Estratégias de Valorização Simbólica dos Propósitos Organizacionais: o Caso do
Crediamigo do Banco do Nordeste do Brasil
Autoria: Raphael de Jesus Campos de Andrade, Rosa Cristina Lima Ribeiro, Ana Sílvia Rocha Ipiranga,
Kadma Marques Rodrigues
Resumo
Os estudos sobre a cultura se baseiam, sobretudo, em duas posturas: o interacionismo
simbólico, que considera a cultura um mecanismo de comunicação e conhecimento
responsável pela forma nodal de consenso; e uma concepção mais política, que compreende a
cultura e os sistemas simbólicos em geral como instrumentos de poder. Bourdieu e Thompson
se opõem aos interacionistas simbólicos, argumentando que a percepção das formas
simbólicas é indissociável de sua função política. Este artigo lança mão da concepção política
de cultura para elucidar as estratégias utilizadas por colaboradores para atribuir valor aos
propósitos de uma determinada organização sob estudo. Trata-se do caso do Crediamigo do
Banco do Nordeste do Brasil, que atualmente é o maior Programa de microcrédito em
operação do país. Quanto à metodologia, esta pesquisa é de natureza qualitativa e de nível
descritivo-explicativo. A coleta é feita através de entrevista semi-estruturada, diário de campo
e observação participante e os dados analisados por meio de mapas cognitivos. A análise
elucidou dimensões relacionadas aos sistemas simbólicos do Programa, como, por exemplo, a
existência de uma linha de pensamento comum, assim como a necessidade de maximizar o
impacto do Programa em prol do desenvolvimento sócio-territorial.
Introdução
Os sistemas de fatos e de representações comumente recobertos pelo conceito
mais abrangente de cultura podem ser classificados, sobretudo, em duas posturas principais.
De um lado, tem-se o interacionismo simbólico, que considera a cultura – e por extensão
todos os sistemas simbólicos, como a arte, o mito, a linguagem etc. – em sua qualidade de
instrumento de comunicação e conhecimento responsável pela forma nodal de consenso, qual
seja o acordo quanto ao significado dos signos e quanto ao significado do mundo. De outro,
tende-se a compreender a cultura e os sistemas simbólicos em geral como um instrumento de
poder, isto é, de legitimação da ordem vigente (MICELI, 2005).
Uma limitação do interacionismo simbólico pode ser ressaltada na minimização
das funções econômicas e políticas dos sistemas simbólicos em favor da análise interna dos
bens e mensagens de natureza simbólica, como se os agentes sociais fossem “senhores” dos
significados que eles mesmos produzem e mobilizam no processo de interação. Entretanto,
uma vez considerando que a cultura só existe efetivamente sob a forma de símbolos, de um
conjunto de significados, de onde provém sua eficácia própria, a percepção dessa realidade
segunda, propriamente simbólica, que a cultura produz e inculca, parece indissociável de sua
função política. Assim, como não existem “puras” relações de força, também não há relações
de sentido que não estejam referidas e determinadas por um sistema de dominação
(BOURDIEU, 2005).
Thompson (2001) acrescenta que os fenômenos culturais estão implicados em
relações de poder e conflito; isto é, as ações e manifestações verbais do dia-a-dia, assim como
fenômenos mais elaborados, tais como rituais, festivais e obras de arte, são sempre produzidos
ou realizados em circunstâncias sócio-históricas particulares, por indivíduos específicos
providos de certos recursos e possuidores de diferentes graus de poder e autoridade.
Destarte, este estudo lança mão das contribuições de Bourdieu e Thompson sobre
a concepção política de cultura para elucidar os significados subjacentes às estratégias
utilizadas por colaboradores para atribuir valor à missão e aos objetivos de uma determinada
organização sob estudo. Trata-se do caso do Crediamigo do Banco do Nordeste do Brasil, que
atualmente é o maior programa de microcrédito produtivo e orientado em operação do país.
Essa preocupação com o valor atribuído à missão e aos objetivos organizacionais
se deve ao fato de que muitos pesquisadores e executivos consideram que o envolvimento das
pessoas em torno de um propósito comum é fundamental para orientar o comportamento e o
desempenho das organizações (LUSTRI et al., 2007). Se existe relação entre o desempenho
de uma organização e a sua cultura, a compreensão dos significados atribuídos pelos
colaboradores aos propósitos organizacionais se torna um ponto crucial no gerenciamento das
organizações.
Em vista de realizar essa compreensão dos sistemas simbólicos organizacionais,
adota-se nesta pesquisa uma abordagem metodológica de natureza qualitativa e nível
descritivo-explicativo. Quanto à coleta dos dados, utiliza-se a técnica da entrevista semiestruturada, que está amparada por uma gravação de áudio, pelo uso do diário de campo e da
observação participante, visto que um dos autores da pesquisa também faz parte do caso sob
estudo; ou seja, é colaborador do Programa do Crediamigo. Os dados são analisados por meio
da técnica de mapas cognitivos, que possibilita revelar as estruturas cognitivas que guiam as
ações de indivíduos ou de grupos (VERGARA, 2006).
A seguir, desenvolve-se este artigo a partir de cinco secções: primeiramente, trata-se da
concepção política de cultura e dos processos de valorização simbólica que ocorrem nos
espaços sociais; em seguida, articula-se um quadro de categorias teórico-analíticas relevantes
para a compreensão dos sistemas simbólicos no contexto organizacional; na terceira secção,
apresenta-se uma discussão sobre estratégia, a missão e os objetivos organizacionais; na
quarta secção, trata-se dos aspectos metodológicos utilizados na pesquisa; e, por fim, na
última secção, analisa-se o caso do Programa Crediamigo e trazem-se algumas idéias
conclusivas do trabalho.
1. A contextualização social dos sistemas simbólicos
A utilização de símbolos é um traço distintivo da natureza humana. Somente os
seres humanos desenvolveram com precisão linguagens em virtude das quais expressões
significativas podem ser construídas e trocadas (ECO, 2003). Essas construções e trocas de
formas simbólicas estão sujeitas a múltiplas, divergentes e conflitantes, interpretações dos
indivíduos que as recebem e as percebem no curso de suas vidas cotidianas. As formas
simbólicas estão inseridas em contextos e processos sócio-históricos específicos, dentro dos
quais e por meio dos quais, são produzidas, transmitidas e recebidas. Esses contextos e
processos estão caracterizados por relações assimétricas de poder e por acesso diferenciado a
recursos e oportunidades (THOMPSON, 2001).
