Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                
Práticas e tensionamentos contemporâneos no ensino de Jornalismo Elton Bruno Pinheiro • Rafiza Varão • Zanei Barcellos organizadores Práticas e tensionamentos contemporâneos no ensino de Jornalismo Elton Bruno Pinheiro • Rafiza Varão • Zanei Barcellos organizadores 2 Brasília FAC/UNB 2018 Copyright © 2018 by FAC-UnB Rafiza Varão capa diagramação Rafiza Varão Elton Bruno Pinheiro, Rafiza Varão, Zanei Barcellos revisão FACULDADE DE COMUNICAÇÃO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – FAC-UNB Endereço: Campus Universitário Darcy Ribeiro - Via L3 Norte, s/n - Asa Norte, Brasília - DF, CEP: 70910-900 Telefone: (61) 3107-6627 E-mail: fac.livros@gmail.com DIRETOR Fernando Oliveira Paulino VICE-DIRETORA Liziane Guazina CONSELHO EDITORIAL EXECUTIVO Dácia Ibiapina, Elen Geraldes, Fernando Oliveira Paulino, Gustavo de Castro e Silva, Janara Sousa, Liziane Guazina, Luiz Martins da Silva. CONSELHO EDITORIAL CONSULTIVO (NACIONAL) César Bolaño (UFS), Cicilia Peruzzo (UMES), Danilo Rothberg (Unesp), Edgard Rebouças (UFES), Iluska Coutinho (UFJF), Raquel Paiva (UFRJ), Rogério Christofoletti (UFSC). CONSELHO EDITORIAL CONSULTIVO (INTERNACIONAL) Delia Crovi (México), Deqiang Ji (China), Gabriel Kaplún (Uruguai), Gustavo Cimadevilla (Argentina), Herman Wasserman (África do Sul), Kaarle Nordestreng (Finlândia) e Madalena Oliveira (Portugal). COORDENADORA EDITORIAL Rafiza Varão Catalogação na Publicação (CIP) Ficha catalográfica P912 Práticas e tensionamentos contemporâneos no ensino de Jornalismo / Elton Brunho Pinheiro, Rafiza Varão, Zanei Barcellos, organizadores. – Brasília : Universidade de Brasília, Faculdade de Comunicação, 2018. 241 p. : il. Modo de acesso: World Wide Web: <https://faclivros.wordpress.com/ category/livros/>. ISBN 978-85-93078-34-7 1. Jornalismo – Ensino. 2. Diretrizes Curriculares Nacionais. I. Pinheiro, Elton Bruno, (org.). II. Varão, Rafiza, (org.). III. Barcellos, Zanei, (org.). CDU 37:07 DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO PARA A FAC-UNB. Permitida a reprodução desde que citada a fonte e os autores. Feliz é o professor que aprende ensinando Cora Coralina Sumário 9 Apresentação Parte I: TEORIA 13 Para que teorias? O fazer e o saber do Jornalismo Luiz Carlos Iasbeck 23 Jornalista profissional: novas competências para o egresso do bacharelo em Jornalismo Maria Elisabete Antonioli 33 A Transitoriedade da mídia impressa para o formato digital: reflexões da narrativa visual, multimídia e multimodal da notícia Suzana Guedes Cardoso 47 Os rumos do ensino do Jornalismo: o desafio de formar um novo profissional David Renault 61 Formação superior em Jornalismo: Análise de diretrizes e propostas de universidades brasileiras Edileuson Santos Almeida, Ada Cristina Machado da Silveira 73 Redações integradas e trabalho jornalístico: O uso das tecnologias para um trabalho emancipado e emancipador Carlos Figueiredo Parte II: ENSINO 87 Experiência didática em Jornalismo: ensino com pesquisa sobre sites de notícias de Cuiabá (MT) Ana Graciela Mendes Fernandes da Fonseca Voltolini 99 Repórter UFMA e Imperatriz Notícias: relatos sobre as produções audiovisual e em web do curso de Jornalismo na UFMA de Imperatriz Lívia Cirne, Lucas Reino, Marco Antônio Gehlen, Thaísa Bueno, Vítor Belém 109 Experiência de um ensino de linguagem sonora para curso de Jornalismo Nivaldo Ferraz 119 O desafio do ensino do Jornalismo frente às mídias móveis Rose Mara Pinheiro 129 O ensino de Jornalismo e a convergência: Integração das redações como proposta pedagógica Fábio Sadao Nakagawa, Suzana Oliveira Barbosa, Washington José de Souza Filho 139 Impasses e oportunidades para o ensino de Jornalismo: o binômio perfil multitarefas e os processos de precarização Dione Oliveira Moura, Ana Carolina Kalume Maranhão 149 A perspectiva de gênero no ensino do Jornalismo: uma análise dos projetos pedagógicos dos cursos de Curitiba e Ponta Grossa/PR Bruna Aparecida Camargo, Karina Janz Woitowicz 163 Ambientes, veículos, processos de produção e jornalistas mutantes: uma proposta didático-pedagógica Zanei Ramos Barcellos Parte III: Diretrizes 177 Novas diretrizes, velhas questões: o currículo do curso de jornalismo, antes e depois das DCN Marcio da Silva Granez 189 Cidadania nas DCN e Jornalismo Comunitário: breve reflexão sobre um panorama nacional do ensino de Jornalismo Cláudia Regina Lahni 203A Política de Extensão Acadêmica nas Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Jornalismo Elton Bruno Pinheiro 215 O lugar da ética: Uma análise das recomendações sobre o ensino de ética e jornalismo nos cursos do Centro-Oeste após 2013 Rafiza Varão 7 Carlos Figueiredo REDAÇÕES INTEGRADAS E TRABALHO JORNALÍSTICO O uso das tecnologias para um trabalho emancipado e emancipador Introdução A reestruturação do capitalismo caracterizada pela passagem do regime de acumulação Fordista/Keynesiano para o regime de Acumulação Flexível trouxe diversas mudanças no mundo do trabalho, inclusive o dos jornalistas. Tais mudanças, decorrentes do colapso do regime de acumulação Fordista/Keynesiano a partir dos anos 1970, não cessam devido principalmente às constantes crises enfrentadas pelo sistema capitalista a partir daí. A busca para a solução do impasse por parte dos capitalistas reside em três processos: (1) a financeirização da economia, (2) a diminuição da ação estatal em todas as esferas da vida e (3) a flexibilização das relações de trabalho. As mudanças tecnológicas e no processo de gestão acarretaram transformações drásticas nas relações de trabalho dentro das redações. A informatização das redações fora um primeiro passo de um processo aprofundado com a popularização da internet. A popularização da rede mundial de computadores fragmentou audiências, aumentou a competição tanto pelo produto em si, o conteúdo noticioso, quanto pela venda de publicidade; além de consolidar o processo de convergência, possibilitado pela transformação de átomos em bits. Dessa forma, as barreiras entre os diferentes meios e linguagens foram quebradas. Áudio, vídeo, foto e textos podem estar no mesmo espaço a um custo menor e em tempo real. O ensino de jornalismo não ficou incólume a esse conjunto de mudanças. Se levarmos em conta que todas essas transformações aconteceram em paralelo às mudanças nas Diretrizes Curriculares Nacionais no ensino de jornalismo, o debate ganha novas proporções. Os cursos de jornalismo passam a não mais fazer parte do tronco comum dos Cursos de Comunicação Social. Os detratores da mudança alegam que o profissional formado nesses novos cursos sairiam dos bancos universitários com um perfil mais tecnicista, perdendo a visão global do campo comunicacional oferecida pelos cursos de comunicação