Série Teoria Política e Sistemas de Justiça
Volume 1
Cássius Guimarães Chai
elda Coelho de azevedo BussinGuer
valena JaCoB Chaves mesquita
OrGanizadOres
ensaios
críticos
Do político ao jurídico
MULTICULTURAL
Série Teoria Política e Sistemas de Justiça
Volume 1
Cássius Guimarães Chai
elda Coelho de azevedo BussinGuer
valena JaCoB Chaves mesquita
OrGanizadOres
ensaios
críticos
Do político ao jurídico
Campos dos Goytacazes - RJ
2016
MULTICULTURAL
Copyright © 2016 Brasil Multicultural Editora
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem a expressa autorização do autor.
Diretor editorial
Décio Nascimento Guimarães
Diretora adjunta
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Coordenadoria científica
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Ilustração capa: Harryarts / Freepik
Assistente editorial
Samara Moço Azevedo
Gestão logística
Nataniel Carvalho Fortunato
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
E59
1. ed
Ensaios críticos : do político ao jurídico / organizadores Cássius Guimarães
Chai, Elda Coelho de Azevedo Bussinguer e Valena Jacob Chaves
Mesquita. – 1. ed. - Campos dos Goytacazes, RJ : Brasil Multicultural,
2016.
184 p. – (Série Teoria política e sistemas de justiça ; v. 1).
Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-5635-023-7
1. PODER JURÍDICO DEMOCRÁTICO 2. CRIME SEXUAL 3. TRABALHO ESCRAVO
4. DIREITO INTERNACIONAL 5. DIREITO CONSTITUCIONAL I. Chai, Cássius
Guimarães (org.) II. Bussinguer, Elda Coelho de Azevedo (org.) III. Mesquita, Valena
Jacob Chaves (org.) IV. Título.
CDD 340
As normas aplicadas nos textos em idioma estrangeiro seguem as regras de seus respectivos países.
Os autores são responsáveis pela revisão ortográfica e pelo inteiro teor das ideias dispostas em seus respctivos textos, sendo,
quanto ao conteúdo, de sua inteira e exclusiva responsabilidade.
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Comitê científico/editorial
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Prof. Dr. José Antonio Torres González - UNIVERSIDAD DE JAÉN (ESPANHA)
Profa. Dra. Margareth Vetis Zaganelli – UFES (BRASIL)
Profa. Dra. Martha Vergara Fregoso – UNIVERSIDAD DE GUADALAJARA (MÉXICO)
Profa. Dra. Patricia Teles Alvaro – IFRJ (BRASIL)
Prof. Dr. Wilson Madeira Filho – UFF (BRASIL)
Apresentação
A presente obra “Ensaios críticos: do político ao jurídico”, integrante
da série Teoria Política e Sistemas de Justiça, marcada pelo viés internacionalista dos direitos humanos, tem por principal objetivo descortinar
novas perspectivas para controvertidos problemas, que por vezes são
indiscriminadamente colonizados judicialmente, tanto como por outras são
relegados a incompreensões do senso comum.
Nascida da correlação de forças institucionais entre os Grupos de
Pesquisa Cultura, Direito e Sociedade (PPGDIR/UFMA), Trabalho Escravo
Contemporâneo (PPGDIR/UFPA) e Políticas Públicas, Direito à Saúde e
Bioética (PPGDIR/FDV), e com a participação de pesquisadores nacionais
e estrangeiros, a obra propõe abordagens dialógicas e críticas sobre o fazer
o Direito, a Justiça, a Democracia em busca da paz social e do respeito a
dignidade do ser humano.
O mestre Eligio Resta em sua nota de abertura deixa inequívoca asserção
e advertência que: “a tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado
de exceção’ em que vivemos é a regra. Temos de chegar a um conceito de
história que não engane, não cubra e não dissimule este estado de exceção
enquanto regra; apenas quando pararmos de nos iludir, teremos a consciência
do verdadeiro problema da exceção”.
Os últimos episódios políticos nacionais, a falta de perplexidade
com conflitos internacionais em lugares esquecidos ou nada atrativos
turisticamente, perdem seu lugar de estranhamento e passam naturalizados
à cotidiana violência. Violência institucional, violência politizada, violência
desumanizadora.
Reformas e posições políticas que se constroem ao largo de processos
plurais e comunicativamente estruturados.
A academia tem que assumir intransigentemente seu papel, para além de
pedagógico, de reordenar o pensamento com uma crítica transformadora, atual
e engajada na consolidação das identidades constitucionais sem concorrer para
processos que fragilizam os recursos democratizantes e democratizadores da
cidadania e das conquistas sociais fundamentais.
Pensar o Direito com ações!
Os textos trazidos ao público convergem para as linhas teóricas dos
programas de pós-graduação, cujos coordenadores da série integram, e,
alinham-se em discussões trameadas no cenário discursivo do Direito, os
Sistemas de Justiça nas preocupações da validade e eficácia das Garantias
Constitucionais e da própria densificação dos Direitos Fundamentais e dos
Direitos Humanos.
Sigamos!
Combatamos o bom combate!
Cássius Guimarães Chai, PhD (UFMA)
Elda Coelho de Azevedo Bussinguer, PhD (FDV)
Valena Jacob Chaves Mesquita, PhD (UFPA)
Sumário
1
A guerra e a festa
Eligio Resta
Tradução: Antonio Coêlho Soares Junior
12
2
O Ministério Público Federal do Pará e o combate ao
crime de redução a condição análoga à de escravo
Valena Jacob Chaves
Cássius Guimarães Chai
33
3
Mutação constitucional e integração com o
consenso internacional
Adriano Sant’Ana Pedra
60
4
O aborto e o exame de corpo de delito em casos de
violência sexual: análise do Projeto de Lei nº 5.069/2013
num viés do direito internacional
Cristina Grobério Pazó
78
5
O controle difuso de convencionalidade no Brasil: soluções
para seu aprimoramento
Breno Baía Magalhães
106
6
Mecanismos de participación popular en el derecho
constitucional comparado latinoamericano: reflexiones
sobre democracia y gobierno
Alberto Manuel Poletti Adorno
130
7
Poder Judiciário Democrático: uma tarefa pendente
(e urgente) para o Brasil
Vanessa Oliveira Batista Berner
Manuel Eugenio Gandara Carballido
140
8
Trabalho escravo contemporâneo no Brasil: a argumentação
jurídica e o determinismo social no inquérito nº 2.131 do STF
Suzy Elizabeth Cavalcante Koury
Valena Jacob Chaves
168
1
A guerra e a festa
Eligio Resta1
Tradução: Antonio Coêlho Soares Junior2
Uma manhã, três mil damas e cavalheiros do Kurfürsterdamm são presos, sem uma palavra, em suas camas, e
mantidos detidos por vinte e quatro horas. Por volta da
meia-noite distribui-se nas celas um questionário sobre
a pena de morte e solicita-se aos signatários indicar qual
a espécie de execução eles, eventualmente, escolheriam.
[...]
Antes do amanhecer, sagrado pela tradição, mas que
aqui é dedicado ao carrasco, seria esclarecida a questão
da pena de morte.
WALTER BENJAMlN, Rua de Mão Única
Outro texto de Walter Benjamin, com toda a sua inquietação, também nos
questiona e nos desafia, como nunca antes, sobre o hoje, sobre nós. Um “nós”
que ainda vai ser um espectador da crueldade violenta que cada pena de morte,
em qualquer parte, por qualquer método, vai manter em seu coração secreto.
Não é coincidência que este texto trata do maravilhamento, que é o sentimento
que surge do olhar de um espectador.
Trata-se da oitava Tesi di filosofia della storia3. A história começa com a
“tradição dos oprimidos”, e não na opressão em abstrato, mas dos oprimidos
1. Professor Ordinário de Filosofia do Direito da Università di Roma Tre. Facoltà di Giurisprudenza.
Via Ostiense 161, 00154, Roma, Itália.
2. Promotor de Justiça no Estado do Maranhão e Professor Assistente do Curso de Direito da
Universidade Federal do Maranhão.
3. W. Benjamin, Tesi di filosofia della storia, in Angelus Novus, trad. it. a cura di S. Solmi, Einaudi,
Torino 1981, p. 79.
em carne e osso, e, assim, de cada oprimido, que, em um determinado momento, é objeto de uma prepotência. Violência, diz ele, é uma relação que liga um
prepotente e um oprimido, e tem muitas formas, diferentes, invisíveis, inesperadas. É uma relação sempre odiosa, seja quando realizada na intimidade
secreta ou quando ocorre em público, quando vive no silêncio das assimetrias
escondidas ou, com o espetáculo que cada representação exige, é apresentada como um ato de autoridade, mais ou menos legitimada pela soberania de
“todos”. Desse “todos”, paradoxalmente, também fazem parte os oprimidos.
Assim, a tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” em
que vivemos é a regra. Temos de chegar a um conceito de história que não engane, não cubra e não dissimule este estado de exceção enquanto regra; apenas
quando pararmos de nos iludir, teremos a consciência do verdadeiro problema
da exceção; e isso, acrescenta ele, melhorará a nossa posição na luta contra o
fascismo. Este considerado em abstrato, geralmente presente em todas as espécies de violência autoritária que vivem da prepotência contra os oprimidos.
É justamente a desconsideração do estado de exceção que nos leva perceber a
violência como um resíduo dos “primórdios” que teimosamente resistem à lei
histórica de um progresso iluminista irrefreável. A frase “destinos magníficos
e progressivos”4 acabaria com qualquer resíduo de uma ideia, puramente ingênua, de Fortschritt.
O texto, importante, termina com a crítica do maravilhamento. A única
coisa que merece maravilhamento é o próprio maravilhamento. O maravilhamento (thauma) não está na origem de qualquer consciência filosófica, porque
as coisas que vivemos “ainda” são possíveis no “século XX”. Ele não revela
nada filosoficamente, a não ser, diz Benjamin, que a ideia de história de onde
provém não é sustentável.
A passagem é um desses lugares de pensamento filosófico mais denso e
cheio de significado. Há, obviamente, muitas outras coisas, mas ainda nos
provoca a refletir, de forma decisiva, que, no século XX, a típica violência
institucional a qual se materializa na pena de morte, continua a ser objeto de
4. N. do T.: a frase é cunhada da poesia “La ginestra o il fiore del deserto”, que integra a obra Canti,
de Giacomo Leopardi (1798-1837), um dos maiores poetas italianos.
13
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
maravilhamento. Questionamos se esta é a exceção que o progresso do
direito (e/ou da política) apagará, ou se, ao contrário, não esconde uma
antropologia para olhos menos ingênuos. Uma grande preocupação para a
sua sobrevivência, sugere Benjamin, talvez deva passar por uma consciência mais profunda que vasculhe nas pregas ocultas e que não se satisfaça
com respostas fáceis.
As formas que podem explicar são conhecidas: desde a “justificação”
de todos os tipos de pena de morte à tolerância de um resíduo anacrônico, até a recusa categórica de cada tipo. Cada olhar que acompanha estas
atitudes precisa ser levado a sério e ser analisado com profundidade; sem
maravilhamento, mesmo!
Percorreremos apenas alguns passos do discurso público sobre a pena
de morte que a vasta literatura tem isolado, sabendo que as soluções, todas, têm a ver com uma dimensão complexa que nenhum decreto poderá
remover de repente. Ainda hoje, em um momento em que na esfera pública global se conseguiu obter estrategicamente, embora não seja pouco,
simples moratórias.
Muito ar de festa!
Traité sur la tolerance à l’occasion de la mort de Jean Calas (1763):
o título original do ensaio breve e intenso de Voltaire, conhecido simplesmente como Trattato sulla tolleranza5, é muito mais significativo. É a
história de uma morte, da morte de um homem, este homem responde pelo
nome de Jean Calas. Há um efeito metonímico oculto nesta que, ontem,
definimos como “micro-história”.
“O assassinato de Jean Calas, praticado em Toulouse, em 9 de março
de 1762, com a espada da justiça”: este é o início do ensaio de Voltaire. O
Neorrealismo poderia encontrar inspiração. Se a guerra sugere imagens
de morte em que “a inevitável fatalidade da guerra” atenua o espanto e
5. Voltaire, Trattato sulla tolleranza, prefazione di G. Marramao. Editori Riuniti, Roma 1994.
14
1 – A guerra e a festa
a piedade, uma sentença que impõe matar, por sua vez, é o verdadeiro
scandalo. O termo é precisamente este, mesmo com todas as suas ambivalências, e é para Voltaire, l’occasion, verdadeira, de raciocinar com
lógica rigorosa sobre a intolerância e os seus efeitos na vida pública.
Portanto, uma verdadeira execução, justificada apenas pela intolerância que se esconde nas pregas dos argumentos jurídicos. Claro, Calas é
inocente, e isto coloca mais a faca na ferida, porém sabemos que as coisas não mudam em caso de culpabilidade; o problema não é a culpa e a
responsabilidade, mas a intolerância, a incapacidade de “compreender e
perdoar uns aos outros”, diz Voltaire. A cena da morte é “occasione”, um
evento que, na sua exemplaridade fornece ao filósofo tópicos visíveis para
a reflexão sobre a intolerância.
No mesmo ano, é sabido, Cesare Beccaria descreverá o spectaculum
que acompanha a pena: “espetáculo para a maioria” e “objeto de piedade
mesclado com indignação”, a pena de morte é representação teatral capaz
de excitar a mente do espectador; nada além de sua vã futilidade e de sua
impressionante crueldade. O espetáculo é encenado para o espectador e
não para o réu, diz Beccaria.6 Ele o chama de “guerra da nação contra um
cidadão” que, como toda guerra, visa à “destruição do seu ser”.7
Espetáculo público, ocasião, evento “social”, a pena de morte é sempre
alguma coisa: é a representação por excelência que coagula histórias mais
complexas. Mascara e contém antropologias que condensam histórias de
olhares, relações ambíguas entre governantes e súditos, jogos de poder,
investimentos na infelicidade coletiva.
A cena é recorrente; é encontrada em muitos lugares e sua representação desliza do jogo da intolerância que expressa, aos mecanismos sutis de práticas “disciplinares” em que os poderes investem. Para Michel
Foucault, a história do nascimento da prisão começa a partir da descrição detalhada, na “Gazzetta di Amsterdam”, em 1º de abril de 1757, do
6.
C. Beccaria, Dei delitti e delle pene, a cura di F. Venturi, Einaudi, Torino 1965, p. 64.
7.
Idem, p. 62.
15
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
“esquartejamento” do corpo de Robert Damiens, parricida, conduzido ao
patíbulo “em uma carroça, desnudo, de camisola, carregando uma tocha
de cera acesa de duas libras.” Os detalhes são típicos de uma bela e boa
representação: “atenazado nos mamilos” e puxado por lados opostos por
dois cavalos. No final, em cumprimento da sentença (a “espada da justiça”, de Voltaire), seu corpo foi reduzido a cinzas e espalhado ao vento.
A ocasião para discursos sobre a intolerância, a crueldade, a disciplina,
é, portanto, sempre oferecida por uma pena capital, por um suplício. De
qualquer forma, é uma incorporação, pela justiça, do mal que ela diz combater. Basta lembrar a passagem de Beccaria, e Foucault faz isso pontualmente, quando fala de um assassinato, crime definido como horrendo (um
dos “crimes em si”, diriam os penalistas), cometido com frieza e cálculo,
“sem remorsos”.8 Uma vez que a representação acontece em um theatrum
publicum, teatro por si mesmo, devemos dizer que se trata, como sugeriu
Antonin Artaud, de “impossibilidade do teatro” em ser mais do que reprodutor da vida.
Entre Voltaire e Beccaria, de um lado, e Foucault, de outro, o jogo da
representação continua a tecer um único fio condutor; a pena, e a pena de
morte mais ostensivamente, coloca em evidência um corpo sobre o qual
os poderes investem de maneira espetacular, diante de uma plateia sem a
qual nada disso teria sentido. Que o excesso, a dépense, a sobra do espetáculo, o desperdício inútil e prejudicial sejam progressivamente corroídos
ou troquem de alvo, é outra questão. O ponto em comum continua a ser a
representação. Não é por acaso que, decompondo-se todo o Iluminismo, é
Friedrich Nietzsche que retorna mais uma vez à dimensão representativa.
Deixando de lado por um momento a preocupação “moral” com a genealogia da culpa, o texto de Nietzsche, um dos mais inquietantes e significativos, confronta-nos com uma conclusão de sentido inesperado: a
crueldade desliza lentamente para dentro da festa e a festa descobre no seu
coração secreto a crueldade.
8. M. Foucault, Sorvegliare e punire, trad. it. a cura di A. Tarchetti, Einaudi, Torino 1976, pp.
5-11.
16
1 – A guerra e a festa
A parte da Genealogia della morale9 dedicada à Culpa, má consciência
e coisas afins coloca-nos diante do sentido profundo daquele jogo trágico
que se consuma em cada pena: “Sem crueldade não há festa: é o que nos
ensina a mais antiga e a mais longa história do homem – e no castigo também há muito ar de festa!”. Mímica da guerra e da festa, dirá um pouco
mais adiante; como a recordar uma alegria singular pela inimizade que no
castigo, em cada castigo, se esconde. Se é um acusado ou um tirano executado em público, pouco muda.
Esse mundo da humanidade antiga, cheio de “preocupação com o espectador”, era “um mundo essencialmente público, essencialmente manifesto,
que não sabia imaginar felicidade sem espectadores e festas.” Justificá-la
através da ira dos deuses ou da violação do contrato social é argumento
posterior, que não desloca uma vírgula toda a problemática: “O castigo não
é outra coisa [...] senão a reprodução, o mimus do comportamento normal
perante o inimigo odiado, indefeso, prostrado, que perdeu não só qualquer
direito e proteção, mas também qualquer esperança de graça; ou seja, é o
direito de guerra e de celebração do Vae victis! E, acrescenta, na guerra estão
todas as formas sob as quais o castigo aparece na história.
Novamente aqui a completa antropologia da pena de morte; nada afeta
o motivo da sua “aparente” ausência de opiniões, como a sua hipócrita regulamentação. O texto de Nietzsche nos inquieta, mais uma vez; inquieta-nos mais ainda quando buscamos construir argumentos razoáveis, antes
que racionais, com o objetivo de reduzir a arbitrariedade e o espetáculo
silencioso que cada pena de morte carrega dentro de si. Quem leia, contudo, um texto normativo que a ela se refira, com todos os seus apelos à
decência civil, não pode deixar de refletir sobre passagens mencionadas.
O texto final entregue para deliberações das instituições da esfera pública global, a Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas acerca
a moratória sobre a pena de morte, prescreve a sua proibição porque, sinteticamente, contrária à “dignidade” do homem, do condenado enquanto
9. F. Nietzsche, Genealogia della morale, trad. it. a cura di F. Masini, Adelphi, Milano 1984,
p. 55.
17
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
homem ou do homem enquanto condenado. Forma jurídica complexa que
deve prescrever a sua vedação, em nome da dignidade. O espetáculo do
qual nos fala Nietzsche reside todo na negação da dignidade do condenado:
nunca, como no presente caso, a tragédia está “na superfície”, pode-se dizer.
Aquilo que se prescreve é aquilo que se interdita e aquilo que se interdita é o
que se prescreve. Além da inanidade da “lei” (tecnicamente, “ineficiência”),
que é um problema desde sempre conhecido, é no sentido de inimizade da
pena de morte que se precisa ir mais fundo. A ideia “do inimigo indefeso e
odiado”, que a festa e a guerra cultivam, vai além de uma questão de técnica
jurídica: é claro que há também isso, mas não somente.
Voltemos a uma página de Nietzsche. Em La nascita della tragedia,10 falando do crime de Prometeu, ele já alertava que a verdadeira face niilista do
direito moderno estava na incorporação de códigos duplos: no mundo existe
o justo e o injusto mas ambos são igualmente justificados. L’erranza delle
radici que caracteriza o direito moderno, a “fome” que o faz vagar à procura
de fundamentos, gera uma equivalência de justificação. Não podendo mais
fundar, e fundar-se sobre, o justo, vê deslizar toda a sua “história”, agora
desprovida de absolutamente qualquer epicidade, na justificação.
“Justificar” é algo que antecede o justo; e também sua profunda revogação. Atribui, cria, produz, “faz”, exatamente porque dele não só não se
tem qualquer auto evidência, mas porque ele mesmo se torna um espaço
de disputa estratégico, inclusive na vida. Na noção de vida, boa ou ruim,
não se elimina a disputa pelo justo. Assim, a justificação, como qualquer
outra técnica, revela a sua face ambígua. Pode-se aplicar a tudo: o auto
posicionamento do direito moderno coloca-se no interior da equivalência
(esta sim) niilista de cada “produção” da justiça.
Poder-se-ia refazer os caminhos longos e profundos deste processo que
Nietzsche condensa na crista da modernidade, e tais caminhos, sugeridos
por seus próprios textos, nos fariam voltar para o único lugar no qual é
possível encontrar juntos “o arco e a lira”, qual seja, o mundo grego. O
10. F. Nietzsche, La nascita della tragedia, trad. it. a cura di G. Colli e M. Montinari, Adelphi,
Milano 1977, p. 71.
18
1 – A guerra e a festa
Ditado de Anaximandro, com a inclinação mútua de dike e adikìa, e a definição heraclitiana da justiça como “disputa”, são a fonte11 e continuam a
estender a sua sombra sobre o moderno, sobre a atualidade, sobre o hoje.
É exatamente a pena de morte, com suas representações, que sugere a
Nietzsche as faces de significações de um “prazer da crueldade” público.
A pena de morte “representa” o prazer cínico, é sua causa mas também o
efeito. Lembra em todo o seu absurdo: “O que exatamente revolta no sofrimento não é o sofrimento em si, mas a falta de sentido”12 que, de tempos
em tempos, queria nomear, salvação, reparação, compensação. “Para que
a dor oculta, desconhecida, sem testemunhas, pudesse ser removida do
mundo [...], foi então forçada a inventar deuses..., algo que enxergue mesmo na escuridão e [...] não deixa escapar um interessante espetáculo doloroso.” Com uma linguagem diferente, diríamos que os sistemas sociais
colocaram em prática um processo de autoimunização do seu sofrimento
criando transcendências; pouco muda, dirá mais adiante, quer se trate de
um deus ou de um contrato social. “Graças a essas invenções, a vida se
mostra, de fato, um astuto estratagema, que sempre foi inteligente para se
justificar, para justificar o ‘mal’ que provoca; [...] (a vida como enigma, a
vida como problema de conhecimento).”
Assim soa a lógica do sentimento que surge também dentro da “nossa
humanização europeia”. Não é apenas o primordial: os deuses são pensados
como amigos do cruel espetáculo, no qual a alegria para oferecer é a crueldade. O sacrifício e o heroísmo guerreiro representam somente um pequena
parte, como nos diria mais tarde Simone Weil13 e Jean-Pierre Vernant.14 Em
conclusão, Nietzsche adverte, “todo mal se justifica quando o espetáculo é
edificante para um deus”. A crueldade era concebida como “espetáculo de
festa” para os deuses, ou para transcendências equivalentes: como a virtude;
11. E. Resta, Diritto vivente, Laterza, Roma-Bari 2008.
12. F. Nietzsche, Genealogia della morale, cit., p. 57.
13. S. Weil, L’Iliade o il poema della forza, in La Grecia e le intuizioni precristiane, Rusconi,
Milano 1974.
14. J. -P. Vernant, La morte negli occhi, il Mulino, Bologna 1987.
19
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
mas sofrimento sem testemunhas era algo impensável. Assim “toda a antiga
humanidade é cheia de sensíveis preocupações com o ‘espectador’, sendo um mundo essencialmente público, essencialmente manifesto que não
podiam imaginar a felicidade sem espectadores e festas ... Em um grande
castigo há muito ar de festa.”
Pouco importa a justificação, tanto lógica quanto moral do exemplum:
legitimação do direito de punir ex parte principis, dissuasão ex parte populi e, como veremos, o olhar do espectador não poderá mais do que reproduzir a ambiguidade da violência.
A mudança radical do cenário arquitetônico produzido pelo direito moderno (processos públicos e penas secretas contra penas públicas e processos secretos) não altera em nada a leitura de Nietzsche. A “crueldade”
da pena (de morte) continua lá, autoevidente, não como exceção que o
“progresso” deverá superar, como o texto de Benjamin havia nos mostrado, mas como alguma coisa que, dita com linguagem freudiana, está
enraizada em um complexo desconforto da civilização.
No centro do palco, então, o espetáculo: ocasião da guerra e da festa
contra o “inimigo”. Qualquer pessoa que deseje encontrar hoje fundamentos teóricos para a questão do “direito penal do inimigo” deve retornar a
essas reflexões tão densas que Nietzsche nos oferece.15
Aquelas páginas não enveredam pelo “fundamento” da pena que ele
utiliza no jogo de dívida e crédito (a “dívida infinita”), mas pelo “niilismo” da justificação: daí a ambivalência do crime (Prometeu) ser a chave
que faz com que o castigo retorne ao jogo de Anaximandro. A contabilidade do didònai diken tes adikìas revela-se na secularização moderna
como “tudo tem o seu preço,” não é por acaso que o pagamento da pena
seja retributio. A consequência é simples: fazer pagar com a morte significa disprezzare, não atribuir qualquer valor à “vida”, apenas aquele
valor simbólico do espetáculo, de oferecer primeiro aos deuses e depois
ao público.
15. Cfr. E. Resta, il diritto fraterno, Laterza, Roma-Bari 2008.
20
1 – A guerra e a festa
Mais tarde Georg Rusche e Otto Kirchheimer compreenderam todo o
ciclo da pena no diferente valor de uso e no valor simbólico de troca do
“corpo” do condenado. Os diversos modelos de penas devem ser medidos
pela necessidade ou pelo excesso de força de trabalho.16
Por esta razão, sobretudo, estas páginas remetem ao centro uma antropologia do olhar cujo ponto principal é o corpo (é aí que coagula o sentido
da “vida nua” do qual Benjamin vai falar primeiro e depois Foucault).
As preocupações com o espectador explicam, assim, muito mais sobre as
“funções” da pena que são enumeradas (em sua neutra equivalência) e que
sempre vão continuar a atormentar inutilmente os penalistas. Que é mecanismo do olhar está evidenciado pela proximidade entre a teoria do sacrifício religioso, que coagula a violência em um ponto e em um momento, e
a ideia do culpado executado, que cura apenas o paradoxo da culpa.
A violência de tudo é imunizada pela culpa do indivíduo; a crueldade
perpetrada pelos deuses equivale à crueldade oferecida aos deuses. Transcendência divina mostra o quão complexo é o caminho para a autodescrição dos sistemas sociais como o lugar “comum” que gera o problema
e é, ao mesmo tempo, a aparente solução (uma ecologia real da pena). A
humanização da pena, nesse aspecto, mostra um credor por ora satisfeito,
que, por um momento, acaba sendo menos ambicioso: assim o direito penal deverá ceder lugar à “graça”, até que, acrescenta, o começo, sempre
que possível, não reapareça. Hoje, a persistência da pena de morte continua a descrever a periferia.
Olhares duplos
O olhar de Nietzsche sobre a “representação” da pena não é periférico,
nem denuncia um desvio do problema. A “preocupação para com o espectador” constitui a cena fundamental da guerra e da festa. É aqui que Nietzsche antecipa pelo menos dois elementos que, no debate contemporâneo,
encontraram visível condensação.
16. G. Rusche, O. Kirchheimer, Pena e struttura sociale, il Mulino, Bologna 1978.
21
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
O primeiro é o corpo que é o elemento em torno do qual se realiza a
representação trágica da festa. O corpo é objeto do poder de uso e de troca,
do mundo antigo do direito, da vitae necisque potestas, à manus iniectio,
à mancipatio.17 E, mais tarde, o jogo de dívida e crédito não nos libera
mesmo quando a subjetividade moderna (“capacidade de promessa”) está
ancorada no domínio da vontade.
O corpo do condenado, dócil, a ser marcado, vencido, está à mercê de
um jogo de sujeições em que a compensatio pela culpa chegar a eliminar
a vida. Além disso, a centralidade do corpo é um dispositivo explícito de
Nietzsche: é o fio condutor que marcará toda a era moderna. Agora, no
nosso presente, o corpo retorna em toda a sua materialidade, quanto mais
parece sublimar-se em dimensões puramente abstratas (corpo eletrônico,
arquivo de informações, processo de decomposição de suas partes). E isto
é para melhor ou para pior: exemplo trágico é o retorno perturbador da
tortura, para registrar uma cena infelizmente difusa em escala planetária.
O segundo elemento é, mais técnico, exatamente o que diz respeito à
efetivação do mecanismo de “representação”; Jean Baudrillard forneceu
uma descrição detalhada e convincente quando falou das mensagens simbólicas que terminaram por tomar o lugar da realidade.18 Isso se aplica
a todo o universo de vitimização, cujos direitos seriam parte, e mesmo
ainda para a vida e a morte, reduzidas a expropriação constante. A “clinica
dos direitos” (conforme Baudrillard), faz com que se desloque a atenção
da vida para o “direito à vida”, com um processo de sacrifício que não se
preocupa nem mesmo em mascarar-se.
Apenas estes dois pontos nos levam de volta ao centro da pena de morte, com a centralidade do corpo e sua representação. Tecnologia sofisticada, até paradoxos como a exigência da presença de uma médico para
aliviar o sofrimento, as mortes tecnologicamente suaves, porém infalíveis,
17. Y. Thomas, Vitae necisque potestas. Le père, la cité, la mort, in Du châtiment dans la cité.
Supplices corporels et peine de mort dans le monde antique, École française de Rome,
Roma 1984, pp. 499-548.
18. J. Baudrillard, Il delitto perfetto, Raffaello Cortina, Milano 1996.
22
1 – A guerra e a festa
descrições do olhar dos espectadores não mais aglomerados na praça pública do “patíbulo”, mas escondidos atrás de meios de comunicação de
massa, reproduzem a cena originária da qual nos fala Nietzsche e da qual
Voltaire e Beccaria, por um lado, e Foucault, de outro, nos tem contado.
Será que muda alguma coisa quando o jogo da representação se faz
mais discreto, mudo, quando a “preocupação com o espectador” é mais
modesta? A resposta, a única possível, é absolutamente negativa. Não
muda nada; de fato, agudizou-se. E a leitura de um “guardião das metamorfoses” como Elias Canetti que nos dá uma visão analítica importante.19
As “massas do patíbulo” uma vez se reuniram nas ruas para a “festa” do
suplício dentro de uma arquitetura maneirista que girava cuidadosamente sobre dois espaços de interferência entre o “lugar do rei” e o “local
público”. Constitutivamente sempre espaços duplos: o público estava lá
para gozar a festa cujo corpo e a vida da vítima são, voltairianamente, a
ocasião.
O olhar do público “testemunha” o poder do soberano de vingar os
seus súditos de um “inimigo” (direito da espada, a espada da justiça).
Como toda testemunha (martyros, in greco), o público do suplício está
em uma condição ambígua: como o “mártir da fé” e o “mártir pela fé”.
Legitima com a sua presença o poder de punir, mas é ao mesmo tempo o
destinatário da advertência (dissuasão): a ambiguidade do código reproduz exatamente o código binário de toda violência e de toda guerra que
divide o mundo em amigos e inimigos. Se são amigos do soberano porque
inimigos da vítima que é inimiga do soberano; mas ao mesmo tempo podem ser inimigos do soberano porque, destinatários da mensagem, podem
ser potencialmente vítimas da sua “vingança”. O jogo se inverte e pode
ser representado como amigos da vítima e assim inimigos do soberano.
A inversão não exime o rei; ele não está imune, não é imune. Deve
sempre usar a violência na presença de amigos contra os inimigos. Mas
a violência que ele garante contra o inimigo a favor dos seus súditos, e
como ameaça para com eles, pode inverter. A violência que usa pode ser
19. E. Canetti, Massa e potere, Adelphi. Milano 1981, p. 62.
23
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
usada contra ele. A melancolia do “drama barroco” da soberania é contada
de maneira exemplar, tanto na “conspiração” palaciana quanto na esfera
pública (“a melancolia mora em palácios!”, escreve Benjamin). Afinal,
não foi, e não continua ainda hoje a ser este o destino de toda “decapitação
do rei”?
Da revolução francesa, que não liberta o código “fraterno” do assassinato fundador e carrega a culpa no seu interior, às recentes decapitações
dos modernos tiranos apresentadas ao vivo. O problema que se coloca é
se o nascimento da democracia (direito fraterno) é capaz de libertar-se da
violência e da culpa de um assassinato fundador. É questão, de fato, da
democracia que, até agora, como vamos ver, sempre trouxe o paradoxo do
sacrifício e que continua, em vários aspectos, a indagar hoje.
Assim, a hipocrisia da cena atravessa os olhos do espectador e coloca
uma luz ambígua na “representação”. A questão é que o “corpo” do espectador poderá diluir-se, dissolver-se na sua compacidade, individualizar-se para depois reconstruir-se na massa invisível de quem, comodamente,
sentado na sua poltrona, assiste a um espetáculo televisivo que reproduza
uma sentença capital ou que se detém a olhar uma reportagem nos seus
jornais.
O público da violência, exatamente como a massa do patíbulo, terá
um olhar duplo: destinatário e autor, objeto e sujeito da violência. Assim
produz medo e ameaça ao mesmo tempo. A direção da mensagem violenta
pode ir do rei ao povo, bem como, invertendo a rota, do povo ao rei. Rua
de mão única, do soberano ao seus súditos, enquanto houver continuidade
entre o primeiro e os outros: os nomes usados pela ciência política são representação e legitimação. Mas logo que se quebra a linha da continuidade
e o Iluminismo condensa a memória, a direção da violência muda de sentido. Tudo isto é ainda mais verdadeiro para este uso particular da violência
que se exprime através do “dar a morte”. Tanatopolítica por excelência
e sem rodeios; sempre e em toda parte os tanatopoderes, de toda ordem,
estão expostos institucionalmente à sua própria morte.
A massa do patíbulo é reconstruída em milhares de formas, conservando um olhar ambíguo sobre a violência que se duplica entre o carrasco e a
24
1 – A guerra e a festa
vítima; ao mesmo tempo e com a mesma intensidade. “Festa” e “guerra”
são o lugar da indiferenciação, onde a perda da diferença significa con-fusão entre os polos opostos.20 Amigo e inimigo tornam-se cúmplices e rivais ao mesmo tempo; Descobrem-se equivalentes funcionais, exatamente
como na descrição que Carl Schmitt faz da guerra civil.
Nessuno arrota meglio di me!
Olhares duplos, dizia-se, envolvem atores e espectadores; duplicam-se,
invertem-se e alimentam-se uns aos outros. As figuras da representação
articulam-se sobre o mesmo plano e com a mesma intensidade: carrasco
e vítima, soberano e povo, ator e espectador oscilam vertiginosamente de
um polo a outro, prontos a se inverterem.
É um dos “pensadores terríveis” que nos fala de uma das figuras exemplares da cena, na qual esplendores e misérias dos suplícios confundem-se e constituem histórias universais da infâmia (Jorge Luis Borges), os
crimes e as penas, e nunca um sem o outro.
Mesmo depois de algumas décadas, o caso de Jean Calas continuava
a suscitar debate. No Primo Colloquio de Le serate di Pietroburgo de
Joseph de Maistre,21 o Conde, um dos personagens, propõe como um dos
temas do início do salão filosófico o século dezenove. O debate é, obviamente, sobre Voltaire e o seu ensaio sobre a intolerância, não sem algum
tom de polêmica teórico política.
Tudo é naturalmente descolorido, e aquilo de que se fala é exatamente
o erro judiciário: “Não há bom cavalo, dizia-se, que às vezes não tropece”
e, em seguida, como hoje, a resposta soa mais ou menos assim “um cavalo
sim, mas um estábulo inteiro! [...]”. Já havia começado para uma parte
aquela prática “midiática” que expropriava corpos, inteiras dimensões da
vida e da morte, transferindo tudo no jogo da “representação”.
20. R. Girard, La violenza e il sacro, Adelphi, Milano 1980.
21. J. de Maistre, Primo Colloquio de Le serale di Pietroburgo, Rusconi, Milano 1971. p. 36.
25
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
Por isso, a morte de Jean Calas não foi a morte de Jean Calas: na melhor das hipóteses foi a “ocasião” para falar da intolerância, da justiça,
da infâmia de todos os tipos. Não é menos para de Maistre que aos erros
individuais contrapõem-se uma racionalidade mística que se realiza nas
punições, inclusive na pena de morte. Alguma exceção existirá, mas “em
geral [...] existe sobre a terra uma ordem universal e visível para a punição
temporal dos delitos”, de modo que é a mão da Providência que condena
um inocente. Se isso acontece é porque certamente será culpado de algum
outro crime grave que não veio à tona.
No fundo, com argumentos muito mais refinados, Hegel, nos Lineamenti di filosofia del diritto22, tinha justificado a racionalidade interna da
punição transferindo tudo da Providência para a universal “vontade de
um ser racional”. Contra Beccaria, que menciona explicitamente, Hegel
sustenta que a pena de morte é um “direito” do réu, que cai na “racionalidade em si e por si” do conceito de delito. Assim, a alegação de que não
se pode, nem se deve, presumir que o indivíduo, com o contrato social,
dá ao soberano o consentimento de ser morto, vem liquidada por Hegel
com a ideia de que a pena é “honra” ao livre arbítrio do delinquente: “A
aniquilação do crime é taglione [... ] esta identidade [...] é igualdade que
é em si”.23
Naturalmente, da racionalidade providencialista à hegeliana é um grande salto, mesmo que seja em ambos os casos colocar a pena de morte em
“destinos” equivalentes. Assim, sem meias palavras, de Maistre fala do
providencialismo que se manifesta no âmbito temporal: “Uma lei divina
e visível [...] pune o crime [...] desde a origem das coisas”.24 A “espada da
justiça não tem bainha” e, pergunta, “a que são destinados os chicotes, os
patíbulos, as rodas, as fogueiras” se não ao crime? Não se trata de coisas
ocultas desde a criação do mundo nem de uma “mão invisível”, mas de
22. G.W.F. Hegel, Lineamenti di filosofia del diritto, trad. it. a cura di F. Messineo, Laterza,
Roma-Bari 1974, p. 109.
23. Idem, § 101, p. 110.
24. J. de Maistre, Primo Colloquio de Le serate di Pietroburgo, cit., p. 35.
26
1 – A guerra e a festa
uma ordem divina e visível, uma “providência imanente” que preside a
ordem das penas: “Deus, autor da soberania, e também do castigo; entre
estes dois polos colocou nossa terra”.
O lugar da tanatopolítica? Em nenhuma outra parte, a não ser na ordem
divina! E, como prova de que “deus está nos detalhes”, esta infalível mão
divina arma não os grandes inquisidores à Dostoiévski, mas simplesmente
o carrasco.
O pleno vínculo que de Maistre identifica como natureza originária está
aqui a se coagular em uma “microfísica” entre o carrasco e a sua vítima.
Na linguagem da teoria dos sistemas, diz-se Entparadoxierung para indicar o movimento comunicativo do paradoxo no lugar menos prejudicial,
porém mais trágico, das relações de poder. A grande Szene do teatro condensa tudo lá, esquecendo prólogos, cenários, decorações, coagulando-se
tudo nessas relações fatais. Na linguagem de Foucault, trata-se de técnicas
de partage que identificam a decomposição microfísica, precisamente, das
complexas relações “epistêmicas” do poder. Todo instrumento de castigo
gira, para de Maistre, em torno desse “ser inexplicável [...] que de todos os
ofícios [...] preferiu atormentar e matar os próprios semelhantes”,25 apesar
de ser essa preferência toda individual parte de um plano divino já escrito.
A terrível prerrogativa dos soberanos, eis a questão, exige “a necessária existência de um homem”, de carne e osso, destinado a acionar a espada da justiça. Este homem está em toda parte “sem que se possa de alguma
forma explicar o motivo”; não existe razão capaz de explicar “a escolha de
tal profissão”, a não ser a existência de algum projeto oculto. Não se trata,
no entanto, de figuras iconográficas de carrascos encapuzados, subtraído
ao duplo olhar da vítima e do espectador: ainda hoje, nas mais escondidas
práticas de execuções, de tecnologias aparentemente discretas, o velho
carrasco retorna. Em vez do cutelo aciona um botão.
A questão de de Maistre não é imotivada: mas o carrasco é um homem
como qualquer outro, tem uma cabeça e um coração como nós? O coração
25. Idem, p. 33.
27
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
bate, sim, mas de alegria, quando se regozija com a sua arte: “Ninguém
afia melhor que eu!”. A cena do suplício de Calas retorna em todos os
seus detalhes. Trata-se de um homem de grande competência técnica, um
“profissional”, diríamos hoje, talvez funcionário público, que vive como
qualquer outra pessoa, “aceito por deus em seus templos”. Mata como um
criminoso, mesmo que não seja publicamente; e ainda assim, continua de
Maistre, toda a grandeza, todo o poder, toda a subordinação se baseiam no
carrasco. Ele representa “o horror e o elo da associação humana”.
A imagem sombria do carrasco assume em de Maistre uma posição
ambiguamente incerta entre a presença mística e a justificação racional;
não é por acaso que Canetti o coloca entre os pensadores terríveis. Mas
é seu caráter antropomórfico que deve mais uma vez despertar curiosidade: há em seu discurso uma consciência paradoxal, que ele tem “misticamente”, mas que lhe devolve à sua dureza total. É dentro da própria
humanidade que encontramos o problema e a aparente solução, o crime da
transgressão e o crime da punição, o remédio do mal como mal do remédio. Há uma evidência “ecológica” (não consigo encontrar melhor termo)
mais substancial que encontrar, no mesmo lugar comum (humanidade), o
jogo duplo da violência que, como vimos, se repete e se amplia nos olhares duplos.
Tudo isso, aliás, ajuda a compreender o caráter paradoxal da nossa
linguagem pública: os crimes contra a humanidade só podem ser perpetrados dentro da própria humanidade, de modo que a humanidade se
revele o lugar no qual se ameace e se proteja de si mesmo. Válido para
o Menschenfeind o mesmo paradoxo que de Kant a Freud se encontra no
Menschenfreund: quem é o amigo (ou o inimigo) da humanidade quando
a humanidade se revela dividida no seu interior em amigos e inimigos26?
A consciência do caráter ecológico evita, pelo menos, a “retórica” que se
esconde nas advertências da humanidade e nos leva a não afastar o problema; e não é pouca coisa encontrar o “senso e o lugar comum” onde
a questão se coloca. Encontra-se assim diante de uma responsabilidade
26. E. Resta, Il diritto fraterno, cit., p. 24.
28
1 – A guerra e a festa
“comum”: o carrasco, nos diz de Maistre, não está fora da sociedade,
talvez seja um dos símbolos da ambivalência que a constitui. Como de
Maistre nos fala, ele une as dimensões ocultas, o horror e o elo.
Um galo para Esculápio
Matar para evitar morrer: A justificação arrogante da tanatopolítica
leva à realização mais trágica o jogo da relação entre direito e violência,
que se apresenta sempre sob as vestes do “remédio do mal”. “Se você quer
a paz, prepare-se para a guerra”, “usar a violência para evitar a violência”,
têm sempre acompanhado a história do direito mesmo quando se omitiu
todo o épico do moderno e todas as raízes possíveis.