Bourdieu (2005) privilegia as funções sociais cumpridas pelos sistemas
simbólicos, as quais tendem, no limite, a se transformarem em funções políticas. Neste
sentido, o autor procura salientar o caráter alegórico dos sistemas simbólicos numa tentativa
de apreender as suas características intrínsecas em função das determinações que sofre por
parte das condições de existência econômica e política. Desta forma, o autor tenta
compreender a combinação singular que tais sistemas trazem para a reprodução e a
transformação da estrutura social. O que Bourdieu pretende é retificar a teoria do consenso
dos interacionistas simbólicos – cuja eficácia reside na possibilidade de ordenar o mundo
natural e social através de discursos, mensagens e representações, que não passam de
alegorias que simulam a estrutura real de relações sociais – por uma concepção teórica capaz
de revelar as condições materiais que presidem a criação e a transformação de aparelhos de
produção simbólica, cujos bens deixam de ser vistos como meros instrumentos de
comunicação e de conhecimento.
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De fato, nada mais falso do que acreditar que as ações simbólicas (ou o
aspecto simbólico das ações) nada significam além delas mesmas: na
verdade, elas exprimem sempre a posição social segundo uma lógica que é a
mesma da estrutura social, a lógica da distinção. Os signos enquanto tais
“não são definidos positivamente por seu conteúdo, mas sim negativamente
através de sua relação com os demais termos do sistema” e, por serem
apenas o que os outros não são, derivam seu “valor” da estrutura do sistema
simbólico; e, por esta razão, estão predispostos por uma espécie de harmonia
preestabelecida a exprimir o “nível” estatutário que, como a própria palavra
indica, deve o essencial de seu “valor” à sua posição em uma estrutura social
definida como sistema de posições e oposições (BOURDIEU, 2005, p. 17).
Em vista disso, pode-se afirmar que um dos temas centrais da cultura tem a ver
com a subordinação dos sistemas simbólicos ao sistema de grupos de status, com a estrutura
de poder daí resultante. O processo de simbolização cumpre sua função especial de legitimar e
justificar a unidade do sistema de poder, fornecendo-lhe o estoque de símbolos necessário à
sua expressão. As significações constituem mensagens de todo tipo, que delimitam o espaço
arbitrário em que se movem os diversos grupos que integram uma dada estrutura social. O
trajeto de Bourdieu visa justamente submeter o conhecimento da constituição interna do
campo simbólico a uma percepção de sua função política e também legitimar uma ordem
arbitrária em que se funda o sistema de dominação vigente (SARAIVA, 2007).
Nota-se que a seleção de significações que define objetivamente a cultura de um
grupo como estrutura simbólica é arbitrária na medida em que as funções desta cultura não
podem ser deduzidas de qualquer princípio universal, físico, biológico ou espiritual, não
estando unidas por nenhuma espécie de relação interna com a natureza das coisas ou com a
natureza humana. Entretanto, a noção de arbítrio não deve ser confundida com a idéia de
gratuidade, uma vez que um determinado sistema simbólico é sociologicamente necessário
porque deriva sua existência das condições sociais de que é produto, das funções políticas
(MICELI, 2005).
Essas funções são um conjunto de ações sobre ações possíveis; elas operam sobre
o campo de possibilidade onde se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos; elas incitam,
induzem, desviam, facilitam ou tornam mais difícil, ampliam ou limitam, tornam mais ou
menos prováveis; no limite, elas coagem ou impedem absolutamente. Em última análise, o
que está em jogo no campo simbólico é o poder propriamente político, até porque as relações
de força são mediadas por sistemas simbólicos que, ao mesmo tempo, tornam essas relações
visíveis e irreconhecíveis, pois lhes conferem uma existência através de linguagens especiais,
encobrindo as condições objetivas e as bases materiais em que se fundam (RABINOW;
DREYFUS, 1995).
Assim, em virtude de uma postura que privilegia a análise política do campo
simbólico, procura-se explorar ao máximo os nexos entre os grupos de status e os sistemas
simbólicos de que são portadores. Nesse sentido, a cultura de uma sociedade é resultado da
hegemonia de um grupo e dos conflitos entre as forças mestras no curso de seu
desenvolvimento histórico. Emerge daí uma concepção geral da sociedade que implica uma
ênfase da dimensão política.
Bourdieu (2007) leva às últimas conseqüências a imagem da sociedade como um
campo de batalha operando com base na força e no sentido, ou melhor, dando ênfase à força
do sentido. Para além dos conflitos que sucedem no plano material, a luta que se desenvolve
entre os diversos grupos sociais assume o caráter de uma disputa entre valores que se
materializam através de um estilo de vida baseado na usurpação do prestígio e na dominação
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que se exerce por intermédio das instituições que dividem entre si o trabalho de dominação
simbólica.
… o espaço dos estilos de vida, ou seja, o universo das propriedades pelas
quais se diferenciam, com ou sem intenção de distinção, os ocupantes das
diferentes posições no espaço social não passa em si mesmo de um balanço,
em determinado momento, das lutas simbólicas cujo pretexto é a imposição
do estilo de vida legítimo e que encontram uma realização exemplar nas
lutas pelo monopólio dos emblemas da “classe”, ou seja, bens de luxo, bens
de cultura legítima ou modo de apropriação legítima desses bens. A
dinâmica do campo no qual os bens culturais se produzem, se reproduzem e
circulam, proporcionando ganhos de distinção encontra seu princípio nas
estratégias em que se engendram sua raridade e a crença em seu valor, além
de contribuírem para a realização desses efeitos objetivos pela própria
concorrência que os opõe entre si: a “distinção” ou, melhor ainda, a “classe”
– manifestação legítima, ou seja, transfigurada e irreconhecível, da classe
social – existe apenas através das lutas pela apropriação exclusiva dos sinais
distintivos que fazem a “distinção natural” (BOURDIEU, 2007, p. 233).
