Alterações Climdticcls
em Áf"lc a: Vulner abitidade
e Conflitos
NELSON LOURENçO
Professor Catedrático da Universidade Nova de Lisboa. Presidente do Grupo de Reflexão Estratégica sobre Segurança (GRES)
membro da Direcção do Instituto de Direito e Segurança (FD-UNL).
Investigador do CICS.NOVA - Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa
e
CARLOS RUSSO MACHADO
Geógrafo. Investigador do CICS.NOVA - Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa.
Docente do Curso de Mestrado em Gestão do Território da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa
Áfrtca é um dos continentes mais vulneráveis à Mudança Global, em grande parte
devido à limitada capacidade de adaptação agravada pela interacção de múltiplas
pressões ambientais, pela pobreza generalizada e pelos baiios níveis de desenvolvimànto.
Aidentificaçã.o dos principais desafios que África enfrenta, neste princípio do séc. WI, nã.a
é tarefafácil. Aliás, a rapidez das mudanças e a incerteza, que caracterizam a modernidade,
são acompanhadas da obsolescência também rápida dos diagnósticos e das análises. Áfrtca
é também uma das geografias de maior instabilidade política a que se associam uma plêiade
de conflitos de natureza social e militar, que ocorTem quer no interior das fronteiras de um
Estado, quer transfronteiriços. Associados à pobreza e à fragilidade de muitos dos estados
africanos este ambiente de insegurança torna o continente extremamente vulnerável às
consequências das alterações climá"ticas particularmente das situações ex,tremas, sejam
períodos prolongados de seca sejam anos de intensa pluviosidade.
Introdução
África, segunda massa continental após a Ásia, é um continente de extremos" Das exuberantes florestas tropicais
às regiôes áridas e desérticas, é grande a diversidade de
contextos ambientais que caracteriza este continente e que,
de algum modo, influenciaram a distribuição da população
e das suas actividades económicas. Apesar da abundância
de recursos naturais, a economia do continente Africano,
no seu todo, é marcada pelos sistemas de produção agrí-
cola que, em média, ocupam cerca de
650/o
da popula-
ção, embora a sua contribuição para a criação de riqueza
seja relativamente baixa (Chauvin et o1.,2012). Segundo o
estudo Poverty in a Rising Africa, do Banco Mundial, este é
também o continente onde 330 milhóes de pessoas (43%
da população) vivem em situação de pobreza extrema; o
continente onde, apesar da redução da taxa de pobreza,
em 2016 existiam mais 100 milhões de pessoas em pobreza
Segurança & Defesa
extrema do que 1990, por efeito do rápido crescimento
demográfico; segundo as projecçôes do Banco Mundial,
o número de pessoas em pobreza extrema continuará a
aumentar (Beegle et a1.,2016).
África é também uma das regiões de maior instabilidade
politica a que se associam uma plêiade de conflitos de
natureza social e militar, que ocorrem quer no interior das
fronteiras de um Estado quer transfronteiriços. Associado
à pobreza e à fragilidade de muitos dos estados africanos,
este ambiente de insegurança torna o continente extremamente vulnerável às consequências das alteraçoes climáticas, particularmente das situaçÕes extremas, sejam períodos
prolongados de seca sejam anos de intensa pluviosidade.
As transformaçÕes dos sistemas produtivos resultantes da
necessidade de adaptação às alteraçóes climáticas, particularmente ao nível dos recursos associados à subsistência das
populações, como a água e a terra arável, têm um impacto
significativo sobre a segurança imediata e futura das sociedades africanas. Acresce que a maioria dos Estados africanos não tem demonstrado possuir a capacidade de adoptar
e aplicar políticas de adaptaçâo aos efeitos das alteraçoes
climáticas, o que contribui para reforçar e ampliar a instabilidade política e social preexistente, criando um ambiente
propiciador à ocorrência de conflitos violentos.
De acordo com o IPCC (2014), África é, no seu todo, um
dos continentes mais vulneráveis às alteraçÕes climáticas,
devido à Iimitada capacidade de adaptação agravada pela
pobreza generalizada e pelos baixos níveis de desenvolvimento. Esta é também a opinião das Naçôes Unidas, das
agências internacionais para o desenvolvimento, do Banco
Mundial e do Banco Africano para o Desenvolvimento. Os
principais impactos das alteraçôes climáticas estão relacionados com o aumento do sfress dos recursos hídricos, a
redução da produtividade agrícola e a mudança de padróes
de distribuição e incidência de doenças transmitidas pela
água ou por insectos (CDKN, 2014). Deste modo, é fundamental compreender que as alteraçôes climáticas podem
pôr em causa objectivos fundamentais das políticas sociais e
económicas, como o crescimento económico, a equidade e
o desenvolvimento sustentável. Sendo este um dos maiores
desafios ao Desenvolvimento que o Continente enfrenta,
dois outros sáo obrigatoriamente de reter pela relação que
estabelecem entre si: o forte crescimento demográfico, em
geral, e uma urbanização que cresce a um ritmo impressionante, em particular.
Em 1950, a população do continente Africano era de cerca
de 230 milhões de habitantes (quase lOo/o da população
mundial), em 2015 atingia os 1.186 milhóes, estimando as
Naçoes Unidas que mais do que duplique até 2050 (cerca de
2,5 mil milhóes). Em meados do século XXl, um quarto da
população mundial prevista será africana, com o continente
a apresentar a maior taxa de crescimento demográfico do
mundo. Uma parte significativa desse aumento ocorrerá na
África subsaariana: trinta e um dos 51 países da sub-região
deverão mais do que duplicar a sua população na década
de 50 do século XXI (UNDESA, 2015, Mutung a et a1.,2012).
Embora continue a ser o continente menos urbanizado,
África é a região que apresenta as maiores taxas de crescimento da população urbana: até 2050 estima-se que a
população a viver em cidades triplicará, representando
dois terços da população total. Por essa altura a população urbana terá atingido valores próximos dos registados
nos países desenvolvidos, mas a um ritmo de crescimento
muito acelerado"
O factor demográfico é reconhecido como uma das mais
importantes forças motoras das alterações climáticas e da
mudança ambiental global" No caso de África, o facto das
taxas de crescimento da população e de urbanização serem
bastante superiores às do crescimento económico amplificam o impacte da pressão demográfica sobre o ambiente e
os recursos naturais.
A desertificação assume neste quadro um papel significativo.