Embora, não conscientemente, a história da punição mergulhou no
mecanismo das oscilações que a sua ambivalência sempre projetou. Do
discurso platônico sobre a lei, a violência e a escrita dividem a oscilação
entre as dimensões “cúmplices e rivais”, assim o mal e o seu remédio refletem-se e imitam-se. A violência que diz curar é a mesma violência que
adoece e a violência que afirma ser o remédio é o próprio mal. A lei que
prescreve é a que proíbe e vice-versa, como a escrita, que é instrumento
para recordar e é usada para esquecer. Veneno e antídoto compartilham
a mesma natureza. O remédio do mal e o mal do remédio são polos de
uma vertiginosa oscilação: a pena é o exemplo mais evidente. Toda a sua
história é uma tentativa de aliviar e suportar este jogo de ambivalência:
a sabedoria da “dose” que transforma veneno em antídoto é o grande desafio da diferença do direito.27 A aposta, como na pena de morte, é que o
antídoto seja simplesmente o veneno: não é por acaso que o termo platônico fosse pharmakon, o mesmo veneno que, na dose certa, se transforma
em antídoto.
Há épocas em que, de forma mais visível, se sente uma excessiva cumplicidade da pena como remédio para a violência, e é nesses momentos
27. E. Resta, La certezza e la speranza. Saggio su diritto e violenza, Laterza, Roma-Bari 2007.
29
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
que se percebe mais claramente uma mudança de paradigma. A reflexão
de Beccaria sobre a pena de morte é um exemplo lúcido de como se coloca o problema e se sugerem soluções “ecológicas”. O esplendor dos
suplícios, com a sua economia política de corpos para “marcar” e mostrar,
com o seu espetacular excesso de festa, com a intensidade e a brevidade
do “tempo” de execução, revela, mais do que desumanidade, ineficiência:
portanto, é “inútil”.
O “não é punir menos mas punir melhor” é também prescrição de novas doses de pharmakon; “a inútil prodigalidade de suplícios,” diz Beccaria, “[...] que jamais melhorou os homens”.28 Eles nunca foram nem justos
nem úteis, e os argumentos referem-se tanto à injustiça quanto à inutilidade. Não há, de fato, nenhum fundamento no direito de matar que alguns
homens se atribuem em face dos outros. Não há qualquer racionalidade
(contra Hegel, se poderia dizer) em um contrato social (pactum subjectionis) no qual se atribua aos outros o direito de privar-se da vida. A justiça
de uma pena está portanto apenas no “grau de rigor suficiente para afastar
os homens da senda do crime”; não há vantagem no crime que leve a um
verdadeiro remédio, não a morte, mas a prisão, que tem uma economia do
corpo e do tempo totalmente diferente.
O verdadeiro antídoto deve ser útil e necessário, e buscado alhures: não
há remissão na morte. O remédio está na eficácia da privação da liberdade, na obediência dos corpos; prevenir o crescimento das paixões, diz, é
dever de praças iluminadas, de códigos “che girino tra le mani di tutti”, de
persuasão e de exemplaridade pública. Pode-se até falar de “esfera público
comunicativa” em relação a tudo, menos, porém, quanto à pena de morte.
As leis e as penas devem assim reajustar as doses do fármaco com uma
sabedoria, especificamente, farmacológica que seja capaz de encontrar
eficácia e utilidade. Por isso, a pena de morte é só veneno sem antídoto.
Vale o argumento utilitarístico quanto a isto, se não mais, o da justificação
da justiça racional: pharmakon, de verdade. Leis que punem o homicídio
autorizam por outro lado. A ilusão subjacente à “morte legal” está em um
28. Idem, p. 62.
30
1 – A guerra e a festa
único mecanismo paranoico “que, para afastar as pessoas do assassinato”
ordena e comete outro.29
Como é sabido, este é o velho sentimento de inveja (doença do olhar),
pelo qual, se praticado pelo rival é ruim, e se praticado por nós é bom. O
vínculo, que tanto Beccaria quanto Nietzsche identificam entre a pena, a
festa e a guerra, converge neste sentido.
A este se refere um outro que nos remete à antropomorfia do carrasco
e da sua vítima. Muda de gênero e de acentuação e torna-se pharmakòs:
com o mesmo mecanismo de ambivalência que designa, ao mesmo tempo
e com a mesma proporção de veneno e antídoto, dois elementos “cúmplices e rivais”. Ele designa tanto o carrasco quanto a sua vítima.
Talvez uma onomatopeia que lembra o sussurrar do galho com o qual
ritualmente se golpeava meninos e meninas, alimentados, educados, cuidados para serem sacrificados, o pharmakòs, o coração do jogo da ambivalência. Na Atenas do século V, esta ainda era a prática para afastar
males e desordens da cidade. Eram vítimas predestinadas ao sacrifício,
que, nessa qualidade, pela sua própria presença, condenavam a cidade.
Não se trata da exoneração da e a partir da violência que, ao contrário,
encontramos nas XII Tábuas (o sacer esto), mas da mais completa incorporação da vítima na figura do carrasco e do carrasco na figura da vítima.
É o que sugere Platão quando fala de Sócrates (Fedone, 118a), condenado
à morte pela cidade, que, encaminhando-se para o local onde tomará o
pharmakon, lembra a Críton que “devemos um galo a Esculápio”.
A morte do corpo prescrita pela cidade é aquela que “salva”; a salvação
pela morte é aquela que transforma a vítima em justiceira dos males da cidade. Morre o corpo, mas a alma sobrevive; sofrer injustiça é o que permite
a possibilidade da justiça. Sofrer um mal ao invés de cometê-lo, indica que a
vida boa é possível contra os males da cidade; não fugir ou pedir a compaixão dos juízes, não negociar ou recorrer à sofística significa ir ao encontra
da morte. Mas somente a injustiça sofrida pode transformar-se em justiça.
29. M. Flores, Storia dei diritti umani, il Mulino, Bologna 2008, p. 52.
31
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
“Juízes, não homens!” é o pedido de Sócrates (Apologia di Socrate, 23-24).
Comover os juízes a aceitar a verdade da acusação feita contra ele. Assim
precisa aceitar inclusive ser vítima, porque somente assim se pode julgar a
cidade; somente a morte pode salvar a vida da comunidade.
O primeiro grande processo “midiático” que nos fala de uma pena de
morte é aquele que Atenas move contra Sócrates: conclui-se com uma
pena capital cuja morte do corpo se transforma na salvação da alma, a
injustiça sofrida na justiça da cidade, o carrasco se torna vítima e a vítima
carrasco, de fato pharmakòs.
Só se escapa da ambivalência “enganando” a violência; muitas vezes
tive de repetir, mas se trata de um jogo sério enganar a violência. Quem
não levar a sério o engano, verá retornar a violência. O direito que proíbe a
morte concentra ainda o difícil desafio de enganar a sua própria violência.
Por isso, não devemos nos maravilhar com a violência.
32
2
O Ministério Público Federal do Pará e o combate ao
crime de redução a condição análoga à de escravo
Valena Jacob Chaves1
Cássius Guimarães Chai2
Considerações iniciais
Apesar de o Ministério Público Federal - MPF, mesmo antes da definição da competência federal para o processamento e julgamento do crime
de redução a condição análoga à de escravo, combater a prática desse
delito por meio do ajuizamento de ações penais, havia notícias que grande
parte das decisões do judiciário federal adotava teses que favoreciam a
manutenção dessa prática criminosa por fazendeiros.
1. Professora da Graduação em Direito e do Programa de Pós Graduação em Direitos Humanos
da UFPA; Mestre e Doutora em Direito pela UFPA. Pesquisadora da Clínica de Direitos
Humanos da Amazônia/UFPA. e-mail: valena_jacob@yahoo.com.br. Diretora da Revista
Científica da ABRAT e Diretora da JUTRA.
2.
Professor da Graduação e do Programa de Pós-graduação em Direito e Sistema de Justiça –
Universidade Federal do Maranhão. Mestre e Doutor em Direito Constitucional com estudos
pós-doutorais na Central European University (Hungria), European University Institute
(Itália), The Hague Academy of International Law (Holanda), Universidad de Salamanca
(Espanha). Professor Visitante na Jiaotong Shanghai University School of Law, da The
Northwest University of Xian, e da Chinese Academy of Social Sciences – Law Institute.
Professor de Hermeneutica Jurídica, Teoria do Direito e Filosofia Política na Normal
University of Shanghai (2016/2019). Professor Visitante Central European Univesity
e Universidad Colombia del Paraguay. Membro da european Society of International
Law, International Association of Constitutional Law e da International Association of
Prosecutors. Membro do Ministério Público do Estado do Maranhão. Professor da Escola
do Ministério Público do Estado do Maranhão e da Escola Nacional do Ministério Público.
Editor-Chefe da Revista da Escola Nacional do Ministério Público. chai@ufma.br
33
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
Conforme entrevista3 realizada pela Rádio Nacional AM de Brasília,
no programa Revista Brasil, o então procurador geral do Trabalho, Luís
Antônio Camargo, afirmou que cerca de 40 mil trabalhadores haviam sido
libertados aos longos dos últimos anos de situações análogas à escravidão,
entretanto, ainda existia uma grande dificuldade na punição desse crime,
in verbis:
Não conseguimos eliminar esta situação. Nós reprimimos, nós avançamos, mas ainda temos dificuldade. Especialmente na esfera criminal, não temos o
mesmo sucesso que na esfera cível trabalhista. Então, fica parecendo que há uma impunidade. Se você
aliar essa lucratividade e [o fato de] os criminosos
ficarem impunes, parece que é interessante praticar
esse crime.
Nesse sentido, objetivando investigar essa realidade iremos averiguar
neste trabalho como tem sido a atuação do Órgão Ministerial no combate ao
crime de redução a condição análoga à de escravo, por meio da utilização
do método de análise quanti-qualitativo, empregando as técnicas de coleta
de dados bibliográficos, documentais e a realização de entrevistas semi-estruturadas com os membros4 do Ministério Público Federal paraense, nas
quais se objetivou identificar a atuação institucional do órgão no combate ao
referido crime; o posicionamento de seus membros sobre os fundamentos
jurídicos por eles utilizados na sustentação das denúncias e apelações.
Além disso, iremos analisar as informações obtidas em pesquisa de
campo realizada em tese de doutorado com todos os processos envolvendo o crime tipificado no art. 149 do CPB, ajuizados ou acompanhados
pelo Parquet federal na Seção Judiciária Federal paraense, até o término
3.
Entrevista realizada em 28/01/2013, disponível em: http://memoria.ebc.com.br/
agenciabrasil/noticia/2013-01-28/lucro-e-impunidade-impulsionam-trabalhoescravo-no-pais-diz-procurador. Acesso em 26/07/2015.
4.
Foram entrevistados a Procuradora da República Maria Clara Noleto, coordenadora do
Grupo de Trabalho sobre Escravidão Contemporânea do MPF, no dia 14/04/2014. 1 CD
player (45 min) e o Procurador da República Ubiratan Cazetta no dia 15/04/2014, 1 CD
player (50 min).
34
2 – O Ministério Público Federal do Pará e o combate ao
crime de redução a condição análoga à de escravo
do ano de 2013, objetivando investigar quais os principais óbices existentes na persecução penal que vêm dificultando o efetivo combate ao crime
e consequentemente, a punição dos escravocratas contemporâneos.
A missão institucional do Ministério Público Federal
no combate ao crime de redução a condição análoga à
de escravo no Brasil
Com a definição da competência federal no processamento e julgamento dos crimes de redução a condição análoga à de escravo pelo STF5,
em 30 de novembro de 2006, por meio do julgamento do recurso extraordinário nº 398041-66, restou pacificado que o MPF é o órgão responsável
pelo oferecimento das denúncias e acompanhamento dos processos, quando configurado o crime do art. 149, perante a Justiça Federal.
É válido ressaltar que o recurso extraordinário nº 398041-6 foi oriundo
da ação penal nº 90.00.02136-77, ajuizada no ano de 1992, pelo MPF paraense, o qual postulava a condenação do réu pela prática do crime de redução a condição análoga à de escravo, sustentando a tese da competência
federal para o processamento e julgamento deste delito. Isso demonstra
que o Ministério Público Federal Paraense, desde a década de 1990, vem
defendendo a tese da competência federal, o que é constatado pela análise
dos processos pesquisados, nos quais, em que pese existirem inúmeras
5. O Recurso Extraordinário nº 398041/PA foi interposto pela Procuradoria Regional da
Repúplica contra o acórdão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em que se havia
decidido pela competência da Justiça Estadual. O STF por maioria dos votos entendeu que
o trabalho análogo ao de escravo apesar de classificado como crime contra a liberdade
individual, pelo fato de violar o direito fundamental da dignidade da pessoa humana, passa
a ser tratado pela Suprema Corte como crime contra a coletividade dos trabalhadores, e
portanto, crime contra a organização do trabalho, de competência do judiciário federal, nos
termos do artigo 109, VI da CF.
6. BRASIL. STF. Acórdão no RE nº 398041/PA. Relator: Ministro Joaquim Barbosa. Publicado
no DJe nº 241 de 19 de dezembro de 2008.
7.
BRASIL. TFR 1ª Região. Seção Judiciária Pará/ Marabá. Sentença Criminal nº 90.00.021367. Juiz: Ricardo Beckerath da Silva Leitão. Publicado no e-DJF1 de 26 de junho de 1998.
35
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
decisões declinatórias de competência ainda em 1ª instância, o Parquet Federal, insistentemente, impetrava recurso em sentido estrito para o TRF1, contestando a competência estadual e jamais deixou de ajuizar novas
denúncias criminais8.
Atualmente, segundo informação obtida pela Nota Técnica n. 03/2013
da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal9,
de 21 de janeiro de 2014, nos anos de 2010 a 2013, o parquet ajuizou
469 (quatrocentos e sessenta e nove) ações penais envolvendo o crime
de redução a condição análoga à de escravo em todo território nacional,
confirmando, assim, a missão assumida pela Instituição de combater a incidência deste crime no Brasil. No âmbito do Ministério Público Federal,
a 2ª Câmara, ou Câmara Criminal10, como é comumente denominada, é
o órgão responsável por coordenar a atuação do Parquet no combate ao
trabalho escravo e punir todos os crimes que conduzem a qualquer prática
de escravidão contemporânea.
No ano de 2012, objetivando o efetivo combate do crime de redução a
condição análoga à de escravo, a referida Câmara criou o Grupo de Trabalho – GT sobre Escravidão Contemporânea, por meio da Portaria nº 56, de
06 de novembro de 201211, com o objetivo de assessorá-la na definição da
política criminal de combate ao referido crime.
8. CAZETTA, Ubiratan. Entrevista livre concedida à autora, no dia 15/04/2014, 1 CD player
(50 min).
9. BRASIL. PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA. Nota Técnica nº 03 (atualizada)
de 21 de janeiro de 2014 da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público
Federal. Disponível em: http://www.trabalhoescravo.mpf.mp.br/trabalho-escravo/imagens/
nota_tecnica_03_2013.pdf. Acesso em: 20/02/2015.
10. A competência da Câmara Criminal está prevista nos artigos 58 a 62 da Lei Complementar
nº 75/1993; art. 6º do Regimento Interno do MPF e nas Resoluções n° 6/1993 e 40/1998, do
Conselho Superior do MPF.
11. BRASIL. Ministério Público Federal. Portaria 2ª Câmara nº 56, de 06 de novembro de 2012.
Cria o Grupo de Trabalho sobre Escravidão Contemporânea na 2ª Câmara de Coordenação
e Revisão do Ministério Público Federal e nomeia os seus integrantes. Disponível em:
http://2ccr.pgr.mpf.mp.br/coordenacao/grupos-de-trabalho/gt-escravidao-contemporanea/
composicao-atual/Portaria_56_GT%20Escravidao%20Contemporanea.pdf. Acesso em:
16/03/2015.
36
2 – O Ministério Público Federal do Pará e o combate ao
crime de redução a condição análoga à de escravo
O grupo é composto por Procuradores da República de diversos estados da Federação e possui como objetivo principal aperfeiçoar a persecução penal do crime tipificado no artigo 149 do Código Penal, por
meio do estabelecimento de políticas de atuação, da melhora da estrutura
e eficiência dos órgãos responsáveis, bem como do aperfeiçoamento da
comunicação e do relacionamento com a sociedade.
Dentre as principais atividades realizadas pelo Grupo de Trabalho - GT,
destaca-se a realização do I ENCONTRO TEMÁTICO SOBRE ESCRAVIDÃO CONTEMPORÂNEA, seminário de alcance nacional ocorrido
no mês de outubro de 2013, em Brasília, com a participação de membros
do Ministério Público Federal, Poder Judiciário e Executivo.
No Seminário, foram apresentados os trabalhos desenvolvidos pelo GT
desde a sua criação; dados estatísticos a respeito do tema; palestra com as
discussões mais atuais sobre o trabalho escravo; debates com trocas de experiências visando tornar mais efetiva a persecução penal do crime, bem
como o lançamento do novo manual de atuação na repressão ao trabalho
escravo para os membros do Ministério Público Federal12.
Além disso, foi deliberado durante o Encontro Nacional, a necessidade
dos membros do MPF acompanharem as fiscalizações dos Grupos Móveis
de Fiscalização do MTE, face ao primordial auxílio na identificação das
provas no local do crime, visando à melhor instrução dos Relatórios de
fiscalização e das futuras ações penais. Isso porque, um relatório de fiscalização bem instruído é primordial para a instrução probatória, em face
da dificuldade de interpretação dos conceitos considerados “abertos” no
artigo 149 do Código Penal pelo judiciário federal.
Dessa feita, o Grupo de Trabalho apresentou a referida proposta à
Câmara Criminal por meio da criação de um grupo nacional composto
12. Esse manual visa fornecer subsídios teóricos para formulação da política criminal
sobre o trabalho escravo e auxiliar os membros do MPF no combate ao referido crime.
Disponível em: http://2ccr.pgr.mpf.mp.br/coordenacao/grupos-de-trabalho/gt-escravidaocontemporanea/notas-tecnicas-planos-e-oficinas/notas-tecnicas-planos-e-oficinas. Acesso
em: 10/05/2015.
37
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
por 35 Procuradores da República e, elaborou o edital de convocação dos
membros interessados13. A partir de então, os Procuradores da República,
de forma revezada, começaram a participar de algumas fiscalizações dos
grupos móveis de forma integrada com o Ministério do Trabalho e Emprego que remete previamente ao grupo, as datas e locais das fiscalizações
agendadas.14
Ainda com a finalidade de orientar e sensibilizar os membros do Ministério Público Federal sobre o tema, o Grupo de Trabalho solicitou um
espaço na página da internet da 2ª Câmara Criminal para disponibilizar
informações, peças processuais (especialmente denúncias), ofícios e
documentos diversos envolvendo o crime de redução a condição análoga à de escravo e correlatos15, bem como, elaborou e disponibilizou um
questionário16 para os membros com atuação criminal, visando obter um
diagnóstico a respeito da posição individual deles a respeito da atuação
institucional ante a fatos relacionados ao crime do art. 149 e correlatos do
Código Penal.
Isso porque, baseado na análise dos recursos de apelação que tramitaram ou que estão em trâmite no TRF-1, os Procuradores Regionais da República, que atuam perante o referido Tribunal, vêm proferindo pareceres
13. O edital n. 01/2014 da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão está disponível no site:
http://2ccr.pgr.mpf.mp.br/coordenacao/grupos-de-trabalho/gt-escravidao-contemporanea/
grupos-de-fiscalizacao-movel/EDITAL%20PARTICIPACAO%20GRUPO%20FISCALIZACAO%20MOVEL%202014.pdf/view?searchterm=participa%C3%A7%C3%A3o+no+
Grupo+de+Fiscaliza%C3%A7%C3%A3o+M%C3%B3vel+%E2%80%93+2014%E2%80
%9D. Acesso em: 25/04/2015.
14. É válido ressaltar que em decorrência da crise econômica do país, com o corte orçamentário
implementado no final do ano de 2015 pelo Governo Federal, a Procuradoria da República
diminuiu em muito sua participação nas fiscalizações, em razão da não liberação de diárias
e passagens para os referidos membros acompanharem as fiscalizações. Disponível em:
http://oglobo.globo.com/brasil/governo-oficializa-corte-de-26-bilhoes-no-orcamentode-2016-17963013.
15. Disponível em: http://2ccr.pgr.mpf.mp.br/coordenacao/grupos-de-trabalho/gt-escravidaocontemporanea. Acesso em: 20/04/2015.
16. Disponível em: http://2ccr.pgr.mpf.mp.br/coordenacao/grupos-de-trabalho/gt-escravidao-contemporanea/notas-tecnicas-planos-e-oficinas/notas-tecnicas-planos-e-oficinas. Acesso
em: 22/04/2015.
38
2 – O Ministério Público Federal do Pará e o combate ao
crime de redução a condição análoga à de escravo
contrários17 ao provimento de várias apelações interpostas pelos procuradores da república nos processos oriundos da Seção Judiciária Paraense, bem como não estão interpondo recursos especiais contra as decisões
absolutórias do TRF-118, fazendo-nos assim questionar a missão institucional do Ministério Público Federal no combate ao crime de redução a
condição análoga à de escravo.19
Segundo Cazetta,20 em que pese o Ministério Público Federal, enquanto instituição possua como bandeira, em nível nacional, o combate ao crime de redução a condição análoga à de escravo, existem problemas de
17. Conforme constatado nos seguintes acórdãos: apelação nº 2008.39.01.000082-0 (BRASIL.
TRF da 1ª Região. Acórdão na Apelação nº 20083901000082-0. Relator: Ítalo Fioravanti Sabo
Mendes. Publicado no e-DJF1, de 28 de novembro de 2011); apelação nº 2008.39.01.0004502 (BRASIL. TRF da 1ª Região. Acórdão na Apelação nº 20083901000450-2. Relator:
Fernando Castro Tourinho Neto. Publicado no e-DJF1 de 29 de novembro de 2010);
apelação nº 2007.39.01.001175-8 (BRASIL. TRF da 1ª Região. Acórdão na Apelação nº
20073901001175-8. Relator: Fernando Castro Tourinho Neto. Publicado no e-DJF1 de 07 de
dezembro de 2012); apelação nº 2004.39.00.01.0340-5 (BRASIL. TFR 1ª Região. Acórdão
na Apelação nº. 20043900010340-5. Relator: Hilton Queiroz. Publicado no e-DJF1 de 16 de
setembro de 2011), apelação nº 2007.39.01.000642-7 (BRASIL. TFR 1ª Região. Acórdão
na Apelação nº 20073901000642-7. Relator: Cândido Ribeiro. Publicado no e-DJF1 de
26/07/2013), apelação nº 2007.39.01.001164-1 (BRASIL. TFR 1ª Região. Acórdão na
Apelação nº 20073901001164-1. Relator: Fernando Castro Tourinho Neto. Publicado no
e-DJF1 de 17 de fevereiro de 2012); apelação nº 2008.39.01.000185-3 (BRASIL. TFR
1ª Região. Acórdão na Apelação nº 20083901000185-3. Relator: Mário César Ribeiro.
Publicado no e-DJF1 de 23de janeiro de 2012) e a apelação nº. 2008.39.01.000432-4
(BRASIL. TFR 1ª Região. Acórdão na Apelação nº 20083901000432-4. Relator: Mário
César Ribeiro. Publicado no e-DJF1 de 03 de abril de 2012).
18. Conforme pesquisa realizada em tese de doutorado, dos 17 acórdãos com decisões
absolvitórias, constatou-se a interposição de apenas 2 (dois) recursos especiais no Superior
Tribunal de Justiça pelos Procuradores Regionais da República, referente às apelações nº
2004.39.01.000352-3 e n. 2007.39.01.000561-7.
19. Ressalta-se que muito embora os recursos especiais interpostos pelo MPF nas
Apelações n. 2004.39.01.000352-3 (BRASIL. TFR 1ª Região. Acórdão na Apelação
nº 2004.39.01.000352-3. Relator: Hilton Queiroz. Publicado no e-DJF-1 de 06 de maio
de 2011) e n. 2007.39.01.000561-7 (BRASIL. TFR 1ª Região. Acórdão na Apelação nº
2007.39.01.000561-7. Relator: Hilton Queiroz. Publicado no e-DJF-1 de 11 de janeiro de
2013) não terem sido conhecidos pela presidência do TRF sob a invocação da Súmula n.
7 do Superior Tribunal de Justiça, que assim dispõe: “A pretensão de simples reexame
de prova não enseja recurso especial”; o MPF interpôs agravo de decisão denegatória de
recurso especial ao STJ, que ainda estão pendentes de julgamentos.
20. Cf. CAZETTA, 2014, nota 7.
39
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
convencimento de alguns membros do parquet no tocante aos elementos
caracterizadores do referido crime, que se utilizam do argumento da independência e autonomia funcional para emitirem pareceres contrários nas
apelações interpostas dos casos constatados no Pará. Para o Procurador:
[...] esse problema de convencimento de alguns
membros do Ministério Público Federal perpassa por
uma dificuldade cultural de se enxergar o trabalho
escravo, que vai além do aspecto processual. É raro
a pessoa assumir isso dizendo que o trabalho escravo
não existe, mas ele acredita que ele de fato não existe, e usa questões formais do tipo, faltou provar tal
coisa, para não assumir o seu discurso. A luta cultural
é mais difícil no processo.
No que diz respeito à diminuta quantidade de recursos especiais interpostos pelos Procuradores Regionais da República contra as decisões
absolutórias proferidas pelo TRF-1, Cazetta21 assevera que um dos argumentos muito utilizados por seus colegas são as limitações impostas pelos recursos extraordinários que, por sua vez, não admitem discussão de
matéria fática.
No entendimento do Procurador da República22, a grande maioria das
decisões absolutórias do TRF-1 não nega a existência do fato, ou seja,
que determinados trabalhadores estivessem sido submetidos às condições
de trabalhos descritas nas denúncias, e sim afirmam que essas condições
de trabalho descritas nas peças acusatórias e comprovadas na instrução
probatória, apesar de não serem adequadas, não configuram o tipo penal
descrito no artigo 149 do CPB.
Dessa feita, para Cazetta23 o recurso especial seria plenamente viável
na maioria das decisões absolvitórias proferidas pelo TRF-1, oriundas da
Seção Judiciária Paraense, tendo em vista que o STJ não teria que revolver
21. Cf. CAZETTA, 2014, nota 7.
22. Idem.
23. Idem.
40
2 – O Ministério Público Federal do Pará e o combate ao
crime de redução a condição análoga à de escravo
as provas, ou fazer novas provas, mas, tão somente, analisar as já assumidas desde a 1ª instância e valorá-las.
Diante dessa realidade, Noleto24 afirma que o Grupo de Trabalho requereu à Corregedoria do Ministério Público Federal, por meio da 2ª Câmara
Criminal, a aferição dos trabalhos realizados pelos integrantes da carreira
que tenham por objeto o delito do artigo 149 do Código Penal e crimes
correlatos, bem como elaborou uma proposta de Resolução ao Conselho
Superior do Ministério Público Federal, solicitando a criação de prioridade
nos procedimentos investigatórios e nos processos cíveis e criminais, a ser
observada por todos os membros do MPF, em todas as instâncias.
Ainda segundo Noleto25, o Grupo de Trabalho do MPF verificou a existência de grande discrepância entre o número de trabalhadores resgatados
e a quantidade de ações penais ajuizadas, e um dos motivos apontados
pelo GT foi a falta de articulação entre os órgãos governamentais, aliada
a ausência de melhor infraestrutura, uma vez que não existe prioridade
orçamentária para o combate do trabalho escravo, o que acaba refletindo
na eficiência das persecuções penais.
Assim, visando buscar uma aproximação com os demais agentes envolvidos na persecução penal do crime de redução a condição análoga à
de escravo, o GT vêm realizando diversas reuniões estratégicas com os
representantes do Departamento de Polícia Federal, Ministério Público do
Trabalho e Ministério do Trabalho e Emprego, objetivando a promoção de
ações conjuntas.
Além disso, para minimizar a problemática da coleta de provas, o GT,
por meio da 2ª Câmara Criminal, elaborou um roteiro de atuação contra a
escravidão contemporânea26 para ser utilizado como um guia pelas equipes
de fiscalização dos grupos móveis do Ministério do Trabalho e Emprego,
24. Cf. NOLETO, 2014, nota 3.
25. Idem.
26. Ministério Público Federal – 2ª Câmara de Coordenação E Revisão. Roteiro de atuação
contra a escravidão contemporânea. Brasília: MPF / 2ª CCR, 2012.
41
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
contendo o entendimento doutrinário da caracterização atual do crime, bem
como modelos de entrevistas com trabalhadores, intermediadores e instrução para feitura do auto de constatação e registro fotográfico.
Ademais, ainda se prontificou a orientar os auditores fiscais do trabalho, arrolados como testemunhas nas audiências penais, de modo a auxiliar a demonstração da materialidade e autoria do crime, visando impedir a
efetividade dos artifícios usados pelos advogados de defesa nos processos
criminais. Por fim, o Procurador-Geral da República, mediante proposição
do GT, requereu ao Conselho Nacional de Justiça27, a criação de meta para
o julgamento prioritário dos processos que envolvam o crime de redução
a condição análoga à de escravo e crimes conexos, ajuizados entre janeiro
de 2010 e dezembro de 2013.
O CNJ28, em resposta ao pedido feito pelo procurador-geral da República, aprovou no VIII Encontro Nacional do Poder Judiciário como meta
específica para o judiciário federal alcançar no ano de 2015, a identificação e julgamento de pelo menos 70% das ações penais e recursos relacionados ao crime de redução à condição análoga à de escravo, distribuídas
até 31/12/2013.29
O Grupo de Trabalho do MPF, também foi responsável pela elaboração da
minuta do Protocolo de ação conjunta celebrado pelo Ministério Público Federal, Ministério Público do Trabalho, Ministério do Trabalho e Emprego e
Departamento de Polícia Federal, visando cumprir as 9 (nove) recomendações
27. Por meio do Ofício GAB/PGR/Nº 100/2014. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/
cnj/28597-cnj-avalia-politica-para-agilizar-julgamento-de-acoes-sobre-trabalho-escravo.
Acesso em: 26/05/2015.
28. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/gestao-e-planejamento/metas/metas-2015. Acesso
em: 28/02/2015.
29. É válido mencionar que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) criou, em dezembro do
ano passado, por meio da Resolução n. 212/2015, o Fórum Nacional do Poder Judiciário
para Monitoramento e Efetividade das Demandas Relacionadas à Exploração do Trabalho
em Condições Análogas à de Escravo e ao Tráfico de Pessoas (Fontet), com o objetivo de
aperfeiçoar as estratégias de enfrentamento aos dois crimes no Poder Judiciário. (Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/82193-cnj-servico-conheca-as-punicoes-para-o-trabalho-escravo).
42
2 – O Ministério Público Federal do Pará e o combate ao
crime de redução a condição análoga à de escravo
impostas à União, no parágrafo 265 do Relatório de Mérito nº 169/11, da
Comissão Interamericana de Direitos Humanos no “Caso Fazenda Brasil
Verde”, aprovado pela comissão em 3 de novembro de 2011.30
A atuação do Ministério Público Federal paraense
nos ajuizamentos e tramitações das ações penais no
judiciário federal
No que diz respeito à análise dos processos pesquisados em tese de doutorado defendido por esta autora31, constatou-se que, até o final do ano de
2013, o Ministério Público Federal Paraense ajuizou 326 (trezentas e vinte
e seis) ações penais envolvendo o crime de redução a condição análoga à
de escravo, distribuídas nas subseções judiciárias de Altamira, Belém, Castanhal, Santarém, Redenção e Tucuruí, conforme gráfico abaixo:
GRÁFICO 1 – Número e Percentual de Ações Penais ajuizadas por
Subseção Judiciária Paraense.
Fonte: Ministério Público Federal/Pará, 2014.
30. Cf nota 24.
31. MESQUITA, Valena Jacob Chaves. A sujeição do trabalhador a condição análoga à de
escravo: uma análise jurisprudencial do crime no Tribunal Regional Federal da 1ª Região.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Pará, Instituto de Ciências Jurídicas. Programa
de Pós-Graduação em Direito, Belém, dez/2014.
43
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
Desses processos, até a última atualização feita em dezembro de 2014,
já haviam sido sentenciados em 1ª instância, 133 (cento e trinta e dois)
processos, encontrando-se ainda em tramitação 193 (cento e noventa e
três) denúncias criminais.
Dos processos já sentenciados, 114 (cento e quatorze) tiveram sentenças
julgando o mérito da causa, sendo 52 (cinquenta e duas) condenatórias, 54
(cinquenta e quatro) absolutórias e 8 (oito) mistas32 (condenatória e absolutória), conforme demonstrado no gráfico abaixo, em termos e percentuais:
Por sua vez, 19 (dezenove) processos foram extintos sem resolução de
mérito, sendo 8 (oito) em razão da morte do acusado, 6 (seis) pela prescrição da pretensão punitiva e 5 (cinco) por litispendência.
Das sentenças absolutórias, o Ministério Público Federal interpôs recurso de apelação perante o TRF da 1ª região em 36 processos, sendo que
um dos principais argumentos que vêm sendo utilizado pelo judiciário
federal local para justificar essas absolvições é a ausência de provas suficientes à condenação, sob o fundamento do artigo 386, inciso VII do
Código de Processo Penal.33
Isso se deve ao fato de que uma das grandes dificuldades encontradas
na instrução processual que vêm possibilitando a absolvição dos acusados,
ainda em primeira instância de julgamento, diz respeito à necessidade de
se ratificar a prova colhida pelo grupo móvel de fiscalização do Ministério
do Trabalho e Emprego em juízo, tendo em vista que, no processo penal,
por melhor que seja a prova coletada na fase investigativa, a mesma terá
que ser ratificada em juízo, à luz do que dispõe o artigo 155 do CPP.
32. Utilizamos a expressão sentença mista para fazer referência à decisão que possui mais de
um réu e que por sua vez, condena um (uns) réu (s) e absolve outro (s). A título de exemplo,
citamos o Processo criminal nº 2007.39.01.000625-2, cuja sentença meritória condenou a
ré Joyce Anne Ramalho, pela prática do crime de redução a condição análoga de escravo
e absolveu o co-réu Reinaldo Paulo Pereira Júnior pelo mesmo crime. (BRASIL. TFR 1ª
Região. Seção Judiciária Pará/ Marabá. Sentença Criminal nº 2007.39.01.000625-2. Juiz:
Ricardo Beckerath da Silva Leitão. Publicado no e-DJF1: 09 de março de 2009).
33. BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Publicado: D.O.U. de 13/10/1941 e retificado em 24/10/1941.
44
2 – O Ministério Público Federal do Pará e o combate ao
crime de redução a condição análoga à de escravo
Na grande maioria dos casos, entretanto, a sazonalidade é característica das principais atividades onde a mão de obra escrava é utilizada, sendo
frequente a migração desses trabalhadores que, por sua vez, não possuem
endereços fixos. Assim, no momento seguinte em que aquela realidade
fática se desfaz, com o término da fiscalização e com a “libertação” dos
trabalhadores, os mesmos se separam e, com eles, a prova se esvai, inviabilizando, assim, a repetição dos depoimentos dos ofendidos e testemunhas em juízo, em grande parte das ações penais.
É o que se observa com frequência na tramitação dos processos pesquisados, onde diversos são os despachos solicitando ao Ministério Público
Federal o fornecimento de novo endereço das vítimas e testemunhas arroladas, em face da dificuldade de sua localização. Diante desta impossibilidade, o parquet, sem outra alternativa, em vários processos acaba por
desistir da produção desta prova testemunhal em juízo.
A título de exemplo, citamos o processo nº 2007.39.04.000868-034, de
grande repercussão na mídia nacional, cujos denunciados são os proprietários da fazenda PAGRISA. Nele, constatou-se que, das 1064 vítimas
(trabalhadores libertos pela fiscalização do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho – GEFM), somente foi localizado e
ouvido em juízo uma vítima, o trabalhador Cristiano Costa Martins, tendo
o Ministério Público solicitado a desistência em relação às demais, em
face da dificuldade de localização.
Assim, em que pese os Relatórios de Fiscalizações estarem bem
embasados e munidos de fotografias, depoimentos dos trabalhadores
em áudio e até em vídeo, a ausência da sua ratificação em juízo vêm
possibilitando a absolvição dos acusados, sob o argumento de respeito
aos princípios do contraditório e da presunção de inocência, conforme
34. BRASIL. TFR 1ª Região. Seção Judiciária Pará/ Marabá. Ação Penal nº 2007.39.04.0008680. Partes: Ministério Público Federal x Murilo Villela Zancaner, Marcos Villela Zancaner e Fernao Villela Zancaner. Data da Instauração: 25/09/2007. Disponível em: http://
processual.trf1.jus.br/consultaProcessual/processo.php?proc=200739040008680&s
ecao=CAH&pg=1&trf1_captcha_id=128bdd2b3807f6fdd7da81fa3f9291db&trf1_
captcha=v3t2&enviar=Pesquisar Acesso em: 18/04/2015.
45
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
se observa no trecho da sentença de 1º grau referente ao processo nº
2007.39.04.001121-135, in verbis:
Ante a fatal inovação que ocorreria na situação fática encontrada por ocasião do flagrante, e sabendo-se que, em razão da migração de mão de obra que
marca a atividade, seria naturalmente difícil repetir
em Juízo os depoimentos dos supostos ofendidos,
tal providência era de fundamental importância para
a formação do convencimento do magistrado, que,
como visto, haverá de ser baseado na livre apreciação da prova, produzida sob contraditório judicial.
Ao negligenciar a esse respeito, a acusação acabou
por inviabilizar um juízo mais preciso sobre a qualidade da água consumida pelos obreiros, assim como
sobre as condições de trabalho, de habitação, de salubridade e de segurança então praticadas.
Desta feita, é frequente encontrarmos nessas decisões absolutórias, argumentos de que a condenação do réu importaria em ofensa ao princípio
da presunção de inocência que, por sua vez, além de objetivar garantir à
acusação e não a defesa, o ônus da prova, determina prevalecer o entendimento do estado de inocência do réu, em caso de dúvidas36.
Diante dessa dificuldade, constatou-se que muitos Procuradores da
República estão requerendo a produção antecipada de provas em juízo,
entretanto, o judiciário, na maioria das vezes, não as vêm acolhendo por
não entenderem que a questão do deslocamento e a falta de residência fixa
das testemunhas e vítimas sejam fatores de perecimento da prova judicial.
Isso porque para o processo penal, a antecipação de provas não é obrigatória e deve ser exceção e jamais automática, sendo apenas permitida
nos casos considerados urgentes, ou seja, naqueles em que há o risco das
35. BRASIL. TFR 1ª Região. Seção Judiciária Pará/ Castanhal. Sentença Criminal nº.
2007.39.04.001121-1. Juiz: Omar Bellotti Ferreira. Publicado no e-DJF1 de 13 de março de
2014.
36. NUCCI. Guilherme de Souza, Código de Processo Penal Comentado, 9. ed., rev. atual. e
ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 39.
46
2 – O Ministério Público Federal do Pará e o combate ao
crime de redução a condição análoga à de escravo
provas não serem produzidas mais tarde no processo, conforme dispõe o
artigo 225 do CPP.
Além disso, aduz Cazetta37 que o problema da produção antecipada
de provas nos casos envolvendo o trabalho análogo ao de escravo é que a
mesma somente seria inquestionável judicialmente se, no momento da sua
produção, ainda por ocasião do flagrante, fosse garantida a presença de
defensores públicos ou dativos para os supostos acusados.
Desta feita, seria então necessário levar junto com o grupo móvel de fiscalização, um conjunto de defensores públicos ou dativos para possibilitar
o contraditório dos possíveis acusados na coleta antecipada das provas. E,
mesmo assim, não se estaria isento de questionamento judicial, visto que, no
processo penal, a atuação do defensor público somente se dá na impossibilidade do acusado constituir advogado particular, sob pena de ser declarada
a nulidade do ato processual, em razão do disposto no artigo 263 do CPP.38
As jurisprudências tanto do Superior Tribunal de Justiça, quanto do Supremo Tribunal Federal também são pacíficas nesse sentido, importando
inclusive em nulidade processual em face da ofensa ao princípio constitucional da ampla defesa e do contraditório.39
Sobre a matéria, Noleto40 argumenta que a antecipação de provas no
sistema processual penal brasileiro é muito rara de ser aplicada, mesmo
em outras situações, uma vez que o início da prova contraditória somente
se dá após o recebimento da denúncia pelo juízo e, geralmente, o judiciário somente as concede nas hipóteses em que a testemunha está em vias
de morrer ou quando o testemunho é perecível. Nos casos envolvendo o
37. Cf. CAZETTA, 2014, nota 7.
38. NUCCI. Guilherme de Souza, Código de Processo Penal Comentado, 9a ed., rev. atual. e
ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 39.
39. Nesse sentido ver: BRASIL. STJ. Acórdão no Habeas Corpus nº 278.193/SC. Relator:
Ministro Marco Aurélio Bellizze. Publicado no DJe de 27/02/2014 e BRASIL. STF.
Acórdão no Habeas Corpus nº 92091/SP. Relator: Ministro Celso de Melo. Publicado no
DJe nº 169 de 28.08.2012.
40. Cf. NOLETO, 2014, nota 3.
47
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
crime de redução a condição análoga à de escravo, no entanto, a prova é
produzida na fase pré-processual por meio do Relatório do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho, que se desfaz logo
após o término da fiscalização pelo auditores fiscais do trabalho, não sendo possível revalidá-las sob o crivo do contraditório na fase processual.
Diante desse cenário, o MPF vem defendendo, em seus recursos, a
tese de que, em decorrência da impossibilidade de se revalidar, na fase
processual as provas produzidas pelo Relatório do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho, que o Judiciário as valide
mediante a análise da qualidade técnica dos Relatórios, bem como pelo
cumprimento das normas legais a ele pertinentes, tendo em vista que os
relatórios são elaborados por auditores fiscais do Ministério do Trabalho e
Emprego que são servidores públicos qualificados para auferirem as condições de trabalho e salubridade do ambiente de trabalho e que produzem
os relatórios/laudos, obedecendo as diversas normas regulamentares expedidas pelo próprio Ministério.
Referida tese encontra amparo na doutrina de Pacelli de Oliveira41,
segundo o qual, em razão da natureza cautelar de determinadas provas,
faz-se imprescindível sua imediata produção, mesmo que ainda no curso
da fase investigativa e, diante da impossibilidade de repeti-las em juízo,
defende sua perfeita validade na esfera judicial, ainda que elas tenham
sido produzidas sem a participação da defesa do réu.
Desta feita, segundo o doutrinador42, mesmo que o laudo pericial tenha
sido produzido na fase investigativa, sem o devido contraditório pelo réu,
não deverá ser invalidado, pois o Código de Processo Penal43, além de
somente autorizar o contraditório da prova pericial perante a jurisdição,
também limita sua atuação ao exame da idoneidade dos peritos e das conclusões por ele alcançadas.
41. OLIVEIRA. Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 11 ed., rev. e autal. - Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2009, pg. 378.
