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DAVID FERNANDES RODRIGUES CORTESIA LINGUÍSTICA UMA COMPETÊNCIA DISCURSIVO-TEXTUAL FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA LISBOA 2003 DAVID FERNANDES RODRIGUES CORTESIA LINGUÍSTICA UMA COMPETÊNCIA DISCURSIVO-TEXTUAL (Formas verbais corteses e descorteses em Português) Dissertação de Doutoramento em Linguística – Teoria do Texto apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa sob a orientação das Professoras Doutoras Maria Antónia Coutinho e Fernanda Miranda Menéndez (Cofinanciamento do Estado Português e do Fundo Social Europeu, PRODEP III, Medida 5, Acção 5.3.) FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA LISBOA 2003 Agradecimentos Seríamos justamente considerados descorteses, isto é, incompetentes em cortesia, se não reconhecêssemos que este estudo não é obra dum homem só, apesar das horas e horas de trabalho solitário que lhe dedicámos. Cabe, por isso, agradecer a quantos connosco foram solidários. Às pessoas que aceitaram orientar-nos na apresentação, desenvolvimento e concretização do projecto: - Professora Doutora Luísa Soares Opitz, que patrocinou a candidatura e de cuja orientação beneficiámos até meados de 2000, altura em que, por razões de saúde, não pôde continuar a fazê-lo; - Professora Doutora Maria Antónia Coutinho e Professora Doutora Fernanda Miranda Menéndez, que assumiram a continuação dessa responsabilidade; agradecemos a disponibilidade sem limites, os incentivos permanentes, as sugestões oportunas, as críticas necessárias, a paciência generosa e a amizade sem adjectivos. Aos colegas do departamento e aos amigos, agradecemos as ajudas e os incentivos que, de diversas maneiras, incondicionalmente nos deram, em particular ao longo destes últimos duros quatro anos. Seja-nos permitido nomear, pelas suas preciosas ajudas, a Maria de Lurdes Magalhães e o Vítor Oliveira. À Professora Doutora Sandi Michele Oliveira agradecemos a cedência e o envio da sua tese de doutoramento e os incómodos que, para o efeito, lhe causámos. Agradecemos, por último, ao Instituto Politécnico de Viana do Castelo e à sua Escola Superior de Educação, bem como à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, as condições para a realização desta dissertação. Muito obrigado! Para a Conceição, o David Manuel, o Eugénio Miguel e a Eva Sofia com novo pedido de perdão, pela reincidência. ÍNDICE 11 INTRODUÇÃO GERAL 0. Notas prévias 12 0.1. Uma continuação 12 0.2. Cortesia linguística – breve nota sobre a designação 13 1. O problema, a tese, o projecto 15 2. O corpus 22 2.1. «Porque há-de ter menos realidade o mundo fingido ou sonhado do que qualquer outro?» 24 29 3. Resumos PRIMEIRA PARTE CORTESIA LINGUÍSTICA Quadro Teórico Geral Cap. I – INTERACÇÃO VERBAL E CORTESIA LINGUÍSTICA 1. Interacção verbal em sentido estrito 35 36 1.1. Conversa vs. diálogo 37 1.2. Unidades e composição duma interacção verbal em sentido estrito 41 2. Interacção verbal em sentido lato 51 2.1. O «instinto social» da linguagem (Bally) 51 2.2. O «princípio dialógico» (Bakhtine) 54 2.2.1. «Cada locutor é um co-locutor» (Benveniste) 2.3. Comunicação: esquematização discursiva (Grize) 63 65 2.3.1. Comunicar é esquematizar. Novo esquema de comunicação 66 2.3.2. Esquematizar é dar a ver: a noção de imagem 69 2.3.3. A importância da situação ou contexto 71 2.3.4. Esquematizar é representar 74 2.3.5. A importância dos preconstruídos culturais 78 2.4. Esquematização e competência discursivo-textual 80 2.5. Esquematização e Linguística Textual 86 2.6. Esquematização discursivo-textual: aspectos retóricos 93 2.7. Esquematização discursivo-textual e polifonia 98 105 105 Cap. II – CORTESIA LINGUÍSTICA – Teoria(s) 1. As teorias fundadoras 1.1. A teoria de Robin Tolmach Lakoff 107 1.2. A teoria de Geoffrey Leech 112 1.3. A teoria de Penelope Brown & Stephen C. Levinson 121 105 105 107 112 121 Cap. III – O «SISTEMA DE CORTESIA» LINGUÍSTICA DE C. KERBRAT-ORECCHIONI - Uma proposta ecléctica 131 1. Críticas e melhorias da teoria modelo 131 131 132 132 2.1. Processos linguísticos de cortesia 136 136 2.2. A importância das variantes sociais 143 143 152 152 2. O «sistema de cortesia» 3. Observações críticas 155 SEGUNDA PARTE CORTESIAS / DESCORTESIAS VERBAIS EM PORTUGUÊS Cap. IV – INTRODUÇÃO 161 161 Cap. V – CORTESIA / DESCORTESIA LINGUÍSTICA 167 EM PORTUGUÊS - Principais estudos 167 1. M. H. Araújo Carreira. Cortesia verbal - proxémia e modalidade 167 1.1. O trimorfo e o(s) eixo(s) das distâncias 169 176 1.3. Cortesia verbal e modalização 176 181 181 2.1. R. Meyer-Hermann: atenuação e cortesia no ensino do Português LE 181 2.2. Sílvia Skorge e Emília Ribeiro Pedro: diminutivos e cortesia 184 2.3. M. E. Ricardo Marques: cortesia e deferência 189 Cap. VI – TEMPOS E MODOS VERBAIS DE CORTESIA / DESCORTESIA 1. Os modos 193 1.1. O imperativo 169 173 1.2. Referência alocutiva, elocutiva e delocutiva 173 2. Outros estudos 167 193 193 181 184 189 193 193 193 1.2. Indicativo vs. Conjuntivo 199 199 1.3. Conjuntivo, modo de cortesia 204 204 2. Os tempos 211 211 211 2.1.Tempos / modos do presente 211 2.1.1. Presente do conjuntivo 211 211 2.1.2. Presente do indicativo 213 213 2.2. Tempos / modos do futuro 219 219 2.2.1. Futuro do indicativo 219 219 2.2.2. Futuro do conjuntivo 225 225 2.3. Tempos / modos do passado 226 226 2.3.1. Imperfeito do indicativo 226 226 2.3.2. Imperfeito do conjuntivo 229 229 2.3.3. Mais-que-perfeito 230 230 2.3.4. Condicional 230 230 2.3.5. Pretérito Perfeito 233 233 234 2.4. Formas verbais nominais 234 2.4.1. Infinitivo 234 234 2.4.2. Gerúndio 236 236 2.4.3. Particípio 237 237 3. Construções passivas 237 237 Cap. VII – CORTESIA / DESCORTESIA VERBAL E DIRECTIVIDADE 1. Noção e classificação dos actos directivos 241 241 2. Impositividade e cortesia / descortesia 251 241 241 251 Cap. VIII – CORTESIA / DESCORTESIA VERBAL – FORMAS SUBSTITUTAS DO IMPERATIVO E INTERJEIÇÕES 259 1. Formas substitutas do imperativo 259 259 2. As interjeições 262 259 3. Valores corteses e descorteses da interjeição portuguesa 266 262 266 TERCEIRA PARTE CORTESIA / DESCORTESIA VERBAL FORMAS DE TRATAMENTO EM PORTUGUÊS Cap. IX – INTRODUÇÃO 281 Cap. X – TRATAMENTOS EM PORTUGUÊS - Principais estudos 291 1. L. F. Lindley Cintra: primeira abordagem de sistematização (diacrónica e sincrónica) 291 2. Sandi Michel de Oliveira: estudo sociolinguístico – entre a variação e 297 (re)negociação 3. M. E. Ricardo Marques: as formas de tratamento, «símbolos» de 311 mudanças ou rupturas sociais 322 4. Gunther Hammermüller: formas de tratamento e convenções sociais 5. M. H. Araújo Carreira: formas de tratamento e regulação das distâncias 325 interpessoais Cap. XI – AS PRINCIPAIS FORMAS DE TRATAMENTO EM PORTUGUÊS EUROPEU. Uma história de cortesias 341 343 1. Tu e vós 347 2. Você 352 3. Senhor / a 359 O senhor, pronome? 361 «Minhas senhoras e meus senhores» 362 Valores interjectivos de senhor / a 367 Seu / sua, formas reduzidas de senhor / a ou possessivos? 373 Senhor / a, dom / dona como insultos 375 4. Vossa senhoria e vossa excelência 379 Cap. XII – AS FORMAS DE TRATAMENTO NO QUADRO DA CORTESIA 379 385 LINGUÍSTICA 1. Tratamentos alocutivos 2. Tratamentos elocutivos e delocutivos QUARTA PARTE CORTESIA / DESCORTESIA LINGUÍSTICA UMA COMPETÊNCIA DISCURSIVO-TEXTUAL Práticas e Análises 395 Cap, XIII – INTRODUÇÃO 403 Cap. XIV – CORTESIAS E DESCORTESIAS DISCURSIVO-TEXTUAIS EM INTERACÇÕES VERBAIS EM SENTIDO LATO 404 409 1. A complexidade discursivo-textual da novela O Malhadinhas 412 2. O discurso-texto do narrador-editor d’O Malhadinhas 417 2.1. Construções corteses e descorteses 422 2.2. Processos de figuração 2.3. Da figuração descortês à figuração cortês Cap. XV – CORTESIAS E DESCORTESIAS DISCURSIVO-TEXTUAIS EM INTERACÇÕES VERBAIS EM SENTIDO ESTRITO. 429 AS FORMAS DE TRATAMENTO (Aspectos retórico-argumen- 431 tativos e polifónicos) 431 1. Cortesias e descortesias duma senhora de muita treta 452 1.1. Interacção verbal Salta-Pocinhas vs. D. Salamurdo 2.2. Interacção verbal Salta-Pocinhas vs. Bufo 464 2. Formas de tratamento e polifonia discursivo-textual. Breves observações CONCLUSÕES FINAIS BIBLIOGRAFIA 475 487 DAVID FERNANDES RODRIGUES CORTESIA LINGUÍSTICA UMA COMPETÊNCIA DISCURSIVO-TEXTUAL (Formas verbais corteses e descorteses em Português) Dissertação de Doutoramento em Linguística – Teoria do Texto apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa sob a orientação das Professoras Doutoras Maria Antónia Coutinho e Fernanda Miranda Menéndez (Cofinanciamento do Estado Português e do Fundo Social Europeu, PRODEP III, Medida 5, Acção 5.3.) FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA LISBOA 2003 Agradecimentos Seríamos justamente considerados descorteses, isto é, incompetentes em cortesia, se não reconhecêssemos que este estudo não é obra dum homem só, apesar das horas e horas de trabalho solitário que lhe dedicámos. Cabe, por isso, agradecer a quantos connosco foram solidários. Às pessoas que aceitaram orientar-nos na apresentação, desenvolvimento e concretização do projecto: - Professora Doutora Luísa Soares Opitz, que patrocinou a candidatura e de cuja orientação beneficiámos até meados de 2000, altura em que, por razões de saúde, não pôde continuar a fazê-lo; - Professora Doutora Maria Antónia Coutinho e Professora Doutora Fernanda Miranda Menéndez, que assumiram a continuação dessa responsabilidade; agradecemos a disponibilidade sem limites, os incentivos permanentes, as sugestões oportunas, as críticas necessárias, a paciência generosa e a amizade sem adjectivos. Aos colegas do departamento e aos amigos, agradecemos as ajudas e os incentivos que, de diversas maneiras, incondicionalmente nos deram, em particular ao longo destes últimos duros quatro anos. Seja-nos permitido nomear, pelas suas preciosas ajudas, a Maria de Lurdes Magalhães e o Vítor Oliveira. À Professora Doutora Sandi Michele Oliveira agradecemos a cedência e o envio da sua tese de doutoramento e os incómodos que, para o efeito, lhe causámos. Agradecemos, por último, ao Instituto Politécnico de Viana do Castelo e à sua Escola Superior de Educação, bem como à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, as condições para a realização desta dissertação. Muito obrigado! Para a Conceição, o David Manuel, o Eugénio Miguel e a Eva Sofia com novo pedido de perdão, pela reincidência. ÍNDICE 11 INTRODUÇÃO GERAL 12 0. Notas prévias 0.1. Uma continuação 12 0.2. Cortesia linguística – breve nota sobre a designação 13 1. O problema, a tese, o projecto 15 2. O corpus 22 2.1. «Porque há-de ter menos realidade o mundo fingido ou sonhado do que qualquer outro?» 3. Resumos 24 29 PRIMEIRA PARTE CORTESIA LINGUÍSTICA Quadro Teórico Geral Cap. I – INTERACÇÃO VERBAL E CORTESIA LINGUÍSTICA 1. Interacção verbal em sentido estrito 35 36 1.1. Conversa vs. diálogo 37 1.2. Unidades e composição duma interacção verbal em sentido estrito 41 2. Interacção verbal em sentido lato 51 2.1. O «instinto social» da linguagem (Bally) 51 2.2. O «princípio dialógico» (Bakhtine) 54 2.2.1. «Cada locutor é um co-locutor» (Benveniste) 2.3. Comunicação: esquematização discursiva (Grize) 63 65 2.3.1. Comunicar é esquematizar. Novo esquema de comunicação 66 2.3.2. Esquematizar é dar a ver: a noção de imagem 69 2.3.3. A importância da situação ou contexto 71 2.3.4. Esquematizar é representar 74 2.3.5. A importância dos preconstruídos culturais 78 2.4. Esquematização e competência discursivo-textual 80 2.5. Esquematização e Linguística Textual 86 2.6. Esquematização discursivo-textual: aspectos retóricos 93 2.7. Esquematização discursivo-textual e polifonia 98 6 Cap. II – CORTESIA LINGUÍSTICA – Teoria(s) 105 105 1. As teorias fundadoras 1.1. A teoria de Robin Tolmach Lakoff 107 1.2. A teoria de Geoffrey Leech 112 1.3. A teoria de Penelope Brown & Stephen C. Levinson 121 Cap. III – O «SISTEMA DE CORTESIA» LINGUÍSTICA DE C. KERBRAT-ORECCHIONI - Uma proposta ecléctica 131 1. Críticas e melhorias da teoria modelo 132 2. O «sistema de cortesia» 136 2.1. Processos linguísticos de cortesia 143 2.2. A importância das variantes sociais 152 3. Observações críticas 155 SEGUNDA PARTE CORTESIAS / DESCORTESIAS VERBAIS EM PORTUGUÊS Cap. IV – INTRODUÇÃO 161 Cap. V – CORTESIA / DESCORTESIA LINGUÍSTICA EM PORTUGUÊS - Principais estudos 1. M. H. Araújo Carreira. Cortesia verbal - proxémia e modalidade 167 167 1.1. O trimorfo e o(s) eixo(s) das distâncias 169 1.2. Referência alocutiva, elocutiva e delocutiva 173 1.3. Cortesia verbal e modalização 176 2. Outros estudos 181 2.1. R. Meyer-Hermann: atenuação e cortesia no ensino do Português LE 181 2.2. Sílvia Skorge e Emília Ribeiro Pedro: diminutivos e cortesia 184 2.3. M. E. Ricardo Marques: cortesia e deferência 189 Cap. VI – TEMPOS E MODOS VERBAIS DE CORTESIA / DESCORTESIA 1. Os modos 193 193 7 O imperativo 193 Indicativo vs. conjuntivo 199 Conjuntivo, modo de cortesia 204 2. Os tempos Tempos / modos do presente 211 211 2.1.1. Presente do conjuntivo 211 2.1.2. Presente do indicativo 213 2.2. Tempos / modos do futuro 219 2.2.1. Futuro do indicativo 219 2.2.2. Futuro do conjuntivo 225 2.3. Tempos / modos do passado 226 2.3.1. Imperfeito do indicativo 226 2.3.2. Imperfeito do conjuntivo 229 2.3.3. Mais-que-perfeito 230 2.3.4. Condicional 230 2.3.5. Pretérito Perfeito 233 2.4. Formas verbais nominais 234 2.4.1. Infinitivo 234 2.4.2. Gerúndio 236 2.4.3. Particípio 237 3. Construções passivas 237 Cap. VII – CORTESIA / DESCORTESIA VERBAL E DIRECTIVIDADE 241 1. Noção e classificação dos actos directivos 241 2. Impositividade e cortesia / descortesia 251 Cap. VIII – CORTESIA / DESCORTESIA VERBAL – FORMAS SUBSTITUTAS DO IMPERATIVO E INTERJEIÇÕES 259 1. Formas substitutas do imperativo 259 2. As interjeições 262 3. Valores corteses e descorteses da interjeição portuguesa 266 8 TERCEIRA PARTE CORTESIA / DESCORTESIA VERBAL FORMAS DE TRATAMENTO EM PORTUGUÊS Cap. IX – INTRODUÇÃO 281 Cap. X – TRATAMENTOS EM PORTUGUÊS - Principais estudos 291 1. L. F. Lindley Cintra: primeira abordagem de sistematização (diacrónica e sincrónica) 291 2. Sandi Michel de Oliveira: estudo sociolinguístico – entre a variação e (re)negociação 297 3. M. E. Ricardo Marques: as formas de tratamento, «símbolos» de mudanças ou rupturas sociais 4. Gunther Hammermüller: formas de tratamento e convenções sociais 311 322 5. M. H. Araújo Carreira: formas de tratamento e regulação das distâncias interpessoais 325 Cap. XI – AS PRINCIPAIS FORMAS DE TRATAMENTO EM PORTUGUÊS EUROPEU. Uma história de cortesias 341 1. Tu e vós 343 2. Você 347 3. Senhor / a 352 O senhor, pronome? 359 «Minhas senhoras e meus senhores» 361 Valores interjectivos de senhor / a 362 Seu / sua, formas reduzidas de senhor / a ou possessivos? 367 Senhor / a, dom / dona como insultos 373 4. Vossa senhoria e vossa excelência 375 Cap. XII – AS FORMAS DE TRATAMENTO NO QUADRO DA CORTESIA LINGUÍSTICA 379 1. Tratamentos alocutivos 379 2. Tratamentos elocutivos e delocutivos 385 9 QUARTA PARTE CORTESIA / DESCORTESIA LINGUÍSTICA UMA COMPETÊNCIA DISCURSIVO-TEXTUAL Práticas e Análises Cap, XIII – INTRODUÇÃO 395 Cap. XIV – CORTESIAS E DESCORTESIAS DISCURSIVO-TEXTUAIS EM INTERACÇÕES VERBAIS EM SENTIDO LATO 403 1. A complexidade discursivo-textual da novela O Malhadinhas 404 2. O discurso-texto do narrador-editor d’O Malhadinhas 409 2.1. Construções corteses e descorteses 412 2.2. Processos de figuração 417 2.3. Da figuração descortês à figuração cortês 422 Cap. XV – CORTESIAS E DESCORTESIAS DISCURSIVO-TEXTUAIS EM INTERACÇÕES VERBAIS EM SENTIDO ESTRITO. AS FORMAS DE TRATAMENTO (Aspectos retórico-argumentativos e polifónicos) 1. Cortesias e descortesias duma senhora de muita treta 429 431 1.1. Interacção verbal Salta-Pocinhas vs. D. Salamurdo 431 2.2. Interacção verbal Salta-Pocinhas vs. Bufo 452 2. Formas de tratamento e polifonia discursivo-textual. Breves observações 464 CONCLUSÕES FINAIS 475 BIBLIOGRAFIA 487 INTRODUÇÃO GERAL Não sabe que há palavras soltas da boca que ferem como pedras? Aquilino Ribeiro1 A sociedade tem tambem sua grammatica, que é necessario estudar, e os que desprezão suas regras se não levão palmatoadas, ou outro qualquer castigo, são olhados como homens sem educação, e muitas vezes rejeitados. [...] E não penseis que estas regras são arbitrárias: [...] eu as encontrei escritas em livros, e rigorosamente observadas nas sociedades e no trato do mundo. J.-I. Roquette2 Le langage est un élément primordial dans le domaine du savoir-vivre: en effet, la compétence linguistique rejoint souvent l’exigence de la distinction. Le langage est à l’évidence une des clés de la “rhétorique sociale” que constitue le savoir-vivre. Le savoir-vivre est en effet un “art de persuader” dont le langage est un vecteur essentiel, avec les gestes et les “manières” en générale. Le langage est aussi le lieu par excellence de la reconnaissance sociale. Emmanuel Bury3 Il ne sera point ici question des mille et une façons de se tenir à table, mais uniquement de ce qu’on appelle communément la politesse linguistique. Catherine Kerbrat-Orecchioni4 1 RIBEIRO, 1983: 266. Após a primeira referência a um autor ou grupo de autores, pelos respectivos nomes completos, passaremos a utilizar, apenas, os últimos apelidos. 2 ROQUETTE, 18592: 7. Respeitámos e respeitaremos, nas citações, a grafia das edições consultadas. 3 BURY, 1995: 531. 4 KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 162. 12 0. Notas prévias 0.1 Uma continuação Este estudo é uma exigência e uma continuação da nossa dissertação de mestrado em Teoria do Texto.5 Ao analisarmos, aí, as diferentes sequências dialogais representadas num conto para crianças,6 concluíamos que «as personagens num diálogo, através das falas e só por elas», além dos actos ilocutórios que realizam, com ou sem a felicidade perlocutória desejada, estabeleciam também, por isso e para isso, «relações especiais de aproximação ou afastamento, de persuasão ou poder, de sedução ou anulação.» E acrescentávamos que este aspecto das relações interpessoais constituía «um novo e recente ramo da investigação linguística e pragmática» - a cortesia verbal - que seria «a via aberta e entrevista» de futuros estudos que viéssemos a realizar, no quadro teórico alargado da Linguística Pragmática.7 Esta dimensão de natureza relacional ou interpessoal, os meios da sua expressão e o seu funcionamento, nas interacções verbais, não puderam ser suficientemente descritos e analisados, nesse estudo, dados os limites de tempo e de páginas concedidos. Centrámo-nos, por isso, sobretudo nos planos da textualidade (sequencialidade e configuracionalidade8) da narrativa / conto e, com particular desenvolvimento, na textualidade das sequências dialogais, em virtude da quantidade e diversidade de diálogos nesse conto configurados. Além disso, aquela dimensão, embora reconhecida, não se nos apresentava, de início, com a importância que, com o desenvolvimento do estudo e a elaboração da respectiva tese, viemos a confirmar. Ficaram, assim, por desenvolver e aprofundar aspectos que se prendem com as relações interpessoais que os interlocutores estabelecem e gerem, segundo os co(n)textos de comunicação, através das diferentes práticas discursivo-textuais9 que realizam. A partir de meados de 1995,10 passámos, por isso, a recolher dados e informa5 Cf. RODRIGUES, 1994. Dissertação elaborada sob a orientação da Professora Doutora Luísa Soares Opitz, apresentada à Faculdade Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, em finais de 1994. 6 «Mestre grilo cantava e a giganta dormia», primeiro conto de Arca de Noé, III Classe. Cf. RIBEIRO, 1989a: 11-28. 7 Cf. RODRIGUES, 1994: 177. 8 Cf. ADAM, 1990 e 1992. 9 É através de discursos realizados em textos que a capacidade e a actividade de comunicação verbal se concretiza. Para explicação mais desenvolvida sobre esta questão, ver, infra, cap. I, particularmente subsecção 2.4. 10 A defesa da nossa dissertação de mestrado ocorreu em 29 de Maio de 1995. 13 ções que nos permitissem apresentar, logo que possível, um projecto de investigação de candidatura a doutoramento, centrado no estudo dos fenómenos verbais corteses e descorteses, o que veio a concretizar-se em meados de 1997.11 Foi, porém, só a partir de Janeiro de 1999, data em que passámos a beneficiar da situação de equiparação a bolseiro (no âmbito das medidas do PRODEP), que, em dedicação exclusiva e absorvente, pudemos entregar-nos ao desenvolvimento do projecto. Até então, as actividades docentes e académicas não o permitiam: membro dos Conselhos Científico e Pedagógico; Responsável Pedagógico pelo FOCO e pela Biblioteca da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Viana do Castelo; leccionação de várias disciplinas e supervisão teórico-prática (preparação, reflexão, observação em diferentes escolas e avaliação) de aulas de Língua Portuguesa, realizadas por alunos do 4.º ano das variantes Português / Francês e Português / Inglês. 0.2. Cortesia linguística - breve nota sobre a designação Esta dissertação é sobre a cortesia verbal ou linguística, expressão que designa tanto os fenómenos verbais de cortesia e as suas regras, como, pela sua ausência ou negação, os de descortesia. Designa também a teoria linguística que os estuda. Tomamos aqui cortesia como arquilexema que recobre sentidos expressos também por termos como boa educação, boas maneiras, bons modos, bom tom, cavalheirismo, cerimónia, civilidade, civismo, comedimento, conveniência, deferência, delicadeza, etiqueta, homenagem, honraria, modéstia, polidez, respeito, reverência, protocolo, tacto, urbanidade, etc. A lista que apresentámos, por ordem alfabética, baseada em definições e remissões encontradas em dicionários de Português europeu, não é, evidentemente, exaustiva.12 Os termos mais utilizados para referir o que entendemos por cortesia, tomados como quasessinónimos, são delicadeza e polidez, com predomínio do primeiro.13 Preferimos, todavia, cortesia, por se tratar de termo cuja definição lexical compreende os valores que em delicadeza e polidez se encontram, mas também porque 11 A inscrição no referido doutoramento deu-se em 12 de Junho de 1997, por despacho do Presidente do Conselho Científico da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa. 12 Paula Bobone faz uma breve abordagem da noção de politesse e doutros termos com idênticos sentidos (civilidade, cortesia, etiqueta, protocolo...), no quadro dos comportamentos sociais correctos, em BOBONE, 1999: 49-51. 13 É o que se verifica, por exemplo, em CARREIRA, 2001; CASANOVA, 1996; GOUVEIA, 1996; PEDRO, 1993; SEARA & LEITÃO, 2000; SILVA, 1994. 14 remete, na sua etimologia, para a origem e história dos comportamentos assim considerados.14 «E porque todas estas cerimónias se inventaram nas cortes dos Príncipes, por nelas haver precedência de dignidades e estas súbditas a um príncipe, chamamos a todas estas cerimónias cortesia, derivando de corte onde tiveram seu nascimento».15 Como se verá, ao abordarmos a história das principais formas de tratamento portuguesas,16 a vida da corte foi sempre modelo de comportamento seguido e ambicionado (mesmo quando criticado) pelas pessoas que a ela não tinham acesso directo nem diário. Em Portugal, como noutros países ocidentais, tal modo de vida era sinal de distinção social, privilégio reservado a uns tantos que, para o efeito, chegavam a receber educação especial. Eram os cortesãos, cujos tratamentos distintivos, seus e dos outros, regulamentavam, através de provisões e outros normativos régios.17 Cortês passou a designar tanto a vida da corte como a vida em sociedade que a ela se assemelhava. O léxico regista, aliás, dois termos para a definição de cortesia, que correspondem, precisamente, à noção de cortês, no sentido alargado da vida social, e de cortesão, no sentido restrito da vida privativa da corte: «Cortesia é a demonstração externa de respeito, comedimento, urbanidade e bom modo, para com todos os nossos semelhantes, conforme prescreve a boa educação. Cortesania é a prática das civilidades da corte e o requinte da cortesia segundo os usos, estilos e maneiras mais apuradas dos que frequentam a corte. O primeiro é próprio do homem cortês; o segundo é só próprio do cortesão.»18 14 Como nós, também se verifica preferência por cortesia, em FONSECA (J.), 1994: 32 e 1996: passim; LAPA, 19758: 151 e passim; MAÇÃS, 1976: passim; MEYER-HERMANN, 1984: passim; OLIVEIRA, 1995: passim; SOARES, 1996: passim. Há autores que utilizam ora delicadeza, ora cortesia, ora polidez, por exemplo, em CUNHA & CINTRA, 1984: passim; LUZ, 1956-59: passim. 15 João de Barros, Décadas II, 5, cit. por SILVA, 195110: 610. 16 Ver, infra, cap. XI. 17 «Posto que estes nomes [palacianos e cortezãos] sejão quasi sempre tomados á má parte por isso que nas côrtes e palacios é onde mais reina a intriga, a duplicidade e a lisonja, devemos reconhecer que é esta a melhor escola para se aprender as bôas maneiras, as expressões escolhidas, a polidez, a urbanidade e um certo ar e bom tom, que annuncião o illustre nascimento e a boa criação. Não imiteis, meus filhos, os defeitos dos palacianos e dos cortezãos, mas imitai sua polidez e suas maneiras agradaveis.» [ROQUETTE, 18592: 11] 18 SILVA, 195110 (vol. 3): 610. 15 Para designar o reverso da noção, preferimos, morfo-logicamente, o termo descortesia, em cuja definição incluímos a simples ausência de cortesia e a sua negação ostensiva, em graus diferentes, de que a calúnia, a grosseria, a injúria e o insulto19 serão a expressão máxima e mais nítida. Dizemos serão, porque o contexto é fundamental para se avaliar tanto as descortesias como as cortesias verbais. Cabe ainda observar que polidez poderia ser também um termo adoptado. A adopção justificar-se-ia pelo léxico e pela proximidade que tem com os termos francês («politesse») e inglês («politeness»).20 Na sua etimologia, encontra-se o verbo latino polire, acção de polir. Catherine Kerbrat-Orecchioni invoca-a, para observar que «la politesse a pour fonction d’arrondir les angles et de “polir” les rouages de la machine conversationnelle, afin d’épargner à ses utilisateurs de trop vives blessures.»21 1. O problema, a tese, o projecto Em virtude da natureza intrinsecamente interaccional da actividade da linguagem, toda a prática discursivo-textual, enquanto processo e produto de comunicação verbal, é sempre condicionada pelas e condicionante das relações interpessoais (existentes, presumidas ou desejadas) entre aquele que fala ou escreve e aquele a quem se dirige, bem como por aquele de quem se fala ou escreve, em contextos correntes ou ficcionais e literários. Sintetizando-se ainda mais o que já em síntese se acaba de dizer, mas que ao longo desta dissertação, com mais desenvolvimento, se procurará mostrar, em particular no capítulo I, há sempre um mútuo condicionamento e influência, com reflexos mais ou menos claros, tanto numas como noutras, entre as relações interpessoais dos indivíduos, directas e/ou indirectas, e as suas práticas de comunicação verbal. A adequação das relações às práticas e destas àquelas manifesta-se em desempenhos que pressupõem ou implicam diferentes tipos e níveis de competência discursivo-textual (é através de discursos concretizados em textos que a capacidade de comunicação verbal se desempenha). Tal competência conjuga conhecimentos e saberes de natu19 Como curiosidade, eis a lista das descortesias verbais e paraverbais, em meados do século XIX: «calumnia, maledicencia, murmuração, mentira, graças pesadas, palavras injuriosas, revelação de segredo confiado, espirito de contradicção, porfias, teimas, remoques, chascos, sotaques, graçolas, dichotes, chufas, zombarias e facecias indecentes ou burlescas». [ROQUETTE, 18592: 149] 20 Refira-se que os brasileiros preferem o termo polidez, enquanto os espanhóis preferem o termo cortesía. A título de exemplo, o volume La Politesse, colectânea de artigos dirigida por Régine Dhoquois (cf. DHOQUOIS (dir.), 1992), foi traduzido, no Brasil, por A Polidez (Porto Alegre: L&PM, 1993), em Espanha, por La Cortesía (Madrid: Cátedra, 1993) e, em Portugal, por A Delicadeza (Lisboa: Difel, 1992). 21 KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 65. 16 reza psicossocial e sociocultural diversos, por um lado, e de natureza linguística, paralinguística e metalinguística, por outro. Esses tipos e níveis de competência são naturalmente diferentes entre os locutores (falantes, escreventes, escritores) e os alocutários (ouvintes e leitores), e em cada um deles. Trata-se de capacidades adquiridas e desenvolvidas através de aprendizagens formais e informais, também elas diferentes e diversas, intra e interculturalmente. São essas competências que explicam a diversidade e a criatividade relativa dos diferentes desempenhos individuais e interindividuais, mas simultaneamente a relativa unidade de formas e formatos (géneros) de cada um desses desempenhos, pois só assim pode haver alocução, interlocução, interacção, numa palavra, comunicação. É, por isso, duma macrocompetência que se trata, a que, na sequência das reflexões e proposta de Dell H. Hymes, se dá o nome de competência de comunicação ou comunicativa.22 «Falamos e escrevemos para comunicar algo a alguém num espaço e num tempo determinados, em situações específicas, localizadas institucionalmente, sujeitas, portanto, a regras que nos transcendem como sujeitos falantes individuais, sem que, no entanto, nos anulem como indivíduos.»23 Comunicar é, sem dúvida, participar, cooperar e interagir, mas é também e acima de tudo, partilhar, como a etimologia da palavra sugere e a experiência da vida confirma. A comunicação é uma partilha de sentidos e sentimentos, ideias e opiniões, afectos e crenças, conhecimentos e saberes, vozes e silêncios, presenças e ausências. Ou a recusa de tudo isto, incluindo as vãs tentativas de negar a própria comunicação, porque, ao tentar fazê-lo, está-se, ainda assim, a comunicar, a partilhar que não se deseja comunicar, pelo menos segundo determinados moldes, naquelas circunstâncias, temporária ou definitivamente. Observa Hymes que «la “communication” n’est pas un but mais un attribut du langage»24 e, por isso, sempre que se utiliza a linguagem, mais que entrar em comunicação, é estar em comunicação, em partilha com o outro, que pode ser 22 Sobre a noção de competência de comunicação, segundo Hymes, cf. HYMES, 1991. O autor agrupa em três tendências principais os tipos de «competência linguística alargada», conforme o termo é utilizado por vários estudiosos, segundo se interessam (i) «à la littérature et à l’art verbal d’un point de vue linguistique»: poética, literária, mitológica, retórica, narrativa, do enigma; (ii) «à l’usage interpersonnel du langage»: de conversação, de interacção, de situação, social, sociolinguística, pragmática; (iii) «sur les différences entre individus et entre rôles individuels»: de recepção, de produção, ou não as tendo, uma incompetência de comunicação. [cf. id.: 126-127] 23 PEDRO, 1996: 450. 24 HYMES, 1991: 129. 17 o próprio, num desdobramento dialógico e polifónico, impossível de ignorar, depois de conhecidas as reflexões de Mikhail Bakhtine.25 Não é só através de palavras organizadas em discursos-textos que se comunica. Também se participa, interage, coopera e partilha através de comportamentos paraverbais (entoação, altura, suavidade e velocidade de fala) e não verbais (gestos, atitudes, posturas corporais, contactos físicos devidos ou indevidos, formas de vestir e andar, de sentar e comer, de estar e viver, etc.) A competência discursivo-textual inclui tanto as capacidades, os processos, os factores e os moldes ou modelos de produção, como os seus correlatos, aos diferentes níveis de recepção, onde os da análise e interpretação não são menos complexos e exigentes. Neste quadro, a cortesia verbal é um fenómeno transsemiótico, pois que, como observa Robin Tolmach Lakoff, «las máximas de cortesía funcionan al mismo tiempo para el habla y para las acciones». Assim sendo, «las reglas del lenguaje y las reglas para otros tipos de transacciones humanas cooperativas [ou não cooperativas, acrecentamos nós] son partes de un mismo sistema; es inútil situar el comportamiento lingüístico separado de otras formas de comportamiento humano.»26 Mas é da cortesia linguística que tratamos. Saber falar e escrever é saber realizar práticas discursivo-textuais, cumprindo, melhor, sabendo cumprir, consoante os contextos e a sua dinâmica, as regras sociais, linguísticas, paralinguísticas e extralínguísticas, que governam a vida em sociedade – a sua gramática – numa comunidade ou num grupo. É, portanto, ser-se possuidor duma competência que em diferentes desempenhos ou práticas se efectiva e/ou que os diferentes desempenhos ou práticas constroem e manifestam. E porque assim é, tal competência confunde-se com o saber ser ou não cortês, porque saber falar ou escrever, realizar práticas discursivo-textuais, actos de comunicação adequados aos contextos, é também um «savoir-vivre» que através dum «savoir-dire» (que também é um «savoir-faire») se concretiza. O sucesso ou o insucesso dum acto de comunicação é, portanto, também uma competência ou incompetência discursivo-textual de cortesia. Saber falar e escrever é saber, não só, o que se diz, mas também o que se pode ou não dizer, o que se deve dizer e como dizer o que se tem a dizer, segundo as circuns25 Ver, infra, cap. I, 2.2. e 2.7. Os números que seguem a numeração do capítulo remetem para as respectivas secções ou subsecções. Assim, por exemplo, na caso anterior, o tema é abordado no capítulo I, secção 2. e subsecções 2.2. e 2.7. Serve esta observação para as restantes indicações. 26 LAKOFF, 1998: 275. Servimo-nos da tradução espanhola, por não ter sido possível consultar a versão em Inglês. Cf. também CARREIRA, 1995: 194. 18 tâncias materiais (quadro espácio-temporal) e psicossociais (quadro interpessoal), e os fins desejados, isto é, o contexto e as dinâmicas interpessoal e discursiva nele desenvolvidas.27 Tal competência de cortesia consiste também na vigilância que aquele que fala ou escreve mantém sobre as interacções verbais em que intervém. Como observa, em feliz afirmação de síntese, Bernard Pottier, «mon intention de politesse va surveiller constamment mon discours».28 Nas diferentes práticas discursivo-textuais, os comportamentos verbais corteses e descorteses são escalares. As suas realizações situam-se, por isso, ao longo dum eixo imaginário, ou num cruzamento dum eixo vertical («poder») com um eixo horizontal («solidariedade»), em cujos pólos se situam, respectivamente, as ocorrências de mais elevado nível ou grau. Há autores que consideram existir uma zona neutra, onde situam formas que não expressam nem cortesia nem descortesia.29 Em nosso entender, segundo a concepção alargada que defendemos de cortesia verbal, situamos nessa zona o que designamos por grau zero dos comportamentos verbais corteses e descorteses. Zona cuja fronteira entre a cortesia e a descortesia – concordamos - é muito ténue e subtil, mas que, a nosso ver, não constitui razão suficiente para que haja comportamentos verbais neutros. Quando se encontra uma prática discursivo-textual adequada ao contexto de realização, não acompanhada de fórmulas e/ou formas30 de cortesia ou de descortesia, estamos perante comportamentos corteses ou descorteses mínimos. Com Henk Haverkate dizemos, portanto, que «ningún hablante, cualquiera que sea su lengua materna, es capaz de expresarse de forma neutra: sus locuciones son corteses o no lo son, lo cual equivale a afirmar que la cortesía está presente o está ausente; no hay término medio.»31 Os fenómenos ou comportamentos verbais corteses e descorteses, a par dos valores que as suas formas e fórmulas representam ao nível da língua (lexicais, morfossintácticos, semântico-pragmáticos) e sobretudo ao nível das diferentes práticas discursivo--textuais, constituem o objecto da cortesia linguística. Trata-se de domínio recente 27 Seguimos uma concepção ampla de contexto, de acordo com o descrição que se encontra em KERBRAT-ORECCHIONI, 1990: 75-111, ou, para resumo, 1996: 16-22. 28 POTTIER, 1992-93, cit. por CARREIRA, 1995: 197. 29 Cf., v.g., LAKOFF, 1989: 103 e KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 165 e 2000b: 32. 30 Sobre a distinção que fazemos entre fórmulas e formas, ver, infra, cap. IV. 31 HAVERKATE, 1994: 17. 19 de investigação linguística, com início datado nos princípios dos anos 70 do século passado e desenvolvimento surpreendente a partir da década seguinte. O interesse pelos fenómenos da cortesia em geral, e dos verbais, em particular, tanto a nível intracultural como intercultural e mesmo transcultural, é de tal ordem, que Kerbrat-Orecchioni chega mesmo a afirmar que «la politesse est à la mode».32 Ludmila Kastler é de opinião que este renovado e crescente interesse pela cortesia linguística se fica a dever a duas ordens de razões principais. Em primeiro lugar, ao «cruzamento de culturas», em virtude do qual, «l’aspiration à comprendre l’Autre […] à travers son comportement langagier habituel est tout à fait compréhensible.» Depois, tal interesse «est la suite logique de l’attention privilégiée que les linguistes portent actuellement à la communication, aux interactions verbales, à l’analyse conversationnelle».33 As noções actuais de «aldeia global», de «comunicação sem fronteiras», de «sociedade de informação» e de «globalização» ajudarão a compreender também este fenómeno, que mostra, além disso, como a cortesia linguística é, de facto, uma questão também de competência discursivo-textual. Kerbrat-Orecchioni situa, na noção alargada de cortesia linguística, «tous les aspects du discours qui sont régis par des règles, et dont la fonction est de préserver le caractère harmonieux de la relation interpersonnelle».34 Ao linguista cabe, por isso, «décrire non plus les relations qui s’établissent entre les différents constituants du texte conversationnel, mais celles qui se construisent, par le biais de l’échange verbal, entre les interactants eux-mêmes».35 É, pois, no campo das interacções verbais em sentido estrito36 que a autora situa o estudo dos fenómenos linguísticos corteses e descorteses, entre outros.37 Os actos de 32 KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 161. KASTLER, 1998 : 31-32. Além doutras manifestações do renovado interesse pela cortesia, em geral, e pela cortesia linguística, em particular, refira-se que, a par de congressos, seminários, colóquios, encontros, se vem realizando cada vez mais estudos sobre esta matéria, inclusive em Portugal. De referir, a propósito, que o n.