais urbanos. Para evitar que o conceito se tornasse banal, a doutrina jurídica criou um novo estatuto diferenciando aqueles que ocupavam as novas funções sociais. E é dessa forma que surge o Estado do Meio, onde os indivíduos não possuíam a distinção da antiga nobreza, mas se destacavam em relação ao povo mecânico. Tal ascensão se dava pela prática de ações valorosas em benefício do Império e pelo exercício de cargos da República, ou seja, do governo da comunidade. (MONTEIRO, 1993) Partindo das proposições desse autor, Bicalho comenta que em Portugal o acesso aos mais altos graus de nobreza era dado pela participação nos cargos das instituições centrais da monarquia. Geralmente, quem conseguia atingir este patamar fazia parte da nobreza de sangue. Os ofícios na Câmara não tinham efeito comparável aos hábitos de cavaleiro das Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 410 ordens militares, no sentido de auferir projeção social, pois a composição da nobreza institucional não se fazia entre os indivíduos considerados nobres no plano do direito. Nas pequenas localidades até mesmo os mecânicos podiam ocupar as vereações. As relações de força definidas a partir do contexto de cada região é que determinavam o acesso aos cargos das Câmaras. Dessa maneira, o reconhecimento dos camaristas enquanto nobres teria um caráter local. A historiadora brasileira relativiza esta ideia demonstrando a especificidade das conquistas, argumentando que neste caso, os postos das vereanças seriam um meio fundamental para o processo de nobilitação, de obtenção de privilégios e honras, na medida em que os homens da terra não conseguiam atingir as principais distinções da monarquia (BICALHO, 2001). No que diz respeito ao caráter local da nobilitação na Colônia, Almeida afirma que, para alguns membros da elite mineira do século XVIII, foi possível o reconhecimento dessa condição no âmbito do Império. Mas, para isso, era necessário que os súditos se constituíssem enquanto nobreza da terra, estabelecessem laços fortes com o centro do Império - através do sistema de casamentos e do envio de filhos ou aparentados para o reino - e mantivessem relações de proximidades com os principais representantes do poder metropolitano, como governadores e vice-reis (ALMEIDA, 2007). Mesmo a câmara não auferindo diretamente um reconhecimento da condição de nobreza que ultrapassasse o âmbito local, ela se constitui em um dos pontos fundamentais do caminho a ser traçado em busca de um reconhecimento a nível Imperial, mesmo porque apenas os “principais” de cada terra ascendiam a estes postos. Sendo assim, a ocupação de um cargo nessa instituição era, sem dúvida, um forte elemento de negociação entre os interesses locais e a monarquia. O fato dos inventariados ocuparem cargos na câmara da Vila de Ribeirão do Carmo, além de indicar que os mesmos atuaram no processo de conquista do território383, demonstra que eles seguiram as estratégias comumente traçadas por aqueles que procuravam se distinguir em uma sociedade regida pela lógica de Antigo Regime. Era a atuação na conquista que legitimava o estatuto desse grupo, e neste sentido a posse de armas era fundamental, pois, como já foi dito anteriormente, os perigos do sertão eram imensos e o uso da força se fazia fundamental para a definição do poder naquela sociedade 383 Sobre esse aspecto destacamos o estudo de Antonio Carlos Jucá de Sampaio, ao analisar a formação da comunidade mercantil carioca, no período colonial. O autor argumenta que a antiga nobreza defendia que por atuarem na conquista do território, tinham direito de exercer o poder político. (SAMPAIO, 2006). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 411 em constituição. Ademais, em momentos de distúrbios que poderiam colocar em risco a ordem estabelecida, o braço armado dos vassalos era de fundamental importância para a manutenção dos interesses imperiais e a prestação desses serviços se apresentava como um elemento indispensável no processo de negociação com a Coroa pela busca de privilégios. Destaca-se, pois, a atuação na conquista e a manutenção da governabilidade régia como pilares que assentavam o poderio deste grupo. Posse de escravos: De acordo com o já mencionado estudo de Luna (1982), nas Minas setecentistas prevaleciam as unidades produtivas onde a mão-de-obra era constituída por 5 ou menos cativos, fazendo-se minoria aqueles proprietários de grande escravaria. Dessa maneira, selecionamos entre os inventariados, aqueles que possuíam 40 escravos ou mais e consideramos esse fator como indicativo de riqueza. Entre os 145 inventariados, encontramos um total de 19 senhores (13,1%) com plantéis que apresentavam tais características e esses, por sua vez, possuíam uma parte significativa do montante das armas discriminadas nos processos, mais precisamente 174. Dessa maneira, temos uma média de 9,15 armas para cada grande proprietário de escravos, número que está bem acima da média geral (3,4) e dos valores referentes aos patenteados (7,3) e camaristas (6,2). Mais uma vez a espingarda constitui elemento de destaque diante dos arsenais verificados, visto que, foram contabilizados 65 exemplares, o que nos leva a apresentar o valor aproximado de 3,5 para cada senhor. A seguir temos 34 espadas, com uma média de 1,8 por indivíduo, acompanhadas por 29 pistolas que garantiam a proporção de 1,5 armas para cada senhor. Essas proporções, que dizem respeito às armas que apresentavam uma maior recorrência entre os bens descritos nos inventários de uma forma geral, demonstram que as médias desse último grupo estavam bem acima daquelas encontradas para os perfis anteriores. Diante desses indícios colocam-se várias questões: os grandes proprietários possuíam muitas armas para evitar a insubordinação dos escravos? A quantidade de armas era maior quando o número de escravos se elevava porque os senhores tinham o costume de armar seus cativos, ou seja, o poderio bélico desses indivíduos dependia da conjugação desses dois fatores? O fato dos senhores armarem seus escravos pode representar um grau significativo de negociação entre os mesmos? O poderio bélico dos principais da terra aumentava seu poder de barganha com a Coroa? Tais questionamentos nos remetem a Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 412 estudos que tratam da questão da escravidão no Brasil, onde aparecem visões que nem sempre estão em acordo. Alguns historiadores da década de 1960 e 1970 apontaram a violência como um dos instrumentos principais para a dominação do escravo pelo senhor. Essas perspectivas procuravam construir interpretações generalizantes sobre as relações de poder que se estabeleciam em uma sociedade escravista, não conseguindo atingir as especificidades e a própria experiência dos cativos. Esses eram vistos como coisa, ou seja, indivíduos, cujo destino seria completamente definido pelos interesses senhoriais, caso os mesmos ão se opusessem ao cativeiro, fugindo, formando quilombos ou se rebelando contra seus proprietários (CARDOSO, 1962; GORENDER, 1990). Na década de 1980 surgiram novos olhares sobre a questão da escravidão no Brasil. Essas pesquisas valorizavam as experiências dos cativos e suas ações passaram a ser consideradas como elementos fundamentais para a compreensão da escravidão e de suas transformações. Segundo Silvia Lara “muitos estudos voltaram-se então para a análise das práticas cotidianas, costumes, enfretamentos, resistências, acomodações e solidariedades, modos de ver, viver, pensar e agir dos escravos.”(2005, p.25) Neste sentido, além dos grandes quilombos e das insurreições, as pesquisas também passaram a analisar as lutas cotidianas, o que permitiu uma rearticulação das dimensões da resistência escrava. Esses estudos apontam para uma diversidade de relações que envolviam a experiência do cativeiro e a conquista da liberdade. Neste caso, a ação dos escravos variava entre a negociação e o conflito. E no que diz respeito aos aspectos metodológicos nota-se a utilização de novas fontes e procedimentos analíticos que atingem variantes nas ações de resistência, assim como espaços de autonomia para a formulação de uma cultura escrava. Ademais, a perseguição das estratégias estabelecidas por cativos e libertos permite a compreensão dos significados e das transformações contextuais que marcaram tais estratégias. (Ibidem) A mesma autora questiona a não abordagem da escravidão pelos historiadores que se dedicam ao estudo do período colonial embasados em novas perspectivas. Como essas pesquisas estão voltadas para a elite, não teríamos a construção de conhecimento que se dedique à história social (Ibidem). Diante dessa limitação é conveniente recorrer a trabalhos que tratam desses aspectos, mesmo que de forma tangencial e contribuem para o desenvolvimento de nossa pesquisa. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 413 Um texto de João Fragoso que se refere especialmente à nobreza, mas que ainda assim traz novos olhares para a questão da escravidão no período colonial é A nobreza vive em Bandos. (2003) Neste trabalho, o autor se dedica à análise de importantes elementos que permitem compreender não só as relações entre senhores e escravos, mas também as experiências e os interesses vividos pelos últimos. Seu objetivo é estudar a formação da elite carioca no século XVII e para isso investiga as redes de reciprocidade estabelecidas pelo grupo – não só entre si – mas também com outros segmentos da população, como índios e escravos. Ao se debruçar sobre os laços estabelecidos entre senhores e escravos, Fragoso argumenta que para a interpretação da escravidão é preciso considerar o conflito e a tensão, visto que as fugas, formação de quilombos e revoltas foram recorrentes. Entretanto, não é possível fechar os olhos para os espaços de negociação que se faziam presentes. (FRAGOSO, 2003) Observando a atuação de alguns bandos da nobreza, o autor verificou que os escravos se sentiam enquanto parte dos mesmos. Isso se explica porque em vários momentos houve uma convergência de interesses entre senhores e cativos. Na cidade do RJ era comum que os escravos constituíssem famílias e tivessem espaço para o cultivo de roças usadas para seu sustento. O historiador também verificou que nos momentos de confronto entre os bandos, os senhores armavam seus escravos para a luta. Neste caso, o que temos não é apenas a vontade do proprietário em defender seus bens e o seu lugar de poder na sociedade, mas o interesse dos cativos em garantir a manutenção de seus roçados. Estes fatos representam um grau significativo de negociação na senzala. (Ibidem) Fica claro através da presente pesquisa, que o reconhecimento do escravo enquanto tal, não se fazia exclusivamente pela violência, mas tinha na política a sua principal característica, pois o escravo deveria se reconhecer em uma condição de qualidades inferior à de seus senhores. (Ibidem) No processo de negociação, ambas as partes estavam sempre ganhando e ao mesmo tempo abrindo mão de algo. Por exemplo, ao conceder o direito de cultivar roças aos seus escravos, o senhor perdia espaço de produção e tempo de mão-de-obra trabalhando em seu benefício direto. Entretanto, o escravo agraciado se acomodaria ao cativeiro e se constituiria em um braço armado para lutar ao seu lado. Acreditamos que em Minas Gerais essas condições também podem ser percebidas. Os laços definidos pela nobreza da terra com seus escravos foram fundamentais para que os primeiros pudessem prestar serviços à Coroa, recebendo em troca disso, privilégios, Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 414 honras e mercês, elementos que lhes confiariam um caráter de distinção na sociedade, pois a ação dos senhores dependia da possibilidade que os mesmos tinham de confiar armas aos seus cativos. Análises que se focam na trajetória de alguns indivíduos são especialmente relevantes para um maior entendimento sobre essa questão. Ao estudar a elite mineira setecentista, Carla Almeida afirma que o Coronel Caetano Álvares Rodrigues usou sua bem-sucedida trajetória militar para acumular um número considerável de serviços prestados, que depois foram usados na negociação com a Coroa pela concessão de mercês. Como já foi citado, entre suas várias atuações é interessante mencionar, para o objetivo deste texto, a que ocorreu durante a Revolta de Vila Rica em 1720: atendendo ao pedido do Conde de Assumar, atuou na contenção do conflito e na punição dos culpados e para isso contou com a ajuda de 20 negros amados (ALMEIDA, 2006). Acreditamos assim, que em Minas Gerais o poderio bélico senhorial não era utilizado apenas para subjugar os escravos ao cativeiro, pois, verifica-se que os laços de reciprocidade definidos pela nobreza da terra com seus escravos foram fundamentais para que os primeiros pudessem prestar serviços à Coroa, recebendo em troca disso, privilégios, honras e mercês, elementos que lhes confiariam um caráter dedistinção na sociedade, na medida em que a ação dos senhores dependia da possibilidade que os mesmos tinham de confiar armas aos seus cativos. A análise dos dados presentes nos inventários permite-nos constatar que havia uma estrita relação entre patentes militares, número de armas e de escravos, posse de cabedal considerável, local de moradia e, em alguns casos, a ocupação de cargos camarários. Através dessa comparação foi possível traçar um tipo de indivíduo que reunia as condições de prestar serviços para a Coroa, o que lhe garantiria o espaço de barganha necessário para a aquisição de privilégios, cargos e honras, elementos essenciais no processo de distinção social. Essa é uma generalização que obviamente marginaliza algumas especificidades. Entretanto, sua validade consiste em nos informar sobre o universo de possibilidades que envolvia os sujeitos, no período e na região sobre a qual se dedica essa pesquisa. A partir desse quadro tivemos a possibilidade de selecionar a trajetória do Capitão Mor Pedro Frazão de Brito, que pode nos oferecer uma análise mais aprofundada das questões propostas. Entendemos que, somente uma investigação mais pontual é capaz nos informar sobre parte das especificidades da vida colonial, como o processo de Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 415 hierarquização da sociedade e o grau de independência frente aos pressupostos coloniais, visto que as relações entre metrópole e colônia eram marcadas pela constante negociação. O perfil apresentado pelo Capitão - Mor Pedro Frazão de Brito também nos fornece significativos indícios sobre a importância das armas como elemento de distinção social e como instrumento indispensável que compunha as bases necessárias para a prestação de serviços à Coroa e consequentemente para o acúmulo de privilégios e honrarias. Natural de São Paulo, filho legítimo de Manuel de Brito Nogueira e Ana Proença, estava casado no ano de 1702 com Izabel Buena da Silva, na Vila de Parnaíba. Ainda no final do século XVII atuou no processo de exploração das mias de Curitiba edepois partiu para a grande empreitada do descobrimento das Minas, destacando-se como um dos principais povoadores da região do Ribeirão do Carmo (FRANCO, 1989). Além disso, tudo indica que a participação desse sertanista não ficou restrita apenas ao desbravamento do sertão e seu respectivo povoamento, pois, alguns relatos destacam que durante a Guerra dos Emboabas este potentado local teria oferecido forte resistência contra o ataque de Manoel Nunes Viana à região de Guarapiranga, derrotando-o, finalmente, no arraial do Carmo e contribuindo assim para o desmantelamento das investidas dos forasteiros naquela região (Ibidem). Apesar de não termos encontrado outras evidências relacionadas a esse episódio e de levarmos em conta as lacunas deixadas pelo uso dos relatos como fonte de investigação, acreditamos que essa descrição demonstra, pelo menos, a imagem construída em torno de Pedro Frazão de Brito, apontado como um indivíduo que tinha forças para contribuir com a manutenção da ordem. Esse fato poderia ser um indicativo de poderio bélico, já que esse tipo de atuação certamente demandava o uso da força. Morador na freguesia de Antonio Pereira, o potentado faleceu em março de 1722 deixando sete herdeiros legítimos e três bastados, filhos de uma mulher livre. Seu plantel era constituído por 68 escravos, sendo 12 deles representados por gentio da terra. Durante a descrição dos bens percebemos a constituição de laços familiares entre alguns cativos, fato que também pode ser comprovado através do testamento deixado pelo inventariado. É o caso, por exemplo, da família de Ignácio, mulato e Vissência, crioula -avaliados em 256 oitavas de ouro e 180 oitavas respectivamente - de cuja união nasceram quatro filhos. Além desse, temos mais dois casos de famílias constituídas por marido, mulher e filhos. Outros arranjos também compõem os laços de parentesco, pois temos três famílias formadas por marido e mulher e duas representadas por mãe e filhos. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 416 Os créditos arrolados constituíam grande parte de sua fortuna e também podem nos trazer informações sobre as relações estabelecidas entre o potentado e aqueles que estavam relacionados de alguma maneira ao universo da escravidão. Sendo assim, temos uma dívida de Ignácio, preto “que se obrigou a pagar por seu pai Francisco de Oliveira preto, oitenta oitavas de ouro.” Outro crédito correspondia a 40 oitavas de ouro, valor que deveria ser quitado por Paulo Fernandes, preto.96 Sabemos que esse é um número pequeno se compararmos com os 24 indivíduos relacionados como devedores. Entretanto, mesmo não sendo possível saber exatamente os motivos que levaram ao endividamento, parece-nos plausível deduzir que esse seria mais um indício que demonstra a complexa relação que se estabelecia entre senhores e escravos ou ex-escravos. Neste caso, se a concessão de crédito foi garantida a indivíduos que pertenciam a um grupo social de “condição inferior”, isso significa que provavelmente haveria uma contrapartida direcionada ao benefício daquele que está oferecendo, que não estaria restrita apenas aos lucros adquiridos através do empréstimo de dinheiro a juros. Com relação aos armamentos temos um total de 15 instrumentos dessa natureza. Podemos observar que o número de armas que estava sobre a posse desse indivíduo superava em demasia a média geral que era de 3,4, Além disso, parte considerável de suas armas eram ornamentadas com prata, o que já indicava um sinal de status. Ademais, o valor correspondente a cada uma delas está bem acima da média geral encontrada nos inventários analisados.Dessa maneira, além de refletir a riqueza acumulada pelo sertanista, a posse dessas armas, juntamente com a presença de um grande número de escravos, cujas relações com seu senhor provavelmente não se baseavam apenas na violência, garantiam a possibilidade que este indivíduo tinha de prestar serviços à Coroa, assim como de defender seus interesses que estavam direcionados não só à região das Minas Gerais, mas também a outras localidades. As atividades econômicas às quais se dedicava também refletem a amplitude de suas ações. Como um dos principais fornecedores de gado para a região das Minas, suas comitivas deveriam se precaver dos perigos oferecidos pelas estradas e caminhos, como, por exemplo, ataques de índios, quilombolas, salteadores. Os vários negócios nos quais estava envolvido muitas vezes o colocavam em situações de tensão e conflito, como podemos perceber em passagens de seu testamento nas quais ele menciona antigas pendências, que diziam respeito a cobranças de dívidas. Um homem com negócios desse Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 417 porte e que provavelmente construiu desafetos ao longo de sua vida, teria que contar com a proteção de uma força bélica considerável. Pelo que foi colocado até aqui, pudemos observar alguns fatores que demonstram as condições que tornavam Pedro Frazão de Brito um homem capaz de prestar serviços à Coroa, especialmente no que se refere ao apoio oferecido através de homens armados. Sendo assim, fica fácil compreender como esse indivíduo teria alcançado posições tão destacadas na sociedade marianense. Foi oficial da câmara da Vila de Ribeirão do Carmo por três vezes entre 1711-1712, ocupando o cargo de juiz ordinário, desfrutava da patente de Capitão Mor da Companhia de Ordenança e desempenhou a função de regente das minas, através de patente concedida por D. Bras Baltazar da Silveira. Observamos então, a estreita relação estabelecida entre a posse de armas e as variáveis que indicavam a posição dos indivíduos enquanto nobreza da terra, ou seja, patentes militares, ocupação de cargos camarários e/ou em outras instâncias governativas, número de escravos e posse de cabedais. Percebemos que vários homens que compunham a elite local apresentavam um arsenal considerável para os padrões da região. Através da análise da trajetórias do Capitão Mor Pedro Frazão de Brito, foi possível verificar que uma de suas principais estratégias para adquirir honras e privilégios perante a Coroa era a prestação de serviços, como a atuação do processo de conquista dos sertões inóspitos. Bibliografia: ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Uma nobreza da terra com projeto Imperial: Maximilianno de Oliveira Leite e seus aparentados. In: FRAGOSO, João; SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. (Org.). Conquistadores e negociantes: histórias de elites no Antigo Regime nos Trópicos. América Lusa, séculos XVI a XVIII. 1a ed. V.1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. ______.Do Reino às Minas: O “Cosmopolitismo” da elite mineira setecentista. In: FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de; CAMPOS, Adriana Pereira (Orgs). Nas Rotas do Império: eixos mercantis, tráfico e relações sociais no mundo português. Ilha de Vitória: EDUFES. 2006. 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Juiz de Fora: Editora UFJF, 2006. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 419 Estrutura de Posse de Escravos e Família Escrava nos Plantéis de Guarapiranga: composição dos plantéis e transferências inter-parentela (1807-1885) Lucilene Macedo da Costa graduada em História pela UFV lucilene.costa@ufv.br Tiago Pereira Leal graduado em História pela UFV tiago.leal@ufv.br Resumo: A partir dos métodos nominativos da demografia histórica e história da família, nosso trabalho analisa os padrões de organização da família escrava na região de Guarapiranga, através do cruzamento de dados dos Inventários Post Mortem, Testamentos e Listas Nominativas. Acompanhamos a trajetória dos plantéis de um núcleo familiar, através dos processos de sucessão e partilha dos bens. Procuramos analisar as mudanças na composição dos plantéis, assim como os laços de parentesco no interior de suas escravarias. Assim, através da reconstrução de redes sociais dos senhores escravistas da região, desejamos indicar as mudanças na composição de sexo, idade e origem dos cativos dos plantéis e identificar o destino que as escravarias tomam após a morte dos senhores, as características dos laços e das relações de parentesco entre os escravos. Palavras- chaves: Família Escrava, Escravidão, Guarapiranga. Abstract: Based on the nominative methods of the historical demography and family’s history, our work analyzes the patterns of slave family organization in the Guarapiranga region, through the data cross-checking of the Post Mortem Stocktaking, Wills and Nominative Lists. We accompanied the trajectory of squads from a family nucleus through the succession processes and sharing of assets. We tried to analyze the changes on the squad composition, as well as the kinship bows between the slaves. Thus, through the social networks reconstruction of the slavery masters of the area, we want to indicate the changes in the sex composition, age and the origin of the captives that compose the squad, and identify the destiny that the slaves take after the death of the master, the characteristics of the ties and the family relationship between the slaves. Keywords: Slave Family, Slavery, Guarapiranga. 1. Introdução: No Brasil, é bastante recente a utilização de fontes cartoriais (registros de batismo, casamento e óbito, Inventários Post-mortem, etc.) na pesquisa histórica. Os estudos fundamentados por essas fontes se intensificaram a partir das décadas de 1980 e 1990. Particularmente, os Inventários Post-mortem ajudaram no desenvolvimento do estudo da família e de todas as suas ramificações (composição, reprodução, herança, processo de acumulação de fortuna, entre outros). Com base nessas fontes, a historiografia Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 420 das décadas de 1980 e 1990 pôde contrapor as teses generalizantes sobre a família brasileira, como a de Gilberto Freyre e de Oliveira Vianna e, por outro lado, reinterpretar e reescrever a história de Minas Gerais, fundamentalmente no que se refere à ideia de decadência da economia e sociedade mineiras subsequente ao ciclo minerador, que dominou o pensamento histórico até então (FURTADO, 1989; PRADO Jr., 1989). Os Inventários Post- mortem e as Listas Nominativas384 foram utilizados por nós para o estudo sobre a escravidão, mais especificamente, sobre a família escrava. A partir dos métodos nominativos da demografia histórica nosso trabalho analisa os padrões de organização da família escrava na região de Guarapiranga. Acompanhamos a trajetória dos plantéis de um núcleo familiar, através dos processos de sucessão e partilha dos bens. A partir daí, procuramos analisar as mudanças na composição dos plantéis, assim como os laços de parentesco no interior de suas escravarias. Através da reconstrução de redes sociais dos senhores escravistas da região, conseguimos estabelecer padrões de posse de cativos e identificar o destino que as escravarias tomam após a morte dos senhores, as características dos laços sociais e das relações de parentesco entre os escravos. A presente análise utiliza 12 inventários de uma mesma parentela que abrange três gerações, para identificar a estrutura e os fluxos dos plantéis escravos e a Lista Nominativa de 1831-32. A partir de variáveis demográficas, como origem, idade e sexo, identificaremos a presença de escravos africanos e nativos, assim como a reprodução natural. Dessa forma, poderemos perceber algumas estratégias adotadas por esse núcleo familiar senhorial para gerir seus investimentos e escravaria. 2. A Família Escrava e a Historiografia: O desenvolvimento da demografia histórica, ampliação das fontes e uma nova maneira de explorá-las, viabilizou a constatação de formas familiares distintas, inclusive a cativa, proporcionando assim um avanço nos estudos da família escrava no Brasil. Esses estudos ganharam maior consistência a partir da década de 1980, quando começam a surgir várias análises dando outro olhar para a escravidão e as relações dos cativos, 384 A utilização dessas fontes foi possível devido ao trabalho desenvolvido pelo Professor Doutor Fábio Faria Mendes na Universidade Federal de Viçosa, que coordena um grupo de estudantes que desenvolve atividades financiadas pelos órgãos fomentadores de pesquisa (CNPq e FAPEMIG) e de extensão (PROEXT), visando dar continuidade aos projetos articulados de identificação, digitalização e conservação preventiva de acervos documentais das Minas dos setecentos e oitocentos. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 421 entre eles os trabalhos de Iraci del Nero da Costa (1981), Francisco Vidal Luna (1981), Horácio Gutiérrez (1984), Stuart Schwartz (1987), Robert Slenes (1987,1988 e 1999), Manolo Florentino e José Roberto Góes (1997) e outros. Antes da década de 1980 os autores da denominada “escola sociológica paulista”385 inviabilizavam a análise das relações entre os cativos, pois enfatizavam a coisificação do escravo e negavam a possibilidade de existência de laços familiares sólidos entre os cativos. Conforme Tarcísio Botelho, a historiografia progressivamente, começou a superar a ênfase na questão do casamento de escravos. “A família escrava, principalmente nos trabalhos de demografia histórica, passou a ter uma definição mais ampla, pensada em termos de convívio familiar e de comunidade escrava” (BOTELHO, 2007: 456). Assim, já não se referia apenas àquelas legitimamente constituídas através do matrimônio, mas também a mães e pais solteiros convivendo com filhos, viúvos(as) com seus filhos e outros arranjos. Além disso, a família escrava passa a ser compreendida como um elemento estrutural da escravidão no Brasil, e não como uma exceção. Manolo Florentino e José Roberto Góes (1997) procuram abordar a família escrava detento-se, sobretudo, em suas relações entre o tráfico atlântico. Classificando as uniões matrimoniais ou mesmo consensuais como um elemento pacificador das senzalas. Pois, ao fim do tráfico essas uniões iriam possibilitar ao senhor um aumento de seu plantel através da reprodução natural e uma maior estabilidade na vida dos cativos, mesmo após a divisão da herança, caso o casamento destes fosse legítimo. No entanto, os autores não consideram que a procriação representasse o fim da dependência da escravidão para com o tráfico atlântico e nem ocorria ao descompasso de regras que expressavam a vontade da comunidade. Pelo contrário, muitas vezes as relações dentro dos plantéis, eram organizadas conforme o movimento dos desembarques. Florentino e Góes consideram que uma das práticas de instauração da paz nas senzalas é o nascimento, há uma percepção de que os escravos se casavam ou amancebavam-se para gerar filhos. A idade de procriação das cativas era bem baixa, e estas deveriam encerrar essa fase de suas vidas quando se tornassem avós, obedecendo a costumes africanos. Mas, a concepção de família dos escravos ultrapassava os limites consanguíneos primários e até mesmo o âmbito do próprio plantel e as condições jurídicas dos cativos, como os laços de compadrio, pois através do batismo os escravos tinham a oportunidade de estabelecerem laços de proteção e ajuda mútua. Segundo Graça Filho, “atualmente, a relevância da família escrava na historiografia brasileira se relaciona às estratégias de forjar redes de solidariedade e resistência no cativeiro” 385 Dentro desse grupo de pesquisadores podemos citar os nomes de Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 422 (2007:185). Assim, a família escrava impunha limites à ação dos senhores que se deparavam com a oposição dos laços conjugais e de solidariedade comunitária. Hebe Maria Mattos (1998), por exemplo, mostra que havia dificuldades de constituição destas redes de solidariedade por conta do consentimento de pequenos privilégios por parte dos senhores aos casais de escravos. Para Robert Slenes (1999) o fortalecimento dos laços comunitários poderia trazer insegurança ao sistema escravista. Teixeira complementa afirmando que para Slenes, a família contribuiu decisivamente para a criação de uma “comunidade” escrava, unida em torno de experiências, valores e memórias compartilhados. Nesse sentido, a família escrava minava constantemente a hegemonia dos senhores, criando condições para a subversão e a rebelião. (2006; 96). Sheila de Castro Faria acredita que os laços familiares entre os cativos ajudavam aos senhores na manutenção do sistema escravista. “A organização familiar escrava foi uma das formas exploradas pelos senhores para manter e ampliar suas bases escravistas, não importando os padrões destas uniões, se ocidentais, africanas ou criados pela vivência no cativeiro.” Mas ao mesmo tempo, a autora concorda que a formação de laços entre os escravos também os favorecia, pois “para cativos, o acesso à família era uma das formas de melhorar suas condições de sobrevivência dentro do cativeiro forçado” (1998; 300 e 303). A abordagem sobre a família escrava pode nos trazer aspectos que estão muito além da simples identificação dos laços de parentesco. Ela nos faz pensar sobre os motivos das uniões, as estratégias utilizadas pelos cativos para construírem seus laços de parentesco, as relações que ultrapassavam o núcleo familiar primário, até que ponto essa prática guardava costumes africanos e até que ponto os senhores interferiam nas relações de seus cativos. 3. A Região de Guarapiranga Algumas regiões brasileiras viveram conjuntamente a escravidão urbana e rural circunscritas em pequenos arraiais, aplicações, freguesias, vilas e cidades que proporcionavam aos cativos, estratégias diversas de se integrarem ao mundo dos libertos. O meio social mineiro, dotado de conflitos e negociações foi acompanhado pelo dinamismo econômico que sustentava a economia mineira com “estagnação” de ouro e proporcionava a essa província ser o principal destino das escravarias que desembarcavam nos portos cariocas (FLORENTINO, 1997: 38). Esse foi o contexto das Minas Gerais subscrita por uma escravidão urbana nas principais vilas onde havia uma diversificação das atividades econômicas (mineração, comércio, agricultura, pecuária, artesanato e prestação de serviços). Essa região também era Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 423 entrelaçada por uma escravidão rural subsidiada por uma economia agropastoril destinada ao mercado interno. A região de Guarapiranga, localizada na Zona da Mata mineira, estava às margens da região mineradora, Mariana e Ouro Preto, e no contexto do século XVIII e XIX essa região integrava o Termo da cidade de Mariana. Sendo freguesia até metade do século XIX e tornando-se Vila a partir da segunda metade, essa região foi composta por vários distritos, alguns com pequenos núcleos urbanos, mas na sua totalidade com perfil rural e toda a região apresentava grande apego a escravidão386. Guarapiranga se enquadra no perfil que a historiografia mineira chama de “período de acomodação”. Tal período corresponde à transição de uma economia centrada na mineração para uma economia articulada pela agricultura mercantil (LIBBY, 1988). Por meio de pesquisas desenvolvidas acerca dessa região, vimos que, pelo menos desde o final dos Setecentos, a freguesia apresentava, em relação às outras freguesias mineiras, considerável contingente populacional, seja de população livre ou cativa. As Listas Nominativas dos anos de 1831-32 e 1838-39 são fontes privilegiadas para a observação destes dados demográficos. Por sua vez, a partir da análise de Inventários Postmortem da primeira metade do século XIX, encontramos uma sólida elite agrária, detentora de grandes porções de terras e de grandes plantéis escravistas. O primeiro gráfico apresentado abaixo representa os padrões de posse de cativos dos senhores escravos da região de Guarapiranga. Como podemos observar, a maioria dos senhores possuíam um plantel que tinha entre 1 a 20 cativos, sendo que aquelas escravarias com um número acima desse podem ser consideradas médias e grandes. O segundo gráfico apresenta a ração de africanidade dos plantéis da região de Guarapiranga. Como podemos perceber há uma diminuição do número de africanos a partir das décadas de 1840 e 1850 e concomitantemente um aumento do número de crianças menores de 15 anos nos plantéis, o que pode estar relacionado ao aumento da reprodução natural dentro das escravarias387. 386 Por meio da análise dos inventários encontramos descrições de algumas poucas terras minerais e uma constante descrição de produção de bens de raiz, principalmente milho e cana-de-açúcar. Mais informações ver o conjunto de inventários disponíveis no 1º e 2º ofício do arquivo da Casa Setecentista de Mariana (ACSM) e Arquivo do Fórum de Piranga (AFP). 387 Agradecemos ao Professor Doutor Fábio Faria Mendes a disponibilidade desses gráficos. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 Título do Eixo 424 % escravos com <15 anos % Escravos Africanos %Africanos Escravos Adultos 4. Estrutura de Posse de Escravos e Família Escrava nos Plantéis de Guarapiranga Começamos nossa análise com o inventário do Capitão Antonio Gomes Sande do ano de 1807 (ACSM, 1º Ofício, 25, 645). Ele era natural de Portugal, foi casado com Dona Francisca Clara Umbelina de Jesus com a qual teve cinco filhos, Francisca Cândida, Tereza Altina, Feliciana Isabel, Antonia Lemes, Antonio Gomes Oliveira Sande. Seu plantel era composto por 59 escravos, mas cinco deles foram citados como falecidos no acréscimo de bens. Através da análise dessa escravaria podemos identificar 6 famílias cativas, das quais 4 eram compostas apenas pelos casais e podemos pressupor que, apesar de não estar explícito, quase todos esses tinham filhos ou haviam mães sem Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 425 referência aos cônjuges que não foram citadas, pois é possível a identificação de nove crianças cuja idade varia de 0 a 13 anos388. A diferença de idade entre cônjuges era uma característica desse plantel, e, esse fato era expressivo em dois casais, João Benguela com Apolonea Crioula e Salvador Congo junto à Theodosia Crioula, os homens apresentam uma diferença de 20 e 27 anos de idade, respectivamente. A ausência de escravas africanas não deixou muito escolha aos homens africanos, que estabeleceram laços de parentesco com companheiras nativas. Também conseguimos identificar entre as famílias analisadas um casal de crioulos, formado por Jerônimo e Emericiana. Em 1820, temos o inventário de Francisca Cândida de Oliveira Sande (ACSM, 1º Ofício, 97, 2032), uma das filhas de Antonio Gomes Sande e Francisca Clara Umbelina de Jesus, a primeira esposa de Antonio Pedro Vidigal de Barros. Ao falecer Francisca Cândida deixou cinco filhos legítimos, Maria, Theresa, Antonia, Francisco e Joaquim. No arrolamento de seus bens só foram citados 6 escravos, sendo apenas uma mulher. Apenas um escravo desse plantel era crioulo, os demais tinham origem africana. O inventário de Francisca Cândida não contribui muito para a nossa análise na perspectiva da família escrava, mas podemos deduzir que seus cativos foram adquiridos principalmente por meio da compra de escravos provenientes do tráfico atlântico, devido a maior presença de africanos. Nesse plantel não identificamos a repetição de nenhum cativo de Antonio Gomes Sande, mas dois dos cativos aqui arrolados, Manoel Crioulo e Joana Rebola, aparecem mais tarde, na Lista Nominativa de 1831, no plantel de Antonio Pedro Vidigal de Barros. O mesmo Manoel aparece novamente em 1833, no inventário da mãe de Francisca Cândida. Na Lista Nominativa de 1831, o Cirurgião Mor Antonio Pedro Vidigal de Barros, aparece encabeçando o primeiro fogo. Já estava em seu segundo matrimônio, com Tereza Altina Sande Barros, irmã de Francisca Cândida de Oliveira Sande. Sua sogra, Francisca Clara Umbelina de Jesus, aparece como uma de suas agregadas, juntamente com o seu filho 388 A idade de 13 anos me foi sugerida pelos estudos de Stuart Schwartz (1988), Kátia Mattoso (1982) e Sheila de Castro Faria (1998). Conforme Faria, nos inventários post-mortem, do século XVIII, nenhum escravo com esta idade foi indicado como filho de alguém da mesma unidade produtiva. Passavam a ter, portanto, sua própria identidade e ser considerados como adultos. Apesar de encontrarmos escravos com idades superiores a 13 anos com referência a seus pais para Guarapiranga, encontramos também casais nos quais as cônjuges eram bem mais novas que seus companheiros. Também é possível percebermos que a partir do momento que um cativo se casa, seus laços de parentesco anteriores não são citados. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 426 Padre Antonio Gomes Oliveira Sande. Além dos cinco filhos do seu primeiro matrimônio, constava na fonte os filhos do segundo matrimônio, João, Maria e Anna. Nessa data o plantel de Antonio Pedro era composto por 44 escravos, sendo possível a identificação de 3 casais e outros 10 escravos que já estavam presentes no inventário de seu sogro, somando-se ainda os dois escravos, que já citamos acima, que em 1820 apareciam como de sua primeira esposa. Além disso, é possível a identificação de um novo casal, João Crioulo e Placida Benguela, que nos apresenta uma situação bem interessante, pois na maioria dos casos de união entre africanos e crioulos, o africano é o cônjuge masculino. A fonte não faz referência à prole dos casais cativos, mas os dados nos leva a pensar na possibilidade de alguns escravos serem frutos de uma reprodução natural. A taxa de masculinidade é de 68,1%. Entre os homens a presença dos africanos é marcante de 30 cativos 16 têm origem africana, o que corresponde a uma taxa de 53,3% de africanos. Entre as mulheres, que somavam 10 cativas e representavam 22,7%, apenas duas são africanas. No total a fonte indica a presença de apenas 4 crianças cativas. Em 1833 temos o inventário de Francisca Clara Umbelina de Jesus (ACSM)389, viúva do Capitão Antonio Gomes Sande, tendo como inventariante o seu genro Antonio Pedro Vidigal de Barros. Além do seu inventariante, foram listados como herdeiro os filhos de Francisca Candida de Oliveira Sande, o Padre Antonio Gomes de Oliveira Sande (filho) e D. Thereza Altina de Oliveira Sande (filha). Entre os seus 54 cativos conseguimos identificar a presença de apenas um núcleo familiar cativo ainda formado no plantel de seu marido, Salvador Congo e Theodosia Crioula juntamente com o filho, Inocencio Crioulo. Angelica Crioula e João Benguela que já estavam presentes no plantel de Antonio Gomes Sande como parte de dois casais aparecem sem seus respectivos cônjuges. A presença da família escrava é bem tímida, mas não podemos deixar de considerar a presença de crianças sem indicação dos seus pais. Ao todo temos 8 escravos que se repetem no plantel de seu marido, 11 que se repetem nos plantéis de seu marido e seu genro, 4 que se repetem no plantel de seu genro, 1 que se repete no plantel de sua filha Francisca Cândida. As partilhas ocorridas entre os três inventários analisados acabaram desfazendo laços de parentesco estabelecidos desde o primeiro plantel, fato que pode ter sido 389 Os inventários ainda estão passando por um processo de identificação, então não temos a referência completa de todos. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 427 ocasionado pela morte, venda ou mesmo alforria de um dos membros do núcleo familiar. Além disso, é importante observarmos a taxa de africanidade dos plantéis, pois apesar dos inventários não explicitarem mais laços de parentesco entre os cativos, podemos perceber que todas as escravarias analisadas até o momento, exceto a de Francisca Cândida, temos a presença de crianças e mulheres nativas. A tabela abaixo representa as famílias escravas que se repetiram nos plantéis de Antonio Gomes Sande, Antonio Pedro Vidigal de Barros e Francisca Clara Umbelina de Jesus. Fonte: Inventário de Antonio Gomes Sande, ACSM, 1º Ofício, Códice 25, Auto 645; Lista Nominativa de Guarapiranga de 1831; Inventário de Francisca Clara Umbelina de Jesus, ACSM. Podemos considerar que apesar de nem todos os núcleos familiares não se manterem até o último plantel analisado, os laços dos dois casais que se repetiram foram duradouros. Além disso, um núcleo familiar conseguiu se manter durante duas partilhas sem separações. Prosseguindo em nossa análise temos novamente o plantel de Antonio Pedro Vidigal de Barros (ACSM) em seu inventário de 1839. No arrolamento de bens conseguimos identificar 42 escravos, mas três deles são declarados como falecidos. Se compararmos com a Lista Nominativa de 1831-32 e os demais inventários já analisados, Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 428 apesar da repetição de alguns cativos, não se nota nenhum núcleo familiar antes identificado. A partir da análise do inventário de Antonio Pedro, conseguimos perceber a repetição de 3 cativos que estavam no plantel de Antonio Gomes Sande, do próprio Antonio Pedro em 1831 e do plantel de Francisca Clara; 2 cativos que estavam no plantel de seu sogro e mais tarde no plantel de sua sogra; 1 cativo que aparece no inventário de sua primeira esposa e depois no de sua sogra; 3 cativos que estavam no plantel de sua primeira esposa e 5 cativos que estavam no plantel de sua sogra. Nesse plantel conseguimos identificar apenas dois casais, ambos sem referência a filhos. O primeiro casal é formado por Domingas Crioula e João Congo, essa cativa aparece no inventário de Antonio Gomes Sande e Francisca Clara Umbelina de Jesus e o seu cônjuge aparece no inventário da primeira esposa de Antonio Pedro, na Lista Nominativa e no inventário de sua sogra. O segundo casal, Joana Rebola e Antonio Congo, foram herdados de sua primeira esposa, mas só foram identificados como casados neste plantel. O fato de ser arrolada apenas uma criança crioula com a idade de 3 anos nos leva a pensar que esses casais tinham uma relação recente dentro do plantel e ainda não haviam aumentado a soma de escravos do seu senhor através da reprodução natural. A novidade desse plantel é a grande presença de crianças africanas. Um detalhe intrigante, mas que talvez não tenha grandes significados, é que todas as crianças de origem afro foram listadas com a idade de 12 anos. Depois de oito anos de falecimento de Antonio Pedro Vidigal de Barros temos o inventário de seu filho, o Padre Francisco Vidigal de Barros (AFP) no ano de 1847, fruto de seu primeiro matrimônio com Francisca Cândida de Oliveira Sande. Seus herdeiros foram o Sargento Mor Joaquim Pedro Vidigal; Dona Maria, casada com José de Araújo Ribeiro; Dona Teresa, casada com Antonio Alves Guimarães e Dona Maria do Carmo, todos irmãos, filhos do primeiro matrimônio de Antonio Pedro. O inventariado possuía apenas 4 escravos, sendo todos homens e não havendo referência ao nome de um deles. Dois escravos, Bernardo Congo e Antonio Rebolo, estavam presentes no inventário de sua avó, Francisca Clara Umbelina de Jesus. Em 1854, temos o inventário de Antonia Cândida de Jesus Vidigal (AFP), irmã do Padre Francisco Vidigal de Barros, também filha do primeiro matrimônio de Antonio Pedro Vidigal de Barros. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 429 Antonia Cândida possuía 26 escravos, entre os quais foram identificados 3 casais, mas nenhum faz referência à sua (possível) prole. A presença de apenas uma criança africana talvez seja um indicativo de que a fonte esconde casos de reprodução natural. As taxas calculadas para esse inventário talvez pudessem apresentar alguma variação se a fonte trouxesse dados completos para todos os cativos, pois temos vários escravos sem referência à idade e também alguns sem referência à origem étnica. 390 Jose de Araujo Ribeiro Vasconcelos (AFP) que foi casado com dona Maria Micaela Cândida Vidigal (filha de Antonio Pedro e Francisca Cândida), foi um dos inventariados do ano de 1861. Sua inventariante foi sua esposa, que juntamente aos seus filhos compunha o seu rol de herdeiros. Esse inventário apresenta uma novidade que acaba facilitando nossas análises, pois em um primeiro momento são arrolados 24 escravos não contendo mais do que informações como nome, sexo, idade e preço. Posteriormente, a fonte nos apresenta uma reavaliação dos escravos, na qual conseguimos contar 26 cativos e obtemos mais algumas informações sobre a vida de alguns escravos dentro desse cativeiro. Essa escravaria era composta por 9 homens (34,6%), 7 mulheres (26,9%) e 10 crianças (38,4%). Aqui encontramos uma variação dos dados encontrados nos plantéis anteriores, pois a quantidade de homens e mulheres fica bem próxima, sem falarmos no fato do número de crianças ser a maior porcentagem encontrada. Todas as crianças eram nascidas no Brasil, sendo 4 pardas e 6 crioulas. Como temos um casal de pardos na escravaria podemos deduzir que essas crianças pardas nasceram nesse plantel. Já os crioulos, podemos relacioná-los aos demais casais, já que os 3 casais restante eram compostos por um cônjuge africano e outro crioulo. Depois de um espaço de 16 anos temos o inventário de João Pedro Vidigal de Barros (AFP, Auto 332) em 1877. Filho de Antonio Pedro Vidigal de Barros e Tereza Altina Sande Barros. Teve como herdeiros a sua segunda esposa, Maria José Carneiro Vidigal, e seus filhos do primeiro e segundo matrimônio. O plantel de João Pedro era formado por 25 escravos, dos quais não conseguimos calcular a proporção de escravos africanos, pois é utilizado termos diferentes (“cor preta”, “cor preta fula” e “cor fula”) para indicar a designação racial dos cativos. 390 Para os cativos que não tinham referência à idade consideramos todos adultos e os que não indicavam a origem étnica contamos como crioulos (ou nativos). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 430 É possível a identificação de três núcleos familiares, sendo que dois fazem referência aos cônjuges e filhos e outro há indicação apenas da mãe e sua prole. São famílias com um número significativo de cativos. Os dois casais tem indicação de 2 filhos legítimos e a cativa que aparece sem referência a seu cônjuge está acompanhada de 4 filhos naturais. Apenas dois cativos, Januario e Antonio Jacinto, estavam anteriormente no inventário de seu pai, Antonio Pedro Vidigal de Barros. Logo em seguida, em 1880, temos o inventário de Manoel Pedro Vidigal (AFP, Auto 356), irmão de João Pedro Vidigal de Barros, também filho do segundo matrimônio de Antonio Pedro Vidigal de Barros. Manoel tinha como herdeiros sua esposa Maria Perpetua Carneiro Vidigal e seus filhos e genros. A sua escravaria era composta por 10 escravos, sendo possível a identificação de dois núcleos familiares, sendo que um é composto apenas pelos cônjuges e outro além de indicar o nome do casal informa o nome dos filhos. Esse inventário também é complicado de se analisar dentro da nossa perspectiva, pois além de não fazer referência a origem/designação racial dos cativos há uma renovação da escravaria, ou seja, não identificamos nenhum escravo que Manoel Pedro Vidigal tenha recebido pela transferência de bens dos inventários analisados anteriormente. Cinco anos depois temos o inventário de Dona Tereza Altina Sande de Barros (AFP, 322), uma das filhas e herdeiras de Antonio Gomes Sande e Francisca Clara Umbelina de Jesus. Seus herdeiros foram seus filhos ainda vivos, os genros e netos (filhos de João Pedro Vidigal de Barros e Manoel Pedro Vidigal). Seu plantel era composto por 17 escravos, um dos escravos não é citado o nome no inventário e nada que possa nos informar sobre ele. É possível a identificação de dois núcleos familiares com a indicação dos cônjuges e filhos. Apesar de termos indicação dos filhos dos casais cativos, nenhum deles estava na faixa etária que classificamos como criança, o que pode indicar uma duração relevante entre os laços familiares dos cativos desse plantel. O inventário de Tereza Altina também nos traz uma complicação para a identificação de origem/designação racial, os africanos e nativos não recebem nenhum termo nominal que possa diferenciá-los. Em 1886 temos o inventário de Manoel Pedro Vidigal (AFP, 361), homônimo de seu pai, neto de Antonio Pedro Vidigal de Barros e Tereza Altina Sande Barros. Seu inventário Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 431 não acrescenta nenhuma informação à nossa análise, pois possuía apenas uma escrava chamada Florinda, que não repete em nenhum plantel anterior. O último inventário analisado é o de Maria Micaela Cândida de Jesus (1890) (AFP). Apesar desta inventariada não conter mais escravos devido a Lei da Abolição de 1888 é um inventário que fecha as nossas análises, pois nele podemos perceber que mesmo não havendo mais escravos esse núcleo familiar, através de estratégias nos momentos de partilha conseguiu manter e transferir seus bens e riquezas. É importante resaltarmos que durante as partilhas Maria Micaela sempre que apareceu como herdeira, recebeu números significativos de cativos, que podem ter contribuído até o fim da escravidão para o acúmulo de riqueza e desenvolvimento da propriedade da inventariada. A tabela abaixo apresenta dados referentes às taxas e números encontrados durante a análise de cada plantel. Composição das Escravarias – (1807-1877) Nome do Quantidade de Inventariado Escravos Antonio Gomes 54 Sande (1807) Homens Mulheres Crianças Africanos Africanas Crianças Africanas 36 10 (18,5%) 8 (66,6%) 24 0 (0%) 0 (0%) (66,6%) (14,8%) Francisca Cândida 6 de Oliveira Sande 5 1 (16,6) 0 (0%) 4 (80%) 1 (100%) 0 (0%) 8 (14,8%) 9 (16,6%) 23 2 (25%) 2 (22,2%) 6 (66,6%) 7 (87,5%) (83,3%) (1820) Francisca Clara 54 Umbelina de Jesus 37 (68,5%) (62,1%) (1833) Antonio Pedro 39 Vidigal de Barros 22 9 (23,1%) 8 (20,5%) (56,4%) 19 (86,3%) (1839) Francisco Vidigal de 4 3 (75%) - - - - - 26 11 7 (26,9%) 8 (30,7%) 7 (63,6%) 1 (14,2%) 1 (12,5%) 7 (26,9%) 10 (38,4%) 4 (44,4%) 2 (28,5%) 0 (0%) Barros (1847) Antonia Cândida de Jesus Vidigal (1854) Jose Araujo Ribeiro Vasconcelos (1861) (42,3%) 26 9 (34,6%) Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 432 João Pedro Vidigal 25 11 (44%) 9 (36%) 5 (20%) - - - Pedro 10 5 (50%) 4 (40%) 1 (10%) - - - Tereza Altina Sande 17 10 6 (35,2%) - - - - 1 (100%) - - - - de Barros (1877) Manoel Vidigal (1880) de Barros (1885) Manoel Pedro (58,8%) 1 - Vidigal (1886) Fontes: Inventários Post Mortem ACSM e AFP. A partir da análise dessa tabela podemos perceber que nas escravarias maiores a porcentagem de homens sempre foi bem superior que a porcentagem de mulheres, assim como a taxa de africanos do sexo masculino. Enquanto as escravarias menores, o número de mulheres e homens se aproximava bastante, sem falarmos na taxa relativamente alta de crianças se comparadas às escravarias menores. Outro fato que podemos analisar é que à medida que aproximamos nossa análise do período da abolição da escravatura as escravarias vão diminuindo, assim como o número de africanos. A razão de masculinidade também diminui e o número de crianças nativas vai indicando cada vez mais uma maior taxa de reprodução natural que nos faz pensar na possibilidade de relações consensuais além dos matrimônios comprovados entre os cativos. 5. Considerações Finais: A análise dos inventários desse núcleo familiar nos mostra que a maioria dos plantéis analisados estava acima da média prevista para a região de Guarapiranga, exceto o de Francisca Cândida de Oliveira Sande, Francisco de Araujo Ribeiro Vasconcelos e Manoel Pedro Vidigal. As famílias escravas, com o decorrer das partilhas, acabavam se desfazendo ou não tivemos acesso aos inventários dos herdeiros que as receberam. Por outro lado, é possível perceber a formação de novos núcleos familiares. É importante destacarmos que a formação dos casais, na maioria das vezes, se dava entre mulheres crioulas e homens africanos, o que pode está relacionado ao baixo número das cativas de origem africana. Não podemos deixar de mencionar que além das famílias escravas, foi possível a identificação de vários cativos que se repetiam após as partilhas, assim ao analisarmos a Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 433 transferência de bens conseguimos reconstituir os plantéis desses senhores e a trajetória dos cativos. Os inventários, testamentos e Listas Nominativas são fontes que nos trazem poucas informações que raramente nos apresenta dados qualitativos sobre a escravidão. Acreditamos que o método utilizado para essa pequena análise pode trazer muitas novidades se buscarmos o cruzamento das fontes aqui analisadas com registros de batismo e casamento de escravos. 6. Bibliografias: Fontes Manuscritas: Arquivo da Casa Setecentista de Mariana (ACSM) Arquivo do Fórum de Piranga (AFP) Referências: BOTELHO, Tarcísio R. A Família Escrava em Minas Gerais no Século XVIII. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage e VILLALTA, Luis Carlos (orgs.). As Minas Setecentistas, I. Belo Horizonte: Autêntica, Companhia do Tempo, 2007. p.455-476. CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Laços de Família e Direitos no Final da Escravidão. In: ALENCASTRO, Luis Felipe de (org.). História da Vida Privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 337-381. _______________. Das Cores do Silêncio. Os significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil - século XIX.Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. COSTA, Iraci del Nero da. História e demografia. Revista de História. São Paulo, FFLCH-USP, (109):195-203, 1977. FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. FLORENTINO, Manolo Garcia & GOÉS, José Roberto. A Paz nas Senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico (Rio de Janeiro, 1790-1850).Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil.23ª. Ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1989. GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro; PINTO, Fábio Carlos Vieira & MALAQUIAS, Carlos de Oliveira. Famílias escravas em Minas Gerais nos inventários e registro de casamento: o caso de São José dos Rio das Mortes, 1743-1850. Varia História, 23 (37): 184-207, Jan/Jun 2007. LUNA, Francisco Vidal Luna. Minas Gerais: escravos e senhores.São Paulo, FEA-USP, 1980, Tese de doutorado, mimeografado. PRADO Jr., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo.20ª. Ed. São Paulo: Brasiliense,1989. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 434 SLENES, Robert W. Senhores e Subalternos no Oeste Paulista. In: ALENCASTRO, Luis Felipe de (org.). História da Vida Privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 233290. _______________ & FARIA, Sheila de Castro. Família Escrava e Trabalho. In: Tempo, vol.3 – nº 6, Dezembro de 1998. _______________. Na Senzala uma Flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil Sudeste, século XIX.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 435 Expostos: das estruturas domiciliares à representação social Mariana, 1737 – 1828 Nicole de Oliveira Alves Damasceno Universidade Federal de Ouro Preto / PROPP – UFOP / ICAM-USIMINAS nicole_damasceno@yahoo.com.br Resumo: Este trabalho391 se insere nas discussões sobre a história da família e do abandono de crianças em Minas Gerais no século XVIII e início do XIX. O nosso principal objetivo é fazer uma análise geral das estruturas familiares da cidade de Mariana e depois comparar essas estruturas com aquelas as quais viviam crianças expostas. Dessa forma, podemos perceber qual era o papel dessas crianças abandonadas dentro da sociedade e o que representava ser exposto na época analisada. Para isso, utilizamos a Lista de Habitantes da cidade de Mariana de 1819 e algumas ações cíveis. Através da história quantitativa e do estudo de casos, traçamos um perfil das organizações familiares da localidade estudada e conseguimos perceber o ambiente familiar nos quais os expostos residiam, destacando as características tanto dessas crianças como as dos chefes de domicílio. Através das nossas análises percebemos que ser exposto na época colonial não significava necessariamente ser um desclassificado social. Muitas crianças ao serem abandonadas e inseridas em outras famílias adquiriam uma qualidade – termo utilizado nas fontes documentais da época para designar a cor, sendo que essa estava totalmente associada ao status social – que provavelmente não teriam se continuassem em suas famílias de origem. Palavras-chave: história da família, abandono de crianças e estruturas domiciliares Abstract: This work is part of the discussions about family history and the abandonment of children in Minas Gerais in the eighteenth and early nineteenth centuries. Our main goal is to make a general analysis of family structures in the city of Mariana, and then compare these structures with those which live exposed children. Thus, we can see what was the role of these abandoned children into society and to be exposed at the time represented analyzed. For this, use the List of Inhabitants of the city of Mariana, 1819, and some civil lawsuits. Throughout the history of quantitative and case study, we draw a profile of the organizations studied family of the town and we perceive the environment in which the family resided exposed, highlighting the characteristics of both of these children as heads of household. Through our analysis we realize that being exposed in the colonial era did not necessarily mean being a social disqualified. Many children are abandoned to and inserted into other families acquired a quality - a term used in the documentary sources of the time to designate the color, and this was totally associated with social status - which probably would not have remained in their families of origin. Keywords: family history, abandonment of children and household structures 391 Esse trabalho faz parte da dissertação de mestrado intituladaSer exposto: a “circulação de crianças no Termo de Mariana (1737 – 1828) defendida na Universidade Federal de Ouro Preto em setembro de 2011. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 436 O abandono de crianças nos séculos passados é um tema bastante discutido na história da família e da sociedade. O número de crianças abandonadas certamente não era insignificante, dado as medidas tomadas pelos governos que objetivavam prezar pela sobrevivência dos pequenos abandonados. Ao observarmos apenas a legislação portuguesa, vimos nas Ordenações Manuelinas (1521) e Filipinas (1603) a preocupação em se definir alguma instituição responsável pelos expostos.392 A nível local, vimos essa responsabilidade recair sobre as Santas Casas de Misericórdia ou sobre as Câmaras Municipais.393 Pouco se sabe sobre o destino que essas crianças tiveram após o abandono; destinos esses que devem ser variados. Mas o nosso objetivo nesse trabalho é analisar o que significava ser uma criança abandonada nos séculos XVIII e XIX em uma sociedade urbana que cresceu rapidamente por causa do ouro. Iremos analisar, portanto, a cidade de Mariana, que entre esses séculos viu parte dos recursos de sua Câmara Municipal ser destinados ao pagamento de pessoas interessadas na criação de expostos. A assistência, que era feita através pagamentos que variaram de 2 a 3 oitavas por mês para cada pessoa que matriculasse uma criança na Câmara como exposta, chegou a representar 30% nos cofres públicos depois de 1750 (DAMASCENO, 2011: 60 – 78, passim). Para que uma pessoa começasse a receber esse pagamento bastava comunicar a Câmara Municipal o interesse de criar a criança supostamente abandonada, certificando que a filiação da mesma era desconhecida. Essa criança deveria ser batizada sob a condição de exposta. A partir de então, a pessoa receberia da Câmara um pagamento, que poderia permanecer até a criança completar sete anos de idade. A probabilidade de a Câmara efetuar pagamentos a falsos expostos394é muito grande. No entanto, essas crianças, mesmo continuando nas suas famílias de origem, ganhavam a condição de expostas ao serem batizadas como tal. E o que será que essas crianças representavam para a sociedade? Temos a tendência a acreditar que o abandono é vinculado a ideia de uma desvalorização social, mas será que esses expostos dos séculos XVIII e XIX eram vistos dessa forma? Vamos apontar algumas 392 O termo exposto é utilizado para designar crianças abandonadas. Nos documentos analisados nessa pesquisa encontramos tanto essa designação como o termo enjeitado. Para o trabalho em questão, utilizaremos apenas o primeiro termo citado. 393 Para saber mais sobre as legislações portuguesas acerca dos expostos, cf: SÁ, Isabel dos Guimarães. A circulação de crianças na Europa do Sul: o caso dos expostos do Porto no século XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995; VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias abandonadas: Assistência à criança de camadas populares no Rio de Janeiro e em Salvador – Séculos XVIII e XIX. Campinas, SP: Papirus, 1999. 394 Aqueles que não haviam sido de fato abandonados, continuando em sua família de origem. Famílias podiam tomar essa atitude com o objetivo de receber o pagamento da Câmara, criando seu próprio filho. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 437 hipóteses a essas perguntas através da análise de uma Lista de Habitantes da área urbana da cidade de Mariana do ano de 1819. Através de uma análise quantitativa elaboramos tabelas e gráficos com três tipos de análises. A primeira delas, uma análise geral da estrutura da cidade de Mariana para que pudéssemos comparar com as outras análises. Na segunda, separamos os domicílios os quais residiam crianças expostas395. E em uma terceira análise, observamos os domicílios os quais havia crianças que não residiam com os pais, mas que não apareciam com a condição “exposto” no documento. Chamamos essas últimas de “crianças alheias”. A necessidade dessa última análise se justifica, pois uma comparação entre crianças que receberam a condição de exposta e outras que – apesar de não conviverem com seus pais biológicos – não receberam essa condição, é essencial para apontarmos algumas hipóteses sobre o significava ser exposto. Importante destacar também a utilização de termo “circulação de crianças” em nossa pesquisa. Termo atualmente utilizados por etnólogos, significa a transferência de responsabilidade de uma criança, de um adulto para o outro. Nesses casos, a criança passaria parte de sua infância e/ou de sua juventude em casas que não a de seus pais biológicos, transitando entre as casas de avós, vizinhos, madrinhas, entre outros (FONSECA, 2006: 14). No entanto, a “circulação” seria diferente do que conhecemos como adoção plena. Esse próprio termo é uma noção recente e não se aplica a época estudada. A “circulação” estaria mais vinculada a ideia do que Fonseca chama de filiação aditiva, não representando necessariamente – como a adoção plena – uma ruptura da família de origem com a criança. Para nossa pesquisa consideramos os casos dos expostos e das “crianças alheias” como um processo de “circulação de crianças”. Dessa forma, para nos ajudar a compreender o papel do exposto na sociedade, procuramos analisar também se havia padrões diferentes de “circulação” ao comparar expostos e “crianças alheias”. Vejamos, portanto, as Tabelas 1 e 2, que nos mostram respectivamente, o estado civil e a idade dos chefes de domicílio. Tabela 1 – Sexo / Estado Civil dos chefes de domicílio – Mariana (1819) 395 Para determinar qual idade seria usada para diferenciar a infância da fase adulta optamos utilizar como referência o guia nomeado Orphanologia practica, em que se descreve tudo o que respeyta aos inventarios, partilhas & mais de pendencias dos pupilhosdo autor Antonio de Payva Pona, encontrado no Arquivo Público Mineiro. Para esse autor, podemos considerar infantes homens de até 14 anos e mulheres de até 12 anos de idade. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 438 Perfil geral da cidade de Mariana Residências com crianças expostas Residências com "crianças alheias" Sexo / Estado Sexo / Estado Sexo / Estado Civil Número Porcentagem Civil Número Porcentagem Civil Número Porcentagem Homens Homens – Homens casados 77 23% casados 6 23% casados 10 22% Homens Homens – Homens solteiros 70 21% solteiros 0 0% solteiros 8 17% Homens Homens – Homens viúvos 16 5% viúvos 2 8% viúvos 3 7% Mulheres Mulheres – Mulheres casadas 8 2% casadas 2 8% casadas 0 0% Mulheres Mulheres – Mulheres solteiras 107 32% solteiras 5 19% solteiras 15 32% Mulheres Mulheres – Mulheres viúvas 59 17% viúvas 11 42% viúvas 10 22% TOTAL 337 100% TOTAL 26 100% TOTAL 46 100% Não consta o estado civil de um homem. Fonte: AHCMM, Lista de Habitantes, Distrito de Mariana (1819), códice 651. Tabela 2 – Sexo / Idade dos chefes de domicílio – Mariana (1819) Perfil geral da cidade de Mariana Sexo / Idade Número Porcentagem Homens – menos de 20 0 0% Homens – 20 a 29 16 5% Homens – 30 a 39 27 8% Homens – 40 a 49 40 12% Homens – 50 a 59 43 13% Homens – 60 a 69 21 6% Homens – 70 ou mais 17 5% Mulher – menos de 20 3 1% Mulher – 20 a 29 12 3% Mulher – 30 a 39 35 10% Mulher – 40 a 49 37 11% Mulher – 50 a 59 41 12% Mulher – 60 a 69 29 9% Mulher – 70 ou mais 17 5% TOTAL 338 100% Residências com crianças expostas Sexo / Idade Número Porcentagem Homens – menos de 20 0 0% Homens – 20 a 29 0 0% Homens – 30 a 39 2 8% Homens – 40 a 49 0 0% Homens – 50 a 59 5 19% Homens – 60 a 69 0 0% Homens – 70 ou mais 1 4% Mulher – menos de 20 0 0% Mulher – 20 a 29 1 4% Mulher – 30 a 39 4 15% Mulher – 40 a 49 3 12% Mulher – 50 a 59 4 15% Mulher – 60 a 69 4 15% Mulher – 70 ou mais 2 8% TOTAL 26 100% Residências com "crianças alheias" Sexo / Idade Número Porcentagem Homens – menos de 20 0 0% Homens – 20 a 29 0 0% Homens – 30 a 39 2 4% Homens – 40 a 49 5 11% Homens – 50 a 59 7 15% Homens – 60 a 69 3 7% Homens – 70 ou mais 4 9% Mulher – menos de 20 0 0% Mulher – 20 a 29 4 9% Mulher – 30 a 39 3 7% Mulher – 40 a 49 5 11% Mulher – 50 a 59 8 16% Mulher – 60 a 69 4 9% Mulher – 70 ou mais 1 2% TOTAL 46 100% Fonte: AHCMM, Lista de Habitantes, Distrito de Mariana (1819), códice 651 O que podemos perceber é que em domicílios onde residiam expostos os chefes eram principalmente mulheres viúvas e com mais de 30 anos. Há também os domicílios chefiados por homens, mas além de ser a minoria, boa parte deles contavam com a Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 439 presença de alguma mulher. No caso das “crianças alheias” encontramos um número mais significativo de homens chefiando domicílios. A presença de mulheres não era tão marcante, havendo um considerável número de domicílios que contavam apenas com homens. Interessante destacar que nessas residências as crianças que foram agregadas também eram apenas homens, com idade acima de 8 anos e na residência havia pelo menos uma pessoa com algum ofício. Se observarmos a Tabela 3, veremos que a diversidade e o número de pessoas com alguma ocupação era mais marcante em domicílios com “crianças alheias”. Tabela 3 – Ocupações – Mariana (1819) Residências com crianças expostas Ocupação Número Nenhum 12 Advogado 1 Carapina 1 Carpinteiro 4 Escrevente 1 Escrivão de orfãos 1 Fazer esteiras 1 Negócio 2 Ouvires 2 Pintor 1 Sacristão 2 Solicitador 1 Venda 2 Residências com "crianças alheias" Ocupação Nenhum Número 19 Advogado 2 Alfaiate 1 Carcereiro 1 Carpinteiro 1 Chacareiro 1 Cobranças 1 Escrevente 1 Escrivão da Câmara 1 Escrivão do Juízo Eclesiástico 1 Estudante 5 Fazer esteiras 1 Matar gados 1 Mineiro 2 Moço do coro 2 Negócio 1 Ouvires 2 Pintor 1 Porteiro da missa 1 Sapateiro 1 Solicitador 1 Sua conezia 4 Sua faculdade 1 Venda 3 Fonte: AHCMM, Lista de Habitantes, Distrito de Mariana (1819), códice 651 Nas fontes que tratam sobre o abandono de crianças, o que percebemos é que os expostos eram normalmente deixados na porta de alguma casa e que essas pessoas Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 440 poderiam ou não ficar com essas crianças. Provavelmente há casos em que a família recusou criar o exposto, mas infelizmente os documentos não retratam esses tipos. Partimos então da ideia de que a escolha pela família a qual criará a criança exposta parte principalmente da família biológica ao escolher o lugar da exposição. E o fato dessa família estar abandonando a criança não significa que não esteja preocupada com o bem estar da mesma. Como bem observa Renato Pinto Venâncio, não podemos associar o abandono a um ato de desamor da mãe; há vários outros fatores que podem justificar seus atos (VENÂNCIO, 1999: 75-85, passim). Logo, a presença de uma mulher no domicílio parece ter sido uma das preocupações da família biológica ao escolher o lugar para abandonar seu filho. No caso das “crianças alheias” a preocupação parece ter sido diferente: o interesse dos pais biológicos e dos próprios filhos – já que esses circulam entre as famílias numa idade superior, como veremos a seguir – em aprenderem algum ofício, assim como o interesse de algum membro da família acolhedora em repassar seu conhecimento e até mesmo contar com mão de obra. A questão da idade das crianças reafirma a ideia defendida sobre a diferente forma de “circulação”. Já que no caso dos expostos as crianças eram normalmente abandonadas nas portas de casas de famílias, é essencial que ela seja bem novinha. Podemos perceber esse fato ao compararmos a idade das crianças na Tabela 4, que nos mostra que entre os expostos encontramos um número mais significativo de crianças entre 1 e 7 anos se compararmos com as “crianças alheias”. Tabela 4 – Idade dos expostos e das “crianças alheias” Expostos Idade Número “Crianças alheias” Porcentagem Idade Número Porcentagem Menos de 1 1 3% Menos de 1 1 2% 1a7 14 41% 1a7 15 23% Acima de 7 19 56% Acima de 7 48 75% TOTAL 34 100% TOTAL 64 100% Fonte: AHCMM, Lista de Habitantes, Distrito de Mariana (1819), códice 651 A próxima análise diz respeito sobre a presença de filhos nos domicílios. No caso dos expostos, esse parece ter sido outro fator que determinou a escolha dos pais biológicos. Ou seja, uma família que já tivesse a experiência na criação de uma criança seria mais adequada para criar uma outra criança. Como vemos na Tabela 5, em domicílios onde Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 441 residiam “crianças alheias” a presença de filhos não é tão significativa e parece não ter sido determinante na hora da escolha. Tabela 5 – Presença de filhos nos domicílios – Mariana (1819) Expostos Número de filhos dos chefes de domicílios Nenhum 1 2 3 4 5 Mais de 5 “Crianças alheias” Número de domicílios 10 6 4 4 2 0 0 TOTAL Porcentagem 39% 23% 15% 15% 8% 0% 0% 26 100% Número de filhos dos chefes de domicílios Nenhum 1 2 3 4 5 Mais de 5 TOTAL Número de domicílios 32 5 4 2 2 0 1 Porcentagem 70% 11% 9% 4% 4% 0% 2% 46 100% Fonte: AHCMM, Lista de Habitantes, Distrito de Mariana (1819), códice 651 Porém, o aspecto mais interessante da nossa pesquisa diz respeito a qualidade dessas crianças. A qualidade, sempre destacada na Lista de Habitantes, muito mais que designar a cor e a raça de uma pessoa, estava relacionada com a representação que essa tinha na sociedade (LARA, 2007: 141). E o que percebemos é um número bastante significativo de expostos aparecendo na Lista como brancos; eles representavam 70%! Enquanto para as “crianças alheias” os brancos apareciam apenas em terceiro lugar, depois dos pardos e dos crioulos. Gráfico 1 Qualidade dos expostos 24% Branco Crioulo Pardo 6% 70% Fonte: AHCMM, Lista de Habitantes, Distrito de Mariana (1819), códice 651 Tabela 6 – Qualidade dos expostos – Mariana (1819) Qualidade Número Porcentagem Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 442 Branco 24 70% Cabra 0 0% Crioulo 2 6% Pardo 8 24% Preto 0 0% TOTAL 34 100% Fonte: AHCMM, Lista de Habitantes, Distrito de Mariana (1819), códice 651 Gráfico 2 Qualidade das "crianças alheias" 0% 17% 6% Branco Cabra Crioulo Índio 56% 19% Pardo 2% Fonte: AHCMM, Lista de Habitantes, Distrito de Mariana (1819), códice 651 Tabela 7 – Qualidade das “crianças alheias” – Mariana (1819) Qualidade Número Porcentagem Branco 11 17% Cabra 4 6% Crioulo 12 19% Índio 1 2% Pardo 36 56% Preto 0 0% TOTAL 64 100% Fonte: AHCMM, Lista de Habitantes, Distrito de Mariana (1819), códice 651 É claro que há a probabilidade de famílias designadas brancas estarem abandonando seus filhos, mas isso não justificaria os 70% encontrados. Nem o perfil geral da sociedade de Mariana nos permite afirmar tal fato, já que entre os chefes de domicílios, a maioria encontrada são de pardos, sendo que os brancos representam apenas 38% (Tabela 8). Logo, o que podemos supor é que ao serem abandonadas há um rompimento social da Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 443 criança com sua família de origem, pois ela perde a referência da qualidade de sua família biológica e, em boa parte das vezes, se torna uma criança branca. O mesmo não acontece com as “crianças alheias”. Essas apresentam um perfil muito mais próximo com o perfil da sociedade geral, o que nos indica que elas não perdiam a referencia da qualidade de sua família de origem ao serem agregadas na casa de terceiros. Tabela 8 – Qualidade dos chefes de domicílio – Mariana (1819) Perfil Geral Qualidade Número Porcentagem Branco 127 38% Cabra 11 3% Crioulo 43 13% Pardo 144 42% Preto 13 4% TOTAL 338 100% Expostos Qualidade Número Porcentagem Branco 15 58% Cabra 0 0% Crioulo 0 0% Pardo 11 42% Preto 0 0% TOTAL 26 100% "Crianças alheias" Qualidade Número Porcentagem Branco 30 65% Cabra 3 7% Crioulo 0 0% Pardo 13 28% Preto 0 0% TOTAL 46 100% Fonte: AHCMM, Lista de Habitantes, Distrito de Mariana (1819), códice 651 Após essas análises o que percebemos é que existiam padrões diferentes de “circulação de crianças”. Ou seja, a prática de abandonar um filho e a de entregá-lo para terceiros sem que isso representasse um abandono possuíam perfis diferentes, com intenções diferentes por parte da família biológica e até mesmo da família criadeira. Outra hipótese que podemos levantar através desses dados é que a criança ao ser abandonada não se tornava uma desqualificada social. As famílias criadeiras poderiam muito bem designá-las como pardas ou mulatas, mas não. Ao contrário do que se pensa, a maioria dessas crianças adquiriram a qualidade de branca nas Listas Nominativas. Isso pode nos apontar também uma ruptura social dessa própria criança com sua família de origem, já que é bem provável que muitas delas não teriam essa qualidade caso continuassem em suas famílias. Como estudo de caso podemos apontar o caso de menino Joaquim. Exposto no ano de 1751 na casa de Maria Pereira, que era uma parteira, ficou lá até que completasse a idade de 8 anos. Como podemos ver a seguir, de acordo com seu batismo, Joaquim aparece como uma criança parda. [Fl. 3] Aos dezoito dias do mês de janeiro do ano de mil setecentos e cinquenta e um na Capela de São Francisco de Brumadinho filial desta Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Catas Altas o Reverendo Felipe de Cerqueira Távora de licença minhas batizou e pôs os santos óleos a Joaquim pardo [corroído] exposto em casa de João Gomes da Silva, e Maria Pereira Dias todos desta Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 444 freguesia, de que fiz este assento [corroído] supra = o Vigário Manoel Ribeiro Taborla (...).396 [grifo meu]. Joaquim só sai da casa de Maria quando um homem, chamado João Roubão, requereu a guarda do menino, afirmando ter sido nomeado por seu pai biológico, já falecido, o seu tutor. Durante o processo pela sua guarda, há a identificação de sua mãe biológica, referida então como forra. No entanto, enquanto exposto ele perde sua condição de forro e em nenhum momento aparece nos documentos como mulato, e sim como pardo. Mas quando seu tutor assume a tutela, ele deixa de ser pardo e começa a aparecer nos documentos como órfão, mulato e forro. [Fl. 110] Recebi da mão do Capitão João Favacho Roubam dezesseis oitavas de sustento de Joaquim órfão que ficou do defunto Alferes Francisco Vieira da Silva a quais me pagou como tutor do dito órfão de sustento de um ano que esteve em minha casa para ir a escola e por ser verdade e para seu [ilegível] passei este hoje Inficcionado, 28 de junho de 1762. José Pinto de [Fonseca] [Ass] [Fl. 109] Recebi d Capitão João Favacho Roubam [tutor] pardo forro por nome Joaquim Vieira para lhe ensinar o oficio de sapateiro por verdade passei este por mim somente assinado. Inficcionado, 18 de abril de 1763. Manoel Machado e [Sangalo] [Ass] [Fl. 108] Recebi do Senhor Capitão João Favacho Roubam cinco oitavas e meia de ouro que me pagou por ensinar o mulatinho Joaquim filho do defunto Francisco Vieira da Silva por quais me pagou como tutor do dito órfão e por ter pago e satisfeito do tempo que lhe ensinei a ler e escrever lhe passei esta para sua clareza e verdade. Hoje, Inficcionado, 28 de junho de 1764. Francisco Joseph de Almeida [Ass] [Fl. 107] Recebi do Senhor Capitão Favacho a quantia de quinze oitavas e doze vinténs que me pagou da receita abaixo que foi para o órfão Joaquim de que ele dito Senhor é tutor a saber cinco linhas de pano de linho para duas camisas ______ 2 “ 6 mais uma farda de pano e um sertum ______________ 8 ½ 7 mais um chapéu _______________________________ /2 [corroído] mais um calção de pano azul _____________________ 2 ¼ 5 mais um sertum _______________________________ 1/4 6 __________ 15 ¼ 4 e por ter pago e satisfeito da dita quantia a soma lhe passei este por mim feito o assinado hoje Inficcionado, 3 de Maio de 1765. José Correia Pereira [Ass] [grifos meus].397 396 ACSM, Ação cível, 1º ofício, códice 390, auto 8533. Referência do documento cedida pelo professor Dr. Renato Pinto Venâncio. 397 ACSM, Ação cível, 1º ofício, códice 391, auto 8549. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 445 Referências bibliográficas: Fontes primárias manuscritas Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana - Listas de Habitantes (1819) – códice 651. Arquivo da Casa Setecentista de Mariana - Ações cíveis – 1º ofício, códice 390, auto 8533; 1º ofício, códice 391, auto 8549. Fontes primárias impressas ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Orphanologia practica, em que se descreve tudo o que respeyta aos inventarios, partilhas & mais de pendencias dos pupilhos. MFN: 1323; Autor: PONA, Antonio de Payva e. 1655 – 1759?; N. de classificação: OR 0001 – Séc. XVIII; N. do microfilme: 63; N. do flash/planilha: 3; Arquivo gaveta negativo: G-6. Coleção: Obras Raras. COIMBRA. Código Filipino, ou, Ordenações e Leis do Reino de Portugal: recopiladas por mandato d’el-Rei D. Felipe I. Ed. 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Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 448 Parentelas de Forros: A constituição familiar entre os alforriados - Mariana (17271838) Rogéria Cristina Alves Mestre em História pela UFMG rogeriaufmg@gmail.com Resumo: Este trabalho tem como principal objetivo lançar luz sobre a situação familiar dos alforriados - inventariados e testadores – da localidade do Termo de Mariana, durante os anos de 1727 a 1838. A proposta inicial dessa investigação nasceu durante a elaboração de minha dissertação de mestrado, que recebeu o título de “Mosaico de forros”: formas de ascensão econômica e social entre os alforriados (Mariana, 1727-1838). Conhecer os tipos de organizações familiares possíveis e existentes entre os libertos, especialmente entre aqueles que experimentaram após a alforria algum tipo de ascensão econômica ou social, revelou-se uma tarefa dinâmica. Diversos arranjos familiares foram sendo revelados ao longo da documentação pesquisada e a única certeza que se pôde estabelecer é que não é possível engessar os comportamentos familiares dos alforriados numa única fórmula, antes, é preciso ponderá-los e investigá-los sob diferentes óticas. Palavras-Chave: Alforriados, Famílias, Mariana. Abstract: This work has as main objective to shed light on the family situation of the freedmen - inventoried and testers - the location of the Term of Mariana, during the years 1727 to 1838. The initial proposal of this research was born during the preparation of my dissertation, which received the title of "Mosaic of the freedmen": forms of economic and social ascension among the freedmen (Mariana, 1727-1838). Knowing the types of family organizations and possible between the freedmen, especially among those who experienced some kind after the enfranchisement of social or economic rise has proved a dynamic task. Several family arrangements were being revealed through the documentation and searched only certainty is that it could establish that you cannot stifle the behaviors of the family freed in a single formula, first we need to weigh them and investigate them under different perspectives. Keywords: Freedmen, Families, Mariana. Lançar luz sobre a formação familiar dos alforriados testadores e inventariados - que viveram na região do Termo de Mariana - é o principal intuito desse trabalho, que integra parte da pesquisa que realizei durante o mestrado. Foram consultados, no total, 167 documentos pertencentes a homens e mulheres forros, sendo 97 testamentos e 70 inventários post-mortem. O espaço temporal abarcado por estas fontes contabiliza 111 anos, sendo o documento mais antigo pesquisado, um testamento do ano de 1727 e o mais recente, um inventário post-mortem datado de 1838. No entanto, ressalta-se que não foram encontrados documentos para todos os anos desse extenso período e que grande parte dos documentos concentra-se no período de 1750 a 1800. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 449 Optamos por não estabelecer um recorte temporal específico por acreditar que se assim procedêssemos, limitar-se-ia a visão almejada sobre o grupo dos alforriados. Dessa forma, o critério para a escolha do primeiro e do último documento pesquisado obedeceu estritamente à disponibilidade das referidas fontes no arquivo consultado. A documentação pesquisada encontra-se disponível para consulta no Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana e está abrigada em diferentes grupos referentes aos Cartórios de 1º e 2º Ofícios. O perfil dos forros testadores e inventariados do Termo de Mariana, com relação à formação de famílias revelou-se diverso: alguns casaram e tiveram filhos; outros permaneceram solteiros e sem filhos; outros ainda permaneceram solteiros, mas tiveram filhos. Através da manipulação da documentação, em especial dos inventários post-mortem foi possível extrair diversas informações referentes não só a formação familiar dos alforriados, mas também referentes às condições materiais destes agentes. Assim sendo, pudemos, por exemplo, alistar os alforriados que possuíam as maiores quantias de bens e posses e verificar neste grupo, como eram constituídos os arranjos familiares. O quadro a seguir demonstra essa listagem, que foi planejada baseada na análise do monte-mor – soma de todos os bens – encontrado no inventário dos libertos. Quadro 1: Os maiores montes-mores (em conto de réis) encontrados nos inventários dos forros no Termo de Mariana (1727-1838) Monte-mor: Ano: Forro inventariado: 3:217$500 1742 Rosa da Silva Torres 2:498$280 1781 Luiza da Silva Gama 1:827$000 1730 Úrsula Azeredo 1:666$854 1755 Mariana da Silva 1:418$100 1774 Joana Carvalho da Silva 1:342$500 1750 Joana do Rosário Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 450 1:160$875 1754 Josefa Martins 1:103$250 1778 Manoel Souza Fontes: Testamentos e inventários post-mortem do AHCSM Entre os alforriados mais ricos que encontramos existiram trajetórias familiares interessantes. A forra Úrsula Azeredo, por exemplo, detentora da terceira maior fortuna encontrada entre os alforriados pesquisados – algo em torno de 1:827$000 (um conto oitocentos e vinte sete mil réis) - declarou que havia recebido a alforria incondicional de seus ex-donos, o sargento Gaspar de Brito e a sua mulher, Dona Ana do Amaral, que já haviam falecido. Em seu testamento, Úrsula revelou que seus três filhos – duas mulheres e um homem – eram frutos do relacionamento que ela teve com seu ex-dono, o sargentomor Gaspar de Brito. Os filhos de Úrsula eram livres, mas viviam longe da mãe. Enquanto Úrsula residia no Termo de Mariana, seus filhos viviam na região mineira do Rio das Mortes, sob os cuidados do capitão-mor Antônio Caetano, genro de Gaspar de Brito.398 O fato mais curioso do testamento da liberta Joana Carvalho da Silva - liberta também alistada entre os forros mais ricos - é que ela declarou ter três filhos, todos tidos ainda quando era solteira. Ana, a filha mais velha é caracterizada pela mãe como sendo preta e liberta. Ana era casada com Félix de Freitas, um pardo forro que foi nomeado como um dos testamenteiros de Joana. Os dois outros filhos de Joana eram um casal de gêmeos: Maria e Manoel, pardos, de idade de onze anos. Maria era liberta e vivia na companhia da mãe, mas Manoel permanecia cativo, e em poder de Manoel de Oliveira que morava no arraial do Sumidouro.399 Não podemos afirmar, devido à ausência de informações, mas conjecturamos que Manoel de Oliveira fosse o antigo proprietário de Joana, que a libertou, mas que não quis, por algum motivo, libertar Manoel. Não faltava a liberta Joana condições materiais para comprar a liberdade do próprio filho, mas os motivos que a impediam de fazê-lo, infelizmente, nos são desconhecidos. Mariana da Silva – forra também alistada entre os libertos mais ricos – era viúva. Mariana havia sido casada com um carijó chamado Luciano dos Santos. Desta união, 398Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana (doravante citado apenas como AHCSM). 2º Ofício. Inventário post-mortem de Úrsula Azeredo. Data: 1730. Códice 88, auto 1901. 399AHCSM. 1º Ofício. Inventário post-mortem de Joana Carvalho da Silva. Data: 1774. Códice 80, auto 1693. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 451 nasceram dois filhos: Theotônio e Ana. Mas depois que Luciano faleceu, Mariana teve outros três filhos: Antônio, Manoel e Maria. Mariana fez questão de declarar em seu testamento que o cônjuge não havia ajudado em nada para o acúmulo do patrimônio que ela possuía. Segundo a liberta, não era da qualidade de seu marido adquirir riquezas.400 Sheila Faria chama a atenção para o fato de existirem nos testamentos exemplos de mulheres forras que deixavam clara sua insatisfação para com os maridos, impedindo qualquer tentativa de posse do cônjuge sobre os bens que elas possuíam (FARIA, 2004: 114). A liberta Tereza Loureiro, moradora no Morro da Passagem em 1750, por exemplo, ao se casar com Félix Brandão, elaborou uma escritura de arras que dava garantias de que o cônjuge não herdaria os bens que ela havia adquirido ainda quando era solteira.401 Eduardo Paiva identificou casos de cônjuges alforriados que faziam questão de conservar, em suas disposições testamentárias, certa independência material entre marido e mulher (PAIVA, 2009). Também foram encontrados neste trabalho exemplos semelhantes, como é o caso da forra Joana Paes Pena. Na época da feitura de seu testamento ela era solteira. No entanto, deixou expressa a preocupação com a partilha de seus bens, caso viesse a se casar: Declaro que hoje me acho no estado de solteira mas no caso que ao futuro, ou ao tempo de meu falecimento estiver tomado estado de casada, mando e ordeno ao meu testamenteiro que de tudo o que importar este meu testamento e meu inventário de bens que nele deixo declarado se me distribuirão por minha alma na forma que deixo apontado e o dito meu marido sairá com os bens, com que ele entrar para o casal, porque não é minha vontade que ele tenha meação do que é meu quando ele morra primeiro também eu não quero entrar os bens que ele possa trazer, mas assim cada um de nós sairá com aquilo que era seu por assim contratarmos [...].402 Marco Magalhães Aguiar observou que para os forros que alcançavam uma projeção econômica e social o casamento era um ato importante e que na Vila Rica setecentista, 51% dos forros testadores haviam experimentado a condição matrimonial (AGUIAR, 2001: 55). Maria Inês Cortês de Oliveira, através de pesquisa realizada para a cidade de Salvador, a partir de testamentos e inventários de alforriados, entre 1790 e 1890, encontrou os seguintes dados: entre os homens forros, 25,9% eram solteiros. No entanto, a maior parte dos forros havia experimentado a condição de casados, tendo em vista que 53,6% eram casados e 20,5% eram viúvos. A situação se repetia entre as forras: 38,1% eram solteiras, 400AHCSM. 2º Ofício. Inventário post-mortem de Mariana da Silva. Data: 1755. Códice122, auto 2456. AHCSM. 1º Ofício. Inventário post-mortem de Tereza Loureiro. Data: 1766. Códice 123, auto 2562. 402AHCSM. 1º Ofício.Testamento de Joana Paes Pena. Livro 50. 401 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 452 mas 23,1% eram casadas, 34,7% eram viúvas (ou seja, já haviam se casado) e 4,1% não declararam seu estado civil (OLIVEIRA, 1988: 58-59). Eduardo França Paiva identificou que para a Comarca do Rio das Velhas, entre 1720 e 1784, os homens forros experimentaram, mais que as mulheres, a condição matrimonial, sendo que 34,78% deles eram casados e 17,40% integravam o grupo de viúvos, concubinos e não identificados. Os solteiros representavam 47,82%. Entre as libertas, havia um predomínio das solteiras: 63,01% eram solteiras, 21,92% eram casadas e 15,07% estavam entre as viúvas, concubinas e não identificadas (PAIVA, 2009: 159). Gráfico 1: Estado civil dos forros (homens e mulheres) testadores e inventariados no Termo de Mariana (1727-1838) Série1; Não consta:; 33; 20% Série1; Casado:; 67; 40% Série1; Solteiro:; 54; 32% Série1; Viúvo:; 13; 8% Fontes: Testamentos e inventários post-mortem do AHCSM A condição matrimonial foi experimentada por 48% dos libertos que pesquisamos, considerando-se que 40% dos libertos declararam ser casados e 8% declararam ser viúvos. Segundo Ida Lewkowicz, os forros que ascenderam economicamente em Mariana no século XVIII perceberam as vantagens econômicas do casamento: entre os casados, houve aumento da riqueza, pois possuíam maior número de escravos – principal forma de investimento naquela sociedade (LEWCOWICZ, 1989: 231). Júnia Furtado destacou que os matrimônios eram assuntos de famílias e que o amor não esteve associado ao casamento, nem era condição necessária para a realização da união. Segundo a autora os matrimônios visavam à construção de alianças que promovessem Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 453 social e economicamente os envolvidos, levando menos em conta os interesses pessoais dos participantes – daí a serem denominados “casamentos de razão”. Ainda segundo Furtado, o espaço das paixões era outro, o do amor ilícito, das relações consensuais, sendo que: “Nas Minas Gerais, com a enorme desproporção entre homens e mulheres que lá havia e com o crescente número de negras e mulatas, tanto escravas como forras, as relações licenciosas se multiplicaram, com inúmeras e variadas formas de arranjos familiares.” (FURTADO, 2003: 115-116). Dos sete libertos mais ricos que encontramos, quatro eram casados, uma era viúva e apenas duas eram solteiras. Desta forma, a maioria deles havia experimentado a condição matrimonial, o que parece corroborar as asserções de Lewkowicz, de que entre os casados, houve um aumento da riqueza. No entanto é preciso ponderar que não há um caráter de obrigatoriedade nessa relação. Ou seja, nem sempre o casamento significaria aumento da riqueza haja vista as declarações de Mariana da Silva, liberta alistada entre os mais ricos, que declarou que o marido não havia contribuído em nada para o aumento de suas posses, por ser um carijó e por não ser de sua qualidade, o acúmulo de bens.403Outro exemplo nesse sentido é a forra Luiza da Silva Gama, liberta com o segundo maior monte-mor alistado entre os forros. Luiza era solteira e fazia questão de ressaltar em suas declarações tal condição: Declaro que sou solteira, livre e desimpedida e que nunca fui casada [...]. Declaro que por não ter filhos ou outros herdeiros ascendentes ou descendentes em razão da minha naturalidade e todos os bens que ao presente possuo foram adquiridos por minha indústria e trabalho sem que deles herdei cousa alguma [...].404 Gráfico 2: Estado civil entre as mulheres forras testadoras e inventariadas no Termo de Mariana (1727-1838) 403 404 AHCSM. 2º Ofício. Inventário post-mortem de Mariana da Silva. Data: 1755. Códice122, auto 2456. AHCSM. 2º Ofício. Inventário post-mortem de Luiza da Silva Gama. Data: 1781. Códice 72, auto 1575. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 454 Série1; Não Consta:; 23; 19% Série1; Solteiras:; 46; 38% Série1; Viúvas:; 9; 7% Série1; Casadas:; 43; 36% Fontes: Testamentos e inventários post-mortem do AHCSM Entre as forras testadoras e inventariadas pesquisadas, boa parte delas experimentou a condição matrimonial, haja vista que 36% declararam estarem casadas e 7% declararam estarem viúvas. Assim, 43% das libertas estiveram ou estavam casadas no momento em que elaboraram os seus testamentos ou em que tiveram seus bens inventariados. Já as solteiras, contabilizavam 38% e aquelas que não declararam seu estado civil, 19%. Destarte, não é possível afirmar qual era o estado civil predominante entre as forras pesquisadas, uma vez que 19% delas não fizeram declarações a respeito. Contudo fazemos algumas ressalvas a estes números. Primeiramente ressaltamos a existência das inúmeras relações envolvendo homens brancos e suas concubinas negras. Luciano Figueiredo chama a atenção para o fato das relações ilícitas, mais que as uniões legítimas, serem praticadas em larga escala na sociedade mineira setecentista (FIGUEIREDO, 1997: 21-22). Decerto que uma série de fatores contribuiu para o delineamento desta situação, em especial, a falta de mulheres de origem portuguesa para constituírem matrimônio com os homens brancos. Assim, muitos homens brancos estabeleceram relações com as mulheres africanas e nativas (FIGUEIREDO, 1997: 146). Dessa forma, embora 38% das forras estivessem solteiras, não significa que as mesmas não mantinham algum tipo de relacionamento que não fosse oficializado pela Igreja. Ressalta-se que nesse trabalho, lidamos com mulheres libertas, que ascenderam econômica e socialmente, portanto deve-se também considerar os apontamentos de alguns autores sobre a comprovada convivência de algumas libertas “ascendentes” com homens Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 455 brancos de elevada posição social. No entanto, como ponderou Júnia Furtado - em estudo sobre as libertas no arraial do Tejuco - não se pode afirmar que esta era a melhor estratégia de inserção social, uma vez que mesmo mantendo relacionamentos com importantes homens brancos, estas mulheres sempre eram vistas com desconfiança e continuavam solteiras, permanecendo ilícitos seus relacionamentos conjugais (FURTADO, 2001: 51). Além disto, é necessário ressaltar que nem todas as libertas mantiveram relacionamentos com homens brancos que as ajudaram financeiramente. É muito comum as libertas declararem em seus testamentos que tudo o que tinham amealhado, o tinham feito pela sua própria “indústria e trabalho”, sem a ajuda de ninguém, como nas declarações da liberta Tereza de Jesus. Natural da Costa da Mina, ela declarou em seu testamento elaborado em 1782, que todos os bens que possuía eram frutos de seu “próprio trabalho e indústria pessoal.” 405 Gráfico 3: Estado civil entre os homens forros testadores e inventariados no Termo de Mariana (1727-1838) Série1; Não Consta:; 10; 22% Série1; Viúvos:; 4; 9% Série1; Solteiros:; 8; 17% Série1; Casados:; 24; 52% Fontes: Testamentos e inventários post-mortem do AHCSM 405 AHCSM. 1º Ofício.Testamento de Tereza de Jesus. Data: 1783. Livro 47. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 456 Os homens solteiros forros que elaboraram seus testamentos ou tiveram seus bens inventariados no Termo de Mariana contabilizavam 17%. Já aqueles que não fizeram declarações acerca do próprio estado civil, somavam 22%. Ainda que estes 22% que não declararam seu estado civil, fossem solteiros em sua totalidade, não superariam a porcentagem dos homens forros casados. Desta forma, entre os homens forros testadores e inventariados, moradores do Termo de Mariana, pode-se afirmar que a maior parte deles experimentou a condição matrimonial, uma vez que 52% declararam que eram casados e 9% declararam que estavam viúvos. Assim, 61% dos homens forros testadores e inventariados estiveram casados em algum momento de suas vidas. À primeira vista, estes dados sugeriram uma hipótese: seria o casamento, na localidade de Mariana, no século XVIII, um mecanismo mais utilizado pelos homens forros, do que pelas mulheres na busca pela ascensão econômica e social? Considerando o fato de que estariam disponíveis às mulheres forras maiores possibilidades de acúmulo de pecúlio que aos e ascender economicamente. E era também uma forma de assegurar uma condição melhor de vida caso sua esposa falecesse, já que a maior parte das uniões sacramentadas acontecia no regime de “carta ametade”. Tal regime determinava a divisão dos bens adquiridos pelo casal no caso da morte de um dos cônjuges. Mas é preciso considerar também que o envolvimento destes homens forros – em relações não oficializadas pela igreja – com mulheres brancas, quando existiram, não foram tão comuns. Segundo Maria Beatriz Nizza da Silva, casos de amancebamento entre brancas e homens de cor eram mais difíceis de acontecer (SILVA, 1998: 193). Em um estudo para as freguesias da comarca sul da Bahia, para ano de 1813, o pesquisador Luís Mott só encontrou três mulheres brancas amasiadas com pardos e duas com negros (MOTT, 1982: 17). Em outras palavras, os forros que ascenderam economicamente, ao contrário das libertas, estabeleceram uniões sacramentadas com maior frequência. Outro fator que deve ser levado em conta é o fato de que os homens forros também se preocupavam em não dividir com as esposas os bens adquiridos ainda no estado de solteiros. João Pereira da Cunha, preto forro, morador na freguesia de Camargos, Termo da cidade de Mariana, casou-se com Luiza Pereira da Cunha, sob a condição de passar para a esposa, após o matrimônio, a carta de alforria e também “com condição dela não herdar nada de minha fazenda, por minha morte.” 406 Não só as mulheres forras declararam em seus testamentos que tudo que tinham era adquirido por seu próprio trabalho e indústria. 406 AHCSM. 1º Ofício.Testamento de João Pereira da Cunha. Livro 51. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 457 Prova disto são as declarações testamentárias do alforriado Manoel Lopes. Morador na Freguesia do Furquim, em 1770, o alforriado, natural da Costa da Mina, era casado com Josefa Lopes e declarou que a esposa era meeira de seus bens, mas que “todos os bens foram adquiridos pelo seu próprio trabalho e indústria”, 407 sem a ajuda da esposa. Há também relatos sobre a situação de homens alforriados que compravam as suas esposas sob a condição de alforriá-las após o casamento. Os alforriados Antônio Pereira da Silva e João Pereira da Cunha vivenciaram tal situação. Antônio Pereira da Silva elaborou seu testamento em 1761. Morador no Morro de Santana, no Termo de Mariana, ele não declarou qual era a sua naturalidade. Antônio era casado com Antônia Pereira da Silva e no decorrer de seu testamento ele relatou que comprou a esposa por um crédito, para que ela se casasse com ele, sob a condição, de ele a libertar da escravidão. Antônio Pereira expressou sua preocupação com a situação da esposa: ele não havia passado para ela a carta de alforria, mas advertia que a deixava “liberta sem sujeição alguma de escravidão”.408 João Pereira da Cunha estava em situação semelhante. Ele casou-se com Luiza Pereira da Cunha com a condição de libertar a esposa. No entanto, como não cumpriu o que havia prometido, deixou expresso em seu testamento que a esposa ficaria alforriada.409 Se os objetivos do casamento para os homens forros fossem estritamente econômicos e se relacionassem ao acúmulo de bens, certamente eles não se casariam com escravas a fim de libertá-las posteriormente. Seria mais lógico que eles se envolvessem com mulheres também libertas a fim de somar posses. Por meio destes exemplos, passou-se a considerar o fato de que não só as mulheres forras entrariam para o matrimônio portando maiores cabedais. Neste sentido, compreende-se que o matrimônio para o homem forro representaria mais do que a concretização de objetivos econômicos. Assim, mais do que empreender uma análise quantitativa sobre a proporção do estado civil entre os alforriados que ascenderam economicamente, acredita-se que as circunstâncias que envolviam e condicionavam as opções destes libertos pelo casamento ou pelo estado de solteiro, devem ser melhor trabalhadas. Outra característica que a análise dos testamentos e inventários post-mortem dos alforriados permite verificar é a opção deles por terem ou não filhos. Sheila de Castro identificou que entre as alforriadas testadoras de origem africana, especialmente aquelas 407 AHCSM. 1º Ofício. Testamento de Manoel Lopes. Data: 1776. Livro 52. 408AHCSM. 409 1º Ofício. Testamento de Antonio Pereira da Silva. Data: 1762. Livro 69. AHCSM. 1º Ofício. Testamento deJoão Pereira da Cunha. Data: 1771. Livro 51. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 458 vindas da Costa da Mina, existiu certa prática: casadas ou solteiras, a maior parte delas não possuía filhos. A autora desenvolve uma série de argumentos para corroborar a tese de que a ausência de filhos entre estas mulheres devia-se a uma opção premeditada. Penso em duas hipóteses para explicar a frequente ausência de filhos entre os forros que fizeram testamento. A primeira é a de que a criação de filhos de alguma forma impedia que essas pessoas acumulassem pecúlio, seja pelas despesas com crianças não produtivas, seja pela impossibilidade de exercer certos ofícios. Assim, os ex-escravos que puderam acumular bens e, consequentemente, redigir testamento foram os que não tiveram prole. Esta é uma situação possível, mas creio que não tenha sido a regra. [...] Outra hipótese, mais provável, no meu entender, é que essas pessoas, principalmente as mulheres, não queriam ter filhos e tinham alguma prática anticonceptiva ou evitavam relacionamentos sexuais. A infertilidade é totalmente descartada (FARIA, 2004: 298-299). Gráfico 4: Paternidade e maternidade entre os forros testadores e inventariados no Termo de Mariana (1727-1838) Série1; Não consta:; 11%; 11% Série1; Tinham filhos:; 38%; 38% Série1; Não tinham filhos:; 51%; 51% Fontes: Testamentos e inventários post-mortem do AHCSM Seis dos sete alforriados mais ricos que encontramos tinham filhos. E embora não seja possível saber em que momento da vida eles tiveram filhos – se antes ou depois de acumularem pecúlios – o fato é que estes libertos ajuntaram significativo conjunto de bens materiais. Entretanto, de um modo geral, pode-se afirmar que entre os forros testadores e inventariados no Termo de Mariana parece ter existido uma preferência por não se ter filhos. Do total dos alforriados pesquisados, 51% deles não deixaram herdeiros que fossem Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 459 seus descendentes diretos. Em alguns relatos dos alforriados pôde-se levantar os possíveis motivos para esta opção. O liberto abastado Manoel Souza era casado com Brígida Correa de Oliveira e desta união eles tiveram seis filhos, todos ainda muito pequenos na época da morte do pai, sendo a mais velha, Vicência de onze anos e o mais novo, Bernardo de três anos.410 Assim também aconteceu com a outra liberta abastada, Josefa Martins. Casada com o preto forro Manoel Pinto, Josefa faleceu e deixou a única filha que tinha ainda pequena: Luna só tinha três anos de idade.411 Estas situações ocorridas com Manoel e Josefa podem sugerir uma hipótese: os libertos casar-se-iam tardiamente e quando optavam por ter filhos, dentro do matrimônio, também o realizavam em uma idade mais avançada, o que pode ter favorecido a ausência de filhos entre os libertos testadores e inventariados. Casados, solteiros, com ou sem filhos, preocupados com os seus bens e posses: os alforriados pesquisados desempenharam todos esses papéis e demonstraram, através dos documentos que nos deixaram, que eram agentes ativos, que construíram famílias e arranjos familiares que melhor lhes convieram. Ao investigar a vida desses homens e mulheres forros pôde-se concluir que a diversidade de situações e arranjos familiares foi uma constante. E que talvez essa diversidade fosse realmente a única constante na vida desses agentes. Não há como estabelecermos um padrão de comportamento para a formação familiar dos alforriados, ao menos para aqueles que habitaram a região do Termo de Mariana, ao longo do século XVIII e início do século XIX. Bibliografia: AGUIAR, Marcos Magalhães. Quotidiano da população forra em Minas Gerais do período colonial. In: Oceanos.Viver no Brasil Colônia.Lisboa: Comissão Nacional para as Construções dos Descobrimentos Portugueses, no 42, abril/junho, 2001. BOTELHO, Tarcísio R. & LEEUWEN, Marco H. D. van (Org.). Mobilidade social em sociedades coloniais e pós-coloniais: Brasil e Paraguai, séculos XVIII e XIX. 1ª Edição. Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2009. FARIA, Sheila de C. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. ______. Sinhás pretas: acumulação de pecúlio e transmissão de bens de mulheres forras no sudeste escravista (séculos XVIII-XIX). In: FRAGOSO, João (org.). 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Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 462 Redes de sociabilidades da Família Ferreira Lage: a formação da coleção de fotografias oitocentistas no acervo do Museu Mariano Procópio – Juiz de Fora (MG) Rosane Carmanini Ferraz Doutoranda em História pela UFJF/ Bolsista da CAPES-REUNI rocarmanini@hotmail.com Resumo: O artigo busca contribuir para a análise das redes de sociabilidades construídas pela Família Ferreira Lage – fundadora do Museu Mariano Procópio (MMP), que contribuíram na formação da coleção de fotografias oitocentistas no acervo desta instituição. É fundamental compreender como seu deu a formação desta coleção, sua trajetória, os principais doadores e possíveis critérios de organização das imagens em álbuns. Através da análise da documentação iconográfica e da documentação escrita relativa à procedência do acervo, pode-se observar que a formação desta coleção se deu através da doação, da atuação pública dos membros da família Ferreira Lage e através do uso das imagens como forma de estreitamento dos laços sociais entre as famílias abastadas no Brasil da segunda metade do século XIX. O estudo desta coleção busca contribuir para a compreensão da fotografia oitocentista, do gosto e das características do colecionismo das famílias da elite brasileira do século XIX. Palavras-chave: Colecionismo, Fotografia oitocentista, Família Ferreira Lage. Abstract: This paper aims to contribute to the analysis of the sociability networks built by the Ferreira Lage family – founder of the Mariano Procopio Museum (MMP). Such network played a critical role on the formation of the 1800s photography collection of the afore mentioned institution. It is very important to comprehend how such collection came to be, its trajectory, who were its main donators, as well as possible organization criteria of the images in albums. Through the analysis of the iconographic documentation and the written documentation about the precedence of the collection, it can be perceived that the formation of this collection happened by means of donations, public performance of the Ferreira Lage family, and through the use of the pictures as a way of bonding among Brazilian rich families in the second half of the 19th century. The study of this collection looks forward to contribute to the understanding of the photography in the 1800s, of the taste and of the characteristics of the 19th century elite families’ collectionism. Keywords: Collectionism, Photography in the 1800s, Ferreira Lage family. A Família Ferreira Lage e a constituição do Museu Mariano Procópio O Museu Mariano Procópio (MMP), localizado no município de Juiz de Fora, Minas Gerais, abriga importante e heterogênea coleção que se iniciou como um acervo particular da Família Ferreira Lage. O personagem que dá nome ao museu foi importante empreendedor e homem público do Império Brasileiro, ocupando diversos cargos neste período. Fazendeiro e engenheiro, Mariano Procópio, foi o construtor da primeira estrada de rodagem do Brasil, ligando Juiz de Fora à Petrópolis, a Estrada União & Indústria, em Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 463 1861. Neste mesmo período, fundou importante colônia de imigrantes alemães, que contribuiu para o desenvolvimento econômico da cidade. Foi eleito deputado geral por Minas Gerais, além de ocupar os cargos de Diretor da Estrada de Ferro D. Pedro II e das Docas da Alfândega do Rio de Janeiro. (MUSEU MARIANO PROCÓPIO, 2006) Por ocasião da inauguração da Estrada União & Indústria, Mariano Procópio ordenou a construção de sua nova residência, com o objetivo de abrigar a Família Imperial Brasileira e sua comitiva. No entanto, a construção não ficou pronta à tempo da inauguração da estrada, ficando a Família Imperial hospedada na nova residência em ocasiões posteriores. Na residência, conhecida como a “Quinta do senhor Lage”412, se constituiria mais tarde o Museu Mariano Procópio. (MUSEU MARIANO PROCÓPIO, 2006) Figura 01: Quinta do Senhor Lage, R. H. Klumb, 1861. Acervo: MMP Após a morte de Mariano Procópio, em 1872, sua esposa Maria Amália Ferreira Lage e os filhos Frederico e Alfredo Ferreira Lage viajaram para a Europa. Os filhos do casal foram educados na França, reconhecido centro de referência e propagação da visão de mundo adotada pela elite brasileira do século XIX. Esse período contribuiu sobremaneira para a formação dos Ferreira Lage e para caracterizar o colecionismo da família. Posteriormente, outras viagens seriam feita à Europa, aprofundando o gosto pela cultura europeia. Em 1890, Alfredo Lage formou-se em Direito pela Faculdade de São Paulo. No 412 Edificação projetada pelo alemão Carlos Augusto Gambs. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 464 entanto, não exerceu a profissão, administrando bens familiares e empreendimentos culturais, inclusive alguns em sociedade com o irmão, Frederico Ferreira Lage. (MUSEU MARIANO PROCÓPIO, 2006) Alfredo Ferreira Lage (1865-1944) se dedicou à formação de um dos mais relevantes acervos artísticos, históricos e de ciências naturais do país. Segundo Geralda Ferreira Armond413, Alfredo Lage teria iniciado sua coleção ainda na infância, colecionando minerais. (PREFEITURA MUNICIPAL DE JUIZ DE FORA, 1978) Em 1915, após herdar a residência da família, Alfredo Ferreira Lage iniciou o planejamento e montagem de um museu particular, com características de um “gabinete de curiosidades”, um projeto de museu enciclopédico, com um acervo composto por diversos ramos do conhecimento da história da humanidade. Há poucos registros sobre a organização original da coleção após a constituição do Museu. No entanto, é possível afirmar que parte do acervo exposto na ala residencial do MMP pertenceu ao Palácio São Cristóvão, uma das residências da Família Imperial Brasileira. (MUSEU MARIANO PROCÓPIO, 2006) Pelas fotografias do interior do prédio, é possível observar que os objetos da coleção se misturavam ao mobiliário e aos objetos decorativos da residência. Ou seja, não há uma distinção clara entre os objetos familiares e os objetos do acervo. Em 23 de junho de 1921, Alfredo Ferreira Lage inaugurou o Museu Mariano Procópio, com mais de 5 mil peças, abrindo as portas ao público durante as comemorações do centenário de nascimento de seu pai. A abertura do museu significava uma homenagem ao pai e à visão de mundo representativa da elite brasileira de sua época414, concentrando-se na manutenção da memória da família e da história do país, através do momento que considerava mais significativo – o segundo reinado. (PINTO, 2008) Em 13 de maio de 1922, o prédio anexo denominado Mariano Procópio foi inaugurado, com abertura da Galeria Maria Amália, em homenagem à sua mãe. A Galeria possibilitou a melhor exibição e acomodação de alguns objetos e telas. O primeiro museu de Minas Gerais foi criado portanto, pela vontade e disponibilidade financeira do colecionador Alfredo Ferreira Lage. Em 29 de fevereiro de 1936, Alfredo Ferreira Lage 413 Prima de Alfredo Ferreira Lage e Diretora do Museu Mariano Procópio entre os anos de 1944 e 1980. O Museu Mariano Procópio é considerado o segundo museu do país em acervo relativo ao período imperial brasileiro. 414 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 465 efetivou a doação do Museu Mariano Procópio para a cidade de Juiz de Fora415 compreendendo todo o seu acervo, os prédios históricos e o parque416. Em 1939 foram criados o Arquivo Histórico e a Biblioteca da Instituição, sob a coordenação de Geralda Ferreira Armond, uma das últimas realizações do colecionador. A iniciativa demonstrava a preocupação de Alfredo Ferreira Lage em organizar o acervo de caráter histórico e documental. O Arquivo Histórico abrigava também a coleção de fotografias. (MUSEU MARIANO PROCÓPIO, 2006) Em 1944, com o falecimento de Alfredo Ferreira Lage, é elaborado o Arrolamento dos Bens Artísticos, Históricos e Científicos do Museu Mariano Procópio, importante fonte de pesquisa da coleção.Neste período o MMP já contava com um acervo muito heterogêneo: joias, moedas, medalhas, indumentárias, armas, móveis, pinturas, esculturas, porcelanas, pratarias, cristais, animais empalhados, minerais, livros, documentos, fotografias, gravuras, entre outras categorias de objetos, com forte influência dos séculos XIX e início do XX, conforme o gosto do colecionador. Pela descrição do Arrolamento de 1944, é possível saber, por exemplo, que várias fotografias da Família Imperial, da Família Ferreira Lage e outros “personagens ilustres” e das redes de sociabilidade da família eram expostas ao público no circuito expositivo. Ao longo do tempo, por questões de conservação, esse acervo foi recolhido ao Arquivo Fotográfico. As coleções de Alfredo Ferreira Lage são oriundas de aquisições em viagens, em leilões e casas especializadas, no Brasil e no exterior, de doações como as da Viscondessa de Cavalcanti, e de relações sociais da Família Ferreira Lage com a Família Imperial Brasileira e outras famílias atuantes no período imperial417. Entre os doadores, destacam-se Duque de Caxias, a própria Viscondessa de Cavalcanti e Rodolfo Bernardelli418. Os grandes doadores foram homenageados com o nome das salas à época de constituição do MMP. 415 Algumas condições foram estabelecidas no termo de doação: perpetuidade da denominação “Mariano Procópio”; finalidade cultural, proibição da retirada dos bens incorporados (MUSEU MARIANO PROCÓPIO, 2006) 416 O Parque do Museu Mariano Procópio atinge uma área de78 mil metros quadrados, com projeto atribuído a paisagista francês Auguste Marie Glaziou. (MUSEU MARIANO PROCÓPIO, 2006) 417 As fotografias e cartões postais com correspondências e dedicatórias no Arquivo Fotográfico e as cartas, bilhetes e telegramas no Arquivo Histórico do Museu Mariano Procópio demonstram a proximidade das relações sociais entre a Família Imperial Brasileira, mesmo após a Proclamação da República, e a Família Ferreira Lage e a Família Cavalcanti (FERRAZ, 2011). 418 A ligação de Alfredo Ferreira Lage com a pintora espanhola Maria Pardos, aluna da Escola Nacional de Belas Artes, estreitou as relações com artistas como os irmãos Bernardelli e Rodolfo Amoêdo. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 466 O colecionismo de fotografias oitocentistas e a redes de sociabilidades tecidas pela Família Ferreira Lage: O colecionismo de fotografias se popularizou através da criação dos formatos carte-de visite e carte-cabinet - fotografias montadas sobre cartão, nos formatos 10,5 x 6,5 cm e 16 x 10,5 cm, respectivamente, muitos populares no século XIX (FUNARTE, 2009). A possibilidade de feitura de cópias propiciou a criação dos álbuns de retratos de família. Estes álbuns eram peças de fabricação artesanal, muitos com encadernação em couro, fechos e cantoneiras de metal ornamentado. Um álbum “podia condensar a saga familiar, já que os antepassados falecidos antes do advento da fotografia poderiam ser contemplados através da reprodução de desenhos, gravuras ou pinturas, numa versão visual das árvores genealógicas” (VASQUEZ, 2002). O gosto pelo colecionismo de fotografias incluía a aquisição de retratos de grandes personalidades da cena política e cultural, adquiridos nos estúdios fotográficos. Parte destes retratos eram reproduções de desenhos, gravuras ou pinturas. Na coleção de fotografias oitocentistas do MMP estão presentes retratos de Napoleão Bonaparte e suas esposas, e de grandes cientistas e músicos e artistas da história da humanidade, como Rafael Sanzio, Chopin, Mozart, Wagner e Beethoven. Pensadores do iluminismo e filósofos também tiveram pinturas ou desenhos retratados e integram a coleção, como Rousseau, Condorcet, Voltaire, Kant e Spinoza, além de importantes escritores da literatura universal como Cervantes, La Fontaine, Molière e Shakespeare. Os retratados contemplados nos álbuns denotam a relevância da cultura universal no colecionismo da Família Ferreira Lage. Segundo Philipp Blom, Cada coleção é um teatro da memória, uma dramatização e uma mise-em-scène de passados pessoais e coletivos, de uma infância relembrada e da lembrança após a morte. Ela garante a presença dessas lembranças por meio dos objetos que as evocam. É mais do que uma presença simbólica: é uma transubstanciação. O mundo além do que podemos focar está dentro de nós e através delas, e por intermédio da comunhão com a coleção é possível comungar com ele e se tornar parte dele. (2003:219) A origem da coleção de fotografias do Museu Mariano Procópio confunde-se com a própria história da família Ferreira Lage. Há registros de álbuns que pertenceram à Mariano Procópio419 e Maria Amália Ferreira Lage. Em viagem à Europa, Maria Amália foi retratada 419 Em viagem à Europa, Mariano Procópio teria conhecido Louis-Jacques-Mandé Daguerre e se interessado pelo sucesso da daguerreotipia. (PINTO, 2008) Daguerre foi o primeiro inventor a patentear um processo fotográfico, chamado daguerreotipo, em 1839, na França. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 467 por Eugène Disdéri, célebre inventor do formato carte de visite, como demonstra a figura 03. Figura 02 (à esquerda): Mariano Procópio Ferreira Lage, Insley Pacheco, cerca de 1860. Acervo: MMP Figura 03 (à direita): Maria Amália Ferreira Lage, Disdéri, c. de de 1866. Acervo: MMP Os filhos do casal, Alfredo e Frederico Ferreira Lage, eram fotógrafos amadores vinculados ao fotoclubismo. Alfredo Ferreira Lage foi presidente do Photo Clube do Rio de Janeiro. Segundo Adriana Pereira (2010), foi o mais ativo dos fotógrafos amadores do Clube, chegando a publicar 11 fotografias na Revista Renascença. Foi premiado na Primeira Exposição do Photo Club, em 1904. Foi premiado ainda com medalha de ouro na Exposição Nacional de 1908, no Rio de Janeiro. Apresentou seus trabalhos na França e na Exposição Internacional da Indústria e do Trabalho em Turim, em 1911 (FERRAZ, 2012). Parte dessas imagens de Alfredo Ferreira Lage integrou o circuito expositivo do MMP, conforme consta no Arrolamento de 1944, compondo dois grandes quadros (número de arrolamento 233), com legendas em francês, que já ficavam expostos da Villa (“Castelo”), no primeiro andar (hall e corredor). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 468 Figura 04: Alfredo Ferreira Lage, L. Musso & Cia, c. de 1905. Acervo: MMP A prima de Alfredo e Frederico, Amélia Machado Cavalcanti420, Viscondessa de Cavalcanti, também esteve intimamente ligada à cultura visual do século XIX e início do século XX. Foi importante doadora de acervo ao Museu Mariano Procópio, especialmente ao Arquivo Fotográfico, com álbuns de fotografias e cartões postais. Entre suas doações destacam-se os álbuns da Exposição Universal de 1889421 e 1900 e vasta coleção de cartões postais sobre temáticas diversas: a Família Imperial, paisagens e monumentos de diversas regiões do Brasil e do mundo, catedrais, além de uma série alusiva à Primeira Guerra Mundial. 420 Esposa de Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque, político e magistrado do Império Brasileiro. Colecionadora de fundamental importância para o acervo do Museu Mariano Procópio. De cultura refinada, era profunda conhecedora em numismática, era botânica, musicista, cartofilista. Dou estatuetas, leques, telas, medalhas entre outros objetos ao Museu Mariano Procópio. 421 A Viscondessa de Cavalcanti atuou junto ao marido, que foi comissário-geral do Brasil na Exposição Universal de 1889, em Paris, em que se comemorava o centenário da Revolução Francesa. O Museu Mariano Procópio abriga significativo acervo sobre as Exposições Universais, entre objetos, documentos, livros e fotografias, fruto da participação dos Cavalcanti no evento. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 469 Figura 05: Viscondessa de Cavalcanti, Numa Blanc Fils, cerca de 1880. Acervo: MMP A identificação e análise das redes de sociabilidades construídas pela Família Ferreira Lage – fundadora do Museu Mariano Procópio (MMP), na figura de Alfredo Ferreira Lage, são fundamentais para a compreensão de como se deu formação da coleção de fotografias oitocentistas no acervo deste museu. Nesse sentido, é importante compreender como seu deu a formação desta coleção, sua trajetória, apontando os principais doadores, possíveis critérios de organização das imagens em álbuns, os interesses e gostos no que se refere ao colecionismo de fotografias no contexto do século XIX. Em outras coleções do MMP, a procedência através de aquisição em leilões é bastante comum. Através da análise da documentação iconográfica e da documentação escrita relativa à procedência do acervo, pode-se observar que, na coleção de fotografias oitocentistas, a formação se deu de formas variadas: a doação, aquisição, atuação pública de membros da Família Ferreira Lage, e especialmente, o uso das imagens como forma de estreitamento dos laços sociais entre as famílias abastadas no Brasil da segunda metade do século XIX. As imagens da Coleção da Família Imperial. O acervo de caráter privado e familiar, especialmente as fotografias, foi incorporado à coleção do MMP, assumindo um caráter de documentação pública. Dentre os temas que envolvem a fotografia oitocentista no acervo do MMP, destacam-se a coleção de fotografias da Família Imperial Brasileira422, que evidenciam as 422A presença de fotografias da Família Imperial Brasileira numa coleção, por si só, não representa estreitas relações sociais e influência na corte, já que imagens da Família Imperial podiam ser livremente adquiridas em ateliês fotográficos no Brasil e no exterior. Porém, este não é o caso da coleção do MMP, já que muitas dessas Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 470 relações entre a Família de Mariano Procópio e os soberanos do Império, que mesmo após o exílio, continuaram mantendo relações e contatos com Alfredo Lage e a Viscondessa de Cavalcanti. Algumas imagens registram as diversas visitas de membros da Família Imperial à residência, desde a época de Mariano Procópio, até encontros com Alfredo Ferreira Lage e Geralda Armond, já como Museu. A coleção contempla ainda álbuns e fotografias avulsas, nos formatos “carte de visite” e “carte cabinet”. Entre os retratados estão os membros da Família Imperial, a própria Família Ferreira Lage e outros membros de famílias abastadas do Império, personalidades e da nobreza da época, especialmente a europeia. A nobreza austríaca e Napoleão III, imperador francês, tem papel de destaque na coleção. Os chamados “tipos humanos”, de turcos a árabes, de negros a indígenas são significativos no acervo. Destacam-se os tipos retratados em suas atividades profissionais como soldados, bombeiros, vendedores dos mais variados, sacerdotes, engraxates, limpadores de chaminés, entre outros. Apesar de o retrato ter sido o tema predominante no século XIX, a coleção guarda significativas imagens da cidade de Juiz de Fora, do Rio de Janeiro e outras cidades do Brasil e do mundo em diversos períodos. Uma das possibilidades de formação da coleção de fotografias do MMP se deu através da aquisição. A Família Ferreira Lage e a Viscondessa de Cavalcanti adquiriram alguns exemplares, tanto de retratos quanto de “vistas panorâmicas”, de fotógrafos consagrados do século XIX, o que demonstra o gosto por colecionismo de fotografias, comum entre a elite oitocentista. Entre os fotógrafos podemos citar Marc Ferrez, Leuzinger, R. H. Klumb, e fotógrafos de referência internacional como Angerer, Reutlingler, Nadar, Giorgio Sommer, Pascal Sebah e Neurdein. Entre os álbuns adquiridos, importantes coletâneas de cidades europeias como Milão, Roma, Marienbad e Constantinopla. Acreditamos que as amplas redes de sociabilidade construídas ao longo do tempo pela Família Ferreira Lage também possam ter contribuído de forma significativa para a constituição do acervo fotográfico, especialmente do que diz respeito às fotografias oitocentistas. fotografias e cartões postais são autografados e vários contem algum tipo de comunicação escrita. Há ainda diversos elementos que ratificam a relação entre a Família Imperial e a Família Ferreira Lage, que extrapolam o objetivo deste artigo. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 471 Entre as redes de sociabilidades criadas pela Família Ferreira Lage, podemos as relações com a Família Velho de Avelar. Um dos álbuns de retratos em formato carte de visite, pertencente à coleção, foi doado pela Família da Baronesa de Muritiba423, Maria José Velho de Avellar, filha do Visconde de Ubá, casada com Manoel José Vieira Tosta, barão de Muritiba. A Baronesa de Muritiba era amiga íntima da Princesa Isabel e sua dama de companhia. Residiu por um tempo em Juiz de Fora, onde o marido foi magistrado. Raros daguerreótipos do Senador Firmino Rodrigues Silva e da esposa podem demonstrar as relações deste importante politico mineiro do século XIX com a Família Ferreira Lage. Nas fontes pesquisadas não foi possível identificar a forma de entrada desses objetos, mas há possibilidade de que tenham entrado no acervo através de doação, uma vez que o daguerreótipo é uma imagem única, sem cópias. Essas imagens certamente pertenciam à família e podem ter entrado no MMP através de doação. No arrolamento de 1944, foi possível identificar que os daguerreótipos ficavam expostos na Galeria Maria Amália, integrando a coleção de Alfredo Ferreira Lage. Há ainda outros objetos (uniforme e placa da Ordem da Rosa) e documentos do Senador Firmino Rodrigues no acervo do MMP. Alguns desses objetos ficavam expostos na Sala Conde de Prados, segundo o Guia Histórico do MMP. 423 Descrição da doação: “Um álbum duplo CDV, com capa ornamentada e cantos lavrados, de origem alemã (Munich), contendo photografias de testas coroadas, datando até 1868 e alguns posteriores da Família Imperial etc. Ao todo 75 photographias”. Arquivo Histórico: Pasta MMP/AFL-02, álbum doado em 1929. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 472 Outro personagem presente na coleção é Pedro Antônio Freez, Tenente da Guarda Nacional. Nas fontes pesquisadas não foi possível apontar a forma de entrada da fotografia de grandes proporções no acervo, o que pode ter se dado por doação. O Guia Histórico do MMP indicava que a imagem ficava exposta na Sala Duque de Caxias, com outros objetos deste militar brasileiro. Duas importantes fotografias da Guerra do Paraguai e uma fotografia do Barão João Ribeiro de Almeida, conselheiro do Império e médico da Família Imperial, foram doadas pela família, na figura da filha, Cecília Ribeiro de Almeida. Há na coleção algumas fotografias do Conde Mota Maia e esposa, do Duque e Duquesa de Caxias, Barão e Baronesa de São Joaquim e José Bonifácio de Andrada e Silva. A Família Armond, lado paterno de Alfredo Ferreira Lage, também continuou fazendo doações para o MMP, como as fotografias do Conde de Prados. As trocas de fotografias e doações destes documentos ajudam a compreender “as formas de ser e pensar do século XIX, assim como permitem compreender as complexas redes de sociabilidade do período” (MUSEU MARIANO PROCÓPIO, 2006: 30) e as práticas de auto-representação da elite oitocentista. Essas redes de sociabilidades se mantiveram ao longo do tempo, mesmo após a criação e transformação do Museu Mariano Procópio em uma instituição pública. Após o falecimento de Alfredo Ferreira Lage, as doações não cessaram. Geralda Armond mobilizou membros da família e amigos da rede de sociabilidade para a ampliação do acervo. Os sobrinhos de Alfredo Ferreira Lage fizeram importantes doações neste período. Muitos conselheiros do Conselho de Amigos do MMP424 são descendentes de famílias com as quais os Ferreira Lage mantiveram laços sociais desde o século XIX e início do século XX. Algumas dessas famílias se transformaram, além de membros do Conselho, em importantes doadores de acervo ao MMP como a Família Ribeiro de Oliveira, Família Surerus e Família Arcuri. A atuação pública da família Ferreira Lage também contribuiu de forma decisiva para a formação da coleção de fotografias oitocentistas. Há no acervo uma fotografia panorâmica da propriedade de Mariano Procópio, intitulado “Chateau de Juiz de Fora”, de fotógrafo não identificado. A panorâmica foi oferecida por Mariano Procópio à Comissão 424 Alfredo Ferreira Lage foi criador e o primeiro presidente do Conselho de Amigos do MMP. Sua criação consta na cláusula sexta da escritura de doação da instituição ao município. Não tem função executiva e administrativa, mas tem como objetivos principais zelar pelo cumprimento dos termos da doação e cooperar pelo engrandecimento do museu. Composto por 30 membros. Os 30 primeiros foram nomeados pelo próprio colecionador. (MUSEU MARIANO PROCÓPIO, 2006) Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 473 Imperial da Exposição Universal de 1867. Mariano Procópio participou desta exposição como expositor e Membro da Comissão Imperial. Outro exemplo são os retratos autografados por artistas que se apresentaram no Teatro Juiz de Fora, empreendimento dos irmãos Alfredo e Frederico Ferreira Lage, criado em 1889 e que funcionou até a década de 1920. A atuação pública da Família Cavalcanti também contribuiu para a formação da coleção, com álbuns da Exposição Universal de 1889 e 1900. Há ainda o cartão de credenciamento da Viscondessa na Exposição de 1889. O gosto pelo colecionismo de fotografias no século XIX contempla a acumulação de retratos de importantes personalidades da época, tanto no Brasil quanto no exterior, como é o caso de Alan Kardec, da atriz francesa Sarah Bernhard, dos escritores Victor Hugo, Alexandre Dumas, Theóphile Gautier, além de Garibaldi, e Agassiz425. Parte das fotografias e cartões postais da coleção foi autografado e/ou contem breves comunicações, o que demonstram o uso social dessas imagens neste período. A análise dessas mensagens aliada à analise iconográfica são importantes ferramentas de compreensão da tessitura dessas redes das famílias da elite no século XIX e início do século XX. O estudo sobre a relação entre as redes de sociabilidades da família Ferreira Lage e formação da coleção de fotografias oitocentistas no acervo do MMP busca contribuir para a compreensão da fotografia oitocentista, para a análise dos usos sociais da fotografia na construção de redes de sociabilidade e do gosto e das características do colecionismo das famílias da elite brasileira do século XIX. Referências Bibliográficas: BLOM, Philipp. Ter e Manter: uma história íntima de colecionadores e coleções. Rio de Janeiro: Record, 2003. FERRAZ, Rosane Carmanini (org.) Catálogo Família Imperial Brasileira no acervo do Arquivo Fotográfico do Museu Mariano Procópio. Juiz de Fora (MG): Museu Mariano Procópio, 2011. 425 Naturalista suíço que, em viagem no Brasil, visitou a Estrada União Indústria. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 474 FERRAZ, Rosane Carmanini (org.) Catálogo A fotografia amadora e a família Ferreira Lage: Alfredo e Frederico Ferreira Lage. Juiz de Fora (MG): Museu Mariano Procópio, 2012. Clara Mosciaro (org.). FUNARTE/ Diagnóstico de conservação fotográfica no Brasil. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2009. MUSEU MARIANO PROCÓPIO. São Paulo: Banco Safra, 2006. PEREIRA, Adriana Maria Pinheiro Martins. A cultura amadora na virada do século XIX: a fotografia de Alberto de Sampaio (Petrópolis/Rio de Janeiro, 1888-1914). São Paulo: PPGHS/USP, 2010 (tese de doutorado). PINTO, Rogério Rezende. Alfredo Ferreira Lage, suas coleções e a constituição do Museu Mariano Procópio – Juiz de Fora, MG. Juiz de Fora: PPGH/UFJF, 2008. (dissertação de mestrado) PREFEITURA MUNICIPAL DE JUIZ DE FORA. Arrolamento dos bens artísticos, históricos e científicos do Museu Mariano Procópio. Juiz de Fora, 1944 Geralda Armond (org.). Guia histórico do Museu Mariano Procópio. Juiz de Fora: PREFEITURA MUNICIPAL DE JUIZ DE FORA., 1978 VASQUEZ, Pedro Karp. A fotografia. 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Discursando acerca da função racionalizadora da pragmática textual, o autor em questão apontou o significado da teoria da história para a historiografia, fazendo o uso e refletindo sobre o que ele chamou de teoria da teoria da história – metateoria. Nesse artigo, pretendo propor diálogos e reflexões acerca do pensamento do alemão Jörn Rüsen, articulando, entre outras abordagens, a maneira como o conhecimento histórico se reestrutura. Assim, pretendo tornar perceptível que esse conhecimento não se modifica, o que muda são as perspectivas de análise ou as ideias acerca de determinado objeto. Palavras-chave: 1) Metateoria; 2) Racionalidade; 3) Conhecimento Histórico Abstract: Rationality is the axis of the historical thought Jörn Rüsen. From there the practice of the historian is structured or constructed. To live in harmony with the work practice of recounting, Jörn Rüsen reflection identifies the element able to support the science of history. Addressing the book Historical Reason scientific historical thought, Rüsen intended to highlight the issue of legitimacy and in scientific history. Speaking about the purpose of rationalizing pragmatic text, the author in question pointed out the significance of the theory of history to historiography, making the use and reflecting on what he called the theory of historical theory - metatheory. In this article, I propose dialogues and reflections on the thought of German Jörn Rüsen, linking, among other approaches, how historical knowledge is restructured. So, I want to become apparent that this knowledge does not change, what changes are the analytical perspectives or ideas about a given object. Keywords: 1) metatheory, 2) Rationality, 3) Historical Knowledge A obra Teoria da História: Os Princípios da Pesquisa histórica, dividida em três volumes é o resultado de uma década de reflexões condizentes aos limites, fundamentos e possibilidades do conhecimento histórico. Reflexões estas que foram elaboradas pelo Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 476 alemão Jörn Rüsen, historiador que desde a década de 1960 (com sua tese de doutorado sobre o pensamento de Droysen) tem militado no campo da teoria da história. Os três volumes da obra são: Razão Histórica, Reconstrução do Passado e História Viva (publicados, respectivamente em sua versão original em 1983, 1986 e 1989). Explanar-se-á a introdução e o capítulo 1 do terceiro volume da obra426. O titulo: Razão histórica427 têm dois objetivos: indicar os fundamentos do conhecimento científico e abordar a pretensão da racionalidade que a ciência da história possui com relação a seu modo específico de pensar historicamente. Jörn Rüsen questiona acerca da razão na história, indagando se a história possui um sentido cognoscível na medida em que procura descobrir como se constitui o pensamento sobre a história que se apresenta como ciência. Para o autor, há uma carência que desafia a ciência por dois motivos: o primeiro é a racionalidade do tratamento da história e, o segundo a reflexão humana sobre a história, cuja finalidade é obter um conhecimento histórico com o qual se pode situar qualquer um no processo do tempo. Rüsen elenca uma série de indagações em sua obra, tais como: É possível que a ciência da história se considere racional e ao mesmo tempo, se declare incompetente para tratar da questão acerca da razão na história? Como engajar a pretensão de racionalidade da ciência da história justamente na questão referente à presença da razão na história? O que tem a ver uma teoria sobre a ciência da história com a própria teoria da história? Por que razão a pesquisa empírica deveria seguir as recomendações de pensar a si mesma e deixar-se guiar por considerações teóricas, das quais não se tem certeza, desde o inicio, se o como desembocariam na práxis da pesquisa histórica e na historiografia? Do que o pensamento histórico deve prestar contas, se quiser ser científico? E que forma deve tomar essa prestação, para poder ser reconhecida como um modo de pensar que a ciência da história integre em seu potencial de racionalidade? De acordo com Jörn Rüsen, a teoria da história tem por objetivo analisar o que sempre foi a base do pensamento histórico em sua versão científica e que, sem a explicitação e a explicação por ela oferecidas, nunca passaria de pressupostos e de fundamentos implícitos. 426 Contudo, a divisão desse volume pode ser dada da seguinte maneira: Rusen pretende definir os princípios, tarefas e funções da teoria da história no capítulo 1. No capítulo 2, o autor verifica como na vida prática dos homens o pensamento histórico se constitui. No terceiro capítulo o autor pretende analisar a constituição dos métodos na ciência histórica e, por fim no capítulo 4,Rusen aborda a construção da narrativa na teoria da história. 427Rüsen trabalha com os seguintes definições de: a) História: processo temporal do agir racional humano em geral; b) Ciência da História: historia como produto da operação cientifica da história acadêmica/investigativa; c) História enquanto e como ciência: processo histórico de regulação metódica da pesquisa que leva ao conhecimento genético a plausibilidade racional e controlável da ciência. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 477 Com a teoria, o pensamento histórico expande sua capacidade de fundamentar-se e de criticar-se. Razão, no pensamento de Jörn Rüsen, designa o que caracteriza o pensamento histórico que se processa na forma de um debate movido pela força do melhor argumento. Os conceitos tendem a esclarecer-se quando o pensamento histórico reconhece sua aptidão à racionalidade também na operação de explicitar-se por seus princípios. A auto-reflexão é um elemento vital no dia-a-dia da ciência. Não se pode de forma alguma pensar um processo histórico de conhecimento em que o próprio sujeito do conhecimento deixasse de debruçar-se sobre si mesmo. Na concepção de Rüsen, o cotidiano do historiador constitui a base natural da teoria da história e, a efetivação teórica ganha, no paralelo com a prática, amplitude e profundidade. A teoria da história é aquela reflexão mediante a qual o pensamento histórico se constitui como especialidade científica. Mas isso não ocorre automaticamente, é necessário que os profissionais sejam especialistas no manejo da especificidade científica do pensamento histórico. A competência especializada do historiador começa no estudo da história, a fim de formar um conjunto e é através da teoria que essa visão é adquirida. Mas o que a teoria da história põe em evidência como a “totalidade” da ciência da história? O autor propõe uma reconstituição do processo lógico dedutivo partindo do ponto onde a vida corrente surge como consciência histórica ou o pensamento histórico que está instaurado na carência humana de orientação do agir e do sofrer os efeitos das ações no tempo. Os interesses são determinados por carências cuja satisfação pressupõe, da parte dos que as querem satisfazer, que esses já as interpretem no sentido das respostas a serem obtidas. Eles são abordados pela teoria da história a fim de poder expor, partir deles, o que significa pensar historicamente e por que se pensa historicamente. Rüsen propõe um modelo de estudo para explicar as funções da ciência da história. Esse modelo estrutura-se sob a forma de uma matriz disciplinar. O primeiro fator da dela é formado pelas carências fundamentais que se articulam na forma de interesses cognitivos pelo passado. O segundo fator decorre da resposta à pergunta: como e possível que se constitua algo chamado “história” quando as carências dos homens na prática de suas vidas no tempo são satisfeitas? Devem-se instituir critérios de sentido porque são eles que regulam o trato reflexivo dos homens com seu mundo e consigo mesmo. O agir humano é sempre determinado por significados e é intencional. As ideias são os referenciais supremos que emprestam significados à ação e à paixão. Elas servem à transformação de carências motivadoras em interesses em agi e constituem as Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 478 perspectivas gerais nas quais o passado aparece como história, formando modelos de interpretação e orientação da práxis humana no tempo. As ideias também são fatores da matriz disciplinar da ciência histórica que se incluem no segundo lugar. Delas depende o instrumental que o historiador traz consigo, ao formular suas conjunturas e ao interrogar as fontes acerca do que ocorreu no passado. Isso porque, nas fontes, não se pode reconhecer um passado que faça sentido como história. É essa inclusão da experiência concreta do tempo do passado que constitui propriamente o processo do conhecimento histórico. Os métodos da pesquisa empírica constituem o terceiro fator dos fundamentos da ciência da história. Funcionam como regulação do pensamento histórico, o que lhe possibilita produzir fundamentações específicas e lhe permite assumir o caráter de pesquisa, cujo conhecimento se exprime na historiografia (quarto fator), para a qual as formas de apresentação desempenham um papel tão relevante quanto o dos métodos para a pesquisa. A ciência da história assume funções de orientação existencial (quinto fator) na medida em que se quer saber por que é racional fazer história como ciência e em que consiste essa “racionalidade”. A interdependência dos cinco fatores: interesses (carências de orientação no tempo, interpretadas); ideias (perspectivas orientadoras da experiência do passado); métodos (regras da pesquisa empírica); formas (de apresentação); funções (de orientação existencial); do pensamento histórico é patente: em conjunto, eles constituem um sistema dinâmico, no qual um leva ao outro, até que, do quinto volta-se ao primeiro. Esses cinco fatores, ao se articularem na matriz disciplinar da ciência da história adquirem a especificidade que permite distinguir o pensamento histórico constituído cientificamente do pensamento histórico comum. A matriz disciplinar possui duas outras vantagens que são interdependentes: a) ela esclarece o contexto em que se relacionam a ciência da história e a vida prática dos homens no respectivo tempo; b) permite reconhecer que a história como ciência contribui para as mudanças na vida pratica dos homens no tempo. Significado da Teoria da História para o estudo da História Para responder a pergunta: Qual é a função da Teoria da História? Jörn Rüsen propõe a seguinte resposta: é da teoria que necessitamos para aprendermos a ver Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 479 corretamente a floresta e não nos perdermos na imensidão das árvores. Cientificamente, isso quer dizer que a teoria tem o papel de profissionalização didática dos historiadores, em que, deve-se aplicar na práxis uma reflexão metateórica acerca da matriz disciplinar. Para aperfeiçoar o questionamento referente a função da teoria da historia, Jörn Rüsen elencou 6 pontos de explicação ou 6 funções da teoria: propedêutica, coordenadora, motivadora, organizadora, de fundamentação e mediadora. A Função Propedêutica seria, tecnicamente, uma introdução correta para o estudo da história ou entende-se essa função como a primeira da teoria da história na inicialização dos estudos históricos. A Função Coordenadora é entendida como a combinação eficaz de diferentes disciplinas, benefícios da interdisciplinaridade. Rüsen fala da necessidade e da capacidade de complementação da história. Já, a Função Motivadora diz respeito ao dilema objetividade versus subjetividade. O autor aponta que no início da carreira acadêmica há uma pressão nos alunos acerca da necessidade da objetividade, mas para Rüsen levar a objetividade ao pé da letra pode concorrer para a perda de potencial na pesquisa histórica. Função Organizadora diz respeito à gestão da quantidade do material de pesquisa. Aqui tentamos aplicar o entendimento acerca: da escolha do objeto; do recorte temporal e da escolha da opção teórico-metodológica. Na Função de Fundamentação estaria a correspondência entre o gerenciamento do material da pesquisa, conciliação entre os requisitos científicos e a economicidade do trabalho e a justificativa das escolhas. Sempre presente a auto-reflexão. Por fim, apresenta-se a Função Mediadora, a qual entende-se como a condução da futura prática profissional. Essa última função elencada por Jörn Rüsen trata da mediação entre teoria e prática na profissionalização do historiador, o que acarretaria em competência profissional. Rüsen observa que a teoria da história não precisa, necessariamente, atuar como instrumento da ciência para se atingir a profissionalização do historiador. O caminho para a ocorrência da independência intelectual dar-se-ia por meio da auto-reflexão. Mais do que profissionalizar a ciência histórica, o pensamento histórico científico deve condicionar a união entre objetividade e subjetividade. Esse seria, entre outros, o sentido da teoria: ocupar um papel fundamental na reflexão referente a elaboração do saber, refletir não é Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 480 somente elaborar mas também promover uma auto-reflexão do pensamento histórico que toma forma no trabalho cotidiano da pesquisa histórica. (RUSEN, 2001: p.25-6) Significado da Teoria da História para a pesquisa histórica Com a pesquisa, criam-se instrumentos de análise e desenvolvem-se formas de problematização, mas, a pesquisa não é concebível sem a reflexão acerca do processo de investigação. Os interesses devem ser canalizados para a força que move o progresso cognitivo da ciência da história, ou seja, as pesquisas que tem surgido nesse século precisam direcionar-se para temáticas quem venham a contribuir com o progresso do conhecimento histórico, para que se ampliem os debates referentes a cientificidade da história. Pesquisar sustentadas e elaboradas podem legitimar o ofício do historiador. Jörn Rüsen tenta relacionar as seis funções trabalhadas anteriormente, aplicando-as na pesquisa histórica. Contudo, é a função teórica de fundamentação a responsável por produzir um progresso cognitivo (entendido como aperfeiçoamento do conhecimento científico). Portanto, a condição para o processo de progresso cognitivo é a teoria historia, acompanhada da metateoria (da teoria da teoria da história). O autor lembra que as ideias, as perspectivas que orientam a pesquisa sobre o passado trazem para a pesquisa histórica novas articulações com o conhecimento outrora produzido. Mas, ao mesmo tempo, faz questão de apontar que a pesquisa não aperfeiçoa o conhecimento acerca de um determinado objeto. Contudo, o autor identifica que a pesquisa é uma etapa importante porque reestrutura um conhecimento sobre o passado. Significado da Teoria da História para a historiografia Nos últimos decênios do século passado, a escrita da história percorreu caminhos que a levaram a passar por profundas transformações no que se refere as teorias do conhecimento, em suas diversas áreas. Essas rupturas epistemológicas advindas com a renovação historiográfica, sobretudo do Annales, passaram a debater questões que priorizavam a dúvida e a incerteza da história enquanto campo de conhecimento. A problematização das observações filosoficamente construídas acerca da narrativa histórica – metanarrativa – concorreu para que a própria história fosse posta sob a dúvida, sendo, por vezes “negada” por alguns escritores que passavam a desconfiar das verdades históricas estabelecidas ao longo do tempo. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 481 É, por meio de um sistema de referências, que o historiador, faz, no dia a dia de seu ofício, o enquadramento do que lhe convém para a historiografia e, também trata de excluir os dados que não lhe proporcionam conteúdo empírico. Michel de Certeau, em A Escrita da História (1982) indica que o historiador recorta a experiência e estabelece um jogo de afastar e incluir dados para, posteriormente produzir sua obra – a operação historiográfica. Assim, mais do que um procedimento epistemológico, a escrita da história seria determinada por posicionamentos ora políticos, ora estratégicos, já que essa operação se relaciona com posturas variadas. Nas palavras do autor, (...) a historiografia tem, esta particularidade de aprender a invenção escrituária na sua relação com os elementos que ela recebe, de operar onde o dado deve ser transformado em construído, de construir as representações com os materiais passados, de situar, enfim, nesta fronteira, do presente onde simultaneamente é preciso fazer da tradição um passado (excluí-la), sem perder nada dela (...). (CERTEAU, M. 2006, p. 18). Ao praticar a historiografia, o historiador encontra-se em uma incessante busca pelos resultados que melhor o satisfaça. Ele migra de fonte em fonte e fixa-se naquela que lhe proporciona um diálogo capaz de normatizar a sua prática e tornar seu trabalho peculiar, uma vez que, na consciência do historiador ele sabe que seus pares farão a leitura de seu trabalho. É nesse ponto que Certeau argumenta que no trabalho da escrita histórica não existe objetividade extrema, seu resultado foi articuladamente construído em meio a diversas possibilidades, tendo sido feita sua escolha de maneira subjetiva, inerente ao indivíduo historiador. Para Jörn Rüsen, o significado da teoria da história para a historiografia – considerada por ele como função racionalizadora da pragmática textual – enquanto constituição da história como ciência é visto por alguns historiadores contemporâneos como uma abordagem secundária. O autor critica esse posicionamento da teoria, sobretudo porque a considera como produtora de reflexões responsáveis por formular conceitos condizentes com os princípios que orientam o trabalho de produção da escrita da história. Na concepção de Rüsen, é por meio da razão histórica que a história constitui-se como ciência e, a partir desse aspecto, vê na tarefa historiográfica o dever de torná-la acessível ao público a que se destina, ou seja, redigir o saber histórico. A etapa historiográfica da pesquisa é ativa na ciência histórica e tem como função preservar o progresso do conhecimento, o qual Rüsen nomeou como processo de progresso cognitivo. Portanto, no significado da teoria da história para a historiografia, a teoria deve aparecer sob muita reflexão acerca do “pensar sobre o pensamento histórico” para depois Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 482 barganhar pela sua racionalidade, sua legitimidade. Suas teses indicam que o caminho para a ocorrência da independência intelectual dar-se-ia por meio da auto-reflexão, que é um termo largamente utilizado pelo autor em suas obras. Mais do que profissionalizar a ciência histórica, o pensamento histórico científico, para o autor, deve condicionar a união entre objetividade e subjetividade. Significado da Teoria da História para a formação histórica Com o verbete Formação Histórica, Jörn Rüsen refere-se aos processos de aprendizagem diversos, que não se vinculam propriamente a um espaço de competência profissional. Exemplos de mecanismos de aprendizado histórico que auxiliam na formação histórica é um campo heterogêneo: o ensino de história nas escolas; a influência dos meios de comunicação sobre a consciência histórica; o papel da história na formação dos adultos, etc. Nesse campo múltiplo do aprendizado histórico encontram-se os processos de aprendizagem específicos da história e também nele estão presentes os processos orientadores da vida dos homens por intermédio do que Rusen chama de consciência histórica, forma de consciência que se relaciona com a vida prática, e que ocorre quando interiorizam-se informações relevantes, tornando-se instrumentos da consciência, da mente do homem para então usá-las como peças para orientar e dar sentido ao cotidiano do sujeito. Nas palavras do autor, a noção de consciência histórica, não pode ser equacionada como simples conhecimento do passado, (...) [ela] dá estrutura ao conhecimento histórico como um meio de entender o tempo presente e antecipar o futuro. Ela é uma combinação complexa que contém a apreensão do passado regulada pela necessidade de entender o presente e de presumir o futuro. (RÜSEN, J. 2011, p. 36-37). Ele ainda acrescenta que a consciência histórica pode ser analisada como um conjunto de operações mentais que definem a peculiaridade do pensamento histórico e a função que ele exerce na cultura humana428. Essa consciência manifesta-se através da narrativa, de seu uso e de sua produção, e é, por sua vez, pela narrativa que se dá o aprendizado histórico. Também é encaminhado para o entendimento da formação histórica, o significado da teoria da história para a historiografia uma vez que, não importa a maneira como a 428 Idem, Ibidem p. 37. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 483 historiografia é apreendida pelo educador ou mesmo pelo aluno. É a função racionalizadora da pragmática textual – a prática da narrativa do historiador – que atuará como veículo profissionalizante do sujeito historiador. Nessa etapa da escrita, deve haver uma imensa cautela do escritor para com o seu ofício, pois, podendo ser a posteriori julgada por bom ou ruim, determinado texto historiográfico influenciará o aprendizado da história através do ensino. Isso ocorre porque o sujeito aluno faz escolhas na hora de receber os conteúdos aprendidos na escola, ele filtra as informações que quer guardar e pode optar atentar-se a determinada aula de história logo quando, justamente naquele dia, seu educador se encontre desmotivado e escolhe não problematizar o texto agendado para aquela aula. Outro mecanismo de formação histórica pode ser identificado nas aulas digitais, disponíveis na web, as quais, muitos educadores fazem o download delas para complementar suas aulas ou, ainda, os próprios alunos procuram assisti-las para ter um suporte além da escola. Caso o aluno encontre nessa ferramenta alguma informação que ele considere relevante, provavelmente essa informação será interiorizada e possivelmente, em outra ocasião, essa informação será por ele lembrada durante suas aulas de história. Aqui, entende-se a interiorização de um conceito que a partir da consciência histórica tornou-se ferramenta mental do sujeito. Vale lembrar que grande parte das informações buscadas pelos indivíduos tendem a orientar seu quotidiano. Na concepção da formação histórica e sua relação com a teoria da história, Jörn Rüsen também identifica uma função orientadora do conhecimento histórico, pois, a teoria orienta os resultados cognitivos da ciência da história para os processos de aprendizagem da formação histórica. Assim, entende-se que essa função didática de orientação torna-se uma teoria do aprendizado histórico, que, por sua vez, não deixa de transpor uma pretensão de racionalidade. Para Rüsen essa não é uma preocupação apenas da academia como também do ensino da disciplina história nas escolas. Ele concorda ser um equívoco a pretensão do currículo de história tratar essa disciplina como uma miniatura da especialidade cientifica. Há uma enorme diferença entre ensinar história nas escolas e o aprender (ou construir o conhecimento histórico) na academia. Criticando a estrutura curricular do ensino de história, Jörn Rüsen infere que os métodos da pesquisa histórica são distintos do método do ensino de história. Para Rüsen, essa diferenciação fica evidente quando fazemos uma reflexão sobre os Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 484 fundamentos do ensino escolar e, separadamente uma reflexão dos fundamentos da teoria enquanto disciplina especializada. Caberia então, ao profissional da história a tarefa de racionalizar a prática da sua escrita e, consequentemente do seu ensino para que as aulas de historia deixem de serem entendidas como vazias de significado e passe a possibilitar aos educandos entenderem seu sentido, passando a adquirir a consciência histórica e atuarem como protagonista no seu cotidiano, contribuindo para o progresso do conhecimento. Referências Bibliográficas: CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. . Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. RUSEN, JORN. Razão Histórica. Teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Tradução de Estevão de Rezende Martins. Brasília: Ed. UNB, 2001. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 485 Hegel e a Razão moderna radicalizada no Espírito Augusto Leite Mestrando em História pela UFMG / Bolsista CAPES-Reuni augustobrunoc@yahoo.com.br Resumo: A Razão moderna, destituída do suposto “engano” da teologia cristã-medieval, caracteriza-se pela sua humanização. Ao mesmo tempo, projeta-se a divinização do homem enquanto ser imbuído de potência criativa e dominador da natureza. Por meio da ciência, da metafisica, da matemática e da técnica o homem não só se torna parceiro de Deus na criação como, na mentalidade moderna, aproxima-se cada vez mais de sua atualidade divina, rememorando ou reconhecendo os nomes naturais dos seres, tal como Bacon preconizava. É a Razão na história, realizando-se. A Vernunftglaube – fé na Razão –, não renega a Deus, mas a necessidade de sua Graça para alcançar a salvação, agora, tarefa do homem. A Razão na história tem em Hegel seu apóstolo maior. A Razão hegeliana, confundindo-se com o próprio Deus, sintetizaria as leis da natureza geométrica – ciência moderna – e da metafisica da lógica das ideias – filosofia idealista – na concepção de Espírito, ou a História. Palavras-chave: História, Espírito, Razão. Abstract: The Modern Reason, devoid of supposed "mistake" of Christian medieval theology, it is characterized by it is humanization. At the same time, the deification of man, as being imbued with creative power and nature lord is projected. With science, metaphysics, mathematics, technic, man not only becomes partner with God in creation but also, in the modern mind, he is approaching more and more of his divine actuality, remembering and recognizing the natural names of beings, as Bacon advocated. It is the Reason in History, performing herself. The Vernunftglaube - Faith in Reason - does not deny God, but deny the need for His grace for salvation, now a man's task. The Reason in History have in Hegel his greater apostle. The Hegelian Reason, mingling with God himself, summarize the laws of geometric nature - modern science - and the logic of metaphysical ideas - idealist philosophy - in the conception of Spirit, or History. Keywords: History, Spirit, Reason. A retomada da Razão antiga como Razão purificada na modernidade Do apogeu ao fim do mundo pós-romano – a chamada idade média –, sente-se a presença de um sentimento de irrealização do plano de Deus – Razão – na terra, segundo o historiador José Carlos Reis. A cidade de Deus de Santo Agostinho não vinga. E os homens da cristandade ocidental, digladiando-se constantemente, descobrindo o novo – Américas, Índias, extremo-Oriente –, sentem-se fora do plano de Deus que, então, não condizia com a experiência que eles viviam. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 486 A partir do fim do que se entende como medievo, “a cultura profana retoma seu combate à cultura sagrada” (REIS, 2003: 25); a Razão, axioma do Ser-ocidental, é acionada para pensar a si mesma. E “o próprio homem europeu se contesta!” (REIS, 2003: 25). O chamado Renascimento faz ressurgir as discussões pré-cristãs acerca da Razão. E se a Razão-teológica, aquela de Justino de Roma429, não se mostra mais eficaz, era preciso purificá-la, atualizando-a. Esse seria o movimento engendrado pelos renascentistas. Auxiliados pelas escolas de tradução, os renascentistas acessam os textos antigos de Aristóteles, Platão, Sócrates, Euclides, Arquimedes. Esses são nomes que Petrarca, Erasmo de Roterdã, Giordano Bruno, Galileu, conhecem e discutem, atualizando-os e os introduzindo nas questões dos séculos XV e XVI430. O homem moderno dirige sua vida, seus planos, conforma e confronta sua identidade, cria e resolve problemas, tudo, fiando a lógica de seu raciocínio, ainda, segundo a Razão. Mas se ela não se mostrou suficiente na antiguidade e na cristandade, porque seria agora, na modernidade? Não era possível solucionar tal questão fora dos limites da Razão, inexorável do Ser-ocidental; tanto que se tornara seu axioma. Portanto, o problema não estaria na Razão em si, mas sim nos usos que se fez dela. Era preciso purificá-la! É esse homem moderno que se chama assim: moderno. É ele e seus historiadores quem dão a alcunha de idade das trevas, moyen age, middle age, ao período compreendido entre – no meio de – o classicismo antigo, grego e romano, e eles mesmos, os modernos: a vanguarda que empreendia a purificação da Razão! “Se identificaban a sí mismos como ‘modernos’ que se oponían a los ‘antiguos’ [os teológicos] modos de pensamento y prácticas” (SHAPIN, 2000: 22). Se não necessariamente promoveram uma revolução431, sentiam-se de fato revolucionários. (...) muchas figuras clave de finales del siglo XVI y del siglo XVII expresaron energicamente su conviccíon de estar proponiendo algunos câmbios muy nuevos y muy importantes en el conocimiento de la realidade natural y em las prácticas mediante las que se podia adquirir, evaluar y comunicar el conocimiento legítimo. (SHAPIN, 2000: 22) 429Flavius Iustinus, ou São Justino, o mártir, consagra a expansão cristã através de suas apologias, as quais são conhecidas por rearranjar os conceitos gregos de logos dentro de uma lógica judeo-helênica-cristã. (Cf. BLUNT, 1911) 430 Segundo Alexandre Koyré num texto sobre a renascença em Estudos de História do Pensamento Científico: “os grandes textos científicos gregos que eram desconhecidos ou mal conhecidos, na época anterior, são traduzidos editados ou retraduzidos e reeditados” (KOYRE, 1982: 161). 431 Não interessa aqui discutir se houve ou não “Revolução Científica”, interessa discutir os discursos e sua relação de dependência com a Razão; a re-apropriação do conceito na história para corroborar práticas, discursos. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 487 O sentido revolucionário é latente nesses discursos que propõem um motivo supremo, supra-individual, à vida humana. A capilaridade dessa Razão, irresistível ao ocidente europeizado, foi de grande abrangência. Ela alcançou desde os limites sóciopolíticos, econômicos, até os teórico-cosmológicos, filosóficos. Ações de mimese da moderna filosofia natural, ou Ciência moderna europeia – mecânica newtoniana e modelo empirista-racional de Bacon e Descartes –, das convulsões Sociais – Inglesa, Francesa, Socialistas – foram diversas. Isso, no mundo ocidental e oriental. O Oriente, que nunca se deixara seduzir pelo mundo temporal, mantinha-se dominado pela ética mística da recusa do mundo. E acabou sendo vítima dessa revolução cultural europeia. Os outros continentes viram desembarcar em seus litorais esse estranho homem europeu moderno, enlouquecido, articulando um discurso religioso fanático e agindo furiosamente contra sua própria salvação! (REIS, 2003: 25-26) Essas ações eram enunciadas como parceiras da liberdade, igualdade, fraternidade e atualidade! É a marcha do espírito hegeliano – fruto desse empreendimento – em ação. O homem que antes agia sob a égide da Razão teológica, passivo diante dessa, atua agora junto com a Razão purificada, destituída do que se entendia como o engano da teologia. Entende o homem moderno ser ele parceiro de Deus na criação; a Razão é seu instrumento, dadiva divina que serve ao homem. Immanuel Kant produz sua utopia racional, onde a Razão purificada, decantada, livre do engano, espelho da verdade, não mais a religião e sua Razão-teológica, traria a universalização, “reunificação da humanidade” (REIS, 2003: 28). O homem moderno procura sua salvação, agora, fora dos limites da religião. A História como Espírito racional e salvador A Razão pura da modernidade, destituída do que ela entendia como o engano da teologia cristã-medieval, caracteriza-se pela sua humanização. Se antes a Razão era atributo divino para descrever o divino, apenas, agora ela se humaniza; torna-se atributo humano, como na antiguidade – Fílon de Alexandria432 – era. Ao mesmo tempo, projeta-se a divinização do homem, enquanto ser imbuído de potência criativa e dominador da natureza. Por meio da ciência, da metafisica, da matemática e da técnica o homem não só se torna parceiro de Deus na criação, como, para a modernidade, aproxima-se cada vez mais de sua atualidade divina, rememorando ou reconhecendo os nomes naturais dos seres, tal 432 Fílon de Alexandria foi um dos filósofos que se ocupou com a questão da Razão, ou logos, enquanto faculdade humana e supra-humana. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 488 como Bacon433 preconizava. É a Razão na história, realizando-se. A Razão na história que tem na figura de Hegel o seu apóstolo maior. A Razão hegeliana sintetiza as leis da natureza geométrica – Newton – e a metafisica da lógica das ideias – Platão, Kant – na concepção de Espírito – Geist – , ou a História. O único pensamento que a filosofia traz para o tratamento da história é o conceito simples de Razão, que é a lei do mundo e, portanto, na história do mundo as coisas aconteceram racionalmente. Essa convicção e percepção é uma pressuposição da história como tal; na própria filosofia a pressuposição não existe. A filosofia demonstrou através de sua reflexão especulativa que a Razão – esta palavra poderá ser aceita aqui sem maior exame da sua relação com Deus – é ao mesmo tempo substância e poder infinito, que ela é em si o material infinito de toda vida natural e espiritual e também é a forma infinita, a realização de si como conteúdo. Ela é substância, ou seja, é através dela e nela que toda a realidade tem o seu ser e a sua substância. Ela é poder infinito, pois a Razão não é tão impotente para produzir apenas o ideal, a intenção, permanecendo em uma existência fora da realidade – sabe-se lá onde – como algo característico nas cabeças de umas poucas pessoas. Ela é o conteúdo infinito de toda a essência e verdade, pois não exige, como o faz a atividade finita, a condição de materiais externos, de meios fornecidos de onde extrair-se o alimento e os objetos de sua atividade; ela supre seu próprio alimento e sua própria referência. (HEGEL, 2001: 53) Essa citação se faz necessária porque demonstra de forma sucinta a Razão absoluta de Hegel, como Razão que se encerra em si, informa a si, e, ao mesmo tempo, realiza-se dentro do sistema filosófico da história hegeliana que, também, propõe uma teoria do conhecimento própria. Um olhar acurado sobre essa teoria do conhecimento de Hegel, contida em sua filosofia da História, revelaria o uso por ele feito da Razão moderna, enquanto Razão absoluta, tal qual a Razão da ciência natural de Newton. Essas razões estão no mesmo debate que gira em torno da questão: que posso saber? Em uma obra pequena e pouco explorada de Hegel chamada Fé e Saber, precisamente, o filósofo delimita o problema que perpassa toda sua obra, em especial a Fenomenologia do Espírito. Esse problema é informado por Hegel como uma questão própria do idealismo de Kant, Fichte e Jacobi. É um problema de seu interesse e que, resolvido, permitiria a ele concluir seu sistema apresentado na Fenomenologia do Espírito. Eis a questão: as faculdades cognitivas humanas permitem o conhecimento do suprassensível, do não empírico, do não-experimentável? Segundo Kant, nas muitas incursões realizadas no terreno dos limites da Razão, “não há nada nessas faculdades, essencialmente dependentes em relação à experiência que 433 O fim último do conhecimento do homem, segundo Bacon “(...) é a restituição e a restauração do homem à soberania e ao poder que ele tinha no primeiro estágio da criação (porque quando ele for capaz de chamar as criaturas pelos seus verdadeiros nomes, poderá novamente comandá-las)” (OLIVEIRA, 2010: 135). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 489 possibilite provar a existência de Deus” (HEGEL, 2007: 11), ou, em uma linguagem profana, a realidade do absoluto enquanto ser finito, apreensível, passível de ser conhecido. A querela provocada por Kant é retomada por Hegel, pois esse, diferentemente de Kant, entende que o absoluto é tanto realidade quanto apreensível. E em seu sistema filosófico coloca justamente a Razão a prova, trazendo o absoluto para dentro dos limites da Razão, procedimento impensável por Kant. A Razão hegeliana expressaria a consciência moderna. A conciliação das Razões que se digladiavam, a metafisica e a física. A física entende que superou a metafisica por expressar o absoluto universal e, por outro lado, a metafisica luta pelo estatuto de saber privilegiado das origens. A filosofia e a história, em Hegel, caminham juntas na totalidade que a Razão científica averiguou e corroborou por seu aparato matemático e metafísico, especialmente em Newton. A consciência moderna, essencialmente histórica, assumiria “uma posição reflexiva com relação a tudo que lhe é transmitido pela tradição” (NIETZSCHE, 2003: 18). Os modernos, segundo o filósofo alemão Hans Gadamer, põem às ciências humanas, em especial à história, um problema de filosofia. Essa reflexão sobre o fazer histórico, sobre o pensar o passado, sobre o estar-no-tempo, antes e no porvir seria essencialmente filosófica. A percepção do ser-no-tempo seria o triunfo da consciência da realidade; a eficiência da história que se refigura a partir de seu tempo, sua experiência própria, na qual o ser-no-tempo é agente consciente do processo em que está inserido. Hegel é um apóstolo da Vernunftglaube, racionalização, a “fé na Razão”, de forma que a fé seria em algo imanente, não transcendente; em uma Razão objetiva, realizável. Se para Kant o suprassensível seria inapreensível pela Razão, para Hegel, por outro lado, a Razão, que a esse ponto se confunde com a verdade, comporta um caráter metafisico e físico simultaneamente, ela é imanente. Para comportar objetos que ao primeiro olhar seriam dicotômicos, Hegel se explica pela via dialética do pensamento lógico de Heráclito de Éfeso. Se Hegel concorda com as filosofias modernas sobre o universo absoluto, ele as torna complexas introduzindo a ideia – herdada de Heráclito – de um absoluto enquanto processo, enquanto limiar. “O ser não é mais do que o não-ser”434; logo, as duas partes reservam uma a outra alguma substância, informam uma a outra alguma identidade; ambas, ser e não-ser, seriam características do mesmo, o absoluto, que se apresenta no limiar entre essas duas categorias. Assim, o que se entende como uma verdade física, empírica-instrumentalizável, comporta, necessariamente, 434 Frase atribuída a Heráclito contida no livro IV da Metafísica de Aristóteles (SOUZA, 1978: 92). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 490 seu outro metafisico, a ideia. Tanto Bacon como Kant entendiam isso; no entanto, não sistematizaram uma teoria que indicasse esse processo como busca do absoluto, o que fez Hegel e sua dialética heraclitiana. A Razão absoluta e dialética hegeliana encontra na História sua realização enquanto conceito a ser objetivado. Portanto, o absoluto histórico vê seu complemento em seu outro, no devir. O tempo para Hegel é o futuro. O passado é para ser lembrado, e observado; o presente é guiado pelo Espírito, pela Razão na História, que se confunde com o próprio Deus, a providência. Cabe então ao historiador, consciente disso, aprender a conhecer o espírito, sua vontade racional necessária, em sua função orientadora. E, assim, conformarse da melhor forma na lógica que o Espírito outorga. Essa é a única forma de estar-notempo consciente na história hegeliana. Tudo conflui para a concretização e realização da Razão. O espaço-da-experiência435 é determinado pela razão; o horizonte-de-expectativa436 é guiado pelo Espírito. Logo, não há problema de consciência histórica, o ser deve apenas saber dessa lógica e se sentir livre. Como filósofo-teólogo, não hesita em colocar em questão a relação da crença na Razão e na Providência, simultaneamente. A Razão, segundo Hegel, em sua forma religiosa é a Providência. “(...) a Providência divina é a sabedoria dotada de infinito poder que realiza o seu objetivo, ou seja, o objetivo final, racional e absoluto do mundo. A Razão é o Pensamento determinando-se em absoluta liberdade” (HEGEL, 2001: 56). A história natural não escapa da lógica universalizante da Razão de Hegel, pois: O movimento solar continua segundo leis imutáveis e estas leis são a sua razão. Mas, nem o sol nem os planetas, que, segundo tais leis, giram em torno dele, têm qualquer consciência disso. Assim, não nos surpreende a ideia de que há Razão na natureza, de que a natureza é governada por leis universais e imutáveis (...) (HEGEL, 2001: 55). O desafio de Hegel, a saber, conhecer a Razão, é um problema de filosofia, cujas implicações epistemológicas extrapolam para as ciências naturais, metafísica e matemática, pois são essas matérias necessárias uma a outra, tal qual Kant propõe nos Fundamentos 435Reinhart Koselleck, historiador alemão, trás à luz um esclarecedor entendimento de experiência e expectativa, ambas categorias meta-históricas, segundo o autor. Seriam a experiência e a expectativa, articuladas, as feitoras da consciência de estar-no-tempo. Segundo Koselleck, “Na experiência se fundem tanto a elaboração racional quanto as formas inconscientes de comportamento, que não estão mais, ou que não precisam mais estar presentes no conhecimento.Além disso, na experiência de cada um, transmitida por gerações e instituições, sempre está contida e é conservada uma experiência alheia.” (KOSELLECK, 2006: 309) 436“(...) a expectativa se realiza no hoje, é futuro presente, voltado para o ainda-não, para o não experimentado, para o que apenas pode ser previsto. Esperança e medo, desejo e vontade, a inquietude, mas também a análise racional, a visão receptiva ou a curiosidade fazem parte da expectativa e a constituem.” (KOSELLECK, 2006: 310) Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 491 metafísicos da Ciência Natural437. Segundo Hegel, sabe-se que “(...) o mundo da inteligência e da vontade consciente não está abandonado ao simples acaso, mas deve manifestar-se à luz da Ideia racional” (HEGEL, 2001: 54). O Espírito é a síntese da História que passa ao estatuto de Ser. A história é! Ela se evade do tempo, sendo ele apenas uma de suas atribuições lógico-dialéticas. Hegel propõe a universalização da Razão de forma radical no Espírito. Porém, essa Ideia racional, providencial, divina, é cognoscível? É possível conhecer a providência, conhecer Deus? Eis um problema de teologia! Hegel, em sua busca pela Razão absoluta encarnada no Espírito, consciente ou não, envereda-se, também, na epistemologia. A luta intelectual de Hegel seria a de reconhecer a realização de forma dinâmica do que ele chama de Espírito, da Razão, ao mesmo tempo no reino da natureza e no reino do espírito, sendo um co-realizador do outro. Ele indica que seu método seria uma teodiceia, uma justificação de Deus, “algo que Leibniz tentou metafisicamente, à sua maneira, através de categorias abstratas indeterminadas” (HEGEL, 2001: 60). O processo que Hegel enxerga como “realizando-se”, seria o que Norbert Elias chamou de “processo civilizador”, o homem moderno se recriando, conformando-se aos moldes da Razão universal que a ciência propõe; rumo à salvação, um “reencantamento”; projeto moral, fortemente marcado ainda pela Razão teológica cristã438, aquela da patrística, de Justino de Roma. Uma característica chave desse processo averiguada por Elias, a conscientização da Razão objetivada na supressão das pulsões e paixões do homem é inclusive, também, presente da filosofia da História de Hegel. A Razão moderna, essa sintetizada no Espírito hegeliano, abarca essas características da Razão antiga. Além das capacidades de conhecer e criar dos logoi dos filósofos da antiguidade é também característica dos logoi atribuições morais, tais como a supressão da raiva e de paixões da alma que desviem o espírito do homem de seu objetivo, pois “the logoi en paideia educate and teach men to restrain anger and desire, and to engage anger only occasionally” (KAMESAR, 2004: 167). Essa Razão que civiliza e homogeneíza, por enxergar a si como universal, presta-se a universalidade e insere o mundo a sua volta na lógica universal típica da modernidade. A ideia de realização da Razão moderna no Espírito, marca da filosofia da história hegeliana é, 437KANT, Immanuel; FRIEDMAN, Michael.Metaphysical foundations of natural science.Cambridge, UK; New York: Cambridge University Press, 2004. 438 O filósofo e teólogo alemão Karl Löwith anui à ideia de que o esforço filosófico ocidental seria não apenas influenciado pela teologia, mas, em si teológico. Ver LÖWITH, Karl. Meaning in History: The Theological Implications of the Philosophy of History. University of Chicago Press, 1949. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 492 novamente, salvação; a marcha do Espírito em busca da liberdade e a redenção desse mundo em nome da Razão universal e absoluta. Bibliografia: BLUNT, A. W. F. The Apologies of Justin Martyr (in Cambridge Patristic Texts). Cambridge, 1911. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A Razão na historia: uma introdução geral a filosofia da historia. 2. ed. São Paulo: Centauro, 2001. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich; TOLLE, Oliver. Fé e saber. São Paulo: Hedra, 2007. HORKHEIMER, Max. Eclipse da razão. 7.ed. São Paulo: Centauro, 2007. KAMESAR, Adam. The Logos Endiathetos and the Logos Prophorikos in allegorical interpretation: Philo and the D-Scholia to the Iliad. In: Greek, Roman and Byzantine Studies, Vol.44, nº 2 (2004), Duke University. 163 – 181. KANT, Immanuel; FRIEDMAN, Michael. Metaphysical foundations of natural science. Cambridge, UK; New York: Cambridge University Press, 2004. KOSELLECK, R. Espaço de Experiência e Horizonte de expectativa: duas categorias históricas. RJ: Contraponto/PU[C]-RJ, 2006. KOYRE, Alexandre. Estudos de historia do pensamento cientifico. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária; Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1982. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. OLIVEIRA, Bernardo Jefferson de. Francis Bacon e a fundamentação da ciência como tecnologia. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. REIS, José Carlos. História & teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de Janeiro: FGV, 2003. SHAPIN, Steven. La Revolucion Cientifica: Una Interpretacion Alternativa. Ed.: Paidos, 2000. SOUZA, Jose Cavalcante de. Os Pre-socraticos: fragmentos, doxografia e comentarios. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 493 Paul Ricoeur e a narrativa historiográfica: para além do debate epistemológico, a dimensão ética Breno Mendes Mestrando em História pela UFMG mendes.breno@gmail.com Resumo: Esta comunicação visa traçar um panorama sobre as reflexões de Paul Ricoeur sobre a narrativa, em especial, na escrita da história439. Neste sentido, a posição do filósofo francês se singulariza por não se restringir a aspectos epistemológicos, mas também contemplar a visada ontológica e a perspectiva ética. Iremos nos concentrar nas questões epistemológicas e éticas. Começaremos com as posições presentes em Tempo e narrativa, para em seguida, abordar as implicações éticas presente nesta obra e em Si mesmo como um outro. Ao final, buscaremos avaliar qual o impacto da reflexão ricoeuriana para a História da Historiografia Contemporânea no que tange a ligação entre o conhecimento histórico e a vida prática. Palavras-chave: Paul Ricoeur; narrativa; ética. Résumé: Cette communication propose tracer un panorama sur les réflections de Paul Ricoeur sur le récit, en particulier, dans l’écriture de l’histoire. Dans ce sens, la position du philosophe français se singularize à cause de ne se limiter pas a des aspects épistémologiques, mais considerer aussi la visée ontologique et la perspective éthique. Nous nous concentrerons dans les questions épistémologiques et éthiques. On commence avec des positions qui sont dans Temps et récit, ensuite on approche des implications étiques qui sont dans ce livre et dans Soi-même comme un autre. Au fin, on cherche évaluer l’impacte des réflections ricoeuriennes pour l’Histoire de Historiographie Contemporaine en ce qui concerne au lien entre la connaissance historique et la vie pratique. Mots-clés: Paul Ricoeur ; récit ; éthique. Introdução A obra de Paul Ricoeur foi marcada pelo signo do diálogo. Portador de uma sólida formação erudita seus livros são permeados por profundas incursões na história da filosofia. Com efeito, o autor também abriu seu pensamento a uma interação constante com saberes externos à filosofia, especialmente com as ciências humanas. Nossa comunicação pretende traçar um panorama sobre as reflexões ricoeurianas a respeito da 439 Essas reflexões foram anteriormente apresentadas no Congresso Latino Americano sobre a obra de Paul Ricoeur Ética, Identidade e Reconhecimento, realizado em 2011 na PUC-RJ. Agradeço especialmente às observações críticas feitas pelos filósofos João Batista Botton, Roberto Roque Lauxen e Hélio Salles Gentil. Esses comentários ajudaram-me a melhorar o argumento central e a corrigir alguns equívocos, sobretudo aquele que concedia uma primazia acentuada do julgamento ético ao 3º momento da mímesis. Espero ter desenvolvido uma análise mais equilibrada sobre a tripla mímesis. Contudo, tenho consciência que este texto toca apenas em uma pequena parte da dimensão ética em jogo no conhecimento histórico. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 494 narrativa, em especial, sobre a função que ela desempenha na escrita da história. Neste sentido, a posição deste filósofo se singulariza por não se restringir aos aspectos epistemológicos, mas também contemplar a visada ontológica e a perspectiva ética implicadas na narrativa historiográfica. Nossa exposição está dividida em 3 partes: I) Discussão epistemológica sobre a narrativa na historiografia contemporânea, com destaque para a intervenção de Ricoeur neste debate a partir da publicação de Tempo e Narrativa. II) Exame das implicações éticas da narrativa III) Análise da relação entre narrativa historiográfica e vida prática; Confronto entre a perspectiva de Ricoeur e o topos da história mestra da vida. I) A narrativa na historiografia contemporânea e o impacto de Tempo e Narrativa. A relação entre a historiografia e a narrativa tem se mostrado conflituosa nos últimos anos, sobretudo no contexto da historiografia francesa. Durante boa parte do século XX os historiadores ligados às duas primeiras gerações da Escola dos Annales desqualificaram a narrativa como um procedimento metodológico de pouca relevância adotado pela chamada “historiografia tradicional”, ou “Escola Metódica” do século XIX. Na visão destes historiadores franceses a narração inseria os eventos em uma continuidade linear, cronológica e teleológica. Seguindo o adágio rankeano440 havia o anseio de extrair dos documentos os fatos “tal como efetivamente se passaram”. Para tanto, o historiador deveria permanecer imparcial, sem deixar que sua subjetividade fosse impressa no texto. Este relato, na verdade, era uma biografia dos “grandes heróis” subserviente aos projetos políticos de engrandecimento da nação. (FURET, S/D). Em contrapartida, a proposta dos historiadores dos Annales era de uma históriaproblema que reconhece a impossibilidade do historiador narrar os fatos do passado “tal como efetivamente se passaram”. Nesta perspectiva o historiador sabe que não consegue apagar-se em sua análise, mas formula hipóteses e problemas que são motivados por questões do presente. Aliada a esta crítica à narrativa factual houve um deslocamento do 440 A obra de Leopold Von Ranke não é o objeto de nosso estudo, contudo, não podemos deixar de mencionar que esta leitura feita pelos historiadores dos Annales não condiz com a obra do autor e a transforma em um ‘mito historiográfico’. O objetivo desta leitura é desqualificar parte da historiografia do século XIX e assim legitimar a inovação, ou revolução metodológica empreendida pelos historiadores franceses a partir de 1929. Cf. (MATA, 2010) Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 495 objeto da história que deixou de referir-se a eventos e indivíduos para concentrar-se em civilizações, sociedades, estruturas econômicas e sociais de longa duração. A proposta era de aliança da historiografia com as Ciências Sociais e de rompimento com a narrativa. (REIS, 2004) Com efeito, a partir da década de 1970 a narrativa voltou a estar no centro do debate historiográfico. Para o historiador inglês Lawrence Stone houve um “retorno” da narrativa à escrita da história devido ao enfraquecimento dos modelos econômicos e quantitativos. O interesse das pesquisas deslocou-se então para as mentalidades e a cultura. Entretanto, este relato que “retorna” é diferente daquele praticado pela Escola Metódica. Ele não se refere mais aos “grandes heróis”, mas aborda personagens anônimos, seu método deixou de ser a descrição linear para se dar pela análise e realização de problematizações. (STONE, 1991) Além disso, destacamos também a publicação nesta década de importantes obras que buscavam investigar a importância da narrativa para a historiografia, assim como suas fronteiras com a ficção, são elas: Como se escreve a história de Paul Veyne [1971], A escrita da história de Michel de Certeau [1975], Meta-história [1973] e Trópicos do discurso [1978] de Hayden White. White é, sem dúvida, o autor mais polêmico dentre os que interviram neste debate. Em Meta-História o historiador estadunidense propõe um método formalista para a análise de obras historiográficas e filosóficas do século XIX. Neste procedimento a intenção não é dizer se a obra de determinado historiador é mais adequada ou correta que a análise de outro filósofo ou historiador. O que se busca é explicar os componentes estruturais das explicações históricas. Aquilo que transformou os trabalhos de Ranke, Michelet, Marx ou Tocqueville em clássicos não foi sua base documental ou suas teorias, mas suas visões do campo histórico. Segundo White, essa visão é pré-figurada linguisticamente em um ato essencialmente poético em que o campo histórico é construído como domínio no qual é possível aplicar teorias que visam explicar o que aconteceu no passado. Para analisar a prefiguração recorre-se aos tropos da linguagem poética: metáfora, metonímia, sinédoque, ironia. (WHITE, 2008) Vejamos a síntese do argumento: Nesta teoria trato o trabalho histórico como o que ele manifestamente é: uma estrutura verbal na forma de um discurso em prosa. As histórias (e filosofias da história também) combinam certa quantidade de ‘dados’, conceitos teóricos para ‘explicar’ esses dados e uma estrutura narrativa que os apresenta como um ícone de conjuntos de eventos presumivelmente ocorridos em tempos passados (...) eles comportam um conteúdo estrutural profundo que é em geral poético e, especificamente, lingüístico em sua natureza (WHITE, 2008: 11). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 496 Em linhas gerais, este era o quadro do debate quando Ricoeur publica Tempo e narrativa (3v.1983-85). Algo que o distingue dos demais filósofos que teorizaram sobre a história é que ele demonstra um substancioso conhecimento das obras clássicas da historiografia, sobretudo, a francesa. A postura ricoeuriana é modesta e paciente, seu primeiro passo é o da escuta: Aqui não compete ao filósofo dar lições ao historiador; é sempre o próprio exercício de um ofício científico que instrui o filósofo. É-nos, pois, necessário ouvir em primeiro lugar o historiador, enquanto reflete sobre seu ofício. (...) (RICOEUR, 1968: 25). A tese central de Tempo e narrativa, é que “O tempo se torna tempo humano na medida em que está articulado de maneira narrativa; em contraposição, a narrativa é significativa na medida em que desenha os traços da experiência temporal” (RICOEUR, 1991b, Tome I: 17). Ao enfatizar a relação entre a narratividade e a temporalidade Ricoeur chama a atenção para um aspecto que até então não fora destacado pelos outros narrativistas como H. White e Paul Veyne. Ricoeur defende que há um vínculo indireto, entre história e narrativa. Segundo ele, se a historiografia rompesse o laço com a “competência de base que temos de seguir uma história” ela perderia sua especificidade no seio das Ciências Humanas e deixaria de ser histórica. No primeiro tomo de Tempo e narrativa ele trilha um longo caminho mostrando como a narrativa foi eclipsada, mas não eliminada, por duas correntes de pensamento - a historiografia francesa dos Annales e a filosofia analítica de língua inglesa. De acordo com o filósofo francês não houve durante o século XX uma plena separação entre história e narrativa. Quanto a isso, Ricoeur alerta que na historiografia francesa o ocultamento que eclipsou a narrativa é resultante de um deslocamento do objeto da história: passa-se do indivíduo ao fato social total. Os historiadores dos Annales questionaram a noção de acontecimento e o primado da história política, porém não problematizaram diretamente o conceito de narrativa. Para eles uma história factual só poderia ser política e narrativa. (RICOEUR, 1991b, Tome I) A ruptura epistemológica entre a historiografia e a narrativa ocorreu em 3 níveis: 1) No nível dos procedimentos a historiografia buscou se afastar da narrativa para ir ao encontro de uma explicação científica para o passado, já que o relato era visto como um procedimento meramente descritivo. 2) No nível das entidades houve um deslocamento do objeto da historiografia. Na narrativa tradicional, ou mítica e na crônica a ação é atribuída a agentes individuais que podem ser identificados por um nome próprio e que são Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 497 considerados responsáveis por suas ações. A história-ciência (dos Annales, por exemplo) não aborda indivíduos, mas entidades anônimas tais como sociedades, civilizações, mentalidades, classes sociais, economias, culturas. Essas forças sociais não podem ser divididas em pequenas partes para que se atribua uma parcela dela a cada um dos agentes individuais. A nouvelle histoire parece não ter personagens, e sem a presença destes a história não pode permanecer com suas qualidades narrativas. 3) O corte operado no nível do tempo histórico resulta dos dois anteriores. O tempo histórico parece não se referir ao tempo vivido na consciência subjetiva dos agentes. Esse tempo vivido é constituído por lembranças, expectativas e precisa ser organizado por um presente vivo. (Cf. Livro XI das Confissões de Agostinho). A impressão é que o tempo histórico, o tempo semi-longo da conjuntura, e a longa duração das civilizações não tem nenhuma relação com o tempo da ação humana. (RICOEUR, 1991b, Tome I) Apesar desta tripla tentativa, a ruptura entre historiografia e narrativa não foi total441. Como dissemos, segundo Ricoeur, caso a historiografia rompesse completamente seu vínculo com a narrativa ela perde seu caráter histórico. Por outro lado, esta relação entre historiografia e narrativa deve ser indireta, para que a história não seja considerada como uma espécie do gênero estória (story). Ou seja, para que a história não seja fundida ou confundida com a ficção Ricoeur defende que é preciso haver uma dialética de novo tipo entre a historiografia e a competência narrativa. Na leitura do filósofo, o esfacelamento do modelo nomológico desligou a idéia de explicação causal em história do emprego de leis gerais. A explicação histórica tornou-se assim próxima da competência narrativa sem com isso perder seu estatuto de cientificidade. Para ele, narrar já é explicar. Ao tecer uma intriga o historiador estabelece uma conexão lógica e causal entre os acontecimentos, o que diferencia a narrativa histórica de uma mera descrição cronológica ou de uma crônica. Na leitura ricoeuriana, a despeito de todas as críticas, nem mesmo em Braudel a narrativa foi completamente abandonada. Embora tenha deslocado o objeto da análise historiográfica dos indivíduos para o meio geográfico ou para forças econômico-sociais anônimas, essas entidades continuam a guardar uma semelhança com a figura do personagem de uma narrativa, na medida em que elas são colocadas como o sujeito que 441 No nível dos procedimentos a imputação causal singular combina elementos da explicação causal científica com aspectos da causalidade narrativa; no nível das entidades ainda que o texto histórico aborde entidades sociais estas guardam características análogas às de um personagem, na medida em que são colocadas como sujeitos de determinadas ações; no nível do tempo histórico mesmo que o historiador opere no registro da longa duração esta perderia sua inteligibilidade se não se referisse à estrutura dialética do tempo vivido que conjuga passado e futuro pela mediação do presente. (Cf. o capítulo A intencionalidade histórica em Tempo e narrativa I) Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 498 pratica uma ação na história e contribui para seu desenvolvimento. Ademais, o conceito de sociedade não pode ser construído sem se referir, ainda que indiretamente, aos indivíduos que a compõem. Por isso, no discurso histórico a sociedade pode ser tratada como um quase-personagem. (RICOEUR, 1991b, Tome I) Nesse sentido, o que teria ocorrido foi um eclipse da narrativa, isto é, embora ela permanecesse na prática historiadora foi, em parte, ocultada. Esta noção inviabiliza a idéia de um “retorno” da narrativa como defende L. Stone, pois, como algo pode retornar, sem mesmo ter partido? Para Ricoeur, por maiores que tenham sido as tentativas de escamoteála, a narrativa nunca foi abandonada completamente pela prática historiadora. Além disso, podemos lembrar que a narrativa historiográfica que foi posta em evidência a partir da década de 1970 está longe de ser como aquela metodologia descritiva, linear e teleológica combatida pelos historiadores dos Annales. Portanto, parece-nos que o conceito de “retorno” não é adequado para qualificar este debate. O núcleo de Tempo e narrativa são os apontamentos sobre os três momentos da mímesis. É através dela que ocorre a mediação entre o mundo que é configurado pela narrativa e o mundo da ação, isto é, entre o mundo do texto e o mundo do leitor. Ricoeur retém da Poética de Aristóteles a noção de que as narrativas são mímesis da ação. Logo de saída é preciso enfatizar que o conceito de mímesis não deve ser entendido aqui como cópia, imitação ou sombra do real. Segundo Luiz Costa Lima, importante teórico brasileiro, existem duas principais vertentes de interpretação da noção de mímesis. A primeira, - iniciada por Platão - associa a mímesis à idéia de cópia. Na leitura de Costa Lima, Platão estabelece que as coisas que estão no plano visível imitam as idéias, (as formas, as essências) e a as obras de arte imitam essas coisas. Logo, a mímesis, a representação, produzida pelo poeta é apenas uma cópia da cópia442. Ela cria apenas sombras e enganos do mundo das essências. (COSTA LIMA, 2003) Entretanto, a concepção de mímesis ricoeuriana está próxima de uma outra vertente - inaugurada por Aristóteles - e que se afasta da idéia de mímesis-cópia. A mímesis aristotélica deve ser compreendida como uma operação produtora de sentido (COSTA LIMA, 2000). “A imitação ou a representação é uma atividade mimética enquanto ela produz alguma coisa, a saber, precisamente o agenciamento dos fatos pela composição da intriga (mise en intrigue)” (RICOEUR, 1991b Tome I: 73). A composição narrativa ao colocar junto, numa 442 “O imitador não tem sem senão um conhecimento insignificante das coisas que imita e que a imitação não passa de uma brincadeira indigna de pessoas sérias.” (PLATÃO apud COSTA LIMA, 2003: 61). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 499 mesma intriga, os fatos que antes eram dispersos, produz um sentido que esses acontecimentos díspares não tinham. A ação dos homens torna-se mais inteligível quando inserida em um enredo, em uma narrativa. A intriga não se limita a encadear os acontecimentos em uma sucessão temporal (um após o outro), mas também estabelece nexos causais entre eles, dizendo que um aconteceu por causa do outro. Após este esclarecimento podemos prosseguir com nossa empreitada. O círculo hermenêutico, ou a tripla mímesis constitutiva tanto das narrativas ficcionais quanto das historiográficas tem início com a pré-figuração do campo prático em mímesis I. Uma das teses da teoria ricoeuriana sustenta que ação possui uma estrutura pré-narrativa que possibilita sua configuração em um texto. A ação se distingue do movimento físico, pois é mediada por linguagem e produzida por sujeitos que possuem projetos, objetivos, circunstâncias que, por sua vez, levam a interação e cooperação, ou a competição e luta. Segundo a Poética aristotélica, a intriga imita – de maneira criativa e não reprodutiva – esta estrutura do agir e sofrer humanos. A mesma inteligência que utilizamos para compreender a ação é empregada para seguir uma história. (RICOEUR, 1991b). Uma segunda ancoragem que a narrativa encontra no campo prático são os recursos simbólicos imanentes à ação. Esta mediação simbólica também permite que a ação seja narrada. Tal simbolismo, como sublinhou C. Geertz, não é uma operação psicológica, mas constitui uma convenção social em função da qual é possível interpretar uma ação particular. O gesto de levantar, por exemplo, o braço pode ser compreendido como uma forma de cumprimento, de votar ou de chamar um táxi. O simbolismo confere uma primeira legibilidade à ação. Um terceiro traço pré-narrativo do campo prático concerne aos seus caracteres temporais. Segundo Ricoeur, nossa práxis cotidiana é implicitamente temporal. Em nossa ação diária não nos ocupamos apenas do presente, também fazemos projetos, nos preocupamos com o futuro e nos lembramos de experiências passadas. O agir humano busca coordenar a expectativa, a memória e a atenção ao presente. 443. Em mímesisII se dá a configuração em intriga do campo prático, abre-se o reino metafórico do como-se. Na tessitura da intriga o autor dá forma e extensão à experiência 443 Para Ricoeur os elementos temporais da ação também induzem à narrativa, já que a tese central da obra é que “O tempo torna-se tempo humano na medida em que é articulado de maneira narrativa; em compensação, a narrativa é significativa na medida em que desenha os traços da experiência temporal.” (RICOEUR, 1991b, Tome I, p. 17). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 500 vivida. Na narração eventos episódicos, particulares, são inseridos em uma história mais abrangente. São estabelecidas sucessões e relações de causalidade. A intriga compõe juntos fatores heterogêneos como agentes, objetivos, meios, circunstâncias, resultados inesperados, etc. Os eventos são colocados em um todo, com início, meio e fim, passível de ser seguido, acompanhável. É construída uma síntese do heterogêneo, uma estrutura em que a concordância prevaleça sobre a discordância. Mímesis II tem a função de mediar mímesis I e mímesis III. Em mímesis III se dá a refiguração do campo prático. Neste momento ocorre a recepção da narrativa pelo leitor. É neste instante que o texto ganha seu sentido pleno, ao ser restituído ao tempo do agir e sofrer humanos. Em mimeis III há o encontro entre o mundo do texto e o do leitor. Este não é visto como mero receptáculo de informações, mas como um sujeito que ao ter sua experiência modificada pelo reconhecimento que encontra na narrativa tende a demandar uma nova mímesis II que reinicia a tripla mímesis, numa espiral sem fim. II) As implicações éticas da narrativa Esta breve exposição do círculo hermenêutico nos permitirá fazer a transição da dimensão epistemológica para as implicações éticas da narrativa. Com efeito, antes de percorrer este caminho, cumpre explicitar a distinção assumida por Ricoeur entre ética e moral. Embora um termo se origine do grego, e outro do latim, os dois remetem à idéia de costumes (ethos, mores). Ricoeur prefere reservar o termo “ética” para “o visar de uma vida que se realiza pelo signo de ações que são estimadas como boas” enquanto que o conceito de “moral” é “destinado para o lado obrigatório, marcado por normas, obrigações e interdições caracterizado por uma exigência de universalidade e por um efeito de constrangimento.” (RICOEUR, 2007: 310). Em suma, a ética é associada à intenção da vida boa, à perspectiva teleológica da herança aristotélica, enquanto a moral é relacionada à obrigação da norma, ao ponto de vista deontológico da herança kantiana444. Após fazer esta distinção Ricoeur estabelece três movimentos: 1) Defende o primado da ética sobre a moral; 2) Sustenta a necessidade da visada ética passar pelo crivo da norma; 444 Para Kant uma ação é ética na medida em que ela pode ser universalizada. Vejamos sua formulação do imperativo categórico: “age somente de acordo com aquela máxima pela qual possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal” (KANT, 2000: 121). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 501 3) Estabelece que a norma e visada ética passem pelo exercício de uma “sabedoria prática” que está em jogo nas deliberações e juízos de situações específicas, concretas e singulares. A perspectiva ética é definida pelo filósofo como a “visada da vida boa com e para os outros nas instituições justas”. Esta caracterização é importante para ressaltar que nossa proposta não é explorar as interfaces entre a narrativa historiográfica e a moral, mas, a relação entre o texto histórico e a ética. O que está em jogo na historiografia não é a descoberta de alguma norma universalizante aplicável a qualquer contexto, mas a avaliação das ações praticadas pelos homens no tempo em situações concretas e singulares. Neste sentido, remeto a uma citação na qual Ricoeur estabelece um vínculo entre mímesisI (campo da pré-compreensão, do mundo da experiência vivida) e às pressuposições éticas da Poética de Aristóteles. A Poética não supõe apenas ‘agentes’, mas caracteres dotados de qualidades éticas que os tornam nobres ou vis. Se a tragédia pode representá-los ‘melhores’ e a comédia ‘piores’ que os homens atuais é porque a compreensão prática que os autores compartilham com seu auditório comporta necessariamente uma avaliação dos caracteres e de sua ação em termos de bem e de mal.(RICOEUR, 1991b, Tome 1: 116) Na esteira de Aristóteles, Ricoeur compreende a narrativa como mimese praxeos – mímesis da ação. O termo práxis pertence tanto ao campo do real, das ações humanas, como ao terreno do imaginário. A mímesis ricoeuriana visa concatenar esses dois campos. Mímesis 1 é a referência que precede a composição poética e a análise historiográfica. Este mundo da ação já é permeado por traços éticos que serão trabalhados pela narrativa. (GENTIL, 2004) Levando isso em consideração abre-se a possibilidade da narrativa poder iluminar questões éticas do agir humano. Isto ocorre em mímesis III em virtude da dimensão valorativa presente no campo da ação de onde a obra emerge: mímesis I. Na perspectiva ricoeuriana a narrativa de ficção apresenta-se como um laboratório do imaginário no qual são experimentadas novas maneiras de avaliar as ações, seus motivos e conseqüências. O discurso ficcional está aberto às variações imaginativas e não está diretamente submetido a uma norma moral. Por isso, ele apresenta-se como um lugar profícuo para a experimentação de normas variadas, um espaço para ensaiar as implicações e conseqüências destas normas para as ações dos personagens. (GENTIL, 2009) O que pretendemos explorar é a idéia de que a leitura de uma narrativa historiográfica também desvela a perspectiva ética do agir humano. Ao compor uma intriga o historiador agencia fatos, põe juntos acontecimentos em uma trama. Ele conta quem fez o Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 502 quê, por que e como. A trama historiográfica ascreve a ação a um ou vários agentes, ela confere ao sujeito, ao personagem, uma iniciativa, ou seja, o poder de começar uma série de acontecimentos sem que isto se constitua em um início absoluto. (RICOEUR, 1991a) No sexto estudo de O si mesmo como um outro Ricoeur retoma a concepção de narrativa de Walter. Benjamin para melhor delinear as implicações éticas da narrativa. Segundo Benjamin, a arte de narrar é a arte de trocar experiências (Erfahrung) (BENJAMIN, 1985). Aqui experiência não deve ser entendida como observação científica, mas como exercício popular de sabedoria prática, algo que se passa de pessoa a pessoa. Esta sabedoria comporta apreciações e avaliações das experiências narradas. (RICOEUR, 1991a) Em Tempo e narrativa Ricoeur já sustentara que ainda que pretenda ser neutra no que tange ao julgamento moral, a narrativa historiográfica jamais atinge um grau zero de valoração. Essa neutralidade ética nunca é atingida porque a narrativa histórica sempre emerge do campo da ação humana, mímesis I, e a práxis cotidiana nunca é eticamente neutra, pois ela sempre envolve agentes, motivações e finalidades. O filósofo chega a dizer que a historiografia possui uma dívida para com os homens do passado. Segundo ele, quando confrontada com a figura do horrível, com a história das vítimas, esta relação se transforma em um dever de não esquecer, em um dever de narrar a história dos vencidos. (RICOEUR, 1991b, Tome I) O conceito de identidade narrativa nos ajudará a explicitar as conexões entre narrativa e ética. Esta noção foi introduzida nas conclusões de Tempo e narrativa quando foi definida como um frágil rebento oriundo do entrecruzamento entre história e ficção na operação de atribuição a um indivíduo ou a uma comunidade histórica de uma identidade específica. A identidade é compreendida então como uma categoria da prática humana. Dizer a identidade de um indivíduo ou de uma comunidade histórica é responder à pergunta: quem fez determinada ação? Quem é o seu agente? Ao responder a questão quem realizou tal ação contamos a história de vida do sujeito ou de um povo, uma sociedade. A identidade do quem não é senão uma identidade narrativa. (RICOEUR, 1991c, Tome III) Segundo Ricoeur, sem o auxílio da narração o problema da identidade pessoal está fadado a uma antinomia sem solução: de um lado, supõe-se um sujeito idêntico a si mesmo na diversidade de seus estados como em Descartes e Kant; de outro, na esteira de Hume e Nietzsche, o sujeito idêntico é considerado uma ilusão substancialista. No entanto, “o dilema desaparece se a identidade compreendida no sentido de um mesmo (idem) for substituída pela identidade compreendida no sentido de um si-mesmo (ipse)” (RICOEUR, Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 503 1991c, Tome III: 443). O pólo idem constitui a ‘mesmidade’ da identidade, aponta para a permanência no tempo. Esta face objetiva responde a pergunta o quê? Já o pólo ipse inclui a mudança temporal e responde a questão quem? A diferença entre idem e ipse é a distinção entre identidade substancial, formal e identidade narrativa. A ipseidade escapa à antinomia entre o Mesmo e o Outro, na medida em que sua identidade repousa em uma estrutura temporal análoga ao modelo de dinâmico da composição poética de um texto narrativo. A identidade narrativa, ao contrário da identidade abstrata do Mesmo (idem), pode incluir a mutabilidade na coesão de uma vida. Na compreensão ricoeuriana “o si-mesmo é refigurado pela aplicação reflexiva das configurações narrativas.” Ao interpretar um texto o sujeito passa a compreender melhor a si mesmo. No caso da narrativa historiográfica isto pode ocorrer através da avaliação ética de um percurso percorrido pelas ações dos homens no tempo. No confronto com o texto histórico o leitor poderá sopesar as conseqüências e implicações que ações concretas tiveram em um contexto determinado. Assim, a narrativa historiográfica pode contribuir para a sabedoria prática que o sujeito exerce quando se vê na necessidade de emitir juízos e tomar decisões em situações concretas de sua vida cotidiana. III) Narrativa e vida prática: aprender lições com a historiografia? Antes de concluir nossa exposição uma dificuldade se coloca em nosso percurso: ao traçar este liame entre a narrativa historiográfica e a possibilidade de orientação para a vida prática será que Paul Ricoeur estaria retomando o velho topos da historia magistra vitae (história como mestra da vida)? Ora, é do conhecimento dos historiadores que durante bastante tempo o vínculo entre o conhecimento histórico e a vida prática era garantido pela idéia de que a história poderia ensinar algo a partir de exemplos retirados das experiências do passado. Mas, será que cabe ao historiador dar lições ao seu leitor prescrevendo normas de conduta extraídas de exemplos históricos? Tal objeção é de grande relevância, na medida em que a constituição do conceito moderno de história (Geschichte) tem como um de seus pilares a dissolução, ou ao menos o enfraquecimento, do topos da historia magistra vitae. Um dos pressupostos que sustentava a história mestra da vida, termo cunhado por Cícero, é a noção de que a natureza humana era constante e que seus valores eram estáveis. Nesta lógica os eventos do presente sempre apresentam similitudes ou analogias com algum fato já ocorrido anteriormente. O historiador deveria apresentar em sua narrativa exemplos do passado que instruíssem o presente de seus leitores. Cícero destacava a Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 504 existência de “leis sagradas da história” por meio das quais os homens conhecem seu presente e são capazes de iluminar seu futuro. Nesta perspectiva, a dimensão moral do conhecimento histórico estava restrita a aplicação e imitação de exemplos. (KOSELLECK, 2006 e ARAÚJO 2011). Se lembrarmos do vínculo entre tempo e narrativa podemos dizer que este relato desenhava uma temporalidade circular e cíclica. Com a emergência do conceito moderno de História em finais do século XVIII o topos historia magistra vitae perdeu espaço gradativamente. Com efeito, é importante lembrar que a consolidação da história científica no século XIX não se deu de forma rápida, nem mesmo consensual. (CEZAR, 2004). O topos da história mestra da vida não se dissolveu de uma só vez, nem desapareceu completamente, mas foi sendo estreitado, isto é, perdeu a centralidade que tinha nas formas de experiência da história não moderna. (ARAÚJO, 2011) Segundo Sérgio Buarque de Holanda é sob uma perspectiva ética que se deve compreender a máxima de Ranke segundo a qual a história deve mostrar os fatos “tal como efetivamente se sucederam”. Esta seria uma advertência para que o historiador ao desempenhar seu ofício não se erigisse em “um juiz supremo do passado, a fim de instruir os contemporâneos em benefício das gerações vindouras” (HOLANDA, 1979: 14) Em suma, estaria fora da alçada historiográfica a proposição de “lições de moral” ou exemplos. A narrativa histórica moderna e científica apóia-se em uma cisão entre juízo de fato e juízo de valor, ela procura relatar como os fatos realmente aconteceram, não como eles deveriam ter ocorrido. Na modernidade – retomando a célebre máxima de Tocqueville – o passado não é mais capaz de iluminar o presente; a história científica e as filosofias da História, segundo Gumbrecht, sustentavam que para aprender com a história não era mais viável a transposição de padrões de comportamento do passado para o presente. “Pelo contrário, o conhecimento histórico começou a se definir como a possibilidade de prever as direções que a História, como um movimento progressivo e abrangente da mudança, tomaria no futuro.” (GUMBRECHT, 1999: 461). Do ponto de vista epistemológico poucos historiadores atualmente lamentam a interdição do conhecimento histórico em propor “leis” ou em investigar “constantes” e “regras” de comportamento. Todavia, o reverso desta medalha não é nada agradável, especialmente da perspectiva ética. O preço a ser pago costuma ser uma perda de vínculo entre a historiografia e o mundo da vida prática. Já que não é mais possível aprender lições Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 505 com a história parece que ela tornou-se um conhecimento incapaz de orientar a ação humana. Em nossa leitura os apontamentos das implicações éticas da narrativa feitos por Ricoeur vislumbram um caminho para um possível enlaçamento entre o conhecimento histórico e a vida prática que não percorra o toposhistoria magistra vitae. Vejamos em que medida as duas perspectivas se diferenciam. Em primeiro lugar a noção de imutabilidade ou constância da natureza humana não é endossada por Ricoeur. Seu recurso à identidade narrativa se dá precisamente para evitar as aporias que podem ser encontradas na identidade-idem, substancial, sempre idêntica a si. A identidade narrativa inscreve a historicidade, o caráter temporal da mudança na coesão de uma vida. Ela permite o sujeito ser si mesmo sem permanecer sempre o mesmo. Em segundo lugar, retomando o sonho de Marcel Proust, o desejo de Paul Ricoeur é que o sujeito seja constituído como leitor e também como autor de sua própria vida, sua própria história. A sua história de vida é constantemente refigurada pelas histórias verídicas ou fictícias que são contadas sobre o si mesmo. Essa refiguração faz da própria vida um tecido de histórias narradas, o sujeito torna-se emaranhado em histórias. A ipseidade diz respeito a um si instruído pelas obras de cultura que ele aplicou sobre si mesmo. (RICOEUR, 1991a) A narrativa, seja ela historiográfica ou ficcional, é uma experiência de pensamento na qual exercitamos a capacidade de habitar mundos diferentes dos nossos. No ato de leitura há um novo impulso para a ação, uma provocação a ser e agir de outro modo. A narrativa não está, portanto, destituída de uma dimensão normativa e avaliativa. O narrador apresenta ao leitor uma visão de mundo que jamais é eticamente neutra, mas que induz (implícita ou explicitamente) a uma nova avaliação do mundo e do próprio leitor. A narrativa já pertence ao campo ético em virtude da pretensão, inseparável da narração, à justeza ética. Cabe ao leitor, que volta a ser agente, iniciador de ação, escolher entre as múltiplas proposições de justeza ética veiculadas pela leitura.(RICOEUR, 1991c: 447). Acreditamos que esta citação torna claro o afastamento da teoria da narrativa ricoeuriana do topos da história mestra da vida. Além de recusar a idéia de constância da natureza humana, Ricoeur concede um lugar de destaque também ao leitor – e não apenas ao autor - no julgamento ético da ação relatada. A teoria da leitura proposta em Tempo e narrativa visa estabelecer ligações entre o mundo do texto e o mundo do leitor, uma vez que sentido de um texto só é completado no momento do ato de ler. É em mímesis III que a Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 506 narrativa retorna ao mundo da ação, a partir do momento em que o leitor a aplica em sua vida. A leitura de uma obra histórica pode contribuir para que o leitor modifique e amplie sua compreensão de si. A narrativa historiográfica pode cooperar para que as ações humanas ao longo do tempo tornem-se mais inteligíveis, podendo explorar inclusive os resultados não intencionais das decisões tomadas pelos agentes em determinados contextos. Longe de colocar sobre os ombros do historiador o peso de fornecer lições ao presente a partir do passado, a perspectiva ricoeuriana abre a possibilidade do leitor avaliar e se posicionar frente as ações de outrora, suas motivações, implicações éticas e normas morais. Concluímos com uma passagem de Wilhelm Von Humboldt que possivelmente seria endossada por Ricoeur: A história não serve como exemplo a ser seguido ou a ser evitado. Exemplos esses frequentemente enganosos e não raro pouco instrutivos. Seu verdadeiro e incalculável proveito consiste antes em explicar e vivificar o sentido das ações no mundo real antes pela forma que os acontecimentos assumem do que por si própria. (HUMBOLDT apud KOSELLECK, 2006: 335). Bibliografia: ARAÚJO, Valdei Lopes de. Sobre a permanência da expressão historia magistra vitae no século XIX brasileiro. In NICOLAZZI, Fernando, MOLLO, Helena Miranda, ARAÚJO, Valdei Lopes de (orgs) Aprender com a história? O passado e o futuro de uma questão. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011. BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas, v.1 São Paulo: Brasiliense, 1985. CEZAR, Temístocles. Narrativa, cor local e ciência. Notas para um debate sobre o conhecimento histórico no século XIX. História Unisinos. Volume 8, nº 10, jul-dez, 2004. COSTA LIMA, Luiz. 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Temps et récit : l’intrigue et le récit historique. Paris: Éditions du Seuil, Tome I, 1991b. [Collection Points Essais] RICOEUR, Paul. Temps et récit : le temps raconté. Paris: Éditions du Seuil, Tome III, 1991c.[Collection Points Essais] STONE, Lawrence. O ressurgimento da narrativa. Reflexões sobre uma nova velha história. Revista de História, nº 2/3. IFCH, Unicamp, 1991. WHITE, Hayden. Meta-história. A imaginação histórica do século XIX. 2ª edição. São Paulo: Edusp, 2008. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 508 Michel Foucault e a historiografia pós-moderna da erótica grega Daniel Barbo Doutor em História pela UFMG danielbarbo@yahoo.com.br Resumo: A obra One hundred years of homosexuality and other essays on greek love, de David Halperin, um dos representantes da Historiografia Construcionista, tem como base teórica o pensamento do filósofo e historiador Michel Foucault, não somente porque este descreveu a historicidade do fenômeno da sexualidade, redefinindo o seu conceito, mas fundamentalmente por ter estabelecido novas bases para o reconhecimento do sujeito, não mais pensável em termos modernos. Desfazendo-se da ilusão da essência e admitindo a fragmentação do sujeito, Halperin pôde redimensionar e revelar aspectos do universo erótico grego que a historiografia tradicional mal interpretava, ignorava ou não tinha condições de perceber. Palavras-chave: Michel Foucault, Historiografia, Erótica Grega. Abstract: The book One hundred years of homosexuality and Other Essays on Greek love, by David Halperin, one of the representatives of Constructionist Historiography, is based on theoretical thinking of the philosopher and historian Michel Foucault, not only because it described the historicity of the phenomenon of sexuality, redefining the concept, but mainly for having established a new basis for the recognition of self, no more thinkable in modern terms. Discarding the illusion of the essence and acknowledging the fragmentation of the subject, Halperin could resize and reveal aspects of the Greek erotic universe that traditional historiography have played poorly, ignored or was unable to perceive. Key-words: Michel Foucault, Historiography, Greek Erotica. Em 1990, foram publicadas três obras que inauguraram a abordagem construcionista na encruzilhada da História da Sexualidade e da História Cultural: The constraints of desire: the anthropology of sex and gender in Ancient Greece, de John J. Winkler, One hundred years of homosexuality and other essays on Greek love, de David M. Halperin e Before sexuality: the construction of erotic experience in the Greek world, editada por David M. Halperin, John J. Winkler e Froma I. Zeitlin. A série de ensaios que essas obras enfeixa emprega posturas teórico-metodológicas em plena compatibilidade com as teses pós-estruturalistas foucaultianas no estudo dos comportamentos eróticos no mundo grego antigo. A importância dessa trilogia como um marco renovador na confluência da História da Sexualidade com a História Cultural foi Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 509 tematizada por diversos pensadores em muitas resenha e críticas445. Verstraete, comentando a importância do surgimento dessa trilogia, observou que Devido ao seu escopo abrangente e a originalidade e qualidade de sua erudição, Before Sexuality deve ser acolhido como um trabalho verdadeiramente maior, oferecendo uma cornucópia de insights novos e uma abertura ampla de panorama para pesquisas e reflexões mais profundas. Juntamente com as coleções de Halperin e Winkler e os livros prévios de Foucault e Dover, ele tem preparado a fundação para uma fenomenologia legítima da sexualidade no Mundo Grego antigo. (VERSTRAETE, 1991:293) As perspectivas, as metodologias, as matrizes interpretativas fundamentais deste conjunto de obras são tomadas de empréstimo da antropologia cultural, da crítica feminista, do estruturalismo francês (VERSTRAETE, 1991:290), bem como da crítica literária. Para analisarmos a matriz historiográfica construcionista, é necessário que se coloque em perspectiva a questão das identidades culturais na Modernidade Tardia. Stuart Hall distingue três concepções muito diferentes de identidade que se sucedem temporalmente: o sujeito do Iluminismo, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno. O sujeito do Iluminismo, ou cartesiano, estava baseado numa concepção de pessoa humana dotada de um núcleo interior autônomo e autossuficiente, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação. Embora esse sujeito tenha a capacidade de se desenvolver ao longo da vida, ele permanecia essencialmente o mesmo, contínuo ou ‘idêntico’ a ele, ao longo de sua existência. Com a crescente complexidade da sociedade moderna, surge a noção de sujeito sociológico, cujo núcleo interior deixa de ser autônomo e autossuficiente, já que sua formação estava na dependência de sua relação com os outros e com o exterior, que mediavam para este sujeito os valores, os sentidos e os símbolos dos mundos que habitava. A interação entre o eu e a sociedade seria a formadora da identidade desse sujeito sociológico. Esses dois primeiros tipos de sujeito, produtos da Modernidade, são conceituados como tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A marca fundamental da Modernidade, no que tange às relações entre sujeito e sociedade, era a estabilidade, a fixidez, a unicidade. Hall acredita que exatamente essa relação está se desfazendo como resultado de mudanças estruturais e institucionais características da Modernidade Tardia (a segunda metade do século XX)446, especialmente em função do 445 Cf. SUTTON Jr., 1991/1992; VERSTRAETE, 1991; THORP, 1992; DOVER, 1991; GOLDHILL, 1991; LAIPSON, 1992. 446 HALL, 2006:34-46, aponta cinco grandes avanços na teoria social e nas ciências humanas ocorridos no pensamento, ou que sobre ele tiveram seu principal impacto, no período da modernidade tardia, tendo como maior efeito o descentramento final das noções que vêem o sujeito racional e a identidade como fixos e estáveis (isto é, a morte do sujeito cartesiano): i) a releitura do marxismo pelo estruturalismo de Louis Althusser; ii) a releitura da descoberta freudiana do inconsciente por pensadores psicanalíticos como Lacan; Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 510 último processo de globalização. Essas mudanças estão deslocando e fragmentado (ou ‘pluralizando’) as identidades, colocando em colapso a estabilidade, a fixidez e a unicidade da relação moderna entre sujeito e estrutura. O processo de identificação, com o qual nos projetamos em nossas identidades culturais, está se tornando cada vez mais provisório, variável e problemático, uma vez que o sujeito pós-moderno está sendo visto como “composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas” (HALL, 2006:10-12). Portanto, o sujeito pós-moderno é conceituado, na visão de muitos pensadores, como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. Esta obra de Hall, mapeia as mudanças conceituais através das quais, de acordo com alguns teóricos, o ‘sujeito’ do Iluminismo, visto como tendo uma identidade fixa e estável, foi descentrado, resultando nas identidades abertas, contraditórias, inacabadas, fragmentadas, do sujeito pós-moderno. (HALL, 2006:46) Com essas mudanças estruturais e institucionais das últimas décadas, provocadoras de descentralizações, deslocamentos, desestruturações e fragmentações na identidade do sujeito e em sua relação com a estrutura, o que configura, para muitos pensadores, as novas condições da pós-modernidade, o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu”. A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, na medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente. (HALL, 2006:13) Em tais condições, em que “a pós-modernidade desconstrói, deslegitima, deslembra, desmemoriza o discurso da ‘Razão que governa o mundo’ ” (REIS, 2003:73), Reis afirma que “o ser é diferença constante, isto é, temporal e inessencial, e aparece em linguagens múltiplas. Sem pronunciar o ser, as linguagens múltiplas o constituem transitório e diferente...” (REIS, 2003:73) A nova abordagem da História Cultural está estreitamente vinculada a essa visão da mutação da relação do sujeito com a estrutura, bem como da mutação do próprio sujeito, iii) a linguística estrutural de Ferdinand de Saussure; iv) a ‘genealogia do sujeito moderno’ do filósofo e historiador francês Michel Foucault; v) o nascimento histórico na década de 1960 da política de identidade, tanto como crítica teórica quanto como movimento social, com a qual cada movimento apelava para a identidade social de seus sustentadores: “o feminismo apelava às mulheres, a política sexual aos gays e lésbicas, as lutas raciais aos negros, o movimento antibelicista aos pacifistas, e assim por diante”. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 511 mutações que criaram novas bases para o estatuto do conhecimento histórico e para a escrita historiográfica. O percurso intelectual, filosófico, conceitual e historiográfico, que explica a sexualidade como uma construção cultural emerge dessas mutações que nos levam à condição pós-moderna. Seguindo a análise de Reis, verificamos que essa mutação no estatuto da história e na escrita historiográfica – fruto da transmutação do sujeito e das novas relações que se estabelecem entre sujeito e estrutura, especialmente no processo de globalização – está claramente evidenciada pela passagem que se verifica entre a história global (do século XIX à segunda geração dos Annales) e a história em migalhas (a terceira geração dos Annales). A história cultural parece ser o empreendimento intelectual mais bem sucedido nesse processo de esmigalhamento da história. Reis contabiliza as perdas e os ganhos que a nova forma de se perceber o real e a temporalidade e de se escrever a história representa e, considerando os prós e os contras, enumera algumas características dessa transição ou ruptura. Consideramos que os processos descritos por Hall e Reis, ligeiramente expostos aqui, sobrepõem-se, recobrem-se e são, por conseguinte, complementares. Ou, antes, perfazem as duas faces de Jano, passado e futuro, de um processo múltiplo. Descrevem, no conjunto, a mutação do moderno ao pós-moderno, da história global à história em migalhas, nos âmbitos teórico, historiográfico, conceitual, do sujeito e da relação do sujeito com a estrutura, o que sinaliza as condições pós-modernas da escrita historiográfica da história cultural. Pensando na esfera das identidades eróticas, então, uma constatação possível a partir da observação da transição da história global à história em migalhas descrita por Reis no nível macroteórico, historiográfico e conceitual, e do processo descrito por Hall, processo que este autor condensa e sistematiza a partir de vários autores (A. Giddens, D. Harvey, E. Laclau) e é relatado aqui de forma muito esquemática – qual seja, a transmutação do sujeito, e, portanto, das identidades no desenrolar da modernidade e da modernidade tardia – é a afirmação de que, se a historiografia essencialista do homoerotismo grego está calcada na concepção de sujeito cartesiano (sujeito do Iluminismo e/ou sujeito sociológico), a historiografia construcionista reflete já (ou remete-nos para) uma concepção de sujeito pósmoderno, comprometida, nesse sentido, com a chamada Nova História Cultural. Partindo de diferentes concepções de sujeitos e de diferentes interações entre sujeitos e estruturas, cada uma dessas matrizes historiográficas produz discursos particulares e diversificados ao estabelecer uma relação dialética entre as categorias eróticas do mundo grego antigo e as Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 512 categorias eróticas da modernidade e da pós-modernidade. Lugar comum: as narrativas históricas, os produtos da escrita da história e as tendências historiográficas prendem-se inexoravelmente às temporalidades ou, nas palavras de Koselleck, aos tempos históricos. Constatamos, portanto, que a historiografia essencialista está vinculada à modernidade, ao passo que a historiografia construcionista está vinculada à pós-modernidade. E entre elas há diferenças profundas, pois, em função da vitória, nas últimas décadas, do individualismo capitalista globalizante, acelera-se a fragmentação do sujeito (das identidades) e da escrita histórica (História em migalhas); o historiador vê-se na impossibilidade de falar do todo, de uma História Global, totalizante (a ilusão do universal), mas quer falar de tudo (fragmentação extrema tendente à incongruência e à perda da especificidade lógica da história); e o sentido da história (a ilusão das filosofias da história) esvazia-se cada vez mais (que horizonte de expectativa pode-se esperar de histórias fragmentadas, desconectadas? O horizonte da diversidade multifragmentada?). Michel Foucault é um dos pensadores mais importantes deste processo. Em suas obras, criativas e originais, Foucault, primeiro, analisou os saberes e seus discursos, propondo um método, a arqueologia do saber. Como um saber se constitui? Como se organiza? Em que condições ele aparece? Depois, analisou os poderes e suas estratégias. O poder, para Foucault, não é um lugar ou algo que se possui, mas uma prática, uma relação de forças com outras forças. Em seu novo método de investigação, o qual ele chama de genealogia do poder, os saberes passam a ter uma função estratégica na rede de dispositivos que constituem o poder. Por fim, ele analisou os modos de subjetivação que nos constituíram em momentos determinados da história moderna ocidental. Assumiu um desconstrutivismo filosófico e avançou, com suas investigações, sobre os saberes e os poderes instituídos e sobre os próprios impasses que suas descobertas lhe colocaram (RODRIGUES, 1998:41-42). O reconhecimento dos modos de subjetivação é um dos pressupostos da genealogia foucaultiana, a qual não considera o homem apenas como razão, consciência, “sujeito, mas também como resultado, objeto. [...] O homem não é inteiramente sujeito e livre e a sociedade não é dominada por uma teleologia.” (REIS, 2003:71) É nessa terceira fase de suas pesquisas, na qual ele chega aos processos de subjetivação, que se encontra a contribuição fundamental de Foucault para a abordagem construcionista. Em sua última obra, a trilogia que forma a História da Sexualidade, Foucault analisou a constituição dessa categoria, a ‘sexualidade’, nos discursos das instituições e dos Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 513 saberes da Modernidade. No volume I, A vontade de saber, ele opõe-se à hipótese repressiva e investiga a forma como o sexo não parou de ser estimulado e reverberado pelos discursos produzidos a seu respeito por instituições como a família, a igreja, a escola e o consultório médico, e por saberes como a medicina, a pedagogia, a psicologia e a psiquiatria. Foucault demonstra que, desde o século XVI, e, com maior vigor, a partir do século XIX, a colocação do sexo na ordem dos discursos foi a forma privilegiada de as sociedades modernas produzirem a ‘sexualidade’, tanto a ‘normal’ quanto as ‘desviantes’, sendo a vontade de saber sobre o sexo uma peça essencial de uma estratégia de controle do indivíduo e das populações (RODRIGUES, 1998:42). Nos dois volumes seguintes, O uso dos prazeres e O cuidado de si, Foucault chega a uma percepção ao mesmo tempo surpreendente e, de certa forma, estarrecedora. Sua análise genealógica sobre as questões do saber e do poder lança-o num impasse: se o indivíduo é um efeito do poder, quais as suas possibilidades de singularização e de autonomia diante da sociedade? O poder é relação de forças e se distribui em rede. Dessa forma, não há um lugar do poder e nada está isento de poder. Se não há um lugar do poder, não pode haver um lugar da resistência. As lutas são formas de resistência na própria rede de poderes. Assim como o poder, a resistência se distribui, como uma rede, em pontos móveis e transitórios, em toda a estrutura social. Seria possível ao indivíduo, como produto do poder, resistir ao que o constitui? Portanto, se, por um lado, o poder é uma relação de forças com outras forças, por outro, a subjetivação é uma relação de forças consigo mesmo. A partir dessas conclusões, Foucault, formulando uma estilística da existência, tratará das possibilidades de vida capazes de resistir ao poder e de se beneficiar do saber. (RODRIGUES, 1998:43) Nesse percurso, Foucault desprendeu ‘sexualidade’ das ciências físicas e biológicas e tratou-a, ao contrário, como o conjunto de efeitos produzidos nos corpos, nos comportamentos e nas relações sociais por uma certa disposição de uma tecnologia política complexa. Ele divorciou a ‘sexualidade’ da ‘natureza’ e interpretou-a, ao contrário, como uma produção cultural. A partir desse enfoque, as perguntas que Foucault faz para compreender historicamente a experiência sexual são: Como se constituía a experiência sexual numa dada cultura? Em que termos era construída a experiência sexual? Como a experiência sexual se distinguia de, e se relacionava com, outros tipos de experiências, e como as fronteiras entre esses vários tipos de experiências estavam articuladas? Prazeres e desejos sexuais eram diferentemente configurados para membros diferentes de uma dada sociedade e, se sim, de acordo com quais princípios? Como os termos empregados pelos Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 514 vários membros dos grupos de seres humanos para organizar suas experiências sexuais operavam conceitual e institucionalmente de forma a constituírem os seres humanos enquanto sujeitos da experiência sexual? Quais outras áreas da vida estavam implicadas nessa operação? Como a constituição de sujeitos sexuais relacionava-se com a constituição de outras formas sociais, outras formas de poder e outras formas de saber? (HALPERIN, 1990:7) Essas perguntas de Foucault recolocam a relação que existe entre identidades, experiências e comportamentos eróticos e a sociedade como um todo, na qual eles estão inscritos e foram constituídos, e levam o filósofo a uma chave analítica para compreender a lógica dessas identidades, experiências e comportamentos: o processo de subjetivação ao qual o indivíduo e os grupos sociais estão sujeitos em sua sociedade. Quando, em 1976, Foucault recolocava a relação existente entre identidades, experiências e comportamentos eróticos e a sociedade como um todo, ele estava identificando uma das arestas dessa crise promovida pela aceleração das mudanças na contemporaneidade tardia: a sua face erótica, que vem acompanhada pelo deslocamento concomitante de outras identidades culturais: de classe, etnia, raça e nacionalidade. Nessa atmosfera de aceleração da globalização, de descentramento e deslocamentos do sujeito, “tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmo” (HALL, 2006:9), veremos, adiante, a tendência à desestruturação, erosão, fragmentação (pluralização) das identificações eróticas representadas pelo par homossexualidade e heterossexualidade, iluminando uma das inúmeras possibilidades de “ ‘jogo de identidades’ e suas conseqüências políticas” (HALL, 2006:20) entre os sujeitos na sociedade dita pós-moderna. Decerto, todo o processo que levou a essa crise das identidades culturais no mundo moderno e, consequentemente, às novas identificações culturais na pós-modernidade, suscitaram no filósofo francês a necessidade de analisar, repensar, o processo de subjetivação ao qual o indivíduo e os grupos sociais estão sujeitos em sua sociedade. Retomando a tese foucaultiana da construção da sexualidade, os ensaios contidos na obra One hundred years of homosexualityde David M. Halperin gravitam em torno do tema da erótica da cultura masculina na antiguidade clássica, em particular, no mundo grego antigo. O objetivo fundamental da obra é “[...] examinar mais intimamente os vários aspectos pelos quais as práticas sexuais gregas diferem das ‘nossas próprias’ [...] e conceber uma interpretação das experiências eróticas na antiguidade clássica que coloque em primeiro plano a especificidade histórica e cultural daquelas experiências”. (HALPERIN, 1990:1-2) Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 515 Em termos macroteóricos, a rejeição de uma história global (a não totalidade) e a tônica posta na fragmentação (o não sistema) já se enunciam no prefácio da obra. Estes ensaios, diz Halperin, não constituem um tratamento compreensivo e sistemático daquele (grande) tópico [a erótica da cultura masculina no mundo grego antigo]. Antes, eles focam aspectos selecionados deste e exploram uma variedade de questões que emergiram dos esforços modernos para elucidá-lo. (HALPERIN, 1990:ix) A obra não possui um ensaio exclusivo sobre a pederastia ateniense, ainda que dela o autor faça uma brilhante análise. Antes, Halperin inquire os componentes e contextos sociais mais amplos do ‘Amor Grego’, acreditando que nós possamos chegar a um entendimento mais satisfatório da pederastia ateniense clássica se não a virmos como uma instituição isolada, e portanto ‘queer’, mas se a considerarmos, de preferência, como meramente um fio numa rede maior e mais intricada de práticas eróticas e sociais na Grécia antiga, que variam da amizade heróica ao sexo comercial. O resultado dessa mudança de ênfase, eu espero, será o de ampliar o escopo do estudo da erótica da cultura masculina na Grécia antiga, e de distanciar este estudo da moderna categoria médico/forense/social-científica da homossexualidade. (HALPERIN, 1990:ix) A obra está dividida em duas partes: os ensaios da primeira parte [1. One Hundred Years of Homosexuality; 2. ‘Homosexuality: A Cultural Construct (An Exchange with Richard Schneider); 3. Two Views of Greek Love: Harald Patzer and Michel Foucault] são, em grande medida, teóricos e remetem para um número de questões relacionadas com o método erudito e a prática crítica corrente. Os da segunda [4. Heroes and their Pals; 5. The democratic body: Prostitution and Citizenship in Classical Athens; 6. Why is Diotima a Woman?], são exemplos de crítica literária prática e análise histórica que ampliam alguns dos princípios contidos nos ensaios anteriores para uma série de problemas concretos na interpretação da cultura grega (HALPERIN, 1990:9). No primeiro ensaio, One Hundred Years of Homosexuality, Halperin investiga o surgimento dos neologismos “homossexual” e “homossexualidade” no século XIX, demonstrando que o termo mais comumente usado naquele século para se referir ao contato erótico entre pessoas do mesmo sexo ou ao comportamento desviante de gênero, isto é, “inversão sexual”, não denotava o mesmo fenômeno conceitual que “homossexualidade”. Segundo Halperin, de acordo com o estudo da literatura médica sobre o assunto feito por George Chauncey em 1982-83, ‘Inversão sexual’ referia-se a uma larga variedade de comportamentos desviantes de gênero da qual o desejo homossexual era somente um aspecto lógico, mas indistinto, ao passo que ‘homossexualidade’ focava-se na questão mais limitada da escolha de objeto sexual. A diferenciação do desejo homossexual dos comportamentos ‘desviantes’ de gênero na virada do século Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 516 reflete uma reconceitualização maior da natureza da sexualidade humana, sua relação com o gênero e seu papel na definição social do indivíduo. (CHAUNCEY apud HALPERIN, 1990:15) A verificação de tal reconceitualização, da “inversão sexual” à “homossexualidade”, que explora e põe em relevo a formação de subjetividades e de identidades eróticas, remete-nos à preocupação da História Cultural em colocar em primeiro plano na escrita histórica não mais a estrutura, mas o indivíduo, não mais o social objetivo, mas o individual subjetivo. O que reflete o descrédito, para a historiografia vinculada às mudanças pósmodernas, das abstrações estruturais, desencarnadas e irreais; a consideração como “reais”, indivíduos concretos e singulares; a valorização da subjetividade e do tendencioso, por representarem manifestações do indivíduo e não terem mais a pretensão do claro e do distinto universal. (REIS, 2003:93) Para Halperin, a evidência dos múltiplos fenômenos eróticos examinados no corpus documental grego vem confirmar a tese foucaultiana de que as identidades eróticas são socialmente construídas, além de fornecer um campo instigante de investigação para a História da Sexualidade, fundamentalmente no que diz respeito às relações eróticas entre pessoas de mesmo sexo, o que proporcionou os novos avanços alcançados pela historiografia construcionista. Na sequência do capítulo One Hundred Years of Homosexuality, o autor elabora uma primeira argumentação nesse sentido ao refutar a tese fundamental das obras de John Boswell, a tese de que as identidades eróticas são essências humanas, e, portanto, tendem à universalidade e à naturalidade. Por essa via de raciocínio, mesmo bem antes de surgir o termo homossexualidade, existia já a sua prática e identidade, da mesma forma como a gravidade já era experimentada antes de 1685, ano em que Isaac Newton formulou a Lei da Gravitação Universal. Boswell afirmou que a proposta do famoso mito de Aristófanes relatado no Banquete platônico “é explicar porque os seres humanos são divididos em grupos de interesse predominantemente homossexual ou heterossexual”. Portanto, para este autor, este mito, juntamente com vários outros da Antiguidade Clássica, garantiria a existência da homossexualidade e da heterossexualidade enquanto categorias eróticas antigas (senão universais) da experiência humana. A sua interpretação do mito leva-o a concluir que, de acordo com o Aristófanes platônico, interesses homossexuais e heterossexuais são “tanto exclusivos quanto inatos”. (HALPERIN, 1990:18-19. Citado seletivamente) A argumentação de Halperin para refutar essa tese de Boswell é convincente. Ela desconstrói a ideia de que pudesse haver na cultura grega algum indício de que os gregos Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 517 compartilhassem de qualquer noção que fosse remotamente semelhante ao que hoje podemos chamar de homo e heterossexualidade. Halperin defende a ideia de que não se pode concluir tal divisão a partir deste mito já que, das consequências dele, o próprio Aristófanes não apontara aquela conclusão. Pelo contrário, este mito ajuda a ilustrar o quanto os atenienses clássicos desejavam evitar conceituar comportamentos sexuais em acordo com uma oposição binária que polarizasse contatos sexuais entre pessoas de mesmo sexo e contatos sexuais entre pessoas de sexo oposto. Os contra-argumentos são dois: Em primeiro lugar, o mito de Aristófanes gera não duas, mas pelo menos três “sexualidades” distintas (homens atraídos por homens, mulheres atraídas por mulheres, e – consignadas igualmente em uma única classificação, evidentemente – homens atraídos por mulheres, bem como mulheres atraídas por homens). Além do mais, não há a mais leve sugestão, em nada que Aristófanes diz, de que os atos ou preferências sexuais de pessoas descendentes de um original feminino sejam de algum modo similar aos, sem falar congruente com ou isomórfico aos, atos e preferências sexuais daqueles descendentes de um original masculino. Daí que nada no texto permite-nos suspeitar da existência mesmo de uma categoria implícita à qual pertençam tanto homens que desejam homens quanto mulheres que desejam mulheres em contradição a alguma outra categoria contendo homens e mulheres que desejam um ao outro. (HALPERIN, 1990:19-20) Por esse modo de analisar o mito, a sua consequência é o de perceber o desejo sexual de todos os seres humanos como formalmente idênticos: todos os humanos estariam procurando “um substituto simbólico para um objeto originário uma vez amado e subsequentemente perdido num trauma arcaico.” Nesse sentido, todos os humanos pertencem a uma mesma “sexualidade” e, dessa forma, ninguém é individualizado ao nível do ser sexual. (HALPERIN, 1990:20) Em segundo lugar, e contrariando as implicações claras do mito expostas acima, o relato de Aristófanes, argumenta Halperin, “figura uma distinção dentro da categoria de homens que são atraídos por homens, um detalhe infraestrutural que não consta na descrição de cada uma das outras duas categorias”. Halperin refere-se às características fundamentais da pederastia grega, isto é, à condição de que tal homem é um paiderastes (o adulto que ama o jovem) e um philerastes (o jovem que é receptivo ao adulto) em diferentes momentos de sua vida, bem como às diferenças que caracterizam as “sexualidades” de cada uma dessas categorias447. Assim, 447 Para uma análise mais ampla das diferenças entre as categorias paiderastes e philerastes, cf. HALPERIN, 1990, nota 31 do capítulo One hundred years of homosexuality; BARBO, 2008, capítulo 3: O homoerotismo na cultura falocêntrica. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 518 diferentemente das pessoas que integram as duas primeiras categorias, aqueles que descendem de um masculino original não atraem um ao outro sem qualificação; Pelo contrário, eles desejam garotos quando são homens e obtêm um certo prazer (não-sexual) no contato físico com homens, quando são garotos. Então, desde que – como a passagem prévia sugere – os atenienses clássicos distinguiam claramente os papéis de paiderastes e philerastes, relegandoos não somente a diferentes classes de idade, mas virtualmente a diferentes “sexualidades”, o que Aristófanes está descrevendo aqui não é uma orientação sexual homogênea e única comum a todos aqueles que descendem de um masculino original, mas antes um conjunto de comportamentos distintos e incomensuráveis os quais tais pessoas exibem em períodos diferentes de suas vidas [...]. (HALPERIN, 1990:20) Representações de distinções identitárias num mito num diálogo filosófico... Representação é um conceito-chave para a história cultural. Roger Chartier, um autor definitivamente associado à Nova História Cultural pensa que a importância deste conceito está em permitir articular três registros de realidade: por um lado, as representações coletivas que incorporam nos indivíduos as divisões do mundo social e organizam os esquemas de percepção a partir dos quais eles classificam, julgam e agem; por outro, as formas de exibição e de estilização da identidade que pretendem ver reconhecida; enfim, a delegação a representantes (indivíduos particulares, instituições, instâncias abstratas) da coerência e da estabilidade da identidade assim afirmada. A história da construção das identidades sociais encontra-se assim transformada em uma história das relações simbólicas de força. Essa história define a construção do mundo social como o êxito (ou o fracasso) do trabalho que os grupos efetuam sobre si mesmos – e sobre os outros – para transformar as propriedades objetivas que são comuns a seus membros em uma pertença percebida, mostrada, reconhecida (ou negada). Conseqüentemente, ela compreende a dominação simbólica como o processo pelo qual os dominados aceitam ou rejeitam as identidades impostas que visam a assegurar e perpetuar seu assujeitamento. (CHARTIER, 2002:11) As identidades eróticas são socialmente construídas e suas representações codificamse na diversidade dos produtos culturais. Em relação ao mito analisado, Halperin evidencia esses registros de realidade articulados por meio das representações, ao afirmar que a imagem desenhada pelo Aristófanes de Platão é uma representação historicamente precisa das convenções morais que governam o comportamento sexual na Atenas Clássica, senão da realidade do próprio comportamento sexual. (HALPERIN, 1990, nota 31) Afloram neste ponto da análise de Halperin as emergências das questões pungentes ligadas às multiplicações, as diversificações, as contradições identitárias postas pelos desdobramentos, pelos deslocamentos sociais promovidos pela Modernidade tardia (ou, se preferirem, pela pós-Modernidade). Se Boswell pretende ainda a clareza da estrutura, o distinto universal, a essência da identidade, valores típicos do pensamento moderno, Halperin ocupa-se com as múltiplas e complexas manifestações identitárias. Ele retorna a Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 519 este mito com outras perguntas, com o olhar iluminado por outras questões que só a pressão dos deslocamentos do sujeito pós-moderno poderia proporcionar. Halperin estabelece alguns pontos básicos a respeito do ato erótico na Atenas Clássica. Sinteticamente, eles podem ser assim enumerados: (i) o ato erótico não é intrinsecamente relacional ou colaborativo; (ii) ele é profundamente polarizador e hierárquico: ele efetivamente divide, classifica e distribui seus participantes em duas categorias distintas e radicalmente opostas: o papel ativo e o papel passivo; (iii) ele articulase com a política, expressando as relações de poder, isto é, as categorias eróticas ativo e passivo são social e politicamente articuladas. (HALPERIN, 1990:29-30) Na Atenas Clássica, o discurso público masculino tende a representar o ato erótico, primeiro, não como um ato coletivo compartilhado, uma conjugalidade, mas como uma ação praticada por uma pessoa sobre outra. Ele não produz uma relação de mutualidade, mas um ato ou um impacto, de acordo com o ponto de vista do participante. Por isso, ele não possui um caráter intrinsecamente relacional ou colaborativo, mas unilateral, exclusivista e de dominação pessoal. Segundo, precisamente porque ele é concebido como essencialmente centrado no gesto assimétrico da penetração fálica, o ato erótico é uma experiência profundamente polarizadora, dividindo, classificando e distribuindo seus participantes em categorias distintas e radicalmente opostas, quais sejam, o parceiro insertivo ou ativo e o parceiro receptivo ou passivo. Desde que o parceiro insertivo é interpretado como um agente erótico, cuja penetração fálica expressa ‘atividade’ erótica, ao passo que o parceiro receptivo é interpretado como um paciente erótico, cuja submissão à penetração fálica expressa ‘passividade’ erótica, o ato erótico também é hierárquico. Finalmente, essa hierarquia expressa uma dominação sociopolítica. A relação entre os parceiros eróticos ativo e passivo reproduz a relação configurada entre superior e subordinado nas esferas social e política. Estabelece-se, destarte, uma isomorfia entre o papel erótico de um indivíduo e seu status sociopolítico. Isso implica em que um cidadão masculino adulto só pode ter relações eróticas legítimas com pessoas de status sociopolítico inferior, ou seja, mulheres, garotos, estrangeiros ou escravos. Um ato erótico reproduz o diferencial em status sociopolítico que distingue os parceiros envolvidos: a autoridade e o prestígio do cidadão masculino adulto expressam-se em seu privilégio erótico – em seu poder de iniciar um ato erótico, em seu direito de obter prazer por meio desse ato e na própria precedência do papel erótico insertivo. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 520 Assim, para um contato erótico entre dois homens ser considerado legítimo e respeitável, as pessoas envolvidas não devem possuir o mesmo status sociopolítico. A relação erastés/erómenos, ou pederastia, deve incluir obrigatoriamente uma pessoa de status superior e uma de status inferior. Além disso, os atos eróticos nessa relação devem ser congruentes com o diferencial de poder de acordo com o qual a relação foi estruturada. Isso implica em que o parceiro superior tomava a precedência erótica – somente ele poderia iniciar um ato erótico, penetrar o corpo de seu parceiro e obter prazer erótico. A falta de reciprocidade social na relação acarretava a falta de reciprocidade erótica, e ambas eram necessárias. Em sua análise, Halperin chega a uma conclusão muito importante, pois reveladora da interdependência cultural entre práticas sociais e experiências subjetivas: Os autores gregos sugerem que as escolhas sexuais nem sempre expressam a essência individual de um agente ou revelam a orientação profunda da vida interna de uma pessoa, independentemente de sua vida política ou social. Pelo contrário, as identidades sexuais dos atenienses clássicos – as experiências de si próprios enquanto agentes sexuais e enquanto seres humanos possuidores de desejos – parecem ser inseparáveis de, se não determinadas por, suas posições públicas. (HALPERIN, 1990:32-33) Sendo assim, o sistema erótico dos atenienses clássicos não pode ser entendido se for descrito enquanto uma esfera autônoma da vida governada por leis internas próprias. Suas atitudes e práticas eróticas só revelam sua coerência sistemática se as situamos no amplo contexto social no qual elas estão mergulhadas, desde que a esfera erótica dos atenienses clássicos, longe de ser independente e estar separada da política, era constituída pelos mesmos princípios pelos quais se organizava a vida pública ateniense. (HALPERIN, 1990:31) Diferentemente do mundo moderno ocidental, no qual as categorias sexuais (homo-, hetero- e bissexualidade) são articuladas pela ‘sexualidade’, enquanto esfera ideologizante autônoma, e não se relacionando de forma tão direta com questões sociopolíticas, na Atenas Clássica, as categorias eróticas (ativo e passivo) são articuladas pelas relações de poder e não podem ser entendidas sem referência a essas relações. Desse modo, podemos pensar as categorias ativo e passivo para os atenienses clássicos, não apenas enquanto categorias eróticas, mas enquanto categorias sócio-eróticas, pois elas exprimem uma posição erótica e uma posição na hierarquia sociopolítica. A cidadania para o homem ateniense, portanto, era um conceito (e uma experiência) sociopolítico simultaneamente articulado com o gênero e com a prática erótica de seu titular. (HALPERIN, 1990:11) Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 521 A partir desses pontos, Halperin pôde estabelecer que na Atenas Clássica vigorava uma complexa estruturação que articulava estreita e intimamente a erótica e o poder político. Essa estruturação concede a exclusividade do direito à voz política e do acesso ao espaço público448 aos cidadãos atenienses em plena maturidade da atividade fálica (papel erótico insertivo). Esse direito e esse acesso são vetados aos outros membros da cidadania (mulheres e jovens) e aos outros membros da comunidade (escravos e estrangeiros), todos em submissão real ou potencial ao falo através da passividade (papel erótico receptivo). A articulação entre erótica e poder político plasma-se, assim, na polaridade ativo/passivo, o que faz identificar a masculinidade com a atividade fálica (o ato de penetrar quem quer que seja, do sexo masculino ou feminino) e considerar a passividade erótica voluntária, condição identificada com a inferioridade política, um ato de submissão indigno para o cidadão ateniense do sexo masculino, já que tal desejo representa o abandono voluntário de uma identidade masculina a favor de uma identidade feminina, violando o senso de congruência profundamente sentido e ansiosamente defendido no mundo grego, entre gênero, práticas eróticas e identidade social de uma pessoa. Portanto, essa cultura erótica masculina estabelece uma assimetria erótica estruturada por, e simultaneamente estruturante de, uma assimetria sociopolítica. O comportamento erótico, muito mais que expressar inclinações ou disposições internas de alguém, servia para posicionar atores sociais nos lugares designados para eles na estrutura hierárquica da política e da sociedade ateniense. Desse modo, o poder dessa cultura erótica masculina era posto em funcionamento através de um dispositivo complexo responsável por uma dupla dominação: uma dominação erótica configurada por uma dominação sociopolítica. E essa dominação constitui-se em torno do falo, não enquanto simplesmente pênis ou um mero equipamento da anatomia masculina, mas enquanto um símbolo do poder sociopolítico construído culturalmente pelo discurso erótico grego449. 448 Na democracia ateniense, apenas os cidadãos masculinos adultos tinham o direito de participar da assembleia, fazer parte dos júris dos tribunais, ser eleito ou sorteado para um cargo público e lutar na guerra. Na prática, e por diversos motivos, um grupo ainda menor dentro desse universo exercia efetivamente a plenitude desses direitos da cidadania, caracterizando uma elite relativamente pequena em relação à população total da Ática. 449 HALPERIN, 1990, capítulo 1, nota 83, chama o discurso erótico grego de fálico porque “(1) os contatos sexuais são polarizados em torno da ação fálica, isto é, são definidos por quem tem o falo e pelo que é feito com ele; (2) prazeres sexuais que não sejam prazeres fálicos não contam na categorização de contatos sexuais; (3) para qualificar um contato de sexual, requer-se que um – e não mais do que um – dos dois parceiros tenha um falo”. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 522 No ensaio “Heroes and Their Pals”, Halperin faz um estudo comparativo de três tradições narrativas de amizade entre duplas de guerreiros: Gilgamesh e Enkidu na epopéia babilônica, Davi e Jónatan nos livros de Samuel no Velho Testamento e Aquiles e Pátroclo na Ilíada de Homero. A grande originalidade deste estudo comparativo encontra-se no fato de não mais analisar o relacionamento entre Aquiles e Pátroclo, na Ilíada, como meramente o ponto inicial, no registro literário, do ‘amor grego’. Convincentemente, Halperin coloca esse relacionamento, numa perspectiva espaço-temporalmente muito mais ampla, no contexto de uma tradição mais antiga de companheirismo heróico do oriente próximo, conforme a tradição fica exemplificada nas mitografias babilônica e hebraica. Verstraete sugerira que tal contexto remonta também a uma tradição indo-européia. (VERSTRAETE, 1991:290-291) Pode-se chegar à conclusão de que a interpretação construcionista, segundo a teoria que David Halperin desenvolveu em One hundred years of homosexuality, baseia-se na concepção foucaultiana de que subjetividades sexuais são socialmente construídas. Referências bibliográficas BARBO, Daniel. O Triunfo do Falo: Homoerotismo, Dominação, Ética e Política na Atenas Clássica. Rio de Janeiro: E-Papers, 2008. CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietude. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002. BOSWELL, John. Christianity, social tolerance and homosexuality: gay people in western Europe from the beginning of the Christian Era to the fourteenth century. Chicago and London: The University of Chicago Press, 1980. BOSWELL, John. Same-sex unions in premodern Europe. New York: Vintage Books, 1994. DOVER, Kenneth J. A homossexualidade na Grécia antiga. São Paulo: Nova Alexandria, 1994. DOVER, K. J. Review: Greek Sexual Choices. 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A Livraria é especializada em obras relacionada à temática da Segunda Guerra Mundial, Hitler, nacional-socialismo e negação da morte de judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Por conta do conteúdo que divulgava a partir de sua livraria, Varela foi acusado pela Justiça espanhola de divulgar ideias genocidas e atentar contra os direitos fundamentais e as liberdades públicas garantidas pela Constituição. Após ser condenado e preso em 2010, Varela passa a fazer com regularidade a confecção de escritos em formatos de cartas que tinham por objetivo divulgar seus ideais e se defender das acusações que sofria, reclamando para si o direito a liberdade de expressão. Muitas dessas cartas foram publicadas no blog oficial de apoio a Varela, o Libertad Pedro Varela. O presente trabalho tem como objetivo apreender quais os caminhos que Varela utiliza para divulgar suas ideias, quais são suas propostas, seus argumentos de defesa e, num certo sentido, como se posiciona frente às acusações que sofre. Nas cartas é possível identificarmos uma série de estratégias, em que o autor tem como intenção colocar-se como um detentor da verdade acerca da história de perseguição de judeus. Palavras-chave: Pedro Varela, judeus, negacionismo. Abstract: In Spain the name of Pedro Varela is known to be editor and owner of Library Europe located in Barcelona. The Library specializes in works related to the theme of World War II, Hitler, National Socialism and denial of death of Jews during World War II. On account of the content that promoted from his bookstore, Varela was accused by Spanish court to divulge genocide ideas and undermining the fundamental rights and public freedoms guaranteed by the Constitution. After being convicted and sentenced in 2010, Varela regularly makes the production of written in letters formats that aimed to promote his ideals and defend himself against charges that he suffered, claiming for itself the right to freedom of expression. Many of these letters were published in the official blog to support Varela, Pedro Varela Libertad. This study aims to grasp what steps Varela uses to disseminate his ideas, what are his proposals, his defense and, in a sense, is positioned facing the charges that suffers. In the letters it is possible to identify several strategies, in which the author is intended to stand as a holder of the truth about the history of persecution of Jews. Keywords: Pedro Varela, Jews, Holocaust denial. As décadas de 1930 e 1940 na Europa se apresentam como um período marcado pelo processo de institucionalização do racismo e da intolerância, sendo o nacionalsocialismo alemão, talvez, o seu caso paradigmático e muitas são as produções acadêmicas que buscam dar conta de explicar como se deu o massacre nos campos de extermínio Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 526 nazistas450. Ao falarmos do episodio da morte de judeus, ciganos e homossexuais nos campos de concentração e extermínio nazistas estamos tratando de um tema ainda recente nas páginas da história. A aproximação temporal entre o momento presente e um acontecimento que teve a proporção do Holocausto gera-nos ainda um incômodo e uma busca por respostas para compreender de que forma foi possível que se engrendrasse tal plano de extermínio, com uma lógica muito própria, que determinava (e condenava) todos que devessem ser eliminados da vida social alemã, sendo inseridos no plano de “limpeza racial” promovido pelo regime nazista. A perseguição aos judeus incorporava um discurso anti-semita e trazia em si uma imagem dos judeus como o “o mal” do mundo. Eram tratados como “parasitas” que pretendem a “dominação mundial”. Durante a República de Weimar, os nazistas ofereciam uma alternativa de mudança e de reestruturação da sociedade alemã e em “1932 eram a maior força política da Alemanha e sua retórica anti-semita tornou-se um ponto básico do discurso político.”(DWORK;PELT,2004) A ideia do governo de Hitler era alimentar o ódio e levantar a bandeira nacionalista. Ainda em 1919, Hitler declara que “os judeus constituem uma raça à parte; suas preocupações puramente materiais e interesseiras tornam-se inassimiláveis e é preciso tratá-los como estrangeiros.” (SORLIN,1974:77) Na lógica nazista, combater os judeus significa combater uma doença, um povo sem pátria. Pode-se dizer que uma “morte social” estava para ser carimbada na vida dos judeus e com o início da guerra a estrela-de-davi deveria ser exibida, num sinal de diferenciação. Todos esses procedimentos faziam parte do processo de arianização da Alemanha. Até 1941, poucos haviam conseguido emigrar e cada vez mais a guerra política misturou-se a guerra de raças. (FRIEDLANDER,1974) As ações de repressão do governo atingiram, primeiramente, aos setores mais populares da sociedade e o “pior da repressão dentro da Alemanha foi então suportado, acima de tudo, pelos ‘indesejáveis’ raciais - especialmente os judeus...” (KERSHAW,1993:68) Dentro da política de exclusão e deportação, foi naturalizado o processo de morte e através da Conferência de Wannsee, em 1942, Heydrich apresentou um plano de extermínio de judeus. Com a conferência se iniciou um processo de deportação e os campos de concentração e extermínio conheceram de perto as 450 Entre os trabalhos que tratam da política de Hitler e o genocídio de judeus destacamos: BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e o Holocausto Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998; DWORK, Debórah. PELT, R. Jan Van, Holocausto. Uma História. Rio de Janeiro: Imago ,2004; KERSHAW, Ian. Hitler. Um perfil no poder. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993; STACKELBERG, Roderick, A Alemanha de Hitler. Origens, Interpretações, Legados. Rio de Janeiro: Imago, 2002; CYTRYNOWICZ, Roney. Memória da barbárie. São Paulo: Nova Stella, Edusp,1990. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 527 atrocidades que mais tarde vieram à tona. As mortes que ocorreram nos campos “se deram por condições naturais, trabalho, experiências médicas (exposição à alta pressão, congelamento, vacinação com doenças infecciosas....)” e também inspiraram-se no Programa T-4 quanto ao uso das câmaras de gás. Neste sentido, o Holocausto, um fenômeno singular na história451, significou o ponto máximo da política excludente de Hitler e seus colaboradores. Reavivando a politica hitlerista: a existência dos negadores da História Desde o fim da Segunda Guerra existiam declarações que tinham o intuito de desacreditar a politica de extermínio engendrada pelo regime de Hitler. Isso significou, num primeiro momento, relativizar aspectos do programa de exclusão e extermínio e, depois, negar que este episódio tenha sido real, possível e da forma como a História o relata. A tentativa de colocar a História em descrédito quanto a tal acontecimento partiu de um grupo de intelectuais de extrema-direita. O que pretendem é oferecer algo que consideram uma nova versão da História, como se o patamar por eles ocupados fosse o mesmo de historiadores. Se auto intitulam revisionistas da História justamente com a intenção de demarcar o lugar que é por eles ocupado para falar desse histórico e trágico episódio. Ao colocarem-se como revisionistas, abriria-lhes campo e garantiria legitimidade para divulgar suas “versões”. Porém, considerá-los como tais seria, de acordo com o historiador Luis Edmundo Moraes, cair em sua própria rede (MORAES,2011:2). Pois não se tratam de versões possíveis da História o que esse grupo nos traz, mas uma negação da História com objetivos políticos muito próprios. Nosso interesse com este texto é falar brevemente de um núcleo negacionista existente na Espanha, centralizado na figura do proprietário da Livraria Europa, Pedro Varela. Trata-se de um negador da História que alcançou projeção na Espanha, manifestando admiração pública por Adolf Hitler em diversas declarações, na 451 O historiador Roney Cytrynowicz fala de forma clara o que torna o genocídio de judeus único: “...em primeiro lugar o fato de que toda a operação de extermínio nas câmaras de gás foi realizada, em seus mínimos detalhes, como uma linha de produção da morte, medida em termos de custo e benefício.