42. Cf. OLIVEIRA, 2009, nota 38, p. 377.
43. A esse respeito, consultar o disposto no art. 159, § 4º e § 5º, CPP.
48
2 – O Ministério Público Federal do Pará e o combate ao
crime de redução a condição análoga à de escravo
É válido asseverar, também, que é nesse sentido que o Superior Tribunal de Justiça vem pautando sua jurisprudência, aceitando a prova elaborada na fase de investigações, quando inviável sua repetição na fase
judicial.44
Constatou-se, ainda, nas sentenças absolutórias, a dificuldade de se
compreender o trabalho em condições degradantes, mesmo diante de robustas provas documentais existentes nos autos e, em que pese admitirem
a submissão dos trabalhadores a ambientes de trabalhos desprovidos de
condições adequadas de higiene e salubridade, afirmam que tais condições
apenas burlam as normas de medicina e segurança do trabalho.45
As teses defendidas nessas decisões meritórias apoiam-se no argumento de que, para o Direito penal, nem todo trabalho degradante pode ser
considerado relevante, mas tão somente se dele resultar a redução do trabalhador a condição análoga à de escravo e, para tal, se utilizam da doutrina de Wilson Ramos Filho46, que por sua vez, diferencia o trabalho em
condições degradantes como aquele que é vedado pelas leis trabalhista e
penal, do trabalho degradante, que é tolerado pela legislação trabalhista.
Segundo o referido autor47, o fato de as leis trabalhistas assegurarem
aos empregadores o direito de exigir trabalho em condições de risco à
saúde ou à vida, mediante o pagamento dos adicionais de insalubridade e
periculosidade, acaba por permitir o trabalho degradante. Desta feita, conclui o citado autor que o trabalho degradante não importará em crime se
for garantido ao trabalhador, o recebimento dos adicionais suplementares
44. Consultar em: BRASIL. STJ. Acórdão no Habeas Corpus nº 130.945/PI. Relator: Ministro
Jorge Mussi, Quinta Turma, Publicado no DJe em: 25 de abril de 2011 e BRASIL. STJ.
Acórdão no Habeas Corpus nº 113.976/SP. Relator: Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma,
Publicado no DJe em: 09 de agosto de 2010.
45. BRASIL. TFR 1ª Região. Seção Judiciária Pará/ Castanhal. Sentença Criminal nº
2007.39.04.001121-1. Juiz: Omar Bellotti Ferreira. Publicado no e-DJF1 nº 50 de 13 de
março de 2014.
46. RAMOS FILHO. Wilson. Trabalho Degradante e Jornadas Exaustivas: Crime e Castigo nas
Relações de Trabalho Neo-escravistas. Disponível em: http://revistaeletronicardfd.unibrasil.cpm.br/index.php/rdfd/artide/view/169/151. Acesso em 07/05/2015.
47. Idem.
49
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
previstos nas leis trabalhistas, além disso, aduz que: “o trabalho degradante é, inclusive, legitimado pela legislação trabalhista; pois crime é submeter uma pessoa a trabalho degradante sem o pagamento dos adicionais
respectivos”.
Diante disso, referidas decisões absolutórias vêm asseverando que o
trabalho em condições degradantes, previsto como crime pela lei penal, é
aquele envolvido em um contexto de total desrespeito à dignidade do trabalhador, evidenciando a intenção do empregador de subjugar e suprimir
os direitos humanos mais fundamentais dos trabalhadores.
Para Cazetta, entretanto, é um equívoco se querer exigir uma subjugação do trabalhador que nem no tempo da escravidão negra no Brasil se
tinha, in verbis:
A rigor, no tempo da escravidão negra não estavam
todos os escravos submetidos aos grilhões o tempo
todo. Eles eram propriedades de um senhor de escravo, mas tinham liberdade de se locomover dentro
da fazenda, tinham um conjunto de direitos, às vezes
você tinha a ideia que eles viviam acorrentados, mas
não era prisão – a escravidão nunca foi necessariamente um sinônimo de prisão, e sim, uma restrição
de direitos acima de qualquer razoabilidade.48
Outra tese constatada nas sentenças absolutórias refere-se à ausência do elemento subjetivo necessário para a configuração do tipo penal
de redução a condição análoga à de escravo, a saber: “o dolo”, que por
sua vez, impossibilita o enquadramento do autor do fato do delito sob o
argumento de ausência de atuação direta no crime, fazendo com que a
responsabilização penal recaia, apenas, sobre o intermediário, conhecido
vulgarmente como “gato”, pessoa contratada para arregimentar os trabalhadores e orientar suas tarefas e atividades, ou, ainda, sobre o gerente do
empreendimento.
48. Cf. CAZETTA, 2014, nota 7.
50
2 – O Ministério Público Federal do Pará e o combate ao
crime de redução a condição análoga à de escravo
Pela leitura da redação do artigo 18, inciso I do Código Penal49, constata-se, entretanto, que o nosso diploma legal adota as teorias da vontade50
e do assentimento51 que estabelecem, respectivamente, que age com dolo
é aquele que, diretamente, quis o resultado, bem como aquele que, mesmo
não desejando de forma direta, assume o risco de produzi-lo.
Isso porque o crime de redução a condição análoga à de escravo é
caracterizado como um tipo penal doloso genérico, ou seja, ele não exige
para sua configuração, um especial fim de agir na conduta do agente52.
Assim, para a sua configuração basta que o dolo do agente alcance, alternativamente, um dos elementos do tipo, a saber: 1) submissão a trabalhos forçados; 2) submissão à jornada exaustiva; 3) sujeição a condições
degradantes trabalho; 4) restrição à locomoção do trabalhador em razão
de dívidas contraídas com o empregador ou preposto. Esse entendimento
é oriundo da adoção equivocada da teoria objetiva-formal (também chamada de restritiva) para a definição da autoria penal, a qual restringe a
qualidade de autor apenas à pessoa que realiza o verbo nuclear do tipo. No
entanto, o MPF em defesa vem postulando a aplicação da teoria do domínio do fato, fundamentado no artigo 29 do Código Penal Brasileiro, que
assim dispõe: “Art. 29 - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime
incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”.53
49. Art. 18. Diz-se o crime: I- Doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de
produzi-lo. (Cf. BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal.
Publicado: D.O.U. de 31/12/1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
Decreto-Lei/Del2848.htm. Acesso em: 12/02/2015.)
50. Segundo a teoria da vontade, dolo seria tão-somente a vontade livre e consciente de querer
praticar o crime. (GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte geral. 15. ed. Niterói:
Editora Impetus, 2013, p. 186).
51. Para essa teoria, atua com dolo, aquele que antevendo o resultado lesivo com a prática da
sua conduta, mesmo não querendo de forma direta, não se importa com a sua ocorrência e
assume o risco de vir a produzi-lo. (Cf. GRECO, 2013, p 186, nota 47).
52. Citamos como exemplo de crime que exige um dolo específico na conduta do agente, o tipo
previsto no art. 159 do CPB, que assim dispõe: Art. 159 - Sequestrar pessoa com o fim de
obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate. (Cf.
BRASIL, Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940).
53. BRASIL, Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Publicado:
D.O.U. de 31/12/1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/
Del2848.htm. Acesso em: 12/02/2015.
51
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
Segundo essa teoria, também é considerado como autor do crime,
aquele que possui o controle sobre o domínio final do fato, ou seja, que
detêm o poder de decisão sobre ele, planejando, organizando, controlando e com capacidade de fazê-lo cessar a qualquer tempo. Dessa feita, o
conceito de autoria é ampliado permitindo que não apenas o executor do
núcleo do tipo seja responsabilizado criminalmente, mas também o seu
mentor intelectual.54
No caso específico do crime em estudo, é o fazendeiro quem decide
contratar pessoas para trabalharem em seu nome e na sua propriedade,
sendo dele a responsabilidade de prover condições dignas de moradia,
segurança, higiene, alimentação, água e transporte para esses trabalhadores, uma vez que somente ele é quem detém o poder para viabilizar tais
condições, e se assim não o faz, é porque visa se beneficiar e se locupletar
desse tipo de trabalho menos oneroso.
Desta feita, dispensável é a exigência de o empregador manter contato direito e frequente com os trabalhadores escravizados, para a sua
responsabilização penal, conforme entendimento do Tribunal Regional
da 1ª Região que, por sua vez, reconhece que a responsabilidade penal
do proprietário da fazenda não pode ser alijada pelo fato dele não ter agido
pessoalmente na submissão dos trabalhadores às condições desumanas,
reconhecendo ser este o modus operandi do crime prescrito no art. 149 do
Código Penal.55
E, nesse sentido, foi também o voto do Ministro Cezar Peluso no acórdão que recebeu a denúncia originária do Inquérito n°. 3412/AL, no qual,
ao aplicar a teoria do domínio do fato para definir a autoria do crime
do art. 149 do Código Penal, considerou que os réus não podiam alegar
54. BITENCOURT, Cezar Roberto. A teoria do domínio do fato e a autoria colateral. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-nov-18/cezar-bitencourt-teoria-dominio-fato-autoria-colateral. Acesso em: 18/06/2015.
55. Consultar em: BRASIL. TFR 1ª Região. Habeas Corpus nº 2008.01.00.009278-7. Relator:
Des. I’talo Fioravanti Sabo Mendes, Quarta Turma. Publicado no e- DJF1 do dia 18 de agosto de 2008 e BRASIL. TFR 1ª Região. Habeas Corpus nº 2005.01.00.029275-3. Relator:
Des. Olindo Menezes, Terceira Turma. Publicado no e- DJF1 do dia 18 de maio de 2007.
52
2 – O Ministério Público Federal do Pará e o combate ao
crime de redução a condição análoga à de escravo
ignorância sobre as condições a que os trabalhadores eram submetidos,
eis que tinham o domínio dos fatos, condição esta que os qualificava
como autores do delito.56
No tocante aos processos em tramitação na Seção Judiciária Federal
Paraense que ainda não tiveram sentença em 1ª instância de julgamento,
conforme já mencionado, constata-se que eles representam 59,20% dos
processos ajuizados pelo MPF, sendo que a maioria está em tramitação há
mais de 4 (quatro) anos.
Analisando a tramitação dos referidos processos, observou-se que a
grande causa da demora processual refere-se ao cumprimento das cartas
precatórias expedidas, tendo em vista que a quase totalidade dos atos de
citação, interrogatório dos réus e oitiva de testemunhas e vítimas desses
processos são realizados por meio desse instrumento judicial.
Na grande maioria das vezes, constatou-se que a dificuldade está na
localização principalmente das vítimas e testemunhas arrolada pelo Ministério Público Federal, em virtude da característica migratória dessas
pessoas, conforme já mencionado ao norte deste capítulo.
Restou comprovada também, a inércia de alguns juízes deprecados,
principalmente da justiça estadual paraense, sendo comuns os despachos
requisitando a expedição de ofícios à Corregedoria da Justiça Estadual
Paraense57, solicitando providências no cumprimento das cartas precatórias. Isso porque muitos juízes estaduais entendem que pelo fato das Varas
Federais possuírem competência sobre todos os municípios do Estado,
eles não poderiam realizar a precatória. Essa dificuldade já foi inclusive
levada ao Conselho Nacional de Justiça que por sua vez determinou o
cumprimento da precatória pelo juízo estadual.
56. BRASIL, STF. Acórdão no Inquérito nº 3.412/AL. Relatora: Min. Rosa Weber. Publicado
no DJe nº 222 de 12 de novembro de 2012, p. 18.
57. A título de exemplo citamos os processos nº 2005.39.00.010165-9 da Comarca de Belém e
nº 2008.39.03.000216-4 da Comarca de Altamira, constantes no Banco de dados da presente
tese.
53
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
Todavia, o artigo 42 da Lei nº 5.010/199658, determina, expressamente,
que os atos e diligências da Justiça Federal podem ser praticados em qualquer comarca do estado ou território pelos juízes locais ou seus auxiliares,
mediante a exibição de ofício ou mandado em forma regular, desde que
seja a forma mais econômica e desembaraçada para a realização do ato ou
diligência.
Noleto59 assevera que, parte da demora na tramitação desses processos
se dá em razão da própria condução das Varas Federais, uma vez que as
audiências são marcadas com muita distância uma das outras, embora o
Código de Processo Penal em seu artigo 400 determine a realização de
audiência una para instrução e julgamento do feito criminal.
O Poder Judiciário deve priorizar o processamento e julgamento
não apenas dos processos envolvendo o trabalho análogo ao de escravo, mas de todos os relacionados em afronta aos direitos humanos em
geral, com uma leitura mais ágil ou um tratamento mais diferenciado,
uma vez que a morosidade sempre vai existir, face as características
desse tipo de ação penal, envolvendo sempre a expedição de diversas
cartas precatórias.
O Ministério Público Federal também vem pleiteando em juízo, o
confisco dos produtos e proveitos do crime de redução a condição análoga à de escravo em favor da União60, por entender que “uma repressão
penal eficiente para os crimes do artigo 149, e conexos, exige, além da
aplicação da pena privativa de liberdade, o correto manuseio de instrumentos que permitam atingir a esfera patrimonial dos agentes criminosos,
58. BRASIL. Lei nº 5.010, de 30 de maio de 1966. Organiza a Justiça Federal de primeira
instância, e dá outras providências. Publicado: D.O.U de 1º de junho de 1966, retificada em
14.6 e 4.7.1966.
59. Cf. NOLETO, 2014, nota 3.
60. NOLETO esclarece que em que pese independer de fundamentação e previsão na sentença
condenatória, o Ministério Público Federal em sede de alegações finais vem abordando,
justificando e exigindo a implementação deste efeito, indicando, inclusive, os bens que
consistem em produtos do crime ou aqueles decorrentes, direta e indiretamente, da prática
criminosa. (Cf. NOLETO, 2014, nota 3)
54
2 – O Ministério Público Federal do Pará e o combate ao
crime de redução a condição análoga à de escravo
seja para garantir a reparação do dano, seja para evitar o locupletamento
ilícito do produto do crime”61.
Trata-se de um dos efeitos genéricos e automático da condenação, ou
seja, uma consequência da sentença penal condenatória, totalmente independente e autônoma da pena privativa de liberdade aplicada, razão pela
qual subsiste, mesmo diante da prescrição executória, que somente atinge
o cumprimento da pena, e deve ser implementada, após o trânsito em julgado da ação, conforme dispõe o artigo 91, II, “b” do CPB62.
Assim, o confisco atinge os produtos e os proveitos do crime, ou seja,
qualquer vantagem diretamente auferida com a prática do crime de redução a condição análoga à de escravo, tais como: o carvão, a cana de
açúcar, pastos para criação de gado, peças de roupas, prédios construídos
(produto) etc. ou ainda, qualquer vantagem decorrente da venda destes
produtos (proveito).
Referido efeito da sentença penal condenatória é de fundamental importância para possibilitar a quebra do ciclo que alimenta as cadeias produtivas da escravidão moderna e impedir o locupletamento ilícito por parte dos autores deste crime.
Em face da dificuldade de se apreender e guardar até o trânsito em
julgado do processo, a maioria dos produtos decorrentes da prática deste
crime, eis que principalmente no Estado do Pará, são produtos sazonais
e perecíveis e, diante da inovação promovida pela Lei nº 12.694, de 7 de
julho de 2012, que ao inserir os parágrafos 1º e 2º no artigo 91 do Código
Penal, possibilitou, excepcionalmente, o assenhoramento para a União de
bens ou valores adquiridos de forma lícita pelo condenado, adquiridos
antes ou depois da prática do delito, nas hipóteses em que os produtos ou
61. Conforme o Manual de atuação na repressão ao trabalho escravo para os membros do
Ministério Público Federal. Disponível em: http://2ccr.pgr.mpf.mp.br/coordenacao/gruposde-trabalho/gt-escravidao-contemporanea/notas-tecnicas-planos-e-oficinas/roteiro_de_
atuacao_contra_escravidao_contemporanea.pdf. Acesso em: 10/04/2015.
62. BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Publicado:
D.O.U. de 31/12/1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/
Del2848.htm. Acesso em: 12/02/2015.
55
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
proveitos do crime não tenham sido localizados ou estiverem no exterior,
o MPF nas denúncias criminais ajuizadas após o advento desta lei, vem
postulando a aplicação destes efeitos genéricos da pena, nos processos
envolvendo o crime de redução a condição análoga à de escravo e aguarda
sua plena efetivação, quando do trânsito em julgado das referidas ações.
Considerações finais
O combate ao trabalho escravo é uma bandeira assumida pela Procuradoria da República Paraense, desde a década de 1990, com o ajuizamento
de inúmeras ações criminais e, especialmente, com a implantação da Procuradoria da República no município de Marabá, em 1996. Esse trabalho
se disseminou pela Instituição, levando a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, no início de 2000, articular o envio de todos os relatórios
frutos das fiscalizações realizadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego
para o competente ajuizamento das ações penais pelo Ministério Público
Federal em todo o país.
No entanto, a Procuradoria paraense vem enfrentando certa resistência
por parte de alguns Procuradores Regionais da República, na condução
das apelações por ela interpostas no TRF-1, onde além deles emitirem
pareceres contrários ao provimento desses recursos, pelo fato de não se
convencerem quanto aos elementos caracterizadores do tipo penal, estão
deixando de interpor recursos especiais ao STJ contra as decisões absolutórias proferidas por aquela Corte recursal.
No que pertine a atuação do Ministério Público Federal nos ajuizamentos e acompanhamento das ações penais na Seção Judiciária Federal do
Pará, os principais problemas enfrentados pelo Parquet no efetivo combate
ao crime é a demora na tramitação processual ocasionada, ou pela demora
no cumprimento das cartas precatórias expedidas, ocasionada pela dificuldade de localização das vítimas e testemunhas arroladas pela acusação,
diante da característica migratória dessas pessoas; ou pela inércia de alguns juízes deprecados, principalmente os da justiça estadual paraense, ou
ainda, pela própria condução das Varas Federais, que não dão tratamento
56
2 – O Ministério Público Federal do Pará e o combate ao
crime de redução a condição análoga à de escravo
diferenciado nos processos envolvendo o trabalho análogo ao de escravo,
deixando de priorizar o processamento e julgamento de tais feitos.
Da análise das decisões judiciais de 1ª instância, 48% das sentenças foram absolutórias e tiveram como fundamento, a ausência de provas, tendo
em vista a dificuldade de se ratificar, na esfera judicial, a prova colhida
na fase investigativa, No entanto, contrariando esse argumento, o MPF
vem sustentando a tese de validação da prova elaborada na fase de investigação, colhidas nos Autos de Infrações lavrados pelos Grupos Móveis
de Fiscalização do MTE, por ser inviável sua repetição na fase judicial,
conforme amparo na doutrina e jurisprudência do Superior Tribunal de
Justiça.
Outra tese utilizada nessas sentenças absolutórias de 1ª instância refere-se ao argumento da ausência de atuação direta no crime, ou ausência de
“dolo”, nesse sentido, o MPF vem requerendo que seja aplicada a teoria
do domínio do fato, segunda a qual é considerado como autor do crime,
aquele que detêm o poder de decisão sobre ele, planejando, organizando,
controlando e com capacidade de fazê-lo cessar a qualquer tempo, não se
fazendo imprescindível assim, que o empregador mantenha contato direito e frequente com os trabalhadores escravizados para a sua responsabilização penal.
Por fim, constatamos, ainda, que o MPF paraense vem pleiteando em
juízo, após o trânsito em julgado das condenações, o confisco dos produtos e proveitos do crime de redução a condição análoga à de escravo em
favor da União, bem como qualquer vantagem decorrente da venda de tais
produtos. E, mais recentemente, diante da dificuldade de se apreender e
guardar até o trânsito em julgado do processo, a maioria dos produtos decorrentes da prática deste crime, em face de sua perecividade, o MPF vem
postulando o assenhoramento para a União dos bens ou valores adquiridos
de forma lícita pelo condenado, no montante do proveito e vantagem auferidos pelo condenado com a prática delituosa.
Diante do exposto podemos concluir que apesar dos entraves diagnosticados pela análise dos processos criminais ajuizados e conduzidos pelo
MPF paraense, atinentes ao crime de redução a condição análoga à de
57
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
escravo, vem o referido órgão, de maneira incansável contribuindo para
a punição dos escravocratas contemporâneos, quer no aprimoramento das
teses jurídicas, quer na própria política institucional de sensibilização dos
seus membros e da própria sociedade.
Referências
BITENCOURT, Cezar Roberto. A teoria do domínio do fato e a autoria colateral. Disponível
em: http://www.conjur.com.br/2012-nov-18/cezar-bitencourt-teoria-dominio-fato-autoriacolateral. Acesso em: 18/06/2015.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte geral. 15. ed. Niterói: Impetus, 2013.
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL – 2ª CÂMARA DE COORDENAÇÃO E REVISÃO.
Roteiro de atuação contra a escravidão contemporânea. Brasília: MPF / 2ª CCR, 2012.
MESQUITA, Valena Jacob Chaves. A sujeição do trabalhador a condição análoga à de
escravo: uma análise jurisprudencial do crime no Tribunal Regional Federal da 1ª
Região. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Pará, Instituto de Ciências Jurídicas.
Programa de Pós-Graduação em Direito, Belém, dez/2014.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 9. ed. Rev. atual. e
ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 11. ed. Rev. e atual. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2009.
RAMOS FILHO, Wilson. Trabalho Degradante e Jornadas Exaustivas: Crime e Castigo
nas Relações de Trabalho Neo-escravistas. Disponível em: http://revistaeletronicardfd.
unibrasil.cpm.br/index.php/rdfd/artide/view/169/151. Acesso em: 07/05/2015.
58
3
Mutação constitucional e integração com o consenso
internacional
Adriano Sant’Ana Pedra1*
Considerações iniciais
Quando a Constituição é redigida de maneira inteligente, procura levar em
consideração, desde o princípio, necessidades futuras por meio de mecanismos cuidadosamente colocados. Isto ocorre porque uma Constituição não é
feita em um momento determinado, mas se realiza e se efetiva constantemente. A Constituição brasileira não é mais aquela de 1988. Nos últimos quase
trinta anos, além das mudanças formais sofridas – através de emendas constitucionais de reforma e de revisão –, a Constituição Federal passou também
por mudanças informais.
A mutação constitucional é um processo informal que cuida da atualização
e concretização da Constituição. Na mutação, a norma constitucional modifica-se apesar da permanência do seu texto, pressupondo a não identificação
entre a norma e o texto normativo. Todavia, este fenômeno não está expres-
1.
*
Doutor em Direito Constitucional (PUC/SP); Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais
(FDV); Mestre em Física Quântica (UFES); Especialista em Justiça Constitucional e Tutela Jurisdicional de Direitos (Università degli Studi di Pisa); Especialista em Economia e Direito do
Consumo (Universidad de Castilla-La Mancha); Pós-doutorado realizado no Centro de Direitos
Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; Professor do Curso de Direito
da Faculdade de Direito de Vitória (FDV); Professor do Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu – Mestrado e Doutorado – em Direitos e Garantias Fundamentais da Faculdade de Direito
de Vitória (FDV); Membro da Associação Internacional de Direito Constitucional; Procurador
Federal.
59
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
samente previsto no texto constitucional, ao contrário do que acontece
com a reforma e a revisão. E, sendo assim, não existem limites expressos
no texto constitucional para a realização de uma mutação. Em verdade,
inexiste tratamento sistemático no tocante às limitações dos processos
informais de mudança da Constituição, não tendo a maioria da doutrina
enfrentado o tema especificamente.
Dessa forma, uma importante questão que se coloca é a relação existente entre a mutação constitucional e as influências exercidas pelas jurisprudências internacionais e estrangeiras, o que é objeto de análise neste
trabalho, sem perder de vista que a mutação deve ocorrer dentro dos limites impostos pela normatividade da própria Constituição.
Deve-se, então, ter em conta se as decisões de um Estado estão adstritas ou não ao direito internacional2, mormente neste século XXI, em que
se caminha no sentido de um direito supranacional3, estimulado por relações comerciais, econômicas, sociais e culturais, que acabam limitando a
soberania estatal e dando nova feição ao direito internacional.
2. Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “a resposta simplificada a esta questão é óbvia.
É um objetivo ideal a subordinação do direito interno às regras fundamentais do Direito
Internacional, especialmente àquelas regras do Direito Internacional que tutelam os direitos
do homem. Mas, segundo a concepção que ainda prevalece, o Direito Internacional não é
superior ao direito interno, isto é, o Direito Internacional não subordina o Poder Constituinte
às suas normas. É certo que o Direito Internacional tem a pretensão de fazê-lo, e essa
pretensão cada vez mais se afirma. Por exemplo, pela Declaração Universal dos Direitos do
Homem, promulgada em 1948. Porque essa Declaração Universal dos Direitos do Homem
não tem sentido se ela não significar uma tentativa de limitar o poder dos Estados, em
benefício dos cidadãos desses Estados”. Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O
poder constituinte. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 77.
3. Na visão de Carlos Ayres Britto, “não há nem pode haver Constituição multinacional, se
a multinacionalidade se faz acompanhar da pluralidade de Estados soberanos. [...] O que
é preciso entender é que instituições multilaterais como a União Européia e seus êmulos
são as velhas e boas confederações dos Estados”. Cf. BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da
Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 67-69.
60
3 – Mutação constitucional e integração com o consenso internacional
Mutação constitucional
Uma Constituição deve estar em harmonia com a realidade, e deve se
manter aberta e dinâmica através dos tempos4. Para isto, existem modos
informais de alteração nas constituições, onde é modificado o conteúdo
efetivo do dispositivo constitucional, sem que venha a ser modificada sua
disposição expressa.
Georg Jellinek5 leciona que a mutação constitucional constitui uma
modificação não necessariamente consciente da Constituição e que não
altera o seu texto: “Por mutación de la Constitución, entiendo la modificación que deja indemne su texto sin cambiarlo formalmente que se produce
por hechos que no tienen que ir acompañados por la intención, o consciencia, de tal mutación6.
Em relação às palavras do mestre de Heidelberg, assim se manifesta
Pablo Lucas Verdú7:
A nuestro juicio, la Constitución es la autoconciencia
de un pueblo del Estado y de la sociedad en una época de cambios frecuentes. Por ello la doctrina de las
mutaciones constitucionales es la reflexión – teorética y práctica – de tales cambios. Estos se producen
cuando la normatividad constitucional se modifica
por la realidad político-social que no afecta a sus formas textuales pero transmuta su contenido.
4. PEDRA, Adriano Sant’Ana. A Constituição viva: poder constituinte permanente e cláusulas
pétreas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2005, p. 151 e seg.
5. Georg Jellinek (1851-1911) pronunciou, em 18 de março de 1906, uma conferência sobre
reforma da Constituição e mutação constitucional na Academia Jurídica de Viena, de onde
surgiu o trabalho Verfassungsänderung und Verfassungswandlung. Eine staatsrechtlichpolitische Abhandlung, que mereceu a versão Reforma y mutación de la Constitución. Trad.
Christian Förster. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991.
6. JELLINEK, Georg. Reforma y mutación de la Constitución. Trad. Christian Förster. Madrid:
Centro de Estudios Constitucionales, 1991, p. 7.
7. No estudo preliminar da obra Reforma y mutación de la Constitución. Ibidem, p. LXVII.
61
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
Segundo Jean Gicquel e André Hauriou8, a experiência política revela
que a Constituição de um Estado pode ser modificada de maneira oblíqua
ou oculta, à margem do poder reformador. A mutação constitucional é um
processo informal de alteração da Constituição que cuida de sua atualização e concretização.
Tal fenômeno possui a particularidade de não se encontrar expressamente prevista no próprio texto constitucional, diversamente do que ocorre com a reforma constitucional, que está prevista e há de processar-se nos
exatos termos e limites em que regulada na Constituição.
O chinês Hsü Dau-Lin9 foi um dos primeiros a escrever sobre o tema, na
Alemanha, em 1932, apoiando-se nas obras de Laband e Jellinek. Em sua
definição, a mutação constitucional decorre da separação entre o preceito
constitucional e a realidade10, sendo esta última mais ampla que a normatividade constitucional. Na mutação, a norma constitucional modifica-se
apesar da permanência do seu texto, pressupondo a não identificação entre
a norma e o texto normativo. O caráter dinâmico e prospectivo da ordem
jurídica propicia o redimensionamento da realidade normativa11, com a
Constituição assumindo significados novos, expressando uma temporalidade própria, caracterizada por um renovar-se, um refazer-se de soluções,
que, muitas vezes, não surgem de reformas constitucionais.
Na mutação constitucional, ocorre uma transformação na realidade
da configuração do poder político, da estrutura social ou do equilíbrio
de interesses, sem que tal transformação seja atualizada no documento
8. GICQUEL, Jean; HAURIOU, André. Droit constitutionnel et institutions politiques. 8. ed.
Paris: Montchrestien, 1985, p. 280.
9. DAU-LIN, Hsü. Mutación de la constitución. Trad. Pablo Lucas Verdú e Christian Förster.
Instituto Vasco de Administración Pública, 1998, p. 29.
10. DAU-LIN, Hsü. Mutación de la constitución. Trad. Pablo Lucas Verdú e Christian
Förster. Instituto Vasco de Administración Pública, 1998, p. 29: “Para dar un concepto que
corresponda, del mismo modo a diferentes casos generalmente designados como ‘mutación
constitucional’, quizás podría hacerse diciendo que se trata de la incongruencia que existe
entre las normas constitucionales por un lado y la realidad constitucional por otro”.
11. BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 53.
62
3 – Mutação constitucional e integração com o consenso internacional
constitucional, isto é, o texto da Constituição permanece intacto. Dessa
forma, a mutação constitucional subtrai do órgão reformador parte da
responsabilidade pela evolução da Constituição, para atribuir a outras
instâncias da práxis constitucional. Segundo Karl Loewenstein12,
Este tipo de mutaciones constitucionales se da en todos los Estados dotados de una constitución escrita
y son mucho más frecuentes que las reformas constitucionales formales. Su frecuencia e intensidad es de
tal orden que el texto constitucional en vigor será dominado y cubierto por dichas mutaciones sufriendo
un considerable alejamiento de la realidad, o puesto
fuera de vigor.
Referindo-se a tais mudanças informais, Jorge Miranda utiliza o termo vicissitude constitucional tácita13, enquanto José Joaquim Gomes
Canotilho emprega a expressão transição constitucional para referir-se
à “revisão informal do compromisso político formalmente plasmado na
constituição sem alteração do texto constitucional. Em termos incisivos:
muda o sentido sem mudar o texto”14. Entre nós, Anna Candida da Cunha
Ferraz15 utiliza as expressões processos indiretos, processos não formais
ou processos informais “para designar todo e qualquer meio de mudança
constitucional não produzida pelas modalidades organizadas de exercício
do Poder Constituinte derivado”.
A interpretação constitucional judicial revela-se nas decisões que aplicam a Constituição, o que pode ocorrer tanto mediante a aplicação pura
e simples da norma constitucional para resolver a lide em um caso con-
12. LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la constitución. Trad. Alfredo Gallego Anabitarte.
Barcelona: Ariel, 1976, p. 165.
13. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 1996, t.
II, p. 130-143. MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro:
Forense, 2002, p. 389-390.
14. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed.
Coimbra: Almedina, 2002, p. 1212.
15. FERRAZ, Anna Candida da Cunha. Processos informais de mudança na Constituição. São
Paulo: Max Limonad, 1986, p. 12.
63
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
creto, como nos casos em que o exercício da função jurisdicional visa
ao controle abstrato de constitucionalidade de leis ou atos normativos.
Algumas constituições reconhecem expressamente aos tribunais a missão
de intérprete da Constituição, enquanto que em outras esta tarefa decorre
implicitamente da natureza da função judicial.
Karl Larenz destaca a importância dos precedentes judiciais, identificando um direito judicial:
Existe uma grande possibilidade no plano dos factos
de que os tribunais inferiores sigam os precedentes
dos tribunais superiores e estes geralmente se atenham à sua jurisprudência, os consultores jurídicos
das partes litigantes, das empresas e das associações
contam com isto e nisto confiam. A conseqüência é
que os precedentes, sobretudo os dos tribunais superiores, pelo menos quando não deparam com uma
contradição demasiado grande, são considerados,
decorrido algum tempo, “Direito vigente”. Assim se
forma em crescente medida, como complemento e
desenvolvimento do Direito estatuído, um “Direito
judicial”16.
A interpretação proporciona a atualização e a vivificação constante do
sentido de um dispositivo constitucional. A interpretação da Constituição
pelo Poder Judiciário lhe confere considerável parcela de sua força normativa. Como leciona Konrad Hesse, o desenvolvimento da força normativa da Constituição não depende apenas de seu conteúdo, mas de sua
praxis, que se efetiva por uma interpretação adequada, “que é aquela que
consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada
situação”17. Contendo as diretrizes superiores da organização política e
jurídica de um povo, a Constituição só se consolidará e produzirá os resul-
16. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Trad. José Lamego. 3. ed. Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 1997, p. 611-612.
17. HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991, p.22-23.
64
3 – Mutação constitucional e integração com o consenso internacional
tados adequados à medida que for possível o seu amoldamento às novas
realidades da vida social.
A construção judicial18 é uma importante técnica, muito utilizada pela
Suprema Corte norte-americana, que permite a construção do próprio direito em determinadas circunstâncias de premência e necessidade, a fim
de suprir as deficiências ou imperfeições do ordenamento jurídico. A construction norte-americana justifica-se pela maior vagueza da tradição legislativa anglo-saxã. Graças à construção judicial, a Constituição dos Estados
Unidos da América deu abrigo a novas doutrinas, novos princípios, permitindo mudanças sem qualquer alteração no texto constitucional. Isto levou
Charles Evans Hughes, presidente da Corte Suprema norte-americana, a
afirmar: “Vivemos sob uma Constituição, mas a Constituição é aquilo que
os Juízes dizem que ela é”. Dentre as construções constitucionais da Corte
Suprema que provocaram inegável mutação constitucional, são citadas,
com freqüência, a construction do judicial review, na famosa decisão proferida por John Marshall, em 1803, no caso Marbury x Madison19.
José Horácio Meirelles Teixeira20 considera a construção como uma
modalidade de interpretação, ressaltando que não há motivo para distinção
entre construção e interpretação constitucional porque,
na verdade, toda autêntica, verdadeira interpretação,
é construção, pois o intérprete não pode jamais ater-se exclusivamente ao texto, à letra da lei, isolando-a
de outras partes do ordenamento jurídico, dos princípios e valores superiores da Justiça e da Moral, da
ordem natural das coisas, das contingências históricas, da evolução e das necessidades sociais, da vida,
enfim.
18. Cf. PEDRA, Adriano Sant’Ana. A construção judicial da fidelidade partidária no Brasil.
Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC, Belo Horizonte, ano 2, n. 6, p. 207249, abr./jun.2008.
19. Cf. FERRAZ, Anna Candida da Cunha. Processos informais de mudança na Constituição.
São Paulo: Max Limonad, 1986, p. 135.
20. TEIXEIRA, José Horácio Meirelles. Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1991, p. 271.
65
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
Também não fazendo distinção entre construção e interpretação, Anna
Candida da Cunha Ferraz21 entende que “a interpretação constitucional
é gênero do qual ambas são espécies, que se distinguem particularmente
pelos elementos ou critérios interpretativos que adotam e pelos resultados
finais alcançados”.
Através da construction, a Constituição dos Estados Unidos da América não ficou engessada, mas aderiu à evolução política e social e com ela
evoluiu. Entre nós, entretanto, a construction constitucional não tem apresentado muito relevo, em grande parte porque o procedimento de reforma
é muito utilizado em nosso país.
Embora se procure dar uma certa dimensão à tarefa construtiva do Supremo Tribunal Federal, esta resume-se, em verdade, a uns poucos feitos22.
Apesar disto, o Excelso Tribunal brasileiro começa a desempenhar significativo papel acerca da concretização de direitos e garantias fundamentais.
Influências das jurisprudências internacionais e
estrangeiras
As correntes internacionalistas, em franca ascensão, indicam como limitações o bem comum, a segurança e a paz internacional, que devem
ser considerados na sociedade da complexidade, que é a sociedade aberta
e multinacional. Nesse sentido, José Joaquim Gomes Canotilho leciona
que um sistema jurídico interno “não pode, hoje, estar out da comunidade
internacional. Encontra-se vinculado a princípios de direito internacional
(princípio da independência, princípio da autodeterminação, princípio da
observância de direitos humanos)”23.
21. FERRAZ, Anna Candida da Cunha. Processos informais de mudança na Constituição. São
Paulo: Max Limonad, 1986, p. 47-48.
22. FERRAZ, Anna Candida da Cunha. Processos informais de mudança na Constituição. São
Paulo: Max Limonad, 1986, p. 137-138.
23. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 5. ed.
Coimbra: Almedina, 2002, p. 81.
66
3 – Mutação constitucional e integração com o consenso internacional
Isso tem proporcionado, de certa forma, uma redução do papel exercido pelos Estados até então, em particular quanto à produção exclusiva do
direito vigente sobre o seu território, que deve levar em conta as pessoas
sujeitas à sua soberania e a existência de uma pluralidade de Estados que
devem conviver pacificamente. Assim, escreve Alessandro Pizzorusso:
O direito comparado atualmente é utilizado cada vez
mais no âmbito da pesquisa do direito que o juiz (ou
outro operador jurídico) deve aplicar à fattispecie
concreta submetida ao seu exame. Isso tem lugar
não só no âmbito da atividade de jurisdições internacionais que devem integrar os textos normativos
dos quais lhes corresponda deduzir o direito a aplicar
às fattispecie concretas, mas também por parte dos
juízes nacionais que encontram em ordenamentos estrangeiros a base de argumentações utilizáveis para
reconstruir o direito nacional, ou em precedentes
judiciais estrangeiros modelos a seguir em relação
a casos análogos verificados em seus países. Naturalmente, o direito estrangeiro não pode assumir nenhum caráter vinculante em casos deste gênero, mas
pode ser empregado no âmbito de argumentações
tendentes a identificar soluções razoáveis que não
sejam incompatíveis com o direito nacional, sobretudo naqueles casos em que este direito apresenta-se
como lacunoso ou de difícil interpretação24.
Nesse sentido, o Tribunal Constitucional português, ao realizar a fiscalização preventiva de constitucionalidade da Resolução nº 54-A/2006,
da Assembleia da República, que “propõe a realização de um referendo
sobre a interrupção voluntária da gravidez realizada por opção da mulher
nas primeiras 10 semanas”, buscou balizar a sua decisão no assentimento
da ordem internacional sobre o tema. É o que se pode verificar a partir do
conteúdo do Acórdão nº 617/2006:
24. PIZZORUSSO, Alessandro. Justicia, Constitución y pluralismo. 2. ed. Lima: Palestra,
2007, p. 75-76. Cf. também PIZZORUSSO, Alessandro. La problematica delle fonti del
diritto all’inizio del XXI° secolo. Disponível em: http://archivio.rivistaaic.it/materiali/anticipazioni/fonti_ventsecolo/index.html. Acesso em: 16/07/2012.
67
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
No plano do Direito Comparado, remetendo-se para
a extensa abordagem do Acórdão nº 288/98, deverá
salientar-se que permanece uma tendência para a
consolidação de soluções legislativas descriminalizadoras ou que enunciam causas de afastamento da
responsabilidade segundo certas indicações. Não há
conhecimento, no grupo dos países com a estrutura
de Estado de Direito democrático, de um “retrocesso” no sentido criminalizador (cf. BERTRAND
MATHIEU, Le droit à la vie, Edições do Conselho da Europa, 2005). E esta tendência diz respeito
quer aos Estados que adotaram a solução dos prazos
quer aos Estados que adotaram o método das indicações25.
Este direito internacional deve ter como princípio fundamental a proteção internacional dos direitos humanos. A este respeito, Flávia Piovesan
escreve que, após a Segunda Guerra, nasce
a certeza de que a proteção dos direitos humanos
não deve se reduzir ao âmbito reservado de um Estado, porque revela tema de legítimo interesse internacional. Sob esse prisma, a violação dos direitos
humanos não pode ser concebida como questão doméstica do Estado, e sim como problema de relevância internacional, como legítima preocupação da
comunidade internacional26.
Em verdade, esta tendência de proteção dos direitos humanos tem levado o constitucionalismo atual a absorver os tratados relativos aos direitos
humanos como normas constitucionais intangíveis ao poder reformador,
como o fez a Constituição brasileira (artigo 5º, §§ 2º e 3º, e artigo 60, § 4º).
Dessa forma, a proteção dos direitos humanos determina a relativização
25. PORTUGAL. Tribunal Constitucional. Acórdão nº 617/2006. Disponível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20060617.html. Acesso em 14/07/2012.
26. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7. ed. São
Paulo: Saraiva, 2007, p. 117.
68
3 – Mutação constitucional e integração com o consenso internacional
do conceito de soberania, possibilitando uma responsabilização27 internacional em caso de omissão dos Estados e garantindo os direitos do cidadão universal.
Segundo a lição de Antônio Augusto Cançado Trindade, quando a
questão em análise é a proteção dos direitos humanos, o que importa é a
política de proteção aos seus direitos, buscando sempre a norma que melhor proteja os direitos humanos, seja ela uma norma do direito interno,
seja ela uma norma do direito internacional. Assim, escreve o autor:
O direito internacional e o direito interno, longe de
operarem de modo estanque ou compartimentalizado, se mostram em constante interação, de modo a
assegurar a proteção eficaz do ser humano. Como
decorre de disposições expressas dos próprios tratados de direitos humanos, e da abertura do direito
constitucional contemporâneo aos direitos internacionalmente consagrados, não mais cabe insistir na
primazia das normas do direito internacional ou do
direito interno, porquanto o primado é sempre da
norma – de origem internacional ou interna – que
melhor proteja os direitos humanos28.
Esta linha de raciocínio possibilita propor uma nova leitura29 da parte
final do inciso LXVII do artigo 5º da Constituição brasileira30, que trata da
27. A este respeito, escrevem Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins que a crescente
internacionalização dos direitos humanos permitiu promover a “possibilidade de
responsabilizar o Estado de forma externa, independentemente do acionamento de
mecanismos de direito interno e da boa (ou má...) vontade das autoridades estatais pelos
instrumentos de fiscalização e responsabilização que ficam a cargo de comissões, tribunais
e outras autoridades internacionais”. Cf. DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo.
Teoria geral dos direitos fundamentais. São Paulo: RT, 2007, p. 41.
28. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Apresentação do livro PIOVESAN, Flávia (Org.).
Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 5. ed. São Paulo: Max Limonad,
2002, p. 23.
29. SILVA, Paulo Thadeu Gomes da. Poder constituinte originário e sua limitação material
pelos direitos humanos. Campo Grande: Solivros, 1999, p. 120.
30. In verbis: “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento
voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.
69
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
3 – Mutação constitucional e integração com o consenso internacional
hipótese de prisão civil por dívida do depositário infiel, embora seja norma constitucional originária, analisando os §§ 2º e 3º do mesmo artigo 5º
da Constituição aliados ao que preceitua o artigo 7º, § 7º do Pacto de São
José da Costa Rica31 (Convenção Americana sobre Direitos Humanos)32,
que estabelece que ninguém deve ser detido por dívida, exceto apenas no
caso de inadimplemento de obrigação alimentar, bem como o artigo 11 do
Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos33.
