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A Ciência Política de A. Gramsci

2016, Gramsciana. Rivista Internazionale di Studi su Antonio Gramsci

Este trabalho tem como objetivo analisar as notas do cárcere referentes à teoria e ao método da Ciência Política, bem como refletir sobre a articulação entre ciência e ação, ou, pode-se dizer, entre teoria e prática. Estas notas como veremos se dedicam, por um lado, à interpretação de Maquiavel e às polêmicas com seus modernos continuadores na Itália e, por outro lado, à renovação do marxismo frente às controvérsias com o idealismo e com o materialismo vulgar no interior do movimento socialista.

Gramsciana, n. 3 (2016), pp. 99-130 Luciana Aliaga A Ciência Política de A. Gramsci Introdução Sob o título Machiavelli: Elementi di Politica, a nota de redação única registrada nos Quaderni del Carcere por Antonio Gramsci em fevereiro de 1933, chama a atenção para o fato de que os princípios mais elementares são os primeiros a serem esquecidos. De acordo com o autor, o elemento fundamental a ser lembrado é que “existem realmente governantes e governados, dirigentes e dirigidos. Toda ciência e arte política se baseiam sobre este fato primordial, irredutível (em certas condições gerais)”1. Em outros termos, a existência de governantes e governados como uma realidade política – e um dos componentes basilares do pensamento político de Maquiavel – constitui para Gramsci o elemento mais fundamental da ciência e da prática política. Contudo, o título desta nota permite também entrever outras fontes teóricas da concepção gramsciana de ciência política porquanto coincide parcialmente com pelo menos duas obras de autores contemporâneos a Gramsci: Elementi di Scienza Política (1896), de Gaetano Mosca, e Elementi di Política, publicada em 1925 por Benedetto Croce2. Croce e Mosca representam de fato dois polos de referência essenciais para a teoria política italiana da primeira metade do século XX3, com os quais Gramsci estabelece um proveitoso contato críti1 Cfr. Q. 15, §4, p. 1752. Para facilitar a citação passaremos a utilizar a letra Q. seguida do número do caderno, parágrafo e página da edição crítica Gerratana, para nos referir aos Quaderni del Carcere, de A. Gramsci. 2 Ambas são citadas nos Quaderni (Cfr. V. Gerratana, “Apparato critico”, in A. Gramsci, Quaderni del Carcere, v. 4, Torino, Einaudi, 2007a, pp. 3045, 3066). 3 Conforme destaca Ettore Albertoni, Apesar da distância claramente estabelecida entre seus específicos conteúdos, é possível identificar conexões conceituais entre a doutrina de Croce e a de Mosca nos anos vinte e trinta no que se refere à defesa do Estado liberal, entendido por ambos como premissa para o desenvolvimento e melhoramento do próprio liberalismo. Neste sentido, diz Albertoni: “frente ao fim do Estado liberal, o historicismo de Croce e o positivismo de Mosca representam, do ponto de vista doutrinário, um elemento capaz de unificar formulações e métodos muito diversos” (E.A. Albertoni, Storia delle dottrine politiche in Itália. Milano: Mondado- saggi 100 Luciana Aliaga co. Conforme já observou U. Cerroni4, Gramsci, em seu “repensar do marxismo” em constante confronto com a tradição cultural vigente, alcançou uma elaboração suficientemente articulada capaz de competir com a teoria política oficial. O autor, desta forma, teria expandido a teoria política do socialismo para a problemática geral da ciência política ao estabelecer um diálogo crítico com um universo variado dentre os expoentes mais destacados do pensamento político na Itália, que se estende “de Croce a Pareto, de Michels a Mosca”5. A ciência política de Gramsci, portanto, é declaradamente devedora do pensamento maquiaveliano, contudo, é também resultado da crítica e, em certa medida, da assimilação da filosofia de seu tempo. Não se pode dizer, no entanto, que a leitura gramsciana de Maquiavel seja convencional ou literal, pelo contrário, é possível afirmar que o pensamento do secretário florentino é “atualizado” por Gramsci, de forma que aparece nos Quaderni profundamente entrelaçado aos temas e problemas políticos das primeiras décadas do século XX, colocados, sobretudo por K. Marx, pelo marxismo e pelo movimento socialista. Por esta razão, neste artigo buscaremos tratar tanto da fonte “maquiaveliana” da ciência política de Gramsci, o que implica em trabalhar com sua herança e, neste caso enfocaremos especialmente o pensamento elitista, não de G. Mosca, mas aquele de Vilfredo Pareto e, por outro lado, a tarefa por nós proposta exige também explicitar como o marxismo – principalmente diante dos problemas colocados pelo socialismo da primeira metade do século XX e pelo neoidealismo croceano – consiste no substrato da ciência da política nos Cadernos do Cárcere. Vilfredo Pareto será o interlocutor privilegiado no presente tra6 balho para tratar da herança de Maquiavel na Itália – ou, melhor dizenri, 1985, p. 368), mostra disto é a utilização por Croce, na Storia d’Italia, de termos mosquianos como classe política e classe dirigente (Cfr. idem). 4 U. Cerroni, Teoria política e socialismo. Lisboa, Europa-America, 1976, pp. 142-143. 5 Ivi, p. 157. 6 Ainda ue não haja registro entre as obras que compunham a biblioteca do cárcere, Gramsci faz diversas menções ao Trattato di Sociologia Generale, principal obra de Vilfredo Pareto, nos Quaderni del Carcere (Cfr. Q. 7, § 36, p. 887 - reescrita no Q. 11, § 24, p. 1427-1428 - e Q. 14, §9, p. 1663 – nota de redação única). Registra-se ainda um pequeno texto de Pareto – Fatti e Teorie – entre os livros a que Gramsci teve acesso na prisão. Não obstante as referências diretas ao professor de Lausanne sejam escassas no interior dos Quaderni, a análise e interpretação da divisão política entre governantes e governados, mais precisamente, do fenômeno da permanência histórica das minorias governantes – que conforma a “Teoria das elites” e consiste num dos principais temas do Trattato di Sociologia Generale – encontra-se no âmbito da obra grams- A Ciência Política de A. Gramsci 101 do, da teoria das elites – porque, enquanto Mosca jamais revogou sua fé positivista e esteve pouco interessado em discutir os seus próprios pressupostos filosóficos, Pareto operou um aprofundamento metodológico que o conduz no Trattato di Sociologia Generale a uma elaborada exposição dos problemas epistemológicos, com os quais são já implicitamente rompidos os limites da interpretação positivista, e a partir daí inicia um positivismo revisitado metodologicamente7. É importante observar também que o pensamento político de Pareto – presente no interior de seu sistema de sociologia – se edifica a partir de um intenso debate com o marxismo e com o socialismo em suas principais problemáticas, entre as quais se deve destacar as questões envolvidas na mudança social, isto é, na teoria da revolução. De acordo com Albertoni8 no final do século XIX as doutrinas políticas na Itália se desenvolvem em uma dupla direção: uma sob o impulso da sociologia de Mosca e Pareto, e a outra sob o influxo do marxismo de Antonio Labriola. A primeira – como sublinha Giuseppe Santonastaso – conduz a teoria das elites, e a outra à revisão do marxismo e das consideradas correntes do determinismo econômico como aquele de Achille Loria9. Gramsci insere-se nesta polêmica como adversário tanto das correntes ditas “sociológicas” quanto dos revisionismos no interior do marxismo. Com relação a este último, deve-se destacar a grande importância dada por Gramsci a Croce – como líder da cultura europeia e como líder das tendências revisionistas – para o qual dedica um inteiro caderno monográfico10. Sendo assim, propomos neste trabalho analisar as notas do cárcere nas quais Gramsci levanta elementos tanto para a definição teóciana e articula-se fortemente, como procuraremos demonstrar, aos principais temas no conjunto da composição do cárcere. 7 Cfr. R. Medici, La metáfora machiavelli – Mosca, Pareto, Michels, Gramsci. Modena: Mucchi, 1990, p. 11; P. Bonetti, Il Pensiero Político di Pareto. Bari: Laterza, 1994, p. 4. Como observa Bonetti (Ivi, p. 45), «no Manuale di economia política de 1906, a epistemologia paretiana já aparece em grande parte livre dos obstáculos do velho positivismo e apresenta, ao inverso, singular afinidade com a concepção do empiriocriticismo e com a teoria weberiana dos ‘tipos ideais’». 8 Op. cit., p. 310. 9 Cfr. Ivi. 10 Para Gramsci, contudo, o valor de Croce estaria não apenas um papel cultural e político, mas se estenderia também àquele filosófico, isto é, a sua contribuição à filosofia da práxis. Dado que os fatos de cultura e do pensamento agem influentemente na política, isto é, na formação do consenso e da hegemonia, por meio de Croce, a função não apenas cultural dos intelectuais é expressa, mas, sobretudo, a sua função política na organização do Estado (Cfr. Q. 10, p. 1211). 