Por esta via, a intenção de Bourdieu (2007) não é elaborar uma teoria
“culturalista” da sociedade, mas mostrar a matriz das significações dominantes que compõem
um arbítrio cultural, que mascara tanto o caráter arbitrário de tais significações como o caráter
arbitrário da dominação, isto é, explicar o processo histórico das lutas entre classes e grupos
sociais, responsável pela imposição de uma cultura particular.
Tal processo de imposição de uma cultura de classe permite sempre, em alguma
medida, o surgimento e a manifestação de sistemas simbólicos a serviço da expressão política
dos grupos dominados, desde que não ponha em risco o sistema prevalecente de dominação.
Bourdieu (2005, p. 24) afirma, ainda, que “as classes inferiores se referem, sobretudo, ao
dinheiro, as classes médias ao dinheiro e à moralidade, enquanto as classes superiores
acentuam o nascimento e o estilo de vida”.
Por conta disso, parece urgente a necessidade de se encontrar uma perspectiva de
análise aplicável às diversas linguagens simbólicas – desde a própria ação social entendida
como uma seqüência significante até o discurso científico – e um quadro teórico
suficientemente fecundo a ponto de ser possível mapear os vínculos que prendem os sistemas
simbólicos à estrutura social.
Essa perspectiva de análise e esse quadro teórico podem ser encontrados nos
estudos de Thompson (2001), que, partindo das contribuições de Bourdieu, estabelece as
estratégias de valorização simbólica utilizadas pelos indivíduos de acordo com o espaço social
que ocupam. Essas estratégias são discutidas detalhadamente no item a seguir.
2. Estratégias de valorização simbólica
Uma conseqüência da contextualização dos sistemas simbólicos, conforme foi
apresentado no item anterior é a de que eles são, freqüentemente, submetidos a complexos
processos de valorização, avaliação e conflito. Acrescenta-se a isso o fato de que as formas
simbólicas podem ser distinguidas entre dois principais tipos de valorização. O primeiro tipo é
a valorização simbólica: o processo através do qual é atribuído às formas simbólicas um
determinado valor simbólico pelos indivíduos que as produzem e recebem. Valor simbólico é
aquele que os objetos têm em virtude dos modos pelos quais, e na extensão em que, são
estimados pelos indivíduos que os produzem e recebem, isto é, por eles aprovados ou
condenados, apreciados ou desprezados. A atribuição de valor simbólico pode ser distinguida
da valorização econômica, como o processo por meio do qual é atribuído às formas
simbólicas um determinado valor econômico, isto é, um valor pelo qual elas podem ser
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trocadas em um mercado. Através do processo de valorização econômica, as formas
simbólicas são constituídas como mercadorias, tornam-se objetos que podem ser comprados
ou vendidos por um dado preço em um mercado (THOMPSON, 2001).
Ambos os tipos de valorização são comumente acompanhados de distintas formas
de conflito. De um lado, diferentes graus de valor simbólico podem ser atribuídos às formas
simbólicas pelos indivíduos que as produzem e recebem, de tal modo que um objeto que é
apreciado por alguns pode ser condenado ou desprezado por outros. Tais conflitos sempre têm
lugar dentro de um contexto social que se caracteriza por assimetrias e diferenças de vários
tipos. Assim, as valorizações simbólicas realizadas por diferentes indivíduos, que estão
diferentemente situados, são, raras vezes, de mesmo status. Alguns indivíduos estão em uma
melhor posição do que outros para realizar valorizações e, se for o caso, impô-las.
De outro lado, o processo de valorização econômica é, também, comumente
acompanhado por conflito. Bens simbólicos podem ser economicamente valorizados em
diferentes graus por diferentes indivíduos, no sentido de que alguns indivíduos podem
entendê-los como de maior ou menor valor do que outros lhes atribuem. Tais conflitos sempre
têm lugar em contextos sociais nos quais alguns indivíduos podem ser capazes de pagar mais
do que outros para adquirir ou controlar bens simbólicos.
Embora seja possível distinguir, analiticamente, entre valorização simbólica e
econômica, e entre as formas de conflito tipicamente associadas a elas, nas circunstâncias
reais essas formas de valorização e conflito freqüentemente se sobrepõem de maneiras
complexas. Em alguns casos, a aquisição de valor simbólico, quando atribuído por outros ou
quando derivado do prestígio acumulado por algum indivíduo, pode aumentar o valor
econômico de um bem simbólico. Em outros casos, entretanto, a aquisição de valor simbólico
pode não aumentar significativamente o valor econômico de um bem simbólico e pode
mesmo diminuir seu valor econômico. Em certos campos de produção e troca simbólica, o
valor simbólico de um bem pode estar inversamente relacionado com seu valor econômico,
uma vez que pode ser visto como cada vez menos submetido aos interesses comerciais
(SARAIVA, 2007).
Os indivíduos envolvidos na produção e recepção de formas simbólicas estão,
geralmente, conscientes do fato de que elas podem ser submetidas a processos de valorização
e que podem empregar estratégias voltadas para o aumento ou a diminuição do valor
simbólico ou do econômico.
As estratégias empregadas pelos indivíduos estão ligadas às posições que ocupam
dentro de campos de interação particulares. Os tipos de estratégias tipicamente empregados
pelos indivíduos e sua capacidade para terem sucesso com elas dependem dos recursos de que
dispõem e de sua relação com outros indivíduos no campo. Thompson (2001) ilustra esse
ponto enfocando algumas das estratégias que os indivíduos tipicamente empregam na
atribuição de valor simbólico. O autor distingue algumas estratégias típicas de valorização
simbólica e demonstra como estão ligadas a diferentes posições em um campo. Ao distinguir
essas estratégias típicas, ele não quer sugerir que sejam os únicos procedimentos possíveis aos
indivíduos, nem que sejam os únicos procedimentos por eles empregados. Ao contrário, os
indivíduos estão constantemente envolvidos na criação de novas estratégias, na descoberta de
novas maneiras de alcançar seus objetivos ou de evitar que outros alcancem os seus. Destacase que essas estratégias só podem ser plenamente analisadas quando se considera os casos
específicos. O Quadro 1 resume algumas dessas estratégias típicas e suas ligações com
diferentes posições em campo.
Posições dentro do campo
Dominante
Estratégias de valorização simbólica
Distinção
Menosprezo
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Condescendência
Moderação
Intermediária
Pretensão
Desvalorização
Subordinada
Praticidade
Resignação respeitosa
Rejeição
Quadro 1: Estratégias de valorização simbólica.