No julgamento do habeas corpus HC 87.585-8/TO34, o ministro Celso
de Mello destacou que a discussão em torno do alcance e da precedência
dos direitos fundamentais da pessoa humana impõe que se examine, “de
um lado, o processo de crescente internacionalização dos direitos humanos e, de outro, que se analisem as relações entre o direito nacional (direito
positivo interno do Brasil) e o direito internacional dos direitos humanos”.
Neste contexto, “o Poder Judiciário constitui o instrumento concretizador
das liberdades civis, das franquias constitucionais e dos direitos fundamentais assegurados pelos tratados e convenções internacionais subscritos pelo Brasil”. Há quatro correntes acerca da hierarquia dos tratados de
proteção aos direitos humanos, sustentando a sua (i) hierarquia supraconstitucional, (ii) hierarquia constitucional, (iii) hierarquia supralegal e infraconstitucional e (iv) paridade hierárquica com lei ordinária. Apesar da divergência apresentada pela doutrina, o Supremo Tribunal Federal atribuía
aos tratados internacionais em geral – inclusive aqueles que versam sobre
direitos humanos – posição jurídica equivalente à das leis ordinárias.
31. In verbis: “Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de
autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação
alimentar”.
32. O texto da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José), celebrado
em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, por ocasião da Conferência
especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, foi incorporado ao nosso sistema de
direito positivo interno em 1992.
33. In verbis: “Ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação
contratual”.
34. STF. Pleno. HC nº 87.585-8/TO. Rel. Min. Marco Aurélio. J. 03/12/2008. Ainda não
publicado.
70
3 – Mutação constitucional e integração com o consenso internacional
O novo contexto internacional fez com que o Supremo Tribunal Federal modificasse o seu entendimento acerca do status dos tratados internacionais que versarem sobre direitos humanos. Segundo o Ministro Celso
de Mello, a própria prisão civil por dívidas pode sofrer mutações:
Após longa reflexão sobre o tema em causa, Senhora
Presidente – notadamente a partir da decisão plenária
desta Corte na ADI 1.480-MC/DF, Rel. Min. Celso
de Mello (RTJ 179/793-496) –, julguei necessário
reavaliar certas formulações e premissas teóricas
que me conduziram, então, naquela oportunidade, a
conferir, aos tratados internacionais em geral (qualquer que fosse a matéria neles veiculada), posição
juridicamente equivalente à das leis ordinárias. As
razões invocadas neste julgamento, no entanto, Senhora Presidente, convencem-me da necessidade de
se distinguir, para efeito de definição de sua posição
hierárquica em face do ordenamento positivo interno, entre convenções internacionais sobre direitos
humanos (revestidas de “supralegalidade”, como
sustenta o eminente Ministro Gilmar Mendes, ou
impregnadas de natureza constitucional, como me
inclino a reconhecer), e tratados internacionais sobre as demais matérias (compreendidos estes numa
estrita perspectiva de paridade normativa com as
leis ordinárias). [...] Cabe registrar, aqui, uma observação que se faz necessária. Refiro-me ao fato,
de todos conhecido, de que o alcance das exceções
constitucionais à cláusula geral que veda, em nosso
sistema jurídico, a prisão civil por dívida pode sofrer
mutações, quer resultantes da atividade desenvolvida pelo próprio legislador comum, quer emanadas
de formulações adotadas em sede de convenções
ou tratados internacionais, quer, ainda, ditadas por
juízes e Tribunais, no processo de interpretação da
Constituição e de todo o complexo normativo nela
fundado. Isso significa, portanto, presente tal contexto, que a interpretação judicial desempenha um papel
de fundamental importância, não só na revelação do
sentido das regras normativas que compõem o ordenamento positivo, mas, sobretudo, na adequação
da própria Constituição às novas exigências, necessidades e transformações resultantes dos processos
71
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
3 – Mutação constitucional e integração com o consenso internacional
sociais, econômicos e políticos que caracterizam a
sociedade contemporânea. [...] Como precedentemente salientei neste voto, e após detida reflexão em
torno dos fundamentos e critérios que me orientaram
em julgamentos anteriores (RTJ 179/493-496, v.g.),
evoluo, Senhora Presidente, no sentido de atribuir,
aos tratados internacionais em matéria de direitos
humanos, superioridade jurídica em face da generalidade das leis internas brasileiras, reconhecendo, a
referidas convenções internacionais, nos termos que
venho de expor, qualificação constitucional35.
Deve ser destacado que o Pacto de São José da Costa Rica foi firmado
em 1969 e internalizado no direito brasileiro em 1992, enquanto que o § 2º
do artigo 5º do texto constitucional foi redigido pelo legislador constituinte de 1988, e somente no final de 2008 o Supremo Tribunal Federal alterou
sua posição e fixou o entendimento de que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que o Brasil aderiu gozam de status de
norma supralegal, nos termos dos julgamentos do HC 87.585/TO36, do RE
349.703/RS37 e do RE 466.343/SP38,39. Nos julgamentos do HC 90.450/
MG40, do HC 91.361/SP41 e do HC 94.695/RS42, o relator, Ministro Celso
de Mello, evidencia a hierarquia constitucional dos tratados internacionais
35. Voto proferido no HC 87.585-8/TO 12/03/2008.
36. STF. Pleno. HC nº 87.585-8/TO. Rel. Min. Marco Aurélio. J. 03/12/2008. Ainda não
publicado.
37. STF. Pleno. RE nº 349.703/RS. Rel. Min. Carlos Ayres Britto. Rel. para o acórdão Min.
Gilmar Mendes. J. 03/12/2008. Ainda não publicado.
38. STF. Pleno. RE nº 466.343/SP. Rel. Min. Cezar Peluso. J. 03/12/2008. Ainda não publicado.
39. Dando sequência a esta decisão, o Supremo Tribunal Federal revogou a sua Súmula 619,
segundo a qual “a prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em
que se constituiu o encargo, independentemente da propositura de ação de depósito”.
40. STF. Segunda Turma. HC nº 90.450/MG. Rel. Min. Celso de Mello. J. 23/09/2008. DJ
06/02/2009.
41. STF. Segunda Turma. HC nº 91.361/SP. Rel. Min. Celso de Mello. J. 23/09/2008. DJ
06/02/2009.
42. STF. Segunda Turma. HC nº 94.695/RS. Rel. Min. Celso de Mello. J. 23/09/2008. DJ
06/02/2009.
72
3 – Mutação constitucional e integração com o consenso internacional
em matéria de direitos humanos. Como se verifica, a mutação constitucional, envolvendo este tema, está em harmonia com a ordem internacional.
Outro ponto que merece destaque é a tendência mundial de abolição da
pena de morte. Avançando nesse sentido, diversos países têm procurado
convencer aqueles que ainda adotam estas medidas no sentido de que promovam moratória das execuções e extingam a pena capital para menores
de idade e pessoas com deficiência até a sua abolição total.
Neste contexto, a comunidade mundial volta-se para os Estados Unidos da América, que ainda resiste em manter a pena de morte. Muitos
países buscam a interpretação do seu próprio direito constitucional tendo
em vista decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos, o que permite
dizer que existe uma certa “internacionalização” desta Corte. Todavia, a
justiça constitucional norte-americana tem demonstrado certa relutância
em procurar subsídios além de suas fronteiras quando se faz necessário
para interpretar a Constituição dos Estados Unidos. Nesse sentido, escreve
André Ramos Tavares:
Em recente e polêmica decisão adotada pela Suprema Corte norte-americana, no caso Roper vs. Simons
(2005), na qual fora invocada a opinião absolutamente
predominante na legislação estrangeira acerca da pena
de morte aos menores de 18 anos de idade, para avaliar a constitucionalidade dessa medida nos EUA, o
Justice Scalia, em voto vencido, observava: “O reconhecimento da aprovação internacional não tem lugar
na opinião legal desta Corte, a não ser que seja parte
dos critérios de decisão desta Corte”43.
Todavia, em Atkins versus Virgínia (2002), caso mencionado em tópico
anterior, a Suprema Corte entendeu, por 6 votos contra 3, que a Constituição dos Estados Unidos proíbe a pena de morte para pessoas com deficiência mental. O Justice Stevens, que relatou o voto vencedor, externou
o novo entendimento que a Corte deu à Emenda VIII, observando que a
43. TAVARES, André Ramos. Fronteiras da hermenêutica constitucional. São Paulo: Método,
2006, p. 79.
73
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
3 – Mutação constitucional e integração com o consenso internacional
comunidade mundial desaprova a imposição da pena de morte por crimes
cometidos por pessoas que sofrem de retardamento mental. O Chief Justice Rehnquist e o Justice Scalia reprovaram a posição da Suprema Corte
por sua referência ao entendimento internacional sobre esta matéria, qualificando como irrelevante o pensamento da comunidade mundial, cuja noção de justiça nem sempre corresponde àquela do povo norte-americano,
mas foram votos vencidos.
Não obstante, os cidadãos da maioria dos países possuem aspirações
comuns, o mesmo senso de dignidade e de valor e sentimento referente à justiça. O Justice Stephen Breyer, que tem sido o mais proeminente
membro da Suprema Corte a buscar orientação fora do seu país, ressalta
que a “globalização” dos direitos humanos é imprescindível na medida
em que estes devem ser proporcionados a todas as pessoas e não apenas a
indivíduos de Estados específicos. E isso em nada subverte o conceito de
soberania.
No mesmo sentido, Mario de la Cueva escreve que o direito internacional deve ser incluído entre as fontes substanciais do direito nacional.
O autor mexicano ainda afirma que a consciência e o pensamento da
humanidade sobre o respeito à pessoa e à independência dos povos são
fontes incontestáveis de inspiração para todas as comunidades que desejam a igualdade, a liberdade, a dignidade e a justiça entre os homens
e as nações44.
Considerações finais
O texto constitucional brasileiro dispõe expressamente acerca das limitações à reforma e à revisão constitucional. O mesmo não se pode dizer quanto à mutação constitucional. Todavia, isto não significa que esta
esteja a salvo de limitações, mormente em razão da força normativa da
Constituição.
44. CUEVA, Mario de la. Teoría de la Constitución. Cidade do México: Porrúa, 2008, p. 64.
74
3 – Mutação constitucional e integração com o consenso internacional
Buscou-se demonstrar aqui que a mutação constitucional sofre influências da integração com o consenso internacional. Mesmo quando não se
trata de direito vigente – como é o caso de decisões proferidas por Tribunal Constitucional estrangeiros – a jurisprudência externa acaba por exercer certa influência na interpretação da Constituição de determinado país.
Ademais, a referência a normas jurídicas estrangeiras ou a opinião pública internacional confere ao Tribunal uma ferramenta adicional e potencialmente útil para a solução de temas complexos envolvendo o direito
constitucional.
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Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7. ed. São
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76
4
O aborto e o exame de corpo de delito em casos de
violência sexual: análise do Projeto de Lei nº 5.069/2013
num viés do direito internacional
Cristina Grobério Pazó1
Considerações iniciais
O objetivo do presente artigo é analisar a obrigatoriedade do exame de
corpo de delito para a realização do aborto em vítimas de violências sexuais,
proposta pelo Projeto de Lei n. 5.069 no ano de 2013, pelo Deputado Eduardo
Cunha do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB-RJ).
Sabe-se que os direitos e garantias conquistados pelas mulheres brasileiras
até a contemporaneidade é fruto de lutas. Por isso, a finalidade do estudo é observar se tal Projeto não impulsionaria um retrocesso aos direitos adquiridos,
por legislação constitucional e infraconstitucional.
Isso porque a Lei 12.845/13 traz as questões que atingem o atendimento às
vítimas de violência sexual, com o fim de ampliar seus direitos, já que facilita
o seu atendimento, promove a profilaxia da gravidez e garante a redução de
danos físicos e psíquicos da mulher.
Desse modo, em um primeiro momento será pormenorizado o Projeto de
Lei n. 5069/13, em seguida, será verificado o estupro e a iniciativa das vítimas
1. Professora do Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em Direito e da Graduação da FDV;
doutora em Direito pela UGF. Mestre em Direito pela UFS; pesquisadora do Grupo de Estudo:
Direito, Sociedade e Cultura da FDV; advogada.
77
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
no que diz respeito a realização do exame de corpo de delito para fins
de comprovação da violência. Será também analisado a necessidade da
obrigação do exame para consumar o aborto legal no Brasil. Por fim, será
realizada uma análise acerca das tendências na América do Sul.
Nesse sentido, o trabalho irá apresentar estatísticas em torno da violência sexual para saber o comportamento da mulher no que tange a realização do exame de corpo de delito e o aborto nos casos de violência sexual.
O Projeto de Lei nº 5.069/2013
No final do mês de outubro de 2015, a chamada Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou
o Projeto de Lei (PL) n. 5.069 do ano de 2013.
Idealizado pelo deputado Eduardo Cunha do Partido do Movimento
Democrático Brasileiro (PMDB-RJ), tal projeto modifica a Lei n. 12.845
também do ano de 2013 que visa o Atendimento às Vítimas de Violência
Sexual.
Apesar das divergências no momento da votação, o resultado final foi
de trinta e sete votos a favor do PL e 14 votos contra, ou seja, demonstrando, em números, que a maioria dos deputados são a favor do retrocesso
aos direitos das mulheres no Brasil.
Isso porque, o Projeto de Lei prevê o procedimento no atendimento
de mulheres vítimas de violências sexuais, exigindo a obrigatoriedade do
exame de corpo de delito, além de outras medidas, como por exemplo, a
prática de crime para anúncios de meios ou métodos abortivos.
Veja,
Art. 2. Considera-se violência sexual, para os efeitos
desta Lei, as práticas descritas como típicas no Título
VI da Parte Especial do Código Penal (Crimes contra
a Liberdade Sexual), Decreto-Lei no 2.848, de 7 de
dezembro de 1940, em que resultam danos físicos e
psicológicos.
78
4 – O aborto e o exame de corpo de delito em casos de violência sexual:
análise do Projeto de Lei nº 5.069/2013 num viés do direito internacional
Parágrafo único. A prova da violência sexual deverá ser realizada por exame de corpo de delito
(grifo nosso)2.
Art.3, III. Encaminhamento da vítima para o registro de ocorrência na delegacia especializada e,
não existindo, à Delegacia de Polícia que, por sua
vez, encaminhará para o Instituto Médico-Legal, órgão público subordinado à Secretaria de Estado da
Segurança Pública, visando a coleta de informações
e provas que possam ser úteis à identificação do
agressor e à comprovação da violência sexual(grifo
nosso)3.
Nota-se que o Projeto de Lei obriga a realização do exame de corpo de
delito para fins de comprovação da violência sexual, além da necessidade
do encaminhamento da vítima para o registro de ocorrência na delegacia especializada. É válido ressaltar que com a aprovação desse Projeto,
haverá um enorme retrocesso aos direitos das mulheres, até porque, a Lei
que resguarda as questões direcionadas ao atendimento das vítimas de
violência sexual, de número 12.845 de 2013 destaca pontos totalmente
divergentes dos propostos pelo Deputado Eduardo Cunha.
Art. 3. O atendimento imediato, obrigatório em todos os hospitais integrantes da rede do SUS, compreende os seguintes serviços:
I - diagnóstico e tratamento das lesões físicas no aparelho genital e nas demais áreas afetadas;
2. BRASIL. Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Projeto de Lei n. 5.069 de
2013. Acrescenta o art. 127-A ao Decreto- Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código
Penal. Autor: Deputado Eduardo Cunha. Relator: Deputado Evandro Gussi. Disponível em:
http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:qPJ25skvJ3gJ:www.camara.gov.br/
proposicoesWeb/prop_mostrarintegra%3Fcodteor%3D1381435%26filename%3DTramitac
ao-PL%2B5069/2013+&cd=4&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br. Acesso em 2 nov. 2015, p. 7.
3. BRASIL. Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Projeto de Lei n. 5.069 de
2013. Acrescenta o art. 127-A ao Decreto- Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código
Penal. Autor: Deputado Eduardo Cunha. Relator: Deputado Evandro Gussi. Disponível em:
http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:qPJ25skvJ3gJ:www.camara.gov.br/
proposicoesWeb/prop_mostrarintegra%3Fcodteor%3D1381435%26filename%3DTramitac
ao-PL%2B5069/2013+&cd=4&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br. Acesso em 2 nov. 2015, p. 7.
79
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
II - amparo médico, psicológico e social imediatos;
III - facilitação do registro da ocorrência e encaminhamento ao órgão de medicina legal e às
delegacias especializadas com informações que
possam ser úteis à identificação do agressor e à
comprovação da violência sexual;
IV - profilaxia da gravidez;
V - profilaxia das Doenças Sexualmente Transmissíveis - DST;
VI - coleta de material para realização do exame de
HIV para posterior acompanhamento e terapia;
VII - fornecimento de informações às vítimas sobre
os direitos legais e sobre todos os serviços sanitários
disponíveis.
§ 1o Os serviços de que trata esta Lei são prestados
de forma gratuita aos que deles necessitarem.
§ 2o No tratamento das lesões, caberá ao médico
preservar materiais que possam ser coletados no
exame médico legal.
§ 3o Cabe ao órgão de medicina legal o exame de
DNA para identificação do agressor(grifo nosso)4.
Nessa linha, é perceptível pelo artigo acima mencionado que há uma
facilitação no registro da ocorrência, além da profilaxia da gravidez, medida preventiva que também está sendo ameaçada pelo Projeto de Lei.A
Deputada Cristiane Brasil do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB-RJ)
ressalta que “a decisão sobre se ela quer ou não ir à delegacia deve ser
da mulher; mas, depois de ter seu corpo vilipendiado, nenhuma mulher
pode ser obrigada a fazer um exame de corpo de delito”5. Mas, mesmo
4. BRASIL. Lei n. 12.845 do ano de 2013. Dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral
de pessoas em situação de violência sexual. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12845.htm. Acesso em 2 nov. 2015.
5. BRASIL. Câmara dos Deputados. Câmara Notícias. Direito e Justiça. CCJ aprova mudança no atendimento a vítimas de violência sexual. 21 out. 2015. Disponível em: http://
www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITO-E-JUSTICA/498538-CCJ-APROVA-MUDANCA-NO-ATENDIMENTO-A-VITIMAS-DE-VIOLENCIA-SEXUAL.html.
Acesso em: 4 nov. 2015.
80
4 – O aborto e o exame de corpo de delito em casos de violência sexual:
análise do Projeto de Lei nº 5.069/2013 num viés do direito internacional
com todas as críticas, a proposta segue em tramitação para ser votado no
Plenário da Câmara. É importante lembrar ainda que a discussão em
torno do Projeto de Lei proposto pelo Deputado Eduardo Cunha não
condiz com o Supremo Tribunal Federal (STF), o qual defende a livre
manifestação, como no caso da descriminalização do porte de drogas
para consumo.
Além do que, projetos como esse demonstram que “a mulher gestante
não é considerada como um sujeito de direito com capacidade ética para
decidir sobre os aspectos mais íntimos e mais importantes da sua vida, tais
como o seu corpo, a sua sexualidade e reprodução6”. Mais do que isso, o
que se nota dos debates no Congresso Nacional é que,
As proposições legislativas que objetivam manter ou
aumentar a criminalização do aborto no Parlamento
brasileiro parecem estar em tensão com os princípios
liberais do Estado democrático de direito, em especial os que tratam da pluralidade e da diversidade de
crença, de pensamento e do pluralismo. Enfim, do
Estado que tem como um de seus principais fundamentos a garantia da dignidade da pessoa humana e
da cidadania7.
Ainda, a Deputada Erika Kokay do Partido dos Trabalhadores (PT-DF)
adverte que: “no Brasil, essa prática já não e atingida pelas políticas públicas e o projeto não ajuda a impedir gravidez indesejada. Isso é um retrocesso no atendimento as vítimas de violência8”.
Portanto, é preciso mais coerência e mais cuidado em relação a violência sexual e ao aborto, até porque é muito difícil a compreensão de um
6. EMELICK, Rulian. Religião e Direitos Reprodutivos: O aborto como campo de disputa
política e religiosa. Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2013, p. 269.
7. EMELICK, Rulian. Religião e Direitos Reprodutivos: O aborto como campo de disputa
política e religiosa. Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2013, p. 272.
8. CASTRO, Grasielle De. Huffpost Brasil. Projeto de Eduardo Cunha pode inviabilizar
atendimento às vítimas de estupro. Publicado em 23 set. 2015. Disponível em: http://
www.brasilpost.com.br/2015/09/23/inviabilizar-atendimento-estupro_n_8180080.html.
Acesso em: 03 nov. 2015.
81
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
homem em relação a esse assunto e a discussão será, praticamente, entre
homens, já que a Câmara dos Deputados possuem cinquenta e três mulheres frente a quatrocentos e sessenta homens e a chamada Comissão de
Constituição e Justiça e de Cidadania possui dez mulheres frente a cento
e vinte e dois homens.
O estupro e o exame de corpo de delito
De início, é importante mencionar que o termo “estupro” originou-se
do vocábulo stuprum per vim no direito romano9.Nessa época, era possível definir duas classes de mulheres, aquelas que estavam destinadas a
dar luz a filhos legítimos e aquelas destinadas a satisfazer sexualmente os
homens, classe em que estavam as mulheres sem moral para os romanos,
como no caso das concubinas10.
Com a evolução da sociedade romana, foi atríbuido alguns direitos à
mulher, mas, no que se refere a repressão aos crimes de violência sexual,
a mulher violentada era reconhecida como suspeita, devendo, em alguns
casos, ser punida11. Diante disso, o termo estupro, em sua origem, “compreendia uma série de condutas sexuais não bem individualizadas e que
geravam infâmia e vergonha como, v. g., os atos sexuais vio- lentos, homossexuais, sacrílegos e incestuosos”12. Assim, é possível observar que
desde o Direito Romano, o termo estupro é ligado a vergonha e a desonra.
9. CANELA, Kelly Cristina. O Estupro no Direito Romano. Disponível em: http://www.
culturaacademica.com.br/_img/arquivos/O_estupro_no_direito_romano-WEB_v2.pdf.
Acesso em: 3 nov. 2015, p. 11.
10. CANELA, Kelly Cristina. O Estupro no Direito Romano. São Paulo: Editora Cultura Acadêmica, 2012, 195f. Disponível em: http://www.culturaacademica.com.br/_img/
arquivos/O_estupro_no_direito_romano-WEB_v2.pdf. Acesso em: 3 nov. 2015, p. 24-28.
11. CANELA, Kelly Cristina. O Estupro no Direito Romano. São Paulo: Editora Cultura Acadêmica, 2012, 195f. Disponível em: http://www.culturaacademica.com.br/_img/
arquivos/O_estupro_no_direito_romano-WEB_v2.pdf. Acesso em: 3 nov. 2015, p. 24-28.
12. CANELA, Kelly Cristina. O Estupro no Direito Romano. Disponível em: http://www.
culturaacademica.com.br/_img/arquivos/O_estupro_no_direito_romano-WEB_v2.pdf.
Acesso em: 3 nov. 2015, p. 67.
82
4 – O aborto e o exame de corpo de delito em casos de violência sexual:
análise do Projeto de Lei nº 5.069/2013 num viés do direito internacional
No artigo 213 do Código Penal Brasileiro de 1940, o estupro estava previsto sob a redação: “Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência
ou grave ameaça”. Com o advento da Lei 12.015 de 2009, houve alteração do
nome do título “Dos Crimes Contra os Costumes” para “Dos Crimes Contra
a Dignidade Sexual”, protegendo a liberdade e a dignidade sexual da vítima.
Atualmente, é considerado estupro pelo artigo 213 do Código Penal
o ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter
conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro
ato libidinoso”13, com uma pena de reclusão de seis a dez anos.
Todavia, apesar da tificação do crime e da repugnância na sociedade, ainda hoje, vítimas de estupro se sentem envergonhadas, culpadas e
amedrontadas, por inúmeros fatores.Com a modificação pela Lei 12.015
de 2009, o bem jurídico tutelado passou a ser a dignidade e a liberdade
sexual da vítima, alcançando as prostitutas, o que representou um avanço
no direito brasileiro. Regis Prado menciona que:
O bem jurídico tutelado é a liberdade sexual da pessoa em sentido amplo (inclusive sua integridade e
autonomia sexual), que tem direito pleno à inviolabilidade carnal. Diz respeito ao livre consentimento ou
formação da vontade em matéria sexual14.
Diante disso, percebe-se que o bem jurídico tutelado pelo Estado não
foi somente a dignidade sexual, mas a liberdade também. Com isso, o indivíduo tem a autonomia para escolher com quem vai ou não se relacionar.
Renato Marcão e Plínio Gentil diferencia dignidade e liberdade sexual
afirmando que:
13. BRASIL. Lei 12.015 de 2009. Altera o Título VI da Parte Especial do Decreto-Lei no 2.848,
de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, e o art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de
1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do inciso XLIII do art. 5o da Constituição Federal e revoga a Lei no 2.252, de 1o de julho de 1954, que trata de corrupção
de menores. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/
l12015.htm. Acesso em: 3 nov. 2015.
14. PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: Parte especial – Arts. 121 a 249.
v. 2. 8. ed. Rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 599.
83
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
A adjetivação do conceito dignidade, com o qualificativo sexual, importa em reconhecer uma determinada dignidade, aquela em que o respeito alheio é
devido ao sujeito no que se refere à capacidade deste
se autodeterminar à atividade sexual. [...] A liberdade
sexual diz respeito diretamente ao corpo da pessoa
e ao uso que dele pretende fazer. Ao punir condutas
que obriguem o indivíduo a fazer o que não deseja,
ou a permitir que com ele se faça o que não quer com
o próprio corpo, a norma penal está tutelando sua liberdade sexual15.
Assim, o indivíduo possui autodeterminação e liberdade em decidir
com quem irá se relacionar ou não. No entanto, a vontade e a autonomia
do sujeito, em certos casos é violada. De acordo com a Secretaria de Segurança pública, os índices de violências sexuais contra a mulher no Brasil
continua alto.
No ano de 2015, entre os meses de janeiro a setembro, foram registrados na capital do Estado de São Paulo 1.55916 casos de estupro
em delegacias. Deste número, apenas 11817 casos foram registrados,
ou seja, apenas 7,5% do total. Além disso, no Distrito Federal foram
registradas 79 ocorrências de estupro em Agosto de 2013, com um
crescimento de 8,2% em relação ao mês anterior, sendo que 88,9% é
do sexo feminino18.
15. MARCÃO, Renato; GENTIL, Plínio. Crimes contra a dignidade sexual: comentários ao
Título VI do código penal. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 45-46.
16. BRASIL. Governo do Estado de São Paulo. Secretaria da Segurança Pública. Dados estatísticos do Estado de São Paulo. Disponível em: http://www.ssp.sp.gov.br/novaestatistica/
Mapas.aspx. Acesso em: 4 nov. 2015.
17. BRASIL. Governo do Estado de São Paulo. Secretaria da Segurança Pública. Estatísticas.
Violência contra a Mulher. Disponível em: http://www.ssp.sp.gov.br/novaestatistica/ViolenciaMulher.aspx. Acesso em: 4 nov. 2015.
18. BRASIL. Governo do Distrito Federal. Atendimento ao SIOSP. Informações Estatísticas
n. 08/2013 – NUACRI. 18 set. 2013. Acompanhamento Mensal Estupro. Agosto de
2013. Disponível em: http://www.ssp.df.gov.br/images/Estatistica%20SSPDF/Especificas/
Estupro/Agosto_2013_alterado_%20Acompanhamento%20estupro%20e%20estupro%20
de%20incapaz%203.pdf. Acesso em: 4 nov. 2015.
84
4 – O aborto e o exame de corpo de delito em casos de violência sexual:
análise do Projeto de Lei nº 5.069/2013 num viés do direito internacional
Nota-se, a partir dos números expostos acima que grande parcela de
mulheres brasileiras sofrem violências sexuais. Com tais violações à sua
dignidade e a sua integridade, sofrem danos psicológicos, além de aumentar o índice de gravidez e doenças sexualmente transmissíveis. O
problema é que ainda hoje a violência sexual é um crime subnotificado,
ou seja, as vítimas não comunicam o crime por inúmeras razões, dentre
elas a vergonha ao se expor e o medo do agressor, o qual muitas vezes
está próximo19.
O Ginecologista Jefferson Drezett, coordenador do projeto “Bem Me
Quer” do Hospital Pérola Byington, na região do Estado de São Paulo, o
qual é referência no atendimento de vítimas de violências sexuais, menciona que 90% das vítimas não denunciam o agressor e tampouco buscam
orientação médica. Além disso, afirma que:
Existe uma informação consolidada de que a maior
parte das pessoas que sofrem violência sexual não
vai procurar ajuda policial nem médica. A situação
brasileira não é diferente da encontrada na América Latina e Caribe. Apenas 10% a 15% denunciam.
[…] os principais motivos para que a denúncia não
seja consolidada são o medo de morte e da repetição
da violência, sensação de vergonha e humilhação e
sentimento de culpa20.
Ademais, Débora Diniz, diretora do Instituto de Bioética, Direitos
Humanos e Gênero afirma que estudos demonstram que as vítimas de
violência por pessoas próximas acreditam que fizeram algo de errado e não identificam (ou não querem) o abuso, sendo que segundo o
19. BEDONE, Aloísio José; FAÚNDES, Anibal. Atendimento integral às mulheres vítimas
de violência sexual: Centro de Assistência Integral à Saúde da Mulher, Universidade Estadual de Campinas. Disponível em: http://www.scielosp.org/pdf/csp/v23n2/24.pdf.
Acesso em: 3 nov. 2015, p. 467.
20. OLIVEIRA, Ana Flávia. 90% das mulheres estupradas não denunciam agressor, diz especialista. Violência Contra a Mulher. iG São Paulo. Publicação: 25 abril 2014. Disponível
em: http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2014-04-25/90-das-mulheres-estupradas-nao-denunciam-agressor-diz-especialista.html. Acesso em: 3 nov. 2015.
85
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
Ministério da Saúde, 70% dos estupros são cometidos por parentes e
conhecidos21.
Em uma pesquisa realizada com mulheres vítimas de estupro demonstrou a vulnerabilidade da vítima e as dificuldades enfrentadas em decorrência da violação sofrida. Foi constatado que:
uma parcela da população que denuncia nas delegacias não procura o atendimento médico-legal. Essa
realidade foi constatada nos relatos das mulheres e
nos casos atendidos na instituição de saúde, campo
desta pesquisa. As falas das entrevistadas que utilizaram esse serviço mostraram um constrangimento
por ocasião do exame de corpo de delito, apesar de
terem enfatizado a importância do procedimento
como necessário à comprovação do fato diante das
autoridades judiciais. Algumas falas exteriorizaram
satisfação e agilidade no atendimento. No entanto,
houve o relato de um caso no qual o examinador
médico submeteu a cliente no momento do exame a
interrogatórios irônicos, no intuito de responsabilizála pela violência sofrida. Isto aumentou o sofrimento
da vítima e causou péssima impressão a respeito do
atendimento22.
Desse modo, mesmo que o hoje, o Código Penal tutele a questão da
dignidade e liberdade sexual do sujeito, as razões mencionadas acima perduram nos dias atuais, provocando com que ocorrências não sejam registradas devidamente e tampouco a realização de exame de corpo de delito.
No caso do estupro, a vítima mulher está em uma condição de total violação, com sua dignidade, liberdade, autonomia, dentre inúmeros outros
21. MENA, Fernanda. Mulheres são processadas após denunciar crime de estupro.
São Paulo. Publicado em 25 out. 2015. Disponível em: http://m.folha.uol.com.br/
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22. SUDÁRIO, Sandra; ALMEIDA, Paulo César de; JORGE, Maria Salete Bessa. Mulheres
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86
4 – O aborto e o exame de corpo de delito em casos de violência sexual:
análise do Projeto de Lei nº 5.069/2013 num viés do direito internacional
direitos violados, além do desamparo, da humilhação e do medo que está
sofrente naquele momento. Por isso, a dificuldade na realização do exame
de corpo de delito. Muitas vezes a vítima não quer passar por todo aquele
processo novamente, mas simplesmente ser amparada e o exame desempenharia essa função de reviver o que aconteceu. Inclusive,
O exame de corpo de delito de conjunção carnal,
próprio nesses casos, também não costuma funcionar como prova concreta de violência sexual principalmente se a vítima for adulta e não virgem no
momento da agressão23.
Além do mais,
Segundo o serviço de atendimento a vítimas de violência sexual do Hospital Pérola Byington, de cada
10 mil mulheres atendidas, só 11% tinham traumas
físicos da agressão. Em 95% dos casos, elas não tinham sequer marcas nos genitais.Para especialistas
em crimes contra a mulher, o dado não é uma surpresa: cometido em ambiente privado e mediante grave
ameaça, o estupro e outras formas de violência sexual tendem a não deixar vestígios24.
Desse modo, o exame de corpo de delito não é uma prova essencial
para a vítima, até porque o próprio artigo 213 do Código Penal ressalta
que a prática de estupro pode ser por meio de conjunção carnal ou outro
ato libidinoso, o qual pode não ser constatado por meio do exame de corpo
de delito.
23. COULOURIS, Daniella Georges. Violência, Gênero e Impunidade: A Construção da Verdade nos casos de Estupro. Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de História
– O lugar da História. ANPUH/SP- UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom. Disponível em: http://www.anpuhsp.org.br/sp/downloads/CD%20XVII/ST%20VII/
Daniella%20Georges%20Coulouris.pdf. Acesso em 3 nov. 2015.
24. MENA, Fernanda. Mulheres são Processadas Após Denunciar Crime de Estupro.
São Paulo. Publicado em 25 out. 2015.Disponível em: http://m.folha.uol.com.br/
cotidiano/2015/10/1698267-mulheres-sao-processadas-apos-denunciarem-estupros.
shtml?mobile. Acesso em 3 nov. 2015.
87
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
Portanto, a dignidade e a liberdade sexual da vítima são violadas e
o exame de corpo de delito não pode ser considerado uma formalidade
necessária, fazendo com que a mesma reviva toda a situação novamente.
A prática do aborto em casos de violência sexual
O aborto é o ato de interrupção da gravidez, o qual resulta na morte do
feto, decorrendo de modo natural ou induzido. O direito brasileiro se preocupa com o segundo caso de aborto, o induzido, situação essa em que a
“expulsão” do feto e a consequente interrupção da gravidez foi ocasionada
por alguém.
A história do Brasil, contudo, foi marcada por uma grande influência
da igreja nos três âmbitos de poderes, tais como o legislativo, o executivo
e o judiciário, o que pode ainda ser notado na atualidade. Quanto a questões referentes à sexualidade, também é perceptível certos resquícios da
religião no direito.
O Estado brasileiro, desde a Constituição da República de1891, é definido como Estado laico, ou seja,
um Estado que é independente da igreja, ao mesmo tempo em que prima pelo respeito ao direito e
ao exercício de todas as religiões. No Brasil, com a
promulgação da Constituição Cidadã de 1988, foi
elevado ao status de Estado Democrático de direito,
estabelecendo/reiterando a total separação entre Estado e Igreja, proclamando não somente a liberdade
de religião, mas a total separação entre igreja e Estado (artigo 5, VI)25.
Nesse sentido, na legislação atual brasileira, em tese, os anseios da
igreja devem estar separados do Estado. No que diz respeito ao aborto, há
ainda muitos questionamentos acerca do tema. Hoje, no Brasil, a privação intencional do nascimentoé considerado, pela legislação nacional, um
25. EMELICK, Rulian. Aborto: (des)criminalização, direitos humanos e democracia. Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2008, p. 116.
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4 – O aborto e o exame de corpo de delito em casos de violência sexual:
análise do Projeto de Lei nº 5.069/2013 num viés do direito internacional
crime pelo artigo 124 do Código Penal Brasileiro: “provocar aborto em si
mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena - detenção, de um a
três anos”26.
Desse modo, caso o aborto seja provocado pela própria gestante ou
com seu consentimento, pelo direito brasileiro, há um crime com pena de
detenção de um a três anos. No entanto, há exceções a essa regra imposta
pelo artigo supramencionado. Uma delas está prevista no artigo 128 do
Código Penal, o qual menciona que:
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou,
quando incapaz, de seu representante legal(grifo
nosso)27.
Então, se a gravidez for resultado de uma violência sexual, há a possibilidade do aborto, desde que com seu consentimento ou por seu representante legal, quando incapaz. Como bem esclarece Daniel Sarmento,
É possível concluir que a ordem constituticional
brasileira protege a vida intra-uterina, mas que essa
protectão é menos intense do que a asseguranda à
vidas das pessoas nascidas, podendo ceder, mediante
uma ponderação de interesses, diante de direitos
fundamentais da gestante. E pode-se também afirmar
que a tutela da vida do nascituro é mais intensa no
final do que no início da gestação, tendo em vista
o estágio de desenvolvimento fetal correspondente,
sendo certo que tal fator deve ter especial regime
jurídico do aborto28.
26. BRASIL. Decreto-lei n. 2.848 de 1940. Código Penal. Disponível em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm. Acesso em: 3 nov. 2015.
27. BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848 de 1940. Código Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm. Acesso em: 3 nov. 2015.
28. SARMENTO, Daniel. Legalização do aborto e constituição. In: CAVALCANTE, Alcilene; XAVIER, Dulce. Em defesa da vida: aborto e direitos humanos. São Paulo: Católicas
pelo Direito de Decidir-CDD, 2006, p. 150.
89
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
Em 2013, a Lei 12.845, ampliou as garantias para a gestante vítima
de abuso sexual, ao regular o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual. Dispondo que os hospitais devem
oferecer atendimento emergencial, integral e multidisciplinar as vítimas
para reduzir os danos físicos e psíquicos29.
Além disso, a Lei estabeleceu que a violência sexual são todas as formas de atividade sexual não consentida, demonstrando que não é necessário para a caracterização do estupro, apenas a conjunção carnal. Por último, é também garantido as vítimas de violências sexuais a facilitação do
registro da ocorrência e o encaminhamento ao órgão de medicina legal e
às delegacies especializadas, bem como a profilaxia da gravidez30.
Percebe-se, que a Lei 12.845/13 traz inúmeras disposições que
ampliam o amparo as vítimas de estupro no Brasil, representando um
avanço nessa seara no que diz respeito aos direitos das mulheres, já que
além de prevenir a gravidez com a profilaxia, garante meios de atenuar
os danos físicos e psíquicos sofridos por esses sujeitos. No entanto,
com a proposta do Projeto de Lei n. 5.069/13 pelo Deputado Eduardo
Cunha, os direitos conquistados por meio da Lei acima mencionada
serão reduzidos.
Isso porque, tal Projeto além de não estipular o que é considerado substância abortiva – dando margem à proibição da pílula do dia seguinte, considerada medida preventiva – prevê a obrigatoriedade do exame de corpo
de delito em vítimas de violências sexuais. Veja,
Art. 134-A. Anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto:
Pena – detenção, de seis meses a dois anos, se o fato
não constitui crime mais grave.
29. BRASIL. Lei 12.845 de 2013. Dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2011-2014/2013/lei/l12845.htm. Acesso em: 4 nov. 2015.
30. BRASIL. Lei 12.845 de 2013. Dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2011-2014/2013/lei/l12845.htm. Acesso em: 4 nov. 2015.
90
4 – O aborto e o exame de corpo de delito em casos de violência sexual:
análise do Projeto de Lei nº 5.069/2013 num viés do direito internacional
Parágrafo único. Se o crime é cometido por agente
de serviço público de saúde ou por quem exerce a
profissão de médico, farmacêutico ou enfermeiro:
Pena – detenção, de um a três anos, se o fato não
constitui crime mais grave.(grifo nosso)31.
Art. 2. Considera-se violência sexual, para os efeitos
desta Lei, as práticas descritas como típicas no Título
VI da Parte Especial do Código Penal (Crimes contra
a Liberdade Sexual), Decreto-Lei no 2.848, de 7 de
dezembro de 1940, em que resultam danos físicos e
psicológicos.
Parágrafo único. A prova da violência sexual deverá ser realizada por exame de corpo de delito
(grifo nosso)32.
Inclusive, quanto a questão da profilaxia da gravidez, a deputada Maria
do Rosário (PT-RS) adverte que: “Ficará a critério do médico julgar se a
pílula do dia seguinte, por exemplo, é abortiva ou não. Se ele achar que é,
a mulher não poderá receber, alertanto pela razoabilidade do projeto, ao
considerar que o projeto é uma “antessala” da proibição da pílula.Também, como já explanado no presente trabalho, há um número expressivo
de mulheres vítimas de violências sexuais que não realizam o exame de
corpo de delito, em detrimento da humilhação, do medo e do desgaste
emocional que sofrerão novamente. Nesse sentido, um estudo realizado
no segundo semestre do ano de 1998 retrata que:
31. BRASIL. Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Projeto de Lei n. 5.069 de
2013. Acrescenta o art. 127-A ao Decreto- Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código
Penal. Autor: Deputado Eduardo Cunha. Relator: Deputado Evandro Gussi. Disponível em:
http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:qPJ25skvJ3gJ:www.camara.gov.br/
proposicoesWeb/prop_mostrarintegra%3Fcodteor%3D1381435%26filename%3DTramitac
ao-PL%2B5069/2013+&cd=4&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br. Acesso em: 2 nov. 2015, p. 5.
32. BRASIL. Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Projeto de Lei n. 5.069 de
2013. Acrescenta o art. 127-A ao Decreto- Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código
Penal. Autor: Deputado Eduardo Cunha. Relator: Deputado Evandro Gussi. Disponível em:
http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:qPJ25skvJ3gJ:www.camara.gov.br/
proposicoesWeb/prop_mostrarintegra%3Fcodteor%3D1381435%26filename%3DTramitac
ao-PL%2B5069/2013+&cd=4&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br. Acesso em: 2 nov. 2015, p. 7.
91
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
Nesse período, foram atendidas 109 mulheres
grávidas em decorrência do estupro, dentre as quais,
71 optaram por interromper a gestação, 23 optaram
por não interromper. Em 15 casos não foi possível,
por questões médicas, atender à solicitação33.
Nesse diapasão, o estudo demonstra que nos casos de gravidez por
estupro, 65% das mulheres optam por interromper a gestação. Mas, em
2015, entre os meses de janeiro a setembro, a capital do Estado de São
Paulo apresentou um número de 1.55934 casos de violências sexuais nas
delegacias, porém, apenas 11835 foram registrados, isto é, um percentual
de 7,5%.
Além disso, em uma pesquisa desenvolvida em três hospitais públicos pela Universidade Federal de São Paulo, destacou que em “um total de 8.600 atendimentos realizados entre 1998 e 2003, apenas cerca de
10% das vítimas haviam dado queixa à polícia36”. Ainda, de acordo com
o serviço prestado pelo Hospital Pérola Byington37, em cada dez mil mulheres atendidas, apenas 11% apresentam traumas físicos decorrentes de
violências sexuais, bem como o artigo 213do Código Penal, realça que o
estupro não se refere apenas a conjunção carnal, mas a atos libidinosos.
33. BEDONE, Aloísio José; FAÚNDES, Anibal. Atendimento integral às mulheres vítimas
de violência sexual: Centro de Assistência Integral à Saúde da Mulher, Universidade
Estadual de Campinas. Disponível em: http://www.scielosp.org/pdf/csp/v23n2/24.pdf.