social com habilitação em jornalismo. Também argumentam que as fronteiras entre conteúdos sejam práticas publicitárias, jornalísticas, de relações públicas entre outras áreas profissionais do campo vêm sendo apagadas no apanágio da “produção de conteúdo”. Os defensores do movimento em direção à autonomização do jornalismo em relação à disciplina comunicação alegam que os jornalistas possuem uma identidade profissional apartada dos outros campos profissionais da comunicação, além de teoria própria que vem ganhando autonomia. O tronco comum às profissões sob o guarda-chuva do curso de comunicação social acabava, segundo os partidários da separação, por descaracterizar o profissional formado pelas universidades dando a estes um perfil generalista. Meditsch (2010) aponta dificuldades epistemológicas do ensino e dos Estudos em Jornalismo cuja resolução está além das dicotomias comunicação x jornalismo, profissional x 73 acadêmico, prática x teoria. Segundo o autor, as dificuldades continuariam mesmo em disputas teóricas e epistemológicas dentro dos próprios campos. Nesse caso, estariam configuradas disputas do tipo jornalismo x jornalismo e comunicação x comunicação. Ou seja, disputas por definições epistemológicas dentro de disciplinas específicas, ainda que separadas. Nossas preocupações são relativas ao jornalista enquanto trabalhador, e também estão ligadas às mudanças no currículo e às teorias do jornalismo. Como os currículos e as teorias do jornalismo lidam com as mudanças no trabalho jornalístico causadas pela reestruturação do capitalismo? O jornalismo aprendido nos bancos universitários leva em conta o potencial emancipatório desse saber, como defendido por Genro (1987) e Moretzsohn (2007)? Para dar conta dos nossos problemas, analisaremos o processo de produção da notícia a partir da posição de que o jornalista é um trabalhador cuja extração de mais-valia é a fonte do lucro das empresas jornalísticas, e que essa relação de exploração acarreta nos processos de Subsunção (MARX, 2013) e controle do trabalho. Entretanto, de acordo com Marx (2011), o capitalismo é a contradição em processo. Assim, a mesma tecnologia que flexibiliza as condições de trabalho, aumentando a subsunção e o controle do trabalho jornalístico; pode também permitir que as práticas jornalísticas possam se reencontrar com os ideais de emancipação defendidas no seu surgimento. O intuito é entender como o ensino do jornalismo possa ao mesmo tempo permitir ao jornalista fazer uso das tecnologias e dotá-lo dos saberes necessários para a construção de um jornalismo emancipatório capaz de produzir notícias que partam do singular para o universal, como defende Genro (1987). Faz-se necessário compreender os fenômenos da convergência e das redações integradas como parte da flexibilização das condições de trabalho dos jornalistas para propor um currículo que forneça aos futuros trabalhadores da notícia os saberes necessários para lidar com essa nova realidade. Para dar conta dos nossos objetivos recorreremos à Economia Política da Comunicação para analisar como se dá a subsunção e o controle do trabalho intelectual (BOLAÑO, 2000, 2002, 2017); a teóricos marxistas do jornalismo como Genro (1987) e Moretzsohn (2007); e pesquisadores que se ocupam da aplicação de novas tecnologias ao jornalismo, principalmente Salaverría e Negredo (2009) que estudaram o fenômeno das redações integradas, a nosso ver o principal modelo de gestão do trabalho durante o regime de acumulação flexível. Antes, no entanto, resolveremos impasses teóricos relativos aos termos Fordismo e Pós-Fordismo, aplicados à análise do trabalho jornalístico para entender as possibilidades de o jornalista realizar um trabalho emancipador. Do Jornalismo Manufatureiro ao Jornalismo Flexível As mudanças sofridas pelos processos de trabalho jornalístico estão dentro de um panorama maior de reestruturação do sistema capitalista. A flexibilização dos direitos e processos de trabalho, as mudanças tecnológicas, transformações nos processos de gestão do trabalho, estão ligadas a mudanças no regime de acumulação do capitalismo. De acordo com Lipietz (1988, p. 30), “o regime de acumulação descreve a estabilização a longo prazo da destinação do produto entre o produto e a acumulação, o que implica uma correspondência entre a transformação das condições de reprodução do trabalho assalariado”. A existência do regime de acumulação indica a existência de uma coerência interna que obriga os agentes individuais a se enquadrarem docilmente nesse tipo de organização social. Logo, ainda lembrando Lipietz (Idem), é necessário que o regime de acumulação ganhe vida no cotidiano através de “normas, costumes, leis, mecanismos reguladores, que assegure, através da rotina do comportamento dos agentes em luta uns contra os outros […], a unidade do processo, o respeito aproximativo do esquema de reprodução”. A conjunção de regras interiorizadas e comportamentos individuais é o que Lipietz e outros teóricos da Escola Francesa da Regulação chamam de modo de regulação. Os conceitos de regime de acumulação e modo regulação dão conta de um conjunto de mudanças sociais no século XX. De acordo com os autores da Escola da Regulação, a crise no capitalismo concorrencial, marcado por grande concorrência entre pequenas firmas, em fins do século XIX e começo do século XX, fez surgir o chamado capitalismo monopolista, em que grandes firmas dominam o mercado em uma situação cada vez mais parecida com o monopólio perfeito. A crise de 1929 fez necessária a entrada da regulação estatal para organizar a anarquia da produção a partir de políticas inspiradas no economista britânico John Maynard Keynes diante da insuficiência 74 do mercado para se autorregular. No campo da produção, a indústria automobilística a partir da adoção do processo de gestão fordista, produção em massa e altos salários para os trabalhadores tornava-se modelo de sucesso para os demais setores industriais. Esse arranjo levou a um acordo classista entre trabalhadores e capitalistas mediado pelo Estado, que dentro desse arranjo também era responsável por fornecer uma série de serviços públicos como educação, saúde e previdência que juntos acabaram por criar o chamado Estado de Bem-Estar Social (Welfare State). O nome desse modo de regulação, que por anos garantiu estabilidade ao sistema capitalista, foi chamado de Fordismo pelos autores da Escola da Regulação. De acordo com Lipietz (1988), esse conceito de Fordismo foi nomeado em homenagem ao sentido atribuído ao fenômeno por Gramsci em seu famoso texto “Americanismo e Fordismo” (GRAMSCI, 2008), em que o autor italiano observava que a aceitação e adequação do trabalhador aos processos de gestão do trabalho fordista deveriam ser acompanhados