º 21-5 de Journal of Pragmatics (1994) apresenta uma recolha bibliográfica sobre a cortesia linguística que contém 900 títulos, publicados só em Inglês. Se se lhe juntar os títulos publicados, desde aquela data, e os títulos publicados também noutras línguas, nomeadamente em Francês, o número ultrapassará, certamente, o milhar. O interesse renovado doutras ciências sociais e humanas pelos fenómenos da cortesia verifica-se na publicação de estudos como os de BURY, 1996; DHOQUOIS (dir.), 1992 e de PERNOT, 1996. Cf. também WAUTHION & SIMON (ed.), 2000. Ao nível da sociedade em geral, veja-se o sucesso editorial de manuais de etiqueta e boas maneiras, por exemplo. 34 KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 50-51. 35 KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 50-51 e 41. Cf., também, 1992: 163-164. Sobre o modelo de análise do sistema de cortesia linguística, proposto por esta autora, ver, infra, cap. III. 36 Estabelecemos uma distinção entre interacção verbal em sentido estrito e em sentido amplo, no cap. I. 37 Kerbrat-Orecchioni situa, ainda, no âmbito dos estudos das relações interpessoais, outros fenómenos «qui ont d’ores et déjà fait l’objet d’études approfondies», destacando «les procédés instaurant entre les 33 20 discurso destinados a proteger e a reparar (por atenuação e/ou compensação) eventuais ameaças das faces (positiva e/ou negativa) do alocutário como do locutor («Face Threatening Act» - FTA), por um lado, e os actos de discurso destinados a valorizar as faces do alocutário («Face Flattering Act» – FFA) e, por uma questão de cortesia, a desvalorizar as faces do locutor, por outro, constituem os principais meios discursivo-textuais a que os interlocutores / interactantes recorrem.38 O inventário e descrição das fórmulas e formas linguísticas, bem como os valores e as funções que realizam, estão ainda pouco estudados em Portugal. Entre nós, só muito recentemente a cortesia verbal (e apenas a cortesia) começou a merecer a atenção dos linguistas. O elenco dos processos de manifestação de cortesia verbal que apresentamos,39 fornecendo uma listagem bastante completa, é baseado fundamentalmente nos trabalhos de Kerbrat-Orecchioni.40 Esta linguista francesa inventaria e descreve tais processos tendo em consideração, por um lado, a sua realização em interacções verbais em sentido estrito e, por outro, segundo a sua orientação de referência essencialmente alocutiva e elocutiva.41 Cabe referir, a este respeito, que um locutor pode ser cortês ou descortês também em relação a um terceiro (ausente, ou presente, mas considerado como ausente ou terceiro excluído). O estudo de Maria Helena de Araújo Carreira42 complementa, neste aspecto da delocução, o «sistema de cortesia» proposto por Kerbrat-Orecchioni. Além disso, a linguista francesa não trata com desenvolvimento os valores de cortesia e de descortesia que certas fórmulas e formas apresentam já inscritos no sistema linguístico de cada língua, ou como certos mecanismos de construção linguística se prestam à expressão de cortesia, aspectos que a linguista portuguesa considera com especial desenvolvimento. Em síntese, Carreira observa: «La politesse linguistique ne s’exprime pas seulement par des formes dites de politesse telles que les salutations, les présentations, les remerciements, les félicitations, les excuses. Il faut tenir compte également des procédés variés de modalisation et interactants un certain type de distance horizontale (degré de familiarité) et verticale (rapport hiérarchique ou de “dominance”) [1996a: 31], bem como «l’émergence récente en analyse du discours d’un intérêt porté à une autre composante encore de l’interaction: la composante affective, ou émotionnelle» [Id.: 32] Sobre esta última temática, cf. PLANTIN et al. (dir.), 2000. 38 Sobre as noções de face e FTA e FFA, ver, infra, cap. II, 1.3, e cap. III. 39 Ver, infra, cap. III, 2. 40 Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992 e 1996. 41 Para as noções de alocução, elocução e delocução, cf. CARREIRA, 1995: 24-25, ou, infra, cap. V, 1.2. 42 Ver, infra, cap. V, 1. 21 d’indirection, ainsi que des stratégies mises à l’œuvre, telles que la façon d’encourager son interlocuteur, de lui exprimer son accord ou son désaccord, etc.»43 Definida como competência discursivo-textual, isto é, como capacidade que os utilizadores duma língua têm para, conforme os contextos, realizarem actos de comunicação bem sucedidos, através do recurso a processos verbais corteses ou descorteses, colocamos as seguintes questões principais, as quais constituem, no seu conjunto, a tese desta dissertação: a) Que meios e mecanismos linguísticos e discursivo-textuais são utilizados na realização e expressão de cortesias e descortesias verbais, adequados aos contextos de cada acto de comunicação? b) Que influência exercem as relações pessoais e sociais (existentes, presumidas e/ou desejadas) entre quem fala ou escreve e o(s) seu(s) destinatário(s) directo(s) e indirecto(s), e destes para com terceiro(s), na selecção daqueles meios e mecanismos e, inversamente, que influência exercem estes naquelas? c) Como se reflecte na organização e configuração discursivo-textual das diferentes práticas discursivo-textuais, in prœsentia ou in absentia realizadas, o uso de construções corteses e descorteses? Como teremos oportunidade de verificar, consiste a cortesia linguística (de acordo, aliás, com a regra que vem nos manuais de boas maneiras, segundo a qual devemos honrar os outros, enquanto nos humilhamos a nós próprios, e ao fazê-lo mostrar que, assim procedendo, estamos felizes44), em recorrer a formas de indirecção e impessoalização, ao apagamento do eu face ao tu, à valorização do outro e à desvalorização de nós próprios. Como explicar esta aparente contradição, quando a cortesia recomenda, que o respeito que se deve às faces do outro passa também, segundo o efeito de boomerang,45 pela defesa das nossas próprias faces? Consideramos que a solução se encontra ao nível da enunciação polifónica que a realização contextualizada das formas de cortesia e de 43 CARREIA, 2001: 57. «E na verdade, em que consiste o ser perfeitamente polido, senão em experimentar o desejo de ser util, e agradavel; e de resolver-se a fazer, para o conseguir, muitissimas concessões e sacrificios agradaveis aos outros, e que os convenção de que preferimos sua satisfação á nossa?» [ROQUETTE, 18592: 10] «As boas maneiras são fundamentalmente a atitude mental duma pessoa que se esquece de si mesma para poder ser agradável aos outros, e para que os outros sintam que esta intenção de lhes agradar é genuína, terá de haver da nossa parte naturalidade e espontaneidade.» [GIÃO, 1988: 10] 45 Ver, infra, cap. III, 1. 44 22 descortesia também encerra. Por outro lado, tais processos visam obter do alocutário, manipulando estrategicamente essas formas, consoante o desenrolar da interacção, que ele se aproxime ou afaste, atraí-lo ou repeli-lo, convencê-lo e persuadi-lo, provocar a sua adesão ou impedi-la, favorável ou desfavorável, relativamente a ideia, causa, acção, crença, comportamento, etc. As formas de cortesia e de descortesia servem, por isso, também efeitos retóricos e/ou argumentativos. São estes, em nosso entender, os dois principais contributos que esta dissertação propõe. Contributos que acompanham ou vêm na sequência lógica de que a cortesia / descortesia verbal é uma (sub)competência de comunicação que inclui uma dimensão fundamental de natureza discursivo-textual que em formas mais ou menos explícitas e implícitas se manifesta, nas diferentes práticas da interacção verbal, isto é, da actividade da linguagem. Responder as estas e outras questões exige ter já algumas respostas, reuni-las e sistematizá-las, procurar outras e prová-las. Há aquelas que se prendem, fundamentalmente, com os valores gramaticalizados e lexicalizados que as chamadas fórmulas de cortesia e de descortesia representam ao nível da língua, bem como os valores que adquirem e as funções que exercem em novos usos. Implica, por outro lado, saber reconhecer, para depois descrever, aos diferentes níveis da análise linguística, formas e construções de cortesia e descortesia, resultantes da maior ou menor capacidade verbal (incluindo a criatividade discursivo-textual46), segundo os contextos formais ou informais, correntes ou literários. Além disso, exige que, depois de se analisar criticamente teorias e estudos, se opte por um modelo teórico de descrição e análise. Às questões postas e às reflexões que a seu respeito se poderão colocar, procuraremos responder com esta dissertação, conscientes, porém, de que a complexidade do tema e dos problemas não foi esgotada, exigindo continuação e aprofundamento de outros estudos. Até porque, entre nós, a cortesia linguística dá ainda os primeiros passos. 2. O corpus 46 Entendemos, aqui, por criatividade discursivo-textual construções de formas verbais que, consoante os contextos, não se enquadram nos processos habituais de expressão de cortesia ou de descortesia, ou constituem reconstruções originais desses processos (fórmulas, rotinas, convenções, protocolos, ritos...). 23 A elaboração do projecto desta investigação e o seu desenvolvimento comportou exigências metodológicas. Estudos especializados, de natureza teórica e teórico-prática, sobre os fenómenos verbais de cortesia e de descortesia, passaram a constituir as nossas principais leituras. No campo da Linguística, destacamos trabalhos em domínios da Pragmática (textual, discursiva, conversacional) e Sociolinguística. Doutros campos são de referir estudos nas áreas da Filosofia (não só) da Linguagem e Lógica Natural, Semiótica Literária e Narratologia, Retórica e Argumentação, Sociologia e História. A cortesia verbal, dada a sua natureza psicossocial e sociocultural, só pode ser estudada e compreendida segundo uma perspectiva inter e multidisciplinar. Cabe aqui uma breve nota acerca da bibliografia especializada sobre a cortesia e a descortesia verbal em Português. São reduzidíssimos (e de acesso nem sempre fácil), os estudos sobre esta(s) matéria(s),47 tanto a nível teórico como teórico-prático, mas sobretudo a nível discursivo-textual. É de relevar, por isso, o estudo (a bem dizer único) de Carreira, pela descrição e análise abrangente das diferentes formas de cortesia, segundo uma dupla perspectiva: de língua (morfossintáctica e semântico-pragmática) e de discurso (interlocutória).48 A situação parece, todavia, estar a evoluir positivamente, uma vez que têm vindo a ser realizados vários estudos sobre esta temática, ao nível sobretudo de dissertações de mestrado, segundo várias perspectivas de análise.49 Ao mesmo tempo, alguns artigos têm sido publicados sobre fenómenos verbais corteses e descorteses em Português europeu.50 Além da leitura de estudos especializados, em textos de lazer ou prazer (literários, culturais, jornalísticos, etc.), fomos descobrindo e arquivando ocorrências de comportamentos verbais, paraverbais e não verbais, classificados ou classificáveis como corteses ou descorteses (geralmente descorteses, porque são estes que, por excepção às regras sociais da sã convivência, isto é, da cortesia, mais se fazem notar e são notícia51). 47 Ver, infra, caps. V e X, para apresentação crítica dos principais estudos sobre, respectivamente, a cortesia / descortesia e os tratamentos, em Português europeu actual. 48 Sobre este estudo, dissertação de doutoramento da autora, ver, infra, cap. V, 1. e cap. X, 5., respectivamente, sobre as formas de cortesia e as formas de tratamento, em Português europeu contemporâneo. 49 Podemos referir, como dissertações de mestrado que tratam ou abordam aspectos da cortesia verbal, ALMEIDA, 1996; ALVES, 2000; BENTO, 2000; SILVA, 1994 e SOARES, 1996. 50 Cf., v.g., CARREIRA, 2001: 45-171 (vários estudos); RODRIGUES, 2000; SEARA, 1999 e SEARA & LEITÃO, 2000. 51 A título de exemplo (porque se trata também de título exemplar daquilo a que, actualmente, os órgãos de comunicação social mais noticiam), veja-se como jornal português anuncia, na primeira página, notícia que desenvolve em página interior: «NUNO CARDOSO ATACA ACTUAÇÃO DE RUI RIO // “ENGANADORA IGNORANTE / MALICIOSA MESQUINHA / TENDENCIOSA LEVIANA VIL... / MENTIROSA”» [Jornal de Notícias, 6 de Fevereiro de 2002] É de referir que o jornal, além da citação que selecciona, imprime as palavras em caixa alta e a cores, tonalidades e corpo de letra diferentes, desta- 24 Por outro lado, idênticos comportamentos, ocorridos em contextos diversos da vida portuguesa contemporânea, foram objecto de observação, ao mesmo tempo que recordávamos outros pessoalmente vividos ou presenciados em tempos mais ou menos remotos. Elaborámos, assim, fichas bibliográficas e de leitura, procedemos a registo e arquivo de fenómenos corteses e descorteses, ocorridos em contextos de comunicação / interlocução / interacção52 diversos. Nas leituras específicas e especializadas encontrámos os fundamentos teóricos e metodológicos para a elaboração da presente dissertação. Nos diversos comportamentos verbais, corteses e descorteses, com ocorrência próxima ou remota, ordinários ou ficcionais, orais ou escritos, descritos ou praticados, narrados ou presenciados, encontrámos formas, construções e práticas discursivo-textuais que acabaram por constituir o corpus desta dissertação, de que nos servimos ora para exemplificar descrições, ora para realizar análises que, no fundo, outras formas de exemplificação também são. Um corpus naturalmente heterogéneo, portanto, como heterogéneas são as formas verbais de cortesia e de descortesia, como heterogéneos são os seus efeitos, como heterogéneos são os contextos em que são realizadas e a que também dão origem. 2.1. «Porque há-de ter menos realidade o mundo fingido ou sonhado do que qualquer outro?»53 Predominam, nesta dissertação, segmentos e sequências colhidos em textos literários. Alguns são os que os autores dos trabalhos consultados fornecem. É o caso, principalmente, de Celso Cunha & Luís F. Lindley Cintra, nas descrições gramaticais que fazem dos valores corteses e descorteses que também reconhecem nos tempos e modos verbais.54 Os restantes exemplos ou sequências literários foram colhidos por nós, fundamentalmente, na obra narrativa de Aquilino Ribeiro.55 cando «MENTIROSA», em corpo maior e a vermelho. Nuno Cardoso (do Partido Socialista) havia sido presidente da Câmara Municipal do Porto, cargo que Rui Rio (do Partido Social Democrata) passou a exercer, na sequência dos resultados das últimas eleições autárquicas. 52 Consideramos que ao nível da análise linguística das práticas discursivo-textuais, estas três dimensões se encontram sempre presentes. Comunicar é sempre, por um lado, falar / escrever com outro, mesmo em situações de solilóquio ou monólogo, e, por outro, influenciar e ser influenciado, interagir. Desenvolveremos este aspecto no cap. I, particularmente em 2.3. 53 RIBEIRO, 1995: 77. 54 Ver, infra, cap. VI. 55 Sequências dialogais ou excertos colhidos sobretudo em Arca de Noé III Classe, Uma Luz ao Longe, Terras do Demo, O Malhadinhas, A Via Sinuosa e Romance da Raposa. 25 Relacionadas com este ponto, cabem as seguintes observações, quanto à nossa preferência por excertos e sequências dialogais aquilinianas, em particular, e à validade e interesse de se tomar, como exemplo e objecto de análise linguística, fragmentos e sequências literários, em geral. Em primeiro lugar, confessamos o prazer estético-literário (incluindo aspectos lúdicos e ideológicos) que a leitura da narrativa aquiliniana em geral nos proporciona. Prazer que resulta também da riqueza e variedade de processos linguísticos e discursivo-textuais utilizados por Aquilino, na construção dos seus romances, novelas e contos. Processos que constituem, a nosso ver, um contributo importante para a renovação e valorização da Língua Portuguesa, a nível do sistema e sobretudo do uso, ainda não suficientemente estudados. É sabido, por outro lado, que as narrativas aquilinianas são construídas em comunicação, muito próxima da coloquialidade, com os seus leitores. O autor conversa constantemente com eles, através dos narradores e dos narratários intra ou extradiegéticos que, em certa medida, respectivamente, os representam e de que são uma espécie de porta-voz.56 Comunicação que se manifesta, de forma mais realista e veraz, nas frequentes sequências dialogais representadas, reproduzindo encontros e desencontros, fáticos e transaccionais,57 de vária ordem e a diferentes níveis. As intervenções das personagens apresentam frequentes e abundantes marcas de oralidade (interjeições e outras fórmulas interlocutórias, por exemplo), que o narrador faz acompanhar, também, de informações de natureza prosódica e paraverbal. Diálogos espertos e verazes, que procuram imitar as interlocuções / interacções, mais ou menos pacíficas ou conflituosas que ocorrem na vida quotidiana. Dizemos procuram imitar, porque, apesar do seu realismo e verosimilhança, dificilmente correspondem a trocas verbais orais, habitualmente ditas reais ou autênticas. A passagem duma interacção verbal oral à sua apresentação escrita (mesmo que transcrita ipsis verbis) pressupõe e exige sempre um trabalho de interpretação (por vezes de decifração) da parte do transcritor / redactor, por mais sequencialmente organizados e claramente articulados que tenham sido os turnos de fala e as intervenções de cada interlocutor. 58 Não se pode esquecer, todavia, que o mundo construído por uma / numa narrativa literária, por mais mimética que pretenda ser, nunca é a cópia ou o retrato do mundo 56 Sobre a comunicação literária e narrativa, segundo uma perspectiva linguística discursivo-textual, ver, infra, caps. XIII e XIV, 1. 57 Sobre a distinção que fazemos entre fático e transaccional, ver, infra, cap. I, 1.2. 58 Sobre turno de fala e intervenção, como unidades das interacções verbais, ver, infra, cap. I, 1.2. 26 real. É sempre a representação discursivo-textual dum mundo alternativo ou possível que, todavia, para ser verosímil (i. e, inteligível, compreensível, mesmo como absurdo, irreal ou surreal) tem de manter sempre alguma relação de semelhança com as realidades que se conhecem deste mundo e dos outros que culturalmente já foram construídos, como são os casos, por exemplo, dos mundos mitológicos, maravilhosos, religiosos, de ficção científica, etc. Querer ler e interpretar uma prática discursivo-textual literária, como se lê e interpreta uma prática discursivo-textual não literária é confundir planos discursivo-textuais diferentes, com intenções e efeitos de comunicação também diferentes. A realidade dos textos literários, orais ou escritos, e dos diálogos neles construídos, situa-se a um outro nível da realidade, aí ganhando a sua autenticidade, a sua verdade. Os seres ficcionais que nele interagem realizam actos de discurso com idênticos valores pragmáticos aos das pessoas reais, os quais, como estas, também podem intensificar ou atenuar, em graus diferentes, através de meios linguísticos mais ou menos corteses e descorteses. As relações que esses seres de ficção estabelecem só podem ser vistas e interpretadas como mais ou menos pacíficas ou conflituosas, mais ou menos corteses ou descorteses, se a sua configuração ficcional corresponder aos padrões socioculturais que a esses níveis se encontram numa dada sociedade, comunidade ou grupo. Bakhtine observava, já em 1930, que o escritor, ao moldar a personagem, não pode nunca esquecer que «la force expressive de l’œuvre littéraire dépend pour une très large mesure de ce qu’il y a de vérité de la vie en elle», acrescentando que é «seulement là, dans les énoncés les plus simples, que nous trouverons la clé de la structure linguistique des énoncés littéraires.»59 Posto isto, consideramos que os textos de ficção literária, escritos ou orais, bem como as sequências dialogais que os constituem, podem e devem ser objecto de análises linguísticas, nomeadamente ao nível da análise discursivo-textual da sua coconstrução e das suas leituras, simples ou especializadas. Harald Weinrich observa, a propósito, que é desejável uma «linguística da literatura». Explica, todavia, que entre os dois domínios não devem existir relações de subordinação mútua, ou seja, que «la science linguistique ait à se placer tout entière au service de l’interprétation littéraire, pas plus que les études littéraires n’ont à recourir exclusivement, ni même préférentiellement, aux méthodes linguistiques. Mais l’application de certaines méthodes lin59 BAKHTINE (VOLOSHINOV), 1981: 298 e 301. 27 guistiques à des textes littéraires est féconde: elle permet d’en faire surgir certains aspects, intéressant aussi bien les linguistiques que les spécialistes de littérature.»60 Idênticas observações podemos encontrar noutros estudiosos da linguagem humana (Linguística, Literatura, Semiótica, Narratologia), como Charles Bally,61 Bakhtine,62 Roman Jakobson,63 Roland Barthes,64 Gérard Genette65 e Dominique Maingueneau,66 entre outros.67 São de referir, dada a sua natureza linguística no quadro das teorias do discurso-texto,68 as observações de Jean-Michel Adam. Considera este autor, em síntese nossa, que o núcleo normativo das diferentes práticas discursivo-textuais se encontra nas gramáticas (da frase, do texto, dos géneros) de cada língua, mas que as suas variações estilísticas, isto é, as suas diferentes realizações empíricas, se situam à volta desse núcleo, com dois pólos principais - de um lado, as práticas discursivotextuais estético--literárias, de outro, as práticas correntes ou ordinárias.69 Para este linguista a Literatura é uma prática discursivo-textual como as outras, propondo por isso que, entre a análise literária e a análise linguística, se estabeleça um indispensável movimento de vaivém, já que o estudo duma contribui sempre, de algum modo, para o conhecimento de aspectos da outra.70 Fernanda Irene Fonseca argumenta também que a ficção e os fenómenos literários são, «antes de mais», linguísticos e cognitivos.71 Considerando que «qualquer fenómeno linguístico não exclui a tomada em consideração do texto literário», antes «a implica e a exige»,72 defende que «nenhum modelo do funcionamento da linguagem 60 WEINRICH, 1973: 60. Cf. BALLY, 19653: 61-62. Para uma exposição das principais ideias de Bally sobre as relações da linguagem corrente, face à linguagem literária, cf. DURRER, 1998 : 82-91. 62 Cf. BAKHTINE (VOLOSNINOV), 1981: 298 e passim e BAKHTIN, 1992: 289 e ss. 63 Cf. JAKOBSON, 1963: 27 e 248. É conhecida a paráfrase que este linguista, como síntese do seu pensamento sobre esta questão, aí faz da conhecida máxima de Terêncio: «Linguista sum; linguistici nihil a me alienum puto.» 64 Cf. BARTHES, 1980: 9-16. 65 Cf. GENETTE, 1991: 41-62. 66 Cf. MAINGUENEAU, 1986, 1995a, 1996a e 1996b. 67 Cf., v.g., ADAM, 1985 e 1991a, ADAM & LORDA, 1999; DURRER, 1994; GARDES-TAMINE & PELLIZZA, 1998; GOUVARD, 1998; JEANDILLOU, 1997; RODRIGUES, 1994; TISSET, 2000; VIDAL, 1993: 235-247 e YVANCOS, 1993: 73-86. Alguns destes autores abordam a questão em termos puramente teóricos e outros em termos teórico-práticos e mesmo didácticos. 68 Ver, infra, cap. I, 2.5., sobre a questão, ainda polémica, entre as disciplinas Análise do Discurso e Análise do Texto ou Textual. 69 Cf. ADAM, 1997: 33 e 1999: 93. 70 Cf. ADAM, 1991: 5. 71 FONSECA (F.), 1994: 87. 72 FONSECA (F.), 1992: 236. 61 28 (linguagem “tout court”, sem adjectivos) será completo e adequado se não incluir, ao menos potencialmente, a explicação do fenómeno literário.» E conclui: «Toda a teoria da linguagem é também teoria da literatura (e vice-versa). E a própria criação literária, enquanto manifestação de uma vivência da língua, enquanto conhecimento poético da linguagem, enquanto teorização produtiva, representa já, só por si, um importante contributo para a teoria da linguagem.»73 A questão da validade dos textos literários como corpora de análises linguísticas continua a gerar alguma polémica, consoante as perspectivas dos autores. A tendência é para considerar os actos de discurso literários sérios74 e autênticos,75 no mundo possível ou alternativo que constroem e em que são realizados. Neste sentido, subscrevemos a seguinte afirmação de Adam: «Il faut dépasser ce faux débat: les assertions des personnages d’un roman ou d’une pièce de théâtre font certes partie de la fiction, mais, à ce niveau diégétique, ils fonctionnent exactement sur le même modèle que les actes de discours dits “sérieux” de la vie ordinaire.»76 Os textos literários apresentam, em princípio, uma construção discursivo-textual mais atenta e cuidada. Os escritores, além de conhecerem melhor, em extensão e profundidade, a língua e o seu funcionamento, exploram e desenvolvem, criativamente, as suas potencialidades, a todos os níveis da expressão. Encontram-se, por isso, nos seus textos construções que raramente se encontram nas práticas ordinárias. Menor atenção e cuidado presta às construções quem ordinariamente fala ou escreve, até porque de menor competência é, em princípio, dotado, a nível linguístico e discursivo-textual. Não cremos nem queremos que só pela leitura, análise e estudo de textos literários se atinge 73 FONSECA (F.), 1992a: 17. Veja-se também 1992: 235 e ss. A propósito, lembre-se que a linguista toma, nestes títulos, como corpus de análise (mais desenvolvidamente em 1992, dissertação de doutoramento), obras romanescas do escritor Vergílio Ferreira. 74 Recorde-se que John Searle, na sequência de John Langshaw Austin [cf. AUSTIN, 1970: 55, 108 e 116], considera o discurso literário e de ficção, além de «parasitário» e «não sério», como «não pleno», uma vez que o narrador, além de apropriar-se de palavras que não são suas, emprega-as em circunstâncias em que estão suspensas as condições habituais de realização de um acto de fala normal, a que chama «sério», e onde deixam de actuar as regras de satisfação ilocutória. [Cf. SEARLE, 1982: 101-119] 75 Eddy Roulet considera que são discursos autênticos «les dialogues de la vie quotidienne ou du discours romanesque», de que exclui os enunciados isolados ou fabricados «dans le cadre d’une description de linguiste». [ROULET, 1999: 187 e ROULET et al., 19913: 4, respectivamente] 76 ADAM, 1990: 106, nota 21. Cf. também ADAM & LORDA, 1999: 28. 29 a cortesia77 de bem comunicar, escrevendo e falando, em Português. Mas sem eles é muito mais difícil conseguir vencer os índices de aliteracia e de iliteracia que são reconhecidos. Nos textos literários e, em particular, nos narrativos e dramáticos, encontram-se, por isso, em maior quantidade, melhor construídas e discursivo-textualmente melhor utilizadas e exploradas, nos seus diferentes valores e potencialidades, as diferentes formas e fórmulas de cortesia e de descortesia, algumas delas em construções surpreendentemente originais. Não tomar, portanto, como corpora de estudos e análises linguísticos, as diferentes construções corteses e descorteses que, nas diversas interacções verbais literárias e ficcionais, em sentidos estrito e lato tomadas, se encontram representadas, é ficar com uma visão redutora e limitada das capacidades discursivo-textuais e das potencialidades que a Língua também oferece a esse nível. 3. Resumos Organizamos o estudo Cortesia Linguística - Uma Competência Discursivo-textual (Formas verbais corteses e descorteses em Português) em quatro partes, cada um delas constituída por vários capítulos, apresentados em numeração seguida, podendo cada um deles estar, por seu turno, subdividido em secções e estas em subsecções. A primeira parte - Cortesia Linguística - Quadro teórico geral - é essencialmente teórica. Consta de três capítulos. No primeiro - Interacção verbal e cortesia consideramos a natureza intrinsecamente interaccional da linguagem. Neste sentido, descrevemos as noções de interacção verbal, em sentidos estrito e lato, oportunidade para, quanto à primeira, distinguirmos e aproximarmos noções que apresentam o mesmo ar de família, concretamente, conversa e diálogo, por mais frequentes. Apresentamos e descrevemos, ainda, as unidades textuais que compõem, em teoria, as interacções verbais em sentido estrito, na sua composição prototípica. A parte mais desenvolvida e, a nosso ver, mais importante diz respeito à descrição da noção de interacção verbal em sentido lato. Percorremos, de Bally a Adam, passando por Bakhtine, Émile Benveniste, Oswald Ducrot, Maingueneau e sobretudo Jean-Blaise Grize, os contributos teóricos fundamentais que estes autores trouxeram ao estudo da linguagem como interacção ver77 Recomendam os manuais de etiqueta e boas maneiras que falar e escrever correctamente a língua é uma regra de cortesia. Cf., v.g., BOBONE, 1999: 40 e 80-82; GIÃO, 1988: 142-143. 30 bal, nas suas dimensões linguísticas, interpessoais, retóricas, cognitivas e socioculturais, as quais se encontram sempre presentes e interdependentes na realização de qualquer prática discursivo-textual, oral ou escrita, corrente ou literária. Interacção que exige, por isso, na produção como na recepção, uma competência de comunicação alargada que congloba saberes de todas aquelas dimensões, como subdomínios ou subcompetências, e onde o/a de cortesia / descortesia é fundamental. No capítulo II – Cortesia linguística – Teoria(s) - apresentamos as linhas fundamentais dos modelos de análise «fundadores», propostos por Lakoff, Geoffrey Leech e Penelope Brown & Stephen C. Levinson. Com base nestas propostas, Kerbrat-Orecchioni, integrando-as, melhorando-as e desenvolvendo-as, elaborou um «sistema de cortesia», que consideramos, por isso, uma proposta ecléctica, cujas linhas fundamentais apresentamos no capítulo III.78 A segunda parte – Cortesias / Descortesias Verbais em Português – é dedicada, depois duma breve introdução (capítulo IV), à apresentação crítica dos principais estudos sobre a cortesia / descortesia verbal em Português europeu (capítulo V) e à descrição de algumas das suas manifestações linguísticas, a nível semântico-pragmático e discursivo-textual (capítulos VI a VIII). O capítulo VI é dedicado à análise dos valores corteses e descorteses que os tempos e modos verbais podem expressar, aos níveis morfossintáctico e semântico-pragmático. As formas do imperativo (próprias, supletivas e substitutas) são as mais utilizadas na realização dos actos directivos, nomeadamente da ordem (considerada descortês por natureza). A imprecisão que, por vezes, se encontra quanto à noção de cada um dos actos directivos, conduziu-nos, no capítulo VII, à problemática da directividade. Procuramos clarificar esta noção pragmática e relacionar os valores de cortesia e/ou de descortesia que os actos directivos podem ou não expressar. Entre as formas substitutas utilizadas para realizar e/ou intensificar actos directivos, com intenções corteses e descorteses, encontram-se as interjeições, habitualmente marginalizadas, apesar da sua abundância e frequente ocorrência, nas diferentes práticas discursivo-textuais. Abordá-las-emos, por isso, no capítulo VIII. A terceira parte – Cortesia / Descortesia e Formas de Tratamento em Português - é dedicada, exclusivamente, ao estudo dos tratamentos em Português europeu e aos valores corteses e descorteses que, já lexicalizados ou não, podem expressar em práticas discursivo-textuais. Depois duma breve introdução (capítulo IX), faremos um 78 Um desenvolvido estudo sobre estas e outras teorias ou modelos de cortesia linguística encontra-se em EELEN, 1999. Análises mais breves das teorias fundadoras e outras encontram-se também em FRASER, 1990; KASPER, 19982 e WERKHOFER, 1992. 31 balanço crítico dos principais estudos que linguistas nacionais e estrangeiros dedicaram ao estudo dos tratamentos portugueses (capítulo X). Perante a riqueza e variedade dos tratamentos ainda em uso e na impossibilidade de os descrever a todos, seleccionámos as fórmulas e formas que consideramos mais representativas, dentro das categorias do tuteamento e do voceamento, descrevendo os valores de cortesia e de descortesia que expressam e/ou podem expressar, tendo em consideração a história linguística e sociocultural de cada uma (capítulo XI). As formas de tratamento, a par dos valores linguísticos e relacionais que expressam, são também formas de referência alocutiva, elocutiva e delocutiva (capítulo XII). A quarta e última parte – Cortesia / Descortesia Linguística, uma Competência Discursivo-Textual (Práticas e Análises) - tem um objectivo prático e exemplificativo. Tomaremos como corpus sequências discursivo-textuais completas, inscritas em narrativas aquilinianas. Descreveremos, no capítulo XIV, depois duma breve introdução sobre a complexidade da comunicação narrativa literária (capítulo XIII), como o locutor (narrador-editor d’O Malhadinhas), realiza construções implícitas e explícitas de cortesia e de descortesia, num contexto de interacção verbal em sentido lato, ao nível da alocução (dirigindo-se, indirectamente, ao leitor modelo e ao leitor real), da delocução (referindo-se a terceiros, objecto do seu discurso-texto) e elocutivo (referindo-se a si próprio). No capítulo XV, trataremos, particularmente, os valores corteses e descorteses que as formas de tratamento expressam, em interacções verbais em sentido estrito, configuradas em sequências dialogais no Romance da Raposa. Num caso como noutro, serão analisados mecanismos linguísticos e discursivo-textuais de construção de cortesia e descortesia utilizados pelos interactantes (interlocutores ou não), com especial atenção à reutilização de fórmulas e formas de tratamento, sua diversidade, referência e funções sobretudo retórico-argumentativas, como processos de hetero e autofiguração favorável ou desfavorável. Funções estas que incluem também uma dimensão enunciativa de natureza polifónica. Terminaremos esta dissertação referindo e reflectindo sobre as principais questões levantadas e as soluções propostas ou perspectivadas, em Conclusões Gerais. Do trabalho de investigação que desenvolvemos sobre a Cortesia Linguística, entendida como uma competência discursivo-textual na (re)construção de formas explícitas e implícitas corteses e descorteses em Português europeu, esta dissertação constitui apenas o seu resultado mais visível. PRIMEIRA PARTE CORTESIA LINGUÍSTICA Quadro Teórico Geral A informação é-nos infinitamente disponível, mas onde poderemos encontrar a sabedoria? Harold Bloom1 1 BLOOM, Harold, 2001: Como Ler e Porquê. Lisboa: Caminho (Trad. port. de How to Read and Why, 2000); p. 15 Capítulo I INTERACÇÃO VERBAL E CORTESIA LINGUÍSTICA La manière personnelle dont un homme construit son discours est dans une large mesure déterminée par sa sensibilité au mot d’autrui et par sa façon d’y réagir. Mikhail Bakhtine1 A cortesia e a descortesia linguística, de cujos processos de expressão verbal os tratamentos corteses e descorteses constituem as formas mais evidentes, ocorrem sobretudo em situações de interlocução face-a-face, como exercício primeiro e mais frequente da capacidade discursivo-textual2 dos seres humanos. É, por isso, em situações sobretudo de comunicação oral, onde dois ou mais locutores (interlocutores, portanto) se encontram em presença, que as trocas verbais se concretizam e as formas de cortesia e de descortesia, mais ou menos fixas ou originais, ganham sentidos. Formas de que os interlocutores também se servem para criar relações de proximidade ou afastamento, sincera ou fingidamente, e assim melhor poderem agir uns sobre os outros. Neste sentido, as interlocuções constituem-se em interacções verbais e os interlocutores em interactantes. Em nosso entender, não é só em contextos de comunicação face-a-face, seja em práticas discursivo-textuais correntes ou ficcionais, que a interacção verbal se concretiza, mas também através da comunicação diferida, incluindo a literária, particularmente a narrativa. Da actividade discursivo-textual, entendida como interacção verbal em sentido estrito e em sentido lato, se tratará ao longo deste capítulo. Procurar-se-á integrar, num quadro teórico alargado, as diferentes manifestações de cortesia e de descortesia que, explícita ou implicitamente, os interactantes realizam, as razões por que o fazem e os efeitos mais ou menos conscientes que visam. Trata-se, por isso, de integrar tais proces1 BAKHTINE, 1970: 271. As razões por que optámos por reunir nesta justaposição as dimensões fundamentais de toda a actividade de comunicação verbal encontrar-se-ão ao longo de todo este capítulo, em particular nos pontos 2.5 e 2.6. 2 36 sos na complexidade da comunicação / interlocução / interacção humana. Abordaremos, para tal, um conjunto de problemas de natureza teórica, de que destacamos: tipos mais ou menos prototípicos de interacções verbais e unidades que as constituem; noções e relações entre discurso e texto e respectivas disciplinas que os estudam; descrição dum novo modelo de comunicação verbal; competências discursivo-textuais ao nível da produção e da recepção; importância do(s) contexto(s) a nível social, físico e cultural; valores retóricos, dialógicos e polifónicos. 1. Interacção verbal em sentido estrito Muito antes dos primeiros estudos sobre a pragmática dos actos de discurso e o valor argumentativo da actividade discursivo-textual, já o linguista suíço Bally, aluno e sucessor de Saussure, escrevia que a linguagem humana é uma forma de poder simbólico, uma força de acção sobre o interlocutor, intensificada ou atenuada por construções mais ou menos corteses. A linguagem é «arma de combate», através da qual o locutor visa impor o seu pensamento e para o efeito «on persuade, on prie, on ordonne, on défend; ou bien, parfois, la parole se replie et cède: on ménage l’interlocuteur, on esquive son attaque, on cherche à capter sa faveur, ou bien ou lui témoigne son respect, son admiration.»3 Um jogo de ataques e defesas, de avanços e recuos, de tácticas e estratégias corteses ou descorteses. Não se trata, porém, dum combate de vida ou de morte, mas apenas de luta, como uma das dimensões sociais da linguagem, a da argumentação, a qual se manifesta mesmo nas interacções verbais de natureza afectiva, ou psicológica. Entre os humanos não há nunca adaptação completa, harmonia perfeita de pensamento e mentalidade. «Ainsi la lutte, telle qu’elle est définie ici, n’est pas incompatible avec la solidarité et la sympathie; elle suppose simplement concordance incomplète des croyances, des désirs et des volontés; elle se rencontre jusque chez les êtres qui se cherchent dans l’amitié et dans l’amour; elle résulte d’un conflit entre le moi du sujet et son instinct social.»4 Neste sentido, podemos definir interacção verbal, em sentido estrito, como uma sequência de trocas verbais entre dois ou mais indivíduos, acerca dum ou mais temas ou 3 4 BALLY, 19653: 18. Id.: 20. 