Acesso em: 3 nov. 2015, p. 466.
34. BRASIL. Governo do Estado de São Paulo. Secretaria da Segurança Pública. Dados estatísticos do Estado de São Paulo. Disponível em: http://www.ssp.sp.gov.br/novaestatistica/
Mapas.aspx. Acesso em: 4 nov. 2015.
35. BRASIL. Governo do Estado de São Paulo. Secretaria da Segurança Pública. Estatísticas.
Violência contra a Mulher. Disponível em: http://www.ssp.sp.gov.br/novaestatistica/ViolenciaMulher.aspx. Acesso em: 4 nov. 2015.
36. VILLELA, Wilza; LAGO, Tânia. Conquistas e desafios no atendimento das mulheres
que sofreram violência sexual. http://www.scielosp.org/pdf/csp/v23n2/25.pdf. Acesso em:
4 nov. 2015, p. 474.
37. MENA, Fernanda. Mulheres são processadas após denunciar crime de estupro.
São Paulo. Publicado em 25 out. 2015. Disponível em: http://m.folha.uol.com.br/
cotidiano/2015/10/1698267-mulheres-sao-processadas-apos-denunciarem-estupros.
shtml?mobile. Acesso em: 3 nov. 2015.
92
4 – O aborto e o exame de corpo de delito em casos de violência sexual:
análise do Projeto de Lei nº 5.069/2013 num viés do direito internacional
Para a Deputada Cristina Brasil do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB-RJ), afirma que após um estupro, nenhuma mulher pode ser obrigada a
fazer um exame de corpo de delito38. Inclusive, a Constituição Federal de
1988 garante:
Art. 1. A República Federativa do Brasil, formada
pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo politico (grifo nosso)39.
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem,
com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde,
à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além
de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão.
§ 4º A lei punirá severamente o abuso, a violência e a
exploração sexual da criança e do adolescente (grifo
nosso)40.
38. BRASIL. Câmara dos Deputados. Câmara Notícias. CCJ aprova mudança no atendimento a vítimas de violência sexual. Publicado em 21 out. 2015. Disponível em: http://
www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITO-E-JUSTICA/498538-CCJ-APROVA-MUDANCA-NO-ATENDIMENTO-A-VITIMAS-DE-VIOLENCIA-SEXUAL.html.
Acesso em: 3 nov. 2015.
39. BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 4 nov. 2015.
40. BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 4 nov. 2015.
93
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
Com isso, é possível apreender desses dois artigos da Constituição que
é assegurado aos cidadãos brasileiros a dignidade da pessoa humana e que
a lei punirá os abusos, a violência e a exploração sexual. Diante de todas
as evidências expostas acima, nota-se que, além da Constituição Federal
assegurar os direitos fundamentais da pessoa humana e o próprio Código
Penal, em seu artigo 213, ressaltar que não é necessário a conjunção carnal
para a caracterização do estupro, há uma tendência, das vítimas de violências sexuais, em não registrar a ocorrência nas delegacias, por inúmeros
fatores.
Portanto, o Projeto de Lei n. 5.069 de 2013 que visa obrigar as
mulheres que sofreram abusos sexuais para realizar o aborto legal,
irá reduzir o âmbito de proteção que a Lei 12.845/13 proporcionou
as mulheres brasileiras, até porque não é razoável o Estado permitir
mais um abuso em torno da dignidade da mulher vítima de estupro.
A prática do aborto na américa do sul: uma análise
comparativa internacional
O aborto, em regra, é um crime que atenta contra à vida do nascituro,
no entanto, há exceções. No caso do estupro, há a possibilidade de concessão do chamado “aborto humanitário”, não passível de punição pela
legislação brasileira atual.
No Brasil, a legislação brasileira contribuiu para que as vítimas de violência sexual fossem amparadas. Todavia, a proposta do Projeto de Lei n.
5.069/2013 visa restringir os avanços conquistados ao impor o exame de
corpo de delito, além de medidas outras, necessárias para a realização do
aborto, mesmo não sendo provas essenciais. Isso porque o próprio Código
Penal realça, por meio do artigo 213, que a prática do estupro pode ser por
meio de outros atos libidinosos, os quais não podem ser constatados por
meio de exame de corpo de delito.
Por isso, far-se-á necessário analisar o entendimento de alguns países da América do Sul para verificar qual a tendência compreendida pelos vizinhos, até porque, cerca de 19 milhões dos abortos são inseguros,
94
4 – O aborto e o exame de corpo de delito em casos de violência sexual:
análise do Projeto de Lei nº 5.069/2013 num viés do direito internacional
resultando na morte de 70 mil mulheres, de acordo a Organização Mundial
de Saúde (OMS) e, conforme a Organização das Nações Unidas (ONU),
quanto maior forem as restrições, mais irá aumentar a mortalidade por
abortos inseguros41.
O quadro abaixo demonstra a situação do aborto na América Latina, no
entanto, o presente estudo fará uma análise mais detalhada dos seguintes
países: Argentina, Chile, Nicarágua, Paraguai e Uruguai.
Fonte: Folha de São Paulo42.
41. ROCCELO, Mariane. Saiba como o aborto é regulamentado em sete países. OperaMundi. São Paulo, 28 de abril de 2014. Disponível em: http://operamundi.uol.com.br/conteudo/reportagens/35023/saiba+como+o+aborto+e+regulamentado+em+sete+paises.shtml.
Acesso em: 01 jan. 2016.
42. COLOMBO, Sylvia. Caso no Paraguai reaviva debate sobre aborto na América Latina.
17 maio 2015. Folha de São Paulo. São Paulo. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.
br/mundo/2015/05/1629909-caso-no-paraguai-reaviva-debate-sobre-aborto-na-america-latina.shtml. Acesso em: 03 jan. 2016.
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Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
No caso da Argentina, conforme o artigo 86 do Código Penal, o aborto
é permitido nos casos em que há risco à vida e à saúde da mulher, violência sexual ou abuso de incapaz43, sendo ainda mais limitado em certas
províncias44. Atualmente, o Congresso discute acerca da discriminalização, tendo em vista o crescimento dos índices de mortalidade materna.
Inclusive, os dados oficiais demonstram um número de 500 mil abortos
por ano no país45, cerca de 40% das gestações totais, conforme Marcelo
Guz, chefe de Maternidade Hospital Alvarez46.
Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), a Argentina é um dos
países que apresenta um dos maiores índices de abortos por número de
nascimentos, sendo a maioria clandestino47.
No Chile, o aborto é proibido, sem exceções. A proposta de descriminalização em casos de estupro, risco de vida e má formação ainda está
em trâmite no Congresso, o que resolveria 5% das 70 mil interrupções de
gravidez por ano48.
43. ARGENTINA. Código Penal de la Nación Argentina. Lei 11.179/84. Disponível em:
http://www.oas.org/juridico/spanish/mesicic3_arg_codigo_penal.htm. Acesso em: 01 jan.
2015.
44. S. PALOMINO; R. MONTES; D. M. PÉREZ. A odisseia das mulheres pelo direito ao
aborto na América Latina. Bogotá / Santiago de Chile / México. 12 nov. 2015. Disponível
em: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/11/12/politica/1447363622_824364.html. Acesso
em: 01 jan. 2016.
45. ROCCELO, Mariane. Saiba como o aborto é regulamentado em sete países. OperaMundi. São Paulo, 28 de abril de 2014. Disponível em:http://operamundi.uol.com.br/conteudo/reportagens/35023/saiba+como+o+aborto+e+regulamentado+em+sete+paises.shtml.
Acesso em: 01 jan. 2016.
46. JASTREBLANSKY, Maia. Las cifras del aborto clandestino en el país. La Nación. 9 de
agosto de 2011. Disponível em: http://www.lanacion.com.ar/1396232-las-cifras-del-aborto-clandestino-en-el-pais. Acesso em: 02 jan. 2016.
47. S. PALOMINO; R. MONTES; D. M. PÉREZ. A odisseia das mulheres pelo direito ao
aborto na América Latina. Bogotá / Santiago de Chile / México. 12 nov. 2015. Disponível
em: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/11/12/politica/1447363622_824364.html. Acesso
em: 01 jan. 2016.
48. S. PALOMINO; R. MONTES; D. M. PÉREZ. A odisseia das mulheres pelo direito ao
aborto na América Latina. Bogotá / Santiago de Chile / México. 12 nov. 2015. Disponível
em: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/11/12/politica/1447363622_824364.html. Acesso
em: 01 jan. 2016.
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4 – O aborto e o exame de corpo de delito em casos de violência sexual:
análise do Projeto de Lei nº 5.069/2013 num viés do direito internacional
Entre os anos de 2001 e 2012, foram registrados mais de 395 mil abortos no Chile49. Além disso, o Ministério da Saúde50 afirma que: “33.000
abortos por año, es decir 90 abortos diarios en promedio. Sin embargo,
otros estudios estiman la cifra entre 60.000 a 70.000 abortos al año, mientras que otros la sitúan en 160.000 abortos por año”51.
Vale ressaltar ainda que 75% dos abortos inseguros mundialmente,
ocorrem em países como a Nicarágua, conforme o Guttmacher Institute.
Ainda,
Una encuesta realizada por el Colectivo de Mujeres de Matagalpa entre 2003 y 2009 evidenció que
el 66% de 3,918 mujeres consultadas en este departamento dijeron haberse practicado un aborto satisfactoriamente. Este colectivo continúa registrando
abortos. […] el aborto se ha convertido en una actividad clandestina difícil de detener. Como resultado,
ha cobrado la vida de muchas mujeres, a quienes les
ha sido denegado su derecho de decidir sobre cuándo
es el momento indicado para tener un hijo sin poner en riesgo su salud o su vida. La imposibilidad
de tener un aborto seguro, no cambia la decisión de
las mujeres, aun si significa que romperán las leyes,
aseguran.
49. FONTENELE, Cristina. No Chile, mulheres grávidas por estupro ainda não têm direito a
um aborto legal e seguro. Adital. 15 out. 2015. Disponível em: http://site.adital.com.br/site/
noticia.php?lang=PT&cod=86854. Acesso em: 01 jan. 2016.
50. Amnistia Internacional. Fatos e números. Disponível em: http://amnistia.cl/web/wp-content/uploads/2015/08/PRINCIPALES-DATOS-Y-CIFRAS-SOBRE-ABORTO-EN-CHILE.pdf. Acesso em: 01 jan. 2016.
51. Tradução: 33.000 abortos são realizados a cada ano, ou seja, 90 abortos por dia, em média.
No entanto, outros estudos colocam o número entre 60.000 a 70.000 abortos por ano, enquanto outros situou-se em 160.000 abortos por ano
97
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
De hecho, existe poca relación entre el estatus legal
del aborto y la cantidad de veces que ocurre5253.
No Paraguai, o aborto só é permitido quando há risco grave à vida da
mulher. Assim, em casos de estupro, há proibição54. Como consequência,
o país está em terceiro lugar nos casos de morte materna América Latina,
segundo o Ministério da Saúde55.
Já no Uruguai, o entendimento é no sentido de dar às mulheres o direito de liberdade, o que irá refletir na redução de morte maternal, doenças
e número de abortos, o subsecretario de Saúde Pública, Leonel Briozzo,
destacou que56:
la ley de defensa de los derechos humanos y reproductivos y la de interrupción del embarazo como dos
grandes componentes del conjunto de normas que
tienen como objetivo “que las mujeres puedan decidir qué es lo mejor para su vida y su salud y que,
desde el ámbito sanitario, se las ayude a la toma de
52. Tradução: Uma pesquisa realizada pelo Coletivo de Mulheres de Matagalpa entre 2003
e 2009 mostrou que 66% das 3.918 mulheres pesquisadas neste departamento disse ter
tido um aborto com sucesso. Este grupo continua a computar abortos. […] o aborto illegal
tornou-se uma atividade difícil de parar. Como resultado, custou a vida de muitas mulheres,
que foram negados o direito de decidir quando é o momento certo para ter um filho sem
arriscar sua saúde ou vida. A impossibilidade de ter um aborto seguro, não altera a decisão
das mulheres, mesmo que isso signifique quebrar a lei, dizem. Na verdade, há pouca relação
entre o status legal do aborto e do número de vezes que ele ocorre.
53. BERMÚDEZ, Violeta. Aborto inseguro mata a 47 mil mujeres al año. 18 jun. 2014.Confidencial. Disponível em: http://www.confidencial.com.ni/archivos/articulo/17968/aborto-inseguro-mata-a-47-mil-mujeres-al-ano#sthash.1hJc7cIi.dpuf. Acesso em: 02 jan. 2016.
54. S. PALOMINO; R. MONTES; D. M. PÉREZ. A odisseia das mulheres pelo direito ao
aborto na América Latina. Bogotá / Santiago de Chile / México. 12 nov. 2015. Disponível
em: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/11/12/politica/1447363622_824364.html. Acesso
em: 01 jan. 2016.
55. Aborto en Latino América. Leys en Paraguay. Disponível em: http://abortolatinoamerica.
com/aborto/legislacion/976-2/. Acesso em: 03 jan. 2016.
56. ARGENTINA. Ministério de la Salud. Día de acción por la salud de la mujer: Uruguay
tiene las tasas más bajas de aborto y mortalidad materna de América. 29 maio 2014.
http://www.msp.gub.uy/noticia/d%C3%ADa-de-acción-por-la-salud-de-la-mujer-uruguay-tiene-las-tasas-más-bajas-de-aborto-y. Acesso em: 01 jan. 2016.
98
4 – O aborto e o exame de corpo de delito em casos de violência sexual:
análise do Projeto de Lei nº 5.069/2013 num viés do direito internacional
decisiones conscientes de que contribuyan a disminuir enfermedades, la muerte materna y el número
de abortos”57.
Briozzo esclareceu ainda que o índice de aborto no Uruguai é um dos
mais reduzidos do mundo, garantindo o terceiro lugar da América Latina,
tendo em vista a baixa taxa de mortalidade materna. Isso por conta das
políticas de redução de riscos e danos que o Governo vem desenvolvendo
durante os últimos anos58.
Em suma, há diferenças nas formas de procedimentos dos países na
América Latina acerca do aborto, tendo em vista o prazo de interrupção da
gravidez, dentre outros fatores para assegurar a permissão ou não. O que
se percebe, entretanto, é que nos países em que há a proibição parcial ou
total do aborto, os índices de aborto clandestinocontinuaram o mesmo ou
houve um crescimento.
Diferentemente do que ocorreu no caso do Uruguai, por exemplo, com
a introdução das políticas de redução de riscos e danos nos últimos anos,
as taxas de aborto e mortalidade materna diminuíram.
Deve, portanto, ser garantido o direito à vida, à saúde, à integridade,
tanto da mãe, quanto da criança, para que esses números sejam reduzidos.
No Brasil, a política realizada por meio do Projeto de Lei n.5.069/2013
contribui para o retrocesso, o qual não irá diminuir os riscos, mas sim
aumentar ainda mais os problemas de saúde pública.
57. Tradução: A lei de defesa dos direitos humanos e reprodutivos e a interrupção da gravidez
como dois componentes principais do conjunto de regras que visam “capacitar as mulheres
para decidir o que é melhor para a sua vida e sua saúde e que, desde o setor da saúde, ele vai
ajudar a tomada de consciência para ajudar a reduzir a doença, a morte materna e o número
de decisões abortos”.
58. ARGENTINA. Ministério de la Salud. Día de acción por la salud de la mujer: Uruguay
tiene las tasas más bajas de aborto y mortalidad materna de América. 29 maio 2014.
http://www.msp.gub.uy/noticia/d%C3%ADa-de-acción-por-la-salud-de-la-mujer-uruguay-tiene-las-tasas-más-bajas-de-aborto-y. Acesso em: 01 jan. 2016.
99
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
Considerações finais
A legislação constitucional e infraconstitucional que ampara o direito
das mulheres foi fruto de muita luta. No entanto, ainda, em pleno século
XXI, o número de violências sexuais é bastante expressive.
Nesse sentido, no ano de 2013, a Lei 12.845 ampliou as garantias da
gestante vítima de abuso sexual, ao dispor que os hospitais devem oferecer atendimento integral, com a finalidade de reduzir os danos. A Lei ressalta, inclusive, que não é necessário o ato de conjunção carnal para a
caracterização do estupro, já que toda atividade não consentida é forma
de violência.
Todavia, o Projeto de Lei 5.069 de 2013, proposto pelo Deputado Eduardo Cunha, o qual está tramitando para votação no Plenário da Câmara,
põe em xeque algumas garantias asseguradas tanto pela Lei 12.845/13,
quanto pela própria Constituição Federal Brasileira.
Isso porque, tal Projeto, caso seja aprovado, além de dificultar a
questão da profilaxia da gravidez, vai impedir o aborto legal de vítimas
de violência sexual, nos casos em que não forem realizados o exame de
corpo de delito.
Assim, nesse caso, o exame de corpo de delito seria imprescindível
para a realização do aborto e a caracterização da violência sexual, o que
traz inúmeros retrocessos, já que a própria Lei 12.845/13 estabelece medidas para diminuir os danos físicos e psíquicos causados em mulheres
vítimas de violência sexual.
Portanto, não é razoável e nem compatível com os princípios elencados
na Constituição Federal a aprovação do Projeto de Lei n. 5.069 do ano de
2013.
100
4 – O aborto e o exame de corpo de delito em casos de violência sexual:
análise do Projeto de Lei nº 5.069/2013 num viés do direito internacional
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101
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
_______. Lei 12.015 de 2009. Altera o Título VI da Parte Especial do Decreto-Lei no 2.848, de
7 de dezembro de 1940 - Código Penal, e o art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990,
que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do inciso XLIII do art. 5o da Constituição
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102
4 – O aborto e o exame de corpo de delito em casos de violência sexual:
análise do Projeto de Lei nº 5.069/2013 num viés do direito internacional
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nov. 2015.
103
5
O controle difuso de convencionalidade no Brasil: soluções
para seu aprimoramento
Breno Baía Magalhães1
Considerações iniciais
A introdução do controle de convencionalidade no âmbito das obrigações estatais estipuladas pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos
(CADH) alterou, significativamente, os paradigmas acerca da relação entre
as normas do tratado e as normas constitucionais dos Estados-partes. A partir
da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CtIDH) no caso
Almonacid Arellano, o Poder Judiciário está obrigado a declarar, via controle
difuso de convencionalidade, a invalidade (ou inefetividade) das leis internas
que contrastarem com o tratado internacional.
A obrigatoriedade de o judiciário controlar a convencionalidade da produção normativa interna com base paramétrica direta em um tratado internacional e com a jurisprudência do órgão judicial incumbido de concretizá-lo parece demandar os seguintes pré-requisitos do Poder Judiciário e da Constituição
brasileira: a) as normas do tratado internacional deverão ser diretamente aplicadas pelos órgãos judiciais internos para que possa servir de parâmetro; b) o
tratado deverá estar situado em posição hierárquica superior, ao menos, das
leis ordinárias; c) o Poder Judiciário deverá ser competente para realizar a
função de declarar a invalidade ou inefetividade das leis internas do país e
1. Mestre e Doutor pela Universidade Federal do Pará (UFPA), professor da Universidade da Amazônia (UNAMA) e das Faculdades Integradas Brasil Amazônia (FIBRA). Visiting Scholar na
Washington College of Law, American University. E-mail: brenobaiamag@gmail.com.
d) os precedentes da CtIDH deverão ser seguidos, não pela sua correção
material, mas por sua autoridade.
Tais pré-requisitos podem passar despercebidos em análises superficiais
do controle de convencionalidade em nosso ordenamento jurídico, mas devem ser discutidos para que suas ausências ou deficiências não constituam
perigoso entrave para o exercício de importante obrigação internacional.
Em nosso país, por exemplo, a CADH possui status supralegal, há uma
resistência de citação de precedentes da CtIDH e o Supremo Tribunal Federal (STF) não está habilitado à exercer o controle concentrado de constitucionalidade tendo como parâmetro tratados internacionais de direitos
humanos de natureza supralegal. Tais características podem explicar a
prática vacilante do controle de convencionalidade, além de expor o país
à responsabilização internacional por violações de direitos humanos. O
artigo pretende enfrentar as vias pelas quais esses pré-requisitos se apresentam no ordenamento jurídico brasileiro e oferecer soluções para que
possam ser aprimorados ou instaurados.
O controle de convencionalidade: premissas e
características do instituto.
Inicialmente, não podemos assumir como mero acaso a CtIDH ter atribuído às instituições internas (especialmente ao Poder Judiciário) o dever
de realizar o referido controle, aproximadamente, vinte anos após sua primeira decisão contenciosa. Possíveis respostas estão nas novas circunstâncias políticas das democracias americanas e na alteração da natureza
dos direitos humanos convencionais.
Antes da redemocratização da América Latina, o Poder Judiciário era
considerado pela CtIDH como débil protetor de direitos humanos, além
de ser órgão estatal promotor de algumas violações de direitos humanos
(especialmente as de ordem processual). Contudo, com o fortalecimento
do Judiciário interno, a corte interamericana sentiu-se confortável para
conclamá-lo para exercer a fiscalização da produção interna de acordo
105
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
com a jurisprudência de São José. Ou seja, antes, a corte interamericana
considerou impróprio mostrar deferência aos regimes constitucionais que
não tinham qualquer autoridade democrática. No entanto, hodiernamente,
o controle de convencionalidade pode ser interpretado como um passo
dado pela corte interamericana para o compartilhamento, com os sistemas
constitucionais, do desenvolvimento dos direitos humanos americanos,
porque integra a visão cooperativa da construção das normas da CADH,
em contraposição a uma postura adversarial2.
A primeira vez que a CtIDH, e não apenas um de seus juízes3, instituiu o controle de convencionalidade ocorreu em Almonacid Arellano y
otros Vs. Chile (2006), ocasião em que a corte interamericana afirmou
que os juízes, enquanto órgãos do Estado, estariam submetidos à CADH
e, portanto, obrigados à velar para que suas disposições não fossem obstaculizadas pela aplicação de leis contrárias ao seu objetivo e finalidade. E,
ao realizar juízo de compatibilidade entre as leis nacionais e a CADH, o
Poder Judiciário deveria levar em consideração a interpretação da CtIDH,
intérprete final da CADH4.
Pouco tempo depois de seu pronunciamento inicial sobre o tema, a
corte definiu que o teste de convencionalidade das normas internas deveria ser realizado ex oficio, por todos os órgãos do Poder Judiciário, desde
que dentro de suas competências e regulações processuais respectivas5.
Anos mais tarde, acrescentou que todos os órgãos estatais deveriam realizar o controle, e não apenas o Poder Judiciário6, na medida em que o
2. No mesmo sentido, cf. Ariel Dulitzky (2015, p. 55). O autor afirma que a atribuição do
controle de convencionalidade decorreu da confiança tardia depositada pela CtIDH no
Judiciário das democracias americanas.
3. Cf. voto concorrente de Sergio García Ramírez no Caso Myrna Mack Chang Vs. Guatemala,
Sentencia de 25 de noviembre de 2003, Serie C, nº 101.
4. Caso Almonacid Arellano y otros Vs. Chile. nº 154, § 124.
5. Caso Trabajadores Cesados del Congreso (Aguado Alfaro y otros) Vs. Perú. Excepciones
Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de noviembre de 2006. Serie
C No. 158, § 128.
6. Caso Gelman Vs. Uruguay, § 193.
106
5 – O controle difuso de convencionalidade no Brasil: soluções para seu aprimoramento
exercício do controle requereria a adequação das interpretações judiciais,
administrativas e das garantias judiciais aos princípios estabelecidos na
jurisprudência da CtIDH.
A obrigação internacional de realizar o controle de convencionalidade
não está presente nas normas da CADH e a corte de São José elencou os
seguintes fundamentos normativos como justificativa do instituto: 1) o
princípio do direito internacional pacta sunt servanda; 2) o cumprimento
estatal de boa-fé das obrigações internacionais; 3) a impossibilidade estatal de alegar disposições internas para justificar o descumprimento de
compromissos internacionais (art. 27, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969); 4) obrigação estatal de adequação normativa
do direito interno às disposições da convenção americana (arts. 1º e 2º, da
CADH); e 5) garantia do efeito útil dos termos do tratado internacional
(BAZÁN, 2013, p. 599-601).
Vale ressaltar que tais obrigações genéricas decorrentes da convenção
devem ser cumpridas de forma preventiva, ou seja, não são obrigações
determinadas posteriormente à condenação do Estado requerido7.
Poderíamos sintetizar, portanto, o teste de convencionalidade das normas internas em sua versão difusa8 (exercido pelos órgãos estatais internos
e não pela CtIDH), com os recortes necessários à nossa abordagem, da
seguinte maneira: inobstante a estruturação judiciária do país e o status
atribuído à CADH pela Constituição nacional, os juízes deverão, de ofício, adequar, obrigatoriamente, as interpretações judiciais e a produção
7. Castilla (2011, p. 608) acrescenta que existem algumas precondições para o exercício do
controle de convencionalidade (selecionamos as principais e as mais pertinentes à análise
do trabalho): 1) vigência de um tratado internacional; 2) primazia do tratado internacional
sobre qualquer outra norma nacional, inclusive sobre a Constituição; e 3) competência
institucional para a declaração de violação de uma obrigação internacional. O autor sugere
que são essas precondições que permitem que o controle de convencionalidade seja exercido
pela CtIDH em sua totalidade, mas acrescenta que elas tornariam a tarefa impossível para os
tribunais internos. O presente artigo parte de pressupostos semelhantes.
8. Cf. Voto Razonado de Mac-Gregor no Caso Cabrera García y Montiel Flores Vs. México.
Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 26 de noviembre de
2010 Serie C No. 220, § 13-14.
107
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
normativa estatal (decisões judiciais, atos administrativos, leis e a Constituição) à jurisprudência da CtIDH.
As consequências do controle difuso de
convencionalidade para o ordenamento jurídico
brasileiro: soluções para seu aprimoramento.
Não obstante as afirmações da CtIDH acerca da forma de realização do
controle de convencionalidade identificados no último parágrafo aparentarem reduzido impacto na prática do Judiciário nacional, uma investigação mais atenta pode demonstrar que os atuais contornos procedimentais
e jurisprudenciais brasileiros contrariam as determinações da corte interamericana e podem inviabilizar o exercício da obrigação internacional por
parte do judiciário brasileiro, caso não sejam aprimorados9.
O status hierárquico da CADH: A supralegalidade é suficiente?
Seguindo a prática do direito internacional geral10, a Corte Europeia
de Direitos Humanos (CtEDH) não exige que os Estados que ratificaram o tratado incorpore a Convenção em seu direito interno11, desde que
cumpram as obrigações presentes no art. 1º12 da Convenção Europeia
9. Castilla (2011, p. 610-613) identificou o descompasso que os ordenamentos constitucionais
enfrentam para que cumpram com todas as medidas exigidas pela CtIDH na realização
do controle de convencionalidade. De acordo com o autor, o que os tribunais nacionais
podem realizar, no máximo, é uma espécie de controle de convencionalidade, fiscalização
que apenas poderia ser realizada, em sua completude, pela corte interamericana. Em
contrapartida, o autor defende que as cortes nacionais devem realizar uma interpretação de
direitos e liberdades de acordo com tratados internacionais.
10. Exchange of Greek and Turkish Populations Case (1925) P.C.I.J., Ser. B, No. 10, pp 19-21.
11. As regards the specific matters pleaded, the Court has held on several occasions that there
is no obligation to incorporate the Convention into domestic law. 13585/88, [1991] 14
EHRR 153, [1991] ECHR 49, [1991] ECHR 1385 Observer and Guardian v. UK, § 76.
12. As Altas Partes Contratantes reconhecem a qualquer pessoa dependente da sua jurisdição
os direitos e liberdades definidos no título I da presente Convenção.
108
5 – O controle difuso de convencionalidade no Brasil: soluções para seu aprimoramento
dos Direitos Humanos (CEDH) (HARRIS et al., 2009, p. 23). Portanto,
a obrigação internacional a ser cumprida é dar efeito aos direitos do
tratado, independentemente da forma escolhida pelo direito interno para
realizá-la. Isso quer dizer que o país não precisa transformar o tratado
em si em uma norma diretamente aplicável pelos órgãos judiciais do
país. Um Estado pode ter ratificado a convenção e, por meio do Poder
Legislativo, editado leis específicas para concretização do tratado13.
A previsão normativa do art. 1º da CADH assemelha-se ao da CEDH,
mas diferentemente de sua contraparte do velho continente, o tratado americano acrescenta às obrigações de respeitar e garantir, o dever de adoção
de medidas normativas no âmbito interno, a fim de assegurar a efetividade
do tratado (art 2º da CADH)14.
A estipulação do art. 2º da CADH poderia ser considerada como uma
redundância, porquanto o dever de harmonização do direito interno aos
direitos da Convenção já estaria abarcado pela obrigação mais genérica
de respeitar e garantir expressa no artigo anterior. Ademais, tendo em
vista a natureza monista15 da maioria das Constituições americanas, os
próprios direitos previstos nas normas do tratado poderiam ser aplicados pelos órgãos judiciais, e a exigência de reformar o direito interno
poderia ser extraída da obrigação de garantir do art. 1º (BURGORGUE-LARSEN, 2011, p. 252).
13. Na Inglaterra, a norma aplicada pelas cortes nacionais é o Human Rights Act (1998).
14. Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1º ainda não estiver garantido
por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados Partes comprometemse a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta
Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar
efetivos tais direitos e liberdades.
15. A discussão entre monismo e dualismo ainda persiste no Direito Internacional (NIJMAN;
NOLLKAEMPER, 2007). No caso, estamos a nos referir não à discussão mais abstrata
acerca da existência ou não de dois ordenamentos jurídicos independentes, mas sim dos
procedimentos constitucionais internos de incorporação das normas internacionais. Dessa
forma, monismo caracteriza-se pela aplicabilidade direta do tratado no plano interno, por
outro lado, o dualismo caracteriza-se pela necessidade de transformação do tratado em algum ato normativo interno (transformação).
109
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
A interpretação do art. 2º feita pela CtIDH16 e por comentadores de
sua jurisprudência, contudo, afastam qualquer hipótese de redundância
ou inutilidade da norma internacional. Segundo Terezo (2014, p. 159), o
artigo em comento fora sugestão do Chile quando das discussões acerca
da formulação do tratado, no intuito de clarificar as obrigações de garantia, geralmente vagas e obscuras em outros documentos internacionais.
Portanto, a função interpretativa do art. 2º é suprir, de forma específica,
a obrigação genérica posta no artigo anterior. Não obstante a consensual
interpretação que afasta a inutilidade do dever de adotar disposições de
direito interno, não há posicionamento expresso da CtIDH acerca do status que a convenção deve assumir no âmbito dos ordenamentos constitucionais internos, e os autores que discutiram o tema apresentam opiniões
diversas acerca do ponto.
Harris (1998, p. 16) ressalta, inicialmente, que o art. 2º seria um reforço ao art. 1º, no entanto, sugere que sua inclusão seria uma demonstração da dúvida existente acerca da auto-executoriedade da Convenção,
pois sugere que não há certeza se suas normas poderiam fundamentar, de
forma autônoma, a queixa de um indivíduo perante um tribunal nacional. O autor afirma que esta seria uma questão a ser decidida no plano
nacional pelas Constituições, portanto o tratado, por meio do art. 2º,
traria uma declaração expressa de que a Convenção não seria um tratado
auto-executável, e que medidas internas deveriam ser tomadas para que
suas provisões sejam internalizadas.
Por outro lado, Cançado Trindade (1998, p. 400) discorda da interpretação de Harris, pois, para o brasileiro, o art. 2º não se caracteriza como
uma declaração de reconhecimento de que as normas da convenção sejam
não auto-executáveis por si mesmas, mas sim como um reforço específico
16. Caso Albán Cornejo y otros. Vs. Ecuador. Fondo Reparaciones y Costas. Sentencia de 22
de noviembre de 2007. Serie C No. 171, § 118. La Corte ha sostenido que los Estados
Partes de la Convención Americana tienen el deber fundamental de respetar y garantizar
los derechos y libertades establecidos en la Convención, de acuerdo con el artículo 1.1. El
artículo 2 establece el deber general de los Estados Partes de adoptar medidas legislativas
o de otro carácter que resultan necesarias para hacer efectivos los derechos y libertades
reconocidos en aquel instrumento.
110
5 – O controle difuso de convencionalidade no Brasil: soluções para seu aprimoramento
da obrigação geral de harmonizar o direito interno com a convenção, ou
de incorporar suas provisões ao direito interno17.
Ledesma Faúndez (2004, p. 57-59), de forma intermediária, postula
que a Convenção Americana não indica qual posição deve ocupar no
direito interno, decisão, exclusivamente, constitucional. Entretanto,
defende que a CADH surte efeitos imediatos no direito interno, capazes de atribuir direitos aos indivíduos, sem a necessidade de desenvolvimentos legislativos posteriores. A obrigação e os efeitos imediatos
permanecem mesmo em países dualistas. O autor extrai do dever de
respeitar e garantir os índicos da aplicabilidade direta da Convenção,
no entanto, o autor reconhece que existiriam exceções no próprio corpo do tratado, na medida em que os arts. 10, 18, 25 e, principalmente,
o 26 exigiriam, expressamente, legislação posterior para terem operatividade interna.
Como mencionado anteriormente, a CtIDH não decidiu, expressamente, acerca do status que a CADH deve assumir no direito interno, mas é
possível identificar que o desenvolvimento da interpretação que a corte
supranacional realiza do art. 2 oferece pistas acerca da sua atual compreensão e sua correlação com o controle de convencionalidade.
Inicialmente, na Opinião Consultiva (OC) nº 07/86, que dispunha sobre a aplicabilidade do art. 14.1 (direito de resposta), a CtIDH afirmou que
os Estados, em função do art. 1º estavam obrigados a garantir tal direito,
decorrência do direito mais amplo de liberdade de expressão, no entanto, ponderou que caberiam às normas internas determinar seus contornos
17. Há um problema na argumentação de Trindade (1998). A obrigatoriedade de harmonização
do direito interno com a CADH não, necessariamente, se concretiza com a autoexecutoriedade do tratado. A aplicabilidade direta do tratado por parte dos órgãos judiciais
ou administrativos não é uma condição necessária para que um país realize sua obrigação
de harmonização, pois o Estado pode, mesmo sem ter transformado as normas do tratado
internacional em fontes internas aplicáveis, ter revogado com antecedência todas as leis a
ele contrárias. O mesmo vale para o Poder Judiciário, que pode interpretar as leis internas
em conformidade ao tratado, ainda que não possa aplicá-lo de forma direta. Cf. Sloss (2009).
Portanto, se o autor brasileiro extrai duas obrigações do art. 2º (harmonização da legislação
interna e aplicabilidade direta) deve oferecer argumentos adicionais para sustentá-las, em
razão da divergência entre os autores e a interdependência dos argumentos.
111
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
(duração da resposta, extensão do desagravo, momento de aplicação da
resposta etc.)18. Para reforçar a obrigatoriedade de edição de medidas internas necessárias, a CtIDH citou que o art. 2º exige que o direito de resposta seja garantido pelos indivíduos, independentemente, de alegações
dos países acerca de sua não previsão19. Ao discorrer acerca da expressão
“nas condições que estabeleça a lei” presente no art. 14.1, a corte interamericana considerou que ela apenas referia-se à efetividade do direito, e
não dispunha sobre sua criação, existência ou exigibilidade internacional.
Porém, da interpretação conjunta dos arts. 14.1, 1º e 2º, a CtIDH decidiu
que o Estado que não tenha garantido o direito de resposta, deverá fazê-lo,
seja mediante lei, ou por outras medidas que forem necessárias, de acordo
com seu ordenamento20.
Dito em outras palavras, a CtIDH determinou que os Estados teriam
de garantir que o direito de resposta fosse efetivo, independentemente da
forma que o país signatário escolha para cumprir com tal obrigação, que
pode ser obtida mediante leis, normas constitucionais ou outras medidas
normativas. A corte, portanto, não atribuiu à CADH capacidade de ser aplicada diretamente pelas cortes, independentemente dos arranjos nacionais.
Quando for possível, aplicar-se-á a Convenção; do contrário, o mais importante é a efetividade e não o status do tratado internacional no direito
constitucional21.
A interpretação acima do art. 2º é, atualmente, reiterada pela CtIDH,
quando afirma que:
18. Exigibilidad del Derecho de Rectificación o Respuesta (arts. 14.1, 1.1 y 2 Convención
Americana sobre Derechos Humanos). Opinión Consultiva OC-7/86 del 29 de agosto de
1986. Serie A No. 7, §§ 24-27.
19. § 28.
20. § 32.
21. Convém lembrar que a CtIDH se eximiu de analisar um dos desdobramentos do primeiro
questionamento do Estado na OC nº 07/86 por considerar que tratava-se de uma questão que
envolvia a forma como a aplicação do art. 14 poderia ocorrer no direito interno. Cf. Opinión
Consultiva OC-7/86 del 29 de agosto de 1986. Serie A No. 7 § 14.
112
5 – O controle difuso de convencionalidade no Brasil: soluções para seu aprimoramento
las disposiciones de derecho interno que se adopten
para tales fines han de ser efectivas (principio del
effet utile), lo que significa que el Estado tiene la
obligación de consagrar y adoptar en su ordenamiento jurídico interno todas las medidas necesarias para
que lo establecido en la Convención sea realmente
cumplido y puesto en práctica.22
Macgregor (2013, p. 75-76), baseado nas construções jurisprudenciais
e teóricas acima, elenca duas linhas interpretativas acerca do artigo 2º,
são elas: 1) os Estados estão obrigados a desenvolver em sua legislação
os direitos que, em sua formulação internacional, carecem da precisão necessária para que possam ser invocados perante as cortes nacionais e 2) os
Estados estão obrigados a adotar todas as medidas legislativas necessárias
para permitir o gozo efetivo dos direitos convencionais.
Além dessa linha interpretativa acerca do art. 2º, recentes construções
jurisprudenciais podem indicar que, ainda que indiretamente, a CtIDH
exige que as disposições da CADH sejam aplicáveis como direito interno
pelos órgãos judiciais.Faz algum tempo, a CtIDH alterou sua jurisprudência23 no sentido de reconhecer que a mera edição de uma leia contrária à
Convenção, ainda que não tenha sido aplicada pelos órgãos judiciais, viola
as obrigações internacionais de harmonização do direito interno presentes
no art. 2º em Suárez Rosero Vs. Ecuador24. Poucos anos depois desta alteração jurisprudencial, a corte declarou que a lei de anistia peruana carecia
de efeitos jurídicos com base, dentre outros fundamentos, na obrigação
de adequação do direito interno disposta no art. 2º25. Posteriormente, no
22. Corte IDH. Caso de personas dominicanas y haitianas expulsadas Vs. República
Dominicana. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 28 de
agosto de 2014. Serie C No. 282, Párrafo 271
23. Uma linha jurisprudencial iniciada na OC 14/94, § 49 e seguida nos caso contencioso El
Amparo Vs. Venezuela. Reparaciones y Costas, Serie C, nº 28, 1996, § 60.
24. Fondo. Sentencia de 12 de noviembre de 1997. Serie C No. 35, § 98. La Corte hace notar,
además, que, a su juicio, esa norma per se viola el artículo 2 de la Convención Americana,
independientemente de que haya sido aplicada en el presente caso.
25. Barrios Altos Vs. Perú. Fondo. Sentencia de 14 de marzo de 2001. Serie C No. 75, § 42-44.
113
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
julgado da CtIDH que instaurou o controle de convencionalidade, o art.
2º fora violado porquanto o Estado não cumprira com sua obrigação legislativa de supressão de normas violadoras dos direitos da Convenção26
e, além do mais, a corte interamericana ressaltou que a referida obrigação legislativa tem, também, a finalidade de facilitar a função judicial na
solução dos casos concretos27. No entanto, mesmo nas ocasiões em que
o legislativo falhe em cumprir sua obrigação de supressão preventiva, o
Poder Judiciário continua vinculado pelos deveres internacionais de garantia oriundos do art. 1.1, o que significa abster-se de aplicar qualquer
normativa contrária á convenção28. Dessa forma, como órgão estatal, o judiciário deve velar pela efetividade da Convenção ao realizar um controle
de convencionalidade das leis internas29.
Podemos sumarizar a interpretação da determinação da adoção das
“medidas necessárias” (OC 07/86) no âmbito interno e dos meios de
exercício do controle judicial de convencionalidade baseado no art. 2º da
CADH da seguinte forma: o Poder Judiciário está obrigado a exercer o
controle de convencionalidade de uma produção normativa interna (que
pode ser a Constituição30), a fim de garantir o efeito útil do tratado (o que
pode implicar na declaração de inefetividade da norma interna), mesmo
nas hipóteses em que a violação tenha ocorrido em função da obrigação
26. Idem, §§ 121-122.
27. Provavelmente a corte quis referir-se à função legislativa preventiva de impedir, por meio
da revogação, que leis contrárias aos direitos humanos da convenção fossem aplicadas por
tribunais em casos concretos.
28. Barrios Altos Vs. Perú. Fondo, § 123.
29. Idem, § 124.
30. Caso “La Última Tentación de Cristo” (Olmedo Bustos y otros) Vs. Chile. Fondo,
Reparaciones y Costas. Sentencia de 5 de febrero de 2001. Serie C No. 73 §§ 72 e 88
(la responsabilidad internacional del Estado puede generarse por actos u omisiones
de cualquier poder u órgano de éste, independientemente de su jerarquía, que violen la
Convención Americana ... En el presente caso ésta se generó en virtud de que el artículo 19
número 12 de la Constitución e “al mantener la censura cinematográfica en el ordenamiento
jurídico chileno ... el Estado está incumpliendo con el deber de adecuar su derecho interno
a la Convención de modo a hacer efectivos los derechos consagrados en la misma, como lo
establecen los artículos 2 y 1.1 de la Convención)
114
5 – O controle difuso de convencionalidade no Brasil: soluções para seu aprimoramento
legislativa de harmonização do direito interno com a convenção (supressão e promulgação). De acordo com a intepretação acima, a CADH deverá,
necessariamente, ser aplicada diretamente pelos tribunais internos, além de
situar-se no plano interno no nível supralegal (a mais correta posição seria
supraconstitucional)31. Não permitir a aplicabilidade direta do tratado afetaria
o controle de convencionalidade das leis internas, porquanto a garantia do
efeito útil permaneceria como uma decisão interna, pois caberia aos Estados,
discricionariamente, editar legislações capazes de autorizar que um ato normativo estatal contrário à CADH pudesse ser trazido perante o controle de
convencionalidade das cortes nacionais. Por sua vez, a posição hierárquica superior do tratado em relação às normas legislativas ordinárias (e constitucionais) justifica-se pelo fato de que a obrigatoriedade de aplicabilidade direta do
tratado pelas cortes internas seria insuficiente para alcançar o padrão exigido
pela CtIDH, pois uma posição hierarquia inferior ou no mesmo status das leis
ordinárias, inviabilizaria a declaração de inefetividade das últimas32.