Fonte: adaptado de Thompson (2001).
Os indivíduos que ocupam posições dominantes dentro de um campo de interação
são aqueles que são positivamente dotados de recursos ou capital de vários tipos. Ao produzir
e apreciar formas simbólicas, os indivíduos em posição dominante, tipicamente, empregam a
estratégia de distinção, no sentido de que procuram distinguir-se dos indivíduos ou dos
grupos que ocupam posições subordinadas a eles. Assim, eles podem atribuir alto valor
simbólico a bens que sejam escassos ou caros (ou ambos) e que são, por isso, bastante
inacessíveis a indivíduos menos dotados de capital econômico.
Nos espaços organizacionais, esse tipo de estratégia pode ocorrer quando, por
exemplo, os dirigentes se consideram mais capazes que qualquer outro para determinar os
rumos dos negócios e justificam essa capacidade com a experiência e a formação que
possuem, com pesquisas que realizam sobre demandas de mercados, planejamento e
desenvolvimento de produtos etc., e com relatórios de resultados da empresa.
Os indivíduos em posições dominantes podem, também, procurar distinguir-se
empregando a estratégia de menosprezo, isto é, considerando as formas simbólicas
produzidas por aqueles que estão abaixo deles como defeituosas, desajeitadas, imaturas ou
grosseiras. Uma variante mais sutil desse tipo de estratégia é a condescendência. Elogiando
formas simbólicas de modo a rebaixar seus produtores e a lembrá-los de sua posição
subordinada, a condescendência possibilita aos indivíduos em posição dominante reafirmar
sua dominação sem declará-la abertamente.
Os dirigentes das organizações adotam a estratégia de menosprezo quando julgam
que seus subordinados são incapazes de tomar qualquer tipo de decisão estratégica e, por isso,
ficam responsáveis apenas pelas questões táticas e operacionais da organização. Por outro
lado, os dirigentes que adotam estratégias de condescendência se consideram capazes de
dirigir adequadamente uma determinada organização justamente pelo fato de ouvirem
atentamente os pontos de vista de seus subordinados quanto aos rumos dos negócios.
As posições intermediárias dentro de um campo são aquelas que oferecem acesso
a um tipo de capital, porém não a outro ou que oferecem acesso a diferentes tipos de capital,
mas em quantidades que são mais limitadas do que aquelas disponíveis aos indivíduos ou
grupos dominantes. Uma posição intermediária pode ser caracterizada por uma grande
quantidade de capital econômico, mas uma baixa quantidade de capital cultural ou,
inversamente, por uma pequena quantidade de capital econômico e uma grande quantidade de
capital cultural ou ainda por quantidades moderadas de ambos.
As estratégias de valorização simbólica empregadas pelos indivíduos situados em
posições intermediárias estão, freqüentemente, caracterizadas por moderação: os indivíduos
valorizam positivamente aqueles bens que sabem estar ao seu alcance e, enquanto indivíduos
cujo futuro pode não estar inteiramente seguro, podem valorizar mais aquelas formas
simbólicas que os possibilitam empregar seu capital cultural enquanto preservam seus
limitados recursos econômicos.
As pessoas que adotam estratégias de moderação dentro de uma organização
geralmente são gerentes preocupados em realizar corretamente as suas funções, aceitando
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facilmente as ordens de seus superiores, procurando oferecer condições de trabalho adequadas
aos seus subordinados.
Mas os indivíduos em posições intermediárias podem, também, estar orientados
para as posições dominantes, produzindo formas simbólicas como se elas fossem produtos de
indivíduos ou de grupos dominantes ou valorizando-as como se estivessem sendo valorizadas
por esses últimos. Os indivíduos situados em posições intermediárias podem, assim, empregar
a estratégia de pretensão, fingindo ser o que não são e buscando, dessa forma, assimilar-se a
posições superiores às suas. Indivíduos situados em posições intermediárias podem adotar o
sotaque, o vocabulário e os maneirismos discursivos dos indivíduos ou dos grupos
dominantes, produzindo formas simbólicas que exibem características dominantes e que
atestam sua ambição, sua insegurança ou ambas.
Os gerentes que adotam estratégias de pretensão muitas vezes almejam ocupar a
posição dos dirigentes, pois acham que têm mais competência para decidir sobre o rumo dos
negócios. Esse tipo de gerente, possivelmente, não está ocupando uma posição hierárquica
adequada a sua experiência ou a sua formação e, por isso, sente-se insatisfeito por estar
realizando atividades que estão aquém dos desafios que deseja enfrentar.
Em algumas circunstâncias, contudo, indivíduos situados em posições
intermediárias podem empregar uma estratégia bastante diferente em relação aos indivíduos
ou grupos dominantes, procurando desvalorizar ou depreciar as formas simbólicas
produzidas por esses dominantes. Ao invés de reproduzir as valorizações dos indivíduos ou
grupos dominantes para assimilar-se às posições dominantes, podem condenar as formas
simbólicas produzidas por tais indivíduos dominantes numa tentativa de elevar-se acima
dessas posições.
As estratégias de desvalorização costumam ser empregadas nas organizações
quando os gerentes discordam totalmente das decisões dos superiores, julgando-os
despreparados e irresponsáveis. Isso ocorre, por exemplo, quando um dirigente sem qualquer
formação teórica ou mesmo prática, como o jovem herdeiro de uma empresa familiar, entra
em conflito com um gerente experiente e capacitado.
As posições subordinadas dentro de um campo são aquelas que oferecem acesso a
mínimas quantidades de capital de diferentes tipos. Os indivíduos situados nessas posições
são aqueles menos dotados de recursos ou cujas oportunidades são mais restritas. As
estratégias de valorização simbólica empregadas por indivíduos situados em posições
subordinadas são, tipicamente, caracterizadas pela praticidade, pois esses indivíduos estão
mais preocupados que outros com as necessidades de sobrevivência e, por isso, podem
atribuir mais valor do que fazem outros a objetos práticos em sua constituição e funcionais na
vida cotidiana.
As estratégias de praticidade são bastante comuns entre os operários de uma
determinada linha de produção, que estão preocupados especialmente com as metas de
produção mensal e muitas vezes desconhecem os objetivos de longo prazo da organização.
