COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
COMUNIDADE DE MACAMBIRA:
DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA
Edmundo Marcelo Mendes Pereira*
RELATÓRIO ANTROPOLÓGICO
*
Professor Adjunto de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
EQUIPE DE TRABALHO:
Edmundo Pereira
Coordenador da pesquisa e responsável pelo Relatório
Professor do Depto. de Antropologia – CCHLA/UFRN
Ângela Torresan
Documentarista
Professora PRODOC do Depto. de Antropologia – CCHLA/UFRN
Jociara Nóbrega
Aluna Bolsista
Eloi Magalhães
Augusto Nascimento
Alunos voluntários
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SUM ÁRIO
I NTRODUÇÃO ............................................................................................................. P.127
ETNOGRAFI A, HI STORI OGRAFI A E PRODUÇÃO DI ALÓGI CA DE CONHECIM ENTO ................ P.132
D E “NEGROS”, “ESCRAVOS”
I NTERSOCI ETÁRI O EM
“HOM ENS LI VRES”: FORM AÇÃO ÉTNI CA EM UM CAM PO
TRANSFORM AÇÃO (SÉCULOS XI X-XX) .......................................... P.145.
E
I . OCUPAÇÃO DO “SÍ TI O M ACAM BI RA” E FORM AÇÃO DA DESCENDÊNCI A DE
LÁZARO PEREI RA DE ARAÚJO
CURRAI S NOVOS DA FAZENDA T OTORÓ (SÉCULOS XV I I I -XIX) ....................................... P.149
“SÍ TI O M ACAM BI RA”, “T ERRA DOS LÁZAROS” ................................................................. P.164
“D OCUM ENTOS DO TEM PO DE D OM PEDRO” ....................................................................P.170
“M arco testemunhado”, Taperas, Casas de Farinha, Cemitério e Frutais ......... p.186
I NVENTÁRI O N O 110, 1872: LÁZARO M ARI A DE A RAÚJO ................................................ P. 191
I I . “TRONCOS V ELH OS”: TERRI TÓRI OS DE PARENTESCO, M EM ÓRI A
POLÍ TI CA
E
“T RONCOS VELHOS” ........................................................................................................ P. 210
CASAS, T ERREI ROS E ROÇADOS ........................................................................................P.217
Fins de Semana, Aniversários, Casamentos, Forrós, M issas e Festas de Padroeiro
..................................................................................................................................... p. 227
H I STÓRI AS DE VI DA, FAM Í LI A E TERRI TORI ALI ZAÇÃO
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BURACO DE LAGOA ............................................................................................... P. 231
M ACAM BI RA I I E I I I ............................................................................................... P.238
CABEÇA DOS FERREI RA ......................................................................................... P. 243
CABEÇA DOS LUDOGÉRI O .......................................................................................P. 246
O RGANI ZAÇÃO POLÍ TI CA E A SSOCI ATI VI SM O ................................................................P. 247
I I I . PARECER CONCLUSIV O, ÁREA PROPOSTA E RECOM ENDAÇÕES ......... p. 251
BI BLI OGRAFI A ......................................................................................................... p. 253
ANEXOS
Anexo 1. Documentos encontrados com Ana Amaro (1843-1877)
Anexo 2. Inventário n.110, 1872 (Lázaro Maria de Araújo)
Anexo 3. Certidão de Auto-reconhecimento
Anexo 4. Estatuto social da Associação dos Quilombolas de Macambira
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I NTRODUÇÃO
Este relatório tem por objetivo apresentar, em termos básicos e de forma sucinta em
sua especificidade socio-cultural e histórica, a Comunidade de Macambira,1 remanescente
das comunidades dos quilombos, situada na Serra de Santana, e que hoje abarca
territorialmente parte dos municípios de Lagoa Nova, Bodó e Santana dos Matos, fronteira
entre o sertões do Seridó e do Vale do Açu, Rio Grande do Norte.2 Desde pelo menos o
início do século XX, seus membros, de descendência negra, são conhecidos por seus
vizinhos, em especial, no caso pesquisado, as populações “brancas” da cidades de Lagoa
Nova, como “negros da Macambira”, expressão pejorativa a qual se agregam acepções
como “sujos”, “bravos” e, em alguns casos, “feiticeiros”. Como mostraremos ao longo
deste trabalho, tal denominação é exemplar do modo como tem sido as relações étnicas
entre “brancos” e “negros” desde o período colonial, com o regime escravocrata dominante
na região do Seridó, até meados do século XIX e as transformações nas lógicas de
administração dos estoques de mão-de-obra com o crescente aparecimento de homens livres
(em sua maioria ex-escravos).
Em 29 de julho de 2005, a Comunidade obteve por parte da Fundação Cultural
Palmares, Ministério da Cultura, da Diretoria de Proteção ao Patrimônio Afro-Brasileiro,
sua certidão de auto-reconhecimento como remanescente dos quilombos, o que lhe
possibilitou abrir seu processo de “identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação
e delimitação das terras ocupadas”.3 Vale ressaltar que a ação do órgão estatal é
desdobramento das demandas previstas pelo artigo 68, da Constituição Federal de 1988, do
1
Mais adiante, refletirei sobre o nome “comunidade de Macambira”, apresentando a origem do nome, bem
como o sentido de pertencimento que o termo “comunidade” traduz localmente, a partir de sua morfologia
social contemporânea, em especial da noção de família (tronco).
2
Agradecimentos: um trabalho dessa natureza, por seu caráter dialógico, depende do apoio de diversas
agências e indivíduos. Agradeço especialmente aos membros das famílias dos Pereira Araújo (Macambira III
e Buraco de Lagoa), dos Amaro (Buraco de Lagoa), dos Ferreira (Cabeça dos Ferreira) e dos Felipe
(Macambira II). Em especial agradeço à Vilmário, Vitória, Rosilma, Rosa Ilma, Dona Maria, Gorete, Penha e
Neuza por receberem em seu cotidiano, sempre atentos e prestativos em todas as etapas de trabalho. Agradeço
também aos colegas do DAN/CCHLA/UFRN, em especial aos ligados ao Convênio Incra-DAN pela troca de
idéias e estímulo ao trabalho, profs. Luiz Assunção, Julie Cavignac, Carlos Guilherme do Valle e Francisca
Miller. Agradeço também a todo o corpo técnico e administrativo do Incra pelo apoio logístico ao longo da
pesquisa. A Socorro, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Lagoa Nova, ao prefeito de Lagoa Nova, pelo
apoio dado no início do trabalho.
3
Vide ANEXO 3.
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ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), que confere “direitos
territoriais” aos remanescentes de quilombos (O’Dwyer, 2002:13), ou seja, “a
regulamentação de territórios sociais tradicionalmente ocupados, cujas origens remetem,
em regra – não exclusivamente -, ao período da escravidão” (Arruti, 2006:26). Dois meses
antes da certificação, em maio (01.05.2005), com fins a apresentar o pedido de autoreconhecimento à Fundação, membros da Comunidade organizados em torno da família
Daniel (Pereira)4 haviam fundado a Associação dos Quilombolas da Macambira do
Município de Lagoa Nova5, pré-requisito administrativo e jurídico para o pleito pela “autodeterminação”. Todo esse investimento, inserido em um processo de cerca de dez anos de
demandas por reconhecimento identitário e de cidadania frente ao Estado, tem como uma
de suas demandas sócio-econômicas centrais a regularização de sua situação fundiária e a
ampliação de seu território atual, recuperando áreas anteriormente perdidas, ou por venda,
ou por processos de conflito com grandes proprietários locais, em particular entre as
décadas de 1930-1940, quando se cercaram as grandes propriedades na região. Além disso,
evocando as prerrogativas centrais à Constituição Federal de 1988 (de elogio e salvaguarda
da diversidade cultural), as mobilizações políticas implementadas pela Comunidade desde a
passagem dos anos 1980-1990 tem objetivado fazer reconhecer (em especial frente à
população regional por quem historicamente tem sido discriminada) seu direito à
cidadania: o reconhecimento do valor e especificidade de sua origem socio-cultural,
inscrita na memória social e nas relações cotidianas do grupo, patrimônios do grupo e da
história geral do Seridó.
O processo socio-histórico de formação da Comunidade (e da ocupação da Serra de
Santana em termos gerais) dá conta de que o problema da terra é historicamente umas das
questões centrais para o grupo – em especial ao longo do século XX -, ponto em torno do
qual seus membros se organizaram tanto em termos reivindicatórios frente ao Estado
(INCRA e SEARA); quanto, em seu extremo, em termos de ações efetivas de ocupação de
área vizinha (área que anteriormente teria sido parte de seu território original) pertencente a
um dos grandes proprietário da região (Ubirajara Lopes Galvão), em 1997, uma vez que
estas seriam improdutivas e se agravara sobremaneira as condições de reprodução social do
4
Mais adiante tratarei da lógica de transmissão de nomes no que diz respeito a sobrenomes e primeiros
nomes, o que, dado o uso generalizado de apelidos, como veremos, dificulta o trabalho historiográfico.
5
Vide ANEXO 4.
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grupo.6 A constituição formal da Associação Quilombola demandou, além de elaboração
estatutária (estatuto social) e eleição de uma diretoria (diretoria, conselho consultivo e
conselho fiscal) – como veremos, instaurando novos modelos de organização política -,
uma primeira reconstrução da história social da Comunidade, a partir da qual (e em
respeito à convenção 169 da OIT)7 assinada pelo Brasil, a Fundação Palmares
fundamentaria sua certificação.
Esta primeira versão, ponto inicial deste trabalho, abarca o período que vai de sua
fundação em meados do século XIX, através da compra de algumas datas de terra por um
mulato, alforriado (homem livre que na chã da Serra de Santana constituiria numerosa
família), passando por sua descendência, de cujos intra e extra-casamentos se formariam os
troncos velhos (as famílias mais antigas, tradicionais), de que os membros atuais
descendem e a partir dos quais, até a atualidade, estes se organizam e se pensam como um
grupo étnico (Weber, 1999:275; Barth, 2000:27-28). Conforme apontou o processo de
pesquisa para elaboração deste documento, para entender a formação socio-histórica da
Comunidade, e em especial as características da negritude nela encontrada, é mister refazer
também a formação do campo intersocietário mais amplo dentro no qual esta se
desenvolveu, a saber, a ocupação dos sertões setentrionais do Seridó pela produção pastoril,
no caso em particular no entorno do açude do Totoró, local de fundação das primeiras
fazendas que levariam a formação da cidade de Currais Novos (Lima, 1990). Isto não só
por conta dos recursos teórico-metodológicos utilizados para pensar algumas das situações
sociais (Gluckman, 1987; Oliveira, 1988) encontradas em Macambira e em seu entorno na
Serra de Santana, mas também pela própria natureza do processo de formação sóciohistórico da Comunidade, no que pesam as relações que esta estabeleceu e estabelece com
as demais comunidades da Serra e a população de cidades como Currais Novos, Lagoa
Nova, Bodó e Santana dos Matos.
6
Voltaremos a esse ponto mais adiante, quando dermos conta dos acontecimento políticos e econômicos em
que a Comunidade se viu envolvida nos anos 1990.
7
OIT (Organização Internacional do Trabalho), Convenção 169 de 07/06/1989. Em vigor em 5 de setembro
de 1991. Aprovado pelo Congresso Nacional em 25/08/1993. Um dos princípios centrais subjacentes, que
rege seus 44 artigos, é o de que um dos marcos essenciais de instauração do processo de reconhecimento
étnico de um dado grupo baseie-se em sua “auto-identificação” enquanto tal.
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Para entender a formação e desenvolvimento da Comunidade de Macambira, de
como esta apresenta e interpreta sua descendência negra, é necessário entender não só a
história das famílias (Lévi, 2000; Oliveira, 2006) do lugar, mas também as feições do
campo escravocrata local e o paulatino processo de alforriamento da mão-de-obra escrava
ao longo do século XIX, em especial a partir de 1850, com o crescimento do contingente de
homens livres que conformariam novas relações de trabalho e de acesso à terra. É do
encontro de alguns dos negros forros que se formaram agregados familiares como
Macambira, nas áreas marginais (em terras menos produtivas e de mais difícil acesso) aos
epicentros de desenvolvimento regional como Currais Novos, Acari e Caicó. Estes
contingentes de homens livres continuou, no entanto, inter-ligados a seus antigos patrões
tanto pela reconfiguração – e não extinção - do modelo de dominação patriarcal
(Weber,1999), passando do trabalho escravo ao da sobre-exploração do trabalho (quando
ex-escravos passam a trabalhar como foreiros em terras alheias em sistemas de pagamento
de uso com parte da produção); quanto por compadrio, que ao longo do período colonial
marcou o tipo de relação de dominação da sociedade brasileira em formação (Freyre, 1933;
Brügger, 2006).8
No caso de Macambira, sua formação advém do encontro de famílias negras ao
redor das datas compradas por um ex-escravo, Lázaro, depois de forro, Lázaro Pereira de
Araújo, possuidor de vasta área na qual um conjunto de famílias estabeleceria laços de
casamento e compadrio, e que na chã da Serra foram aos poucos abrindo seus primeiros
roçados próprios e constituindo descendência. Paulatinamente, na ampliação de suas redes
de matrimônio, também travariam relações com colonos pobres, 9 complexificando o
alcance do campo intersocietário com o qual formam alianças e as características da
etnicidade (Cohen, 1974; Barth, 1969) nela encontrada na atualidade. Este processo, como
veremos através das narrativas orais registradas e dos documentos de transmissão de terra
encontrados (Capítulo 1), está intimamente relacionado com os fluxos de ocupação da
Fazenda Totoró10 - em torno da qual se fundaria a cidade de Currais Novos -,
que
seguiriam em direção norte, ocupando a Serra de Santana, primeiro com o gado, depois
8
Voltaremos a esse ponto mais adiante.
Há exceção, como veremos mais adiante, no caso da família Ferreira que há 3 gerações se relacionou com a
família Assunção, família dentre as fundadoras do hoje município de Bodó.
10
Em especial, como veremos mais adiante, em torno da figura da matriarca Dona Adriana de Olanda de
Vasconcelos e sua descendência (Medeiros, 1981 e 1983).
9
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com as gentes, expulsando os últimos caboclos (índios) habitantes de suas matas, ainda nas
primeiras décadas do século XIX, assentando famílias, casas, roçados e casas de farinha,
configurando, ao longo de um século e meio, o espaço sócio-cultural e fundiário de sua
vasta chã. Voltaremos à formação dos primeiros currais e posterior ocupação da Serra no
próximo capítulo.
Antes, porém, seguindo a Instrução Normativa INCRA no 20, de 19 de setembro de
2005; e os preceitos de regem uma antropologia reflexiva (Clifford, 1998) ou, em termos
sociológicos, uma sociologia do conhecimento (nos termos de Bourdieu, 1968), quando é
procedimento metodológico fazer ressaltar em que medida as condições de produção da
pesquisa (materiais e relacionais) condicionam os resultados alcançados, apresento:
(1) as condições de produção da pesquisa (trabalho de campo, pesquisa em cartórios e
mapeamento bibliográfico);
(2) os conceitos e estratégias teórico-metodológicas escolhidos para classificação e
análise do material histórico e etnográfico reunido;
(3) e a lógica de organização do relatório, tanto na forma e seqüência em que os dados
sócio-históricos são apresentados, bem como do eixo central que alinhava as
conclusões a que chega este trabalho, a reconstrução do processo de formação da
negritude encontrada em Macambira em sua relação com o campo intersocietário
regional.
Como pretendo demonstrar, ao contrário das imagens que o senso comum associa à
noção de quilombo, ou do tipo de negritude que caracterizaria esses grupamentos de exescravos,11 no caso de Macambira, o que marca a formação sócio-cultural da comunidade
negra, na contramão de noções como a de “isolamento” associada ao uso “frigorificado” do
termo quilombos (Almeida, 2002; O’Dwyer, 2002), é justamente sua estreita relação
política e econômica, de cunho clientelista, com as famílias “brancas” dos centros político-
11
Como de comunidade de fugidios, ou isolada do mundo dos “brancos”, algumas das imagens mais
recorrentes utilizadas para descrever tais grupos sociais, noções pouco produtivas para o entendimento da
complexidade dos quadros sócio-históricos que marcam cada uma das comunidade negras que no Brasil
contemporâneo reivindicam direitos e cidadania.
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administrativos próximos que fundaram os primeiros currais, futuras cidades no sertão
seridoense, em contexto colonial de dominação (Bonfil Batalla, 1972).
ETNOGRAFIA ,
H I STORI OGRAFIA
E
PRODUÇÃO
DI ALÓGI CA
DE
CONH ECI M ENTO
O trabalho de campo desenvolvido na Comunidade de Macambira desdobrou-se
entre fim de outubro de 2006 e maio de 2007, perfazendo um total de 11 idas a campo
somando 40 dias de trabalho.12 Além do investimento etnográfico na Comunidade e em seu
entorno, realizaram-se também levantamentos preliminares em cartórios e arquivo
paroquial nas cidades de Acari, Caicó e Currais Novos.13 Por fim, realizou-se também a
consulta ao acervo bibliográfico disponível nas bibliotecas Central e Setoriais da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e do Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN) sobre a formação sócio-histórica do Rio
Grande do Norte (em particular a ocupação dos sertões do Seridó), dois dos principais
acervos bibliográficos do Estado. A equipe de pesquisa básica era formada pelo
antropólogo, e por Vilmário Cândido Pereira (34 anos) e Pedro Pereira (68 anos). 14 Em
algumas ocasiões contou também com a Prof. Ângela Torresan (DAN/CCHLA/UFRN),
documentarista, além de Jociara Nóbrega, Eloi Magalhães e Augusto Nascimento,
assistentes de pesquisa (estudantes de Ciências Sociais, CCHLA/UFRN).
12
Especificamente: 20-22/09; 14-16, 24-26 e 28-30/10; 18-20,/11;09-11, 15-17/12; 10-12/02; 4-6/03; 1522/04; e 30/04-01/05. O trabalho rendeu um total de cerca de 24h de material gravado em áudio (em um total
de 11 histórias de vida e de família); cerca de 14 hs em vídeo; croquis da área territorial ocupada ao longo do
tempo pelo grupo; 8 documentos de posse, compra e venda de terra; e dois diários de pesquisa (de campo e
de acervos documentais e bibliográficos).
13
No Acervo Paroquial da Paróquia de Nossa Senhora da Guia, em Acari, e nos 1os cartórios de Caicó e de
Currais Novos. Agradecemos à gentileza e cuidados dos senhores Padre Raimundo Cervolo da Silva,
Francisco Canindé Medeiros e José Lopes de Araújo, em Acari; Geraldo Barros de Medeiros Junior, em
Caicó; e Wendell Javas de Macedo, em Currais Novos. Neste momento, em particular, a equipe de pesquisa
era formada pela professora-PRODOC do DAN/PPGAS/CCHLA/UFRN Ângela Toressan e pela aluna do
Curso de Ciências Sociais, assistente de pesquisa, Jociara Nóbrega, a quem também sou muito grato.
14
Note-se a idade de ambos. Este ponto merece destaque na medida em que a equipe era formada tanto pelo
jovem presidente da Associação Quilombola local (conhecido pelo grupo por seu caráter empreendedor), o
Vilma, e um dos especialistas da memória locais, também conhecido como Pedro de Chico, que desde o
início das mobilizações dos anos 1990 tem estado junto ao grupo que têm reorganizado politicamente a
Comunidade. Saliento ainda que todo o processo de construção da pesquisa e do conhecimento alcançado foi
negociado com ambos os personagens, marcando o trabalho com o que Clifford (1998) chama de dialogia no
processo etnográfico, ou “produção colaborativa”.
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Um dos primeiros problemas que deve se colocar o antropólogo na produção de um
relatório desta natureza é o da relação entre o tempo disponível para pesquisa e produção de
um perfil antropológico do grupo em questão, em particular em seu processo de
territorialização (Oliveira, 1999);15 e as expectativas jurídico-administrativas do Estado e
das comunidades em estudo frente às “respostas” que o trabalho antropológico deve
oferecer, de caráter técnico, no tempo o mais curto possível. Neste sentido, um primeiro
ponto a ressaltar é o de que, diante do tamanho da Comunidade de Macambira (em uma
área atual na qual se distribuem cerca de 300 famílias, perfazendo um total estimado,
aproximativo, de 240 casas em uma população de cerca de 1200 pessoas) e do pouco tempo
disposto pelo órgão estatal contratante para sua realização, qual estratégia etnográfica
adotar para traçar tal perfil? Necessariamente, o método adotado tem de ser qualitativo. Um
dos primeiros trabalhos realizados, (que acabaria sendo o que requereria maior
investimento ao longo de todo o processo de pesquisa), foi, por exemplo, o da
sistematização de genealogias exemplares de algumas das principais famílias da
Comunidade. Isto não só como um procedimento previsto para o tipo de pesquisa
antropológica que uma comunidade como Macambira requer,16 mas por nelas estar
depositado um dos eixos centrais através dos quais seus membros apresentavam-se como
sendo um mesmo grupo étnico e a que recorre para apresentar parte de sua memória social.
Este fato materializa-se na expressão corrente ouvida ao longo do trabalho nos quatro
cantos de seu território, dentre todos os troncos visitados: “aqui é tudo uma família só”. A
investigação material e simbólica dessa assertiva constatou que a Comunidade de
Macambira atual articula uma extensa rede familiar, que vem sendo desenvolvida ao longo
de 7-8 gerações, e que se distribui, atualmente, em cinco sub-territórios: Macambira II e
III, Buraco de Lagoa, Cabeça dos Ferreira e Ludogério.17 Cada sub-território representa
15
Que em termos estritamente acadêmico-científicos, se fossemos seguir os padrões internacionais,
significariam um trabalho de campo de no mínimo 12 meses. Neste sentido, ressalte-se, que os alcances de
documento como este são apenas de um perfil básico do grupo, de sua morfologia social e formação sóciohistórica.
16
Um entendimento e descrição da morfologia familiar são centrais para a compreensão da organização social
geral do grupo. No caso, como apresentarei mais adiante, a metodologia de trabalho utilizada reúne
instrumentos e modos de trabalhar “clássicos” da Etnologia, bem como da literatura teórico-metodológica
dedicada os estudos de etnicidade, além do modelo historiográfico proposto pela “nova história”.
17
Segundo membros da Família dos Daniel, Macambira I, habitada pelos Pinheiro e sua descendência,
apesar do nome, não mantêm relações familiares com as demais família da Comunidade. Seu nome é recente
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o domínio de uma ou duas famílias principais, os troncos velhos em que hoje a
Comunidade está articulada. Suas respectivas ocupações respondem pelo aumento geração
a geração de novas áreas ocupadas, em geral no entorno de pais e avôs. Desses troncos
velhos podemos citar como estando dentre as principais: os Daniel (Pereira Araújo), em
Macambira III; os Severiano, Amaro, Araújo e Felipe em Buraco de Lagoa; os Firmino e
Rodrigues em Macambira II; e os Ludogério no Cabeça dos Ludogério, e os Ferreira
Cabeça dos Ferreira.
(antes se chamava Capivara), tendo sido dado por vereadores da Câmara de Lagoa Nova, por questões
administrativas.
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Croqui: Fora de Escala. Mapa desenhado
durante o processo de pesquisa (11/02), em
especial para tomada de pontos com uso de
GPS durante reconhecimento do território
atual de Macambira. Serviu para uma série de
outros fins, tanto para organização do
trabalho, quanto como desenho que foi sendo
preenchido ao longo do trabalho de campo.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
Diante da necessidade de ter de propor algum recorte no alcance da documentação
de genealogias, e da pesquisa em termos gerais, e ao mesmo tempo partindo do que já havia
sido feito em um primeiro mapeamento da rede de conhecedores (os “que sabem as
histórias”) que fora acionado pela Associação Quilombola para apresentação do pedido de
auto-reconhecimento à Fundação Cultural Palmares, figurou-se a primeira estratégia de
pesquisa e um primeiro trabalho simbólico-morfológico a dar conta: a conformação das
redes familiares em que se organiza hoje a Comunidade e o seu uso material e simbólico
para corroborar, nos casos estudos, (a) versões históricas de sua fundação e formação, (b)
configurações sociais e territoriais por que tem passado e (c) sentidos e sentimentos de
pertencimento étnico de descendência negra. Neste ponto, cabe ressaltar também que tanto
a normatividade proposta pelo INCRA, quanto os procedimentos antropológicos
empregados pelo Grupo de Trabalho da Associação Brasileira de Antropologia (ABA)
sobre Terras de Quilombos propõe “incorporar o ponto de vista dos grupos sociais que
aspiram à vigência do direito atribuído pela Constituição Federal” (O’Dwyer, 2002:18), o
que também, acrescente-se, está em consonância com a resolução 169 da OIT. Neste ponto,
como enfatiza Almeida (2002:67), corroborando o proposto pelo GT da ABA, e pensando
especialmente o caso das comunidades negras que na contemporaneidade se apresentam
como quilombos em seu passado e presente de lutas:
“O recurso de método mais essencial, que suponho deva ser o fundamento da
ruptura com a antiga definição de quilombo, refere-se às representações e práticas
dos próprios agentes sociais que viveram e constituíram tais situações em meio a
antagonismos e violências extremas”.
No presente caso, devemos, portanto, dar conta de refletir sobre a natureza de uma
historiografia (em um “escrever a história”) baseada em “memórias de velhos” (Bosi,1994)
tendo como técnica central a constituição de histórias de vida. Além disso, precisamos
também apresentar parte da estratégia etnográfico-historiográfica adotada de compor, em
suas feições básicas, uma história da família em Macambira (Lévi, 2000; Oliveira, 2006) a
partir de algumas histórias exemplares de membros de alguns de seus troncos. E ainda, não
menos importante, e já apontando para o caráter dialógico (Clifford, 1998) do material ora
apresentado, enfatizar que a rede articulada partiu e dependeu do trabalho de Vilmário
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Cândido Pereira, o Vilma, presidente da Associação Quilombola local e aos que lhe são
mais próximos, que articulou as primeiras gravações, quando então nos foram indicados
novos senhores e senhoras especialistas, nesta ou naquela família, sobre certo período
histórico em particular, sobre certo ramo de determinada família, ou sobre certa área
específica do território em suas características ecológicas e de ocupação.
Cabem portanto algumas considerações de ordem historiográfica. Para entender a
natureza e positividade do material histórico ora apresentado, devemos refletir sobre os
processos de constituição de uma memória social (Connerton, 1989; Tonkin, 1992), no que
esta tem de produção contextual (Malinowski, 1935; Hymes, 1970; Goodwin & Duranti,
1992) e de ideológico-político posicionada (Bourdieu, 1968, 1998). Isto tendo por base
narrativas orais transmitidas por uma rede de especialistas da memória (Le Goff, 2003) ,
reconhecidos pelo grupo como sendo portadores das memórias da origem, das famílias e
da constituição e ocupação do território. Como apontam autores como Peirano (2006), Le
Goff (2003), Vansina (1965), Thompson (1992) e Burke (1992, 1997), para as Ciências
Sociais contemporâneas, e para a ciência da História em termos específicos, não se trata
mais de desqualificar, hierarquizar ou legitimar certas fontes em detrimento de outras (no
presente caso, na relação entre documento escrito versus documento oral), mas antes de
entender os alcances e limites de uma historiografia que se baseie neste ou naquele, ou em
ambos os tipos de fontes. Deste modo, reconhece-se também o caráter necessariamente
interpretativo da reconstrução historiográfica. Assim como as sociedades mudam, os
métodos historiográficos de apreensão e análise da mudança dessas sociedades também tem
mudado. Além disso, hoje estamos mais cientes, depois das críticas e propostas feitas pela
“micro-história” (Lévi, 2000), a “nova história” (Burke, 1992; Le Goff, 2003) ou pela
“história dos anais” (Burke, 1997), de que enquanto projeto político-ideológico de certas
classes (Le Goff, 2003), a constituição de uma história autorizada da formação da Nação
(ou da Região) deixou de lado não só a contribuição dos elementos étnicos (“negros” e
“indígenas”, para usar os termos mais generalizadores empregados), a não ser enquanto
atores secundários; como não incorporou a historicidade específica desses grupos, que
parte de suas formas narrativas e de transmissão locais de conhecimento, de como estes
contam seu passado e seu protagonismo ao longo dos processos de transformação da
sociedade em termos gerais. Essa historiografia dos “donos do poder” (como designa ao
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patronato brasileiro Faoro, 1958), uma história do ponto de vista do patronato, produziu e
vem produzindo, desde o período colonial, imagens e sentidos aos termos “negro” e “índio”
(e seus desdobramentos como as noções de “quilombo” e de “tribo”) que, além de não
darem conta da complexidade de situações de formação que estes grupos vêm sofrendo ao
longo de décadas - e mesmo séculos -, mantiveram-se etnocêntricas, de caráter
homogeneizador e hierárquico, não levando em consideração a extrema diversidade de
situações socio-culturais em que estas populações são encontradas no Brasil, corroborando
e sendo mais um dos instrumentos de dominação patriarcal (Weber, 1999) tanto material e
simbólica desses grupos étnicos.18
Como o propõe Thompson (1992:138), em defesa de uma historiografia oral, a
“hierarquia aceita de fontes” (que tende, em termos ascendentes, do oral para o escrito, e do
presente para o passado), já não tem sustentação metodológica. Inclusive, em termos de
controle da produção do dado histórico, p.e., a aplicação da técnica de história de vida pode
ser muito mais escrutinada em termos de contextualização das condições de produção do
conhecimento gerado do que, p.e., um documento de província do século XIX, produzido
por membros de uma elite colonial em meio ao regime escravocrata. Resume o autor:
“O que é importante é que muitas das perguntas que se devem fazer sobre os
documentos – se podem ser falsificações, quem era seu autor, e com que finalidade
social foram compostos – podem ser respondidas com muito mais confiabilidade em
relação à evidência oral do que em relação a documentos, particularmente se aquela
provier de um trabalho de campo do próprio historiador” (Thompson, 1992:139).
Diante disto, recuperar positivamente uma historiografia de base oral para o
presente caso (independente do conjunto documental escrito reunido), é tanto reconhecer o
valor, a especificidade e o resultado historiográfico de narrativas como as compiladas neste
trabalho, atribuindo-lhes o estatuto de documentos (Peirano, 2006); quanto atender às
demandas cientificas e de direito constitucional e internacional contemporâneas, para as
quais
“os procedimentos de classificação que interessam são aqueles construídos pelos
próprios sujeitos a partir dos próprios conflitos, e não necessariamente aqueles que
são produto de classificação externas, muitas vezes estigmatizantes” (Almeida,
2002:68).
18
A isto voltaremos mais adiante, à constituição dessa “imaginação histórica” (Comaroff &Comaroff, 1992),
em especial através da noção de “negro”.
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Assim, as narrativas a partir das quais apresentamos o processo de formação sóciocultural da Comunidade de Macambira tanto nos impelem, em termos mais amplos, a
repensar criticamente uma história do Rio Grande do Norte (vide, p.e., as reflexões e dados
de Valle, 2006; Cavignac, 2006; Assunção, 2006; e Ratts, 1998); quanto dão conta de
reconhecer e identificar as formas e conteúdos narrativos através dos quais a memória
social do grupo se expressa e é constituída como uma contra-história (Clifford, 2003)19
frente às necessidades e estigmas que seus membros tem passado desde o fim da
escravidão, por acesso à terra, às condições básicas para produção agro-pastoril, ao
reconhecimento e valorização de sua descendência negra. Narrativas em que a violência e o
conflito são lembrados – por vezes de forma dolorosa -20 para que sejam conhecidas as
injustiças praticadas, para que estas não se repitam, para que se saiba contra o que a
Comunidade tem lutado, física e simbolicamente. É, portanto, de dentro do quadro de
relações sociais assimétricas em que estão historicamente inseridos que partem suas
reivindicações e demandas por direitos. Do ponto de vista das Ciências Sociais, dentro de
um projeto de produção de uma historiografia a partir do local, organizar minimamente de
forma mais estruturada o conjunto de informações presente nessas histórias de velhos é
também dar continuidade à constituição de uma história das “velhas famílias do Seridó”
(Medeiros Filho, 1981),21 desta vez partindo de outros suportes da memória que não apenas
a documentação cartorial e paroquial – nem sempre disponível -, e ampliando o espectro
étnico dessa historicidade, complexificando e enriquecendo o entendimento sobre a
formação socio-cultural dos sertões do Seridó em termos de diversidade cultural.
