L'ETOILE DE MER, DE MAN RAY
Guilherme Bueno
Professor ‐ Escola de Belas Artes ‐ UFMG
No Dictionnaire Abrégé du Surrealisme, publicado por Éluard e Breton em 1938,
consta no verbete "filme", após uma breve listagem das principais realizações
dos seus artistas (Emak Bakia, L'Étoile de Mer, Anemic Cinema, La Perle, O cão
andaluz e A Idade de Ouro) o seguinte comentário críptico atribuído a Salvador
Dalí: "O que se pode esperar do surrealismo e o que se poderia esperar de um
certo cinema dito cômico é tudo que merece ser considerado1". É sabida a relação
dos surrealistas com a linguagem cinematográfica, não só por suas próprias
criações (merece ser incluída nessa lista Dreams that Money can buy [Sonhos que
o dinheiro pode comprar], de Hans Richter, produzido uma década depois da
redação desse verbete e La coquille et le clergyman [A concha e o clérigo], de
1926, cujo roteiro foi redigido por Artaud), responsável por uma riqueza de
títulos comparável aos cinemas expressionista e construtivista ‐ com a notável
diferença de, no seu caso, a autoria ser menos segmentada do que naquelas duas
outras correntes ‐ mas também por uma regular prática crítica, seja movida pelo
ganha‐pão, seja pelo poder evocatório das imagens com seus esquemas de
edição, seja por se tratar de uma linguagem menos sobrecarregada pelo fardo da
história e cuja falsa aderência ao realismo a tornava especialmente instigante e
desafiadora, dispondo assim de uma suspensão de objetividade, embaralhando
seu esquema narrativo e recepção perceptiva e sensorial. Porém, não passa
despercebida a aparente encruzilhada dessa dedicação ao cinema ‐ uma arte que
exige um considerável grau de racionalização e organização de sua cadeia
produtiva ‐ ser posta ao serviço de uma construção imagética que se empenha
em sabotar a crença na câmera, ademais modelo por excelência de uma
mecanização. Poderia haver uma escrita automática e liberatória no cinema?
ELUARD, Paul. Dictionnaire abrégé du surréalisme (en collaboration avec André Breton). In:
ELUARD, Paul. Oeuvres complètes, I. Paris: Gallimard, 1968 (Bibliotèque de la Pléiade): 745.
1
Essa pergunta é a nossa pedra de toque nas considerações acerca de L'Étoile de
Mer, de Man Ray, filmado a partir de um poema‐roteiro homônimo de Robert
Desnos apenas redescoberto nos arquivos do MoMA na década de 1970 (fig.1). A
relação entre palavra e imagem aqui detém uma particularidade, na medida em
que deparamos com algo que é
mais do que um poema visual e
gravita (talvez desdobrando) o
estratégico
descompasso
estranhamento
explorados
quando
pelos
punham
e
continuamente
surrealistas
em
atrito
a
fotografia e sua legenda ‐ o abismo
entre referencial e significado (talvez frequentemente explorado pela poesia na
elaboração de seus motivos), por meio do qual, dentre outras coisas, Rosalind
Krauss apontaria para a questão do índice; apropriando‐nos do termo usado por
Man Ray em outra obra sua, trata‐se de um cinepoema. Colocar as coisas desse
modo levanta um primeiro ponto: nessa outra estrutura articuladora entre
palavra e imagem, o poema não é mais descrito por uma representação, isto é,
como a ilustração que o acompanha. Esclareçamos: a prática de ilustrar poemas
antecede em muito a modernidade, servindo às vezes como um espelho ao texto,
outras tantas como uma sugestão por meio da qual dispúnhamos de um
acessório para visualizar um motivo, uma cena ou uma "atmosfera" lírica
sugerida pela escrita. E mesmo se reduzíssemos o caso Man Ray / Desnos ao
ângulo texto‐ilustração (o que não é nosso propósito), ele estaria longe de ser
inédito para a arte moderna (essa prática chegou invertida ao cinema mudo, com
os intertítulos existindo para contextualizar uma determinada sequência; e, no
âmbito da poesia, numa inversão similar, em Les Mains Libres, que Éluard ilustra
com poesias um conjunto de desenhos de Man Ray ‐ figs. 2 e 3).
.