102 Luciana Aliaga rica e para discussão sobre o método da Ciência Política, como para a articulação entre ciência e ação, ou, pode-se dizer, entre teoria e prática. Estas notas como veremos se dedicam, por um lado, à interpretação de Maquiavel e às polêmicas com seus modernos continuadores na Itália e, por outro lado, à renovação do marxismo frente às controvérsias com o idealismo e com o materialismo vulgar no interior do movimento socialista. Ciência Política e teoria das elites Nos Quaderni as primeiras notas referentes ao problema da relação entre governantes e governados aparecem no interior das questões prementes para o socialismo e sua organização, como aquelas referentes ao partido político e a construção da hegemonia de grupo na sociedade civil e na sociedade política. Contudo, com o desenvolvimento do tema, a conceituação da ciência política, bem como o contato crítico com seus principais expoentes teóricos se tornarão mais explícitos. A preocupação com a organização e direção de classe pode ser verificada na nota de escritura única (texto B) registrada entre agosto e setembro de 1930 no Q. 3, cujo título é Passato e presente. Agitazione e Propaganda, na qual Gramsci sublinha o estreito nexo entre as classes sociais, os partidos políticos e seus dirigentes11. Ao sublinhar que os partidos são expressão das classes sociais e elaboradores de dirigentes da sociedade civil e da sociedade política, Gramsci põe em relevo uma realidade política não imediatamente aparente: o pessoal dirigente de Estado e de Governo está diretamente relacionado às classes sociais. O autor ressalta, assim, o caráter de classe do Estado moderno, isto é, embora os intelectuais pudessem aparecer como uma classe autônoma, como uma casta, desligados do mundo da produção e dos seus interesses econômicos, estes somente poderiam se constituir enquanto dirigentes em função da atividade teórica e doutrinária dos partidos. Neste contexto, o nexo entre dirigentes políticos e classes sociais não é apenas encoberto pelas concepções do senso comum, antes, é 11 Cfr. Q. 3, § 119, p. 387. A Ciência Política de A. Gramsci 103 energicamente refutado pela teoria política elitista, o que empresta maior vigor a ideia do intelectual como casta. Ao utilizar a expressão classe eleita, intercambiável por élite12, Vilfredo Pareto imprime um significado completamente diferente, ou mesmo antagônico, a uma categoria central da análise marxista – a classe. Seu método, ao contrário do que possa parecer, toma o indivíduo e não a coletividade como unidade de análise13. O autor não refuta a teoria da luta de classes, pelo contrário, considera que “há em Marx uma parte sociológica que é superior às outras, e que se encontra frequentemente de acordo com a realidade”, que é “aquela da luta de classes”14, contudo, a reinterpreta opondo a classe governante àquela governada, sendo as elites governantes formadas heterogeneamente, isto é, por indivíduos advindos de vários grupos sociais. Em outros termos, “na sociologia de Marx a distinção das classes é fundamental; na sociologia de Pareto, a distinção entre massas e elites é decisiva”15. Como sublinha Burnham16 para Maquiavel a política deve ser entendida primeiramente como a luta entre os homens por poder e privilégios. Pareto adere de maneira literal a esta concepção, de forma que, em seu sistema, os conflitos ritmam a vida social por meio de uma luta que se estabelece entre indivíduos em disputa pelo poder17. Neste sentido, a constatação de valor científico para Pareto não é a da ação organizada de classe como elemento de definição da vida política, mas o conflito intrínseco à vida social fundado sobre o indivíduo. Para o economista de Lausanne não há sentido em pensar a ação organizada de classe na medida em que as classes não agem como unidades concretas, isto é, como se fossem uma só pessoa18. Não há – segundo Pareto – uma “única vontade e que, graças a lógicas medidas, levem a efeito os projetos concebidos”, de forma que seria um equívoco dos socialistas imaginarem que a elite governante pudesse adotar 12 T., v. 3, § 2031, p. 257. Para simplificação do texto citaremos Pareto no Trattato di Sociologia Generale utilizando a letra “T”, seguida do volume de referência, do parágrafo e da página. 13 Cfr. T., v. 3, § 2037, p. 259. 14 V. Pareto, I Sistemi Socialisti. Torino: UTET, 1974, p. 693. 15 R. Aron, As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 411. 16 J. Burnham, The Machiavellians , defenders of freedom. Chicago: Gateway,1963, p. 4647. 17 Cfr. G. Busino, “Introduzione”, in V. Pareto, I Sistemi Socialisti. Torino, UTET, 1974, pp. 30, 46. 18 Cfr. T., v. 3, § 2254, p. 391. 104 Luciana Aliaga medidas lógicas em conjunto para realizar programas19. Deve-se levar em conta também que para Pareto nenhuma classe social é homogênea20, “as classes sociais não são inteiramente separadas” porquanto “nas nações civis modernas ocorre uma intensa circulação entre as várias classes”21. Isto implica em que haja uma mistura de indivíduos dos diversos grupos da população, de forma que a classe governante é heterogênea, isto é, não é formada por um mesmo grupo social. Neste sentido, o conflito social não pode ser definido – segundo Pareto – apenas entre “capitalistas” e “proletários”22. Pareto considera, deste modo, que no estudo dos fenômenos reais não se encontra homogeneidade na sociedade humana porquanto os “homens são diversos fisicamente, moralmente e intelectualmente”23. Em função disso, na análise científica da sociedade deve-se tomar os indivíduos e não as classes sociais como unidade de análise, uma vez que estes indivíduos são as moléculas do sistema social, nas quais estão certos sentimentos manifestos pelos resíduos24. Sendo assim, o estudo da psicologia humana torna-se incontornável porquanto “toda obra do homem é obra psicológica”, “não só o estudo da Economia, mas também aquele de todos os outros ramos da atividade humana é estudo psicológico”. Pareto considera, por esta razão, “pueril” a “distinção que se deseja fazer pela troca econômica entre o fato ‘individual’ e o fato ‘coletivo’”25. Cfr. Ivi. Pareto, op. cit., p. 180-181. 21 T., v. 3, § 2025, p. 254. 22 Cfr. T., v. 3, § 2231, p. 377. A categoria capitalista carregaria em si, segundo o autor, diversidades ou até mesmo oposição de interesses, como aqueles que se estabelecem entre “empreendedores” e “rentistas”. Por exemplo, uma política de juros baixos seria útil aos empreendedores, enquanto para aqueles que vivem de juros provenientes de poupança tal política seria prejudicial (IDEM). As características psicológicas destes dois grupos definem diferentes interesses e ações. Enquanto os empreendedores possuiriam, sobretudo, resíduos da classe I e seriam impelidos a inovação, à astúcia, nos indivíduos que vivem de poupança prevaleceria os resíduos da classe II, portanto o espírito de conservação, de cautela (Cfr. T., v. 3, § 2232, p. 378). Ambos, contudo, podem pertencer à classe governante, as diversas proporções nas quais as categorias dos empreendedores ou dos poupadores estão na classe governante “correspondem a diversos modos de civilização, e tais proporções estão entre as principais características que se devem considerar na heterogeneidade social” (T., v. 3, § 2236, p. 382). 23 T., v. 3, § 2025, p. 254. 24 Cfr. T., v. 3, § 2080, p. 275. 25 Cfr. T., v. 3, §2078¹, p. 273. 19 20 A Ciência Política de A. Gramsci 105 Gramsci chama atenção, contudo, para o fato de que mesmo que as classes dirigentes não sejam homogêneas, isto é, ainda que elas incluam certo número de elementos vindos das classes subordinadas, estes serão agora parte do governo e da sua hegemonia e defenderão, portanto, os interesses deste governo. Uma vez que a hegemonia se refere ao processo de expansão e universalização dos interesses de classe para o conjunto da sociedade de forma que “aparecem” como interesses de Estado26 a heterogeneidade dos grupos no governo tem pouco ou nenhum impacto sobre o caráter de classe deste governo. Conforme afirma Gramsci “a revolução feita pela classe burguesa na concepção do direito e portanto na função do Estado consiste especialmente na vontade de conformismo”27. Esta passividade da massa em relação às classes dirigentes – que aparece como um fato imutável à sociologia – seria resultado de um processo histórico e político de conformação social. O processo contrário, isto é, de ativação política e cultural da massa, então, corresponderia precisamente à criação da consciência de que “pela própria concepção de mundo pertencemos sempre a determinado grupo”28, de forma que, se a consciência dos indivíduos das classes populares não é autônoma, torna-se politicamente submissa aos grupos sociais dominantes. Em outros termos, autoconsciência crítica significa, sobretudo, a compreensão da própria condição de classe e da luta de classes na sociedade. Neste contexto teórico insere-se a questão registrada ainda em 1930 por Gramsci no Q. 4, § 49: «Os intelectuais são um grupo autônomo e independente, ou cada grupo social tem uma sua própria categoria de intelectuais?» Ao que o próprio autor responde que “todo grupo social […] cria para si, ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, no campo econômico”29. Na medida em que encontram sua origem nas classes, os dirigentes políticos estão inseridos nas relações de forças sociais e representam, por esta razão, interesses de classes. De acordo com Gramsci, a concepção dos intelectuais como Cfr. Q. 13, § 17, p. 1584. Cfr. Q. 8, § 2, p. 937. 28 Ibidem. 29 Q. 4, §49, p. 475. 