Apenas o posicionamento hierárquico da CADH no direito interno seria
um problema no caso brasileiro, uma vez que os tratados internacionais, ao
menos algumas de suas normas33, são diretamente aplicáveis pelos tribunais. A natureza supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos
possibilita aos tribunais uma fiscalização completa da produção normativa
infraconstitucional, mas não alcança as normas constitucionais. Quais alterações seriam necessárias para que o Brasil cumprisse com sua obrigação
internacional de fiscalizar a convencionalidade das normas constitucionais?
31. Toda Castan (2013, p. 65-74) e Dulitzki (2015, p. 58-60) concordam com as duas
conclusões. Para o último, é obrigatório que a Convenção Americana seja um padrão interno
juridicamente vinculante com uma posição superior às leis e até mesmo da Constituição,
porquanto não se solucionaria o problema do exercício do controle de convencionalidade
quando um tribunal não puder afastar a Constituição ou as leis internas tendo como
fundamento jurídico o tratado internacional (DULITZKI, 2015, p. 60).
32. Galindo (2014, p. 245) considera que a obrigação de hierarquia superior às normas
internas seria um “efeito prático” da obrigação internacional de realizar o controle de
convencionalidade.
33. Marques e Lixinski (2009), por outro lado, identificam que alguns tribunais brasileiros
sustentam a não auto-executoriedade de alguns tratados internacionais, conclusão que
coloca em xeque a aplicabilidade direta dos tratados no país.
115
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
Uma resposta mais apressada poderia indicar que o STF deveria reconhecer a natureza supraconstitucional dos tratados internacionais de Direitos Humanos34, contudo, a Suprema Corte poderá interpretar as normas
constitucionais brasileiras à luz da jurisprudência da CtIDH e da CADH,
sem que declare, por exemplo, a inconstitucionalidade (ou inconvencionalidade) das normas constitucionais originárias35.
Uma hipótese de interpretação da Constituição à luz da CADH ocorreu, por exemplo, no caso da declaração da inconstitucionalidade da
prisão do depositário infiel36. Ainda que a Constituição tenha previsto,
textualmente, a possibilidade de prisão civil por dívidas do depositário
infiel, a disposição constitucional teve sua força normativa esvaziada
(MAUÉS, 2013, p. 219-220).
O que significa dizer que, muito embora o texto constitucional mantenha-se, formalmente, intacto37, as normas do tratado internacional interferiram na interpretação da exceção constitucional à prisão civil por
dívidas, ao afetar seu alcance e força normativa38. Ademais, uma vez que
a prisão está sujeita à regulamentação legislativa para ter plena eficácia,
34. Marinoni (2013, p. 68) sugere a questão, mas não desenvolve o problema no caso do
ordenamento jurídico brasileiro.
35. Partindo do pressuposto de que o tribunal poderá fiscalizar a constitucionalidade de emendas
constitucionais que violarem as cláusulas pétreas. O STF declarou a impossibilidade de
declaração da inconstitucionalidade de normas constitucionais originárias na ADI 815/DF.
Para mais detalhes acerca do tema na doutrina, cf. Otto Bachof (1994).
36. Art. 5º, LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo
inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel.
37. Não houve declarações de inconstitucionalidade, incompatibilidade ou inconvencionalidade
por parte do STF.
38. Em trabalho acadêmico, o ministro Gilmar Mendes (2012, p. 648), ao comentar a previsão
constitucional da prisão do depositário infiel parece confirmar o argumento defendido no
parágrafo acima ao pontuar que a Constituição, por conta da evolução da jurisprudência
e “com base no conteúdo do Pacto de San José da Costa Rica, não mais autoriza a prisão
civil por dívida”. Outro indício pode ser colhido de trecho da ementa redigida pelo ministro
Cezar Peluso no RE 466.343/SP (... Depositário infiel. Alienação fiduciária. Decretação da
medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e
das normas subalternas). Interpretação do art. 5º, inc. LXVII e §§ 1º, 2º e 3º, da CF, à luz do
art. 7º, § 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos – grifos nossos).
116
5 – O controle difuso de convencionalidade no Brasil: soluções para seu aprimoramento
“o que o STF fez, ao proibir que o legislador ordinário decida sobre a
matéria, foi impedir que a norma constitucional seja aplicada” (MAUÉS,
2013, p. 219).
Em conclusão, vale ressaltar que não estamos defendendo o acerto do
STF ao destacar para a CADH a natureza supralegal39, no entanto, sua
atual posição não impede que nossa suprema corte realize uma espécie de
interpretação conforme de nossa Constituição com os direitos da CADH e
com a jurisprudência da CtIDH40.
A estruturação judiciária do país: controle concentrado de
constitucionalidade e controle difuso de convencionalidade.
Conforme o discutido nos tópicos anteriores, o exercício do controle
de convencionalidade difuso (ou seja, o exercido pelos órgãos judiciais
internos) independe da estrutura judicial do país, uma vez que a CtIDH
não deixa claro se um país em que os juízes não podem exercer o controle
repressivo de constitucionalidade (o monopólio da declaração de inconstitucionalidade mantém-se em uma corte constitucional ou órgão específico, como no Chile e Colômbia) terão suas competências constitucionais, obrigatoriamente, reformuladas para afastar leis contrárias à CADH
(SAGÜÉS, 2012, p. 27; FERRER MAC-GREGOR, 2013, p. 667 e CONTESSE, 2012). Nestor Sagüés (2013, p. 622; 2012, p. 27) tenta contornar
esses possíveis entraves institucionais enfrentados por alguns países, ao
defender o exercício de um controle construtivo de convencionalidade,
que poderia ser exercido por todos os juízes, no sentido de que trabalhem
para a compatibilização da jurisprudência nacional com a interamericana.
Portanto, a intervenção judicial seria interpretativa, e não repressiva (com
a declaração da inefetividade ou nulidade da lei interna).
39. Cf. Magalhães et. alli (2014, p. 277).
40. De acordo com Maués (2013, p. 221-222), o nível hierárquico dos tratados de direitos
humanos não é a única variável que ajuda a entender seu impacto no direito interno.
117
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
Apesar de interessante e factível41, a proposta de Sagüés parecerá
insuficiente para a CtIDH, que, provavelmente, nos caso em que o Estado apresentar exceções preliminares baseadas na impossibilidade de
realização do controle difuso de constitucionalidade, por conta de especificidades procedimentais e constitucionais internas, argumentará que os
procedimentos internos não poderão constituir óbices ao controle de convencionalidade repressivo, apesar de a corte interamericana ter reconhecido exceções procedimentais nacionais a seu exercício42. Além do mais,
a corte interamericana não explicitou os efeitos da declaração de incompatibilidade. Ou seja, não está claro o suficiente se o Judiciário nacional
deverá declarar a lei nula em seu direito interno ou apenas não aplicável
no caso concreto.
Pensemos no caso do Brasil. Todos os juízes estão aptos a exercer o
controle difuso de constitucionalidade e, tendo em vista o caráter supralegal da CADH, o judiciário nacional será competente para fiscalizar a
compatibilidade da produção normativa interna infraconstitucional em um
caso concreto43. No entanto, a CADH (supralegal) não poderá servir de
41. Mesmo em países que não contemplam o controle judicial difuso de constitucionalidade,
os demais órgãos do Poder Judiciário poderiam realizar o controle de constitucionalidade,
ainda que seja para declarar a constitucionalidade de uma lei ou interpretando a lei conforme
a Constituição. Nessas hipóteses, ao Poder Judiciário está vedado apenas exercer o juízo de
invalidade da lei (monopolio de rechazo), não outras formas de aplicação e interpretação da
Constituição. Para mais detalhes, cf. Magalhães (2012, p. 222-223).
42. Um argumento semelhante pode ser encontrado na exceção preliminar de “quarta instância”
feita pelo México no Caso Cabrera García y Montiel Flores Vs. México (2010), §§ 13 e
16-22. O Estado, na ocasião mencionada, alegou que a corte não poderia conhecer do caso,
porquanto o judiciário mexicano já realizara o controle de convencionalidade ex officio. Em
resposta que desconsiderou o pedido, a CtIDH, em resumo, afirmou que todas as vezes em
que as obrigações internacionais supostamente violadas envolverem discussões a respeito
do devido processo legal, imiscuindo-se ao mérito de uma discussão, a corte sempre será
competente para conhecer do caso. E, mais importante, o exercício ex officio do controle de
convencionalidade não excluí da corte o conhecimento do caso, uma vez que será no mérito
em que analisará se o Estado respeitou suas obrigações internacionais à luz do direito e da
jurisprudência pertinente da CtIDH.
43. Marinoni (2013, p. 67) afirma que Recurso Extraordinário (RE) pode ser interposto, tendo
como fundamento o exercício do controle de convencionalidade difuso pelo STF. De acordo
com o autor, a nova modalidade de interposição foi confirmada quando o tribunal conheceu
do RE 466.343/SP.
118
5 – O controle difuso de convencionalidade no Brasil: soluções para seu aprimoramento
parâmetro de controle via controle concentrado (MAUÉS, 2013, p. 219)44
e nem poderá fornecer parâmetros para a análise da convencionalidade do
texto constitucional. Os tratados internacionais de direitos humanos que
não cumprirem as determinações do § 3º, art. 5º da CF/88 poderão ser
parâmetro do controle difuso de constitucionalidade, mas não parâmetros
para o controle abstrato de constitucionalidade, ou seja, quando não há um
caso concreto a ser solucionado.
O problema surge quando, por exemplo, uma lei interna que não tenha sido aplicada em nenhum caso concreto esteja em contrariedade à
CADH. Considerando que as obrigações internacionais de harmonização
do direito nacional com a jurisprudência da CtIDH e com os direitos da
Convenção transferem-se para o Judiciário, caso o poder legislativo não
tenha revogado a lei violadora de direitos humanos, a inviabilização do
exercício do controle concentrado de constitucionalidade de uma norma
ainda não aplicada em um caso concreto pode implicar na responsabilização internacional do país. Tal panorama demonstra que a estruturação
institucional do Judiciário e, consequentemente, a forma como um país
exerce o controle de constitucionalidade são fatores que afetam o controle
de convencionalidade difuso, sem que discussões mais profundas acerca
da subsidiariedade do sistema interamericano de direitos humanos sejam
desenvolvidas pela CtIDH.
Uma forma de solucionar o impasse seria, finalmente, reconhecer a
natureza constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos,
interpretação que corrigiria sua paradoxal posição supralegal. Para expor
o paradoxo de forma breve e contextualizada com os argumentos desenvolvidos até aqui: se a Constituição admite a prisão do depositário infiel,
por que a CADH afetou a interpretação da Constituição, quando ela é
que deveria ser considerada inconstitucional? Caso algum dos legitimados
constitucionais proponha uma Ação Declaratória de Inconstitucionalidade
em face da CADH, poderá o STF declarar a sua inconstitucionalidade com
base na Constituição? Se a resposta para tais questões for negativa, talvez
44. No mesmo sentido, Mazzuoli (2011, p. 53).
119
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
o reconhecimento da natureza constitucional de todos os tratados de direitos humanos seja uma conclusão, além de necessária, inevitável.
A força vinculante dos precedentes da CtIDH: o tortuoso caminho
em direção ao ius commune americano.
Apesar de teste valioso para a concretização dos direitos humanos
e para a difusão da jurisprudência da corte interamericana (RUIZ CHIRIBOGA, 2010, p. 202; CONTESSE, 2012), o controle de convencionalidade, a depender da interpretação a ele atribuída, poderá significar
que a construção do conteúdo dos direitos humanos dependerá apenas
do esforço empreendido pela CtIDH, que funcionaria como a única e
legítima intérprete da CADH, submetendo suas interpretações não pela
força dos argumentos, mas pelo peso de sua autoridade45. Diferentemente do atualmente encontrado na análise brasileira do instituto, bastante
recente46, sua operacionalização no plano interno pode ser problemática
no que concerne a força vinculante dos precedentes da CtIDH.
Recente manifestação da corte interamericana incorporou a ideia de
coisa julgada interpretada erga omnes para inserir força vinculante às interpretações da CtIDH a serem aplicadas no plano interno por meio do
controle de convencionalidade47. Ainda que tenha reforçado que o caráter
vinculante dos fundamentos determinantes de suas decisões tidas como
45. A defesa de um diálogo pela via do controle de convencionalidade foi feita por Flávia
Piovesan (2013). Apesar de concordarmos que o controle de convencionalidade possa
ser interpretado como mecanismo capaz de permitir que a deliberação entre precedentes
constitucionais e supranacionais ocorra, Piovesan (2013, p. 393-407) defende uma versão
do controle de convencionalidade como uma oportunidade de uniformização de padrões
internacionais. O controle de convencionalidade, de acordo com Piovesan, contribui
para que se implemente no âmbito nacional os standards, princípios, normatividade e
jurisprudência internacional em matéria de direitos humanos para que se alcance o ius
commune latino-americano. A verticalidade do “diálogo” defendido por Piovesan (2013)
não se coaduna com uma abordagem plural sobre deliberação de precedentes, que realça a
perspectiva da subsidiariedade do Sistema Interamericano.
46. Nesse sentido, ver as contribuições de Marinoni (2013), Mazzuoli (2011) e Piovesan (2013).
47. Corte IDH. Caso Gelman Vs. Uruguay Supervisión de Cumplimiento de Sentencia. Resolución de la Corte Interamericana de Derechos Humanos 20 de marzo de 2013.
120
5 – O controle difuso de convencionalidade no Brasil: soluções para seu aprimoramento
coisa julgada erga omnes48 aplicavam-se apenas ao Estado condenado, o
argumento valeria para os outros países que estão obrigados a realizar o
controle de convencionalidade. Portanto, indiretamente, a corte defendeu
que a ratio decidendi de suas sentenças, de força vinculante erga omnes,
acompanharia as interpretações da corte interamericana, um dos parâmetros do controle de convencionalidade49.
Carlos Hitters (2013, p. 709), entusiasta da novidade, fala em vinculação relativa erga omnes dos Estados não envolvidos na demanda. A
relatividade estaria caracterizada pela vinculação apenas à norma interpretada (e não a toda a sentença), além de seu alcance estar limitado à
existência de outra interpretação mais favorável.
Alfredo Vítolo (2013, p. 367-375), por outro lado, pondera mais cautelosamente sobre a novidade, ao referir-se à dificuldade em identificar nas
sentenças da corte a diferença entre ratio decidendi e obiter dictum50, bem
como a possível consequência da redução à deferência estatal, porquanto
a vinculação formal poderia reduzir a diversidade interpretativa no continente51. Por fim, o autor postula que tal construção poderá criar obstáculos
a um possível diálogo entre as cortes, pois apenas uma delas falaria e as
48. Idem, §102.
49. Queralt Jiménez (2008) defende a ideia de coisa julgada interpretada das decisões da
CtEDH como reforço do caráter convencional de sua jurisprudência, ou seja, os Estados
deverão considerar a produção jurisprudencial da CtEDH como imanente às normas
convencionais. No entanto, a autora não defende uma força vinculante uniformizadora dos
padrões interpretativos da corte de Estrasburgo, uma vez que seus precedentes exigiriam
compatibilizações em busca de harmonia e não uma uniformização visando a identidade
interpretativa,
50. Ruiz Chiriboga (2010, p. 203) considera que a falta de claridade no desenvolvimento da
doutrina judicial da corte e a jurisprudência instável da CtIDH dificultam o exercício do
controle de convencionalidade. Sagüés (2012, p. 22-23), na mesma linha argumentativa,
postula que conhecer a jurisprudência da corte interamericana não é tarefa simples, e
detectar suas doutrinas requer análise detida de todos os julgados. Contudo, ainda assim,
são possíveis diversas interpretações sobre os padrões da corte, ao que o autor urge por mais
concisão e consistência no desenvolvimento dos parâmetros.
51. Carlos Hitters (2009, p. 359), por exemplo, antes da construção da coisa julgada interpretada
vinculante, já havia alertado para a natureza unificadora da interpretação sobre a CADH
pela via do controle de convencionalidade.
121
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
demais, escutariam e, obrigatoriamente, acatariam as razões de decidir da
CtIDH dotadas de efeito vinculante52.
A CtIDH respondeu a contento a crítica denominada por Sagüés
(2012, p. 23-24) de conflito de lealdade (os juízes deverão basear-se na
Constituição ou na Convenção, nas hipóteses de conflito acerca da constitucionalidade/convencionalidade de uma lei?). De acordo com a corte
de São José, uma vez que o Estado ratificou a Convenção e reconheceu
a competência de seus órgãos através de mecanismos constitucionais,
esse conjunto normativo e institucional passaria a fazer parte do seu
ordenamento jurídico, tornando o conflito de lealdades como um falso
dilema53. No entanto, a argumentação não responde ao problema da forma com que as cortes internas deverão receber a jurisprudência da corte
interamericana.
Mesmo que um tribunal estatal tenha afirmado exercer o controle de
convencionalidade, isto não impedirá que a corte interamericana avalie
o acerto de como tal controle foi feito54. Portanto, a postura da força vinculante da interpretação da corte interamericana retira parcela da competência interpretativa das cortes nacionais, que, existindo jurisprudência
anterior da CtIDH, deverão uniformizar os padrões constitucionais e interamericanos55. O controle de convencionalidade pode ser uma importante via para o diálogo entre os precedentes das cortes internas com os
da CtIDH, especialmente, porque, e de acordo com a última: a) os ordenamentos constitucionais regionais não podem, simplesmente, ignorar
a produção jurisprudencial da CtIDH; e b) o comprometimento com a
52. Bandeira Galindo (2014, p. 249) sustenta que tal postura da CtIDH sugere uma delicada e
discutível compreensão de um modelo hierárquico de supremacia do direito internacional.
53. Caso Gelman Vs. Uruguay. Supervisión de Cumplimiento de Sentencia, § 88.
54. Como visto no tópico acima, não se discutiria, por exemplo, se a corte interna realizou ou
não o controle de convencionalidade (questões de procedimento); mas se o realizou da
forma correta (questões de interpretação).
55. Como exemplo de manifestações de tal compreensão interpretativa uniformizadora (apesar
de defender um suposto diálogo de fontes), é a manifestação da diferença entre vigência e
validade defendida por Mazzuoli (2011, p. 117). A lógica parece sempre muito próxima a
um tudo ou nada.
122
5 – O controle difuso de convencionalidade no Brasil: soluções para seu aprimoramento
concretização dos direitos convencionais da CADH não se exaure com
a adoção de suas prescrições textuais, mas engloba, necessariamente, a
interpretação de seus órgãos (e os precedentes da corte interamericana
são os veículos que transportam essa interpretação).
Com efeito, uma postura dialógica não é contrária ao controle de convencionalidade, desde que as exigências de vinculação aos precedentes da
CtIDH não signifiquem uma ilusória e indesejada uniformidade interpretativa de mão única: a CtIDH resolveria, abstratamente e solitariamente,
todos os problemas específicos, complexos e urgentes dos países que ratificaram a CADH de maneira abstrata e descontextualizada. O controle
de convencionalidade a ser exercido pelos tribunais brasileiros deve ser
interpretado como a oportunidade em que o ordenamento constitucional
interno deverá realizar o diálogo com os precedentes da CtIDH, como reflexo da construção conjunta dos direitos humanos para alcançar a melhor
interpretação e não como uma plataforma de uniformização da interpretação do tribunal supranacional56.
Considerações finais
Para o exercício do controle difuso de convencionalidade, a CtIDH
exige do Poder Judiciário dos Estados-parte e do ordenamento constitucional interno três pré-requisitos: 1) que a CADH seja diretamente aplicável pelos órgãos judiciais e que esteja posicionada acima da Constituição;
2) que o judiciário seja competente para declarar a inefetividade das Constituições e das leis internas e 3) que a jurisprudência da CtIDH tenha caráter obrigatório. Acaso não sejam cumpridos, os referidos pré-requisitos
afetarão a obrigação internacional determinada pela CADH.
56. Contesse (2012) compartilha de visão semelhante, pois enxerga no controle de convencionalidade a oportunidade de a corte interamericana servir como amplificadora das melhores
interpretações dos direitos humanos da região, não apenas liderando, mas seguindo processos de decisões constitucionais, deixando espaço para um progressivo desenvolvimento das
interpretações da CADH perante as jurisdições constitucionais.
123
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
O ordenamento jurídico constitucional brasileiro pode cumpri-los, desde que: 1) o STF interprete as normas constitucionais à luz das obrigações
do tratado internacional; 2) a CADH seja considerada como de natureza
constitucional, para que o STF possa exercer o controle de constitucionalidade de leis que ainda não foram aplicadas em casos concretos, mas que
violam a CADH e 3) os precedentes da CtIDH sejam considerados como
a oportunidade em que o Judiciário realize construções dialógicas com as
interpretações de São José.
As propostas de aprimoramento do exercício do controle difuso de
convencionalidade no Brasil não significam, contudo, que as decisões
da CtIDH não devam passar por um cuidadoso escrutínio, especialmente
quando ensejam a ressignificação da subsidiariedade do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
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126
6
Mecanismos de participación popular en el derecho
constitucional comparado latinoamericano: reflexiones
sobre democracia y gobierno
Alberto Manuel Poletti Adorno1
Mecanismos de participación y decisión directa del
electorado
Los países latinoamericanos, en su mayoría con regímenes de gobierno
presidencialistas, han introducido sucesivamente los mecanismos de consulta
al electorado sobre diversos temas. Superando diversos períodos históricos
en donde gobiernos autocráticos detentaban (casi) todo el poder, se han ido
otorgando derechos a los ciudadanos para decidir directamente sobre algunos
temas.
En momentos en que existen discrepancias con algunas decisiones gubernamentales, es importante destacar que diferentes mecanismos prevén la
posibilidad de acentuar los mecanismos decisorios directos que están establecidos en las leyes de los países y que incluso se discute la posibilidad de
utilizarlos en lugares donde no se hallan previstos. Para ello es importante
1. Abogado egresado de la Universidad Nacional de Asunción, Paraguay. Doctor en Derecho Universidad París 1 Panthéon-Sorbonne. Avocat au Barreau de Paris, Francia. Profesor de Derecho
Internacional de la Universidad Columbia del Paraguay. Investigador externo del Departamento
de Derecho Político de la UNED, España. Integrante del Grupo de Investigación Cultura, Direito
e Sociedade DGP/CNPq/UFM desde Octubre de 2013. Las opiniones descritas corresponden
exclusivamente al autor y no comprometen a las instituciones mencionadas. Correo-e: alberto_poletti@hotmail.com
127
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
recordar la naturaleza (I) del derecho a la consulta popular y si los límites
establecidos pueden ser modificados (II) por autoridades constituidas.
La naturaleza de la consulta popular: un mecanismo constitucional
en algunos países latinoamericanos
Notemos que las constituciones de Argentina, Chile, Colombia, Ecuador, Panamá, Paraguay, Perú y Venezuela contienen disposiciones específicas que permiten la posibilidad de consulta y participación del electorado sobre diversos temas2 sin perjuicio de que otros países hayan optado
por ocuparse de este procedimiento en otros textos legales.
Pero debemos distinguir entre el referéndum, mecanismo de consulta
convocado por una autoridad para decidir por medio del sufragio sobre la
validez o revocación de textos legales y la iniciativa popular que prevé
la posibilidad de presentar textos legislativos, conforme a una mayoría y
procedimientos establecidos en la ley, para su discusión y eventual aprobación. Así, un texto con iniciativa popular podrá ser sometido a referéndum
y siendo que se trata de un texto ya discutido y puesto a consideración,
se ejercerá una decisión popular, pero no podrá, por lo general, hacerse
modificaciones al texto ya aprobado mediante el sufragio.
Así, es importante destacar que de estos términos, que no son sinónimos, se utiliza también al plebiscito como relacionado al referéndum y
específicamente como la resolución tomada por todo un pueblo a pluralidad de votos y que representan los actos de voluntad popular mediante
los que el pueblo exterioriza su opinión sobre un hecho determinado de
su vida política3.
2. Base de Datos Políticos de las Américas. (1998) Iniciativa popular. Análisis comparativo de
constituciones de los regímenes presidenciales. [Internet]. Georgetown University y Organización de Estados Americanos. En: http://pdba.georgetown.edu/Comp/Legislativo/Leyes/
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3. OSSORIO, Manuel: Diccionario de Ciencias Jurídicas, Políticas y Sociales, 1° Edición
128
6 – Mecanismos de participación popular en el derecho constitucional comparado
latinoamericano: reflexiones sobre democracia y gobierno
Xifra Heras señala que no resulta fácil una distinción general y científica entre estos términos y Helio Juan Zarini señala al referéndum como un
procedimiento de consulta sobre un asunto público, en tanto que el plebiscito versa sobre asuntos de interés fundamental para el Estado4.
Notemos entonces que, cuando se halla previsto en el sistema jurídico,
el referéndum es un mecanismo válido que puede ser utilizado por los
gobernantes para dar mayor legitimidad a ciertas decisiones que, generalmente, son controvertidas o tendrán una importancia esencial en la vida
del país.
Nótese que el referéndum puede ser convocado por las autoridades designadas en la Constitución: el Congreso o el Presidente en Argentina dentro de las áreas de su competencia (art. 40 de la Constitución), el Congreso
en Brasil (art. 49 de la Constitución) o el Presidente en Colombia (art. 104
de la Constitución), Ecuador (art. 104 de la Constitución) y Venezuela (art.
71 de la Constitución). En algunos casos los mecanismos de convocatoria
deben ser dictados por una ley (art. 121 de la Constitución de Paraguay).
Existen países que no se pronuncian sobre el carácter vinculante del resultado de la consulta. Así, Argentina (art. 40 citado), establece la consulta no vinculante, mientras que Colombia establece el carácter vinculante
(art. 104) al igual que en Ecuador (art. 103).
En algunos Estados, se utiliza el referéndum también para dar validez
a la Constitución, una modificación de la misma o el cambio de sistema
de gobierno: los art. 119 de la Constitución de Chile, art. 32 inc. 1 de la
Constitución de Perú y 321 de la Constitución de Paraguay, entre otros
son ejemplos de la necesidad de una consulta luego de una modificación
constitucional. En cuanto al último ejemplo, nótese que en 1963 Brasil
aplicó la consulta popular sobre el mantenimiento de la reforma que
estableció el régimen parlamentario de gobierno o el regreso al sistema
Electrónica, Datascan SA, Guatemala, p. 734. https://es.scribd.com/doc/31495851/Diccionario-Juridico-Manuel-Ossorio.
4. ZARINI, Helio Juan. Derecho constitucional, 2° Edición actualizada y ampliada, Astrea,
Buenos Aires, 1999, p. 306.
129
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
presidencialista, habiendo triunfado la última opción. En 1993, otra consulta popular dio idéntico resultado5.
Por otro lado, existen constituciones que limitan los temas que pueden
tratarse por medio de la consulta popular. Así en Perú: 1) la reforma total
o parcial de la Constitución, 2) la aprobación de normas con rango de ley,
3) las ordenanzas municipales y 4) las materias relativas al proceso de
descentralización. Sin embargo, es más frecuente que se establezcan los
temas que no pueden ser tratados por referéndum:
En Argentina, el art. 39 de la Constitución establece que “no serán
objeto de iniciativa popular los proyectos referidos a reforma constitucional, tratados internacionales, tributos, presupuesto y materia penal”.
En Ecuador, el art. 108 impide las consultas sobre asuntos tributarios.
En Paraguay, el art. 122 de la Constitución impide la celebración de
referéndum sobre: 1) Las relaciones internacionales, tratados, convenios
o acuerdos internacionales, 2) las expropiaciones, 3) la defensa nacional,
4) la limitación de la propiedad inmobiliaria, 5) las cuestiones relativas a
los sistemas tributarios, monetarios y bancarios, la contratación de empréstitos, el Presupuestos General de la Nación, y 6) las elecciones nacionales, las departamentales y las municipales.
En el Perú, “no pueden someterse a referéndum la supresión o la disminución de los derechos fundamentales de la persona, ni las normas de
carácter tributario y presupuestal, ni los tratados internacionales en vigor” (art. 32 última parte de la Constitución).
Debe destacarse finalmente que la decisión de utilizar o no la vía propuesta en algunos casos, aunque atribuida a un órgano, reviste un carácter
facultativo. Algunos ejemplos son detallados a continuación. En Argentina, el art. 40 establece que un proyecto de ley podrá ser sometido a
consulta popular (incluyendo los casos del art. 39 que fueron citados más
arriba y que no hayan sido presentados por iniciativa popular).
5. POLETTI ADORNO, Alberto: Derecho constitucional comparado. Intercontinental Editora, Asunción, 2011, p. 178.
130
6 – Mecanismos de participación popular en el derecho constitucional comparado
latinoamericano: reflexiones sobre democracia y gobierno
En Colombia, conforme al art. 104 de la Constitución, temas de trascendencia nacional pueden ser sometidos a consulta del pueblo al igual
que en el Ecuador (art. 104 inc. 2 de la Constitución).
En Venezuela, “podrán ser sometidos a referendo” los tratados, convenios o acuerdos internacionales que pudieren comprometer la soberanía nacional o transferir competencias a órganos supranacionales
(art. 73), los decretos con fuerza de ley que dicte el Presidente o Presidenta de la República en uso de la atribución prescrita en el numeral
8 del artículo 236 de la Constitución (art. 74). También allí podrán
ser sometidas a referéndum consultivo las materias de trascendencia
nacional (art. 71).
Los límites a la consulta popular y el principio de
legalidad
Más allá de que consultar al pueblo esté previsto en la Constitución,
debe destacarse que no siempre resulta admisible recurrir a esta vía ante
la falta de habilitación legislativa. Siendo un derecho que se halla sujeto,
en la mayoría de los casos, a consideraciones políticas, el ejercicio de
este derecho se halla también sujeto a la habilitación del sistema. Algunos
ejemplos nos ayudarán a considerar nuestra postura.
En un primer caso, pensemos en las hipótesis de juicios políticos que,
como cualquier decisión política, tienen grupos de personas satisfechas y
disconformes con el resultado. Más allá que cualquier comentario sobre la
procedencia, pertinencia de pruebas, alegatos o el sentido de la decisión en
cualquier país donde se haya utilizado este mecanismo, la posibilidad de
que el pueblo se pronuncie luego del resultado no está reconocida en las
Constituciones del continente.
En el derecho comparado, la Constitución de Rumania prevé en su
art. 95 que el Presidente puede ser suspendido por hechos graves que impliquen una violación de la Constitución por decisión de la Cámara de
Diputados y del Senado luego de una consulta a la Corte Constitucional,
131
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
debiendo organizarse un referéndum dentro de los treinta días para decidir
sobre la destitución (o no) del Presidente6.
Aunque una decisión tan importante para el país como la interrupción
del mandato de sus autoridades haya sido adoptada por órganos constituidos, no es posible someter dicha decisión a consulta popular ante la falta
de una habilitación legislativa como sería, por ejemplo, el artículo de la
constitución rumana citada.
Creemos que ello no implica un menoscabo a la democracia sino un
respeto al principio de separación de poderes en los que se ejerce un control de un órgano electivo (legislativo) sobre otro (ejecutivo). Al respecto,
la Corte Suprema de Argentina estableció la doctrina de que no puede
aplicarse al juicio político “el mismo estándar de imparcialidad que el que
se desarrolla en sede judicial”7. En Paraguay también al máximo tribunal
se pronunció en el mismo sentido8.
Un segundo ejemplo se vincula al otorgamiento de derechos a grupos
minoritarios. Así, se celebraron en algunos países referéndums para decidir sobre la procedencia del matrimonio entre personas del mismo sexo.
En diciembre de 2015, Eslovenia lo rechazó pero anteriormente en mayo,
Irlanda lo había aprobado utilizando la vía del referéndum.
En Portugal, en 2007 se realizó un referéndum sobre la despenalización del aborto que obtuvo una respuesta favorable a la interrupción del
6. Constitución de Rumania. Texto publicado por la Cámara de Diputados. http://www.cdep.
ro/pls/dic/site.page?den=act2_3&par1=3#t3c2s0sba95
7. Corte Suprema de Justicia de la nación argentina. Expedientes: “Nicosia, Alberto Oscar”
(Fallos: 316:2940), con respecto a las decisiones del Senado de la Nación en esta materia;
lo reiteró con posterioridad a la reforma de 1994 frente al nuevo texto del Artículo 115 de la
Ley Suprema en el caso “Brusa, Víctor Hermes” (Fallos: 326: 4816) con relación a los fallos
del Jurado de Enjuiciamiento de la Nación.
8. AI 1533 del 25 de junio de 2012. Acción de inconstitucionalidad del juicio: Fernando Armindo Lugo Méndez c. Resolución 878 del 21 de junio de 2012 dictada por la Cámara de
Senadores. Acción de Inconstitucionalidad: Lugo Méndez, Fernando Armindo c. La Res. N°
881 de fecha 22/06/2012. (Ac. y Sent. N° 1323 del 20/9/2012).
132
6 – Mecanismos de participación popular en el derecho constitucional comparado
latinoamericano: reflexiones sobre democracia y gobierno
embarazo, en el anterior el no había ganado por estrecho margen (51%)9.
En el Uruguay, al despenalizarse dicha práctica en 2013, se intentó realizar un referéndum pero no se obtuvo la cantidad de firmas necesarias para
lograr la convocatoria popular10. Algunos especialistas sostienen que no
puede supeditarse el disfrute de derechos fundamentales a una consulta de
la mayoría. Sin embargo, otros consideran que la incorporación del referéndum en una democracia constitucional se entiende como una actuación
inserta dentro de los poderes constituidos dentro de los límites establecidos en la Constitución11.
Finalmente, pensemos en las consultas realizadas al cuerpo electoral
para la adhesión a un tratado, pertenencia a una asociación regional o ampliación de un proceso de integración. Antes de la ampliación efectuada en
2004, en Irlanda se realizaron dos consultas sobre el tratado de Niza para
permitir la adhesión de diez Estados a la Unión Europea. El primero, en
el año 2001 tuvo una respuesta negativa12 y el segundo, realizado un año
después, resultó favorable para los integracionistas. Podemos encontrar
otros ejemplos en el viejo continente, pero nos enfocamos en los últimos:
la consulta en Escocia sobre su pertenencia dentro del Reino Unido realizada en 2014 y la de éste para permanecer en la Unión europea (el Brexit).
Se habló de una posibilidad de un nuevo referéndum en Escocia13.
9. MONTEIRO, Rosa: A descriminalização do aborto em Portugal: Estado, movimento de
mulheres e partidos políticos, Análise Social, 204, XLVII (3.º), 2012 ISSN online 21822999 http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/AS_204_d01.pdf.
10. El Observador, Montevideo, 23 de julio de 2013. Fracasa el referéndum por el aborto y la
ley quedará firme. http://www.elobservador.com.uy/fracaso-el-referendum-el-aborto-y-la-ley-quedara-firme-n253751.
11. DE LOS SANTOS OLIVO, Isidro: Plebiscito y referéndum. Concepciones terminológicas
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estatal mexicano y comparado, UNAM, Biblioteca del Instituto de Investigaciones Jurídicas, p. 494 http://bibliohistorico.juridicas.unam.mx/libros/6/2921/21.pdf.
12. El País, Irlanda rechaza en referéndum el Tratado de Niza y paraliza la ampliación de la UE,
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13. BBC 24 de junio de 2016. Brexit: Escocia dice que “es muy posible” un segundo referendo de independencia para poder seguir en la Unión Europea http://www.bbc.com/mundo/
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133
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
Muchas personas se preguntan que garantiza que un segundo referéndum sea o no una garantía de un “mejor” resultado frente a la elección
original. Es cierto que los asuntos públicos merecen ser debatidos con
profundidad y pueden ser modificadas las decisiones para adaptarlas a
las circunstancias. Sin embargo, ¿resulta oportuno consultar al pueblo en
todas las ocasiones?. En el Reino Unido, luego de la victoria del Brexit, se
dejó claro que no se volverá a realizar una consulta sobre el tema y que se
pondrá en movimiento el art. 50 del Tratado de Lisboa y la apertura de las
negociaciones. Mucha gente quedó disconforme con la posición gubernamental que, afectará sin duda a una generación de ciudadanos británicos.
Sin embargo, no puede juzgarse que la negativa haya sido contraria al sistema pues, como lo mencionamos, la decisión política de la convocatoria
de una primera (y eventual segunda) votación competen exclusivamente a
los órganos políticos.
Conclusión: ¿se adaptará el referéndum a los
cambios?
La generalización del derecho al voto en el Siglo XX se dio para la elección de autoridades. Las consultas populares surgieron principalmente en
el Siglo XXI junto con el desarrollo de la tecnología y las comunicaciones.
Muchos países cuentan con normas constitucionales que habilitan el
referéndum pero requieren de leyes para su ejercicio y generalización. Estas leyes pueden igualmente, contemplar el uso de las nuevas tecnologías.
Sin duda alguna, esta interrogante surge cuando se pone en duda las
virtudes de la democracia frente a algunos resultados que no son los esperados por los ciudadanos. Algunas personas piensan que debería procederse a modificar el sistema electoral y permitir la expresión de las personas a través de medios sociales, pues la convocatoria y organización de
elecciones resulta costosa y el dinero podría ser mejor invertido en otras
necesidades del Estado. Frente a esta posición, es importante destacar que
el control estatal que efectúan las autoridades electorales constituye en
la actualidad una garantía de la vida democrática en los países que, hasta
134
6 – Mecanismos de participación popular en el derecho constitucional comparado
latinoamericano: reflexiones sobre democracia y gobierno
la fecha, no puede ser sustituido completamente por la vía informática.
Independientemente de que en algunos países se utilice en mayor o menor
medida esta vía en el proceso electoral (voto, transmisión de datos, cómputo, escrutinio, publicación de resultados) es importante destacar que se
requerirá en el futuro un gran cambio legislativo para incrementar las consultas por medios informáticos, sino también un control del cuerpo electoral y el respeto de los principios básicos del voto universal, libre, directo,
igual y secreto reconocido en los países de la región en los procedimientos
informáticos que sean implementados.
En regímenes anteriores, el gobierno se ejercía exclusivamente a través de los representantes designados. Con las sucesivas crisis que se dan
en diferentes estamentos, los gobernados exigen una mayor participación
ciudadana. Tal vez sea el momento de pensar en un mayor uso de este
mecanismo, aumentando las garantías para preservar el derecho de todos
los sectores a expresar su voz. Deben realizarse los cambios en el sistema
jurídico que sean necesarios, teniendo en cuenta que en caso contrario
todo quedaría en manos del sector político.
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135
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
GÓMEZ CAMPOS, Steffan: Mecanismos de democracia directa en América Latina: Una
revisión comparada, Revista de Derecho Electoral, San José, ISSN-e 1659-2069, Nº. 10,
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136
7
Poder Judiciário Democrático: uma tarefa pendente (e
urgente) para o Brasil
Vanessa Oliveira Batista Berner1
Manuel Eugenio Gandara Carballido2
Introdução: uma proposta epistemológica
A opção pela teoria crítica como ferramenta para compreender a realidade
e nela interferir implica em trabalhar com o máximo rigor metodológico e em
manter uma relação honesta com a realidade, sem se esconder sob um manto
1. Professora associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Faculdade Nacional de Direito. Coordenadora do Laboratório de Direitos Humanos (LADIH) da UFRJ. Doutorado em
Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, com estágio na Universidad Complutense
de Madrid (1996). Foi bolsista de Produtividade em Pesquisa no CNPq, desenvolvendo investigação sobre teoria do direito internacional e os fluxos migratórios no mundo contemporâneo.
Professora convidada do “Centre de Droit International” da Université Paris X (UPX), França,
para lecionar a disciplina ‘Droit International des Migrations et des Refugiés’ no curso Master 2.
Professora orientadora do “Programa de Doctorado, Ciencias Jurídicas y Políticas” da Universidad Pablo de Olavide (UPO), Espanha.
2. Ativista de Direitos Humanos, dedicado a educação popular em Direitos Humanos na Venezuela,
onde há acompanhado processos de formação e organização com comunidades de base e organizações sociais. Membro da Red de Apoyo por la Justicia y la Paz y del Instituto Joaquín Herrera
Flores. Licenciado em Filosofia pela Universidad Santa Rosa de Lima, Caracas, Venezuela;
Mestre em Filosofia da Prática pela Universidad Católica Andrés Bello, Caracas, Venezuela;
Mestre em Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo pela Universidad Pablo de Olavide en Sevilla, España. Doutor en Derechos Humanos y Desarrollo por la Universidad Pablo
de Olavide, en Sevilla, España. Professor de “Teoría tradicional y teoría crítica de los derechos
humanos” no Programa Oficial de Mestrado em “Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo” da Universidad Pablo de Olavide de Sevilla, España. Professor no Mestrado de Psicologia
Social da Universidad Central de Venezuela. Participou como docente em programas de Pós-Graduação em universidades de Portugal, Costa Rica e Brasil. No momento presta seus serviços
como responsável pelos processos de formação do Instituto de Políticas Públicas en Derechos
Humanos del MERCOSUR.
137
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
de neutralidade, o que afastaria o teórico crítico do debate e do julgamento
de seus pressupostos e posicionamentos. Diante da impossibilidade de
ser neutro, busca-se ser objetivo submetendo intersubjetivamente nossas
hipóteses. A escolha que neste ensaio fazemos é a de ver a questão da
construção da verdade e da memória a partir das vítimas de violação de
direitos por parte do poder de fato instalado durante o período da ditadura
civil-militar no Brasil, com especial foco na estrutura do Poder Judiciário
brasileiro. A proposta é realizar uma aproximação histórica crítica durante
o período autoritário e verificar como esta questão se prolonga até os dias
de hoje. Necessário, pois, iniciar a discussão com trazendo as reflexões
epistemológicas da teoria crítica.
Dizia Theodor Adorno, um dos principais representantes da teoria crítica da Escola de Frankfurt, que “a necessidade de dar voz ao sofrimento
é condição de toda a verdade.” 3 Com isto, se posicionava e alertava contra toda pretensa “neutralidade” cúmplice por parte do labor científico.
Esta mesma opção ética deve seguir alentando o trabalho do pensamento
crítico contemporâneo. Diante da suposta neutralidade axiológica da
ciência, defendida pela teoria tradicional, é necessário reconhecer que
toda ciência é movida por um interesse, e que nega-lo pode não ser mais
que uma forma de mascaramento ideológico.4
Tendo ou não consciência disso, todo pensamento se posiciona de uma
determinada maneira no âmbito do conflito de interesses que atravessa
nosso mundo; por isto, faz-se necessária uma perspectiva crítica que se
encarregue da forma pela qual se endossa ou se confronta as diferentes
opções a partir das quais se compreende e se intervém na realidade.5
Como bem afirma Boaventura de Sousa Santos, “a teoria crítica sempre
teve como pressuposto a pergunta: de que lado estamos? E a respectiva
3. ADORNO, T. Dialéctica negativa. Madrid: Akal, 2005, p. 28. No original: “la necesidad de
prestar voz al sufrimiento es condición de toda verdad.”
4. Cfr. CORTINA. La Escuela de Fráncfort. Crítica y Utopía. Madrid: Síntesis, 2008, pp.
48-49.
5. Cfr. ROMERO CUEVAS, J. Ellacuría: una teoría crítica desde América Latina. En:
Revista Internacional de Filosofía Política. N° 32, Madrid: UAM-UNED, 2008, p. 7.