Manet ilustrou Mallarmé, Picasso colaborou com Éluard e Aragon e temos ainda
o episódio singular dos caligramas de Apollinaire (que a seu modo condensavam
aquelas duas formas de representação), afora outras parcerias dos escritores
surrealistas com artistas como Max Ernst e, novamente, Man Ray. Insistimos que
L'Étoile de Mer é algo distinto disso, uma vez que as imagens não são meras
"traduções" de versos, outrossim, nessa obra projetada pela primeira vez em
1928 (e, fato curioso, conta com a presença dentre seus espectadores na
première de um filme que posteriormente abriria as sessões de O Anjo Azul, de
um certo "Cavalcanti", que desconfiamos ser ninguém menos do que Di
Cavalcanti) transpõe‐se para a linguagem cinematográfica um atravessamento
familiar àquele que mesclava desenhos e textos nos exercícios de escrita
automática. Estaríamos diante de um "filme automático", para o qual pareciam
haver precedentes com os experimentos de Man Ray em Emak Bakia e Le retour
à la raison ou do René Clair de Entr'acte, com suas aparentes colagens aleatórias
de fotogramas? Sendo mais preciso, imagens e versos constituem um todo
entrelaçado, uma obra híbrida ‐ o próprio Desnos sugere isso ao se remeter ao
filme: "Eu confiei o manuscrito a Man Ray e parti em viagem. No retorno, o filme
estava terminado. Graças as operações tenebrosas pelas quais ele constituiu uma
alquimia das aparências, em favor de invenções que deviam menos a ciência do
que a inspiração, Man Ray construiu um domínio que não pertence nem mais a
mim e nem de fato a ele". Cadavre exquis. Os limites da autoria, assim como
aqueles outrora reguladores da fronteira entre palavra e imagem se cancelam
naquilo em que uma se materializa sob a forma da outra, ao mesmo tempo em
que uma nasce estimulada pela outra. Comparado ao aleatório dadaísta, nesse
aspecto há um diferencial importante, naquilo em que o acaso assume a sua
dimensão mágica do maravilhoso explorada pelos surrealistas. Diga‐se mais: no
filme, não há verso que não seja sucedido não por outro, mas por uma tomada
cinematográfica, operando uma descontinuidade com a prática convencional de
leitura. É como se cada um deles fosse ora infiltrado, ora explodisse como uma
supernova de imagens. Visto assim, Man Ray vai muito além de apenas criar a
dita "atmosfera" do poema.
Isso posto, é possível escrever com imagens? Abstraídas as ancestrais questões de
que toda escrita é um desenho, da pintura como poesia muda e da poesia como
pintura falante (aqui temos, de um modo ou de outro, algo senão falante, no
mínimo sonoro), no fundo esse é nosso problema central. Identificável no dada,
ele tocava agora o surrealismo. Na trilha de Desnos também estava outro
interlocutor regular de Man Ray, Marcel Duchamp. Ao nos referirmos a ele, é tão
somente para indicar que a pergunta aqui lançada foi explorada em paralelo por
Duchamp em Anemic Cinema e uma série de obras‐chave suas. De fato, os três
partilhavam um apreço especial pelos jogos de palavras e anagramas:
trocadilhos como Apolinaire enameled, ou ainda os rotorelevos de Anemic Cinema
(figs. 4 e 5)
são aparentados das técnicas de escrita de Desnos, que nos mesmos anos fizera
em seus manuscritos de 1923 um conjunto de retratos dos surrealistas
sobrepondo trocadilhos textuais e visuais (figs. 6, 7 e 8)
que exploravam rimas internas e junções gráficas numa erupção de textos
"clandestinos" com palavras que se concluíam não por uma sílaba, mas por
desenhos (Desnos, ainda que Breton dissesse que ele nunca encontrara
pessoalmente
Duchamp,
escrevera
inclusive
um
apanhado
de
textos
incorporando telepaticamente, como dizia, a figura de Rrose Sélavy). Se
recorremos a isso, foi com o intuito de pensarmos nas rimas, assonâncias e
aliterações sonoras de Desnos no filme (Si belle! Cybele? [fig.9], provavelmente
incluída por iniciativa própria de Man Ray, pois que o verso consta de outra obra
do poeta, Deuil pour deuil) transformadas em rimas, assonâncias e aliterações
"visuais" na câmera de Man Ray, assim como nos paralelismos simbólicos e de
transferência construídos a partir das sugestões de Desnos (como no ladeamento
entre a estrela do mar e um pé feminino,[fig.10]).