26 27 106 Luciana Aliaga um grupo social destacado da luta de classes explica-se, entre outras, pela ação histórica dos intelectuais tradicionais, isto é, daquelas categorias de intelectuais preexistentes às novas formas de organização econômica e social, da qual os eclesiásticos constituiriam um modelo exemplar. Eles, que monopolizaram durante muito tempo a ideologia religiosa e em decorrência a filosofia e a ciência de um longo período na história, influenciando a educação, a moral e a justiça e que – de acordo com Gramsci – podem ser considerados como categoria intelectual organicamente ligada a aristocracia fundiária, sentem com “espírito de grupo” sua ininterrupta continuidade na história e sua “qualificação”, de modo que colocam a si mesmos como autônomos e independentes do grupo social dominante30. Na reescritura desta nota no Q. 1231, o autor acrescenta que é justamente em virtude deste grupo eclesiástico que nasce a acepção geral de “intelectual” ou do “especialista”, isto é, da palavra “clérigo” e de seu correlativo “laico”, no sentido de profano, de não especialista, que subentende uma separação profunda entre o intelectual, o especialista e o homem simples da massa. Enquanto o intelectual tradicional caracteriza-se, sobretudo, por representar a ética e a política tornadas anacrônicas em virtude da superação do modo de produção da vida que as sustentava, isto é, devido à implantação de um novo bloco histórico, o intelectual orgânico, pelo contrário, caracteriza-se pela sua ligação aos modernos grupos sociais, que emergem na medida em que superam uma situação social anteriormente dominada e dirigida por antigos grupos no poder. Neste sentido, deve-se compreender que “todo grupo social” cria para si, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais. A diferença entre o tipo de intelectual tradicional e o orgânico, portanto, é essencialmente seu compromisso de classe e, em consequência, a posição que assumem em relação à nova formação social, isto é, se é regressiva, se pretende a manutenção das concepções tradicionais, ultrapassadas, ou se é progressiva, isto é, ligada as necessidades econômicas, políticas e éticas dos grupos sociais mais avançados32. Diante disto torna-se evidente que a definição de intelectual nos Quaderni não pode ser encontrada nas qualidades intrínsecas às atividades intelectuais, mas no con30 31 32 Ibidem, p. 475. §1, p. 1515. Cfr. Ivi, pp. 1513-1514. A Ciência Política de A. Gramsci 107 junto do sistema de relações no qual estas atividades – bem como os grupos que as personificam – se encontram, isto é, no conjunto geral das relações sociais33. Esta inovadora concepção da função política dos intelectuais é, portanto, devedora – por contraste – das teorias sociológicas, objeto de crítica de Gramsci. O autor ressalta que a superação do senso comum que afirma a superioridade intrínseca dos dirigentes em relação à massa de dirigidos seria um estágio inicial para a criação de uma autoconsciência crítica pelas classes subalternas. Esta é claramente uma resposta às concepções essencialistas das correntes sociológicas, que ao fundamentar a superioridade da elite sobre a massa em características inerentes, isto é, em virtudes e capacidades pessoais, tornava insuperável o domínio das minorias dirigentes sobre a base da sociedade. Pareto dispensa especial atenção a estas capacidades pessoais como elementos definidores da elite, isto é, para o autor estas separam as classes superiores daquelas inferiores e determinam, assim, a heterogeneidade social. O termo francês élite origina-se do verbo latino eligere, isto é, eleger, escolher34. Pareto, no entanto, em I sistemi Socialisti nos remete ao sentido etimológico da palavra grega aristos, que significa “melhor”35, indicando, destarte, a sinonímia entre os termos élite e aristocracia. O significado de “aristos”, isto é, “melhor”, não obstante, ilustra de maneira mais precisa o processo de formação das classes superiores porquanto no sistema paretiano estas se constituem de todos aqueles indivíduos que conseguiram os índices mais altos na sua específica área de atuação, alcançando, assim, lugares privilegiados na hierarquia social36. Pareto distingue dois tipos de elites, uma ampla, que se refere a todo tecido social, isto é, a todas as áreas de atuação dos Cfr. Ivi, p. 1516. Cfr. A. Birou, Dicionário das Ciências Sociais. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1973, p. 135. Conforme W. Outhwaite e T. Bottomore (1996, p. 235) “a palavra élite foi usada na França no século XVII para descrever bens de qualidade particularmente superior. Um pouco mais tarde foi aplicada a grupos superiores de vários tipos” (Cfr. tb. SILVA, B. et al. (edit.). Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1986, p. 389). Contudo, esta expressão “só viria a ser amplamente empregada no pensamento social e político por volta do final do século XIX, quando começou a ser difundida pelas teorias sociológicas das elites, propostas por V. Pareto (1916-19) e, de forma um pouco diferente, por G. Mosca (1896)” (W. Outhwaite; T. Bottomore (edit.), Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1996, p. 235. 35 Cfr. Pareto, op. cit., p. 131. 36 T. v. 3, § 2026, p. 255. 33 34 108 Luciana Aliaga indivíduos e outra elite, restrita, que se aplica apenas a elite de governo37. Especificamente para esta última o autor volta sua atenção. A teoria dos resíduos e das derivações constituem as principais categorias analíticas paretianas e podem ser consideradas centrais no Trattato di Sociologia Generale38. Tais categorias – sublinha Bonetti39 – estão estreitamente ligadas com a teoria social e com a concepção ondulatória da história na sociologia de Pareto. Os resíduos são elementos psíquicos que estruturam as ações não lógicas dos homens e as derivações consistem na tentativa de lhes dar uma explicação lógica40. A classe governante é composta por indivíduos nos quais prevalecem os resíduos da classe I, que os habilitam a usar os atributos da “raposa”, isto é, a “astúcia, a fraude e a corrupção”, necessárias à manutenção do poder, enquanto na classe governada sobressaem os resíduos da classe II, nos quais estão ausentes as “ardilezas”, mas se faz presente a força dos “leões”41. A utilização das metáforas da raposa e dos leões é uma interpretação quase literal de Maquiavel, que as emprega para caracterizar o elemento ferino da política, ilustrada por meio da figura do Centauro, metade homem e metade animal42. As elites governantes, portanto, são formadas pelos indivíduos mais adaptados à competição política, isto é, por aqueles que alcanT., v. 3, § 2032, p. 257. De acordo com M. Bovero (La teoria dell’élite. Torino: Loescher Editore, 1975, p. 4749), embora Pareto seja conhecido pela sua “teoria das elites”, esta não constitui o tema principal da sua reflexão, ao contrário, ela ocupa um lugar substancialmente secundário na maior obra sociológica de Pareto, o Trattato di Sociologia Generale. À teoria dos resíduos e das derivações deve ser reputada a centralidade do pensamento paretiano de acordo com este autor. 39 P. Bobnetti, op. cit., p. 55. 40 Cfr. T., v. 2, § 1401, p. 331. Pareto divide os resíduos em seis classes diferentes, duas delas serão centrais para o equilíbrio social: I. Instinto das combinações e II. Persistência dos agregados. Com a primeira classe, Pareto caracteriza “a inventividade humana, a busca do novo que nasce da inclinação a criar soluções vantajosas em todas as circunstâncias”, a segunda, por outro lado, “caracteriza a tendência conservadora do homem, que nasce do sentimento de devoção às normas estabelecidas e aos ideais da tradição” (M. Bovero, La teoria dell’élite, op. cit., p. 51). 41 Cfr. T., v. 3, § 2178, p. 339. Deve-se ter em mente que os resíduos apresentam-se sempre de forma composta nos indivíduos. Isto se deve à analogia que Pareto estabelece entre os resíduos e os elementos químicos existentes na natureza, que se apresentam sempre de forma composta. Estes compostos químicos seriam análogos aos compostos de resíduos, que aparecem sempre combinados (Cfr. T. v. 3, § 2080, p. 275). A índole destas misturas e destes grupos se equilibram, de forma que o crescimento de determinado grupo de resíduos é compensado pela diminuição de outros e vice-versa. “Estas misturas e estes grupos, independentes ou dependentes que sejam, são agora por considerar-se entre os elementos de equilíbrio social” (Ivi. 42 Cfr. N. Maquiavel, O Príncipe: edição bilíngüe. São Paulo: Hedra, 2007, p. 171. 37 38 A Ciência Política de A. Gramsci 109 çaram o melhor desempenho neste preciso campo de atuação. Sendo assim as qualidades de governo se definem de modo intrínseco e estão sempre presentes em uma minoria de homens, de forma que se delineia um sistema estático, no qual mudam as formas históricas sem, contudo, mudar a substância elitista do Estado43. Em outros termos, a mudança social está presente, mas apenas superficialmente e não pode ser classificada como uma transformação substancial, de maneira que após uma revolução a substância da divisão social permaneceria a mesma, o que mudaria seriam as formas, ou seja, seriam as diferentes elites que alcançam o poder e o caráter das disputas estabelecidas entre elas. Substancialmente, contudo, o governo é e será sempre ocupado por minorias. Em outros termos, para Pareto “a vida política é oligárquica”44. Isto porque para Pareto todo sistema social tende ao equilíbrio, tal qual o sistema mecânico proposto pelas ciências físicas45. A sociedade, neste sentido, é concebida como «um conjunto de fenômenos interdependentes em estado de equilíbrio, de forma que a uma modificação induzida pelo exterior segue uma reação tendente a reportar o sistema a sua condição originária»46. O economista de Lausanne não pretende que este estado de equilíbrio seja confundido com uma completa imobilidade porquanto o caracteriza como um “equilíbrio dinâmico”, isto é, um movimento que tende à repetição47. Na sociologia paretiana “o movimento social acontece segundo uma curva ondulada”, os fenômenos se repetem, no entanto, “é difícil prever pelos fatos passados o sentido futuro de tal movimento”48. Isto significa que a história ocorre em ciclos, contudo em numerosas etapas49. Esta é de fato uma das características daquilo que se tem convencionado chamar de herança maquiaveliana50, que está fortemente presente na obra de Pareto. No sistema paretiano, portanto, ainda que mudem as classes no poder, em substância a realtà effettuale é a mesma, isto é, “na realidade não existe mais que os homens que governam e os que são gover43 44 45 46 47 48 49 50 Cfr. Pareto, op. cit., p. 168-169. Busino, op. cit., p. 38. Cfr. Bovero, op. cit., p. 48. Ivi. Cfr. T. v. 3, § 2072, p. 271. Pareto, op. cit., p. 149. Cfr. Busino, op. cit., p. 46. Cfr. Medici, op. cit., p. 33-34. 