19
Segundo Clifford (2003), uma história produzida em contexto de dominação colonial para se contrapor à
versão hegemônica.
20
Esse tipo de memória, como o coloca Thompson (1992:190), está sujeita ao esquecimento: “acima de tudo,
consciente ou inconsciente, o mais provável é que memórias que são abandonadas, ou positivamente
perigosas, sejam tranqüilamente enterradas”.
21
Recuperando parte da historiografia dedicada ao Seridó, em especial ressaltando a praticamente ausência
dos elementos negros e indígenas nessa produção, Macedo (2005:151) comenta sobre o trabalho de Olavo de
Medeiros Filho que, apesar do “mérito do trabalho de fôlego do autor em arquivos da região e da
sistematização e transcrição de muitos documentos”, ao final, “o fortalecimento das origens brancas das
estirpes seridoenses é bastante claro”, sendo a descendência de suas “principais famílias” de “patriarcas de
origem ou descendência lusitana”.
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Dentre as técnicas historiográficas disponíveis, optou-se pela “coletânea de
narrativas”, 22 com vias a formar, como já enfatizado, uma “história da vida familiar”
(Thompson, 1992:303). Lévi (2000:99-100), exercitando reconstruir o campo de relações
fundiárias entre famílias de certa região da Itália, no século XVI, propõe a constituição de
“núcleos parentais” a partir dos quais se pode vislumbrar as “estratégias das famílias”, tanto
na constituição do “regime de parceria” entre patriarcas, quanto nos processos de
arrendamento da terra. Esta metodologia, propomos, pode também ser aplicada ao uso de
fontes orais. Partindo dessas premissas, procurou-se identificar os núcleos parentais
centrais ao redor dos quais a Comunidade se organiza. Dentro deles, entrevistar o indivíduo
ou casal que dentre os mais velhos de um dado tronco é reconhecido como, nos termos
locais, “aquele que sabe as histórias dos antigos”. Tendo como eixo a construção de uma
história de vida, as entrevistas foram semi-estruturadas, tendo uma “seqüência de tópicos”
(Thompson, 1992:262) básica que se iniciava com a genealogia do entrevistado - de forma
a alcançar o máximo de profundidade -; passando pelas transformações nos modos de
sociabilidade e dos usos e percepções do território desde a infância dos sujeitos aos dias
atuais (que nos levava em média à primeiras décadas do século XX); além de inventariar
informações sobre a ocupação dos sertões de Currais Novos e da Serra de Santana no
século XIX, em especial do “sítio Macambira”. O trabalho teve também dois momentos
distintos:
(1) em um primeiro momento, houve pouca interferência do pesquisador no ritmo das
entrevistas. Estas foram conduzidas por Vilmário Pereira, tendo nós antes combinado os
tópicos centrais de que trataríamos. Neste primeiro momento, tanto o investigador ainda
estava se familiarizando com a história e a narratividade do lugar, quanto se desenhava uma
oportunidade para acompanhar os próprios atores no exercício de re-memorar. No caso, de
constituir uma memória social (a partir da historicidade local) que desse conta de mostrar a
longevidade de ocupação do território, para o grupo base inalienável de seus direitos; e o
fato de conformarem um grupo minimamente coeso e discreto, baseado na extensa
articulação entre famílias (abarcando 5 sub-áreas), e distinto do entorno, baseado em sua
22
“Uma vez que pode ser que nenhuma delas seja, isoladamente, ao rica e completa como narrativa única
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descendência negra, no caso em particular de um ex-escravo das grandes famílias de
Currais Novos provavelmente alforriado na década de 1840-1850.
(2) na segunda fase de entrevistas, já com uma base historiográfica consolidada (uma
primeira versão que se delineava), e tendo em vista o curto prazo de pesquisa, estas
passaram a ser menos fluidas, mais pontuadas e sistemáticas, e com maior investimento em
certos pontos. Neste momento, a condução principal das entrevistas foi feita pelo
pesquisador, mediando as expectativas de transmissão da versão produzida pelo grupo - as
ênfases que este dava, os eventos que escolhia -, com as demandas das instruções
normativas do órgão de regulação fundiária.
Desse investimento, gerou-se o seguinte material e mapeamento familiar dos
especialistas da memória dentro de alguns dos troncos velhos:23
Nome
1
Família
(tronco)
Santos
4
Maria Luciana dos Santos
(Bahia)
Manoel José de Araújo (Manoel Araújo
de Julieta)
Manoel e Severino Daniel Pereira Pereira
(Manoel e Severino Daniel)
Severo Ferreira
Ferreira
5
José Ferreira
Ferreira
6
Maria Firmino dos Santos
e Francisco Rodrigues de Araújo
Pedro Francisco dos Santos
(Herculano) e família
Pedro Daniel Pereira
(Pedro de Chico)
Jordão Apolinário de Araújo
Firmino
e Araújo
Santos
2
3
7
8
9
10 Salvino Ferreira da Silva
Pereira
Araújo
Ferreira
Local e data
Tempo total
Macambira III,
14.10.06
Buraco de Lagoa,
28.10.06 e 19.04.07
Macambira III,
28.10.06
Cabeça dos Ferreira,
09.12.06
Macambira II,
10.12.06
Ludogério, 04.03.07
1h00’
4h00’
1h30’
2h00’
1h30’
2h00’
Ludogério, 04.03.07
1h00’’
Macambira III,
16.04.07
Buraco de Lagoa,
17.04.07
Grotas do Açu,
1h30’
2h00’
2h00’
23
Todas as entrevistas forma realizadas nas casas dos entrevistados, a partir das quais, ao longo das
entrevistas, se buscou fazer um histórico da ocupação da área ao redor da casa, em geral, cercada de outras
casas de parentes em variados graus. Isto porque a ocupação total da área hoje é conseqüência das ocupações
locais, na medida do crescimento das famílias, estas expandindo as demais casas e roçados no entorno das
casas dos casais mais velhos.
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11 Manoel José Felipe da Silva
(Manoel Felipe)
12 Tuca Amaro
Felipe
Amaro
13 Quirino Daniel Pereira
Pereira
14 Joaquim Daniel Pereira
Pereira
17.04.07
Macambira II,
18.04.07
Buraco de Lagoa,
19.04.07
Macambira III,
30.04.07
Macambira
III,
16.04.07
1h00’
1h00’
2h00’
1h00’
Do entrecruzamento dos eixos e eventos narrativos identificados como centrais
pelos informantes, e também pela análise dos discursos por estes produzidos, constituiu-se
a versão apresentada neste trabalho que dá conta da fundação, ocupação territorial e
desenvolvimento familiar da comunidade de Macambira (temas dos próximos capítulos).
Esta tendo à família Pereira, os Daniel, como principal articuladora das mobilizações
políticas locais e da memória social apresentada.24 Além disso, desse entrecruzamento
também se desenha um perfil genealógico que nos leva a uma descendência comum entre a
maioria dos entrevistados25 de – 4 gerações, até Lázaro Pereira de Araújo, e a uma rede de
matrimônios que vai se formando e que tem no casamento entre primos (cruzados ou
paralelos) uma de suas características centrais a partir da quarta geração.26
Um outro eixo de pesquisa documental desenvolvido, em função dos materiais que
foram sendo compilados nas narrativas orais reunidas, foi o que levou a procurar possíveis
registros de Lázaro, a semente de toda a Macambira, em cartórios e arquivos paroquiais nas
cidades do entorno para que apontavam as narrativas compiladas (Currais Novos, Acari e
Caicó). Além disso, quando do início do trabalho, na primeira reunião com a Comunidade
para apresentar a pesquisa que seria feita (21.09.06), comentou-se sobre certos
“documentos antigos”, “do tempo de D. Pedro” (ou “documentos de D. Pedro”) que
24
De fato, em Buraco de Lagoa, p.e., do ponto de vista dos Severiano, diz-se que a Macambira original, o
lugar onde tudo começou é a área hoje conhecida como Macambira III, especialmente povoada pelos Daniel
desde pelo menos o início do século XX.
25
Quando não, de todo modo se conhecia o nome de Lázaro Pereira de Araújo. De fato, como veremos, um
dos nomes utilizados também por seus vizinhos para se referirem à comunidade é a de “terras dos Lázaros”.
26
A título de exemplo, ainda que este tema seja mais desenvolvido no capítulo 2, Manoel José de Araújo,
crescido em Buraco de Lagoa, e Joaquim Daniel Pereira, crescido em Macambira, são parentes, ainda que
pouco se relacionem de fato, uma vez que seus bisavós são filhos de dois dos filhos relembrados de Lázaro
Pereira de Araújo, Ana de Lázaro e Francisco Lázaro, respectivamente.
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
comprovavam a posse da terra da Comunidade.27 Estes estariam de posse de Ana Amaro,
em Buraco de Lagoa, que os herdara de seu marido, que os herdada de seu pai, o velho
Amaro, que por sua vez os teria recebido das mãos de Francisco Lázaro de Araújo, filho de
Lázaro Pereira de Araújo. O conjunto de 8 documentos encontrados,28 alguns datando ainda
da década de 1840, outros já cópias dos documentos do século XIX feitas na década de
1930 em cartório de Currais Novos, dava conta de uma fascinante história de compra e
venda de terras, entre os anos 1856 e 1877, no qual não só se desenhava o perfil territorial
de Macambira (com a aquisição e venda de áreas de terra); como também revelava um
campo intersocietário em que os senhores dos currais de Currais Novos aparecem travando
relações com Lázaro Pereira de Araújo, a ele vendendo terra, ou servindo de testemunha
nos processos de compra e venda. Isto configura um campo escravocrata em que, ainda
que tenhamos coletado relatos de violência extremada em alguns casos, a lógica de
dominação parece ter sido essencialmente clientelista (Landé, 1977) com troca de favores e
apadrinhamentos, o que bem se adapta ao modo como, p.e., Elíseo Galvão, o último grande
“coronel” que aparece nas narrativas de Macambira, seja lembrado com alguém que sempre
visitava a Comunidade “montado em seu burrinho”, oferecendo presentes, instigando a
venda de terras e, ao final, cercando inclusive áreas que não havia comprado, com
promessas de futura devolução. A estes pontos voltaremos mais adiante. Por hora,
organizemos os documentos encontrados:
Documento Ano
27
28
1
1843
2
1856
3
1856
4
1858
5
1858
6
1859
7
1870
8
1877
A grande maioria dos membros da comunidade não tem a situação territorial regularizada.
Vide ANEXO 1. Alguns destes já se encontravam em péssimo estado de conservação.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
Para que se tenha uma dimensão de até onde ia a área original de Macambira, hoje
bastante modificada, o documentos de 1856 (3) atesta que esta tinha em sua fronteira sul, a
data do Totoró, ao norte as Grotas do Açu, a leste a data da Areia, e a oeste, a data da
Catunda. Localmente, entre os mais velhos, usa-se a expressão “de um cipó a outro”, que
na prática significa que a primeira área do antigo “sítio Macambira” vinha desde as grotas
do Açu até as grotas do Seridó, de um extremo ao outro da chã, no eixo norte-sul. Na
contemporaneidade, esta é a área que vai de Buraco de Lagoa até as cabeças de Macambira
III, Ludogério e Cabeça dos Ferreira. Parte das áreas ao norte e à leste, já não pertencem ao
grupo, tendo sido ou vendidas ou simplesmente cercadas à revelia de seus donos por Elíseo
Galvão (por volta dos anos 1930-1940).
Por fim, ressaltamos, mais uma vez, que os dados apresentados neste trabalho, que
se pretendem elementares e introdutórios, tem como eixo as narrativas dos sujeitos eleitos
pela comunidade como porta-vozes de sua história, articuladas com os documentos
cartoriais encontrados e a literatura compilada que dá conta da ocupação pastoril do Seridó
(Lima, 1990; Dantas, 1992; Lamartine, 2005; Macedo, 2005; Macedo, 2005; Medeiros
Filho, 1981, 1984). Desta forma, se pretende apresentar os processos de territorialização
(Oliveira, 1999) historicamente presentes na área a partir das dinâmicas de família, bem
como as bases a partir da qual o grupo se pensa enquanto unidade étnica autônoma e
diferenciada de seus vizinhos “brancos”, a que os membros da Comunidade chamam de
“morenos”.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
D E “NEGROS”, “ESCRAV OS” E “H OM ENS LIV RES”: FORM AÇÃO ÉTNI CA EM
CAM PO I NTERSOCI ETÁRI O EM TRANSFORM AÇÃO ( SÉCULOS XI X-XX)
UM
Para entender as raízes dos padrões de relação étnica locais (Barth, 1966, 1969)
entre “brancos” e “negros” na Serra de Santana, de quais processos incidem sobre a
formalização de padrões que se estabelecem entre “brancos” e “negros” na região estudada,
assim como a formação da etnicidade encontrada hoje na Comunidade de Macambira,
precisamos voltar ao século XIX, às feições da sociedade escravocrata pastoril dominante
local, e de como nesta, a partir da década de 1850, apareceriam “homens livres”, que
contribuiriam para a formação sócio-cultural de novas comunidades no entorno de Currais
Novos, no caso em especial na chã da Serra de Santana.
Sabemos que as situações quilombolas encontradas no Rio Grande do Norte
(Assunção, 1994, 2006; Cavignac, 2006; e Valle, 2006), e nas demais regiões do Brasil
(O’Dwyer, 2002;
Arruti, 2006; Almeida, 2006; Boaventura, 1996, 2004), nos levam
necessariamente a fazer uma revisão crítica tanto das historiografias locais e nacionais,
conforme levantado na sessão anterior, quanto dos significados que noções como “negro”,
“escravo”e “homens livres” ganharam ao longo do tempo, e a partir de que situações
concretas. Sabemos, p.e., diante da historiografia que tem sido editada nos últimos anos,
que em lugares como o Rio de Janeiro (Castro, 1997), Minas Gerais (Brügger, 2006), Bahia
(Fraga Filho, 2006) e São Paulo (Franco, 1997; Slenes, 1997; Luna & Klein, 2005), que
não só a passagem de uma lógica escravocrata para uma lógica capitalista não se deu de
maneira uníssona e homogênea, como os movimentos de aquisição de liberdade e posterior
re-organização social de mocambos, senzalas e comunidades rurais negras também foi
marcada por diversidade, por projetos coletivos que tanto levaram grupos a se fecharem em
termos de aliança e casamento, quanto outros, ao contrário, a fazerem uso das redes
clientelistas existentes desde a escravidão, souberam dela tomar partido, adquirindo terras,
sobrenome e alguma autonomia. No caso do Seridó, ao longo da pesquisa, ainda que raro,
houve casos de negros que ascenderam, adquirindo alguma notoriedade, e conseguiram, em
datas adquiridas de terra, constituir família e descendência, como é o caso do personagem,
quase mítico, que funda Macambira, Lázaro Pereira de Araújo, ou o de Feliciano da Rocha,
de renome conhecido e cuja descendência ainda é encontrada em Acari (Dantas, 1992).
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
Para além dos usos de termos “frigorificados” e homogeneizadores com que a
categoria quilombo tende a ser manejada no senso comum (Almeida, 200), que estratégia
adotar para recuperar a noção em sua positividade, refletindo a realidade situacional com a
qual o pesquisador está se defrontando? Mais uma vez, precisamos voltar ao que nos dizem
e como agem os atores sociais dos grupos com que trabalhamos, bem como à formação do
campo intersocietário local. Um primeiro ponto a ressaltar é o de que, como nos lembram
autores como White (1994), Said (1990), Gruzinski (2003), Torodov (1988) e Bonfil
Batalla (1972), termos como “negro”, ou “índio”, e seus corolários “tribo” e “quilombo”,
são categorias constituídas em contextos coloniais, na maioria das vezes com tendência
homogeneizadora (quer dizer, não levando em consideração as especificidades sócioculturais locais), de fato parte do instrumental da conquista. Como o propõe Valle (1999),
nas relações étnicas, “eles” e “nós”, “brancos” e “índios”, no caso “brancos” e “negros”,
também expõe suas diferenças e demandas nas disputas do campo semântico da etnicidade,
onde o termo “negro” pode tanto expressar repúdio e violência, quanto “herança”,
“descendência”, “patrimônio”. No caso específico de Macambira, p.e., pouco importa
sabermos se estamos diante de estoques de negros sudaneses ou angolas. Como o coloca
Barth (2000), ao pensar o caráter contrastivo da constituição de fronteiras identitárias, mais
do que procurarmos sinais diacríticos de uma suposta africanidade que balizaria uma
negritude “autêntica”, temos que entender os arranjos que o grupo tomou para continuar
enquanto tal, minimamente coeso e autônomo. Dito de outro modo, tomando a situação
colonial (Batalla, 1972) em que estão inseridos os ex-escravos que aos poucos conquistam
sua alforria no século XIX, quais “negros” era possível ser? Ou ainda, salientando o caráter
etnográfico da pesquisa: que negritude encontramos em Macambira? Mais do que ligada a
rituais de possessão ou batuques, esta se constitui no próprio exercício cotidiano de resistir
às adversidade materiais e simbólicas – que como veremos foram muitas – a que tem sido
expostos ao longo de mais de 100 anos.
De fato, se em alguma medida, no contexto desta demanda territorial, a negritude
pudesse eventualmente ser questionada, seu direito em definir-se como quilombola, lembrese que quem primeiro demarcou fronteiras étnicas foi o preconceito, foi a população
“branca” do entorno, preconceito materializado na expressão “negros da Macambira”.
Independente disso, em especial no capítulo 1, serão apresentadas as bases da etnicidade de
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
Macambira. Apresentaremos a ocupação curraleira na região de Currais Novos de modo a
compor em seu perfil básico o campo intersocietário local, em diálogo com o qual a
etnicidade de Macambira se conformará, muitas vezes de forma crítica, como resposta à
dominação patrimonial (Weber,1999) a que até pouco tempo ainda era exposta. No capítulo
2, damos conta da constituição de um desenho sócio-cultural básico da Comunidade, com
ênfase em seu processo de mobilização política das últimas duas décadas. Pro fim, algumas
considerações e recomendações finais.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
I.
OCUPAÇÃO DO “SÍ TIO M ACAM BIRA” E
FORM AÇÃO DA DESCENDÊNCI A DE
LÁZARO PEREIRA DE ARAUJO (SÉCULOS XI X-XX)
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CURRAI S NOV OS DA FAZENDA TOTORÓ (SÉCULOS XV I I I -XIX)
“Percorrendo a extensa zona dos nossos sertões, onde os costumes
ainda se ressentem do culto do passado, vemos a cada passo
lembrados homens antigos, que já se foram, mas permanecem na
memória das gerações novas que os não esquecem, conforme foi
boa ou má a sua conduta no tempo em que viveram” (Dantas,
1941:5).
Em Homens de Outr’ora, de Manoel Dantas (2001[1941]), “clássico” da
historiografia do Seridó, somos apresentados a alguns desses “homens antigos” que
povoaram esses sertões desde especialmente o século XVIII, povoamentos dos quais se
formaram cidades como Caicó, Acari e Currais Novos, tendo a pecuária e a escravatura
como eixos de produção material e simbólica da vida social. De fato, o trabalho de Dantas
se insere em uma já consistente historiografia da formação desses sertões, com foco,
saliente-se, na “família branca” (vide, p.e., Lamartine, 2005; Medeiros, 1981, 1983; Lima,
1990 [1937]; Othon, 1970; Augusto, 2002 [1940]).29
É de se notar, no entanto, que o problema da escravidão pouco aparece nesta
bibliografia, bem como a relevância, e mesmo presença, do elemento negro para a
formação cultural da região. Quando aparece, sempre residual, ou é simplesmente negada;
ou é colocada como algo “brando” e “amistoso” - o castigo sendo excepcional -; ou é
celebrado o seu fim, a ação abolicionista sendo apresentada como marcante na região.
Dantas (2001:25), p.e., corrobora a visão de que “a escravidão não deixou traços no Rio
Grande do Norte”. Lima (1990:189) apresenta não só o envolvimento de membros da elite
de Currais Novos no processo abolicionista de 1888, mas “o alvoroço e o enthusiasmo pela
campanha”. E, por fim, em termos gerais, em uma historiografia geral do Rio Grande do
Norte, em Medeiros (1980:101 apud Ratts, 1998) encontramos sentenciado:
29
Trata-se de uma história construída do ponto de vista dos “coronéis” (Lamartine, 2005), das “figuras
salientes” (Lima, 1990), das “velhas famílias” (Medeiros, 1983).
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“são raros os negros com raízes tradicionais no Rio Grande do Norte, descendentes
em linhas retas de antigos escravos. A contribuição da raça negra para a formação da
etnia no Rio Grande do Norte foi mínima”.
Além da necessidade de reconhecimento do quadro teórico-analítico e político
através do qual tem se escrito a história do Seridó - o que em parte explica essa ausência
(vide Macedo, 2005; Valle, 2006) -, é de se fazer notar a pouca base de dados empíricos
dessa historiografia: não ultrapassa os limites sociais da família patriarcal pastorilescravagista do Seridó dos séculos XVIII e XIX; e trabalha com fontes secundárias (p.e.
inventários e certidões), ou com fragmentos do que se classifica como “tradição” (Lima,
1990:185), documentos orais, apresentados sem maiores preocupações com a explicitação
das metodologias utilizadas para sua produção.
Do ponto de vista da Serra de Santana, da trajetória da Comunidade de Macambira,
formada pelos arranjos sobretudo entre famílias negras que foram se alforriando em meados
do século XIX, a história compilada neste trabalho30 põe em questão e complexifica parte
da historiografia geral do Seridó, não só salientando a considerável presença negra na
região,31 mas também revelando os esquemas ideológico-políticos que operam por trás do
apagamento da escravidão como realidade evidente e determinante na formação da região.
Além disso, a trajetória de fundação e formação da Comunidade de Macambira também
revela, para o século XIX, não a abolição da assimetria étnica presente do regime
escravocrata, mas sua adaptação para um regime de dominação de feição patrão-cliente
(Wolf, 2003:108-111), com presença de compadrio como lógica de familiarização patronal
e o arrendamento (com foros de 30-50% da produção total por safra) como modelo de
exploração do trabalho.
A esse sistema de produção, baseado na super-exploração do trabalho, passou a se
chamar na grande História da Nação (nos termos de Anderson, 1989) de “trabalho livre”
(Libby & Furtado, 2006). Ao menos, as relações de trabalho em que encontramos os
membros da Comunidade de Macambira historicamente envolvidos, em sua maioria
vivendo de arrendamento em terras alheias, em termos micro-lógicos, inscrevem-se dentro
30
Que se soma a trabalhos recentes produzidos em outras comunidades negras do Estado. Vide, p.e.,
Assunção, 2006; Cavignac, 2006; Ratts, 1998; e Valle, 2006.
31
Para citar 3 das comunidades negras existentes no entorno da cidade de Currais Novos, temos a
Comunidade dos Negros do Riacho e a Comunidade de Queimadas (Queiroz, 2002), e a de Macambira, já na
Serra.
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da grande categoria representada pela noção “trabalho livre”, mais de cunho ideológiconacionalista, do que propriamente uma realidade na acepção ampla do termo. Nos termos
de Batalha (2006:97), autor inserido no movimento contemporânea na “nova história” em
repensar criticamente e com maior documentação a oposição consagrada na historiografia
brasileira, entre “trabalho escravo” e “trabalho livre”: “parece evidente que a abolição da
escravidão não assegurou o fim da coerção extra-econômica no trabalho”. De fato, analisa
(idem), que “se a coerção extra-econômica é uma manifestação mais visível da limitação à
liberdade no período pós-escravidão, está longe de ser a única”.
Ressalte-se, mais uma vez, em termos simbólicos, que o primeiro movimento de
demarcação de fronteiras étnicas entre “brancos” e “negros”, de instituição dessa
categorização, no caso em particular entre a população de Lagoa Nova e a de Macambira, é
dado pela comunidade “branca” (nos termos de Gluckman, 1987), quando estigmatiza
historicamente os membros da comunidade negra próxima cerca de 10 quilômetros, através
da expressão “negros da Macambira”, de cunho pejorativo, a que se ligam as concepções de
“bravos”, “pobres”, “feios”, “sujos” e”feiticeiros”.32 A expressão ilustra bem a
argumentação crítica de French (2006:75), de que a abolição do escravismo em 1888 não
assegurou o fim da coerção, dado seu “vasto repertório de medidas repressivas”, com
especial “prevalência de formas extra-econômicas de coerção”.33 Cruzando os dados mais
recentes recolhidos pela nova história (Libby & Furtado, 2006) com o exame dos
pressupostos ideológico-econômicos das representações produzidas pela historiografia
nacionalista do início da República,34 French (2006:79) aponta mais continuidades do que
descontinuidades no antes e pós-1888 - nos “limites nebulosos entre o livre e o não-livre” -,
que se aproximam sobremaneira da sociedade seridoense da virada dos séculos XIX-XX:
“(...) os legados da escravidão africana incluem noções bem estabelecidas sobre o
exercício legitimado da autoridade, hierarquias de status profundamente arraigadas
e modelos de governança que mantiveram sua influência mesmo após o seu fim”.
32
Queiroz (2002), em seu trabalho sobre “preconceito racial” na Cidade Currais Novos, apresenta dados
demonstram a atualidade do estigma relacionado à negritude.
33
Batalha (apud French, 2006:75) neste ponto se pergunta, para o contexto urbano de fins do século XIX: “o
quanto livre estavam os trabalhadores urbanos após a abolição do escravismo?”.
34
De onde herdados a versão oficial de nossa formação histórica.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
Em suma, resume criticamente French (idem), mais do que descontinuidades, a
passagem dos séculos XIX-XX é marcada pela permanência, em suas feições básicas, da
“cultura autoritária e paternalista das classes dominantes”. Do ponto de vista do
entendimento dos processos que incidem (Barth, 1966, 1969) sobre a formação do agregado
familiar que daria início à Comunidade de Macambira na segunda metade do século XIX, é
preciso considerar resumidamente, de início, as feições desse campo de relações
interétnicas dentro do qual se funda a fazenda Totoró, em fins do século XVIII e a futura
expansão de sua vacaria para a chã da serraria ao norte, extremo norte da Serra da
Borborema, que receberia o nome da padroeira da gente que primeiro ocupou a região:
Nossa Senhora Sant’Anna. Deste modo, para chegarmos à descendência de Lázaro Pereira
de Araújo, e para entender o quadro de relações dentro do qual o negro forro estava
inserido, e com o qual soube negociar adquirindo datas de terra, precisamos apresentar a
criação dos primeiros currais em torno da data do Totoró pela família Lopes Galvão (Lima,
1990; Augusto, 2002, Medeiros, 1981, 1983; Lamartine, 2005).
Macedo (2005) resenha e posiciona os trabalhos dedicados à produção de uma
história do Seridó, à sua “invenção” enquanto espaço físico e simbólico. A conquista do
oeste nordestino, resume, “fez-se percorrendo duas vias: pelos sertões de dentro e pelos
sertões de fora” (:33). Por esta última, pelos caminhos abertos poucas décadas antes pelas
frentes que aniquilaram as últimas resistências indígenas organizadas naqueles sertões (vide
Puntoni, 2002; Medeiros, 1981:9), chegaram de Pernambuco e da Paraíba frentes de
colonização, tendo o gado como epicentro do modelo econômico e sócio-cultural em fins
do século XVII.35 Como nos lembra o autor (Macedo, 2005:35), “a conquista do sertão não
foi pacífica”. Ao que acrescentaríamos, nem o foi a sua colonização. Por esses caminhos
chegaria, na segunda metade do século XVIII, a frente que povoaria o Seridó setentrional,
“num recôncavo da Serra de Santana, na bifurcação dos rios Maximoré e Totoró”
(Lamartine, 2005:85).
“Ao que parece”, compila Lima (1990:185),
“a primeira exploração do território deste município foi feita, conforme a tradição,
no anno de 1755, pelo coronel Cypriano Lopes Galvão, natural de Iguarassú, casado
com D. Adriana de Hollanda Vasconcellos, ambos de Pernambuco, o qual tendo
35
Motivo pelo qual muitas vezes se chamou a esse período, em especial entre os século XVIII-XIX, de “ciclo
do gado”, “ciclo do couro”, e mesmo “civilização do gado”.
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obtido a data do “Totoro”, dali viera com sua família situar-se na sua data e fundar
uma fazenda de criar gados”.
Cypriano Lopes Galvão foi o primeiro Coronel do Regimento de Cavalaria da
Ribeira do Seridó (Medeiros, 1981:369). Medeiros (1983:88) nos lembra que dentro do
regime hierárquico e militarizado da governança das capitanias, em que o cargo político
confundia-se com o militar, o Regime de Cavalaria compunha sua 3a linha, a das
“ordenanças”. “Tais tropas”, salienta o autor (idem), “quando instaladas nos arraiais,
ficavam sob comando de um coronel”. Este, portanto, do alto da sede da Fazenda Totoró,
no Pico do Totoró (Medeiros, 1983:99), ocupava funções administrativas e militares frente
àqueles sertões. A titulação militar seria transmitida a seus filhos, em especial aos filhos
primogênitos, só que em grau cada vez mais baixo (como, p.e., capitão-mór e sargentomór). Seriam 14 filhos (Augusto, 2002; Medeiros, 1981), entre homens e mulheres, que ao
longo do século XVIII, assim como seus descendentes, arrendaram progressivamente novas
datas de terra36, a exemplo da área contígua à Fazenda em que erigiram novos currais, pelo
que a requereram e batizaram de data de Currais Novos (Lamartine, 2005:86).
Com seu falecimento, em março de 1764, pouco depois de iniciado o processo de
ocupação dos baixios da Serra de Santana, casa-se por segunda vez sua mulher, Adriana de
Holanda de Vasconcelos, com o “rico fazendeiro” Félix Gomes Pequeno (Medeiros,
1981:369). Nesse mesmo ano de 1764, em abril, a viúva recebe:
“duas sesmarias de três léguas por uma, da forma da lei. Na primeira, o domínio
confinava com o sítio de criar gado no Totoró e era na Serra que ela descobrira, por
intermédio dos escravos, huma serra de plantar rossa, sem água corrente nem
vertente, inútil para pastorícia. Na outra, teve sobras nessa Serra que corre uma
parte para o Açu e outra para o Seridó” (Medeiros, 1981:369).
Nesta última sesmaria, a matriarca e sua família constituiram terras de plantar,
em especial mandioca (mas também milho e feijão), e as primeiras casas de farinha da
região. Em seu inventário (1793), encontramos as seguintes datas contíguas na Serra
de Santana (antes “Serra Negra” ou “Serra Azul”) como “bens de raiz” (Medeiros,
1983:175-176):
36
“Sesmarias” (Medeiros, 1983).
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(1) “Uma data de terras de plantar lavouras, na serra chamada Santana, com o título
de antiguidade Serra Negra ou Serra Azul, cuja data a houvera a defunta mulher
dele inventariante, da sesmaria da Cidade do Rio Grande do Norte, que
compreendem em si três léguas de comprido e uma légua de largo, já cultivada e
situada, que fazem suas extremas, com a parte do poente com o Coronel, digo,
Tenente Coronel Jerônimo Cabral de Oliveira,e, pelo nascente, com terras do
mesmo monte, pelo norte com terras do Capitão Domingos Jorge e do Sargento-mór
Matias Fernandes de Sá, e, pelo sul, com terras do dito Totoró de Cima, do mesmo
monte. Declaro que esta data acima dita, assim confrontada, a houveram por título
de compra, que dela fizeram por escritura pública, a Antônio Tavares da Silva,
morador
que
foi
na
Vila
da
Princesa....................................................................................................... 600$000”.