pela aderência a modos de vida compatíveis com o seu cotidiano de trabalho. A crise do regime de acumulação fordista deu lugar ao que Harvey (2012) chama regime de acumulação flexível a partir da década de 1970. Entretanto, antes de tocarmos nesse ponto, precisamos esclarecer alguns equívocos no uso do conceito de fordismo nos estudos críticos do jornalismo que podem levar a alguns equívocos em relação à natureza do trabalho de produção da notícia. O Fordismo, enquanto gestão do processo de trabalho, é um desdobramento do Taylorismo. Dessa forma, precisamos compreender o Taylorismo antes de dissecarmos o Fordismo. O Taylorismo inaugurou a moderna gerência do trabalho. Antes do Taylorismo, a gerência em oficinas e manufaturas era realizada de forma rígida e despótica. Essa forma de controle do trabalho, criada por Frederick Taylor no começo do século XX, foi utilizada em setores em que a maquinaria não tinha sido ainda adotada ou, nos dizeres de Marx (2013), havia grande dependência de trabalho vivo. Setores como a siderurgia ou fabricação de carros dependiam de trabalhadores altamente qualificados, que devido ao seu grau de conhecimento do ofício tinham condições de impor seu próprio ritmo de trabalho e possuíam salários mais altos. Taylor era conhecido por suas excentricidades. Uma delas foi, mesmo sendo um jovem oriundo de uma família de posses, ter ido trabalhar em uma siderurgia. Essa experiência permitiu a Taylor observar os trabalhadores e perceber que os proprietários das empresas sabiam muito pouco acerca do trabalho realizado no chão da oficina. Taylor começa, então, a observar seus colegas de trabalho, e a construir uma ciência da administração que tinha como base a usurpação do conhecimento do trabalhador pela empresa para seu posterior parcelamento e simplificação. Para Taylor, claro, não se tratava de uma usurpação, mas de um direito, uma vez que o trabalhador estaria à disposição da empresa durante o tempo contratado. Disponível, inclusive, para ter seu trabalho observado e estudado pela gerência. Os objetivos eram (1) baratear o preço da força de trabalho, pois as tarefas realizadas por um empregado altamente qualificado seriam feitas por um número maior de trabalhadores de baixíssima qualificação, realizando trabalhos repetitivos, e ganhando em seu conjunto menos que a sua contraparte qualificada; e (2) aumentar a produtividade evitando o que Taylor chamava de marca-passo, já que todos os movimentos dos empregados e o tempo utilizado para concluí-los seriam estudados pela gerência. “Taylor elevou o conceito de controle a um plano inteiramente novo quando asseverou como uma necessidade absoluta para a gerência adequada a imposição ao trabalhador da maneira rigorosa pela qual o trabalho deve ser executado” (BRAVERMAN, 1981, p.86). O Taylorismo ao simplificar e parcelar o trabalho consegue realizar aquilo que a maquinaria na indústria têxtil já havia logrado no século XIX: libertar o capital da habilidade dos trabalhadores. Pela via taylorista, busca-se objetivar o fator subjetivo, o trabalho vivo (MORAES NETO, 1989, p.34). O Fordismo pode ser tratado como um desenvolvimento em relação ao Taylorismo “no sentido de que se busca o auxílio dos elementos objetivos do processo (trabalho morto), no caso a esteira, para objetivar o elemento subjetivo (trabalho vivo)” (MORAES NETO, 1989, p.35). Apenas o transporte dos componentes que juntos irão dar forma à mercadoria é realizado por trabalho morto (elemento automático). Cabe a pergunta feita por Moraes Neto (2003): Por que a indústria têxtil nunca foi objeto de análise dos teóricos do fordismo? A resposta é simples, o trabalho morto (automatizado, feito por máquinas) é predominante nessa indústria desde o século XIX. O Fordismo foi a saída para a produção em massa de um produto (automóvel) até então altamente dependente de trabalho vivo. A 75 saída foi parcelar o trabalho, tornando-o extremamente repetitivo, à moda taylorista e posicionar o trabalhador em um ponto fixo para economizar tempo e aumentar a produtividade. O trabalhador da indústria automobilística antes altamente qualificado passa a realizar trabalhos repetitivos, e é alijado de qualquer decisão acerca do seu trabalho. O poder decisório no fordismo-taylorismo está na mão da gerência. Alguns pesquisadores, como Fonseca (2008), consideram que houve durante a vigência do regime de regulação fordista, um jornalismo fordista ou, como Compton e Benedetti (2010), um jornalismo Pós-Fordista o que implica na existência de um jornalismo Fordista. Esse equívoco é resultante da interpretação do conceito de Fordismo da Escola de Regulação. Dessa forma, o Fordismo é um conceito que dá conta da sociedade como um todo, e não um apenas um processo de trabalho e gestão. Por isso, muitos autores acabam transformando o fordismo no processo de trabalho vigente em todo o capitalismo durante um determinado período do século XX. Consideramos mais produtivo nomear Fordismo/Keynesianismo o modo de regulação vigente até a década de 1970, enquanto reservamos a palavra Fordismo ao processo de gestão criado por Henry Ford para produzir automóveis em massa. Para entendermos como o processo de trabalho do jornalismo interfere na produção das notícias, o conceito de Fordismo torna-se um óbice. Fonseca (2008), por exemplo, considera que há uma linha de produção imaginária composta por pauteiros, repórteres, fotógrafos, copidesque, editores, diagramadores etc. Entretanto, a maioria desses profissionais são altamente qualificados e possuem liberdade para tomar decisões durante o processo. O repórter escolhe quais fontes entrevistar, quais perguntas fazer, qual enquadramento adotar ainda que o pauteiro faça indicações prévias. O fotógrafo escolhe os ângulos das fotos, como, quem e que situação fotografar. Situação muito diversa da encarada pelo trabalhador fordista. Há divisão de trabalho e não uma linha de produção imaginária em que cada trabalhador é responsável por um trabalho extremamente repetitivo e parcelado, excluído quase que totalmente das decisões sobre o produto final. A natureza do jornalismo impõe limites à subsunção real do trabalho, sua incorporação ao capital constante através da substituição do trabalho vivo por trabalho morto; e ao controle por métodos de parcelamento extremo do trabalho e controle do tempo como Taylorismo e Fordismo. O que há em comum entre o jornalismo do século XX e a indústria automobilística fordista é que ambos se beneficiam de economias de escala. Entretanto, o Fordismo se beneficia da padronização dos modelos, o que torna o primeiro modelo depois de já projetado extremamente caro, e os subsequentes extremamente mais baratos já que os processos padronizados utilizados no fordismo aumentam a produtividade e barateiam