Antes de uma rápida consideração sobre a sinopse, convém indicar nossa
segunda hipótese: o filme deriva da noção de objeto proposta pelos surrealistas,
apresentada no mesmo dicionário de 1937, sendo ela fundamental para
mapearmos essa dimensão de transcriação reconhecida na película (para nós,
brasileiros, que acreditamos só conhecer o poema objeto nos anos 1950 numa
frente anti‐surrealista, esse não deixa de ser um problema interessante, ainda
que não nos caiba aqui). O verbete, de Éluard, enfim, diz:
Objeto ‐ os readymades e readymade assistidos, objetos escolhidos ou
compostos a partir de 1914 por Marcel Duchamp, constituem os
primeiros objetos surrealistas. Em 1924, no Discurso sobre o pouco de
realidade, André Breton propõe fabricar e colocar em circulação "alguns
desses objetos que não se percebe senão no sonho" (objeto onírico). Em
1930, Salvador Dalí constrói e define os objetos de funcionamento
simbólico (objeto que se presta a um mínimo de funcionamento mecânico
e que é baseado sobre os fantasmas e representações suscetíveis de
serem provocadas pelas realizações de atos inconscientes [...] Sobre a
passagem do surrealismo se produz uma crise fundamental do objeto.
Apenas o exame bastante atento das numerosas especulações às quais
esse objeto se fez publicamente presente podem permitir de abarcar sem
dúvida em toda a sua extensão a tentação atual do surrealismo (objeto
real e virtual, objeto móvel e mudo, objeto fantasma, objeto interpretado,
objeto incorporado, ser‐objeto, etc.). Paralelamente, o surrealismo chamou
a atenção para as diversas categorias de objetos existentes para além
dele: objeto natural, objeto perturbado, objeto encontrado, objeto
matemático, objeto involuntário, etc2.
Digamos que era isso ‐ um filme ser disparador da mesma irrupção atribuída ao
objeto ‐ que Desnos esperava do cinema; ele deveria possuir similar potência
transbordante. A relativa liberdade com que Man Ray trabalhou com suas
indicações (sobretudo quando considerado que o artista americano não era um
surrealista fiel, ainda mais nesse momento em que o próprio Desnos se
encontrava rompido com Breton) confirmavam não apenas essa condição
multiforme e de funcionamento ativador do objeto ‐ uma questão, aliás, que dava
o tom do interesse dos surrealistas pela psicanálise ‐ mas confeririam ao filme
(metaforicamente) esse estatuto (o filme é um objeto). Que se compare com um
comentário de Desnos em uma crítica sobre cinema publicada em 1925:
Existe um cinema mais maravilhoso que todos os outros. Aqueles dados a
sonhar sabem bem que nenhum filme pode igualar em imprevisto, em
trágico esta vida indiscutível a qual seu sonho é consagrado. O gosto, o
amor do cinema participam do desejo do sono. Na falta da aventura
espontânea que nossas pálpebras deixam escapar ao despertar, vamos às
salas escuras procurar o sonho artificial e talvez o excitante capaz de
ELUARD, Paul. Dictionnaire abrégé du surréalisme (en collaboration avec André Breton). In:
ELUARD, Paul. Oeuvres complètes, I. Paris: Gallimard, 1968 (Bibliotèque de la Pléiade):760‐1.
Compare‐se com o seguinte trecho de Breton em L'amour fou: "Uma tal beleza [a beleza
convulsiva] não poderá se desencadear senão a partir do sentimento pungente da coisa revelada,
senão da certeza integral procurada pela irrupção de uma solução que, em função de sua própria
natureza, não poderia chegar anós pelas vias lógicas ordinárias. Com efeito, trata‐se, em caso
semelhante, de uma solução com certeza adaptada rigorosamente e todavia, bastante superior à
necessidade. A imagem, tal como ela se produz na escrita automática, sempre se constituiu para
mim como um exemplo perfeito. Do mesmo modo, posso desejar ver que se construa um objeto
bastante especial, respondendo a uma fantasia poética qualquer. Esse objeto, em sua matéria, em
sua forma, eu o preveria mais ou menos. Ocorre‐me agora de descobri‐lo sem dúvida único
dentre os outros objetos fabricados [...] Ocorre sempre de que o prazer existe aqui em função da
dessemelhança existente entre o objeto desejado e a descoberta [la trouvaille]". BRETON, André.
L'amour fou. Paris: Gallimard, 1937: 20‐22.
2
povoar nossas noites desertadas. Eu gostaria que um diretor de cinema se
apaixonasse por esta ideia [...] Não se trata mais da lógica, da construção
clássica, nem de bajular a incompreensão do público, mas de coisas vistas,
de um realismo superior, uma vez que ele abre um novo domínio a poesia
e ao sonho3.