(2) “Uma data de terras de plantar lavoura, na Serra Santa Ana, algum dia
denominada Serra Negra ou Serra Azul, que tem de comprimento três léguas, e uma
légua de largura, cujas terras houveram por título de Data de Sesmaria, passado por
um dos Capitães-Mor e Governador da Cidade de Natal do Rio Grande do Norte,
que fazem suas extremas, pelo poente, com terras de plantar,do mesmo monte, e,
pelo nascente, com terras de criar do Capitão Baltazar Soares da Silva, do sitio
denominado Curralinho, e com terras de Miguel Alves de Souza, no sítio
denominado Bodó, e, pelo sul, com terras de criar do Capitão-Mor Cipriano Lopes
Galvão, do sítio Areia e São Bento, e terras de criar do Tenente-Coronel Afonso
José
Albuquerque,
dos
sítios
denominados
Santo
Antônio
e
Maxinaré.......................................................................................................600$000”.
Dentro dos limites materiais desta investigação, não foi possível pesquisar – se
possível o for – os limites exatos a que se referem ambas as datas mencionadas. As
dificuldades de tal tarefa se dão não só pela “precisão” agrimensora do século XIX e as
relações de poder que muitas vezes incidiam nos registros cartoriais, mas também pela
destruição da maioria dos “marcos testemunhados” que demarcavam “linhas” de terra,
desde Currais Novos, subindo pela Serra nas primeiras décadas do século XX.37 Nos termos
de Salvino Ferreira,38 quando passa, então, a ser “terra cercada”. Segundo Manoel de
Julieta, dos Severiano,39 uma dessas datas ficava para leste da Serra de Santana, onde hoje
se encontra Lagoa Nova, e a outra seria a em que hoje se encontra a grande Macambira.
Neste ponto, a trajetória da família “branca” senhorial dos Lopes Galvão incide sobre a da
“família negra”, uma vez que serão justamente partes de uma dessas datas que Lázaro de
37
Em especial, no contexto dos conflitos por delimitação de fronteiras entre 1930-1940, quando os grandes
proprietários locais passam a cercar áreas que consideram como sendo de sua propriedade
38
Grotas do Açu, 17.04.07.
39
Buraco de Lagoa, 19.04.07.
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Araújo comprará e a partir das quais erigirá roçados, casas de farinha e descendência.
Como veremos mais adiante, as datas de terra ocupadas pela Comunidade desde a década
de 1850, advêm de transações comerciais com os herdeiros de Dona Adriana, dessas
referidas “sobras nessa Serra que corre uma parte para o Açu e outra para o Seridó”
(Medeiros, 1981:369). Além disso, é possível que Lázaro de Araújo tenha sido escravo de
um dos filhos de Dona Adriana de Vasconcelos. Nos inventários e listas de nomes de
“escravos” consultados (de Acari e Currais Novos), o nome “Lázaro” é raro, sua única
ocorrência se dando no inventário de Félix Gomes Pequeno (2o), filho do segundo
casamento com Dona Adriana.
Sobre esta senhora, que da viuvez de seus três casamentos constituiria vasto
patrimônio, administrando ao longo de quase um século gerações de membros da grande
família Lopes Galvão, ressaltamos ainda o que da história oral local compila Queiroz
(2002:77): da “doação e divisão de sua terra para os pobres”. E ainda: a “possibilidade de
que Adriana de Holanda de Vasconcelos tenha presenteado, ou seja, concedido, ainda em
vida, parte de suas terras aos seus escravos, numa época dominada pelo sistema escravista”
(idem). Isto talvez ajude a explicar, considerando-se o regime de assimetria étnica vigente,
o modo como décadas depois seus herdeiros estariam negociando com o “negro” forro
Lázaro de Araújo. Junte-se a isso, em se considerando que após 1850 já era possível
negociar terras (Silva, 1996) e que o negócio do gado já não era tão rentável, a necessidade
destes herdeiros em dinamizar seus capitais.
Se atentarmos para o conjunto de bens inventariados por algumas das famílias
“brancas” fundadoras de centros de povoamento e expansão entre os séculos XVIII e XIX
como Currais Novos (Medeiros, 1983), nos damos conta também de que se tratava de uma
sociedade de poucas e circunscritas posses para o exercício da vida cotidiana, basicamente,
datas de terra e cabeças de gado , transmitidos por herança de pais para filhos, e alguns
poucos utensílios, ferramentas e mobiliário. Enquanto empresa econômica, tendo sido
encontrado o “sítio de criar gados”, o criatório exigia “um pequeno contingente de homens
livres pobres e escravos” (Macedo, 2005:40). Primeiro, era preciso encontrar um “sítio”, ou
um “saco”, termos referidos à área de “aguada certa”, na qual “o seu descobridor introduzia
os seus gados, levantando um rancho e uma caiçara, primeiros estágios de uso da terra”, de
forma a que se convertesse, ao atingir produtividade, em uma “fazenda” (Medeiros,
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1983:10). Como vimos, dada a centralidade de papéis assumida por um personagem como
Cypriano Galvão, o centro político-administrativo do Seridó do Currais Novos dos séculos
XVIII-XIX é a casa do senhor, é a casa da Fazenda Totoró.40 Nela se darão, p.e., todas as
transações de terra de Lázaro de Araújo junto a herdeiros de Dona Adriana, bem como de
vendedores que já as tinham comprado anteriormente de membros da família Galvão. No
Totoró se farão as transações, no Totoró elas serão registradas. Os papéis administrativos
não assumidos pelo patriarca da família, como os cargos de juízes, o serão por outros
membros da família ou de família com quem tenham aliança. Ressalte-se ainda, que dadas
as condições em que os registros de terra eram feitos em meados do século XIX (como
veremos mais adiante), não ser de estranhar que boa parte das testemunhas dos documentos
de terra encontrados em Macambira serem da família Galvão. Deste modo, no regime
político do Seridó do século XIX, regime que receberá com “entusiasmo”, nos termos de
Lima (1990), a abolição e a República, a família patriarcal administra em termos gerais, a
família julga, registra, testemunha.
Para nos aproximarmos mais detidamente da organização social do Seridó do século
XIX, recuperamos rapidamente o exercício de Medeiros (1983:27) em seu exercício de
“reconstituir a vida nas fazendas seridoenses naqueles tempos remotos” a partir dos
inventários de bens de alguns dos representantes de algumas das principais famílias da
região, objetivando reconstituir em suas feições sócio-históricas básicas o mundo social em
que em meados do século, já avançado o processo de alforria na região, se formou a
Comunidade de Macambira.
Nos inventários de bens dos séculos XVIII e XIX, às casas chama-se de “moradas
de casas”. Nestes, predominam as “casas térreas, de taipa, cobertas de telhas” (Medeiros,
1983:53). Casas como as da sede da Fazenda Totoró, já utilizavam tijolos em suas
construções, como aponta a seguinte passagem, do inventário (1814) do Capitão-mór
Cipriano Lopes Galvão, filho de Cypriano Galvão (idem): “uma morada de casas com
frente de tijolo”. A descrição de Medeiros (1983:55) da organização interna básica dessas
casas (com sala de frente, corredor no meio que leva a dois cômodos laterais chegando ao
final à sala-de-trás), muito se assemelha a algumas das casas encontradas em Macambira,
como revermos mais adiante.
40
Estrutura semelhante é apresentada por Freyre (1987) para o caso de Pernambuco.
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“Anexo à morada”, aponta Medeiros (1983:55), “havia a senzala e outros
cômodos”. Apesar do efeito de pouca relevância produzido pela literatura dedicada à
ocupação do Seridó das contribuições e presenças negras na sociedade e cultura regional,
dados da Vila do Acari dão conta de que entre 1754-1875 “o número de cativos oscilava de
uma a trinta e duas peças” por amo ou senhor (Macedo, 2005:45). Medeiros (1983:31)
assim resume a situação:
“Os fazendeiros, dedicados exclusivamente à criação, possuíam uma menor
quantidade de escravos. Os que, além da pecuária, também exploravam atividades
agrícolas, possuíam-nos em maior escala, em uma média de dezoito escravos, em
suas terras”.
Em termos de valores por unidade, 41 acompanhamos, do período de 1773 – 1866,
um progressivo aumento nos preços pagos pela mão-de-obra, diretamente proporcional ao
processo crescente de alforriamento que desde as primeiras décadas do século XIX já
estava em curso na região. Os preços máximos pagos por homens, p.e. variaram de 90$000
(noventa mil réis) em 1773, passando por 450$000, em 1847, e chegando até 1:200$000 em
1866. Esses números censitários e a presença que eles revelam devem ser pensados em
relação ao quadro geral sócio-cultural da região (no caso que abarca o entorno dos
municípios de Currais Novos e Lagoa Nova), e não isoladamente, apenas como números
inexpressivos em termos estritamente quantitativos. Se recuperamos a passagem “célebre”
de Cascudo (1984:44), em que este coloca que, na ocupação do sertão, “era desnecessária
grande cópia de escravos”, razão pela qual sentencia que “o negro foi-nos uma constante,
mas não uma determinante econômica”, devemos, em certa medida, concordar com o
intelectual potiguar. Mas seria necessário acrescentar, como vimos nos parágrafos
precedentes, que esta feição não caracterizava apenas à população negra: era desnecessária
grande cópia populacional em termos gerais para o gado enquanto empreendimento
econômico nos sertões de “terra livre”. Toda e qualquer “empresa” no Seridó entre os
séculos XVIII-XIX, é pequena em termos administrativos e operacionais, de estrutura
familiar, de feição muitas vezes nuclear. Isto explica, inclusive, por que a relação de
dominação encontrada da região é de tipo patrimonial (Weber, 1999), articulada ao nível
41
Por peça, terminologia da época.
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diádico, das relações pessoalizadas, já que a coerção em forma mais sistemática (com
capatazes, capitães do mato e sistemáticas de controle da produção e do castigo) requeria
investimentos sustentáveis só com empreendimentos de alto vulto, o que não era o caso da
vacaria do sertão.42
Portanto, tudo era pouco no Seridó dos séculos XVIII e XIX: as gentes, as casas, os
móveis, os bens pessoais, o regime alimentar, a água, os luxos de prata e ouro (vide
Medeiros, 1983), tudo, exceto a terra - reunida na grande propriedade -, o gado e a
mandioca. Neste sentido, considerado em sua proporcionalidade, tudo é determinante, ainda
que condicionado, no entanto, pelo quadro geral dentro do qual as relações sociais eram
travadas: o da segregação com base raciológica (“raça negra”) 43 e da escravidão como
modelo econômico.
Ao tratar da análise de um contexto pluri-étnico específico, bem mais complexo que
o representado pelos membros da Comunidade de Macambira em sua relação com as
comunidades vizinhas e a cidade de Lagoa Nova, Leach (1996:71) enfatiza o pouco
rendimento analítico, bem como a “ficcionalização” a que são submetidos os diversos
grupos sociais e sistemas políticos em negociação, quando pensamos a cada um
isoladamente e fechado em si, tentando apreender-lhe as feições supostamente essenciais. É
preciso pensar a interação entre os componentes étnicos do sistema para entender a
especificidade de cada um, bem como os nortes possíveis de negociação para o
empreendimento de projetos individuais (Leach, 1995:71). Além disso, alerta ainda (idem),
não se pode esperar da vida em sociedade um “sistema em equilíbrio”, ainda mais em
contexto de assimetria e dominação de um dos grupos étnicos sobre os demais. Ao final, “a
situação real é na maioria dos casos cheia de incongruências” (idem).
Assim como o contexto sócio-cultural da Serra de Santana, também a situação
etnografada pelo antropólogo inglês apresentava bastante mistura social e cultural entre os
diversos grupos em relação, além da possibilidade, prevista dentro da organização geral do
42
Análise proposta por Benedito Souza Filho (comunicação pessoal) a partir do caso maranhense durante a X
Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste (2007).
43
Que associava – e que em alguns casos ainda associa – características culturais com características
fisiológicas. Deste modo, p.e., a “raça branca” teria propensão a ser mais inteligente, pelo que preparada para
o mando, ao passo que a “raça negra”, inferior, seria apta ao trabalho pesado, por sua constituição física, e
pouco desenvolvimento intelectual, o que desde a antropologia da virada do século XIX-XX já foi
cientificamente desqualificado e criticado por ser apenas reflexo de ideologias de dominação (vide Boas,
2004; Lévi-Strauss, 1970).
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
sistema social regional, enfatize-se, de mudar de “identidade” de acordo a vinculação social
em questão (p.e. de descendência, religião, ou etnia). Como então encontrar - diante da
mistura socio-cultural e da variação dos parâmetros de pertencimento e vinculação
identitária - os eixos a partir dos quais os grupos se separam, demarcam uns frente aos
outros suas singularidades e circunscrições? Mais adiante, trataremos de como os membros
da Comunidade operam essa diferenciação. Por hora, seguimos a proposta de Leach (1996),
e procuramos entender a família “branca” e a família “negra”, por mais que haja variações
internas em cada uma, como constituindo, no contexto da interação – mesmo que
conflituosa -, um mesmo sistema regional.
44
Ao compararmos, em termos básicos, p.e., a
formação de cada um dos modelos ideais, entendendo a cada uma como conformando um
sistema ou tendência de parentesco e familiarização (Comerford, 2003:41), e apesar das
muitas semelhanças, 45 podemos dizer, ao acompanharmos o quadro matrimonial da família
Galvão ao longo do século XVIII (Medeiros, 1981:369-384), que nos deparamos com uma
lógica que poderíamos sem problemas classificar como de tendência endogâmica, muito
por força das circunstâncias, muito como resposta ao regime segregacionista (idealmente de
não mistura), com prevalência de casamentos entre primos, dos dois lados, com a presença
de avunculado. Para além do centro familiar, também se estabelece relação com famílias
“de fora” (mas do mesmo segmento social, enfatize-se) da vizinha Acari, em especial com a
descendência de Thomaz de Araújo Pereira, patriarca de outra das “velhas famílias”
(Medeiros, 1981) fundadoras dos povoados dos sertões do Seridó. Lembre-se ainda que em
regime de segregação, por mais “amistosa” que a literatura regional enfatize ter sido o
processo escravagista seridoense, raros eram os casamentos interétnicos entre “negros” e
“brancos”.46
Como veremos na sessão seguinte, para Macambira, a tendência inicial é
exogâmica, é de mistura, idealmente, seja “branco” ou “negro”. Posteriormente, com o
estreitamento do campo matrimonial possível, no quadro da intensificação da segregação
44
Nos termos de Gluckman (1987), uma mesma “Comunidade”.
Tais como a possibilidade de bi-lateralidade de descendência (com tendência à linha paterna, no entanto,
mas em muitos casos a linha materna, representada pelo seu sobrenome por parte do pai da mãe, é passada
para as filhas); e a grande variabilidade na lógica onomástica de nomeação e transmissão de sobrenome. Parte
da explicação talvez passe pelo fato de em ambas encontrarmos um mesmo substrato socio-cultural cristão
que marca a formação brasileira em sentido geral (vide Velho, 1995).
46
O que não significa que não houvesse relações sexuais entre membros dos grupos.
45
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
étnico-racial, adquire paulatinamente tendência endogâmica, de forma que a maioria dos
casamentos registrados na Comunidade se dá entre primos a partir das geração 3-4.
Será essa sociedade patriarcal, pastoril e escravocrata que alcançará a Serra de
Santana, expulsando os últimos “caboclos” (índios) nela habitantes em finais do século
XVIII. Será a partir dela, no jogo da conquista paulatina por autonomia socio-cultural,
política e econômica, que se formará a família “negra” encontrada na região, no caso em
particular de Macambira, constituída, ao longo de mais de um século, em termos de
comunidade, em redes familiares de matrimônio e aliança circunscritas a um grande
território que ao longo do século XX foi sendo desmembrado, (1) pelo próprio crescimento
interno das famílias, (2) por vendas ou (3) pelo cercamento indevido de grandes
proprietários vizinhos, território (“sítio” na acepção local) que receberia o nome de
“Macambira”.
Sobre a ocupação da Serra, na historiografia seridoense compilada, encontramos em
Alves (1986:137-138) interessante versão de fundação, em texto intitulado “origem do
nome Lagoa Nova”. Em 1777, durante mais uma longa seca, marca ecológica da região,
Dona Adriana, Adriana de Holanda de Vasconcelos, já viúva de Cypriano Galvão e Félix
Pequeno, “notou que, no Totoró, passava sempre uma porção de marrecas, vindas do lado
da Serra Azul, que depois foi chamada de Serra de Santana; na parte da tarde, marrecas
voltavam na mesma direção”. Mandou então dois de seus filhos seguirem as marrecas,
suspeitando que elas tivessem encontrado água. Neste momento, no sentido norte,
conhecia-se até o riacho da Areia. “Logo que conseguiram subir a Serra”, conta Alves
(idem), “notaram que o clima mudava, bem como a vegetação, o emaranhado de cipós de
diversos tipos”. Esse trecho de subida da Serra de Santana é conhecido localmente como as
grotas, e justamente uma de suas características ecológicas ressaltadas ao longo do
trabalho, que vira também signo de territorialidade para definição de fronteiras entre
domínios, é a presença marcante de “cipó preto”. É nessa subida também, enfatiza Manoel
de Julieta, que se encontram muitas macambiras (bromelia laciniosa). Em um fim de tarde,
os irmãos Galvão teriam visto as marrecas pousando no local onde encontraram uma lagoa,
batizada de “Lagoa Nova” (1986:138). O relato do autor seridoense torna-se bastante
interessante - apesar dos limites confusos apresentados para a data de terra requerida por
Dona Adriana -, motivo pelo qual nele nos estenderemos um pouco mais:
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
“Encontram também bastante gado, em torno da lagoa, arrancharam-se (...) e
ficaram dois dia verificando gado que descia para beber (...). Voltaram e trouxeram
as boas novas a Dona Adriana que ficou muito feliz, mandou fazer um curral perto
da lagoa, bem como abriu caminho para descer com o gado, verificou também que
as terras estavam devolutas, foi a Natal e requereu a Sesmaria de Lagoa Nova, que
ficou assim delimitada: pelo poente com a própria Dona Adriana, pelo norte com
terras de criar do capitão Baltazar Soares da Silva, no sítio Curralinho e Miguel
Alves de Souza, no sítio denominado Bodó, pelo nascente com terras de Félix
Gomes Pequeno, pelo norte com terras do Capitão Mor Galvão nos sítios Areia e
São Bento e com terras do Tenente Coronel Afonso José Albuquerque, nos Sítios
Santo António e Maxinaré. A data foi requerida e despachada com três léguas de
comprimento e uma de largura (...)” (Alves, 1986:138).
Do ponto de vista de Macambira, as referências mais antigas encontradas sobre o
imóvel ou lugar assim denominado, em termos de documentação escrita e bibliográfica,
estão: (1) nas escrituras de transmissão de terra encontradas na Comunidade (entre 18561859), em que aparece como “sítio Macambira” ou “Serra da Macambira”; (2) e no
inventário de Lázaro de Araújo (1872).47 Na literatura compilada, encontramos referência
ao “logar” no trabalho de Lima (1990[1940]:196), junto a “Buraco de Lagoa” e “Alagoa
Nova”, além de referência à “casa de farinha do Lazaros”, que seria um dos marcos de
limite do município de Currais Novos com a Serra de Santana. Sobre a origem do nome da
Comunidade, narra Manoel de Julieta, de Buraco de Lagoa:48
“Homem, botaram esse nome por Macambira por que lá, lá em Currais
Velhos, encontraram uns pés de Macambira. Mas do município pra lá, num
sabe. Pra cá não. Mas pra lá, pr’aquelas matas encontram uns pés de
Macambira”.
É no relato de Manoel de Julieta que vamos também encontrar versão com bastantes
eixos correlatos com a compilada por Alves (1986), mas desta vez dando conta da origem
do nome “Buraco de Lagoa”, e de uma maior complexidade do quadro étnico do período
colonial seridoense. Em toda a Serra, duas são as principais fontes de água, duas lagoas,
desde o século XIX conhecidas como Lagoa Nova e Buraco de Lagoa. 49
47
Temas das próximas seções.
Buraco de Lagoa, 28.10.06.
49
Que assim o foram até o ano de 2006, com a chegada da adutora vinda do vale do Açu, que hoje abastece
toda a Serra com água para consumo humano.
48
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
“Foi por causa dessa lagoa. Quando foi, quando foi arrematada essa terra.
Isso aqui era uma mata. Isso aqui não tinha nada não. Tinha gado né, aí
chegaram e soltaram na serra. Num tinha arame, num tinha nada. Aí tinha
essa aguada aí, mas ninguém conhecia. Chegavam aqui e não conheciam.
Aí pelo, aí pelo... Aí quando foi um dia, os vaqueiros andando pelo mato, aí
acharam a trilha do gado, aquela lama que era da lagoa. Aí apareceu um
caboclo, aí apareceu um caboclo e disse: “a pois, a pois é água que tem
aqui no nascente. Aqui no nascente tem duas lagoas. Tem uma aí, e tem
outra mais na frente”. Quando chegaram, aí disse que era a beleza maior
do mundo, que tinha passarinho, que o gado tava bem aí. Quando acharam
chamaram de Lagoa do Mato. Aí quando meu bisavô chegou, num sabe, a
família começou a crescer e aí começaram a chamar de Buraco de Lagoa,
Buraco de Lagoa... Até o dia de hoje. Aí o cabra saiu pra lagoa nova, no
rumo dessa daqui. Inté encontrar a lagoa lá. Aí lá botaram o nome de
Lagoa Nova”.
Apesar da presença indígena (“cabocla”) comparecer no relato do patriarca dos
Severiano, de Buraco de Lagoa, e nos relatos de Salvino Ferreira, do Cabeça dos Ferreira,
na forma de casamentos no passado, excepcionais, com “caboclas” que habitavam as grotas
do Açu e que teriam sido pegas a “casco de cavalo”, o conteúdo étnico indígena é residual
no conjunto total das narrativas compiladas. Em Buraco de Lagoa, Manoel de Julieta conta
ainda existir a tapera, toda de barro, do último caboclo que habitou a Serra.50 Além da
complexidade étnica da versão, observamos também no conjunto de narrativas compiladas
uma inversão de protagonismo, que comparada a historiografia das “velhas famílias”
(Medeiros, 19821), quando o foco de onde parte a versão é o da família “negra”, em
particular da família Severiano, que apresenta através de seu atual patriarca, a memória
social que alcançou transmitir entre gerações, oralmente, memória que dá conta da origem
das famílias do lugar (de seus troncos velhos), de personagens em particular, de lugares e
edificações, todos índices do conhecimento que o grupo dispõe do território (material e
simbolicamente), e de seu histórico de ocupação humana e re-configuração fundiária
(migrações, ampliações de terreiros, vendas e desapropriações), temas sobre os quais nos
debruçaremos mais adiante.
50
Buraco de Lagoa, 28.10.06.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
Localização aproximada da Comunidade de Macambira: 6o 05’05.04” S / 36o 33’07.31” (Fonte: Google Earth Plus )
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
“SÍ TI O M ACAM BIRA ”, “T ERRA DOS LÁZAROS”
Um dos termos por que é nomeada a área na chã da Serra de Santana que hoje
abrange os sub-territórios de Macambira II e III, Cabeça do Ferreira, Ludogero e Buraco de
Lagoa, é o de “terra dos Lázaros”, expressão que vêm desde o século XIX, já de pouco uso,
encontrada entre os mais velhos da Comunidade e de seu entorno.
51
Coincidentemente,
Nestor Lima (1990:183), em uma de suas pesquisas durante a década de 1930 no Seridó,
para formação de subsídios a uma história dos municípios desse sertão,52 aponta que o
limite do município de Currais Novos com a Serra de Santana, de “nordeste e norte”,
começa da “casa de farinha de Antonio Ernesto, no “Guedes”, em direção ao nascente, até
encontrar a casa de farinha dos Lázaros”. Como veremos nesta parte do trabalho, é
recorrente no material compilado em Macambira e em seu entorno, tanto a nomeação geral
à famílias, quanto a territórios, com o uso do primeiro nome de algum patriarca, de algum
cabeça de família. Deste modo, temos, como exemplo na atualidade, as famílias que
respondem pelos nomes de Daniel e Manoel Severiano - de sobrenomes Pereira/Araújo e
Do Ó/Araújo, respectivamente -, primeiros nomes de antepassados que por conta do lugar
que ocupam nas histórias de família, passam a designar troncos inteiros, bem como áreas
territoriais. A força desse uso é tão ativa, que chega a comparecer em documentação
cartorial recente, como em certidão expedida pelo Primeiro Ofício de Nota de Santana do
Matos (20.08.01), em que ao delimitar as fronteiras da área atualmente chamada de
“Cabeço da Macambira”, ao sul, nomeia a área que vai de Macambira III, até Buraco de
Lagoa, passando por Macambia II, como sendo a dos “Danieis e Manoel Severiano”.53
Como vimos na parte anterior deste relatório, a ocupação da chã da Serra de Santana
vêm desde o final do século XVIII, intensificando-se em especial a partir da década de
1850. Tanto na história oral da Comunidade, quanto na documentação cartorial encontrada,
51
Manoel de Julieta (Buraco de Lagoa, 28.10.06) fez também uso da expressão “chão dos Lázaros”.
O autor pesquisou tanto em arquivos quanto compilando elementos da história oral local.
53
Parte do processo “Proposta de Desapropriação do Imóvel Fazenda Macambira/RN”, n. 71205, n. de
identificação 54330.001722/2001-68 (p. 02).
52
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
confirmamos que os primeiros negros forros (e em poucos casos, fugidoss)54 que ocuparam
na Serra o “sítio Macambira” migraram para a área em especial na segunda metade do
século XIX, o que conforma praticamente 150 anos de ocupação, traduzida na formação de
redes de parentescos extensa e complexa (que nos leva para além dos limites físicos da
Comunidade), na paulatina formação de terreiros para moradia e na ampliação de
habitações, de roçados e de estoques de maniva,55 e de casas de farinha. 56 No que podemos
chamar de uma história de fundação de Macambira, tanto oral, quanto cartorial,
encontramos com o personagem Lázaro, Lázaro Pereira de Araújo, descrito como
“moreno” ou “mulato”, de estatura baixa, que apesar de possuir datas de terra na Serra de
Santana, morava em Santana do Matos, “na Cruz”.
Na maioria das vezes, é descrito com um “ex-escravo” que “comprou datas de terra
dos herdeiros de Dona Adriana”.57 Um primeiro ponto a ressaltar é a recorrência de sua
presença nas versões orais compiladas dentre os troncos familiares registrados,58 de ser o
“primeiro que chegou”, “aquele que fundou”, a “semente” de todos os “troncos velhos” da
Comunidade, eixo parental central em torno do qual todos se apresentam como sendo “tudo
uma família só”, Lázaro Pereira de Araújo. Como disse Manoel Felipe (Manoel José
54
Mais adiante, quando nos debruçarmos sobre os troncos velhos, veremos o caso de Daniel, fugido da
escravidão de Ceará-Mirim, que se casaria com uma as filhas de Lázaro Pereira de Araújo; e de José do Ó,
patriarca dos Severiano.
55
Semente de macaxeira, conseguida a partir do tronco da própria planta, dos melhores exemplares
conseguidos.
56
Em certas áreas da Macambira encontramos taperas de ocupações anteriores do território no início do
século XX.
57
Apenas na versão de Manoel de Julieta (Manoel José de Araújo), de Buraco de Lagoa, Lázaro aparece
como alguém “rico”, como “homem trabalhador que conseguiu ter umas posses”, “trabalhador
economizador”. Não teria sido um “ex-escravo”, mas era “livre”: “Dizia o meu avô que o pai dele, não tinha
sido escravo não. Foi uma família que não teve escravidão, foi ele”. Nesta mesma versão de fundação de
Manoel de Julieta, um outro personagem, do qual trataremos mais adiante, aparece, no entanto, como
“fugido”, como “ex-escravo”, que é José do Ó, de quem também é descendente. Como veremos mais adiante,
tal versão deve ser contextualizada no quadro geral em que Manoel de Julieta apresenta a formação de
Macambira, de origem “nobre”, fugindo de apresentar um passado de sofrimento e escravidão, bem como
perfazendo uma versão que se contrapõe em termos ideológicos políticos à versão dos Daniel, com quem tem
desavenças familiares. Além disso, os dados encontrados no Inventário n.110 do 1o Cartório de Currais
Novos, corroboram uma origem simples de Lázaro de Araújo, bem como a inserção em um quadro de
relações clientelistas com parte da descendência das famílias Galvão e Lopes Pequeno. Voltaremos a alguns
desses pontos.
58
Nos poucos casos em que isto não aconteceu, chegamos no entanto à geração dos filhos de Lázaro de
Araújo, dentre os quais destaca-se, como veremos, Francisco, que passaria a ser chamado de Francisco
Lázaro.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
Felipe)59 - patriarca dos Felipe, atualmente residindo em Macambira II -, apesar das poucas
lembranças que tem do período genealógico anterior a seus avôs, apontando para a origem
em comum e para os intra-casamentos constitutivos da Comunidade:
“Aqui tudo é de Lázaro, uma família só. Era gente de fora, gente que veio daqui,
outros de acolá. Mas contavam os antigos do Lázaro, que era tudo família dos
Lázaros”.
Na descrição de Manoel de Julieta (Manoel José de Araújo)60, quando trata da
fundação da rede familiar da qual faz parte, quando apresenta uma versão histórica do
ponto de vista dos Severiano enquanto família, e de Buraco de Lagoa enquanto território,
também salienta que todos os seus habitantes, todos os seus troncos, descendem de “Lázaro
Pereira de Araújo”, conhecido também como “Lázaro de Maria”, já que, explica, “esse
povo todo tinha apelido”.61 Corroborando a máxima de que “aqui é tudo uma família só”,
assevera:
“Aqui nesse meio de mundo, para onde você corre, é tudo uma coisa só. Tudo de
Lázaro, tudo de Lázaro. Que foi o primeiro que chegou aqui. O primeiro que criou
família, né. Aí casaram-se os homens, os homens casaram com outra família. As
mulheres casaram com outro povo, e vão criando família, vão criando família,
família casando com outra família e lá se vai, viu. Pois é. A família de Lázaro, era
só Lázaro, quando ele chegou. Hoje em dia, a família de Lázaro tá misturada com
Pinheiro, com Rodrigues. Com Felipe, com Firmino, que são os mesmos
Passarinho. É um familião”.
Partindo inicialmente das narrativas locais, dos eventos e personagens que no
somatório das versões compiladas decanta-se como eixos centrais para os quais voltam-se
as narrativas dos especialistas da memória do grupo, algumas questões se colocaram. Neste
momento do trabalho, tratamos então da fundação de Macambira, enquanto “sítio”, isto é,
enquanto território material e simbólico (enquanto terra para morar e plantar e enquanto
lugar de memória e identidade familiar e étnica); e enquanto “comunidade”, enquanto
descendência comum e rede matrimonial constituída a partir de Lázaro de Araújo e de seus
59
Macambira II, casa de Manoel Felipe, 18.04.07. Família (tronco): Felipes, Silva. Como veremos mais
adiante, os Felipe foram expulsos de onde originalmente habitavam, atualmente Macambira, por gente da
família Pinheiro a mando do finado Cel. Bezerra, de Currais Novos.
60
Buraco de Lagoa, casa de Manoel de Julieta, 28.10.06. Família (tronco): Severianos, Araújo e do Ò.
61
Sobre uma certa lógica de nomeação e transmissão de nomes a indivíduos e famílias, trataremos mais
adiante. No caso em particular, de após o primeiro nome, acrescentar o primeiro nome do cônjuge ou do pai
ou da mãe.