o produto. Os trabalhadores produzirão carros do mesmo modelo, um a um. Já as empresas jornalísticas produzem apenas um jornal por dia, o primeiro exemplar impresso é extremamente caro, os restantes são meras cópias e com custo de produção drasticamente reduzido. São rodados nas gráficas sem nenhuma participação dos jornalistas. No dia seguinte, outro jornal será produzido com matérias completamente diferentes, embora haja padronização linguística e de determinadas rotinas. O processo de produção do jornalismo se assemelha ao que Marx (2013, p.416) chama de manufatura heterogênea. Marx exemplifica esse tipo de manufatura a partir da fabricação de relógios em cada trabalhador é extremamente qualificado em fazer uma parte do trabalho. No jornal, temos fotógrafos, diagramadores, repórteres de política, esportes, economia cada um dotado de extrema qualificação para lidar com sua parte do produto final. É um tipo de divisão de trabalho que existe desde os primórdios do capitalismo, nem Ford nem Taylor criou tal divisão. Por ser um trabalho qualificado e de característica intelectual, torna-se mais difícil controlá-lo. A linha editorial (BREED, 1993), o profissionalismo1 (SOLOSKI, 1993; MCCHESNEY, 2003) e Manuais de Redação foram algumas das formas de controlar o trabalho desse profissional. Por isso, consideramos adequado chamar o jornalismo feito até a informatização das redações de jornalismo manufatureiro. A partir da entrada de computadores e softwares de edição de texto, tratamento de fotos e diagramação na redação, o jornalismo passa a entrar, em nossa teorização, na era da acumulação flexível. 1 O profissionalismo guarda contradições, pois ao mesmo tempo que serve de controle, limitando o jornalista e estabelecendo determinados critérios, também serve como escudo para pressões oriundas de fora da redação. 76 O Jornalismo Flexível A partir da década de 1970, o arranjo Fordista/Keynesiano passa a entrar em crise por uma série de razões. Questionamento de minorias como mulheres e negros, crise do petróleo, estagflação2 fazendo com que todo o sistema de acordo de classes vigente até então seja revisto. No mundo do trabalho, vários direitos trabalhistas passam a ser revistos, as empresas passam a se reorganizar. As grandes empresas que usam processos de fordistas de produção e gestão começam a adaptar o toyotismo/ohnoísmo para sua realidade. Esse momento do capitalismo passa a ser chamado por aqueles que seguem os preceitos teóricos da Escola da Regulação de Pós-Fordismo. Contudo, é o geógrafo norte-americano David Harvey (2012), também seguindo os preceitos da escola da regulação, que vai cunhar o termo que melhor define o capitalismo após a derrocada do Fordismo/Keynesianismo: regime de acumulação flexível. A flexibilidade diferentemente dos termos Fordismo/Pós-Fordismo é a marca desse novo momento do capitalismo apresentando um regime de acumulação e um modo de regulação coerentes sem o risco de gerar as confusões conceituais do par Fordismo/Pós-Fordismo. A flexibilidade no ambiente de trabalho diz respeito aos horários de trabalho, funções exercidas pelo trabalhador, local de trabalho etc. fazendo muitas vezes com que o trabalho invada a esfera privada e subtraia horas do tempo livre das pessoas. Flexibilidade é um termo polissêmico. Rosso (2017, p.21) chama atenção para o fato de que “a flexibilidade de horas foi inventada pelos trabalhadores”. “Trabalhadores livres, como aqueles entre tribos indígenas, camponeses, pequenos produtores rurais e urbanos, sempre decidiram em que momentos trabalhar”. A jornada de trabalho rígida, longa e repetitiva, foi uma forma de organizar o trabalho de modo a fazer com que o trabalhador produzisse muitas mercadorias e deixasse parcelas maiores de excedente. A flexibilidade ganhou ares de rebeldia e resistência nos primórdios do capitalismo quando os trabalhadores se agarravam ferrenhamente a práticas como a “santa segunda-feira” que consistia em chegar mais tarde ao local do trabalho no começo da semana (Idem). A rigidez da jornada de trabalho segue durante o Fordismo/Keynesianismo, e é a base para determinadas reivindicações trabalhistas como horas extras e intervalos de descanso. No contexto do modo de regulação vigente na acumulação flexível, o termo ganha novos significados. A flexibilidade de horário surge como um modo de extensão do mais trabalho como forma de evitar pagamento de horas extras e do empregador organizar as horas de trabalho de acordo com sua conveniência. Com o afrouxamento das legislações trabalhistas, fruto do colapso do Fordismo/Keynesianismo, surge a flexibilidade numérica, facilidade para as empresas aumentarem e diminuírem o número de trabalhadores. Em razão da flexibilidade numérica, surge a funcional, a capacidade do trabalhador de ocupar outras funções dentro da empresa, necessidade que surge em razão dos cortes permitidos pela flexibilidade numérica. As empresas almejam também obter flexibilidade funcional ou atitudinal, isto é, que o trabalhador que sobreviveu aos cortes se torne continuamente flexível e adaptável, um trabalhador flexível, que toma conta da sua carreira, obtém qualificações, mostra-se polivalente e acumula mais tarefas a desempenhar. A flexibilidade funcional requer que seja implementada a flexibilidade numérica, pendendo como uma espada de Dâmocles sobre a cabeça dos empregados que permanecem nos postos de trabalho: ou assumem as novas funções ou são expelidos dos empregos. A flexibilidade numérica precede a funcional. Os sobreviventes dos cortes de empregos encontrarão “incentivos” para alargar suas qualificações profissionais no aumento das responsabilidades dos empregados e no aumento das cargas de trabalho. (ROSSO, 2017, p.41) O jornalismo começa a entrar na era da flexibilidade com a informatização das redações 2 Estagflação é um cenário macroeconômico em que a estagnação do crescimento econômico é acompanha de inflação. No período fordista, esse fenômeno acontecia devido à força dos sindicatos que impediam que as perdas recorrentes da recessão econômica fossem repassadas ao salário dos trabalhadores. Dessa forma, a classe operária continuava com poder de compra o que redundava em inflação mesmo em um cenário de recessão. 