A valorização positiva de objetos práticos pode andar lado a lado com a
resignação respeitosa em relação às formas simbólicas produzidas por indivíduos que
ocupam posições superiores em um campo. Essa é uma estratégia de respeito no sentido de
que as formas produzidas por indivíduos situados em posições superiores são vistas como
superiores, isto é, como merecedoras de respeito, mas é uma estratégia de resignação na
medida em que a superioridade dessas formas e, conseqüentemente, a inferioridade de seus
próprios produtos são aceitas como inevitáveis.
Os operários utilizam as estratégias de resignação respeitosa quando têm algum
conhecimento sobre os objetivos de longo prazo de uma determinada organização, mas
mesmo assim atribuem maior valor às suas metas mensais de produção.
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Em contraste com essa forma de resignação respeitosa, os indivíduos situados em
posições subordinadas podem empregar variadas estratégias de rejeição. Podem rejeitar ou
ridicularizar as formas simbólicas produzidas por indivíduos situados em posições superiores.
Ao fazer isso, os indivíduos situados em posições subordinadas não necessariamente podem
estar procurando elevar-se acima das posições de seus superiores (como aqueles que
empregam a estratégia da desvalorização tipicamente tentam fazer); dada sua posição dentro
do campo, tentar elevar-se dessa forma pode não ser um objetivo realista. Mas, rejeitando as
formas simbólicas produzidas por seus superiores, os indivíduos situados em posições
subordinadas podem encontrar uma maneira de afirmar o valor de seus próprios produtos e
atividades sem romper fundamentalmente com a distribuição desigual de recursos
característicos do campo.
As estratégias de rejeição ocorrem geralmente quando os dirigentes impõem
tarefas muito desgastantes aos seus subordinados em troca de uma remuneração abaixo dos
padrões aceitos pelo mercado. Esse tipo de situação pode, inclusive, produzir reivindicações e
contestações das ordens dos dirigentes por parte dos subordinados.
Em vista disso, essas estratégias de valorização simbólica representam categorias
analíticas que serão utilizadas para analisar os valores atribuídos por colaboradores à missão e
aos objetivos estratégicos de uma determinada organização. Por outro lado, essas proposições
sobre o uso dessas estratégias no espaço organizacional constituem algumas pressuposições
desta pesquisa. Os aspectos conceituais da missão e dos objetivos organizacionais serão
discutidos no item a seguir.
3. Debate sobre missão e objetivos organizacionais
A missão de uma organização é a razão de ser da sua existência. Ela estabelece o
que a empresa está provendo à sociedade. Uma declaração de missão bem concebida define o
propósito fundamental e único que destaca uma empresa de outras e identifica o escopo das
operações da empresa em termos de produtos e serviços oferecidos e em termos de mercados
atendidos. A missão coloca em palavras não apenas o que a empresa é agora, mas o que ela
quer se tornar, isto é, a visão estratégica da gerência quanto ao futuro. Para os colaboradores,
a missão transmite um consenso de expectativas e, para as demais partes interessadas, ela
demonstra a imagem pública que a empresa tem em seu ambiente (HUNGER; WHEELEN,
2002).
Uma missão pode ser definida de modo estreito ou de maneira ampla. Uma
declaração de missão ampla é uma declaração vaga e geral do que a empresa está propensa a
fazer. Uma declaração de missão definida dessa forma evita que a empresa se restrinja a um
campo ou linha de produtos, mas falha em identificar claramente o que ela faz ou que produto
ou mercado deseja enfatizar. Em contraste, uma declaração de missão estreita define
claramente os principais produtos e mercados da organização, mas pode limitar o escopo das
atividades da empresa em relação aos produtos ou aos serviços oferecidos, da tecnologia
utilizada e do mercado atendido.
Uma declaração de missão imprópria, muito restrita ou ampla demais, pode
originar problemas de desempenho. Se a missão não oferecer uma linha de pensamento
comum, um tema unificador, para os negócios de uma organização, os gestores podem não
saber claramente para onde a empresa está caminhando. Às vezes, as divisões passam a
concorrer umas com as outras em vez de enfrentar a concorrência externa, em detrimento dos
interesses maiores da organização (WRIGHT; KROLL; PARNELL, 2007).
Por outro lado, os objetivos são os resultados que se pretende alcançar com uma
atividade planejada. Eles definem o que deve ser conquistado e quando, além do que deve ser
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quantificado, se possível. A conquista dos objetivos organizacionais deve resultar no
cumprimento da missão da empresa (HUNGER; WHEELEN, 2002).
Os objetivos de uma empresa também podem ser mal definidos quando
focalizados apenas em metas operacionais de curto prazo, podendo ainda ser tão gerais que
oferecem pouca orientação efetiva. É possível que exista um hiato entre os objetivos
estabelecidos e os objetivos alcançados. Quando isso ocorre, as estratégias têm que ser
modificadas para melhorar o desempenho ou os objetivos precisam ser reavaliados mais
realisticamente. Inclusive, fazer uma revisão constante dos objetivos é fundamental para se
garantir a utilidade deles (WRIGHT; KROLL; PARNELL, 2007).
A seguir, apresenta-se a metodologia que irá orientar a aplicação dessas categorias
de análise sobre o caso empírico desta pesquisa.
4. Metodologia
No sentido de elucidar os significados que estão subjacentes dos valores
atribuídos pelos colaboradores aos propósitos de uma determinada organização, adota-se nesta
pesquisa uma abordagem metodológica de natureza qualitativa. Para Oliveira (2007), a
abordagem qualitativa é adequada para descrever a complexidade de determinado problema,
compreender e classificar processos dinâmicos vividos por grupos sociais e possibilitar, em
maior nível de profundidade, o entendimento das particularidades do comportamento dos
indivíduos.
Além disso, o nível desta pesquisa pode ser considerado descritivo-explicativo,
visto que, por um lado, trata-se de uma descrição da forma como se apresentam os fatos e
fenômenos e, por outro, procura-se esclarecer de que modo esses fatos e fenômenos são
produzidos (CRUZ; RIBEIRO, 2004).