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filhos. Como vimos na parte anterior, o nome Macambira, e provavelmente seu
entendimento como “sítio”,62 deve vir desde o tempo em que a área ainda fazia parte das
datas de Adriana de Holanda de Vasconcelos. Sobre sua compra dos descendentes de
“Dona Adriana”, e sua ocupação por negros forros a partir de meados do século XIX, um
primeiro ponto a ressaltar é o da excepcionalidade do caso de Lázaro Pereira de Araújo, no
Currais Novos de meados do século XIX, e do Seridó em termos gerais. Essa
excepcionalidade em relação ao lugar que ocupou na passagem do regime escravocrata para
o de “trabalho livre” vigente, em suas feições locais, e ao processo crescente de
alforriamento que se acelera na segunda metade desse século. No entanto, ressaltemos, não
se trata de caso isolado.63 Temos então um “ex-escravo”, “mulato”, que alcança bens
materiais e simbólicos, naquele momento praticamente intangíveis para alguém de sua
condição: tem sobrenome, tem datas de terra. Isto significa que pode constituir família,
mais do que isso, pode constituir também a sua descendência, descendência consangüínea e
de afinidade que ocupará paulatinamente e herdará suas propriedades na Serra de Santana.
Isto significa também, que em meio ao regime que ainda era escravocrata em suas feições
essenciais, em que “liberdade” não significa muito mais do que trabalho por arrendamento
em terras dos antigos patrões,64 o “sítio Macambira” passa a ser um local para onde
libertos, pobres e fugidos podem recorrer, para consolidar matrimônio, para conquistar
62
Como nos lembra Olavo de Medeiros (1983:11), reconstituindo parte da lógica material e simbólica dos
sertões do Seridó dentre os séculos XVIII-XIX: “A esse local, com aguada certa, permitindo a fixação do
binômio homem-boi, dava-se na linguagem usada na época, a denominação de sítio. Lendo-se os
requerimentos de concessões de terras da nossa fase colonial, nos deparamos com inúmeras referências ao
significado dado à expressão sítio: “descobriu um sítio de terras de criar gados em um saco”, “no referido
sertão há um sítio devoluto”. Empresta-se, pois, à palavra sítio, o seu sentido geográfico”.
63
Em nossas investidas em pesquisa cartorial e paroquial em Acari, no Arquivo Paroquial, em Caicó, em seu
1o Cartórios, e em Currais Novos, também em seu 1o Cartório, anotamos histórias de “negros” que se
tornaram afamados por que “constituíram descendência” e adquiram “datas de terra”. Em Acari, p.e, apontese o caso famoso do “negro Feliciano da Rocha”, que ficou “rico”. Tanto que comparece nas compilações
feitas por Dantas (1992) e Medeiros (1981) de parte das famílias “brancas” fundadoras dos currais do Seridó e
seus “ilustres” personagens. No caso de Feliciano, segundo versão compilada em Acari, após ajudar um
fazendeiro vindo da Paraíba de passagem pelo lugar, ainda no século XIX, ganharia deste montante de
dinheiro que permitiria a compra de grandes porções de terra. Até os dias atuais se encontraria sua
descendência. Além disso, note-se também que alguns dos casos anotados noticiam possíveis “filhos com
negras” de personagens eminentes da elite local, bem como de relações de compadrio entre senhores e
escravos e ex-escravos, como veremos, que é o caso de Macambira.
64
Como nos lembra French (2006:81), discutindo, dentro de uma história do trabalho no século XIX, a
dicotomia “trabalho livre” versus “trabalho escravo”, uma das opções de trabalho para os “libertos”,
desprovidos de terra para plantar, é o trabalho nos “agregados”: “Como uma classe para a qual muitos exescravos migraram, os agregados viviam em terras controladas por proprietários de escravos e funcionavam
como parte integrante da clientela desses proprietários”.
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alguma autonomia abrindo roçados para consumo próprio, quem sabe para posterior
produção de algumas “cuias de farinha”.
Tomando a posição social do “negro”65 no século XIX,66 lembre-se que constituir
descendência e propriedade é constituir dignidade – e em última instância, humanidade -, é
constituir alguma autonomia, é ser reconhecido como homem trabalhador, homem de larga
família, valores centrais na sociedade patriarcal do Seridó daquele período, e mesmo até a
atualidade. Mas tratemos destes dois pontos: a propriedade de terra e a aquisição de
sobrenome.
Como vimos, do ponto de vista da história oral, Lázaro Pereira de Araújo, que a
memória social local não deu conta de guardar com quem se casou, se alforria e chega à
Serra de Santana dono de terras, de datas adquiridas dos herdeiros de Dona Adriana.
Segundo Manoel de Julieta,67 este, de fato, viveu em Santana do Matos, já nos baixios da
Serra de Santana com os sertões do Açu, onde tinha também pequena propriedade. Seus
filhos, que a memória do patriarca de Buraco de Lagoa conta em 12, é que viveram na chã
da Serra de Santana, nela constituído o início da rede familiar encontrada hoje na
Comunidade. Como é comum na onomástica encontrada na Comunidade, e mesmo no
entorno de um modo geral, encontramos o mesmo personagem sendo conhecido por vários
nomes. No caso de Lázaro, encontramos inclusive inversão de sobrenomes. Assim, temos:
Lázaro, Lázaro Pereira de Araújo, Lázaro Araújo Pereira, e por fim, a tomar pelo uso atual
de nomes, Lázaro de Maria, ou Lázaro Maria, que era seu “apelido”. Como explica Manoel
de Julieta, “esse povo antigo todo tinha apelido”. O que naquele momento traia a suspeita
de que, apesar de não se conhecer o nome de sua mulher, esta poderia se chamar Maria, o
que explicaria o “apelido”. Mas na trajetória traçada pela memória social constituída ao
longo do processo de pesquisa, o ponto central que notabiliza o personagem é o fato de, em
meados de um século XIX que ia deixando para trás o escravagismo dos séculos anteriores,
ter comprado parcelas de terra.
Continua Manoel de Julieta sua composição do
personagem:
65
Categoria que para o contexto local pode abranger todas as demais e estratos que representam, como
“mulato” e “moreno”, ou “escravo” e “liberto”.
66
Para uma breve, mas instrutiva, análise histórica e contemporânea em Currais Novos e seu entorno do
quadro das relações interétnicas, calçadas em critérios de “raça” para demarcar fronteiras e justificar longevas
relações e lógicas do poder, vide Queiroz (2002).
67
Buraco de Lagoa, casa de Manoel de Julieta, 28.10.06.
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
168
COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
“Foi o primeiro comprador de terra de Dona Adriana quando os herdeiros
começaram a vender propriedade dela. Foi o primeiro homem que comprou terra
aqui. Primeiro, comprou de Manoel Vitorino. Aí, ele comprou outra parte a João
Rodrigues. Aí começou a comprar, depois em Santana do Matos”.68
Ao longo dos registros da memória social do grupo, não nos foi possível precisar
melhor as condições de compra de terras, bem como onde exatamente, sob que limites, se
localizavam estas terras. Também não encontramos informações sobre quem seriam esses
personagens Manoel Vitorino e João Rodrigues, nem na história oral local, nem na
literatura dedicada à formação familiar seridoense (Medeiros, 1981 e 1983). Sabemos que a
disposição atual da Comunidade, em se contando seus 5 sub-territórios (Macambira II e III,
Buraco de Lagoa, Cabeça dos Ferreira e Ludogério), vai desde Buraco de Lagoa, no
extremos sul da Serra de Santana, até seu extremo norte, no Cabeça dos Ferreira, todos se
considerando uma mesma família, uma mesma comunidade, sem desconsiderar, no entanto,
as autonomias de cada tronco.. Além disso, expressão recorrente encontrada em toda a área,
sendo usada pelos mais velhos ao descrever o território “antigo” da Macambira, esta iria
“de um cipó preto ao outro”, que significa dizer, de uma extrema a outra da chã da Serra,
no eixo sul-norte. O cipó preto (nome popular para rama da espécie da família Araceae) é
encontrado justamente na área limite entre a chã da Serra e os sertões (ou cerrados, termo
também utilizado) do Açu e do Seridó, nas áreas geograficamente chamadas de “grotas”.
Como assevera Salvino Ferreira da Silva, dos Ferreira, do Cabeça dos Ferreira:
“Meu filho, no sertão, não contém mais o cipó preto. Essa rama. Ele só nasce na
chã. Isso aqui não é o final dessa chã? Daqui pra baixo, não tem cipó preto. Daqui
pra cima já é chã. Ele só nasce na chã. Os mais velho dizia, e eu creio que seja.
Essas escrituras antiga era a marca de um cipó preto a outro. Da cabeça de um
69
cerrado a outro”.
As “escrituras” de que fala Salvino Ferreira tratam de possíveis documentos de
propriedade (escrituras), ou de lógicas fundiárias vigentes no tempo de seus avôs e dos que
primeiro ocuparam a Serra? Diante do material ora reunido, parece que ambas as assertivas
estão corretas. O trabalho de campo em Macambira, no percurso por todas as suas 5
subáreas e conseqüentes troncos velhos visitados, no trabalho de re-constituição sócio68
69
Buraco de Lagoa, casa de Manoel de Julieta, 28.10.06.
Grotas do Açu, 17.04.07. Família (tronco): Ferreira.
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
histórica da fundação e ocupação da área, traria surpresas. Lembramos que seguindo a
Instrução Normativa no. 20 de 19 de setembro de 2005, que corrobora os preceitos da
resolução 169 da OIT, o trabalho centra-se especialmente na história oral e na percepção e
lógica territorial do grupo. No entanto, um conjunto rico e significativo de documentos
cartoriais foi também encontrado, todos do século XIX: um conjunto de 8 escrituras de
compra, venda e permuta de terras (de 1843 a 1877); e um inventário e partilha de bens
(1872). Estes corroboram a versão geral compilada na oralidade de que de que Lázaro
Pereira de Araújo (ou Lázaro Araújo Pereira) comprou datas de terra na Serra de Santana,
que constituiu descendência e deixou de herança para seus filhos partes iguais do “sítio
Macambira”, filhos estes de que descendem as atuais famílias que co-habitam na área e há
gerações estabelecem relações matrimoniais e de cooperação. Ao mesmo tempo, escrituras
e inventário trazem também novas informações e questionamentos, complexificando o
desenho da rede de relações que unia os “negros da Macambira” com seus antigos senhores
em sua demanda por reconhecimento e autonomia.
“Documentos do tempo de Dom Pedro”
Concomitante ao processo de compilar e organizar narrativas para uma reconstituição sócio-histórica da formação da Comunidade, fomos informados de certo
“documento de terra”, “documento do tempo de Dom Pedro”,70 que era guardado pelos
Amaro, mais um dos troncos velhos de Macambira, cujos descendentes atualmente vivem
em Buraco de Lagoa. Este seria o único “documento de propriedade de terra” de toda a
área, dizia-se, que comprovaria a antiguidade da ocupação da área, bem como seus limites
originais. Apesar de poucos terem visto tal “documento”, anualmente, aqueles que podem,
ajudam os Amaro a pagar o IPTR (Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural) que
abrange as áreas de parte de Buraco de Lagoa, desde a Estrado do Comércio, até
70
Os trabalhos no interior do estado do RN, na fronteira entre antropologia e história, têm se deparado com
um conjunto diverso de documentos de registros, não só de arquivos paroquiais e de cartório, mas cópias
autenticadas por um tabelião ou notário (publicas-formas), ou mesmo em alguns casos originais, à bico de
pena,já bem desgastados com o tempo. Para as situações quilombolas do estado, vide p.e., o trabalho de Valle
(2006). Não só aparecem também para o caso da Comunidade de Acauã, documentos “do tempo de Dom
Pedro”, como estes também ganham especial significação simbólica, corroborando não só os direitos de
posse, uso e transmissão do grupo, mas também atestando longevidade no território, antiguidade de uso das
chãs e grotas, descendência larga e ramificada. Vide também Boaventura (2004).
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
Macambira II e III, no sentido sul-norte.71 Encontramos sob guarda de Tuca Amaro, já que
sua mãe, Ana Amaro, já estava de idade avançada, 8 documentos de terras (de dois tipos:
escrituras de compra, venda e permuta e uma declaração), alguns ainda originais do século
XIX com cópias autenticadas (“publicas-formas”) realizadas no Cartório de Currais Novos
na passagem dos anos 1920-1930, outros apenas cópias. Estes documentos foram deixados
sob responsabilidade de Luiz Amaro, pai de Tuca, por Francisco Lázaro de Araújo, filho do
“velho Lázaro”, que do pai os herdara.
O que nos dizem estes documentos? Quais “terras” estes efetivamente representam,
e em quais quadros intersocietários e de poder patriarcal e administrativo tais documentos
foram engendrados? Por fim, como podemos organizá-los e qual rendimento seu exame
pode trazer para os propósitos deste relatório?
Apresento uma classificação cronológica do material, que por si só já é bastante
reveladora, base do quadro sinótico abaixo. Para os propósitos deste trabalho, os
documentos que mais nos interessam são os que vão de 1856 a 1859, estes seguramente
referidos a Lázaro Pereira de Araújo, ou Lázaro Araújo Pereira, quando este compra datas
de terra, dentre essas a do “sítio Macambira”.
Destes, podemos ainda estabelecer mais uma classificação, e agrupá-los em um
conjunto de 5 documentos ao longo de 3 anos: 1856 (2), 1858 (2) e 1859 (1), por se
tratarem de fato de três transações de terra, de compra de datas, perfazendo um total de 103
braças de “boca” (aproximadamente 206 metros) somando 140$000 (cento e quarenta mil
réis).72 Complexificando a versão oral encontrada em Macambira, Lázaro Pereira de Araújo
não as compra só dos herdeiros diretos de “Dona Adriana”, mas também já de compradores
que haviam feito negócio com membros das famílias Galvão e Lopes Pequeno, que
71
Note-se que neste temos apenas os dados de área total do imóvel rural, de 120 hectares. Este valor não
parece traduzir o tamanho real da área. Sabemos que é comum, como demonstraram levantamentos recentes
feitos pela ação conjunta da SEARA/RN e do INCRA/RN na região da Serra de Santana, os valores
declarados para cobrança de impostos não condizerem com a realidade concreta das áreas ocupadas, tanto
para mais, quanto para menos. Em alguns casos, as áreas declaradas podem chegar ao dobro em termos de
realidade local.
72
O que não é muito, se consideramos que um escravo novo, trabalhador, valia pelo menos, a preços do
Seridó, o dobro dessa quantia. Ou que, no inventário de “Dona Adriana” (Medeiros, 1983:176), só a “morada
de casas térreas de taipa, sem bom feitio, sita na Serra de plantar denominada Santa Ana” foi estimada, em
fins do século XVIII, em 55$000 (cinqüenta e cinco mil réis).
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171
COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
continuavam habitando o entorno da fazenda Totoró.73 Como fica evidente na
documentação encontrada, as datas da Serra de Santana, por vezes chamada de “Serra da
Macambira”, ao final e ao cabo, faziam limite com as datas em que já ia se dividindo ao
ritmo do crescimento das descendências a data do Totoró, primeira sesmaria dessa região
do Seridó meridional, como vimos, adquirida pelo casal Cipriano Lopes Galvão e Adriana
Vasconcelos de Holanda. Diante disso, que informações encontramos nessas “escrituras”
que nos possam ajudar a entender como se deram essas compras, quem foram os
envolvidos, dentro de quais expedientes administrativos? Em suma, que quadro
intersocietário era esse, em contexto de assimetria étnica, em que um ex-escravo, recém
forro, se dirige à fazenda de seus ex-proprietários para adquirir, a preços módicos, datas na
chã da Serraria ao norte das terras senhoriais, ainda por desbravar, “tudo mato”, ainda
habitava por “caboclos”?74
73
O que já demonstra que, apesar da promulgação da Lei de Terras ter sido em 1850, já haviam um
encadeamento de compras e vendas de terras, complexificando a organização fundiária local.
74
Mais adiante, quando apresentarmos parte do depoimento de Salvino Ferreira, retomaremos o tema dos
“caboclos” tanto em sentido histórico (histórias de encontros, casamentos e achados de fragmentos de grandes
potes de barro), como simbólico na constituição da etnicidade encontrada na Comunidade, em especial na
parte da família de Salvino Ferreira.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
DECLARAÇÃO E ESCRITURAS DE COMPRA, VENDA, E PERMUTA (1843 – 1877)75
Tipo
1
Escritura
particular
Cadeia Sucessória
Valor
03.08.1843,
São Bento77
(original)
Herança
Leonardo
Teixeira,
60$000
07.08.1930,
Currais
Novos78
(cópia)
Vendido a José Pereira
Campos Capim
Data e local
do
sogro
Pinheiro
Tamanho e
Limites76
49 braças
Testemunhas
Francisco Ignácio
Galpão,
“com
toda
a
largura que houver Joaquim Lopes
na chã da mesma Galvão,
Serra”
Manoel da S.
Evangelista
A rogo de
Anna Joaquina da
Conceição,
Manoel da Silva
Evangelista,
Francisco Ignácio
Galvão,
Joaquim Lopes
Galvão,
2
Escritura
particular
20.04.1856,
Totoró79
(original)
Comprado de Francisco
Lopes Galvão, vendido
para Lázaro Pereira de
Araújo
80$000
08.08. 1930,
Currais Novos Comprado de Antonio
(cópia)
Garcia do Amaral e sua
56 braças
Francisco
Lourenço G.,
“pegará do
nascente para o
Felipe de (...),
poente com 56
braças de largura e Santiago e
do norte pra sul
Laurentino
75
Em ANEXO, cópia dos originais, fac-símile e transcrita.
Na maior parte dos casos, medida da “boca da terra”, com légua e meia de fundo.
77
Assinado por: José Freitas Galvão.
78
Cópia assinada pelo tabelião Tristão de Barros.
79
Assinando: Francisco Lourenço Freiry
76
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
174
Manoel da Silva
Evangelista
Antonio Ignácio de
Amara,
Meiquilina Rozoluia
Freire
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mulher
Leiquiluia
Razolina Freire80
pegará da Estrada
do comércio até
para a parte do
Açu”
Américo (...),
Francisco Lopes
Galvão,
José Felipe
Santiago,
João Laurentino
Américo Freitas81
3
Declaração 19.08.1856,
Vila do Acari82
(original)
56 braças
-
-
Herança de Francisco
Lopes Galvão e Anna
Joquina de Vasconcelos,
40$000
10.06.1927,
Currais
Novos83
(cópia)
4
Escritura
15.08.1858,
Totoró84
(original)
“com os fundos
que achar, ao
nascente com a
Data da Areia,
pelo poente coma
data da Cacunda,
pelo sul com a
Data do Totoró, e
pelo norte com
terras do Açu”
34 braças
Bartholomeu
Lopes Galvão,
“pegará da data,
digo, da parte sul e Manoel Roiz.,
80
Ainda: tendo como COLLECTOR: nome ilegível.
E ainda: COLLECTOR: Alexandre Francisco de Araújo, pagamento de Lázaro Pereira de Araújo em Santana do Matos, 24.08.1856
82
Assinando Bonifácio Francisco de Barros Pinto. Conferido por Vigário Thomaz Pereira de Araújo.
83
Cópia assinada pelo Tabelião Salustiano Ameliano de Medeiros.
84
Assinado por Francisco Lopes Galvão e Rufina Rozalnia Freire.
81
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
175
-
-
COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
Vendida a Francisco
Lourença Freire,
5
6
Escritura
Escritura
08.08.1930,
Currais Novos
(cópia)85
06.09.1858,
Compra ao cunhado e
Totoró
mano Francisco Lopes
86
(original)
Galvão por Francisco
Lourenço Freire,
07.08.1930,
Currais Novos Vendido
a
Lázaro
87
(cópia)
Pereira de Araújo
01.11.1859,
Comprado
de
José
Sant. do Matos Pereira Capim,
(original)88
Vendido
a
Lázaro
08.09.1930,
Pereira Araújo
Currais Novos
(cópia)89
40$000
20$000
para o norte com o Gonçalo
que over, e ao PinheiroGalvão
nascente tirará 34
braças e meia para
o poente”
34 braças e meia
Bartolomeu Lopes
Galvão,
“pegará da Estrada
do Comércio para Joaquim Lopes
parte do Assu com Pequeno,
que se achar e
largura trinta e Bento Lopes
quatro braças e Pequeno
meia (havia uma
entrelinha em tinta
diferente:
“digo
trinta e cinco
braças”)”
13 braças
Antonio Lourenço
d’Almeida,
“compreendem a
largura da chan”
Francisco Ely G.
Bartholomeu Lopes
Galvão
Manoel Elias
d’Alencar,
Carlota Umbelina do
Amor Divino,
João Mendes de
Souza Guarim
85
Assina o tabelião Tristão de Barros.
Assinado por Francisco Lourenço Freire.
87
Assinado pelo tabelião Tristão Barros.
88
Assinado: Va. Constitucional de Santana do Matos
89
Assinado pelo tabelião Tristão Barros.
86
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
Anna Joaquina de
Vasconcelos,
176
COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
7
8
Escritura
de
permuta,
escritura
pública
Escritura
particular
07.11.1870,
Totoró
(original)90
Terras de plantar da data
Serra
de
Santana,
herança de mãe e sogra
Anna Alexandrina de
Vasconcelos,
08.08.1930,
Currais Novos
(cópia)91
Permutando por terras
de criar da data Totoró,
“com meia légua para o
porente pegando do
espinhaço da linha do
comprimento com nosso
pai e sogro Joaquim
Lopes Pequeno”
05.09.1877
Herança de sogra e mãe
?
Dona Maria Luis de
Olanda,
07.08.1930,
Currais
Vendido ao Sr. Antonio
92
Novos
Roiz da Cruz
_
18 braças
Bartholomeu
Lopes Galvão,
“do meio da dicta
Serra até as grutas Manoel Antonio
de Maria
do Assu”
26$000
26 braças
Gonçallo Pinheiro
G.
Manoel Pinheiro Antonio Garcia do
de Maria,
Amaral e
“pegando
da
Estrada
do
Engenho q. vai
para Buraco de
Alagoa, de rumo
direto para as
grutas do Assu”
90
Assinado por Luiz Garcia Galvão. Por rogo, assinado por Gonçallo Pinheiro G.
Assinado pelo tabelião Tristão Barros.
92
Assinado pelo tabelião Tristão Barros.
91
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Joanna Maria da
Conceição,
177
Olintho (...) Gau. Meiquilina Rozalina
de Maria,
Freire,
Miguel Pinheiro Gonçallo
Teixeira
Galvão
Pinheiro
COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
D OCUM ENTOS 2-3 (1856)
O primeiro conjunto de documentos selecionado é do ano de 1856. Temos uma
“escritura particular”, datada de 20 de abril, e de uma “declaração”, de 19 de agosto.
Curioso notar os locais em que ambos foram assinados: o primeiro, na Fazenda Totoró, o
segundo, na Vila do Acari. Tratam da mesma compra de terra, a maior feita por Lázaro
Araújo, medindo 56 braças “de boca” (aproximadamente 112 metros), ao custo de 80$000
(oitenta mil réis). A apresentação de sua cadeia sucessória nos informa que fora antes
comprada a Francisco Lopes Galvão,93 neto de “Dona Adriana”, por Antonio Garcia
Amaral. 94 No primeiro documento, aparece tendo como limites “do nascente para o poente”
(de leste para oeste), e do sul para o norte, abarcando da Estrada do Comércio “para a parte
do Açu”. Segundo a história oral local, dado que aparece corroborado nos documentos
encontrados, quando se inicia o comércio de compra e venda de terras na região, como
sabemos a partir da regulamentação da lei no 601 de 1850, a chamada de “Lei de Terras”
(Silva, 1996), mantém-se a lógica vigente no regime sesmeiro de se medir em “braças” 95 a
“boca” da área em questão, no caso no eixo leste-oeste, a partir do qual se consideraria que
de fundo, ou de “quadro”, esta abarcaria toda a extensão da chã da Serra, que segundo a
documentação do século XIX, e a percepção local, chega à “légua” ou “légua e meia”, de
acordo com o trecho em questão.96 Como contou Salvino Ferreira:97
“Os mais velho dizia, e eu creio que seja. Essas escrituras antiga era a marca de um
cipó preto ao outro. Da cabeça de um cerrado ao outro”.
Todos os documentos encontrados respeitam a mesma lógica de medição, delimitação
e registro. A “declaração” tirada quatro meses depois, é mais precisa quanto aos limites da
data, e inclui desta vez toda a extensão da chã, não só a partir da Estrada do Comércio:
93
Filho de Cipriano Lopes Galvão (o 2o) com Vicência Lins de Vasconcelos (Medeiros, 1981:373).
Seria o mesmo Coronel Antonio Garcia Amaral, bisneto de Antonio Garcia de Sá, da Fazenda do
Quimporó, ribeira do Seridó (Medeiros, 1981:295)?
95
Medeiros (1983:301) apresenta duas equivalências para a medida “braça” no Brasil imperial: 8 palmos
craveiros, equivalendo a 1,76 metros; ou, em sendo “braça craveira”, 10 palmos craveiros, equivalendo a 2,2,
metros. Localmente, por braça se entendia a medida de 2 metros. Localmente, a medida equivalia a 10
palmos.
96
Padrão de medida também herdado do período sesmeiro, que equivale aproximadamente a seis quilômetros.
Medeiros (1983:301), fixa a medida em 6.600 metros.
97
Grotas do Açu, 17.04.07.
94
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
“com os fundo que achar, ao nascente com a Data da Areia, pelo poente com a Data da
Cacunda, pelo sul com a Data do Totoró, e pelo norte com terras do Açu”. Essa informação
impressiona pelo tamanho da área delimitada, se comparada com a área ocupada pela
Macambira na atualidade. Vejamos. Retomando os dados encontrados no inventário de
“Dona “Adriana”, esta arrenda duas datas contíguas na Serra de Santana, final da década de
1780, cada uma medindo “três léguas de comprido e uma légua de largo” (Medeiros,
1983:175-16), o que equivale a cerca 8400 braças ou 18,5 quilômetros de “boca”.
98
Esta
mesma informação é corroborada pela história oral compilada em Macambira, desta vez
através do depoimento de Severo Ferreira, cabeça dos Ferreira: 99
“Veio uma pernambucana demarcando terra, porque esse Lázaro de Araújo diz
que tinha comprado uma data de terra. O senhor sabe o que é uma data? Nesse
tempo se falava em 3 légua em quadro,100 e o velho Tota Assunção, tio dessa
minha mulher, comprou outra data do Seridó. Essa aqui é da Macambira, essa
data aqui. Diz que é 3 légua. Eu não sei. Nesse tempo se falava em data, em
braça, em parte de terra. Hoje só se fala em propriedade, em hectare, né. Nesse
tempo se falava em data, em mil cova, em braça. Só se media terra por braça,
hoje é metro.”
Alves (1986:137-138), historiador autodidata seridoense, afirma tratar-se uma
dessas datas, a de leste, a da “Sesmaria de Lagoa Nova”.101 Como propus anteriormente, a
área comprada por Lázaro Pereira de Araújo deve fazer parte das “três léguas e meia” da
data de oeste da grande proprietária do Totoró. Segundo a história oral compilada em
Macambira, a “data da Macambira”, deveria ter uma de suas divisas, uma de suas “linhas”,
justo na divisa com a “Sesmaria de Lagoa Nova”. Seguindo os limites do segundo
documento de 1856, temos à leste, ao nascente, a “data da areia”. Localmente, esta seria a
área hoje conhecida como de Geraldo Dantas, na altura do entroncamento em que a Estrada
do Comércio se transforma em asfalto e segue para Lagoa Nova (leste), ou para Currais
Novos (sul). Teria sido próximo a este local, inclusive, aos pés de “um grande umbuzeiro”,
98
Tomando como padrão de medida o que apresenta Medeiros (1983:301) como sendo vigente na época: 1
braça = 2,2 metros; 1 légua = 3 milhas = 5280 metros aproximadamente.
99
Cabeça dos Ferreira, casa de Severo, 09.12.06.
100
Como veremos mais adiante, alguns desses termos e modos de mensuração seguem em uso dentre os mais
velhos. Pedro de Chico (Pedro Daniel Pereira, Macambira III, 03.07), quando fazíamos levantamento
econômico em seu roçado, usou a expressão “todo esse quadro aí”, quando se referiu à extensão de sua área
total de uso.
101
Na parte anterior deste trabalho, apresentamos o por quê do nome “Lagoa Nova” e versão compilada pelo
autor para a ocupação da Serra de Santana, antiga Serra Azul.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
que ficava o cemitério em que os membros da comunidade enterravam e se despediam de
seus mortos, antes de passar a fazê-lo em Lagoa Nova.102 De fato, compilando informações
conseguidas em Macambira III e no Cabeça dos Ferreira, este antigo cemitério, “hoje em
baixo do asfalto”,103 seria uma das ocupações humanas que considerariam como marcando
os limites de leste da “antiga Macambira”. Fica, no entanto, a incerteza dos limites exatos
em que ficavam essas primeiras 56 braças de terra compradas, já que no inventário de
“Dona Adriana”, na apresentação de suas datas e seus respectivos donatários vizinhos,
encontramos a Data da Areia já em “terras de criar”, nos sertões a sul fronteiriços à Serra,
tendo como donatário Cipriano Lopes Galvão, o segundo (Medeiros, 1983:175-176).104 Por
outro lado, sabemos por Lima (1990:186), que o “sargento mór”, filho da grande
proprietária foi grande empreendedor dos negócios deixados pelo pai, ampliando o negócio
pastoril, e ampliando seus domínios territoriais, continuando a “criar gados e a desbravar
terras”:
“(...) comprou a Antonio Holanda Cavalcanti os sítios “Areia de Baixo” e “São
Bento”, e pediu terras de sobras contestantes com as de sua mãe, d. Adriana de
Holanda, com três legoas de comprido por uma de largo, ficando dentro dessa terras
uma ponta de Serra que chamam ‘Cascavel’”. 105
Sabemos que o nome Serra de Santana dá conta da extensão total dessa ponta
nordeste da grande cadeia da Borborema, que foi recebendo ao longo dos séculos XVIIIXIX, alguns nomes (Serra Negra, Serra Azul) até se consolidar o atual, e que internamente
pode ser pensada em sub-regiões, que podem receber novos nomes. Sabemos também que
nem todos os nomes por que a Serra e sua sub-áreas vem sendo chamadas desde o início da
ocupação de seu entorno, ficou guardado na memória social. Nesse sentido, seria essa
“ponta de Serra” mencionada parte da Data da Areia, no caso Areia de Baixo? Teriam sido
essas terras parte das herdadas por seu filho Francisco Lopes Galvão, que as negociaria
décadas depois?
102
Por vezes, após longos cortejos ao som de excelências, que podiam atravessar quilômetros (Pedro Daniel
Pereira, Macambira III, 16.04.07).
103
Pedro de Chico (Pedro Daniel Pereira), casa de Pedro, Macambira III, 19.04.07.
104
Filho do primeiro casamento de “Dona Adriana”.
105
Data de Semaria, em 12 de junho de 1787 concedida pelos governadores interinos José Barbosa de Gouvêa
e Francisco Machado de Oliveira Barros. Livro 6 do Instituto Histórico, pág. 147, sob n.542 (Lima,
1990:186).
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
Neste ponto, fica claro que uma re-construção histórica dos limites e localizações
precisas de certas áreas na região no século XIX deixa muitas lacunas, não só pelo fato de
que o período de 1850-1854 marca uma transição administrativa de Estado,106 quando
praticamente se passa a formalização dos processos de registro da transmissão de terras (no
caso, por herança, permuta ou compra e venda); mas também pela grande dinâmica dos
processos de herança, compra e venda, permuta, posse, cercamento e expulsão de áreas ao
longo dos últimos 150 anos na Serra de Santana. Haja vista, no caso em questão, que
apenas 6 anos após a regulamentação da lei no 601, vemos Lázaro de Araújo, não
comprando terras diretamente dos “herdeiros de Dona Adriana”, mas já de um primeiro
conjunto de compradores. Por fim, um último desafio a ressaltar, para o pesquisador na reconstrução de cadeias sucessórias e dos limites de áreas ao longo do tempo está no fato de
que, apesar do incremento nos registros de terras, os mecanismos de transmissão local
continuam, na Macambira, praticamente orais, em um jurismo “apalavrado” – como
colocou Pedro de Chico107. Esse mecanismo é eficiente, reconhecido e memorado pelas
partes em acordo e os cabeças de alguns dos troncos velhos (quando há dúvidas sobre
fronteiras),108 mas de fronteiras e medidas nem sempre rígidas, por vezes cambiáveis ao
ritmo do próprio processo de ocupação humana que as dinamiza, amplia, retrai, o que
dificulta o trabalho do pesquisador de ciências sociais, do administrador governamental e
não-governamental, e dos demais atores do campo quilombola, a traçar perfiz estáticos e
discretos de comunidades em seus processos de formação.109
D OCUM ENTOS 3-4 (1858)
Um segundo conjunto de documentos é datado de 1858. Ambos “escrituras”, a
primeira, datada de 15 de agosto, a segunda, de 06 de setembro. Mais uma vez, tratam de
106
De fato, estamos justamente assistindo ao Estado brasileiro em formação.