37 assuntos, realizadas num determinado contexto de interlocução, mais ou menos pacífica ou conflituosa, para conseguir ou impedir a realização de determinados fins, intra e/ou extradiscursivos. As interacções verbais inscrevem-se, assim, no quadro pragmático mais vasto da acção humana que, segundo Denis Vernant, se caracteriza por ser realizada «par un agent possédant croyances et connaissances, désirs et intentions, valeurs et interdits, sentiments e émotions». Tal agente é, «d’un point de vue pratique comme épistémique, minimalement rationnel», o que o define, por isso, «comme l’un des acteurs d’un jeu régi par des règles de coopération et de compétition», pois que agir «est d’emblée relation des hommes entre eux et relation des hommes au monde.»5 A noção de interlocução / interacção verbal abarca, todavia, um amplo leque de realizações discursivo-textuais, às quais subjaz, não obstante as características particulares que tipologicamente as diferenciam, uma estrutura sequencial e hierárquica prototípica (uma construção teórica). É essa estrutura ideal, construída a partir de ocorrências e práticas, que, como género, modeliza cada uma dessas realizações a que se dão nomes como audiência, conversa, conversação, consulta, debate, diálogo, discussão, encontro, entrevista, exame oral, reunião profissional, etc. 1.1. Conversa vs. diálogo Por se tratar de subgéneros discursivo-textuais mais frequentes e porque neles encontramos as principais características que definem os outros, descreveremos apenas a conversa e o diálogo. A conversa é considerada, pela generalidade dos estudiosos, nomeadamente por aqueles que trabalham no domínio da Análise Conversacional,6 como a forma mais comum e representativa do falar quotidiano. 5 VERNANT, 1997: 45-46. O autor situa o seu estudo no quadro teórico mais amplo da Pragmática que concebe, não como disciplina ancilar da Semântica Linguística - «un développement annexe et plus ou moins accessoire» - mas como «le cadre générale dans lequel les analyses traditionnelles du langage doivent être réinterprétées», porque é «le moyen privilégié d’étudier enfin les phénomènes discursifs et communicationnels dans toute leur richesse et complexité.» Neste sentido, é de opinião que «la pragmatique peut devenir ce carrefour où se rencontrent, coopèrent et se fécondent toutes les disciplines actuelles qui traitent du langage, du discours, du dialogue, des relations interhumaines et de l’action, telles la philosophie du langage et de la communication, les logiques, les linguistiques, la sémiotiques, la psychologie cognitive, la psycholinguistique, la sociologie des interactions et l’intelligence artificielle.» [Id.: 1-2] Mais que defender e subscrever o pressuposto de que a pragmática passou de escrava a imperatriz, interessa sobretudo relevar o problema da interdisciplinaridade que hoje em dia se exige a/de cada uma das ciências humanas e sociais, no respeito pelas especificidades de objecto, objectivos e método de cada uma. Interdisciplinaridade que, como observa Luísa Opitz, «só ela autoriza uma visão interessante do conhecimento do conhecimento.» [OPITZ, 1997: 78] 6 Em RODRIGUES, 1994: 90-94, estabelecemos os principais aspectos deste modelo, face ao seu «concorrente» Análise do Discurso. Os pontos de contacto entre os dois modelos são cada vez maiores. Hoje 38 Irving Goffman, depois duma noção geral (i.e., «comme équivalent de parole échangée, de rencontre où l’on parle»), define conversa, em sentido estrito, como «la parole qui se manifeste quand un petit nombre de participants se rassemblent et s’installent dans ce qu’ils perçoivent comme étant une courte période coupée des (ou parallèle aux) tâches matérielles; un moment de loisir ressenti comme une fin en soi, durant lequel chacun se voit accorder le droit de parler aussi bien que d’écouter, sans programme déterminé; où chacun reçoit le statut de quelqu’un dont l’évaluation globale du sujet en train – les notes de lecture, en quelque sorte – doit être encouragée et traitée avec respect; où enfin il n’est exigé aucun accord ni synthèse finals, les différences d’opinion étant réputées ne pas porter préjudice à l’avenir de la relation entre les participants.»7 Kerbrat-Orecchioni encontra nesta definição as «propriedades específicas» da conversa, como «tipo particular de interacção verbal», as quais resumimos como segue: a) carácter imediato, tanto no tempo como no espaço: proximidade física dos interactantes; contacto directo; resposta instantânea; b) carácter familiar ou informal, espontâneo, improvisado e descontraído, pois nenhum dos seus componentes é fixado previamente: número de participantes (geralmente reduzido); temas, sua importância e desenvolvimento; duração global; tempo a gastar nos turnos de fala; c) carácter gratuito e não finalizado: visa o puro prazer de conversar, cuja finalidade reside nisso mesmo;8 em dia, o termo Análise do Discurso tende a ser a designação mais frequente. Para um tratamento mais amplo, a nível conceptual, inter e transdisciplinar da Análise do Discurso, cf. MENÉNDEZ, 1997, em particular cap. I: 37-73. Maingueneau situa a Análise do Discurso «au carrefour des sciences humaines», interessando-se pelos mesmos copora, adoptando, todavia, «un point de vue différent.» E acrescenta: «L’étude d’une consultation médicale, par exemple, amène à prendre en compte les règles du dialogue (objet de l’analyse conversationnelle), les variétés langagières (objet de la sociolinguistique), les modes d’argumentation (objet de la rhétorique), etc., mais ces divers apports sont intégrés par l’analyse du discours.» [MAINGUENEAU, 1996: 12 e 11] Nesta obra, o linguista descreve os principais termos da Análise do Discurso. Alguns destes termos encontram-se também definidos em MENÉNDEZ, 1997: 371-382. 7 GOFFMAN, 1987: 20, nota 8. 8 Repare-se também nesta caracterização de Marc Fumaroli, ainda que a propósito das conversas de salão, segundo a qual «la conversation suppose une certaine sécession, d’ordre privé, soutenue par des affects privés (amitié, bienveillance) en marge des affaires, des negotia de la vie publique et politique. Elle reste de l’ordre de l’otium, du loisir, du convivium, de la fête et de son temps de luxe.» [FUMAROLI, 1997: XII] Grize observa, todavia, «qu’on ne parle ni n’écrit jamais sans quelque raison et que l’on n’écoute ni ne lit sans motif», porque, mesmo que «on peut parler “pour ne rien dire”» e que «on peut écouter la radio ou lire “pour tuer le temps”», trata-se «encore-là des finalités.» [GRIZE, 1990: 31] 39 d) carácter simétrico e igualitário: os interactantes, mesmo não tendo um mesmo estatuto, comportam-se como tendo idênticos direitos e obrigações, ocupando um mesmo “lugar” (poder), ainda que no decurso duma conversa possam ocorrer alterações e daí resultar distanciamentos ou aproximações.9 A conversa foi considerada mesmo uma «arte»,10 «a flor estética das civilizações», cujos «primeiros botões», no dizer lírico de Gabriel Tarde, começaram a florir logo nos encontros terra-à-terra dos primitivos. Daí que ela se encontre associada também à cortesia: «Par conversation, j’entends tout dialogue sans utilité directe et immédiate, où l’on parle surtout pour parler, par plaisir, par jeu, par politesse.»11 Mesmo que entendida e/ou praticada como mentira, mais ou menos descarada, mas sócio-psicodiscursivamente necessária e útil: «la politesse est une stratégie socialement acceptée de mensonge visant perlocutoirement à faciliter le jeu transactionnel entre interlocuteurs», já que «un petit mensonge évite de “froisser” inutilement l’autre.»12 Em princípio, ninguém se entrega a uma conversa para ofender ou maltratar, ou ser ofendido e maltratado (ainda que tal seja uma possibilidade), a não ser em contextos muito particulares. Por exemplo, nas sessões lúdicas de «insultos rituais» entre jovens das comunidades negras de Nova Iorque, estudados, a nível sociolinguístico, por William Labov e analisados, no quadro da linguística textual, por Adam.13 Kerbrat-Orecchioni observa, todavia, que «dans toutes les sociétés il existe des formes, parfois elle- 9 Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1990: 114-115 e 1996: 8. Face aos estudos teóricos que têm vindo a ser publicados, no quadro das diferentes disciplinas sociais e humanas, bem como a edição de clássicos e de antologias sobre esta capacidade e actividade essencial da condição humana, pode-se dizer que se assiste a um renovado interesse por esta arte. Veja-se, a título de exemplo, CAHEN (dir.), 1999; HELLEGOUARC’H (org.), 1997; PÉCORA (org.), 2001; e as recentes traduções para Português dos clássicos O Cortesão (1528), de Baldassare Castiglione, e de Galateo ou Dos Costumes (1554), de Giovanni Della Casa, ambos editados pela Martins Fontes, S. Paulo, Brasil. Este renovado interesse pela arte da conversa ou da conversação acompanha também um renovado e crescente interesse pela Retórica e pela Argumentação. A propósito do Galateo, observa Fumaroli que naquele tratado de civilidade «les relations avec autrui, et donc la parole, sont régies par deux normes dominantes: ne rien dire de “malséant” pour les personnes qui écoutent, même si ce que l’on est tenté de dire est en soi “bon et pieux”; ne rien dire que puisse attrister les personnes avec lesquelles on parle.» E acrescenta, poucas linhas depois, que a preocupação do autor italiano reside em «régler les gestes et les propos, les formes et les manières, de tel sorte que rien ne heurte jamais autrui, et qu’une harmonie douce et contagieuse préside à tous les rapports sociaux.» Todavia, a arte da conversa(ção), «soumis à la civilité, n’efface pas les rivalités, ne déracine pas les passions: elle leur impose une règle du jeu commune qui rend la lutte des amours-propres plus indirecte, plus spirituelle, sous l’harmonie apparente des gestes et des voix.» [FUMAROLI, 1997 : XXI e XII] Della Casa propunha, assim, em meados do século XVI, uma concepção de cortesia negativa, como veio a ser definida, há cerca de escassos trinta anos, por Brown & Levinson. Ver, infra, cap. II, 1.3 e cap. III. 11 TARDE, 1987: 3 12 VERNANT, 1997: 73-74. 13 Cf., respectivamente, LABOV, 1978: 223-288 e ADAM. 1999: 157-173. 10 40 mêmes ritualisée, de transgression humoristique des rituels de politesse.»14 A simples procura e participação numa conversa, segundo as regras da convivência social, aceites e praticadas numa comunidade, são, só por si, aliás, manifestações de cortesia (pense-se nas visitas de amizade, também ditas de cortesia). Esta é, em princípio, a regra, mas há excepções. Nem todas as conversas são e/ou se desenvolvem de forma pacífica e cortês. Há autores que incluem, por isso, na própria definição de conversa(r), tanto a concórdia como a discórdia. Adriano Duarte Rodrigues, por exemplo, define a conversa como sendo «por excelência a produção e a reprodução da sociabilidade», pois conversa-se «tanto para estabelecer e intensificar, como para romper e restabelecer os laços sociais que formam a nossa identidade individual e colectiva.»15 A citação de Gabriel Tarde dá, porém, como quasessinónimos conversa e diálogo, conceitos que, em nosso entender, podem e devem ser distinguidos. Diálogo, como observa Maingueneau, é entendido, geralmente, em duas acepções. Uma, a nosso ver demasiado restrita, encara diálogo como «toute forme d’échange, le plus souvent entre deux personnes», opondo-o assim ao monólogo. Outra entende-o como «des échanges plus formels que la conversation, où il y a une volonté mutuelle d’aboutir à un résultat» e neste sentido fala-se de «dialogue pour le théâtre, la philosophie, etc.»16 Adam, por seu turno, entende o diálogo e a conversa como dois pontos de vista diferentes sobre o «discurso alternado», considerando a última «comme un point de vue psycho-socio-discursif ou comme un genre de discours au même titre que le débat, l’interview, la conversation téléphonique, etc.» e o primeiro como «une unité de composition textuelle (orale ou écrite).»17 Neste sentido, o autor considera caber na noção de diálogo «aussi bien le produit textuel des interactions sociales que les échanges des personnages d’un texte de fiction (pièce de théâtre, nouvelle ou roman).»18 É neste sentido mais alargado de prática discursivo-textual alternada, colectivamente coconstruída, por dois ou mais interlocutores / interactantes, reais ou imaginários, que entendemos a noção de diálogo.19 14 KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 60. RODRIGUES, 2001: 176. Itálicos da nossa responsabilidade. 16 MAINGUENEAU, 1996: 27. Ver também, infra, citações de Vernant, onde o autor apresenta uma definição estritamente dialogal de diálogo. 17 ADAM, 1992: 148. 18 Id.: 149. 19 Em RODRIGUES, 1994: 49-73, tratámos mais desenvolvidamente as noções de diálogo e conversa, relacionando-as também com a noção de conversação, enquanto realizações discursivas e textuais de inte15 41 1.2. Unidades e composição da interacção verbal em sentido estrito Enquanto interacção verbal, a conversa e o diálogo, não obstante as diferenças, são constituídas pelas mesmas unidades discursivo-textuais, organizadas segundo uma estrutura mais ou menos comum, ainda que, nas suas realizações empíricas, nem sempre se encontrem todas concretizadas. Vamos descrever, de seguida, tendo em conta a herança teórica e prática deixada, sobre esta matéria, pela Análise Conversacional, as unidades e a composição da interacção verbal estrita prototípica. Uma interacção verbal é formada, quando estruturalmente completa, por unidades dialogais e monologais, seus constituintes, respectivamente, de maior e menor dimensão.20 As primeiras são formadas, segundo a ordem decrescente da sua dimensão, por uma ou mais sequências e estas por uma ou mais trocas verbais; as segundas, seguindo a mesma ordem, são constituídas por uma ou mais intervenções e estas por um ou mais actos de discurso. Observe-se as figuras seguintes (FIG. 1 e FIG. 2). Sequência Unidades dialogais INTERACÇÃO Troca verbal Intervenção VERBAL Unidades monologais Acto de discurso FIG. 1 – Unidades discursivo-textuais constitutivas duma interacção verbal. [# IV # [Sequência(s) [Troca(s) verbal(is) [Intervenções [Acto(s) de discurso]]]]] FIG. 2 – Unidades discursivo-textuais duma interacção verbal. (IV = Interacção Verbal) racções verbais. Apresentámos aí também uma proposta de tipologia dos diálogos, baseada na teoria dos actos de discurso, seguindo DURRER, 1994. 20 As unidades duma interacção verbal recebem a designação de dialogais e de monologais, porque as primeiras ocorrem sempre numa situação de interlocução / interacção, isto é, entre pelo menos dois interlocutores / interactantes, enquanto as segundas podem ser produzidas, mesmo numa situação de interlocução / interacção, sem que o alocutário a elas reaja, verbal ou paraverbalmente. Ou seja, as unidades dialogais não existem sem as unidades monologais, mas estas podem existir sem aquelas. 42 Todas estas unidades21 mantêm entre si relações de hierarquia, ou seja, uma interacção verbal, como um todo discursivo-textual, é composta por uma sequência (ou mais) que, por sua vez, é (são) constituída(s) por uma troca verbal (ou mais), que por sua vez é (são) constituída(s), no mínimo, por duas intervenções (ou mais), que, por sua vez, é (são) formada(s) por um ou mais actos de discurso. Além da sua constituição, ao nível das unidades de maior e menor dimensão, uma interacção verbal completa desenvolve-se, em princípio, segundo três tipos de sequências, simples ou complexas, conforme se designa e representa a seguir (FIG. 3): {# IV # [Sequência de abertura] [Sequência(s) transaccional(is)] [Sequência de fecho]} FIG. 3 – Tipos de sequências na composição duma interacção verbal completa. As sequências de abertura e fecho são assim designadas, em virtude da função discursivo-textual que desempenham (sobretudo) a nível relacional, sendo por isso chamadas sequências fáticas. A(s) sequência(s) transaccional(is) constitui(em) o corpo da interacção verbal.22 As sequências fáticas de abertura e de fecho são constituídas, fundamentalmente, por actos de saudação (encontro ou despedida), de apresentação, de estabelecimento ou manutenção do contacto e de agradecimento.23 São trocas verbais ritualizadas, mais ou menos convencionais, também chamadas rotinas. Bakhtine observava, nos princípios da década de cinquenta do século passado, que os «diversos gêneros [de discurso] fáticos, das felicitações, dos votos, das trocas de novidades – sobre a saúde, os negócios, etc.», além de «mais difundidos na vida cotidiana», apresentam «formas tão padronizadas que o querer-dizer individual do locutor quase que só pode manifestar-se na escolha do gênero». E antecipando observações de natureza relacional, ao nível da horizontalidade (distâncias proxémicas) e da verticalidade 21 Para outras propostas, cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1990: 213. Há quem chame interaccionais às sequências fáticas. [Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 12, nota 1] 23 Kerbrat-Orecchioni distingue processos fáticos, «dont use le parleur pour s’assurer l’écoute de son destinataire», de sinais reguladores que o receptor produz para que a interacção verbal se realize. Tanto uns como outros podem ser de natureza verbal, paraverbal ou não verbal. [Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1990: 18-20] Além das sequências fáticas de abertura e fecho, há também uma gama variada de elementos linguísticos e paralinguísticos que desempenham igualmente funções fáticas de manutenção, recuperação e orientação dos discursos e das relações interpessoais, no decurso duma interacção verbal. 22 43 (distâncias taxémicas),24 que só muitos anos depois começariam a ser tidas em consideração pelos analistas das práticas discursivo-textuais, em particular, os da cortesia linguística, refere que a diversidade desses géneros se fica a dever ao facto de «eles variarem conforme as circunstâncias, a posição social e o relacionamento pessoal dos parceiros». Resulta daí haver «o estilo elevado, estritamente oficial, deferente», por um lado, e «o estilo familiar que comporta vários graus de familiaridade e de intimidade (distinguindo-se esta da familiaridade)»,25 por outro. As sequências fáticas, que podem ocorrer autonomamente ou integradas em turnos de fala26 ou intervenções transaccionais, têm como função principal, além dos aspectos relacionais, marcar o início ou o fim duma interacção, e preparar, introduzir, manter ou concluir as sequências transaccionais. Uma sequência fática pode passar a transaccional, quando, por exemplo, os interlocutores / interactantes transformam os actos estritos de «comunhão fática» (para usarmos a expressão introduzida pelo antropólogo Malinowski27) em tema de conversa. Por exemplo, quando se transforma os actos corteses de saudação «Como está(s)?», ou «Como vai(s) de saúde?», em tema de conversa sobre o 24 Sobre estas noções, ver, infra, cap. III. BAKHTIN, 1992: 302. (Servimo-nos da tradução portuguesa na variante brasileira, cuja grafia respeitámos.) Não cabendo, aqui e agora, discutir se as sequências fáticas cabem na designação de género de discurso, questão a esclarecer juntamente com a problemática das noções de discurso e de texto e os seus géneros ou tipos, remetemos para COUTINHO, 1999: 41-113. Sobre os géneros do discurso, segundo Bakhtine, cf. BAKHTIN, 1992: 279-326. 26 Traduzimos «tour de parole» por turno de fala. Pense-se no trabalho por turnos. «A un premier niveau d’analyse, que l’on peut dire “formel”, toute interaction verbale se présente comme une succession de “tours de parole” - ce terme désignant d’abord le mécanisme d’alternance des prises de parole, puis par métonymie, la contribution d’un locuteur déterminé à un moment déterminé du déroulement de l’interaction (production continue délimitée par deux changements de tour, qui peut du reste avoir une longueur extrêmement variable, allant du simple morphème à l’ample “tirade”)». [KERBRAT-ORECCHIONI, 1990: 159] Os espanhóis utilizam as expressões «turno de habla», «turno de palabra» e «turno conversacional». [Cf. VARÓ & LINARES, 1997: 575-576] Em Portugal, utilizam-se também as expressões «vez» [RODRIGUES, 1998: 29] e «turno de palavra». [RODRIGUES, 2001: 184] 27 Em 1923, no artigo «The Problem of Meaning in Primitive Languages», publicado em The Meaning of Meaning por C. K. Ogden e I. A. Richards (Londres: Kegan Paul), Malinowski introduziu a noção de «comunhão fática», como «tipo de discurso», segundo informa Maingueneau, cujo fim essencial é o de «maintenir le lien social (échanges sur le temps qu’il fait, salutations, compliments...): “Un type de discours dans lequel les liens de l’union sont créés par un simple échange de mots" (1923 : 315).» [MAINGUENEAU, 1996 : 62] A proximidade etimológica entre «comunicação» e «comunhão» (de dar e receber, de troca, de pôr em comum) faz com que Grize aproxime a comunicação (discursiva) da communio cristã e da troca simbólica do potlatch. [Cf. GRIZE, 1990: 27] «O termo potlatch significa, na língua indígena, “comer, consumir” e é utilizado pelos índios para designar uma prática ritual que consiste na obrigação de dar, receber e retribuir, no decurso de um processo interminável de trocas e de circulação de bens entre tribos e famílias aliadas, sendo desta tríplice obrigação que depende precisamente o estabelecimento de vínculos entre parceiros de aliança» - assim define Adriano Duarte Rodrigues potlatch, cuja noção e prática depois descreve e aproxima da prática discursiva como interacção conversacional, dada a «natureza paradoxal» de liberdade e obrigação que tanto na troca de bens (potlach) como da palavra (conversa) se encontra. [Cf. RODRIGUES, 2001: 176 –179] Cf., sobre o potlatch, MAUSS, 1988. 25 44 bem estar ou estar bem de cada um. Uma conversa destas, fático-transaccional, dir-se-á, é, por isso, mais um exemplo de cortesia verbal. Recorde-se que é precisamente a propósito das conversas destinadas a passar o tempo, sem outro objectivo que não o prazer da conversa, que Malinowski introduz a noção de comunhão fática, cuja função é, por isso, essencialmente social e, daí também a sua relação com a cortesia verbal, cuja importância de cooperação entre os interlocutores destaca: «Uma simples frase de cortesia, tão usada entre as tribos selvagens como nos salões europeus, cumpre uma função para a qual o sentido de suas palavras é quase completamente indiferente. As perguntas sobre a saúde, os comentários sobre o tempo, as afirmações de algum estado de coisas absolutamente óbvio – tudo são frases trocadas não com a finalidade de informar, nem para coordenar as pessoas em ação e certamente não para expressar qualquer pensamento...» 28 E o antropólogo introduz, de seguida, a famosa noção, intimamente relacionada com a cortesia verbal, por isso: «Não há dúvida de que temos aqui um novo tipo de uso lingüístico – que estou tentado a chamar comunhão fática, instigado pelo demônio da invenção terminológica – um tipo de discurso em que os laços de união são criados pela mera troca de palavras...» 29 A sequência transaccional constitui, como se disse, o corpo da interlocução / interacção verbal e é, em geral, mais extensa e mais complexa que as sequências fáticas. Ao contrário destas, constituídas, fundamentalmente, por actos de discurso de (maior ou menor) cortesia (ou de descortesia, em casos de conflito ou polémica), as transaccionais são formadas, sobretudo, por actos de discurso que visam, essencialmente, fornecer informações e/ou realizar determinados objectivos ilocutórios. Nelas há, pelo menos, um tema de conversa, mais ou menos aceite pelos interlocutores, os quais, durante o tempo da interacção, permanecem, regra geral, os mesmos, interagindo na mira duma finalidade pragmática mais ou menos comum, ou como tal considerada. 28 MALINOWSKI, 1923 (ver nota anterior), cit. por BENVENISTE, 1989: 89. Utilizámos a tradução portuguesa, variante brasileira, de Problemas de Linguística Geral, por não nos ter sido possível consultar, em tempo útil, o original em Francês. 29 MALINOWSKI, 1923 (ver duas últimas notas), cit. por BENVENISTE, 1989: 89. 45 A unidade geral duma interacção verbal (como aliás outros aspectos com ela relacionados) é questão ainda não totalmente consensual entre os estudiosos. Kerbrat--Orecchioni, tentando uma solução, propõe (e o destaque também lhe pertence) que: «Pour qu’on ait affaire à une seule et même interaction, il faut et il suffit que l’on ait un groupe de participants modifiable mais sans rupture, qui dans un cadre spatio-temporel modifiable mais sans rupture, parlent d’un objet modifiable mais sans rupture.»30 Tanto ao nível das sequências fáticas como das transaccionais se pode falar, por isso, também no estabelecimento dum contrato, tal como o define Maingueneau: «On utilise cette notion de contrat pour souligner que les participants d’une énonciation doivent accepter tacitement un certain nombre de principes rendant possible l’échange, et un certain nombre de règles qui le gèrent; ce qui implique que chacun connaît ses droits et ses devoirs ainsi que ceux de l’autre.»31 Daí que, mesmo numa conversa ou diálogo polémico ou conflituoso, os interactantes tenham necessidade de cooperar. Observa Pierre Bange que, mesmo quando dois interlocutores se insultam, «recevoir et renvoyer des injures est aussi un cas de coopération. Le gain est de pouvoir faire mal à quelqu’un qui vous fait mal. Le désir d’obtenir ce gain rend la coopération nécessaire et elle s’opère par la coordination dans l’emploi de la langue.»32 30 KERBRAT-ORECCHIONI, 1990: 216. MAINGUENEAU, 1996: 22. 32 BANGE, 1992: 123. Vernant (só para citar outro estudioso) considera: «Sous peine de totale vacuité, la parole est toujours parole pour, par et avec autrui, jeu créatif à partir de règles socialement déterminées. Le dialogue se révèle la parfaite illustration d’une activité conjointe. Il compose un jeu coopératif qui, toujours, suppose une différence et, sous des formes plus ou moins affirmées, un antagonisme entre les interlocuteurs.» [VERNANT, 1997 : 169] Registe-se que este autor fala sempre em diálogo, quando se refere à interacção verbal, como acto de comunicação, negando que esta consista, como na concepção tradicional, na transmissão «à l’auditeur de messages émanant d’un locuteur, souverain maître du sens et de la vérité.» E observa, citando Francis Jacques, que é tempo de se entender «l’interaction comme mise en relation interlocutive instaurant locuteur et allocutaire comme co-agents d’un procès dialogique», porque, se as transacções humanas «sont bien souvent compétitives, il n’y a d’interaction discursive que coopérative.» [Id.: 47. O autor remete para JACQUES, 1979] Convém referir que o autor utiliza dialógico no sentido de dialogal : «Il est relativement aisé de distinguer le dialogue par sa forme. C’est pourquoi la tradition littéraire définit le dialogue comme genre. Par opposition au monologue où une seule personne monopolise la parole, le dialogue procède par prises alternées de parole entre au moins deux personnes. Cette forme, que nous qualifierons de dialogale, repose donc sur l’idée d’un échange verbal où chacun prend tour à tour position de locuteur et d’auditeur.» [Id.: 91] A título de curiosidade, refira-se que Vernant apenas se refere uma única vez (e em nota de roda-pé) ao dialogismo de Bakhtine, a propósito, apenas, da «dimensão dialógica» das práticas discursivas, no âmbito da Teoria da Literatura. [Id.: 87 e nota 2] 31 46 A complexidade duma sequência transaccional verifica-se sobretudo quando ela é constituída por mais que uma sequência (coordenadas; encaixada(s) na principal, encaixante) e consequentemente por mais que duma troca verbal, cuja organização e estruturação sequencial e hierárquica nem sempre são fáceis de reconhecer e de analisar. As sequências fáticas simples, quando completas, dão origem a uma troca verbal elementar do mesmo tipo, formando um par adjacente, conceito que se aplica também às trocas verbais transaccionais, como se depreende da sua definição. Um par adjacente é constituído por duas intervenções em posição de sucessão imediata, realizadas por dois interlocutores / interactantes, de tal modo que «il existe un élément reconnaissable comme le premier (first pair part) et un autre reconnaissable comme le second (second pair part). La séquence est gouvernée par une règle selon laquelle, lorsque le locuteur actuel a produit quelque chose qui est reconnaissable comme une première partie d’une paire déterminée, il doit s’arrêter de parler au premier point de complétude et le locuteur suivant doit produire à ce moment une seconde partie possible de cette même paire.»33 Dizemos que uma sequência fática é completa e autónoma quando é constituída por uma troca verbal em que a uma intervenção iniciativa se segue imediatamente uma intervenção reactiva. Tem-se, neste caso, uma sequência binária (ou confirmativa, segundo alguns autores).34 Há, porém, sequências fáticas onde alguns autores encontram uma terceira intervenção, a que chamam avaliativa, com a qual o primeiro locutor “avalia” a intervenção reactiva do interlocutor. Neste caso, a sequência diz-se ternária (ou reparadora, também na opinião de certos estudiosos). Resumimos na figura seguinte (FIG. 4) a breve descrição feita. Convém esclarecer, todavia, que os termos intervenção iniciativa, reactiva e avaliativa não se aplicam apenas às trocas fáticas, mas também às transaccionais. Por outro lado, como esclarece Kerbrat-Orecchioni, o termo avaliação, aqui, não deve ser tomado 33 BANGE, 1992: 40. Intervenção é um termo frequentemente utilizado como sinónimo de turno de fala, mas remete para conceito diferente. Sylvie Durrer, preferindo chamar-lhe «réplica», esclarece que «tour de parole» é uma unidade «strictement temporelle», enquanto intervenção é «une unité à la fois typographyque et pragmatique, constitué d’un ou de plusieurs actes de langage» [DURRER, 1994: 83]. A intervenção, consensualmente reconhecida como a maior unidade monologal, pode, segundo Adam, «fort bien s’étendre en longueur et être constituée par un récit complet ou par une séquence d’explication enchâssée en un point de l’échange en cours.» [ADAM, 1992: 158] Kerbrat-Orecchioni dedica um capítulo à complexidade dos turnos de fala, em KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: cap. III e 1996: cap. V. 34 47 no seu sentido habitual: «il désigne simplement le troisième temps de l’échange, par lequel L1 clôt cet échange qu’il a lui-même ouvert, en signalant à L2 qu’il a bien enregistré son intervention réactive, et qu’il la juge satisfaisante.»35 intervenção iniciativa – L1 binária intervenção reactiva – L2 SEQUÊNCIA FÁTICA ternária intervenção iniciativa – L1 intervenção reactiva – L2 intervenção avaliativa – L1 FIG. 4 – Composição duma sequência ou troca fática (ou transaccional). A realização duma intervenção avaliativa vai desde a retoma em eco da intervenção reactiva, ou parte dela, aos morfemas carregados de maior ou menor valor emotivo ou valorativo, incluindo as reacções de natureza paraverbal ou mesmo não verbal. Kerbrat-Orecchioni entende que as sequências ternárias são sequências compostas por duas trocas verbais «imbricadas». A intervenção reactiva, por um lado, fecha a primeira troca verbal e, por outro, abre uma segunda, a que uma nova intervenção do primeiro locutor, desta vez reactiva, põe termo.36 Ter-se-á, então, utilizando-se um exemplo trivial, a sequência apresentada na FIG. 5, em lugar da apresentada na FIG. 6. L1–Que horas são? – Intervenção iniciativa -[a] L2–Dez e meia. – Intervenção reactiva - [a’]--- Intervenção iniciativa ---------[b] L1–Obrigado! – Intervenção reactiva ----------[b’] FIG. 5 – Sequência de intervenções «imbricadas». L1– Que horas são? – Intervenção iniciativa -- [a] L2 – Dez e meia. – Intervenção reactiva --- [a’] L1– Obrigado! – Intervenção avaliativa - [a’’] FIG. 6 – Sequência ternária de intervenções. 35 36 KERBRAT-ORECCHIONI, 1990: 236. L1 = Locutor 1; L2 = Locutor 2. Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1990: 239-240. 48 Cada intervenção, seja ela fática ou transaccional, é constituída por um ou mais actos de discurso, como vimos. Directa ou indirectamente realizados, apresentam, dentro de cada intervenção, estatuto interlocutivo e pragmático diferente, desempenhando papel importante na organização do texto colectivo, bem como ao nível das relações interpessoais que se tem ou deseja ter. Os actos de discurso realizados ao longo duma interacção verbal podem ser, como se verá, de maior ou menor cortesia e/ou descortesia. Haverkate propõe mesmo uma classificação em «actos corteses» e «actos não corteses» (estes últimos a não entender simplesmente como «actos descorteses»), consoante os efeitos interaccionais de uns e de outros tenham como «finalidade intrínseca», respectivamente, beneficiar ou não beneficiar o interlocutor. Na categoria dos primeiros, o professor de linguística espanhola na Universidade de Amsterdão coloca, como exemplos «prototípicos», «los actos expresivos y comisivos» e na categoria dos segundos «los actos asertivos y exhortativos».37 Em cada intervenção, além das classificações ilocutórias, segundo as teorias «clássicas» ou outras, distinguem-se, dentro de cada intervenção, actos directores de actos subordinados. Um acto é director quando encerra o sentido geral duma intervenção, ou seja, a sua força ilocutória. Os actos subordinados destinam-se a apoiar, justificar, preparar, argumentar (a favor ou contra) o objectivo do acto director. Tal acto director não pode, por isso, deixar de ser constituinte duma intervenção.38 É geralmente o acto director que o interlocutor toma em consideração na intervenção reactiva, se quiser manter e/ou situar uma conversa no quadro da cortesia, ou no quadro da descortesia. Como se verá, não é indiferente tomar como tema de intervenção reactiva o acto director ou o acto subordinado duma intervenção iniciativa, tanto ao nível da sequencialização e configuração, como das relações de maior ou menor cortesia ou descortesia que se tem ou deseja ter ou não com o interlocutor. Formas de maior ou menor descortesia (depende do contexto) são, por exemplo, aqueles segmentos de desconversa, em que o interlocutor não toma em consideração, na intervenção reactiva, o acto director do locutor. Ou nenhum dos actos que constituem a intervenção iniciativa, 37 HAVERKATE, 1994: 77. Cf. MOESCHLER, 1985: 88. Esta classificação não invalida a classificação dos actos de discurso, seja a que foi proposta pelos filósofos da linguagem e seus continuadores [cf., AUSTIN, 1970; SEARLE, 1982: 39-70; e VANDERVEKEN, 1988, entre outros], seja a que foi proposta por linguistas que se inspiram, sobretudo, nos tipos de frase [cf. DURRER, 1994: 76-77]. Merece especial referência a nova classificação de Vernant, assente na natureza interaccional do discurso. [Cf. VERNANT, 1997: 49-58.] Para uma síntese das principais classificações das propostas ditas «clássicas» e de natureza «mais linguística», cf. RODRIGUES, 1994: 75-90. 38 49 agravando desse modo ainda mais a interacção ao nível das relações interpessoais e de cortesia, situação que, a continuar sem reparação, pode levar à ruptura, mais ou menos imediata, pela redução ao silêncio ou pela manifestação explícita de desacordo. Os seguintes comentários podem manifestar tais situações: (1) «Não desconverses»; (2) «Contigo não se pode / não se consegue / é impossível / conversar / falar.» Mas se (1) é ainda uma tentativa de recuperação do equilíbrio perdido ou em riscos de se perder, uma proposta de renegociação de direitos e deveres discursivos e conversacionais, já (2) aponta mais para a «morte» da conversa ou diálogo. Representamos, no diagrama seguinte,39 a estrutura prototípica duma interacção verbal em sentido estrito, cuja realização, total ou parcial, e complexidade, maior ou menor, se encontra em cada uma das práticas discursivo-textuais construídas ou em construção pelos interlocutores / interactantes ou co-agentes (depois de Vernant40), consoante os contextos de ocorrência. INTERACÇÃO VERBAL SEQUÊNCIAS SFA ST SFF ST1 TVFA Ii Ad As STn TVtn TVt1 Ir Ad As Ad Ii Ir As Ad As Ii Ad As Ad TVt1 Ir Ii As Ad As Ir Ad As TVtn Ii TVFF Ir Ad As Ad As Ii Ir Ad As Ad As LEGENDA: SFA = sequência fática de abertura; SFF = sequência fática de fecho; ST = sequência transaccional; TVFA = troca verbal fática de abertura; TVFF = troca verbal fática de fecho; TVt = troca verbal (transaccional); Ii = intervenção iniciativa; Ir = Intervenção reactiva; Ad = acto director; As = acto subordinado. FIG. 7 – Estrutura hierárquica geral (teórica) das unidades duma interacção verbal. 39 De referir que a complexidade das relações humanas afecta sempre as interacções verbais que elas promovem e/ou que delas resultam, devido à dinâmica e à dialéctica que as percorre. Os esquemas que procurem representá-las serão sempre, por isso, incompletos e imperfeitos. 40 A propósito, é de referir que as formas co-acção e co-agentes mostram, em nosso entender, os aspectos, aparentemente contraditórios, de cooperação e persuasão que qualquer interacção verbal, em sentido estrito ou alargado, encerra, como elementos fundamentais da sua definição. 50 Cabe ainda efectuar as seguintes observações. Os actos da SFA podem ocorrer integrados nas primeiras intervenções da primeira TVt, da primeira (se houver mais) ST, podendo ainda anteceder ou não os actos directores e subordinados das primeiras Ii e Ir transaccionais. Pode até acontecer que uma SFA tenha lugar, se bem que mais raramente, no decurso duma ST. Quando ocorre depois do Ad transaccional, o locutor, para ser cortês, pede desculpa por não ter, por exemplo, cumprimentado previamente o(s) alocutário(s) e/ou pela invasão do território ou face negativa41 do(s) mesmo(s). Eis um caso (de outros falaremos mais à frente) de como a cortesia, ou a falta dela, tem influência, desde logo, na sequencialização das unidades mínimas do discurso e do texto duma conversa, o que revela, ao mesmo tempo, um menor ou insuficiente domínio da competência discursivo-textual da parte do co-agente. Como observa Antónia Coutinho, «a organização dos textos em termos que se podem dizer, genericamente, de ordem sequencial» é «um aspecto particularmente significativo da competência textual.»42 É também, a nosso ver, um domínio que cai no âmbito da competência de cortesia. Além disso, a SFF pode, igualmente, estar integrada nas intervenções da última TVt. Cada intervenção, por outro lado, pode ser constituída apenas por um Ad. Neste caso, ou se está perante contextos em que cada Ii do locutor não tem em consideração cada Ir do alocutário, como acontece em provas ou entrevistas (sobretudo escritas), onde o locutor se limita a formular perguntas ou questões previamente elaboradas, cuja sequência e conteúdo nada têm a ver com as respostas a dar pelo(s) alocutário(s), ou se passa em contextos onde a relação entre os interlocutores é muito pouco amistosa, ou, então, porque são exigidas acções rápidas e urgentes. Mas se neste caso, a eficácia e urgência não se compadecem com o recurso a formas mais ou menos desenvolvidas de cortesia, já nos casos anteriores poderemos estar perante actos de maior ou menor descortesia. Um coisa, porém, é certa: uma conversa assente apenas nos actos directores está condenada a ser, mais troca menos troca, de curta duração e descortês. Como dissemos, uma IV pode ser constituída apenas por uma ST e apenas por uma TV. Tal não é, porém, o que geralmente acontece. Uma ST pode ser constituída por várias TVt (por isso a indicação TVtn) e uma IV é formada, além das fáticas, por uma ou várias ST (daí a indicação STn). Umas e outras podem estar sequenciadas e/ou articula- 41 Esclarecemos, infra, estas noções, no cap. II, 1.3. e cap. III. COUTINHO, 1999 : 117. Sobre a problemática da noção de sequência textual, com análise da noção nos principais estudiosos, cf. id.: 117-137. 