110 Luciana Aliaga nados”51. O fundamento da política neste sentido, não estaria na constituição jurídica do Estado, este seria uma mera abstração para Pareto52. Na análise social – ressalta o autor – “não se deve confundir o estado de direito com o estado de fato; somente este último importa para o equilíbrio social”53. O estado de fato consiste na divisão da sociedade em dois estratos, um superior – “no qual estão os governantes” – e outro inferior “onde estão os governados” – este seria um evento patente “que em todo tempo se impôs ao observador, até mesmo aos menos argutos”54. Partindo do exame destas concepções essencialistas da sociologia, Gramsci procura superar a ideia da separação entre os homens fundamentada nas qualidades pessoais, por isso nega a concepção do intelectual como uma capacidade individual – “todos os homens são intelectuais” – afirmando, em seguida, que as diferenças se referem às funções diversas desempenhadas no conjunto das relações sociais, por isso “nem todos os homens têm na sociedade a função de intelectuais”55. Gramsci procura “destruir” estas concepções que haviam se tornado senso comum, isto é, de que existiria uma separação de natureza entre intelectuais e simples, de forma que insere no âmbito da política e da história aquilo que havia se tornado um pressuposto para a ciência e para arte política – a passividade das massas. Para isto, o autor eleva todos os homens à qualidade de filósofos56, o que obviamente não significa dissolver a filosofia enquanto pensamento sistemático e coerente no senso comum, mas sim “destruir o preconceito, muito difundido, de que a filosofia é algo muito difícil pelo fato de ser a atividade intelectual própria de uma determinada categoria de cientistas especializados ou filósofos profissionais e sistemáticos”57. A superação deste senso comum que afirma a superioridade intrínseca dos dirigentes em relação à massa de dirigidos apresenta-se como 51 Pareto, Corso di Economia Política, a cura de G. Palomba, Torino, UTET, 1987, § 656, pp. 688-95. 52 Ivi. 53 T., v. 3, § 2046, p. 260. 54 T., v. 3, § 2047, p. 260. 55 Q. 12, § 1, p. 1514. 56 Cfr. Q. 11, § 12, p. 1375. 57 Ivi. A Ciência Política de A. Gramsci 111 um estágio inicial para a criação de uma autoconsciência crítica pelas classes subalternas. A elite de intelectuais, contudo, não deixa de ser necessária, pelo contrário, apresenta-se como elemento fundamental para a superação da passividade das massas. Neste sentido o Q. 8, § 169, escrito em novembro de 1931 e transcrito58 no Q. 11 § 12, cuja redação ocorre entre junho e julho de 1932 é de especial valor na medida em que enfrenta o problema da relação entre teoria e prática, entre dirigentes e dirigidos “como um aspecto da questão política dos intelectuais” e a organização política como meio de autonomia e autoconsciência crítica59. Ao adotar o critério metodológico de leitura dos fenômenos sociais a partir das relações de força estabelecidas entre os grupos em disputa na sociedade civil e na sociedade política60, a passividade intrínseca do homem da massa passa a ser interpretada como uma condição ética e política de subalternidade, histórica e socialmente determinada. Gramsci apresenta o homem simples da massa como um indivíduo racional, intelectualmente apto à filosofia crítica, contudo, ainda imerso em concepções acríticas herdadas do passado, sobretudo da religião e do senso comum. Diante disto, a autoconsciência crítica somente é possível na medida em que ocorra uma elaboração própria da concepção de mundo, de uma maneira consciente, isto é, no momento em que o sujeito consegue ser o “guia de si mesmo e não mais aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade”61. De acordo com Gramsci “o problema deve ser colocado historicamente, isto é, como um aspecto da questão política dos intelectuais”. Depreende-se disto que a construção histórica de um movimento cultural expressivo, capaz de operar mudanças significativas nas correlações de forças sociais somente é possível na medida em que, por meio 58 Ampliado e associado a outras notas A do Q. 8 (§§ 204, 205, 213, 220) e da única nota A do Q. 10 (parte II, § 21). Não há entre a primeira e a segunda escritura uma alteração substancial de conteúdo, pequenas alterações de termos, contudo, devem ser notadas: especificamente no excerto abaixo citado o termo “vanguarda” do texto A aparece como “elite” no texto C. O termo elite ocorre já em várias notas A, contudo, neste caso específico é significativo, já que Gramsci está tratando diretamente da função política dos intelectuais em consonância com a divisão entre dirigentes e dirigidos, o que estabelece uma relação direta com a teoria das elites. 59 Cfr. Q. 11, § 12, p. 1386. 60 Cfr. Q. 13, § 17, p. 1578-1589. 61 Cfr. Q. 11, § 12, p. 1375-1376. 112 Luciana Aliaga da unidade entre filosofia e política, se forma um novo bloco intelectual e moral, capaz de unificar teoria e prática, intelectuais e simples62. Em outros termos, a filosofia, a política e a história concatenam-se no interior da “questão política dos intelectuais”. A elite de intelectuais neste contexto não se define pelo seu contraste em relação à massa, ao contrário, ela se define pela sua ligação orgânica com ela. Sua função é precisamente diretiva e organizativa, movida em direção à criação de novos estratos intelectuais vindos das classes populares. A formação de um novo bloco intelectual-moral a partir da unidade orgânica entre intelectuais e simples caracteriza-se, assim, como um dos alicerces da filosofia da práxis. Esta – esclarece Gramsci – assume uma posição antitética aos grupos conservadores, em especial aos grupos católicos, na medida em que “afirma o contato entre intelectuais e simples não para limitar a atividade científica e para manter uma unidade no nível inferior das massas”, pelo contrário, a filosofia da práxis opera no sentido de tornar politicamente possível “um progresso intelectual de massa e não apenas de pequenos grupos intelectuais”63. Ciência política, Marx e marxismo Como já dissemos, para Gramsci, Maquiavel era um homem de seu tempo e, como tal, impunha-se a necessidade de “atualização” de seu pensamento. Para o autor a crítica marxista sobre a ciência política de Maquiavel (e de seus herdeiros) teria alcançado bons resultados neste sentido, isto é, na medida em que esta crítica consiste na superação da concepção de natureza humana fixa e imutável, ou seja, na historização das diferenças sociais em oposição às interpretações essencialistas da sociologia da época, passando, assim, à formulação do problema em termos essencialmente políticos. Para isto Gramsci articula o pensamento do secretário florentino ao marxismo, a nota do Q. 4, § 8, de maio de 1930, sob o título Maquiavel e Marx, o autor afirma que “a inovação fundamental introduzida por Marx na ciência política e históri- 62 63 Cfr. idem, p. 1382. Cfr. idem, p. 1384-1385. A Ciência Política de A. Gramsci 113 ca em confronto com Maquiavel é a demonstração que não existe uma ‘natureza humana’ fixa e imutável”64. Esta superação desloca o foco da análise política maquiaveliana, isto é, a natureza humana já não pode mais ser fonte de explicações causais de fenômenos políticos porque na “história moderna o ‘indivíduo’ histórico-político não é o indivíduo ‘biológico’, mas o grupo social”65, de forma que o conhecimento das realidades políticas encontra nas relações sociais de força seu objeto central. Gramsci evidencia, destarte, a objetividade do pensamento de Maquiavel, sobretudo porquanto define a política “como atividade independente e autônoma, que possui seus próprios princípios e suas leis diversas daquelas da moral e da religião em geral”. Contudo, esta objetividade não está destacada de um programa de ação, isto é, Maquiavel estaria interessado pelo “dever ser e não apenas pelo ser”66. A aproximação entre Marx e Maquiavel é estabelecida por Gramsci justamente em virtude deste caráter objetivo que se une a um programa de ação, isto é, de ciência das realidades políticas, que, pela sua objetividade, pode ser utilizada tanto por “reacionários quanto por democráticos”67, mas que serve, sobretudo, a classe revolucionária. O realismo de Maquiavel e de seus herdeiros experimenta, assim, uma complexificação porquanto Gramsci foi além da “tradicional análise que via em Il Príncipe uma reflexão sobre a política como ela é e percebia, nesse texto, uma reflexão articulada a respeito do ser e do dever ser da política”68. É preciso notar, contudo, que a ciência política nos Quaderni encontra-se na articulação não apenas entre o binômio Marx-Maquiavel, mas também na articulação Croce-Marx ou, melhor dizendo, Maquiavel-Croce-Marx. O tema da ciência, de acordo com Musitelli69, é um dos menos notados, mas também um dos mais significativos da reflexão dos Quaderni. Ele encontra-se formulado de maneira mais completa no Q. 11, Introdução ao estudo da filosofia, principalmente pp. 430-431. Q. 6, §10, p. 690. 66 Cfr. Q. 13, § 16, p. 1577. 67 Cfr. Q. 4, § 8, p. 431. 68 A. Bianchi, O Laboratório de Gramsci. Filosofia, História e Política. São Paulo, Alameda, 2008, p. 152. 69 M. Paladini Musitelli (org.), Gramsci e la scienza. Storicità e attualità delle note gramsciane sulla scienza. Trieste, Istituto Gramsci Friuli Venezia Giulia, 2008, p. 9. 64 65 114 Luciana Aliaga nas notas escritas entre os parágrafos 13 e 35, grupo intitulado Observações e notas críticas sobre uma tentativa de “ensaio popular de sociologia”. As primeiras versões destas notas foram quase todas retiradas das três séries dos Appunti di Filosofia, redigidos nos Q. 4, 7 e 8. Nos Appunti pode-se perceber melhor o contexto original em que as notas sobre o tema da ciência foram formuladas, isto é, estas notas contêm as primeiras formulações acerca do nexo entre Croce e Marx e entre Marx e Maquiavel. Maquiavel -Croce-Marx A partir do estudo do pensamento de Maquiavel, Gramsci conceitua a política em dois sentidos: como atividade autônoma e independente, com leis próprias – o que torna possível a ciência da política – e como arte política, isto é, como prática política concreta. A formulação da autonomia da política, com princípios e leis diversos da moral e da religião para Gramsci como para Croce inicia-se com Maquiavel, isto é, esta ideia consiste num desenvolvimento do pensamento de Maquiavel elaborado primeiramente por Croce e aceito por Gramsci nos Quaderni70. A autonomia da política em relação à moral ou a qualquer elemento de transcendência, pode-se dizer, a laicidade da política, constitui-se em elemento fundamental para a fundação da política como ciência na medida em que torna possível um julgamento orientado pela objetividade, isto é, pela busca do conhecimento objetivo dos fatos71. De acordo com Croce, Maquiavel seria o fundador teórico da autonomia da política, o que significa reconhecer à esfera da política princípios e regras próprias, separados da moral, que respondem a uma lógica autônoma, avançando, assim, na interpretação do pensamento do secretário florentino como “símbolo da pura política” como o verdadei- 70 Diz o autor: “a afirmação de Croce que sendo o Maquiavelismo uma ciência, serve tanto para os reacionários como para os democratas, como a arte da esgrima serve aos cavalheiros e aos bandidos, para defender-se e para assassinar” (Q. 13, § 20, p. 1600). 