(...)O segundo ponto a caracterizar a singularidade do genocídio dos judeus foi a existência de um plano sistemático de extermínio, decidido e executado por um Estado moderno...” CYTRYNOWICZ, Roney. Loucura coletiva ou desvio da História: as dificuldades de interpretar o nazismo. In: COGGIOLA, Osvaldo.(org). Segunda Guerra Mundial - Um balanço histórico. 1995 O Holocausto significou a morte em massa de judeus durante o regime de Hitler. Depois das deportações e confinamento de judeus em guetos, Hitler decide exterminar fisicamente os judeus, que já não tinham participação pública nenhuma e neste momento a emigração deles já estava proibida. Vários complexos são criados a fim de atender confinar os judeus existentes em territórios que estavam sob controle alemão. O Holocausto significou o funcionamento das estruturas da sociedade alemã a favor da eliminação dos “indesejados”. Para isso contou com o apoio da sociedade alemã e dos funcionários do Terceiro reich, num processo em que cada um realiza seu trabalho amparados no sentimento anti-semita. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 528 presidência do grupo Cedade452 e mais tarde a frente da Livraria Europa. É importante esclarecermos o que significou o grupo nazi espanhol - Cedade. Criado em 1965, era distinguido com uma associação cultural nazi e não como partido politico. Em 1978 passou a ser presidida por Pedro Varela e foi ganhando cada vez contornos mais definidos de caráter negacionista. Na mesma época patrocinou a publicação de O Mito dos Seis Milhões, do negacionista espanhol Joaquin Bochaca e foi responsável por organizar uma homenagem a Hitler pelo seu centenário nas ruas de Madri. O Cedade chega ao fim na década de 90, quando Varela então passa a se dedicar a Livraria Europa, na comercialização e produção de escritos negacionistas. Através da Livraria Europa, Varela difunde obras de cunho racista e genocida. Com isso, Varela foi condenado em 2010 e se transformou em figura de destaque na sociedade espanhola podendo ser pensada, de uma maneira mais ampla, como representativa de uma busca pela construção de uma nova memoria acerca dos episódios que retratam a Segunda Guerra. Após ser condenado pela Justiça, Varela recorreu frequentemente ao argumento da liberdade de expressão, o que esbarraria no acionamento de leis que criminalizam a negação da morte de judeus na Segunda Guerra. As cartas de Varela Por conta da distribuição de material negacionista e racista a partir de sua livraria, Varela foi acusado de divulgar ideias genocidas e atentar contra os direitos fundamentais e as liberdades públicas garantidas pela Constituição, sendo levado à Justiça pelo grupo SOS Racismo453. Após ser condenado a dois anos e nove meses pela Justiça espanhola, em sentença proferida pela juíza Estela Pérez Franco em 2010, Varela foi encaminhado ao presidio Lledoners em dezembro do mesmo ano. Durante o período em que esteve preso, Varela deu prosseguimento a um tipo de escrita que fazia desde a década de 1990. Trata-se de escritos em formato de cartas enviados a partir da prisão e que tinham por objetivo discutir os motivos que o levaram a ser condenado, bem como também foi uma tentativa de buscar se afirmar socialmente. As cartas foram o principal meio de comunicação de Varela, que encontrou espaço para sua divulgação em sites negacionistas e no blog oficial de apoio a sua causa, o Libertad Pedro Varela, que contem uma série de elementos que nos 452 Cedade – Circulo Espanhol de Amigos da Europa. O grupo SOS Racismo foi criado primeiramente na França na década de 1980, e depois na Espanha em 1989. A intenção do grupo é denunciar crimes e manifestações de cunho racista, lutando em defesa dos direitos humanos. 453 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 529 ajudam a pensar os instrumentos e procedimentos que foram por Varela utilizados numa busca por reconhecimento e legitimidade no campo político. As cartas encontram na internet um de seus maiores meios difusores, um caminho que conhece grande alcance e poucas restrições. A fim de que se possa entender essa busca de legitimidade através das cartas, recorreremos agora a uma análise de um conjunto delas. Até o presente momento Varela já publicou cerca de 57 cartas e a maior parte delas foi redigida enquanto esteve preso. As que foram por nós selecionadas compreendem o período entre março de 2010 e novembro de 2011 e muitas delas estão disponíveis no blog de apoio ao editor, Libertad Pedro Varela454. Num universo de 57 cartas pode-se perceber que o conteúdo político é forte na maioria delas. A mais recente a que tivemos acesso foi a de número 45, publicada em novembro de 2011455 e a mais antiga que temos é a de número 10 publicada em 1996. Durante esses 15 anos, percebe-se que a frequência de cartas emitidas por Varela é maior durante sua prisão e o tema que envolve seu caso com a justiça e as restrições envolvendo a Livraria Europa são temas recorrentes nelas. A frequência com que são divulgadas varia, não sendo possível ter um padrão de produção destas. Nas cartas é possível identificarmos uma série de procedimentos e estratégias. Um dos primeiros temas presentes nas cartas é o de que Varela teve direitos violados pelo fato de sua livraria ter sofrido restrições jurídica e por ter sido preso por comercializar obras que negam a morte de judeus durante a Segunda Guerra. A notícia da prisão de Varela o apresenta como um homem que, ainda que discorde da sentença, é obediente e está consciente do erro cometido pela justiça contra ele. Esse tom de inconformismo pela prisão é o questionamento que vai marcar as cartas desde que passa a cumprir a pena em dezembro de 2010. As cartas trazem em si uma reprodução de elementos comumente encontrados em outros textos negacionistas e, nesse sentido, percebemos que as declarações de Varela fazem parte de uma articulação, um diálogo, com obras dessa mesma natureza. Isto fica evidente, por exemplo, na carta de número 10, quando trata o caso de Anne Frank456. As cartas de Varela, principalmente nos momentos em que ele pretende 454 Blog Libertad Pedro Varela. Endereço: www.libertadpedrovarela.org Importante ressaltar que esse número das cartas varia de acordo com o andamento da pesquisa, uma vez que, por se tratar de história do tempo presente, estamos lidando com um material que está em constante atualização. Ou seja, as cartas continuam a ser elaboradas. 456 Carta nº 10 que trata o caso de Anne Frank: Nascida na cidade de Frankfurt, na Alemanha em 1929, a menina judia Annelies Marie teve sua trajetória durante os anos da guerra, em que sofreu perseguição nazista juntamente com sua família, editada em livro que se transformou em best seller. O livro é fruto das anotações de Frank numa espécie de diário em que ali está problematizado os sofrimentos oriundos da 455 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 530 refutar episódios históricos evidentes, querem sempre aparentar que trazem conclusões a respeito do caso dos judeus durante o regime nazista a partir do conhecimento produzido por trabalhos de pesquisa em História. E, para buscarem se legitimar como capazes de falar de um tempo passado, trazem como recurso uma mescla de dados atestados pela historiografia com dados falseados pelos negacionistas: Fue allí donde junto a otros compañeros del campo, Anne cayó enferma de tifus, enfermedad de la que murió a mediados de Marzo de 1945. No fue ejecutada ni asesinada. Anne Frank pereció -- al igual que millones de no judíos en Europa durante los meses finales del conflicto --, como otra víctima indirecta de la guerra más devastadora. Su padre, Otto Frank, cayó igualmente enfermo de tifus y fue transferido por los alemanes a la enfermería del campo de Auschwitz, donde se recuperó.(VARELA, 1996:s/p) A menina Anne Frank de fato foi vítima de uma doença muito comum na época dos campos nazistas, o tifo. Muitas foram as vítimas não só de tifo, como também de fome e outras doenças, uma vez que as condições de vida dos campos eram precárias. (CYTRYNOWICZ,1990) A historia de Frank, porém, tornou-se símbolo da juventude que teve a vida interrompida nos campos arquitetados pelos nazistas. Ao se saber que Frank não morreu gaseada, Varela pretende, influenciado pelo trabalho do negacionista francês Robert Faurisson, colocar no campo do inexistente as instalações próprias para o extermínio em massa. E isso faz parte de uma estratégia de legitimação em que os negacionistas costuram pedaços da historia com retalhos da uma ficção construída racionalmente, pretendendo trazer para si uma legitimidade a tais escritos. A morte de Frank é ainda equiparada a todas as outras ocorridas com não-judeus durante a Guerra. A originalidade do “Diario” é colocada em questão e todo seu conteúdo é tratado como fruto de varias manipulações. Ao longo da carta se detecta a busca por argumentos “técnicocientíficos”, pretendendo demonstrar que “pesquisas” que foram elaboradas a partir do diário original atestaram o uso de canetas que não existiam à época. Estas pesquisas foram divulgadas, segundo Varela, pelo historiador inglês David Irving – este também negacionista e influenciado por Robert Faurisson. Ainda desenvolvendo essa questão, Varela continua a recorrer aos textos de Irving para dizer que a letra presente no escrito original pertence a mesma pessoa, porém não aparenta ser a letra de uma adolescente sendo incompatível com cartas que Frank teria enviado a suas amigas: perseguição como também seus dilemas próprios da idade adolescente. Por conta dos problemas da perseguição e morte, a família de Frank muda-se em 1942 para a Holanda e consegue apoio para refugiarse. Porém são descobertos em 1944 e enviados para o campo de Auschwitz. Meses depois ela é enviada ao campo de Bergen-Belsen e lá morre aos 15 anos vítima de tifo. Os textos de Anne Frank são reunidos e publicados em 1947 com o apoio do pai, Otto Frank, o único sobrevivente da família após a experiência nos campos nazistas. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 531 Pero no acaba aquí todo, y nuestra duda se convierte en decepción cuando descubrimos, como lo ha hecho el historiador británico David Irving tras su investigación (31), que en el "Diario" de Anne Frank había tinta de bolígrafo. Así lo determinaron unos expertos que acudieron expresamente a Suiza para comprobar el manuscrito original en posesión de Otto Frank. Según estos, parte de los diarios habían sido escritos con bolígrafo -- inventado en 1949 y cuya aparición en el mercado data como temprano de 1951 -- algo imposible al haber fallecido Anne Frank de tifus (32) en 1945(...)Para dilapidar este tema sólo ha hecho falta acceder a las cartas auténticas que Anne Frank escribió de niña a unas amigas, publicadas en los Estados Unidos; la letra de estas cartas sí tiene el aspecto normal de una niña de 10 ó 12 años, lo que no es el caso del "manuscrito original", que nos revelan a un autor de mayor edad. Las cartas fueron adquiridas por el "Instituto Simon Wiesenthal" y, siempre según David Irving, sí son auténticas, no así el diário. ” (VARELA, 1996) Segundo Varela, a história falsificada de Frank estaria sendo imposta, na medida em que teria se criado uma imagem da menina que não corresponderia a realidade e tal imagem é estabelecida como verdade, sendo o diário “impuesto por las autoridades alemanas actuales como ´lectura obligatoria´ en las escuelas.”(VARELA, 1996) O que aqui Varela faz é lançar mão de uma série de argumentos “técnico-cientificos” a fim de invalidar todo e qualquer testemunho e documento que evidencie o genocídio e as condições de vida dos campos, que precisa ser negado e colocado num patamar de como se fosse algo impossível de ter ocorrido. Ao desenvolverem uma rede de argumentos amparados naquilo que consideram resultados de pesquisas, Varela quer desacreditar tudo que se sabe da política nazista de extermínio. Nesta carta se sobressai um Varela que apresenta resultados mas não cria nenhuma argumentação nova entre os negacionistas. Outro argumento constantemente utilizado por Varela é o de se colocar como detentor da verdade: la verdad que incomoda e gera ódio. A verdade seria apenas uma, sendo justamente as declarações negacionistas. Segundo a proposição de Varela, essa verdade seria incômoda uma vez que não é a reconhecida pela história. Os que se decidissem por sua versão dos fatos, seriam os perseguidos. E, consequentemente, levados a justiça e a prisão, como foi o seu caso. Isso abre uma discussão com um ponto evidente nas cartas, em que Varela confronta dois tipos de verdade. Uma é a chamada verdade política e a outra seria a verdade científica. Na carta nº 26, Varela diz que a verdade política estaria imbuída da necessidade de calar os que pregam a verdade científica e, ao afirmar que não é possível a existência de duas verdades, assim define qual é a que embasa as teses negacionistas: La nuestra es una verdad científica, por cuanto se basa en hechos comprobados: Pedro Varela no ha cometido genocidio alguno, nunca ha promovido nada semejante, y, a lo sumo, ha publicado las obras de autores que dudan de que algo así tuviera lugar. Otros autores han denunciado el poder en la sombra, lo que nada tiene que ver con un genocidio (VARELA, 2011). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 532 Essa questão entre verdade política e científica existe nos escritos do negacionista francês Serge Thion,457 o que nos reforça mais uma vez o contato de Varela com outros autores negacionistas e de certa forma nos ajuda a pensar no campo das influências e dos diálogos que estabelece. Há uma intenção de Varela em se esquivar das acusações que sofre, recorrendo mais uma vez, a explicações que demonstrariam que não é a favor do genocídio. Ao observar a fonte depara-se com a maneira como constrói suas defesas e argumentos a fim de invalidar as acusações proferidas contra ele. Coloca-se como o único que busca a verdade, ocupando posição de neutralidade frente a quaisquer circunstâncias. Exemplo disso na carta é quando a juíza que tratou o caso de Varela em Barcelona é acusada de ser “fácilmente presionable”, a fim de atender os interesses “según los deseos de la política”. Tais interesses são localizados como uma tentativa de lutar contra a verdade que, segundo Varela, seria a versão oferecida pelos negacionistas. Porém, nessa batalha, o editor julga que “quienes me tienen aquí preso tienen esta batalla perdida, porque más que servir a la Verdad, la temen y le han declarado la guerra.”(VARELA,2011) Essa argumentação serve para desqualificar toda oposição que venha a encontrar e, dessa forma, impor que a verdade política alienante dos vencedores da guerra entra diretamente em conflito com aquilo que é objeto de investigação cientifica. Nesse tentativa de sempre colocar-se com injustiçado, identificamos a necessidade de Varela sempre ocupar uma posição de vitima das perseguições e das manipulações políticas levadas a cabo pelos que ocupam cargos elevados dentro da sociedade, que estariam interessados em calar a voz dos negacionistas a fim de manter seus planos de dominação e de ocultamento da verdade. Na carta de nº 25 ainda demonstra a disposição de lutar contra a restrição dos livros editados por sua Livraria. E numa estratégia de vitimização, Varela inverte os motivos que levam a sua acusação como editor de livros com conteúdo segregacionista: No entra en mi cabeza exigir a una librería la retirada de las obras del Marqués de Sade, ciertamente decadentes, acusando al propietario de la existencia de los sádicos que pueda haber en la sociedad que nos rodea. Menos aún ir a manifestarme rodeado de violentos y fanáticos contra una librería comunista, maoísta o estalinista, acusando al propietario de todos los sufrimientos que aquellos regímenes históricos causaron a la humanidad; ni, teniendo el poder de hacerlo como funcionario, enviar furgonetas policiales a vaciar las estanterías de la librería talmudista del “Cal” de Girona, con la vaga acusación de que dichos libros podrían tener que ver con discutidos y polémicos “crímenes rituales” que 457 Serge Thion tem um livro publicado em 1980 chamado Vérité Historique ou Vérité Politique ?, editado pela negacionista La Vielle Taupe. Disponível na rede em http://vho.org/aaargh/fran/histo/SF/SF1.html Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 533 alguna desviación sectaria pudiera haber cometido en el pasado (VARELA, 2011) Clara está a intenção do editor espanhol de se colocar como vítima dos que estão no poder e que controlariam o que pode e o que não pode ser expressado. A passagem da carta acima faz alusão a interdição da livraria Europa e apreensão de livros. Quer concluir que a verdade é incômoda para aqueles que pretendem afastá-la do povo por conta de suas pretensões políticas. E acredita ser um absurdo uma aprovação de lei de que em que os que negam os crimes nazistas devam também ser considerados criminosos. Outro recurso encontrado nas cartas é relativo à equivalência de crimes de guerra aos crimes nazistas. Durante todo o texto em que trata o caso de Anne Frank, por exemplo, Varela quer dizer que tudo não passa de uma falsificação e equivale o caso de Frank a todos os outros acidentes ocorridos durante a guerra. Nessa tentativa de colocar todos os crimes de guerra no mesmo patamar que o genocídio de judeus, Varela diz: Conocida en el mundo entero por su famoso Diario, Anne Frank es sin duda la "víctima del Holocausto" más celebrada (...)Pero lo cierto es que el caso de Anne Frank no es diferente al de muchos otros judíos sujetos a la política de medidas antisemitas en tiempo de guerra llevadas a cabo por las potencias del Eje, no en menor medida justificada por la declaración de guerra que la nación judía realizó contra Alemania ya en 1933, es decir seis años antes de iniciarse el conflicto bélico(..)No fue ejecutada ni asesinada. Anne Frank pereció -- al igual que millones de no judíos en Europa durante los meses finales del conflicto --, como otra víctima indirecta de la guerra más devastadora. (VARELA, 1996) A intenção é retirar do episodio de Anne Frank qualquer singularidade em relação a outros que morreram na guerra. Ele justifica as ações do governo nazi partindo do seguinte argumento, bastante comum entre os negacionistas: quando Varela afirma que houve uma declaração de guerra em 1933 dos judeus em relação à Alemanha ele pretende retirar dos alemães a responsabilidade pelo inicio da guerra e trata-los apenas como aqueles que se defenderam das ameaças judaicas da guerra e da dominação mundial. Ainda dentro dessa rede de argumentos desenvolvida por Varela, percebemos que o que faz é a criação de uma imagem favorável para si, como por exemplo ao relatar o quanto era solidário na época de sua formação em História, ajudando pessoas carentes na Praça Real de Barcelona. Quer demonstrar que não incita ódio e guerra, salvo a guerra nos casos em que trata-se da busca da verdade, sem se importar se isso irá desagradar os poderosos que a temem. Nesse sentido, o editor espanhol sempre quer se colocar como um convicto de suas opiniões e vítima de perseguição. E, no processo de julgamento do caso de Varela é possível encontrarmos que a Justiça fez a apreensão na Livraria Europa de um busto de Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 534 Hitler. Para justificar e se defender das acusações de possuir este tipo de objeto, argumenta que trata-se de uma obra de arte que não pode ser censurada e que deveria ser visto como obra de uma coleção. Varela inclusive recorre a uma comparação buscando legitimar e colocar como algo legal o fato de possuir o objeto: Ordenando destruir una obra de arte sólo porque representa a Adolf Hitler (nacido en el siglo XIX) nos introduce en el mundo de los nuevos iconoclastas. ¿Se imaginan que un juez ordenara destruir bustos de Napoleón, Bismarck o Julio Cesar? Entre los vecinos indignados, un señor ha jurado reproducir centenares de bustos del Führer para ver si alguien se atreve a prohibirle su venta junto a los otros que ofrece de Stalin, Mao y Lenin o los de auténticos genocidas como Churchill o Truman. (VARELA,2010) Varela quando coloca como algo normal possuir o busto de Hitler é justamente pelo fato dele sustentar nas entrelinhas que o líder nazista não foi a figura que se partilha hoje em nossa memoria, não tendo desenvolvido a política exterminacionista que se conhece. Esta seria fruto dos “maestros do discurso”, que estão no poder e “manipulam a linguagem política” a fim de ter um controle social cada vez maior. Todo o processo de restrição das ideias politicas de Varela são tematizadas por ele nas cartas, explorando uma imagem de que foi perseguido das mais diferentes formas, tendo o intuito de calar sua voz. Ele porem apenas coloca-se como vítimas daqueles que cerceiam seu direito à liberdade de expressão. Na parte final da carta de nº 39 ele faz uma série de agradecimentos aos que “lutam pela liberdade”, às pessoas que mantém a livraria funcionando apesar de sua prisão, aos que trabalham de uma forma ou de outra para dar prosseguimento a livraria, aos que gerenciam o site da Livraria e ao blog em que tais cartas são divulgadas. Para concluir, Varela diz que “los interesados en una versión alternativa de los hechos” devem ter liberdade de comprar em sua livraria. E ainda utiliza a ironia para se referir aos que o perseguiram: Mi consejo: dejen a Librería Europa en paz y las aguas volverán a su cauce. Sólo irán a comprar libros, voluntariamente, los interesados en una versión alternativa de los hechos. Pero como son ustedes unos fanáticos, y además cobran suculentos sueldos a final de mes, justificados con esta persecución, nos seguirán haciendo famosos, de ahí que podamos celebrar hoy nuestro XX aniversario, y que estemos trabajando ya en Librería Europa 2.0, o, si se empeñan, y por si acaso, en Librería Europa 3.0. ¡Sea! (VARELA,2011) Varela considera que o que faz é uma versão alternativa dos fatos e que todos podem escolher ter acesso e compartilhar o material que comercializa. Além disso, se a perseguição tem dado cada vez mais visibilidade à Livraria Europa, Varela ironiza sugerindo que os atos contra ele e contra a livraria trarão a ela uma longa existência. Ao falar da perseguição que sofre, Varela identifica seus opositores como intolerantes. Ele recusa o rótulo de ser Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 535 neonazista, apenas coloca-se como uma pessoa que sofre perseguição ideológica disfarçada de perseguição criminal. E é justamente a partir desses procedimentos que Varela se esquiva das acusações de apologia ao genocídio. Em seu processo na Justiça, Varela recorre sempre ao argumento da liberdade de expressão a fim de legitimar toda a argumentação presente em escritos acerca da negação do genocídio de judeus. E, com isso, tirar seus escritos do patamar que permite a Justiça localizá-los como racistas e genocidas, tratando os que o condenam como que afinados ideologicamente, sendo seus opositores: “En realidad las muy fanáticas e intolerantes ideas de extrema izquierda han llegado al poder, y vestidos ahora con uniforme de fiscal, policía u ONG, su intención declarada es eliminar a su enemigo. ” (VARELA,2010) Os conteúdos difundidos por Varela e pela Livraria Europa fazem parte de uma manifestação política e ideológica relacionada a regimes de extrema-direita. É possível identificarmos o lugar que Varela pretende enquadrar os que condenam suas publicações. Trata-los como intolerantes que querem impor sua versão da História e suprimir sua fala é a estratégia utilizada pelo livreiro espanhol reforçando a argumentação sempre presente de que não se renderá ao que é imposto pelos“magos de la palavra, magos de la ley” (VARELA,2010). O que Varela quer atribuir aos que condenaram a ação da Livraria Europa e o conteúdo dos livros que publica é o de intolerantes que querem a todo custo fazer valer uma versão fictícia da Historia e submetê-lo. Mais uma vez a ideia de que há uma luta, um conflito entre as partes da História é explorada. Varela questiona o fato de ter seus livros proibidos de comercialização, dizendo que isso é algo impensável na Europa e que se trata de uma “perseguição absurda”. Nesse sentido, desenvolve o argumento de que não existe lista de livros proibidos que justifique a restrição de vários títulos da Livraria Europa – uma alusão ao Index da Inquisição – e afirma que sua livraria tem uma temática especializada, tal como as demais livrarias especializadas na Europa. A questão por qual respondeu Varela na Justiça não tem a ver com a venda de livros em si, mas com o conteúdo das obras que comercializa. Varela, na sentença de condenação, responde por crimes de apologia ao genocídio e difusão de ideias racistas.458Nas cartas Varela coloca um apelo constante: que divulguem suas cartas, façam cópias e as distribuam. Desta forma estariam distribuindo a memoria que pretendem partilhar socialmente. Varela 458 A sentença foi proferida em março de 2010, sendo Varela preso em dezembro do mesmo ano. Julgada pelo Juizado 11 de Barcelona, ela contem detalhes dos materiais apreendidos na Livraria Europa e os conteúdos por ela divulgados. Sentença disponível em http://www.igualdadynodiscriminacion.org/novedades/novedades/2011/pdf/2010_sentencia_libreryaeuro pa.pdf Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 536 define-se como o detentor de uma verdade que seria oposta aos que estão no poder. Explora sempre a imagem de vítima das perseguições e manipulações políticas dos que se sentem incomodados com seus ideais e de um homem que busca a paz entre os homens, lutando sem cessar para que suas propostas alcancem a todos por meio da garantia do direito à liberdade de expressão. O direito que Varela reclama para si fere princípios constitucionais e estão impregnados de racismo, xenofobia e ideais nazistas. Referências Bibliográficas: CRUZ, Natália dos Reis. Negando a história: a Editora Revisão e o neonazismo. Rio de Janeiro, UFF, 1997. (Dissertação de mestrado) ______. Os Fascismos e a Crise da Modernidade. In: Anais do IV Congresso Internacional de História. Maringá, 2009. p. 1241-1252. CYTRYNOWICZ, Roney. Memória da barbárie. São Paulo: Nova Stella, Edusp,1990. ______. As formas de lembrar e o estudo do Holocausto. In: MILMAN, Luis e VIZENTINI, Paulo Fagundes (Orgs) Neonazismo, Negacionismo e Extremismo Político. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2000. ______. 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Palavras-chave: temporalização, cronótopo, modernidade. Resumen: Se analiza aquí una serie de configuraciones discursivas relativas a la postulación del espacio-tiempo en el concepto de modernidad, a la vista de los enfoques posteriores y las apropiaciones de tal significante en nuestra contemporaneidad. Por ello, nos centramos en la interpolación mediante la cual se ha hecho costumbre el resplado y, también, la negativa de una tendencia crítica que se concibe como capaz de operar en la así dicha posmodernidad. Palabras-clave: temporalización, cronotopo, modernidad. Introdução Se tentarmos demarcar a inflexão entre os conceitos de modernidade e pósmodernidade será muito provavelmente na noção de tempo-espaço que encontraremos uma das alterações decorrentes a propósito do referido processo: a passagem da estrutura diacrônica para uma estruturação sincrônica do tempo sócio-histórico vivido. Isso corresponde à tentativa de recompor a historicidade de uma época a despeito de outra. Nem tudo, porém, é condenado nesse processo em que o termo “pós-modernidade” pretende denegar o seguimento conceitual a que remonta. Antes de operar com negatividade plena, o que faz a crítica abrigada sob dito vocábulo é subscrever graus de modernidade de modo a recuperar o que lhe convém. Em suma: ocorre uma verdadeira seleção de índices de legibilidade epistemológica através dos quais o que vem a ser definido pela pós-modernidade está ora próximo, ora distante da modernidade a fim de estipular Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 539 uma razão crítica desta última e, assim mesmo, estabelecer-se como uma das tendências determinantes do pensamento contemporâneo. A seguir discutiremos tal ponto tomando em consideração as formações de ideias que delimitam, de um lado, a) a prefiguração do cronótopo459 teleológico a propósito da concepção meta-histórica de um “presente inacabado” e que deve, pois, ser ultrapassado em direção a um télos, e, de outro, b) a reconfiguração deste cronótopo outrora vigente nos inícios da modernidade, vislumbrando, de tal maneira, a espessura de um “presente dilatado”, ou seja, uma dimensão do tempo presente supostamente capacitada a operar na simultaneidade das temporalidades absorvidas a ponto de se deixar caracterizar como algo limiar e, também, irradiadora de uma porosidade cronológica. Modernidade | Temporalização Reinhart Koselleck propôs em Futuro Passado que a modernidade somente veio a se conceber como novo tempo – ou tempo moderno – uma vez o “horizonte de expectativa” tendo sido deslocado do “espaço de experiência” anteriormente decorrido no processo histórico (KOSELLECK, 1993: 324-351). A diferença entre experiência e expectativa,460diz o historiador 459Reporto-me à definição de Mikail Bakhtin, segundo a qual o cronotopo designa a interligação fundamental das relações temporais e espaciais, artisticamente assimiladas pela literatura. Expressa, dessa maneira, a indissolubilidade do espaço e do tempo enquanto índices da imagem-narrativa. “Os índices do tempo transparecem no espaço, e o espaço reveste-se de sentido e é medido com o tempo. Esse cruzamento de séries e a fusão de sinais caracterizam o cronotopo artístico” (BAKHTIN, 1988: 211). Daí o princípio condutor do cronotopo, em literatura, ser o tempo. Da função cronotópica resulta, ainda, a organização dos acontecimentos narrativos e a demonstração dos mesmos mediante a condensação e a concretização dos índices temporais – tempo da vida humana, tempo histórico etc. – em regiões definidas do espaço. Em última instância, configura a imagem-narrativa de tudo aquilo que é estático-espacial (por ex., o castelo, a estrada, o salão de visita, a soleira), inserido-o numa série de mobilidade temporal a propósito dos acontecimentos entrelaçados no enredo. O deslocamento a ser operado, aqui, reside em assimilar a maneira pela qual os índices temporais – apreendidos mediante as figurações cronotópicas possíveis nas categorias conceituais modernidade e pós-modernidade – permitem por um lado a sistematização da imagem-narrativa diacrônica, e, por outro, da sincronia passível de ser assimilada das apropriações contemporâneas em torno da modernidade. E sob tal perspectiva passarei a pontuar como as apropriações contemporâneas do cronotopo em torno da categoria modernidade consistem na configuração de uma imagem narrativo-conceitual marcada pela póshistoricidade, i.e., pela desaceleração e, também, pela concomitância de dimensões espácio-temporais em detrimento do historicismo decimonônico altamente marcado por ideias tais como linearidade, progresso e, enfim, temporalização. 460 Por experiência Koselleck designa “un pasado presente, cuyos acontecimientos han sido incorporados y pueden ser recordados. En la experiencia se fusionan tanto la elaboración racional como los modos inconscientes del comportamiento que no deben, o no debieran ya, estar presentes en el saber”. E expectativa seria, por sua vez, aquilo que se liga às pessoas na medida em que se experiencia a vida prática, “siendo a la vez impersonal, también la expectativa se efectúa en el hoy, es futuro hecho presente, apunta al todavía-no, a lo no experimentado, a lo que sólo se puede descubrir”. Tais categorias, entretanto, não devem ser operadas separadamente, pois não há expectativa sem experiência, assim como, também, não há experiencia sem expectativa. Consistem, , nesse sentido, num esboço para a dimensão meta-histórica da condição de histórias possíveis, i.e., contingenciais. Para mais, não existe um enrijecimento entre elas. Segundo Koselleck, “está es Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 540 alemão, tende a ser cada vez maior com a modernidade. Isso implicou a emergência de uma consciência mais precisa a propósito da oposição entre determinado presente e épocas passadas, pois demarcaria gradualmente a perspectiva de um futuro aberto: movimento rumo ao progresso, à aceleração dos acontecimentos históricos. Koselleck define tal processo como temporalização. O termo usado descreve, entre outras coisas, um período profundamente marcado pela mobilidade ascendente, assim como pela contínua dinamização a respeito da estrutura temporal, daí resultando tanto a “antecipação da providência” quanto a “exemplaridade das histórias antigas” (KOSELLECK, 1993: 316). A secularização dos eventos, bem como a recusa das tradições delinearam não apenas uma nova época, mas, também, configuraram uma temporalidade completamente distinta. A aceleração vinda daí tornou-se a característica crucial do tempo moderno. E, concomitante, foi formulada a noção de um presente inacabado, pois tal presente passou a ser impreterivelmente considerado um instante transitório, concebido de modo que a experiência, i.e., um passado ainda imediato, atual, esteja preparado para irrupção de um futuro iminente. Ao viés destas características, podemos pensar a modernidade como a atualidade de uma época mais recente, tendo de reconstruir a ruptura com o passado como uma “renovação contínua” (Cf. HABERMAS, 2002: 11). Auto-referencial em sua consciência histórica, ela deseja ser uma época cuja nova temporalidade não está nos modelos de épocas passadas, de modo que terá de extrair de si mesma os critérios de orientação no presente e, ato seguido, a sua própria normatividade. Tal particularidade foi uma das perspectivas cruciais ao longo da formulação do pensamento oitocentista. E daí decorre a presença altamente determinante da teleologia na época moderna; lembremos a Historia Magistra Vitae como propulsora de um futuro arquetípico a ser perseguido pelo bem da humanidade muitas vezes em detrimento do presente. A modernidade, desse modo, implica uma noção bastante clara de progresso, reclamando, para tanto, a aceleração do tempo-histórico a fim de alcançar a historicidade de um ininterrupto “por vir” cuja crítica, sabemos, somente seria formulada de maneira decisiva a partir da Primeira Guerra Mundial. Pós-modernidade | Destemporalização sólo una fórmula subjetiva para la situación objetiva de que el futuro histórico no se puede derivar por completo a partir del pasado histórico” (KOSELLECK, 1993: 336-338-341). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 541 A contrapelo da temporalização e do progresso que, em dicção benjaminiana (1994: 226), paralizara as asas do anjo da história, a pós-modernidade aparenta reconfigurar a função cronotópica do ser moderno. Como seu preceito básico nós já não encontraremos a historicidade diacrônica, pelo menos não aquela outrora desencadeadora de uma visão nefasta do presente a ser superado. Muito pelo contrário, a historicidade até bem pouco reivindicada pela linhagem pós-moderna é a da sincronicidade. Vejamos então como isto ocorre. O termo tem cunhagem nos anos 1950 pelo historiador britânico Arnold Joseph Toynbee. 461 Porem, veio a irradiar os debates sobre arte, cultura e sociedade somente durante os anos 1970, ganhando relevância a partir dos 80. Grosso modo, esteve inicialmente acoplado à redefinição da situação sócio-histórica do pós-guerra, constituindo, assim, uma tentativa de abandono do pensamento altamente instrumental com respeito a fins e que, sob uma perspectiva weberiana, visava instituir a modernização da vida prática. Na década de 1970, por exemplo, aparece o livro A condição pós-moderna, de François Lyotard, obra que faz com que o conceito venha a emergir como formação discursiva nas humanidades. Dito significante descreve ali uma fase do que ainda é moderno. Ganham vulto, no entanto, noções como a “morte dos centros” e, também, o declínio das metasnarrativas, instâncias discursivas totalizadoras dos universais fundados com a modernidade. Trocando em miúdos, podemos concluir que a proposição do crítico francês prescreve a desconstrução das categorias iluministas outrora predominantes sob as noções de racionalismo e progresso decimonônicos. Enquanto pensamento crítico que pretendeu semear diretrizes discursivas no terreno de nossa contemporaneidade, a pós-modernidade tem sido, via de regra, associada a uma postura cética diante da identidade histórica adotada fortemente na Europa e redistribuída com força desproporcional a outros mundos a partir do século XIX. Nesses termos, não raramente soa como uma resignação em detrimento da auto-incumbência modern(ist)a de contínua renovação do presente. A todo tempo parece auto-prescrever a desconjunção a propósito daquilo tudo que fez da modernidade um movimento temporal cujo ápice resultou ser a experiência da aceleração impulsionada pelo consenso de emancipação. Desabilita, portanto, aquela tendência que, como já vimos, buscou fazer da modernidade a 461 Para uma exposição mais detalhada em torno das aparições e apropriações do termo, ver o capítulo “Exaustão: pós-moderno e palinódia”, de Os cinco paradoxos da modernidade, de A. Compagnon, 1996: 103-124. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 542 consciência de um presente experimentado claramente como ponto de inclinação e transição, assim parecendo implicar, em última instância, a própria transposição. É em razão disso que a pós-modernidade (longe de ser uma enunciação discursiva monolítica) veio sendo recorrentemente assimilada à superação da “alta-modernidade” cujo zênite, durante os início do século XX, foi o modernismo europeu. Isso parece predicar que, em princípio, seja apenas mais uma das tantas consequências da obsesssão por inovação, legado da temporalização cujo modus operandi confirma o cronótopo instituído com a modernidade. A lógica da ruptura, de tal maneira, acaba por vazar a culatra do escopo conceitual disparado por certa vertente do pensamento crítico vinculado à pósmodernidade. Apesar disso, pelo menos durante as duas últimas décadas é cada vez mais insurgente um exercício crítico cuja tarefa consiste em ponderar a respeito da noção de ruptura, de superação implicada no uso do conceito. A propensão, nesse sentido, é recusar uma eventual leitura míope do “pós-” reduzindo-o a ideia de suplantação diacronica. Assim, cristaliza-se uma espécie de contenção da noção de progresso, da temporalização eminentemente moderna. E surgem daí propostas críticas que, já veremos, vislumbram a simultaneidade de temporalidades, articulando-as sob a noção de sincronismo entre acontecimentos emergentes num dado presente e, por isso mesmo, habilitadas a operar no limiar dos fenômenos sócio-culturais com os quais devemos lidar a partir de resignificações, sobretudo midiáticas, no âmbito da contemporâneidade de nossa vida cotidiana. Uma das proposições mais significativas da linhagem referida acima encontra-se na perspectiva de Gumbrecht (1998: 285) quando este sugere, a propósito do conceito que estamos discutindo, a noção de destemporalização. Para o crítico alemão, o que de fato vem ocorrendo é uma dilatação do presente, i.e., a cristalização de um ponto de convergência entre um passado que não nos sentimos dispostos a abandonar e um futuro no qual não queremos ingressar. Daí ressultaria que a inovação dos hábitos e formas de comportamento não é mais uma obrigação necessária. Consequentemente, o tempo deixa de ser um agente absoluto de mudança e transformação, de modo que recusamos a vivenciar o futuro como algo aberto. Para Gumbrecht, a pós-modernidade é aquilo que justamente desfaz, neutraliza e transforma os efeitos acumulados através de “cascatas de modernidade” que temos experimentado uma à uma desde o o século XV. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 543 Com suas particularidades, essa linhagem de pensamento pretende abalar a investida metafísica do historicismo ora afirmado através da perspectiva do progresso oitocentista: seja com o Iluminismo, seja, posteriormente, com o Positivismo, enfim, toda sorte de proposições cuja síntese possível está no conceito hegeliano de filosofia da história, característica determinante para interpelar o pensamento do período em questão. Por sua vez, Gianne Vattimo (1996: XVI) nos fala da dissolução da noção de “história universal” como aquilo que justamente nos mostrou a universalidade da história. Ou seja: a multiplicação dos centros discursivos, opções políticas, etc. O oxímoro na expressão do filósofo italiano atenta para o fato de como nossa contemporaneidade é nivelada pela ideia de simultaneidade. Sai de cena, assim, o ethos da modernidade: o valor do novo, i.e., a redução do “ser moderno” a esta origem ex machina. Para Vattimo (1996: 116) nós vivemos “uma crise de futuro”, pois, a seu ver, aflora, agora, o problema do tempo e dos modos peculiares de vivenciar a temporalidade fora da sua linearidade pretendidamente natural. Com a “pós-historicização”, o pensamento crítico deve residir, ainda segundo Vattimo (1996: 169-190), na tarefa de um “pensamento fraco”, uma “debilidade do ser”, ou seja, algo “não mais orientado com base na origem ou no fundamento, mas na proximidade”. E seu caminho será o “de uma aceitação-convalescença-distorção que não tem mais nada do ultrapassamento crítico característico da modernidade”. Pois bem. A ideia de simultaneidade, de uma historicidade sincrônica é tão determinante na nossa contemporaneidade que aparece até mesmo em autores críticos da perspectiva predicante de uma “ontologia fraca”. Isso acontece, por exemplo, a propósito daquilo que lemos nas páginas de Jamais fomos modernos, livro de Bruno Latour. A premissa básica do pensador francês é que “o pósmoderno é um sintoma e não uma solução” (LATOUR, 1994: 73). Quer dizer: não deve premeditar uma verdade fraca que, entre outras coisas, leva à dispersão, à impotência e ao anacronismo. Latour evoca, para tanto, uma “emenda” na Constituição moderna a fim de reatar, uniformente, o problema da representação que, a partir da modernidade, diz ele, havia sido divido, equivocadamente, em dois ramos irreconciliáveis e assim impedindo uma organização holística do pensamento crítico (Cf. LATOUR, 1994: 141). Latour aponta uma falta de habilidade crítica para manusear o que chama de “nó górdio” atado desde que a modernidade se constituiu. Nesse sentido, o francês problematiza a incompreensibilidade dos trabalhos mais recentes em razão de estes serem recortados em três categorias usuais, ora dizendo respeito à natureza, ora à política, ou ora Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 544 ao discurso (LATOUR, 1994: 9). Decorre daí “a crise da crítica”, cujos repertórios distintos foram desenvolvidos a partir da tripartição relativa à naturalização (Changeux), à socialização (Bordieu), e à desconstrução (Derrida). Assim as abordagens dos epistemólogos, dos sociólogos, e dos descontrutivistas, segundo Latour, são recorrentemente mantidas a uma distância conveniente, alimentando as suas análises com as fraquezas das outras duas demais. A resolução, para isso, consiste numa conjectura retrospectiva – sempre dada via conjugação pretérita do tempo presente – a fim de afirmar que “nunca entramos na época moderna”. Para o autor em questão, essa é uma postura que “desdobra ao invés de desvelar, que acrescenta ao invés de amputar, que confraternizar ao invés de denunciar”, algo característico do “não moderno (ou amoderno)” (LATOUR, 1994: 51). Clara impendência de retração da solução meta-histórica estipulada na modernidade, ali a proposição se constitui a partir da compreensão do “início do tempo que passa”, mensurando “o fim do passado ultrapassado” e, finalmente, ponderando sobre a “seleção e tempos múltiplos” na dita Constituição do não moderno (LATOUR, 1994: 66-71-73). O não moderno é, portanto, aquele capaz de agir na simultaneidade, de operar criticamente levando em conta ao mesmo tempo a Constituição dos modernos e os agenciamentos híbridos negados pela mesma. Dessa maneira, Latour descreve uma reconfiguração do cronótopo da modernidade tal qual víamos em Gumbrecht e Vattimo. Apesar de as divergências epistemológicas saltarem aos olhos, não há variação, porém, no que respeita somente à realização cronotópica da nossa contemporaneidade em tais autores. Considerações finais A inflexão a propósito do quadro comparativo supracitado nos permite notar uma investida por reconfiguração da imagem espaço-temporal a partir das apropriações contemporâneas referentes ao conceito de modernidade. Tendo em conta a estrutura de campo semântico em torno do cronótopo podemos observar uma espécie de contenção do progressivo deslocamento entre “horizonte de expectativa” e “campo de experiência”. Isso se evidencia, por exemplo, quando estamos atentos ao fato de que é sempre através da palavra simultaneidade (as variações notadas, terá percebido o leitor, são apenas ramificações semânticas) que estará descrita a recusa por parte da crítica contemporânea no que diz Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 545 respeito à homogeneidade, buscando informar a natureza descontínua do tempo de modo a estabelecer uma temporalidade conflitante com a linha diacrônica. Da negação dessa historicidade caracteristicamente moderna decorre uma sorte de pós-historicismo. Este implica uma cronologia na qual o passado e o presente aparecem cada vez mais imiscuídos, acessíveis. Daí a especificidade histórica do presente (agora nem inacabado, nem perfeito, nem tampouco transitório) residir no desaparecimento de metas rumo às quais as inovações conduziriam. Não é que a inovação, a abertura para o futuro e etc. tenham deixado de operar. Talvez apenas passaram de uma macro-escala para uma micro. E assim já não podem compor mais uma plataforma programática e propulsora dos desejos coletivos de uma dada época tal como foi recorrente quando nos movíamos pela lógica de uma “história universal”. A aceleração do tempo, dessa maneira, não figura mais verdadeiramente como agente absoluto de transformação. Altamente poroso, o presente se expande como um ponto de convergência entre um passado que não nos sentimos dispostos a abandonar e um futuro no qual recusamos ingressar. Eis, portanto, a desaceleração que, segundo uma das linhagens críticas discutidas aqui, determina nossa época. Dizer se para o bem ou para o mal, resultaria apenas na estipulação de um juízo de valor verdadeiramente maniqueísta. Certo é estarmos, agora, bem distante do historicismo metafísico que, durante o século XIX, parece ter se infiltrado profundamente no “mundo da vida” daquele período, variando apenas quanto ao ritmo e aos fins a serem alcançados. Referências bibliográficas: BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: UNESP;Hucitec, 1988. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história cultural. São Paulo: Brasiliense, 1994. COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1996. HABERMANS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos sentidos. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1998. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 546 JAUSS, Hans Robert. Tradição literária e consciência atual da modernidade. In: OLINTO, Heidrun Krieger (org.). História da literatura. As novas teorias alemãs. São Paulo: Ática, 1996. KOSELLECK, Reinhart. Futuro pasado: para una semántica de los tiempos históricos. Barcelona: Paidos, 1993. LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Rio de janeiro: Ed. 34, 1994. LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002. VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade. Niilismo e hermenêutica na cultura pósmoderna. Martins Fontes: São Paulo, 2002. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 547 Aproximações entre a História e a História das Ciências: As teorias da historiografia das ciências e o estudo da astronomia de Abraham Zacuto. Geraldo Barbosa Neto Mestrando em História pela PUC-SP/ Bolsista CNPQ gbnetoindependente@hotmail.com Resumo: A historiografia sobre Abraham Zacuto o analisou conforme uma definição contemporânea de astronomia. Entre os teóricos da historiografia das ciências, se instrui sobre a aprendizagem dos conceitos de acordo com eram empregados em sua época. Assim, Esse erudito deveria ser interpretado consoante com sua definição sciencia de la astronomia. Sob esse conceito se desvela uma prática astronômica intrinsecamente ligada aos prognósticos astrológicos, levando à resultados substancialmente distintos e originais, em relação ao que os historiadores escreveram sobre o repertório intelectual de Zacuto. Palavras-chave: História, História das Ciências, sciencia de la astronomia. Abstract: The historiography analyzed Abraham Zacuto with a contemporary astronomy definition. Among the theorists of historiography of science, be instructed on the learning of concepts were used in accordance with his age. Thus, this scholar should be interpreted according to its definition sciencia de la astronomia. Under this concept unfolds a practical astronomical intrinsically linked with astrological predictions, leading to results substantially different and unique, in what historians have written about the intellectual repertoire of Zacuto. Key-words: History, History of the science, sciencia de la astronomia. Este artigo tem como tema la sciencia de la astronomia de Abraham Zacuto (1452-1515). A História e a História das Ciências, embora aparentadas, constituem campos de investigação histórica autônomos, com domínios, abordagens e perspectivas próprias. Este texto apresenta algumas considerações que assinalam a elucidação dessa figura intelectual muito abordada na História sob a égide de teorias e conceitos engendrados na historiografia das ciências. Assim, instruindo-se em historiadores das ciências se toma esse erudito hebreu-espanhol como centro de estudo. Uma proposta de pesquisa histórica bilíngue Em 1986, em seu artigo Possible Worlds in History of Science, Thomas Kuhn apresentou para a pesquisa histórica das ciências a teoria de que: [...] o desenvolvimento científico resulta ser dependente não apenas da eliminação, dentre o conjunto corrente de mundos possíveis, dos candidatos ao mundo real, mas também das transições ocasionais a um outro conjunto, viabilizado por um léxico de estrutura diferente. Quando tal transição ocorre, Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 548 alguns enunciados que antes descreviam mundos possíveis mostram-se intraduzíveis na terminologia desenvolvida para a ciência subseqüente (KUHN, 1986: 99) Ele formulou a premissa de que “[...] para compreender algum corpo de crenças científicas passadas, o historiador precisa adquirir um léxico que, aqui e ali, difere sistematicamente daquele corrente em sua própria época” (ibid: p. 78). Thomas Kuhn definiu o termo possible worlds (mundos possíveis) “[...] como um modo em que o nosso mundo poderia ter sido, e essa descrição informal praticamente servirá para nossos propósitos presentes.” (KUHN, 1986: 83). Ganha expressão em Abraham Zacuto uma das formas possíveis (possible worlds) que a astronomia poderia ter assumido, se não tivesse ocorrido uma supressão de conhecimentos que a constituíram ou uma reordenação dos saberes que a compunham consoante com os termos de um estatuto científico consolidado historicamente. Abraham Zacuto e a historiografia Em 1912, a obra L'Astronomie nautique au Portugal à l'époque des grandes découvertes , publicada pelo historiador português Joaquim Bensaúde, marcou a historiografia portuguesa. Com base nas proposições desse estudo, Abraham Zacuto foi considerado pelos historiadores portugueses como um astrônomo, autor do Almanach Perpetuum, um tratado de astronomia que serviu de modelo para a construção dos regimentos náuticos portugueses quinhentistas462. Em Cerimônias de Posse na Conquista Européia do Novo Mundo, Patrícia Seed escreveu que as tábuas astronômicas de Zacuto foram consultadas por Mestre João Faras, em 1500, quando mediu o grau do Sol em um ponto da atual costa nordestina brasileira para localizar a frota cabralina (SEED, 1999: 165). Em Astronomy in the Iberian Peninsula: Abraham Zacut and the Transition from Manuscript to Print, publicado por José Chabás e Bernard Goldstein em 2000, Abraham Zacuto foi abordado conforme termos astronômicos recentes, pois esses astrônomos examinaram o Almanach Perpetuum de Zacuto sob o prisma de sua especialidade. Sua principal biografia, El judío salamantino Abraham Zacut, publicada em 1931, por Francisco Cantera Burgos, fora acolhida na Revista de la Academia de Ciencias Exactas, Físicas e 462 Com referência em Bensaúde se publicou As tábuas náuticas portuguesas e o Almanach perpetuum de Zacuto (publicado por Luciano Pereira da Silva, em 1915), O Almanach Perpetuum de Abraham Zacuto e as Tábuas Náuticas Portuguesas (Antônio Barbosa, 1928), L’Almanach Perpetuum de Abraham Zacut. Leiria 1496 (Abel Fontoura da Costa, 1934); Almanach perpetuum: reprodução em fac-símile do exemplar da Biblioteca Nacional (por Luís Mendonça de Albuquerque, um dos principais expoentes dessa historiografia náutica, publicado em 1986). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 549 Naturales, ou seja, em um periódico voltado para as Ciências da Natureza, no sentido atual dessa expressão. Joaquim Barradas de Carvalho, publicou o Tratado breve en las ynfluencias del cielo e o De los eclipses del sol y la luna, tratados de astrologia redigidos por Abraham Zacuto em 1486, na vila de Gata, atual província espanhola de Cáceres, com o títuloDois Inéditos de Abraham Zacuto. Ele escreveu que Zacuto “[...] fundira o aspecto científico da astronomia com as quimeras astrológicas” (BARRADAS DE CARVALHO, 1947: 97). No artigo La Medicina em un Manuscrito de Astrología del Siglo XV (2000), José Cobos Bueno, analisou a medicina através desse Tratado breue en las ynfluencias del cielo. No estudo recente Abraham Zacuto, astrólogo de Don Juan de Zúñiga, publicado em 2010, Marciano Martín Manuel discutiu a importância do mecenato de Juan de Zuñiga, mestre da cavalaria de Alcantara, no desenvolvimento da cultura intelectual da vila de Gata, atual província espanhola de Cáceres. Predominou nos estudos sobre Zacuto uma concentração em sua obra Almanach Perpetuum, embora esse douto também tenha redigido os tratados ha-Hibbur ha-Gadol (O Grande Compêndio), Tratado breue en las ynfluencias del cielo, De los eclipses del sol y la luna, Mishpetei ha ‘istagnin (Juízos do astrólogo) e Sefer Yuchassin (Livro das Genealogias). Também as análises sobre o Almanach Perpetuum realizadas pelos historiadores da náutica dos descobrimentos basearam-se somente em nove fólios, dos 168 com seus respectivos versos que compõem a obra, deixando de fora de seus exames um prolixo conjunto de tábuas astronômicas que não foram aproveitados pelos mareantes lusos. Esses fólios que não foram estudados e os tratados de Abraham Zacuto demonstram que a historiografia eliminou da imagem erudita de Zacuto o que considerou uma impostura científica. Abraham Zacuto e a Historiografia das Ciências Em 1955, no artigo The True Place of Astrology in the History of Science, Lynn Thorndike, escreveu que antes de serem suplantados pelas leis propostas por Isaac Newton, os princípios gerais que organizavam o universo eram astrológicos. A cosmologia milenar dos astrólogos, além de sistematizar a configuração celeste, a elegeu como causa primária dos fenômenos que ocorriam no mundo natural. Esse foi o cenário cosmológico que serviu de modelo para nomes de notoriedade na história da ciência como Isaac Newton, Thomas de Aquino, Alberto Magno, Kepler e Francis Bacon (THORNIDIKE, 1955: 273-278). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 550 Eugênio Garin, em O Zodíaco da Vida, escreveu sobre a astrologia que “[...] por detrás das fantasias mítico-religiosas das ‘influências’ e das ‘imagens’, existe uma trama racional, suscetível de ser rigorosamente calculada e definida segundo os princípios do conhecimento científico” (GARIN, 1988: 14). Paolo Rossi, em A Ciência e a Filosofia dos Modernos, escreveu sobre os aspectos centrais que a constituíram: [...] um tipo de saber que jamais consegue configurar-se como um saber rigoroso, e que, entretanto, queria ser considerado como tal. Para superar esta dificuldade, os astrólogos misturam matemática com as cerimônias e, simultaneamente, apelam para uma temática “religiosa” (ROSSI, 1992: 38). Em O Nascimento da Ciência Moderna na Europa, Rossi registrou que na astrologia “[...] convivem cálculos sofisticados e vitalismo antropológico” (ROSSI, 2001, p. 49). Francis Amelia Yates, em sua obra Giordano Bruno e a Tradição Hermética,coloca a questão de “[...] como eram incertas e movediças as fronteiras entre ciência genuína e o hermetismo463 na Renascença” (YATES, 1995: 179). Para Keith Thomas (1991: 237) “A despeito de alguns requintes nos detalhes [...]”, a astrologia conhecida no século XVI “[...] era visivelmente a mesma exposta pelo egípicio Ptolomeu em seu Tetrabiblos, no segundo século de nossa era”. Se a astronomia “[...] é o estudo dos movimentos dos corpos celestes, a astrologia é o estudo dos efeitos desses movimentos” (ibid: 238). Quanto a esses efeitos dos movimentos “Não havia nada de esotérico nessas suposições gerais. No início do século XVI a astrologia fazia parte da imagem que o homem culto tinha do universo e do seu funcionamento”(ibid: 238). A astrologia era “[...] uma imagem do mundo aceita por todos” (ibid: 238). As mais variadas áreas do conhecimento “[...] pressupunham uma boa quantidade de dogmas astrológicos” (ibid: 238). Portanto, entre os historiadores das ciências, o cenário intelectual que abrigou a redação dos tratados de Zacuto foi diferente daquele imposto pela historiografia. A sciencia de la astronomia de Abraham Zacuto Abraham Zacuto definiu assim astronomia: “[...] la sciencia de la astronomia adquire e estudia de que parte uiene esta mu[ta]cion en el mundo de los elementos de las 463 Os magos renascentistas acreditavam em um conhecimento que advinha de uma fonte sagrada, de uma versão gnóstica da filosofia grega presente nas reminiscências pagãs do cristianismo primitivo. Recuperando os textos remanescentes da Antiguidade e empregando suas idéias, muitos filósofos modernos viram o conhecimento como uma forma de ascensão espiritual e de intervenção nas forças do universo. Em linhas gerais, a isso Yates denominou como hermetismo. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 551 ynf[lu]encias celestes [...]” (ZACUTO, 1486 apud CARVALHO, 1947: 109). O conceito de astronomia de Zacuto enunciava outro sentido, um significado diferente do entendimento de astronomia contemporâneo, um sentido mais dilatado. O ha-Hibbur ha-Gaddol (O Grande Compêndio) foi um compêndio de astronomia escrito por Abraham Zacuto, na cidade espanhola de Salamanca, em 1478. Nela Zacuto demonstrou ter se inspirado em eruditos do medievo Com base nas obras Yesod Olam de Isaac Israeli, onde se obtinha uma fórmula para calcular as regras do calendário (LEVI, 1990: 27) e Sefer Mihamot Adonai de Levi ben Gerson, obra que contém um tratado astronômico (LEVI, 1990: 29), ambas datadas do século XIV, inseriu em seu compêndio as “Tábuas para encontrar os dias do mês cristão correspondente ao início do calendário judaico” (CHABÁS; GOLDSTEIN, 2000: 58). Depois do manuscrito ha-Hibbur ha-Gaddol, em 1486, na vila de Gata, atual província espanhola de Cáceres, Abraham Zacuto escreveu o Tratado breve en las ynfluencias del cielo. Ele escreveu para os médicos-astrólogos de Juan de Zuñiga “[...] un tratado breve en las ynfluencias del cielo para que con este mas se ayudassen los medicos de su señoria sy fueren astrologos” (ZACUTO, 1486 apud CARVALHO, 1947: 111). Na segunda parte desse Tratado breve en las ynfluencias del cielo, Zacuto escreveu: “[...] para el que touiere almanaque diremos lo que escriujeron en esto los de patauia y de bolonja y de rroma y otros grandes sabios y es mucho uniuersal para qualquier lugar [...]” (Ibid: 147148). Um dos temas centrais abordado nela foi os quatro tienpos, as quatro estações do ano: Lo primero que es de saber los quatro tienpos del año que la primauera que es desde que entra el sol en aries hasta la cabeça de cancer es caliente e humjda y en este tienpo se mueue la sangre. y e el estio [verão] que es de cancer hasta libra es caliente y seco y tiene la colora. el otoño que es de libra hasta capricornjo. es frio y seco y tiene la melancolia. y es inuerno que es de capricornjo hasta el fin de picis es frio y humjdo (ZACUTO, 1486 apud CARVALHO, 1947: 147-148) A contagem e caracterização das estações do ano se organizavam pelos signos do zodíaco. As estações eram descritas, assim, através do lugar do Sol nas figuras zodiacais. Pelo almanaque se conhecia, portanto, as estações do ano. Nas estações do ano se assinalava os prognósticos de enfermidades. Foi no saber que ganhou expressão nesse tratado que auferiu sentido a tradução do manuscrito hebraico ha-Hibbur ha-Gaddol (O Grande Compêndio) de Zacuto para o latim, o Almanach perpetuum celestium motuum astronomi zacuti, publicado na cidade portuguesa de Leiria, em 1496. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 552 Em 1486, Abraham Zacuto, de quem José Vizinho se denominou discipulum, ensinara no Tratado breve en las ynfluencias del cielo a doutrina dos cinco lugares principais para que os astrólogos investigassem o nascimento: Los cinco lugares principales del nascimjento que significan la uida y se nonbran. ylex. son estos. el grado del ascendente. y el grado del sol. y el grado de la luna. y el grado de parte fortuna. y el grado de la conjuncion o oposicion precedente [...] (ZACUTO, 1486 apud BARRADAS DE CARVALHO, 1947: 158). O segundo tópico enumerado por Zacuto na doutrina dos cinco lugares principales del nascimjento foi el grado del sol (o grau do Sol). Vizinho traduziu no Almanach Perpetuum um intervalo de tábuas astronômicas que cubria esse tema. Assim, a tradução da Tabula prima solis cuium radix e anno 1473, o Residuum tabule prime Solis, a Tabula secunda Solis, o Residuum tabule Solis secunde, a Tabula tertia solis, o Residuum tabule tertie Solis, a Tabula quarta solis e o Residuum tabule quarte Solis (ZACUTO, 1496: 17-20.v) atendiam a doutrina de Zacuto. Também publicou a Tabula declinationis planetas y solis ab eqnotiali junto com a Tabula eqtionis solis (ibid: 21) que possibilitavam determinar e recalcular a posição do Sol para períodos posteriores. Vizinho também contemplou em sua tradução as Tabula introitum solis in quolibet signorum (Tábua da entrada do Sol em qualquer dos signos) (ibid: 22-25.v). Tal como o tópico el grado del sol (o grau do Sol), a doutrina dos cinco lugares principales del nascimjento também elencou el grado del ascendente (o grau do ascendente). Articulado à essa doutrina, José Vizinho (ibid: 161.v) traduziu no Almanach Perpetuum a Tabula more infantis in utero matris (Tábua da duração da criança no útero materno), que, ajustada com a De animodar ptholomei, tábua retirada da obra Almagesto de Ptolomeu, que possibilitava fixar os signos ascendentes. O terceiro tópico indicado por Zacuto na doutrina dos cinco lugares principales del nascimjento foi el grado de la luna (o grau da Lua). Vizinho traduziu a Tabula prima lune cuyus radix e 1473, seguida de uma volumosa seqüência de tábuas cujo cabeçalho estampava o título Tabula lune (ibid: 26-56.v). E o último tópico dessa doutrina foi el grado de la conjuncion o oposicion precedente (o grau da conjunção ou da oposição precedente). Vizinho traduziu um grande volume de tábuas astronômicas que estampavam em seu cabeçalho o título Tabula coniuntionibum et oppositionum (ibid: 57-64.v). Portanto, o Almanach Perpetuum de Abraham Zacuto foi traduzido em Portugal nos quadros do mesmo ambiente intelectual que o originou. A historiadora Francis Amelia Yates (1995, p. 109-110) escreveu que: Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 553 Um dos métodos mais complicados utilizados na cabala [...] era a Gematria, baseado nos valores numéricos designados para cada letra hebraica, que envolvia um tipo extremamente intrincado de matemática, graças ao qual, sendo as palavras calculadas em números e os números, em palavras, toda a organização do mundo poderia ser lida em termos de palavras-números [...] No ha-Hibbur ha-Gaddol, com referência na obra Sefer ha-‘Olam (Livro do Mundo) de Abraham ibn ‘Ezra (1084-1164), Zacuto publicou as Tábuas das 120 conjunções na ordem dada por Rabi Abraham ibn ‘Ezra em seu Livro do Mundo (CHABÁS; GOLDSTEIN, 2000: 65). Abraham ibn ‘Ezra calculou o nome divino em números, obtendo – acreditava esse astrólogo medieval - o equivalente numérico desse nome464. A soma do valor de Yodh (que equivale numericamente a 10) com He (que equivale numericamente a 5) tem como resultado o valor de 15. Deste modo, 15 equivale a Yodh e He, letras que formam o nome divino Yah, se equiparando numericamente ao nome divino, conforme a interpretação de Abraham ibn ‘Ezra. Esse erudito formulou nesse cálculo complexo a hipótese cosmológica de que nele se assinalaria o verdadeiro cômputo das conjunções dos planetas. Somando o primeiro número (1) com os números intermediários do equivalente numérico do nome divino Yah (15), obteve o resultado de que “As conjunções [dos planetas] são 120” (IBN EZRA, 2009: 53). A Tábua para encontrar o número de ciclos, anos e dias da Era da Criação (CHABÁS; GOLDENSTEIN, 2000: 76-77) apresentada também no ha-Hibbur ha-Gaddol, obedeceu ao mesmo raciocínio. Os prognósticos conjuncionistas ganharam uma descrição clara na obra O Zodíaco da Vida, escrita por Eugênio Garin, definidos como: [...] uma ligação estreita entre alguns fenômenos celestes – recíprocas posições de planetas – e grandes mutações na história da humanidade. Crises históricas decisivas, tais como mudanças de hegemonia de povos e de civilizações, o advento ou declínio das religiões, a firmação e a derrocada de reinos e impérios: tudo isto seria medido segundo os movimentos do relógio celeste. Nos céus, nas “danças” dos astros, nos seus encontros, seriam descritas as épocas da história dos homens (GARIN, 1988: 33). Na tabela dos eclipses solares (ZACUTO, 1496: 163), por exemplo, se calculou um eclipse para junho de 1518. Além de datar esse fenômeno se estabeleceu matematicamente sua magnitude, seu início e seu término. Esse evento celeste se encontrou no Mishpetei ha ‘istagnin (Juízos do astrólogo), no qual guerras, ódio e destruição da lavoura, previsões sobre os cristãos, em especial os da Espanha, foram vinculados com esse eclipse solar: […] Year [5]278, 29 of Sivan [June 8, 1518]. the Sun will eclipsed; it indicates great changes and that peace and agreements between kings and peoples will 464“If you add the square of one, the first number, to the square of five, the true middle number, you will get the numerical equivalent of God’s name” (IBN EZRA apud SELA, 2003: 377). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 554 not be fulfilled; and sour fruits will be blighted; and it indicates hatred between peoples, brothers, and loved ones; and gout (holi ha-niqris); and locusts that will destroy the wheat in some countries; and woe for Christians, especially in Spain (ZACUTO apud CHABÁS; GOLDSTEIN, 2000: 173). Considerações finais Nota-se que a astronomia que permeou a historiografia foi anacrônica ao ambiente intelectual que abrigou a sciencia de la astronomia de Abraham Zacuto. Na historiografia, a astrologia foi excluída do repertório intelectual desse erudito. Entretanto, em um dos domínios da historiografia das ciências, as crenças científicas passadas ganharam espaço na compreensão do desenvolvimento científico. No contexto dessa historiografia, o astrônomo Zacuto da passagem ao astrólogo, e sua obra de astronomia cede espaço para cálculos que aportavam prognósticos, que se inspiravam na literatura cabalística e que serviam de aporte para a enunciação de profecias. Em suma, Nas teorias e conceitos da historiografia das ciências, essa figura intelectual encontrou a possibilidade de ser elucidada dentro dos quadros da integridade histórica que acolheu sua produção de conhecimento. Referências bibliográficas: BENSAÚDE, Joaquim. L’ Astronomie Nautique Au Portugal A L’Epoque des Grandes Découvertes. Bern Akademische Buchhandlung von Max Drechsel, 1912. BUENO, José M. Cobos, La Medicina en un escrito de astrologia del siglo XV. LULL, 2000. p. 265-294. v. 23. CANTERA BURGOS, Francisco, El Judio Salmantino Abraham Zacut, Madrid: C. Bermejo, 1931. CARVALHO, Joaquim Barradas de. Estudos sobre a cultura portuguesa do século XVI. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1947. CHABAS, J.; GOLDSTEIN, B. Astronomy in the Iberian Peninsula: Abraham Zacut and the Transition from Manuscript to Print. Transactions of the American Philosophical Society, New Ser., Vol. 90, No. 2 (2000). GARIN, Eugenio. O zodíaco da vida: a polêmica sobre a astrologia do séc. XIV ao séc. XVI. Lisboa: Estampa, 1988. IBN EZRA, Abraham ben Meir. The Book of the World: a parallel Hebrew-English critical edotion of the two versions of the text/ edited, translated and annoted by Shlomo Sela. BRILL, 2009. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 555 KUHN, Thomas. O caminho desde a Estrutura: ensaios filosóficos. São Paulo: Editora Unesp, 2006. LEVY, B. Barry. Planets, Potions, and Parchments: Scientifica Hebraica from the Dead Sea Scrolls to the Eighteenth Century. Montréal, Québec: McGill-Queen's Press, 1990. MANUEL, Marciano Martín. ABRAHAM ZACUTO, astrólogo de Don Juan de Zúñiga. Espanha: Editorial Renascimiento, 2010. (Coleción Biblioteca Judaica) ROSSI, Paolo. A Ciência e a Filosofia dos Modernos: aspectos da revolução científica.Trad. Álvaro Lorencini. São Paulo: Editora Unesp, 1992. ROSSI, Paolo. O Nascimento da Ciência Moderna na Europa. Trad. Antonio Angonese. São Paulo: Edusc, 2001. SEED, Patricia. Cerimônias de posse na conquista européia do novo mundo (1492–1640). São Paulo: Editora UNESP, 1999. (UNESP/Cambridge). SELA, Shlomo. Abraham ibn Ezra and the rise of Medieval science. BRILL, 2003. 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Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 556 Considerações sobre o Tempo Presente na História Econômica João Paulo de Oliveira Moreira Mestrando em História Social pela UFF jpffpgramsci@hotmail.com Resumo: O presente trabalho tem como objetivo tecer algumas considerações acerca da importância da História Econômica no Tempo Presente. Para tanto, será apresentado à formação da “História do Tempo Presente” enquanto um campo disciplinar surgido no pós Segunda Guerra Mundial, bem como as metodologias utilizadas neste campo especifico. Tomando como estruturador teórico a corrente marxista, trabalharemos com a hipótese defendida por Witold Kula (KULA, 1977:42) em que a partir de um método retroativo de se analisar o tempo presente e o tempo passado, podemos dar conta da questão do distanciamento e da aplicabilidade no real. Palavras-Chave: Tempo Presente, História Econômica e Marxismo. Resumen: El presente trabajo tiene como objetivo hacer algunas consideraciones acerca de la importancia de la Historia Económica en el Tiempo Presente. Con este fin,se mostrará la formación de la “Historia del Tiempo Presente” como un campo disciplinario surgido después de la Segunda Guerra Mundial, y las metodologías utilizadas en este campo especifico. Tomando como estructuración la teoría marxista,trabajaremos con la hipótesis presentada por Witold Kula (KULA, 1977:42) donde a partir de un método retroactivo para analizar el tiempo presente y el tiempo pasado,podemos hacer frente a la cuestión de la distancia y de la aplicabilidad en la realidad. Palabras-Clave: Tiempo Presente, Historia Económica y Marxismo. 1. A História da “História do Tempo Presente” como um Campo Disciplinar: Nesta seção o objetivo é apresentar a evolução da História do Tempo Presente enquanto um campo disciplinar que surgiu logo após a Segunda Guerra Mundial, momento em que a Europa se encontrava profundamente dividida acerca dos acontecimentos de sua História recente. A questão do recuo “necessário” para se responder as questões que emergiram neste momento tais como: a ascensão do Nazi-Fascismo, o Socialismo Real, a Guerra Fria, o Colaboracionismo, entre outros, foram levados a discussão nos principais países europeus. Nesse caso, foram os historiadores que tomaram para si a responsabilidade de responder tais problemas (LAGROU, 2009: www.tempopresente.org). O historiador belga Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 557 Pieter Lagrou, apontou que nesse momento foram diferentes os desafios para os diversos países: ... a Alemanha derrotada, iniciadora da guerra acabara de assumir a responsabilidade por seus crimes; triunfante, mas exausta, a França humilhada, mas aspirante em atuar em primeiro plano. Com isso, as considerações de 1945 foram significativamente diferentes das feitas em 1918, quando historiadores haviam desempenhado um papel fundamental na interpretação da Grande Guerra, com resultados como a criação da Biblioteca Internacional de Documentação Contemporânea pelo universitário Pierre Renouvin - ou pior como evidenciado pelos testemunhos historiográficos nacionalistas ativistas sobre as responsabilidades pelo conflito ou "livros brancos" e "livros pretos" sobre as atrocidades cometidas. Além disso, apesar de uma convergência sem precedentes das sociedades européias após 1945, cada país escolheu um caminho diferente de reconstrução nacional, com uma geometria política bastante variável. A Itália pós-fascista; bipartidarismo na Áustria e a política triunfante de consenso que na Holanda são exemplos da diversidade européia. É neste contexto que devem ser situadas as historiografias nacionais, suas articulações institucionais, políticas e intelectuais. (LAGROU, 2009: www.tempopresente.org). Nesse contexto de resolução das demandas internas de cada país, o historiador aponta que a grande diferença da historiografia do pós Segunda Guerra Mundial, para a do pós Primeira Guerra Mundial são os caminhos seguidos pelos países nas suas respectivas reconstruções, o que nos leva a adotar aqui como parâmetro o pós-45 enquanto marco da História do Tempo Presente, como um campo disciplinar, com suas raízes na europa, diferente da posição de Hobsbawm, que aponta para o fim da Guerra da Argélia como momento de surgimento deste campo (HOBSBAWM, 1992:95). Exatamente por essas demandas de cunho político-econômico, este campo foi devidamente desenvolvido por instituições ligadas ao Estado em seu sentido restrito, em uma concepção gramsciana (GRAMSCI, 2006: 244), somente se integrando as Universidades nos anos 1970. Para Lagrou, a demora em se integrar a História do Tempo Presente a academia, foi devido à hegemonia de toda uma geração de historiadores que evitaram esse campo e desprezaram a História Política e Econômica, o belga se refere a “Nova História” ou Terceira Geração dos Annales. A obra de Henri Michel e Boris Mirkine-Guetzévitch, “Idées Politiques et Sociales de la Résistance” , publicado pelas Imprensas universitárias da França em 1954 e prefaciado por Georges Bidault, foi uma das primeiras publicações sobre a resistência francesa, aspirante aos moldes de uma obra científica inserida no Tempo Presente. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 558 O que gerou críticas de Lucien Fevre465, ao considerar que os autores não escreveram sobre o tema a partir de uma perspectiva da longa duração, “limitando-se a um compartimento demasiado estrito e limitado do tempo”. Para Pieter Lagrou, a história do tempo presente na perspectiva de Fevre, se faz mais do reconhecimento de uma dívida moral para com os mártires e os testemunhos da resistência (Entenda-se Marc Bloch), do que com a própria historiografia científica, o belga explicita essa posição no seguinte trecho: (...) A história de longa duração não aparecia então como um comportamento de fuga intelectual? A tentação pode ser forte em declinar esta pergunta retórica em acusações ad hominem. Não seria ela a resposta de uma trajetória pessoal que os teriam inclinado a preferir a longa duração um Lucien Febvre ou ainda um Fernand Braudel - sem dúvida, mas desprezando a linhagem intelectual em detrimento da história contemporânea - e que foi cortada dos acontecimentos, perturbando a sua própria época durante os seus cinco anos em um campo de prisioneiros de guerra na Alemanha? (...) Dentro deste modelo de instituições é bastante fácil ocorrer o discreto a uma corrente intelectual que dominou a pesquisa francesa em ciências sociais por mais de 30 anos. Era bastante cômodo para esta geração de historiadores de evitar a história recente e de desprezar a história política. Portanto, eles testemunharam um outro tipo de engajamento que nós poderíamos qualificar de progressista, ou para alguns, de socialista, compartilhado, por exemplo, com a New History britânica, em torno de historiadores como Eric Hobsbawm e Edward Thompson, ainda que estes não tenham nunca desprezado o contemporâneo e o político. Se tratava da convicção de que, em se analisando as estruturas profundas da sociedade em sua perspectiva de longa duração, mais precisamente as estruturas de desigualdade e de dominação, das quais os historiadores tinham um papel crítico, muitas vezes um papel de propor soluções para remediar as injustiças inerentes à essas estruturas, um papel de emancipação, para somente então haver uma compreensão de todo este processo. (LAGROU, 2009: www.tempopresente.org). Tal posição de fuga intelectual e política dos Annales é apresentada pelo historiador catalão Josep Fontana, em uma crítica incisiva do “grupo dos annales” em seu livro “História: análise do passado e projeto social”, em que defende que este grupo desviou a atenção para o método,renegando assim o pensamento teórico propriamente dito (FONTANA, 1998:204),tendo seu apogeu em 1941 quando: Data de 1941 precisamente a viragem “teórica” de Febvre, quando minimiza o alcance do titulo que se deu à revista em 1929, dizendo que o “econômica” era um “resíduo” das discussões suscitadas pelo materialismo histórico- o que aproveita para desfazer qualquer suspeita de “economicismo subversivo”-tem 465 Michel, Henri et Mirkine-Guetzévitch, Boris. Les idées politiques et sociales de la résistance, avant-propos de L. Febvre, Paris, Presses universitaires de France, 1954, p. VII. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 559 inclusive a capacidade de dizer que o “social” não significava nada e que “o recolhemos por isso mesmo”. Poderia pensar-se que essas afirmações, com o que têm de distanciamento com relação ao marxismo, eram fruto obrigatório da necessidade de acomodar-se à situação vigente numa França dividida entre o governo de Pétain e os ocupantes alemães. Porém o realmente significativo é que esse texto de revisão e acomodamento foi recolhido por Febvre,em 1953,nos seus Combats pour l´histoire(...). (FONTANA,1998:205) Portanto, logo no pós Segunda Guerra Mundial, as vanguardas intelectuais nas universidades desprezavam a História do Tempo Presente, deixando a historia de eventos e fatos, bem como as batalhas recentes da história aos historiadores da segunda zona. Segundo Almeida (ALMEIDA, 2010:35), uma parte considerável dos historiadores desse período, alegavam a impossibilidade de se aplicar regras cientificas a História do Tempo Presente, assim, a disciplina no plano teórico deveria ser identificada com o passado, excluindo o período mais recente. No plano metodológico, colocavam-se em questão as fontes contemporâneas, cuja dificuldade se encontrava nos limites legais de sua consulta, além disso, haveria o problema do distanciamento temporal, na medida em que para os seus críticos a proximidade cronológica entre o historiador e seu objeto seria responsável por rechear a produção histórica das demandas sociais as quais o historiador estava submetido, o que acarretaria em um caráter subjetivo à obra (NORA, 1992:47-49). Fontana, também aponta que a História eminentemente Política e Econômica é altamente combatida nesse momento, sem vislumbrar assim um projeto de sociedade e de transformação e, sem integrar as explicações em um nível global (FONTANA, 1998:206208). Nesse caso, de modo esquemático, pode-se apontar que a historiografia contemporânea emergente em diferentes países da Europa ocidental, entre os anos de 1950-1970, foi produzida nos institutos dos Estados, criados pelos diferentes governos, que tinham o objetivo de conservar as fontes do período de guerra, como mostrado no quadro abaixo: Quadro I PAÍS ANO INSTITUTO/COMISSÃO Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 560 HOLANDA 1945 Instituto de Estado para a Documentação da Guerra (Rijksinstituut voor Oorlogsdocumentatie) FRANÇA 1946 Comissão Para a História da Ocupação e da Libertação Comitê Francês Para a Segunda Guerra Mundial 1950 Instituto de Estudos do Tempo Presente, unidade própria do CNRS (Centro National de Pesquisas Científicas). 1980 ALEMANHA 1950 ITÁLIA 1949 Instituto nacional para a História do Movimento de Libertação (Istituto Nazionale per la Storia del Movimento di Liberazione) 1963 Arquivo de Documentação da Resistência Austríaca (Documentationsarchiv des Österreichischen Widerstandes) 1970 Centro de pesquisas e estudos históricos da Segunda Guerra Mundial ÁUSTRIA BÉLGICA Instituto de História do Tempo Presente (Institut für Zeitgeschichte) Fontes: http://www.niod.nl; http://www.ihtp.cnrs.fr; http://www.ifz-muenchen; http://www.insmli.it; http://www.doew.at; http://www.cegesoma.be/ Todos os institutos supracitados não possuíam vínculos com as universidades, além disso, vale citar que a pouca atenção dada ao genocídio da população judaica até meados dos anos 60, fez com que fosse transferida a responsabilidade de pesquisa sobre o Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 561 holocausto para o Centro de Documentação Judaica Contemporânea na França, sob feito de que as resistências era um assunto que interessava a todas às nações, enquanto à perseguição aos judeus interessava, sobretudo, à comunidade judia, deixando assim claro que essa historiografia oficial estava a serviço dos respectivos Estados que buscavam a legitimação das suas políticas. 1.1- Contraponto a “História Oficial dos Estados”: Tal historiografia sofreu oposição de importantes historiadores, que vinculados às universidades buscaram apontar para caminhos que não fossem aqueles propostos pelos institutos financiadores de pesquisa, que tinham claramente um intuito de legitimar uma determinada História Oficial. Segundo a historiadora Monica Piccolo Almeida, a (re) valorização da História Econômica e Política, com temáticas cronológicas próximas entre o historiador e o seu objeto, foi beneficiada pelos seguintes motivos: a) redefinição do papel do Estado; b) a pluridisciplinaridade; c) o interesse por parte de alguns historiadores na pluralidade de ritmos temporais466, fundamentalmente nos anos de 1960-1970. Esse processo, segundo Almeida, acarretou na transformação do entendimento do que era o Tempo Presente, e de como o mesmo poderia ser usado nas análises econômicas e políticas. Tais motivos auxiliaram na inserção de temas mais recentes no campo de análise da História, por parte de importantes historiadores como José Gotovitch e Jules GérardLibois467 e Albert de Jonghe468 na Bélgica. Na França, o núcleo central dos estudos do Tempo Presente, desvinculados com a “História Oficial dos Estados”, se deu com a Fundação Nacional de Ciências Políticas e com a Universidade de Paris X-Nanterre, tendo historiadores de destaque como: René Rémond469, Serge Berstein470, Pierre Rosanvalon471, Jean Pierre Rioux472, Phillippe Levillan473, Michel Winock474 e Antoine Prost475. 466 ALMEIDA, Monica Piccolo. “Por uma História do Tempo Presente”, In: Reformas Neoliberais no Brasil: a privatização nos governos Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, Tese de doutoramento defendida em 2010 pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal Fluminense. 467 Jules Gérard-Libois e José Gotovitch, L’an 40. La Belgique occupée, Bruxelles, CRISP, 1971 468 Albert de Jonghe, Hitler en het politieke lot van België, 1940-1944, Antwerpen, De nederlandsche Boekhandel, 1982. 469 RÉMOND,Réne. Pour une Histoire Politique.Paris,Editions du Seuil,1988. Por que a História Politica?,Estudos Históricos, Rio de Janeiro, CPDOC-FGV, V.7, Nº13, 1994 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 562 Ainda na França, a revista Vingtième Siècle, assinalava que o estudo do século XX constituia um campo a parte dos estudos da história contemporânea e que esta deveria ser definida como “história do tempo presente476, Tais pesquisadores, bem como a revista Vingtième Siècle, foram de fundamental importância para este campo da História, pois impulsionaram sua inserção nos currículos universitários, nas revistas especializadas e orientaram inúmeras pesquisas e teses de doutoramento. 2. Algumas Considerações teórico-metodológicas: Atualmente as concepções hegemônicas nos estudos do Tempo Presente abordam as temáticas por um viés pós-moderno, em que a sociedade é fluida ou “liquida” 477 , sendo a mesma, uma escrita de um tempo à deriva ou o conhecimento sobre nosso tempo será sempre incompleto, fragmentário e reducionista (MARANHÃO FILHO, 2010: www.tempopresente.org; MAYNARD, 2010: www.tempopresente.org;CHAVES e OGASSAWARA, 2010: www.tempopresente.org). No presente trabalho, a percepção é a de que para darmos conta das transformações do Tempo Presente, devemos perceber os movimentos de continuidade e rupturas nas sociedades, bem como a quem interessa esses movimentos, ou seja, os agentes envolvidos. Para tanto lançaremos mão da proposta teórico-metodológica do marxista polonês Witold Kula, em que Além de o passado ter dado origem a tudo o que existe e ocorre no presente, este constitui uma de nossas melhores fontes para o estudo daquele e,em conseqüência não apenas temos de interrogar o passado para explicar os acontecimentos atuais,como também precisamos investigar o presente para poder inferir o que aconteceu no passado. Em outras palavras, devemos sempre valer-nos de um procedimento alternado, em que nosso principal objeto de estudo não é aquele representado pelo passado ou pelo presente em (ou por) si mesmos, mas pelos mecanismos de mudança que levam de um para outro e de ambos para o futuro (KULA, 1977:42) 470 BERSTEIN, Serge. L´Histoire ET LaCulture Politique, Revue d´Histoire,Paris,Presses de La Fondation Nationale de Sciences Politiques,nº35,juillet-sept,1992. 471 ROSANVALON,Pierre. Democracy Past and Future, Columbia University Press, ed. Samuel Moyn, 2006 472 RIOUX,Jean-Pierre. La Guerre d’Algérie et les Français, Fayard, 1990. 473 LEVILLAN,Phillippe.Nations et Saint-Siège au XXe siècle, Fayard, 2003. 474 WINOCK,Michael. 1958. La naissance de la Ve République, Gallimard, Découvertes,, 2008. 475 PROST,Antoine.La Résistance, une histoire sociale, Paris, Éd. de l'Atelier, 1997. 476 Vingtième Siècle, Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques, janvier 1984. 477 BAUMAN, Zygmunt, Modernidade Liquida, Editora Zahar, 2001. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 563 Kula, sendo um especialista em metodologia da História Econômica, pensa esse método retroativo de se analisar o Tempo Presente, com vistas à aplicabilidade no real e, assim consegue dar conta de uma problemática muito cara aos pesquisadores que se preocupam com períodos mais recentes, o da co-existência entre “objeto de pesquisa e o pesquisador (HUFF, APUD: MARANHÃO FILHO, www.tempopresente.org). Além do método retroativo, faz-se preponderante para a garantia de um padrão de plausibilidade cientifico as pesquisas: a experimentação das hipóteses de trabalho pelo historiador, o rigor de seus questionamentos e a ambição cientifica responsável pela construção do objeto de estudo (MARANHÃO FILHO, www.tempopresente.org). Com relação às fontes, a autora Sabrina Evangelista Medeiros (MEDEIROS, www.tempopresente.org), nos propõe a utilização da internet como recurso arquivistico do Tempo Presente, levando em conta que as fontes virtuais representam uma nova materialidade das fontes. Haja vista, que como a informação e o seu fluxo, engendram relações de poder, a internet refaz as concepções da política e da economia atualmente, portanto, acompanha as frações de classes que detêm o poder econômico e político, pois as mesmas estão inseridas nas relações sociais como um todo. Nesse caso, o trabalho histórico do Tempo Presente, deve-se imbuir com um método rigoroso na busca pela inserção nas demandas da atualidade e da elaboração das propostas de soluções para as principais problemáticas. Inclusive autores não marxistas, como François Bedarida478, irão propor um compromisso com três prerrogativas fundamentais para este campo: a) a verdade; b) a ética e c) a totalidade. 3. História Econômica situada no Tempo Presente: possibilidades de interpretar os novos arranjos sociais e políticos no mundo: Ao pensar as possibilidades da História do Tempo Presente como uma importante ferramenta no auxilio da compreensão da atualidade, Eric Hobsbawm, aponta que a disciplina é indispensável, pois nos situa no continuum de nossa própria existência e mais 478BÈDARIDA, François. Tempo Presente e Presença da História, p. 223, In: Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro. Fundação Getúlio Vargas. 1996. BÈDARIDA, François. Histoire, critique et responsabilité. Paris. Editions Complexes/IHTP-CNRS. 2003. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 564 do que isso, pode nos fornecer um modelo para entendermos as transformações da atualidade (HOBSBAWM, 1998:36-39). Tendo como pressuposto a História como uma disciplina que pode auxiliar na descoberta dos padrões e nos mecanismos de mudanças em geral, a prática do Tempo Presente deve se estruturar na combinação entre experiência (individual e coletiva) e perspectiva sócio-histórica, ou seja, uma alteridade do passado que nos afaste do anacronismo. Pensar a economia na atualidade por uma perspectiva histórica é, tentar retomar um determinado campo que se tornou marginal entre os anos de 1970-1980, com uma razoável “re-valorização” nos anos 1990479·. As inúmeras críticas ao “marxismo economicista” e aos novos métodos cliométricos, relegaram a História Econômica a um campo marginalizado. Contudo, aqui a economia é entendida como imbricada na transformação e na continuidade da História, portanto, torna-se objeto de análise do Tempo Presente. E é justamente criticando o marxismo economicista que autores também marxistas, como Witold Kula, Michio Morishima e Josep Fontana irão pautar suas análises. Hobsbawm, irá se deter mais no aspecto da crítica a cliometria e da função da História Econômica na atualidade. 3.1 A Crítica a Cliometria e a Função da História Econômica na Atualidade: Para Hobsbawm, a História Econômica, deve ter uma inserção nos problemas da atualidade, propondo políticas e soluções dos problemas, levando em consideração os aspectos extra-econômicos e sendo a disciplina preocupada com os fatos que sejam verificáveis, ou seja, trabalhados nas economias reais, pois como o próprio afirmou “alguns economistas recorrem à História, na esperança de que o passado forneça respostas que o presente por si só parece relutante em produzir” (HOBSBAWM, 1998:110) Para o historiador, com a 1ª Guerra Mundial a preocupação dos estudos com as economias reais, dos seus respectivos tempos, tomam uma outra dimensão,pois a teoria econômica facilitava a escolha entre as decisões,além de desenvolver técnicas para implementá-las e monitorá-las Paradoxalmente, os limites de uma abordagem historicista ou institucionalista que rejeitava a teoria pura ficou evidente justamente no momento em que até 479Ver:FLORENTINO,Manolo e FRAGOSO,João. História Econômica,In: Domínios da História,(Orgs.) Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 565 mesmo a economia capitalista,cada vez mais dependente ou dominada pelos setores públicos,teve que ser deliberadamente administrada ou planejada. Isso exigia ferramentas intelectuais que historicistas e institucionalistas não forneciam, conquanto se inclinassem ao intervencionismo econômico.Durante a era das guerras mundiais,assistimos ao surgimento de uma economia de base teórica para o planejamento e a administração.(...) Ao mesmo tempo,tornavamse disponíveis instrumentos importantes de operacionalização,alguns deles derivados da economia política clássica pré-marginalista ou da macroeconomia,via marxismo,como a análise insumo-produto,que aparece pela primeira vez no estudo preparatório de Leontiev para o plano soviético de 1925.Outros derivavam da matemática aplicada à pesquisa de operações militares,como a programação linear.Embora o impacto da teoria econômica neoclássica no planejamento socialista também se retardasse,por razões históricas e ideológicas,na prática,a sua aplicabilidade às economias não capitalistas também foi reconhecida a partir da Segunda Guerra Mundial (HOBSBAWM,1998:114-115) Portanto, a noção prática ou praxiológica como propõe Hobsbawm, no sentido de ser a História Econômica uma ciência que nos auxilia na programação e nas formas de atuação (HOBSBAWM, 1998:118) da Economia aplicada ao Tempo Presente, se desenvolve de maneira proficua no entre guerras com as demandas de planejamento, reconstrução e crescimento, ou seja, tendo em vista a realidade em que se viviam os individuos. Nesse caso, as economias imaginárias da Cliometria480 não podem fornecer os subsídios necessários para uma análise substancial da sociedade, já que não tem a devida preocupação com a “dessemelhança”, logo, com as formas de desenvolvimento econômico ...na medida em que projeta sobre o passado uma teoria essencialmente a histórica, sua relevância para os problemas maiores do desenvolvimento histórico é vaga ou marginal. Os historiadores econômicos, mesmo os cliometristas, reclamam da “incapacidade dos economistas de construírem modelos que expliquem grandes eventos como a Revolução Industrial (HOBSBAWM, 1998:128). Os historiadores que se preocuparem com as economias reais do tempo presente, devem buscar as explicações da situação em fatos verificáveis e ainda analisá-los cuidadosamente segundo os métodos já citados anteriormente. 3.2 Por Uma Outra História Econômica: 480 A Cliometria,cujo maior expoente foi Robert Fogel,buscava testar proposições da teoria econômica, a partir de dados que eram irreais. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 566 A História Econômica aqui defendida se coaduna com as proposições não só de Hobsbawm, como também as de Josep Fontana, Witold Kula e Michio Morishima. Todos marxistas e estudiosos do crescimento da economia481. A preocupação com esta problemática,assim como o Tempo Presente enquanto disciplina também surge no pós-guerra,tentando atender as necessidades emergentes. Portanto, os marxistas aqui citados, se deparavam com um modelo de História extremamente atrelado aos manuais soviéticos que propunham uma interpretação canhestra do marxismo para aplicá-lo a realidade da economia planificada da Rússia pósrevolucionária. O historiador basco Josep Fontana, em seu livro “La Historia Despues Del Fin De La Historia”, faz uma forte defesa da criticidade na História, bem como utiliza uma série de argumentos contrários ao Pós-Modernismo. Algumas das críticas deste movimento ao marxismo, segundo o próprio Fontana, eram válidas como os esquematismos das superestruturas e das infra-estruturas. Contudo, tais criticas não se renovaram, haja vista que concomitantemente ao marxismo vulgar,ocorreram produções dinâmicas e vigorosas teórico-metodologicamente, o que segundo o historiador basco acabou levando os pósmodernos a um erro Há um momento em que você precisa fazer com que a crítica historiográfica pare de demolir e passe a construir algo que seja uma nova produção, que reconstrua uma história social. Isto continua sendo necessário. Porque o que se faz deve ter utilidade para entender o mundo em que vivemos, ou não serve para nada; ou as pessoas devem optar por se dedicar a atividades socialmente mais úteis (FONTANA, 1992:47) Ainda segundo Fontana, falar do passado de uma sociedade significa posicionar-se quanto a seu tempo presente, com todos os problemas já explicitados no presente trabalho. Ou seja, significa definir-se quanto às disputas e projetos sociais em conflito na sociedade onde vive o historiador, desnudando suas desigualdades. Por isso ao privilegiar o presente na sua concepção de História, e ao se pensar a História Econômica, o autor trabalha a partir de uma relação coletiva, que tem clara função social, propondo o método alternado que Kula já havia explicitado, em que se parte do 481 A questão do “crescimento econômico, não é exclusiva dos marxistas, liberais como Schumpeter disseram o seguinte: “O desenvolvimento econômico constitui simplesmente o objeto da História Econômica, que, por sua vez, não é mais que uma parte da história geral, separada do resto por meros propósitos de exposição.Devido a essa fundamental dependência do aspecto econômico das coisas em relação a tudo o mais,não é possível explicar a mudança econômica limitando-se às condições econômicas prévias.Porque o estado econômico de um povo não surge simplesmente das condições econômicas anteriores,mas sim da situação global anterior.” (SCHUMPETER,J.A,The Theory of Economic development,Oxford University Press-Galaxy,Nova York,1941,p58-59) Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 567 estado atual das cosias para rastrear no passado, suas origens até as realidades atuais, portanto a História (passado), a Economia Política (presente) e o Projeto Social (futuro) se fundem numa temporalidade única para o historiador basco. O marxista japonês Michio Morishima, faz uso da proposta de utilização social da teoria e da metodologia da História Econômica, ao enfocar prioritariamente nos seus estudos do Tempo Presente sete tópicos: 1) teoria do valor-trabalho, (2) a teoria da exploração, (3) o problema da transformação, (4) reprodução do capital, (5) a lei da população excedente relativa, (6) a queda da taxa de lucro, e (7) o volume de negócios de capital482. Nesse caso, Morishima buscou à luz do marxismo explicar as questões da exploração e da geração do lucro positivo em seu tempo,utilizando-se de um refinadissimo método matemático das desigualdades lineares. O japonês conseguiu através de seus estudos apontar os principais problemas de desenvolvimento econômico do período em que vivia, fazendo duras críticas a vulgata marxista soviética. Conclusão: O presente trabalho teve a pretensão de apresentar o surgimento da História do Tempo Presente enquanto um campo disciplinar, surgido no pós 2ª Guerra Mundial, onde inicialmente esteve atrelado a políticas de legitimação de governos. A partir da inserção curricular deste campo nas universidades, os estudos do Tempo Presente deram um salto qualitativo importante para seu desenvolvimento. Tomando como estruturador a teoria marxista, tentou-se aqui apontar a importância da análise da História Econômica, vista a partir da sua noção de totalidade, ou seja, levando em consideração aspectos extra-econômicos com os aspectos econômicos “stricto sensu”, para a abordagem da mesma no Tempo Presente, com vistas assim a aplicabilidade real. Para tanto, defendeu-se aqui a utilização de fontes ampliadas como a internet para os estudos atuais, bem como de um método retroativo tal qual propunha o marxista polonês Witold Kula. Referências Bibliográficas: 482 MORISHIMA,Michio.Introduction to Marx`s Economics,p.8. Cambridge University Press,1973 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 568 ALMEIDA, Monica Picollo. Reformas Neoliberais no Brasil: a privatização nos governos Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso. Tese de doutoramento defendida em 2010 pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal Fluminense. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2001. BÈDARIDA, François. Tempo Presente e Presença da História. In: Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro. Fundação Getúlio Vargas. 1996. ______. Histoire, critique et responsabilité. Paris. Editions Complexes/IHTP-CNRS, 2003. BERSTEIN, Serge. L´Histoire et La Culture Politique. Revue d´Histoire. Paris: Presses de La Fondation Nationale de Sciences Politiques, nº35, juillet-sept, 1992. 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Aproaching the English Historical Review as center of professionalization of history at England in the late of nineteenth century. Take care of a taste of a analysis proposal of source in study and of theory around of historical thinking. Key- words: british historiography; intellectual history; theory. É necessária cautela quanto a temática sobre narrativa que reivindico aqui. Os historiadores ingleses, considerados “profissionais” pela historiografia contemporânea, se opuseram a uma história narrativa como era praticada até meados do século XIX, que entre os ingleses é caracterizado como história amadora. Minha idéia de narrativa aqui diz respeito ao resultado desse processo de profissionalização e metodização, que são os textos das revistas especializadas, notadamente de um caráter “nacional e narrativo dos eventos” considerados históricos. Que não se confunda com a noção generalizadora arquitetada pela historiografia dos Annales, por exemplo. Portanto, não ignoro um dos reais problemas da narrativa na historiografia do século XIX, como considera Jörn Rüsen, a racionalidade da pesquisa histórica que progrediu ao longo do tempo, pelo menos com respeito aos métodos de investigação, era considerada incompatível com o princípio da narratividade (RÜSEN, 2010, p. 153). Sirvo do termo narrativa para me referir a exposição dos fatos. Não uma referência ao debate narrativista do século XX. Tentando enxergar além do que é comum, e até mito, sobre a questão histórica do século XIX. O objetivo do nosso trabalho é dar notícia da nossa pesquisa sobre historiografia inglesa no seu momento de constituição científica e profissional, tendo como principal fonte a English Historical Review (EHR). A idéia de buscar uma teoria assinalada no título esta relacionada com nossa pergunta sobre como se desenvolveu a reflexão teórica da história Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 571 na Revista. Tendo em vista o ambiente historicista europeu naquele momento queremos com isso perceber a leitura dos ingleses. A referência a narrativa faz menção ao âmbito laboratorial, de trabalhos mais voltados para a pesquisa que para reflexão teórica e abstrata, característica marcante da Revista. Não querendo indicar uma separação entre esses campos, que não existe, nem uma classificação dessa historiografia como essencialmente política e tradicional. Explicarei isso melhor mais a frente. É como se pensássemos com o Professor José Carlos Reis em “História e Teoria”: termos que embora pareçam assimétricos, são associados, remetem-se um ao outro, ligados implícita e profundamente (REIS, 2003, p. 7). Normalmente os estudos sobre o século XIX no que diz respeito a história da historiografia consideram a sua produção histórica positivista, tradicionalista, ficando presos a estudos de introdução, comentários e glosas483, sendo alguns com interesse político marcante, e enfim, sem um estudo das fontes, refém da leitura de filtros. Nosso estudo visa o estudo das fontes, interpretando alguns textos ainda desconhecidos ou não traduzidos que podem contribuir, por exemplo, para os estudos da história como ciência. O próprio recorte temporal mencionado aqui (1886-1902) diz respeito a um historiador pouco estudado pela história da historiografia e de participação fundamental na historiografia inglesa, e também da Revista: Lord Acton. Com este recorte me refiro ao primeiro texto do periódico que é de sua autoria e o ano de sua morte (1902), também o ano da primeira edição da Cambridge Modern History, “concebido e planejado” pelo próprio Lord Acton. Até onde e como podemos relacionar a English Historical Review com a Cambridge Modern History é uma de nossas tarefas. Tendo em vista leituras e pistas sobre o tema como a de Rosemary Jann podemos perceber uma interessante questão quanto a concepção de história. Entendendo a história profissional científica se opondo aos erros da tradição amadora, da história “literária”, encontramos em Lord Acton e “sua coletânea” uma realização de sua filosofia da história. A Cambridge Modern History representou nem tanto um avanço acadêmico como uma codificação das suposições do século XIX sobre o que constituía história universal (JANN, 1985, p. 230). A English Historical Review tem seu primeiro número publicado em janeiro de 1886. O objetivo era criar um local de encontro para os trabalhos já desenvolvidos no país e para os 483 Como explica o professor Jurandir Malerba: “As grandes glosas são e serão sempre importantes para nossa formação intelectual. Porém, elas não bastam. Há que se ler os originais.”(MALERBA, 2010, p. 10). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 572 pesquisadores que se equiparavam aos de outros países europeus. Como é afirmado em sua Prefatory Note: Although the number of persons engaged in this study is large and constantly increasing ; although the work done is as thorough in quality as that even of the Germans, and probably larger in quantity than that of the French or Italians ; although historical schools of much promise have lately been developed at our universities, English historians have not yet, like those of other countries, associated themselves in the establishment of any academy or other organisation, nor founded any journal to promote their common object (Prefatory Note, 1886, p. 1). Para um estudo que privilegie a história da ciência histórica, esse prefácio e alguns textos, entre artigos, notas e resenhas oferecem pistas da concepção histórica do periódico e de seus autores. Ainda em seu prefácio são indicados alguns princípios da história de seus promotores e o seu uso. O autor do texto, James Bryce, elabora três questões: uma relacionada a concepção de história de seus autores; outra sobre a “suspeita de partidarismo” relacionadas a questões políticas, eclesiásticas; e sobre qual seria o públicoalvo da revista. Em relação a concepção de história existiriam duas concepções naquele momento sobre o seu âmbito, uma que trata da “história como passado político” e a outra que a entende como “um quadro de todo passado”, “tudo que o homem tem pensado ou feito”. Considerando essas duas noções frágeis, o autor prefere “considerar a história como o registro da ação humana, e do pensamento apenas em sua influência direta sobre a ação”. Assim o “carro chefe” da Revista será o Estado e a política. A história política se revelaria mais importante que a história dos cidadãos comuns. Exceto quando a história encontra “homens que influenciaram outros de seu tempo, como Sócrates, São Paulo, Erasmo ou Charles Darwin”. Porém a Revista não se limitaria a história política, ela quer “receber de cada área específica a luz que eles podem lançar sobre a vida do homem no passado” 484. Quanto ao perigo de partidarismo, o autor afirma que os artigos que indicarem esse problema serão recusados. A principal preferência, ou dependência, dos promotores da revista, é com um “espírito científico”, que esperam que seus “contribuidores tragam” 485 . E quanto ao público-alvo, sendo ou os estudantes profissionais de história ou o leitor geral, a Revista se destinaria a ambos, embora seja o grupo dos profissionais o interesse principal. O que se percebe pelos debates que se desenvolvem desde os primeiros números. Além dos textos carregados de notas e marcações de arquivos, sendo esses, por exemplo, o Public Record Office. O leitor vitoriano, acostumado com a história literária, bem escrita, como a de 484 485 Prefatory Note, EHR (1886), p. 3. Prefatory Note, EHR (1886), p. 4. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 573 Macaulay ou Carlyle, estranhou a nova prática, demonstra alguns estudos nesse âmbito como o de Rosemary Jann. Podemos inferir que não estavam alheios ao debate da história científica, pela comparação com o trabalho de alemães e franceses, por exemplo. Aliás a discussão sobre a profissionalização e cientifização da história é anterior ao final do XIX, desde as décadas de 1850 e 1860 entre os ingleses. Nessa questão costuma-se considerar a nomeação de William Stubbs como professor de História Moderna em Oxford em 1866 e a nomeação de John R. Seeley em Cambridge em 1869 como marcos do estabelecimento da história como disciplina acadêmica na Inglaterra486. A English Historical Review é publicada em 1886 pela editora Longmans, tendo como primeiro editor o Professor de História Eclesiástica de Cambridge, Mandell Creighton, também Bispo de Londres. Segundo alguns autores, como Doris Goldstein, vinte anos de discussões e tentativas frustradas de criar um jornal histórico teriam precedido esse primeiro número. Como na tentativa de James Bryce e A. W. Ward entre 1867 e 1870 com a editora Macmillan, tendo como provável editor o historiador Richard Green.487 Entre seus principais fundadores estão além de James Bryce, Adolphus W. Ward e Mandell Creighton, Frederic York Powell, Reginald L. Poole e Lord Acton. Esse último era admirado e inspirava os primeiros editores, além de considerarem que um artigo seu no primeiro número chamaria de vez atenção para a Revista. A Revista possui publicação quadrimestral. Ela se compõe de uma sessão de Artigos, uma sessão de Notas e documentos e a sessão de Resenhas de Livros. Sendo talvez esses, as resenhas, os principais textos a serem explorados, pelo recorte aqui proposto em investigar a reflexão teórica da Revista e as leituras realizadas a tal respeito que foram expostas em suas páginas. Além disso, ela traz em seus números informativos a respeito de Livros Históricos recentemente publicados, Notas Diversas (Miscellaneous Notes, no volume I), com notícias de congressos, associações, encontros de história. A partir de 1887 tem-se acesso através da Revista, aos Conteúdos das Publicações de Periódico, como por exemplo, da Revue Historique, ou a Historische Zeitschrift de Sybel, ou a Quartely Review, que é também inglesa. Sendo alguns conteúdos brevemente comentados. 486 Informação tirada do texto de Eckardt Fuchs, “English Positivism and German Historicism”, no livro Bristish and German Historiography: 1750 – 1950. 487GOLDSTEIN, Doris S. “The origins and early of the English Historical Review”. In: English Historical Review, vol. 101. London: Longmans, Green and Co. 1986. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 574 O que chama atenção numa primeira análise é uma história factual, com diversos temas, tendo predomínio da história política inglesa. Os episódios relacionados com a Revolução Inglesa, o Parlamento, a formação da região dos bretões488, etc. Tendo predomínio da história da Grã-Bretanha e da Europa. A Revista possui claro, um viés nacional. Como afirmou o Professor Julio Bentivoglio, as revistas de história do século XIX eram todas nacionalistas (BENTIVOGLIO, 2011, p. 85). Entendendo a Revista como resultado da especialização da história, será criado um “consenso sobre o padrão de pesquisa”, como afirma John Burrow. Os resultados das pesquisas eram inicialmente publicados nos jornais acadêmicos especializados. Segundo Burrow, no final do século XIX e início do século XX história significava, sobretudo história política, incluindo em história moderna um foco sobre as relações dos estados no sistema inter-estados europeu, e ainda história das origens constitucional e legal, com um crescente prestígio da história econômica (BURROW, 2008, p. 428). O que podemos constatar na Revista. Para facilitar nosso estudo realizamos uma catalogação dos arquivos489, tendo estabelecido uma classificação quadripartite e por temas dos artigos e notas. Demonstro a classificação quadripartite dos artigos onde podemos identificar o perfil da produção historiográfica nessa sessão (cerca de 240 publicações) através da tabela: Classificação Quadripartite TEHR: 1886 - 1902 Série1; história moderna; 102 Série1; história contemporâne a; 59 Série1; história antiga; 36 Série1; história medieval; 47 488Alguns exemplos: The house of Bourbon, de J. R. Seeley, vol. I; The life of Justinian by Theophilus, de James Bryce, vol. II; The political theory of Huguenots, de E. Armstrong, vol. IV; The comparative history of France and England during the Middle Ages, de Charles V. Langlois, vol. V, entre outros. 489 Nosso estudo ainda possui duas lacunas, que são os arquivos dos anos de 1893, volume 8 e do ano de 1900, volume 15. Já temos alguns textos desses volumes, mas falta ainda uma boa parte que em breve resolveremos esse problema. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 575 Na sessão de Notas e documentos, ainda sobre as narrativas da EHR, encontramos um debate que se estabelece nos números de 1886 e 1887, intitulado The Squire Papers. Esses papéis seriam as correspondências que Thomas Carlyle recebeu de William Squire como legitimas de Oliver Cromwell, aaté então desconhecidas. Os historiadores britânicos Aldis Wright, Samuel R. Gardiner e Walter Rye consideram forjadas, não autênticas. Acusam Squire de propagador de um boato, de um trote - hoax. Outro exemplo dessa discussão narrativa- argumentativa se dá nos trabalhos intitulados Cromwell and the Inssurection of 1655. Ela começa no volume III quando C. H. Firth critica alguns equívocos no artigo de Reginald Palgrave publicado em 1886 na Quartely Review, intitulado “Cromwell: his character illustrated by himself”. C. H. Firth relata as origens do fato de 1655 e refuta os equívocos sobre. Não trataremos de todo o debate, tendo em vista a análise incompleta dos textos e o espaço desse texto. Queremos apenas indicar alguns apontamentos. No mesmo volume encontramos a resposta de Palgrave [A Reply to Mr. Firth], onde se defende dizendo que seu trabalho não foi feito sobre inferências, ou deturpando as palavras de alguém, mas sobre evidências documentais490. Uma segunda parte da resposta sai no número de outubro do volume de 1888. No primeiro número de 1889 continua a resposta de Palgrave. Firth volta a atacar no segundo número de 1889 admitindo as mudanças no método de comprovação de Palgrave. E volta, no terceiro número para analisar a teoria de seu interlocutor historiográfico. Chama-nos atenção esse debate por poder indicar, mesmo indiretamente, umas das principais querelas da profissionalização da história na Inglaterra: a de uma transição da história vitoriana, amadora, para uma história científica, profissional. Segundo analise de Rosemary Jann, Reginald Palgrave é critico de Carlyle, por “florear” demais o texto, enquanto Charles Firth, apesar dos princípios profissionais ainda considerava a história como guia moral e político. Essas contendas podem talvez ser encaradas como o que Eric Hobsbawm se referiu, sobre os estudos daquela época, citando a sátira 1066 and All That, “1066 e aquela coisa toda”, uma menção a discussão sobre a Batalha de Hasting, que na Revista Inglesa é tema de um debate em 1894, envolvendo Edward Freeman. A leitura de Hobsbawm e outros, talvez até mais descrentes com a história científica do século XIX, se justificaria também pela ausência de uma história social e cultural. Robin George Collingwood em estudo sobre 490EHR, vol. 3 (1888) p. 522. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 576 a historiografia inglesa do final do século XIX considerou que ela atuava ainda sobre a sombra positivista. Excetuando algumas questões colocadas por Edward Freeman, nada mais digno de nota foi produzido (COLLINGWOOD, 1989, p. 186). De fato os artigos da Revista do final do XIX até as primeiras duas décadas do XX não refletem de maneira direta as reflexões mais teóricas e críticas. Talvez até hoje sua preocupação seja voltada para os debates de pesquisa. E Collingwood tinha conhecimento do processo historiográfico de meio século atrás. Em seu livro encontramos referências a pelo menos três historiadores que participaram d aRevista: F. W. Maitland, John B. Bury e Lod Acton. Sua reflexão crítica da história talvez só não tenha objetivado uma analise apenas historiográfica. No aniversário de 125 anos do periódico em 2011, foi elaborada uma lista de artigos para livre acesso, selecionados entre os mais respeitados trabalhos publicados. Com um recorte de 1970 até hoje os temas predominantes são história política, religiosa, relacionados com a identidade profissional etc. Não podemos deixar de fora o debate sobre o historicismo. A influência dos grandes mestres historicistas como Ranke, Mommsen, Droysen, é fácil de ser encontrada na Revista, uma vez que foram lidos, resenhados e citados. Entendemos historicismo aqui como a época do desenvolvimento da ciência histórica, na qual se constituiu, como ciência humana compreensiva, sob a forma de uma especialidade acadêmica (MARTINS, 2002, p. 2). Normalmente os estudos fazem poucas, senão nenhuma referência aos ingleses nesse processo. A Inglaterra carregava uma tendência positivista e empirista muito fortes no século XIX. Autores como Stuart Mill e Thomas Buckle tiveram uma ampla repercussão nos debates. Segundo Eckhardt Fuchs (2008) em estudo sobre as relações entre o positivismo inglês e o historicismo alemão, a historiografia inglesa se torna científica em meados do século XIX, com o debate proposto por Buckle, sobre a relação entre ciência natural e historiografia. O trabalho de Eckhardt Fuchs nos interessa porque ele vai além dos estudos sobre a história da disciplina, relacionando apenas e institucionalização e a profissionalização da história. Foi a partir da década de 1870, com um constante contato com a historiografia alemã, com uma definição ideográfica e hermenêutica de historiografia. Apenas quando o significado do termo ‘científico’ mudou entre os historiadores durante o último quartel do século que o positivismo diminuiu sua influência (FUCHS, 2008, p. 248). Se o positivismo na história é marcado por uma tentativa de definir uma base nomotética da ciência da história, como argumenta ainda Fuchs, ele não será a base para Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 577 definir a disciplina entre os “profissionais” da Inglaterra e da Alemanha. “Na verdade, a disciplina [História] começa a se definir em resposta ao modelo positivista” (FUCHS, 2008, p. 249). Para Peter Wende, outro historiador a pensar as relações entre alemães e ingleses na virada para o século XX, essa relação se dá como mestres e púpilos. A Historische Zeitschrift foi tomada como modelo por Acton para a constituição da English Historical Review (WENDE, 2008, p. 174). Embora numa fonte historiográfica que tenho o relato sobre a constituição da Revista não envolver diretamente desde o início Lord Acton. O trabalho de Peter Wende sobre as resenhas de livros entre ingleses e franceses no final do século XIX oferece o que ele chama de “percepeções mútuas” entre os historiadores. Não se restringe às resenhas da English Historical Review, mas faz grande uso delas. Podemos localizar aqueles que introduziram de maneira positiva em seus países os alemães, como Adolphus W. Ward para os ingleses, ou os que rechaçaram como Freeman, alegando uma “independência” da historiografia inglesa. Ambos com trabalhos na EHR. Podemos considerar a English Historical Review como representante da profissionalização da História na Inglaterra. E o que seria mais interessante, como sugere Eckhardt Fuchs, perceber “quais as visões teóricas da história coexistiram com a idéia fundamental de desenvolvimento da disciplina”. Compreendendo também nosso objetivo de analisar a reflexão teórica da história na EHR. Por isso as resenhas, que demonstram as leituras realizadas dentro desse campo que se constituía. Gostaria de citar alguns textos da Revista Histórica Inglesa que nos indicam fontes para nossas reflexões. Que podem nos indicam quais autores de outros países, que possuem um papel decisivo no cenário do final do XIX, são analisados pelos britânicos; como fizeram suas interpretações; o que privilegiaram; o que assimilaram, o que foi negado, comparado. Assim o estudo das revistas serve para expressar as inquietações dos historiadores no seu presente (BENTIVOGLIO, 2011, p. 100), e um local privilegiado para o estudo da escrita da história, por possibilitar um contato com a fonte. Entre os artigos, dos 20 selecionados, podemos citar os seguintes: ACTON, Lord. “German Schools of History” English Historical Review, 1 (Janeiro 1886), 742. ACTON, Lord. “Wilhelm Von Giesebrecht” English Historical Review, 5 (abril 1890), 306310, 18. ACTON, Lord. “Doellinger's Historical Work” English Historical Review, 5 (outubro 1890), 700-744, 20. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 578 BRYCE, James. “Edward Augustus Freeman” English Historical Review, 7 (julho 1892), 497509, 27. JENKS, Edward. “Fustel de Coulanges as an historian” English Historical Review, 12 (abril 1897), 209-224. MAITLAND, F. W. “William Stubbs, Bishop of Oxford” English Historical Review, 16 (julho 1901), 417-426, 43. POWELL, F. York. “Samuel Rawson Gardiner” English Historical Review, 17 (abril 1902), 276-279. POOLE, Reginal Lane. “John Emerich, Lord Acton” English Historical Review, 17 (outubro 1902), 692-699. Entre os textos que destacamos da sessão de resenhas, dos cerca de 46, gostaria de citar os seguintes: Volume I - 1886 Mommsen (T.) Römische Geschichte, v.: por W. T. Arnold & T. F. Tout, 350-364. Treitschke (H. von) Deutsche Geschichte im neunzehnten Jahrhundert, III: por Adolphus Willian Ward, 809-815. Volume II - 1887 Creighton (M.) History of the papacy, III. iv.: por Lord Acton, 571-581. Freeman (E. A.) Methods of historical study: por A. W. Ward, 358-360 GARDINER (S. R.) History of the great civil war [1642-1649], I.: por A. W. Ward, 381385. SEELEY (J. R.) Short history of Napoleon the First e John Codman ROPES, The First Napoleon: a Sketch, Political and Military: por Lord Acton, 593-603. Volume III - 1888 Lea (H. C.) History of the inquisition of the middle ages: por Lord Acton, 773-788. Ranke (L. von) Zur Geschichte Deutschlands und Frankreichs im neunzehnten Jahrhundert: por A. W. Ward, 184-186. Volume IV - 1889 Bryce (James) The American Commonwealth: Lord Acton, 388-396. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 579 Langlois (C. V.) Le regne de Philippe le Hardi: por T. F. Tout, 364-369. Volume VII - 1892 GARDINER (S. R.) History of the great civil war, III. [1647-1649] & A Student's History of England: por A. W. Ward, Litt.D., 573-578. Froude (J. A.) The divorce of Catherine of Aragon: por Augustus Jessopp, 360-365 Volume X - 1895 Flint (R.) Historical philosophy in France and French Belgium and Switzerland: por Lord Acton, D.C.L., 108. Volume XI - 1896 Acton (Lord) A lecture on the study of History: by S. R. Gardiner, 121-123. Volume XIII - 1898 Langlois (C. V.) & Seignobos (C.) Introduction aux Etudes historiques : by S. R. Gardiner, D.C.L., 327-329. Volume XVII - 1902 Seignobos (M. C.) La methóde historique appliquée aux sciences sociales, 189 – W. G. P. S. No final a produção arrolada aqui contribui para o conhecimento da escrita histórica do final do século XIX, pois se trata de uma leitura das fontes que estamos realizando, ajudando a desmitificar a classificação de história tradicional e positivista, para diferentes historiografias desse período. Os textos revelam apropriações e seleção do que deveria ser estudado e pensado sobre história. Podemos inclusive, com a analise mais profunda desses textos e autores achar problemáticas e debates que já se encontravam naquele momento. Como sugeriu Doris S. Goldstein, talvez muitos dos “pais” (os tradicionalistas) foram mais complexos do que os “filhos” (os inovadores que os substituíram) poderiam considerar ou admitir (GOLDSTEIN, 1977, P. 919). Referências Bibliográficas Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 580 BENTIVOGLIO, Júlio. A Historische Zeitschrift e a historiografia alemã do século XIX. Revista História e Historiografia. Ouro Preto, número 6, março 2011, pp. 81-101. BURROW, John. A Professional Consensus: The German Influence. In: A History of Histories. Published by Alfred A. Knopf, pp. 425-437, Nova Iorque, 2008. COLLINGWOOD, R. G. A Ideia de História. Lisboa: Editorial Presença, 1989. 7° edição. FUCHS, Eckhardt. English Positivism and German Historicism. The reception of ‘Scientific History’ in Geramny. In: STUCHTEY, Benedikt; WENDE, Peter (org.). British and German Historiography, 1750-1950. pp. 229-250. Londres: German Historical Institute London e Oxford University Press, 2006. GOLDSTEIN, Doris S. J. B. Bury’s Philosophy of History: A Reappraisal. In: The American Historical Review, vol. 82, no. 4 (1977), pp. 896-919. GOLDSTEIN, Doris S. The origins and the early years of the English Historical Review. In: English Historical Review, vol. 101. Londres: Longmans, Green and Co. 1986. MARTINS, Estevão de Rezende. Historicismo: tese, legado, fragilidade. In: História Revista, 7 (1/2): 1-22, 2002. REIS, José Carlos. História e teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. WENDE, Peter. Views and Reviews. Mutual Perceptions of Bristish and German Historians in the Late Nineteenth Century. In: ______ (org.). British and German Historiography, 1750-1950. pp. 173-189. Londres: German Historical Institute London e Oxford University Press, 2006. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 581 Pensando a Literatura: o romance e suas possibilidades de análise Marcelle D. C. Braga Mestranda em História pela UFOP/ Bolsista UFOP marcelledcbraga@gmail.com Introdução Os historiadores podem se verticalizar sobre diversos tipos de fontes, buscando compreender e apreender formas de interpretação do mundo, formas de expressão e modos de vidas. Deste modo, este texto propõe discutir as possibilidades de interpretação e compreensão que a História, enquanto disciplina, pode dispor para se aproximar das fontes literárias. Isto significa dizer que levantaremos questões refletidas nas áreas de ciências humanas acerca de como pensar as obras literárias enquanto fonte e também enquanto objetos textuais. Para tanto, nossa proposta se volta para o gênero romance, em específico, tendo em vista que é o mais recorrente nos estudos historiográficos. Algumas propostas da historiografia para a abordagem da literatura Primeiramente levantamos duas formas de se compreender a literatura pelo viés da historiografia, que nos possibilita visualizar um modo de interpretação da História Cultural sobre esta fonte. Consideramos que Sandra Jatahy Pesavento e Roger Chartier sejam dois importantes expoentes desta discussão. Segundo Sandra Jatahy Pesavento, podemos pensar a escrita literária e a historiografia como caminhos do imaginário, em busca de modos de vivência e expressão do passado. Encarando o imaginário como elemento organizador do mundo, que dá coerência, legitimidade e identidade. É sistema de identificação, classificação e valorização do real, pautando condutas e inspirando ações. 491 Assim o imaginário é considerado como um mecanismo de representações, que se assenta sobre o real, tendo-o como referência, porém sem misturarse com ele. O imaginário trocaria, substituiria e tomaria o lugar da realidade na medida em que construiria uma representação social dela. Então, a representação passaria a ser 491 PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & literatura: uma velha-nova história. IN: Nuevo Mundo Mundos Nuevos. Debates, 2006. IN: http://nuevomundo.revues.org/1560. Acessado em: 07-01-2011, p. 02. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 582 apreendida como o real. 492 Portanto, a autora considera a representação como externa à realidade, podendo assumir essas diversas formas. A literatura, nesse sentido, é ponte para o imaginário, permitindo acessar o subjetivo de modo indireto ou metafórico. Pode também auxiliar o historiador a ver questões ou pensar em outras fontes, abrindo possibilidades e hipóteses. Logo, o texto literário não deve ser buscado pelo historiador como testemunha de autenticidade, o texto literário revela e insinua as verdades da representação ou do simbólico, expressa modos de pensar e de agir, que possuem sua própria significância.493 Por esses motivos, a literatura oferece campo fecundo à História Cultural. O francês Roger Chartier se aproxima das propostas de Pesavento, a respeito deste tipo de fonte e, principalmente, no que concerne a essa configuração da História Cultural, rejeitando o método quantitativo e das mentalidades. O historiador tem pesquisado sobre a história da educação; história do livro, da leitura, das mudanças da materialidade dos textos e das práticas culturais na Europa; contemplando desde o fim da idade moderna até o presente. Seu viés interpretativo contempla, assim, o nível das ações dos indivíduos e de suas relações. Desta forma, pensa a construção das leituras enquanto prática subjetiva que dialoga com o universo de conhecimento do leitor, refletindo sobre as coerções e os espaços de invenção que estes envolvem. Segundo Roger Chartier, a literatura é um material sujeito a interpretações do indivíduo e que, por isso, pode ganhar significados distintos de públicos diferentes. Há ainda uma variabilidade de acordo com o conhecimento que está acessível a cada grupo, sendo que a leitura dialogará, sempre, com a percepção de mundo de cada leitor. A forma como o texto é apresentado também terá suas especificidades, distinguindo-se: os encenados, escritos e lidos. Portanto, constituem elementos a serem contemplados no trabalho historiográfico: o modo de transmissão do objeto literário, o seu destino e as interpretações feitas destes. 494 Chartier destaca a necessidade de buscar uma análise dos textos, em suas estruturas objetivas e nas pretensões do autor, e, por outro lado, a história do livro, em seus usos e significações pelos diversos públicos. A materialidade dos textos também auxilia na sua recepção e na formação de sentido pelo leitor. Observa também a importância da busca da 492Idem,ibdem, p. 02-03. Idem, ibdem, p. 07-08 494CHARTIER, Roger. O mundo como representação. : Estudosavançados. 1991, vol.5, n.11, pp.173-191. IN:http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40141991000100010&script=sci_arttext. Acessado em: 2012-2010 493 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 583 intertextualidade, recorrendo às fontes e ao que se escreveu sobre as obras, como lhe foram atribuídas construções e reconstruções. Aponta como é interessante pensar as redes de práticas e os códigos de leituras próprias às várias camadas de leitores do autor nas suas especificidades e totalidades. 495 Já o historiador anglófono John Pocock se difere bastante dos pesquisadores supracitadas, pois trabalha com história do discurso político, preocupado em como os diversos atores políticos mobilizam a linguagem para ler e responderem-se uns aos outros. E, como Chartier e Pesavento, pensa seu recorte a partir do nível do indivíduo. Verticalizando-se sobre a reconstrução das intenções dos autores dos discursos políticos, a ação indireta destes sobre as leituras, sua ação póstuma e a ação mediada por outros atores históricos. Refletindo sobre tendências ideológicas e o funcionamento do círculo hermenêutico. Pocock oferece interessante proposta teórica no que tange ao sentido do texto e a reconstrução das intenções do autor, que pode ser refletido nas suas proximidades com o tratamento das fontes literárias. Aponta a necessidade de o historiador abordar a literatura da época, o mais abrangentemente possível, para perceber as mais diversas possibilidades de cruzamento de discursos. Sendo interessante tornar explícitas as ideias que aparecem implícitas no texto. Abalizar as regularidades e convenções da linguagem utilizada, da mesma forma como as limitações que essa linguagem impunha no período àqueles indivíduos.496 Assim, analisar os eventos políticos, culturais e sociais que o discurso engendra e mobiliza. 497 O romance: Contribuições das ciências humanas ao estudo da literatura As Ciências Humanas possui vasta bibliografia a respeito das diversas formas de se aproximar das mais distintas obras. Aqui pretendemos trazer algumas reflexões de Mikhail Bakhtin, Roland Barthes, Antonio Candido e Gerson Luiz Roani, Hayden White Mikhail Bakhtin, em sua obra Questões de Literatura e de Estética, propõe pensar o romance europeu nos seus primeiros desdobramentos, em contraste com uma literatura já estabelecida e consagrada: as epopeias. Demonstra como o romance partiu de uma 495 CHARTIER, Roger, A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília:UnB, 1999. p. 11-14. 496 POCOCK, J. G. A. Introdução. In: Linguagens do ideário político. São Paulo: Editora da universidade de São Paulo, 2003, p. 33-34. 497 Idem, ibidem, p. 37. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 584 perspectiva exatamente contrária: enquanto a epopeia se pautava no passado mítico, no passado dos heróis nacionais, distanciando-se do presente; o romance partiu das questões mais eloquentes do presente, a partir das linguagens mais corriqueiras, das experiências das pessoas do período e suas opiniões. Esse rompimento com a distância possibilita a configuração de uma representação do homem radicalmente reestruturada, pautada na constante construção, voltado para as possibilidades que o futuro lhe reserva. Aponta como, nesses primeiros momentos, o cômico foi importante para aproximar o leitor/ouvinte desta realidade contada, pois o riso, em especial, permite a melhor forma de aproximação entre universo narrado e leitor. Este novo gênero não se prende aos tradicionalismos estilísticos e nem se preocupa em glorificar um passado distante. O romance surge pensando o presente, este novo foco possui em si a dúvida, o inacabado, o instável e o transitório, pois não existe mais nem a origem perfeita e nem a ultima palavra. Destrói as distancias e dessacraliza as memórias, desconstruindo-as e colocando-as ao nível do cômico, na área do contato familiar. 