42 51 das por coordenação ou encaixe. No casos de encaixe, haverá uma ST ou uma TVt encaixante (ou mais) e uma ST ou uma TVt encaixada (ou mais).43 2. Interacção verbal em sentido lato Há uma outra concepção de interacção verbal, em sentido lato, cuja primeira formulação os estudiosos atribuem a Bakhtine.44 Encontram-se, porém, em Bally, linguista suíço trinta mais velho que o pensador russo, as primeiras reflexões claras sobre a problemática da interacção verbal, incluindo aspectos da cortesia verbal, e depois em Benveniste, na sua teoria da enunciação. É, porém, na teoria da esquematização, desenvolvida por Grize, no quadro da Lógica Natural, que se encontra, como bem observa Adam, «un modèle de l’interaction verbale assez économique et assez fin pour présenter une alternative intéressante aux schémas classiques de la communication.»45 2.1. O «instinto social» da linguagem (Bally) Bally, discípulo de Saussure e um dos editores do Curso de Linguística Geral (1916),46 não teve conhecimento, certamente, do pensamento linguístico de Bakhtine, mas o contrário aconteceu. O pensador russo critica a explicação que Bally dá do discurso indirecto livre, por considerá-lo «uma simples variante estilística».47 É possível, todavia, que Bakhtine só tenha lido o Curso e os artigos em que Bally aborda esta questão, 43 Para a representação esquemática das interacções verbais e respectiva descrição, baseámo-nos em KERBRAT-ORECCHIONI, 1990 e ADAM, 1992: 153-163. 44 Por considerarmos de pouca importância, para este nosso trabalho, a controvérsia em torno de quem é verdadeiramente o autor de alguns estudos publicados pelos membros do chamado «Círculo Bakhtine», optámos por referir sempre o nome do seu principal elemento, mesmo quando os textos citados ou referidos sejam atribuídos a este e a outro elemento do referido «Círculo», em particular Volochinov, dado como coautor de Marxismo e Filosofia da Linguagem e de outros estudos. Sobre esta questão, parece-nos continuar válida a observação de Todorov, segundo a qual, não se podendo apagar os nomes de Volochinov e de Medvedev de alguns títulos, é contudo impossível não reconhecer a influência de Bakhtine na «unidade de pensamento» de todos esses textos. Sobre a biografia de Maikhaïl Mikhaïlovitch Bakhtine (1895-1975), o seu «Círculo» e esta controvérsia, cf., entre outros, JAKOBSON, 19926: 9-10; TODOROV, 1981: 13-26; YAGUELO, 19926: 11-19 e ZAVALA, 1991:11-15. Além de Bakhtine, os outros principais elementos do círculo foram Pavel Nikolaévich Medvedev (1891-1938) e Valérian [Zaval escreve Valentin] Nikolaévich Volochinov [ou Voloshinov] (1894 ou 1895-1936). A propósito, refira-se que as edições brasileiras escrevem Bakhtin e as edições espanholas Bajtin. Nós escreveremos sempre Bakhtine, excepto nas citações das obras consultadas, cuja grafia adoptada nas respectivas edições seguiremos. 45 ADAM, 1999: 101. 46 Para uma biobibliografia e sobretudo uma introdução à linguística de Bally, cf. DURRER, 1998. 47 BAHKTIN (VOLOCHINOV), 19926: 84 e 155. (Servimo-nos da tradução portuguesa, edição brasileira, cuja grafia respeitamos, nas citações.) Bakhtine critica a Bally sobretudo o «objetivismo abstrato em lingüística», porque «hipostasia e torna vivas as formas da língua, extraídas, graças a uma abstração, das ocorrências concretas de discurso (na prática cotidiana, na literatura, nas ciências, etc.» [Id.: 179] 52 pois são os únicos estudos que refere do autor suíço.48 Mas Bally publicou também vários outros estudos linguísticos, com destaque para Le Langage et la Vie, em 1913, muito corrigido e aumentado em edições posteriores pelo próprio autor.49 É sobretudo neste livro que Bally tece reflexões que parecem aproximá-lo mais de Bakhtine (não obstante as críticas que este dirige àquele) do que de Saussure. Estas reflexões prendemse com o valor social da linguagem, antecipando áreas de estudo que só anos mais tarde começariam a merecer o interesse dos linguistas, a saber, o discurso como acção e interacção, os fenómenos verbais da cortesia e das emoções, (segundo) uma nova perspectiva retórica, pois que situada ao nível da linguagem corrente e sobretudo oral.50 «Pour un observateur superficiel, elle [la conversation la plus anodine] n’offre rien de particulier; mais examinez de plus près les procédés employés: la langue apparaîtra comme une arme que chaque interlocuteur manie en vue de l’action, pour imposer sa pensée personnelle. La langue de conversation est régie par une rhétorique instinctive et pratique; elle use, à sa manière, des procédés de l’éloquence, ou, pour mieux dire, c’est à elle que l’éloquence a emprunté ses procédés. En effet, pour l’énoncé des moindres choses, il faut que la pensée devienne une action et s’impose par le langage; il faut que celui-ci se fasse tantôt pénétrant, incisif, énergique, volontaire, tantôt vibrant, passionné, tantôt humble et suppliant, souvent même hypocrite.»51 Quanto às relações que o locutor estabelece com o enunciado, a realidade que (n)ele representa e o seu interlocutor, e as relações intercondicionantes de todos estes elementos, ou seja, o uso concreto da língua como interacção verbal, em sentido estrito 48 Quanto aos artigos, trata-se de dois estudos que Bally publicou, em 1912 e 1914, em GermanischRoamnisch Monatsschrift, IV, intitulados, respectivamente, «Le style indirect libre en français moderne» e «Figures de pensée et formes linguistiques». [Cf. BAKHTIN (VOLOCHINOV), 19926: 177-178 e DURRER, 1998 : 9]. 49 Em 1925, sob o título de Le Langage et la Vie, o autor reuniu o estudo que, sob o mesmo título, publicara em 1913, já aí com importantes modificações, bem como outros artigos. O próprio autor considera, por isso, que a edição de 1925 é a primeira. Novas e profundas alterações foram introduzidas também na segunda edição, publicada em 1935, conforme indica o autor no respectivo prefácio. Durrer escreve que esta obra «constitue probablement, parmi les ouvrages de Bally, celui qui est à l’heure actuelle le plus lu et le plus cité». Trata-se dum texto que é «particulièrement intéressant dans la mesure où Bally l’a proposé comme introduction vulgarisatrice aux grands thèmes de ses recherches et plus spécifiquement à son ouvrage majeur, Linguistique Générale et Linguistique Française [1932], qui représente son texte théorique le plus abouti». [DURRER, 1998 : 16] 50 Quanto ao crescente interesse pelos fenómenos das emoções, na área da Linguística Pragmática, cf. PLANTIN et al. (dir.), 2000. Trata-se de volume (acompanhado de CD Rom) que reúne as comunicações apresentadas no colóquio intitulado Les Émotions dans les Interactions, realizado na Universidade de Lyon 2, nos dias 17 a 19 de Setembro de 1997. Sobre a importância precursora de Bally no estudo das emoções, como uma das partes da Linguística, cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 2000a: 34-36. 51 BALLY, 19653: 21. Negritos da nossa responsabilidade. 53 sobretudo, o autor tece considerações nos domínios da Estilística Linguística, da Enunciação e da Pragmática, que só muito recentemente encontramos desenvolvidas e sistematizadas no quadro de diferentes teorias.52 Por exemplo, nas teorias das faces, das distâncias (taxémicas e proxémicas), da cortesia linguística53 e da teoria grizeana da comunicação. Segundo o linguista, a presença ou a simples representação mental do interlocutor são coercivas sobre o acto de linguagem. Por isso, «en parlant avec quelqu’un, ou en parlant de lui, je ne puis m’empêcher de me représenter les relations particulières (familières, correctes, obligées, officielles) qui existent entre cette personne et moi; involontairement je pense, non seulement à l’action qu’elle peut exercer sur moi; je me représente son âge, son sexe, son rang, le milieu social auquel elle appartient; toutes ces considérations peuvent modifier le choix de mes expressions et me faire éviter tout ce qui pourrait détonner, froisser, chagriner. Au besoin le langage se fait réservé, prudent; il pratique l’atténuation et l’euphémisme, il glisse au lieu d’appuyer.»54 Logicamente que estas reflexões só podiam levar Bally a reconhecer, implícita e explicitamente, que a realização destas modalidades discursivo-textuais («nuances» estilísticas, segundo ele) se encontram realizadas, em grande número, nas «formas ditas de cortesia» (a expressão também é dele), exemplos que são do «instinto de sociabilidade» do homem.55 Implicitamente, a propósito do «carácter activo» da linguagem, como vimos acima.56 Explicitamente, quando exemplifica e comenta os diferentes modos de, por exemplo, atenuar uma ordem (que para nós, no exemplo, é um convite) ou uma crítica: «Ainsi, au lieu du simple: Entrez! On dira : Veuillez entrer! – Donnez-vous la peine d’entrer! – Faites-moi le plaisir d’entrer! Au lieu de Vous mentez! l’hypocrisie, la peur, 52 A importância e actualidade das reflexões linguísticas de Bally são reconhecidas por vários autores contemporâneos, situados em diferentes áreas de investigação, segundo refere Durrer: «Aujourd’hui, des chercheurs d’horizons aussi différents que Pierre Bourdieu, André Greene, Oswald Ducrot, Jean-Louis Chiss, Andrè Meunier ou Jean-Michel Adam reconnaissent l’apport essentiel de Charles Bally et voient en lui un des fondateurs des théories de l’énonciation et de la pragmatique française.» [DURRER, 1998 : 12] 53 Sobre estas teorias, ver, infra, caps. II e III. 54 BALLY, 19653: 21. 55 Cf. id.: 21-22. 56 Ver, supra, ou BALLY, 19653: 18. 54 les égards qu’on doit à quelqu’un incitent à dire: Vous exagérez ! – Ce n’est pas tout à fait exact, etc.»57 Estamos claramente no domínio da cortesia linguística, a qual, segundo Bally, «soit sincère ou hypocrite, elle contraint l’individu à un contrôle constant sur lui-même, à une observation attentive de ceux à qui il a affaire».58 Apesar do linguista não considerar a cortesia verbal um «fenómeno primário», uma vez que ela impede, até certo ponto, conforme diz, a livre expressão individual, observa que ela tem não apenas «un vocabulaire (exemple : "une personne forte" pour "une personne corpulente" […]), une phraséologie (A qui ai-je l’honneur de parler ? […]), une titulature symbolique de la hiérarchie sociale (comparez : Colonel ! Mon colonel ! Monsieur le colonel !); mais la politesse imprime sa marque sur des parties profondes de la grammaire ; on peut citer en français le pluriel de politesse, l’emploi de la troisième personne pour la seconde, toute une gamme de nuances modales, par exemple l’emploi du futur et du conditionnel dans les interrogations impératives (Vous me direz tout, n’est-ce pas ? Viendrez-vous ? Me passeriez-vous le pain ? […]). / Beaucoup de ces tours ont été créés avec intention; leur emploi demande souvent un choix minutieux, et, s’il est fautif, il entraîne la sanction du ridicule».59 Ainda que nela não se encontre uma explícita noção de cooperação, devido, certamente, ao entendimento de que a linguagem é um combate, na teoria de Bally existe uma das primeiras concepções (se não a primeira) segundo as quais a cortesia verbal se encontra em todos os domínios da linguística. Tal como defendem Brown & Levinson e Kerbrat-Orecchioni e seus continuadores, bem como Pottier e Carreira. Estes segundo uma perspectiva ainda mais ampla, que vai do sistema linguístico e gramatical às práticas discursivo-textuais.60 57 Id.: 22. Tendo em conta estas e outras «variações estilísticas» e os comentários que a seu propósito Bally tece, Bourdieu situa-as no âmbito das tensões sociais existentes no mercado simbólico e suas sanções, referindo que é também «todo o trabalho da cortesia» que está em jogo, na adequação da forma do discurso às relações hierárquicas existentes na sociedade: «La forme, et l’information qu’elle informe, condensent et symbolisent toute la structure de la relation sociale dont elles tiennent leur existence et leur efficience (la fameuse illocutionary force): ce que l’on appelle tact ou doigté consiste dans l’art de prendre acte de la position relative de l’émetteur et du récepteur dans la hiérarchie des différentes espèces de capital, mais aussi du sexe et de l’âge, et des limites qui se trouvent inscrites dans cette relation et de transgression rituellement, si c’est nécessaire, grâce au travail d’euphémisation.» [BOURDIEU, 1982 : 80-81] 58 BALLY, 19653: 104. 59 Id., ibid. 60 Sobre estas teorias, ver, infra, respectivamente, caps. II, III e V. 55 2.2. O «princípio dialógico» (Bakhtine) A noção de dialogismo é certamente aquela que mais fortuna conheceu, depois de introduzida por Bakhtine, no âmbito das ciências humanas, em geral, e dos estudos literários e linguísticos, em particular. Este pensador russo considera que os discursos, orais ou escritos, quando não são diálogos em sentido estrito, são-no em sentido lato, isto é, são sempre dialógicos. Todos os discursos e todas as interacções verbais contextualizadas são essencialmente dialógicos, consequência natural do carácter profundamente social do exercício da actividade da linguagem: «A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua.» 61 Bakhtine propõe, por isso, uma nova definição de diálogo, mais ampla, dialógica, que inclui as noções tradicionais tanto de diálogo como de monólogo: «O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra “diálogo” num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja.»62 No que ao nosso objecto de estudo diz respeito, interessa-nos, agora, as reflexões do autor sobre, por um lado, a enunciação discursivo-textual, como interacção verbal, e, por outro, a importância do contexto nas suas concretizações.63 Num caso como noutro, são realçadas as relações sociais entre o locutor e o(s) seu(s) interlocutor(es), real(is) ou potencial(is) e as suas referências mais ou menos explícitas a questões da cortesia / descortesia verbal, paraverbal e não verbal. 61 BAHKTIN (VOLOCHÍNOV), 19926: 123. Subjaz a esta reflexão uma crítica à teoria linguística de Saussure, cuja importância o autor russo não deixa, todavia, de reconhecer. Cf. id.: 84. 62 BAHKTIN (VOLOCHÍNOV), 19926: 123. Veja-se também BAKHTIN, 1992: 298. 63 Mais à frente, regressaremos a Bakhtine, para nos referirmos a dois outros aspectos essenciais do seu pensamento sobre a linguagem e o sujeito – a polifonia / pluridiscursivade e a alteridade. 56 Para Bakhtine, a enunciação é o resultado da interacção entre dois indivíduos socialmente organizados, porque a palavra é sempre dirigida a um interlocutor e, por isso, «ela é função da pessoa desse interlocutor», variando conforme «se tratar de uma pessoa do mesmo grupo social ou não, se esta for inferior ou superior na hierarquia social, se estiver ligada ao locutor por laços sociais mais ou menos estreitos (pai, mãe, marido, etc.)».64 O autor chama a atenção, na continuação imediata da citação anterior, para o facto de não haver um «interlocutor abstracto», uma vez que há sempre, pelo menos, um interlocutor hipotético, «representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor»,65 uma representação também construída pelo locutor, com base na vida sociocultural do tempo e lugar em que um e outro vivem, incluindo os discursos / textos já produzidos. O dialogismo inclui também esta dimensão interdiscursiva e intertextual, como factores contextuais de natureza linguística, social, ideológica, histórica e cultural. «Se algumas vezes temos a pretensão de pensar e de exprimir-nos urbi et orbi, na realidade é claro que vemos “a cidade e o mundo” através do prisma do meio social concreto que nos engloba. Na maior parte dos casos, é preciso supor além disso um certo horizonte social definido e estabelecido que determina a criação ideológica do grupo social e da época a que pertencemos, um horizonte contemporâneo da nossa literatura, da nossa ciência, da nossa moral, do nosso direito.»66 Segundo observa o autor, uma das características essenciais dum enunciado, por oposição às unidades da língua (palavra e oração), é ele ter um autor (locutor) e correlativamente um destinatário, podendo este «ser o parceiro e interlocutor direto do diálogo na vida cotidiana, [...] o conjunto diferenciado de especialistas em alguma área especializada da comunicação cultural, [...] o auditório diferenciado dos contemporâneos, dos partidários, dos adversários e inimigos, dos subalternos, dos chefes, dos inferiores, dos superiores, dos próximos, dos estranhos, 64 BAKHTIN (VOLOCHÍNOV), 19926: 112. Repare-se, ainda, na seguinte passagem, onde o autor considera que qualquer enunciação, «mesmo que não se trate de uma informação factual», é, «na sua totalidade [...] socialmente dirigida»: «Antes de mais nada, ela [a enunciação] é determinada da maneira mais imediata pelos participantes do ato de fala, explícitos ou implícitos, em ligação com uma situação bem precisa; a situação dá forma à enunciação, impondo-lhe esta ressonância em vez daquela, por exemplo a exigência ou a solicitude, a afirmação de direitos ou a prece pedindo graça, um estilo rebuscado ou simples, a segurança ou timidez, etc. A situação e os participantes mais imediatos determinam a forma e o estilo ocasionais da enunciação.» [Id.: 113-114. Cf. também id.: 124] 65 Id.: 112. 66 Id.: 123. 57 etc.; pode até ser, de modo absolutamente indeterminado, o outro não concretizado (é o caso de todas as espécies de enunciados monológicos de tipo emocional).»67 A atenção, a nível relacional, isto é, de cortesia ou descortesia, que cada autor (falando ou escrevendo) tem (não pode deixar de ter) em relação a cada um dos seus destinatários, consoante os contextos («esferas da vida», diz Bakhtine), vai repercutir-se também, inevitavelmente, nos géneros e nos estilos discursivos que ele vai ou está já a utilizar: «Nas esferas da vida cotidiana ou da vida oficial, a situação social, a posição e a importância do destinatário repercutem na comunicação verbal de um modo todo especial. A estrutura da sociedade em classes introduz nos gêneros do discurso e nos estilos uma extraordinária diferenciação que se opera de acordo com o título, a posição, a categoria, a importância conferida pela fortuna privada ou pela notoriedade pública, pela idade do destinatário e, de modo correlato, de acordo com a situação do próprio locutor (ou escritor).»68 Em todo e qualquer discurso existe, assim, uma «orientação social» que reflecte as relações interpessoais existentes ou desejadas entre aquele que fala ou escreve e aquele que o ouve ou lê, relações que se manifestam através de comportamentos não verbais, paraverbais, verbais e discursivo-textuais. Comportamentos, uns e outros, que Bakhtine situa claramente no âmbito da cortesia, que começam nos gestos e na postura do corpo, e continuam na entoação, na escolha do assunto, do vocabulário, na organização intra e interfrásica, no nível de língua utilizado, na composição e configuração do todo discursivo-textual. Na sequência da noção de dialogismo, há sempre, em qualquer discurso, porque «orienté vers quelqu’un qui soit capable de le comprendre et d’y donner une réponse, réelle ou virtuelle», uma «orientação social», isto é, uma «dépendance de l’énoncé à l’égard du poids hiérarchique et sociale de l’auditoire».69 Orientação que «est précisément l’une de ces forces vivantes et constitutives qui, en même temps qu’elles organisent le contexte de l’énoncé – la situation –, déterminent aussi sa forme stylistique et sa 67 Id.: 320-321. BAKHTIN, 1992 : 322. 69 BAKHTINE (VOLOSHINOV), 1981: 298. A orientação social bakhtiniana corresponde aos factores sociais, como seja, classe, fortuna, função, etc. [Cf. id.: 298-299] 68 58 structure strictement grammaticale.» Tal orientação manifesta-se, desde logo, nos aspectos exteriores e físicos da conduta social – os gestos, a postura do corpo, o tom da voz – que acompanham sempre uma produção discursiva, comportamentos extraverbais que são a expressão das «boas maneiras» do locutor relativamente ao seu interlocutor, «qu’il soit réellement présent ou simplement supposé».70 Esta orientação e consideração pelo outro não se fica, contudo, por aí. As «boas maneiras» («la façon de se tenir en société»,71 «l’expression gestuelle de l’orientation sociale de l’énoncé»72) se determinam, em primeiro lugar, a entoação, é através desta, enquanto «l’expression fonique de l’évaluation sociale»,73 que «ont lieu le choix et la mise en ordre des mots, et que l’énoncé dans son ensemble prend son sens».74 Ter ou não ter «boas maneiras», na realização duma qualquer interacção verbal, é, no fundo, observa Bakhtine, uma questão de educação,75 mas que nós preferimos designar como uma competência discursivo-textual de cortesia, dentro da macrocompetência de comunicação, uma e outra adquiridas e desenvolvidas, naturalmente, em contextos socioeducativos formais e informais. Competência de cortesia que o pensador russo, apesar de parecer situar sobretudo no domínio do gestual, também acaba por reconhecer e mostrar ao analisar as «boas maneiras» paraverbais, verbais e discursivotextuais que Tchitchikov, protagonista de Almas Mortas, de Nicolai Gogol (1809-1852), manifesta, consoante as diferenças sociais dos seus interlocutores e os objectivos que pretende alcançar.76 70 Id.: 299. Id.: ibid. 72 Id.: 306, nota 2. 73 Id.: 305. 74 Id.: 305. Bakhtine, partindo da noção musical de «tom» («c’est le ton qui fait la musique»), entende a entoação dum enunciado como «son sens général, sa signification globale», tanto «dans la construction de l’énoncé quotidien comme de l’énoncé littéraire.» [Id.: 304-305] 75 Bakhtine observa que «il ne faut pas oublier que l’éducation n’est elle-même nulle autre chose que l’effort pour habituer l’homme à tenir constamment compte de son auditoire – on appelle cela “savoir se tenir en société” -, à exprimer, par le geste et la mimique, mais de façon juste et avec tact, l’orientation sociale de ses énoncés.» Mas se as «boas maneiras» consistem na consideração do estatuto do outro, as «más» «reflètent l’absence de prise en compte de l’interlocuteur, la méconnaissance du lien social et hiérarchique qui existe entre le locuteur et l’auditeur, l’habitude, souvent inconsciente, de ne pas modifier l’orientation sociale de ses énoncés – qu’ils soient exprimés par la parole ou par le geste – alors que les conditions sociales et l’auditoire se trouvent modifiés.» [Id.: 300] 76 Cf. id.: 305-316, para verificação de análises que têm em consideração a entoação, a escolha das palavras, a sua organização na frase e desta no discurso-texto, passando por aspectos estilísticos e níveis de língua. Cf. também BAKHTIN, 1992: 323-325, onde o autor relaciona os géneros do discurso familiar e íntimo com o tipo de relações interpessoais existentes, presumidas ou desejadas entre os interlocutores. 71 59 Bakhtine observa, por outro lado, embora sem lhe dar o desenvolvimento necessário, que a não consideração do outro, do auditório, é também uma forma do locutor ter pouco apreço por si próprio: «un orateur qui s’écoute parler est un mauvais orateur; un professeur qui ne s’occupe que ses notes est également un mauvais professeur. Ils désamorcent eux-mêmes l’impact de leurs propos, ils brisent le lien vivant, le nature dialogique, qui les unit à leur auditoire et, ainsi, ils déprécient eux-mêmes leurs propres prestations.»77 Nesta ordem de ideias, a actividade discursivo-textual (oral ou escrita, corrente ou estética, científica ou literária) não se situa apenas do lado do locutor, mas também do lado do alocutário, o qual nunca é, por isso, um simples receptor passivo, um puro receptáculo. A palavra tem duas faces, não as faces (conceito e imagem acústica) do signo linguístico saussuriano,78 mas sim as faces sociais que condicionam qualquer actividade discursivo-textual. «Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à colectividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor.»79 Bakhtine não podia deixar, por isso, de se referir também ao «problema da compreensão» dos discursos, a qual só pode ser «activa e responsiva», «uma forma de diálogo», porque «está para a enunciação assim como uma réplica está para a outra». Neste sentido, compreender «é opor à palavra do locutor uma contrapalavra.»80 Não se pode pensar em interacção verbal, sem se pressupor uma resposta do outro, que pode ser o próprio, o interlocutor ou mesmo um «superdestinatário superior», «um terceiro invisí77 BAKHTINE (VOLOSHINOV), 1981: 293. Negritos da nossa responsabilidade. Bakhtine, reconhece a importância da teoria de Ferdinand de Saussure e do seu Curso, mas critica-lhe o «objetivismo abstrato», ao pôr em cena um locutor soberano, dono da sua língua e do discurso, sem ter em consideração os aspectos sociais da linguagem. Cf. BAKHTIN (VOLOCHÍNOV), 19926: caps. 4 e 5. 79 BAKHTIN (VOLOCHÍNOV), 19926: 113. Esta reflexão pode ser relacionado, até certo ponto, com a teoria das faces de Goffman. Sobre esta teoria, ver, infra, cap. II, 1.3 e cap. III. 80 BAKHTIN (VOLOCHÍNOV), 19926: 131-132. Cf. também id.: 147 e BAKHTIN, 1992: 298. 78 60 vel, dotado de uma compreensão responsiva, e que se situa acima de todos os participantes do diálogo (os parceiros)».81 Por isso, a palavra / discurso «é um drama com três personagens»,82 porque ela / ele é «quase tudo na vida do homem»:83 é através dela / dele que o homem participa «no grande diálogo da comunicação verbal.»84 Criticando o esquema saussuriano, em virtude da «imagem totalmente distorcida [que dá] do processo complexo da comunicação verbal», transformando-a, por isso, em «ficção científica», o autor observa: «De fato, o ouvinte que recebe e compreende a significação (lingüística) de um discurso adota simultaneamente, para com este discurso, uma atitude responsiva ativa: ele concorda ou discorda (total ou parcialmente), completa, adapta, apronta-se para executar, etc., e esta atitude do ouvinte está em elaboração constante durante todo o processo de audição e de compreensão desde o início do discurso, às vezes já nas primeiras palavras emitidas pelo locutor.»85 Esta compreensão responsiva, de natureza dinâmica, verifica-se também nos «géneros secundários»,86 mesmo que pareça permanecer «muda», pois acaba sempre por se manifestar, ainda que em «ação retardada».87 Esta atitude activa do destinatário real ou imaginário, no processo de interacção comunicativa, é, por outro lado, um postulado do próprio locutor ou escritor, pois o que cada um destes espera «não é uma compreensão passiva», porque, nesse caso, ela «por assim dizer, apenas duplicaria seu pensamento no espírito do outro». O que se espera «é uma resposta, uma concordância, uma adesão, uma objeção, uma execução, etc.» Mais, remetendo para a intertextualidade, 81 BAKHTIN, 1992: 356. Id.: 350. 83 Id.: 346. 84 Id.: 346. «O mais importante pensador soviético no domínio das ciências humanas» [TODOROV, 1981: 7] chega mesmo a admitir a possibilidade duma língua única, universal, «uma língua das línguas», a qual, «claro, nunca pode tornar-se uma língua singular, uma das línguas». [BAKHTIN, 1992: 333] 85 Id.: 290. A concepção sausurriana de comunicação, criticada por Bakhtine, encontra-se em SAUSSURE, 1984: 27-32. 86 «Os gêneros secundários do discurso – o romance, o teatro, o discurso científico, o discurso ideológico, etc. – aparecem em circunstâncias de uma comunicação cultural, mais complexa e relativamente mais evoluída, principalmente escrita: artística, científica, sociopolítica. Durante o processo de sua formação, esses gêneros secundários absorvem e transmutam os gêneros primários (simples) de todas as espécies, que se constituíram em circunstâncias de uma comunicação verbal espontânea. Os gêneros primários, ao se tornarem componentes dos gêneros secundários, transformam-se dentro destes e adquirem uma característica particular: perdem sua relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados alheios». [BAKHTIN, 1992: 281] 87 Id.: 291. 82 61 uma das dimensões do dialogismo (o diálogo entre textos próprios e alheios) e fazendo adivinhar a noção grizeana de preconstruído cultural: 88 «O próprio locutor como tal é, em certo grau, um respondente, pois não é o primeiro locutor, que rompe pela primeira vez o eterno silêncio de um mundo mudo, e pressupõe não só a existência do sistema da língua que utiliza, mas também a existência dos enunciados anteriores – emanantes dele mesmo ou do outro – aos quais seu próprio enunciado está vinculado por algum tipo de relação (fundamenta-se neles, polemiza com eles), pura e simplesmente ele já os supõe conhecidos do ouvinte. Cada enunciado é um elo da cadeia muito complexa de outros enunciados.»89 É, por isso, através dos textos que concretizam géneros do discurso que, como observa o autor, na complexidade interdisciplinar das suas reflexões,90 a comunicação humana se realiza num conhecimento e reconhecimento mútuo de alteridades: «O que nos interessa, nas ciências humanas, é a história do pensamento orientada para o pensamento, o sentido, o significado do outro, que se manifestam e se apresentam ao pesquisador somente em forma de texto. Quaisquer que sejam os objetivos de um estudo, o ponto de partida só pode ser o texto.»91 Texto que o autor entende essencialmente como um enunciado oral ou escrito, cuja definição por isso, tendo em consideração o conjunto das reflexões expostas, podemos encontrar na seguinte descrição: «A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da actividade humana. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada 88 Ver, neste capítulo, infra, 2.3. Id.: 291. 90 «Nosso estudo poderá ser classificado de filosófico sobretudo por razões negativas. Na verdade, não se trata de uma análise lingüística, nem filológica, nem literária, ou de alguma outra especialização. No tocante às razões positivas, são as seguintes: nossa investigação se situa nas zonas limítrofes, nas fronteiras de todas as disciplinas mencionadas, em sua junção, em seu cruzamento.» [Id.: 329] 91 O autor acrescenta que se interessa «unicamente» pelo «texto verbal», que vê como «o dado primário de todas as disciplinas das ciências humanas, em particular nas áreas da lingüística, da filologia, da literatura.» [Id.: 330; cf. também id.: 341] 89 62 nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais –, mas também, e sobretudo, por sua construção composicional.»92 Acrescenta Bakhtine que é na fusão indissolúvel destes três elementos (conteúdo temático, estilo e composição), marcados pela especificidade dum contexto de comunicação, que se constrói um enunciado (discurso-texto, dizemos nós) como um todo. E de novo entra em consideração o conceito de dialogismo, desta vez ao nível das relações que, para serem compreensíveis, existem entre os enunciados concretos e os géneros de discurso que os prefiguram. «Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso.»93 Não vamos apresentar, apesar da sua importância e actualidade, as reflexões que o autor russo faz sobre os géneros de discurso e as suas realizações concretas através de enunciados (textos). Trata-se de questão sobre a qual se têm pronunciado, cada vez mais, investigadores portugueses e estrangeiros, quer da área da Teoria da Literatura (onde primeiro o problema se pôs e tentou resolver), quer da área linguística, em particular, da Teoria e Análise do Discurso e/ou do Texto (onde só mais recentemente o problema começou a ser estudado e analisado).94 Encontra-se referido, com relativa frequência, sobretudo em estudos de natureza didáctica, que o objecto da Teoria ou Análise do Texto são as unidades superiores à frase complexa. Em nosso entender, sendo certo que os textos são produtos sociodiscursivos contextualmente construídos que, regra geral, apresentam uma composição e organiza92 Id.: 279. Id., ibid. 94 Entre nós, merecem especial referência, no quadro teórico da Teoria do Texto, COUTINHO, 1999, e no quadro teórico da Análise do Discurso, MENÉNDEZ, 1997. Convém referir que o primeiro estudo analisa os géneros de discurso e os tipos de texto à luz das propostas mais recentes sobre a matéria, mas perspectivando-os como sub-competências da competência textual, tanto ao nível da construção discursiva e textual (produção), como da sua reconstrução (recepção, interpretação). O estudo de Fernanda Menéndez é uma aplicação da teoria e método da Análise do Discurso a «formações discursivas», ou melhor, metadiscursivas (porque de discursos de filólogos que reflectem sobre os usos mais correctos da língua se trata) da segunda metade do século XVIII, nomeadamente ao nível do discurso polémico e normativo (escritos, evidentemente), assim contribuindo também para uma análise da histórica da Língua Portuguesa, no quadro daquela disciplina. Cabe referir ainda o trabalho académico e os estudos de OPITZ, FONSECA (J.) e FONSECA (F.) [cf., infra, Bibliografia, além de outra], linguistas cuja investigação e obra devem ser consideradas pioneiras, entre nós, nestas áreas. Entre os estrangeiros merecem especial referência ADAM, 1992 e 1999, no quadro da Análise Textual, e BRONCKART, 1996, no quadro da Psicolinguística. 93 63 ção superior à frase, isto é, em unidades situadas ao nível interfrásico e transfrásico, não se pode esquecer que tais unidades são constituídas, por sua vez, também por unidades menores, frases complexas e simples, sintagmas, lexemas, morfemas, etc., a entender, naturalmente, como constituintes de unidades discursivo-textuais, com funções e estatutos que não os estritamente linguísticos e gramaticais. Não podemos deixar, por isso, de transcrever a seguinte reflexão de Bakhtine, cujo pensamento geral, apesar de não se apresentar completamente coerente e sistematizado (ou talvez por isso mesmo), não deixa de continuamente nos surpreender e apaixonar. Em princípio dos anos cinquenta, em fragmento de estudo que não chegou a concluir, escreve: «O estudo da natureza do enunciado e dos gêneros do discurso tem uma importância fundamental para superar as noções simplificadas acerca da vida verbal, a que chamam o “fluxo verbal”, a comunicação, etc., noções estas que ainda persistem em nossa ciência da linguagem. Irei mais longe: o estudo do enunciado, em sua qualidade de unidade real da comunicação verbal, também deve permitir compreender melhor a natureza das unidades da língua (da língua como sistema): as palavras e as orações.»95 2.2.1. «Cada locutor é um co-locutor» (Benveniste) A vontade de con-vencer, numa prática discursivo-textual, releva da dimensão argumentativa das interacções verbais que Benveniste (e muitos outros linguistas depois dele) também encontra na definição de discurso, quer em sentido restrito quer em sentido lato, oral ou escrito, ficcional ou não. Definição que encerra também uma dimensão dialógica, ainda que o linguista francês assim a não designe: «É preciso entender discurso na sua mais ampla extensão: toda enunciação que suponha um locutor e um ouvinte e, no primeiro, a intenção de influenciar, de algum modo, o outro. É em primeiro lugar a diversidade dos discursos orais de qualquer natureza e de qualquer nível, da conversa trivial à oração mais ornamentada. E é também a massa dos escritos que reproduzem discursos orais ou que lhes tomam emprestados a construção e os fins: correspondências, memórias, teatro, obras didáticas, enfim todos os gêneros nos 95 BAKHTINE, 1992 : 287. 64 quais alguém se dirige a alguém, se enuncia como locutor e organiza aquilo que diz na categoria da pessoa.»96 Benveniste, no célebre artigo, publicado pela primeira vez em 1970 - «O aparelho formal da enunciação»97 - diz que esta consiste em «colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização», «um processo de apropriação [da língua]».98 O discurso (manifestação da enunciação sempre que alguém fala) é compreendido, por isso, como «uma outra enunciação com retorno», isto é, como um diálogo, ou seja, em termos bakhtinianos, uma interacção verbal dialógica.99 O locutor apropria-se do aparelho formal da língua, mas ao fazê-lo assinala a sua posição, tanto através de índices específicos como de procedimentos acessórios. Todavia, logo que assume a posição de locutor, «ele implanta o outro diante de si, qualquer que seja o grau de presença que ele atribua a este outro. Toda a enunciação é, explícita ou implicitamente, uma alocução, ela postula um alocutário.»100 Neste sentido, o que caracteriza, em geral, a enunciação «é a acentuação da relação discursiva com o parceiro, seja este real ou imaginário, individual ou colectivo». Resulta daqui um «quadro figurativo da enunciação», que se aproxima também da «estrutura do diálogo». Na enunciação, «cada locutor [é, por isso,] um co-locutor»:101 «Como forma de discurso, a enunciação coloca duas “figuras” igualmente necessárias, uma, origem, a outra, fim da enunciação. É a estrutura do diálogo. Duas figuras na posição de parceiros são alternativamente protagonistas da enunciação.»102 Nessa estrutura cabe também o monólogo, «como uma variedade do diálogo»: «O “monólogo” é um diálogo interiorizado, formulado em “linguagem interior”, entre um eu locutor e um eu ouvinte. Às vezes, o eu locutor é o único a falar; o eu ouvinte permanece entretanto presente; sua presença é necessária e suficiente para tornar signifi96 BENVENISTE, 19882: 267. (Edição francesa: 1966) Servimo-nos da tradução para Português (variante brasileira), por não nos ter sido possível consultar edição na língua original. 97 O referido artigo foi publicado, pela primeira vez, na revista Langages, 1970, n.º 17: 12-18 e reproduzido, depois, no volume II de Problémes, editado em 1974. (Na tradução por nós consultada, em BENVENISTE, 1989: 81-90) 98 Id.: 82 e 84. 99 Cf. id.: 83-84. 100 Id.: 84. 101 BENVENISTE, 1989: 84. 102 Id.: 86. 