71 É importante notar, neste sentido, que todos estes elementos são temas específicos do realismo político, conceito que está ligado de modo inseparável aos nomes de alguns autores clássicos, Tucídides e Maquiavel em primeiro lugar, mas também àquele de Thomas Hobbes (Cfr. Trocini, 2010, p. 396). A Ciência Política de A. Gramsci 115 ro fundador da filosofia e da ciência política72. A partir disto, contudo, Croce opera não apenas uma separação entre a esfera política e a esfera ético-política, mas também uma distinção entre a filosofia política e a ciência empírica da política. A finalidade da filosofia política seria para o autor a explicação da história da atividade política em sua dúplice forma acima mencionada, o que incluiria a compreensão do Estado e da moral, enquanto à ciência política caberia o “labor de classificação” e o papel de “fixar na mente o conhecimento ou o que é mais urgente recordar, de modo a torná-lo rapidamente memorável e presente ao espírito, tanto por exigência da ação como para facilitar ulteriores indagações e o novo conhecimento”73. A ciência empírica da política, neste sentido, se nutriria da filosofia política na medida em que esquematizaria os relatos dos fatos e as interpretações filosóficas, privando-os, contudo, de vida e significado. Deste modo, não poderia prescindir do pensamento e da filosofia que lhe deram vida, “assim como o carniceiro não pode prescindir dos animais vivos, que mata e converte em carne despedaçada”74. Diante disto observa Bianchi75 que a afirmação de Croce segundo a qual “Maquiavel descobriu a necessidade e autonomia da política” não pode fundar uma ciência política simplesmente porque para Croce o conceito de autonomia da política seria um conceito “profundamente filosófico” e funda de fato a filosofia política. A ciência empírica da política, neste sentido, teria apenas um “valor instrumental”76. Croce, destarte, teria feito uma “leitura antimaquiaveliana de Maquiavel”, separando as tendências práticas e políticas, afastando a política em ato da 72 Cfr. C. Donzelli, Quaderno 13. Noterelle sulla política del Machiavelli - introduzione e note. Torino, Piccola Biblioteca Einaudi, 1981, p. XXXIX. 73 B. Croce, Ética y Política. Buenos Aires: Ediciones Imán, 1952; Cfr. também A. Bianchi, Croce, Gramsci e a “autonomia da política”, in «Revista Sociologia e Política», Curitiba, 29, p. 1530, nov. 2007, p. 20. 74 Croce, ivi, p. 213. 75 Bianchi, Croce, Gramsci e a “autonomia da política, op. cit., p. 20. 76 Cfr. Croce, op. cit., p. 213. Bianchi (Idem) chama a atenção para a avaliação negativa e mesmo a recusa de Croce à ciência política, atitude “que se colocava na contramão do empreendimento levado a cabo por Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto, entre outros”. Ao contrário desses autores, empenhados na demonstração da possibilidade de um conhecimento científico da política, o autor de Etica e politica colocava em dúvida o potencial de uma ciência que procedesse por meio de “pseudoconceitos” e classificações. O âmbito que o filósofo napolitano atribuía à ciência empírica da política estava muito longe, desse modo, daquele que Mosca procurava determinar. Para Croce, a ciência empírica da política teria apenas um valor restrito a sua “utilidade instrumental”. Reconhecido esse valor instrumental, impedir-se-ia que a ciência da política degenerasse em filosofemas abstratos e princípios absolutos, contaminando tanto a filosofia como a historiografia. 116 Luciana Aliaga reflexão a respeito das práticas políticas e separando a esfera da filosofia da esfera da política, de maneira que Maquiavel não poderia ser considerado o fundador de uma ciência empírica da política, mas somente da moderna filosofia política77. Retomando o Q. 4, § 8 citado no início desta sessão, observa-se que o ponto de partida de Gramsci para o estudo da política em Maquiavel é justamente seu duplo aspecto, isto é, como ciência da política e como arte política, que define a política concreta, isto é, a afirmação da unidade orgânica entre a filosofia, ou a teoria, e a prática política. De modo que nos Quaderni Maquiavel torna-se o “técnico da política”, isto é, aquele que interpreta a política de um ponto de vista realista, científico, sem, contudo, deixar de ser também o “político integral em ato”78, Gramsci, assim, chama a atenção para o profundo nexo que se estabelece na política – já em Maquiavel – entre as esferas da teoria e da prática. Isto nos revela a clara oposição de Gramsci à filosofia crociana, contudo, nos coloca também a importante questão: se a ciência da política, para Gramsci, aparece combinada com a prática política, como entender a separação entre política e ética, ou, em outros termos, o que significaria autonomia da política nos Quaderni? Este não é um tema livre de ambiguidades e contradições como já afirmou Martelli79. Como ressalta este autor, por um lado, ao afirmar o caráter essencialmente revolucionário da teoria política de Maquiavel, Gramsci nega a redução tecnicista da política feita por Croce. Destarte, a política de Maquiavel aparece nos Quaderni como uma “ciência-ação revolucionária”, assemelhada, neste sentido, à filosofia da práxis na medida em que ambas estariam voltadas para a fundação de um novo tipo de Estado80. A política neste sentido estaria voltada para a construção de novos valores éticos, históricos e culturais, ou seja, estaria subordinada à moral revolucionária. Por outro lado, como ressalta ainda Martelli81, na nota Machiavelli. Morale e política no Q. 14 (§ 51, p. 1710) Gramsci parece sustentar a tese da absoluta “autonomia” da política em relação à moral quando afirma que em todo conflito político “o único juízo possível é aquele ‘político’, isto é, em conformidade do meio ao fim […]. Um conflito é ‘imoral’ quando se distan77 78 79 80 81 Cfr. Bianchi, ivi. Cfr. Q. 8, §1, p. 936. M. Martelli, Gramsci, filosofo della política. Milano, Unicopli,1996, p. 170. Cfr. Q. 4, § 8, p. 431; Q. 13, § 21, pp. 1600-1601. M. Martelli, ivi. A Ciência Política de A. Gramsci 117 cia do fim ou não cria condições que se aproximem do fim […] mas não é ‘imoral’ de outros pontos de vista ‘moralistas’. [Já que] o juízo é político e não moral […]”. Acompanhar o desenvolvimento do conceito de política, mais especificamente da interpretação gramsciana da política de Maquiavel, nos cadernos 4 e 882 – embora não possa dissipar as ambiguidades intrínsecas ao texto – nos fornece recursos adicionais para o melhor entendimento do problema. Em primeiro lugar é importante observar que autonomia da política não significava para Gramsci a separação radical entre política e moral (tal como em Croce) porquanto somente assim a filosofia da práxis, da qual Maquiavel seria um precursor, poderia ser qualificada como uma “ciência-ação revolucionária”. O nó do problema, cremos, está no próprio conceito de ciência, que aparece nos Quaderni não plenamente desenvolvido. No início do Q. 483 Gramsci ratifica a “validade objetiva” das posições de Maquiavel afirmadas por Croce. Neste sentido, afirmava também que o fato constatado por Croce de que “o maquiavelianismo, sendo uma ciência, servia tanto aos reacionários quanto aos democráticos”, era “justíssimo”84. A ciência da política aparece aqui, portanto, como o campo do realismo político, do julgamento autônomo da política separado da moral, seja esta conservadora ou revolucionária, reacionária ou democrática. Contudo, a nota prossegue com a afirmação de que o próprio Maquiavel havia notado que suas constatações foram sempre aplicadas85, isto é, sempre tiveram uma aplicação política. Destarte, esta nota aponta para a articulação orgânica entre ciência e política: o conhecimento das realidades políticas necessita da objetividade como meio de realização, contudo este conhecimento encontra na própria política, na política em ato (seja no próprio campo da ciência ou naquele essencialmente político), o seu fim – e neste sentido pode servir aos diversos grupos que disputam diferentes concepções de mundo, seja em relação a restritos grupos no âmbito acadêmico, seja na disputa mais ampla da direção da sociedade. 82 Como já dissemos, os parágrafos que tratam da política de Maquiavel nestes cadernos foram reagrupados no Q. 13, por esta razão a análise tomará como ponto de partida a primeira redação nos Q. 4 e 8 e recorrerá ao Q. 13 sempre que houver uma mudança significativa na redação. 83 § 4, p. 425. 84 Cfr. Q. 4, § 8, p. 431. 