77 (FONSECA, 2008; BALDESSAR, 2003). O uso de terminais de computadores interligados e softwares de edição de texto, tratamento de fotos, diagramação etc. permitem a simplificação destes trabalhos permitindo que menos profissionais sejam responsáveis pela diagramação e tratamento de fotos dos jornais. O que há nesse caso é uma simplificação do trabalho pelo software tirando dessas tarefas seu caráter artesanal, mas sem expelir seu caráter subjetivo uma vez que o trabalhador ainda toma decisões em relação às tarefas. No caso dos editores de texto que apresentam correção automática e pré-diagramação do texto, medindo-o por centimetragem ao invés de caracteres ou palavras há (1) a eliminação do copidesque, uma vez que o repórter passa a corrigir seu próprio texto com a ajuda do editor e (2) outra simplificação do trabalho do diagramador, a partir de softwares, que começa a se espraiar por outras etapas do processo de produção noticiosa. O segundo passo para a flexibilização é o advento da internet a partir de 1995, que vai levar à convergência de linguagens a partir de meados da primeira década do século XXI. A digitalização vai permitir a integração de diferentes linguagens em uma mesma página web. Áudio, som e imagem passam a ser digitalizados tendo uma linguagem comum composta por zeros e um. Além disso, câmeras de vídeo, fotografia, notebooks com softwares de edição de texto, áudio e vídeo passam a permitir que o jornalista produza matérias sobre o mesmo tema para diferentes meios da mesma empresa, criando as condições tecnológicas para o que Salavérria e Negredo (2009) chamam de redações integradas que apresentam quatro tipos de convergência: tecnológica, administrativa, profissional e de conteúdo. Esse tipo de organização do trabalho depende de uma reorganização profunda nas estruturas das empresas jornalísticas. Se o toyotismo/ ohnoísmo foi a forma de organizar o trabalho na indústria automobilística japonesa, as redações integradas cumprem papel semelhante. A internet também traz novos competidores e modelos de negócios que acabam por causar uma crise profunda na indústria de jornais e impressos. A cada ano que passa, os jornais perdem leitores, e apesar de ganharem audiência na internet, esse novo ambiente apresenta uma concorrência mais pulverizada fazendo o valor da publicidade baixar drasticamente afetando os ganhos das empresas. Nesse caso, a flexibilidade é adotada vorazmente no ambiente de trabalho jornalístico. Os jornalistas acabam por pagar pelas dificuldades da indústria com acúmulo de tarefas e trabalho precário. A tecnologia segundo Garcia (2015) traz uma série de flexibilidades que terminam por precarizar o trabalho jornalístico. A flexibilidade temporal, por exemplo, acentua-se com as novas tecnologias, uma vez que não há um horário de fechamento. Essa flexibilidade já existia quando a publicação precisava descolocar um contingente de trabalhadores para cobrir eventos que aconteciam fora do horário de funcionamento da redação. Entretanto, com o fim do horário de fechamento em meios digitais, essa tendência é ampliada. A flexibilidade espacial também passa a existir, pois a internet é um meio virtual e permite menor uso de instalações especializadas. Ao mesmo tempo que a flexibilização das relações de trabalho facilita a contratação de freelancers precarizados, permite que meios alternativos consigam ter a estrutura necessária para existir a menor custo. O vínculo dos jornalistas com as empresas também se transforma devido ao “dinamismo e a diversidade de conteúdos, assim como as mudanças no mercado de trabalho” (GARCIA, 2015, p.63), levando à flexibilidade contratual. A possibilidade anterior de o jornalista ter a carreira quase toda vinculada a um meio ou grupo de comunicação é cada vez menos comum, tornando-se recorrente a vinculação do profissional com diversos cibermeios e projetos de conteúdo com regimes contratuais mais flexíveis e com pior renumeração. A flexibilidade empresarial, que possui relação com a flexibilidade anterior, repousa na “crescente desassociação entre jornalistas e empresas paras as quais trabalham, possibilitando que desenvolvam seus próprios projetos à margem das empresas de comunicação” (Idem). Esse tipo de flexibilidade também pode ser usado a favor do trabalhador uma vez que jornalistas podem montar iniciativas jornalísticas em regime de cooperação. Por fim temos, a flexibilidade funcional, chamada por Garcia de polivalência, e possibilitada pela convergência midiática. Salaverría e Negredo (2009) observam que a versatilidade de tarefas é um fenômeno que vem gradualmente se impondo aos jornalistas. Se antes tarefas como escrever, apurar, editar eram separadas, com o passar do tempo os jornalistas foram acumulando essas tarefas. Nas redações multimídia, dois tipos de versatilidade estão postos: a respeito das tarefas e a respeito das plataformas midiáticas. O primeiro tipo de versatilidade está relacionado à acumulação de tarefas 78 instrumentais como tirar fotos, apurar, escrever e editar no caso do impresso ou filmar, editar, escrever, produzir no caso da TV. A versatilidade de tarefas instrumentais já é comum nos meios impressos. Nos outros meios, esse tipo de flexibilização vem tornando-se corriqueira nos casos em que é necessário cobrir acontecimentos em locais remotos. De acordo com Salaverría e Negredo (2009, p.25), esse tipo de versatilidade “não é nova, e jornalistas devem aprender a lidar com ela”. O segundo tipo é o que Salaverría e Negredo (2009) chamam versatilidade midiática. O tipo de versatilidade que tornaria o jornalista capaz de trabalhar em diferentes meios. Esse tipo de flexibilidade funcional, acontece, segundo Salavérria e Negredo, em casos de trabalhadores atuando como correspondentes. “Quando eles [jornalistas] trabalham para um grupo multimídia, é prática comum atualmente que eles apareçam em várias mídias para a mesma companhia” (SALAVÉRRIA e NEGREDO, 2009, p.25). Dois comentários precisam ser feitos sobre as consequências das relações integradas: (1) as antigas empresas de jornalismo ao mesmo tempo que sofrem com a concorrência de novos capitais são favorecidas pelo fato de possuírem concentração horizontal, vertical e cruzada dos meios, não só podendo aproveitar mão de obra preexistente, mas cortar custos com a própria mão de obra, maquinaria e instalações; e (2) o fato de os autores considerarem que os jornalistas precisam se adequar aos novos tempos, sem a devida reflexão, é consonante com as novas formas de engajamento do indivíduo ao regime de acumulação flexível, a um novo modo de regulação, ou ainda ao Novo Espírito do capitalismo como enfatizam Boltanski e Chiapello (2009) Tal organização do trabalho aumenta a extração do que Marx (2013, p.390) chamou maisvalia relativa, ou seja, o tempo de trabalho necessário para o jornalista produzir o suficiente para sua reprodução diminui, aumentando seu mais-trabalho, já que sua jornada não é retraída. “O capital constante, os meios de produção, considerados do ponto de vista do processo de valorização, só existem para absorver trabalho e, com cada gota de trabalho, uma quantidade proporcional de maistrabalho”. (Idem, p.330). A tecnologia permite que ao mesmo o jornalista assuma diversas funções simultaneamente, rompendo os limites da