65 cante a enunciação do eu locutor. Às vezes, também, o eu ouvinte intervém com uma objeção, uma questão, uma dúvida, um insulto.»103 São claras as proximidades com a noção de dialogismo bakhtiniano, ao qual, todavia, Benveniste não faz qualquer referência, bem como com reflexões de Bally, que praticamente também ignora.104 (AQUI) 2.3. Comunicação: esquematização discursiva (Grize) A teoria da esquematização desenvolvida por Grize, no quadro da lógica natural,105 constitui, em nosso entender, uma proposta alternativa válida (e necessária) ao tradicional esquema de comunicação jakobsoniano. Ao considerar a actividade discursivo-textual como processo e como produto, o autor constrói um modelo coerente de descrição e análise, onde a comunicação (tanto oral como escrita) é entendida como interacção verbal, onde são claramente reconhecidos e descritos os papéis e as funções dos nela participam, bem como os factores de vária ordem que os condicionam. Além disso, este modelo permite compreender a utilização das diferentes formas de cortesia e de descortesia, nas diferentes práticas discurasivo-textuais. Deter-nos-emos, por isso, na sua apresentação. Na teoria da esquematização, fundada e desenvolvida pelo lógico e seus colaboradores, no Centre de Recherches Sémiologiques da Universidade de Neuchâtel, encontramos sistematizados muitos aspectos abordados pelos autores anteriores, a par de outros inovadores, os quais, no seu conjunto, permitem compreender e descrever com mais rigor a complexidade da actividade discursivo-textual. Não cabe, aqui e agora, um estudo comparativo dos vários pontos de contacto entre as teorias anteriores e a teoria grizeana, apesar de considerarmos importante e necessário que tal estudo seja levado a cabo. Quanto mais não seja, pela «história» do conhecimento sobre o conhecimento que, neste domínio, segu(i)ndo perspectivas teóri103 Id.: 87-88. Durrer estranha o facto de Benveniste continuar a ser visto como o linguista que promoveu o regresso ao Homem, «le promoteur de l’approche énonciative», por um lado, e não encontrar, por outro, nos seus textos «une quelconque allusion à une éventuelle influence des travaux du successeur de Saussure.» [DURRER, 1998: 13-14.] 105 «En résume, on peut dire que la logique naturelle est la mise en évidence des opérations logico-discursives propres à engendrer une schématisation et qu’elle dégage deux familles d’opérations. Les unes la caractérisent comme une logique des objets [“contenus”] et les autres comme une logique des sujets [“interlocuteurs”].» GRIZE, 1996: 82. As indicações entre [ ] são palavras-chave que resultam da descrição de cada uma das «lógicas» e que as poderão sintetizar. Cf. id.: cap. IV e 1990: 20-23. 104 66 cas e metodológicas distintas, se tem produzido. Tanto mais quanto Grize, dos três autores que podemos considerar «fundadores» ou «precursores» da análise da linguagem como interacção verbal, apenas cita Bakhtine e Benveniste, nunca referindo Bally, o que não deixará de ser estranho, sabendo-se que ambos são suíços. A Bakhtine vai Grize buscar a noção de dialogismo,106 e a Benveniste a confirmação da dimensão argumentativa do discurso, na medida em que este, enquanto tal, implica não só um locutor e um alocutário, mas também a intenção do primeiro em querer influenciar o segundo,107 aspecto já vincado por Bally, como vimos acima. 2.3.1. Comunicar é esquematizar. Novo esquema de comunicação Para descrever e explicar a complexidade do fenómeno da comunicação humana, face às insuficiências do conhecido modelo de Jakobson,108 o lógico de Neuchâtel desenvolveu uma nova teoria que tem como principal fundamento a noção de esquematização discursiva, porque nela se encontram reunidas, conforme diz, as ideias de representação, de comunicação e de lógica. Daí, a definição: «Une schématisation est une organisation de connaissances dont le locuteur prend conscience en même temps qu’il les met en forme pour les communiquer.»109 Esquematizar é, por isso, uma actividade de pensamento ou cognitiva que se manifesta em discurso situado, a entender como processo, que se concretiza em textos, a entender como resultado. Falar e escrever, isto é, construir um discurso oral ou escrito, é sempre, por isso, «une activité créatrice qui donne naissance à une schématisation»,110 que, enquanto processo, consiste «[dans] la création continue de sens à partir de la signification des termes utilisés» e, enquanto resultado, «quelque chose qui est placé devant le destinataire, un spectacle qui lui est donné à voir, dans l’espoir qu’il le regarde.»111 Daí que esquematizar um aspecto da realidade, construir uma representação discursiva dum 106 Cf. GRIZE, 1990: 28 e 1996: 61. Todavia, o autor cita Bakhtine (Voloshinov), via Todorov, quanto à noção de dialogismo que adopta. [Cf. TODOROV, 1981: 292] 107 Cf. GRIZE, 1996 : 5. O autor cita BENVENISTE, 1988: 267. 108 Cf. JAKOBSON, 1963: 213-220. 109 GRIZE, 1996 : 143. Cf. também id.: 68 e 79. 110 GRIZE, 1990: 35. 111 GRIZE, 1996: 69. Cf. também 1990: 35 e 36. 67 microuniverso, ficcional ou não, é sempre também um acto semiótico, porque é, conforme refere, dar a ver.112 Comunicar é, assim, mais que informar, é também «pôr em comum» e sobretudo «cooperar», por isso, interagir dialogal e dialogicamente.113 Grize propõe um novo esquema que sintetiza um novo modelo teórico da comunicação, onde a noção de imagem ocupa uma posição central (que não apenas ao nível do desenho representado), conforme reproduzimos na figura seguinte (FIG. 8) e a seguir descreveremos. Situation d’interlocution Place du locuteur Place de l’auditeur Schématisation im(A), im(B), im(T) A construit en fonction de PCC, rep, finalité B reconstruit en fonction de ce qui est proposé, de PCC, rep, finalité FIG. 8 – Esquema da comunicação, segundo GRIZE, 1996: 68. O essencial deste esquema pode encontrar-se resumido na seguinte descrição: «si dans une situation donnée, un locuteur A adresse un discours à un autre locuteur virtuel B, je dirai que A propose une schématisation à B, qu’il construit un micro-univers devant B, univers qui se veut vraisemblable pour B.»114 Em qualquer situação de interlocução, um locutor e o alocutário ocupam, alternadamente, os lugares A e B, na construção e reconstrução (não codificação e decodificação, como no «circuito» tradicional) duma esquematização, em função dos preconstruídos culturais (PCC) que cada (inter)locutor possui, bem como das respectivas representações (rep) e finalidades. Estas actividades e dados não são completamente simétricos, uma vez que a finalidade de B nunca é igual à de A e, além disso, sendo A a tomar a ini112 Cf. GRIZE, 1996: 69 e 1990: 37. Cf. GRIZE, 1996 : 57 e 61; 1990 : 28. 114 GRIZE, 1982: 172. Cf. também 1990: 29. 113 68 ciativa da comunicação (a começar uma esquematização), B fica fortemente constrangido, na sua actividade de reconstrução, por aquilo que lhe é proposto no início e no decurso do discurso.115 Depois, porque nem os PCC, nem as rep, nem as competências são iguais. Por isso, «la reconstruction d’une schématisation ne sera jamais véritablement isomorphe à sa construction», pela simples razão (que nunca será assim tão simples quanto se diz) de que «chaque individu réel est unique».116 «Les partenaires vrais d’une communication ne sont pas des machines issues d’un même moule. Ce sont des individus avec leur vécu personnel, leur propre histoire, des individus situés dans des contextes sociaux toujours un peu différents les uns des autres.»117 Para que haja, todavia, comunicação, tal como vem sendo descrita e deve ser entendida, na sua complexidade, um mínimo de acordo é necessário entre os interlocutores. Uma esquematização não é só a construção dum sentido, é também um convite à reconstrução desse sentido, promovido e autorizado por ela própria.118 Grize compara, por isso, a comunicação verbal (porque há outras formas de comunicação) aos fenómenos da ressonância física, com a ressalva evidente, todavia, de que não havendo nunca duas pessoas completamente iguais (nem completamente diferentes, acrescentemos), «la communication ne peut apparaître finalement que comme le pari d’une ressemblance qui suffit à l’action.»119 Subjaz a esta reflexão a concepção de que, num dado contexto de comunicação, não só o locutor é activo mas também o alocutário. Grize fala, por isso, em «parceiros» que, apesar das diferenças, não podem, deixar de cooperar: «Communiquer est une activité partagée entre des partenaires, une activité qui leur est commune, ce que le terme de communication laisse d’ailleurs entendre.»120 Esta especial atenção à actividade de reconstrução discursiva, ou melhor, de coconstrução, centrada no interlocutor, encontra-se já insistentemente defendida e justificada, em Bakhtine, quando critica a concepção saussuriana de que só o locutor é activo, 115 Cf. GRIZE, 1996: 69. GRIZE, 1990 : 30. 117 GRIZE, 1996: 60. 118 Cf. GRIZE, 1996: 118. 119 GRIZE, 1996: 71. Bakhtine também utiliza o termo «ressonância», quando se refere ao dialogismo, sempre presente em qualquer discurso-texto. Por exemplo: «o enunciado é um elo na cadeia da comunicação verbal e não pode ser separado dos elos anteriores que o determinam, por fora e por dentro, e provocam nele reações-respostas imediatas e uma ressonância dialógica.» [BAKHTIN, 1992: 320] 120 GRIZE, 1996: 77. 116 69 «como se este estivesse sozinho, sem uma forçosa relação com os outros parceiros da comunicação verbal»,121 como vimos acima. 2.3.2. Esquematizar é dar a ver: a noção de imagem Na construção (produção) e reconstrução (audição, leitura, interpretação, compreensão) duma determinada esquematização discursivo-textual, são activadas e tornamse visíveis diversas imagens, individuais e em rede. Trata-se do aspecto argumentativo da esquematização. «Il en résulte que tout discours peut être une argumentation. Il propose certaines images, images situées qui ont pour but de susciter chez le destinataire des inférences qui vont dans le sens souhaité. / Offrir des images est argumentativement essentiel. Personne en effet ne met en doute ce qu’il voit, tout au moins avant de se livrer à une activité critique.»122 Imagem é uma das noções principais nesta dissertação. Trata-se, por isso, de noção sobre a qual nos devemos demorar, não só para descrever, com mais pormenor, a concepção grizeana, mas também porque é termo intimamente relacionado com a noção de face pública (e os processos discursivo-textuais de sua construção e preservação, seja como figuração seja como desfiguração). Noção esta que, na sequência da teoria de Goffman, retomada por Brown & Levinson e continuadores, é fundamental, no quadro do sistema da cortesia linguística, em geral, e no subsistema das formas de tratamento, em particular. Por outro lado, a imagem que se tem ou quer dar, sincera ou fingidamente, do(s) outro(s), interlocutor(es), presente(s) ou ausente(s), de si próprio ou de terceiro(s), vai marcar, decisivamente, a actividade discursiva e o texto empírico dela resultante, a começar, desde logo, na selecção das formas de cortesia e dos tratamentos auto e heterorreferenciais, com reflexos também na composição, organização e configuração das diferentes unidades e do todo textual que integram. Grize precisa a noção de imagem face à noção de representação, como segue: 121 122 BAKHTINE, 1992: 289. GRIZE, 1996 : 18-19. Por comodidade de citação, anulámos a mudança de parágrafo. 70 «J’appelle représentation ce qui est relatif à A et à B et image ce qui est visible dans le texte. Il s’ensuit que les images, en principe visibles par tout observateur d’un texte, sont objectuelles (interprétations mises à part) et que les représentations sont fonction de A et de B. Ainsi, tout le travail de l’analyste est d’inférer à partir des images les représentations de ceux qui s’en sont servis.»123 Tal como se mostrou na FIG. 8, são três os tipos principais de imagens que a esquematização dá a ver, ou melhor, propõe ao olhar: a) as imagens do tema ou assunto [im(T)]; b) as imagens do locutor [im(A)]; c) e as imagens do destinatário [im(B)]. Além destas, uma esquematização dá também a ver imagens das relações que aqueles têm entre si, ou seja, uma imagem das relações de A com B e vice-versa, as imagens das relações de A e de B com T, e a imagem que A dá a ver das imagens de B e viceversa. Note-se que, quando se diz imagem se deve entender uma certa imagem: a imagem que se vê é uma construção de quem fala ou escreve e uma reconstrução ou interpretação do ouvinte ou leitor, que é também um ser social como o outro. Os mundos reais ou possíveis que os outros nos dão ou querem dar a ver são sempre vistos pelos nossos próprios olhos, com maior ou menor atenção. O autor considera, em GRIZE, 1996, que as im(T) «ne demandent guère de commentaires», porque «constituent le contenu manifeste de la schématisation».124 Todavia, em estudos anteriores, considerava que a im(T) levanta o problema importante da verosimilhança. Segundo o autor, para que esta se verifique, são necessárias duas condições: coesão e coerência. Sem entrar em explicações desenvolvidas, considera(va) que «la cohésion est un phénomène interne au discours, donc de nature sémantique», enquanto que «la cohérence est relative à l’extra-linguistique et, le cas échéant, le discours doit la rétablir.»125 As im(A) como as im(B) podem dar-se a ver de múltiplas formas, no decurso do discurso-texto. Umas e outras tanto se dão a ver por aquilo que é dito, como pelo modo 123 Id. : 69-70. Cf. também GRIZE, 1990: 33 e 37. GRIZE, 1996: 70. 125 GRIZE, 1990 : 37. Em GRIZE, 1996, o autor abandona a «condição» de coesão e fala apenas em coerência discursiva interna ou lógica («propre aux schématisations et tient à leur statut particulier qui les relie tant aux objets des signes qu’à leurs référents») e coerência discursiva externa («relative aux référents», que tem a ver com a verosimilhança). [Id.: 74] Que não há coesão sem coerência, é tempo de se começar a defender e sustentar. 124 71 como é dito, pela selecção e tratamento do(s) tema(s), que até pode(m) ser o próprio locutor, um terceiro ou o interlocutor, individual ou colectivo (auditório). Se bem que as im(A) sejam mais imediatas («Quiconque en effet parle ou écrit s’offre nécessairement au regard.»126) que as im(B), o autor esclarece, em síntese, que: «Il est possible de faire une étude systématique de l’image de A dans les textes, de voir apparaître le locuteur comme source de ses dits ou comme simple témoin, comme neutre ou comme engagé […]. Les images de B sont plus diffuses, sauf en ce qui concerne les marques pronominales qui tendent parfois à assimiler B à A, comme ce peut être le cas de "nous". Le locuteur dispose de tout un jeu d’opérations […] qui lui permettent de manipuler sa propre image et celle de ses destinataires».127 As formas de cortesia e de descortesia, em geral, e os tratamentos corteses ou descorteses, em particular, constituem, a nosso ver, um dos processos mais eficazes de «manipulação» das imagens que os (inter)locutores podem fazer de si próprios como dos outros. Não encontrámos na teoria da esquematização grizeana referências explícitas aos fenómenos discursivos de cortesia ou descortesia. Ao referir-se, porém, ao facto de que nem tudo o que se diz é para ser interpretado à letra, pois há situações em que se pretende precisamente esconder a finalidade última da interacção verbal, observa: «Parler avec respect de quelqu’un, par exemple, est souvent beaucoup plus efficace que de déclarer qu’il s’agit d’un grand homme et d’en énumérer les qualités. Cette sorte de dissimulation, que permettent les images et en particulier le discours, n’est pas un aspect secondaire. Je pense même qu’il est essentiel, dans la mesure où il constitue un frein important à tout contre-discours du destinataire.»128 De facto, muitas são as estratégias discursivas de cortesia a que um locutor pode recorrer para fazer com que o(s) seus(s) alocutário(s) aceite(m) e adira(m) àquilo que ele deseja. E uma delas consiste, precisamente, em valorizar-lhe(s) a imagem (no quadro da cortesia linguística, chamar-lhe-emos face), explícita ou implicitamente, de forma ostensiva ou dissimulada, sincera ou hipocritamente. O contexto o determinará e ajudará a interpretar. 126 GRIZE, 1990 : 37. GRIZE, 1996 : 70. 128 GRIZE, 1996: 19-20. Como é evidente, as imagens a que, nesta citação, o autor se refere são de natureza visual, não resultantes de esquematizações discursivo-textuais. 127 72 2.3.3. A importância da situação ou contexto Um dos cinco postulados de base do esquema grizeano de comunicação é o de situação de interlocução, sendo os outros quatro o dialogismo, as representações, os PCC e a construção dos objectos. Quanto à situação (que admite chamar-se também contexto), Grize realça, por um lado, a sua importância e, por outro, a sua complexidade, tanto na sua «dimensão concreta», onde situa as realizações orais, como na sua «dimensão teórica», onde situa as realizações escritas. A dimensão concreta verifica-se quando «l’activité discursive se situe à un certain moment, dans un certain lieu et elle vise une certaine fin». A dimensão teórica verifica-se «dans un cadre socio-historique donné», o qual condiciona largamente o tipo ou género de discurso e texto em construção. Como exemplo, o autor lembra as dificuldades que sente alguém que quer escrever um livro ou um artigo «à la manière de».129 Indo mais longe nas suas reflexões, o autor aceita a existência inegável de relações de força entre os interlocutores. Tais relações, porém, ao contrário do que dá a entender Bourdieu,130 não são fruto apenas da situação social, mas também da própria actividade discursiva, sendo conveniente, por isso, ter em consideração o papel que ela joga na elaboração do contexto.131 A propósito da teoria grizeana, Berrendonner observa, quanto ao contexto, que «elle conduit à y voir non pas un cadre informationnel ou situationnel fixé à titre de préable, mais le produit dynamique de l’activité de communication». Trata-se, a nosso ver, duma actividade intimamente relacionada com os PCC, pois que diz respeito a «un capital évolutif de connaissances, d’hypothèses et d’assomptions partagées, assimilable à une sorte de mémoire collective des interlocuteurs.»132 Esta concepção dinâmica e dialéctica do contexto encontra-se já em Bakhtine, quando sublinha que a «situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente e […] a partir do seu próprio interior, a estrutura da enunciação».133 Esta concepção encontra-se, depois, noutros autores, como, por exemplo, em Kerbrat-Orecchioni. Segundo esta linguista, a relação entre o contexto e o texto conversacional «est non point unilatérale, mais dialectique: donné à l’ouverture de l’interaction, le contexte est en même temps construit par la façon dont celle-ci se dé129 GRIZE, 1996: 61. Cf. BOURDIEU, 1982. 131 Cf. GRIZE, 1996: 62. 132 BERRENDONNER, 1997: 220, cit. por ADAM, 1999: 104. 133 BAKHTIN (VOLOCHÍNOV), 19926: 113. 130 73 roule; définie d’entré, la situation est sans cesse redéfinie par l’ensemble des événements conversationnels.» Conclui, por isso, que o discurso «est une activité tout à la fois conditionnée (par le contexte), et transformative (de ce même contexte).»134 Neste sentido, pode-se dizer que o contexto inclui também uma dimensão cotextual. A importância da situação ou contexto leva mesmo Grize a considerar que a quase totalidade das verdadeiras ambiguidades «n’en sont que parce les énoncés incriminés sont donnés hors situation et que l’observateur n’en est pas le destinataire naturel.»135 A propósito, recorde-se a seguinte observação de Bally, tão válida nos princípios do século XX, como nos princípios do século XXI: «En général, la compréhension est facilitée par le milieu, la situation, les circonstances où se déroulent la plupart des conversations en pleine vie; dans les trois quarts des cas, les interlocuteurs parlent de faits qui sont connus des uns et des autres; ils opèrent sur une situation matériellement claire: l’endroit où ils se trouvent leur offre souvent les éléments d’information dont ils ont besoin (pat exemple um magasin où l’on va acheter quelque chose); tout cela est comme un canevas sur lequel on peut broder à sa guise.»136 Se não se tiver na devida conta a complexidade dos factores contextuais, nas suas dimensões concreta, teórica e histórico-social, exteriores e interiores a qualquer tipo de interacção verbal, incluindo os resultantes da sua dinâmica interna, sem esquecer as diferentes representações que se tem de cada um desses factores e das suas relações, os discursos-textos tornam-se incompreensíveis, por inverosímeis, observa também Grize.137 Se os interlocutores fazem parte do contexto duma interacção verbal realizada in praesentia ou in absentia, é evidente que a(s) finalidade(s) daquele que fala ou escreve, como a(s) finalidade(s) daquele que ouve ou lê, total ou parcialmente coincidentes ou não, também fazem parte do contexto e do cotexto. Qualquer acção, seja a de produzir um discurso, seja a da sua interpretação, tem sempre uma finalidade, pelo menos, finalidade que, como observa o autor, leva, relativamente aos dados a utilizar na sua esquematização, a realizar, por um lado, processos de filtragem e, por outro, processos de saliência, tanto da parte de A como de B: «Filtrer, c’est retenir quelques aspects des représenta- 134 KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 22. GRIZE, 1996: 62. 136 BALLY, 19653: 23. 137 Cf. GRIZE, 1990: 42-43. Sobre a noção de «situação de comunicação», cf. também 1990: 32. 135 74 tions et en occulter d’autres; les faire saillir, c’est se servir des moyens de la langue pour fixer l’attention.»138 Como veremos, filtrar dados, num acto de comunicação, pode consistir, por exemplo, na evitação da realização de actos de discurso que ameacem as faces positiva (autoestima, autoimagem, narcisismo) e negativa (os «territórios do eu» goffmanianos) do destinatário. Salientar dados, por seu turno, pode consistir em dirigir formas de tratamento e de cortesia valorizadoras daquelas mesmas faces. Ou seja, para utilizarmos terminologia específica da cortesia linguística, evitar ou compensar a realização de «Face Threatening Acts» (FTA’s), por um lado, e/ou dirigir «Face Flattering Acts» (FFA’s), por outro. Mas as formas verbais de cortesia negativa (evitação de FTA’s) e de cortesia positiva (produção de FFA’s) podem revestir muitos outros e variados processos de natureza linguístico-discursivo-textual, como se verá, ao longo desta dissertação. Convém referir aqui o postulado dos objectos, como um dos elementos indispensáveis ao estudo da comunicação entendida como esquematização discursivo-textual, o que equivale a saber o que se entende por objecto de discurso. No quadro da lógica natural de Grize, os objectos de discurso são objectos de pensamento destinados a criar sentido a partir dos signos utilizados e das suas relações com os seus referentes.139 Trata-se, por isso, como observa Antónia Coutinho, a propósito da mesma problemática, de objectos selectivamente construídos no discurso e pelo discurso, consoante o contexto,140 o que equivale a dizer, por outro lado, que tal construção está dependente do conjunto de todos os outros elementos que intervêm num acto de comunicação como esquematização, em particular dos interlocutores e que, por isso, se trata sobretudo duma coconstrução. Coconstrução que tem em conta a diversidade, a complexidade e mesmo a delicadeza das representações que os interlocutores têm, ora na posição A ora na posição B. 141 2.3.4. Esquematizar é representar Como dissemos acima, as imagens que uma esquematização discursivo-textual propõe ao olhar estão intimamente relacionadas com as representações que os interlocutores têm de si próprios e do(s) tema(s) de que falam ou escrevem. A polissemia do 138 GRIZE, 1996: 68. Sobre as finalidades dum acto de comunicação, cf. também 1990: 31-32. Cf. GRIZE, 1996: 67. 140 Cf. COUTINHO, 1999: 134. 141 Cf. GRIZE, 1996: 67. 139 75 termo, a nível lexical e das ciências humanas e sociais,142 leva Grize a propor uma noção (aparentemente) ingénua («naïve»), bastando-lhe, ao que parece, entendê-la como representação mental, ou seja, «comme ce qui est “dans la tête” de ceux qui communiquent».143 Ou, de forma mais clara: «Il est évident que, pour tenir un discours sur n’importe que sujet, il faut en avoir une idée, s’en être fait une certaine représentation. D’autre part […] il faut aussi avoir ou se faire une représentation de celui auquel on s’adresse. […] De plus A, l’auteur d’un discours, doit aussi se faire une représentation de lui-même.»144 As representações que um locutor tem ou faz de si próprio [repA(A)], do seu interlocutor [repA(B)] e do assunto ou tema [repA(T)] são, por um lado, incompletas e, por outro, duplamente insuficientes. Incompletas, porque nunca se tem ou faz uma representação completa duma pessoa ou dum tema, mas apenas de alguns dos seus aspectos e, mesmo destes, também incompleta.145 No que toca, particularmente, a repA(B) [e o mesmo se poderá dizer de repA(A), pois o clássico problema do autoconhecimento continua eterno, como se sabe], o autor refere três espécies de «cautelas sociais» que A deve ter em relação a B, como requisitos fundamentais de comunicação. Em primeiro lugar, as representações que A tem ou presume ter dos (aspectos de) conhecimentos de B, podem levá-lo a produzir discursos que pressupõem, nos seus auditórios, saberes que nem os próprios desgraçados suspeitam. A este respeito, registe-se a pertinente observação do autor, segundo a qual a representação que um professor «se fait des savoirs de ses élèves peut être tellement inadéquate que les malheureux ne comprennent pas grand-chose à ce qui leur est dit.»146 A segunda cautela, diz respeito à competência linguística que, como representação, o (inter)locutor A reconhece ou atribui a B, porque é ela que permite a B realizar as inferências necessárias que a esquematização propõe. A terceira cautela prende-se com a representação que A deve ter ou fazer dos valores e ideologias daquele(s) a quem se dirige, ou seja, das representações que o interlocutor B 142 Para diferentes noções de representação, segundo as diferentes áreas de saber, cf. Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 1997, n.º 10, dedicada precisamente ao tema «O conceito de representação.» Em VIGNAUX, 1995, também se encontram importantes descrições de representação no âmbito das ciências cognitivas, nomeadamente, nas pp. 228-232, para a sua classificação. 143 GRIZE, 1996 : 63. 144 GRIZE, 1990 : 33-34. Bally e sobretudo Bakhtine também se referem à importância do destinatário, explícito ou implícito. Além das citações já feitas, veja-se ainda BAKHTIN, 1992: 319 e ss., onde o autor relaciona a representação do destinatário com os géneros de discurso. 145 Cf. GRIZE, 1990: 33-34 e 1996: 63. 146 GRIZE, 1996: 64. 76 tem do mundo, incluindo o mundo de comunicação em que se encontra(m) [repB(X), onde X = (A, B, T, (A-B), etc.]147 Mas as três categorias de representações [repA(A), repA(B), repA(T)] são, além disso, duplamente insuficientes, como se disse. Em primeiro lugar, porque a existência dos três elementos faz com que entre eles existam também três relações diferentes, das quais também o (inter)locutor A tem ou faz uma representação. Assim: a) A tem uma representação das suas próprias relações com B [repA(A-B)]. Tratase de representação essencial, na medida em que reflecte as relações de força ou autoridade (que, no quadro da cortesia linguística, recebem a designação de poder, relações verticais ou taxémicas, como veremos), consoante o contexto de realização. Recorde-se, a título de exemplo, que um professor, por uma questão também de cortesia, não fala nem trata os seus alunos como estes lhe falam e o tratam. b) A tem uma representação das relações que B tem do tema [repA(B-T)], que se prende com a atitude que B tem ou possa ter em relação àquilo que iremos chamar «círculo de afectos (favoráveis ou desfavoráveis)».148 Como se sabe, por exemplo, «não se fala de corda em casa de enforcado», por uma questão de cortesia, evidentemente.149 c) A tem uma representação das suas próprias relações com o tema [repA(A-T)], de opinião, crença, certeza, mas também de maior ou menor cortesia ou descortesia, acrescentamos nós. Apesar de não faltarem «treinadores de bancadas», ainda há quem, por falsa ou verdadeira modéstia (cortesia), confesse não ter competência para discorrer ou discursar sobre todas ou apenas determinadas matérias. Há, ainda, uma segunda insuficiência na família das representações acima referida. Como na FIG. 8 se mostrou, B reconstrói a esquematização discursivo-textual que A lhe propõe. Assim sendo, B também tem ou faz representações dos diversos elementos em jogo: repB(X), onde X = (A, B, T, (A -B), etc. Todas estas representações são importantes, consoante os contextos. Por exemplo, as representações mais ou menos fundamentalistas de B’s, anónimos e públicos (incluindo institucionais), relativamente aos Versículos Satânicos de Salman Rushdie e ao Evangelho segundo Jesus Cristo de José 147 Id.: ibid. Sobre o que entendemos por «círculo de afectos (favoráveis e desfavoráveis)», ver, infra, cap. XII, 2. 149 Em virtude dos interditos sociais, como lhes chamaria Foucault: «Numa sociedade como a nossa são bem conhecidos, é certo, os procedimentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar também, é o interdito. Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que não é qualquer um, enfim, que pode falar de qualquer coisa.» [FOUCAULT, 1997: 10] 148 77 Saramago [para não regredirmos aos temp(l)os do index], textos e autores proscritos, ainda que em graus diferentes, por considerados ofensivos das tradições religiosas de certas comunidades (e social e culturalmente descorteses, por isso; do mesmo modo que tais reacções foram sentidas como fortemente descorteses pelos escritores), são casos que revelam tanto a repB(T), como a repB(repA(T)), como a repB(repA(B-T)), como a repB(repA(B-A), como a repB(repA(repB(X))); ou, em sentido inverso, a repA(repB(X)), porque os discursos e os textos, mesmo os literários, são sempre dialógicos e interaccionais. Convém ter presente, todavia, que tanto A como B nunca têm acesso directo e total a essas representações. É através das imagens inscritas nos observáveis discursivotextuais que a elas se chega, de forma também incompleta, logicamente.150 É de observar um ponto, nesta descrição das representações, para o qual Grize não chama a atenção e que, em nosso entender, deve ser realçado: as representações que as esquematizações discursivo-textuais propõem e dão a ver podem ser, além de ficcionais, falsas, de facto ou fingidamente. Um locutor, por razões de simpatia ou antipatia, mais ou menos constante ou ocasional, pode dar de si próprio, do(s) outro(s) e/ou do(s) tema(s) uma imagem ou imagens que não corresponde(m) às representações que efectivamente têm. Além da questão da mentira, piedosa ou não, convém referir que as estratégias de cortesia ou descortesia, que são também estratégias discursivo-textuais com finalidades intra e extralinguísticas, ou melhor, intralinguísticas com efeitos extralinguísticos, as estratégias de cortesia ou descortesia, dizíamos, podem dar-nos imagens de representações e de relações de representações que efectivamente não se tem. Pense-se, por exemplo, nos gabinetes de imagem, nos boatos, nas formas de figuração e/ou de desfiguração de determinados políticos, profissionais ou não, dentro e fora das campanhas eleitorais, na oposição e no governo, etc. Ou, para nos situarmos melhor no âmbito do nosso objecto e objectivo de estudo (porque também os exemplos anteriores no quadro da cortesia se enquadram), pense-se nas cortesias e descortesias verbais, (incluindo os tratamentos e os insultos como seus representantes mais evidentes), estrategicamente construídas e utilizadas como processos de auto-humilhação e/ou de heterovalorização ou desfiguração. A acusação de hipocrisia ou mentira que por vezes se faz ao uso das formas de cortesia pode mais não ser do que processos dialógicos e polifónicos, através dos quais os sujeitos interlocutores, desdobrando personalidades, visam alcançar os seus 150 Salvo exemplos e questões de pormenor, a descrição feita da noção de representações baseou-se, evidentemente, em GRIZE, 1990: 33-35 e 1996: 63-65. 78 objectivos de comunicação / interacção, sem se lesarem gravemente uns aos outros, ou procedendo à valorização do outro e, em contrapartida, desvalorizando-se a si próprios. 2.3.5. A importância dos preconstruídos culturais (PCC) Resta-nos, para concluir a descrição das principais noções que integram o novo esquema e modelo de comunicação e a teoria de esquematização discursivo-textual que propõe, enquanto interacção verbal, referirmo-nos aos preconstruídos culturais que tanto A como B possuem, em graus ou níveis naturalmente diferentes, ainda que entre os de um e os de outro haja naturalmente pontos de contacto, para que possa haver comunicação. Os PCC, na teoria da esquematização grizeana, remetem para termos, noções, conceitos, expressões, lugares comuns, fraseologias, géneros de discurso ou texto, valores, saberes, práticas quotidianas, memórias colectivas, ideologias, etc. Trata-se de dados que os interlocutores têm como socialmente adquiridos e (re)conhecidos, anteriores a qualquer actividade discursivo-textual, não sendo necessário referi-los, por isso; ou se forem, permitem criar horizontes de expectativas e fazer inferências. Quando o (inter)locutor A diz, por exemplo, que «de noite todos os gatos são pardos», B sabe muito bem que gatos não é aqui o T, como também sabe que, neste como noutros provérbios, há sempre um «gato escondido com o rabo de fora», isto é, que o que se diz não é para ser entendido à letra, mas para ser contextualmente interpretado.151 A propósito, consideramos os provérbios bons exemplos discursivo-textuais de PPC, pois trata-se de «fragmentos de uma sabedoria tradicional estereotipada [...] com um potencial surpreendente de flexibilidade de adequação contextual»152 e cujo sentido, raramente literal, não precisa, por isso, de ser explicitado, porque facilmente inferido. Só há comunicação quando os interlocutores partilham representações mínimas acerca dos estados de coisas, dos mundos e das situações. Partilha indispensável ao início e desenvolvimento dos actos de comunicação, onde os PCC desempenham igualmente papel fundamental, porque constituem um conhecimento dos sistemas linguístico e cultural, uma espécie de património comum que os interlocutores, em contextos de comunicação in præsentia ou in absentia, reconhecem e partilham. 151 Partindo de exemplo dado por Grize, adaptámo-lo à nossa cultura proverbial, i. é, sobre os provérbios. [Cf. GRIZE, 1990: 30] 152 LOPES, 1992: 9. A propósito desta referência, seja dito que se trata, em nossa opinião, do estudo linguístico mais rigoroso e completo até hoje realizado em Portugal sobre o «texto proverbial», segundo uma perspectiva semântica e pragmática. 79 «Au moment de la plus banale prise de parole, et par cela même qu’il se sert de la langue, le locuteur mobilise tout un ensemble de connaissances. Ces connaissances, s’il les aménage par son discours, s’il les combinent entre elles, s’il les transforme parfois profondément, n’en sont pas moins présentes comme préconstruites. Il n’est pas douteux que, dans ses représentations, elles se colorent de toutes sortes de vécus. Elles n’en sont pas moins de nature essentiellement culturelle, c’est-à-dire sociale, et il est étonnant de voir à quel rythme elles se modifient.» 153 Como observa Grize, através dos PPC, um texto é, ao mesmo tempo, um produto verbal e social, observação que não deixa de fazer lembrar reflexões de Bakhtine sobre a influência que os ambientes socioculturais exercem na aquisição e desenvolvimento da competência discursivo-textual e no conhecimento da língua como sistema. Para que não se voltem a citar consabidas reflexões bakhtinianas, segundo as quais nenhum locutor ou escritor não é o único, nem o primeiro a usar a palavra ou a construir um enunciado; que aprendemos a falar aprendendo a estruturar enunciados; que falamos reproduzindo enunciados que já foram e continuam a ser reproduzidos por outros; que aprendemos a moldar a nossa fala / discurso em géneros relativamente estáveis de enunciados, cujo desconhecimento tornaria impossível a comunicação,154 recordemos, agora, a que Bakhtine deu, a qual consideramos intimamente relacionada com os PCC: «A época, o meio social, o micromundo – o da família, dos amigos e conhecidos, dos colegas – que vê o homem crescer e viver, sempre possui seus enunciados que servem de norma, dão o tom; são obras científicas, literárias, ideológicas, nas quais as pessoas se apóiam e às quais se referem, que são citadas, imitadas, servem de inspiração. Toda época, em cada uma das esferas da vida e da realidade, tem tradições acatadas que se expressam e se preservam sob o invólucro das palavras, das obras, dos enunciados, das locuções, etc.»155 153 GRIZE, 1996: 65. Para a descrição que fizemos dos PCC, servimo-nos de id.: 65-67 e 1990: 30-31. Enumerámos tópicos que se encontram mais ou menos desenvolvidos em BAKHTIN, 1992: 289-326. 155 Id.: 313. 154 80 Continuando, aproxima a actividade sociodiscursiva dos processos de assimilação (tal como veio a fazer Grize, ao descrever os PCC, à luz das noções piagetianas de assimilação e acomodação156): «É por isso que a experiência verbal individual do homem toma forma e evolui sob o efeito da interação contínua e permanente com os enunciados individuais do outro. É uma experiência que se pode, em certa medida, definir como um processo de assimilação, mais ou menos criativo, das palavras do outro (e não das palavras da língua). Nossa fala, isto é, nossos enunciados (que incluem as obras literárias), estão repletos de palavras dos outros, caracterizadas, em graus variáveis, pela alteridade ou pela assimilação, caracterizadas, também em graus variáveis, por um emprego consciente e decalcado. As palavras dos outros introduzem sua própria expressividade, seu tom valorativo, que assimilamos, reestruturamos, modificamos.»157 2.4. Esquematização e competência discursivo-textual Os PCC, como a esquematização discursivo-textual no seu todo, têm muito a ver com as competências dos interlocutores. Estas são habitualmente descritas segundo a perspectiva do locutor, mas que Grize situa (talvez por isso mesmo) no capítulo das actividades do destinatário. Parceiro activo na comunicação ou esquematização discursivo-textual, o locutor pressupõe um destinatário dotado das seguintes competências: a) linguísticas (ao nível do léxico e da sintaxe); b) pragmáticas (ao nível dos actos ilocutórios); c) culturais («que certains linguistes appellent la compétence encyclopédique»); d) retóricas (sobretudo ao nível da compreensão das metáforas); e) lógicas (dependentes das três primeiras, «parce qu’il est question d’inférences»).158 O autor, situando-se no quadro da lógica natural, encontra nas competências lógicas a súmula das restantes. Assim, por exemplo, em «En rentrant roulez lentement, il gèle», Grize esclarece que se faz apelo ao Léxico, porque «"rouler" signifie conduire sa 156 «Les PCC fournissent ainsi le cadre obligatoire dans lequel le discours doit s’insérer et ce ceci par le double mécanisme piagétien d’assimilation et d’accommodation. L’orateur doit assimiler les contenus déjà là et les accommoder à ce qu’il a l’intention de dire.» [GRIZE, 1996 : 66] 157 BAKHTINE, 1992: 313-314. 