As regióes áridas constituem cerca de dois terços do conti-
nente africano e aproximadamente três quartos dos solos
utilizados na agricultura, nestas regiões, têm vindo a ser referenciados como estando a ser menos produtivos. Já em finaís
de 1 995, cerca de 45olo da população africana vivia em regióes
áridas com predisposição à desertificação (lPCC, 1996).
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vulnerabilidade desta região às alteraçÕes climáticasl (lPCC,
2007 e Canadell et a\.,2009)" Este facto mostra como este
problema é global, necessitando África da cooperação
internacional para enfrentar as ameaças e desafios colocados por esta mudança ambiental. Só deste modo será possí-
vel enfrentar os elevados custos económicos2 associados à
implementação de medidas de adaptação e de mitigação
das alteraçôes climáticas e da mudança ambiental global
que contribuam, de igual modo, para melhorar os níveis de
desenvolvimento da popu lação deste continente.
O conhecimento actual sobre o desenvolvimento susten-
tável obriga, no entanto, a ir além da preocupaçáo com
as alteraçôes climáticas. É hole consensual entre a comu-
nidade científica que é fundamental ter capacidade e
vontade de adoptar medidas que compreendam e abranjam os múltiplos aspectos da mudança ambiental global e
que estão associados à gestão sustentável das cidades e dos
recursos naturais, nomeadamente dos recursos hídricos, à
implementação de práticas agrícolas e de gestão das florestas mais sustentáveis.
Com efeito, os impactos das alterações climáticas têm ser
analisados numa perspectiva multidimensional, que integre os seus efeitos - que poderão vir a ser devastadores em
sociedades mais frágeis e com menor capacidade de adaptação e de mitigação - sobre o desenvolvimento sustentável e bem-estar das populaçÕes" Embora não seja possível
estabelecer, à luz do conhecimento actual, uma relaçáo de
causalidade directa entre alteraçôes climáticas e conflitos é
uma realidade aceite que estas contribuem para o empobrecimento, estando na origem de situaçoes de violência
estrutural (incluindo neste conceito a fome, o não acesso à
Os efeitos das alteraçôes climáticas são múltiplos (secas,
desertificação, desastres naturais) e poderão ser devastadores para sistemas de produção alimentar já de si frágeis
como os de África. O relatório Africa's Adoptation Gap, do
Programa das Nações Unidas para o Ambiente (UNEP,2015),
refere com preocupaçáo este quadro de extrema vulnerabi-
lidade ambiental do Continente Africano, nomeadamente
pelo facto de mais de 65 o/o da população continuar a viver
em áreas rurais, constituindo a agricultura a sua única fonte
de rendimento (UNEB 2015).
Mas os impactes das alteraçôes climáticas e da mudança
ambiental far-se-ão sentir, não apenas sobre a agricultura,
mas também sobre os ecossistemas em geral, afectando a
qualidade de vida das populaçóes e o aumento da pobreza,
a segurança alimentar e a biodiversidade. O impacte das
alterações climáticas é já hoje visíúel no aumento do êxodo
para as cidades em muitas regióes do Continente, devido
à desertificaçáo, à diminuição do potencial produtivo dos
solos e ao aumento das populaçoes deslocadas motivado
por grandes desastres naturais. Em2012, e paradoxalmente
num continente afectado por grandes secas, 8,2 milhÕes de
pessoas deslocaram-se, no continente africano, para fora
das suas terras por força de inundaçóes (Yonetani, 201 3).
As consequências económicas das alteraçóes climáticas são
também visíveis no PIB de alguns países e irão exigir medidas de adaptação e de mitigação muito onerosas para a
economia dos países africanos (UNEP, 2015).
A contribuição insignificante do continente Africano para
as emissóes globais de COr, contrasta fortemente com a
10
Segurança & Defesa
saúde e a água potável ou ao saneamento básico, as migraçoes forçadas) que se associam e amplificam a insegurança
e a instabilidade política e social.
Climáticas e Mudança
Ambiental Global: uma questão de
1. Alterações
conceitos
No Sistema-Terra os processos físicos e biológicos interactuam com as actividades humanas e determinam as condiçôes ambientais globais dominantes. A espécie humana
sempre influenciou o seu ambiente, contudo, essa influência tornou-se global na actualidade e os seus impactos afectam o funcionamento deste sistema global (Steffen et ol.,
2004; Rockstrom et a1.,2009)"
A
Mudança Ambiental Global é, assim, um conceito
bastante mais abrangente do que as suas manifestaçôes,
mais divulgadas: Aquecimento Global, ou Mudança Climática. Na verdade, as mudanças na concentração de gases
na atmosfera, as mudanças de uso do solo, as mudanças na
diversidade biológica, as mudanças na população humana,
estão na origem de outras mudanças que afectam o funcionamento e a estrutura dos ecossistemas e que condicionam
r
Entre 1980-2005, África foi responsável por cerca de 2,50lo das emissôes globais
de CO2 (Canadell etal.,2009)- Embora continue reduzida, no contexto global,
estima-se que a taxa de crescimento destas emlssôes aumente, durante o
século XXl, acima da médla mundial em resultado do aumento da população e
do crescimento do Produto lnterno Bruto.
2 De acordo com o IPCC (2007), em África, os custos dê adaptação poderão ser de
pelo menos 5 a 1 00/o do Produto lnterno Bruto.
'
'1
:
as formas como a sociedade tem de gerir, mitigar e adaptar-se a essas mudanças. Neste sentido a Mudança Global deve
entendida como as interacções das mudanças induzidas
pelos processos naturais e pela acção humana no ambiente
global e as suas implicações no funcionamento da sociedade (Adger et al., 2005 e Syvitski, 201 2).
ser
as condiçóes de vida das populaçôes. Este
conduz
enquadramento
a uma das principais questóes da investigação
sobre Mudança Global: Como conciliar as pressôes antropogénicas com a sustentabilidade do ambiente?
Os desafios colocados pelo reconhecimento destes proble-
mas, e de que o crescimento económico é constrangido
pelas questões ambientais, obriga a que ciências biofísicas
e ciências sociais colaborem no sentido de investigar de que
forma a mudança global irá afectar temas cruciais como: a
segurança alimentar, a disponibilidade de água, o consumo
de energia, e a saúde humana (|GBP,2006).