Juntando as partes: a "escrita" de L'Étoile de Mer, com seus jogos de
deslizamentos visuais e ressonâncias textuais progride a partir da irradiação e
repetição de um objeto mágico: uma estrela do mar, pertencente a Desnos. O
poeta, no seu relato, refere‐se a ela como deflagradora da lembrança de uma
mulher amada e perdida. O tipo de associação por ele sugerida era usual,
ecoando a disponibilidade de Breton para o "acaso objetivo", que percorreria
tanto
sua
curiosidade aguda
pela
fotografia
(cendrier
Cendrillon [fig. 11])
como a estrutura
de seus romances
Nadja, Les vases
communicants
e
L'Amour Fou. Em todos eles há um objeto‐evento que transcende seu significado
e uso comuns, acessando uma dimensão convulsiva que se infiltra no real,
corroendo sua estabilidade e coerência ao ponto extremo em que realidade
"externa" ‐ objetiva ‐ e aquela subjetiva e proveniente da imaginação e do
inconsciente desfaçam suas fronteiras (esse mesmo dispositivo apareceria no
Cão Andaluz, com uma pequena caixa recorrentemente presente no filme, mas
pode ser identificado no cinema expressionista de Pabst em Segredos de uma
alma [Geheimnisse eines Seele]; em todos esses casos o objeto era algo apenas
dentro do filme a ilustrar um determinado tema, e não uma extensão dele para a
própria função do cinema). Sua objetidade é não menos enigmática porque tendo
DESNOS, Robert. Le Rêve et le cinéma. Publicado no Paris‐Journal de 27 de abril de 1925. In:
Oeuvres. Op. cit.: 186
3
como matéria a imagem, guarda um quê de incorpórea e espectral. Se
comparamos com os jogos de escrita automática, eles de um modo ou outro
detinham a fisicalidade da folha de papel; L'étoile de mer fala de um objeto que
existe como triplo espectro: como vimos, Desnos sempre acreditara na força
imersiva provocada pelo cinema em seu espectador, isto é, o cinema possui essa
qualidade esperada do objeto surrealista; do ponto de vista físico, ele explicita
uma ausência a nós projetada pelo cone de luz (uma fantasmagoria inerente a
todo cinema, aliás), a espelhar o tema subjacente do filme (o amor que só existe
como vestígio em outra coisa); mas é também a assombração mnemônica desse
episódio que retorna ao presente, naquilo em que a estrela lhe reconduz
oniricamente a esse algo perdido e distante no passado, reinscrevendo‐o
incontornavel‐ e irremediavelmente no aqui‐agora. A estrela do mar, aliás,
assume um valor não menos multifacetado, pois além de se colocar como o duplo
desse episódio sentimental frustrado, aciona uma evocação metalinguística em
relação a própria linguagem do cinema (fig. 12), como depreenderíamos de uma
divagação do poeta em outra de suas críticas:
A vida, esse farol de um fogo voltigeante [en tournant], determina no céu
belas estrelas do mar. Os dias e as noites se sucedem como feras
sedutoras e, se elas se parecem, a culpa é do domador4.
O farol, tal como o projetor de uma sala de exibição nos revela um objeto de
encanto e sedução, como o são as divas dos filmes. Do mesmo modo, fala de um
outro duplo: a imagem das estrelas do mar sobre a tela do céu onde deveriam
existir na realidade estrelas de luz perfaz a analogia do cinema como misterioso
"substituto" do mundo real. Por fim, a associação erótica implícita na
sobreposição da estrela do mar à figura do desejo numa "visão" cinematográfica
não é um exagero interpretativo do texto de Desnos, uma vez que ela surge no
contexto de uma resenha crítica dedicada a essa latência atribuída ao cinema,
que se via então convivendo com os apuros da censura, do moralismo e do pudor
dos estúdios. Aliás, na sua apresentação fílmica por Man Ray, ela ‐ a estrela do
mar ‐ em mais de um momento suscita algo como a multiplicação do tema da
"vagina dentada" ([fig. 13]a vagina‐boca como voz da poesia e a silhueta da
estrela como imagem visual do corpo reunidos num mesmo objeto) inclusive
quando, numa cena de dupla exposição, essa mesma estrela‐vagina se sobrepõe a
um punhal (fig.14) simbolizador da morte ‐ morte como metáfora desse amor
perdido e subsequente castração (que não deixa de ser uma variação da
dualidade amor/morte tão cara ao escritor).
Em resumo, a estrela do mar é um motivo pulsante e pulsional sob o qual se
cristaliza sua visão do cinema e da poesia como uma linguagem por excelência
não só da imaginação, mas no mesmo tom, do desejo e do anseio de libertação
individual e subjetiva.
4 DESNOS. R. La morale du cinéma. Publicado originalmente em 15 de maio de 1923 no Paris‐
Journal. Reproduzido em: DESNOS, R. Oeuvres. Paris: Gallimard, 1999: 187
Isso posto, falemos da sinopse e do filme especificamente. O poema de base,
datado de 1928 (a se crer na história de ter sido apresentado a Man Ray durante
um jantar oferecido antes de Desnos partir em viagem) segue abaixo:
Qu'elle est belle
Après tout
Si les fleurs étaient en verre
Belle, belle comme une fleur en verre
Belle, belle comme une fleur de chair
Vous ne rêvez pas!