158 Cf. GRIZE, 1996 : 71-72. 81 voiture», à Sintaxe, porque utiliza um imperativo, à Cultura, porque «lie le gel à un état glissant des routes», à Retórica, porque «implique qu’un hôte se soucie du bien-être de ceux qu’il a accueillis», e à lógica, porque «tout cela demande des raisonnements.»159 Repare-se que Grize situa no âmbito das competências retóricas160 a preocupação do visitado com o bem-estar dos visitantes, preocupação que nós situamos, preferencialmente, no âmbito da competência da cortesia linguística, ainda que esta contemple também uma dimensão retórica, como veremos.161 À actividade discursiva do destinatário pode dar-se, de facto, como também entende Grize, o nome de interpretação, porque, ao realizá-la, um ouvinte ou um leitor, perante uma esquematização discursivo-textual, parte efectivamente do princípio (de generosidade, de cortesia, de coerência, de cooperação162, ou apenas de boa fé e bom senso) de que aquele observável tem, de facto, um sentido. Sentido, contudo, mais ou menos explicitamente autorizado pela própria esquematização discursivo-textual, ainda que não total ou parcialmente previsto pelo autor (falante, escrevente ou escritor), sendo, por isso, con-sentido, porque toda a interpretação tem limites, evidentemente.163 «Interpréter, c’est construire un sens pour soi, c’est reconnaître qu’il est possible d’appliquer à ce qui est dit un schème que l’on possède […], c’est imaginer […] un contexte propice.»164 159 Id. : 72. Recorde-se que Grize entende a esquematização, no quadro da Lógica Natural, também como argumentação, pois esta consiste sempre em provar qualquer coisa a alguém. A Retórica, para este autor, consiste não só nas três dimensões aristotélicas - ethos, pathos e logos - mas também como processo de alcançar a adesão do destinatário e não apenas a sua aceitação. [Cf. id.: 10 e 76] 161 De referir, a propósito, haver autores que chamam à cortesia linguística Retórica Interpessoal [cf. LEECH, 199610 e LABORDA, 1996], ou Retórica Conversacional [cf. WAUTHION & SIMON (ed.), 2000] 162 Sobre os princípios de cooperação e de cortesia, ver, infra, cap. II. Quanto ao «princípio de generosidade», Grize diz que o destinatário, perante um discurso-texto, o aceita e procura interpretá-lo, porque pensa que ele tem sempre um sentido. [Cf. GRIZE, 1996 : 72] Quanto ao «princípio de coerência», a designação é de Michel Charolles: «Les processus d’interprétation et de réinterprétation, parce qu’ils sont commandés par le principe de cohérence, conduisent donc l’interprétant à construire des relations qui ne figurent pas expressément dans le donné textuel.» [CHAROLLES, 1990 : 247, cit. por GRIZE, 1996 : 72--73] 163 Joga-se, aqui, obviamente, com o conhecido título de Umberto Eco, Os Limites da Interpretação, que vem ao caso, não por acaso: «Depois de um texto ter sido produzido, é possível fazê-lo dizer muitas coisas – em certos casos um número potencialmente infinito de coisas – mas é impossível – ou pelo menos criticamente ilegítimo – fazê-lo dizer o que não diz. Muitas vezes os textos dizem mais do que os seus autores tinham intenções de dizer, mas menos do que muitos leitores incontinentes queriam que dissessem.» [ECO, 1992: 120] 164 GRIZE, 1996 : 73. 160 82 Neste sentido, procurando-se lavrar em terra própria, ao conjunto das competências lógicas podemos chamar competência textual que, segundo a define e descreve Coutinho, inclui todas aquelas competências, tanto do lado da recepção como da produção. Competência que, devedora sendo também doutras competências reconhecidas (linguística, de boa formação gramático-textual, de comunicação165), outras mais específicas inclui ainda, como sejam as de sequencialização e metassequencialização, articuladas com as noções de tipo e género (de texto ou discurso), social, cultural e historicamente aceites e que em objectos empíricos atestados se concretiza(m), isto é, em textos. Competência que é, por outro lado, «conhecimento adquirido e desenvolvido na experiência textual de um sujeito»,166 isto é, nos seus diferentes desempenhos, tanto ao nível da construção (falar e escrever) como da reconstrução (ouvir e ler). Também Coutinho considera que o interlocutor assume particular relevo, no âmbito das questões que se prendem com a competência textual, enquanto actividade sociodiscursiva, e que como tal inclui também uma dimensão argumentativa, activada em cada acto de comunicação: «a representação (ou representações) que tem do interlocutor quem escreve (ou fala) implica que a organização da experiência, longe de ser uma actividade neutra, se constitua como argumentação».167 Argumentação na acepção lata que lhe dão tanto Vignaux168 como Grize,169 que entendem como processo discursivo de representação e apresentação de conhecimento, e que se encontra em toda a actividade 165 Cf. COUTINHO, 1999 : 16. Id.: 328. 167 Id.: 209. 168 «Cada enunciado é uma maneira de apresentar as coisas e, deste ponto de vista é, à partida, argumentativo. Pode imaginar-se que a argumentação se identifica com as formas da persuasão e da convicção. Na realidade, o primeiro sentido verdadeiro do termo “argumentação” é o de apresentação: apresentação das coisas e apresentação, de cada vez, duma certa relação de um sujeito com o mundo e com os outros [...]. / Argumentar, por conseguinte, é atribuir propriedades às coisas e determinar modos de existência dessas coisas em situações. [...] Desde a origem, portanto, estamos sempre em situação de ter de representar por meio da linguagem e de trabalhar com representações anteriores ou novas do mundo. Temos de argumentar permanentemente os nossos próprios conhecimentos ou opiniões do mundo e, a partir daí, tentar apresentar-nos, “afirmar-nos”. O que equivale a dizer que todo o discurso exprime uma certa inscrição cognitiva do seu sujeito no mundo sob a forma do trabalho de conhecimento que tem de assegurar através da sua linguagem.» [VIGNAUX, 1995: 304] 169 Além das citações acima feitas, Grize defende: «D’une façon tout à fait générale, on peut dire qu’argumenter c’est déployer une activité qui vise à intervenir sur les idées, les opinions, les attitudes, les sentiments ou les comportements de quelqu’un ou d’un groupe de personnes. […] Argumenter est sans doute une activité finalisée, mais c’est une activité discursive qui, en tant que telle, exige une participation active de ceux auxquels on s’adresse, réclame même de leur part une certaine connivence.» Por isso «elle est faite d’énoncés et non pas, comme la démonstration, de propositions. […] Elle vise à les [interlocuteurs] persuader et pas seulement à les convaincre. / Son problème n’est pas à travers son discours de conserver une vérité supposée, mais de donner à voir – plus exactement de donner à regarder – des représentations vraisemblables, c’est-à-dire de manipuler des valeurs de croyance. Pour cela elle se sert de cette propriété inhérente à la parole qui est de faire exister les choses dans l’esprit de ceux qui s’en servent par cela même qu’elles sont dites.» [GRIZE, 1996 : 5 e 26] É interessante verificar-se que Grize já admite que argumentar é também uma forma de manipulação do interlocutor, aspecto posto de parte em 1990: 40. 166 83 sociodiscursiva, ou seja, como esquematização.170 Quanto a esta problemática, interessanos a aproximação que Coutinho faz entre a noção grizeana de esquematização e sequencialização, como um dos aspectos fundamentais da competência textual, dado o carácter logicodiscursivo que em ambas se encontra. Segundo observa, as noções de esquematização e sequencialização prolongam a problemática que em torno da dicotomia texto / discurso se tem posto, a qual «se presta, mais do que a uma resolução, a uma complementaridade só dissociável em termos analíticos (como se faz sentir na oposição sintética entre objecto de figura e objecto de dizer).»171 Tomando, por isso, a noção de coerência, reclamada ora pelo discurso ora pelo texto, como exemplo de complementaridade entre ambos, Coutinho defende que, se por um lado, a noção de esquematização «veio afinar a perspectiva analítica, no que diz respeito à vertente discurso», por outro, a noção de sequencialização é «susceptível [...] de restabelecer o equilíbrio, relativamente à vertente texto.»172 Por sequencialização a autora entende «o processo de organização textual que constitui e dá a ver, através de marcas inscritas ou recuperáveis na superfície do texto, a sua coerência específica – como estabilização de descontinuidades de ordens diversas, na contingência do género em que se baseia o texto empírico e na convergência com os processos discursivos simultaneamente em causa.»173 Tratando-se dum processo textual, observa a autora que a noção de sequencialização, além do binómio texto / discurso, envolve também «a consideração de um nível metatextual» que, na sequência da noção de metatextualidade proposta por Genette,174 se propõe designar por metassequencialização. Aproximando e distinguindo esta noção daquela, Coutinho clarifica que «se ambas, através dos marcadores que instituem e manifestam os processos em causa, guiam a produção e a compreensão, a primeira estabelece a organização intratextual que a segunda explicita, comenta ou mesmo redefine - estabelecendo unidades textuais de cariz retórico (como introdução ou con170 Cf. COUTINHO, 1999: 209. Id.: 214. Convém esclarecer que as noções sintéticas de «objecto de figura» e «objecto de dizer», respectivamente, para texto e discurso foram propostas por Luísa Soares Opitz. [Cf. id.: 104] 172 Id.: 214. 173 Id.: 215. 174 Em 1979, em Introdução ao Arquitexto, Genette escreve: «é facto que para já o texto me interessa (apenas) pela sua transcendência textual, a saber, tudo o que o põe em relação, manifesta ou secreta, com outros textos. Chamo a isso a transtextualidade, e nela englobo a intertextualidade no sentido estrito (e “clássico” depois de Julia Kristeva), isto é, a presença literal (mais ou menos literal, integral ou não) de um texto noutro: a citação, ou seja, a convocação explícita de um texto ao mesmo tempo apresentado e distanciado por aspas, é o exemplo mais evidente desse tipo de funções, que comporta muitas outras. Acrescento ainda, sob o termo, que se impõe (sobre o modelo linguagem / metalinguagem), de metatextualidade, a relação transtextual que une um comentário ao texto que comenta: todos os críticos literários, desde há séculos, produzem metatexto sem saber.» [GENETTE, 1986: 97] 171 84 clusão) ou programático, delimitando unidades através do título e de subtítulos ou intertítulos, nomeando e comentando o género reproduzido ou recriado.»175 Limitando-se aos géneros expositivos, cujas práticas discursivo-textuais constituem o seu corpus de análise, a autora sintetiza as suas reflexões na figura seguinte: planos de enunciação / práticas discursivas Esquematização Esquematizações expositivas Coerência Discurso Objecto de dizer Texto Objecto de figura géneros Sequencialização Sequencializações expositivas FIG. 9 – Esquematização e sequencialização, segundo COUTINHO, 1999: 214. Esquematizar coerentemente um discurso é, assim, sequencializar também coerentemente um texto, ou seja, dominar uma competência textual que se processa, todavia, em termos analíticos, a dois níveis: do discurso e do texto. Neste sentido, a competência textual implica uma capacidade dupla (discursiva e textual), simultaneamente activada no momento da produção dum texto, segundo modelos ou géneros de discurso e/ou de texto, uma vez que são eles que «dão forma, literalmente falando, ao controle social e institucional da produção linguística, oferecendo um repertório de soluções para diferentes práticas sociais».176 É que, como continua a observar Coutinho, «cada género, enquanto “molde” prestabelecido, supõe um determinado tipo de organização, uma selecção de planos de enunciados (tipos de discurso, na terminologia de Bronckart177) em que se plasmam conteúdos temáticos e intenções pragmáticas de cada novo texto a produzir». Este novo texto reproduz, por isso, também aquele molde, «dentro de uma margem relativa de variação», também ela determinada, até certo ponto, «pelo próprio género». A noção de género constitui-se, desta forma, «uma categoria fundamental, do ponto de vista teórico», porque «permite ultrapassar a dicotomização entre discurso e 175 COUTINHO, 1999: 216-217. Id.: 108-109. 177 «Tipos de discurso» é uma das três noções em que Bronckart distingue, ao nível terminológico, o «aparelho nocional» de abordagem das actividades sociodiscursivas. O autor define-os, sumariamente, como «formes linguistiques attestables dans les textes et traduisant la création de mondes discursifs spécifiques ; ces types étant articulés entre eux par les mécanismes de textualisation et de prise en charge énonciative, qui confèrent au tout textuel sa cohérence séquentielle et configurationnelle.» [BRONCKART, 1996 : 151] 176 85 texto», funcionando como «espaço de convergência» entre as duas entidades. O texto, cada texto, emerge, assim, como «forma, palpável na sua materialidade específica (escrita ou oral)», dum movimento que se situa «entre a reprodução e a inovação».178 A competência textual resulta, assim, da articulação entre todos estes factores,179 que a autora resume no «dispositivo» seguinte (FIG. 10), mas cuja complexidade conceptual e descritiva, todavia, não traduz na sua totalidade, como é evidente. Articulação de que «depende um desempenho textual eficaz»,180 tanto nas modalidades orais como escritas, adquiridas e desenvolvidas em contextos de comunicação informais (naturais ou extraescolares) ou formais (escolares),181 que não exclui a capacidade de lidar criativamente com estruturas textuais socioculturalmente enraizadas e tipificadas.182 objecto de figura DISCURSO GÉNERO TEXTO objecto do dizer Sequencialidade e (Meta)Sequencialização Competência textual FIG. 10 - «Dispositivo» da competência textual, segundo COUTINHO, 1999: 110. Segundo a perspectiva sugerida na FIG. 10, o discurso, ou melhor, a actividade discursiva, que podemos definir, a este nível, como a capacidade de discorrer sobre determinado assunto, passa a ser uma componente ou dimensão da competência textual, entendida como capacidade de organização / composição de textos. De facto, se se comunica através de textos, produzir ou coproduzir um texto, consoante os contextos, exige tal actividade / capacidade, porque não há texto sem discurso que o prefigure. 178 COUTINHO, 1999: 109. E outras questões fundamentais com eles intimamente correlacionadas, como seja as de segmentação, definição e hierarquização de unidades textuais; sequência, sequencialidade e linearidade; planos, estruturação e esquematização; coesão e coerência; valores retóricos e argumentativos, etc. 180 Id.: 110. 181 Id.: 17. 182 Cf. id.: 34. 179 86 2.5. Esquematização e Linguística Textual Na ordem de ideias que se tem vindo a expor, compreende-se que cada vez mais os conceitos de texto e de discurso sejam vistos, pelos estudiosos, como quasessinónimos, verificando-se, consequentemente, uma crescente aproximação das disciplinas linguísticas que os estudam. Com efeito, desde que Robert de Beaugrande e Wolfgang Dressler definiram o texto como uma «ocorrência de comunicação»,183 observa Adam que «la linguistique textuelle est devenue une sorte de pragmatique textuelle», por um lado, e que «elle s’est considérablement rapprochée du champ de l’analyse de discours»,184 por outro. Este especialista em Linguística Textual, depois de ter proposto uma quase radical separação entre texto e discurso, segundo a fórmula «Discours = Texte + Conditions de Production Texte = Discours – Conditions de Production»185 considera, a partir de 1999 (pelo menos), que a separação entre o textual e o discursivo é sobretudo uma questão metodológica e mesmo arbitrária, uma vez que é «le fruit de programmes de recherche qui mettent l’accent sur des composantes différentes des produits de l’activité langagière humaine et se dotent, pour le faire, de méthodologies propres.»186 Não é de estranhar, por isso, que o autor utilize, por vezes, texto e discurso como quasessinónimos187 e tenda a considerar a linguística, retomando e reinterpretando antiga 183 «A TEXT will be defined as a COMMUNICATIVE OCCURRENCE which meets seven standards of TEXTUALITY. If any of these standards is not considered to have been satisfied, the text will not be communicative. Hence, non-communicative texts are treated as non-texts». [BEAUGRANDE & DRESSLER, 19947: 3] 184 ADAM, 1999: 41. 185 ADAM, 1990: 23. Em ADAM, 1999: 39, o autor corrige esta fórmula por um esquema que enquadra o texto no contexto, deixando de fora o discurso. A nosso ver, trata-se duma concepção imperfeita, na medida em que o discurso, seja ele entendido como actividade verbal (oral ou escrita), seja ele entendido como género, faz parte também do contexto. 186 ADAM, 1999: 40. 187 Por exemplo: «Si, comme le dit Saussure, “la langue n’est créée qu’en vue du discours”, alors on est en droit de se demander si la linguistique n’a pas, non seulement pour objet empirique, mais pour objet théorique cette unité de communication-interaction qu’on appelle un TEXTE (ou un DISCOURS) et la nature des entrelacements dans lesquels Platon lui-même voyait déjà la clé des faits de discours.» «La mise en évidence de l’action langagière accomplie au moyen d’un texte/discours éclaire ce qui se passe, par 87 proposta de Benveniste188 que já se encontra, todavia, em Bakhtine,189 como «translinguística», isto é, como disciplina que reúne a linguística do sistema ou da língua e a linguística do uso ou do discurso-texto.190 Tal posição encontra-se também defendida e fundamentada, mais recentemente, em estudos de Rastier e de Maingueneau.191 Adam considera, todavia, que a Análise do Discurso e a Linguística Textual não se devem confundir. Trata-se de dois processos de análise, respectivamente, descendente e ascendente, os quais, não obstante, confluem, de forma complementar, na análise das práticas discursivo-textuais, consoante os respectivos contextos de comunicação, isto é, como esquematizações, segundo a definição grizeana. Com esta noção, o autor visa «neutraliser terminologiquement la séparation des deux dimensions complémentaires et deux points de vue sur le même objet».192 «La linguistique textuelle a pour tâche de décrire les principes ascendants qui régissent les agencements complexes mais non anarchiques de propositions au sein du système d’une unité TEXTE aux réalisations toujours singuliers. L’analyse du discours – pour moi analyse des pratiques discursives qui renonce à traiter comme identiques les discours judiciaire, religieux, politique, publicitaire, journalistique, universitaire, etc. – s’attarde quant à elle prioritairement sur la description des régulations descendantes que les situations d’interaction, les langues et les genres imposent aux composantes de la textualité.»193 Interessa-nos verificar, agora, como Adam integra a teoria grizeana da esquematização na sua teoria de Linguística Textual. Com base na breve descrição feita, ao nível das relações teóricas e metodológicas, entre a Análise do Discurso e a Linguística Textual, o autor propõe um esquema que reproduzimos na FIG. 11. exemple, avec “J’accuse!”» [Id.: 24 e 42.] «J’Accuse !» é artigo que Emílio Zola publicou, a 13 de Janeiro de 1898, na primeira página do jornal L’Aurore. 188 Cf. BENVENISTE, 1989: 67. 189 Cf. BAKHTINE, 1970: 278. 190 Cf. ADAM, 1999: 28-30 e 86. 191 Cf. id.: 27-34. Sobre a concepção bakhtiniana de translinguística, cf. BAKHTIN, 1992: 302; sobre a concepção benvenistiana, cf. BENVENISTE, 1989: 67 e 228-229; sobre a concepção rastieriana, cf. RASTIER, 1997; sobre a posição de Maingueneau, cf. MAINGUENEAU, 1995: 61, cit. por ADAM, 1999: 32. 192 Cf. ADAM, 1999: 41. Sobre as concepções de texto, objecto teórico e empírico, discurso e géneros de discurso, cf. ADAM, 1999: 40. 193 Id.: 35. 88 CHAMP DE L’ANALYSE DES DISCOURS FORMATIONS SOCIODISCURSIVES INTERACTION SOCIODISCURSIVE ACTION(S) LANGAGIÈRE(S) (VISÉES, BUTS) (dimention perlocutoire) PARATEXTE INTERDISCOURS GENRES (SOUS-GENRES) D I S C O U R S S C H É M A T I S A T I O N T Texture phrastique & transphrastique (grammaire & style) Structure Compositionnelle (séquences & plans de textes) E X T Sémantique (représentation discursive) E Énonciation (ancrage situationnel & pris en charge) Orientation argumentative & actes de discours (illocutoire) CHAMP DE LA LINGUISTIQUE TEXTUELLE FIG. 11 – Campos da Análise do Discurso e da Linguística Textual segundo ADAM, 1999: 41. Como vimos, a esquematização é modelo de análise lógica que descreve a actividade sociodiscursiva como um acto de comunicação / interlocução / interacção verbal, atribuindo e reconhecendo, assim, papéis de co-acção entre os locutores e alocutários, condicionados pelos co(n)texto. Adam considera que os discursos e os textos, ou as esquematizações textuais ou discursivas, para utilizarmos expressões que o autor adopta e adapta de Grize, constituem interacções verbais.194 Ao reflectir sobre as noções de coerência e textualidade, observa o autor que estas dependem do estabelecimento, pelo intérprete (ouvinte ou leitor), duma significação de conjunto, duma intencionalidade global, em estreita relação com a dimensão sócio-discursiva de qualquer acção de linguagem. E acrescenta: 194 Cf. id.: 101. Escrevemos co(n)texto, porque não só o contexto age no próprio discurso a ser produzido ou em produção (cotexto), como o próprio discurso (cotexto) age sobre o próprio contexto. 89 «L’interaction verbale est d’abord conscience du sens d’une activité langagière donnée, dans une situation donnée, c’est-à-dire sentiment – plus au moins clair certes – de faire quelque chose avec la langue, non seulement de dire, mais de modifier une situation (relations à autrui, images de soi, de l’autre e de l’objet du discours, connaissance d’autrui».195 Com a teoria da esquematização, Adam coloca, definitivamente, as práticas sociodiscursivas, tanto na construção como na reconstrução, como uma coconstrução. Trata-se, de facto, duma concepção dinâmica e dialéctica da interacção verbal, como vimos. Observa: «Le fait qu’un texte soit une schématisation nous met dans l’obligation de ne jamais oublier qu’il s’agit du produit d’une interaction verbale.»196 Produto que resulta, evidentemente, dum processo, como vimos, e que Adam também refere. Aliás, o linguista observa que a morfologia do termo esquematização sublinha «le double sens d’un objet que les termes d’énoncé (résultat) et d’énonciation (processus, opération) séparent et que les concepts de texte et de discours ne comportent, quant à eux, pas du tout.» Por isso, acrescenta que, se se não tiver em conta a dupla face da noção de esquematização, falar apenas de texto ou de discurso «c’est toujours faire plus allusion, au résultat de pratiques discursives qu’aux opérations complexes, inséparablement psychosociales et verbales, qui l’ont produit.»197 Adam considera, todavia, que numa esquematização discursiva ou textual, ou melhor, segundo preferimos, discursivo-textual, não se trata apenas duma interacção mais ou menos explícita entre os seus interlocutores, mas também das relações que os mesmos interlocutores, ao coconstruírem uma esquematização, activam sempre, de forma mais ou menos consciente e criativa, segundo o «género de discurso» mais adequado ao contexto geral do acto de comunicação. Na linha das reflexões de Bakhtine, que frequentemente cita em abono das teses que defende, também Adam afirma a influência e a importância dos «géneros» nas esquematizações discursivo-textuais, sejam elas realizadas in præsentia ou in absentia, tanto por quem fala-e-ouve [a justaposição procura indicar a simultaneidade das actividades do(s) acto(s) em presença], seja por quem escreve e/ou lê. Se ler é, em certa medida, reescrever, escrever é, também em certa media e correlativamente, ler. Recorde-se que Bakhtine insistentemente defende que se aprende a falar e a escrever, aprendendo-se 195 Id.: 31. Id.: 104. 197 Id.: 102. 196 90 a estruturar enunciados, segundo modelos ou tipos relativamente estáveis e normativos, isto é, socioculturalmente instituídos e reconhecidos, porque é produzindo enunciados e reproduzindo géneros que comunicamos. É repetindo formas e fórmulas de dizer que se aprende a falar e a escrever, como todos sabemos, por experiências próprias. «Portanto, o locutor recebe, além das formas prescritivas da língua comum (os componentes e as estruturas gramaticais), as formas não menos prescritivas do enunciado, ou seja, os gêneros do discurso, que são tão indispensáveis quanto as formas da língua para um entendimento recíproco entre locutores.»198 «Se não existissem os gêneros do discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo da fala, se tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível.»199 Adam critica a tendência «profundamente errónea» de se falar em «tipos de textos», dada a grande complexidade e heterogeneidade que geralmente neles se encontram. Prefere, por isso, situar as «regularidades» textuais ao nível da sequência,200 seguindo Rastier, para quem «un genre est ce qui rattache un texte à un discours».201 Assim, «le genre rattache – tant dans le mouvement de la production que dans celui de l’interprétation – un texte toujours singulier à une famille de textes.» Conclui, por isso, que um género «relie ce que l’analyse textuelle parvient à décrire linguistiquement à ce que l’analyse des pratiques discursives [Análise do Discurso, entenda-se] a pour but d’appréhender sociodiscursivement.»202 Encontra-se nesta observação a dupla face – textual e discursiva – de esquematização, na suas dimensões, respectivamente, de resultado e de processo, bem como os factores ascendentes e descendentes que relevam, respectivamente, da ordem do texto e da ordem do discurso, esquematizados acima na FIG. 11.203 A esquematização funciona assim como uma interface onde a linguística textual e Análise do Discurso se encontram, mas não se detêm. Continuando uma e outra os seus movimentos de análise, cada vez mais abrangente dos respectivos objectos, as invasões 198 BAKHTIN, 1992: 304. Id.: 302. 200 Cf. ADAM, 1999: 82-83. Para uma abordagem crítica, actual e esclarecedora das principais noções e relações, ao nível do texto e do discurso, entre género e tipo, segundo uma perspectiva linguística, cf. COUTINHO, 1999: 41-113. 201 RASTIER, 1989 : 40. 202 ADAM, 1999 : 83. 203 Cf. ADAM, 1990 : 102. 199 91 dos respectivos campos dá-se inevitavelemente, sendo previsível que, mais tarde ou mais cedo, as disciplinas que estudam as coproduções discursivo-textuais se fundem numa só. Face às preferências que leva, em vários países e por diferentes autores, prevemos que a Análise do Discurso acabe por ficar como a única senhora do domínio.204 Regressando à integração da teoria grizeana, no modelo de análise discursivo-textual, proposto em Linguistique Textuelle – Des genres de discours au textes, Adam resume a quatro «definições» o essencial da esquematização lógico-discursiva: 1) «Une schématisation est, à la fois, opération et résultat»; 2) «Toute représentation discursive est schématique»; 3) «Toute schématisation est une coconstruction»; 4) « Une schématisation est une proposition d’images».205 A descrição de cada um destes pontos não difere, significativamente, da que foi feita pelo autor do modelo – o lógico Grize – nem da que nós próprios fizemos acima. A dois aspectos, todavia, devemos prestar um pouco mais de atenção. O primeiro diz respeito às imagens, pela caracterização e diferenciação que delas faz, bem como pela complexidade das suas relações (em número superior ao apresentado por Grize, ainda que este autor admita a existência de outras), relacionando-as também com a teoria goffmaniana das faces. Adaptando o esquema de comunicação / interlocução / interacção de Grize (FIG. 8, supra) ao seu modelo teórico, Adam apresenta um novo esquema (FIG. 12, infra) das esquematizações discursivas ou textuais. Nós preferimos discursivo-textuais, porque, de facto não há discurso sem texto, nem texto sem discurso. Um texto é um todo verbal organizado, de maior ou menor dimensão, mas sempre dotado de sentido e significação, que propõe e exige uma competência de compreensão mais ou menos profunda, e um desempenho de interpretação, mais ou menos desenvolvido. Ainda que saibamos que não ter sentido é o sentido de muitos discursos-textos, ditos, por isso, sem sentido.206 204 Além de designação cada vez mais utilizada, verifica-se, por outro lado, a aproximação de estudiosos de áreas como Análise Conversacional, Análise do Texto, Teoria do Texto e Linguística Textual. 205 Cf. id.: 101-108. 206 A mero título de exemplo, veja-se o seguinte comentário jornalístico, onde se critica, precisamente, a incompreensão de certos discursos-textos sem sentido: «Se se dissecar com algum cuidado vários episódios desta novela [doença do foro psicológico do futebolista Mário Jardel], conclui-se que o guião não é dos melhores, há muitas pontas soltas e quanto alguns personagens mais falam, mais se percebe que menos se percebe.» [José Manuel Delgado, Record, 30/07/02, cit. no Público de 31/07/02] É caso para se perguntar, como na anedota / trava-línguas: «Percebeu? – Se não percebeu, percebesse, que eu, quando 92 SITUATION D’INTERACTION SOCIODISCURSIVE Institution (formation discursive) Activité en cours, Temps, Lieu SCHÉMATISATION A coconstruit Schématisateur en fonction de : · Finalités (buts, intention) · Représentations psychosociales (de A, B, R, Sit) · Préconstruits culturels (mémoire collective, idéologie, pratiques quotidiennes) FORMATIONS IMAGINAIRES: Images de la situation [Sit] Images du référent-théme objet du discours [R] Images de A Images de B iA>A/B/ iB>B/A R/Sit R/sit iA>[B>B] iB>[A>A] iA>[B>A] iB>[A>B] etc. etc. MÉMOIRE DISCURSIVE coconstruit B Co-schématisateur en fonction de : · La schématisation · Finalités (buts, intention) · Représentations psychosociales (de A, B, R, Sit) · Préconstruits culturels (mémoire collective, idéologie, pratiques quotidiennes) FIG. 12 – Esquematização dsicurso / texto, segundo ADAM, 1999: 105. Apesar de observar, fazendo lembrar a noção goffmanina de figuração, que uma boa parte da actividade simbólica das pessoas «a pour fonction de reconstituer en permanence la réalité du moi, de l’offrir aux autres pour ratification, d’accepter ou de rejeter les offres que font les autres de leur image deux-mêmes»207 (im A, im B), Adam não se refere apenas às imagens pessoais e interpessoais dos interlocutores, mas também às imagens que cada um tem da situação da interacção sociodiscursiva (im Sit), do objecto, tema ou referente do discurso (im R), bem como (novidade em relação à proposta de Grize) «des images de la langue de l’autre ou de celle que l’autre attend qu’on produise» (im L), por um lado, e das «images du support et/ou du canal de transmission de la schématisation» (im M), por outro.208 Todas estas imagens, na coconstrução duma não percebo, faço de conta que percebi, para que os outros percebam que eu percebi. Percebeu, ou quer que repita?» 207 ADAM, 1999 : 107. 208 Cf. ADAM, 1999 : 107. 93 esquematização, se combinam e complexificam, numa rede de relações pressupostas e/ou construídas, durante as interacções verbais (práticas discursivo-textuais).209 É de referir, quanto a este ponto, que o autor situa as imagens sobretudo na dimensão da actividade discursiva e que, consequentemente, a noção que delas é dada se encontra mais próxima da noção grizeana de representação. Recorde-se que Grize defende que é o texto que dá a ver as imagens e que é através delas que se tem acesso às representações que os interlocutores têm ou fazem de cada uma das instâncias, objectos, dados e relações referidas. 2.6. Esquematização discursivo-textual: aspectos retóricos Outro ponto a destacar, na adopção e adaptação adamiana da teoria grizeana à análise discursivo-textual, diz respeito à valorização dos aspectos retóricos (porque esquematizar é também argumentar). Aristóteles definiu a Retórica, como é sabido, como «a capacidade de descobrir o que é adequado a cada caso com o fim [de] persuadir»210 e que as provas para tal são de três espécies, conforme residem: a) no ethos, ou no carácter moral do orador, que acontece «quando o discurso é proferido de tal maneira que deixa a impressão de o orador ser digno de fé»; b) no pathos, ou no modo como se dispõe os ouvintes, que se verifica «quando estes são levados a sentir emoção por meio do discurso»; c) no logos, ou no próprio discurso, pelo que este demonstra ou parece demonstrar, «quando mostramos a verdade ou o que parece verdade, a partir do que é persuasivo em cada caso particular.»211 A Retórica Clássica era, porém, uma disciplina flexível e estava mais orientada para a persuasão do que para o discurso, ainda que este fosse o meio privilegiado de chegar àquela. Não admira, por isso, que no «Livro II» da Retórica, o filósofo trate das provas ou meios de persuasão centrados nas emoções do auditório (pathos) e no carácter do orador (ethos) - reflexões que se prendem, a nosso ver, com as representações e as imagens com que se entra e/ou constrói uma formação discursivo-textual. A título de 209 Para um inventário da multiplicidade de imagens que numa esquematização discursivo-textual se podem manifestar, cf. id.: 108. 210 ARISTÓTELES, 1998: 48. 211 Id.: 49 e 50 (Alineação da nossa responsabilidade) 94 exemplo, sirva a passagem seguinte, onde as referências aos géneros deliberativo e judiciário não invalidam o essencial da questão, isto é, a importância do alocutário: «Muito conta para a persuasão, sobretudo nas deliberações e, naturalmente, nos processos judiciais, a forma como o orador se apresenta e como dá a entender as suas disposições aos ouvintes, de modo a fazer com que, da parte destes, também haja um determinado estado de espírito para com o orador. [...] Os factos não se apresentam sob o mesmo prisma a quem ama e a quem odeia, nem são iguais para o homem que está indignado e para o calmo, ou são completamente diferentes segundo critérios de grandeza. Por um lado, quem ama acha que o juízo que deve formular sobre quem é julgado é de não culpabilidade ou de pouca culpabilidade; por outro, quem odeia acha o contrário.»212 A condição interaccional, mesmo entre o escritor e o leitor, é defendida também pelos autores da Nova Retórica, que afirmam claramente o valor argumentativo da actividade discursiva, a qual, como referem, faz imediatamente evocar um auditório: «Todo discurso se dirige a um auditório, sendo muito freqüente esquecer que se dá o mesmo com todo escrito. Enquanto o discurso é concebido em função direta do auditório, a ausência material de leitores pode levar o escritor a crer que está sozinho no mundo, conquanto, na verdade, seu texto seja sempre condicionado, consciente ou inconscientemente, por aqueles a quem pretende dirigir-se.»213 Cahïm Perelman & Lucie Olbrechts-Tyteca insistem na atenção que o orador, quando argumenta, deve prestar às condições psíquicas e sociais do auditório, na procura da adesão às teses que defende, porque «toda argumentação visa à adesão dos espíritos e, por isso mesmo, pressupõe a existência de um contato intelectual.»214 Os autores do Tratado da Argumentação – A Nova Retórica (1958), chegam mesmo a pôr esta questão em termos de cortesia, quando afirmam que «querer convencer alguém implica sempre certa modéstia da parte de quem argumenta», porque o que se diz «não constitui uma “palavra do Evangelho”». As pessoas, continuam os autores, 212 Id.: 105-106. A lista de «comportamentos emocionais» (pathos) que, segundo Aristóteles, «convém provocar no ouvinte», são: «a compaixão, a indignação, a ira, o ódio, a inveja, a rivalidade, o sentimento de discórdia.» [Id.: 224-225] Quanto ao ethos, o filósofo descreve os caracteres do jovem, do idoso, dos que se encontram no auge da vida, dos nobres, dos ricos e dos poderosos. [Cf. id.: 136-143] 213 PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 1996 : 7. Consultámos a tradução portuguesa, variante brasileira, por não nos ter sido possível consultar a edição na língua original. 214 Id.: 16. 95 «desejam que não lhes ordenem [...], mas que lhes ponderem, que se preocupem com suas reações, que os considerem membros de uma sociedade mais ou menos igualitária.» E acrescentam: «Quem não se incomoda com um contato assim com os outros será julgado arrogante, pouco simpático, ao contrário daqueles que, seja qual for a importância de suas funções, não hesitam em assinalar por seu discursos ao público o valor que dão à sua apreciação.»215 Estes retóricos chegam mesmo a comparar, como faz K. F. Bruner, aqueles autores que apresentam comunicações ou relatórios científicos sem se preocuparem com o público a que se dirigem, a visitantes descorteses que não têm em consideração quem os recebe.216 A conclusão, portanto, só pode ser a seguinte: «Cada orador pensa, de uma forma mais ou menos consciente, naqueles que procura persuadir e que constituem o auditório ao qual se dirigem seus discursos.»217 Os retóricos contemporâneos são ainda mais claros, quer quanto à noção de Retórica, quer quanto aos valores que, a esse nível, as esquematizações discursivo-textuais sempre contemplam, porque sempre entendidas como interacções verbais explícitas ou implícitas. Michel Meyer, por exemplo, depois de recensear várias das principais definições de Retórica, observa que por detrás todas delas «se cache en fin de compte une structure bien précise, respectivement, la relation entre soi et autrui (ethos et pathos, selon Aristote) via un langage (logos) ou simplement un instrument de communication.» Para este filósofo, a Retórica é o encontro dos homens na linguagem, na exposição das suas diferenças e das suas identidades. Daí que Retórica, nos dias de hoje, seja «la négociation de la distance entre des hommes à propos d’une question, d’un problème.»218 E veja-se a proximidade existente entre as noções de cortesia e descortesia linguística e a noção de Retórica que ele dá, como Argumentação: «D’une façon générale, la rhétorique va naître de la prise en compte de la distance entre les locuteurs, qui va directement se négocier ou s’affirmer, et l’on aura la valorisation du locuteur (argument d’autorité), sa dévalorisation éventuelle pour mieux faire 215 Id.: 18. Cf. id.: 20. 217 Id.: 22. 218 MEYER, 1993 : 21-22 e 22. 