A utilização que a sociedade faz do solo, água, minerais e
outros recursos naturais, assim como a emissão de gases
com efeito de estufa para a atmosfera, aumentou mais de
dez vezes no último século (Martens et a1.,2000). As projecçoes de aumento da população mundial e de crescimento
económico global contribuem para aumentar esta pressão
sobre o ambiente, pelo menos até que ocorram mudanças radicais ao nível tecnológico e ao nível dos padrôes
de consumo. Governos, instituiçÕes, empresas e cidadãos
estão cada vez mais sensibilizados para a necessidade de
encontrar medidas de resposta a este degradação global do
ambiente que pôe em causa os modelos actuais de desenvolvimento.
processo de mudança se encontra dependente quer do
funcionamento do meio físico, quer do papel desempenhado pelas actividades humanas.-Esta visáo mostra-nos
que estes sistemas interagem de acordo com uma lógica
reflexiva: os sistemas sociais mudam ao mesmo tempo
As mudanças ambientais afectam global e regionalmente
os sistemas sociais. Por exemplo, a diminuiçáo de terras
aráveis ou a destruição da cobertura vegetal ou dos recursos hídricos afectam quer as actividades económicas, quer
que induzem mudanças no ambiente e no território. Deste
modo, os impactos das actividades humanas e as consequências da degradaçâo ambiental para a actividade do
Homem não podem ser considerados em separado, dado
que se encontram profundamente relacionadas.
O estudo da mudança global desenvolvido nas últimas
décadas contribuiu para que se compreendesse que esse
n.o37:::
outubro I dezembro
2017
2. Os Desafios da Mudança
Ambiental em Africa
A complexidade crescente da sociedade global, a mundialização neoliberal da economia, a revoluçáo das tecnologias
de informação e de comunicação, a emergência de uma
sociedade crescentemente multiétnica e multicultural, o
impacte das migraçôes e da mobilidade das populaçóes,
a evolução das espiritualidades e do papel da religião no
quadro da sociedade moderna, a situação dos países emergentes do Sul, a persistência da pobreza e o papel significativamente importante das alteraçoes climáticas e da
mudança ambiental global constituem o quadro essencial
de referência dos problemas que a Humanidade enfrenta
num mundo de incerteza.
Neste contexto global e complexo, os países em desenvolvimento aparecem como os mais frágeis e menos preparados
para fazer face às alteraçÕes climáticas e onde os impactes da mudança ambiental poderão ser mais severos, em
virtude de serem também os países com menor capacidade
de adoptar medidas de adaptação e de mitigação. A rapidez
e a interdependência crescente das mudanças em todas as
esferas da vida social, a desterritorialização das ameaças e
dos riscos, com a consequente alteração da noção de escala
pela interpenetração do local, do regional, do nacional, do
continental e mundial constituem desafios acrescidos da
sociedade moderna.
A identificação dos principais desafios que a África enfrenta
neste princípio do séc. XXI não é assim tarefa fácil. Aliás,
a rapidez das mudanças e a incerteza que caracterizam
a
modernidade são acompanhadas
da
obsolescência
também rápida dos diagnósticos e das análises. A Ciência e
as tecnologias são hoje actores importantes destes processos, interferindo nas relaçÕes sociais, políticas e económicas,
nos sistemas produtivos e de conhecimento e nas tomadas
O IPCC (2014) e a UNEP (2015) identificam como principais
impactos da mudança ambiental global, em geral, e das
alteraçÕes climáticas, em particular, os seguintes:
.
Durante o século XXl, as temperaturas no continente
Africano, nomeadamente nas regiões mais áridas, tenderáo a subir mais rapidamente do que em outros continentes. As mudanças na temperatura média do ar serão
maiores no Norte de Africa e na Africa Austral, e menores
na África Central;
.
Apesar de maior incerteza, as projecções mostram, a
partir de meados do século XXl, uma diminuição muito
provável na precipitação média anual na África Austral
(nomeadamente durante os meses de Junho a Agosto),
e um aumento provável da precipitação média anual na
de decisão"
África Central e Oriental;
.
Tendência de aumento de frequência e intensidade de
fenómenos climáticos extremos, incluindo períodos de
seca, inundações e ondas de calor;
.
A subida do nível do mar (que no cenário mais extremo
pode corresponder a uma elevação de 1 m, no final do
século) constitui uma ameaça às comunidades e actividades económicas do litoral africano;
.
Diminuiçáo da produtividade da pesca e da agricultura,
nomeadamente na África Subsariana, em função do
aquecimento geral da atmosfera e dos oceanos;
.
A saúde humana será afectada pelos riscos associados a
eventos climáticos extremos e pelo aumento da incidência de doenças infecto-contagiosas e subnutriçáo.
Embora a mudança ambiental não seja uma novidade em
África, o ritmo das mudanças acelerou nas últimas décadas (UNEB 2008). Em África, o crescimento populacional,
a rápida urbanização, as alteraçoes climáticas, as escolhas
insustentáveis de desenvolvimento e a governança frágil
persistem como desafios críticos para atingir, a nível regional, as dimensões ambientais e sociais das metas de desen-
É este o quadro de ameaças que faz de África, segundo
as agências internacionais, o continente mais vulnerável
à Mudança Global, vulnerabilidade que é agravada pela
interacção de múltiplas pressoes ambientais com os baixos
volvimento (uNEP.
níveis de capacidade de adaptação.
12
201 2).
Segurança & Defesa
A Mudança ambiental global e as alteraçÕes climáticas irão
criar novos riscos e amplificar os já existentes para a socie-
dade e o ambiente natural. No entanto, estes riscos serão
distribuídos de forma desigual e serão, em geral, maiores
para as pessoas e comunidades mais desfavorecidas. Neste
quadro geral, a vulnerabilidade aos impactos da mudança
global não será idêntica em todos os países do continente.
Contudo, é possível indicar algumas tendências gerais
que constituem verdadeiros desafios ao desenvolvimento
nesta região e que contribuem fortemente para agravar
a vulnerabilidade e a fraca capacidade de adaptação do
continente africano à mudança ambiental global (Otter,
Olago e Niang,2007):
.
Pobreza crescente e generalizada e recursos financeiros
limitados;
.
de dados fiáveis, que permitam a adequação das estratégias
às condiçôes (ambientais e socioeconómicas) locais.