Belle comme une fleur de feu
Les murs de la santé
Qu'elle "était" belle
Qu'elle "est" belle5.
Desnos deixou um roteiro, como dito acima, relativamente detalhado, indicando
cenas e a trilha sonora que as acompanharia (Man Ray tomaria algumas
liberdades em relação a ele, sobretudo com a trilha sonora). Começa com uma
visada das pernas de um casal caminhando na rua, adentrando em seguida um
quarto (donde surge um primeiro trocadilho verbo‐visual erótico entre os dentes
da mulher e suas roupas íntimas: "Les dents de femmes sont des objets si
charmants... [vem logo após a imagem de uma meia‐calça feminina rendilhada no
alto, en dentelle]... qu'on ne devrait les voir en rêve ou à l'instant de l'amour" ‐
que não passe despercebida nossa observação anterior sobre a estrela/vagina
dentada [figs. 15, 16 e 17]).
5
DESNOS, Robert. L'étoile de mer. In: Oeuvres. Op. cit.: 421.
Após a mulher despir‐se, ele parte. Em seguida o tema é uma vendedora de
jornais que o homem acompanha até um canto escuro da rua, dela ganhando
uma estrela do mar, contemplada pelo mesmo em seu quarto. Crescentemente o
tema da estrela do mar se intercala novamente ao indivíduo e suas projeções
libidinais, entremeadas com sequências na cidade. Como desenlace, o casal do
início retorna, numa cena em que no meio da mesma caminhada de abertura, um
segundo homem aparece, roubando o amor do primeiro.
O que pareceria mera descontinuidade imprime seu sentido no que uma
associação puxará outra e seu eventual nexo só se consumará se admitirmos seu
desenvolvimento como nas cadeias de visões surgidas em sonho. Desnos deixa
isso claro quando comenta a realização de Man Ray: "Que não se espere aqui
uma exegese sábia das intenções do diretor. Não se trata disso. Trata‐se do fato
preciso de que Man Ray, deliberadamente triunfando da técnica, ofereceu‐me a
mais elogiosa e emocionante imagem de mim mesmo e de meus sonhos6". O que
inicialmente seria um poema, vira outro poema ‐ vira também outra obra ‐ nessa
espécie de transubstanciação na qual a imagem cinematográfica encarna a
imagem mental do texto, seja do escritor ou do leitor.
Não vamos explorar detalhes das questões técnicas de L'Étoile de Mer,
examinadas criteriosamente por Kim Knowles em A cinematic artist: the films of
Man Ray7 (na verdade ela não se limita a isso, retraçando a história de sua
produção nesse meio e de suas inúmeras implicações conceituais) até porque,
apesar de termos falado muito até agora de filme e de cinema, esse não é, a rigor
nosso tema, e sim do que há especificamente nesse episódio que nos faz ver o
processo segundo o qual um poema pode existir como filme no surrealismo, ou,
melhor dito, como método de correspondência (penso no sentido baudelairiano
do termo) e de uma poética‐plataforma da fluidez, como naquilo que concerne a
escrita automática e a figuração dos sonhos. Assim sendo, como tais situações
apontam para uma perspectiva dos processos da criação surrealista nas quais o
DESNOS. R. In: Op. cit.: 426.
KNOWLES, Kim. A cinematic artist: the films of Man Ray. Oxford: Peter Lang Oxford, 2009. O
livro oferece ainda uma rica fortuna bibliográfica e crítica deste viés da obra do artista.
6
7
poema absorve distintas hipóteses de materialidade como problema de fato
textual. Isto é, o texto surrealista não se encerra nas palavras, mas só existe
explicitando esse seu novo corpo. Corpo esse que abriga experiências inovadoras
não só pela consistência das imagens, mas na razão de ser da existência das
mesmas8.
Um cotejo com as anotações de Rosalind Krauss sobre a prática fotográfica dos
surrealistas nos é útil. Não só no que ela nos adverte sobre o poder da moldura,
capaz de ativar um teor subversivo e inesperado da imagem conforme ela nos é
dada a ver (para o qual ela usa
como exemplo o Monument à
D.A.F. de Sade [fig. 18]) ‐ uma
moldura
pode
ser
o
enquadramento, o corte, assim
como a legenda ‐ , mas por
extensão naquilo em que ela
atua
diretamente
sobre
o
significado aderido a imagem
pelo texto (em nosso objeto, a
equação seria o significado
aderido ao texto pela imagem);
ademais,
conforme
mencionáramos, a fotografia
dentre
os
surrealistas
transformava o seu fictício "aqui‐agora" numa ação de colapso temporal ‐ ou seja
nessa demolição de uma técnica narrativa convencional ‐, pois mais do que falar
de uma relação subjetiva com a temporalidade, aquelas imagens tornavam
arbitrárias e escorrediças quaisquer distinções entre realidade e delírio nelas
implícitas (o que aliás levou ao primado marxista do movimento). Esse interesse
por um descompasso temporal, quebrando a linearidade e a plausibilidade, ou
seja, abrindo margem para que a narrativa torne‐se absurda em função de seu
Essa sobreposição, considerada no caso artes plásticas e cinema, seria um dos motes de Dreams
that money can buy.