85 Cfr. ivi. 118 Luciana Aliaga De acordo com Bovero86, Gramsci teria operado um deslocamento do centro de gravidade da teoria política para o fim político, isto é, a teoria política gramsciana teria se construído a partir de um ponto fixo no futuro, “quase como se Gramsci voltasse seu olhar arguto sobre o mundo presente dos bastiões da cidade futura, e de lá considerasse o enigma da história do ponto de vista da sua solução”. Substancialmente, o realismo tradicional e o realismo gramsciano (e marxiano) condividem a ideia de política como luta, conflito, contraposição e domínio87. Evidentemente esta ideia está ancorada no pensamento de Maquiavel, para o qual “existem dois modos de combater: um com as leis e o outro com a força”88. O uso do verbo “combater” – sublinha Bovero – limita de partida o horizonte do discurso político, “fechando-o dentro da lógica da contraposição e do conflito”89. O realismo político tradicional, como o de Pareto, por exemplo, está habitualmente embebido de pessimismo antropológico, isto é, está baseado numa determinada concepção de regularidade do comportamento humano que tende a reproduzir a dominação política por grupos minoritários, e, por isso, se limita a constatar a necessidade da lógica do poder e, portanto, a injustificabilidade moral desta90. O realismo de Gramsci, por outro lado, fundado na ideia da política como uma “forma de guerra” e livre do pessimismo antropológico, “delineia a própria fisionomia dentro da perspectiva da superação das relações de poder, da abolição da diferença entre governantes e governados” de forma que o problema da autonomia da política, ou, pode-se dizer, da imoralidade do poder “encontra na perspectiva de Gramsci (e mais em geral do marxismo clássico) uma solução no futuro, e a solução coincide com a dissolução da política entendida como luta pelo domínio”91. Em outros termos, “na perspectiva gramsciana, e mais geral do marxismo clássico, a saída do horizonte conflitual das relações humanas se delineia com a saída da política mesma, como extinção da política”92. Justamente da perspectiva 86 Gramsci e il realismo político, in F. Sbarberi (org.). Teoria política e società industriale – ripensare Gramsci. Torino, Bolati Boringhieri, 1988, p. 57. 87 Ivi, p. 59. 88 Maquiavel, op. cit., p. 99. 89 Bovero, Gramsci e il realismo político, op. cit., p. 59. 90 Ivi, p. 58. 91 Ivi, p. 59. 92 Ivi, p. 60. A Ciência Política de A. Gramsci 119 da futura superação da divisão entre governantes e governados é que Gramsci analisava os meios adequados à prática política do seu tempo. Para Bovero, este procedimento gramsciano teria desenvolvido uma “variante particularmente sólida do assim chamado realismo político”, de forma que, “forçando um pouco os termos”, seria possível afirmar que “o idealismo dos fins consente um hiperrealismo dos meios”93. À luz destas considerações torna-se possível interpretar a nota supra mencionada Machiavelli. Morale e política no Q. 14, cuja tese da absoluta “autonomia” da política em relação à moral parece estar em conflito com a ciência-ação revolucionária. Se admitimos que Gramsci opera este deslocamento da teoria política para seus fins, e estes convergem especificamente para a reforma intelectual e moral, então trata-se de buscar os meios mais adequados para atingir este específico fim. Uma vez admitido o “idealismo dos fins” sugerido por Bovero, isto é, a possibilidade, senão realmente a necessidade – diz o autor – da extinção do reino conflitual da política, o realismo dos meios consistiria em “considerar que a saída do reino da política para a futura comunidade integrada e pacificada não pudesse acontecer senão mediante a guerra política, e que os juízos sobre os métodos, sobre os meios desta guerra política contra a política […] não pudessem fundar-se em nada além do critério político do sucesso”94. De forma que os fins, que neste caso são específicos e coletivos, justificariam os meios adotados em função de sua eficiência. Neste sentido Gramsci é fiel a Maquiavel, mas agora o que importa não é vencer para manter o Estado e sim extingui -lo, de toda forma os “meios continuam a ser louvados”95. A política como fim evidentemente é interessada e toma partido porquanto adentra no campo da política concreta. E não poderia deixar de ser assim uma vez que para Gramsci política, filosofia e história, em relação dinâmica e orgânica entre si, constituem um só bloco. Por este motivo o autor dos Quaderni rejeitava fortemente a relação de mera implicação entre política, arte, moral e filosofia no interior da “dialética dos distintos de Croce”. No Q. 8, § 61, que foi transcrito no Q. 13, § 10 (de maneira sensivelmente mais organizada e clara, contudo sem adições essenciais), Gramsci ressalta que a questão inicial a ser colocada 93 94 95 Ibidem. Ibidem. Ibidem. 120 Luciana Aliaga e resolvida em uma análise sobre Maquiavel seria “a questão da política como ciência autônoma, isto é, do lugar que a ciência política ocupa ou deve ocupar em uma concepção de mundo sistemática (coerente e consequente) – em uma filosofia da práxis”96. Neste texto Gramsci observa que Croce teria contribuído para “a dissolução de uma série de problemas falsos, inexistentes ou mal colocados”97 fazendo avançar a ciência da política, contudo, estabelecer a posição dialética da atividade política – na sua relação íntima com a ciência da política – como grau superestrutural significava em primeiro lugar rejeitar a concepção croceana da separação dos momentos do Espírito, principalmente no que se referia ao confinamento da política no interior da esfera da prática e da utilidade. Neste sentido, a política nos Quaderni não apenas extrapola os limites da pura prática como alcança todas as dimensões da vida coletiva quando assume a identidade com a história, de forma que toda a vida torna-se política. Na nota Machiavelli e l’«autonomia» del fatto politico ainda no Q. 498 diz Gramsci: “a arte, a moral, a filosofia ‘servem’ à política, isto é, implicam-se na política, podem reduzir-se a um momento desta e não vice-versa: a política destrói a arte, a filosofia, a moral”. Gramsci afirma, assim, “a prioridade do fato político-econômico, isto é, a ‘estrutura’ como ponto de referência e de ‘causação’ dialética, não mecânica das superestruturas”. Gramsci supera, desta forma, o conceito de implicação circular entre os graus da superestrutura e propõe em seu lugar conceito de “bloco histórico”, que abrange a unidade entre a natureza e o espírito (estrutura e superestrutura) unidade dos contrários e dos distintos. Filosofia da práxis, Sociologia e Ciência Política As notas que tratam da articulação Maquiavel-Croce-Marx, que, como vimos se referem ao problema da autonomia da política, concepção basilar do realismo político, pertencem ao mesmo conjunto de notas onde foram registradas as Observações e notas críticas sobre uma tentativa de “ensaio popular de sociologia”, reescritas no Q. 11. Como 96 97 98 p. 1568. Ibidem. § 56, p. 503. A Ciência Política de A. Gramsci 121 veremos, será no interior da crítica à sociologia positivista do Ensaio, a saber, o Tratado de Materialismo Histórico, publicado em 1921 por N. Bukharin que a definição e método da ciência das realidades políticas poderá ser mais bem compreendida. Bukharin pretendia escrever um manual de sociologia “para os operários desejosos de se iniciarem nas teorias marxistas” com o intuito de suprir a falta de “uma exposição sistemática” do marxismo99. O autor abre a obra com uma discussão sobre a “importância prática das Ciências Sociais”, colocando a lume “o caráter de classe das ciências sociais”, defendendo, assim, uma “ciência proletária” que se definiria como uma “sociologia marxista”100. A ideia de uma “sociologia marxista”, contudo, é uma contradição em termos e algo irrealizável na leitura gramsciana porquanto sociologia positivista e marxismo baseiam-se em lógicas diametralmente opostas101. Por meio da polêmica com Bukharin, Gramsci opera uma aguda crítica ao materialismo vulgar presente nas formulações teóricas do grupo dirigente soviético. Neste movimento ele reinterpreta o materialismo histórico em termos de filosofia da práxis. Em outros termos, as críticas ao Ensaio popular podem ser interpretadas como o esforço de definição do que “não deve ser e do que poderia ser a filosofia da práxis”102. Deste modo, é possível considerar – como o faz Catone103 – o anti-Bukharin de Gramsci como passagem fundamental para a construção da filosofia da práxis. A primeira nota a tratar do materialismo no interior da polêmica com Bukharin aparece no Q. 11, § 16. Nela, Gramsci se dedicará a questionar o próprio uso do termo em função da amplitude de significados que este assumira na história e do consequente senso comum que acabou por deturpar a compreensão do marxismo como materialismo hisN. Bukharin, Tratado de materialismo histórico. Lisboa, Centro do livro brasileiro, s/d, p. 7. Cfr. ivi, pp. 11-14. 101 Diferente da dialética, a lógica formal exclui o movimento, a própria mudança, o salto qualitativo e a produção do novo porquanto “implica numa relação de causa e efeito, tal que o efeito já está inteiramente contido na causa” de modo que “o efeito mecanicamente, jamais pode superar a causa ou o sistema de causas; por isso, não pode haver outro desenvolvimento que não aquele monótono e vulgar do evolucionismo” (Q. 11, § 14, p. 1403; Cfr. também Martelli, 1996, p. 70). 102 A. Catone, Gramsci, Bucharin e la scienza, in. Paladini Musitelli (org.). Gramsci e la scienza. Storicità e attualità delle note gramsciane sulla scienza. Trieste, Istituto Gramsci Friuli Venezia Giulia, 2008, p. 91. 103 Ivi, p. 85. 