Quanto à coleta dos dados, utiliza-se a técnica da entrevista semi-estruturada, que
está amparada por gravações de áudio, que foram integralmente transcritas pelos
pesquisadores, e pelo uso do diário de campo e da observação participante, visto que um dos
autores da pesquisa também faz parte do caso sob estudo; ou seja, é colaborador da
organização pesquisada.
De acordo com Oliveira (2007), a entrevista é um instrumento adequado para
maximizar a interação entre pesquisador e entrevistado e obter descrições detalhadas sobre o
que se está pesquisando; e a gravação é importante para se ter com precisão o registro de tudo
o que foi dito por ocasião da entrevista. A observação participante, por sua vez, é definida por
Bulgacov e Vizeu (2006) como o processo de observação de uma comunidade ou grupo
social, onde o pesquisador assume alguma atividade dentro do grupo investigado no intuito de
compartilhar experiências com os sujeitos observados. As entrevistas foram realizadas com
dois gerentes executivos, um coordenador de posto e um assessor de crédito do programa.
O tratamento dos dados transcritos pelos pesquisadores é realizado primeiramente
por meio da análise do discurso, que constitui um requisito fundamental para a construção de
mapas cognitivos. A análise do discurso é um método que visa não só apreender como uma
mensagem é transmitida, como também explorar o seu sentido; já os mapas cognitivos
permitem revelar as estruturas cognitivas que guiam as ações de indivíduos ou de grupos.
Esses mapas são representações construídas a partir das interações que os indivíduos
estabelecem em domínios específicos do seu ambiente para lidar com os problemas e desafios
que a realidade lhes apresenta (VERGARA, 2006).
Considerando que as estratégias de valorização simbólica são empregadas em
função da posição que os indivíduos ocupam dentro de um determinado campo de interação,
os mapas cognitivos são utilizados para situar os colaboradores entrevistados, envolvidos no
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estudo do caso desta pesquisa, no espaço da estrutura organizacional e também para
representar as estratégias utilizadas por esses para valorizar os propósitos organizacionais.
A análise dos dados por meio dessas técnicas de análise do discurso e mapas
cognitivos, assim como os resultados desta pesquisa, é apresentada no item a seguir.
5. O caso Programa do Crediamigo
Tendo em vista o tema central deste artigo, optou-se por investigar o caso do
Programa do Crediamigo, que, conforme a descrição apresentada logo abaixo, possui uma
estrutura organizacional bem definida, uma quantidade significativa de colaboradores, uma
declaração formal da missão e dos objetivos e um volume expressivo de negócios.
O Crediamigo é um Programa de microcrédito urbano do Banco do Nordeste do
Brasil (BNB). Atualmente, ele é o maior Programa de microcrédito produtivo e orientado em
operação no Brasil. Em Dezembro de 2007, possuía 299,9 mil clientes ativos e R$ 234,7
milhões de carteira ativa. Ao longo de sua trajetória, iniciada em 1998, o programa já
desembolsou recursos da ordem de R$ 3,5 bilhões, através da realização de mais de quatro
milhões de operações de valor entre R$ 100,00 e R$ 10.000,00, junto a 766,6 mil
empreendedores.
O Programa é gerido pelo Ambiente de Microfinanças do BNB, cuja estrutura é
composta por vinte e cinco colaboradores, que são responsáveis pelas definições estratégicas
acerca de produtos, políticas de crédito e mercados, pelo gerenciamento financeiro e pela
coordenação geral das equipes operacionais.
A operacionalização é conduzida por meio de uma parceria com uma Organização
da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), o Instituto Nordeste Cidadania. Em
dezembro de 2007, este instituto contava com 1.517 colaboradores envolvidos nas atividades
do Crediamigo em 170 unidades de negócio. Cada uma dessas unidades conta com equipes
formadas por coordenadores, assessores administrativos e de crédito, que são responsáveis por
atividades de promoção, por captação de clientes e pelo gerenciamento das carteiras de
crédito. A quantidade de assessores e coordenadores varia em função do porte da unidade. A
Figura 1 apresenta a estrutura do Programa.
Tanto o Ambiente de Microfinanças como as unidades de negócios são orientados
por uma declaração formal de missão, que é contribuir para o desenvolvimento dos
empresários do setor informal, mediante a oferta de serviços financeiros e de assessoria
empresarial, de forma sustentável, oportuna e de fácil acesso, assegurando novas
oportunidades de ocupação e renda. Os objetivos do Crediamigo também estão declarados
formalmente: atingir a marca de um milhão de clientes até 2011, contribuir para que o maior
número de pessoas possível consiga superar a linha de pobreza e fortalecer o setor informal
através do crédito produtivo e orientado.
Por tudo isso, acredita-se que o Crediamigo é um espaço social que opera
consistentemente com base em relações de forças manifestadas dentro da área de significação,
constituindo, assim, um caso instigante para a análise de sistemas simbólicos organizacionais.
Conforme descrito na metodologia desse estudo, a análise dos sistemas simbólicos
do Programa do Crediamigo teve como base o diálogo entendido à luz de categorias e
informações contextuais variadas fazendo emergir a interpretação como elemento intrínseco
ao processo de pesquisa. Desta forma, iniciando com as categorias teórico-analíticas
articuladas ao longo do item 2 a partir das contribuições de Thompson e Bourdieu, este
processo levou, em um segundo momento, a descrição das categorias empírico-analíticas
conforme se apresentam a seguir.
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Figura 1: Estrutura do Programa Crediamigo.
Fonte: elaborada pelos autores.
A gerente executiva da célula de gestão estratégica do Crediamigo, doravante
respondente 1 (R1), é a primeira entrevistada da pesquisa. À princípio, pode-se afirmar que
ela ocupa uma posição dominante dentro do espaço de interação organizacional, visto que a
célula de gestão estratégica é responsável pelo processo de formulação estratégica do
programa. De antemão, acredita-se que quem ocupa uma função dessa natureza possua, em
relação aos demais colaboradores, acesso privilegiado a recursos financeiros, por meio da
remuneração do cargo, e a recursos culturais, através da formação e da experiência, que dão
os subsídios necessários para a tomada de decisões. Entretanto, constata-se, durante as
entrevistas, que essa R1 utiliza a estratégia de valorização simbólica de “pretensão”, que,
tipicamente, é usada por aqueles que ocupam posições intermediárias dentro do campo de
interação. Pode-se perceber isso quando ela afirma, primeiramente, que tem acesso a todas as
informações estratégicas da organização, mas não tem poder de decisão sobre a definição da
missão e dos objetivos do Crediamigo. Além disso, a análise de seu discurso demonstra certa
discordância de sua parte com algumas das decisões tomadas por seus superiores e sugere
que, se tivesse maior poder de decisão, mudaria em parte os rumos do Programa, estendendo
o microcrédito, que é ofertado a empreendedores, para a população de baixa renda em geral.