8
desajuste perante o tempo presente, já mostrara‐se implícito antes das
investidas cinematográficas, não só em Breton, mas no próprio Desnos, quando
escreve seus Três Livros de Profecias (1925) para seus colegas de grupo ("Péret,
faça bom proveito de seus próximos dez anos, apesar da prisão e da miséria9" ‐ e
Man Ray faria algo semelhante na conclusão de seu episódio em Dreams that
Money Can Buy, [fig.19], ao datar um livro "que retrata exatamente nossa época"
‐ 1947 ‐ como 1950), fazendo com que o presente concreto deles se torne
estranho, quando relacionado às extravagantes visões de futurologia criadas pelo
autor de Corps et Biens.
O problema narrativo, quando inclui o uso da imagem visual (aqui não
cometemos uma redundância, pois indicamos existirem outros tipos de imagem)
ganharia outro viés, ao acrescentarmos: quais as consequências quando ela
passa a existir em movimento (e junto a elas o texto também "se move")? Do
ponto de vista de um embaralhar sequencial, ele se manifestara também no Cão
Andaluz, na medida em que a progressão das cartelas com os intertítulos
simplesmente cria um ziguezague a ponto de não sabermos onde ou quando
começam e terminam as ações de seus personagens e ao quê sucede o quê. O
primado de uma ação ‐ que se lembrarmos da equação classicizante de Lessing
no século XVIII deixava ao encargo da poesia o desenrolar de uma cena em
quadros sucessivos e restringia as artes plásticas a escolherem a contenção em
um momento decisivo ‐ ativa os novos dispositivos modernos de sua
conformação, uma vez que, para simplificar as coisas, ao termos imagens em
movimento, deparamos com "quadros sonoros" que visualmente seguem uns aos
outros sem necessariamente exporem uma ordem plausível, sequer convergindo
9
DESNOS, Robert. Trois livres de prophéties (1925). In: Oeuvres. Paris: Gallimard, 1999: 272.
para um clímax, uma virada. Esses quadros, insistamos, não são nada generosos
com os propósitos de clareza; ao contrário, seu sentido só existe a partir do
espectador‐leitor. Poupando‐nos de repetir a descrição do regime em ‐ perdoem‐
me a expressão desgastada ‐ "dobras rizomáticas" do contato entre real e
inconsciente (e, por extensão, de suas implicações de como o fio da história é
substituído pelo emaranhado), um dos aspectos mais interessantes dos registros
de Man Ray é a alternância entre tomadas visualmente mais "legíveis" e outras
em que, graças ao uso de uma placa de vidro coberta com gelatina (dentre outras
razões para evitar que a censura proibisse algumas partes [figs. 20, 21 e 22]), a
cena ganha textura difusa, semi‐abstrata.
A primeira interpretação disso é direta: foi um jeito de ressaltar um clima onírico
e não‐objetivo e de "despersonalizar" os personagens, fazendo com que sobre
suas vagas faces nós nos projetemos neles, isto é, abrindo o filme a ser menos
entendido do que interpretado (que se pense nesse papel ativo do espectador
quando consideramos o recorrente uso da câmera como algo que ratifica uma
verdade por ela testemunhada). Acrescente‐se, contudo, que a indiferença em
segmentar rigidamente o que seriam as sequências de "vigília" daquelas do
sonho intensificam esse desejo por desconcertar o público (a tomada da estrela
do mar e do pé é a única em que existe uma versão "nítida" e outra "embaçada",
reiterando seu caráter emblemático [fig. 23]). Tais recursos partilham de um
propósito já
inerente aos seus rayographs
(fig. 24 e 25), que pelo contato
direto entre um objeto com o
papel fotográfico na exposição,
deixavam a um só tempo
registrada
a
sua
(diríamos
até
a
ausência
sua
des‐
comodificação) e a aparência
abstrata de seu espectro. As passagens em que a imagem perde sua nitidez
reiteram o mesmo efeito.