2.1 Uma população que se urbaniza
rapidamente
Em 2015, a população de África atingiu cerca de 1.186
milhoes de habitantes, tendo crescido 2,560/opor ano, entre
1950 e 2015, quase um ponto percentual a mais do que a
taxa de 1,660/o por ano registada para a população mundial
(UNDESA, 2015). Para além disto, as Naçoes Unidas estimam
que, entre 2000 e 2050, a população do continente africano
terá a taxa de crescimento mais rápida do mundo, o dobro
da taxa de qualquer outra região durante esse período
Grande dependência dos rendimentos familiares relativamente a actividades que assentam na utilização de
(UNDESA, 2013).
recursos naturais como os solos, a água e a floresta;
.
.
.
Crescimento da população muito rápido, estimando-se
que mais do que duplique até 2050;
Forte dependência das economias de muitos países relativamente a um sector agrícola de baixa produtividade;
Fracos níveis de bem-estar humano, estando a generalidade dos países africanos nos níveis mais baixos do
índice de Desenvolvimento Humano das NaçÕes Unidas;
.
Grande prevalência de doenças sensíveis aos elementos
de clima (malária, meningite, cólera, febre do Vale do
Rifte);
.
.
.
-
Baixos níveis
tecnológico;
de qualificação e de desenvolvimento
Sistemas de governança frágeis;
Persistência de conflitos regionais armados violentos.
tem sido o grande contribuinte para o rápido crescimento da população urbana mundial verificado nas últimas
décadas. Contudo, continuará a ser o Continente menos
urbanizado. Entre 1950 e 2000 a sua populaçáo urbana
multiplicou-se por 9, passando de 32 para 279 milhoes de
A África
pessoas; em 2030, cerca de metade da sua população viverá
Todos estes factores afectam a capacidade de África para
lidar com a mudança ambiental global. A identificação de
estratégias destinadas a mitigar os efeitos da mudança
global necessíta de envolver de forma integrada: o desenvolvimento socioeconómico e os sistemas de governança,
as estratégias de adaptação e o desenvolvimento sustentável dos recursos naturais.
já em centros urbanos: 53,50lo contra valores acima dos 70olo
nas restantes regiôes do mundo que iniciaram décadas
antes o seu processo de urbanização (UN-Habitat,2010;
A necessidade de implementar estratégias de adaptação,
de modo a que o impacto da mudança global possa ser
durante este período (UN-Habitat" 2010). Em 201 0, existiam
em África 47 cidades com mais de um milhão de habitantes,
cuja populaçâo combinada era no total de cerca de 126,4
milhóes de pessoas. A população total destas 47 cidades
aumentou 17,3 milhóes, entre 2005 e 2010. Uma vez que,
no mesmo período, a população urbana total aumentou
minimizado, é particularmente acutilante em África. lsso
deve-se principalmente ao facto de, devido aos elevados
níveis de pobreza, as prioridades nacionais de muitos países
africanos estarem centradas em torno do desenvolvimento
económico, desvalorizando a adaptaçáo e mitigação das
alteraçóes climáticas ou de outras mudanças ambientais.
Para além disso, as competências técnicas insuficientes, a
baixa capacidade de investigação e de inovação, a falta de
instituiçóes capazes de lidar com a adaptação e governança,
conduziram muitas comunidades a implementar medidas
tradicionais de adaptaçáo, de baixo custo, para lidar com a
mudança ambiental. No entanto, estas não são suficientes
para enfrentar os efeitos da mudança global. Sáo necessários esforços para melhorar as tecnologias tradicionais,
uNDESA,2012).
O
continente africano tem de se preparar para um aumento
da população total de cerca de 600lo, entre 2010 e 2050,
com a população urbana a triplicar para 1,23 mil milhoes
63,8 milhões, torna-se claro que as maiores cidades apenas
estão a absorver uma parcela relativamente pequena (270lo)
das pessoas que se deslocam em direcção às áreas urbanas
para aí passarem a residir. A maior parte (73%) deslocou-se
para as cidades com populações inferiores a um milhão de
habitantes (UN-Habitat. 201 0).
2.2 Agua: a competiçã.o por um recurso
apoiando a oportunidade para a introdução de tecnologias
inovadoras e mais eficientes.
Em África, a definiçáo de estratégias de mitigação e de adap-
tação à mudança global enfrenta ainda uma dificuldade
acrescida devido à escassa disponibilidade de informação e
A disponibilidade e o acesso à água doce é uma condicionante importante dos padróes de crescimento económico
e de desenvolvimento de qualquer sociedade (Lourenço
et ol., 2006). Esta situação é particularmente importante
em África, onde a maioria das pessoas vive em áreas rurais
n.o37 ::: outubro I dezembro 2017
13
e está fortemente dependente da agricultura para a
sua
muitas dessas áreas não possuem devido a uma ausência
de desenvolvimento industrial e pobreza
subsistência.
generalizada
(Molden,2007).
O continente africano é provido de recursos hídricos em
abundância" No entanto, fenómenos naturais, tais como os
padróes espaciais de precipitação, a variabilidade natural
no regime das chuvas e as alteraçôes climáticas, juntamente
com factores humanos, tais como o crescimento da população, a competição pelo recurso, e a sua degradação por
poluição, ameaçam cada vez mais a sustentabilidade dos
recursos hídricos neste continente (UNESCO, 2009).
Os recursos hídricos renováveis para o conjunto de África
atingem cerca de 3.930 km3, ou seja menos de 90lo dos recursos hídricos renováveis globais (Frenken, 2005). O consumo
de água per capita, em África, é de cerca de 31m3 por ano,
sendo comparativamente menor do que em outras regióes,
como, por exemplo, na América do Norte onde cada pessoa
consome, em média 221m3 por ano (UNESCAB 2007). A agricultura é, de longe, a responsável pela maior parte da captação e do consumo de água em África. A irrigação de terras
agrícolas regista-se, fundamentalmente, nas regiÕes áridas
e semiáridas do norte e do sul do continente e ao longo
do Sahel. Nestas áreas, a maior parte dos recursos hídricos
superficiais e subterrâneos são fortemente explorados.
2.3 A desflorestação
De acordo com o mais recente Global Forest Resources Assessment - 2015, estima-se que a área florestal, em África, esteja
perto de 624 milhoes de hectares, o que representa cerca
de
da área florestal mundial e 21
continente (FAO, 20 1 5).