subsunção ao trabalho jornalístico (BOLAÑO et al., 2017, p82), e que a audiência de seu trabalho seja medida instantaneamente a cada segundo. Assim, o profissional é sobrecarregado com mais textos e pautas, tornando difícil a produção de matérias que partam da singularidade dos fatos para tratar do particular e do universal (GENRO, 1987), fazendo com que o trabalho jornalístico perca qualidade. Os jornalistas, nesse novo ambiente, sofrem um processo simultâneo de desqualificação e requalificação (BOLAÑO et al., 2017, p.95-6) A requalificação materializa-se na necessidade de aprender a manejar diversas linguagens e tecnologias simultaneamente, decorrente da flexibilidade de funções. Já a desqualificação é um processo decorrente do aumento de mudanças nos currículos e à crescente demanda por produtividade. “As atividades próprias do jornalista vão-se, assim, de um modo geral, esvaziando, sendo simplificadas, enquanto outras, antes ligadas a áreas como a informática, ganham relevância e passam a fazer parte das ferramentas intelectuais que o jornalista é obrigado a dominar” (Idem, p.82). As mudanças dos currículos buscam adequar os novos trabalhadores aos desafios da profissão, e acabam por tirar disciplinas ligadas a outras ciências humanas. Contudo, não conseguem incorporar esse conhecimento em outras disciplinas. Se antes os alunos de jornalismo tinham contato com disciplinas como Sociologia, Ciência Política, Economia e Antropologia de forma descontextualizada das práticas profissionais; as mudanças curriculares gradativas foram incapazes de absorver esses conhecimentos no cotidiano educacional dos graduandos. Esse movimento, se dota os jornalistas de uma grande capacidade de manejar diversas linguagens, ao mesmo tempo; tira o instrumental crítico, como lembram Bolaño et al (Ibidem), que era comum ao repertório dos jornalistas. O ambiente vigente nas redações atualmente também não favorece o movimento da singularidade dos fatos para o particular e o universal. Há uma mudança nos próprios critérios de noticiabilidade buscando o aumento imediato de audiência, como observa Fonseca (2008). O historiador Frank Foer chama atenção para os absurdos criados por essa situação. “A mídia está obcecada com o número de cliques que cada artigo recebe. Na maioria das redações há uma tela enorme mostrando a popularidade de cada artigo em determinado momento” (FOER, 2018). Segundo o historiador, os editores fazem uma análise de custo-benefício em que uma matéria sem potencial para se tornar popular não será pautada. “Isso distorce o trabalho, cria incentivos péssimos, em vez de ir atrás de coisas que são importantes, vão atrás de coisas que são populares. Existe um ciclo de realimentação de 79 ver o que o público quer e tentar produzir notícias que o agradem” (Idem). Os desafios para a profissão são de duas ordens: (1) os jornalistas passarem a se enxergar como trabalhadores e (2) a existência de um currículo que garanta ao mesmo tempo que os futuros jornalistas possuam capacidade para lidar com diversas linguagens e ferramentas tecnológicas; e serem capazes de usar o instrumental crítico oriundo das diversas disciplinas das ciências humanas. Desqualificação e Requalificação: o Dilema da Formação de Jornalistas O debate sobre os impactos dos processos de gestão do trabalho e da tecnologia na desqualificação/ requalificação do trabalhador são alvo de um profundo debate dentro da teoria marxista. Entretanto, esse debate é feito dentro do contexto da indústria automobilística, eletroeletrônica, química etc. A desqualificação/requalificação dos trabalhadores de bens simbólicos produzidos dentro do contexto da indústria cultural, e mais especificamente dos trabalhadores engajados na produção de notícias, foram alvo de poucas pesquisas até o momento. Fonseca (2008) considera existir uma maior qualificação devido ao maior número de linguagens a serem dominadas e à obrigatoriedade do domínio de línguas estrangeiras. O trabalho jornalístico possui características próprias por isso vamos levar em conta as especificidades desse ofício para produzir uma análise marxista sobre o tema. Para isso faremos a análise crítica de algumas referências da tradição marxista para essa discussão como Braverman (1981) e Moraes Neto (2003). Retomemos então a discussão de Marx (2013) sobre a gradual passagem das oficinas de ofício, passando pelas manufaturas, até a grande indústria que dispõe de maquinaria. Com a advento da manufatura, o capitalista já consegue parcelar o trabalho que antes estava nas mãos de artesãos, capazes de dominar completamente seu ofício, aumentando a produtividade. Nessa fase, o conhecimento do artesão é parcelado, e o trabalhador sofre um processo de desqualificação, perdendo a capacidade de compreender a totalidade da produção. Aqui o trabalho do artesão é incorporado ao capital via assalariamento, é a subsunção formal. Com a primeira Revolução Industrial surgem as primeiras máquinas em que o operário atua como força motriz e ao mesmo tempo corrige erros da máquina. Surge assim o começo da subsunção real do trabalho ao capital, quando o trabalho, através das máquinas, passa a ser incorporado ao capital constante da empresa. O processo de subsunção real seria completado no momento em que o trabalho vivo passasse a ser desnecessário. Um passo para isso foi dado na segunda revolução industrial, a partir de meados do Século XIX, quando a descoberta da eletricidade permitiu a criação de uma máquina com força motriz autônoma do homem. A partir daí a tarefa do operário é limitada a vigiar a máquina, sendo o ritmo do trabalho ditado pelo ritmo da máquina. Há, dessa forma, uma desqualificação brutal do operário. Braverman (1981) considera que a industrialização e a chegada de novas tecnologias tornam a educação para o trabalho algo desprovido de conteúdo. A qualificação passaria a servir apenas para que o operário realize tarefas simples e repetitivas. Sendo assim o capital, parcelando o trabalho e diminuindo o tempo necessário para qualificar o trabalhador para determinada função, achataria os salários e facilitaria a criação rápida de um exército de reserva. Moraes Neto (2003) critica a posição de Braverman ao mostrar que as máquinas flexíveis e programáveis adotadas pela indústria em diversos ramos na verdade exigiam a qualificação de uns poucos operários responsáveis pela programação da máquina, sendo obrigados a dominarem conceitos abstratos, e emprego de trabalhadores qualificados como engenheiros. Moraes Neto considera que o erro de Braverman é considerar que o Fordismo, um desenvolvimento da manufatura, seria o processo de gestão de trabalho mais avançado no século XX e usá-lo como a medida da degradação e qualificação do trabalho. O que há, na verdade, é