Pedro Daniel Pereira, Macambira III, 16.04.07.
108
Ao longo da pesquisa, foi comum encontrarmos um entrevistado refazendo partes de histórias de família
ou aquisição ou perda de territórios vizinhos. Inclusive, como veremos mais adiante, a parte que se refere ao
sub-território Cabeça do Ludogério é composta por fragmentos compilados em diversas áreas da Macambira,
já que o patriarca da família se encontrava muito velho e acamado, não havendo no grupo quem soubesse com
precisão a história da família e da terra.
109
Na parte IV, desenvolverei melhor as marcações de limites territoriais e os “marcos” que lhes servem de
referência.
107
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
uma mesma compra de terra, desta vez de 34 braças (aproximadamente 68 metros),110 ao
custo de 40$000 (quarenta mil réis). Desta vez, com um intervalo de um mês, ambas são
assinadas e testemunhadas no Totoró. A apresentação de sua cadeia sucessória nos informa
de mais uma compra a Francisco Lopes Galvão por Francisco Lourenço Freire, que na data
a vendia a Lázaro de Araújo. Seus limites são vagamente apresentados, pegando “da parte
sul e para o norte com o que houver, e ao nascente, tirará 34 braças para o poente”. Não
sabemos se são contíguas às 56 braças anteriormente compradas, o que, no entanto, não
deve ser descartado, em sendo ambas as áreas de um mesmo herdeiro de “Dona Adriana”.
Ressalte-se ainda que em ambas as transações de terra, de 1856-58, o corpo testemunhal é
formado especialmente por membros da família Galvão, representados por algumas de suas
gerações, dentre os quais destacamos o próprio Francisco Lopes Galvão, e sua esposa Anna
Joaquina da Conceição.
D OCUM ENTOS 5 (1859)
Fechando esse primeiro conjunto, documento de 1859, outra “escritura”, de 01 de
novembro de 1859. Compra: 13 braças (aproximadamente 26 metros) ao custo de 20$000
(vinte mil réis). Limites incertos: “compreendem a largura da chã”. Cadeia sucessória:
comprado de José Pereira Capim. Somos então remetidos ao mais antigo dos documentos
encontrados, de 1843.111 Nesse, já havíamos nos deparado com o personagem José Pereira
Capim, comprando área de seu sogro Leonardo Pinheiro Teixeira, de 49 braças ao custo de
60$000. As 13 braças compradas por Lázaro podem ser desse montante. Fica a questão de
por que o documento que deveria pertencer a José Capim se encontrava de posse de Lázaro
de Araújo. Desta vez, temos o registro do documento em Santana do Matos, sertão do Açu,
testemunhado e a rogo por um conjunto de personagens cujos sobrenomes remetem a rede
familiar distinta da encontrada nas “escrituras” de 1856-58.112
110
De fato, os dois documentos de contradizem, entre 34 braças e 34 braças e meia. Vide originais transcritos
na integra em anexo.
111
Período de transição na organização fundaria do Império, uma vez que já não se estava sob o regime de
Sesmarias - abolido em 1822 (Silva, 1996:73) -, mas no entanto não se tinha ainda formulado um novo regime
administrativo da terra.
112
Por fim, temos ainda dois documentos, de 1870 (07.11) e 1877 (05.09), de difícil interpretação diante das
informações que as condições de pesquisa possibilitaram alcançar. Podem já ser transações efetuadas pelos
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
Voltando à questão: o que podemos aprender com esses documentos do campo
intersocietário do Seridó do século XIX? São mais um testemunho da antiguidade da
ocupação negra na área que já foi conhecida como “sítio Macambira” e que hoje vai se
conformando no “Quilombo Macambira”, bem como reconhecerem os direitos de
propriedade territorial aos membros da Comunidade, descendentes de forros que na Serra
de Santana se reuniram a partir da segunda metade do século XIX. Ademais, através desses
documentos podemos vislumbrar o campo de relações sociais que ia se estabelecendo na
transição do “trabalho escravo” para o “trabalho livre”, na organização fundiária das “terras
de plantar” e das “terras de criar” que ia se complexificando. Em termos esquemáticos,
podemos pensar por um lado em demandas de autonomia, ainda que relativa, por parte de
Lázaro Pereira de Araújo, forro; por outro, em um patronato, que por mais “cordial” que
possa ter sido em sua escravocracia,113 continua tendo a administração de estoques de mãode-obra como um problema, e a hierarquização social e cultural baseada em preceitos
raciais como norte ético-moral. 114
Em sua maioria, temos “escrituras”, assinadas por aqueles que vendem as datas,
reconhecendo a venda (“vendemos como de fato a vendida temos”), o pagamento (“plena e
geral quitação de paga”) e a posse (“que é sua e fica sendo para si e seus herdeiros”) a seu
comprador. Em praticamente todos, encontramos além da medição da área, seus limites
(ainda que na maioria das vezes vagos) e seu valor; também sua cadeia sucessória, junto
com seu conjunto de testemunhas e aqueles por estas representados (“a rogo de”); e, nem
sempre, o reconhecimento de algum representante legal, alguém que certifica ao documento
filhos de Lázaro Pereira de Araújo. Ambas tratam de áreas na Serra de Santana. A primeira é muito
interessante, dado que se trata de uma “permuta”, de área medindo 18 braças (“do meio da dita Serra até o
Açu), entre “terras de plantar” e “terras de criar”, ou seja, de terras da Serra de Santana por terras do sertão do
Totoró. A segunda, trata de compra de 26 braças, ao valor de 26$000, “pegando da Estrada do Engenho que
vai para Buraco de Lagoa, rumo direto para as grutas do Assu”.
113
Na acepção de que é marca a pessoalidade, a ênfase nas relações diádicas, com que se travavam as relações
sociais, inclusive as de dominação. Caso exemplar são as relações de compadrio entre “senhores” e
“escravos” no Brasil colonial (Brügger, 2006).
114
De fato, se seguimos as análises de Queiroz (2002), ainda que em escopos básicos, veremos que as
distinções de tipo racial continuam operantes no senso comum de Currais Novos, justificando hierarquia
social, quando membros das comunidades negras do Riacho e de Queimadas são vistas com marcada
diferenciação e reserva étnica. Mesmo quando não é depreciativo, o conjunto de noções e imagens associados
à negritude é hierárquico, chegando a ser tutelar. Durante a pesquisa em campo, em visita à prefeitura de
Lagoa Nova, referindo-se aos “negros da Macambira”, após ouvir com interesse sobre a pesquisa que
estávamos fazendo, uma funcionária, “branca” argumentou, desfazendo a fama de que estes seriam “bravos”:
“Não mexendo com eles, eles são muito carinhosos”.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
em questão o valor de título de transmissão de bens, nos casos encontrados, vigário, agente
collector, e juiz de órfãos.
Sabemos que o início da década de 1850, período em que Lázaro deve ter se
alforriado,115 trás acontecimentos em âmbito nacional e regional que conformam um novo
cenário político, administrativo e fundiário. O ano de 1854 é particularmente interessante, e
nos explica, em parte, por que dois anos depois (documento 3), Lázaro de Araújo
empreenderia viagem à “Vila do Acary” e pediria a seu Vigário, Thomaz Pereira de
Araújo,116 que fizesse publicar que possuía terras na Serra de Santana, fazendo uso dos
“artigos 93 a 100”, que se referem ao Decreto 1318 de 1854, que regulamenta a lei n o
601.117 Em termos nacionais:
“Depois de um longo período de posses, em 1850 o Governo Imperial promulgou a
Lei n. 601 de 18 de setembro a qual foi considerada pelo Poder Público, a primeira
tentativa em solucionar os problemas fundiários relacionados com a ocupação da
terra no Brasil. Nesta reconhecia a posse daqueles que tivessem, na ocasião, cultura
efetiva e moradia habitual sobre a mesma. O Decreto 1318 de 1854 que
regulamentava a Lei anterior, obrigava a todos os "possuidores de terra", com
qualquer título, registrar suas terras através de declarações feitas ao respectivo
Vigário da Paróquia, que as conferia e registrava no Arquivo Paroquial, surgindo,
desta forma, o primeiro Cadastro Declaratório regulamentado no Brasil. Neste
período, os arquivos dos registros das terras eram administrados pela igreja que
posteriormente encaminhava ao registro imobiliário” (Salgado et all., 2000).
Localmente, no mesmo ano de 1854, Currais Novos passa a “Districto de Paz”, pela
resolução provincial no 301 de 06 de setembro (Lima, 1990:187), o que faz do Totoró e seu
entorno, em especial da Fazenda Currais Novos, epicentro administrativo (para além do
econômico que já tinha), ou melhor, lhe atribui mais essa função de comando e
centralidade: legislar, administrar e reportar à capital da Província. Os documentos
encontrados são expressão e índice desse momento sócio-histórico nessa região do Seridó,
de mudanças na sociedade (aumento da população de “libertos” e Lei no 581, “Eusébio de
Queirós”), nas lógicas de trabalho (“trabalho escravo” para “trabalho livre”), no mercado de
terras (Lei no 601, “Lei de Terras”), e na administração pública (“Cadastro Declaratório” e
115
Voltaremos a essa hipótese mais adiante.
De descendência dos fundadores da Vila, do primeiro Thomaz Pereira de Araújo (Medeiros, 1981).
117
Ao final, anexo, vide o texto integral do documento 3 (1856).
116
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
criação do “Distrito de Paz”). Exemplificam os quadros hierárquicos em que se davam as
relações sociais, as distâncias sociais e físicas, em especial em um campo intersocietário
que não era mais apenas de “senhores” e “escravos”, mas em que crescia o número de
“libertos” que almejavam, dentre os bens que podiam almejar, os “bens de raiz”: parcelas
de datas, de algumas dezenas de braças, para levantar moradias e abrir roçados e casas de
farinha, para constituir descendência e alguma autonomia.
Seguindo as proposta de Lévi (2000:45), para o caso dos documentos encontrados,
seria revelador fazer uma “reconstrução das vicissitudes biográficas de cada habitante”118
do Currais Novos e seu entorno do século XIX que de alguma forma esteja referidos às
datas da Serra de Santana, e aos processos de parcelamento em herança, compra e venda
que envolvam o personagem Lázaro Pereira de Araújo em contexto de assimetria étnica.
Espera-se que tal investimento, em termos de investigação histórica continue seu curso em
futuros investimentos. Por hora, para os propósitos deste trabalho, evidenciamos apenas que
a maior parte as transações aconteceram na fazenda Totoró, em presença quase que
exclusiva de alguns representantes da família Galvão e famílias com quem estes tinham
relação, em arrogo ou em seu testemunho. Por essa altura, a rede familiar iniciada pelo
“Coronel Cipriano” e “Dona Adriana”, bem como o parcelamento das datas que esta foi
conformando no conjunto de fazendas existentes entre o açude Totoró e a Serra de Santana,
já se complexificara bastante. No caso em particular, ressaltamos a centralidade do casal
Francisco Lopes Galvão (falecido em 1851), herdeiro de Cipriano Lopes Galvão 2o, e Ana
Joaquina de Vasconcelos, sua prima e mulher, que após a morte do marido, venderia
parcelas de suas datas.
Por mais que pensemos que por uma questão de funcionalidade, quer dizer, de
poupança em investimento em viagem, e de capacidade de escrita, Lázaro de Araújo não
pudesse levar alguns dos seus como testemunhas; isso somado ao fato que uma vez que a
celebração da compra e venda entre as partes se dava no Totoró, familiares presentes
servissem como testemunhas,119 a assimetria do quadro de relações se impõe, por mais que
Lima (1990:189) nos informe do “alvoroço e enthusiasmo” locais pela campanha
118
A que Fraga (2006:23), pensando o caso do Recôncavo baiano do século XIX, chama de “’ligação
nominativa1 entre séries de documentais diversas – matrículas e listas de escravos anexas aos inventários
post-mortem, assentos de batismo, casamentos e registros cartoriais”.
119
Ainda que, como vimos, no conjunto de arrogos, muitos dos Galvão não fossem letrados.
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
abolicionista de 1888. De sua análise de processos judiciais, envolvendo os estados da
Bahia e do Rio Grande, com a prisão de traficantes negreiros tendo como testemunhas
“africanos” que seriam vendidos, após a primeira lei de proibição do tráfico (1831),
Rodrigues (2000:199) assevera que apesar de um escravo ter a “possibilidade de arrolar
testemunhas a seu favor”, na prática, “a demanda judicial se dava em condições de enorme
desigualdade”. Note-se também que apesar do valor legal de tais documentos consagrados
no Totoró seguramente tinham, Lázaro de Araújo, em 1856 vai à Acari publicá-los. Em
1858 por duas vezes registra mesma compra e venda, e em 1859, vai a Santana do Matos,
norte da Serra de Santana. Para os casos de Acari e Santana do Matos, enfatize-se se
tratarem de lugares de anterioridade como centros de registro paroquial.
Seguindo as constatações analíticas de Rodrigues (2000:199), se comparado a
outros casos, de negros forros que no Brasil de bem antes de 1888 já estavam constituindo
família e adquirindo pequenas propriedade no quadro mais amplo de transformações sócioeconômico e políticas e implementação de direitos e deveres, o de Lázaro Pereira de Araújo
é mais um em que:
“Apesar da discrepância notória entre as partes, a arena judicial tinha rituais que
precisavam ser cumpridos e em meio aos quais os escravos e africanos livres
conseguiriam, por vezes, alcançar seus objetivos”.
“M arco Testemunhado”, Taperas, Casas de Farinha, Frutais e
Cemitério
Le Goff (2003:526), refletindo sobre os diversos tipos de “marcos” que nos servem
como referencia histórica, como suporte da memória, propõe, de maneira ampla que:
“monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação”. Ao que
acrescentamos, dependendo da historicidade em questão, pode se converter em antigos
umbuzeiros, poços, cacimbas, casa de farinha ou taperas. Ao longo do trabalho de campo,
enquanto conciliávamos o trabalho de composição de histórias de vida e de famílias com
outras atividades, percorremos também a área atualmente ocupada pela Comunidade
(incluindo-se Macambira II e III, Buraco de Lagoa, Cabeça do Ludogério e Cabeça dos
Ferreira), buscando realizar croquis básicos com uso de GPS de navegação e de desenhos
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
produzidos por membros do grupo. Quando fomos procurá-lo para marcar uma entrevista,
Salvino Ferreira contou que seu pai, José Ferreira da Silva, sabia de marcos de terra,
“marcos testemunhados”, do tempo em que a terra era “demarcada”, do “tempo dos
antigos”, “do início dessa Serra”. Nossa busca pelo passado, pelas origens da Comunidade,
sua história de fundação e desenvolvimento, mobilizara em especial os mais velhos, que
nos procuravam para contar novas histórias lembradas, para sugerir pessoas que deveriam
ser procuradas. No dia em que fomos entrevistá-lo, nas grotas do Açu, extremo norte da
Macambira, havia encontrado o marco, que era “tesmemunhado”. Ficava na mata de
capoeira a oeste da área dos Ferreira, em pequena vereda que acompanha, bordeando, a
fronteira entre a chã e as grotas que a separam do sertão: de pedra, 3 palmos
aproximadamente de altura, por 1 palmo de largura, acompanhado de duas pedras menores,
de alguns centímetros, para fora da terra, uma de cada lado, no eixo leste-oeste.
Quando chegamos no local,120 Salvino contou:121
“De primeiro, os mais velhos diziam que marco testemunhado é a terra que tem
testemunha. Essas pedras, uma de lado e uma do outro. É a mesma coisa: “me diga
uma coisa, naquela história que o senhor está contando, tem testemunha”? Esse
marco, do jeito que está aqui, ele está testemunhado, ele está no meio. A terra do
outro tempo, a que se chama terra demarcada, é a que tem a pedra, a que tem
marco. Foi meu pai que ensinou pra eu falar um dia.”
E: E cada extrema da Macambira tem um marco desses?
S: Meu filho, se essa terra vêm demarcada daqui [apontando para sul], vou contar o
que os mais velhos contam. Que essas terras demarcadas, elas vêm de uma
cabeça de cipó preto a outra. Do jeito que ela esta aí, ela vem de cento a cento,
agora, do jeito que ela está aí ela pode bater lá no Açu. Olhe, vou lhe dizer, o que
meu pai contava de primeiro, que os mais velhos dizia. Você mora em Currais
Novos, por acaso, de Currais Novos a Santana do Matos. Olhe, se vier de lá, vem
direto demarcado de lá. Esse é por que só tem esse daí, mas ele não chega à
distância de 500 um para o outro. Agora também pode ser na base de 50 metros,
100 metros um para o outro. Só que essa carreira da pedra ela, vem direta
[desenhando no chão]. Se esse daqui é o lume da terra, é a metade. De primeiro era
assim. E aqui pra lá do lume, pode ser outro proprietário. Ali de onde nós vemos,
tinha um marco de terra só que eles tiraram, os proprietários mesmo quando
compraram.”
120
121
UTM: 0769119/93311098.
Grotas do Açu, 17.04.2007 (DVD).
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
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N
Santana do Matos
Serra de Santana
*
*
- - - - - - -* - - - - - *
*
(lume da terra)
Currais Novos
S
Croqui: Esboço de desenho feito por Salvino, explicando o caminho seguido pelos
marcos, demarcando fronteiras entre áreas em “linhas” que podiam ter seus começos
ainda nos sertões de Currais Novos.
Salvino Ferreira conta de quando seu pai lhe alertara para os “marcos testemunhados” encontrados
na grotas, durante jornada de caça (Grotas do Açu, 17.04.07).
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Além do “marco testemunhado”, outros lugares de memória foram apresentados
pela Comunidade como índices de seu conhecimento e intimidade com o território ocupado
por seus antepassados desde o século XIX: taperas, como as encontradas na área da Cabeça
da Macambira;122 casas de farinha, como a apontada por Jordão Apolinário 123 no extremo
sul de Buraco de Lagoa, casa ainda do tempo dos filhos de Lázaro de Araújo; frutais, como
o pé de pinha apresenta do por Joaquim Daniel124 que marcava o local onde se erigira a
casa onde cresceu;125 e por fim, o cemitério antigo que existira no caminho para Lagoa
Nova, hoje soterrado pelo asfalto, próximo ao entroncamento que leva à capital do
município.126
122
Registramos as seguintes localizações de 3 dessas taperas: UTM 0770722/9329764; UTM
0770459/93299332; UTM 0770225/9329226.
123
Buraco de Lagoa, 17.04.07.
124
Macambira II, 16.04.07.
125
Localização aproximada do pe´de pinha: UTM 0770459/9328892
126
Segundo Pedro de Chico (Macambira III, 16.04.07) e Jordão Apolinário (Buraco de Lagoa, 17.04.07).
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Pedro de Chico (Pedro Daniel Pereira) e Joaquim Daniel Pereira,
procurando sinais de antiga tapera (Cabeça da Macambira, 16.04.07).
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I NV ENTÁRIO N O 110, 1872: LÁZARO M ARI A DE A RAÚJO
Como colocamos anteriormente, no perfil que a história oral, somada aos
documentos de terra encontrados, iam figurando de Lázaro Pereira de Araújo, dois pontos
destacamos: trata-se de um ex-escravo (1) que está comprando parcelas de terra,
constituindo patrimônio; (2) e que tem sobrenome. Na maioria da documentação do período
escravocrata brasileiro que manuseamos, não só do Seridó, mas de outras região do Brasil,
um dado que salta aos olhos é tratar-se de gente re-batizada com nomes “cristão”, e só com
primeiros nomes. Nas listas de alforriados, raros são os sobrenomes. Sabemos pela relação
de escravos que encontramos inventariados (Medeiros, 1981; Assunção, 1988), além, p.e.,
dos diversos nomes de escravos que comparecem com algum protagonismo em uma
história da escravidão no Brasil (Moura, 2004), que esta é uma história de primeiros
nomes.127 A Aquisição de sobrenome podia significar o uso do sobrenome do “dono”, por
estima ou reconhecimento (mais raro, significando conseqüentemente aquisição de algum
status social), ou como mais um “ferro”, simbólico, de propriedade. Neste sentido, adquirir
um sobrenome faz parte dos bens a serem conquistados com a liberdade.
Se atentamos, p.e., aos nomes da descendência de Lázaro de Araújo, a maioria
deste, especialmente os das mulheres, são nomes de santos, como “da Conceição”, “de
Jesus” e “do Amor Divino”, muito recorrentes dentre os nomes de “libertos”. Este fato
levava a perguntar de onde viria o sobrenome de Lázaro: ele o teria simplesmente escolhido
(o que não era incomum)? Ele o teria herdado de algum senhor, por reconhecimento, ou
simplesmente para demarcar domínio e pertencimento? Um primeiro ponto a ressaltar é o
de que, para um mundo das proporções do Seridó, o sobrenome “Pereira Araújo” ou
“Araújo Pereira”, aponta para uma certa família, descendente de Thomaz Araújo Pereira,
fundador da atual Acari (Medeiros, 1981; Lima, 1990). Quer dizer, dificilmente,
simplesmente por uma escolha individual, se passaria a portar tal sobrenome. Isto
implicaria algum nível de relacionamento com os membros da família. Dito de outro modo:
o problema não é apenas ter sobrenome, mas sobrenome notório. Teria sido Lázaro de
Araújo escravo de algum dos Thomaz Araújo? Além disso, note-se ainda que seu primeiro
127
Como as histórias de Gonçalo (Dantas, 2006:253), Catherina (Paiva, 2001:34), Antonio (Moura, 2006:44)
ou Anastácia (Idem:35).
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
191
COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
nome, “Lázaro”, também era incomum, de fato o único de todas as listas com nomes de
escravos do Seridó a que tivemos acesso. De todo modo, como nos lembra Augusto
(2002[1940]) dada a antiguidade da presença da família de Thomaz Araújo Pereira no
Seridó, o sobrenome Araújo se difunde sobremaneira, para além das fronteiras da parentela
fundadora de Acari. Augusto chega a enfatizar tratar-se da família “que mais proliferou”
naqueles sertões (idem:17): “não é exagero affirmar que raro será o seridoense que não
tenha sangue de Araújo”, motivo pelo qual o sobrenome Araújo (sem relação necessária
com a família do grande proprietário) se difundiria pela região em todos os espectros
sociais.
Diante disto, buscando outros subsídios historiográficos, ainda que de maneira
preliminar, se visitou o Acervo Paroquial de Acari, o Primeiro Cartório de Caicó, e o
Primeiro Cartório de Currais Novos. Objetivava-se encontrar algum tipo de registro de
Lázaro de Araújo como escritura, carta de liberdade ou certidão de casamento. Apesar do
pouco tempo disponível para tal pesquisa, que por si só, dada a organização de alguns
desses acervos documentais, e os poucos dados que se tinha sobre a origem do personagem
“Lázaro”, demandaria bastante tempo, encontramos em um levantamento da população
escrava de Currais Novos entre o período de 1788-1888 presentes em inventários do
período (Assunção, 1988) dois dados que chamaram a atenção:
1. Primeiro, no inventário no 40 de 1845, de Félix Gomes Pequeno (2o), filho do segundo
casamento de “Dona Adriana”, dentre os “Escravos” que este deixava, encontramos um
“mulato”, de 44 anos, de nome Lázaro, valendo 400$000 (quatrocentos mil réis), quantia
alta para um escravo (cuja média era de 250$000), ainda mais em se considerando sua
idade, já avançada para um escravo. Além disso, por seu valor, muito provavelmente
deveria ser alguém com aptidões especiais, que trabalhava na casa. Seria esse Lázaro o
mesmo que em 1856 estaria comprando parcelas de terra, depois de ter trabalhado para os
herdeiros de “Dona Adriana”? É possível, a se tomar a estreiteza física e social do Seridó
do século XIX e a raridade do nome Lázaro. Por fim, esse escravo Lázaro é deixado para
Thomaz Lopes Pequeno, filho do finado. Sabemos que o inventário de Lopes Pequeno é de
1858, no 38. Até onde foi possível ler o documento, já bastante deteriorado, não
encontramos referência ao “mulato” Lázaro, o que pode significar que por esta época este
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já seria forro. De todo modo, fica em aberto, para futuras investigações cartoriais, a
identidade de origem de Lázaro Pereira de Araújo.
Fragmento do Inventário no 3, 1858: “Declarou mais a inventariante haver no casal hum mulato de
nome Lázaro de idade de quarenta, e quatro annos, que os (...) acharão valer quatrocentos mil réis”.
2. Segundo, encontramos referência, no ano de 1872, ao inventário no 110, de “Lázaro
Maria de Araújo”. Dada a pouca recorrência do nome, mais à coincidência de sobrenome,
“Araújo” e de apelido fundidos, “Lázaro de Maria”, investigou-se o documento,
confirmando ser ele do “fundador” da Macambira, quem comprou terras no sítio cujo nome
já vinha desde antes, desde o início da ocupação da Serra pela vacaria de “Dona Adriana”, e
que nela constituiu família:
“Defunto Lázaro Maria de Araújo, Viúvo de Maria Joaquina da Conceição (...) por
que foi no sítio Macambira, deste (...) do Acary” (26.11.1872)
Documento fascinante, redigido pelo escrivão Manoel Victoriano da Silva
Santos,128 em casa do Capitão Manoel Lopes Araújo, juiz de órfãos, na Vila do Acari.
Note-se que apesar do falecimento de Lázaro Araújo ter se dado no “sítio Macambira”,
onde estariam os bens a serem contabilizados e repartidos entre seus herdeiros, seu
inventário é escrito em Acari, para onde se encaminharia seu inventariante. Seu valor
documental não só corrobora parte da história oral local e trás novas informações, mas
configura o último ato de Lázaro de Araújo em uma trajetória de mediação das relações
com o patronato local
128
e a assimetria do campo intersocietário, tendo como nortes
Seria por acaso o tal “Manoel Vitorino” de que falava Manoel de Julieta (28.10.06)?
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autonomia material e simbólica e reconhecimento como “homem livre”. Segundo Paiva
(2001:24) - no quadro dos trabalhos recentes em história social sobre o processo
escravagista e a constituição e organização de homens “libertos” -, essa busca não só de
meios materiais para reprodução social do grupo, mas de dignidade, de reconhecimento de
identidade, é o que explica por que, apesar de suas poucas posses, alguns dos “libertos” que
ganharam ou compraram suas alforrias, preocuparam-se em constituir inventários pósmorte, mais um momento de aquisição simbólica de alforria, de representatividade. Apesar
de conformarem, enfatiza, “os titulares da menor porção documental investigada”, de
poucos bens apresentados,129 nestes inventários ex-escravos “protagonizam histórias”,
histórias essas “esclarecedoras sobre a sociedade setecentista colonial” (idem).
Na história oral local, segundo Manoel de Julieta,130 Lázaro teria tido 12 filhos.
Destes, se lembrava dos nomes de suas bisavôs “Ana de Lázaro” e “Joana Braz”, e de
“Francisco Lázaro”. Dentre todo o material compilado, o nome de Francisco Lázaro é
recorrente, filho de Lázaro de Araújo, provavelmente seu filho mais velho, que aparece
inclusive como o inventariante de seu pai em 1872. À cada um destes “herdeiros”, deixara,
igualmente, “5 braças de terra”:
“Essa terra de Lázaro foi partida, foi partida, e minha avô herdou 5 braças de terra.
Seu avô também 5 braças. E os outro tudo 5 braças de terra que ele comprou.
Todos os filhos herdaram 5 braças cada um. Num herdaram mais que 5 braças.
Fosse homem, quer fosse mulher. Herdaram 5 braças cada um. Terra aqui, e terra
na Cruz, em Santana do Mato.
E: O tamanho todo qual era?
MJ: Era 3000 braças de terra, pegando duma cabeça a outra. Você comprava 30, 40
braças de terra, ía de um cabeça a outra. Da divisa pra lá, eles pagavam para
Santana do Matos, da divisa pra cá, para Currais Novos. Não pagava toda pra cá
não. Antes disso era Acari. E da divisa pra lá, no Açu. Era muito né, ía na cidade de
Açu para pagar um impostinho. Quem tinha animais, ía de animais, quem não tinha,
ía de pés mesmo. Era um sacrifício.
E: Os filhos de Lázaro foram tendo filhos? Aí como dividi, dá pro filho, só dá pro
filho?
MJ: Dá pro filho, e pra filha, igual.
129
130
Com exceção da transmissão de propriedades de terra.
Casa de Manoel de Julieta, Buraco de Lagoa, 28.10.06.
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Inventário de difícil leitura ainda que muito bem preservado. Capa:
“Inventariado: Lázaro Maria de Araújo. Inventariante: Francisco de Paula de
Araújo”
E o que nos apresenta seu inventário de 43 páginas à bico de pena? Quantos filhos
teve? Que “bens de raiz”? Como os repartiu? De início, temos pouca informação a respeito
de sua origem, de quem era filho, quais seriam suas feições. O que se nos apresenta é a
identificação nominal do falecido, viúvo de Maria Joaquina da Conceição, que deixara
expresso que quando falecesse que “sem perda de tempo notificasse a seo filho Francisco
de Paula Araújo”, que aparece então como inventariante. Seguindo uma lógica de
nomeação operante até os dias de hoje, em que o primeiro nome de um antepassado pode
virar um segundo nome de um filho, neto, e assim sucessivamente, “Francisco Lázaro”, ou
“Francisco de Lázaro”, é nomeação com que a memória social guardou o personagem
Francisco de Paula Araújo, que como vimos, na década de 1920-1930, passaria para seu
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filho, Luiz Amaro, a salvaguarda do conjunto de “escrituras” herdadas de seu pai, Lázaro
de Araújo.
Apesar da dificuldade na leitura do documento,131 apresentamos, para os fins desse
relatório, algumas de suas partes constituintes, do total inventariado de 1:141$700 (um
milhão, cento e quarenta e um mil e setecentos réis), de forma a apresentar: (1) seus
herdeiros; (2) o conjuntos de bens de Lázaro de Araújo, em especial seus “bens de raiz’; (3)
e o modo como esses serão repartidos por seus herdeiros.
1. “Títulos de Herdeiros”132
Em 1872, Lázaro de Araújo tinha treze filhos, dos quais um falecera. Todos
casados, exceto dois filhos, 21 e 22 anos. São eles:
Herdeiros
Cônjuges
1 Francisco de Paula Araújo
Laurentina Maria da Conceição
2 Alexandre José de Araújo
Anna Francisca de Jesus
3 Manoel Antonio de Araújo
Bartholira Maria da Conceição
4 José Francisco de Araújo
Maria Romana das Flores
5 Joaquim Lázaro de Araújo
Josefa Maria da Conceição
6 Herminigildo Pereira de Araújo
Anna Divina do Espírito Santo
7 Raimundo Pereira de Araújo
(solteiro, 22 anos)
8 Anna Bernarda de Jesus
José do Ó dos Santos
9 Maria Joaquina de Jesus
Manoel Felipe da Silva
10 Alexandrina Maria da Conceição
Manoel Damião dos Santos
11 Joanna Maria da Conceição
Venâncio José dos Santos
12 Bartholomeu Pereira de Araújo
(solteiro, 21 anos)
13 Ricarda Maria do Amor Divino
-
(falecida)133
131
Em anexo, transcrição completa de algumas das partes em que se compõe o inventário.
Manteve-se os termos legais e a grafia de época.
133
Ricarda deixava sete filhos.
132
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Repare-se que apenas os homens recebem o sobrenome “Pereira Araújo”, lógica que
encontraremos repedida nas futuras gerações, enquanto as mulheres recebem nomes critãos.