160/o
o/o
da área total do
A taxa de desflorestação em África é maior do que em qual-
quer outro continente, embora esteja a diminuir desde a
década de 1990 (Kelatwang e Garzuglia,2006). Houve uma
redução na taxa líquida de perda de florestas na região, que
passou de 4 milhoes de hectares por ano (0,560/o / ano), na
década 1990-2000, para 3,4 milhóes de hectares por ano
(0,49o/o / ano) na década 2000-20'10 e para 2,8 milhóes de
hectares por ano (0,49o/o / ano), durante o período 20102015 (FAO,2015). Produção de madeira, conversáo de terras
para a agricultura e urbanização, incêndios florestais, corte
para lenha e carvão vegetal, e distúrbios civis são as principais causas da desflorestação em África, impulsionadas na
maior parte dos casos pelo crescimento da populaçáo.
A conversáo de florestas em terras agrícolas é necessária
para a produção de alimentos, mas esta desflorestação
afecta negativamente os ecossistemas locais, havendo
perda de habitats. Para além dissg a desflorestaçáo é, em
África, um dos principais motivos para a degradaçâo do
solo, especialmente quando seguido por intensificação da
agricultura e pelo aumento das áreas de pastagens para a
produção pecuária.
A desertificação e degradação
das solos: uma ameaça à segurança
2. 4
A falta de água restringe frequentemente as actividades
humanas, nomeadamente a agricultura, enquanto a poluição da água diminui a sua disponibilidade sendo uma fonte
de doenças. As alteraçÕes climáticas irão agravar esta situa-
ção. Estima-se que mais de 300 milhóes de pessoas em
África enfrentem condições de escassez de água. Em 2050,
estima-se que as zonas afectadas por escassez de água
na África subsaariana aumentem em 29o/o (UNEB 1999).
A captação e o consumo de água têm aumentado nas últimas décadas. Contudo, os re(ursos hídricos disponíveis
do continente têm vindo a diminuir, principalmente como
resultado de situaçóes de seca persistente e de mudanças
nos padrôes de uso do solo (UNEB 2008).
A maioria da população da África subsaariana encontra-se
exposta a uma situação de escassez económica de água.
Esta escassez resulta da população não possuir os meios
monetários necessários para utilizar fontes adequadas de
água. Motivos políticos e conflitos étnicos têm contribuído
para esta distribuição desigual de recursos. A escassez
económica de água pode ser ultrapassada de forma relativamente rápida e eficaz através da construção de infra-estruturas simples para recolher a água das chuvas e de
barragens, mas isso requer investimentos económicos que
14
Segurança & Defesa
alimentar
A desertificação3, apesar de não ser um fenómeno recente,
pode ser considerada como um dos mais graves problemas
ambientais da actualidade. Desde a década de 1970 que se
começou a observar a intensificaçáo de processos de desertificação, em função de mudanças drásticas no uso do solo,
modificaçoes nos balanços hídricos, extracção abusiva das
águas subterrâneas, salinização e contaminação dos solos e
água, incêndios, abandono de práticas de conservação dos
solos, entre outros comportamentos menos sustentáveis de
utilização dos recursos naturais.
Estima-se que, em África, a degradaçáo dos solos, enquanto
processo de redução da capacidade dos solos para produzirem alimentos ou materiais, afecte 650/o dos solos agrícolas,
das áreas de pastagem e 19o/o da superfície florestal
(Oldeman, 1994 eWRl,2005). Mais de um quarto das regiôes
áridas e semiáridas de África apresenta uma degradação
significativa devida à erosão do solo, perda de nutrientes,
poluição ou salinização (White ef d/., 2000). Em geral, a única
310/o
3 A Convençáo de Combate à Desertificação das Nações Unidas (1994) define
desertificaçáo com o send,o a"a degradoção da terra nas zonos áridos, semiáridos
e sub-húmidas secos, em resultado da influência de vários factores, incluindo os
varíações climóticas e os actividodes humanas" (CNCCD,2Q13:7],.
opçáo para os agricultores mais pobres é a de cultivarem
ou criarem gado em terras marginais, facto que pode levar
a um ciclo de aumento da erosão e degradação do solo,
conduzindo, eventualmente, à desertifi caçâo.
A fertilidade dos solos do continente africano está a diminuir a uma taxa que constitui uma ameaça para as tentativas de erradicação da fome. É nesta degradação dos solos
que se pode encontrar uma das explicaçoes para a estagnaçáo, nas últimas quatro décadas, da produtividade agrÊ
cola neste continente (Henao e Baanante, 2006). É de reter
que no continente africano, a agricultura representa, em
média, cerca de 650/o da força de trabalho e cerca de 32% do
PIB (World Bank, 2011). A geografia da actividade agrícola
mostra uma assimetria acentuada da produtividade, com
o Egipto e a Nigéria a serem responsáveis por um terço da
produçáo agrícola total (Jayaram et a1.,2010).
Na África Subsaariana, os sistemas de produção agrícola
dependem fortemente do regime da chuva, pelo que a
produção alimentar é extremamente vulnerável a condiçôes
meteorológicas adversas o que constitui um grande desafio
para a segurança alimentar. Como resultado desta fragilidade do seu sistema produtivo agrícola o continente africano continua a apresentar situaçoes de segurança alimentar e nutricional marcadas por vários epísódios críticos de
diminuição dos meios de subsistência (UN Millennium
Project, 2005; Lobell,2008). Segundo Jacques Dioufl, DirecFAO de 1994 até 201 1, "desde 2009, na África
Subsariana, mais de 269 milhôes de pessoas estão subalimentadas e 300/o da população sofre de fome" e, apesar de
alguns êxitos, a "agricultura africana debate-se com múltiplos problemas, que vão de um acesso insuficiente à água
e aos factores de produção modernos e à falta de infra-estruturas rurais'i Para garantir uma produçáo sustentável de
alimentos e a segurança alimentar de uma população a crescer a um ritmo acelerado a agricultura deverá atingir taxas
de crescimento muito significativas durante os próximos 40
anos, nomeadamente se quiser satisfazer uma melhoria da
condição alimentar e nutricional da sua população.
tor Geral da
3. Urna geografra política instdvel:
conflitos e estados frágeis
É importante começar por dizer
o que são conflitos.