99 100 122 Luciana Aliaga tórico. De acordo com o autor, o termo materialismo na Europa da primeira metade do sec. XIX serviu para definir “toda doutrina filosófica que excluísse a transcendência do domínio do pensamento e, consequentemente […] não só o panteísmo e o imanentismo, mas também foi chamada de materialismo qualquer atitude prática inspirada no realismo político”. Da mesma forma, a partir das polêmicas modernas dos católicos, o termo materialismo passa a ser compreendido como o oposto de espiritualismo, mais especificamente, de espiritualismo religioso. Por esta razão foram incluídos no materialismo “todo hegelianismo e a filosofia clássica alemã em geral, bem como o sensualismo e o iluminismo franceses”. De forma que “nos termos do senso comum, chama-se de materialismo tudo o que tende a encontrar nesta terra, e não no paraíso, a finalidade da vida”104. Diante disto, urgia discutir o significado do materialismo histórico uma vez que a “nova filosofia” não poderia coincidir com “nenhum sistema do passado”, não importando “qual fosse seu nome”. Em outros termos, o materialismo histórico não poderia ser tomado como materialismo tradicional revisto e corrigido pela dialética, que foi também erroneamente considerada um capítulo da lógica formal, “e não como sendo ela mesma uma lógica, ou seja, uma teoria do conhecimento”105. Isto é, não havia clareza do fato de que entre lógica formal e dialética não existe nenhuma relação de continuidade, são duas lógicas completamente diversas, senão, opostas. No Ensaio popular, embora a dialética “seja pressuposta” – aliás, Bukharin dedica um capítulo ao tema (III. O materialismo dialético) – ela não é “exposta”. Para o autor dos Quaderni, este fato pode ter como origem primeira o fato de se supor que a filosofia da práxis esteja cindida em dois elementos: uma teoria da história e da política entendida como sociologia, isto é, a ser construída segundo o método das ciências naturais (experimental no sentido vulgarmente positivista), e uma filosofia propriamente dita, que seria o materialismo filosófico ou metafísico ou mecânico (vulgar)106. 104 105 106 Q. 11, § 16, pp. 1408-1409. Ivi, p. 1410. Ivi, p. 1425. A Ciência Política de A. Gramsci 123 A análise do Ensaio popular em conjunto com o exame da intervenção de Bukharin no Congresso sobre História da Ciência em 1931 revela que neste longo período de dez anos sua teoria do materialismo permaneceu inalterada. Isto é, permanece a ideia de que o marxismo teria duas faces: uma científica, sociológica, e outra filosófica e que somente esta última seria identificada com o materialismo dialético – diferenciando-se, portanto, segundo Bukharin, do velho materialismo. Cinde-se deste modo a unidade entre ciência e filosofia, tornando-se estas componentes distintas do marxismo. A dialética – compreendida por Gramsci como “doutrina do conhecimento e substância medular da historiografia e da ciência política” – é assim reduzida, “degradada a uma subespécie de lógica formal, a uma escolástica elementar”107. Ela, entretanto, somente pode ser corretamente compreendida – para Gramsci – “se a filosofia da práxis for concebida como uma filosofia integral e original” na medida em que supera tanto o idealismo quanto o materialismo tradicionais108. Três problemas são deduzidos desta separação entre ciência e filosofia no interior do marxismo: 1. a filosofia da práxis amputada de seu amparo em uma concepção científica que lhe seja própria, passa a depender de métodos que lhe são externos e, portanto, perde a autonomia; 2. a filosofia destacada da teoria da história e da política não pode ser uma filosofia com conteúdo concreto, “prático”, reduzindose a metafísica; 3. Não é possível que a ciência do materialismo histórico seja a sociologia na medida em que esta possui uma base metodológica anistórica e antidialética, o que torna impossível conceber a “superação, a subversão da práxis”109. Os dois primeiros problemas se referem ao “conceito de ortodoxia”, elaborado por Gramsci no Q. 11 § 27. A “filosofia da práxis basta a si mesma” – afirma o autor. A isto equivale dizer que ela contém “em si todos os elementos fundamentais para construir uma total e integral concepção de mundo”110. O seu caráter “revolucionário” se baseia fundamentalmente nesta originalidade definida por uma teoria integral e autônoma que se constrói por meio da crítica do existente. Assim, 107 108 109 110 Ibidem. Ibidem. Q. 11, § 14, p. 1403. p. 1434. 124 Luciana Aliaga é necessário que se compreenda que “a filosofia da práxis não tem necessidade de sustentáculos heterogêneos”111, não se reduzindo ou confundindo a nenhuma outra filosofia. Ela somente pode ser original “enquanto supera as filosofias precedentes, mas, sobretudo, enquanto abre um caminho inteiramente novo, isto é, renova de cima a baixo o modo de conceber a própria filosofia”112. Por esta mesma razão não se pode também separar – na filosofia da práxis – a ciência da filosofia. Tal separação implicaria em afirmar a ciência o que ela não é: uma concepção de mundo “por excelência”, neutra, “que libera os olhos de qualquer ilusão ideológica, que põe o homem em face da realidade tal como ela é”113. Para Gramsci, ao contrário, é preciso considerar que “não obstante todos os esforços dos cientistas, a ciência jamais se apresenta como nua noção objetiva; ela aparece sempre revestida por uma ideologia”114. Na medida em que a ciência aparece sempre revestida de uma visão de mundo que não é imune às divisões sociais, a filosofia da práxis, como “filosofia de massa” deve, necessariamente, possuir uma ciência que esteja revestida por uma visão de mundo adequada a esta fração da sociedade. Do contrário a filosofia da práxis passa a ter “sustentáculos filosóficos fora de si mesma”115. É a partir desta imbricada relação estabelecida por Gramsci entre ciência e filosofia que o autor diferenciará a sociologia positivista da ciência política. No Q. 15 § 10, em uma nota de única redação intitulada Machiavelli. Sociologia e scienza politica, a qual segue a observação entre parênteses: “ver os parágrafos sobre o Ensaio popular”, Gramsci distancia a sociologia da ciência política porquanto a primeira, baseada nos métodos das ciências naturais empobrece o conceito de Estado e de política. Diz o autor: “‘Política’ torna-se sinônimo de política parlamentar ou de rixas pessoais. Convicção de que com as constituições e os parlamentos se fosse iniciada uma época de ‘evolução’ ‘natural’, que a sociedade tivesse encontrado os seus fundamentos definitivos porque racionais, etc.”. A ciência política, por outro lado, insere-se no âmbito mais amplo e não previsível cientificamente das relações sociais 111 112 113 114 115 Q. 11, § 27, p. 1434. Ivi, p. 1436. Q. 11, § 38, p. 1457. Ivi, pp. 1457-1458, grifos nossos. Ibidem. A Ciência Política de A. Gramsci 125 de forças116. Gramsci, portanto, estabelece que a ciência do Estado adequada à filosofia da práxis não pode ser outra além da ciência política. Bukharin, neste sentido, ao contrário de buscar uma “sociologia marxista”, deveria ter investigado quais relações podem ser estabelecidas entre ciência política e filosofia da práxis, isto é, qual o lugar desta ciência das relações sociais de forças no edifício teórico e prático da filosofia de massa. Em suma, a ciência política é parte integrante e inseparável da filosofia da práxis, e isto precisamente é o que lhe garante a autonomia. Gramsci havia iniciado o tratamento do assunto da inteiração entre ciência política e filosofia da práxis já no Q. 11, § 33, onde o autor afirma que embora não se possa negar que a filosofia da práxis seja uma teoria da história, é preciso recordar que a história deve ser entendida em sua unidade orgânica com a política e a economia, “mesmo em suas fases especializadas de ciência e arte da política e de ciência e política econômica”117. Com relação ao terceiro problema acima indicado, o ponto fundamental da crítica à ideia de uma sociologia marxista é justamente a impossibilidade desta possuir um caráter revolucionário na medida em que toma emprestado o método das ciências naturais. A filosofia que lhe é implícita, o positivismo, implica na eliminação de qualquer possibilidade de superação das oposições, ou seja, a sua base na lógica formal não admite a contradição e isto implica na não superação da ordem vigente, ou, pode-se dizer, na negação do movimento de transformação histórica. Em outros termos, a inadequação da lógica formal, aristotélica, aplicada a um objeto contraditório – a sociedade capitalista – tem como resultado a negação da “subversão da práxis”, expressão retirada das marxianas Teses sobre Feuerbach. A interpretação gramsciana das Teses se realiza por meio de Antonio Labriola. A própria ideia de autossuficiência, baseada nas Teses (ainda que sem referência direta), havia já sido formulada por Labriola como fundamento de sua interpretação do marxismo como filosofia em Discorrendo de socialismo e de filosofia118. Labriola possuía uma “concepção total da práxis”, “ao mesmo tempo anti-idealista e antipoCfr. Q. 15, § 10, p. 1765. p. 1448. 118 Cfr. F. Frosini, La religione dell’uomo moderno. Politica e verità nei Quaderni del Carcere di Antonio Gramsci. Roma, Carocci, 2010, p. 61. 