216 96 passer une thèse propre, ou symétriquement, la valorisation ou l’attaque directe de l’interlocuteur. La minimisation ou le grossissement (l’atténuation des différences ou la mise en valeur des identités) peut aussi porter sur ce dont il est question expressément ou au travers de la réponse.»219 Só muito recentemente os linguistas e, entre eles, em particular os que consideram as realizações verbais como actos de comunicação (Linguística Pragmática) começaram a interessar-se pelos valores retóricos da linguagem. Ducrot terá sido um dos primeiros que se interessaram pela argumentação linguística,220 ao integrar a noção do ethos aristotélico no quadro da sua teoria polifónica.221 Parafraseando a noção aristotélica, observa Ducrot que um dos segredos da persuasão consiste em que o orador dê de si próprio uma imagem favorável (ethos), através da qual «séduira l’auditeur et captera sa bienveillance».222 Maingueneau, por seu turno, retoma também a noção aristotélica de ethos, de que destaca, por um lado, a «voz», isto é, «les propriétés que se conféraient implicitement les orateurs à travers leur manière de dire: non pas ce qu’ils disaient explicitement sur eux-mêmes, mais ce qu’ils en montraient par leur façon de s’exprimer.»223 Os textos, por isso, tanto os orais como os escritos, sendo sempre destinados a agir sobre quem os ouve ou lê, suscitarão tanta maior adesão quanto mais apresentarem um «tom», uma maneira de dizer «qui confère dans l’énonciation même du texte une sorte de réalité physique aux idées défendues». Neste sentido, os textos possuem também um «corpo», isto é, uma entidade que é o seu garante. Não se trata do seu autor efectivo, «mais d’un être fictif construit par le co-énonciateur à partir des traits sémantiques du ton et éventuellement d’autres indices, statutaires, donnés par le texte.»224 É esse garante (uma espécie de fiador) que assume a responsabilidade da verdade do enunciado, porque a sua palavra «participe d’un comportement global (une ma- 219 Id.: 119. Recorde-se que Ducrot & Anscombre defendem que a argumentação se encontra inscrita na própria língua. À questão «pourquoi le discours impose-t-il à l’activité d’argumentation des contraintes spécifiques qui n’ont pas leur explication dans les conditions logiques ou psychologiques de la démonstration ?», respondem os autores que «le sens d’un énoncé comporte, comme partie intégrante, constitutive, cette forme d’influence que l’on appelle la force argumentative. Signifier, pour un énoncé, c’est orienter. De sorte que la langue, dans la mesure où elle contribue en première place à déterminer le sens des énoncés, est un des lieux privilégiés où s’élabore l’argumentation.» [ANSCOMBRE & DUCROT, 19882 : 5] 221 Sobre a teoria polifónica de Ducrot, cf. DUCROT, 1984 : 171-233. 222 Id.: 200-201. 223 MAINGUENEAU, 1991: 183. 224 Id.: 184. 220 97 nière de se mouvoir, de s’habiller, d’entrer en relation avec autrui…)», sendo-lhe atribuído, assim, «un caractère, un ensemble de traits psychologiques (jovial, sévère, sympathique…), et une corporalité (un ensemble de traits physiques et vestimentaires).»225 «Carácter» e «corporalidade» que «proviennent d’un ensemble diffus de représentations sociales valorisées ou dévalorisées, sur lesquelles l’énonciation s’appuie et qu’elle contribue en retour à conformer ou à transformer.» Trata-se, portanto, de estereótipos socioculturais (conceito que podemos aproximar da noção grizeana de PCC) que «circulent dans les domaines les plus divers: littérature, photos, cinéma, publicité...»226 Nesta ordem de ideias, ao interpretar um discurso-texto, oral ou escrito, o ouvinte ou leitor constrói uma representação duma «instância subjectiva que garante a enunciação» e sob a influência do seu ethos, dá-se origem a um mecanismo de «incorparação»,227 termo que Maingueneau define por três aspectos indissociáveis: «- l’énonciation amène le co-énonciateur à conférer um ethos à son garant, elle lui donne corps ; - le co-énonciateur incorpore, assimile ainsi un ensemble de schèmes qui définissent pour un sujet, à travers une manière de tenir son corps, de l’habiter, une manière spécifique de s’inscrire dans le monde ; - ces deux premières incorporations permettent la constitution d’un corps, de la communauté imaginaire de ceux qui communient dans l’adhésion à un même discours.»228 Um texto, por isso, «n’est pas destiné à être contemplé, il est énonciation tendue vers un co-énonciateur qu’il faut mobiliser, faire adhérer “physiquement” à un certain univers de sens.» Universo de sentido que «s’impose par l’ethos comme par les “idées” qu’il transmet», já que «ces idées se présentent à travers une manière de dire qui renvoie à une manière d’être, à la participation imaginaire à un vécu.»229 225 MAINGUENEAU, 1996: 40. MAINGUENEAU, 1998 : 80-81. 227 Esta mesma ideia de «incorporação» a encontra Meyer no ethos, relacionado com o princípio de autoridade, em virtude do qual «on accepte une réponse donnée, on y ajoute foi ou on prend appui sur elle, sans la remettre en question.» É o carácter do orador ou do locutor, a sua postura moral, social ou outra que faz com que se aceite o que ele diz, «parce qu’il est “bien placé pour le dire”, parce qu’il “connait la question”, on accepte de faire corps – ou communauté – avec lui.» [MEYER, 1993 : 116-117] 228 MAINGUENEAU, 1998 : 81. 229 Id.: 81. 226 98 Para conseguir, porém, tais objectivos, a Retórica, como observa Michel Wauthion, «a besoin de maîtriser parfaitement, en plus de la technique de persuasion, les enjeux sociaux de la réception.»230 E aqui que entra, de novo, a cortesia na sua dimensão retórica, ou melhor, a dimensão retórica da cortesia, porque, para persuadir, não basta ser eficaz no dizer, mas também (inclusive para sê-lo) fazê-lo de forma agradável, isto é, cortesmente. A cortesia é, por isso, «directement interactionnelle», pois que ela é «l’ensemble des moyens par lesquels le langage gère, au nom du sens commun, le fonctionnement de la communication interpersonnelle. C’est bien une politesse qui arrondit les angles, dont la fonction première est d’aménager la paix sociale entre les individus. Lubrifiant et art des bonnes manières, mais aussi correction linguistique […], la politesse est un moyen d’acquérir une neutralité de l’expression qui n’est pas une façon insignifiante de parler.»231 2.7. Esquematização discursivo-textual e polifonia Encontra-se na noção de garante de Maingueneau um equivalente da noção ducrotiana de locutor enquanto tal (L), que o autor de Le Dire et le Dit liga também à noção aristotélica de ethos, ao propor a sua teoria polifónica. «Dans ma terminologie, je dirais que l’ethos est attaché à L, le locuteur en tant que tel: c’est en tant qu’il est source de l’énonciation qu’il se voit affublé de certains caractères qui, par contrecoup, rendent cette énonciation acceptable ou rebutante. Ce que l’orateur pourrait dire de lui, en tant qu’objet de l’énonciation, concerne en revanche λ, l’être du monde, et ce n’est pas celui-ci qui est en jeu dans la partie de la rhétorique dont je parle (la distance entre ces deux aspects du locuteur est particulièrement sensible lorsque L gagne la faveur de son public par la façon même dont il humilie λ: vertu de l’autocritique).232 Recorde-se que esta distinção se encontra já em Aristóteles, quando, ao descrever a prova centrada no ethos, observa que o orador deve mostrar-se «digno de fé», porque «acreditamos mais e bem mais depressa em pessoas honestas». Mas acrescenta, de ime230 WAUTHION, 2000: 9. Id.: 10. 232 DUCROT, 1984 : 201. 231 99 diato, que é «necessário que esta confiança seja resultado do discurso e não de uma opinião prévia sobre o carácter do orador», ainda que este seja «o principal meio de persuasão».233 Interpretando a noção do ethos aristotélico, com o desenvolvimento que ela teve depois, em consequência de novas reflexões e propostas de retóricos, filósofos, teóricos da literatura e linguistas, Adam distingue, na análise das esquematizações discursivo-textuais, dois níveis, no que toca ao sujeito enquanto ser do mundo e enquanto sujeito do discurso. O primeiro é uma entidade não linguística, um elemento apenas contextual, a cujo ethos prévio, o coesquematizador (B) pôde aceder e/ou construir (representar) através de informações exteriores ao(s) discurso(s) por ele produzido(s). Trata-se «du sujet dans le monde, de la personne pourvue d’une carte d’identité et d’une état civil, possédant ou non une ou des maisons, automobiles, animaux domestiques, mariée ou célibataire, etc.»234 O segundo é o sujeito comprometido na interacção verbal, isto é, tanto o locutor L como o locutor λ de Ducrot. Numa esquematização discursivo-textual, Adam distingue, então, dois tipos de expressões verbais de natureza retórica, a saber: a) «Expressions rattachées au locuteur en tant qu’être du monde (ethos explicite, montré)».235 b) «Expressions rattachées au locuteur en tant que tel (ethos implicité, insinué)».236 O locutor, em a), «parle depuis une fonction (place) et le (ou les) rôle(s) qu’il assume», isto é, apoiado no ethos prévio, institucional e socialmente reconhecido, que lhe permite utilizar determinadas expressões autorreferenciais explícitas, como ser do mundo e que provocam a adesão de quem o ouve ou lê.237 Em b), o ethos do locutor encontra-se implícito ou insinuado e «[il] passe dans la schématisation par un lexique évaluatif, par une syntaxe expressive exclamative, les suspensions et autres phrases inachevées, mais surtout, à l’oral, par les intonations et la diction.»238 233 ARISTÓTELES, 1998: 49. ADAM, 1999 : 113. 235 Id.: 113. 236 Id.: 114. 237 Cf. id.: 113-114. O autor dá e analisa, como exemplo, um discurso de Charles de Gaulle, proferido em Argel, a 4 de Junho de 1958, na qualidade de Presidente do Conselho e de Chefe de Estado da França. Adam analisa várias vezes este discurso, a propósito de aspectos discursivo-textuais sobre que teorizara. [Cf. id.: 63-64; 74-76 e 132-136] 238 Id.: 114. 234 100 Tendo em atenção estas distinções de ethos, a saber, entre uma representação psicossocial prévia ao discurso e uma representação discursivo-textualmente esquematizada, de forma explícita (a) ou inplícita (b), Adam faz corresponder à segunda «une figure qui est celle d’un sujet toujours imaginaire pour celui qui interprète une schématisation».239 O autor elabora, por isso, um novo esquema de comunicação, através do qual procura «souligner les décalages de l’interaction entre A et B (quel que soit le suportmédia: oral ou écrit dans l’espace et/ou dans le temps).»240 No esquema seguinte (FIG. 13), esse sujeito imaginário é notado A/L*. Sujet dans le monde A et Locuteur Représentation extralinguistique de SOI Préconstruits et Finalités Représentations de B, de la situation et de l’objet du discours SCHÉMATISATION image de A/L* PROPOSÉE (ethos discursif) iB* être de discours A/L* Imaginaire RECONSTRUITE Préconstruits et Finalités Représentations de A, de la situation et de l’objet du discours Sujet dans le monde B Représentation extralinguistique de SOI FIG. 13 – Complexidade das imagens dos (inter)locutores, segundo ADAM, 1999: 115 Com este novo esquema, Adam procura pôr em evidência a diferença existente entre a imagem, sobretudo de A, construída a partir do discurso (oral ou escrito) e a complexidade da análise dessa diferença. Ao nível das esquematizações discursivo-textuais orais é, segundo o autor, a «condição de sinceridade» que pode levar B a associar ou a dissociar a representação anterior ao discurso que tem de A e a representação que reconstrói, enquanto ouve A, o esquematizador. Ao nível das escritas, verifica-se um processo inverso, isto é, durante a leitura ou depois dela, B pode associar ou dissociar a representação que reconstrói de A e verificar se ela se mantém, distancia ou separa da representação que tinha de A, antes do discurso-texto. A propósito, Adam chama a atenção para o particular cuidado que se deve ter com os textos literários, face à tentação e 239 240 Id.: 115. Id., ibid. 101 ao contra-senso da crítica ingénua («naïve») «de confondre l’ethos produit au terme de la lecture avec la personne de l’auteur».241 Não é característica apenas das formações discursivo-textuais literários estes desdobramentos do sujeito locutor (A), mas tratemos agora deles, sejam eles assumidos ou não pelos escritores, deles tenham consciência ou não os leitores reais (também sujeitos deste mundo), sempre primeiros destinatários dessas práticas, indirecta ou directamente representados, isto é, pré-sentidos e presentificados (B, por isso, ainda que imaginário) pelo esquematizador A. Aliás, também os leitores, durante a leitura dum mesmo texto literário, realizada num mesmo contexto ou em contexto diferente, sofrem semelhantes desdobramentos, o que se reflecte, por exemplo, nas diversas emoções sentidas na leitura dum romance,242 ou nas variantes interpretativas que dele faz um crítico.243 Com Luísa Opitz dizemos, por isso, que «tanto é enunciador fictício do texto aquele que o dá a ler como aquele que se prende a lê-lo»,244 ou seja, a escrita duma ficção como a sua leitura são sempre coenunciações, isto é, interacções, ainda que diferidas. É só quando entra nesse jogo de ficção (de fingimento245) e deixa de ser o ser do mundo real que é, para ser o ser do mundo possível convocado por aquela esquematização discursivo-textual sui generis, nele representando os papéis que, explícita ou implicitamente, lhe são atribuídos, que o leitor passa efectivamente a dialogar, a compreender, a comungar («incorporar», diria Maingueneau) com o texto que está a ler e com o locutor fictício que com ele trava esse diálogo especial, o narrador. Está definitivamente provado pelos narratólogos que, ao nível da produção, diferentes são as entidades ficcionais que adquirem voz e que, por isso, de forma mais ou menos clara, podem ser identificadas e reconhecidas. É o conceito bakhtiniano de dialo241 Id., ibid. A mero título de exemplo, caricatural mas significativo, pense-se nas comoções lacrimosas que adolescentes sentiam na leitura, por exemplo, do Amor de Perdição ou da Rosa do Adro. 243 «Comecei a leitura de certo livro no rés-do-chão. Acabei-o no terceiro andar de outra casa, de outra terra. De permeio li algumas páginas, por sinal, julgo, importantes, para entender correctamente o enredo e a estrutura formal, no avião. Li então três livros?» Jorge Listopad aproveita para se interrogar sobre a influência que o «environement radicalmente diferente» tem na leitura e conclui: «Tudo o que fazemos está ligado à experiência do lugar no sentido lato da palavra.» [Jornal de Letras, 06/05/1998, p. 44] 244 OPITZ, 1989: 213. 245 Observa Carlos Reis que o mundo possível «nos conduce a un aspecto fundamental constitutivo del texto literario: su condición ficcional que puede ser relacionada, incluso desde el punto de vista etimológico, con el concepto de fingimiento.» E explica: «Si en latín fingere significa plasmar, formar, entonces el fingimiento artístico que origina textos literarios de ficción designa una modelación estético-verbal y no implica necesariamente otra ficción en la que pueda ser entendido el fingimiento: la acepción despreciativa de hipocresía o falsedad.» [REIS, 1995: 12] 242 102 gismo e de polifonia, segundo o qual, a voz (discurso) dum locutor narrador se articula e dialoga com outras vozes (discursos), fazendo-as ouvir. Ao traduzir e ao explicitar o termo russo slovo utilizado por Bakhtine, que além de palavra significa também discurso,246 observa Júlia Kristeva: «Le mot / le discours pour Bakhtine n’a pas sa vérité dans un référent extérieur au discours qu’il doit refléter. Mais il ne coïncide pas non plus avec le sujet cartésien, possesseur de son discours, identique à lui-même et se représentant en lui. Ce mot / ce discours est comme distribué sur différentes instances discursives qu’un “je” multiplié peut occuper simultanément. Dialogique d’abord, car nous y entendons la voix de l’autre – du destinataire -, il devient profondément polyphonique, car plusieurs instances discursives finissent par s’y faire entendre.»247 Referimo-nos já ao dialogismo bakhtiniano. Quanto à noção de polifonia, como dissemos e se deduz da breve definição de Kristeva, o termo prende-se sobretudo com as vozes, a própria e a(s) do(s) outro(s), que se ouvem no discurso do sujeito locutor (no domínio da literatura ou não, em textos escritos ou orais). O pensador russo di-lo insistentemente, sobretudo em A Poética de Dostoievski.248 Depois de referir que a vida da palavra / discurso reside na sua passagem dum locutor a outro, dum contexto a outro, duma colectividade a outra, duma geração a outra, acrescenta, em jeito de conclusão: «Tout membre d’une collectivité parlante trouve non pas des mots neutres “linguistiques”, libres des appréciations et des orientations d’autrui, mais des mots habités par des voix autres. Il les reçoit par la voix d’autrui, emplis de la voix d’autrui. Tout mot de 246 O próprio Bakhtine reflecte sobre o significado da «vaga palavra “discurso”» em russo, a qual «se refere indiferentemente à língua, ao processo da fala, ao enunciado, a uma sequência (de comprimento variável) de enunciados, a um gênero do discurso, etc.». E acrescenta, continuando possivelmente a ter razão, que «esta palavra, até agora [o texto é datado de 1952-53], não foi transformado pelos lingüistas num termo rigorosamente definido e de significação restrita», concluindo que «fenômenos análogos ocorrem também em outras línguas». [BAKHTIN, 1992: 292-293] 247 KRISTEVA, 1970 : 13-14. 248 «Depois de Dostoievski, a polifonia invade a literatura universal», afirma Bakhtine. [BAKHTIN, 1992: 340] Mas se, como insistentemente defende, todo o discurso é polifónico, não será contraditório dizer que antes do grande romancista russo tal propriedade não se encontrava nos textos literários? Quando, inclusive, neste seu livro afirma que: «L’artiste prosateur évolue dans un monde rempli de mots d’autrui, au milieu desquels il cherche son chemin, et doit avoir une oreille particulièrement fine pour percevoir en eux toute leur spécificité.» [BAKHTINE, 1970 : 277]. Como se sabe, o termo polifonia está intimamente relacionado com a música, como facilmente se ouve nesta como noutras passagens do autor. 103 son propre contexte provient d’un autre contexte, déjà marqué par l’interprétation d’autrui. Sa pensé ne rencontre que des mots déjà occupés.»249 É portanto também duma pluridiscursidade que se trata, a qual, como sempre refere Bakhtine, é uma propriedade observável não só nos textos literários, em particular no romance, mas também nos textos correntes.250 De facto, o pensador russo insistentemente afirma que, no «grande diálogo da comunicação verbal», marcado pela complexidade das relações humanas, «Em cada palavra há vozes, vozes que podem ser infinitamente longínquas, anônimas, quase despersonalizadas [...], inapreensíveis, e vozes próximas que soam simultaneamente.»251 Subjaz a esta concepção dialógica e polifónica o problema filosófico da alteridade psicológica do ser humano. Um eu que se desdobra num tu (que é sempre um outro), tu que desempenha um papel fundamental, já que é face a esse tu/outro, que o eu se afirma e define, social e discursivamente, no diálogo consigo próprio e no diálogo com o(s) outro(s), que num eu e num tu/outro também se desdobra(m), como foi descrito. «Na qualidade de sujeito, jamais coincido comigo mesmo: eu, como sujeito do ato pelo qual tomo consciência de mim, ultrapasso os limites do conteúdo desse ato».252 «O que é indispensável para a criação de um todo artístico (inclusive no caso de uma obra lírica), não é expressar sua vida e sim expressar-se sobre sua vida pela boca do outro. [...] o sujeito da vida e o sujeito da atividade estética, que lhe dá a sua forma, não podem por princípio coincidir.»253 A presença discursiva do outro torna-se assim um dado fundamental na teoria do sujeito e na teoria do discurso de Bakhtine, teorias que sempre reclamam o outro, o qual, convém não esquecer, também tem direito à palavra / discurso, também é detentor da palavra / discurso, não só quando na posição A, mas também na posição B, para reto249 BAKHTINE, 1970: 279. Como observam Carlos Reis e Ana Cristina Lopes, «o facto de o romance ser particularmente visado pelos textos bakhtinianos decorre apenas da circunstância de nele se observar com especial nitidez a ocorrência da pluridiscursividade». [REIS & LOPES, 19902: 321-322] 251 BAKHTIN, 1992: 353. 252 Id.: 124. Negritos da nossa responsabilidade. 253 Id.: 102-103. Negritos da nossa responsabilidade. 250 104 marmos os lugares que, segundo a esquematização discursivo-textual proposta por Grize, os (inter)locutores ocupam: «A palavra (e em geral, o signo) é interindividual. Tudo o que é dito, expresso, situa-se fora da “alma”, fora do locutor, não lhe pertence com exclusividade. Não se pode deixar a palavra para o locutor apenas. O autor (o locutor) tem seus direitos imprescindíveis sobre a palavra, mas também o ouvinte tem seus direitos, e todos aqueles cujas vozes soam na palavra têm seus direitos (não existe palavra que não seja de alguém).»254 254 Id.: 350. Capítulo II CORTESIA LINGUÍSTICA Teoria(s) Toutes les sciences humaines ont leurs mythes fondateurs. Christian Plantin1 É no quadro teórico da cortesia linguística proposto por Kerbrat-Orecchioni que procuraremos descrever e analisar representações verbais de cortesia e de descortesia, em práticas discursivo-textuais do Português europeu. Esta linguista não apresenta, todavia, um modelo completamente original. A sua proposta de descrição e análise é, como esclarece, uma síntese das teorias de Lakoff, Leech e, sobretudo, de Brown & Levinson,2 que considera os teóricos que melhor identificaram a especificidade do fenómeno,3 tendo sido, além disso, os que primeiro o abordaram, segundo uma perspectiva essencialmente linguística. A eles se fica a dever, por um lado, o reconhecimento da importância que a cortesia, em geral, e a cortesia verbal, em particular, passaram a ter na comunicação (sobretudo oral, mas também escrita) e, por outro, no estabelecimento duma terminologia específica de base, fundamental à descrição e sistematização científica da cortesia linguística. Julgamos conveniente, por isso, antes de apresentar o «sistema da cortesia» proposto pela linguista francesa, cujas linhas essenciais seguimos ao longo deste trabalho, apresentar as linhas fundamentais dos modelos teóricos de cada um destes autores. 1. As teorias fundadoras Lakoff, Leech, e Brown &Levinson4 são considerados, pela grande maioria dos estudiosos, os fundadores da cortesia linguística, tal como ela é entendida hoje, ou seja, 1 PLANTIN, 1996: 4. Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 183. 3 Cf. id.: 163. 4 A ordem cronológica por que vieram a público as teorias destes autores não é exactamente coincidente com a ordem aqui apresentada. Com efeito, se Lakoff publica, em 1973, o seu conhecido ensaio «The logic of politeness; or, minding your p’s and q’s», segue-se-lhe a primeira versão do estudo de Brown & 2 106 como uma dimensão essencialmente pragmática que percorre toda a actividade discursivo-textual. Gino Eelen, para citarmos apenas uma das afirmações mais recentes, chama-lhes mesmo «the “founding fathers” of modern politeness research», uma vez que as suas teorias «figure (or are at least mentioned) in a great many if not most of the publications on the subject.»5 É certo que outros autores se tinham referido ou vinham referindo aos fenómenos da cortesia verbal, como vimos no capítulo anterior (Bally, Bahktine), mas apenas como aspectos pontuais e não de forma sistematizada, teórica e metodologicamente. Na área da Filosofia da Linguagem, são de referir os nomes de Paul Grice e John Searle, e na área da Etologia merece especial referência o nome de Erving Goffman. O conhecido autor de Speech Acts observava, em 1965, ao distinguir regras normativas de regras constitutivas, no uso de expressões verbais, que as primeiras «governam formas de comportamento anteriormente existentes: por exemplo, as regras de etiqueta regulam as relações interpessoais», acrescentando que «estas relações existem independentemente das regras de etiqueta.»6 O autor volta a referir-se à cortesia verbal, em 1971, ao propor e descrever a sua taxinomia dos actos ilocutórios. A propósito do interesse que desperta a análise dos actos directivos directos vs. indirectos, observa que «les réquisits conversationnels habituels rendent difficilement admissible de proférer des phrases purement impératives (par exemple: “Sortez de cette pièce”) ou des performatifs explicites (par exemple: “Je vous ordonne de sortir de cette pièce”)». Acrescenta que se torna necessário, por isso, «découvrir des moyens indirects pour nos fins illocutoires (par exemple: “Est-ce que cela ne vous gênerait pas de sortir de cette pièce?”).» E termina: «En ce qui concerne les directifs, c’est la politesse qui constitue la principale motivation en faveur de l’indirectivité.»7 Mas foi, como dissemos, com Lakoff, Leech e Brown & Levinson que a cortesia verbal, a partir dos anos 70 do século passado, passou a domínio relativamente autónomo dentro dos estudos linguísticos. De conjunto de formas e fórmulas que gramáticos, Levinson, em 1978, aparecendo, em 1980 e em 1983, os estudos de Leech sobre a cortesia. A propósito, refira-se que, em Principles of Pragmatics, Leech informa: «Earlier accounts of politeness in terms of rhetorical principles and maxims are to be found in Leech (1980: 9-30, 79-116)», onde um dos estudos aí referidos - «Language and tact» - foi publicado, pela primeira vez, em 1977. [Cf. LEECH, 199610: 18, nota 10, bem como, aqui, Bibliografia e infra.] Dado, porém, que a segunda versão do estudo de Brown & Levinson reaparece só em 1987, a qual faz já referências também à teoria de Leech, julgamos ser mais indicada a ordem que adoptamos na apresentação destas teorias. 5 EELEN, 1999: 27-28. 6 SEARLE, 1983: 64. Também em SEARLE, 1981: 47. (Itálicos da nossa responsabilidade.) 7 SEARLE, 1982: 77. (Itálicos da nossa responsabilidade.) Sobre a cortesia / descortesia e a questão da directividade dos actos ilocutórios, ver, infra, cap. VII. 107 dicionaristas e tratadistas de etiqueta e boas maneiras registavam como meios que as pessoas (as consideradas mais cultas ou urbanas) utilizavam sobretudo em situações formais de comunicação, a cortesia verbal, as regras e os princípios que lhes estavam subjacentes passaram a constituir também objecto próprio dos estudos linguísticos, em geral, e das disciplinas que se ocupam das práticas discursivo-textuais, em particular. 1.1. A teoria de Robin Tolmach Lakoff Pioneira na matéria, segundo Kerbrat-Orecchioni,8 Lakoff é um dos primeiros linguistas a reconhecerem as insuficiências da gramática generativo-transformacional para explicar a correcção ou incorrecção duma frase, por ausência de contexto, tanto linguístico (cotexto) como não linguístico (contexto).9 Defende então que, tal como foi possível definir regras sintácticas, será igualmente possível estabelecer regras pragmáticas que «determinaran si una expresión es pragmáticamente correcta o no»10. A componente pragmática, por isso, «forma parte de las responsabilidades del lingüista igual que cualquier otra parte de la gramática», ou seja, «la pragmática interacciona con la sintaxis y la semántica y no puede ser considerada aparte».11 Ao nível do comportamento comunicativo, Lakoff propõe «duas regras básicas» que designa como «Máximas da Competência Pragmática», a saber: «1. Sea claro» e «2. Sea cortés.» 12 A autora esclarece estas máximas em termos de comunicação e de relação pessoal, nos seguintes termos: «si se pretende comunicar un mensaje directamente, si el primer objetivo que tenemos al hablar es la comunicación, intentaremos ser claros para que no nos malinterpreten. Pero si la pretensión del hablante es situarse respecto al nivel y condición de cada uno de los participantes en el discurso, indicando dónde, según su apreciación, está cada uno, entonces su objetivo será no tanto la claridad como el expresar buenos modales. A veces [...], la claridad es cortesía. Pero a menudo hay que escoger entre Escila y Caribdis.» 13 8 Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 183. Eelen, por seu turno, considera-a «the mother of modern politeness theory». [EELEN, 1999: 10] 9 LAKOFF, 1998: 259. Usamos a tradução espanhola, por impossibilidade de acesso a edição em Inglês. 10 Id.: 265. 11 Id.: 264. 12 Id.: 265. 13 Id.: 266. 108 À máxima de clareza Lakoff faz corresponder, seguindo a teoria da lógica conversacional de Grice, as máximas que especificam o princípio de cooperação (PC).14 Para este filósofo da linguagem, num contexto de conversação, os interlocutores, porque seres racionais e cooperantes, estão interessados, antes de mais, em transmitir eficazmente as suas mensagens. Obedecem, por isso, a um princípio geral, tacitamente aceite por todos, que formula nos seguintes termos: «Make your conversational contribution such as is required, at the stage at which it occurs, by the accepted purpose or direction of the talk exchange in which you are engaged.»15 Grice especifica, depois, o PC em quatro categorias ou máximas e estas, por seu turno, em nove submáximas, como segue: Máxima de quantidade: «1. Make your contribution as informative as is required (for the purpose of the exchange). 2. Do not make your contribution more informative than is required.» Máxima de qualidade:16 «1. Do not say what you believe to be false. 2. Do not say that for which you lack adequate evidence.» Máxima de relação: «Be relevant.» Máxima de modo:17 «1. Avoid obscurity of expression. 2. Avoid ambiguity. 3. Be brief (avoid unnecessary prolixity) 4. Be orderly.»18 14 Para Moeschler, a teoria de Grice «a inauguré une manière totalement nouvelle de voir la pragmatique et le problème de la communication». [MOESCHLER & REBOUL, 1994 : 202] Para uma exposição crítica da lógica conversacional e das implicaturas griceanas, cf. id.: 202-217 e 251-275, respectivamente. 15 GRICE, 19954: 26. 16 Grice formula esta «super-máxima» assim: «Try to make your contribution one that is true». [Id.: 27] 17 Grice formula esta «super-máxima» nos seguintes termos: «Be perspicuous.» [Id.: 27] 109 Além do PC e das máximas conversacionais que permitem as implicaturas conversacionais,19 Grice reconhece a existência doutras máximas, sem as descrever, e que os interlocutores podem respeitar, no decurso duma conversa(ção), tais como estéticas, sociais ou morais, destacando, como exemplo, precisamente, «Be polite»20 Lakoff retoma de Grice21 esta máxima e, a partir dela, estabelece três máximas ou regras de cortesia, que têm em consideração outros aspectos importantes, nos actos de comunicação, que não apenas os estritamente informativos. Essa máxima da competência pragmática – Sê / seja cortês – é especificada em três máximas de cortesia: «1. No importune. 2. Ofrezca alternativas. 3. Haga que O[yente] se sienta bien – compórtese amigablemente.»22 Lakoff descreve e exemplifica, de acordo com o contexto, qual destas máximas (M1, M2 ou M3, para notação simplificada) e correspondentes processos linguísticos são mais adequados ao funcionamento da cortesia verbal. M1, reformulada como «manténgase distante, no se inmiscuya “en los asuntos de los demás”», aplica-se, especialmente, nas situações formais, aquelas em que há uma clara diferença social, ou falta de intimidade entre os interlocutores. Pedimos autorização, geralmente através de pergunta, para fazer ou dizer algo que não é da nossa conta, ou recorremos a construções passivas e impessoais, ao nós académico e de modéstia, ou a termos técnicos para nomear o inominável, como é o caso dos tabus. Trata-se de processos linguísticos que criam «una sensación de distanciamiento entre el hablante y lo que dice, o entre el hablante y el oyente.»23 18 Para a apresentação das máximas e submáximas, cf. id.: 26-27. Do PC e suas máximas conversacionais há já várias apresentações, em Português. O essencial encontra-se, por exemplo, em GOUVEIA, 1996: 402-409 e RODRIGUES, 2001: 147-153. 19 Grice define assim uma implicatura conversacional: «A man who, by (in, when) saying (or making as if to say) that p has implicated that q, may be said to have conversationally implicated that q, provided that (1) he is to be presumed to be observing the conversational maxims, or at least the Cooperative Principle; (2) the supposition that he is aware that, or thinks that, q is required in order to make his saying as if to say p (or doing so in those terms) consistent with this presumption; and (3) the speaker thinks (and would expect the hearer to think that the speaker thinks) that it is within the competence of hearer to work out, or grasp intuitively that the supposition mentioned in (2) is required». [GRICE, 19954: 30-31] 20 Cf. Id.: 28. Negrito da nossa responsabilidade. 21 Lakoff continua a seguir de perto, na sua concepção da cortesia, a lógica conversacional de Grice, como se pode verificar em LAKOFF, 1995. A propósito, refira-se que Fraser, ao agrupar as principais teorias da cortesia linguística, situa a de Lakoff, bem como a de Leech, na «conversational-maxim view». [Cf. FRASER, 1990: 220 e 222-227] 22 LAKOFF, 1998: 268. 23 Cf. id.: 268-270. 110 M2 - Ofrezca alternativas - aplica-se, sobretudo, quando há equilíbrio social entre os interlocutores, mas falta de familiaridade e confiança. Oferecer alternativas equivale a apresentar as coisas de maneira que a recusa da própria opinião ou oferta não seja sentida como polémica. «Permitamos que A tome sus propias decisiones – dejémosle una serie de opciones abiertas», é a reformulação desta máxima. O recurso a determinadas partículas e eufemismos permite, por um lado, que o ouvinte tenha toda a liberdade para tomar uma decisão e, por outro, que o locutor, abstendo-se de impor a sua autoridade, evite o risco de ofender o ouvinte.24 Por último, M3 - Haga que O[yente] se sienta bien - compórtese amigablemente – adapta-se perfeitamente às situações em que a relação entre os interlocutores é muito próxima. Lakoff diz que esta «es la máxima de cortesía que parece menos “hipócrita”, aunque también se usa con mucha frecuencia de una manera convencional cuando no se siente auténtica amistad.» A sua aplicação dá lugar «a un sentimiento de camaradería entre el hablante y el oyente», produzindo «una sensación de igualdad entre H[ablante] e O[yente]», fazendo com que o «O[yente] se sienta bien», como um amigo. O uso do tuteamento (nas línguas que o permitem), do nome próprio, de alcunhas e hipocorísticos, bem como de determinadas partículas de natureza fática, são processos linguísticos de que um locutor se serve para cumprir esta máxima.25 A caracterização individualizada de cada uma destas máximas não deve levar a pensar-se que a sua realização e a sua análise não são complexas. Lakoff adverte para o facto de que, se por vezes, «dos o más de estas máximas pueden actuar al mismo tiempo, reforzándose mutuamente», noutras «podemos vernos en la situación de escoger» entre uma e outra, porque, de acordo com o contexto de comunicação, «una puede imponerse a la otra».26 Ao relacionar as máximas conversacionais com as máximas de cortesia, Lakoff acaba por considerar que aquelas são um «subgrupo» destas. Mais, um «subtipo» de M1, uma vez que «su propósito es que el mensaje sea comunicado lo más rápidamente posible con la menor dificultad: es decir, evitarle imposiciones al oyente (haciendole perder el tiempo con rodeos o cuestiones triviales, o confundiéndole y llevándole a interpretaciones erróneas)».27 Por isso, se a máxima da competência pragmática de clareza (conversacional) e a de cortesia, «en ocasiones coinciden en sus efectos y se apo24 Cf. id.: 270-272. Cf. id.: 273-275. 26 Id.: 268. 27 Cf. id.: 276 e 278. 25 111 yan la una a la otra», muito frequentemnete, porém, «están en un conflicto».28 Neste caso, segue-se que «muchas veces (aunque no siempre [...]) la Cortesía se impone: se considera más importante en una conversación evitar la ofensa que conseguir el objetivo de la claridad. Lo que es lógico, puesto que en la mayoría de conversaciones informales la comunicación real de ideas importantes es algo secundario respecto al mero hecho de afirmar y estrechar relaciones.»29 Lakoff chama a atenção para um problema que, ao nível dos comportamentos corteses, se tornou depois algo polémico, a saber, a questão da universalidade das máximas ou regras de cortesia. A sua posição sobre a questão é a seguinte: «Aquí afirmo que estas máximas son universales. Pero las costumbres varían. ¿Son estas afirmaciones contradictorias? Creo que no. Lo que me parece que pasa, en el caso de que dos culturas difieran en la interpretación de las buenas maneras de una acción o una expresión, es que tienen las mismas máximas, pero distinto predominio de cada una de ellas.»30 A proposta de Lakoff, apesar de situar claramente os fenómenos da cortesia verbal31 no campo da Linguística Pragmática, não deixa de estar sujeita a críticas. As suas máximas de cortesia não estão suficientemente articuladas entre si, nem integradas num sistema coerente de análise. Uma outra crítica, que habitualmente lhe é dirigida, consiste no facto de ela não definir o que entende por cortesia32. É certo que, em «The logic of politeness; or, minding your p’s and q’s», artigo em que a linguista expõe a sua teoria e que temos vindo a citar, na tradução espanhola, a autora nunca chega a uma definição clara e explícita de cortesia. Mas pode-se inferir da sua análise, como se verifica através de citações acima feitas, que ela concebe a cortesia, sobretudo, como evitação de conflitos entre os interlocutores. Concepção que, mais tarde, vai precisar, ao definir a cortesia 28 Id.: 265. Id.: 267. 30 Id.: 277. 31 Lakoff é, porém, de opinião que as máximas se aplicam tanto aos fenómenos verbais como aos fenómenos não verbais, pois todos fazem parte do mesmo sistema das acções humanas. Cf. id.: 275. 32 Breves anotações críticas à proposta de Lakoff encontram-se, entre outros, em FRASER, 1990: 223; KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 183; SIFIANOU, 19992: 22; WATTS, IDE & EHLICH, 1992: 5-6. 