498 Tudo isto, possibilitou uma nova atitude perante a língua e palavra, desfrutando de grande liberdade frente ao tempo e ao espaço, dando voz até aos personagens mortos. O autor passa a aparecer no campo representado e, mais, passa a ter novas relações com o representado. Assim, ele deixa seu campo estritamente formal e se aproxima ainda mais do leitor. O romance é mobilizador e está em constante movimento, já que quer profetizar os fatos, predizer o futuro real, o futuro do autor e dos leitores. Ele possui uma especificidade marcante, é envolvente, abrindo espaço para se auto-identificar com os personagens e envolver-se com os personagens. 499 O francês Roland Barthes (1915-1980)500 pode nos auxiliar com algumas ideias no que se refere à compreensão dos romances. Mas é importante ressaltar que sua formação é bastante específica, sendo a maior parte de seus trabalhos referentes à sociologia, crítica literária, semiologia e filosofia; o pesquisador pode ser compreendido como uma das expressões da escola estruturalista, se atentando para as propostas de Fernand Saussure. 498 Esses desdobramentos da nova forma de se escrever ocorriam em sincronia com as mudanças da forma de pensar da sociedade europeia no período, que se desfazia desta distancia épica, se aproximando dessa familiarização cômica do mundo e do homem, trazendo a realidade atual para as discussões, como incompleta. (p. 427) 499 BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance.São Paulo: UNESP, 1993, p. 417-421. 500Formado em Letras Clássicas em 1939 e Gramática e Filosofia em 1943 na Universidade de Paris. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 585 Barthes afirma que a forma da narrativa é a mais recorrente na escrita dos romances, e é sobre esses que dirigimos nossas considerações.501 O autor ressalta que o uso do tempo – no caso, a articulação do tempo verbal – e da terceira pessoa são elementos fundamentais para a configuração do gênero. Sua defesa se combina com a de Bakhtin, ao pensar que construir um texto conjugando o verbo no pretérito perfeito (ex.: morreu, saiu, passou) causa uma sensação no leitor de que a realidade tratada não é misteriosa ou absurda. Isso autoriza ao autor abafar os elementos que apontam para qualquer tipo de opacidade no texto.502 Ou seja, estas estratégias rompem com o distanciamento do tempo mítico das epopeias e traz o leitor para dentro das tramas dos personagens. Barthes aponta que, assim, o escritor tem o poder de exprimir ações iniciadas e fechadas, mais tranquilizando e envolvendo o leitor do que o fazendo refletir. Enquanto isso, a terceira pessoa é uma estratégia que seduz a leigos e acadêmicos, logo, atinge um público mais amplo. O “ele” é sempre aquele que faz os fatos, enquanto o “eu” é, geralmente, testemunha. Assim, esse uso possibilita ligar o Romance à sociedade e a história que o circunda e que é movida. 503 Cremos que refletir sobre esse tipo de construção, ao escrever sobre os romances, é fundamental para conjecturar quais as possíveis intencionalidades do autor. Por exemplo, ao exprimir ações passadas e acabadas o escritor não dá margem para o questionamento por parte do leitor. Por outro lado, o pesquisador Antonio Candido, professor emérito da USP, caro à Crítica Literária por seus estudos sobre a literatura brasileirae estrangeira, pode complementar tais preocupações, referentes à estrutura do texto e os rudimentos movidos para a configuração das imagens fictícias na mente do leitor. Chama atenção para outros três constituintes do romance que são indissociáveis entre si: enredo, personagens e ideias (enquanto sinônimo dos valores e significados que animam e envolvem a trama). Afirma que se pode pensar nas personagens enquanto componente mais atuante ou comunicativo no romance (nos séculos XVIII, XIX e começo do XX), mas que é errôneo pensá-los como desligados dos demais. 504 501 BARTHES, Roland. A escrita do romance. In: O grau zero da escrita: seguido de novos escritos. São Paulo : Martins Fontes, 2004, p. 26. 502 Idem, ibidem p 28. 503 Idem, ibidem, p. 29-33. 504 CANDIDO, Antonio. A personagem do Romance. In: CANDIDO, Antonio; ROSENFELD, Anatol; ALMEIDA, Decio de; GOMES, Paulo Emílio Sales. A personagem de ficção. São Paulo : Perspectiva, 1968, p. 54. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 586 Candido ressalta que, assim como na vida, o romancista oferece fragmentos da definição dos personagens, como características físicas e psicológicas, que possibilitam formar uma imagem destes na mente dos leitores. Assim, os atos, as conversas, enfim, todo tipo de relação social ofereceria “fragmentos de ser”. Embora no âmbito da vida, seja impraticável compreensão una e completa de qualquer tipo de objeto, o romance buscaria ultrapassar essa barreira, fornecendo as informações básicas para que o leitor não ficasse com esta sensação de vazio ou de lacuna na configuração dos personagens, apresentandoos como completos. 505 Contudo, no século XIX houve uma mudança na construção dos textos, onde os escritores começaram a buscar aumentar essa impressão de descontinuidade, de contradição, de complexidade de seus personagens. É claro que a noção do mistério dos seres, produzindo as condutas inesperadas, sempre esteve presente na criação de forma mais ou menos consciente –, bastando lembrar o mundo das personagens de Shakespeare. Mas foi conscientemente desenvolvida por certos escritores do século XIX, como tentativa de sugerir e desvendar, seja o mistério psicológico dos seres, seja o mistério metafísico da própria existência.(p. 57) Conforme Candido, a fonte de inspiração do romancista seria a memória, a qual será submetida a uma série de invenções, oferecendo a base para se criar personagens. Mas, o romancista somente extrairia da vida os “elementos circunstanciais” (maneira, profissão, etc.); oessencialseria, via de regra,inventado. Portanto, o romance seria regido pelo principio da modificação do real, acrescendo ou deformando. 506 O pesquisador em literatura portuguesa e Comparada Gerson Luiz Roani já interpreta a literatura pensando de que forma se mobiliza e se altera informações dadas como reais. Propõe-se a pensar a composição do texto literário, em termos de representação e problematização do passado, em linha semelhante à de Chartier. A literatura pode aliar-se à História e transformá-la, mesclando dados ficcionais com históricos. Quando o autor da obra literária intensifica o uso da realidade e dialoga mais diretamente com seu presente, essa construção passa a impor ao leitor uma série de indagações, compelindo-o à reflexão. O escritor pode fazer uso de documentação e reconstituir gestos, mentalidades, costumes, fatos e fenômenos, porém alterados com suas intencionalidades e com elementos ficcionais. Assim, passa a transfigurar uma realidade diferente. Nesse caso, segundo Roani, o escritor aparenta oferecer ao leitor um “pacto de 505 506 Idem, ibidem, p. 56 Idem, ibidem, p. 67. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 587 veracidade”, embora, geralmente, preencha as lacunas da historiografia com ficção.507 Essa interpretação criativa da realidade pode reinventar e corrigir o passado. 508 Roani afirma que a ficção modifica e subverte o real com as intencionalidades do autor, o que a faz bastante dinâmica e complexa. Ela pode se apresentar como um jogo, que abraça autor, leitor e ambiente que os circunda. Quando consegue envolvê-lo nos emaranhados da história narrada, ela se transforma em armadilha, conduzindo-o, fazendo-o cúmplice e participante de um processo de ficcionalização da História. 509 O historiador estadunidense Hayden White, que desencadeou ampla discussão por seus apontamentos sobre as relações entre História e literatura, oferece uma análise diferenciada por pensar que as fronteiras referentes ao uso de uma subjetividade criativa na historiografia não se diferem tanto da literatura. O pesquisador rompe profundamente com as rígidas fronteiras entre as escritas, utilizando-se de pensamentos da teoria literária no campo historiográfico. Assim sendo, se retém na estrutura e no processo de construção do texto. Acreditamos que suas contribuições podem nos são validas na medida em que destaca, em sua obra O texto histórico como artefato literário, que o autor da literatura recorre à imaginação, com o fim de ligar os fatos, interpretá-los, relacionando-os ou afastando-os, para compor o texto. Os documentos seriam simplesmente dados que não possuiriam em si um sentido, este sentido seria, sempre, conferido pelo homem. Aquele que articula os inúmeros fatos destaca alguns e subordina outros, adotando pontos de vistas e estratégias descritivas. Portanto, nenhum texto é neutro em nenhum sentido, sendo sua forma (cômica, trágica, irônica ou romântica) uma escolha, assim como seu conteúdo. Logo seu texto seria um fruto da invenção enquanto criação subjetiva, produto da interpretação e das intenções. 510 Por fim, é importante lembrar que, como já apontou o célebre Mikhail Bakhtin (1895-1975), no período em que o romance se estabeleceu como gênero predominante (especialmente forte na segunda metade do século XVIII), muitas de suas características foram apropriadas por outros gêneros. Pois o romance seguia uma evolução concomitante a da sua realidade, expressando as tendências de seu momento histórico, e isso fez dele um 507ROANI, G. L.. Espaços que a história tece na ficção de Saramago. Letras (Santa Maria), v. 27. IN: http://w3.ufsm.br/revistaletras/artigos_r27/revista27_10.pdf. Acessado em: 07-01-2011. p. 99-100. 508 Idem, ibdem, p. 105. 509 Idem, ibdem, p. 101. 510 WHITE, Hayden. O texto histórico como artefato literário. In: Trópicos do discurso: ensaio sobre a crítica da cultura. São Paulo: EDUSP, 2001, p. 98-101. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 588 contribuidor para os outros gêneros, os quais não acompanhavam essas mudanças, induzindo-os a uma “reformulação radical”. Estes se tornaram mais livres e soltos, com uma linguagem diferente da desfrutada até então – permeados pela ironia, humor, riso. E ainda mais interessante, o romance trata do presente ainda inacabado, não mais com o passado fechado. 511 Conclusão Buscamos defender, com este texto, que a forma como o escritor constrói seu texto interfere na recepção e interpretação deste, possibilitando certas ações em detrimento de outras. Logo, a linguagem, a forma do texto, o uso do tempo, a posição do autor, são elementos que movem e conduzem a leitura. Deste modo, propomos partir da hipótese de que a conjugação desses fatores junto à esfera da construção do texto, das intencionalidades do autor e da recepção pelo público leitor configure uma aproximação mais completa das potencialidades da literatura enquanto documento. Dito de outra forma, o que propomos é um dialogo maior entres as propostas metodológicas dos historiadores e de demais pesquisadores das ciências humanas para um olhar mais apurado sobre a Literatura. Enfim, acreditamos que a literatura ultrapassa uma questão meramente estética e/ou cultural, pensando que a ficção é capaz de construir representações do mundo expressando a perspectiva do autor (e de sua época) sobre determinados assuntos. Ao mesmo tempo, a leitura envolve e instiga agentes históricos, que também podem mobilizar respostas de acordo com sua interpretação de certas ideias. Portanto, se torna fundamental analisar a literatura como uma forma de expressão de determinado momento histórico, enquanto fruto de compreensões de mundo. Referências Bibliográficas BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: UNESP, 1993. 511 BAKHTIN, Op. Cit., p. 399-401. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 589 BARTHES, Roland. A escrita do romance. In: ______. O grau zero da escrita: seguido de novos escritos. São Paulo : Martins Fontes, 2004. CANDIDO, Antonio. A personagem do Romance. In: CANDIDO, Antonio; ROSENFELD, Anatol; ALMEIDA, Decio de; GOMES, Paulo Emílio Sales. A personagem de ficção. São Paulo : Perspectiva, 1968. CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: UnB, 1999. CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos avançados. 1991, vol.5, n.11, pp.173-191. In: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S00340141991000100010&script=sci_arttext. Acessado em: 20 dez 2010. MELLO, Ludmila Giovanna Ribeiro De. Realidade Ou Criação? Um Panorama Sobre O Romance Histórico. ÍCONE - Revista de Letras, São Luís de Montes Belos, v. 2, p. 123-135, jul. 2008. ISSN:1982-7717. IN: http://www.slmb.ueg.br/iconeletras. Acessado em: 19-04-2012, p. 130. PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & literatura: uma velha-nova história. Nuevo Mundo Mundos Nuevos. Debates, 2006. IN: http://nuevomundo.revues.org/1560. Acessado em:07-012011, p. 02. POCOCK, J. G. A. Introdução. In: ______. Linguagens do ideário político. São Paulo: EDUSP, 2003. ROANI, G. L.. Espaços que a história tece na ficção de Saramago. Letras (Santa Maria), v. 27. Disponível em: http://w3.ufsm.br/revistaletras/artigos_r27/revista27_10.pdf. Acessado em: 07 jan 2011. p. 99-100. WHITE, Hayden. O texto histórico como artefato literário. In: ______. Trópicos do discurso: ensaio sobre a crítica da cultura. São Paulo: EDUSP, 1996. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 590 História das Ideias: entre apropriações e ressignificações Marcelo Monteiro dos Santos Mestre em História Social pela USS/ Bolsista CAPES madri_ms@hotmail.com Resumo: O presente trabalho analisa como as ideias políticas podem ser estudadas a partir do binômio apropriação/ressignificação. Metodologicamente nos apoiamos nos estudos sobre os Conceitos desenvolvidos pelo historiador alemão Reinhart Koselleck que, recentemente, vem ganhando espaço na historiografia brasileira. Buscamos ainda desenvolver o conceito de “Ideas in context”, formulado pela Escola de Cambridge, na figura de Quentin Skinner. Acreditamos ser possível uma articulação entre as duas propostas metodológicas nos estudos de história das ideias, do pensamento político, bem como para toda história política renovada. Testamos a aplicação desta proposta em um estudo que procura mostrar como alguns conceitos desenvolvidos por Maquiavel (1469-1527) no decorrer do seu pensamento político foram apropriados e ressignificados nos Cadernosdo Cárcere de Antônio Gramsci (1891-1937). Palavras-chaves: história das ideias; apropriação; ressignificação. Abstract: This paper analyzes how political ideas can be investigated using the binomial appropriation / new significaton. Methodologically, we rely on studies on the concepts developed by the German historian Reinhart Koselleck which recently has been gaining ground in the Brazilian historiography. We seek to further develop the concept of "Ideas in context", made by the Cambridge School, the figure of Quentin Skinner. We believe a possible link between the two methodological approaches in studies of history of ideas, of political thought as well as any renewed political history. We tested the implementation of this proposal on a study that seeks to show how some concepts developed by Maquiavel (1469-1527) in the course of his political ideas were appropriated and reinterpreted in the Cadernos do Cárcere of Antonio Gramsci (1891-1937). Keywords: History of ideas; appropriation; new signification. A História, cujo objeto precípuo é observar as mudanças que afetam a sociedade, e que tem por missão propor explicações para elas, não escapa ela própria à mudança.512 René Rémond [...] cada época entende um texto transmitido de uma maneira peculiar, pois o texto constitui parte do conjunto de uma tradição pela 512 RÉMOND, René. Uma História presente. In: Por uma História Política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p.13. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 591 qual cada época tem um interesse objetivo na qual tenta compreender a si mesma. O verdadeiro sentido de um texto, tal como este se apresenta a sei intérprete, não depende do aspecto puramente ocasional que representam o autor e o seu público originário. Ou, pelo menos, não se esgota nisso. Pois este sentido está sempre determinado também pela situação histórica do intérprete e, por consequência, pela totalidade do processo histórico.513 Gadamer Queremos começar nosso texto apontando os caminhos que iremos percorrer nesse primeiro momento do nosso trabalho. O objetivo desta comunicação é traçar um panorama da história política em suas principais linhas de pesquisa, desenvolvidas, sobretudo, na segunda metade do último século. Partiremos de três eixos: as ideias políticas, o contextualismo linguístico de Quentin Skinner e a História dos conceitos de Reinhart Koselleck. Na história da historiografia, esses aportes metodológicos ligam-se as discussões da História política, que aqui se desdobrarão na análise de conceitos e suas ressignificações e apropriações. Propomos um debate metodológico. Temos então o estudo de conceitos políticos sob a ótica de uma linguagem articulada em determinado tempo. A partir daí pretendemos criar um aporte metodológico para propor o estudo do pensamento gramsciano no tocante a apropriação e ressignificação do pensamento político maquiaveliano. A nova história política e a história das ideias Ao lançar seu olhar sobre o político o historiador pode trazer problemas que já figuram em outras disciplinas das ciências sociais (como sociologia e ciência política). Objetos que não se definem com tempo e espaço fidedignamente delimitados. As fronteiras são fluidas nesse campo. A preocupação consiste em lançar luz sobre a história do pensamento político seja nos “grandes” autores ou nas linguagens políticas514 do cotidiano. 513 GADAMER, H. G, apud JASMIN, Marcelo G. História dos Conceitos e Teoria política e social: referências preliminares. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 20, nº57, p.30. 514 Sobre a discussão acerca das linguagens políticas ver: POCOCK, J.G.A. Linguagens do ideário político. São Paulo: Edusp, 2003. O historiador britânico pertence à chamada “Escola de Cambridge” que muito vem contribuindo para a historiografia desde a década de 1960. Pocock analisa as linguagens políticas que constituem a modernidade ocidental através de diversos pensadores e também como as mesmas se apresentam de maneira ordinária na sociedade, de forma a construir o que o historiador chama de ideário político. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 592 Das discussões travadas nos anos 1970 e 80 emerge um corpus renovado, que podemos chamar aqui de nova história política (FALCON, 1997, p.78). Não nos aprofundaremos nas questões que permitiram essa emergência embora seja necessário salientar que a história política passou por um longo período de marginalidade após a crítica estabelecida pela Escola dos Annales a partir da década de 1920. É importante esclarecer que a história política não desapareceu com a crítica dos Annales, embora tenha sido rechaçada principalmente na historiografia francesa. Aconteceu então uma vertiginosa aproximação com as outras ciências sociais e uma fragmentação dos objetos da História. Imediatamente a história política, identificada com portadora de um método tradicional e insuficiente de fazer História, é eclipsada pelo novo paradigma estabelecido por Marc Bloch, Lucien Febvre e Fernand Braudel, posteriormente, entre muitos outros. As implicações do político na sociedade são muitas e cabe ao trabalho atento do historiador perceber essas influências e modificações que ele promove. Segundo Rémond “o importante é deixar claro que o político existe, distingue-se de outros tipos de realidades, constitui algo específico, […] é capaz de imprimir sua marca e influir no curso da história […]” (RÉMOND apud FALCON, 1997, p.78, grifos nos original). No Brasil, os estudos da academia só receberam essas transformações a partir da década de 1960. Vale salientar, entretanto, que essa crítica que ocorre na historiografia francesa não se observa em outros países como o Brasil. Por aqui a história política talvez nunca tenha conhecido, verdadeiramente, um momento de crítica e abandono. Podemos partir da premissa que o historiador nunca é estranho à realidade na qual vive e, a partir daí, compreender a crítica feita sobre a história política, era fruto de um movimento maior que colocava a prova a sociedade daquele momento. No século XX a História escrita já não podia ser aquela que exaltava o Estado e a nação, tampouco seus líderes e “fundadores”. Tudo isso estava sendo questionado. Segundo Rémond, A história de fato não vive fora do tempo em que é escrita, ainda mais quando se trata da história política: suas variações são resultado tanto das mudanças que afetam o político como das que dizem respeito ao olhar que o historiador dirige ao político. Realidade e percepção interferem. (RÉMOND, 2006, p.72) Desta feita, podemos adiantar que uma das características mais enriquecedoras dessa nova história política é a pluridisciplinaridade, seu caráter interdisciplinar faz com que os trabalhos e o interesse pelo político leve o historiador a trabalhar não somente com a historiografia, mas recorra de maneira muito produtiva à sociologia, a ciência política, a Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 593 linguística entre tantas outras áreas. Isso, pois, “[...] o político não constitui um setor separado: é uma modalidade da prática social” (idem, p. 35-6). A história política pode ser apreendida a partir de múltiplos anglos. Em nossa pesquisa nos interessamos pela história das ideias. Mais precisamente como essas ideias se articulam politicamente nos discursos/textos dos autores que são apresentados nessa pesquisa. Tomemos como exemplo uma citação de René Rémond em um de seus artigos quando nos diz que, “[...] os meios de comunicação não são por natureza realidades políticas: podem tornar-se políticos em virtude de sua destinação, como de diz dos instrumentos que são transformados em armas” (idem, p.441). Pode parecer redundante classificar ideias como políticas, mas rejeitamos a premissa que toda ideia seja em si política. Concebemos então que, [...] o político é uma construção abstrata, assim como o econômico ou o social, é também a coisa mais concreta com que todos se deparam na vida, algo que interfere na sua atividade profissional ou se imiscui na sua vida privada [...] o campo do político não tem fronteiras fixas e as tentativas de fechá-lo dentro de limites traçados para todo o sempre são inúteis. (ibidem, p. 442-3) Por história das ideias podemos entender também a história intelectual. Segundo o historiador Francisco Falcon, “boa parte dos historiadores prefere hoje em dia a denominação história intelectual, cujo campo abrangeria o conjunto das formas de pensamento, em lugar da tradicional história das ideias” (FALCON op. cit. p.93). Para nós é essencial compreender como atuam as ideias e de que maneira podemos percebê-las na construção do nosso objeto, ela “remete a textos nos quais os conceitos articulados constituem os agentes históricos primários [...]” somando-se a história intelectual que “remete a textos bem mais abrangentes, uma vez que ela inclui as crenças não-articuladas, opiniões amorfas, suposições não-ditas, além, é claro, das ideias formalizadas” (idem, p.93). Essas proposições acerca de uma história intelectual apontam uma possibilidade para perceber os autores e os textos estudados no decorrer do trabalho. Perceber o que o Gramsci está fazendo ao utilizar os conceitos desenvolvidos por Maquiavel na construção do seu pensamento político aponta, acreditamos, para a possibilidade de compreender como ideias políticas são transpostas no tempo e ressignificadas. Podemos enriquecer esse debate metodológico com algumas considerações do historiador francês Pierre Rosanvallon. Em artigo publicado há quase três décadas, ele propõe uma abordagem que aponte para uma “historie conceptualle du politique” (ROSANVALLON, 1995, p.11). Ainda segundo o autor era preciso (e ainda o é) superar fraquezas metodológicas que grassavam a história das ideias: “a tentação do dicionário, a Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 594 história das doutrinas, o comparativismo textual, o reconstrutivismo e o tipologismo” (idem, p.12-5). A preocupação central reside no fato de que em diversas obras realizadas sobre aquela metodologia o caráter histórico simplesmente estava ausente. Atentamos em nosso trabalho para uma aproximação entre história e teoria política para mitigar tais “fraquezas”. Para Rosanvallon, sobre essa nova abordagem das ideias, Sua originalidade reside antes no seu método que em sua matéria. Este método é ao mesmo tempo interativo e compreensivo. Interativo, pois consiste em analisar a forma como uma cultura política, as instituições e os fatos interagem uns nos outros compondo figuras mais ou menos estáveis [...]. Compreensivo, pois se esforça por compreender uma questão re-situando-a em suas condições efetivas de emergência. (ibidem, p.17, grifo nosso) A dimensão compreensiva salientada pelo historiador francês nos parece evidente num primeiro momento, entretanto, cabe ressaltar que quando nos debruçamos sobre uma enormidade de trabalhos que tomam por objeto a análise do pensamento maquiaveliano, por exemplo, observamos que uma série de questões que só são explicáveis analisando minuciosamente o tempo e o espaço no qual o pensador estava inserido são tratadas de forma descuidada e apressada. Em monografia de nossa autoria515 estabelecemos a hipótese de que Maquiavel tinha como principal tarefa expor os problemas da “Itália” do seu tempo e apontar as saídas possíveis, bem como acreditava que um governo republicano poderia construir um estado nos moldes de França e Espanha, estados formados recentemente à época. Sustentamos a necessidade de atentar para o retorno do político e todas as dimensões de análise que esse campo da história pode oferecer ao historiador. Mesmo com a advertência de que esta frase encontra-se banalizada pelo uso.516 As ideias políticas nos moldes propostos pelo historiador francês Michel Winock devem atentar para toda a tessitura social. Deveria assim descer dos pináculos para compreender a articulação da linguagem política nos vários níveis da sociedade. Dito de outra maneira não interessaria ao historiador das ideias somente as grandes obras, tratados filosóficos e acadêmicos. Toda produção e circulação de ideias que podemos encontrar na imprensa, nos panfletos, nos discursos também se constituem em rica documentação. Para Winock, “as ideias políticas não são apenas as dos filósofos e dos teóricos, mas também do homem comum” 515 Cf. SANTOS, Marcelo Monteiro dos. O século XVI e uma Itália possível na teoria de Maquiavel. Cabo Frio: Universidade Veiga de Almeida [biblioteca], 2009. 516 ROSANVALLON, Pierre. Por uma história do político. São Paulo: Alameda, 2010. Este trabalho reúne alguns textos importantes de Rosanvallon, historiador pouco traduzido entre nós. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 595 (ROSANVALLON, 2010, p.39). Podemos aqui aproximar nosso historiador das proposições feitas por Rosanvallon. Segundo ele, [...] nos últimos vinte anos, a história das ideias desceu daquele empíreo onde frequentava apenas autores de renome; interessou-se pelas mil degradações do modelo original, pelas formulações vulgares dos temas políticos, pelo pensamento automático dos órgãos de opinião, pelos reflexos condicionados, pela circulação dos mitos e dos estereótipos, pelos novos suportes dos enunciados ideológicos. (idem, p.39) Winock passa em revista uma série de autores e trabalhos dentro do campo das ideias. Como citado acima, ele pretende demonstrar a necessidade de diversificação de objetos estudados. Dito isso gostaríamos de destacar que nossa dissertação não se ocupa desse tipo de fonte para análise. Entretanto, ao traçar um panorama metodológico acerca da história das ideias não podíamos nos furtar a essas referências. Ao prosseguirmos, uma digressão se faz necessário para entender que o “estado da arte” analisado por ele remete à historiografia francesa. Os ecos da renovação desse corpus, ainda vibram com diferentes intensidades em nossa historiografia. Na tarefa de síntese dos historiadores que fazem história política cabe, insiste Winock, A recuperação dos antecedentes, das filiações, das fusões, toda essa hidrologia das correntes de pensamento continua sendo de sua competência: a duração, a continuidade, o desaparecimento, o ressurgimento, a queda em catarata, a convergência, a afluência, a canalização, o reservatório, a descarga, a derivação – não acabaríamos nunca de brincar com a metáfora hidráulica, pois ela simboliza bem essa história das ideias, ciência dos fluidos [...] cabe aos historiadores descrever esses grandes feudos, esses panteões antagônicos, essas variações de fervor e essas transferências de ideias nas longas frequências cronológicas. Dar novamente sentido ao passado e tornar, por isso mesmo, o presente mais inteligível é a finalidade de uma história política, para qual a história das ideias traz, pelo ajuste de seus instrumentos a multiplicação de seus materiais, uma contribuição indispensável. (WINOCK, 2006, p.269, grifos nossos) No texto que ora citamos, a defesa de uma história das ideias ganha contornos de engajamento. Concordamos com o autor, todavia, é preciso salientar que não acreditamos que a diversificação de objetos a qual a história política é alvo venha necessariamente desqualificar uma história que ainda se ocupe dos “pináculos”. Não queremos fazer a defesa vazia dos estudos das grandes obras no sentido de produzir manuais de História das Ideias, ainda comuns na Universidade e com seu mérito. Mas entender que essas ideias dos “grandes autores”, como Maquiavel e Gramsci, analisados nesse trabalho, ainda podem fornecer muitas compreensões sobre o momento de emergência de conceitos políticos e como os mesmos foram utilizados. Se quisermos nos apropriar da metáfora hidráulica de Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 596 Winock podemos lançar luz sobre conceitos políticos e analisar seus “usos” e “desusos”. Ressignificações e apropriações. Mostrando a fluidez dessas ideias. História dos conceitos e Contextualismo linguístico: perspectivas de Reinhart Koselleck e Quentin Skinner Passemos a algumas considerações sobre a história dos conceitos, que pela importância que adquire para nós deve figurar em todo o desenrolar da pesquisa. Para uma história dos conceitos a obra de Reinhart Koselleck torna-se central. Essa metodologia tem “a proposta de historiar elementos relacionados com a linguagem como indicador de realidades mais globais ainda que a própria linguagem, ao mesmo tempo em que é também uma história intelectual” (ARÓSTEGUI, 2007, p.229). Seria, segundo Koselleck, um estudo da sociedade através da linguagem que emprega, fixando o foco nos conceitos, na forma de denominar elementos fundamentais da cultura ou do pensamento. (idem, p.22930). Cabe ressaltar aqui, como o faz Julio Aróstegui, que a utilização deste modelo historiográfico não é fácil e necessita de alto grau de especialização. (ibidem, p. 230). Colocase, dessa forma, uma dificuldade, contudo, não uma barreira para compreender o pensamento gramsciano a partir de seus desdobramentos sobre os conceitos maquiavelianos. Passando as proposições de Koselleck, queremos explicitar a importância e a motivação que nos faz recorrer à história dos conceitos. Para o historiador “sem conceitos comuns não pode haver uma sociedade e, sobretudo, não pode haver unidade de ação política. Por outro lado, os conceitos fundamentam-se em sistemas político-sociais que são, de longe, mais complexos do que faz supor sua compreensão como comunidades linguísticas organizadas sob determinados conceitos-chave” (KOSELLECK, 2006, p.98). Temos então tese e antítese que se tornam o maior desafio do historiador que se propõe a trabalhar com os conceitos. Essa advertência é no sentido de que compreendamos que nem todas as palavras são conceitos. Esses carregam significados que extrapolam o léxico. Acerca do caráter metodológico, entender os comentadores de Maquiavel ou a própria obra de Gramsci é tomar seus textos enquanto documentos e a partir deles traçar “uma exegese na crítica de fontes que decifre, particularmente, os conceitos neles contidos” (idem, p.99). Complementa Koselleck que “na exegese do texto, o interesse especial pelo emprego de conceitos político-sociais e a análise de suas significações ganham, portanto, Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 597 uma importância de caráter social e histórico” (ibidem, p.99). Ao construir um texto procuramos conceitos “adequados”, para exprimir uma ideia ou opinião. Em resumo, “a história dos conceitos é um método especializado da crítica de fontes que atenta para o emprego de termos relevantes do ponto de vista social e político e que analisa com particular empenho expressões fundamentais de conteúdo social ou político” (ibidem, p.101). Gostaríamos de insistir na capacidade e importância que o estudo dos conceitos adquire em nossa pesquisa. Ao adotá-lo como método, e juntamente a obra de Koselleck como referencial, acreditamos ser “a linguagem conceitual [...] um meio consistente para problematizar a capacidade de experiência e a dimensão teórica” (ibidem, p.110). O historiador alemão toca constantemente na questão da estrutura social. A história dos conceitos criaria mecanismos, segundo ele, para compreender a trama histórica dando respostas à história social. Ela aponta também para uma direção contextualista que há aproxima com as ideias elaboradas pelo contextualismo linguístico skkineariano que veremos a seguir, dessa forma: [...] os conflitos políticos e sociais do passado devem ser descobertos e interpretados através do horizonte conceitual que lhes é coetâneo e em termos dos usos linguísticos, mutuamente compartilhados e desempenhados pelos atores que participam desses conflitos. Desse modo o trabalho de explicação conceitual quer precisar as proposições passadas em seus termos próprios, tornando mais claras as “circunstâncias intencionais contemporâneas” em que foram formuladas. (JASMIN, 2006, p.31) Na última década, no Brasil, diversos esforços foram feitos para que a metodologia desenvolvida por Koselleck, entre outros, ganhasse espaço em nossas academias. Desse processo destacamos o trabalho do historiador Marcelo Jasmin, cujos artigos auxiliam esta pesquisa. Em um de seus textos, Jasmin chama a atenção para um caráter da história dos conceitos que vai além da análise pura e simples do conceito no tempo. Segundo ele, [...] a história conceitual [...] está interessada nos modos pelos quais as gerações e os intérpretes posteriores leram, alterando os seus significados, essas proposições políticas do passado. Neste registro é possível afirmar, rigorosamente, que os conceitos em si não têm história; mas também é possível afirmar, com rigor, que a sua recepção tem. (idem, p.32, grifos nossos) Interessamos-nos aqui, de maneira especial, pela alteração de significados que teriam ocorrido, hipótese por nós apresentada, dos conceitos maquiavelianos na obra de Gramsci. Insistiremos nesse ponto ainda à frente. O aporte metodológico se justifica pois, segundo Koselleck: “O registro de como os seus usos foram subsequentemente mantidos, alterados, Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 598 ou transformados, pode, propriamente, ser chamado de história dos conceitos” (ibidem, p.32). Diante da exposição sobre os critérios metodológicos a serem trabalhados por nós, colocamos uma última questão que nos auxiliará ainda mais na compreensão do nosso objeto de pesquisa. Para o historiador alemão, “toda historiografia se movimenta em dois níveis: ou ela examina fatos já articulados linguisticamente ou ela reconstrói fatos não articulados linguisticamente no passado [...] mas que podem ser, de alguma maneira, recuperados” (ibidem, p.116). Nosso trabalho se articula na primeira proposição, de examinar “fatos” já articulados, pensamentos construídos e que se tornam objeto historiográfico para nossa análise. Ainda dentro dessa discussão metodológica que estamos desenvolvendo, é importante destacar a contribuição da historiografia desenvolvida pelo historiador britânico Quentin Skinner. De início já adiantamos que o ponto central será debater como o contextualismo linguístico de Skinner se encaixa em nossa pesquisa. O historiador J.G.A. Pocock fornece uma explicação bastante simplificada sobre a teoria de Skinner: Era necessário, Skinner dizia, saber o que o autor estava fazendo: o que ele pretendia fazer (o significado para si) e o que ele tinha conseguido fazer (o significado para os outros). O ato e seu resultado haviam ocorrido em um contexto histórico, constituído em primeiro lugar pela linguagem do discurso em que o autor escrevera e fora lido. E, embora o ato de fala pudesse renovar e redirecionar essa linguagem, modificando-a, ela não deixava de estabelecer limites àquilo que o autor podia dizer, queria dizer e podia ser entendido como dizendo. (POCOCK, 2011, p.02, grifos no original) Skinner aponta para a necessidade de se evitar dois erros caros ao historiador: o anacronismo e a prolepse. Atribuir a autores do passado ideias e conceitos que eles não dispunham ou encará-los como portadores de referenciais que só viriam à luz posteriormente como se fosse possível antever o futuro. Nesse ponto destacamos erros comuns presentes em textos que se ocupam de Maquiavel ou da sua obra. Como destacado na introdução deste trabalho, existem inúmeros autores que atribuem a ele um sem número de ideias e opiniões, derivando do seu pensamento aforismos que o florentino jamais escrevera. Para Skinner, essencial é perceber e apreender o contexto no qual as linguagens foram articuladas. “Em 1969, Skinner publicou um artigo, ‘Meaning and Understanding in the History of Ideas’, que acabou transformando-se no manifesto de um novo método de interpretação da história do pensamento político” (ibidem, p.05). No desenvolvimento de suas hipóteses que vão sustentar as “Ideas in context”, Skinner é provocativo ao afirmar que: Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 599 “Demandar da história do pensamento uma solução para os nossos próprios problemas imediatos é perpetrar não só uma falácia metodológica, mas também algo como um erro moral” (ibidem, p.30) Busca-se então articular as ideias ao seu tempo de produção. Segundo ele, Nesta chave interpretativa, sendo a elaboração de um tratado de filosofia política e social uma ação, a questão de seu significado deveria se confundir com aquela da sua intenção, sendo esta apreendida no ato de fazer (in doing) a própria obra ou asserção. Daí a reivindicação metodológica mínima conformada na noção de que, de um autor não se pode afirmar que fez ou quis fazer, que disse ou quis dizer, algo que ele próprio não aceitaria como uma descrição razoável do que disse ou fez. (SKINNER apud JASMIN, 2006, p.28, grifos nossos) Podemos apontar nessa argumentação de Skinner nossa hipótese já colocada anteriormente. Sustentamos a argumentação de que ao analisar os Cadernos de Gramsci no tocante à alusão ao pensamento maquiaveliano não encontramos nele um mero intérprete. A situação política da Itália e a própria situação do pensador sardo, enquanto preso político do regime fascista, somados a urgência que demandava a escritura dos Cadernos colocava a obra carcerária do nosso autor na posição de manifesto, reflexões que extrapolavam uma mera revisão de autores. Retornaremos nessa questão mais adiante. Em resumo, Skinner identifica a importância do contexto no qual se desenvolvem as ideias, pois, “quando tentamos situar desse modo um texto em seu contexto adequado, não nos limitamos a fornecer um ‘quadro’ histórico para nossa interpretação: ingressamos já no próprio ato de interpretar” (SKINNER, 2006, p.13). A partir daqui, depois de explicitar todo nosso aporte teórico e metodológico que orienta esse trabalho sobre pensamento político gramsciano, pretendemos expor um pouco mais demoradamente o par conceitual que sustenta nossa hipótese. Trata-se de perceber a aproximação que Antonio Gramsci faz em sua obra do pensamento maquiaveliano enquanto apropriação e ressignificação. Para a elaboração dessa dissertação não nos aproximamos de forma significativa de teóricos que tenham constituído um corpus investigativo para os conceitos apresentados para analisar o pensamento político gramsciano. Procuramos nos deter na análise das obras, que aqui constitui nossa fonte de pesquisa. Poderíamos pensar então o conceito de representação, tão caro à história cultural desenvolvida por Roger Chartier na década de 1980. E também utilizado nos trabalhos que se orientam por uma história política renovada. Obviamente nossa intenção não se constitui na análise de nenhuma representação feita por grupos situados em determinado Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 600 tempo e espaço. Embora, os textos, os discursos não deixem de ser, simultaneamente, políticos e culturais. Segundo Chartier, “as representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam” (CHARTIER, 1990, p.17). O historiador está preocupado com em construir uma história da recepção e das práticas de leitura. Ele nos diz sobre, “[...] o interesse manifestado pelo processo por intermédio do qual é historicamente produzido um sentido e diferenciadamente construída uma significação” (idem, p.24). Essa significação pode ser compreendida, acreditamos, também enquanto ressignificação, até mesmo porque poderíamos inferir se toda significação não consiste em um novo significado, a partir de uma leitura que sempre renova o texto. Sendo assim, “tal tarefa cruza-se, de maneira bastante evidente, com a da hermenêutica, quando se esforça por compreender como é que um texto pode ‘aplicar-se’ à situação do leitor [...] como é que uma configuração narrativa pode corresponder a uma refiguração da própria experiência (ibidem, p.24). A proposta metodológica apresentada se detém também no conceito de apropriação, talvez a definição deste esteja mais próxima do nosso objeto. Chartier declara que “a apropriação, tal como a entendemos, tem por objetivo uma história social das interpretações, remetidas para as suas determinações fundamentais (que são sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas práticas específicas que as produzem” (ibidem, p.26). Chartier propõe o estudo do passado enquanto representação, prática e apropriação. Uma metodologia que procura, segundo ele, romper [...] coma a antiga ideia que dotada os textos e as obras de um sentido intrínseco, absoluto, único [...] dirige-se às práticas que, pluralmente, contraditoriamente, dão significado ao mundo. Daí a caracterização das práticas discursivas como produtoras de ordenamento, de afirmação de distâncias, de divisões; daí o reconhecimento das práticas de apropriação cultural como formas diferenciadas de interpretação [...]. (ibidem, p. 27-8, grifos nossos) Destacamos o trecho citado de Chartier para uma breve exposição: apontamos no texto gramsciano, no que tange ao pensamento maquiaveliano, algo que vai muito além de um mero objetivo interpretativo. Existem inúmeros trabalhos que tratam da relação entre Gramsci e Maquiavel, infelizmente ainda poucos deles traduzidos para a nossa língua. Passemos então ver como ocorre essa leitura maquiaveliana em Gramsci para que possamos sustentar que ele objetivava algo além de uma mera interpretação do florentino. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 601 Encerramos dessa forma essa breve comunicação. Estabelecendo as bases metodológicas para uma análise do pensamento político gramsciano a partir de sua leitura de outro grande autor, Nicolau Maquiavel. Referências bibliográficas ARÓSTEGUI, Julio. A pesquisa histórica: teoria e método. São Paulo: EDUSC, 2007. CARDOSO, Ciro F. & VAIFAS, Ronaldo. Domínios da História. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1997. CHARTIER, Roger. A História Cultural. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1990. JASMIN, Marcelo G. História dos Conceitos e Teoria política e social: referências preliminares. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 20, nº57. KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. POCOCK, J.G.A. Linguagens do ideário político. São Paulo: Edusp, 2003. RÉMOND, René. Uma História presente. In: ______. Por uma História Política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. ROSANVALLON, Pierre. Por Uma História Conceitual do Político (nota de trabalho). Revista Brasileira de História. São Paulo: Vol. 15, nº30, 1995. ROSANVALLON, Pierre. Por uma história do político. São Paulo: Alameda, 2010, SANTOS, Marcelo Monteiro dos. O século XVI e uma Itália possível na teoria de Maquiavel. Cabo Frio: Universidade Veiga de Almeida [biblioteca], 2009. SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 602 A literatura redescoberta: contribuições de Roger Chartier e Jean Starobinski para a análise de fontes literárias. Marcus Vinicius Santana Lima Mestrando em História Social pela USS/ Bolsista Capes marcusdmba@gamail.com Resumo: o artigo tentará evidenciar as maneiras pelas quais Roger Chartier, representante da História Cultural, e Jean Starobinski, filósofo e linguista, contribuem para uma postura renovada do historiador diante do texto literário enquanto fonte historiográfica. O primeiro através de um modelo explicativo historiográfico, e o segundo, por meio de uma proposta investigativa, compreendem, ambos, a escrita ficcional indissociável da conjuntura histórica em que foi materializada, assim como, maculada pelas práticas de escrita e leitura e, também, pela experiência social do leitor-intérprete que influem no processo de (re) significação do texto. Desta forma, tais contribuições alimentam o debate contemporâneo sobre a definição de História, as fontes permissíveis e as fronteiras de atuação. Palavras-chave: História, Literatura e Roger Chartier e Jean Starobinski. Abstract: the article attempts to highlight the ways in which Roger Chartier, Cultural History representative, and Jean Starobinski, philosopher and linguist, contribute to a renewed stance on the historian of the literary text as a source of historiography. The first through an explanatory model historiographical, and second, by means of a research proposal, comprises both the writing of the historical fictional inseparable in that was reflected as well as by practice stained reading and writing, and also by social experience of the reader-interpreter that influence the process of (re) signification of the text. Thus, such contributions fuel the current debate on the definition of history, the sources and the boundaries of permissible action. Keywords: History, Literature and Roger Chartier e Jean Starobinski. Esclarecer o que denominamos de redescoberta da literatura é em si um grande risco teórico que estamos dispostos a correr, uma vez que, implica na divisão teórica e temporal de perspectivas analíticas orientadas pela apropriação do texto literário. Ou seja, afirmar que a literatura como campo de conhecimento artístico autônomo foi revisado por teóricos específicos da história significa inferir que um determinado olhar sobre tal campo não mais contempla com devida produtividade a análise das fontes literárias e, por outro lado, que novas concepções de como interpretar a literatura estão em evidência. O objetivo deste artigo é mapear essa divisão no campo da História Cultural, demonstrando especialmente como as aproximações com a estrutura de pensamento de Roger Chartier e Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 603 algumas propostas metodológicas de Jean Starobinski estão no centro dessa divisão ou redescoberta do objeto literário. Parece-nos que mapear essa distinção entre perspectivas de análise do texto literário por historiadores é ao mesmo tempo, discorrer sobre algumas mudanças na história da historiografia, em suas maneiras de considerar qual o objeto da nossa ciência, como trabalhar-lho, escrevê-lo em narrativas, bem como em estabelecer os limites da pessoalidade entre pesquisador e pesquisa. Essas considerações se tornaram elementar no transcurso do século XX e chegou ao XXI ainda com estranhamentos, suspeitas, mas, indubitavelmente, com muitos ganhos teóricos e metodológicos. Falemos dos ganhos. A História se estabeleceu como disciplina com regras e técnicas próprias; o número de fontes históricas foi ampliado e a literatura como uma dessas fontes tornou-se cada vez mais útil para o pensamento histórico; balizamos o conceito de verdade retirando-o do nível absoluto e trouxemo-lo para a plausibilidade; aproximamo-nos de disciplinas vizinhas, algumas mais distantes que outras, como pressuposto de melhor compreendermos nossos paradigmas e, também, aumentar os instrumentos de investigação. Essas mudanças no campo da História empreendidas a partir dos annales nos permitiu praticar a História com mais clareza e objetividade, mais conscientes de nosso métier e da nossa posição acadêmica. Em contrapartida, houve estranhamento e suspeitas quanto à legitimidade de tantas alterações e do ritmo de aproximações com outras áreas do conhecimento.517 O questionamento sobre o estatuto da narrativa historiográfica é, em tempo, constantemente repensado quanto aos elementos que o constitui. Para alguns historiadores os tropos lingüísticos da escrita histórica não lhe são próprios, mas, emprestados da literatura o que levou à problematização da autonomia da História. Isto quer dizer que ainda pisamos sobre um chão de bastante relevo onde o conhecimento histórico oscila entre continuidades e rupturas. Acreditamos que Roger Chartier, especialmente, situa-se entre essas regularidades e descontinuidades no sentido de que avança na abertura de novos caminhos teóricos sem abster-se de regras metodológicas específicas da História. Esse avanço que na década de 1970 foi sistematizado nas noções teóricas de representações, práticas e apropriações tem sido continuamente renovado em sub-noções518 fundamentais para a interpretação da literatura como fonte, por exemplo. 517 Ver esse debate em REIS, José Carlos. História & Teoria: Historicismo, Modernidade, Temporalidade, Verdade. Rio de janeiro, FGV, 2003. 518 Referimo-nos às noções de materialidade textual e mobilidade do texto que definiremos melhor ao longo do artigo. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 604 Proporemos aqui avaliar esse avanço teórico de Roger Chartier mediante a análise de uma fonte literária específica, passagens da obra literária de Charles Bukowski, a partir dos conceitos fundamentais da estrutura de pensamento de Chartier. Ou seja, avaliaremos como a compreensão dos conceitos de representação, prática e apropriação podem auxiliar o historiador a estabelecer um olhar atento e rico sobre o texto literário. Em movimento posterior tentaremos o mesmo com os conceitos metodológicos de Jean Starobinski visando demonstrar como os dois teóricos partem de um entendimento comum e enriquecedor sobre o objeto literário e a postura do historiador-intérprete diante de sua fonte. É pertinente estabelecer como esses dois teóricos se afastam da visão simplista e diminutiva do objeto literário enquanto uma representação vazia da realidade onde não há proposta de ação dos escritores literários sobre seus leitores, comunidades, sociedades. Essa visão puramente mimética da literatura subordinada ao conhecimento histórico das fontes oficiais e “inquestionáveis” que teria o papel apenas de corroborar o já dito e escrito, reforçando-os, no melhor das hipóteses, não tem espaço nos apontamentos teóricos de Roger Chartier e Jean Starobinski. Porque se para esse último o texto literário tem uma autonomia própria que lhe confere determinada integridade aos abusos da apropriação do leitor-intérprete, para o historiador francês, também, o texto literário deve ser concebido por nós como uma prática de escrita inserida num tempo e espaço particular e que se reporta a um conjunto de representações elaboradas por grupos sociais. Façamos um breve passeio pelas definições das noções propostas por Chartier no estudo da literatura enquanto prática de escrita e vejamos como podemos aplicar tais noções em algumas passagens literárias do poeta e prosador norte americano Charles Bukowski. Comecemos pelo que consideramos o conceito chave de Chartier, o de representação. Ao defender a importância de estudos de história cultural que levem em conta a função das representações sociais na compreensão de problemas históricos, Roger Chartier assim as caracteriza: Por isso esta investigação sobre as representações supõe-nas como estando sempre colocadas num campo de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e dominação. As lutas de representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio. Ocupar-se dos conflitos de classificações ou de delimitações não é, portanto, afastar-se do social – como julgou durante muito tempo uma história de vistas demasiado curtas -, muito pelo contrário, consiste em localizar os pontos de afrontamento tanto mais decisivos quanto menos imediatamente materiais (CHARTIER, 1990: 17). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 605 As representações sociais assim compreendidas ganham forte valor analítico na medida em que são concebidas como interesses específicos de grupos sociais e que através delas podem constituir ou mesmo reforçar visões sobre a sociedade a que pertencem. O caráter combativo dessas representações ou como prefere Chartier, a luta das representações, torna-se clara quando investigamos as práticas culturais pelas quais essas representações tentam se constituir ou dominar. Daí ser necessário evidenciarmos o que Chartier denomina de práticas culturais: A definição de história cultural pode, nesse contexto, encontrar-se alterada. Por um lado, é preciso pensá-la como análise do processo de representação, isto é, das classificações e das exclusões que constituem, na sua diferença radical, as configurações sociais e conceptuais próprias de um tempo ou de um espaço. As estruturas do mundo social não são um dado objectivo, tal como o não são as categorias intelectuais e psicológicas: todas elas são historicamente produzidas por práticas articuladas (políticas, sociais, discursivas) que constroem as suas figuras. São estas demarcações, e os esquemas que as modelam, que constituem o objecto de uma história cultural levada a repensar completamente a relação tradicionalmente postulada entre o social, identificado com um real bem real, existindo por si próprio, e as representações, supostas como reflectindo-o ou dele desviando (CHARTIER, 1990: 27). O grifo é nosso. São as práticas culturais, portanto, que materializam as representações sociais elaboradas por grupos sociais e as tornam tão reais quanto as instituições nas quais se aplicam. Essa redefinição da história cultural apresentada por Chartier onde as representações e práticas ocupam o lugar privilegiado de investigação histórica é importantíssima para concebermos a materialidade dos esquemas de classificações e exclusões encontrados nas comunidades. Além dessas duas noções teóricas conceituadas pelo historiador francês outra é essencial para considerarmos a operação historiográfica de Roger Chartier. Trata-se do conceito de apropriação compreendido por esse teórico como uma história social das interpretações, ou, a maneira pela qual podemos identificar como um determinado conjunto de representações sociais é apropriado através de práticas culturais. É a noção de apropriação que nos permite investigar a ocorrência do processo de materialização das representações por suas práticas, descobrindo os desvios, as falhas, as nuanças e como os sentidos dessas mesmas representações sofrem alterações, rupturas e descontinuidades até suas respectivas materializações. Representação, prática e apropriação são, enfim, conceitos referentes a uma específica operação historiográfica que nos conduz a repensar os objetos de investigação característicos da história cultural sem desconectá-la da história social, na medida em que todas essas noções refletem processos sociais, grupos sociais, estratégias de organização Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 606 entre indivíduos, técnicas de trabalho, regras de escrita e leitura, esquemas de produção e tantos outros artifícios caracterizadores das relações sociais. Nesse sentido podemos pensar como a literatura, objeto de investigação no qual Roger Chartier vem se dedicando com intensidade nos últimos anos, é mais bem apreendida através dessa operação historiográfica em oposição ao trato puramente mimético que lhe foi dado desde sua retomada enquanto fonte histórica a partir da década de 1960. Para Chartier, existem dois caminhos pelos quais o historiador pode propor análises de fontes literárias: A primeira enfatiza o requisito de uma aproximação plenamente histórica dos textos. Para semelhante perspectiva é necessário compreender que nossa relação contemporânea com as obras e os gêneros não pode ser considerada nem como invariante nem como universal. Devemos romper com a atitude espontânea que supõe que todos os textos, todas as obras, todos os gêneros, foram compostos, publicados, lidos e recebidos segundos os critérios que caracterizam nossa própria relação com o escrito. Trata-se, portanto, de identificar histórica e morfologicamente as diferentes modalidades de inscrição e da transmissão dos discursos e, assim, de reconhecer a pluralidade das operações e dos atores implicados tanto na produção e publicação de qualquer texto, como nos efeitos produzidos pelas formas materiais dos discursos sobre a construção de seu sentido. Trata-se também de considerar o sentido dos textos como o resultado de uma negociação ou transações entre a invenção literária e os discursos ou práticas do mundo social que buscam, ao mesmo tempo, os materiais e matrizes da criação estética e as condições de sua possível compreensão (CHARTIER, 1999: 197). Por ora, fiquemos com essa forma de orientar os estudos históricos sobre o texto literário e vejamos como pode ser rica uma análise baseada em tal orientação. Proporemos a análise de passagens literárias do livro “Numa Fria” de Charles Bukowski para exemplificar nossa escolha. Bukowski foi um escritor de prosa e poesia, norte americano, nascido em 1920 e morto em 1994. É considerado representante da contracultura literária americana justamente pela forma de seus textos, características dos personagens e dos objetos literários que constituem sua obra, muitas vezes considerados elementos de uma literatura marginal. Escolheremos passagens de sua obra onde possamos identificar representações sociais, práticas culturais e a maneira pela qual o escritor se apropriou dessas noções para criar um sentido literário. Sentido literário que propõe uma ação, que busca intervir nos seus leitores e, assim, transgride o estado simplesmente mimético da literatura. Faremos essa análise sem esquecer, como argumenta Chartier, que nossa interpretação é sempre uma negociação de sentidos entre o que enxergamos na obra literária de Bukowski e a autonomia desta. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 607 Em um livro de contos publicado em 1983, Hot Water Music, Charles Bukowski manteve as características literárias que lhe deram notoriedade como escritor contracultural nos Estados Unidos da América, ou seja, é possível perceber as representações de uma América desiludida, enfraquecida, de indivíduos derrotados e trabalhadores mal remunerados; uma América da escória, dos perdedores, das prostitutas, dos bêbados, dos escritores fracassados e da fragilidade do american way of life. Esses elementos de composição literária que já vinham sendo utilizados por ele desde suas primeiras aparições em revistas underground e jornais alternativos até sua notoriedade como poeta e prosador estavam ali, mais uma vez, presente em outro trabalho. De fato, se pudermos falar de uma proposta literária ou sentido literário buscado por Charles Bukowski ao longo de sua trajetória de literato diríamos que essa proposta ou sentido foi o de evidenciar a existência humana em sua feição mais grotesca e visceral. Seus personagens são comumente compreendidos enquanto o contraponto da imagem dos sujeitos livres e bem sucedidos que foi projetada pela propaganda norte americana no pós-45.519 O apreço por personagens fracassados, sem perspectivas, castigados por seus patrões, e mesmo os espaços representados em sua obra bem diferentes daqueles onde o consumismo era o símbolo do progresso dão uma marca própria aos trabalhos de Bukowski e acentuam sua posição na sociedade americana. Crítico do modelo capitalista, que por vezes aparece sob a alcunha de sistema nas suas narrativas, Bukowski compreendeu as representações sociais que circulavam em seu tempo histórico e apropriou-se delas ao passo que as ressignificava. Ou seja, ao apropriarse de uma determinada forma das representações em jogo na estrutura social sobre a qual atuou não só a fez através de uma prática de escrita literária específica, mas, também, gerou novas representações sociais que intervieram nos leitores e nos grupos sociais que as identificavam. No conto intitulado “Mercadoria quebrada”, Bukowski conta a história de Frank, embalador de mercadoria de uma empresa de Los Angeles: Frank entrou no trânsito da auto-estrada. Era embalador da American Clock Company. Há seis anos já. Nunca ficara seis anos num emprego e agora o filho da puta estava realmente acabando com ele. Mas aos quarenta e dois anos, sem educação superior e com o desemprego chegando a dez por cento, não tinha muita escolha. Era seu décimo quinto ou décimo sexto emprego, e todos tinham sido terríveis (BUKOWSKI, 2008: 203). 519 Um estudo dos Estados Unidos da América durante a Guerra Fria pode ser encontrado em FARIA, Ricardo de Moura e MIRANDA, Mônica Liz; Da Guerra Fria à Nova Ordem Mundial. São Paulo: Contexto, 2003. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 608 Logo no início do conto o escritor contextualiza a vida do personagem e os prováveis elementos subjetivos que constituem sua personalidade, evidenciando sua posição social e a desilusão com as perspectivas de um emprego melhor. No decorrer do conto o literato instaura conflitos entre o personagem principal, Frank, a esposa Fran e seu supervisor, Meyers, o que denota claramente a visão de Bukowski sobre o espaço privado da casa e o espaço público do trabalho e suas relações. Após apresentar o personagem principal do conto é desta forma que ele conduz a narrativa: Frank estava cansado e queria chegar em casa e tomar uma cerveja. Manobrou o Fusca para entrar na pista de alta velocidade. Quando conseguiu, não estava mais tão certo de que tinha pressa de chegar em casa. Fran estaria à espera. Quatro anos já. Ele sabia o que esperava. Fran mal podia esperar o primeiro tiro verbal. Ele sempre esperava o primeiro tiro dela. Nossa, ela não podia esperar para lhe dar a porrada. Depois porrada, porrada, porrada... Frank sabia que era um perdedor. Não precisava que Fran lhe lembrasse desse fato, o ilustrasse. Seria de pensar que duas pessoas que vivem juntas ajudariam uma à outra. Mas não, caiam no hábito da crítica. Ele a criticava, ela o criticava. Eram perdedores os dois. Agora só lhes restava ver quem podia ser mais sarcástico sobre isso (Idem). Essa tensão que Bukowski descreve entre o personagem Frank e sua esposa funciona como um contraponto ao ideal da família enquanto instituição de laços sociais bem definidos e compensadores. Ao invés do amor o escritor propõe o ódio, no lugar da união o conflito. A estética literária bukowskiana baseada na figura do perdedor ou do fracassado aflora na criação do autor e demonstra sua capacidade de intervir, de estabelecer uma ação escrita sobre as representações sociais contemporâneas, por exemplo, aquelas contidas no american dream. Se Frank não encontra paz ou felicidade dentro da própria casa, ideais caros à propaganda oficial dos E.U.A durante a guerra fria, no mundo do trabalho não é diferente, principalmente quando se é embalador: E aquele filho da puta, Meyers. Ele voltara ao departamento de remessas dez minutos antes da hora da saída e ficara lá parado. - Frank. - Sim. - Está pondo rótulos de FRÁGIL em todas as embalagens? - Estou. - Está embalando com cuidado? - Estou. - Estamos recebendo um número cada vez maior de reclamações de clientes sobre mercadorias quebradas. - Acho que os acidentes em trânsito acontecem. - Tem certeza de que está embalando os produtos corretamente? - Tenho. - Talvez a gente devesse experimentar empresas de caminhão diferentes. - São todas iguais. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 609 - Bem, quero ver uma melhora. Menos coisas quebradas. - Sim, senhor. Meyers outrora controlara toda a American Clock Company, mas a bebida e um mau casamento o tinham arruinado. Tivera de vender a maioria de suas ações, e agora era apenas administrador assistente. Deixara a bebida, e em conseqüência vivia sempre irritável. Meyers estava continuamente tentando provocar Frank para deixá-lo furioso. Aí teria desculpa para despedi-lo. Não havia nada pior que um bêbado reformado e um convertido religioso, e Meyers era as duas coisas juntos... (BUKOWSKI, 2008: 203-204). Frank é, portanto, a imagem representativa do individuo norte americano moderno visto pelo prisma de um escritor atento às estratégias de dominação, ou seja, às representações sociais dominantes que podiam ser facilmente detectadas no conjunto das proposições reunidas em torno do american way of life. Na medida em que utiliza a prática cultural literária para estabelecer outros olhares sobre as instituições e os espaços sociais, Bukowski não só ressignifica aquelas proposições como entra no jogo das lutas de representações, apontadas por Chartier. Esse caráter combativo perpassa por vários outros trabalhos do literato norte americano e acena para a riqueza das fontes literárias na investigação histórica. Utilizamos, entretanto, apenas um caminho possível no trato de fontes literárias entre as duas possibilidades afirmadas por Roger Chartier. Olhar, sorrateiramente, para a segunda proposta pode, ao menos, nos inquietar sobre outra variedade analítica. Para o historiador francês há outro viés teórico-metodológico capaz de devolver à literatura sua riqueza histórica enquanto fonte e objeto de investigação. Trata-se de evidenciar como os escritores literários criam narrativas fazendo-nos refletir sobre as formas de produção do próprio texto ficcional. Perceber nas entrelinhas da ficção os processos de fabricação ou feitura das obras literárias em si é desvendar os elementos, regras e técnicas utilizadas na materialização do texto. Segundo Chartier, literatos como Jorge Luis Borges e Cervantes nos permitem avaliar a fragilidade da autoria e a instabilidade do sentido como características da produção de textos. De acordo com essa postura teórica que procura esclarecer os parâmetros históricos de elaboração e materialização dos livros, por exemplo, a busca pela originalidade do texto não é mais tão importante quanto desvendar os processos que regem em várias etapas a fabricação do escrito até sua forma final. É uma postura atenta às práticas culturais de escrita, edição e recepção dos textos, sempre particularizadas. É, também, um viés teórico que permite avaliar a mobilidade das obras literárias nos processos de tradução e reedição por outros atores que não aqueles de sua primeira publicação. De fato, essa proposta de Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 610 Roger Chartier articulada a sociologia dos textos, aos estudos de cultura escrita e aos conceitos de representações, práticas e apropriações instaurou um novo momento para a literatura entre os historiadores, dando-lhe nova roupagem e opções investigativas de grande potencial. É nessa condição que acreditamos ser Roger Chartier importantíssimo para a continuidade dos estudos sobre a literatura. Marcar sua posição na historiografia é reconhecer a dinamicidade de seu trabalho que inova sem se abster das regras de método ensinadas pelas gerações anteriores. Contudo, há ainda que considerar algumas outras noções teóricas e metodológicas pertinentes à interpretação das fontes literárias. Nesse sentido, em artigo célebre Jean Starobinski propõe ao historiador-leitor interessado na interpretação de textos literários que ele leve em consideração durante todo o processo investigativo algumas noções necessárias para tal tipo de análise. A primeira delas é a de que todo texto literário é formado a partir de uma tensão, chamada de dualidade necessária. Esse duplo universo constituinte do discurso literário é justamente a relação tênue e viva entre os aspectos próprios do discurso postos ali pelo seu autor, mas não só por ele como bem lembra Chartier, e o olhar do intérprete capaz de decodificar as influências externas ao discurso que ajudam na criação do sentido da obra. Para o filósofo suíço “a análise interna das idéias e das palavras na obra nada lucra em ignorar a sua proveniência e a sua harmonia externas” (STAROBINSKI, 1970: 134-135). Para Starobinski, a interpretação da obra literária deve ser compreendida em sua feição restituidora capaz de reconhecer as intenções daquele discurso. Porém, uma atividade que restitui só o faz mediante a objetividade dos questionamentos previamente estabelecidos pelo leitor intérprete para que não incorra numa subjetividade sem freios ou vazia, insuficiente em estabelecer de forma clara o sentido contido no interior do texto literário ou mesmo o que se propôs a analisar. Essa noção objetiva defendida por Jean Starobinski lembra-nos a advertência de Roger Chartier sobre o rigor da pesquisa histórica, mantido através de regras e técnicas específicas de nossa área de conhecimento. O historiador deve saber o que quer ao debruçar-se sobre o objeto de investigação para que estabeleça as perguntas certas e o caminho a ser percorrido: Quero sobretudo lembrar que a energia da interrogação, a inventividade desenvolvida na própria investigação restituidora, devem ser mantidas sem vacilação, desde que se queira manter viva a relação crítica. É pela energia de nossa intenção pessoal que o objeto (a obra) é chamada à presença. Que sobra para a crítica, se a nossa interrogação é tímida, se nossa linguagem é estereotipada? Se nossos conceitos são inseguros? O próprio objeto torna-se Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 611 banal e se enfraquece, por falta de uma vigorosa solicitação (STAROBINSKI, 1970: 136). Em conjunto, a análise restituidora do discurso literário ao reconhecer seu duplo universo constituinte a partir de proposições objetivas deverá permitir ao historiador leitor e intérprete reconhecer o sentido do discurso em sua autonomia. Quer dizer, toda análise bem projetada e respeitadora admite a autonomia textual de uma determinada obra em suas intenções mesmo que possamos sempre inaugurar novas reflexões sobre a mesma. A atualização de um texto literário é sempre possível mediante o limite que a autonomia desse mesmo texto impõe, da mesma forma que nos lembrou Chartier sobre a negociação prevista no jogo interpretativo da literatura. É muito provável que existam outras propostas de avaliar a relação entre história e literatura, entretanto, o propósito deste artigo era o de mapear e considerar duas visões atualmente recorrentes nessa relação. Duas propostas de pensamento que acreditamos serem complementares e pertinentes ao historiador interessado pelo universo literário e sua importância na construção do conhecimento histórico. Referências Bibliográficas BUKOWSKI, Charles. Numa fria. Porto Alegre: L&PM, 2008. CHARTIER, ROGER. A História cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil S.A., 1990. CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. CHARTIER, Roger. Literatura e História. Revista Topoi. Rio de Janeiro, n° 01, janeirodezembro, 2000. Disponível em: www.revistatopoi.org/numeros_anteriores/topoi01/01_debate01.pdf ROCHA, João Cezar de Castro (org.). Roger Chartier – a força das representações: história e ficção. Chapecó: Argos, 2011. STAROBINSKI, Jean. A literatura: o texto e seu intérprete. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (orgs.). História: novas abordagens. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976. SOUNES, Howard. Charles Bukowski: vida e loucuras de um velho safado. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2000. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 612 A Lei da Boa Razão (1769) e a Jurisprudence: uma análise do Iluminismo por meio das Culturas Políticas Sofia Alves Valle Ornelas Doutoranda em História pela UFMG sofiavalle@bol.com.br Resumo: O presente artigo consiste em uma breve análise do direito português setecentista a partir da Lei da Boa Razão de 1769 e sua possível conexão com a gravura abaixo disposta de Clément Pierre Marrilier (1740-1808) acerca da Jusrisprudência no contexto intelectual do Iluminismo. Utilizaremos ainda nesta reflexão alguns conceitos do quadro teórico culturalista desenvolvido por Antônio Manuel Hespanha e pela revisão política historiográfica francesa iniciada nos trabalhos de René Remond. Por fim, ressaltamos que o artigo também pretende demonstrar que a compreensão histórica de uma Lei se estende muito além do texto legal ou do conteúdo jurídico que expressa, pois a mesma atravessa as diversas manifestações culturais de um tempo e de uma época. Palavras chave: Iluminismo, jurisprudência, Pombal. Abstract: This paper is a brief analysis of eighteenth-century Portuguese law from the Law of Good Reason (1769) and its possible connection to the picture below arranged Pierre Clément Marrilier (1740-1808) about Jusrisprudence from the intellectual context of the Enlightenment. This reflection will also use some concepts of the theoretical framework developed by culturalist Antonio Manuel Hespanha and the policy review initiated in French historiographical works of Rene Remond. Finally, we note that the article also aims to demonstrate that the historical understanding of an act extends far beyond the legal text or content expressed legal, because it goes through the various cultural manifestations of a time and a season. Keywords: Enlightenment, jurisprudence, Pombal. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 613 (http://bn.pt/purl.pt/4349/1/, acessado em 06 de dezembro de 2010.) A gravura acima está arquivada na Biblioteca Nacional de Portugal em Lisboa e disponível on-line pelo site dessa instituição. Trata-se de uma imagem produzida entre 17701800 pelo artista francês Clément Pierre Marrilier (1740-1808). Foi intitulada La Jurisprudence. Existem várias outras gravuras de Marrilier digitalizadas pela Biblioteca Nacional portuguesa, mas a Jurisprudence nos chamou a atenção porque data da mesma década em que foi publicada a Lei da Boa Razão (1769) no governo de Dom José I. A gravura apresenta como tema central a ciência do direito, ou seja, a Jurisprudência. A obra pode ser interpretada de inúmeras maneiras, mas nos interessa o sentido jurídico que ela carrega, bem como de que maneira pode ser associada à Lei da Boa Razão – lei essa responsável por toda uma modernização no direito português. O presente artigo consiste em uma breve análise do direito português setecentista a partir da Lei da Boa Razão de 1769 e sua possível conexão com a gravura acima de Clément Pierre Marrilier, uma vez que ambas foram elaboradas na época do auge do movimento intelectual conhecido como Ilumismo. Em nossa concepção, a gravura e a Lei revelam, de alguma forma, como as Luzes foram recebidas nas terras lusitanas. Tal relação também pretende demonstrar que a compreensão histórica de uma Lei se estende muito além do texto legal ou do conteúdo jurídico que expressa, pois a mesma atravessa as diversas manifestações culturais de um tempo e de uma época. Tratado como um objeto que espelhava, simplesmente, a história política dos Estados e dos seus heróis, o direito e suas instituições não são mais estudados dessa Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 614 maneira pelos historiadores520. Como posto por Arno Wheling (2004), não compete ao historiador do direito uma mera reconstrução histórica das instituições jurídicas ou legais de certo período, mas deve-se buscar uma compreensão das mesmas a partir do chamado “direito vivo”, ou seja, de um direito que pode representar mais do que a ordem legal do Estado. O direito, enquanto ação histórica produzida pelo homem, faz parte essencial de uma determinada cultura no tempo. Dessa forma, os valores sociais e econômicos, os símbolos políticos, as crenças, os ideais de uma época também o perpassam. O direito pode ser visto sob este prisma cultural, no sentido de buscar seus significados enquanto fenômeno social produzido pela cultura humana. Assim sendo, o direito, pensado como manifestação cultural da história política, pode ser compreendido a partir das Culturas Políticas521. Por isso, utilizaremos alguns conceitos do quadro teórico culturalista, em uma perspectiva ligada aos estudos culturais sobre o direito desenvolvidos por Antônio Manuel Hespanha (1995) e pela revisão política historiográfica francesa iniciada nos trabalhos de René Remond (1996), Serge Berstein e Jean François Sirinelli. No presente artigo, entendemos o conceito de Culturas Políticas como um “(...) conjunto de valores, tradições, práticas e representações políticas partilhado por determinado grupo humano, que expressa uma identidade coletiva e fornece leituras comuns do passado, assim como fornece inspiração para projetos políticos direcionados ao futuro.” (MOTTA, 2009, p. 21) Nessa perspectiva, trabalharemos o tema do Iluminismo como uma cultura política desenvolvida ao longo do século XVIII. René Rémond, organizador da obra “Por uma História Política” (2003), deflagrou verdadeira revolução na história política no final do século XX522. Logo no primeiro capítulo da obra, Rémond (2003) reconheceu as fragilidades do conhecimento histórico político produzido até, especialmente, as condenações teóricas feitas pela Nova História. A famosa escola historiográfica francesa denunciou a história política como sendo meramente “factual, subjetivista, psicologizante, idealista” (RÉMOND, 2003, p. 18), ou seja, com todos os defeitos que a tornavam “elitista e aristocrática” (RÉMOND, 2003, p. 18). Sob 520 Antônio Emanuel Hespanha (1995), José Reinaldo de Lima Lopes (2002) e Arno Wheling (2004) podem ser apontados como autores que debatem as novas perspectivas culturais da história do direito. 521 Como posto por Rodrigo Patto (2009), a categoria de Culturas Políticas é discutível e merece inúmeros cuidados ao ser trabalhada pelo historiador. No entanto, entendemos ser possível a aplicação desta no artigo em questão. 522 Rémond (2006) reconheceu em sua obra que outros historiadores trabalharam com essa nova perspectiva sobre a história política muito antes dele. Rodrigo Patto (2009) acredita que desde Alexis de Tocqueville, em 1835, temos trabalhos inspirados pela perspectiva das Culturas Políticas. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 615 essa perspectiva, a história política somente serviria de instrumento para enganar os leitores e enaltecer o Estado (RÉMOND, 2003, p. 20). A Nova História consolidou todas essas críticas ao designar a política como mera “espuma do oceano” dos objetos de estudos dos historiadores. Das duras discussões sofridas pela tradicional história política, Rémond (2003) sugeriu outro olhar reflexivo sobre o político. Reconheceu que a história política não poderia ser a mesma que exaltava os heróis e os Estados e percebeu a necessidade de transformação na construção do objeto político. Além do mais, o próprio Estado Ocidental desenvolvido no decorrer do século XX não era mais o mesmo, pois, provinha de uma origem muito mais participativa. O cidadão nunca esteve tão presente na elaboração dos governos ocidentais contemporâneos. A história política não poderia ignorar as massas523, a democracia vigente na maior parte do Ocidente e que a nova ação política era também coletiva. O novo olhar político contemplava, então, novos atores, novas experiências políticas ou jurídicas que iam muito além do enaltecimento do Estado e dos fatos políticos efêmeros, elitistas. A renovação da história política também se deveu ao encontro da mesma com outras disciplinas como a Antropologia e a Psicologia. As análises estatísticas e quantitativas provindas das Ciências Sociais524 começaram também a ser utilizadas para se repensar o conhecimento histórico político. A complementaridade das áreas só poderia ajudar essa renovação da história política, na medida em que os horizontes da mesma foram em muito ampliados. As conseqüências dessa renovação foram a busca de um conhecimento histórico político mais aprofundado, que poderia ser trabalhado no âmbito da longa duração e que sofre influência dos fenômenos culturais da sociedade. Os historiadores políticos foram, definitivamente, seduzidos por essa nova proposta que passou a ser intitulada como Culturas Políticas. Após essa brevíssima exposição metodológica, retomamos a discussão central desse artigo que diz respeito ao direito português que vigorou ao longo do século XVIII e foi 523 Edward Thompson, historiador marxista, reconheceu a importância dos estudos históricos e culturais e deu novo sentido às massas operárias (MOTTA, 2009, p. 26). 524 Nas décadas de 50, 60, os cientistas sociais norte-americanos Gabriel Almond e Sidney Verba “criaram uma complexa tipologia para enquadrar as diferenças formas de cultura política, culminando num esquema num esquema que as resumia em três tipos básicos: cultura política paroquial, cultura política de sujeição e cultura política participativa (...)” (MOTTA, 2009, p.17), no sentido de reestruturarem suas pesquisas acerca do político. Seus estudos foram considerados uma espécie de defesa do etnocentrismo, mas as construções teóricas utilizadas pelos mesmos foram apropriadas pelos historiadores políticos ao longo do século XX. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 616 modificado, especialmente, por meio da Lei da Boa Razão que fora concebida a partir de idéias advindas do Iluminismo. Voltemos, também, à gravura por meio da Jurisprudence. A Lei da Boa Razão de 1769 se inseriu no conjunto de medidas consideradas ilustradas tomadas por Sebastião Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, entre 1750-1777. Pombal pretendia modernizar Portugal e, entre outras coisas, precisava reformular o direito português e o ensino jurídico. Antes dos estatutos de Coimbra serem propriamente revistos, a Lei da Boa Razão enunciava que o direito moderno já estava chegando a Portugal. O Iluminismo foi o movimento intelectual mais importante do século XVIII no continente europeu. Apesar das enormes divergências entre seus autores525, o conjunto de idéias iluministas pode ser considerado como responsável pela construção de uma autonomia racional frente a todos os dogmatismos (FLÓREZ MIGUEL, 2008). Na concepção iluminista, não haveria de se considerar uma única verdade ou autoridade sobre o conhecimento do mundo ou sobre o homem. O homem, no exercício racional, livre de qualquer autoridade, deveria construir novas perspectivas sobre si mesmo e sobre a ciência. O Iluminismo foi tão transformador das mentalidades que possibilitou a reavaliação de todos os âmbitos da vida humana, inclusive do próprio direito (CASSIRER, 1997). Os iluministas, não de maneira uniforme, apregoavam a valorização da razão, questionavam a supremacia absoluta do monarca e a autoridade da Igreja Católica, incentivavam as ciências na elaboração do conhecimento, buscavam o desenvolvimento econômico de diversas maneiras e ainda procuravam encontrar na tolerância o caminho para o bem comum. Em Portugal, o Reformismo Ilustrado inaugurado pelo Marquês de Pombal pode ser visto como uma “incorporação seletiva das idéias das Luzes.” (VILLALTA, 2002, p. 17) Para o Pombal ilustrado, por exemplo, o rei continuava em sua posição inatingível e os direitos do homem postulados pelo movimento não foram ainda devidamente protegidos. O combate expresso aos jesuítas também fez parte da política ilustrada típica de Pombal. Na área do direito, o Marquês de Pombal pretendia racionalizar a ciência jurídica. A racionalização do direito significava aderir a uma nova concepção de direito natural moderno (LOPES, 2002, p. 228) a partir dos ilustrados jusnaturalistas pertencente à Escola 525 Não existe uma plena uniformidade de pensamento entre os teóricos iluministas. Inclusive, existem sérias divergências entre eles. Por isso, consideramos que houve autores mais radicais que outros dentro do mesmo Iluminismo. Em Portugal, o Iluminismo pode ser considerado mais conservador. Sobre essa divergência, ver a obra de Jonathan Israel (2009). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 617 Moderna de Direito Natural, como Grotius, Pufendorf, Heinécio e Cujácio (FALCON, 1982). A Escola Jusnaturalista Moderna526 contribuiu com o movimento iluminista, na medida em que seus membros realizaram as principais discussões a respeito do direito moderno, sob as mesmas questões que orientaram outros pensadores iluministas, ou seja, a ação contra o “costume, a tradição e a autoridade.” (CASSIRRER, 1997, p. 315) Daí o direito natural moderno ter sido uma conquista também relacionada ao movimento iluminista, pois era baseado na razão, no homem e independente da intervenção divina. Essa necessária relação entre o direito natural e a intervenção de Deus passou a ser questionada, especialmente, pela Escola Moderna de Direito Natural, em fins do século XVII. Seu fundador, o holandês Hugo Grotius, inaugurou uma nova fase na teoria jusnaturalista ao desvincular o direito natural da atuação do Criador. Estava sendo feita a laicização do direito natural e dado o pontapé inicial para a sua maior racionalização. A Escola Moderna de Direito Natural, além de estabelecer uma base racional para o direito natural, pretendia organizar o direito por meio de um sistema racional-dedutivo. Partiu, então, dessa escola a idéia moderna de codificação e sistematização do direito que se efetivaria por completo nos séculos seguintes. Pombal ainda reestruturou o currículo da Faculdade das Leis de Coimbra, no sentido de adaptá-lo aos temas jurídicos da época, bem como afastar do ensino universitário a presença dominante dos jesuítas. A Faculdade das Leis de Coimbra, após a reforma pombalina, proibiu o uso do tradicional método escolástico e limitou o ensino do direito romano, para que fosse dada maior ênfase ao direito nacional. No trono desenhado por Marrilier, o encontramos vazio e apenas com uma faixa onde se pode ler a palavra Jurisprudence que intitula a obra. Os romanos antigos fundaram a ciência do direito no Ocidente e a definiram como a ciência da prudência, ou seja, a Jurisprudência. Podemos perceber que, de alguma forma, a imagem acima consagra a ciência do direito em um trono. Não há rei no trono e nem mesmo Deus, apenas a Jurisprudência. Nessa parte, acreditamos que idéias das Luzes já podem ser notadas, pois a gravura apresenta uma espécie de exaltação da ciência no trono. Ciência ilustrada que significava um conhecimento mais empírico, racional. Também, para os iluministas, a ciência impulsionava o homem ao progresso. A gravura parece partilhar desse ideal, no 526 Não existe uma uniformidade total de pensamento jurídico na Escola Jusnaturalista Moderna. Mesmo defendendo o direito racional, seus autores tiveram idéias bastante diferentes sobre a ciência do direito e a política moderna. Sobre essa ponderação ver José Reinaldo de Lima Lopes (2003). Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 618 sentido de também ter colocado a ciência do direito, a Jurisprudência, em um enorme trono decorado por louros de oliveira527. Como dito, a Lei da Boa Razão fez parte das transformações ilustradas sobre o direito português no século XVIII. Anos antes da reforma de Coimbra, a Boa Razão já anunciava as Luzes. Como nossa gravura, logo no título deste texto legal, não se tratava mais da razão escolástica, mas da razão ilustrada. Primeiramente, a Boa Razão significava a prevalência da lei geral sobre os costumes – o que impediria a legitimação de vários privilégios costumeiros, outrora concedidos aos homens do Reino. Em vista desse maior controle sobre os acordos e práticas consuetudinárias, também o poder local de negociação frente à Coroa foi diminuído, pois todo o campo jurídico de barganha estaria submetido ao estrito cumprimento do direito proveniente da lei formal. Sobre o costume acima da lei, dispunha o texto: (...) que o costume deve ser somente o que a mesma Lei qualifica nas palavras – longamente usado, e tal, que por direito se deva guardar – cujas palavras mando; (...) que seja conforme às mesmas boas razões, que deixo determinado que constituem o espírito de minha Leis; de não ser a elas contrário e coisa alguma, e de ser tão antigo, que exceda o tempo de cem anos. (LEI DA BOA RAZÃO, 2006: 161-169). Para Hespanha (1995), a maior aplicação do costume jurídico durante todo o Antigo Regime português favorecia a troca de privilégios entre o monarca e seus súditos. Pela justificativa costumeira, os vassalos conseguiam, facilmente, o atendimento de seus pedidos junto ao soberano sempre misericordioso e justo. O costume acabava por estabelecer uma lei particular capaz de fundamentar prerrogativas e privilégios dos súditos em relação ao domínio real. A Lei da Boa Razão não permitiria mais essas estratégias políticas legitimadas pelo costume junto ao rei. Somente por meio da lei geral, expressão da racionalidade, os atos dos súditos e do soberano seriam considerados legítimos. Notório salientar, ainda, que a medida de defesa da lei sobre o costume favorecia a política centralizadora de Pombal nas mãos do rei português. A separação entre as leis pátrias e canônicas também esteve presente na Lei da Boa Razão. O Marquês de Pombal defendia a supremacia do Rei frente à Igreja e a separação das esferas cível da eclesiástica. Nesse sentido, prescrevia a Lei: (...). Deixando-se os referidos textos de Direito Canônico para os Ministros, e Consistórios Eclesiásticos os observarem (nos seus devidos e competentes 527 O Iluminismo resgatou alguns elementos da cultura greco-romana (CASSIRER, 1997). Acreditamos que os ramos da oliveira, que ornam o trono da Jurisprudência, fazem uma alusão ao mundo antigo. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 619 termos) nas decisões da sua inspeção; e seguindo somente os meus Tribunais, e Magistrados Seculares nas matérias temporais da sua competência as Leis Pátrias, e subsidiárias, e os louváveis costumes, e estilos legitimamente estabelecidos na forma que por esta Lei tenho determinado. (LEI DA BOA RAZÃO, 2006: 161-169). À medida que as Justiças da Igreja e do Estado foram sendo separadas, o direito foi consolidando seu processo de laicização. A Lei da Boa Razão determinou que as questões da Igreja fossem decididas somente por ela mesma. Além do mais, diferentemente das Ordenações Filipinas (Livro III, Título LXIV) em que os pecados deveriam ser julgados pela lei canônica, a Lei da Boa Razão utilizou a terminologia delitos de ordem eclesiástica para se referir à Justiça Canônica. Percebemos, então, a maior distinção entre os espaços jurisdicionais da Igreja e do monarca e a nova idéia jurídica trazida pela Boa Razão de que o pecado, pertencente ao foro íntimo, não poderia ser alvo de julgamento. A Lei de 1769 também restringiu o uso de doutrinas e do direito romano nas sentenças do Reino. Ao que tudo indica, tratava-se de um afastamento das fontes doutrinárias portuguesas mais usuais desde a Idade Média. Ao insistir na aplicação da lei nacional, Pombal estaria adaptando o direito português aos novos parâmetros da ciência jurídica que preconizava a elaboração de códigos escritos racionais e dedutivos: (...) tanto para que nas alegações e decisões se vão pondo em esquecimento as Leis Pátrias, fazendo-se uso somente da dos Romanos. (...) Mando por uma parte, que debaixo das penas ao diante declaradas se não possa fazer uso nas ditas declarações, e Decisões de Textos, ou de autoridades de alguns Escritores, enquanto houver ordenações do reino, Leis Pátrias, e usos dos meus Reinos legitimamente (...). (LEI DA BOA RAZÃO, 2006: 161-169). Na imagem da Jurisprudence, quem escreve as leis é um anjo. Primeiro, notamos que o costume nunca é escrito e somente a lei pode assim o ser. A Lei da Boa Razão, como a gravura, também valorizava a lei pátria escrita em detrimento ao costume. Consideramos que os iluministas não defendiam somente idéias laicas e a presença do anjo na gravura, não significava, necessariamente, afastamento das Luzes. A aparente contradição pode ser vista como relativa, na medida em que a maior parte da gravura apresenta aspectos mais ligados às Luzes. O anjo que elabora as leis também não as escreve baseado em inspiração divina ou qualquer coisa do tipo. O anjo, como apregoado pelos iluministas, fazia as leis baseado nos livros. O conhecimento não poderia se submeter mais à superstição ou algo que fosse ligado à fé. O direito precisava da base sólida racional que poderia ser organizada por meio dos livros ilustrados. Lembramos da imagem pintada de Pombal (XI retrato de Pombal, atribuído a Jonas de Salitre, em 1769) em que o Primeiro Ministro aparece na frente de uma Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 620 biblioteca, escrevendo em um papel. O governante ilustrado precisava dos livros para administrar o seu país. Os iluministas foram entusiastas da educação que poderia levar o homem a se esclarecer e que deveria ser orientada por meio de livros, dos romances ilustrados. Ressaltamos ainda o caráter ilustrado da Lei de 1769 por ter impedido o uso indiscriminado de interpretações doutrinárias pelos juízes. Está prescrito logo no preâmbulo deste texto legal que a Justiça de Portugal estaria se precavendo das “interpretações abusivas que ofendem a majestade das leis”. A autoridade doutrinária foi questionada pelos iluministas, uma vez que não havia uma verdade advinda, simplesmente, dos nomes consagrados pelo tempo. No entendimento dos iluministas, qualquer pensamento era passível de crítica e de reprovação. A Lei da Boa Razão, notoriamente esclarecida, não precisava mais das glosas de Bártolo ou Arcúsio, bastava a razão para a compreensão e aplicação do direito. Por fim, a gravura possui uma frase em francês: “O jovem homem defende a viúva e o órfão”. O jovem homem pode ser até o anjo. O que nos intriga é que Deus não mais protegia seus frágeis órfãos ou viúvas como dispõe, por exemplo, o texto bíblico. Também não caberia ao rei tal proteção. Ao que nos parece, a lei seria o instrumento legítimo dessa defesa. O anjo estava a escrever as leis, com base em uma ciência ilustrada. Os iluministas apregoavam o limite ao poder real de diversas formas. Mas, era à lei que caberia esse papel limitador. Também os direitos do homem e do cidadão foram garantidos pela lei. Assim sendo, a frase em prol do amparo ao órfão e a viúva pode ser vista como participante do ideal iluminista de defesa dos direitos do homem por meio de um Estado de direito. Nosso artigo ousou pensar o direito português por meio de uma única Lei e uma gravura francesa arquivada na Biblioteca Nacional. O espaço de nossa reflexão foi muito curto e, por muitas vezes, fomos sintéticos demais na elaboração de nossos conceitos. Procuramos demonstrar que o Iluminismo foi um movimento intelectual que se estendeu em todos os campos do pensamento. Na arte, no direito, a língua franca (mesmo que fosse refratária) entre os homens do século XVIII eram as Luzes. Em Portugal, podemos ver que as Luzes foram mais conservadoras no governo pombalino. No entanto, no direito, Pombal estava se aproximando dos juristas europeus mais esclarecidos desse tempo. Então, apesar de todo discurso obscurantista sobre o iluminismo português, vimos que o direito foi se tornando mais esclarecido no período pombalino. Também percebemos que a Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 621 gravura francesa estava repleta de significados que, provavelmente, foram discutidos pelos juristas da época. Mas, será que a imagem circulou pelos meios de Coimbra? E a Inquisição? Será que a Igreja a proibiu para evitar a expansão das Luzes portuguesas? Tais perguntas nos instigam a continuar a pensar sobre os novos sentidos da história política. O campo das Culturas Políticas continua imenso para os historiadores, especialmente no que tange ao campo da história do direito. Referências Bibliográficas CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. Trad.: Álvaro Cabral. 3a ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1997. FALCON, Francisco C. A época pombalina:política econômica e monarquia ilustrada. São Paulo: Ática, 1982. FLÓREZ MIGUEL, Cirilo. La fílosofia em la Europa de la Ilustración. Madrid: Síntesis, 2008. HESPANHA, Antônio Manuel. História de Portugal Moderno. Lisboa: Universidade Aberta, 1995. ______. A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos correntes. In: FRAGOSO, J.; BICALHO, M.F.; GOUVÊA, M.F.S.(orgs.). O Antigo Regime nos Trópicos: A Dinâmica Imperial Portuguesa (Séculos XVI-XVIII). 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WEHLING, Arno, WEHLING, Maria José. Direito e justiça no Brasil colonial: o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1751-1808). Rio de Janeiro: Renovar, 2004. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 623 Identidade narrativa em Evaldo Cabral de Mello: Rubro veio e a ipseidade de Pernambuco e do Brasil Walderez Simões Costa Ramalho Graduado em História pela UFMG/ Bolsista PIBIC/CNPq walderezramalho@gmail.com Resumo: A relação entre história e identidade é um dos grandes problemas enfrentados pela historiografia brasileira. Evaldo Cabral de Mello é um dos interlocutores mais importantes desse debate, colocando-se como um crítico ferrenho das identidades, nacional e mesmo pernambucana. Rubro veio, nesse sentido, constitui-se como sua obra central. A sua posição negativa pode, contudo, ser problematizada a partir do conceito de identidade narrativa proposta pelo filósofo francês Paul Ricoeur. É o que este artigo pretende demonstrar, a fim de emergir um projeto de país que subjaz à recusa desse eminente historiador pernambucano em reconhecer as identidades na história. Palavras-chave: Rubro veio, identidade, Paul Ricoeur Résumé: La relation entre l´histoire et l´identité est l´un des principaux problèmes rencontrés par l´historiographie brèsilienne. Evaldo Cabral de Mello est un des principaux intervenantes dans ce débat, se faisant passer como um critique féroce de l´identité, nationel ou même de Pernambuco. Rubro veio, em cette sens, se constitue comme son travail central. Sa position negative peut, cependant, être problématizer à partir du concept de identité narrative, proposée par le philosophe français Paul Ricoeur. C´est ce que cet article vise à démontrer pour émerger um projet de pays que se place dessous la rejet de l´eminent historien de reconnâitre les identités dans l´histoire. Mots-clés: Rubro veio, identité, Paul Ricoeur I – Introdução Quem são os brasileiros? Qual é a sua história, e qual será o seu destino? Essas perguntas estão na base de grande parte da produção historiográfica no Brasil. Desde Varnhagen e Capistrano de Abreu, passando por Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Hollanda, e até nos anos mais recentes com Darcy Ribeiro e José Carlos Reis – apenas para citar alguns – todos eles se dedicaram, cada qual à sua maneira, a pensar esse problema, indicando a sua relevância e dimensão para o pensamento historiográfico brasileiro. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 624 A obra de Evaldo Cabral de Mello constitui-se como uma das expressões mais interessantes e instigantes de todo esse debate. Interessante porque oferece uma outra forma de pensar o Brasil, numa perspectiva que enfatiza as diversidades regionais (especialmente, no seu caso, de Pernambuco) sem aceitar como dado inelutável a “unidade nacional”. E instigante pela forte crítica à concepção “hegemônica” da identidade nacional brasileira, acusando-a de ser uma imposição violenta de uma cosmovisão fechada, centralista, que ameaça inclusive a democracia por não aceitar as divergências ou singularidades regionais. Nesse sentido, este texto visa demonstrar o que o historiador pernambucano tem a dizer sobre o problema da identidade no Brasil, mesmo que seu objeto seja especificamente a capitania – e depois província – de Pernambuco. De acordo com Reis (2008), a identidade nacional é sempre mediada pela “linguagem nacional”, isto é, os símbolos, valores, crenças, expressões artísticas e culturais, próprios de uma “nação” e que permeiam e movimentam a vida cotidiana. “Essa identidade não é nem essencial nem natural, nem ontológica, mas uma ‘imaginação compartilhada’, criada em múltiplas linguagens, divergentes, discordantes, mas sobretudo ‘interlocutoras’ umas das outras” (REIS, 2008: 4). Nessa perspectiva, pode-se ir além de uma ideia de nação sempre atrelada ao Estado, e tomá-la como um sistema de representação cultural, que permite aos indivíduos sentirem-se como pertencentes a uma identidade histórica singular: o Brasil. Isso significa também que a linguagem nacional fornece a sustentação necessária aos inúmeros discursos sobre a nação, aceitando assim as discordâncias em relação ao tema. Será desde o ponto do vista que compreende a identidade nacional não como uma coisa, mas antes uma “imaginação compartilhada” atravessada simbolicamente pelo ato discursivo (e especialmente, como veremos, o discurso narrativo), que construiremos o argumento deste texto. Essa perspectiva conjuga-se com o nosso objeto específico: a obra Rubro veio: o imaginário da restauração pernambucana, de Evaldo Cabral de Mello (1ª edição de 1986). Neste livro, o autor traça as estruturas do imaginário nativista pernambucano, fundado na guerra de expulsão dos holandeses (1654), e que influenciou profundamente as formas específicas dos pernambucanos agirem e se representarem no mundo, diferenciando-lhes radicalmente dos demais “brasileiros”, categoria que, segundo Cabral de Mello, é uma invenção autoritária do centralismo lusitano – e mais tarde carioca. Para reconstituir as estruturas internas e as modificações mais importantes desse imaginário, o autor sempre tem em vista o simbólico – linguagem do imaginário – privilegiando as fontes narrativas para seu estudo. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 625 Assim, o objetivo deste texto é discutir o pensamento historiográfico de Evaldo Cabral de Mello, particularmente a sua obra Rubro veio, tendo em vista a sua importante crítica à uma concepção de identidade nacional, tomando-a como algo forjado pelo processo de centralização político-cultural iniciado no Império e continuado durante a República brasileira. Para realizar essa tarefa, propomos uma interpretação de Rubro veio a partir da teoria da narratividade de Paul Ricoeur, particularmente o conceito de “identidade narrativa”, para evidenciar como essa crítica nos leva a uma reconstrução da própria noção de identidade: não somente como algo fechado e sempre o mesmo, mas que também leva em conta as transformações e as diferenças em seu interior e na sua relação com o outro. Concluiremos o texto mostrando como esse brilhante historiador brasileiro traz uma renovação importante no debate historiográfico atual indispensável para se pensar o Brasil nos primeiros anos do século XXI. II – Evaldo Cabral, Rubro veio e a identidade A fundação do Instituto Histórico-Geográfico Brasileiro (IHGB), em 1838, cuja produção foi marcada pelo questionamento do que é o Brasil e quem são os brasileiros, é um fato marcante para o debate sobre a ideia de uma identidade especificamente brasileira. Uma vez consolidado o Estado nacional, impunha-se como tarefa o delineamento de um perfil para a nação brasileira, capaz de lhe garantir uma identidade própria no conjunto mais amplo das nações, que norteou o pensamento político e a vida social durante o século XIX. É, portanto, à tarefa de pensar o Brasil segundo os postulados próprios de uma história comprometida com o desvendamento do processo de gênese da Nação que se entregam os letrados reunidos em torno do IHGB(GUIMARÃES, 1988). O grande problema, para Evaldo, é que somente o IHGB poderia tratar da questão, sempre à luz da perspectiva monarquista, que via como necessária a formação de uma nação una e indivisível, e cujo centro fosse o Rio de Janeiro. Evaldo qualifica essa leitura como fechada, opressora, que abafa as divergências e as diversidades, sempre sob o prisma da unidade total (territorial, político, cultural) próprio de uma posição imperialista – no duplo sentido de um regime político imperial, quanto o de possuir uma tendência a se expandir às demais regiões e culturas. Essa exclusividade do IHGB em tratar das questões nacionais fica mais evidente se lembrarmos dos outros institutos históricos, como o Instituto Arqueológico Geográfico Pernambucano (IAGP, 1862), que ficavam responsáveis Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 626 apenas por produzir as visões locais, enquanto que o “IHGB-RJ” era o único autorizado a conectar todas elas e desvendar-lhes o sentido, que é o que interessa ao poder real. É nesse sentido que o autor cria a desconcertante expressão “imperialismo historiográfico do Rio”. Em contrapartida, Evaldo Cabral constrói uma outra forma de pensar a questão, não em termos de unidade ou de necessidade histórica, mas levando em conta as peculiaridades do regional, e até mesmo a contestação à perspectiva imperialista. Enquanto historiador do regional, rótulo que ele mesmo assume em suas entrevistas528, o autor quer escapar à leitura saquarema que deixou Pernambuco na sombra, sem nenhum papel de destaque. Para ele, o Nordeste não é imperial e centralizador, é republicano e federalista: nesse sentido, podemos dizer que o autor quer desconstruir a identidade nacional imperialista – fundada na hegemonia do centro carioca – para propor uma reconstrução da identidade que vai das partes para o todo, e não o contrário. Evaldo inclusive valoriza o IAGP por já nascer com a preocupação de responder à necessidade de uma versão pernambucana dos acontecimentos cruciais da nossa (grifo meu) história, evitando que ela fosse tratada sob critério estranho, no caso, imperial; ou, ao menos, corrigindo-se as deformações da perspectiva unitária e fluminense da História geral do Brasil, de Varnhagen (1854), com sua condenação da república de 1817 (MELLO, 2008: 57). Nesse sentido, toda a produção de Evaldo Cabral é importante. Para este texto, selecionamos um livro em especial, Rubro veio, por considerarmos, na esteira de outros críticos529, como a sua obra fundamental e a mais adequada ao nosso questionamento. Ao tratar do imaginário social (no sentido que Castoriadis dá a esse conceito) da restauração pernambucana, o que o autor faz é perceber uma estrutura ideológica inerente à própria realidade histórica, que marcou e diferenciou Pernambuco em relação aos demais estados do Brasil. “O imaginário não é uma superestrutura ideológica, mas uma dimensão constitutiva e reprodutiva das próprias relações sociais” (MELLO, 2008: 14). Nesse sentido, o imaginário não está em oposição à realidade, mas compõe com ela uma relação dialética, na qual um dinamiza e confere inteligibilidade ao outro. É por isso que o movimento narrativo de Rubro veio se configura como uma constante “ponte-aérea” – metáfora do próprio Evaldo Cabral – entre as questões de crítica histórica (relacionadas aos 528 Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. O acaso não existe: depoimento. [19 de maio de 2005]. Belo Horizonte: Leituras críticas sobre Evaldo Cabral de Mello. Entrevista concedida a Lilia Schwarcz e Heloísa Starling. 529 SCHWARTZ, Stuart. O sexteto pernambucano; e ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Desagravo de Pernambuco e glória do Brasil. In: idem. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 627 aspectos empíricos) e os temas envolvendo o imaginário social, “sempre em busca da reciprocidade de perspectiva entre as concepções do cronista ou do historiador e as representações coletivas” (MELLO, 2008: 14).Como foi dito na introdução, entendemos esse sistema de representações coletivas, ancoradas num imaginário social, como a ideia da identidade coletiva, isto é, pernambucana. Por exemplo: a Guerra dos Mascates (1710-1711) foi um acontecimento real, mas motivado também por fatos do imaginário, como a ideia da mutação da açucarocracia em “nobreza da terra”, a qual afirmava uma suposta ancestralidade que os ligavam aos primeiros nobres colonizadores da capitania530, e que desempenhou um papel fundamental para a constituição de um dos grupos beligerantes. Para dar conta desse trabalho, uma vez que o seu objeto pertence à longa duração, Evaldo Cabral lança mão de seu profundo domínio das fontes de todo o período estudado (séculos XVII a XIX), reorganizando-as segundo as grandes temáticas do discurso nativista, para assim destrinchar e reconstituir a estrutura do imaginário social pernambucano, juntamente com suas transformações históricas mais significativas. Ao narrar a experiência pernambucana, tendo por fontes principais os discursos políticos e, mais ainda, as narrativas locais, Evaldo Cabral coloca em primeiro plano a especificidade do ser pernambucano, pois o imaginário nativista interferia sobretudo na forma como este agia e se representava no mundo. E aí vai surgir o caráter próprio desse ser, marcado pela bravura, pelo heroísmo, contestador, com vocação autonomista e republicana. Desse modo, podemos dizer que o imaginário social confere um caráter específico ao personagem por excelência da sua narrativa, o ser pernambucano. No entanto, esse imaginário – consequentemente o caráter e o próprio ser pernambucano – “morreu” com a consolidação do Estado nacional, empreendida principalmente por D. Pedro II, daí o corte temporal do livro. Nas palavras de Evaldo Cabral, o pernambucano de hoje está “abrasileirado”, ele perdeu a sua identidade, pois assimilou valores e práticas que não lhe são próprios, isto é, “nacionais” – nesse sentido imperialista do termo. A voz passiva empregada explicita bem que a crítica é feita a uma identidade que não foi construída pelos próprios sujeitos. Mas a questão de haver ou não uma identidade pernambucana não é um ponto pacífico, nem mesmo para o próprio autor. É o que nos indica as modificações do texto 530 Evaldo demonstra , através da sua crítica histórica (isto é, baseado em dados empíricos) que tal suposição não correspondia à realidade histórica, pois os primeiros senhores eram ou eram citadinos de origem popular, ou cristãos-novos. Ver MELLO, 2008, p. 130- 133. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 628 feitas por Evaldo Cabral entre a 1ª edição e as posteriores – entre as quais privilegio aqui a mais recente (3ª edição), de 2008. Elas podem ser vistas logo no prefácio, onde o autor retira integralmente um excerto bastante significativo para o nosso problema: “Dessa experiência [a restauração pernambucana], derivara a singularidade da história pernambucana no conjunto da história brasileira (...). Nesta perspectiva, a restauração tornara-se como que a experiência fundadora da identidade provincial [grifo meu]”(MELLO, 1986: 14). O abandono da expressão “identidade” em toda a 3ª edição confirma a sua mudança de postura frente a essa questão. E não é só isso: em duas entrevistas concedidas por Evaldo Cabral, parece haver de fato uma contradição em relação ao problema da identidade. A primeira, concedida a Tiago dos Reis Miranda (1990), Evaldo diz explicitamente que uma das razões pelas quais pode-se dizer que existe uma unidade temática de seus livros subjaz na questão: “como se formou a nossa identidade regional?”. O Nordeste açucareiro desenvolveu, com anterioridade a outras populações regionais do Brasil, uma identidade própria, e neste aspecto não foi pequeno o papel desempenhado pela guerra e pela ocupação holandesas, como eu espero ter demonstrado em Rubro veio (MELLO, 1990: 10). Por outro lado, numa segunda entrevista, registrada na coletânea Leituras críticas sobre Evaldo Cabral de Mello, em 2005, nosso autor é enfático: Não, não e não, não há identidade pernambucana nenhuma. Identidade é um conceito que abomino. O que é identidade? É aquilo que permanece igual a si mesmo, É, portanto, o conceito mais anti-histórico que você pode conceber (MELLO, 2005: 160). Portanto, se num primeiro momento Evaldo aceita a questão da identidade como tema central da sua obra como um todo, num segundo ele parece negar essa mesma temática, colocando-a inclusive no campo do anti-histórico. Como entender essa aparente contradição? É possível conciliar essas duas concepções? A partir dessas colocações, este texto pretende propor uma interpretação de Rubro veio a partir de uma perspectiva que consiga dar conta dessas questões e nos ajudem a entender como se coloca nele o problema da identidade. Por trás da “desconstrução”, pode haver uma “reconstrução”, dependendo do ponto de vista adotado. Nesse sentido, buscando tal reconstrução, propomos uma releitura da obra em debate a partir da teoria da narratividade de Paul Ricoeur, e particularmente no seu conceito de identidade narrativa. Em Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 629 outras palavras, queremos demonstrar que Evaldo Cabral constrói de fato uma identidade pernambucana, e essa mudança de posição descrita acima consiste, essencialmente, em uma confusão em relação aos dois sentidos possíveis de “identidade”: como idem (o mesmo), e como ipse (o si-mesmo). Vejamos mais de perto este conceito, para a seguir colocá-la a serviço de nossa investigação. III – Paul Ricoeur e a identidade narrativa O problema da identidade narrativa aparece pela primeira vez nas conclusões de Tempo e narrativa (2010), quando Ricoeur se propõe a refletir sobre a primeira aporia da temporalidade, isto é, ao problema da ocultação mútua531 entre as duas grandes perspectivas sobre o tempo: a cosmológica e a fenomenológica. A primeira concebe o tempo como uma dimensão objetiva, é o movimento dos astros, portanto numerável, mensurável, exterior ao indivíduo. Já a segunda diz respeito ao tempo da consciência, o vivido humano, nãonumerável, qualitativo. Ricoeur vê nesse choque e distanciamento entre as duas perspectivas do tempo um dos grandes impasses da história da filosofia ocidental, desde Aristóteles (base da concepção cosmológica) e Santo Agostinho (tempo fenomenológico), e repercutido por Kant, Husserl, Heidegger, e muitos outros grandes filósofos. Para Ricoeur, que propõe uma solução poética (e não epistêmica) à aporia do tempo, só a narrativa dá conta dessa problemática ao articular essas duas perspectivas e fazer emergir um terceiro-tempo, o tempo da narrativa, que desenvolve uma dialética própria, não se deixando reduzir nem à concepção cosmológica, nem à fenomenológica. Esse terceiro tempo, construído pela operação de pôr-em-intriga, substanciado na atividade mimética que constitui o círculo hermenêutico532, é comum aos dois tipos de narrativa, a histórica (que trata dos fatos reais) e a ficcional (na qual a realidade é colocada em suspenso). É portanto no entrecruzamento entre história e ficção que vai aparecer, como pretende Ricoeur, a réplica poética da aporia do tempo. Por “entrecruzamento”, entendemos que o autor quer marcar a diferença entre história e ficção, ao mesmo tempo em que marca seus elementos em 531 Ou seja, o fato de uma perspectiva impedir a compreensão da outra. Em Ricoeur, a intriga é definida como “concordância-discordante”, é a composição textual de uma série de acontecimentos individuais, formando um todo inteligível. Nesse trabalho de composição, o autor procede por meio da atividade mimética, isto é, uma imitação criativa – no sentido de configurar um novo sentido – dos eventos do mundo da ação, no intuito de ressignificar ou refigurar o próprio mundo da ação, por intermédio da configuração textual. Esse movimento mimético (da prefiguração à refiguração do campo prático por meio da configuração narrativa) se configura como um círculo, embora não vicioso, como veremos mais à frente. 532 Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 630 comum: toda narração recorre tanto a elementos históricos (que dizem respeito às ações executadas no mundo) quanto a elementos fictícios (que dizem respeito as possibilidades de composição da ação em uma ordem de inteligibilidade). É nessa área de confluência que o terceiro tempo emerge como tempo da narrativa, que “imita” (no sentido aristotélico de mimesis) a experiência do tempo, conferindo-lhe um sentido e, assim, tornando-o um tempo humano533. Esse entrecruzamento seria de todo inútil ou inadequado à aporia do tempo, “se não nascesse dessa fecundação mútua um rebento, cujo conceito introduzo aqui e que testemunha certa unificação dos diversos efeitos de sentido da narrativa” (RICOEUR, 2010: 424). Esse rebento é exatamente a identidade narrativa, ou seja, a atribuição de uma identidade específica a um indivíduo ou a uma comunidade histórica. Segundo Ricoeur, a única forma de dar conta da identidade do sujeito é contar a sua história de vida, isto é, pela narração. Dizê-la é responder à questão Quem fez tal ação?, Quem é o agente? “A história narrada diz o quem da ação. A identidade do quem é apenas, portanto, uma identidade narrativa” (RICOEUR, 2010: 424). A identidade narrativa, dessa forma, se caracteriza pela narração de uma história de vida de um indivíduo ou de um povo. A história de vida, por sua vez, é construída a partir do entrecruzamento entre história e ficção, fazendo emergir o terceiro-tempo, um tempo inteligível no qual a compreensão de uma subjetividade se faz possível. Feita essa rápida introdução, podemos nos dedicar mais ao conceito de identidade narrativa. Ricoeur dissocia dois sentidos principais do conceito de identidade: como “mesmidade” encontra-se subjacente a noção latina de idem que expressa a identidade alcançada a partir da permanência no tempo. Em contrapartida temos a “ipseidade”, ancorada no pronome ipse, si mesmo, que se constrói a partir da temporalização de si próprio, é a realização da identidade no tempo, pressupondo a mutabilidade e a alteridade. A mesmidade responde à questão o quê?..., já que se refere à face objetiva da identidade; por sua vez, a ipseidade se dirige mais à questão quem?... por tratar do aspecto subjetivo. Nesse sentido, Ricoeur associa a mesmidade à identidade substancial ou formal, enquanto a identidade narrativa é constitutiva da ipseidade. Ademais, a ipseidade se “baseia numa estrutura temporal conforme ao modelo de identidade dinâmica oriunda da composição poética de um texto narrativo” (RICOEUR, 2010: 425). A dialética concordância-discordância que 533 Vale a pena citar a tese de Ricoeur neste livro: “o tempo devém tempo humano na medida em que é articulado de modo narrativo, e em compensação, a narrativa é significativa na medida em que desenha os traços da experiência temporal”. (RICOEUR, 2010, v1: 9) Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 631 constitui a intriga repercute no personagem, enquanto encontramos nele, de um lado, a concordância da unidade singular de uma vida; de outro, a discordância dos acontecimentos fortuitos que tendem a romper essa unidade e continuidade. A ipseidade do personagem pode incluir, desse modo, a mudança, a mutabilidade, dentro da coesão de uma vida. Além disso, a identidade-ipsepermite a constante refiguração de uma história de vida por todas as histórias verídicas ou fictícias que um sujeito ou uma comunidade histórica conta sobre si mesmo, fazendo da vida um “tecido de histórias narradas”. Dessa forma, a ipseidade leva a um si constituído no tempo pela narração, diferentemente da mesmidade pura que desemboca num eu abstrato, formal, puramente epistêmico, não passível de transformação. Nesse sentido, o conhecimento de si nunca é imediato – como o cogito cartesiano –, mas exige a mediação da linguagem e, especificamente, do discurso narrativo. Isso faz do conhecimento de si próprio ser sempre uma interpretação de si próprio. Esse si é sempre resultado de uma vida examinada, ou seja, explicada e refigurada pelas narrativas históricas e ficcionais veiculadas por uma cultura. “A ipseidade é, assim, a de um si instruído pelas obras da cultura que ele aplicou a si mesmo” (RICOEUR, 2010: 425). E isso vale tanto para a identidade de uma pessoa quanto a identidade de uma comunidade histórica. Sobre esta última, que interessa ao nosso estudo, o autor dá o exemplo do Israel bíblico, um povo cujo caráter foi exprimido e refletido pelas narrativas consideradas canônicas. Mas ao mesmo tempo, é ao (re)contar essas mesmas narrativas que o Israel bíblico se tornou a comunidade histórica que traz esse nome. As narrativas que refletem o seu “caráter” impulsionam essa mesma cultura a se ver e agir em conformidade aos textos sobre si mesmos. A virtuosidade do círculo hermenêutico consiste justamente nessa elevação do nível de compreensão de si de um sujeito ou povo, que refigura sua ação no mundo prefigurado a partir da configuração narrativa. “A relação é circular: a comunidade histórica que se chama o povo judeu tirou sua identidade da recepção mesma dos textos que ela produziu” (RICOEUR, 2010: 427). IV – Rubro veio e a identidade narrativa Podemos agora estabelecer um diálogo entre essa ideia de identidade narrativa e a questão de haver ou não Evaldo elaborado uma identidade pernambucana em sua narrativa, particularmente em Rubro veio. A hipótese é que aquela contradição apontada mais acima, como já foi adiantado, resulta da confusão em relação aos dois sentidos possíveis da Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 632 identidade segundo Paul Ricoeur. Isso fica claro se percebermos que, num primeiro momento, quando o autor assume ter de fato refletido sobre a identidade pernambucana, ele o faz pensando na “unidade temática dos meus livros”, ou seja, em relação às suas narrativas sobre Pernambuco. Faz sentido, portanto, pensar na configuração de uma identidade narrativa pernambucana empreendida pelo autor, e constitutiva – já dissemos – da ipseidade. Por outro lado, quando ele nega a existência de uma identidade regional e mesmo nacional, ele toma a identidade como algo que não permite transformações e/ou diferenças, mas apenas a continuidade substancial no tempo de alguma coisa. Mas esse sentido de identidade, como nos lembra Ricoeur, é o da mesmidade, que se relaciona com a ipseidade, mas sem abarcá-la por completo. Essas duas assertivas, embora tenham inicialmente a aparência de uma contradição, não são excludentes entre si, pois é perfeitamente possível construir uma identidade-ipse criticando uma identidade-idem, como no caso de Rubro veio. Neste livro, o autor narra a história dos pernambucanos ao longo de mais de dois séculos, através do estudo do imaginário que influenciou decisivamente a maneira como eles viam a si mesmos no decorrer do tempo. O personagem principal dessa narrativa não são os Vieiras, Dias, ou Cavalcantis, nem a nobreza da terra ou os revolucionários de 1817, mas o ser pernambucano, dono de um caráter próprio que o imaginário lhe conferiu. Construído na longa duração, esse caráter relaciona-se intimamente com o imaginário na medida em que, como o Israel bíblico, Pernambuco se constituiu através da recepção das narrativas e dos discursos que ele mesmo produziu sobre si próprio. Por outro lado, o caráter não é a-histórico, ele se sedimenta no tempo, através do comprometimento dos indivíduos a atuarem em conformidade com essas mesmas narrativas, ou seja, na sua dimensão prática e temporal. “À força de reivindicarem um determinado caráter coletivo, nacional, regional ou de classe, as sociedades acabam por se convencer da sua realidade, passando a agir de acordo com tais modelos” (MELLO, 2008: 208). Vemos aqui como o caráter – constitutivo da mesmidade – e o comprometimento – expressão da ipseidade – se relacionam dialeticamente formando a identidade narrativa própria de Rubro veio. Não por acaso, as fontes privilegiadas em Rubro veio não são outras senão as narrativas que esse povo construiu sobre si mesmo. É principalmente – embora não exclusivamente – através delas que Evaldo consegue perceber e dar forma à estrutura do imaginário. Os cronistas, desde frei Calado ou Rafael de Jesus no século XVII, Jaboatão ou Loreto Couto no XVIII, chegando a frei Caneca ou Fernandes Gama no XIX, são Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 633 revisitados e interpretados por todo o livro, demonstrando como os grandes topoi do discurso nativista – a restauração como empreendimento exclusivo dos pernambucanos; a formação da “nobreza da terra; o panteão restaurador; a atuação da Providência Divina; etc. – refletiu e conferiu aos pernambucanos um caráter peculiar e um modo próprio de agir e representar-se no mundo. Isso permite-nos interpretar Rubro veio também como uma narrativa de uma vida que se constrói através da mediação das outras narrativas que essa mesma vida produziu sobre si própria, tornando-a um “tecido de histórias narradas”. Ainda sobre a questão do caráter, este conceito deve ser tomado no sentido que Ricoeur dá ao termo, como disposições estáveis com que se reconhece uma pessoa ou um povo, o que aliás constitui o “ponto limite em que a problemática do ipse torna-se indiscernível da do idem”. (RICOEUR, 1991: 146). O caráter é constituído pelos hábitos e pelas identificações adquiridas. Os hábitos, que se ligam aos elementos sedimentados do caráter, são caracterizados, em relação aos pernambucanos, pela bravura, valentia, heroísmo, catolicismo, republicanismo e a busca pela autonomia, elementos que se encontram em todos os pernambucanos, homens, mulheres e crianças. É essa sedimentação que confere ao caráter um aspecto de permanência no tempo, ou seja, o recobrimento do ipse pelo idem. “Mas esse recobrimento não elimina a diferença das problemáticas: mesmo como segunda natureza, meu caráter sou eu, eu próprio, ipse; mas esse ipse anuncia-se como idem” (RICOEUR, 1991: 146). É por isso que o caráter representa esse limite, ele é justamente o quê do quem. Em relação às identificações, forma pela qual o outro entra na composição do si mesmo, ela é feita das identificações com valores, normas, modelos, ideais, heróis, nos quais a pessoa ou a comunidade se reconhecem. “A identificação com figuras heróicas manifesta claramente essa alteridade assumida” (RICOEUR, 1991: 147). No caso de Rubro veio, basta pensar no panteão da restauração (Fernandes Vieira – branco reinol; Vidal de Negreiros – branco mazombo; Henrique Dias – negro; Felipe Camarão - índio), forjado para representar a sociedade colonial, abarcando inclusive a segmentação dos dois estratos brancos que a constituem, fato bastante expressivo de uma sociedade marcada pelos conflitos entre pernambucanos e não-pernambucanos (principalmente portugueses, mas também baianos ou cariocas). Essa tetrarquia foi uma ideia caríssima aos pernambucanos, fonte de inspiração tanto no contexto dos Mascates, quanto na Revolução de 1817, ou na Confederação do Equador. O panteão reflete, inclusive, o elemento racista do caráter pernambucano, se lembrarmos – com Evaldo Cabral – a exclusão do mestiço em sua Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 634 composição, já que as etnias se apresentam separadas. O mestiço estava à margem do sistema açucarocrático, sempre tratado como “sub-humano”, e representava, inclusive, uma ameaça potencial ao mesmo sistema. Além disso, o mestiço é encarnado na figura do vilão, Calabar, e sua traição é associada pelos cronistas à sua origem racial. Nesse aspecto, na identificação com valores e particularmente com os heróis, os dois polos da identidade se compõem, pois agora o caráter (mais próximo do idem) se constitui também com a assimilação do outro na construção do si (noção própria do ipse). “Isso prova que não podemos pensar até o fim o idem da pessoa sem o ipse, mesmo quando um recobre o outro” (RICOEUR, 1991: 147). Nesse sentido é que o caráter constitui-se como a personagem de uma história narrada, ao estabelecer uma dialética entre sedimentação habitual (que nunca é imanente, mas construída no tempo, como Rubro veio demonstra tão bem) e identificações adquiridas que formam o si mesmo a partir da assimilação do outro. Por sua vez, o imaginário forjou esse mesmo caráter ao definir seus traços mais significativos. E assim, construindo uma identidade narrativa própria de Pernambuco e dos pernambucanos. Mas não é só de permanências e/ou continuidadesque essa identidade narrativa é constituída. Entre suas transformações, lembramos o aspecto de fidelidade, que nos séculos XVII e XVIII foi um dos grandes topoi do discurso nativista. Ele fora forjado para capitalizar o fato de que os pernambucanos expulsaram os holandeses sem o consentimento da Coroa portuguesa, mas a seguir entregou a capitania à soberania do seu “Rei natural”, sem qualquer ajuda do Reino. A intenção era tentar o seu apoio na querela contra os mascates e, depois da derrota no conflito, amenizar os castigos e as restrições por parte da Coroa. “Mas a revolução de 1817 veio demonstrar não ser assim tão sólida a lealdade dos netos dos restauradores. O adesismo da administração foi geral” (MELLO, 2008: 106). O tópico ficara comprometido, pois os acontecimentos de 1817 mancharam a tal lealdade dos pernambucanos, donde não voltará mais a ser utilizado, dado também o caráter anti-lusitano mais acentuado do nativismo oitocentista. Esse exemplo mostra como a identidade narrativa dos pernambucanos em Rubro veio permite considerar as mutações internas dessa mesma comunidade na percepção que tem de si, caracterizando-a como uma ipseidade rica e dinâmica. V – Conclusão Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 635 A identidade narrativa construída em Rubro veio, que dá conta do ser pernambucano, não seria mais interessante se não contivesse também uma dura crítica contra a imposição de uma outra identidade, a imperial, que sufocou as diversidades em nome de uma unificação fajuta, que não é própria dos pernambucanos, mas que no final acabou vencendo e “abrasileirando” esse mesmo pernambucano. Evaldo acusa a ideia de identidade nacional, relembramos, como uma construção imperialista, que forçou o solapamento das divergências e discordâncias regionais em nome de uma unidade total, empreendendo um nivelamento imposto de cima para baixo, opressor, que atua em nome da subordinação das demais regiões em nome do centro, o Rio de Janeiro. É fácil perceber como Evaldo toma essa identidade nacional no sentido da mesmidade, que não aceita a diferença, que impõe uma permanência no tempo não construída pelo si, mas por um eu abstrato, formal, deslocado da experiência histórica. Em contraponto a essa mesmidade, Rubro veio reconstrói uma ipseidade que dá conta dessas fissuras, oferecendo um outro projeto de Brasil, que não se imponha a partir do centro, mas que surja da diversidade inerente à experiência histórica. Tudo isso nos permite dizer que Rubro veio insere-se na discussão acerca da identidade nacional no âmbito da historiografia brasileira, ao submetê-la a uma crítica forte e muito bem articulada. Não podemos entender essa crítica como uma negação absoluta, mas antes no sentido de uma reconstrução que dê conta das especificidades regionais, inclusive para torná-la mais rica, dinâmica, republicana e democrática. É um projeto bastante atual, necessário inclusive para o pleno desenvolvimento do país como um todo, e não apenas do eixo Rio – São Paulo. O próprio fato do estado de Pernambuco ter hoje um crescimento do PIB maior que o da média nacional (LINS, 2011), dá ainda mais credibilidade à proposta evaldiana de fazer o Brasil pluralizar-se e reinventar-se a si mesmo. Em outras palavras, transformar esse Brasil-idem em um Brasil-ipse. Para tanto, seria preciso dar prosseguimento a essa abordagem regional para as outras partes do Brasil. Alencastro resumiu muito bem essa ideia, ao sugerir que “além de admirado, o autor deve ser um historiador imitado. Com Rubro veio debaixo do braço e uma problemática regional na cabeça, os historiadores podem empreender um extraordinário avanço das ciências sociais brasileiras” (ALENCASTRO, 2008: 44). Concordo plenamente. Referências Bibliográficas Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012 636 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Desagravo de Pernambuco e glória do Brasil: a obra de Evaldo Cabral de Mello. In: SCHWARCZ, Lilia M. (org.) Leituras críticas sobre Evaldo Cabral de Mello. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Fundação Perseu Abramo, 2008. p. 35-55. GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Nação e civilização nos trópicos: O Instituto Histórico Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional. Estudos históricos. Rio de Janeiro, n.1, p. 5-27, 1988. LINS, Letícia. PIB de Pernambuco cresce mais que o PIB do Brasil no 2º trimestre. Rio de Janeiro: 06/09/2011. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/economia/mat/2011/09/06/pibdepernambuco-cresceu-mais-que-pib-do-brasil-no-2-trimestre-925298300.asp>. Acesso em: 07/11/2011. MIRANDA, Tiago C. P. Dos Reis. Conversas do Recife, em Lisboa: entrevista com Evaldo Cabral de Mello. Revista de História. São Paulo, n. 122, p. 135-146, jan/jul. 1990. MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio: o imaginário da restauração pernambucana. 3 ed. São Paulo: Alameda, 2008. 389 p. ______. O acaso não existe: depoimento. [19 de maio de 2005]. Belo Horizonte: Leituras críticas sobre Evaldo Cabral de Mello. Entrevista concedida a Lilia Schwarcz e Heloísa Starling. RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Tradução de Luci Moreira Cesar. Campinas: Papirus, 1991. ______. Tempo e narrativa. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. Volume 1 e 3. REIS, José Carlos. Identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 9 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. ______. Pode se falar de uma identidade nacional brasileira? E por que falar? É necessário que se fale? Belo Horizonte: 1º Encontro de Pesquisa em Filosofia no Brasil, 2008. Disponível em: <http://www.fafich.ufmg.br/fibra/arq/reis_identidade.pdf>. Acesso em: 14/03/2012. SCHWARTZ, Stuart. O sexteto pernambucano. In: SCHWARCZ, Lilia M. (org.) Leituras críticas sobre Evaldo Cabral de Mello. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Fundação Perseu Abramo, 2008, p. 13-34. Anais do I Encontro de Pesquisa em História da UFMG – EPHIS | Belo Horizonte, 23 a 25 de maio de 2012