138
7 – Poder Judiciário Democrático: uma tarefa pendente (e urgente) para o Brasil
resposta.”6 Assim, para uma teoria crítica não é indiferente o lugar e a
perspectiva a partir da qual se pensa e se tenta intervir na realidade.
Todo trabalho de investigação, ainda que de forma implícita, supõe
uma série de decisões prévias que correspondem a uma determinada
forma de pensamento e lhe servem de base, condicionando suas apostas
epistemológicas e metodológicas.7 Por isto, é perigosa a postura ingênua que desconhece o significado que tem o conhecimento; os postulados
teóricos surgem em um determinado contexto histórico e respondem a ele,
cumprindo a função de dificultar ou impulsionar determinados projetos
sociais.8 Nas palavras de Hugo Zemelman:
O movimento da realidade sócio-histórica e sua
estreita vinculação com a prática social obriga a
um constante esforço para decifrar os limites (que
podem ser teóricos, ideológicos ou axiológicos)
que compreendem um espaço que reveste de um
significado particular o fenômeno que se quer
estudar.
Esses limites expressam a opção social a partir da
qual se constrói o conhecimento; implicam, portanto,
em uma forma de entender a realidade, mas, especialmente, em como e para quê construi-la em uma
determinada direção. O que dizemos se reveste de
um significado relevante quando observamos que
os parâmetros que em geral se impõem sem, muitas
vezes, intermediar qualquer consciência do investigador, são os que conformam o poder, em cujos parâmetros se pretende conferir aos fenômenos o estatuto
6. SANTOS, B. Crítica de la razón indolente. Contra el desperdicio de la experiencia.
Bilbao: Desclée de Brouwer, 2003, p. 286. No original: “la teoría crítica siempre ha tenido
como presupuesto suyo la pregunta: ¿ˋde qué lado estamosˊ? y la respectiva respuesta.”
7. Cfr. MEDICCI, A. El arraigo de Anteo: las lecciones políticas de Joaquín Herrera Flores. En REDHES N° 4. San Luis Potosí: Universidad Autónoma San Luis Potosí, julio-diciembre 2010, p. 17.
8. Cfr. ZEMELMAN, H. Debate sobre la situación actual de las ciencias sociales. p. 5. En
línea: http://www.archivochile.com/Ideas_Autores/zemelmanh/zemelman0007.pdf. Consulta realizada el 19 de septiembre de 2012. Ver también SENENT DE FRUTOS, J. Notas
sobre una Teoría Crítica de los Derechos Humanos En Anuario Iberoamericano de derechos
humanos 2001-2002. Río de Janeiro, 2002, p. 411.
139
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
de reais; com o adicional de estabelecer sua identidade como única e excludente de outras possíveis
visões dos mesmos.9
Na perspectiva do pensamento crítico, assumimos, pois, conscientemente, uma série de opções, de posicionamentos éticos e políticos diante
da realidade; e queremos faze-los explícitos, com o fim de abri-los ao
discernimento, ao juízo e à crítica como forma de validação intersubjetiva.
É preciso que se entenda que nossa escolha não é apenas uma opção ética
e política, é também um posicionamento hermenêutico. Assume-se que a
perspectiva das pessoas que foram vitimadas, daqueles a quem lhes foram
negadas condições necessária para viver com dignidade, é o lugar hermenêutico por excelência para compreender os processos sociais em curso.10
Entendendo que a “neutralização epistemológica do passado sempre
foi a contrapartida da neutralização social e política das ‘classes
perigosas’”11, decidimos optar por uma aproximação do processo
sócio-histórico que permita visibilizar e reconhecer a perspectiva
daqueles que, na referida dinâmica, foram marginalizados, excluídos e
9. ZEMELMAN, H. Debate sobre la situación actual de las ciencias sociales. p. 3. En línea:
http://www.archivochile.com/Ideas_Autores/zemelmanh/zemelman0007.pdf. Consulta realizada el 19 de septiembre de 2012. No original: “El movimiento de la realidad socio-histórica y su estrecha vinculación con la práctica social obliga a un constante esfuerzo por
descifrar los límites (que pueden ser teóricos, ideológicos o axiológicos) en cuyo espacio
reviste un significado particular el fenómeno que se quiere estudiar. Estos límites expresan
la opción social desde la cual se construye el conocimiento; implican, por lo tanto, una
forma de entender a la realidad, pero especialmente de cómo y para qué construirla en una
dirección determinada. Lo que decimos reviste un significado relevante cuando observamos
que los parámetros que en general se imponen, sin mediar muchas veces conciencia alguna
del investigador, son los que conforman el poder, en cuyos parámetros se pretende conferir
a los fenómenos el estatus de reales; con el agregado de establecer su identidad como única
y excluyente de otras posibles visiones de los mismos.”
10. Cfr. ETXEBERRIA, J. en el Prólogo a MARTÍNEZ DE BRINGAS, A. Exclusión y victimización. El grito de los derechos humanos en la globalización. Bilbao: Alberdania,
S.L., 2004, p. 13.
11. SANTOS, B. La globalización del derecho. Los nuevos caminos de la regulación y la
emancipación. Bogotá: Instituto Latinoamericano de Servicios Legales Alternativos –
ILSA, 1991, p. 235. No original: “la neutralización epistemológica del pasado siempre ha
sido la contraparte de la neutralización social y política de las ˋclases peligrosasˊ”.
140
7 – Poder Judiciário Democrático: uma tarefa pendente (e urgente) para o Brasil
invisibilizados a partir das narrativas oficiais e dos saberes hegemônicos.
Como bem coloca Enrique Dussel:
O método crítico consiste em se colocar no espaço
político dos pobres, das vítimas, e desde aquele local
fazer a crítica das patologias do Estado. A partir
desse lugar epistemológico – o das vítimas, as do sul
do planeta, dos oprimidos, dos excluídos, dos novos
movimentos populares, dos povos ancestrais colonizados pela Modernidade, pelo capitalismo que se
globaliza, tudo o que se expressa nas redes mundiais
‘altermundistas’ – será a partir de onde teremos que
ir fazendo a crítica de todo o sistema das categorias
da filosofia política burguesa.12
Mas, insistimos, assumir este posicionamento não traz consigo apenas a pretensão de oferecer uma oportunidade de visibilização das narrativas que foram marginalizadas do debate público, o que seria um ato
de justiça e uma ampliação das perspectivas de debate que asseguraria
um maior rigor metodológico; mais que isto, esta perspectiva das vítimas do sistema social e das violações de direitos humanos por parte do
Estado, permite uma melhor compreensão do sistema e dos desafios que
o mesmo Estado apresenta, do que a perspectiva daqueles que dele se
beneficiam.
No entanto, não se coloca uma postura revanchista, orientada para gerar novas exclusões, de um novo tipo. Em nossa aposta subjaz a intenção
última de iniciar processos de leitura e transformação da realidade que, ao
se identificar a injustiça, permitam que todos e todas possam desfrutar de
condições de vida digna; e esta é uma tarefa impossível se se olha para a
realidade a partir daqueles grupos ou setores sociais que foram favorecidos pela injustiça estrutural vivida durante a ditadura. No final das contas,
trata-se de optar pelas pessoas vitimadas, de pensar a partir delas, e contra
12. DUSSEL, E. Política de la liberación. Historia Mundial y Crítica. Madrid: Trotta, 2007,
p. 552.
141
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
as dinâmicas de vitimização13. A luta por uma sociedade sem vítimas, que
tenha conseguido erradicar toda forma de vitimização, figura como um
horizonte utópico.14
Verdade e memória histórica
Se, conforme Foucault, toda relação de poder é correlativa à constituição
de um campo de saber e todo saber supõe relações de poder15, necessitamos estar alertas diante das “razões” com as quais se arma o poder, denunciar as estratégias de que se vale [o poder] para se dotar de razões que lhe
são funcionais, e a partir das quais configura um “saber autorizado”, que
lhe permite invisibilizar e excluir outros saberes não oficiais que lutam
pela conservação da ordem social injusta.16 Toda tecnologia de exercício
do poder cria certos saberes, ao mesmo tempo em que o saber traz consigo
efeitos de poder. Sendo assim, o que concebemos como verdade, consequentemente se torna inseparável do processo pelo qual se estabelece,
assim como da configuração de poder em que é gerado.17 O que chamamos “verdade”, e, mais concretamente, a “verdade” dos acontecimentos
históricos, das narrações sobre as construções sociais, é um campo de luta
13. Cfr. DUSSEL, E. Ética de la Liberación en la Edad de la Globalización y de la Exclusión.
Madrid: Trotta, 2006, p. 417. No original: “El método crítico consiste en colocarse en el
espacio político de los pobres, las víctimas, y desde allí llevar a cabo la crítica de las
patologías del Estado. Desde ese lugar epistemológicos -el de las víctimas, las del sur del
planeta, los oprimidos, los excluidos, los nuevos movimientos populares, los pueblos ancestrales colonizados por la Modernidad, por el capitalismo que se globaliza, todo lo cual
queda expresado en redes mundiales altermundistas- será desde donde tendremos que ir
efectuando la crítica de todo el sistema de las categorías de la filosofía política burguesa.”
14. Cfr. SÁNCHEZ RUBIO, D. Filosofía, derecho y liberación en América Latina. Bilbao:
Desclée de Brouwer, 1999, p. 204.
15. Cfr. FOUCAULT, M. Vigilar y Castigar. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina,
S.A., 2002.
16. Cfr. SOLÓRZANO, N. Crítica de la Imaginación Jurídica. Una mirada desde la epistemología y la historia al derecho moderno y su ciencia. San Luis de Potosí: Universidad
Autónoma de San Luis de Potosí, 2007. Nota 162, p. 123.
17. Cfr. GARCÍA, M. La eficacia simbólica del derecho. Examen de situaciones colombianas. Bogotá: Ediciones Uniandes, 1993, p. 76.
142
7 – Poder Judiciário Democrático: uma tarefa pendente (e urgente) para o Brasil
entre projetos de sociedade opostos. A “verdade”, longe de estar à margem do contraditório lavor humano, é um campo semeado de conflitos de
poder. Esta constatação, além de chamar a atenção sobre a muito frequente
manipulação do passado com a pretensão de legitimar alguns abusos do
presente, pretende assinalar que certas formas de conceber o que se entende
por “verdade” atuam, efetivamente, como condição de possibilidade para
a constituição de modos específicos de organizar a sociedade. Como
afirma Helio Gallardo a propósito do tema da verdade, este
é um tema ideológico, ou seja, socialmente funcional
ou não para o poder e sua reprodução nas sociedades
modernas, e não tem muito sentido epistêmico moral
ou metafísico discutir quem a tem ou em que ela
reside. Seu sentido é político.”18
Por isto, consideramos que não há verdade quando se silencia as vítimas.
A partir desta busca pelo fortalecimento das vozes silenciadas, periféricas
e subalternas, reivindica-se a necessidade de levar em consideração os
conhecimentos, a verdade daqueles grupos que, ao longo da história
(história que hoje continua sendo construída), foram subalternizados e
continuam sendo invisibilizados. Nesse sentido, assim como afirma Inês
Virgínia Prado Soares, “a verdade deve ser usada como valor de referencia que tem por finalidade recuperar esse passado graves violações de
direitos humanos para enriquecer e transformar o presente”.19 Queremos
que não seja esquecido, para que nunca mais ocorram fatos como os que
o povo brasileiro teve que viver durante o período ditatorial. Procuramos
verdade e memória para sustentar nossa demanda de ações concretas que
assegurem a não repetição de violências.
18. GALLARDO, H. Teoría Crítica: Matriz y posibilidad de derechos humanos. (David
Sánchez Rubio, editor). Murcia, 2008, p. 233. No original: “es un tema ideológico, o sea
socialmente funcional o no para el poder y su reproducción en las sociedades modernas, y
no tiene mucho sentido epistémico moral o metafísico discutir quién la tiene o en qué reside.
Su sentido es político.”
19. QUINALHA, R. H. ; PRADO SOARES, Inês. A memória e seus abrigos: considerações
sobre os Lugares de Memória e seus valores de referência. Revista Anistia Política e
Justiça de Transição, v. 4, p. 250-278, 2011, p. 266.
143
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
O papel do Poder Judiciário no marco de um Estado
liberal capitalista
Em pesquisa dirigida por Boaventura de Souza Santos, empreendida
entre 1989 e 1993, sobre o desempenho dos tribunais de primeira instancia em Portugal, os autores questionam o protagonismo social e político do Poder Judiciário no mundo ocidental contemporâneo (SANTOS,
MARQUES e PEDROSO, 1995). Para além de uma notoriedade, o que se
percebe é que os tribunais atualmente primam por entender de forma mais
ampla e profunda o controle de legalidade, e se caracterizam por exercer
uma nova modalidade de intervencionismo, ao dirigir-se aos abusos do
poder e aos agentes políticos que deles são protagonistas. Neste sentido,
ressaltam os pesquisadores, os tribunais contemporâneos se distanciam
dos de outrora, mas continuam partilhando com seus antecessores um
protagonismo que é a expressão do confronto entre a classe política e os
outros órgãos do Poder, em particular o Poder Executivo, até porque a
política judiciária, típica do Estado Moderno, só se afirma como política
do Judiciário ao se confrontar com outras fontes de poder político (SANTOS, MARQUES e PEDROSO, 1995: 3).
Diante desta afirmação do sociólogo do direito português, o modelo
judicial do Estado moderno se assenta nas características do estado do
período liberal, que revelava seu reduzido peso político em contraste
com os outros poderes soberanos, o Poder Legislativo e o Poder Executivo. As ideias em que se alicerçam os tribunais nesse paradigma são as
seguintes:
1. A teoria da separação dos poderes conforma a organização do poder político e de tal maneira que, por
via dela, o Poder Legislativo assume uma clara predominância sobre os demais, enquanto o poder judicial é, na prática, politicamente neutralizado.
2. A neutralização política do poder judicial decorre
do princípio da legalidade, isto é, da proibição de
os tribunais decidirem contra legem e do princípio, conexo com o primeiro, da subsunção racional-formal nos termos do qual a aplicação do direito é uma subsunção lógica de fatos a normas e,
144
7 – Poder Judiciário Democrático: uma tarefa pendente (e urgente) para o Brasil
como tal, desprovida de referências sociais, éticas
ou políticas. Assim, os tribunais se movem num
quadro jurídico-político pré-constituído, apenas lhes
competindo garantir concretamente a sua vigência.
Por essa razão, o poder dos tribunais é retroativo, ou
é acionado retroativamente, isto é, com o objetivo
de reconstituir uma realidade normativa plenamente
constituída. Pela mesma razão, os tribunais são a
garantia de que o monopólio estatal da violência é
exercido legitimamente.
3. Além de retrospectivo, o poder judicial é reativo,
ou seja, só atua quando solicitado pelas partes ou
por outros setores do Estado. A disponibilidade dos
tribunais para resolver litígios é, assim, abstrata e só se
converte numa oferta concreta de resolução de litígios
na medida em que houver uma procura social efetiva.
Os tribunais nada devem fazer para influenciar o tipo
e o nível concretos da procura de que são alvo.
4. Os litígios de que se ocupam os tribunais são individualizados no duplo sentido de que têm contornos
claramente definidos por critérios estritos de relevância jurídica e de que ocorrem entre indivíduos.
Por outro lado, as decisões judiciais sobre eles proferidas só valem, em princípio, para eles, não tendo
por isso validade geral.
5. Na resolução dos litígios é dada total prioridade
ao princípio da segurança jurídica assente na
generalidade e na universalidade da lei e na
aplicação, idealmente automática, que ela possibilita.
A insegurança substantiva do futuro é assim
contornada, quer pela securização processual do
presente (a observância das regras de processo), quer
pela securização processual do futuro (o princípio do
caso julgado).
6. A independência dos tribunais reside em estarem
total e exclusivamente submetidos ao império da
lei. Assim concebida, a independência dos tribunais
é uma garantia eficaz da proteção da liberdade,
entendida esta como vínculo negativo, ou seja, como
prerrogativa de não-interferência. A independência diz respeito à direção do processo decisório
e, portanto, pode coexistir com a dependência
administrativa e financeira dos tribunais face ao
145
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
Poder Legislativo e ao Poder Executivo. (SANTOS,
MARQUES E PEDROSO,1995: 7-9).
Nesta perspectiva, o Poder Judiciário brasileiro não atuava de forma
muito distinta de seus correlatos na Europa, nos Estados Unidos ou em
outros países latino-americanos, até o advento da Constituição Federal de
1988. Porém, sempre teve características próprias, resultantes de uma evolução particular do sistema de poderes no país, conformada em ambiente
sociopolítico típico e em uma cultura jurídica específica. É neste sentido
que deve ser feito um breve exercício de (re)conhecimento histórico da
formação do Estado brasileiro, dentro do contexto macro de formação do
Estado constitucional moderno.
Como afirma Helio Gallardo, na América Latina,
os Estados não se configuraram como Estado de direito (império da lei, divisão de poderes, produção
de uma identidade nacional, para citar três fatores) e
são mais propriamente aparatos patrimoniais ou rentistas e clientelistas. Esta fragilidade constitutiva não
lhes permite nem reconhecer nem constituir direitos
humanos, seja diretamente, seja criando as condições
para que estes sejam gerados, se desenvolvam e se
fortaleçam a partir dos vínculos que estabelecem
suas populações (sociedade civil). 20
Falar de patrimonialismo (seguindo o esquema explicativo weberiano) significa elucidar o sentido do poder estatal, ou seja, implica em demonstrar como se organiza e se legitima o poder em uma determinada
20. GALLARDO, Helio. Teoría crítica y derechos humanos. Una lectura latinoamericana. En
Los derechos humanos desde el enfoque crítico: reflexiones para el abordaje de la realidad
venezolana y latinoamericana. Caracas: Defensoría del Pueblo de Venezuela, 2011. No original: “Tal y como afirma Helio Gallardo, en América Latina, “los Estados no se han configurado como Estados de derecho (imperio de la ley, división de poderes, producción de
una identidad nacional, por citar tres factores) y son más bien maquinarias patrimoniales o
rentistas y clientelares. Esta fragilidad constitutiva no les permite ni reconocer ni constituir
derechos humanos ya sea directamente o creando las condiciones para que ellos se generen,
desplieguen y fortalezcan desde los vínculos que establecen sus poblaciones (sociedad civil).”
146
7 – Poder Judiciário Democrático: uma tarefa pendente (e urgente) para o Brasil
comunidade sociopolítica... Conforme explicita a análise weberiana, o
patrimonialismo, em grande parte de suas manifestações práticas, encerra
um conjunto de ações que lhe permitem se dissimular sob uma ordem
de caráter legal e burocrático (BARILE, 2006: 63). Tem-se então uma
formalidade legal e burocrática que encobre as práticas de um estado
conduzido pela lógica do patrimonialismo.
Ao mesmo tempo, no caso brasileiro, o “bacharelismo elitista e conservador” é um elemento de grande peso quando se procura compreender o processo de conformação dos magistrados e a maneira como estes
se veem e se colocam dentro da sociedade. A formação dos “bacharéis”
no Brasil sempre transitou, ao longo da história, como uma concepção
profundamente conservadora, posto que adequada às posições sociais
hegemônicas, em lugar de favorecer a formação de uma consciência
crítica que estimulasse processos de transformação das relações sociais
injustas. Conforma-se assim uma espécie de visão corporativa que rechaça
as propostas políticas e sociais emancipatórias; uma visão eivada de uma
postura dogmática em relação à onisciência da lei, reprodutora de uma
consciência falseada que postula a ideia de uma sociedade “harmônica e
controlável” a partir dos desígnios jurídicos (BARILE, 2006: 258).
É necessário que nos perguntemos quanto desta concepção sobre o
papel do direito e dos atores do direito segue hoje vigente, reproduzindo
estruturas de poder antidemocráticas. Em todo caso, é preciso identificar
esta matriz política conservadora e sua influência no perfil institucional
do poder judiciário brasileiro. A esta caracterização é necessário agregar a
concepção elitista da magistratura, derivada da participação política ativa
que os magistrados sustentaram historicamente, sendo possível afirmar
que os membros do Judiciário constituem um estrato representativo no
processo de construção do estado nacional. A vinculação que os magistrados mantiveram tanto com os partidos políticos quanto com os outros grupos de poder explica sua atuação no interior do próprio aparato estatal, em
favor da reprodução dos interesses desses grupos. (BARILE, 2006: 259)
No Brasil, os titulares do poder político sempre estiveram emparelhados com os detentores do poder econômico privados ou com os agen147
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
tes estatais de alto escalão. Efetivamente, como lembra Comparato, esta
aliança entre empresa e estado é da essência do sistema capitalista, não
da ideologia do liberalismo econômico; e a história brasileira, desde os
tempos coloniais, mostra que a estrutura de poder no país e a mentalidade coletiva sempre foram marcadas pelo “espírito capitalista” da teoria
weberiana21. Por conseguinte, uma das características da elite brasileira
é confundir o patrimônio público com o privado, a tal ponto que até mesmo os recursos advindos de tributos são considerados pelos empresários
privados e pelos agentes estatais como como uma “ativo da sociedade
de fato”22.
Ademais das características já colocadas, deve-se frisar que a consolidação estrutural do poder no Brasil se deu em um ambiente social e político conivente com a exploração do trabalho escravo, existente no país por
400 anos (dos 500 anos de nossa história moderna...), e que a escravidão
não se restringia ao setor empresarial, mas permeava toda a vida doméstica
e a Igreja Católica aqui situada. Este fato traz consigo consequências que
se refletem até hoje no cotidiano brasileiro: na sociedade, a desigualdade
social não constrange ou escandaliza, mas é naturalizada; na política, o
que foi naturalizado é que a soberania popular é mera retórica, posto que
há uma convicção notória de que o poder só é eficientemente exercido
pela elite da população.
Assevera Comparato que outro efeito da escravidão no Brasil é a
elasticidade de sua tolerância com o abuso de poder, seja ele público ou
privado, fundado na imunidade concedida aos senhores de escravos. E
completa: “basta lembrar a ausência de punição dos agentes estatais,
responsáveis pelas inúmeras atrocidades cometidas sistematicamente
durante a ditadura getulista e o regime empresarial-militar instaurado
em 1964.”23 Recorda o autor que no final daqueles dois períodos de
21. COMPARATO, Fabio Konder. O poder Judiciário no Brasil (I), Texto sem data, disponível
em http://www.escoladegoverno.org.br/artigos/3973-o-poder-judiciario-no-brasil1. Acesso
em: 16 de junho de 2015.
22. idem
23. ibidem
148
7 – Poder Judiciário Democrático: uma tarefa pendente (e urgente) para o Brasil
autoritarismo, as oligarquias se valeram do instituto da anistia para encerrar a discussão sobre os regimes de exceção, em ambos os casos com
o consentimento do Judiciário.
Portanto, quando se aborda historicamente o modelo de estado liberal no Brasil, temos ainda um estado de caráter eminentemente patrimonialista, cujo poder é exercido, desde sempre, pelas oligarquias, sendo que
o Poder Judiciário, oriundo ou não deste estrato social, consente com a
predominância dos interesses da elite sobre os interesses públicos, seja por
sua formação jurídica – desenhada para reproduzir este sistema –; seja por
sua conformação ao modelo, muito adequado aos interesses do capital no
mundo contemporâneo.
Tal quadro se revela quando se analisa a realidade social, dentro da
qual está inserida a organização política, definida, por um lado, pela
efetiva estrutura de poder no seio da sociedade; e por outro lado, pelo
conjunto de valores éticos que balizam estra organização social. Em um
ambiente capitalista, portanto, o exercício do poder é exercido pelos detentores dos meios econômicos, função reconhecida pelo próprio grupo
social dominado.
O processo histórico de formação do Estado e do
Poder Judiciário no Brasil
a atuação do Poder Judiciário nos anos da ditadura civil-militar e nos
períodos subsequentes é construída a partir de fórmulas e ações anteriores,
que justificam uma digressão, ainda que superficial, até o período da
República Velha, imediatamente posterior ao período colonial, a fim de se
elucidar como os tribunais nacionais foram se construindo na realidade do
Brasil, sob pena de não ficar claro o motivo pelo qual suas ações hoje são
da maneira como conhecemos.
A fundação da República no Brasil implicou na refundação do próprio
Estado brasileiro, o que se deu em meio a diversas contradições e conflitos,
resultando em uma busca de limites e funções para o Estado que fosse
compatível com a complexidade social daquele momento histórico. Porém,
149
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
na realidade, os debates ideológicos que se travaram foram voltados para
a redefinição das funções do antigo Estado imperial, desconsiderando-se a
discussão do papel da população que atuara ativamente na transição política, relegando-se o interesse popular a um nível secundário e, ao mesmo
tempo, sobrepondo-se-lhe as forças dominantes. Por conseguinte, já no
primeiro momento da República, as mudanças estruturais não se deram
com a efetiva participação popular, mas pela via da outorga (BARILE,
2006: 187-188).
A República Velha foi marcada pela predominância dos interesses
de uma classe política dominante sobre as necessidades da população.
Desde aquela época (e pouco mudou até o presente), o debate se centrava
na discussão acerca de uma nova Constituição, ou seja, da solução dos
problemas políticos pela legalidade e não pela mobilização social. Assim,
a abordagem de antinomias como indivíduo/coletividade ou público/
privado adquiriu estatuto constitucional sem integrar os conceitos da
população aos modelos legais adotados. Não se estranha, portanto, que a
primeira República tenha sido palco de grande instabilidade institucional
e que o Poder Judiciário tenha recuperado velhas práticas herdadas do
período imperial, como o nepotismo, a corrupção, as malversações do
cargo público, devidamente revestidas de legalidade. Em outras palavras,
mudou-se o regime sem se modificar a estrutura do Estado. Não houve
rompimento com os antigos poderes, nem seus vícios: o cartorialismo do
Estado, o clientelismo, a aristocracia agrária, o bacharelismo elitista, a
fraude na política etc... Nas palavras de Barile:
O que se vislumbra analiticamente é que o pacto
social brasileiro da República Velha se deu pela
forma retórica constitucional, sendo que seu
conteúdo reformista (...) foi relegado a um plano de
discussões posterior (BARILE, 2006: 189).
A magistratura, naquele período, era refém do sistema político
dominante, pois desde o ingresso na carreira até as promoções, passando
pelos efeitos da decisão judicial, tudo era controlado firmemente pela elite
política dirigente. Tinha-se, portanto, um corpo de magistrados partidário,
responsável por reproduzir as vontades de particulares no espaço público
150
7 – Poder Judiciário Democrático: uma tarefa pendente (e urgente) para o Brasil
estatal, inserido no cenário do patrimonialismo estatal. Havia a tendência
a compactuar com o poder político dominante e,
embora o discurso legal pregasse a imparcialidade, a
neutralidade e as inúmeras reservas constitucionais
e garantia aos magistrados para sua atuação profissional, o marco mais considerável dessa leitura estrutural é o fato da judicatura republicana ser um dos
braços mais importantes para a perpetuação dos grupos politicamente influentes no poder, convalidando
oficialmente sua predominância social (BARILE,
2006: 227-228).
Percebe-se pois, na história político-jurídica brasileira, desde a
República Velha, a confusão entre a coisa pública e a privada, configurando
um patrimonialismo difícil de ser desarraigado.
Ao escrever sobre o Poder Judiciário no Brasil, Comparato24 recorda
que é a partir da função judiciária que o Estado moderno nasceu e pôde se
desenvolver. O autor sugere que os questionamentos acerca deste poder só
podem ser respondidos a partir de uma análise concreta da realidade social,
dentro da qual está inserido. Seus questionamentos se dirigem aos que têm
a atribuição de exercer a função jurisdicional e ao controle das ações desse
Poder que, neste país, geralmente são ligados aos grupos dominantes. O
autor evoca a conclusão de João Mangabeira sobre a atuação do Supremo
Tribunal Federal desde sua criação até a ditadura Vargas”
O órgão que a Constituição criara para seu guarda
supremo, e destinado a conter, ao mesmo tempo, os
excessos do Congresso e as violências do Governo, a
deixava desamparada nos dias de risco ou de terror,
quando, exatamente, mais necessitada estava ela
da lealdade, da fidelidade e da coragem dos seus
defensores.25
24. COMPARATO, Fabio Konder. O poder Judiciário no Brasil (I), Texto sem data, disponível
em http://www.escoladegoverno.org.br/artigos/3973-o-poder-judiciario-no-brasil1 . Acesso
em 16 de junho de 2015.
25. Rui, O Estadista da República, Coleção Documentos Brasileiros nº 40, Livraria José Olympio Editora, 1943, pág.78, apud COMPARATO, op. cit.
151
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
As transições de regimes ditatoriais para as democracias são oportunidades para romper com o passado autoritário e também para o surgimento de práticas democráticas de relacionamento e de controle. No Brasil,
o Poder Judiciário que se instala com a República a partir de 1889, depois da Abolição da Escravidão e da queda do Império, foi concebido
com a tarefa de se desvincular do poder do Rei, presente durante todo
o período colonial e o imperial. A ideia era reavaliar o próprio modelo
de Estado, a fim de consagrar as finalidades públicas daquela instituição e consolidar um elenco de direitos dos cidadãos diante de uma nova
situação sócio-política. A ruptura com o regime anterior se mostrou de
extrema complexidade, pois dentro do próprio poder insurgente estavam
representados os membros da oligarquia latifundiária, aferrada aos seus
privilégios herdados do sistema anterior. Ademais, havia uma pluralidade
de posições ideológicas republicanas no país.
Afirmamos que o sistema judicial brasileiro durante a ditadura civil-militar se insere teoricamente no modelo liberal porque, como veremos, nem
todas as características dos tribunais, à época, correspondem a este padrão. A
fim de caracterizar o Poder Judiciário naquele período, incumbe, pois, descrever alguns fatos relevantes que se desenrolaram ao longo daquele período.
O Estado brasileiro na ditadura civil militar
Os juristas pouco se ocuparam com a análise das mudanças
constitucionais no Brasil ao longo da História, em parte porque na área
da pesquisa do Direito nunca houve uma preocupação com a construção
de uma cultura jurídica caracteristicamente brasileira, em parte pelo fato
dos doutrinadores não relacionarem diretamente aquelas mudanças com a
aplicação do direito.
Porém, desde a entrada em vigor da Constituição do Império, em 1824,
houve longos períodos de agitação no país, com frequente repetição dos
mesmos problemas, jamais solucionados em função da pouca (ou nenhuma) reflexão sobre as saídas possíveis. A tradição doutrinária jurídica
brasileira mais recorrente é a de “importar” soluções do constitucionalismo
152
7 – Poder Judiciário Democrático: uma tarefa pendente (e urgente) para o Brasil
estrangeiro, com pouca atenção para o debate acerca da democracia brasileira.26... No Brasil contemporâneo, assim com no Brasil imperial e no da
República Velha, seguimos contando com a presença marcante de elites
políticas e econômicas no nosso sistema político democrático, presença
que se faz notar em todos os poderes do Estado: Executivo, Legislativo e
Judiciário.
Efetivamente, recorda BARBOSA (2010:23) que em pronunciamento
relativamente recente à Câmara dos Deputados, Nelson Jobim, ex-membro
do Supremo Tribunal Federal, relatou que o processo de elaboração da
Constituição de 1988 transcorreu como um “jogo privativo das elites
parlamentares”, como um processo “condicionado exclusivamente pela
política parlamentar”. Fica patente que se conta com o direito para legitimar determinado projeto de futuro, arquitetado por um grupo dominante
no país.
Não por acaso, ao tomar posse como Presidente da República, eleito por
um sistema de votação indireta em abril de 1964, Castello Branco se refere
à “revolução” e fala do caminho para o “progresso” sem, no entanto, “renegar o passado”, e cita Rui Barbosa: “ é nas classes mais cultas e abastadas
que devem ter seu ponto de partida as agitações regeneradoras. Demos ao
povo o exemplo, e ele nos seguirá”27. Os historiadores têm reconhecido que
a mais longa ditadura brasileira, a civil-militar inaugurada em 1964, não
foi um “acidente de percurso”, mas o resultado de uma “construção histórico-social” (AARÃO REIS, 2004: 49).
O Golpe de 1964 foi o resultado da disputa entre as forças progressistas
que desejavam reformas e a direita conservadora, cujo comando era exercido pelo alto escalão das Forças Armadas, com o apoio dos Estados Unidos da América, dos empresários brasileiros, por setores conservadores da
classe média, pelo PSD (Partido Social Democrático), pela UDN (União
26. OLIVEIRA VIANNA, Francisco J.. O idealismo da Constituição, Rio de Janeiro, Terra do
Sol, 1927, p. 13, apud BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade. Mudança constitucional, autoritarismo e democracia no Brasil pós -1964. Texto disponível em: http://hdl.handle.
net/10482/4075
27. Diário do Congresso Nacional, 16.04.1964, p.127-129, apud BARBOSA, op. cit., p. 25.
153
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
Democrática Nacional) e pelo alto comando da Igreja Católica. Foi a mais
duradoura ditadura da América do Sul e suas marcas ainda impregnam a
cultura político-institucional do Brasil28.
Os militares impediram as reformas de base proposta pelo presidente
deposto, João Goulart, e instauraram um regime autoritário, cujo discurso econômico era marcadamente desenvolvimentista e monopolista, com
proposta de desnacionalizar a economia e concentrar a renda. Para que
funcionasse o modelo econômico proposto, o Estado precisava ser forte.
Com o recrudescimento do regime e a intensificação das violações de
direitos humanos, era necessário legitimar o regime, dando-lhe aparência
de legalidade.
Logo depois do golpe, os militares trataram de modificar as normas
jurídicas, com o propósito de forjar um ordenamento normativo que desse suporte legal à ruptura política. Assim, no dia 06 de abril de 1964,
editaram o Ato Institucional nº 1 (AI-1), que abordava justamente essa
legitimação, denominando o Golpe de ““A Revolução Vitoriosa” que
“como Poder Constituinte, legitima-se por si mesma”. O Ato Institucional
nº 2, de 1965, acabava com os partidos políticos e conferia ao Poder Executivo competências para fechar o Congresso Nacional, além de tornar as
eleições presidenciais indiretas e estender aos civis o julgamento pela Justiça Militar. Finalmente, em 1967, a Constituição de 1946 foi suplantada
por outra, emendada em 1969. Do mesmo ano, a Lei de Segurança Nacional (Decreto-lei 315/1967) e a Lei de Imprensa (5250/1967) apontavam
claramente para o endurecimento da ditadura.
A partir de 1968, à medida em que aumentavam os protestos, a partir da
morte do estudante Edson Luís no Rio de Janeiro, o regime se torna mais
violento. A organização de um oposição política contra o regime resultou
em mais repressão e na edição do Ato Institucional nº 5 , em dezembro
de 1968 (GASPARI, 2010). O AI-5 colocou o Congresso Nacional em
recesso, foram cassados sessenta e nove parlamentares e a oposição foi
brutalmente reprimida (ARNS, Brasil Nunca Mais, 1985: 60).
28. Cf. GASPARI (2002), FERREIRA (2003) e GOMES et al. (2007).
154
7 – Poder Judiciário Democrático: uma tarefa pendente (e urgente) para o Brasil
Em 1979, por iniciativa de Eny Moreira, começa o projeto Brasil
Nunca Mais, que só foi concluído em 1985. A proposta foi a de estudar
a repressão política da perspectiva de sua “legalidade”. Constatou-se
que as leis e os códigos da Justiça Militar eram recorrentemente violados pelo regime, que adotava a tortura como prática investigatória de
maneira clandestina. O AI-5, nesse sentido, foi a tentativa de legalizar
o estado de exceção, suspendendo o direito à manifestação política, o
habeas corpus, as garantias de independência do Poder Judiciário (inamovibilidade, vitaliciedade, estabilidade). Em suma, o AI-5 sepultou o
Estado de Direito29.
A ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) se apresentava como
um Estado Direito, recorrendo à outorga de constituições e atos institucionais para se legitimar jurídico e politicamente. Havia, efetivamente,
esse grau de consenso entre a elite econômica e as Forças Armadas no
Brasil, pois se trata do que Ianni (1981) chamava de “ditadura do grande capital”. Obviamente, esse consenso antidemocrático implicava na
violação de direitos, mesmo os historicamente consagrados, como a vida
e a liberdade. Por si só esse elemento já é incompatível com a noção de
Estado de Direito, posto que a violação de direitos humanos praticada
pelo Estado na forma de prática política, é uma violência que desvela o
autoritarismo.
Em 1960, ocorre o golpe dentro do golpe: o Vice-Presidente civil, Antônio Aleixo, é impedido de assumir a Presidência depois da morte de Costa
e Silva, e a Junta Militar passa a ocupar o Poder Executivo. Nesse período
se intensifica a luta armada, os sequestros em troca da libertação de presos
políticos, são adotadas as penas de morte e o banimento, são endurecidas
as punições previstas na Lei de Segurança Nacional por decreto (Decreto-Lei nº 898/1969) e é outorgada a Emenda Constitucional nº 1 (ARNS,
Brasil Nunca Mais, 1996:61). Em seguida, o General Médici é nomeado
Presidente da República e se instala definitivamente o governo golpista. O
29. Para aprofundar a discussão sobre o Estado de “não direito”, ver Anthony Pereira em: http://
tgeu.org/tgeu-media-statement-council-of-europe-adopts-historic-transgender-resolution/
erece propriamente ser chamada de direito.
155
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
período subsequente foi o mais duro do regime, com aumento gradativo de
prisões e torturas, até chegar à supressão total das liberdades civis30.
Paralelamente, ocorreu o denominado “milagre econômico” dos anos
1970, com um clima desenvolvimentista e ufanista: o Brasil foi vitorioso
na Copa do Mundo, foram inauguradas a ponte Rio-Niterói (um feito da
engenharia nacional) e a rodovia Transamazônica, que permitiu que as
fronteiras agrícolas nacionais se expandissem para dentro da floresta.
A ditadura brasileira foi apoiada por importantes segmentos da sociedade, como o empresariado, mas teve também a colaboração do Poder
Judiciário que viabilizou o projeto de poder dos ditadores. Durante o regime foi muito relevante a manutenção dos tribunais, por meio dos quais
se legitimava o regime de força, uma forma da violência se revestir de
legalidade. À medida em que se desenvolve o terrorismo de Estado o rito
jurídico tende a ser superado por outras instituições, como as polícias políticas e unidades especiais de repressão, como o DOI-CODI e o DOPS.
Embora no caso brasileiro não tenham sido criados tribunais de exceção,
o Poder Judiciário cumpriu este papel. Na ditadura civil-militar brasileira,
inicialmente, os juízes atuavam de forma conservadora, mas à medida em
que se acomodava o regime, passaram a colaborar. Os que não se adaptavam eram removidos ou aposentados compulsoriamente, como Hermes
Lima, Evandro Lins e Silva e Victor Nunes Leal, ministros do Supremo
Tribunal Federal. Com o AI-5, as garantias da magistratura foram suspensas e a adesão do Judiciário, que não era, majoritariamente, ideológica,
passa a ocorrer em virtude da necessidade de preservar a própria condição
de juiz e de evitar perseguições políticas. Para Anthony Pereira (2010), a
preservação do Judiciário e seu funcionamento “normal” se deu em função de um consenso entre as elites civis-militares e o Poder Judiciário,
30. Segundo o relatório “Brasil: Nunca Mais”, “a estatística do Regime Militar de 1964 registrava aproximadamente 10 mil exilados políticos, 4.682 cassados, milhares de cidadãos que
passaram por cárceres políticos, 245 estudantes expulsos das universidades por força do Decreto 477, e uma lista de mortos e desaparecidos tocando a casa das três centenas” (ARNS,
Brasil Nunca Mais,1996: 66). O número de mortos e desaparecidos é ainda maior nas contas
da Comissão Nacional da Verdade: 434 cidadãos foram mortos e desaparecidos durante a
ditadura militar brasileira (Relatório da Comissão Nacional de Verdade, 2014: 963).
156
7 – Poder Judiciário Democrático: uma tarefa pendente (e urgente) para o Brasil
não importa se por questões ideológicas ou por imposição pela força. A
maioria dos juízes era legalista e liberal e continuou aplicando o direito
sem questionar que estivesse em uma ditadura.
O Poder Judiciário no Brasil e as “permanências
autoritárias”
É muito oportuno atentar para a afirmação de Raúl Zaffaroni, segundo
o qual
a função judicial na América Latina não tem história.
Embora a história de nossos países seja rica em
períodos e crítica, e haja países que têm sua história
social muito bem estudada, não se investigou a
função que exercida pela jurisdição de cada um
desses momentos. 31
Não obstante, é possível reconhecer que o quadro geral do Estado
Liberal funciona como horizonte de compreensão, a partir do qual se foi
constituindo o Estado nos países latino-americanos e, muito concretamente,
no Brasil. Este marco estabelece não apenas uma forma de conceber a
função do Estado e sua relação com a cidadania, como também formula
determinados parâmetros para o exercício da função pública em geral,
incluindo (e não poderia ser de outra forma) a prática do Poder Judiciário.
Luiz Alberto Warat elaborou o conceito de sentido comum teórico dos
juristas como um intrincado complexo de fatores subjacentes às práticas
jurídicas que as disciplinam ideologicamente32. Esse sentido comum pode
31. ZAFFARONI, Raúl. Dimensión política de un poder judicial democrático. Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 4, p. 20. No original: “la función judicial en América
Latina no tiene historia. Si bien la historia de nuestros países es rica en períodos y critica, y
hay países que tienen su historia social muy bien estudiada, no se ha investigado la función
que ha cumplido la jurisdicción en cada uno de esos momentos.”
32. WARAT, Luis Alberto. Mitos e Teorias na Interpretação da Lei. Porto Alegre: Síntese, 1979:
Complexo de imagens, noções, representações, saberes que subjazem às diversas práticas
jurídica, e que funcionam como normas que disciplinam ideologicamente o trabalho profis-
157
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
explicar a forma como o Poder Judiciário e os operadores do direito desenvolveram suas práticas e atividades, o que ajuda na compreensão da
prática do direito durante o período ditatorial, voltada para conferir uma
aparência de legalidade ao regime militar. Este sentido comum teórico
atua em toda a sociedade, e possibilita a permanência de uma prática autoritária no marco do pensamento liberal.
Também o conceito de habitus elaborado por Pierre Bourdieu pode
auxiliar, posto que as práticas sociais que se formaram durante a ditadura
permanecem até hoje:
Habitus é aqui compreendido como: [...] um
sistema de disposições duráveis e transponíveis que,
integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações – e torna possível
a realização de tarefas infinitamente diferenciadas,
graças às transferências analógicas de esquemas [...]
(Bourdieu, 1983: 65) – grifo nosso.
Pelo fato de que a identidade das condições de existência tende a produzir sistemas de disposições
semelhantes (pelo menos parcialmente), a homogeneidade (relativa) dos habitus que delas resulta
está no princípio de uma harmonização objetiva das
práticas e das obras, harmonização esta própria a lhes
conferir a regularidade e a objetividade que definem
sua ‘racionalidade’ específica e que as fazem ser
vividas como evidentes e necessárias, isto é, como
imediatamente inteligíveis e previsíveis, por todos
os agentes dotados do domínio prático do sistema de
esquemas de ação e de interpretação objetivamente
implicados na sua efetivação, e por esses somente
(Bourdieu, 1983: 66).