a diminuição do emprego de trabalho vivo devido à sua substituição por trabalho morto: um processo brutal de subsunção real do trabalho ao capital, e sua consequente diminuição de postos de trabalho no setor. O jornalista realiza um trabalho cujo objetivo é produzir bens simbólicos. Contudo, apesar de estar submetido ao objetivo do capital que é gerar lucro, o fator subjetivo do trabalho ainda está fortemente presente. Nossa posição é de que a forma como o trabalho jornalístico vem sendo realizado apresenta como dito anteriormente, dois processos, desqualificação e requalificação. A desqualificação se dá no momento em que o jornalista passa a não ser municiado do conhecimento de outras disciplinas 80 das Ciências Humanas, que oferecem um instrumental crítico para o jornalista. A requalificação se dá na introdução de disciplinas que tem como norte o ensino de jornalismo em ambiente de convergência. O jornalista passa a ser dotado das habilidades de trabalhar simultaneamente com linguagens dos diferentes meios, usar softwares de edição de foto, dominar o HTML etc. O ensino em jornalismo deve fazer um movimento em direção a uma verdadeira integração do domínio das técnicas e linguagens e da capacidade de o jornalista fazer uma leitura da realidade a partir da singularidade dos fatos. A proposta de Medistch (1992) seria não abandonar os conceitos das ciências sociais, mas usá-los para o entendimento do cotidiano, que é a matéria-prima do jornalismo. Os conceitos passariam “a ser utilizados como ferramentas para desvendar a realidade, que é o objeto de estudo, e não mais como objetos em si” (Idem, p.86-7). As aulas práticas ganhariam conteúdo teórico, e as teóricas estariam enraizadas na prática. Outra questão a ser enfrenta é a forma como a convergência e as novas tecnologias são apresentadas nos currículos. Machado (2010, p.17) enumera cinco equívocos cometidos no ensino da convergência nos cursos de jornalismo: (1) o ensino da convergência não é importante por atender a demandas das corporações; (2) a convergência deve ser incorporada como mais uma disciplina nos currículos; (3) o ensino da convergência deve ser centrado em aspectos tecnológicos em detrimento dos conceituais; (4) a consolidação da convergência depende apenas de estudos conceituais sobre o tema e (5) o fator cultural exerce pouca influência sobre a consolidação da convergência jornalística. Iremos deter-nos ao primeiro equívoco apontado por Machado. A aplicação de qualquer avanço tecnológico aos processos de trabalho depende da correlação de forças do momento histórico em que tal avanço é aplicado ao processo produtivo. Além de não poderem correr o risco de não preparar os alunos para a realidade do mercado de trabalho, os professores de jornalismo não podem cair em um ludismo tardio, pois estariam desqualificando os alunos a produzirem suas próprias saídas para a situação atual. A convergência e as redações integradas vêm acabando com postos de trabalho e atuando como fator de diminuição de custos como no caso do Infoglobo em que 30 profissionais foram demitidos no processo de integração entre os jornais O Globo e Extra (SCARDOELLI, 2017). Outro caso ocorrido também no Grupo Globo é uma boa ilustração das novas condições de trabalho. Além do clima de insegurança nas redações do Grupo, os jornalistas do canal por assinatura GloboNews são obrigados a produzir vídeos para o portal de internet G1, ambos de propriedade do Grupo Globo, durante as matérias. Inclusive, os jornalistas do canal pago ostentam microfones que trazem os logotipos tanto do G1 quanto da GloboNews (CASTRO, 2017). O ensino de um jornalismo emancipador capaz de conter a particularidade e a universalidade a partir da análise de fatos singulares não pode furtar-se de usar os avanços tecnológicos, pois estes são construções coletivas construídas a partir da acumulação primitiva de conhecimento (BOLAÑO, 2000). A tecnologia não pode ser encarada apenas como ferramenta de opressão, mas também como possibilidade de libertação, uma vez que como o próprio Marx (2011) defende que o capitalismo é a própria contradição em processo. O exemplo usado por Marx para a maquinaria desautoriza qualquer leitura tecnófoba acerca do uso de novas tecnologias no mundo do trabalho. [...] se é somente na maquinaria e em outras formas de existência do “capital fixo”, como ferrovias etc. […], que o capital confere a si mesmo a forma adequada como valor de uso no interior do processo de produção, isso de modo algum significa que esse valor de uso – a maquinaria em si – seja capital, ou que sua existência como maquinaria seja idêntica à sua existência como capital, da mesma maneira que o ouro tampouco deixaria de ter seu valor de uso como ouro quando não fosse mais dinheiro. A maquinaria não perderia seu valor de uso quando deixasse de ser capital. Do fato de que a maquinaria é a forma mais adequada do valor de uso do ‘capital fixo’ não se segue de maneira nenhuma que a subsunção à relação social do capital seja a melhor e mais adequada relação social de produção para a aplicação da maquinaria. (MARX, 2011, p. 583) As novas tecnologias, apesar de serem usadas para romper os limites da subsunção do trabalho e redundarem em maior controle do trabalho devido ao aumento do exército de reserva de trabalhadores da notícia, não devem ser vistas exclusivamente como instrumentos de opressão. O 81 ensino de jornalismo deve encarar as novas tecnologias e a convergência como ferramentas para um jornalismo de qualidade. Entretanto, o ensino do jornalismo também deve incorporar, para atingir esse objetivo, uma visão do jornalista não só como profissional, mas também como trabalhador. Para que o futuro trabalhador da notícia tenha uma perspectiva histórica do significado de seu próprio trabalho. As práticas precisam ser repensadas de acordo com seu contexto histórico. Só assim os jornalistas saídos das universidades serão capazes de “suspender o cotidiano” e repensar suas rotinas de trabalho, como prescreve Moretzsohn (2007), realizando um trabalho não só emancipado, mas emancipador. Conclusão Em setores de trabalho intelectual intenso como o jornalismo, a subsunção e o controle são bem mais difíceis de serem alcançados pelo capital. As tentativas de objetivar o elemento subjetivo do trabalho encontram claros limites. Mesmo a tecnologia informática e multimídia que passa a diminuir o número de postos de trabalho e permitir a flexibilidade de tarefas ainda assim não consegue fazer com que o capital consiga realizar totalmente o passo da subsunção formal para a real, pois a quantidade de trabalho vivo necessário ainda é grande. Entre as dificuldades de substituir o trabalho vivo pelo trabalho morto no jornalismo estão (1) o contato e a manutenção das