116 117 126 Luciana Aliaga sitivista, centrada sobre a categoria trabalho119. O autor se contrapunha tanto ao reducionismo do idealismo – na medida em que este considera as coisas empiricamente existentes como reflexo, reprodução, imitação ou consequência de um pensamento – como ao reducionismo do “materialismo naturalista” e positivista – para o qual, ao contrário, o pensamento consistia no reflexo reprodutivo das coisas. Sua proposta – através das Teses – era a de fundamentar a unidade entre teoria e prática sobre a categoria de trabalho, operosidade, “experimento”120. As Teses sobre Feuerbach não apenas são citadas nos Quaderni, mas também “indicadas como depositárias do núcleo da ‘nova filosofia’, isto é, da superação do idealismo-espiritualismo e do materialismo vulgar no conceito de ‘práxis’” 121. Mais que isto, filosofia da práxis define o sentido geral do marxismo de Gramsci, ou como afirma Frosini122 da leitura de Marx a partir de uma tradição italiana. Assim, Gramsci – fundado nas Teses, bem como na interpretação labriolana destas – reinterpreta o materialismo em termos de “prática” ou “práxis”. No Q. 10II, § 31, p. 1271 (nota escrita exatamente no mesmo período em que foram escritas as notas referentes à crítica ao materialismo vulgar em Bukharin, também retirada da terceira série dos Appunti, no Q. 8, § 198), no interior da crítica ao revisionismo idealista de B. Croce, Gramsci explicitará o significado do conceito de práxis. Analisando algumas das Teses sobre Feuerbach – diz Gramsci – Croce chega à conclusão “de que Marx ‘não invertia tanto a filosofia hegeliana quanto a filosofia em geral, qualquer espécie de filosofia suplantando a filosofia com a atividade prática’”. Esta afirmação revela a irreconciliável cisão entre teoria e prática que estavam subjacentes à noção de filosofia meramente teórica ou “contemplativa” de Croce. Gramsci, ao contrário, concebia a nova filosofia como sendo produtora de “uma moral adequada”, apropriando-se, assim, do conceito de religião laica do próprio Croce, isto é, da religião como “uma concepção de mundo (uma filosofia) com uma norma de conduta adequada”123. Sob este prisma, torna-se possível compreender o sentido da interpretação de Gramsci da XI Tese – “os filósofos apenas interpretaram o mundo de 119 120 121 122 123 Cfr. Martelli, op. cit., pp. 24-15. Cfr. Ivi, p. 24. Frosini, op. cit., p. 61. Ivi, p. 50. Ivi, p. 1269. A Ciência Política de A. Gramsci 127 várias maneiras, trata-se agora de transformá-lo”. Para o autor esta proposição não pode ser entendida como um repúdio a qualquer filosofia, ou como suplantação desta pela prática, ao contrário, a filosofia marxista, ou mais especificamente, a filosofia da práxis consiste numa “enérgica afirmação de uma unidade entre teoria e prática”124. É, portanto, por meio da leitura labriolana das Teses e da crítica à interpretação croceana do pensamento de Marx desta mesma obra, e, conjuntamente, da apropriação crítica do conceito de religião laica de B. Croce que o autor dos Quaderni chega à formulação da filosofia da práxis como uma “concepção de mundo com uma norma de conduta adequada”, isto é, uma filosofia “mundana”, “terrena”, “imanente”, que se forja no interior das relações sociais de força amplamente imbricada com a luta política concreta. Neste sentido se torna possível afirmar com justeza que “aos olhos de Gramsci, imanência e práxis estão estruturalmente imbricadas125. O conhecimento do real, portanto, não se produz no estrito e calmo ambiente da teoria, desligado das paixões humanas e das divisões de grupo. Ao contrário, se forja em meio ao conflito, na prática terrena e cotidiana, isto é, na história. A filosofia da práxis é, deste modo, uma “filosofia histórica” “enquanto se difunde, enquanto se torna concepção da realidade de uma massa social (com uma ética adequada)”, a filosofia da práxis, por este motivo, estuda nos filósofos precisamente o que não é filosófico: “as tendências práticas e os efeitos sociais e de classe que representam”126. Com isto, criam-se as condições para uma ruptura com as concepções dualistas que separavam “prática e epistemologia, espírito e matéria, trabalho intelectual e trabalho manual, teoria e prática” 127. Ressalta-se, por outro lado, o caráter inescapavelmente político de qualquer conhecimento, incluindo aquele científico, o que supõe uma forma de compreensão da objetividade nas Ciências Sociais que se afastará sobremaneira do positivismo. 124 Ivi, p. 1270. Sobre isto diz o autor: “Esta interpretação das Teses sobre Feuerbach como reivindicação da unidade entre teoria e prática e, consequentemente, como identificação da filosofia com o que Croce chama agora de religião (concepção de mundo com uma norma de conduta adequada) – o que, de resto, não é mais que a afirmação da historicidade da filosofia, feita em termos de uma imanência absoluta, de uma “absoluta terrenalidade” (Ivi, p. 1270-1271). 125 Cfr. Frosini, op. cit., p. 64. 126 Q. 10II, § 31, pp. 1271-1272. 127 Cfr. A. Bianchi, O Laboratório de Gramsci, op. cit., p. 59. 128 Luciana Aliaga Conclusão A atitude de formular conceitos e de fazer análise política por meio da crítica, da polêmica com os expoentes mais destacados do campo oposto está intrinsecamente ligada à formação intelectual de Antonio Gramsci128. O procedimento crítico é para o autor um requisito indispensável ao pensamento científico e, por esta razão, não possui um caráter eventual ou acidental, ao contrário, deve ser assumido como metodologia apropriada à apreensão do conhecimento, em especial àquele histórico, isto é, de caráter político e social. Este procedimento, em nosso modo de ver, norteia a produção mesma dos conceitos dos Quaderni. Neste sentido, foi precisamente no interior das polêmicas com os principais expoentes, seja do campo político-ideológico oposto, seja no interior do próprio movimento socialista, é que pudemos encontrar as discussões seminais sobre a ciência e a arte política. O gosto do autor pela polêmica certamente não se encerra nele mesmo, isto é, seu principal interesse é muito claro: a construção da “filosofia de massas”, da filosofia da práxis, a renovação do marxismo – em especial no contexto italiano – em termos teóricos e práticos. O procedimento gramsciano nos deixa entrever por meio desta análise que o pensamento do autor é caracterizado pelo movimento, isto é, seus conceitos são relacionais, se estabelecem por meio das relações sociais se movem no interior das relações de forças políticas. A ciência política de Gramsci é, de fato, a ciência das relações de forças. Por este 128 Em carta datada de 15 de dezembro de 1930 a Tatiana Schucht, o autor esclarece que “pensar desinteressadamente” seria muito difícil para ele. Diz Gramsci: “comumente é necessário colocar-me desde um ponto de vista dialógico ou dialético, caso contrário não sinto nenhum estímulo intelectual” (A. Gramsci, Lettere dal carcere. Torino, Einaudi, 1977, p. 138). Além disto, o caráter crítico ou dialógico da elaboração dos Quaderni del Carcere é um fato conhecido, tendo sido posto em relevo mais de uma vez no âmbito dos estudos gramscianos. G. Baratta (Le rose e i quaderni - il pensiero dialógico di Antonio Gramsci, Roma: Carocci/IGS, 2003, pp. 82-83) chamou a atenção para o “procedimento estruturalmente dialógico de Gramsci”, como ele próprio lembra, que já tinha sido corretamente posto em destaque por V. Gerratana. Segundo Baratta este procedimento poderia também ser chamado “socrático”, na medida em que o termo destacaria “tanto o caráter organicamente interrogativo como a inseparabilidade, nele, do conhecer e do agir”. Sob este prisma, a obra de Gramsci apareceria, “acima de tudo, como um incentivo, um convite ao diálogo” (Cfr. idem). Assim como para Asor Rosa (“La cultura”, in A. Asor Rosa. Storia d’Italia, v. 4, tomo II, Torino, Einaudi, 1975, p. 1048, nota 1) Gramsci seria um “crítico-continuador” das problemáticas culturais italianas surgidas nos últimos decênios do século XIX. Sem nos firmar naquilo que está implícito na afirmação de cada autor, queremos chamar a atenção para o consenso existente em relação ao procedimento polemista de Gramsci: o autor pensa por confrontação, por meio da crítica. A Ciência Política de A. Gramsci 129 motivo em cada uma das polêmicas aqui analisadas Gramsci rompe uma forma de imobilismo, de cristalização do pensamento e da ação, de enrijecimento do pensar e do agir. Em primeiro lugar procuramos mostrar como Gramsci enfrenta aquela que foi considerada a “marca de fábrica” da cultura política italiana – a teoria das elites129. Como vimos, no interior da argumentação acerca do problema da passividade histórica das massas emerge a “questão política dos intelectuais” e os fundamentais conceitos de intelectual orgânico e tradicional. Em outros termos, é no enfrentamento das ideias elitistas que eram então senso comum na Itália da primeira metade do século XX que Gramsci abordará o problema das minorias no poder em termos histórico críticos e não mais essencialistas, liberando a história da incômoda camisa de força da natureza humana. Do mesmo modo, será na polêmica com Croce e com seu realismo político conservador que emergirá uma vertente renovada da perspectiva realista, que também, por meio da crítica e da polêmica pode enfrentar a rigidez da separação entre os campos do pensamento e da ação, da teoria e da prática. A discussão sobre o método da ciência política, sua relação com a filosofia que ocorre a partir da discussão com Bukharin rompe a concepção rígida, positivista de ciência, dando lugar a uma concepção de ciência que se entende como parte da política, do conflito, do movimento histórico, e não como uma perspectiva supostamente neutra, anistórica ou supra-histórica. Deste modo, ao enfrentar criticamente o elitismo, o idealismo e o positivismo emerge uma concepção de ciência que não pode ser apartada da vida, da arte e da política, em seu permanente movimento. 129 Cfr. N. Bobbio, Gramsci e la teoria politica, in F. Sbarberi (org.). Teoria política e società industriale – ripensare Gramsci. Torino, Bollati Boringhieri, 1988, p. 32. 130 Luciana Aliaga Abstract This work analyzes the prison notes concerning the theory and method of Political Science. Furthermore looks at the relationship between science and action or as can be said between theory and practice. The notes as will be seen discuss on one hand about the interpretation of Machiavelli and the polemics with its modern followers in Italy. In the other hand refers to the renewal of Marxism in face of controversy with idealism and vulgar materialism within the socialist movement. Key words: political science; elites; philosophy of praxis; materialism; idealism; positivism. Questo lavoro analizza le note carcerarie di Gramsci relative alla teoria e al metodo della scienza politica. Inoltre, esamina il rapporto tra scienza e azione – ossia – tra teoria e pratica. Sono prese in esame, in particolare, da una parte l'interpretazione di Machiavelli e la polemica con i suoi seguaci moderni in Italia; dall'altra, si considera il rinnovamento del marxismo in riferimento ai dibattiti sull’idealismo e il materialismo volgare nell’ambito del movimento socialista. Parole chiave: scienza politica, elites, filosofia della prassi, materialismo, idealismo, positivismo