Destaca-se também que, embora esteja satisfeita com a sua função no Crediamigo, a R1
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gostaria também de estar trabalhando nas atividades do BNB mais voltadas para a pesquisa,
pois, assim, poderia se dedicar mais aos estudos em gestão. Por conseguinte, infere-se que a
R1 procura por uma posição dentro do campo que lhe permita utilizar de modo mais
consistente que o atual os seus recursos culturais.
O segundo respondente da pesquisa (R2) é o gerente de microfinanças do Ceará,
que coordena o processo de implementação estratégica do Crediamigo. Ele possui recursos
econômicos privilegiados por conta de sua posição organizacional e também é dotado
positivamente de recursos culturais em função das atividades que realiza. Destaca-se que as
suas tarefas na organização não estão voltadas para o “planejar” ou o “refletir”, e sim para o
“fazer”, o “realizar” e, por isso, os seus recursos culturais estão mais voltados para a sua
experiência e as suas habilidades em formar e motivar equipes que propriamente para a sua
formação acadêmica. Pode-se perceber isso a partir de suas próprias afirmações, que estão
transcritas literalmente abaixo:
Eu penso que o que contribui muito pro meu trabalho, primeiro é saber
trabalhar com as pessoas. Eu, desde jovem, adolescente, que eu trabalhava
com pessoas, eu era de grupo de jovem, participei de grupo de jovens, eu era
evangelizador de crianças, adolescentes. Então, trabalhava com eles,
motivava. Então, isso é uma coisa que eu conquistei ao longo desses anos de
dentro da Igreja mesmo. Depois o estudo me ajudou: a economia, a
faculdade, o próprio Banco; a minha grande escola é o Banco. Na verdade,
na economia, na faculdade, a gente ganha um certificado, mas o grande
aprendizado é o próprio Banco (INFORMAÇÃO VERBAL, 2008).
Portanto, pode-se afirmar que o R2 ocupa uma posição dominante dentro do
espaço organizacional. Aliás, ele é um sujeito fundamental do Crediamigo, pois consegue
transformar as formulações estratégicas da superintendência e da célula de gestão estratégica
do Programa em ações concretas, convencendo os colaboradores das unidades de negócios de
que as metas estabelecidas são importantes e também possíveis de ser alcançadas. O R2
exerce na organização uma função de liderança, utilizando uma estratégia de valorização
simbólica de “condescendência”, visto que leva em conta todo e qualquer tipo de
descontentamento ou sugestão que os seus colaboradores apresentam em relação as suas
próprias decisões, promovendo, dessa forma, uma visão compartilhada quanto ao futuro da
organização, obtendo, inclusive, a admiração e respeito de superiores e colaboradores.
O terceiro entrevistado da pesquisa (R3) é um coordenador de posto e o quarto
(R4) é um assessor de crédito de uma das unidades de negócios de Fortaleza. O coordenador
de posto coordena as atividades dos assessores de crédito, que vão à rua para atender os atuais
clientes e também para conquistar novos consumidores de crédito. A partir das entrevistas
realizadas com o R3 e o R4, pode-se inferir que eles ocupam – da mesma forma – uma
posição subordinada no espaço organizacional, pois possuem poucos recursos econômicos em
relação aos seus superiores e desenvolvem os seus recursos culturais basicamente a partir de
suas práticas no âmbito do Crediamigo, das habilidades que adquirem e da experiência que
obtêm a partir do dia-a-dia de seus trabalhos, conforme o R4 afirma a seguir:
Você ter formação acadêmica, você ser formado e tal, alguma coisa assim,
estágio é muito bom, mas o que realmente vai lhe ajudar; o que vai dar
embasamento pra você ir pra rua trabalhar e fazer um trabalho bem feito é o
próprio Crediamigo. A Instituição é quem lhe dá a formação mais sólida. Se
você vier de fora, preparado para entrar no Crediamigo, você chegando aqui,
você tem esquecer quase tudo que aprendeu e aprender tudo de novo, porque
é uma metodologia totalmente diferenciada, tudo que a gente pega, que vem
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de fora, que acha que a gente sabe lá fora e traz pra cá, geralmente aqui é
diferente, quase tudo é diferente. (INFORMAÇÃO VERBAL, 2008).
A partir dessa afirmação percebe-se que o entrevistado utiliza, assim como o R3,
uma estratégia de valorização simbólica de “praticidade”, visto que valoriza a prática em
detrimento da teoria, isto é, valoriza o trabalho que realiza no cotidiano em detrimento de
qualquer tipo de educação formal. Além disso, eles também utilizam uma estratégia de
“resignação respeitosa”, pois não participam do processo de determinação da missão e dos
objetivos estratégicos do Crediamigo, mas confiam nas decisões de seus superiores.
Entretanto, eles têm liberdade para questionar as metas operacionais do Programa e também
para sugerir mudanças relativas às práticas das unidades de negócios e fornecer informações
sobre a satisfação dos clientes etc.
Por fim, categoriza-se as afirmações da gerente de negócios do Crediamigo (R5),
cuja função é promover a interlocução entre as células de gestão estratégica e de
microfinanças do Programa, aproximando o “pensar” do “fazer”, o planejamento da
implementação e, especialmente, R1 de R2. Destaca-se que R5 é também autora desta
pesquisa e facilitando, dessa forma, a realização de uma observação participante, que está
destacada no item da metodologia. Tendo em vista que os processos de auto-avaliação são
sempre mais complexos que os processos de avaliação, R5 não categoriza as suas próprias
afirmações, mas estas foram analisadas pelos demais autores da pesquisa. Destarte, pode-se
afirmar que R5 ocupa uma posição dominante dentro do espaço organizacional, uma vez que
possui acesso privilegiado a recursos econômicos e culturais, e ainda utiliza uma estratégia de
valorização simbólica de “condescendência”, pois promove um estilo de gestão democrática
inspirado no perfil de liderança de R2.