2. “Móveis” e “Semoventes”
Tomando como índices de condições sócio-econômicas os bens “móveis” e
“semoventes” de Lázaro de Araújo, encontramos com uma vida simples, vida de “homem
livre” em regime ainda escravocrata, de poucos utensílios e bens materiais, uma égua, uma
vaca e dois potros. Discriminamos alguns desses bens à título de exemplo:
“Moveis”
Uma imagem de Christo
Uma imagem da Conceição
Uma Imagem de Santa Luzia
Um oratório velho de flandre
Um par de esporas velhas de latão
Espingarda espotela em bom uso
Duas paz de terra
Duas enchadas
3 machados
Ferro e signal
Um ferro
Uma navalha
Bacia pequena
Uma lima em mal estado
Dois bancos velhos
Duas jarras
Um jogo de malhas
Uma sella quebrada
Um tamborete
Chapéu do chille
Armário de madeira
Par de botas
Chapéu velho
Um bule de louça
Oito casai de xícaras e pires
Oito pratos brancos
(...)
Valor total declarado
Valor declarado
4$000
6$000
6$000
2$000
1$000
6$000
2$000
1$000
3$000
2$000
1$000
1$000
1$000
$320
1$000
2$000
6$000
8$000
1$000
6$000
1$000
3$500
$500
$500
$800
1$600
(...)
144$860
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“Semoventes”
Valor declarado
uma egoa velha castanha
20$000
Um potro
46$000
Um potrinho
16$000
Uma vaca parida
35$000
Valor total declarado
117$000
3. “Bens de raiz”
Por fim, reencontramos o conjunto de bens, topo da escala de valores, razão material
inclusive que justificaria a execução de um inventário de partilha de bens, a tomar pelos
demais conjuntos de bens que o falecido deixava: “bens de raiz”, parcelas de terra, casas de
morada, ranchos e casas de farinha. Se no final da década de 1850, Lázaro de Araújo
compra três parcelas de terra, em um total de 103 braças de terra somando 140$000, no
início da década de 1870, seu patrimônio aumentara, assim como valorizara bastante o
preço da braça de terra na Serra.134 Curioso notar que no que diz respeito à terra,
contabilizam-se quatro áreas, três na Serra de Santana e uma no sertão do Seridó, no
Trangóla, totalizando 48 braças (mais uma parte indefinida) de “terras de plantar” e 66
braças de “terras de criar”, no valor, somadas todas as benfeitorias, de 790$400.
134
A primeira área citada, p.e., no inventário, é avaliada pelo inventariante como valendo 13$000 cada braça.
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BENS DE RAIZ (1872):
Cadeia Sucessória
“compra a Felix Manoel de
Maria e sua mulher Francisca
Adelina dos Amor Divino”
Valor
105$000
2
-
12$480
“huma parte de terra de dose mil quatrocentos oitenta e cinco reis no
mesmo sítio dacta e na mesma communhão com os mesmos fundos
havidos por nomeação de sua finada mãe, mulher do finado, Maria
Joaquina de Jesus, no Inventário que se procede na Villa de Santa Anna do
Mattos pelo Juiz de Órfãos da cidade do Assú, sendo o Escrivão deste
feito, João Baptista de Oliveria Monteiro”
3
-
13$000
13 braças,
1
Tamanho e Limites
35 braças,
“na dacta da Serra de Santa Anna mais trinta e cinco braças de terra de
frente com legoa e meia de fundo no sitio Macambira”
“treze braças de comprido com os fundos, digo, de treze mil reis no sitio
Velho na dacta referida da Serra de Santa Anna de plantação, com os
mesmos fundos”
4
“compras a Luís Garcia Galvão
e Teresa Maria de Jesus com
das Escripturas”
198$000
66 braças,
“terra de arcas com meia legoa de fundo para a parte do poente no sitio
Trangolla deste Termo na Dacta do Totoró”
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Relembrando a lógica de comprar da década de 1850, e agora retomando o
documento 7, de 1870, será que Lázaro de Araújo já vinha em processo de permuta de
“terras de plantar” por “terras de criar”, de modo que utilizou boa parte de suas braças da
Serra na troca por braças no sertão? Se assim o foi, encontramos o ex-escravo já descendo a
Serra, tornando-se proprietário de terras para gado, terras mais valorizadas naquele então.
Mais uma vez, salientamos, difícil saber a localização de áreas com precisão, bem como
sua cadeia sucessória.
4. “Partilha” e “Encerramento”
Como havia contado Manoel de Julieta,135 “tudo foi dividido por igual”, conforme
atesta o “termo de determinação da partilha” do inventário: “tantas partes iguais quantas
forem os filhos do finado”, não exatamente em partes de 5 braças, mas no caso do “sítio
Macambira”, em partes entre 5-7 braças, além de algumas benfeitorias, como moradias e
casas de farinha. Também foram divididas as partes do “sítio Velho”136 e do “Trangola”. 137
Herdeiros e heranças
1 Francisco de Paula Araújo
“sua legoa terra de setenta e nove mil, novecentos e quinse reis (79$915)”;
“mais cinco braças de terra do sítio Macambira a trez mil reis a braça
(15$000)”;
“mais uma parte de terra no sítio Velho no valor de trez mil e quatrocentos reis
(3$400)”;
"casa de taipa com haviamento de farinha trez mil reis (3$000)”.
2 Alexandre José de Araújo
“sua parte de terra no sitio Macambira, dois mil reis (2$000)”;
“mais sua casa de taipa com haviamento de farinha de dosentos mil reis na
mesma terra, dois mil reis (2$000)”;
“mais sete braças de terra no sitio Trangolla da Datta Totoró a trez mil reis a
135
Buraco de Lagoa, 28.10.07.
A região atualmente conhecida como sítio Velho fica a sudoeste de Macambira apenas alguns quilômetros.
137
“Trangola” continua nomeando “comunidade” perto do açude Totoró, nos baixios do sertão do Seridó
próximos à Serra.
136
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braça, vinte e um mil reis (21$000)”;
“mais no rancho (...) com telhas de cem mil reis, no mesmo sitio, vinte mil reis
(20$000)”.
“mais sua parte de terra de vinte cinco mil do sitio Velho, dois mil reis
(2$000)”.
3 Manoel Antonio de Araújo
“mais sete braças de terra no sitio Macambira a trez mil reis a braça, vinte e um
mil reis (21$000)”;
“mais parte de terra de dose mil e quatro centos reis no mesmo sitio, dois mil
reis (2$000)”;
“mais sua casa de taipa com haviamento de farinha na mesma terra, de
dosentos mil reis, quinse mil reis (15$000)”;
“parte de terra do sitio Velho, de vinte e cinco mil reis, trez mil reis (13$000)”;
“mais seis braças de terra no sito Trangolla da Datta Totoró a trez mil reis a
braça, desoito mil reis (18$000)”;
“mais no rancho coberto com telhas com cercado assude arrombado de cem
mil reis no mesmo sitio, trez mil reis (13$000)”.
4 José Francisco de Araújo
“mais parte de terra de dose mil e quatro centos reis no sitio Macambira dois
mil reis (2$000)”
“(...) casa de taipa com haviamento de farinha de dosentos mil reis no mesmo
sitio, dez mil reis (10$000)”;
“mais parte de (...) cinco mil reis do mesmo sitio, mil oitocentos reis (1$800)”;
“mais sete braças de terra no sitio Trangolla da Datta Totoró a trez mil reis a
braça, vinte e um mil reis (21$000)”;
“mais rancho coberto com telhas cercado assude arrombado do mesmo sitio de
um mil reis, nove mil reis (9$000)”.
5 Joaquim Lázaro de Araújo
“mais (...) casa de taipa com haviamento de farinha de dozentos mil reis no sito
Macambira, mil reis (1$000)”;
“mais (...) casa de vivenda do mesmo sitio de cento e cincoenta mil reis de
trinta e cinco mil reis (35$000)”;
6 Herminigildo Pereira de Araújo
“mais trez braças no sitio Trangolla da Datta Totoró a trez mil reis a braça nove
mil reis (9$000)”
“mais no rancho coberto com telhas cercado assude arrombado do mesmo sitio
de um mil reis, vinte mil reis (20$000)”;
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“mais trez braças de terra no sitio Macambira a trez mil reis a braça, nove mil
reis (9$000)”;
“mais (...) casa de taipa com haviamento de farinha de dozentos mil reis no
mesmo sitio, vinte mil reis (20$000)”;
“mais (...) parte de terra de vinte cinco mil reis do sitio Velho trez mil reis
(3$000)”;
“mais (...) parte de terra de dose mil e quatro centos do sitio Macambira, dois
mil reis (2$000)”.
7 Raimundo Pereira de Araújo
“mais trez braças de terra no sitio Trangolla da Datta Totoró a trez mil reis a
braça nove mil reis, quarenta e oito mil reis (48$000)”;
“mais no rancho coberto com telhas cercado assude arrombado de (...) mil reis
no mesmo sitio quatro mil reis (4$000)”;
“mais (...) parte de vinte e cinco mil reis do sitio Velho quatro mil e novecentos
reis (4$900)”;
“mais (...) casa de taipa com haviamento de farinha de dozentos mil reis no sito
Macambira quarenta e oito mil reis (48$000)”.
8 Anna Bernarda de Jesus
“passe lhe na parte de terra de vinte e cinco mil reis do sitio Velho, trez mil reis
(3$000)”;
“mais na parte de dose e quatro centos reis do mesmo sitio dois mil reis
(2$000)”;
“mais cinco braças de terra no sitio Macambira a trez mil reis a braça, quinse
mil reis (15$000)”;
“mais (...) casa de taipa com haviamento de farinha do dosentos mil reis na
mesma terra, trese mil reis (13$000)”;
“mais um quarto de taipa pegado na mesma casa, dose mil reis (12$000)”;
“mais sete braças de terra no sitio Trangolla da Datta Totoró a trez mil reis a
braça vinte e um mil reis (21$000)”;
“mais seo rancho coberto com telhas cercado, assude arrombado, de um mil
reis no mesmo sitio, quatorse mil reis (14$000)”.
9 Maria Joaquina de Jesus
“mais (...) na parte de terra de vinte e cinco mil reis no sitio Velho, dois mil
reis (2$000)”;
“mais (...) casa de taipa com haviamento de farinha de dosentos mil reis no
sitio Macambira desesseis mil reis (16$000)”;
“mais dez braças de terra no sitio Trangolla da Datta Totoró a trez mil reis a
braça trinta mil reis (30$000)”;
“mais no rancho coberto com telhas cercado assude arrombado do mesmo sitio,
trese mil reis (13$000)”.
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10 Alexandrina Maria da Conceição
“mais (...) casa de taipa com haviamento de farinha de dosentos mil reis no
sitio Macambira, mil reis (1$000)”;
“mais (...) casa de taipa de morada do mesmo sitio de cento e cincoenta mil reis
(150$000)”.
11 Joanna Maria da Conceição
“mais parte de terra de dose mil e quatrocentos reis do sítio Macambira, dois
mil e quatro centos reis (2$400)”;
“mais (...) casa de taipa com haviamento de farinha de dozentos mil reis no
mesmo sitio quarenta e sete mil reis (47$000)”;
“mais sete braças de terra no sitio Trangolla da Datta Totoró a trez mil reis a
braça vinte um mil reis (21$000)”;
“mais no rancho coberto com telhas cercado assude arrombado do mesmo sitio
de um mil reis, trez mil reis (3$000)”.
12 Bartholomeu Pereira de Araújo
“mais desesseis braças de terra no sitio Trangolla da Datta Totoró a trez mil
reis a braça (48$000)”;
“mais no rancho coberto com telhas cercado assude arrombado do mesmo sitio
de cem mil reis no mesmo sitio a quantia de quatro mil reis (4$000)”;
“mais (...) casa de taipa com haviamento de farinha de dozentos mil reis no
sitio Macambira, desessete mil reis (16$000)”.
13 Ricarda Maria do Amor Divino (falecida)138
Dentre das informações e perspectivas de análise que o inventário de Lázaro Pereira
de Araújo oferece, nos parece importante enfatizar, em termos básicos: (1) primeiro, que
estamos diante dos personagens que de fato iniciaram a ocupação do “sítio Macambira”,
seus “herdeiros”, que contraíram matrimônio e foram ocupando as terras do pai, abrindo os
primeiros roçados, investigando as grotas, encontrando-se com os últimos caboclos da
Serra, andando quilômetros atrás de água, mudando-se e prestando serviço por
arrendamento em anos de seca; segundo, que estamos diante da primeira partilha do sítio
Macambira, do início de seu processo de parcelamento interno, de paulatina negociação
138
No caso de Ricarda, cada um de seus filhos recebeu 2 braças de terra e pequena quantia em réis.
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entre indivíduos e entre famílias por ocupação de novas áreas e delimitação de fronteiras,
até o esgotamento contemporâneo, em que muitos “só tem o seu chão de casa”.
Cabe-nos agora, recuperar alguns pontos antes de entrarmos nas descendências, ao
menos em parte das descendências, dos filhos de Lázaro e Maria Joaquina. As datas da
Serra de Santana, duas datas, cada uma “três léguas de largo com uma légua de fundo”
foram adquiridas (arrendadas) por Adriana Holanda Vasconcelos no final da década de
1770, em torno do ano de 1777, ano de grande seca (“a seca dos três setes”) quando foram
encontradas fontes de água na chã da Serra, uma “lagoa nova”. A divisão de suas datas se
dará por seus herdeiros, filhos e netos, de seus três casamentos. A partir de 1850, com a
“Lei de terras”, parte dessas datas, uma poucas dezenas de braças, da chã da Serra de
Santana, será negociada por seu neto, Francisco Lopes Galvão (e esposa) que as vende a
membros da rede de parentela e aliança da família. Poucos anos depois, em 1856, estas
estarão sendo vendidas a um ex-escravo, que em especial no sítio Macambira constituirá
família. Seus filhos se casarão com gente que também está buscando seu lugar no Seridó
em transformação da segunda metade do século XIX. O crescimento dessas famílias, e a
rede de intra-casamentos que advirá nas gerações seguintes, com o concomitante
crescimento de moradias, terreiros e roçados, dará à área as feições que tem hoje em termos
de disposição espacial (parcelamento e formação de sub-áreas), bem como das lógicas de
ocupação, demarcação de limites e transmissão de uso dessas “terras de plantar”.
Por mais que não nos tenha sido possível, e de fato temos dúvida de que o seja,
estabelecer com precisão cartográfica os limites de todas as áreas enumeradas nestes
documentos, parece claro que o total de datas que pertenceu aos Pereira de Araújo é bem
maior do que os que compartem hoje.139 Também está claro que, no cruzamento de dados
da história oral local, dos documentos encontrados, e de autores regionais, por mais que
haja contradições e novas questões se abram a cada novo dado encontrado, que a ocupação
da Serra de Santana por ex-escravos, em torno do “sítio Macambira”, vêm desde a
passagem das décadas 1850-1860, em especial através, de início, dos investimentos
pessoais de um “mulato”, recém “homem livre”, e sua capacidade de administração
econômica e de relações pessoais no escravagismo tardio do sertão das últimas décadas do
século XIX.
139
Retomaremos este ponto mais adiante.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
DESCENDÊNCIA DE LÁZARO PEREIRA DE ARAÚJO E MARIA JOAQUINA DA CONCEIÇÃO:
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
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II.
“TRONCOS V ELHOS”:
TERRI TÓRIOS DE PARENTESCO, M EM ÓRI A E POLÍ TICA
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
I NTRODUÇÃO
Como vem demonstrado alguns dos autores que tem trabalhado com os fenômenos
de ordem étnica (Barth, 1969; Cohen, 1974), muitas são as “lições”, para a Ciência e para a
Sociedade, que se podem tirar dos processos de etnicidade.140 A principal talvez seja a
constatação do caráter dialógico e transitório das construções identitárias (no caso estudado
por este relatório, contrastivo, “branco” e “negro”). Dentre os desafios encontrados, após
gerações de cientistas sociais terem trabalhado com desenhos fechados, homogêneos,
estáticos e essencializadores de “cultura” e “sociedade”, desenhos que se espraiaram,
atente-se, para além das fronteiras das disciplinas científicas e hoje estão fortemente
arraigados no senso comum. Nesse sentido, e exacerbado em contextos de assimetria, mais
do que essência ou caráter de um dado grupo humano, os repertórios da cultura, da
morfologia social e da história passam a ser entendidos como variáveis acionadas em
resposta a situações sociais específicas (Gluckman, 1987) em contextos de interação (Barth,
1969, 2000), em defesa do reconhecimento e autonomia de identidades, territórios, modos
de produção e destinos. Nos termos de Barth (1969:14): “as categorias étnicas oferecem um
recipiente organizacional que pode receber conteúdo em diferentes quantidades e formas
nos diversos sistemas socioculturais”. Neste sentido, junto à força e direção dados pelos
paradigmas e cosmovisões locais, como nos lembra Cohen (1974:ix), não raro, justamente
por estar na raiz das escolhas de indivíduos ou grupos, comumente em contexto de
desigualdade de poderes, o fenômeno étnico pode ser marcado por “ambigüidade,
variedade de forma, escopo e intensidade”, o que muitas vezes dificulta seu entendimento e
compreensão, e mesmo sua legitimação, de acordo com a arena política em questão. Vale
lembrar, no entanto, que depois de trabalhos como os de Asad (1973), Said (1996), e
Todorov (1988), estamos mais cientes de que certas concepções do que seja “cultura” e
“sociedade”, que não as entendem de forma dinâmica e em transformação, que não lhes
atribuem alguma racionalidade e autonomia, estiveram, e em certos casos ainda estão,
140
Em alguns casos chamados de “etnogênese”. Saliente-se que estes tem crescido exponencialmente nas
últimas duas décadas, tratando-se na atualidade de um fenômeno social de ordem planetária em que grupos
sociais reorganizam-se passando a reivindicar especificidades identitárias – ao que Almeida (2002) tem
chamado de “novas etnias” -, maiormente em situações de dominação histórica e assimetria em contextos
nacionais e pós-coloniais. Para alguns exemplos vindo da Oceania, vide, p.e., Linnekin & Poyer (1990).
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atreladas a projetos coloniais e nacionais de dominação entre etnias e entre classes sociais.
Nos termos de Taussig (1989), fazem parte da “fraseologia da conquista” que no processo
de dominação, no caso em seu viés simbólico, atribui ao “outro” inferioridade em todos os
seus corolários (violência, indolência, primitividade, irracionalidade, fetichismo religioso e
falta de higiene), o que em termos ideológicos justifica a submissão e a escravização.
Dentre as variáveis, portanto, que podem ser acionadas para demarcar diferença frente
ao “outro”, bem como pertencimento frente ao “mesmo”, temos, p.e., os fundamentos
biológicos (“somos do mesmo sangue”), o compartilhamento de “valores culturais
fundamentais”, ou a conformação de um “campo de comunicação e interação comum”
(Barth, 1969:10-11). De todo modo, pertencer a um grupo étnico é, centralmente, “estar
classificado em termos de sua identidade mais básica e geral” (idem). Dentre esses eixos
classificatórios, sem dúvida, a “determinação da origem” está dentre os mais recorrentes
(Barth, 1969:13), ao que a Comunidade de Macambira não é exceção. Para o caso de
Macambira, ao longo de toda a compilação de histórias de vida e ocupação da área, dois
fatos foram ressaltados pelos membros do grupo, em diversos contextos de sociabilidade,
como centros simbólicos de sua etnicidade e unidade de grupo, no caso em particular, de
sua negritude: (1) primeiro, sua origem, descendente de um “ex-escravo”, “mulato”, que
“comprou datas de terra dos herdeiros de Dona Adriana”, tema da parte anterior; (2)
segundo, o fato de todos conformarem “uma família só”, família marcada por “uma mistura
medonha”. Sobre este segundo eixo nos deteremos nesta parte do trabalho, apresentando a
Comunidade de Macambira em termos de sua constituição morfológica em redes de
cooperação e matrimônio entre núcleos parentais, tendo como eixo central de sociabilidade
a casa. Como pretendo demonstrar, ao longo das 4-5 gerações que se seguirão aos filhos de
Lázaro de Araújo, vemos se constituir uma lógica de formação de núcleos parentais e
parentelas mais baseada na afinidade, do que na consangüinidade. Além de dar conta da
família como eixo da organização social do grupo, apresentaremos também dados sobre
algumas das formas de sociabilidade encontradas, bem como os processos e lógicas de
ocupação territorial que explicam tanto sua conformação contemporânea, bem como de
onde partem suas demandas territoriais. Ao final, podemos pensar a organização da grande
Macambira como composta, em termos territoriais e de eixos centrais de relacionamento,
como constituída em território de parentesco (Almeida, 2006; Comerford, 2003). Neste,
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encontramos versões de formação familiar, de ocupação de novos terreiros e roçados, de
relações com outras famílias e o entorno da Serra e de Curais Novos, a que poderíamos
chamar de territórios de memória, uma vez que a partir de cada um deles se produziu uma
história local e relacional que alinha uma primeira história geral da Comunidade.
“T RONCOS V ELH OS”
“Esse tronco tem muita rama”.
(Manoel de Julieta, Buraco de Lagoa, 28.10.06)
Em especial dentre os mais velhos da Comunidade, encontra-se articulado em torno
da idéia de que “é tudo uma família só” um conjunto de termos e noções que participam da
organização social (material e simbólica) do grupo, e que nos últimos 3 anos tem sido
também articulado nas disputas por reconhecimento de direitos no campo semântico da
etnicidade local (Valle,1999).141 Neste caso, tendo como centro simbólico a noção de
família e alguns de seus corolários, a Comunidade se apresenta em suas feições básicas e
primeiras em termos de: semente, troncos, e mais raro, ramas,e em termos generalizadores,
comunidade. Ao se referirem ao “velho Lázaro”, este seria a semente, o “início de tudo”, o
“fundador dessa família”, “aquele que chegou só”. Os troncos constituem-se em parentelas
de núcleos familiares organizados ao redor de algum núcleo familiar central, em geral
ocupando a maior parte de alguma das sub-áreas da grande Macambira (vide mapa abaixo).
Historicamente, como vimos, decorrem dos desdobramentos dos casamentos contraídos
pelos filhos de Lázaro e Maria Joaquina com “gente de fora”. Inclusive, é a esse ponto que
se volta quando se justifica a mistura que marca a Comunidade, “mistura medonha”. Ao
contrário da família “branca”, como vimos, mais fechada em seu círculo de alianças
matrimoniais, a família constituída em Macambira (em todas as suas ramas) era aberta à
relações matrimoniais com outros segmentos étnicos e de classe. Por essa razão, no
contexto da alta concentração de terras de plantar e criar sob posse da família patriarcal,
141
Por “campo semântico da etnicidade”, Valle (1999:302) propõe especial atenção às “estruturas de
significação e as formações simbólicas” cuja “reprodução se fazia por meio de ideologias, de um senso
comum, de “histórias” e de tradições”. Nesse sentido, no jogo das enunciações, um conjunto de significantes,
de acordo com a situação, pode atingir ampla polisemântica, sendo compartilhado não só pelos membros da
Comunidade, mas pelo entorno, para discriminar a especificidade de cada grupo no campo intersocietário (no
caso, “negros” e “brancos”, ou nos termos locais, “negros” e “morenos”), bem como das relações entre os
mesmos.
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seria lugar de reunião possível dos segmentos sociais que iam se organizando no Seridó
pós-escravagista e republicano com os quais as classes dominantes travavam pouca relação.
Cerca de duas gerações depois, diante do contexto de assimetria étnica em que estavam
inseridos,142 e do estreitamento dos espaços físicos e simbólicos de interação entre “negros”
e “brancos”, gerariam uma rede de intra-casamento, na qual o casamento entre primos (em
especial ao longo das gerações 3-4) chega a ser praticamente uma regra, de tão recorrente,
havendo também um caso isolado de avunculado.
Neste ponto, cabe salientar, considerando o sertão em termos sócio-culturais mais
amplos, estarmos bem próximo ao modelo apresentado por Woortmann (1995) para o “sítio
nordestino” enquanto unidade de produção social material e simbólica. Também aqui
encontramos “uma comunidade local, de certa forma corporativa, conjugando a
territorialidade com o parentesco, e endogâmica”, com sucessão, saliente-se, de tendência
patrilinear (Woortmann, 1995:75). Mas como vimos, dado o histórico dos padrões de
relacionamento que norteiam as ações de “brancos” e “negros” no Seridó dos séculos XIXXX, não podemos deixar de considerar o regime de segregação material e simbólica vigente
como condicionante do espectro possível de redes matrimoniais passíveis de serem
articuladas. Deste modo, a situação étnica, não tanto o étnico em si, mas os processos que
sobre esse incidem, marca de especificidade o parentesco e a familiarização encontrados
em Macambira. Deste modo, salientamos que apesar da tendência geral dentre as famílias
visitadas, em termos de alianças matrimoniais, ser bastante aberta, pelo que poderíamos
sem problemas classificá-la como exogâmica, dados os constrangimentos materiais e
simbólicos que impedem uma maior mobilidade socio-espacial de seus membros, impondolhes a horizontalidade mais que a verticalidade, esta tem se articulado, em especial na
segunda metade do século XX, em termos endogâmicos. De fato, mais do que comportar-se
como uma “linhagem”, parece que estamos diante do que Wolf (apud Woortman, 1995:53)
classifica como grupos de descendência de “coalizões multilineares”, em termos verticais e
horizontais. Mais do que um grupo de descendência “mantido através do tempo”, e a pesar
142
Provavelmente, deve vir da virada dos século XIX-XX, a denominação, de caráter etnocêntrico, “negros da
Macambira”, que encontramos em uso em especial na cidade de Lagoa Nova. Expressão correlata em seu
caráter pejorativo e etnicamente hierárquico é encontrada em uso na Cida de Currais Novos, de “negros do
Riacho” (Queiroz, 2002).
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de comportar essa característica morfológica, se comporta mais como um “grupo de
descendência político” (idem).
Em termos de padrão morfológico e de organização política e de administração de
relações vicinais, o material encontrado em Macambira se assemelha ao descrito por
Thomas & Znaniecki (1974:87), trabalhando a partir de dados de um campesinato de perfil
étnico, em que mais do que uma “árvore genalógica”, “família” seria “um grupo social que
engloba consangüíneos e afins até um certo limite”, enfatizando em suas análises seu
caráter “estritamente social, concreto, de grupo vivente”. Deste modo, a ênfase relacional
recair, mais do que na consangüinidade, na afinidade. Não se quer aqui, obviamente,
reduzir toda a riqueza e afetividade do cotidiano social de uma comunidade como
Macambira a esquemas puramente racionais e materiais, mas antes sublinhar o que nos
pareceu, apesar de todas as redes de solidariedade e proximidades físicas, ser uma marca
organizacional da Comunidade: a autonomia e independência de cada núcleo familiar, que
em geral conforma um núcleo residencial e um investimento médio, se houver terra, 2-5
hectares de plantio variado. Deste modo, o esquema interpretativo proposto por Thomas &
Znaniecki (1974:88-89) deve trazer rendimento para entender a natureza das relações
familiares em Macambira: família seria uma “pluralidade de núcleos parentais”,
hierarquicamente distintos, que se relacionam entre si gravitando entorno de um ou mais
casais centrais, mais velhos, onde se encontram os “cabeças” de família (“os que sabem”,
portadores do conhecimento advindo com a “experiência”; os que partilharão por igual a
terra que igual repartida receberam). Como veremos a seguir, esse esboço gravitacional
reflete-se também nas ocupações de terreiros, construção de casas e abertura de roçados.
No caso de Macambira, a tendência geral a patrilinearidade, no entanto, não impede
que em alguns casos as filhas recebam o sobrenome da mãe. Além disso, a variabilidade na
lógica de nomeação e transmissão de sobrenomes pode ainda articular-se por outros
padrões que não a descendência, tais como: a notoriedade que algum membro da família
pode ter tido, pelo que seu primeiro nome passa a ser um segundo nome (p.e. Daniel,
Luciano e Felipe); o apelido que algum membro da família pode ter tido, por acontecimento
ou habilidade, passa a ser o nome pelo qual a família é conhecida (p.e. os Passarinho e os
Peba); nomes religiosos, em especial para as filhas, funcionando como sobrenomes
(p.e.Conceição, Do Amor Divino; de Jesus) além de, muito comuns nos relatos
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genealógicos compilados, inversões na ordem em que são apresentados os sobrenomes
paternos e maternos. Por fim, encontramos o caso ainda de Herculano, de Cabeça do
Ludogério, patriarca dos Herculanos, e que no entanto chama-se Pedro Francisco dos
Santos, tendo por iniciativa própria mudado o próprio nome.
O termo rama, de uso mais raro, serve como sinônimo de troncos quando se
considera a Lázaro o tronco central. Por fim, o termo comunidade, de uso recente, a partir
especialmente do final da década de 1990, quando o grupo se organiza politicamente para
se apresentar formalmente frente ao Estado e demais agências locais, é pouco utilizado do
dia a dia para se auto-referenciar ou referenciar o grupo do qual se faz parte. Prevalece o
nome familiar como referência de filiação e pertencimento. Por vezes, o nome do pai ou da
mãe também é utlizado (p.e. “Pedro de Chico”, “Manoel de Julieta”, “Lázaro de Maria”).
Seu uso se dá em contexto intersocietário, no quadro das relações interétnicas em que estão
inseridos, referindo-se ao somatório de todos os troncos, vinculados pela origem comum
em Lázaro, bem como ao território comum, “Macambira”, que passa também a nomear em
sentido geral todas as suas sub-áreas: Macambira II e III, Buraco de Lagoa, Cabeça dos
Ludogério e Cabeça dos Ferreira. De fato, algumas dessas designações são recentes, da
década de 1990, quando Lagoa Nova torna-se município e a sua zona rural passa a ser
escrutinada e desmembrada, conseqüentemente, e em alguns casos, renomeada, para fins de
administração de Estado.
A maior parte dos relatos compilados dentre os “especialistas da memória” (Le Goff
(2003) de cada um dos principais troncos registrados, produz imagens nítidas do passado
até aproximadamente as décadas de 1930, produzindo a descrição de uma Macambira, do
“sítio Macambira”, ainda pouco ocupada (“era tudo mato”), organizada espacialmente em
alguns poucos conglomerados de casas, distantes uns dos outros. De fato, podemos dizer
que praticamente só existiam dois grandes conglomerados de casas, cada um constituindo
uma grande parentela. Ao norte, onde hoje se nomeia por é Macambira II e III, a família
Pereira, que viria ser conhecida como Daniel; e ao sul, em Buraco de Lagoa, em especial a
área entre a Estrada do Comércio e as grotas para o Seridó, a família dos Araújo e do Ó,
que passaria a ser conhecida como Severiano (vide mapa abaixo).
Ambas famílias também são exemplares da dinâmica de ocupação da área, ao redor
de um ou dois casais mais velhos, no entorno de cujos terreiros abririam-se novos terreiros,
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casas e pequenos roçados de subsistência. Desde a fundação da Comunidade, vive-se do
roçado. Eventualmente, da roça (plantio de mandioca) se produzia algumas “cuias” 143 de
farinha. A distância entre esses pequenos conglomerados podia variar de centenas de
metros a quilômetros (uma vez que de uma ponta a outra da Serra, a área chega a sete
quilômetros), atravessados por caminhos vicinais estreitos (“naquele tempo não tinha
estrada não, era tudo veredazinha”). Estas áreas de habitação já iam sendo conhecidas por
nomes gerais, maiormente designando o nome ou sobrenome de algum patriarca destacado
na história de família local ou alguma benfeitoria (“terras dos Daniel”, “terras dos Manoel
Severiano”, “Umbuzeiro dos Rodrigues”). Essas veredas se transformariam em caminhos
largos, muitos dos quais conformam as “linhas” em que a Comunidade se organiza e pensa
espacialmente na atualidade. O processo de nomeação das áreas pelas famílias também
participa e é índice da delimitação de fronteiras territoriais que ao longo dos processos de
ocupação serão progressivamente negociadas e definidas. Como explicou Pedro de
Chico:144
“Eles, cada um canto, é uma família. Daí eles botam um nome. Aqui no
Sítio São Francisco. Aqui no São Francisco é quase essa mesma linha de
terra daqui, mas o nome é outro. É assim que divide as famílias. Tem
família que tem um nome diferente, eles botam também o nome diferente.