fontes, uma relação interpessoal que os jornalistas constroem com suas fontes, sendo um conhecimento pessoal e que o profissional pode manter em segredo por questões éticas, (2) o estilo textual que é uma habilidade valorizada no mercado e que individualiza o jornalista funcionando como uma assinatura, (3) a apuração e interpretação de dados, que sustentam a retórica ditada pela linha editorial da publicação. Para que o jornalismo sirva como arma hegemônica, o trabalho vivo continua extremamente necessário. Mesmo com os avanços de Bots e Machine Learning não há qualquer possibilidade de substituição de jornalistas nessas tarefas em um futuro próximo. Além disso, a tecnologia que tira postos de trabalho e precariza os que restaram também derruba antigas barreiras de entradas que impediam a entrada de novos competidores. Novas possibilidades para um jornalismo emancipador, que parta da singularidade do fato para sua universalidade, surgem com tecnologias que barateiam a produção de conteúdo como o uso de páginas de internet e redes sociais ao invés de papel, softwares que editam texto, vídeo e áudio de forma profissional. O jornalista, com as novas tecnologias, pode deixar de ser um trabalhador parcelado, e dominar várias linguagens. A tecnologia é contraditória, e possui aspectos libertadores. Contudo, para isso, é importante não tratarmos os jornalistas como trabalhadores apenas nas Teorias Críticas, mas que o mesmo também se enxergue como trabalhador. Um ponto de partida seria uma disputa coletiva pela diminuição de pautas, o que permitiria ao jornalista trabalhar em uma ou duas pautas durante o dia inteiro, publicando conteúdos multimídias sobre uma mesma pauta durante o dia. Dessa forma, as reportagens seriam mais aprofundadas e o jornalista não ficaria preso apenas a uma linguagem, dominando os mais diversos aspectos do ofício. Para isso, o currículo deve preparar o jornalista para ao mesmo tempo lidar com as pressões patronais em relação à subsunção e ao controle do seu trabalho, e buscar alternativas proporcionadas pelos avanços tecnológicos para coletivamente quebrar as barreiras impostas pelo capital para uma informação livre e emancipatória. Referências BALDESSAR, Maria José. A Mudança Anunciada: o Cotidiano dos Jornalistas com o Computador na Redação. Florianópolis: Editora da UFSC/Insular, 2003. BOLAÑO, Ceśar. Indústria Cultural, Informação e Capitalismo. São Paulo: Hucitec/Pólis, 2000. ______________. Trabalho Intelectual, Comunicação e Capitalismo. A Reconfiguração do Fator Subjetivo na Atual Reestruturação Produtiva. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, Rio de Janeiro, no 11, p. 53-78, dezembro 2002. pp.53-78 BOLAÑO, César Ricardo Siqueira; HERSCOVICI, Alain; BRITTOS, Valério; MOURA, Fabio; MENEZES, Paulo Vinícius; VIEIRA, Eloy. Economia política da Internet Volume 2: Jornalismo Online. São Cristóvão : Editora UFS, 2017 BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Eve. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 82 2009. BRAVERMAN, Harry. Trabalho e Capital Monopolista. A Degradação do Trabalho no Século XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. BREED, Warren. Controlo Social na Redacção. Uma Análise Funcional. In: TRAQUINA, Nelson (Org). Jornalismo: Questões, Teorias e “Estórias”. 1. ed. Lisboa: Veja, 1993. p. 152 – 166. CASTRO, Daniel. Repórteres da Globo terão de produzir para internet e temem novas demissões. Notícias da TV. 18 out 2017. Disponível em: http://noticiasdaTV.uol.com.br/noticia/televisao/reporteres-da-globoterao-de-produzir-para-internet-e-temem-novas-demissoes--17329# Acessado em: 17 dez 2017 COMPTON, James R.; BENEDETTI, Paul. Labour, new media and the institutional restructuring of journalism. Journalism Studies, v. 11, n. 4, p. 487-499, 2010. GARCIA, Guillermo López. Pediodismo Digital. Redes, Audiencias y Modelos de Negocio. Salamanca: Comunicación Social, 2015. GRAMSCI, Antônio. Americanismo e Fordismo. São Paulo: Hedra, 2008. FOER, Frank. ‘Fico feliz de ver o pacto com o diabo ser repensado’, diz crítico às redes. Folha de São Paulo. São Paulo, 22 jan 2008. Mercado. Entrevista concedida à Patrícia Campos Mello. Disponível em: http://www1. folha.uol.com.br/mercado/2018/01/1952306-fico-feliz-de-ver-o-pacto-com-o-diabo-ser-repensado-dizcritico-as-redes.shtml. Acesso em 22 jan. 2008. FONSECA, Virgínia Pradelina da Silveira. Indústria de Notícias. Capitalismo e Novas Tecnologias no Jornalismo Contemporâneo. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008. HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola, 2012. LIPIETZ, Alain. Miragens e Milagres. Problemas da Industrialização no Terceiro Mundo. São Paulo: Nobel, 1988. MACHADO, Elias. Cinco Teses Equivocadas sobre o Ensino em Tempos de Convergência. In: MACHADO, Elias; TEIXERA, Tattiana. Ensino de Jornalismo em Tempos de Convergência. Rio de Janeiro: E-papers, 2010. p.13-30. MARX, Karl. O Capital. Crítica da Economia Política. Livro 1. O Processo de Produção do Capital. São Paulo: Boitempo, 2013. ___________. Grundrisse: Manuscritos Econômicos de 1857-1858. Esboços da Crítica da Economia Política. São Paulo/Rio de Janeiro: Boitempo/Ed. UFRJ, 2011. MEDITSCH, Eduardo. Profissão derrotada, ciência não legitimada: é preciso entender a institucionalização do campo jornalístico. Brazilian Journalism Research, v. 6, n. 1, p. 97-113, 2010. __________________. O Conhecimento do Jornalismo. Florianópolis: UFSC, 1992. MCCHESNEY, Robert W. The Problem of Journalism: A Political Economic Contribution to an Explanation of the Crisis in Contemporary US Journalism. Journalism Studies, v. 4, n. 3, p. 299-329, 2003. MORAES NETO, Benedito Rodrigues de. Marx, Taylor, Ford: As Forças Produtivas em Discussão. São Paulo: Brasiliense, 1989. _________________________________. Século XX e Trabalho Industrial. Taylorismo/Fordismo, Ohnoísmo e Automação em Debate. São Paulo: Xamã, 2003. MORETZSOHN, Sylvia. Pensando Contra os Fatos. Jornalismo e Cotidiano: do Senso Comum ao Senso Crítico. Rio de Janeiro: Revan, 2007. ROSSO, Sadi Dal. O Ardil da Flexibilidade. Os Trabalhadores e a Teoria do Valor. São Paulo: Boitempo, 2017. SALAVÉRRIA, Ramón; NEGREDO, Samuel. Integrated Journalism. Media Convergence and Newsroom Organization. Barcelona: Editorial Sol 90, 2009. SCARDOELLI, Anderson. O Globo e Extra unificam redação e mais de 30 são demitidos. Portal comunique-se 19 jan 2017. Disponível em: https://portal.comunique-se.com.br/o-globo-demite-jornalistasdas-editorias-de-cultura-economia-e-esportes/ Acesso em: 17 dez 2017. SOLOSKI, Jonh. O Jornalismo e o Profissionalismo: Alguns Constrangimentos no Trabalho Jornalístico. In: TRAQUINA, Nelson (Org). Jornalismo: Questões, Teorias e “Estórias”. 1. ed. Lisboa: Veja, 1993. p.91100 83