Em nossa sociedade existe um habitus de classe que esteve presente na
forma como atuou o poder judiciário durante a ditadura e se mantém por
sional dos juristas... Este sentido comum teórico representa um sistema de conhecimentos
que organizam os dados da realidade, pretendendo assegurar a reprodução dos valores e
práticas dominantes.
158
7 – Poder Judiciário Democrático: uma tarefa pendente (e urgente) para o Brasil
meio de diversas permanências autoritárias no presente. O Poder Judiciário brasileiro se conforma a um habitus de classe, definido pelo posição
ocupada pelos juízes na sociedade brasileira, dentro de um estado particularmente patrimonialista...33
Ambos os conceitos,“sentido comum teórico dos juristas” e “habitus de classe”, nos oferecem um horizonte de compreensão para a instauração no Brasil daquilo que Anthony Pereira denominou “legalidade
autoritária”. O autor, ao comparar os processos ditatoriais na Argentina,
Chile e Brasil, esclarece que as diferenças entre as três ditaduras, no
que diz respeito ao papel do Judiciário, se deu pelos distintos graus de
consenso entre as elites judiciais e os militares antes da implantação dos
regimes autoritários (PEREIRA, 2010: 41). No Brasil, além da formação
legalista e liberal da maior parte dos juízes, houve a preservação do aparato judicial, emprestando à ditadura uma aparência de normalidade34.
Nas palavras de PEREIRA (2010: 284): “os que conseguem judicializar a repressão são aqueles que podem contar com tribunais ‘dignos
de confiança’”. Essa “legalidade autoritária”, característica da ditadura
civil-militar no Brasil, dava ao regime uma aparência de normalidade
democrática (PEREIRA, 2010).
É importante destacar como durante a ditadura civil-militar foi
mantido em vigor o ordenamento constitucional que consagrava direitos,
mas foram suprimidas, de fato, os direitos e garantias individuais e os
direitos sociais. É interessante registrar que o Ato Institucional nº 5, de
13 de dezembro de 1968, suspendeu oficialmente o habeas corpus em
caso de “crimes políticos” quanto à Justiça Civil. Neste ponto a ditadura
brasileira se diferenciou da argentina e da chilena, em curso na mesma
33. Trabalhamos aqui com o conceito de “estado patrimonialista” de GALLARDO, Helio, Teoría Crítica y Derechos Humanos. Una lectura latinoamericana in Los derechos humanos
desde el enfoque crítico. Caracas, Fundación Juan Vives Suriá, 2011.
34. essa legalidade autoritária servia para legitimar um regime ditatorial que “registrava aproximadamente 10 mil exilados políticos, 4.682 cassados, milhares de cidadãos que passaram por cárceres políticos, 245 estudantes expulsos das universidades por força do Decreto
477”; número acrescido de 434 cidadãos mortos e desaparecidos, segundo o Relatório da
Comissão Nacional da Verdade, 2014, p. 963.
159
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
época, pois aqui o Poder Judiciário não foi afastado do aparato repressivo,
ao contrário dos outros países.35 Então colaborar ou não com a repressão
poderia ser uma escolha tanto para a Justiça Civil quanto para a Justiça
Militar.
Ou seja, no Brasil, a repressão política foi judicializada, funcionando
numa combinação entre a justiça civil e a militar, numa organização que
preservou alto grau de consenso entre as elites militares e as judiciárias
(PEREIRA, 2010: 252). Este arranjo impactou no processo de transição
para a democracia, influenciando o nível de efetivação do Estado de Direito, por natureza guardião dos direitos humanos, com a necessidade de
efetivar os direitos à verdade, justiça e reparação.
A demanda por justiça de transição na América Latina36 tem se demonstrado uma constante, e as vítimas têm buscado tanto reparações
quanto revisar o passado, a fim de recuperar a memória histórica do
país. Nos Estados latino-americanos as comissões de verdade foram,
majoritariamente, seguidas de julgamentos, ainda que com largos lapsos.
Dezesseis dos dezenove países da América Latina que passaram por
ditaduras no século XX tiveram leis de anistia37.
As variadas decisões tomadas a partir da aplicação das leis de anistia
nos Estados latino-americanos têm a ver, obviamente, como conteúdo
das normas. Assim, em alguns casos, resultaram na revisão das normas internas, e em outros, a excludentes do crime. O único país latino
americano que adotou uma lei de anistia e não fez julgamentos dos
casos de violações de direitos humanos cometidos durante a ditadura foi
o Brasil38.
35. PEREIRA, Anthony W. Ditadura e Repressão. O autoritarismo e o estado de direito no
Brasil, no Chile e na Argentina, Paz e Terra, 2010.
36. Ver SIKKINK, Kathryn e WALLING, Carrie Booth, p. 437.
37. As exceções são Granada, Guiana e Paraguai.
38. Para mais detalhes sobre a justiça de transição nos países latino-americanos, ver Buarque
de Hollanda, Cristina; Batista, Vanessa Oliveira e Boiteux, Luciana. Justiça de transição
e direitos humanos na América Latina e na África do Sul. Revista OABRJ, v.25, n. 02,
p.55 - 75, 2010.
160
7 – Poder Judiciário Democrático: uma tarefa pendente (e urgente) para o Brasil
Embora considerada por alguns autores como uma forma de justiça de
transição, a anistia, no Brasil, foi uma forma de esquecimento do passado39. Esta opção política no período de transição para a democracia, de se
adotar a Lei nº 6.683/79, refletia uma proposta dos militares de promover
uma passagem “lenta, gradual e segura”. Efetivamente, passaram-se
onze anos desde a entrada em vigor da referida norma para que os civis
retomassem o poder, e dezesseis até que houvesse uma eleição popular
e direta para Presidente da República. Essa transição democrática foi o
resultado de uma negociação com a elite do regime autoritário, valendo
tanto para os opositores do regime quanto para os crimes praticados pelos
agentes do Estado, uma “anistia em branco”, autoconcedida pelo Estado
para perdoar os crimes de lesa-humanidade ocorridos durante o regime
militar. Não por acaso, o Supremo Tribunal Federal, denegou, por maioria
de votos, o pedido de reviso da Lei de Anistia40, contido na ADPF 15341,
colocando-se na contramão da jurisprudência das cortes internacionais,
que não reconhecem a auto-anistia.
Efetivamente, persiste no Brasil uma cultura do esquecimento em relação aos fatos graves ocorridos durante a ditadura civil-militar, e essa
forma legalista e liberal de atuação do Poder Judiciário não mudou, apesar
da transição para a democracia, em parte porque a formação dos juízes
não foi estruturalmente modificada, em parte porque a própria estrutura
do aparato judicial não foi modificada com a Constituição Democrática
de 1988.
39. BASTOS, Lucia Elena Arantes Ferreira. Anistia: as leis internacionais e o caso brasileiro.
Curitiba, Juruá, 2009, p. 65-66.
40. Celso de Mello, Voto na ADPF 153, p. 17. http://www.stf.jus.br
41. Para uma análise da ADPF 153, ver MAGALHÃES, J. N. ; BATISTA, V. O. Constituição
e Anistia: uma Análise do Discurso do STF no Julgamento da ADPF nº. 153. In: Lucia Eilbaum, Rogério Gesta Leal, Samantha Ribeiro Meyer. (Org.). Justiça de Transição: Verdade,
Memória E Justiça. 1ed. Florianópolis: FUNJAB, 2012, v. , p. 408-428; e BERNER, V. B.;
BOITEUX, L. Tratados internacionais de direitos humanos, anistia e justiça de transição?
A influência do processo argentino. In: Carol Proner; Paulo Abrão (Org.). Justiça de Transição: reparação, verdade e justiça: perspectivas comparadas Brasil-Espanha. 1. ed. Belo
Horizonte: Forum, 2013, v. 3, p. 140-170.
161
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
Considerações finais
No Brasil, a dimensão entre “lembrar” e “esquecer” traz em si uma
considerável problematização. Em 2007, houve grande polêmica acerca
da publicação do livro “Direito e Memória e à Verdade”42, pela Comissão
Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Não faltaram articulistas de revistas e jornais de circulação nacional para retomar o discurso do
esquecimento como forma de “superação” dos traumas vividos no período
ditatorial. Para o direito, é crucial estabelecer a possibilidade de diferenciar o que é necessário lembrar e o que se pode esquecer. O direito à memória e à verdade é a possibilidade de “exigir que a história institucional
seja pensada também a partir de informações ocultadas ou propositadamente esquecidas” (BARBOSA, 2010: 31).
Por isto, a pergunta central que orienta nossa leitura dos processos ditatoriais e suas consequências na conformação de nossas sociedades tem
a ver com o legado autoritário que tais processos nos deixaram. Quanto
a este aspecto, é de particular interesse uma compreensão do papel da
memória, voltada para reivindicar sua função de luta contra os efeitos do
passado de graves violações de direitos humanos e sua herança autoritária
na história brasileira contemporânea.
Reconhecer os legados autoritários originados no período da ditadura exige esclarecer as distintas formas pelas quais, no interior das
instituições estatais e na própria configuração cultural da nação, é possível identificar permanências autoritárias que superaram as múltipla
iniciativas transicionais até agora implementadas; tais permanências
condicionam a efetiva implantação de um regime democrático, lesando
assim a qualidade dos processos democráticos pós-autoritários.43
42. BRASIL; Secretaria Especial dos Direitos Humanos; Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos . Direito à verdade e à memória. Brasília : Secretaria Especial dos
Direitos Humanos, 2007. Disponível em: http://www.sdh.gov.br/assuntos/mortos-e-desaparecidos-politicos/pdfs/livro-direito-a-memoria-e-a-verdade
43. Cfr. PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de direito no
Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 239.
162
7 – Poder Judiciário Democrático: uma tarefa pendente (e urgente) para o Brasil
É preciso identificar essas permanências nos distintos níveis do
labor estatal, prestando atenção tanto aos marcos normativos como às
diversas formas pelas quais o autoritarismo se faz presente nas práticas
institucionais. Ademais, referidas práticas só são possíveis no quadro
de uma cultura política que as legitime, invisibilisando assim o legado
antidemocrático da experiência ditatorial que permanece até nossos dias
e tem expressões concretas nas formas em que o Estado exerce seu poder,
particularmente frente à população pobre.
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164
8
Trabalho escravo contemporâneo no Brasil:
a argumentação jurídica e o determinismo social
no inquérito nº 2.131 do STF
Suzy Elizabeth Cavalcante Koury1
Valena Jacob Chaves2
Considerações iniciais
O presente estudo objetiva analisar a argumentação jurídica utilizada no
julgamento de um mesmo processo, o Inquérito nº 2.131, por dois diferentes
ministros do Supremo Tribunal Federal, Ellen Gracie e Gilmar Mendes, em
relação à mesma hipótese fática, relativa à redução de trabalhadores a condição análoga à de escravo, a fim de evidenciar que há um discurso dominante
no sentido de ser o trabalhador natural da zona rural, mais especificamente,
dos rincões da Amazônia brasileira.
A escolha deveu-se ao fato de Ellen Gracie, a relatora do processo, ter se
pautado na defesa do trabalho digno, enquanto Gilmar Mendes revelado, em
sua argumentação, o discurso utilitarista, que, muitas vezes, prevalece e tem
raízes profundas em nossa sociedade.
1. Doutora em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora do CESUPA- Centro
Universitário do Pará, da graduação e do mestrado, e Desembargadora do Tribunal Regional do
Trabalho da 8ª Região.
2. Professora da Graduação em Direito e do Programa de Pós Graduação em Direitos Humanos
da UFPA; Mestre e Doutora em Direito pela UFPA. Pesquisadora da Clínica de Direitos Humanos da Amazônia/UFPA. e-mail: valena_jacob@yahoo.com.br. Diretora da Revista Científica da
ABRAT e Diretora da JUTRA.
165
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
Antes de enfrentar a questão proposta, faz-se necessário, ainda que de
forma breve, proceder a uma narrativa dos fatos que culminaram com o
oferecimento de denúncia ao STF pelo Ministério Público Federal, no Inquérito 2.131, que bem revelam a assertiva de que o Direito não oferece
uma única resposta correta para o mesmo caso.
A análise será procedida a partir da teoria da argumentação de MacCormick, pois refuta o positivismo e a dissociação entre o Direito e a Moral, considerando-se o caso examinado como difícil, pois há problemas de
interpretação da norma, que admite mais de uma leitura.
Buscar-se-á demonstrar, ainda, que um dos aspectos da argumentação jurídica utilizada na decisão é influenciado pelo estereótipo de que o
trabalhador rural da Região Amazônica está acostumado a condições de
trabalho que, em outros locais, com características geográficas e culturais
distintas, seriam inaceitáveis e configurariam o trabalho degradante.
Examinar-se-á, também, o argumento de que não há alternativa melhor a esses cidadãos, do que o trabalho, ainda que em condições degradantes, como uma espécie de determinismo social a que estariam submetidos todos os que tiverem tido a infelicidade de ter nascido na Amazônia
brasileira.
A metodologia a ser utilizada será a pesquisa bibliográfica, principalmente de livros e publicações jurídicas, além da decisão do STF no Inquérito 2.131.
A hipótese em estudo
Após uma fiscalização realizada pelo Grupo Móvel do Trabalho Escravo, a partir de uma denúncia da Comissão Pastoral da Terra, no Município
de Piçarra, no Estado do Pará, os fiscais constataram, na Fazenda Ouro Verde, de propriedade do então Senador da República, hoje falecido, João Ribeiro, a presença de trabalhadores reduzidos à condição análoga à de escravos, inclusive um menor. Na instância administrativa, foram lavrados, pela
então DRT, atual, SRTE – Secretaria de Trabalho e Emprego do Ministério
166
8 – Trabalho escravo contemporâneo no Brasil: a argumentação jurídica
e o determinismo social no inquérito nº 2.131 do STF
do Trabalho e Emprego, diversos autos de infração, que culminaram com a
aplicação de multas, as quais foram contestadas administrativamente.
Na instância trabalhista (Processo n. 00611-2004-118-08-00-2, disponível no portal do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região http://
wwwtrt8.jus.br), no 1º Grau de jurisdição, na Vara do Trabalho de Redenção, foram estabelecidas diversas obrigações de fazer e de não fazer,
com destaque à de abster-se de exigir trabalho forçado de seus empregados, à de abster-se de aliciar trabalhadores, diretamente ou através
de terceiros de um local de trabalho para outro do território nacional, à
de abster-se de coagir e induzir seus empregados a utilizarem armazém
ou serviços mantidos pela fazenda e de impor sanção aos trabalhadores
decorrentes de dívida (truck system). Além disso, houve condenação por
dano moral coletivo, no importe de R$ 760.000,00 (setecentos e sessenta
mil reais), a reverter ao FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador) e foi
declarada a indisponibilidade dos bens do Senador.
Na 2ª Turma do TRT da 8ª Região, à qual foi distribuído o recurso do
senador João Ribeiro, a decisão não foi mantida em sua integralidade.
Com efeito, por maioria, foram excluídas da condenação:
1) a obrigação de abster-se de exigir trabalho forçado de seus empregados, pois a maioria da Turma entendeu que não havia trabalho
forçado porque era permitido o deslocamento e, em razão de os
valores devidos serem, facilmente, quitáveis;
2) de abster-se de aliciar trabalhadores, diretamente ou através de terceiros de um local de trabalho para outro do território nacional,
porque a maioria turmária entendeu não ter sido provado o aliciamento e,
3) a de abster-se de coagir e de induzir seus empregados a utilizarem
armazém ou serviços mantidos pela fazenda e de impor sanção aos
trabalhadores decorrentes de dívida (truck system), porque a maioria entendeu que, apesar de a reclamada mandar comprar mercadorias para revender aos trabalhadores, cobrava preços módicos, de
tal forma que eles não ficavam endividados.
167
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
A condenação a título de indenização por dano moral coletivo foi reduzida para R$ 76.000,00 (setenta e seis mil reais), a ser revertida ao FAT, o
que corresponde a 10% da condenação originária.
A declaração de indisponibilidade de bens foi excluída, tendo sido
mantido, apenas, o bloqueio do novo valor da indenização.
O TST não conheceu do recurso do Ministério Público do Trabalho por
entender que o acórdão reiteraria a ocorrência de trabalho análogo ao escravo e penalizaria o empregador, o que, todavia, foi comemorado pelo então
Senador João Ribeiro3 como uma confirmação de sua inocência, o que é
perfeitamente compreensível, face à flagrante redução da condenação.
Isso é revelado até mesmo na decisão do STF, pois os Ministros tiveram o cuidado de referir que, apesar de o TRT da 8ª Região não ter
reconhecido a existência de trabalho escravo, dever-se-ia distinguir a independência das instâncias trabalhista e penal, de forma que não haveria
óbice ao exame da responsabilidade penal dos acusados (voto da Ministra
Ellen Gracie, acompanhado, neste ponto, pelo Ministro Gilmar Mendes4).
Faz-se necessário esclarecer que o inquérito penal foi ajuizado perante o
Supremo Tribunal Federal, em razão da independência das instâncias e do
fato de o denunciado ser, então, um senador da República, detentor, portanto, de foro privilegiado (CRFB/88, art. 53, § 1º ), pois, em regra, seria
submetido à Justiça Federal comum.
Estabelecidos os fatos que antecederam o Inquérito 2.131- Distrito Federal, passa-se à análise dos votos de dois dos ministros do STF, que o
julgaram, Ellen Gracie e Gilmar Mendes, acerca do recebimento da denúncia, destacando a argumentação jurídica utilizada.
3. Disponível em: http://reporterbrasil.org.br/2011/03/tst-confirma-escravidao-na-fazenda-do-senador-joao-ribeiro. Acesso em: 12.04.2016..
4. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2226955. Acesso em: 25/04/2016.
168
8 – Trabalho escravo contemporâneo no Brasil: a argumentação jurídica
e o determinismo social no inquérito nº 2.131 do STF
A análise dos votos dos ministros Ellen Gracie e
Gilmar Mendes segundo a teoria da argumentação
jurídica de Maccormick
Analisar uma decisão judicial implica perquirir a sua fundamentação,
que, em nosso ordenamento jurídico, é dever do magistrado (art. 93, inc.
IX, CRFB/88), afirmando Alexy (2010, p. 20) que esse dever, na verdade,
impõe que a decisão resulte, logicamente, dos preceitos citados na sua
fundamentação, o que denomina de justificação interna e que tenha por
objeto a verdade, a busca de argumentos válidos, acertados, aceitáveis e
corretos, o que afirma corresponder à justificação externa.
Bustamante (2014, s/n) formula a seguinte definição, comum a todas
as propostas de teorias argumentativas:
Teorias da argumentação jurídica são teorias sobre
o emprego dos argumentos e o valor de cada um
deles nos discursos de justificação de uma decisão
jurídica, visando a um incremento de racionalidade
na fundamentação e aplicação prática do direito, na
máxima medida possível.
Dentre as diversas teorias da argumentação existentes, optou-se pela de
MacCormick, pois refuta o positivismo e a dissociação entre o Direito e a
Moral, que ele classifica como “teoria institucional pós-positivista do direito” (MACCORMICK, 2006, XVIII), ao esclarecer que não mais se aliava
ao positivismo de Hart, que havia sido seu professor e orientador intelectual.
Entende MacCormick que o Direito aspira à Justiça, tendo um conteúdo moral mínimo, garantido pelos direitos humanos e pelos direitos
fundamentais constitucionalmente institucionalizados.
A Justiça que deve ser buscada, segundo ele, não é a Justiça pura e
simples, e sim “a que esteja de acordo com a lei” (2006, p. 93), de tal
modo que, em circunstâncias normais, a justificação por dedução, ou
seja, pela aplicação de normas pertinentes, é suficiente para fundamentar uma decisão judicial. A esse tipo de justificação chamou de primeira
ordem, na qual “a decisão se opera pela conexão das premissas maior
169
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
(hipótese legal) e menor (Fato) e uma conclusão lógica (consequência)”
(SILVA, p. 37).
A decisão do Tribunal Regional e os votos dos Ministros Ellen Gracie
e Gilmar Mendes, permitem que se perceba que o caso ora analisado comporta uma séria de dúvidas e de problemas.
Com efeito, não há problemas de pertinência ou relevância, na medida
em que é por todos reconhecida a existência de norma aplicável ao caso:
o artigo 149 do Código Penal. Todavia, há problemas de interpretação da
norma, que admite mais de uma leitura, como se passa a demonstrar.
O Ministro Gilmar Mendes entende que o bem jurídico tutelado pela
norma não é a relação de trabalho, inexistindo agressões aos direitos trabalhistas, as quais, para ele, podem e devem ser punidas administrativamente, bem como podem ensejar o pagamento de indenizações. Em sua
opinião, o tipo penal em exame tutela a liberdade individual, o direito de
ir e vir, que, se preservado, como entende que foi no caso concreto, não
importa a subsunção à norma descrita no artigo 149 do CP.
A Ministra Ellen Gracie, por sua vez, defende que, ao ampliar o rol de
condutas amoldadas ao crime de redução à condição análoga à de escravo, alterando o artigo 149 do CP, a Lei n. 10.803/2003 visou a reprimir
os atentados ao princípio da dignidade da pessoa humana, na vertente do
direito à liberdade e do direito ao trabalho digno, entendendo, como condições degradantes de trabalho, as que afetam a dignidade da pessoa do
trabalhador, colocando em risco a sua saúde e a sua integridade física,
deixando, portanto, de ser imprescindível à sua caracterização a privação
de liberdade.
Há problemas de classificação ou qualificação dos fatos, que ocorrem,
como ensina Atienza (2006, p. 125), quando “(...) não há duvidas sobre a
existência de determinados fatos primários (que se consideram provados),
mas o que se discute é se os mesmos integram ou não um caso que possa
ser subsumido no caso concreto da norma”.
Isso porque, o mesmo conceito (trabalho em condições análogas à escravidão) aparece na hipótese de incidência da norma (Min. Ellen Gracie)
170
8 – Trabalho escravo contemporâneo no Brasil: a argumentação jurídica
e o determinismo social no inquérito nº 2.131 do STF
e no relato dos fatos que não são tidos como subsumidos à norma (Min.
Gilmar Mendes).
Destacam-se, ainda, problemas de provas, que, da mesma forma que
os de qualificação, afetam a premissa fática, na medida em que os votos
revelam incerteza acerca dos fatos tidos como provados.
A título de exemplo, pode-se citar que a Ministra Ellen Gracie considerou, como provas relevantes, as péssimas condições de alojamento, de fornecimento de água, as jornadas superiores a 10 (dez) horas
diárias e a ausência de repouso semanal remunerado. Já o Ministro
Gilmar Mendes entendeu que: “As condições de vida de regiões paupérrimas do Brasil repetem-se nas condições de trabalho, e não é razoável qualificá-las de criminosas por esta exclusiva razão, como quer o
relatório de fls. 22-56”.
Portanto, o caso ora analisado pode ser tido com um caso difícil, entendendo-se como tais aqueles em que haja dúvidas, em que não haja uma
lei ou um precedente pelo qual, claramente, possa ser deduzida a decisão
judicial, por mera subsunção do fato à norma, de modo que impõem que,
ao raciocínio silogístico, acrescente-se o argumentativo. A esse segundo
nível de justificação, MacCormick chama de justificação de segunda ordem. Explica ele: “A justificação de segunda ordem deve, portanto, envolver a justificação de escolhas: escolhas entre possíveis deliberações rivais.
E essas são escolhas a fazer dentro do contexto específico de um sistema
jurídico operante” (2012, p. 129).
A justificação de segunda ordem, ainda segundo MacCormick (2012,
p. 129), decorre da necessidade de as decisões jurídicas fazerem sentido
no mundo e no contexto do sistema jurídico, devendo o magistrado observar critérios de universalidade, consistência, coerência e consequência
para o buscar. A universalidade diz respeito à possibilidade de um mesmo
argumento ser aplicado a situações idênticas (SILVA, p. 37), fundamentando-se na imparcialidade.
A consistência implica a ausência de contradição com normas estabelecidas de modo válido, parecendo-nos que, nesse ponto, a decisão do
171
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
Min. Gilmar não guarda consistência no que diz respeito às provas, como
se demonstrará.
A coerência é classificada em narrativa, empregada na avaliação da
prova ou evidência produzida em um caso concreto, de tal sorte que a decisão deve guardar coerência com os fatos narrados, e em normativa, que é
atribuída pela sua adequação aos princípios fundamentais do ordenamento
jurídico, cujo papel relevante MacCormick reconhece.
No voto da Ministra Ellen Gracie, percebe-se, de forma clara, a construção a partir dos princípios, com destaque ao da dignidade da pessoa
humana. Refere, ainda, ao fato de o trabalho escravo contrariar os objetivos fundamentais da República brasileira, expressos no artigo 3º, da
CRFB/88. Cita a legislação infraconstitucional, em especial o artigo 149
do CP, para, à luz das disposições constitucionais e na análise das provas
dos autos, concluir pelo recebimento da denúncia, podendo-se afirmar haver coerência normativa.
No voto do Ministro Gilmar Mendes, não há coerência normativa,
pois, ao avaliar os fatos, ignora, por completo, que o legislador constituinte de 1988 erigiu, como fundamento da República, a dignidade da pessoa
humana. Ademais, sua argumentação tem forte sentido utilitarista e consequências probabilísticas que não se seguem, logicamente, da aceitação da
interpretação em análise, como revela o seguinte trecho do voto:
Se não há cerceamento da liberdade de ir e vir, e se o
cidadão pode optar por estar ou não vinculado àquela relação de trabalho, como inferir, desse contexto,
que há redução a condição análoga à de escravo por
interpretação exógena – e naturalmente paternalista-,
que escolhe qual a conduta deva ser demonstrada ou
aguardada? (p. 23).
Em inúmeros trechos, o Ministro desqualifica o Relatório do Grupo
Móvel, que afirma estar “contaminado por um discurso panfletário que
salta aos olhos” (p. 7) e que diz perder-se “em um discurso político-ideológico de afirmação da existência de um neoescravagismo, ao talante dos
servidores que o assinam” (p. 8).
172
8 – Trabalho escravo contemporâneo no Brasil: a argumentação jurídica
e o determinismo social no inquérito nº 2.131 do STF
Ademais, disse o Ministro Gilmar, ao se referir ao trabalhador menor
de idade resgatado:
Focando os problemas e não apenas as violações,
há que se indagar: Qual alternativa a sociedade ou o
Poder Público oferecem aos jovens do campo? Mas
não é só. No caso em apreço, após a autuação, o que
fizeram as autoridades públicas (do trabalho, do município), o Ministério Público? O jovem Edvaldo foi
encaminhado para algum programa de assistência?
Foi a ele assegurado ingresso em alguma escola regular ou curso profissionalizante? Seria muito interessante levantar a trajetória deste jovem após a sua
“liberdade” da referida fazenda (p. 36).
O argumento do Ministro Gilmar coincide, claramente, com a tradição utilitarista, sem levar em conta os valores que fundamentam, nem,
tampouco, os fins a que se propõe nosso ordenamento jurídico, a ponto
de ele afirmar que: “Não se resolve o analfabetismo, a miséria, a falta de
oportunidades com regras proibitivas, como se o homem do campo – e por
que não o jovem do campo – tivesse alternativa para se manter.” (p. 36)
Desse modo, é possível perceber nos votos dos Ministros Ellen Gracie
e Gilmar Mendes considerações morais, éticas e pragmáticas (por vezes
até econômicas), como se exemplifica abaixo:
Trechos do voto da Ministra Ellen Gracie em que se
vislumbram considerações éticas e morais:
(...) a persistência de trabalho escravo no Brasil representa a contrariedade aos objetivos fundamentais da República brasileira, expressos no art. 3º, da
Constituição Federal (p. 17)
(...) A atual redação do art. 149, do Código Penal, veio a buscar atender o compromisso internacionalmente assumido pelo governo brasileiro de
combater o trabalho escravo (Convenção nº 105,
da OIT, em matéria de abolição de trabalho forçado (p. 18).
(...) No caso concreto, o conjunto das violações perpetradas ao mínimo de dignidade e respeito à pessoa do trabalhador rural, tal como comprovadas por
173
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
substrato probatório mínimo, levou à conclusão de
elementos suficientes para o início da ação penal
(p. 18).
Trechos do voto do Ministro Gilmar Mendes, em
que se vislumbram consideraçõeséticas (ou aéticas)
e pragmáticas:
(...) Não descuro do fato de que o trabalho no campo
brasileiro está longe de atingir as condições ideias,
todavia não é razoável poetizar sobre a realidade
agrária brasileira e inferir, do dia a dia das pessoas
pobres das matas e dos sertões, verdadeiras manifestações de escravidão, compreendendo a existência de
quadrilhas organizadas, formadas por tomadores de
trabalho que seriam – como afirma o relatório – os
neoescravagistas (pp. 7-8).
(...) Ora, se estamos falando de desbravamento de
regiões inóspitas, como a borda da Amazônia ou os
rincões do País, é óbvio que os primeiros trabalhos
a serem praticados ali não poderão contar com solos cimentados ou com galpões construídos para o
abrigo dos primeiros trabalhadores. E mesmo que
assim fosse, os trabalhadores que anteriormente os
construíram teriam sido objeto de trabalho escravo,
de acordo com o equivocado raciocínio (p. 8).
(...) Eis a minha dúvida: Prendemos empresários
rurais, proprietários de terra. E o que efetivamente
fizemos aos pobres e miseráveis homens do campo
que, sem trabalho, quando muito, conseguirão, após
o tortuoso caminho, um benefício assistencial de um
salário mínimo? (p. 14).
A consequência ou a argumentação consequencialista leva em consideração as consequências jurídicas da solução argumentativa no mundo,
que, dada a universalidade, deve servir de precedente a casos futuros.
Esclarece Atienza (2006, p. 134) que, para MacCormick, as consequências jurídicas são avaliadas de acordo com uma série de valores, com
destaque à Justiça, ao senso comum, ao bem comum e à conveniência
pública. No voto do Ministro Gilmar Mendes, percebe-se muito mais a
presença de um consequencialismo utilitarista, aos moldes do utilitarismo
174
8 – Trabalho escravo contemporâneo no Brasil: a argumentação jurídica
e o determinismo social no inquérito nº 2.131 do STF
clássico, quando, por exemplo, argumenta no sentido de que a realidade
da população local é aquela dos trabalhadores que foram encontrados na
fazenda e que, se não estivessem trabalhando lá, naquelas condições normais para a Região, não teriam meios dignos de subsistência, dada a realidade local, na qual aquele é o único tipo de trabalho possível, justificando
a decisão pelo fato de ser a mais desejável e a possível, no caso em análise.
Em sentido contrário, tem-se que a Ministra Ellen Gracie preocupa-se com os fins corretos de acordo com o ordenamento jurídico pátrio,
ou com o que MacCormick denominaria de razões de correção, o que se
percebe por sua afirmativa de que a escravidão contemporânea contraria
os objetivos fundamentais da República brasileira, expressos no art. 3º, da
Constituição Federal e que a lei que deu nova redação ao artigo 149 do CP,
ampliando a sua abrangência, busca atender o compromisso internacionalmente assumido pelo governo brasileiro de combater o trabalho escravo
(Convenção nº 105, da OIT).
Estabelecidas essas premissas e analisados, em consonância com a teoria da argumentação jurídica de MacCormick, os argumentos dos dois
ministros do STF que capitanearam as posições divergentes na análise do
Inquérito 2.131, passa-se abordar como o discurso utilitarista clássico vem
influenciando as decisões nos casos de trabalho forçado, em contrariedade
aos valores que orientam o ordenamento jurídico brasileiro.
A influência do discurso utilitarista clássico na
definição do trabalho em condições análogas à de
escravo
O caso difícil acima analisado é um exemplo do que tem ocorrido nos
tribunais brasileiros no que diz respeito à caracterização jurídica do trabalho escravo como crime, em que pese tenham prevalecido os argumentos
da Ministra Ellen Gracie, o que, todavia, não tem ocorrido nas decisões da
Justiça Federal Comum, sobre a matéria, o locus próprio de discussão do
tema, que foi excepcionado na hipótese ora analisada pelo fato de o réu ser
um senador da República, como já mencionado.
175
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
Um dos aspectos da argumentação jurídica utilizada na decisão é influenciado pelo estereótipo de que o trabalhador rural na Região Amazônica está acostumado a condições de trabalho que, em outros locais,
com características geográficas e culturais distintas, seriam inaceitáveis e
configurariam trabalho degradante.
Vislumbrou-se, também, o argumento de que não há alternativa melhor
a esses cidadãos, do que o trabalho, ainda que em condições degradantes,
como uma espécie de determinismo social a que estariam submetidos todos
os que tiverem tido a infelicidade de ter nascido na Amazônia brasileira.
Em tese de doutoramento defendida perante o Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPA, Valena Jacob Chaves Mesquita, após fazer
uma análise de 326 (trezentos e vinte e seis) processos criminais do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, concluiu, em síntese, ainda haver resistência por parte dos juízes federais, quando da aplicação do artigo 149
do CP, “em ultrapassar o arcaico entendimento de se vincular o elemento
privação de liberdade espacial do trabalhador como imprescindível para a
configuração do delito.” (2016, p. 208).
De igual sorte, destacou Mesquita o mesmo discurso utilitarista utilizado por Gilmar Mendes, cujos trechos mais relevantes foram acima destacados, no sentido de perceber-se uma barreira cultural nos argumentos
utilizados nas decisões, as quais, em sua grande maioria, revelam o pouco
valor que se dá ao trabalhador rural, admitindo-se que trabalhe em condições precárias e indignas, o que seria normal, “em face da cultura local e
da condição de vida pessoal dos trabalhadores” (2016, p. 203).
A constatação acima, obtida pelo exame de processos em tramitação
perante o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que tem sede em Brasília e abrange os Estados do Acre, Amazonas, Rondônia, Roraima, Pará
Amapá, Maranhão, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Mato Grosso, Tocantins e Goiás, e o Distrito Federal, tem sido, igualmente, referida nas
mais relevantes obras publicadas acerca da matéria. Brito Filho (2014, pp.
45-46), ao citar a decisão do STF no Inquérito 3.412-AL, aduz que a principal divergência entre os ministros, tal qual ocorreu no Inquérito 2131-DF,
analisado neste estudo, concentrou-se no bem jurídico tutelado, havendo
176
8 – Trabalho escravo contemporâneo no Brasil: a argumentação jurídica
e o determinismo social no inquérito nº 2.131 do STF
alguns, como Marco Aurélio Melo, que entenderam ser este a liberdade, de
modo que não consideraram tipificado o crime de redução à condição análoga à de escravo, enquanto outros, capitaneados pela Ministra Rosa Weber,
Relatora designada para o acórdão, cuja tese foi majoritária, defenderam
que seria a dignidade da pessoa humana.
É oportuno ressaltar trecho da ementa, no qual resta esclarecida a tese:
PENAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA A DE ESCRAVO. ESCRAVIDÃO MODERNA. DESNECESSIDADE DE COAÇÃO DIRETA CONTRA A LIBERDADE DE IR E VIR.
DENÚNCIA RECEBIDA. Para configuração do
crime do art. 149 do Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade
de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima
“a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva” ou
“a condições degradantes de trabalho”, condutas
alternativas previstas no tipo penal. A “escravidão moderna” é mais sutil do que a do século
XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e
não necessariamente físicos. Priva-se alguém de
sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como
coisa e não como pessoa humana, o que pode ser
feito não só mediante coação, mas também pela
violação intensa e persistente de seus direitos
básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A
violação do direito ao trabalho digno impacta
a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também
significa “reduzir alguém a condição análoga
à de escravo”. Não é qualquer violação dos direitos trabalhistas que configura trabalho escravo.
Se a violação aos direitos do trabalho é intensa e
persistente, se atinge níveis gritantes e se os trabalhadores são submetidos a trabalhos forçados,
jornadas exaustivas ou a condições degradantes de
trabalho, é possível, em tese, o enquadramento no
crime do art. 149 do Código Penal, pois os trabalhadores estão recebendo o tratamento análogo ao
de escravos, sendo privados de sua liberdade e de
177
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
sua dignidade. Denúncia recebida pela presença
dos requisitos legais.5
A argumentação jurídica das Ministras Ellen Gracie e Rosa Weber são
mais consentâneas com os princípios e os valores que informam o nosso
ordenamento jurídico, bem como o Direito do Trabalho, sendo assente
que a globalização e as grandes transformações tecnológicas ocorridas nos
anos 90 mudaram, sem qualquer dúvida, a estrutura do mercado de trabalho, mas não autorizam que se passe, por isso, a justificar a existência de
trabalho degradante.
Cabe ressaltar que, analisando dados coletados pelo Instituto de Pesquisa
da UFRJ, a pedido do CEPAL, acerca do mercado de trabalho após a abertura da economia brasileira, em 1990, SACHS (2008, p. 114) conclui que:
(...) a modernização tecnológica do país fechou 8,98
milhões de postos de trabalho no setor agropecuário, 3,63 milhões na indústria manufatureira, 902 mil
na administração pública e 757 mil na construção
civil. A produtividade do trabalho na agropecuária
cresceu, em média, 5,12% ao ano, de 1990 a 2001,
e, na indústria, 2,52%. Por sua vez, as importações
provocaram a redução de 1,54 milhões de postos de
trabalho.
Isso corresponde ao fenômeno conhecido como jobless growth (crescimento sem emprego), que se repetiu nos anos de 2002 e de 2003, tendo-se
buscado compensar o desemprego, o subemprego e a exclusão social por
meio de vigorosas políticas assistencialistas. Essas consequências são mais
sentidas nos países periféricos, incluídos todos os países da América Latina,
tornando “letra morta” o direito ao desenvolvimento e ao trabalho digno.
Se no plano político do mundo desenvolvido, ao longo de muitos anos,
aumentou o número de bens, valores, interesses e sujeitos aptos a serem
5. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao, sob o número 3066697. Supremo
Tribunal Federal DJe 12/11/2012 Inteiro Teor do Acórdão - Página 1 de 61 Ementa e Acórdão INQ 3.412 / AL. Acesso em: 11.01.2016.
178
8 – Trabalho escravo contemporâneo no Brasil: a argumentação jurídica
e o determinismo social no inquérito nº 2.131 do STF
tutelados pelo rótulo ‘direitos humanos’, enfatizando-se as conquistas
conhecidas como ‘pós-materiais’ (como o controle do meio ambiente, a
proteção dos interesses ‘difusos’, o reconhecimento da singularidade de
certas minorias, a ampliação de ofertas de lazer, etc.), no plano social dos
países latino-americanos, o progressivo enfraquecimento do Estado nacional dificulta o reconhecimento dos direitos mínimos de amplos contingentes de suas respectivas sociedades (FARIA, 2010, p. 143).
Em razão das transformações acima referidas, surgiram no mercado
de trabalho, as figuras do desemprego disfarçado, do subemprego, do
emprego informal e do desemprego propriamente dito, nenhuma delas
correspondendo ao trabalho digno, dando origem ao que ARENDT denomina de párias, condenados à marginalidade econômica, ao trabalho
escravo, à exploração e à vida em condições subumanas.
Em profunda análise procedida a partir de estudos historiográficos realizados desde os anos 80, Cardoso (2008) destaca a presença de traços estruturais
do passado escravista no processo de construção da sociabilidade capitalista
no Brasil, evidenciados pela desqualificação do negro e dos demais trabalhadores como aptos à lide capitalista e pela percepção do trabalho manual como
atividade degradada, reservada a indivíduos degradados, em torno da qual:
(...) construíram-se uma ética do trabalho degradado,
uma imagem depreciativa do povo ou do elemento
nacional, uma indiferença moral das elites quanto
às carências da maioria e uma hierarquia social de
grande rigidez, vazada por enormes desigualdades
(CARDOSO, 2008)
Essa constatação é perfeitamente aplicável à Amazônia, região na qual
ocorreu o caso analisado, cujos povos tradicionais são considerados primitivos e atrasados, de modo que “se tornaram invisíveis no conjunto das
políticas públicas”, jamais tendo sido tratados como “atores sociais importantes no processo das mudanças em curso” (LOUREIRO, 2009, p. 106).
Essas diversas formas de trabalho indigno traduzem uma desigualdade
moral que tem que ser combatida por políticas públicas e ações afirmativas, sendo certo que a contribuição do Poder Judiciário está em punir,
179
Direito, trabalho e desconhecimento: desaios contra
os retrocessos em Direitos Humanos
mas, também, em buscar coibir a inclusão injusta em uma relação de produção, como a que ocorreu no caso analisado.
No caso concreto cuja análise se procedeu, o STF cumpriu a sua missão, enquanto que o TRT da 8ª Região não logrou o mesmo êxito ao considerar que não havia trabalho degradante e ao estabelecer indenização
irrisória face à gravidade do fato de, em pleno século XXI, um Senador da
República optar pelo uso de mão de obra escrava.
Referências
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito. 3. ed. Tradução de Maria Cristina Guimarães
Cupertino. São Paulo: Landy, 2006.
BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Trabalho escravo; caracterização jurídica. São
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CARDOSO, Adalberto. Escravidão e sociabilidade capitalista: um ensaio sobre inércia
social. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-330020080001000006. Acesso em:
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FARIA, José Eduardo. Democracia e governabilidade: os direitos humanos à luz da
globalização econômica. In: FARIA, José Eduardo (Org.) Direito e globalização
econômica; implicações e perspectivas. 3. t. São Paulo: Malheiros, 2010. pp. 127-160.
LOUREIRO, Violeta Refkalefsky. A Amazônia no Século XXI; novas formas de
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MacCORMICK, Neil. Argumentação Jurídica e teoria do direito. Tradução Waldéa Barcellos,
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MESQUITA, Valena Jacob Chaves. O trabalhado análogo ao de escravo: uma análise
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SACHS, Ignacy. Desenvolvimento; includente, sustentável, sustentado. Rio de Janeiro:
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SILVA, Neimar Roberto de Souza e. Direito e Argumentação Jurídica em MacCormick.
Legis Augustus. Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 29-41, jul/dez. 2013.
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Esta obra foi composta nas tipologias Times New Roman/ITC Officina
Sans e foi impressa em papel off-white® 80 grs./m2, no verão de 2017.
As hipóteses das pesquisas tratadas nesta série,
transitam entre o Direito e a Política, entre a liberdade e a igualdade, entre a identidade e o desconhecimento e entre as rupturas e a continuidade.
As lutas pelo Direito, colonizadas por práticas institucionais ao largo da democracia, colocam em
risco a paz social e agravam as tensões ideológicas
na matiz maniqueísta entre ‘o inimigo’ e ‘eu’, entre o
cidadão de bem e o outro.
A recorrência ao senso comum, desprendida de
um exercício crítico sobre os fatos históricos e a genealogia de seus atores, seus lugares de fala e suas
representações, acentua e aprofundiza desigualdades. Pensar as práticas institucionais, a linguagem,
e, como o próprio Direito plasma o poder e o sentimento de legitimidade, é primordial à defesa da ordem Constitutional e dos preceitos fundamentais.
É se posicionar contra o desfuncionamento das
Instituições do Sistema de Justiça.
Cássius Guimarães Chai
MULTICULTURAL
Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo
Contemporâneo - UFPA