Ali no sítio São Francisco é os dos Santos, mas eles quiseram botar São
Francisco.”
Apesar de conformarem e articularem em algumas ocasiões suas redes de
pertencimento e cooperação, na maior parte das vezes prevalece grande autonomia entre
núcleos familiares, especialmente em seu cotidiano de trabalho e intimidade, o que
prevalece até os dias de hoje, apesar do inevitável estreitamento físico (“as casas tudo
colada umas nas outras”). Note-se, p.e., que na Comunidade, historicamente, raro é o
chamado trabalho de mutirão, excepcional e só em casos de muita precisão (em geral por
incapacidade física) por parte de um parente ou compadre.
Diante do material compilado com os especialistas da memória de alguns dos troncos
visitados, ao longo de suas 5 sub-áreas, podemos elencar duas delas como sendo as mais
143
Até as primeiras décadas do século XX, o termo “cuia” era utilizado como padrão de medida da produção
de farinha, bem como símbolo de já algum incremento na produção, de algum destaque social em um mundo
cuja produção é basicamente de subsistência.
144
Pedro Daniel Pereira, 16.04.07, Macambira III.
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antigas, exemplares enquanto processo de constituição de parentela e ocupação territorial,
bem como epicentros da memorial social local, da trajetória histórica do tronco a que se
pertence e aos demais troncos que há um século se relacionam: Buraco de Lagoa e
Macambira III, respectivamente os troncos dos Daniel e dos Severiano. De fato, são os dois
conglomerados de núcleos parentais que descendem diretamente de Lázaro Pereira de
Araújo. Os Daniel descendem de Francisco Lázaro (Francisco de Paula Araújo); enquanto
que os Severiano, descendem dos casamentos de duas filhas do “velho Lázaro”, Anna e
Joana. Desses casamentos que fundam a descendência de Buraco de Lagoa, ressalte-se a
presença de José do Ó, negro forro afamado, lembrado por alguns dos troncos velhos, e
mesmo do entorno na Serra e em Currais Novos. Os Daniel ocupam a metade norte da atual
Macambira, que tem como “linha central” a fronteira com terras atualmente de Ivanilson
Araújo (Cabeça da Macambira), ao longo da qual residem e trabalham alguns dos irmãos e
primos Daniel, bem como suas respectivas descendências. Os Severiano, a “cabeça” sul da
Macambira, a parte de Buraco de Lagoa que vai da Estrada do Comércio até as grotas com
o Seridó. Comparativamente, como veremos mais adiante, ambos passam por processos
sócio-culturais e de ocupação e aproveitamento do território muito semelhantes, cada um
em um extremo da área.
Apesar do parentesco e das semelhanças nas trajetórias de família, a memória social
de cada tronco relata pouco convívio desde o “tempo dos antigos”, acirrado na
contemporaneidade por discussões por uso e marcação de limites de terra, e pela não
participação dos Severiano no movimento liderado e organizado pelos Daniel de
constituição de Associação Quilombola e reivindicação de direitos especiais por sua
descendência negra. Apesar disso, em termos gerais, em ambos os núcleos familiares,
compilou-se material rico e complexo não só sobre ambos os troncos, mas sobre a
ocupação e os intra-casamentos entre troncos na área em termos gerais, bem como da
própria ocupação da Serra de Santana.
Dentre as demais áreas, todas contíguas, enfatize-se, que na atualidade são pensadas
como conformando a grande Macambira, a “Comunidade da Macambira”, temos ainda: no
extremo nordeste, o “Cabeça do Ferreira”, pequena área ocupada pela família Ferreira
desde o final do século XIX; a leste, nos limites com a área ocupada pelo grupo desde 1997
(Cabeçada Macambira), antiga área de ocupação dos Daniel, está o “Cabeça do
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Ludogério”, ocupação mais recente, dos anos 1950, onde antes se encontravam os Genuíno,
de ocupação antiga na Serra, que vende suas terras para os Ludogério; e por fim, as áreas
hoje conhecidas como “Macambira II” e a parte norte de “Buraco de Lagoa”. Podemos
dizer, que se comparadas ao histórico de ocupação exercido pelos Daniel e pelos Severiano,
e mesmo dos Ferreira, podemos dizer que estas serão ocupadas depois, Macambira II, por
gente dos Rodrigues e Firmino. Em Buraco de Lagoa, por fim, encontramos um novo ramo
dos Araújo, também descendente de Francisco Lázaro, bem como a parentela dos Amaro,
também Araújo, também com descendência, e compadrio, ligando-os a Francisco Lázaro.
Os Amaro, anteriormente, ocupavam as áreas hoje de propriedade de Ivanilson Araújo,
dentro das quais inclusive, encontram-se as taperas de suas antigas moradias.
Croqui: No eixo norte-sul, representado em termos básicos, a constituição em sub-áreas da grande
Macambira, de uma grota a outra, com seus respectivos grupos familiares principais (troncos velhos).
Assinalamos também o principal caminho de acesso (“linha”) a cada um de seus territórios
constitutivos.
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CASAS, TERREI ROS E ROÇADOS
CASA E T ERREI RO
A casa é o centro da rede de relações que articula a grande Macambira (entendida em
suas 5 sub-áreas). Para além das casas de morada, poucos lugares havia de sociabilidade
cotidiana na atualidade, à exceção de 4 pequenos mercados – em geral, estabelecimentoa
contíguos à casa da família - que vendem alguns poucos produtos e onde os homens se
reúnem para consumir aguardente nos fins de semana, muitas vezes com os rádios dos
estabelecimentos ou dos carros de algum dos clientes em volume alto. Do levantamento
preliminar realizado, contabilizou-se, somadas as 5 sub-áreas, um total de cerca de 300
casas, parte destas fechadas (ou por abandona, ou por migração temporária por conta de
trabalho sazonal em outros Estados).
Muito poucas são hoje as “casas de taipa”, a grande maioria em forma de tapera,
algumas ainda utilizadas como cozinhas fora de casa, feição arquitetônica marcante no
sertão dos séculos XVIII-XIX (Medeiros, 1983), marcantes até as primeiras décadas do
século XX. Na atualidade, a grande maioria é feita de alvenaria, processo de construção que
se acelera a partir da década de 1980, tanto pela baixa dos custos do material utilizado,
quanto pelo incremento de ações de Estado municipais e estaduais incidindo na região.
Podemos classificá-las em dois modelos básicos, que ao final acabam também marcando
pertencimento a distintos grupos de idade. Dentre alguns dos moradores mais velhos, que
em geral habitam casas construídas há algumas décadas, como a casa de Pedro de Chico e
Dona Nenê, dos Daniel, é comum encontrar-se a disposição dos cômodos de acordo com os
dados que nos apresentam os inventários e antigas casas do Seridó colonial e imperial: sala
de entrada com corredor central, que dá para dois cômodos, um em cada lateral, chegando
ao fim em mais uma pequena sala. No caso da casa de Pedro e Nenê, esta era dividida em
uma pequena casa e uma pequena cozinha. Além disso, outro ponto marcante, em que a
arquitetura da casa e a organização social do grupo de cruzavam, no caso nas relações de
gênero, era a de que, nos termos de Medeiros (1983:55), marca da família sertaneja em
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termos bastante generalizáveis: “pela tradição antiga do sertão, o marido mandava, da
porta-do-meio para frente; a esposa, da porta-do-meio para trás”.
No caso de casais mais novos, como Vilmário e Vitória, a organização interna do
espaço já variava bastante. Se comparada com outras casas novas, de casais na faixa dos
30-40 anos, em termos de arquitetura, o que centralmente se modifica é o corredor central
como eixo da organização da casa. Alem disso, praticamente na se encontram mais
cozinhas do lado de fora das casas.
Durante a semana, é comum ser visitado em casa por parentes, vizinhos mais
próximos e compadres, muitas vezes já pela manhã bem cedo (por volta das 7:00 hs.), uma
vez que a vida em geral começa cedo na Comunidade. No caso de Vilmário, por conta da
posição política que ocupa, estas eram cotidianas. Nos fins de semana, estas visitas se
intensificam ampliando redes de relações (pessoais, familiares, de amizade e, em menor
número, comerciais) 145 podendo demandar mais e maiores deslocamentos. Neste ponto,
nos parece também muito produtiva para o presente caso, a estratégia adotada por Marcelin
(1996) para pensar a organização e relação entre famílias negras no Recôncavo baiano,
incluisve por que se propõe também ser um exame crítico dos mecanismos de
essencialização de grupos sociais (via parentesco) a que chama de “invenção da família
afro-americana”. Seguindo o que lhe contavam seu informantes, para os quais a noção de
“casa” era central, elege-o como “categoria cultural a fim de dar conta da produção da
família e do parentesco” (Marcelin, 1996:18). Nesta perspectiva, a casa passa a ser
entendida como “um momento de um processo complexo de invenção e reinvenção da
família, da amizade, da vizinhança e da iniciação da conjugalidade” (idem: 102). No caso
de Macambira, pensar a partir da casa como lugar e situação por excelência onde se dão as
relações sociais inter e extra-familiares, é tanto constatação de ordem morfológica social
(em termos de histórico de ocupação e organização social) quanto artifício analítico para
apresentar o modo como a Comunidade se organiza e pensa. Vejamos.
A ocupação do território do “sítio Macambira”, seguindo o que nos conta a história
oral local, só se incrementaria, alcançando suas feições atuais, apenas na década de 1940.
145
Na casa de Vilmário e Vitória, em particular, um dos locais – junto à casa de Pedro de Chico – em que se
articula a mobilização política iniciada no final da década de 1990, atual sede da Associação Quilombola, era
ainda marcada por visitas de sindicalistas, funcionários da prefeitura e do governo federal, membros de Ongs
e,com a implementação do trabalho de elaboração do relatório antropológico, de representantes da
universidade.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
Tomemos como exemplo, sua ocupação norte. De suas lembranças da década de 1930,
Joaquim Daniel146 traça o seguinte quadro:
“Era pouca gente, era pouca gente que tinha nesse lugar aqui. A morada era
tudo longe uma da outra. Agora é que é pertinho tudo uma da outra. Quando
me entendi de gente alcancei a morada do Cabeça dos Ferreira acolá, um
velho que chamava Genuíno que mora ali embaixo [apontando para oeste].
Era Genuíno, Paulo Genuíno. Por isso que se chama ali o “barreiro de
Paulo”. E quem a gente alcançou ali era Chico Genuíno. Era filho do velho
Paulo.E tinha o velho Antonio, Antonio Luciano, parece, daquele lado
[apontando para oeste]”.
Os relatos compilados dão conta de um mesmo desenho para as décadas de 19301940, como vimos, de poucas moradas, de distância entre vizinhos, de paulatina formação
de territórios de parentesco, através da construção de novas moradias e ocupação de novas
áreas de plantio, sempre ao redor de um ou mais casais mais velhos, patriarcas de um dado
tronco. Além disso, somos capazes de refazer em parte essas primeiras ocupações. No
relato de Joaquim Daniel, ficamos sabendo da “morada” dos Ferreira, no Cabeça dos
Ferreira, ao nordeste; a dos Genuíno, que então ocupavam a área à oeste que viria a ser o
Cabeça dos Ludogério; e por fim, à leste, a de Antonio Velho.
Croqui: ocupação da parte norte da Macambira na década de 1930 (Joaquim Daniel, 16.04.07)
146
Joaquim Daniel Pereira, Macambira III, 16.04.07.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
Vejamos o desenho que faz Pedro de Chico. 147 De sua infância, na década de 1940,
apresenta o seguinte relato, já incorporando o casamento de um de seus primos, Manoel
Daniel, filho de João Daniel, irmão de Joaquim Daniel:
“No sul, tinha Mané Carneiro. Pro poente, Chico Genuíno, filho de Paulo Genuíno,
onde eram os Ludogério. Era os mais perto que tinha, pro senhor ver! Paulo
Genuíno, o primeiro que chegou nos Ludogério. Ali só existia essa casa aí. Meus
primos casados, tinha. Mané Daniel, tinha casinha bem ali perto do pai dele. Mané
Daniel é filho de João Daniel. Mané Carneiro é de nossa família. É de Veia Zéfa.
Agora, tinha casa mais longe.”
Croqui: ocupação da parte norte da Macambira na década de 1940 (Pedro de Chico, 16.04.07).
De fato, conforme já apontado, ao longo do trabalho de compilação de material para constituição de
uma historiografia da ocupação da Macambira, nos deparamos com eventos e personagens que davam conta
não só da trajetória de certas famílias, mas da ocupação da Macambira em termos gerais. Assim, p.e., dentre
os Ferreira, em conversa com Severo Ferreira, ouvimos que “quem primeiro eu vi falar que chegou aqui foi os
tal dos do Ó. Lá no Buraco Lagoa”, dado que, como veremos, será corroborado por Manoel de Julieta
(Manoel José de Araújo) ao contar sua descendência. Para os propósitos deste trabalhos, diante dos limites
147
Pedro Daniel Pereira, Macambira III, 16.04.07.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
impostos pela natureza de produção desta peça documental, em que não foi possível aprofundar certas facetas
sociais e históricas da formação da Comunidade, objetivamos apenas demonstrar, primeiro, que com os
recursos oferecidos pela memória social local é possível fazer um desenho das primeiras ocupações da
Macambira, suas famílias e locais originais de moradia e plantio, com bastante precisão. Segundo, corroborar
mais uma vez a antiguidade da ocupação e uso da área, bem como seu amplo conhecimento por parte dos
membros da Comunidade. Por fim, retomando a narrativa de Pedro de Chico, apresentamos agora exemplo do
processo de ampliação de terreiros ao redor da casa de um núcleo parental central. Note-se que na década de
1940, não havia outras casas no entorno da de seu pai, Manoel Francisco Pereira. Vejamos agora a área
atualmente ocupada por sua parentela, no centro da qual, pero de onde fora a casa de seu pai, construiu sua
casa, amais antiga:
Croqui: ocupação do entorno da casa de Pedro de Chico ao longo dos últimos 20 anos, ocupado por
filhos, genros e noras. Repare-se que à essa área já se chama de Macambira III.
Podemos considerar ambos os processos apresentados, como exemplares das lógicas
de ocupação da grande Macambira, em especial nos último cinqüenta anos. Da década de
1930-1940, infância da maioria dos entrevistados, em que se contavam facilmente o
número de casas e se conhecia pelo nome todos os seus moradores, à atualidade, com toda a
área tomada, maiormente por casas e seus respectivos terreiros somando cerca de 300
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
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unidades residenciais ao longo de suas 5 sub-áreas. Boa parte de Macambira III, p.e.. que já
foi ocupada por roçados, hoje praticamente é toda ocupada por moradias e terreiros.
Partindo das lógicas de família, esta ocupação se dá basicamente pela ampliação de
moradias e terreiros no entorno das casas de pais e avôs, como no caso de Pedro de Chico.
O mesmo processo, aqui representado por Macambira III, pelos Daniel, se deu entorno de
Severo Ferreira, do Cabeças dos Ferreira, Manoel de Julieta, Jordão Apolinário e a
parentela dos Amaro, em Buraco de Lagoa, e de Herculano, no Cabeça dos Ludogério.
Tal qual o caso relatado por Thomas & Znaniecki (idem), para além dos vínculos
familiares relacionados a “ancestrais comuns”, como Lázaro de Araújo, ou identidades
étnicas compartilhadas, como a de “negros da Macambira”, 148 ou “quilombolas da
Macambira”, impõem-se sempre como eixos de negociação centrais “as bases econômicas
da continuidade familiar”, as “terras ancestrais”. De início, aqueles que tinham condições
de abrir roçados, o fizeram. Isto por que, como ficou claro nos relatos compilados, de fato,
o acesso à terra só passaria a ser um problema crítico apenas na década de 1980, quando
não se consegue mais arrendar em terras do entorno. Além da falta da água, e das
dificuldades de acesso e estocagem da mesma, o principal problema para abertura dos
primeiros roçados, problema que perduraria até a década de 1950, seria a falta de sementes,
no caso, da maniva, para plantio de mandioca. A partir da década de 1950, inclusive com o
incremento agrícola dos baixios do sertão (uma vez que historicamente estas sempre foram
“terras de criar”), aumentou a oferta de maniva, o que possibilitou tanto a estabilidade,
quanto o aumento da produção de mandioca. Até então, conforme já enfatizado, muitas
vezes, apesar da possuir-se terra, tinha-se de trabalhar por arrendamento em terras alheias,
pagando de 30 a 50% da produção pelo uso.
Se tomarmos como exemplo da ocupação sul da grande Macambira, perfazendo em
termos básicos os extremos na área, de um cipó preto ao outro (de uma grota a outra), desta
vez trazendo a versão de ocupação da área atualmente chamada de Buraco de Lagoa,
encontraremos o mesmo padrão traçado anteriormente para o caso dos Daniel. Nesta, a
família mais antiga a ocupar os entornos de uma das duas lagoas existente na chã da Serra
de Santana (a outra sendo a em que hoje se encontra a cidade sede do município de Lagoa
148
Que paulatinamente vai ganhando conotação positiva, passando a fazer parte dos termos de autoidentificação utilizados em contextos de relações interétnicas.
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
Nova), é a dos Severianos. Junto com os Daniel, como já salientado, podemos considerá-la
com dentre as descendentes diretas de Lázaro de Araújo e de seus filhos. Neste caso em
particular, como veremos mais adiante, do casamento de uma das filhas de Lázaro com José
do Ó.
Por fim, salientamos que algumas das parcelas em que se dividem as 5 sub-áreas, a
minoria de fato, é cercada. O total de casas contabilizado até o fechamento deste relatório
era de 240, cada uma praticamente representando uma unidade familiar, a grande maioria
ocupando as áreas de Macambira II, III e Buraco de Lagoa .
ROÇADO
Atualmente, a parcela de área utilizada para plantio pode variar de meio hectare a 5-6
hectares. O modelo de produção ideal almejado pelos membros da Comunidade - razão
pela qual pleiteiam além da regularização da área que ocupam e da que ocuparam em 1997,
duas áreas improdutivas contíguas à Macambira,149 - é de 10 hectares por núcleo familiar,
de forma que um casal e seu filho dêem conta de cultivar a metade desse montante, a outra
metade ficando como reserva, até que a utilizada precise descansar. Deste modo, tanto se
atende a demanda de subsistência, quanto se alcança um excedente a ser comercializado.
Posto em prática este modelo, ao trabalhador rural caberia, em ano de bom trabalho e boa
chuva, rendimento na ordem de R$ 2.000,00-R$ 3.000,00 por safra (em torno de ano e
meio, ara dois anos de trabalho). Apesar do cadastramento levado a cabo pelo INCRA na
Comunidade não ter ainda chegado ao seu fim (faltando nesta data apenas 30% de casas por
serem visitadas), é de se notar que a noção de “renda mensal”, item do formulário de
cadastramento, pouco sentido faz. Exceto aqueles que atualmente recebem aposentos, ou
participam de programas do governo federal como bolsa família e fome zero, nenhum dos
entrevistados soube responder a quesito. Estimamos, com enfatizado ainda não se tendo
fechado os cálculos do cadastramento por unidade doméstica, que pelo menos 15% das
famílias da Comunidade vivem em situação de alta pobreza, possuindo área ínfima para
149
Apresentadas ao final deste trabalho.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
plantar (por vezes vivendo de arrendamento), e não participando de nenhum dos programas
de governo.
A área total utilizada em um roçado é chamada de “quadro”, bem como a medida,
para o caso da macaxeira, p.e., de uso para plantio é de “mil covas”, ou um hectare, o que
significa que se plantará mil pés de roça, com a distância de um metro entre cada um.
Praticamente todas as casas tem pequenos roçados próximos. As famílias tem roçados
grandes (de no máximo 5 hectares), estão plantado na área ocupada em 1997, área em que
membros de todas as 5 sub-áreas da Macambira têm seus roçados.
O calendário agrícola básico se inicia no mês de junho, com a “derrubada”:
Atividade
“derrubada”
“ajeitando o
terreno”
(“riscando a terra”)
1as chuvas
Plantio (roça)
Plantio (feijão de
moita)
Plantio (feijão
grande)
Plantio (milho)
Período
Junho
Outubro novembro
Dezembro
Dezembro-janeiro
Abril
Maio
Maio
Na divisão por gênero dos trabalhos do roçado, homens trabalham na risca e na limpa
do terreno, enquanto mulheres semeiam e colhem, tarefa que por vezes pode ser feita por
homens. Os produtos são sobretudo: mandioca, feijão, fava, milho. Dentro dos roçados, e
nos terreiros das casas, encontramos também cajueiros (também ao longo de alguns
roçados) e pés de pinha, e em menor quantidade, umbuzeiros. A produção de um núcleo
familiar, de “gente trabalhadora”, em ano de “chuva criadeira”, 150 chega a 10 sacos (de 60
kg.) de fava, 20 sacos (60 kg.) de milho, 15 sacos (60 kg.) de feijão, e até 12.000 quilos de
mandioca, que equivalem, se processados, a 6.000 quilos de farinha. Além disso, em meio
aos roçados, plantam também frutais: um pé de pinha pode gerar até 300 pinhas, e um pé de
caju, um saco de castanha por safra. Em um ano, ano e meio, de bom trabalho e chuva, a
150
Expressão recorrente para ano em que chove, não só em abundância, mas no período certo. Este ano, p.e.,
devido ao atraso das chuvas de outubro, os cajueiros deram muito pouco.
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
renda anual adquirida por um produtor pode chegar – de acordo ainda com as oscilações
dos mercados - a cerca de R$ 2000,00. A maior parte da produção é vendida na feira de
sábado de Lagoa Nova.
A água, problema central, histórico, era buscada em Buraco de Lagoa, fonte utilizada
por todos da Macambira e de seu entorno, o que perdurou até o ano de 2005. Desde 2006, a
Comunidade é assistida por 4 poços de abastecimento, parte da grande adutora construída
pelo governo do Estado desde o vale do Açu, e que atravessa a Serra de Santana. Até os
anos 1930, ainda tinham problemas de maniva, de falta de sementes para plantio em
algumas safras, motivo pelo qual, junto às constantes secas, tinham, apesar de possuírem
terra, de trabalhar por arrendamento (de meia ou terça) em terras, muitas vezes, de
descendentes dos antigos senhores de seus antepassados. Segundo Pedro de Chico 151, a
situação só se regularizaria e a maniva já seria franca (farta), “quando também no sertão já
se plantava muita roça, a partir da década de 1940”.
Poço de Buraco de Lagoa. Deste o último ano, vêm sendo bem menos utilizado.
151
Macambira III, 16.04.07.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
Além do uso da terra para plantio, e da pequena criação de galinhas e porcos, nas
matas de capoeira ainda existente, bem como nas grotas que fazem fronteira da chã com o
sertão, áreas de passagem, é possível caçar pequenos pássaros, roedores, tatus, tejos e, mais
raro, veados. Roçados e grotas, para além da casa, são também lugares de transmissão de
conhecimento (nos termos de Barth, 1975, 1987), continuidade dos saberes e moralidade
aprendidos na casa, mas agora desdobrados em um conjunto de habilidades materiais e
simbólicas localmente chamadas pelos mais velhos de “experiência”, “coisa que vêm dos
antigos”. Neste ponto, saliente-se, ainda que não tenha sido possível especializar mais os
dados reunidos, a presença de um amplo conhecimento das técnicas agrícolas (preparo do
solo, escolha das sementes, derrubada, plantio, limpeza, colheita), bem como de
conhecimento ecológico em termos gerais (classificações de botânica e de fauna, bem como
de reconhecimento meteorológico – tipos de chuvas e provável sazonalidade, e territorial),
e, por fim, de ordem mágico-religiosa, em especial entre os mais velhos, abarcando orações
(p.e. penitências para chegada de chuva), entidades (p.e. florzinha),152 e uso de sonhos
como instrumento premonitório. Neste último ponto, como veremos mais adiante, em
especial se houver presença indígena na constituição da família.
Em suma, esse conhecimento transmitido e acumulado ao longo de gerações
(“herança material”, nos termos de Lévi, 2000), expressa, para além do recorrido histórico
apresentado anteriormente, intimidade material e simbólica com o território da grande
Macambira e dos recursos de que dispõe. Afinal, ao fim, também nos roçados e grotas
estende-se a transmissão de valores morais e de uso sustentável de dos recursos naturais.
Quando morre um pai ou uma mãe, se estes têm terras, está é dividida em comunhão de
bens por seus herdeiros. Como propõe Thomas & Znaniecki (1974: 89), mais do que herdar
a propriedade de uma terra, esta propriedade é “comunal”, já que será dever do herdeiro
cuidar bem de seu patrimônio de forma que seus descendentes também façam uso
produtivo das mesmas áreas.
152
Conhecida no sertão também com “comadre florzinha”.
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
Pedro de Chico explica que embaixo de certos tocos no roçado, criam-se
cupinzeiros. Quando se aproxima o tempo das chuvas, estes ganham asas e
ficam mais gordos (Macambira III, 07.07).
FI NS DE SEM ANA , FORRÓS, A NI V ERSÁRI OS, CASAM ENTOS, M I SSAS
FESTAS DE PADROEI RO
E
Do ponto de vista da sociabilidade, ressaltamos a centralidade da casa em termos
relacionais cotidianos, bem como os roçados e grotas em termos econômicos, simbólico e
ético-morais. Neste ponto, damos conta de outros momentos de socialização entre
indivíduos e famílias, momento que vão desde a acentuação das dinâmicas semanais no fim
de semana, momento de “fazer visita” a alguém, até momentos de maior integração como
casamentos, forrós, missas e festas de padroeiro.
Como colocado anteriormente, considerando-se a pouca mobilidade, ou ao menos a
restrição material e simbólica à mesma, que marca socio-economicamente a Comunidade,
nos fins de semana, intensificam-se as visitas à vizinhos e parentes. Em geral, sábado pela
manhã, aqueles que tem algum excedente para vender, ou que precisam comprar algo,
dirigem-se para a feira de Lagoa Nova, entreposto comercial que o sábado inter-relaciona
os moradores da pequena cidade e as comunidades agrícolas do entorno da Serra. De tarde,
adentrando pela noite, intensifica-se o trânsito de carros e motos (em especial motos) pelas
“linhas” da Comunidade, que em geral é bem pouco, praticamente ser resumindo a
caminhão que leva e trás as crianças da escola, e pequenas caminhonetes de vendedores
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
ambulantes. Situação comum é encontrar, do lado de fora da casa, homens e mulheres
ouvindo música alto e conversando animadamente, muitas vezes consumindo aguardente e
comendo algo, o que pode entrar noite à dentro. De tarde, parte dos homens reúne-se em
torno do campo de futebol, entre Buraco de Lagoa e Macambira III, para jogar, na maior
parte das vezes uniformizados. Sábado é dia também privilegiado para festas de aniversário
(de todas as idades) e forrós. As mais comuns são as de adultos.
Outro evento comum, praticamente mensal, é o forró. Anunciado na rádio AM de
Lagoa Nova (assim como os casamentos e outras festas e encontros), tanto tem função
econômica, quanto de sociabilidade. Do ponto de vista de quem o organiza, é maneira de
investir algum recurso disponível de forma a faze-lo render. Constrói-se um pequeno
cercado, dentro do qual, em geral da caçamba de um pequeno caminhão, um dos muitos
grupos de forró contratáveis na região toca em volume altíssimo, enquanto vende-se bebida
e ingressos são vendidos na entrada, com diferenciação de preços por gênero, os homens
sempre pagando, as mulheres obtendo descontos ou mesmo entrando de graça. Momentos
como esse, em se considerando como se tem salientado a pouca mobilidade e os poucos
momentos de socialização em sentido mais amplo, tornam-se ... para o início de
namoros,que na maioria das vezes se tornam casamentos.
Os casamentos são sem dúvida o maior investimento material e simbólico da família,
muita vezes de toda uma parentela, frente à Comunidade e seu entorno. Nos casos
presenciados, ao longo dos anos 2006-2007, o maior investimento coube à família da noiva.
Dependendo da família, pode ser celebrado com muita fartura. É momento em que a carne
de boi, p.e., nem sempre presente na alimentação cotidiana, mais regada à carne de frango e
de porco, é oferecida com fartura. O último casamento realizado na Comunidade, no mês
de junho, em Buraco de Lagoa, que requereu economia familiar durante alguns meses,
ficou falado pela quantidade de carne que foi servida, em especial a de bode que de tanta, e
de não ser muito apreciada pela Comunidade, foi levada por convidados para alimentar seus
cachorros. É nos casamentos também, uma vez que serve como catalizador para o enconro
de amigos e parentes que muitas vezes ficam longo períodos sem se verem, que se compõe
compadrios e que se acertam novos matrimônios, ou mesmo, mais um momento em que
pode se iniciar um namoro ou noivado.
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
Por fim, na religiosidade encontramos mais um momento exemplar de socialização,
em como de pertencimento. A grande maioria da Comunidade é de católicos, boa parte de
praticantes. Poucos são os casos membros de igrejas neo-pentecostais, ao havendo
nenhuma igreja na área. Do mesmo modo, com muita discrição, resumindo-se a práticas a
individuais, temos também a presença da jurema. De início, tema velado, tocado com muita
descrição e crítica, foi se tornando mais aberto, ao ponto de se elencar uma lista de pouco
mais de 15 pessoas praticantes ou conhecedoras da prática mágico-religiosa. No ojo dessa
abertura, alguns dos entrevistados contaram histórias, do “tempo dos antepassados”, de
avôs e avós que invultavam, tornando-se invisíveis, muita rápidos, ou mesmo
transfigurando-se em animais. Lembre-se, como colocado anteriormente, que os membros
da comunidade negra eram também conhecidos pelo entorno “branco” como sendo
“feiticeiros”. Além disso, muito comum, encontramos também, tanto em senhoras idosas,
quanto em senhoras de meia idade, a prática da cura, da reza como instrumento terapêutica
contra um conjunto de males fisiológicos, psicológicos e espirituais. Dependendo da
rezadeira, este conhecimento pode ficar bem densa e específico, tanto em termos de
classificação de perturbações, bem como de terapêuticas específicas para cada quadro
diagnóstico.
As grandes missas – já que podem haver cultos organizados por pequenos grupos
(como no caso das novenas) – ocorrem sazonalmente, de acordo com a disponibilidade do
pároco de Lagoa Nova, do tempo que este leva para dar a volta por todas as comunidades
rurais do município de Lagoa. Em geral, acontece a cada mês e meio, dois meses. A última
foi celebrada no final do mês de outubro, organizada e recebida por Dona Fátima –
professora e liderança católica local – no terreiro de sua casa. Como na maioria das vezes, o
pároco aproveitou para realizar batizados e casamentos mais rápidos. Por fim, a celebração
de padroeiros (com p.e.São Francisco, Sant’Ana e Santa Luzia) pode assumir a forma desde
pequenas novenas, até procissões e grandes missas na Igreja de Lagoa Nova, momento
dentre os raros em que os membros da Comunidade interagem, em grande escala, com a
população de Lagoa Nova.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
Pedro de Chico de Dona Nenê apresentam o conjunto de santos emoldurados e pendurados na
parede, junto a seu retrato de casamento. Uma de suas filhas, reza criança da comunidade
(Macambira III).
H I STÓRIAS DE V I DA, FAM Í LI A E TERRI TORI ALI ZAÇÃO
Por fim, apresentamos dados bem elementares sobre as trajetórias de formação de
cada família, personificadas através das trajetórias de vida de alguns de seus membros, no
caso em particular daqueles que como vimos enfatizando são reconhecidos localmente
como “conhecedores” da historiografia local, historiografia de perfil oral, transmitida
fragmentariamente entre gerações, desde a segunda metade do século XIX. Ainda que
provisoriamente, objetivamos tocar o sentido morfológico (material e simbólico) da
expressão “é tudo uma família só”, que se articula e se explica:
(1) tanto em termos de consangüinidade, como veremos, com descendência direta de
alguns dos troncos de três dos filhos de Lázaro de Araújo e Maria Joaquina: “Ana de
Lázaro” (Anna Bernarda de Jesus), “Alexandre Lázaro” (Alexandre José de Araújo) e, o
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
que mais comparece na memória local, por vezes confundido com seu pai, “Francisco
Lázaro”;
(2) quanto em termos de afinidade, em especial nas relações de casamento das que
podemos neste ponto confirmar como sendo as duas principais parentelas da Comunidade,
os Severiano (Araújo) e os Daniel ( Pereira), com as famílias Ferreira, Ludogério,
Rodrigues e Felipe, ao longo do século XX.