O emprego das imagens em movimento traz outra consequência no interior do
surrealismo. Voltemos a duas ocasiões em que ela fora tematizada. Imagem, no
singular, é objeto de mais um significativo verbete do Dictionnaire Abrégé, mas
antes disso, sua fixidez fora um elemento‐chave para Breton, expresso desde as
primeiras páginas de L'Amour Fou. No Dictionnaire... ela é definida como segue:
A imagem surrealista mais forte é aquela que apresenta o grau mais
elevado de arbitrário, aquele que requer o máximo de tempo para
traduzir em linguagem prática, seja porque ela engloba uma enorme dose
de contradição aparente, seja porque um de seus termos curiosamente
tenha sido subtraído, seja porque ‐ anunciando‐se sensacional ‐ ela faça
ares de se desatar fracamente [...] seja porque ela extrai dela mesma uma
justificação formal irrisória, seja porque ela é de ordem alucinatória,s eja
porque ela se empresta muito naturalmente a máscara do concreto ao
abstrato ou, inversamente, porque ela implica a negação de qualquer
propriedade física elementar, seja porque ela desencadeia o riso10.
Por sua vez, em L'Amour Fou, após comparar o prazer visceral e convulsivo
inerente a certas situações‐encontros vividos por uma pessoa (que podem dizer
respeito a alguém, uma obra de arte, uma paisagem, uma coisa seja lá qual for)
BRETON, André. Image. In: Dictionnaire abrégé du surréalisme (en collaboration avec André
Breton). In: ELUARD, Paul. Oeuvres complètes, I. Paris: Gallimard, 1968 (Bibliotèque de la
Pléiade):751.
10
de intensidade sexual, Breton profere uma observação emblemática: a de que
tais circunstâncias favorecem uma condição estática, paralisante. Cito‐o:
A palavra "convulsiva", que empreguei para qualificar a beleza que ‐ a
única, na minha opinião ‐ deve ser servida, perderia aos meus olhos todo
sentido se fosse concebida no movimento e não na expiração exata desse
mesmo movimento. Para mim, só pode haver beleza ‐ beleza convulsiva ‐
ao preço da afirmação da relação recíproca que liga o objeto considerado
em seu movimento e em seu repouso11.
Não é nada fortuito que para ilustrar seu ponto de vista apareça no livro uma
foto de Man Ray intitulada Explosante Fixe (fig. 26). De fato, para além dessa
fixidez, a recorrência do escritor à fotografia era em si variada e
despudoradamente contraditória: em Nadja (fig. 27) e em L'Amour Fou ela
poderia alternar da evocação misteriosa à econômica síntese (poupando‐o de
descrições exaustivas e desviantes, como aponta Dawn Ades), uma curiosa
objetividade (localizando concretamente o transcurso de um evento) ou tudo
isso misturado.
11
BRETON, André. L'amour fou. Paris: Gallimard, 1937: 15.
Ainda assim, eram imagens imóveis. A colaboração Man Ray / Desnos colocava
novos problemas: por um lado, a imagem, em seu movimento, escapava da teoria
bretoniana do maravilhoso; por outro, é sintomático que no filme haja algumas
pausas de "respiro" no qual uma determinada cena venha a ser a permanência de
um mesmo fotograma por alguns segundos ‐ ou seja, criando uma forma de
transpor para a estrutura fílmica aquele mesmo princípio. Isso nos faz pensar o
outro sentido emblemático da tomada em que o pé feminino (clichê romântico,
aliás, se lembrarmos do "delicioso" pé que encerra A Obra‐Prima Desconhecida,
de Balzac) e a estrela do mar se ladeiam, num raro momento de equivalência,
posto que no decurso do filme há alternâncias ou a progressiva substituição de
uma pela outra.
Retomando contudo o nosso tema ‐ uma obra que, ao ser cinema e texto
simultaneamente indica uma nova modalidade de existência, de experiência e
senão de escrita, de reescrita da poesia (a poesia precisa existir sob essas novas
formas e essas mesmas seguem os exercícios surrealistas de fluidez da
linguagem e de linguagens) ‐ como poderíamos oferecer uma contraprova que
apoie nossa especulação sobre L'Étoile de Mer como algo além da tradução que,
sendo transcriação e objeto, demarque esse novo modo de fazer poesia,
passando ela a existir sob esse regime da forma plástica e numa não menos nova
e desafiadora maneira de pôr em tensão e trânsito a imagem mental da escrita
com a imagem fantasmática e fantasmagórica da fotografia e do cinema, de modo
a essa última dar corpo (mesmo que estranho) para a projeção do desejo do
leitor‐espectador? O prazer erótico‐estético de Breton, que, conforme
apontamos, relacionava a experiência da arte ao gozo sexual, encontra sua
concreção em um outro poema‐objeto surrealista posterior ao filme de Man Ray‐
Desnos, uma colaboração na qual uma das partes envolvidas é novamente o
artista norte americano, mas agora tendo ao lado Éluard. Em 1935 ambos
publicam conjuntamente Facile, um livro no qual se mesclam os nus de Nusch
Éluard (segunda esposa do poeta) feitos por Man Ray com os textos do autor de
Capitale de la Douleur (fig. 28, 29 e 30). Diríamos que a estrutura do livro é
cinematográfica, naquilo em que a alternância entre textos e imagens nas
páginas guarda familiaridade com o jogo dos intertítulos em L'Étoile de Mer.