O termo conflito remete para um extenso conjunto de actos
cujo significado, natureza e tipificação depende do quadro
teórico a que está ligado. Cite-se apenas dois com interesse
para este artigo. Para Ralf Dahrendorf (1972), os conflitos
referem-se a relaçôes de oposiçáo visando a manutenção
ou o desafio do poder dominante, a sua teoria de conflitos
sociais refere-se às relaçôes sociais no seu todo e considera
os conflitos como factores determinantes da mudança
social. Enquanto para Ted Gurr (2010 e 2015) os conflitos
decorrem essencialmente de frustraçôes associadas a situaçoes de privação, leía-se, no quadro deste artigo, a situaçóes
de pobreza. Nos seus estudos, Gurr - que abordou em várias
das suas obras a situação de África - procede essencial-
mente a uma leitura compreensiva da violência política e
à análise das causas que levam os indivíduos aos protestos
políticos e à revolta.
Discurso proferido durante a Conferencia Regional da FAq em Luanda, em
20i 0.
Outro aspecto importante a considerar é a tipologia dos
conflitos. Uma das dificuldades apontadas na análise da
correlação alteraçôes climáticas yersus conflito é precisamente a de que tipo de conflito se considera. Não cabe nos
objectivos deste artigo desenvolver a abordagem sobre as
diferentes tipologias utilizadas. Assim e de um modo simples
é de referir que no contexto deste artigo o termo conflito se
refere a um vasto conjunto de acçóes que váo do protesto
político, com ou sem violência, a acçôes de tipo repressivo
e acçôes em que intervêm grupos armados, institucionais
ou nâo-institucionais, no interior de um mesmo estado ou
entre estados (Lourenço e Machado, 201 3; Galtung,1996).
Neste ponto a atenção centra-se nos conflitos armados.
No ponto dedicado à relaçâo ambiente yersus conflitos a
análise integra uma tipologia mais abrangente de conflitos.
Sendo sempre arriscado procurar causalidades, a análise da
bibliografia sobre África evidencia um conjunto de factores
interconectados e interdependentes associados à instabilidade política, à violência, aos conflitos e à pobreza: causas
económicas, culturais e étnicas, internas e externas, locais e
regionais, particularidades históricas associadas ao colonialísmo e elites mal preparadas. A globalização, a economia
neoliberal e o fim da guerra fria são ainda mencionados, por
alguns autores, como os elementos potenciadores deste
quadro. No parágrafo seguinte são apresentadas duas leituras sobre as causas das guerras e a instabilidade política na
perspectiva de autores africanos.
Um estudo do lnstitute for Security Studies, um centro de
investigação que associa a África do Sul e países da angló-
n.o37 :::
outubro I dezembro
2017
15
extrema violência. A intervenção internacional para a resoluçâo destes conflitos e atenuar as suas consequências tem
sido diminuta" Para além dos milhares de vítimas - alguns
destes casos assumem a natureza de genocídios - registe-se a destruição de infra-estruturas e do sistema produtivo
e a instabilidade regional causada por centenas de milhares
de refugiados, estendendo o conflito aos Estados vizinhos.
Estes conflitos têm como protagonistas actores náo estatais ou não exclusivamente estatais, recorrem aos media,
são portadores de novas ideologias, formas de financiamento não tradicionais, actuam no meio das populaçôes,
em suma, definem uma estratégia atípica relativamente à
guerra clássica com objectivos, alvos e uma ideia de inimigo
também diferenciados.
Alguns autores, com destaque para Mary Kaldor (2007)
que cunhou a designação newwors, referem a emergência
de um novo tipo violência organizada ou conflito armado
em oposição às guerras clássicas que dominaram o panorama mundial, particularmente o europeu, até ao final da
ll Guerra Mundial" Kaldor (2007: 2) refere que a designação
de guerra é aqui utilizada para enfatizar a natureza política
deste tipo de violência e de conflito, apesar de a sua definição resultar, obrigatoriamente, de uma sobreposição de
guerra - conflito entre Estados ou grupos políticos - crime
organizado, com vista a ganhos para fins privados, e violação em larga escala dos direitos humanos.
fonos da África Oriental, refere, como causas principais para
a situação de subdesenvolvimento do continente e para
o ambiente de insegurança, "a governação inadequada, a
corrupção desenfreada, doenças e ausência de sistemas de
saúde, cerca de70o/o da população vivendo num estado de
fome crónica e excessiva dependência de recursos naturais
e persistentes ciclos de conflitos violentos", mesmo no caso
de países ricos em recursos naturais (Adano e Daudi,2012:2
e 5). PaulTiyambe Zeleze, um prestigiado historiador económíco africano, sintetiza, na introdução ao seu livro The Roots
of Africon Conflicts (2008), a situação do continente: "To be
sure, these wors are often provoked and sustained by ethnic
rivalries, economic underdevelopment ond inequalities, poor
governance and elite political instobility and manipulations,
but these foctors, indiuidually or collectively, have a history
rooted in the political economy of colonialism, post-coloniaIi
sm, and neo-l i bera
Ig
loba I i sat io n".
A instabilidade política em África é reforçada pelo elevado
número de Estados considerados como estodos frÓgeiss.
O colapso da autoridade em vastos territórios tem sido o
ambiente propiciador de conflitos étnico-religiosos, guerras civis e de secessão, frequentemente prolongados e de
s Apesar de não haver uma definição internacionalmente aceite da expressáo
Estados fúgeis, a maioria das agências internacionais para o desenvolvimento
aplica o termo referindo-se a Estados que fracassaram na capacidade de assegurar as funçóes que satisfaçam as expectativas básicas dos cidadãos. A OCDE
caracteriza os Estados frágeis como Estados que sáo incapazes de manter a
segurança, de assegurar o cumprimento da lei e o funcionamento da justiça,
de providenciar os serviços básicos e oportunidades económicas aos seus cidadáos, isto é, de funcionar politicamênte (OCDE, 2008).
16
Segurança & Defesa
Este tipo de conflitos envolve sempre um conjunto alargado de conexÕes que impossibilitam uma distinção clara
entre interno e externo, entre local e global. Estas novas
guerras tendem a concentrar-se em áreas onde o Estado, na
sua acepçáo moderna, náo se consolidou. São Estados que
cabem na noção de Estados frágeis ou falhados - com um
aparelho político-administrativo ineficaz, incapacidade real
de controlo do território, elevado nível de corrupção e de
ausência da gestão dos bens públicos - com uma real incapacidade de manter a segurança no interior das suas fronteiras. A legitimidade das instituiçóes e a confiança no Estado
está submetida a uma forte erosão (Kaldor, 2001 e2007).