O Quadro 2 apresenta os posicionamentos no espaço organizacional ocupados por
cada um dos respondentes, assim como as estratégias de valorização simbólica que eles
utilizam em relação aos propósitos do Crediamigo.
Respondente Posição dentro do campo Estratégia de valorização simbólica
R1
Intermediária
Pretensão
R2
Dominante
Condescendência
R3
Subordinada
Praticidade/Resignação respeitosa
R4
Subordinada
Praticidade/Resignação respeitosa
R5
Dominante
Condescendência
Quadro 2: Categorização dos respondentes da pesquisa.
Fonte: elaborado pelos autores.
Nota-se que o superintendente do Crediamigo não é entrevistado por conta de suas
férias, que aconteceram durante a realização desta pesquisa. Entretanto, por meio da leitura
dos dados do diário de campo e da observação participante e considerando o seu
posicionamento no campo, infere-se como dominante, pois possui o cargo de maior grau
hierárquico do Crediamigo. Em relação à valorização dos propósitos organizacionais, ele
também utiliza a estratégia de “condescendência”, visto que permite que os seus
colaboradores participem do processo de decisão estratégica. De acordo com R5 (Informação
Verbal, 2008), ele “é, como praticamente todos os colaboradores do Crediamigo, apaixonado
pelo Programa. A posição que ele ocupa, representando o maior programa de microcrédito
produtivo em operação no país, o qualifica para participar de eventos e fóruns nacionais e
internacionais”.
A partir dessas categorizações é possível construir um mapa cognitivo (Figura 2)
que facilita a compreensão deste caso sob estudo, localizando os respondentes no espaço
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organizacional de acordo com o valor que atribuem de modo intersubjetivo aos propósitos
organizacionais.
Figura 2: Mapa cognitivo dos respondentes da pesquisa.
Fonte: elaborado pelos autores.
Esse mapa cognitivo é uma ferramenta que ajuda na visualização do objeto de
estudo desta pesquisa. A partir dele é possível perceber não apenas as posições no campo e as
estratégias de valorização de cada respondente, mas também as relações que se estabelecem
entre eles e as conseqüências dessas relações para a organização. Destarte, o Crediamigo é um
espaço de significação caracterizado por visões compartilhadas quanto ao futuro da
organização. Por conta disso, os conflitos que ocorrem entre os respondentes e também entre
os demais colaboradores são bastante sutis e eventuais. Isso acontece porque as lideranças do
Programa, especialmente o superintendente e o R2, adotam estratégias de “condescendência”,
dando liberdade para os colaboradores exporem suas opiniões, criando um clima
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organizacional democrático e promovendo uma cultura voltada para a realização da missão e
dos objetivos organizacionais.
Nota-se que as categorizações das posições dos respondentes no campo não são
assinaladas apenas a partir dos cargos ocupados na estrutura organizacional. É possível
perceber esses pequenos desacordos porque as categorizações levam em conta justamente as
relações entre os respondentes e os demais colaboradores dentro de suas ações cotidianas e
não procuram aplicar forçosamente a teoria sobre a prática. Aliás, as distâncias entre cada
uma das categorias são dinâmicas e flexíveis de modo que R3 e R4 utilizam ao mesmo tempo
duas estratégias de valorização simbólica diferentes. O próprio R2 demonstra utilizar em
determinadas situações estratégias de “distinção” e até mesmo de “menosprezo”,
especialmente quando percebe que alguma unidade de negócios não consegue atingir
determinadas metas por falta de comprometimento de seus colaboradores.
Considerações finais
Tendo em vista a realização da análise do Programa do Crediamigo, pode-se
afirmar que é possível elucidar os significados subjacentes às estratégias utilizadas por
colaboradores para atribuir valor aos propósitos de uma determinada organização a partir das
contribuições de Bourdieu e Thompson sobre a cultura como um campo de relações de força
manifestadas dentro da área da significação.
Embora a análise do Programa do Crediamigo não tenha revelado maiores
conflitos entre os seus colaboradores, foi possível esclarecer, por meio deste estudo, algumas
dimensões relacionadas aos sistemas simbólicos do Programa, como, por exemplo, a
existência de uma linha de pensamento comum quanto à realização dos negócios.
Em termos gerais, foi possível perceber que no caso do Programa do Crediamigo
prevalece, de fato, o compromisso com os propósitos organizacionais, o trabalho em equipe, a
negociação das metas operacionais, a preocupação de oferecer ao cliente a orientação
necessária para o uso do crédito e, conseqüentemente, resultados econômicos e sociais
satisfatórios. Entretanto, destaca-se que, embora possua atualmente quase 300 mil clientes, o
Crediamigo não realiza nenhum trabalho no sentido de integrar as ações empreendedoras
desses clientes em redes, em arranjos produtivos locais (APLs) ou quaisquer atividades
coletivas que possam maximizar o impacto do crédito sobre o desenvolvimento sócioterritorial dos espaços geográficos onde atua. Esse destaque representa, por fim, uma
proposição de redirecionamento estratégico proposta pelos autores desta pesquisa ao
Crediamigo.
Destacar ainda, que o método utilizado na pesquisa foi bastante eficiente para o
cumprimento do seu objetivo central, isto é, para a compreensão da dinâmica dos sistemas
simbólicos do Programa do Crediamigo.
Em termo de sugestão, recomenda-se a realização de outros estudos empíricos e
também o desenvolvimento de práticas de gestão que utilizem as categorias teórico-analíticas
propostas por Thompson, especialmente em organizações que estejam passando por processos
de mudanças ou que sejam caracterizadas por conflitos internos. Essas categorias podem
ainda serem aplicadas em serviços de consultoria relacionados à cultura e ao clima
organizacional.
Por fim, sugere-se um estudo mais voltado para as práticas de valorização
simbólica em detrimento das proposições teóricas. Um estudo desse tipo pode procurar
estabelecer as categorias teórico-analíticas por meio dos próprios dados coletados em campo e
a partir daí estabelecer proposições que constituam uma teoria (Grounded Theory). Esse tipo
de metodologia é adequado para casos que não podem ser facilmente solucionados através dos
conhecimentos acumulados pela literatura especializada.
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