BURACO DE LAGOA,
FAMÍLIAS SEVERIANO, AMARO, FELIPE E ARAÚJO
A família conhecida como os Severiano, tem como seu patriarca Manoel José de
Araújo, mais conhecido como Manoel de Julieta, por conta de sua mãe se chamar Julieta
Maria da Conceição. Como já apontado anteriormente, os Severiano estão dentre os troncos
fundadores da grande Macambira, uma vez que descendem do casamento de uma das filhas
de Lázaro de Araújo, que aparece nesta versão como “Ana de Lázaro”, que se casa com
José do Ó, “negro” afamado no entorno da Serra de Santana e de Currais Novos, em
especial por contenda com o coronel João Antônio, de Santana dos Matos. Este fato é tão
conhecido, que aparece compilado por Othon Filho (1970:130), que apresenta a desavença
desse “negro-homem” com o coronel, e de como após ser humilhado ao reclamar certa
dívida de “comboio de farinha” ao magistrado, termina louco. O primeiro nome
“Severiano” passará a ocupar o lugar de sobrenome, sobrepondo-se ao de Araújo, a partir
do momento em que o atual patriarca de Buraco de Lagoa nomeia alguns de seus filhos
com o segundo nome “Severiano”, homenagem a seu avô paterno Severiano Pereira de
Araújo. Ressalte-se ainda que, ao final, exceto os Felipe, todos as famílias consultadas são
Araújo, de forma que eleger o nome Severiano, ainda que em homenagem à seu avô, é
também marcar diferença dentre os Araújo, como com seu primo Jordão Araújo, com quem
se desentendeu, faz poucos anos, em juízo, por conta de limites entre as terras de ambos.
Desde a geração de José do Ó, a família vem expandindo a ocupação em parte da
área de Buraco de Lagoa. Atualmente, após a passagem de parte de suas terras, com o
falecimento de sua esposa Josefa de Medeiros, como herança para seus filhos, a situação
fundiária familiar é delicada, uma vez que para cada núcleo familiar que se reuniria no
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
entorno de sua casa, restaram apenas dois hectares por unidade para erigir casa e terreiro.
Por conseguinte, alguns de seus filhos, apesar da não adesão do patriarca ao processo
iniciado pela Associação Quilombola, fazem uso das áreas ocupadas em 1997, bem como
outros conseguem ainda arrendar pequenas parcelas em terra alheia.
É com Manoel de Julieta,153 (seguramente dentre os especialistas da memória local
o que com mais detalhes guardou as histórias de fundação e ocupação da Serra de Santana
transmitidas por seus antepassados), em suas narrativas, que encontramos também o
entrecruzar de todos os troncos da grande Macambira através da complexa e extensa rede
de intra-casamentos, todos alinhavados pela figura de Lázaro Pereira de Araújo e seus
filhos:154
“Vilmário: Sabe quantos filhos esse avô do senhor teve [Lázaro de Araújo]?
Manoel de Julieta: Bastante. Homem, tem um bocado. É muita gente. Veja você
que a minha avó chamava Aninha, filha de Lázaro. Seu bisavô chamava..
Francisco Lázaro de Araújo. Tinha... o velho Manoel Passarinho, tinha o irmão de
minha mãe, que se chamava Luciano. Tinha o pai desse povo do Cabeça. O pai
dos Ferreira. Tinha.... a vó de Mané Birro... Você conhece Mané Birro?
Vilmário: D’acolá?
Manoel de Julieta: Sim.
Vilmário: ih, é?
Manoel de Julieta: Mas por que não? Tinha o pai de Ana Peba, que era casada
com o compadre Ciro Machado. Que chamam ele Peba por quê?... Aí criou-se a
família Peba. Hoje em dia é um familião também.
Vilmário: E o pessoal aqui de Mané José?
Manoel de Julieta: Esse povo é Felipe.
Vilmário: Os Felipe faz parte dessa família também?
Manoel de Julieta: Faz parte também dessa família que vem de Lázaro.
Vilmário: E esses dos Santos, não?
Manoel de Julieta: Também a mesma coisa. Aqui nesse meio de mundo pra onde
você corre, é tudo uma coisa só. Tudo de Lázaro, tudo de Lázaro, que foi o
153
154
Buraco de Lagoa, 28.01.06.
Buraco de Lagoa, 28.01.06.
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
primeiro que chegou aqui. O primeiro que criou família, né. Aí casaram-se os
homens, os homens casaram com outra família. As mulheres casaram com outro
povo, e vão criando família, vão criando família, família casando com outra família
e lá se vai, viu. Pois é. A família de Lázaro, era só Lázaro. Hoje em dia, a família
de Lázaro tá misturado com Pinheiro, Rodrigues. Com Felipe, com Firmino. É um
familião. Os Firmino vem do Fernando Passarinho. Fernando Passarinho era
irmão da minha avô”.
Manoel José de Araújo, Manoel de Julieta (Buraco de Lagoa, 19.04.06)
Através de Manoel de Julieta, ficamos também sabendo que a família conhecida
como os Amaro, também Araújo, descende de um outro dos filhos de Lázaro de Araújo, seu
filho mais velho, que a memória oral local guardou como “Francisco Lázaro”. “Esse velho
Amaro”, conta o patriarca, “o pai dos Amaro, era filho de Francisco Lázaro”. Não é por
acaso então - uma vez que Francisco de Paula Araújo foi o inventariante de Lázaro de
Araújo, tendo guardado suas escrituras de terra (os tais “documentos do tempo de Dom
Pedro”) -, que na atualidade estas estão sob a guarda de Ana Amaro, esposa do falecido
Luiz Amaro de Araújo. De fato, estas escrituras estavam sob a guarda de Tuca Amaro
(Maria Amaro de Araújo), filha do “velho” Luiz e de Ana Amaro (Ana Ferreira dos Santos,
dos Ferreira). Por conta disso, cabe a Tuca arrecadar o pagamento anual do IPTR da área,
que consta como sendo de 120 hectares e abarca parte de Buraco de Lagoa (à exceção da
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
parte que cabe aos Severiano), e Macambira II e III. Já segundo Joaquim Daniel Pereira 155,
“o documento de Ana Amaro pega Macambira II, III e Cabeça dos Ferreira, só que lá eles
se preocuparam em fazer documento, se preocuparam em pagar o imposto e aqui continuou
com tio Amaro [Luiz Amaro]”.156
Tuca Amaro (Maria Amaro Araújo) em sua casa, e com seu boi alemão, com que risca roçado e
usa para transporte pesado (Buraco de Lagoa, 19.04.07).
Primo de Manoel de Julieta, Jordão Apolinário de Araújo, descende de outro filho
de Lázaro de Araújo. Desta vez, é Alexandre “Lázaro” de Araújo. Joaquim Daniel, ao se
referir a antigos moradores na região, se refere aos “Alexandres” 157 como habitando o
entorno onde hoje está a família de Jordão. Em torno de si de formou também pequena
parentela, de ocupação significativa em Buraco de Lagoa. De fato, até aqui, podemos dizer
que os Severiano ocupam a área sul de Buraco de Lagoa, os Amaro a área norte contígua à
Estrada do Comércio, seguidos em seguida pela parentela de Jordão Apolinário. Por fim,
praticamente fechando a ocupação de Buraco de Lagoa, do trecho da sub-área que faz parte
do território que a Comunidade quer ver regularizado, temos a família dos Felipe.
Apesar da insistência de Manoel de Julieta em que os Felipe também descendiam de
Lázaro de Araújo, caso excepcional, a memória genealógica de Manoel José Felipe da Silva
era muito curta, não sendo possível reconstituir por sua descendência o elo que liga os
Felipe com a família extensa dos “Lázaros”, mas por aliança (afinidade), dada a
reconhecida antiguidade de sua ocupação na Serra, e na Macambira em especial. De todo
155
Macambira III, 16.04.07.
Severo Ferreira (Cabeça dos Ferreira, 09.12.06) também confirma esta informação quando, ao recuperar a
história da ocupação da área enfatiza: “Essa aqui é a data da Macambira, diz que é de 3 léguas”.
157
Buraco de Lagoa, 16.04.07.
156
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
modo, sabemos que a família dos Felipe habitava originalmente a área chamada de “sítio
velho”, que no inventário de Lazáro de Araújo (1872) aparece como uma de suas
propriedades partilhadas em herança por alguns de seus filhos. Na década de 1950, os
Felipe seriam expulsos do sítio por membros da família Pinheiro, segundo as narativas
compiladas, a mando do coronel José Bezerra. Para além de todas essas lacunas, também o
velho patriarca dos Felipe nos apresenta a versão corroborada em todos os troncos e áreas
da Comunidade: “Aqui, tudo é de Lázaro, uma família só”.158
Jordão Apolinário de Araújo. Reunião em Macambira III, 06.07.
Manoel José Felipe, Buraco de Lagoa, 18.04.07.
158
Buraco de Lagoa, 18.04.07.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
Gráfico genealógico: Manoel José de Araújo (apelido: Manoel de Julieta).
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
Gráfico genealógico: Maria Amaro Araújo (apelido: Tuca Amaro)
Gráfico genealógico: Jordão Apolinário de Araújo.
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
Gráfico genealógico de Manoel José Felipe (apelido: Manoel Felipe)
M ACAM BIRA I I E I I I ,
FAM Í LI AS D ANI EL E RODRI GUES
De acordo com as narrativas de Manoel de Julieta,159 o local historicamente
conhecido como “Macambira”, a “verdadeira”, encontrava-se na “linha” em torno da qual
hoje encontram-se a maioria dos núcleos familiares dos Daniel, modo como atualmente é
conhecida a extensa parentela dos Pereira. Estes também descendem de “Francisco
Lázaro”, como sabemos, filho mais velhos de Lázaro de Araújo. No caso dos irmãos
Joaquim, Severino, Manoel e Quirino, todos entrevistados, filhos de João Daniel e Maria
Joana da Conceição, o fundo genealógico que alcançam é o da geração dos filhos de Lázaro
e Maria Joaquina,e não desse primeiro casal.
Segundo Severino e Manoel Daniel, 160 durante uma das muitas secas mais graves
ocorridas na Serra, seus pais resolvem tentar a vida por alguns anos para os lados de
Santana do Matos. “Mamãe Joana”,contam, era da “raça dos Ferreira”, do Cabeça dos
159
160
Buraco de Lagoa, 19.04.07.
Manoel Daniel Pereira e Severino Daniel Pereira. Macambira III, 28.10.06.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
Ferreira, informação confirmada por Quirino Daniel. 161 Repetindo a máxima encontrada em
toda a Macambira, enfatizam sobre a relação entre a área da Macambira e a Cabeça dos
Ferreira: “Daqui pro Cabeça, é uma misturada só”.162
Quando voltaram do período no sertão, os Daniel ocuparam inicialmente a área
onde hoje está Macambira II. Neste ponto, reencontramos o pé de pinha centenário
mencionado na parte I deste trabalho. Enfatiza Manoel Daniel: 163
“Tem o pé de pinha ali, papai comprou a casa que tinha ali de finado Antonio
Roberto quando nós chegamos. Esse pé de pinha ainda tá vivo, acho que ele têm
mais de cem anos!”
Com o crescimento dos treze irmãos e a constituição de seus respectivos núcleos
familiares, os Pereira foram progressivamente ocupando áreas para oeste, na “linha” onde
hoje se encontram. Não há consenso entre os irmãos Daniel a respeito de qual dentre os
muitos antepassados com o nome Daniel teria sido aquele que por conta da notoriedade que
alcançara, passara a nomear toda a família (com ocorrido com a parentela de Manoel de
Julieta).
A área que passaria a ser conhecida como Macambira II seria progressivamente
ocupada pelos Firmino e Rodrigues, estes últimos em especial após a venda de parte de
suas terras na década de 1940 (1943) à Elíseo Galvão. Nos termos de Joaquim Daniel, 164 os
Firmino 165 eram conhecidos por serem “bem animados”: “às vezes havia revolução por
lá!”. Ressalte-se que será na geração dos irmãos Daniel que se intensificará o casamento
entre primos, dado o crescimento populacional das famílias, bem como o estreitamente do
campo de relações possíveis diante da segregação materializada na expressão, que também
deve ter se difundido a partir desta geração, de “negros da Macambira”.
Uma outra rama dos Daniel é representada pela família de Pedro de Chico, Pedro
Daniel Pereira, primo de Quirino, Severino, Manoel e Joaquim. A trajetória de Pedro é bem
parecida com as dos demais parentes próximos, uma vez que dadas as grandes secas dos
anos 1940, sua família migra para o sertão procurando terra para viver de arrendamento por
161
Macambira III, 30.04.07.
Macambira III, 28.10.06.
163
Macambira III, 28.10.06.
164
Macambira III, 16.04.07.
165
Que segundo Manoel de Julieta “são os mesmo Passarinho” (Buraco de Lagoa, 28.10.06)
162
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
algum tempo. Também descende de Francisco Lázaro de Araújo. Como a maioria dos
primos, também se casou com uma prima, Maria das Neves Felipe.
Pedro de Chico (Pedro Daniel Pereira), trabalhando em seu roçado (Cabeça da
Macambira, 07.07)
Joaquim Daniel Pereira apresenta o pé de pinha ao redor do qual seu núcleo familiar de criação
residiu na volta para Macambira, passadas as secas da década de 1940.
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Gráfico genealógico: Joaquim, Severino, Quirino e Manoel Daniel Pereira.
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Gráfico genealógico: Pedro Daniel Pereira (apelido: Pedro de Chico)
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CABEÇA DOS FERREI RA ,
FAM Í LI A FERREI RA
Como vimos, “mamãe Joana” casada com um dos finados patriarcas dos Daniel, pai
dos irmãos Quirino, Joaquim, Manoel e Severino, descende da família Ferreira. Segundo
Severo Ferreira,166 da parte de sua parentela, quem primeiro chega em terras da Macambira,
na virada dos séculos XIX-XX, é José Ferreira dos Santos, seu avô, quem “tomava conta
daqui”. Revela que no inicio, a área era conhecida como “Cabeça da Macambira”, com o
crescimento da família passando a ser conhecida pelo sobrenome da parentela nela
habitante. Mais uma vez, comum em sua geração e nas duas seguintes, casa-se com uma
prima, “prima legítima”, que tinha parte com as “famílias brancas” do Curralinho, com
parte dos Assunção. Uma semana após gravação de entrevista com o patriarca dos Ferreira,
este falece, em dezembro de 2006.
Vilmário Pereira e Dona Maria Miranda, viúva de Severo Ferreira, assistindo a filmagem
realizada na semana anterior ao seu falecimento (Cabeça dos Ferreira, 03.07)
Outro membro da família Ferreira consultado, primo de Severo, também apontado
como “conhecedor das histórias”, mas também exímio conhecedor da ecologia da Serra, em
especial das grotas, foi Salvino Ferreira. Neste ponto, como já colocado anteriormente, o
elemento étnico presente em Macambira ganha contornos de indianidade, dada a presença
“cabocla”, indígena, na descendência de Salvino. Como enfatiza o ancião: “rapaz, meu pai
166
Cabeça dos Ferreira, 09.12.07.
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COMUNIDADE DE MACAMBIRA: DE “NEGROS DA MACAMBIRA” À ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA EDMUNDO MARCELO MENDES PEREIRA
dizia que minha avô era tapuia, índia braba”.167 Por este motivo, inclusive, os membros da
Comunidade explicam seu profundo conhecimento das matas (em especial das grotas), bem
como atribuem à sua rama da família o conhecimento específico da caça e tudo que esta
implica materialmente e simbolicamente. Neste sentido, é conhecido como mateiro
experiente, “capaz de achar rasto em pedra”. Como explica:
“Meu pai era mateiro. Trabalho dele era muito pouco. O Negócio dele era
caçar. Que as coisas eram difíceis naquele tempo. Chover, chovia muito
pouco. Ele cuidou da família com caça do mato.”
Em termos residenciais, sempre viveu junto com sua família, por conta de suas
habilidade, perto das grotas, onde ao final se criou. O relato de sua infância está dentre os
em que se explicita maior dificuldade e pobreza, para além de todo o relatado sobre falta de
água e perspectiva na Serra ao longo do século XX: “meu filho, nós não tinha roupa.
Quando vinha alguém, nós se escondia no mato. Só tinha uma roupa que usava quem ia pra
cidade”. Seu núcleo familiar soma-se às famílias que ocuparam em 1997 a Cabeça da
Macambira, utilizando com alguns de seus filhos cerca de dez hectares.
Salvino Ferreira. À esquerda, Quirino Daniel Pereira. Durante reunião em Macambira III, 07.07.
167
Grotas do Açu, 17.04.07.
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Gráfico genealógico: Severo Ferreira.
Gráfico genealógico: Salvino Ferreira.
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CABEÇA DO LUDOGÉRI O,
FAM Í LI AS LUDOGÉRI O E H ERCULANO
Por fim, sobre a área de ocupação mais recente, o Cabeça do Ludogério, pouco se
conseguiu averiguar sobre a história de ocupação local uma vez que seu patriarca,
Herculano, de fato Pedro Francisco dos Santos, se encontra bem acamado, não havendo
outro membro da família capaz de compilar as narrativas de origem familiar. Em conversas
dentre outros troncos, ficamos sabendo que os Ludogério (Luiz Ludogério) chegam na
pequena área hoje chamada de Cabeça dos Ludogério, no início da década de 1950, família
negra vinda do Trangola, região no sopé da Serra de Santana, sertão do Seridó, onde,
lembre-se, Lázaro de Araújo teve propriedades. Compram aos herdeiros de Paulo
Genuíno 168 as terras herdadas de seu pai. Por esta mesma época, chega também na área,
vindo do Sítio São Francisco (contíguo à Macambira), Herculano, dos Santos, família negra
também antiga na região. Segundo a versão compilada, os casamentos realizados na área se
dão todos entre gente de Ludogério com gente de Herculano.
Apesar de não termos conseguido mapear em profundidade a genealogia da área,
segundo Quirino Daniel Pereira, 169 a parte de Herculano, dos Santos, deve fazer parte
“dessa mesma família”, uma vez que, quando menino: “a gente pedia a benção deles, né,
eles deviam de ser tios da gente”. Independente desse fato, boa parte dos membros da
família Herculano também fazem uso de terras da área ocupada em 1997 (Cabeça da
Macambira), motivo pelo qual, além da afinidade entre famílias, fazem parta de Associação
Quilombola local.
168
169
Que “chegara nos idos de 1880 na chã da Serra” (Severo Ferreira, Cabeça dos Ferreira, 09.12.06).
Macambira III, 30.04.07.
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O RGANI ZAÇÃO POLÍ TI CA E ASSOCI ATIV I SM O
A década de 1980 pode ser considerada como a mais dramática para a Comunidade,
uma vez que além de não ter mais áreas suficientes para plantar no que sobrara de seu
antigo território, desfigurado desde a década de 1940, seus membros também já não
conseguiam áreas para trabalhar por arrendamento. Além disso, nessa mesma década, com
o desmatamento das áreas próximas às grotas do Açu, a caça tornou-se escassa. O ano de
1987 marca o ápice dessa década de pobreza e insuficiente apoio estatal, quando em
meados do ano, sem ter mais o que comer, “nem roça se tinha”, membros da Comunidade
invadem a feira de sábado de Lagoa Nova, roubando o que podem de comida. Segundo
Vilmário Pereira, “a polícia não fez nada, só com quem roubou outra coisa sem ser
comida”. Além disso, salienta, “não houve represaria depois. Em geral, quando acontece
algum problema mais grave, a polícia entre na Comunidade e se dirige à casa de algum
procurado ou por algum chamado”.
De fato, podemos dizer que o final da década de 1980 marca o início das primeiras
mobilizações políticas empreendidas pela Comunidade, em geral em torno da família
Daniel, personificado nas figuras de Vilmário e Pedro de Chico e suas redes de apoio e
suporte. Dez anos depois, já tendo o sindicalismo rural se tornado um agente político e de
politização na Serra, membros da Comunidade resolvem ocupar terras improdutivas
contíguas às áreas Macambira II e III, no móvel denominado de Cabeça da Macambira,
cujo dono da época era Ubirajara Galvão, contando com apoio da entidade. Além disso,
lembra Pedro de Chico, os noticiários de televisão traziam notícias das ações de
movimentos sociais como o MST (Movimento dos Sem-Terra), que os inspiravam. Do
ponto de vista da Comunidade, tal ação se legitimava com base em dois pontos: (1)
primeiro, a necessidade urgente de terra para plantio; (2) segundo, ao recuperarem a
história do território da Macambira, em especial o período das décadas de 1940-1950,
reportam-se às ações de dois “coronéis” com quem detinham relações: Elísio Galvão, de
Santana do Matos, e José Bezerra, de Currais Novos.
As lembranças reunidas com relação a José Bezerra, apesar de pouco falado, como
vimos, já foram bem expressas por Manoel Felipe, no que tange à violência física de suas
ações. Segundo os relatos compilados para o primeiro desses “coronéis”, Elíseo Galvão
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(figura histórica na região, que atualmente dá nome à rodovia que liga Curais Novos à Serra
de Santana), na década de 1940, entre 1942-43, segundo a memória de Quirino Pereira,170
este compra algumas parcelas de terra de alguns dos herdeiros dos herdeiros de Lázaro de
Araújo, no entorno da área conhecida localmente como “Umbuzeiro dos Rodrigues”, à
sudoeste da grande Macambira. Dados do cartórios de Santana do Matos, dão conta de que
essa área pertencera à Francisco Rodrigues, patriarca dos Rodrigues (INCRA, 2001). A
partir daí, compraria outras parcelas. Quando iniciou o cercamento das terras recémcompradas, segundo a Comunidade, cercou áreas que de fato não havia comprado, áreas
que seriam contestadas, mas que seriam cercadas com a promessa de retirada de cercas,
assim que a Comunidade precisasse das áreas. Dentre as áreas que não conseguiu cercar,
dada a insistência com que a tal se negou, motivo pelo qual ficaria afamado na região, está
a do “finado” Antonio Velho. Corroborando a antiguidade da ocupação de famílias antigas
(troncos velhos) na área ocupada, membros da Comunidade iam anotando as taperas
encontradas, ao passo que exercitavam a busca, dentre os repertórios históricos conhecidos
por cada tronco, dos antigos moradores de cada lugar. De fato, se comparamos o modelo de
dominação implementado por ambos proprietários, Elísio Galvão faziam mais uso de
relações clientelistas, algumas baseadas no compadrio, bem como no fato de contratar
trabalhadores da Serra para sua Fazenda Bonfim, em Santana do Matos, para exercer sua
influência. Já as ações apresentadas por José Bezerra, levam ao estremo a segmentação e
diferenciação étnica e de classe, quando simplesmente manda expulsar a família Felipe de
suas terras de direito. Ainda que tais eventos peçam recuperações bem mais meticulosas e
com comparação de fontes do que nos é possível escrutinar neste trabalho, cabe no entanto
ressaltar que os eventos aqui resumidamente relatados envolvendo ambos os grandes
proprietários que entre as décadas de 1940-1950 puseram-se a cercar suas propriedades,
aparecem com freqüência e em com muitos eixos de recorrência ao longo das versões de
ocupação da grande Macambira compiladas dentre os especialistas da memória.
Retomemos o ano de 1997. Os primeiros meses da ocupação da área Cabeça da
Macambira foram tensos, com freqüentes expulsões por parte da polícia, seguida de
posterior re-ocupação da Comunidade, bem como ameaças de morte a um dos líderes
políticos locais, Vilmário Pereira, atual presidente da Associação Quilombola local. O
170
Macambira III, 30.04.07.
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sindicato rural de Lagoa Nova apoiava com suporte técnico as ações, em especial
juridicamente. Passado esse período, não havendo mais o retorno de agentes do Estado ou
do proprietário, a área vai sendo progressivamente ocupada (hoje está praticamente
tomada). Através do sindicado rural de Lagoa Nova, a Comunidade solicita ao INCRA,em
2001, abertura de processo para desapropriação do imóvel Cabeça da Macambira, que
desde 2006 tem como proprietário Ivanilson Araújo. Tal processo duraria praticamente 5
anos, ao final sendo sustado tendo em vista - apesar da Comunidade habitar a área com
sucesso, apesar de todos os problemas, desde meados do século XIX - que “o aqüífero
subterrâneo apresenta baixo potencial para exploração, tendo em vista as baixas vazões
encontradas nas mediações”. 171 Nesta década também, viveriam as experiências do
cooperativismo. Por conta da inexperiência da Comunidade nesse tipo de organização
político-administrativa, bem como da falta de honestidade dos mediadores externos a tal
processo organizativo e de investimento, a experiência seria um fracasso, boa parte ficando
endividada junto a Banco do Brasil.
Por fim, no ano de 2005, chegam na Serra de Santana, mais uma vez através do
sindicato rural de Lagoa Nova, informações sobre novo caminho jurídico-administrativo
possível a ser tentado pela Comunidade em suas reivindicações fundiárias, dado o perfil
étnico distintivo que esta apresentava, notório localmente, de comunidade “negra”, com
passado que a ligava à escravidão do Seridó do século XIX. Apesar de todo o
historicamente sofrido por sua descendência “negra”, membros da Comunidade, em
número crescente, passam a assumir publicamente sua condição descendentes de exescravos. Deste modo, em 2005, em 01 de maio, o mesmo grupo articulado que desde 1997
iniciara sua organização política, com a promoção da ocupação da Cabeça da Macambira,
que vinha se organizando e conscientizando politicamente, funda a Associação dos
Quilombolas da Macambira do Município de Lagoa Nova. Conforme já apresentado no
início deste relatório, em posse da ata de fundação da Associação, a Comunidade pleiteia
junto à Fundação Cultural Palmares sua certidão de “auto-reconhecimento” como
comunidade remanescente de quilombo.
171
“Relatório agronômico de fiscalização no âmbito do Programa Nacional de Reforma Agrária do Imóvel:
Macambira” (2002).
Cadernos do LEME, Cam pina Grande, vol. 3, nº 1, p. 123 – 260. jan./ jun. 2011.
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O associativismo, enquanto forma de gestão política é uma novidade que tem
desafiado a Comunidade. Deste modo, apesar da marcada autonomia, como vimos, entre
núcleos familiares e parentelas, em especial no trabalho agrícola, progressivamente, os
processos de decisão têm se tornado mais coletivos através de reuniões periódicas entre
membros de famílias e sub-áreas e a atual presidência da Associação. Já ao final da
elaboração deste relatório (outubro de 2007), representantes de algumas sub-áreas, junto
com a presidência, aventaram a possibilidade de cada uma dessas sub-áreas, já que ao final
representam praticamente uma parentela, organizar-se internamente, de forma a chegar nas
grandes assembléias com posições já formuladas e refletidas. Deste modo, parece que
assistimos aos processos de autonomia em curso desdobrando a organização associativa, ao
mesmo tempo em que este serve à otimização dos usos dos novos modelos políticos e de
gestão que o processo quilombola tem trazido para a Comunidade de Macambira.
Reunião da Associação Quilombola, casa de farinha em construção, Macambira III, 07.07.
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III.
PARECER CONCLUSI VO E RECOM ENDAÇÕES
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A Comunidade remanescente de quilombola de Macambira organiza-se em uma
rede extensa de famílias nucleares e parentelas que há pelo menos cinco gerações ocupam
parte da chã da Serra de Santana, de uma grota à outra, de um cipó preto ao outro. Suas
famílias têm sua vida material e simbólica estreitamente relacionada aos trabalhos agrícolas
e da pequena criação. Como buscamos demonstrar ao longo deste trabalho, a etnicidade
encontrada em Macambira pode ser entendida dentro de 3 pilares básicos: (1) por um lado
se organiza e se pensa dentro de uma lógica familiar, marcada nas últimas três gerações
especialmente por intra-casamentos, tendo a Lázaro Pereira de Araújo, ex-escravo, como
“fundador”, semente de todos os troncos velhos; (2) por outro, constantemente aciona e refigura sua memória social, através da qual tanto performa um protagonismo negado pelo
historiografia geral do Seridó, quanto tem garantida sua origem, sua descendência de um
homem livre, símbolo de autonomia e resistência; (3) e por fim, o próprio contexto colonial
dos sertões escravagistas pastoris do Seridó, que em suas clivagens e assimetrias demanda
do grupo estratégias materiais e simbólicas para se manter minimamente coeso e autônomo
dando continuidade à sua reprodução sócio-cultural.
Diante da história oral compilada (entendida agora como patrimônio), do conjunto
de documentos encontrados, e da trajetória negra exemplar que a Comunidade de
Macambira representa para o Seridó e para a complexificação da história do Brasil em
termos gerais; diante das necessidades materiais e simbólicas para a continuidade sóciocultural do grupo, recomendamos:
(1) tanto a regularização do território atual ocupado pela Comunidade (abrangendo as áreas
conhecidas como Macambira II e III, Cabeça dos Ferreira, Cabeça do Ludogério e parte de
Buraco de Lagoa – com exceção da área dos Severiano);
(2) quanto a aquisição das áreas que a Comunidade aponta como tendo sido suas (perdidas
por venda ou cercamento forçado) e das quais dependem para sua continuidade social e
cultural, motivo pelo qual, inclusive, desde 1997, ocupam uma das áreas que agora
pleiteiam: ao norte, abarcando áreas atualmente reconhecidas como sendo de propriedade
de Ivanilson Araújo, o imóvel de nome “Cabeça da Macambira”, bem como sua extensão,
a porção de mata de capoeira que faz divisa ao sul com a dita “Cabeça da Macambira”, e a
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leste com a área do Cabeça dos Ferreira, com a área de Manoel Pinheiro dos Santos, de
Ubirajara Galvão. À leste, propõe-se a aquisição da área abarcando a propriedades de
Letícia Maria Galvão, imóvel de nome “Fazenda Baixa Grande”. Ainda à leste, à área
contígua ao imóvel “Cabeça da Macambira”, também de propriedade de Ivanilson Araújo,
incluindo-se nessa a parte que circunscreve também as grotas do Açu. Segundo estimativas
da Associação Quilombola, estas áreas devem chegar a um montante aproximado de 1.500
hectares, podendo atender, em termos de modelo ideal local, a pelo menos 150 famílias.
Saliente-se ainda que os imóveis de seus vizinhos à leste (Antonio Velho e José
Ciziano da Silva), por conta das boas relações com a comunidade, relações históricas, não
estão sendo pleiteados, bem como outros possíveis imóveis contíguos ao território da
grande Macambira.
Diante do ritmo de crescimento progressivo da Comunidade nas últimas décadas,
a necessidade de terras para cultivo é preeminente (motivo inclusive do aumento
progressivo de processos migratórios para cidades como Mossoró e Natal, e mesmo para
outros Estados). Isto proporcionaria não só a melhoria da qualidade de vida (material e
simbólica) de cada família, mas com a implementação de processos cooperativos e
associativos como os que têm sido levados a cabo no contexto das mobilizações
quilombolas, poder-se-ia ainda alcançar excedente de produção para venda nas feiras das
cidades do entorno. Além disso, incrementar a redução do abandono da área – em geral por
homens - em busca de melhores condições, bem como o regresso daqueles que saíram e
vivem subempregados em áreas urbanas.
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ANEXOS
Anexo 1. Documentos encontrados com Ana Amaro (1843-1877)
Anexo 2. Inventário n.110, 1872 (Lázaro Maria de Araújo)
Anexo 3. Certidão de Auto-reconhecimento
Anexo 4. Estatuto social da Associação dos Quilombolas de Macambira
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