A importância que este tipo de conflito e de violência vem
assumindo no contexto de África, a sua contribuição para a
instabilidade de muitos Estados nas últimas décadas, justifica a atençáo que lhes é conferida neste artigo. O conceito
de novasguerrastêm sido alvo de críticas de vários quadrantes científicos (Zeleza e Nhema,2008), no entanto e apesar
das suas fragilidades analíticas é de reconhecer a sua utilidade para a compreensão da natureza e da lógica de muitos
dos conflitos armados do séc. XXI
O conceito de violência organizada tem
vindo
a ser
utilizado
para designar novos e antigos tipos de ameaça à segurança.
Ele inclui uma alargado tipologia de conflitos como a violência dos estados contra civis, guerras civis, violência eleitoral
entre opositores, conflitos regionais com base em questões
de identidade étnica e/ou religiosa, violência de gangues
relacionados com crime organizado, movimentos armados
com objectivos ideológicos e religiosos, frequentemente
com relações ínternacionais. Muitos países e regiôes, essencialmente na América Latina e em África, têm conhecido
ciclos de violência organizada repetida passando, por vezes,
de um tipo de violência a outro, nomeadamente a passa-
gem de conflitos armados para altos níveis de criminalidade
(World Bank, 20'l 1).
Existem hoje sistemas estatísticos fiáveis, actualizados e de
fácil acesso sobre conflitos, na sua definição alargada, no
mundo e, naturalmente, em África, tornando despicienda
a sua apresentação. Assim, ficam apenas dois últimos
comentários sobre a importância e o impacto dos conflitos
armados no desenvolvimento no continente. Um estudo da
Universidade de Yale permite uma leitura ampla da importância dos conflitos intra-estados em África: de 1960 até ao
presente, um terço dos países da África subsaariana conheceram a experiência de uma guerra civil (conflitos internos
das com o acesso à água potável, ao ar puro e a um sistema
terrestre náo degradado- A segurança humana e a protecçáo do ambiente são assim consideradas como realidades
mutuamente dependentes: a depleção dos recursos naturais diminui os meíos de subsistência, aumenta os riscos
a saúde humana e amplifica as vulnerabilidades perante
fenómenos ambientais críticos; a conjugação destes factores enfraquece a coesão e a estabilidade social, contribui
para o agravamento da instabilidade política e social.
em que um dos participantes representa o estado e em que
se tenham registado pelo menos 1000 mortos em combate
no período de um ano), se for considerada a categoria de
conflitos civrs (conflitos internos em que um dos participantes representa o estado e em que se tenham registado
25 mortos em combate no período de um ano) aquele
número passava para metade dos países; alguns destes
conflitos duraram mais de dez anos (Blatman e Miguel,
20'l 0). Quando se fala em conflitos armados a análise tende
a centrar-se no imediato, no número de vítimas e amplitude das destruiçoes, esquecendo o tempo necessário à
reconstrução nacional, isto é, esquecendo os impactos do
conflito no desenvolvimento no longo prazo. O Stockholm
lnternotional Peace Research lnstitute, tendo como ponto de
partida a análise de duração média dos conflitos armados
internos em países subdesenvolvidos, estimada em 7 anos,
calcula que um país leve 14 anos a recuperar a sua economia e cerca de 25 anos a reconstruir'b seu sistema social e
institucional até ao nível de boa governação"(SIPRl,2017:9).
4. Alterações Climdticas e Conflitos
As próximas décadas seráo marcadas pela intensificação das
alteraçôes climáticas o que contribuirá para o agravamento
das crises ambientais já hoje conhecidas (como a seca, a
falta de água e a degradação dos solos). O crescimento da
populaçáo potenciará os efeitos destes factores aumentando o número de conflitos pela competição das terras
aráveis, desencadeando movimentos migratórios criando
situaçôes de sfress em outras regiões, nomeadamente em
áreas urbanas ou mais desenvolvidas. É expectável que o
aumento da temperatura global ponha em causa as bases
de rendimento de numerosas populaçoes rurais, particularmente nas regiôes subdesenvolvidas, aumentando a vulnerabilidade à pobreza e à exclusão social e venha a constituir
uma ameaça à segurança humana.
Este quadro será tanto mais grave quanto mais frágeis forem
os Estados, devido à reduzida capacidade de desempenho
das suas instituiçóes e sistemas de govqrno. Na maio-
ria destes Estados, como acontece na África subsaariana,
as consequências das alteraçôes climáticas ultrapassem
a capacidade local/nacional de adaptação às mudanças
ambientais, potencializando a instabilidade política e social
que caracteriza numerosas sociedades da região.
A globalização e a mudança ambiental global estão associadas ao processo de reconceptualização da segurança,
à sua densificação e ao alargamento do seu significado
(Lourenço, 2015). O conceito de segurança humana, das
Naçóes Unidas, reconhece a complexidade das interconexóes estabelecidas pelo ambiente e sociedade, integrando
as preocupações quanto à dimensão de segurança do
ambiente, incluindo, em particular, as questÕes relaciona-
Nas últimas duas décadas o interesse pelo estudo da even-
tual eclosão de conflitos cujas causas seriam consequências
das alteraçôes climáticas tem animado centros de investigação em todo o mundo. As análises de pendor neomalthusiano, conduzidas por Homer-Dixon (2001), que estabelecem correlaçôes fortes entre a competição pelo acesso a
recursos naturais, particularmente a água e terras aráveis,
progressivamente mais escassos e degradados devido às
alteraçoes climáticas, o aumento da população e a emergência de conflitos foram marcantes quer a nível científico
quer na área político-militar. Michael Klare (2002) cunhou
a expressão ressources wars e os seus trabalhos centram-se
essencialmente no uso e esgotamento de recursos naturais estratégicos como o petróleo e a definição de políticas
nacionais que podem levar à eclosão de conflitos armados.
Klare tem sido um dos críticos do que designa por energia
extremo, isto é, a produção de energia a partir recursos não
convencionais com conduzem à degradação do ambiente
e de elevado risco (shale oif exploração de petróleo no
Árctico, etc.). Mais recentemente Marshall Burke, Edward
Miguet e outros (Burke ef al, 2009) apresentaram a tese de
que o aumento da temperatura - no quadro do aquecimento global - está associado à eclosão de conflitos armados em África; o estudo, suportado numa análise histórica da evolução das temperaturas, prevê o aumento da
conflitualidade no futuro acompanhando as previsôes de
aumento das temperaturas no futuro próximo.