Além do mais, as fotografias de Nusch, ora tornando seu corpo mais "abstrato",
ora fragmentado, ora explícito (recursos igualmente observáveis no filme),
colocam o olhar vagueando entre o estranhamento e a excitação simuladamente
pornográfica (dada a sofisticação com que Man Ray elabora os nus, parecendo
obscenos, mas extremamente requintados em sua composição luminosa, de pose
e forma), o que os reaproximaria daquelas considerações de Breton.
À guisa de conclusão, L'Étoile de Mer é apenas um caso de uma prática
modernista que nos leva a algo mais do que uma reconsideração sobre a sua
historiografia. Esquematicamente, a história da recepção da modernidade
passaria pela disputa entre uma assimilação do surrealismo muitas vezes
contraposta às aberturas franqueadas por uma crescente investida na abstração,
levando a um deslocamento de critérios rumo a uma tendência formalista ‐ a
princípio mais marcado nos Estados Unidos, mas presente em várias outras
cenas (no contexto brasileiro dos anos 1950 essas disputas no interior da
modernidade seriam igualmente perceptíveis). Os casos do dada e do
surrealismo, mudada a ênfase da pintura para a escultura, bem como outras
investidas híbridas (a fotografia e o cinema são duas delas) marcaria na fronteira
entre modernidade e pós‐modernidade no anos 1960 e 1970 uma divisa dupla:
por um lado, a atenção em experiências desses movimentos reabria a caixa do
modernismo, remontando uma parte alternativa, vital e reprimida de suas
estratégias; por outro, chega convenientemente num momento em que postos
em dúvida os critérios de juízo modernistas (tendo dentre seus casos mais
ilustres a abordagem greenberguiana da autorreferência dos domínios de
competência de cada meio), tais exercícios de cruzamento de linguagens
encontrariam seu par em plataformas da arte contemporânea. Para nós, um dos
problemas interessantes colocado consiste em refletir sobre como estruturar
metodologias cruzadas de leitura de obras como as examinadas aqui, visto que
elas têm um pertencimento móvel: inscrevem‐se na história da poesia, do cinema
e das artes visuais num só lance. Não se trata de apresentar como novidade algo
familiar a todos ‐ a multidisciplinaridade e a transdisciplinaridade, abordagens
mais do que correntes ‐ mas de, observada a peculiar materialidade dessas obras
(diria que prova‐a o fato de em suas reedições elas obrigatoriamente
preservarem sua corporeidade polimorfa de texto e imagem indissociáveis),
indagar sobre como o olhar responde a tais estruturas narrativas, em que algo
pode começar existindo como palavra e terminar como imagem (e vice‐versa) ou
ser as duas coisas ao mesmo tempo (figs. 31 e 32). Cinepoema, repito,
parafraseando Man Ray.
De certo modo, uma versão inusitada do desafio da "alfabetização modernista"
("o analfabeto do futuro não será aquele que não sabe ler e escrever, mas o que
não saberá fotografar", segundo o construtivista Lászlo Moholy‐Nagy), na qual,
diferente de uma tradição ekphrasística (a correspondência entre Poussin e
Chantelou, para remeter a um exemplo clássico e emblemático) passaríamos a
ler‐ver; as obras e o mundo. Com, sem ou para além da razão.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRETON, André. L'Amour fou. Paris: Gallimard, 1937.
DESNOS, Robert. Oeuvres. Paris: Gallimard, 1999.
ÉLUARD, Paul. Oeuvres complètes, I. Paris: Gallimard, 1968 (Bibliotèque de la
Pléiade).
KNOWLES, Kim. A cinematic artist: the films of Man Ray. Oxford: Peter Lang
Oxford, 2009.
KRAUSS, Rosalind. O fotográfico. Barcelona: Gustavo Gilli, 2002.
KRAUSS, Rosalind, LIVINGSTON, Jane, ADES, Dawn. L'Amour Fou: Photography
and Surrealism. Nova York: Abbeville Press, 1985.
WALL‐ROMANA, Christophe. Cinepoetry: Imaginary Cinemas in French Poetry.
Nova York: Fordham University Press, 2013.