Neste quadro de preocupaçóes simultaneamente académicas e geoestratégicas, a questão da escassez da água
assumiu um espaço predominante e um relevo mediático
inusitado. Vários estudos e personalidades importantes da
cena política internacional prevíram que as guerras e conflitos armados do séc. XXI teriam a sua orígem na competição pela água potável, proverbialmente designadas por
os guerros pela água. lsmail Serageldin (Vice-Presidente do
Banco Mundial) defendeu, em 1995, que "...fhe wars of the
next century will be about water...". Ban Ki-moon (Secretário
Geral das Naçóes Unidas), em 20Q7, durante a 1' Reuniáo
Asia-Pacifico sobre a Agua, declarou que "...fhe consequen-
n.o37 ::: outubro I dezembro 2017
17
humanity are grave. Woter scorcity threatens economic
and social gains ond is o potent fuel for wars ond conflict.:!.
Também em 2007, Ban Ki-moon designou o dramático e
sangrento conflito em Darfur, Sudão, como fhe world's first
climate change conflict, referindo a escassez de água como o
detonador do confl ito (Borger, 2007).
ces for
tipo de análise causal sobre
as consequências das alte-
raçÕes climáticas e a eclosão de
conflitos (na sua definiçáo
Este
e tipologia
alargada)
é
actualmente considerado como
pouco fiável e apresentando resultados pouco consistentes.
O estudo da complexa relaçáo estabelecida entre as alteraçÕes climáticas e a eventual eclosão de conflitos pressupÕe
análises multicausais com capacidade de integrar as múltiplas variáveis económicas sociais e biofísicas intervenientes
no processo. Assim, é hoje consensual afirmar que as consequências das alteraçôes climáticas não aumentam isoladamente os riscos de conflito, funcionando antes como agentes catalísadores ou aceleradores de crises que poderão dar
origem a conflitos. Em contextos de pobreza endémica, desigualdades gritantes de riqueza e de acesso à terra, elevados
níveis de desemprego, sistemas e instituições de governo
incapazes, as consequências das alteraçoes climáticas são
um factor potenciador de tensôes sociais preexistentes
podendo conduzir a conflitos sociais cuja dinâmica poderá
alimentar uma escalada para níveis de violência extrema.
As consequências das alterações climáticas são já visíveis
em África como foi referido no ponto 2. A intensificação das
consequências das alterações climáticas terá consequências
mais gravosas em áreas muito sensíveis como as do Corno
de África (Etiópia, Quénia, Somália, Eriteia) cuja economia e
meios de subsistência assenta na pastorícia e sofre há anos
de longos e intensos períodos de seca. A história de África
é muito marcada por conflitos associados a questóes étnicas, de instabilidade polítíca e de acesso aos recursos que
poderão ser agravadas pelas alteraçôes climáticas, particularmente nas disputas territoriais e fronteiriças, dificul-
18
Segurança & Defesa
tando processos de mediação e de negociaçâo. As regiôes
de Darfur, do Sahel, dos Grandes Lagos e do Congo são
zonas sensíveis pelo acréscimo de competição por recursos
escasso como a água e as terras aráveis. As migraçôes climá-
ticas - cujas estatísticas continuam a não satisfazer uma
leitura rigorosa - para além de um problema humanitário
grave sáo uma das consequências das alterações climáticas
potenciadoras de conflitos regionais (segundo alguns estudos prospectivos seráo globais em 2050) pelo aumento da
pressão que provocam nas áreas de destino"
Considerações Finais
Apesar da pequena contribuição para o aumento das
emissões de gases com efeito de estufa, e portanto, para
as Alteraçôes Climáticas, África é um dos continentes mais
vulneráveis às suas consequências, em grande parte devido
à limitada capacidade de adaptaçáo agravada pela interacção de múltiplas pressôes ambientais, pela pobreza generalizada e pelos baixos níveis de desenvolvimento.
Em África, a promoção da sustentabilidade e a procura de
melhor qualidade de vida para as populaçóes enfrenta
desafios de particular importância, nomeadamente os que
estão relacionados com as Alterações Climáticas e com a
Mudança Ambiental Global, que possuem uma importante
dimensão geopolítica. Esta resulta fundamentalmente do
facto de as suas consequências não serem nem iguais, nem
equitativas, entre regióes ou países. Para além disso, é cada
vez mais evidente o potencial de perturbação que exercem
sobre a capacidade de adaptação à mudança dos sistemas
políticos, sociais e económicos.
O crescimento económico, necessário para enfrentar a pres-
são demográfica e para manter e aumentar a qualidade de
vida da população, diminuir a pobreza e a instabilidade
política e social, tem fortes impactos sobre o ambiente"
As mudanças ambientais afectam global e regionalmente
os sistemas sociais. A diminuição de terras aráveis, a degradaçáo da vegetaçâo, ou o esgotamento dos recursos hídricos afectam tanto as actividades económicas como as
condiçóes de vida das populaçoes. É neste quadro geral
que surgem os principais desafios da investigação sobre a
complexa relação estabelecida entre sociedade e mudança
ambiental: Como conciliar as pressões antropogénicos com
a sustentobilidade do ambienteT Como osseguror um desenvolvimento sustentável que consiga ultrapassar a situaçõo de
subdesenvolvimento e de inseguranço em que vivem a maiorio das sociedodes africanas?
As próximas décadas serão marcadas por uma intensificação das alteraçôes climáticas, contribuindo para o agravamento das crises ambientais, já hoje existentes, intensificando conflitos de uso do solo e desencadeando migraçoes
ambientais. O aumento da temperatura global vai comprometer as bases do rendimento de muitas pessoas, especialmente nas regiôes em vias de desenvolvimento, aumen-
tando a vulnerabilidade à pobreza e à exclusão social e
colocando em.risco a segurança humana. Num mundo
globalizado, quando a insegurança e a violência aumentam, as consequências tornam-se globais. As consequências potenciais das Alteraçoes Climáticas e da Mudança
Global são sérias e podem constituir uma ameaça à segurança (definida em termos amplos como defende o PNUD
e abarcando as preocupaçÕes ambientais, económicas e de
saúde) dos indivíduos, comunidades e países. A forma como
a sociedade responderá à mudança Global deverá ser uma
política central de paz e segurança do século XXl.
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