29 112 como «a system of interpersonal relations designed to facilitate interaction by minimizing the potential for conflict and confrontation inherent in all human interchange.»33 1.2. A teoria de Geoffrey Leech Geoffrey Leech, cuja teoria Kerbrat-Orecchioni considera simples e coerente,34 propõe também uma análise pragmática da cortesia verbal, em princípios e máximas, mas segundo uma perspectiva declaradamente retórica. Com efeito, além de ter em consideração, por um lado, a teoria dos actos de fala de Austin e Searle, e, por outro, a teoria das implicaturas conversacionais de Grice, o autor de Principles of Pragmatics defende que, sendo a comunicação uma resolução de problemas («problem-solving»), torna-se necessária também uma abordagem retórica, «whereby the speaker is seen as trying to achieve his aims within constraints imposed by principles and maxims of “good communicative behaviour”». E esclarece, de imediato, que, para tal, «not only Grice’s Cooperative Principle, but other principles such as those of Politeness and Irony play an important role.»35 Leech situa o estudo da cortesia verbal no âmbito da Retórica Interpessoal, que considera ser uma das duas dimensões da Pragmática, sendo a outra a Retórica Textual, que também formula em termos de princípios e máximas. Antes, por isso, de se apresentar a teoria da cortesia proposta pelo autor, será conveniente expor, em síntese, o quadro teórico geral da sua concepção de Pragmática, segundo a perspectiva retórica que defende. O linguista parte duma distinção clara entre Semântica e Pragmática, campos distintos dentro da Linguística, mas que são, ao mesmo tempo, complementares e mutuamente relacionados, uma vez que ambos têm o mesmo objecto de estudo: o significado. A Semântica é um domínio da Gamática, do sistema linguístico, formal e abstracto, enquanto a Pragmática é do domínio da Retórica, isto é, da realização desse sistema, dessa Gramática, do uso da língua, de acordo com as situações de comunicação.36 Os princípios retóricos limitam, por isso, os comportamentos verbais de várias maneiras: «Cooperation and politeness, for instance, are largely regulative factors which en33 LAKOFF, 1990: 34, cit. por EELEN, 1999: 11. Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 182. 35 LEECH, 199610: xi. 36 Leech integra na noção de «speech situation»: «(i) addresser and addressee, (ii) context, (iii) goals, (iv) illocutionary act, and (v) utterance [...], and perhaps other elements as well, such as the time and the place of the utterance.» [Id.: 15] Para uma descrição dos elementos (i) a (v), cf. id.: 13-15. 34 113 sure that, once conversation is under way, it will not follow a fruitless or disruptive path.»37 Neste sentido, Leech distingue, na realização do enunciado,38 objectivos ilocutórios de objectivos sociais, os quais faz corresponder, respectivamente, à força ilocutória e à força retórica, «ie the meaning it conveys regarding s’s adherence to rhetorical principles (eg how far s is being truthful, polite, ironic).»39 A força pragmática de um enunciado é constituída, assim, pela sua força ilocutória mais a sua força retórica. Leech considera, por outro lado, que é tão essencial distinguir sentido, de força pragmática, quanto é essencial reconhecer o vínculo entre ambos os conceitos: «force includes sense, and is also pragmatically derivable from it».40 A distinção entre Gramática/Semântica e Retórica/Pragmática liga-a Leech, por outro lado, às três funções da linguagem de Halliday, nestes termos: «(a) The ideational function: language functioning as a means of conveying and interpreting experience of the world. (This function is subdivided into two subfunctions, the Experiential and the Logical sub-functions.) (b) The interpersonal function: language functioning as an expression of one’s attitudes and an influence upon the attitudes and behaviour of the hearer. (c) The textual function: language functioning as a means of constructing a text, ie a spoken or written instantiation of language.»41 Leech concorda, no essencial, com as funções de Halliday, quanto à Pragmática, mas discorda quanto à Gramática. «My main disagreement with Halliday, however, is over his wish to integrate all three functions within the grammar. I maintain, in contrast, that the ideational function belongs to grammar (which conveys ideas to the hearer through a sense-sound mapping), and that the interpersonal function and the textual ‘function’ belong to pragmatics.»42 37 Id.: 17. Repare-se na seguinte distinção: «it is convenient to reserve terms like sentence and question for grammatical entities derived from the language system, and to reserve the term utterance for instances of such entities, identified by their use in a particular situation.» [Id.: 14] 39 Id.: 17. Ao longo do livro, Leech utiliza s e h para simbolizar «“speaker(s) or writer(s)” and “hearer(s) or reader(s)” respectively.» [Id.: xiii] 40 Id.: ibid. 41 Id.: 56. Cf. também HALLIDAY, 1970 e 1973. 42 LEECH, 199610: 57. Leech escreve função entre aspas, porque discorda de Halliday quanto ao estatuto «instrumental» da função textual, relativamente às outras duas: «I shall argue that although the textual 38 114 Assim, dentro de uma perspectiva geral e funcional (i. e., Gramática e Pragmática) da linguagem, qualquer acto verbal de comunicação envolve estas três funções e como tal é, simultaneamente, «an interpersonal transaction, or DISCOURSE», «an ideational transaction or MESSAGE-TRANSMISSION» e «a textual transaction or TEXT.» Mas estas funções estão ordenadas em relação umas às outras, visto que um enunciado verbal completo pode ser descrito assim: « DISCOURSE by means of MESSAGE by means of TEXT »43 Ao procurar transmitir uma certa força ilocutória ao alocutário, o locutor codifica essa força numa mensagem que transmite essa força. Os princípios da retórica interpessoal são activados, neste processo de codificação (de modo análogo procedendo o alocutário, na decodificação, mas em sentido inverso, i. e., da mensagem para a força). A mensagem é depois codificada num texto, «which is a linguistic transaction in actual physical form (either auditory or visual)» que, por um processo análogo, mas inverso, o alocutário vai decodificar, passando do texto à mensagem. É aqui que os princípios da retórica textual são operativos, pois ajudam a determinar «the stylistic form of the text in terms of segmentation, ordering, etc.»44 Leech considera que o seu modelo é “functional” em todos os seus aspectos, uma vez que «it shows how the various elements of grammar and rhetoric contribute to the functioning of language in the service of goal-directed behaviour.»45 Funcionalidade que se encontra, também, na definição de linguagem verbal, como acto de comunicação: «Language consists of grammar and pragmatics. Grammar is an abstract formal system for producing and interpreting messages. General pragmatics is a set of strategies and principles for achieving success in communication by the use of the grammar. Grammar is functionally adapted to the extent that it possesses properties which facilitate the operation of pragmatic principles.»46 organization of language plays an important part in an overall functional account of language, it is misleading to call the textual function a ‘function’ at all: there is something back-to-front about saying that language has the function of producing instantiations of itself. It is not language that has the function of transmitting itself through texts, but texts that have the function of transmitting language.» [Id.: 57] 43 Id.: 59. 44 Id.: 60. 45 Id.: 61. 46 Id.: 76. 115 Esta definição bem pode ser a leitura da esquematização que o próprio linguista elaborou47 da sua teoria e que, a exemplo também de Eelen,48 apresentamos na FIG. 1 (ver página seguinte). Os diferentes tipos de setas, na FIG. 1, indicam que a Gramática/ Semântica envolve regras constitutivas (absolutas, descritivas), enquanto a Pragmática (Retórica Interpessoal + Retórica Textual) envolve princípios reguladores (normativos, relativos). A cortesia é, assim, segundo Leech, um dos princípios pragmáticos que, ao nível da retórica interpessoal, os interlocutores observam quando formulam e/ou interpretam eficazmente enunciados, de acordo com os contextos de comunicação. A este nível, as máximas conversacionais do PC de Grice podem ser complementadas pelas máximas de um Princípio de Cortesia (PCa) e/ou de um Princípio de Ironia (PI),49 muito embora o PC e o PCa50 sejam princípios de primeira ordem, e o PI de segunda.51 A complementaridade,52 por isso, situa-se, sobretudo, entre os dois primeiros, enquanto o PI apoia ou tira partido, sobretudo, do PCa.53 47 Cf. também LEECH, 199610: 16 e 58, para esquemas anteriores. Cf. EELEN, 1999: 15. 49 «The Irony Principle (IP) may be stated in a general form as follows: 48 ‘If you must cause offence, at least do so in a way which doesn’t overtly conflict with the PP, but allows the hearer to arrive at the offensive point of your remark indirectly, by way of implicature.’» [Id.: 82] 50 PCa corresponde, neste estudo, à sigla de Princípio de Cortesia, tradução de Politeness Principle (PP). O PI «is parasitic on the other two, in the following sense. The CP and the PP can be seen to be functional by direct reference to their role in promoting effective interpersonal communication; but the IP’s function can only be explained in terms of other principles. The IP is a ‘second-order principle’ which enables a speaker to be impolite while seeming to be polite; it does so by superficially breaking the CP, but ultimately upholding it.» [LEECH, 199610: 142] Sobre a importância que Leech atribui a estes princípios, cf. id.: 79-84; 142 e 149. 52 O PCa «can be seen not just as another principle to be added to the CP, but a necessary complement, which rescues the CP from serious trouble.» [Id.: 80]. 53 Leech reconhece ainda a existência de outros princípios, cuja descrição, porém, não chega a desenvolver. O «Banter Principle», que poderemos traduzir por «Princípio de Troça (PT)», de efeito oposto ao PI: «If we acknowledge the existence of an Irony Principle, we should also acknowledge another “higherorder principle” which has the opposite effect. While irony is an apparently friendly way of being offensive (mock-politeness), the type of verbal behaviour known as “banter” is an offensive way of being friendly (mock impoliteness).» [Id.: 144] Evidentemente que este princípio recorda os «insultos rituais» de que fala Labov. [Cf. LABOV, 1978: 223-288] Além do PT, correndo o risco confessado de criar «demasiados princípios pragmáticos», Leech fala também no Princípio de Interesse e no Princípio de Poliana. O primeiro impele-nos a «Say what is unpredictable, and hence interesting», uma vez que «conversation which is interesting, in the sense of having unpredictability or news value, is preferred to conversation which is boring and predictable.» [LEECH, 199610: 146] O segundo é baseado na «hipótese de Poliana» dos psicólogos, segundo a qual as pessoas preferem o lado bom das coisas, inspirados na heroína optimista do romance de E. H. Porter com o mesmo nome: «Interpreting it in a communicative framework as a ‘Pollyanna Principle’ means postulating that participants in a conversation will prefer pleasant topics of conversation to unpleasant ones.» [Id.: 147] 51 116 Máxima de Quantidade Máxima de Qualidade Princípio de Cooperação (PC) Máxima de Relação Máxima de Modo Retórica Interpessoal (Função interpessoal) Princípio de Cortesia (PCa) (Sub-máximas) ... ... ... ... ... ... Máxima de Tacto ... Máxima de Generosidade ... Máxima de Aprovação ... Máxima de Modéstia ... ..... . .. . . Princípio de Ironia (PI) ..... ........ Retórica Geral / /Pragmát. (força) Enunciado Semântica / Gramática (sentido) (F. ideacional) Máxima de Foco Final Principio de Processabilidade Máxima de Peso Final ..... Retórica Textual (Função textual) Princípio de Clareza Princípio de Economia Princípio de Expressividade ..... (Máximas) ..... ..... ..... ..... ..... FIG. 1- Retórica geral / Pragmática, baseado em LEECH, 199610: 16 e 58. Apesar disso, Leech, relacionando a importância da função social entre o PC e o PCa, reconhece a este último, em determinadas situações, uma importância de primeiro plano, devido ao seu elevado papel regulador das relações sociais: 117 «to maintain the social equilibrium and the friendly relations which enable us to assume that ours interlocutors are being cooperative in the first place. To put matters at their most basic: unless you are polite to your neighbour, the channel of communication between you will break down, and you will no longer be able to borrow his mower.»54 O PC e o PCa podem, por isso, coexistir. Todavia, regra geral, perante a mesma situação, o cumprimento das máximas de um leva ao não cumprimento das máximas de outro. Por exemplo, quando a máxima de quantidade não é respeitada, é porque o locutor quer respeitar alguma máxima do PCa. O alocutário será levado a interpretar o enunciado recorrendo a uma implicatura de cortesia, ideia já defendida por Lakoff. A definição de cortesia dada por Leech é, porém, diferente da apresentada por Lakoff: «”Minimize (other things being equal) the expression of impolite beliefs”, and there is corresponding positive version (“Maximize (other things being equal) the expression of polite beliefs”) which is somewhat less important.»55 A cortesia e a descortesia verbais são definidas, assim, como expressões que o locutor manifesta, respectivamente, favoráveis ou desfavoráveis, em relação ao alocutário ou a um terceiro. Na FIG. 1, o PCa apresenta quatro máximas, mas Leech, ao tratar esta questão, refere mais duas, admitindo ainda a possibilidade de uma terceira. As seis máximas de cortesia, cada uma delas constituída por duas sub-máximas, são as seguintes: « (I) TACT MAXIM (in impositives and commissives) (a) Minimize cost to other [(b) Maximize benefit to other] (II) GENEROSITY MAXIM (in impositives and commissives) (a) Minimize benefit to self [(b) Maximize cost to self] (III) APROBATION MAXIM (in expressives and assertives) (a) Minimize dispraise to other [(b) Maximize praise of other] (IV) MODESTY MAXIM (in expressives and assertives) (a) Minimize praise of self [(b) Maximize dispraise of self] 54 55 Id.: 82. Id.: 81. 118 (V) AGREEMENT MAXIM (in assertives) (a) Minimize disagreement between self and other [(b) Maximize agreement between self and other] (VI) SYMPATHY MAXIM (in assertives) (a) Minimize antipathy between self and other [b) Maximize sympathy between self and other]»56 Leech assenta a classificação das máximas em função de determinados actos ilocutórios, conforme a classificação de Searle, mas substituindo a designação de directivos por impositivos, a fim de evitar eventuais confusões com alocuções directas e indirectas.57 Por outro lado, a classificação das sub-máximas, onde as formulações (a) são dadas como mais importantes e necessárias, é feita em termos de custo e benefício, numa escala com um pólo positivo e um pólo negativo, quer para self (que equivale ao locutor), quer para other (que corresponde, em geral, ao alocutário, mas que pode ser, também, um terceiro, presente ou não, no contexto de comunicação58). Todavia, porque, em sua opinião, contextos diferentes exigem tipos e graus diferentes de cortesia, Leech classifica as funções ilocutórias em quatro grupos, de acordo com a forma como se relacionam com o objectivo social de estabelecer e manter um bom relacionamento: «(a) COMPETETIVE: The illocutionary goal competes with the social goal; eg ordering, asking, demanding, begging. (b) CONVIVIAL: The illocutionary goal coincides with the social goal; eg offering, inviting, greeting, thanking, congratulating. (c) COLLABORATIVE: The illocutionary goal is indifferent to the social goal; eg asserting, reporting, announcing, instructing. (d) CONFLICTIVE: The illocutionary goal conflicts with the social goal; eg threatening, accusing, cursing, reprimanding.»59 Nas duas últimas situações, a cortesia é ou irrelevante, por se tratar duma situação de colaboração, ou fica fora de questão, por se tratar de conflito. A cortesia é sobretudo pertinente em situações competitivas e conviviais. No primeiro caso, a cortesia é 56 Id.: 132. Os parênteses rectos são da responsabilidade de Leech. Cf. id.: 105-107. 58 Cf. id.: 131. 59 Id.: 199610: 104. 57 119 principalmente negativa, consistindo esta em minimizar a descortesia de alocuções descorteses; no segundo, será principalmente positiva, consistindo esta em maximizar a cortesia de alocuções corteses.60 E nesta linha de pensamento, Leech defende que há alocuções que são intrinsecamente descorteses, como, por exemplo, as ordens, e outras que são intrinsecamente corteses, como, por exemplo, as ofertas.61 Além disso, o autor propõe vários tipos de escalas na determinação da importância e do tipo de cortesia, conforme os contextos: de custo-benefício,62 de opcionalidade,63 de indirectividade,64 de autoridade,65 de distância social66 e de elogio / crítica.67 Enquanto as escalas de custo-benefício, autoridade e distância social remetem, respectivamente, para as variáveis sociais de imposição do acto de fala, da relação de poder e da distância social, existentes entre os interlocutores,68 a escala de opcionalidade aponta para o grau de escolha que o locutor deixa ao alocutário, o que remete, claramente, para a regra 2 de Lakoff, Dê opções. Os actos seguintes («impositivos», na classificação de Leech) são exemplos duma escala, em termos de custo/benefício, de menor ou maior cortesia para com o alocutário (h, nos exemplos), utilizando-se conteúdos proposicionais diferentes: « cost to h less polite [1] Peel these potatoes. [2] Hand me the newspaper. [3] Sit down. [4] Look at that. [5] Enjoy your holiday. [6] Have another sandwich. benefit to h more polite»69 60 Cf. id.: 83-84. Leech remete para Brown & Levinson quanto aos aspectos da cortesia negativa e cortesia positiva, relacionados com a noção de face. [Cf. id.: 102, nota 1) Os conceitos de cortesia negativa, cortesia positiva e face serão retomados, ao tratar-se a teoria de Brown & Levinson e o «sistema da cortesia» de Kerbrat-Orecchioni. 61 Cf. id.: 83. 62 «on which is estimated the cost or benefit of the proposed action A to s or to h.» [Id.: 123. 63 «on which illocutions are ordered according to the amount of choice which s allows to h. [Id.: 123] 64 «on which, from s’s point of view, illocutions are ordered with respect to the lengh of the path (in terms of means-ends analysis) connecting the illocutionary act to its illocutionary goal.» [Id.: 123] 65 66 «the degree of distance in terms of the ‘power’ or AUTHORITY of one participant over another.» [Id.: 126] «The overall degree of respectfulness, for a given speech situation, depends largely on relatively permanent factors of status, age, degree of intimacy, etc., but also, to some extent, on the temporary role of one person relative to another.» [Id.: 126] 67 «the lack of praise implicates dispraise.» [Id.: 136] 68 Sobrre estas variáveis, ver, infra, caps. II e III. 69 LEECH, 199610: 107. 120 Assim, quanto maior for o custo para o alocutário ([1]), menor é a cortesia (ou maior a descortesia) intrínseca do acto. Pelo contrário, quanto maior é o benefício para o alocutário ([6]), maior é a cortesia intrínseca do acto. Uma estratégia muito utilizada pelos interlocutores para minimizarem a descortesia de um acto é o recurso à indirectividade. Refere Leech: «Indirect illocutions tend to be more polite (a) because they increase the degree of optionality, and (b) because the more indirect an illocution is, the diminished and tentative its force tends to be.» E o autor fornece o seguinte exemplo, mantendo, desta vez, o mesmo conteúdo proposicional: « indirectness less polite [7] Answer the phone. [8] I want you to answer the phone. [9] Will you answer the phone? [10] Can you answer the phone? [11] Would you mind answering the phone? [12] Could you possibility answer the phone? etc. more polite»70 Tudo quanto sobre a teoria de Leech se disse até agora situa-se no âmbito do que ele entende por cortesia absoluta, isto é, «a set of scales, having a negative and a positive pole», característica intrínseca de alguns actos, como se disse acima. Mas Leech distingue esta cortesia absoluta de cortesia relativa, definindo a última como estando relacionada com o contexto ou situação.71 A cortesia é assim, para o autor, um princípio regulador da conduta humana, destinado a evitar as tensões e os conflitos nas interacções sociais, entre as quais se encontram, evidentemente, as verbais. 70 71 Id.: 108 Cf. id.: 102, nota 3. 121 Apesar de simples e coerente, a proposta de Leech tem sido também criticada por investigadores mais recentes.72 Em nosso entender, porém, é de salientar a consideração de que a cortesia deve ser analisada à luz da Retórica, uma vez que as estratégias verbais, corteses ou descorteses, são também utilizadas, num acto de comunicação, «in order to produce a particular effect in the mind of h».73 Uma das críticas mais pertinentes é aquela que observa que a teoria das máximas de Leech não anda longe do modelo proposto por Brown & Levinson. 1.3. A teoria de Penelope Brown & Stephen C. Levinson A teoria deates autores tem sido, desde o seu aparecimento, em 1978, com a publicação do ensaio «Universals in language usage: Politeness phenomena»,74 a mais aplicada no estudo dos fenómenos verbais da cortesia, tanto dentro de sociedades anglófonas como não anglófonas, quer dentro duma mesma língua e cultura, quer segundo perspectivas contrastivas.75 Como exemplo do reconhecimento da importância daquele ensaio no desenvolvimento dos estudos da cortesia linguística, segundo uma perspectiva pragmática, citem-se as seguintes palavras de Haverkate: «A partir de la publicación del opus magnum de Brown y Levinson (1978) Universals in language usage: politeness phenomena, el interés por el estudio de la cortesía verbal ha ido adquiriendo proporciones espectaculares, culminando en la organización de gran cantidad de simposios y congresos internacionales, así como en la publicación de numerosos artículos y monografías dedicadas al tema.»76 O quadro teórico proposto por Brown & Levinson tem sido considerado, desde então, «le plus élaboré, productif et célèbre»,77 constituindo «un véritable évangile pour tous ceux qui étudient la politesse linguistique».78 72 Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 182; SIFIANOU, 19992: 29-30, VIDAL, 1993: 173-174 e WATTS; IDE & EHLICH (eds.), 1992: 6. 73 LEECH, 199610: 15. 74 BROWN & LEVINSON, 1978. Este estudo pode ser considerado a primeira edição de Politeness. Some universals in language use, publicado em 1987, com uma nova e longa introdução, algumas correcções e nova bibliografia. Consultámos a 6.ª, publicada em 1996, reimpressão da edição de 1987. 75 A Bibliografia permitirá identificar alguns títulos de estudos segundo estas perspectivas. 76 HAVERKATE, 1994: 9. 77 KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 50. Também 2000b: 21. 122 Brown & Levinson partem da concepção de que os elementos duma sociedade são potencialmente agressivos e que a cortesia serve, precisamente, para evitar essa agressividade e tornar possível, assim, a vida social.79 Esta teoria assenta em dois conceitos centrais - racionalidade e face80 – entendidos como propriedades universais que quase todos os interactantes possuem,81 apenas variando, de cultura para cultura, os elementos particulares que as configuram.82 Tais interactantes são personificados, metodologicamente, numa abstracta pessoa modelo, a qual, além daquelas propriedades, «is a wilful fluent speaker of a natural language».83 A racionalidade tem a ver com os processos de eficácia que cada locutor utiliza num acto de comunicação, «in particular consistent modes of reasoning from ends to the means that will achieve those ends».84 Neste sentido, a comunicação está sujeita ao PC de Grice, entendido como um quadro socialmente neutro. Cada locutor, segundo Brown & Levinson, só não cumprirá as máximas conversacionais se tiver uma boa razão para assim proceder. E a cortesia, isto é, a necessidade de evitar conflitos interpessoais, no decurso duma interacção verbal, é certamente uma dessas boas razões.85 A assunção básica de Brown & Levinson é de que «all competent adult members of a society have (and know each other to have)» uma face ou auto-imagem pública.86 78 KASTLER, 1998: 33. Raro será o estudo de cortesia linguística que não formule considerações semelhantes. Refere Kerbrat-Orecchioni que mesmo os seus críticos reconhecem o poder descritivo desta teoria. [Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 176] Chega mesmo a haver uma quase confusão entre os seus autores e a própria cortesia linguística, referindo Eelen que «when you see the latter, you inevitably see the former». [EELEN, 1999: 12] Carreira, seguindo Kerbrat-Orecchioni, afirma que o modelo de Brown & Levinson «constitue une référence fondamentale pour la plupart des études sur la politese dans des langues très variées», sendo, «jusqu’à nos jours le cadre théorique le plus solide et le plus productif pour l’étude de la politesse linguistique.» [CARREIRA, 1995: 29-30] 79 Cf. BROWN & LEVINSON, 19966: 1. 80 O termo inglês «face» é habitualmente traduzido, nos estudos da cortesia verbal, por «imagem», de que pode ser considerado um sinónimo, como aliás anotam Brown & Levinson [cf. id.: 61]. Para evitar eventuais confusões com o conceito de imagem proposto por Grize, utilizaremos, neste caso, o termo «face». Sobre a noção grizeana de imagem, ver, supra, cap. I, ou GRIZE, 1990: 33 e 1996: 69-70. Na linguagem corrente, imagem e face aparecem, frequentemente, como quasessinónimos, como em “salvar / perder / limpar a face”. Exemplo: «Vitória de Setúbal 1 – Roma 0 / Brilhante lavar de face / numa noite das antigas». (Na primeira «mão», o Setúbal havia perdido por 7-0.) [Jornal de Notícias, 01-10-99] Ou este título: «Igreja Ortodoxa “limpa” má imagem de Nicolau II» [Público, 21-08-00] Ou ainda esta observação: «Se não quiserem perder a face, os autarcas do PSD e do PS estão condenados a entenderem-se, sob pena de o metro [do Porto] ser uma miragem ou então passarem pela vergonha de assistirem ao avanço das escavadoras comandadas pelo bulldozer do Governo, o ministro Jorge Coelho.» [Judite de Sousa, Jornal de Notícias, 10-06-00] (Negritos da nossa responsabilidade) 81 Excepções: «Juvenile, mad, incapacitated persons partially excepted.» [BROWN & LEVINSON, 19966: 285, nota 7] 82 Id.: 13 e passim. 83 BROWN & LWVINSON, 19966: 58. 84 Id.: 61. 85 Cf. id.: 5. 86 Cf. id.: 61. Fraser integra a teoria de Brown & Levinson e seus seguidores em «the face-saving view». [Cf. FRASER, 1999: 220 e 228]. 123 Cada interactante sabe, por outro lado, que as faces, a sua como a do alocutário, são vulneráveis. É preciso, por isso, protegê-las, recorrendo, para o efeito, a estratégias de cortesia. Os autores distinguem, na noção de face, duas dimensões essenciais («facewants») - a face negativa e a face positiva - que, em vez de se oporem, são antes complementares entre si. A face negativa diz respeito a «the basic claim to territories, personal preserves, rights to non-distraction - i.e. to freedom of action and freedom from imposition». A face positiva, por seu turno, diz respeito a «the positive consistent self-image or “personality” (crucially including the desire that this self-image be appreciated and approved of) claimed by interactants».87 Na sequência de Goffman88 (à memória de quem, aliás, Brown & Levinson dedicam Politeness), as noções de face negativa e face positiva correspondem, respectivamente, às noções de território e face goffmanianas. Goffman foi à etologia buscar o conceito de território e, dando-lhe uma concepção mais ampla, propôs vários territórios do eu,89 que Kerbrat-Orecchioni sintetiza em: «• le corps et ses divers prolongements (vêtements, poches, sac à main, dont on supporte mal qu’ils sont indiscrètement fouillés) ; • l’ensemble des réserves matérielles de l’individu (le “à moi”: mon assiette, ma voiture, ma femme, etc.) auxquelles autrui ne saurait avoir accès sans autorisation explicite de leur propriétaire ou protecteur légitime (“touche pas à mon pote”); • le territoire spatial : sa “place” , son “chez soi”, cette sorte de “bulle” à l’intérieur de laquelle on évolue et dont le diamètre varie selon certains paramètres qu’il revient à la proxémique d’étudier; • le territoire temporel, et en particulier le temps de parole auquel on estime avoir droit (d’où le caractère potentiellement offensant des interruptions) ; • les réserves d’information enfin, ses secrets et ses jardins secrets.»90 A face positiva de Brown & Levinson corresponde, por seu turno, à noção de face, que Goffman, influenciado pela noção chinesa, define como «la valeur sociale positive qu’une personne revendique effectivement à travers la ligne d’action que les 87 BROWN & LEVINSON, 19966: 61 Cf. id.: 1 e passim. 89 GOFFMAN, 1973 (2): 43-72. Também GOFFMAN, 1999: 199-200. Ainda HALL, 1994: 185-207. 90 KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 167-168. 88 124 autres supposent qu’elle a adoptée au cours d’un contact particulier.»91 Segundo Goffman, no decurso duma interacção verbal, cada interlocutor toma os cuidados necessários para que ninguém, incluindo ele próprio, perca a face, realizando, para o efeito, aquilo a que chama face work e que, via francês, traduzimos por figuração, estratégia que «sert à parer aux “incidents”, c’est-à-dire aux événements dont les implications symboliques sont effectivement un danger pour la face.»92 Goffman fundamenta a sua noção de face nos pressupostos de que qualquer indivíduo que vive em sociedade «tend à extérioriser ce qu’on nomme parfois une ligne de conduite, c’est-à-dire un canevas d’actes verbaux et non verbaux qui lui sert à exprimer son point de vue sur la situation, et, par là, l’appréciation qu’il porte sur les participants, et en particulier sur lui-même.»93 A tal linha de conduta corresponde uma imagem, a sua face pública, que ele construiu e é mais ou menos reconhecida pelos outros. O seu comportamento, por isso, em cada contexto de interacção verbal, tem sempre presente essa imagem ou face, de modo a não defraudar as expectativas sociais, próprias e dos outros. Acontece, porém, que as interacções sociais apresentam riscos para as faces dos interactantes, em virtude das acções a praticar e da incompatibilidade de interesses. Mas como o problema é comum a todos, esforçar-se-á cada um, não só por não praticar acções lesivas das faces (próprias e alheias), mas também em reparar as acções lesivas que inevitavelmente foram ou tenham de ser realizadas. Goffman chega, assim, à noção de figuração («face-work»), ou seja, ao conjunto de meios que cada pessoa utiliza, num contexto de interacção verbal, «pour que ses actions ne fassent perdre la face à personne (y compris elle-même).»94 O autor considera haver, por isso, dois tipos principais de figuração, isto é, dois meios de não pôr em risco a face própria e as dos outros, válidos para todas as sociedades e culturas: a evitação e a reparação. A primeira «est d’éviter les rencontres où il risque de se manifester»;95 a segunda diz respeito à reparação de acções que, apesar de consideradas incompatíveis com os valores sociais vigentes, não podem ser evitadas e, por isso, as pessoas «s’enfforcent d’en réparer les effets.»96 91 GOFFMAN, 1974: 9. GOFFMAN, 1974: 15. 93 Id.: 9. 94 Id.: 15. Bobone observa que «o comum das pessoas tende a integrar-se [no socialmente correcto], gostando de fazer boa figura, temendo o ridículo e mantendo uma reputação de reconhecimento e aprovação do meio em que vive. Para isso tem que dominar a imperiosa arte de estar ao corrente das regras estabelecidas.» [BOBONE, 1999: 20. Negrito nosso]. Repare-se, ainda, nas expressões, correntes em Português, de botar/deitar/fazer/mostrar figura, para não falar já naqueles que são uns lindos figurões. 95 Id.: 17. 96 Id.: 20. É no capítulo «“Perdre la face ou faire bonne figure?” // Analyse des éléments rituels inhérents aux interactions sociales», pp. 9-42, que o autor desenvolve a teoria da face. 92 125 Brown & Levinson, a partir das noções goffmanianas de território e face propõem as noções de face positiva e face negativa, respectivamente, que todos os seres humanos possuem e a que têm direito, e que por isso querem ver portegidas e salvaguardadas. Mas se cada indivíduo tem uma face bipartida, segue-se que, numa interacção verbal, em que participem, por exemplo, dois interlocutores, estão em presença quatro faces, pelo menos,97 as quais terão que ser reciprocamente protegidas, para que bem possam funcionar as relações interpessoais e o desenrolar das interacções, mesmo ao nível da sua organização discursivo-textual. A maioria, senão todos os actos (verbais e não verbais), praticados pelos interactantes, no decorrer duma interacção verbal, ameaçam intrinsecamente a face (positiva e/ou negativa), tanto do alocutário como do locutor. São os actos ameaçadores de face98 («face-threatening acts»), habitualmente notados pela respectiva sigla inglesa, FTA, que vamos manter.99 Os actos formulados pelos interactantes, numa situação de interacção verbal, repartem-se, assim, por quatro grandes categorias: 1.º Actos ameaçadores da face negativa do alocutário: todas as violações territoriais de natureza verbal (v.g. as perguntas indiscretas ou estúpidas, os actos directivos) e não verbal (v.g. contactos corporais indevidos, agressões visuais, ofensas proxémicas...). 2.º Actos ameaçadores da face positiva do alocutário: todos os actos que põem em perigo a auto-estima do outro (v.g. a crítica, a refutação, a advertência, a injúria, o insulto, a zombaria...) 3.º Actos ameaçadores da face negativa do locutor: todos os actos que afectam o território daquele que os realiza (v.g. ofertas, promessas...) 97 Os interactantes podem ter como tema de conversa ou referirem-se a terceiro(s), presente(s) ou ausente(s). Cf. noção de delocução, em CARREIRA, 1995: 24-25, ou, infra, cap. III. 98 «Given these assumptions of the universality of face and rationality, it is intuitively the case that certain kinds of acts intrinsically threaten face, namely those acts that by their nature run contrary to the face wants of the addressee and/or of the speaker. By “act” we have in mind what is intended to be done by a verbal or non-verbal communication, just as one or more “speech acts” can be assigned to an utterance.» [BROWN & LEVINSON, 19966: 65] 99 Observa Kerbrat-Orecchioni que FTA é «signe faisant maintenant partie du vocabulaire de base de tout “politessologue”.» [KERBRAT-ORECCHIONI, 1992 : 169] Autores de língua castelhana utilizam as siglas correspondentes às traduções que fazem de FTA. Por exemplo, AAIP = acciones que amenazan la imagen pública [VIDAL, 1993: 176] e AAI = Actos Amenazadores de la Imagen. [BLANCAFORT & VALLS, 1999:163] Cf., infra, cap. III, a noção de Face Flattering Act (FFA), introduzida por Kerbrat-Orecchioni, como complementar da noção de FTA. 126 4.º Actos ameaçadores da face positiva do locutor: todos os comportamentos autodegradantes (v.g. confissão, pedir desculpa, autocríticas...) 100 Os FTA’s incluídos nas terceira e quarta categorias são de natureza autoameaçadora, uma vez que orientados para a(s) face(s) do locutor. Os FTA’s integrados nas primeira e segunda categorias estão orientados para a(s) face(s) do alocutário e são, por isso, os mais pertinentes, na medida em que a cortesia tem a ver, antes de mais, com a atitude que um locutor toma ou não em relação ao(s) seu(s) interlocutor(es). Convém referir, por outro lado, a funcionalidade vária e a complexidade de alguns FTA’s, sobretudo no que toca às faces que podem atingir, ao mesmo tempo, se bem que uma seja, regra geral, a preferida. Há FTA’s que atingem, simultânea e imediatamente, uma e/ou ambas as faces do alocutário e, ao mesmo tempo, também uma ou mesmo ambas as faces do locutor. E os processos linguísticos utilizados para as proteger estarão também diversamente orientados para cada uma das faces, embora visem preferencialmente uma delas. Por exemplo, a ordem e o pedido são actos que ameaçam a face negativa do alocutário, porque são uma «invasão» do seu território. Mas, por outro lado, a ordem ameaça também a face positiva do alocutário, na medida em que lhe é imposta uma acção (verbal ou física) que tem de realizar, enquanto o pedido ameaça a face positiva do locutor, na medida em que expõe a sua carência de alguma coisa. À cortesia verbal cabe, pois, atenuar, por evitação, atenuação e/ou reparação, o potencial risco resultante da realização dum FTA. Para o efeito, cada interlocutor terá em consideração a relativa importância de, pelo menos, três desejos: «(a) the want to communicate the content of the FTA x, (b) the want to be efficient or urgent, and (c) the want to maintain H’s face to any degree. Unless (b) is greater than 101 (c), S will want to minimize the threat of his FTA.» Mas o nível de cortesia a praticar, na realização de um inevitável FTA, depende, segundo os autores, dos três factores ou variáveis sociais seguintes: 100 Cf. BROWN & LEVINSON, 19966: 65-68. Também KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 169-173 e 1996: 51-52. 101 BROWN & LEVINSON, 19966: 68. S e H são as iniciais, respectivamente, de speaker e hearer. 127 - a distância social (D) existente entre os interlocutores (uma relação simétrica); - o poder (P) do alocutário em relação ao locutor (uma relação assimétrica); - o grau de imposição (G) do FTA.102 Em princípio, na realização de um FTA, a cortesia aumenta (i) quanto maior for D entre o locutor e o alocutário, (ii) quanto maior for P do alocutário em relação ao locutor, (iii) quanto maior for G.103 O risco (R) de um FTA é calculado segundo a fórmula seguinte (onde x representa o acto de discurso, L o locutor e A o alocutário). Rx = D(L,A) + P(A,L) + Gx.104 Feito o cálculo,105 os interactantes escolhem as estratégias de cortesia mais adequadas à realização do FTA (cujo esquema se reproduz na FIG. 2), tendo em conta as circunstâncias que levam à sua atenuação. «Circumstances determining choice of strategy Lesser Estimation of risk of face loss 1. without redressive action, baldy on record Do the FTA 2. positive politeness with redressive action 4. off record 3. negative politeness 5. Don’t do the FTA Greater» FIG. 2 – Estratégias de cortesia, segundo BROWN & LEVINSON, 1996: 60 e 69. 102 Cf. id.: 76-77. Cf. id.: 71-84. 104 Cf. id.: 76. 105 Cada uma das três variáveis «can be measured on a scale of 1 to n, where n is some small number». [Id.: 76] Convenhamos que determinar tais números é quase missão impossível, pela simples razão de que as relações humanas, em geral, e as de cortesia / descortesia, em particular, não são quantificáveis. 103 128 Como é evidente, a estratégia 5 não cabe no âmbito da cortesia linguística propriamente dita, embora se situe no ponto mais elevado da escala das suas estratégias e, por isso, constitui a melhor forma de se ser cortês. Por outro lado, as possíveis estratégias que cabem na categoria 1, só em casos excepcionais poderão ser consideradas corteses. Com efeito, como esclarecem Brown & Levinson, realizar um acto, segundo estratégias on record 1, é realizá-lo «in the most direct, clear, unambiguous and concise way possible (for example, for a request, saying ‘Do X!’).» Trata-se, grosso modo, de seguir o PC e as máximas de Grice. Regra geral, um locutor só realiza um FTA deste tipo em situações de urgência ou eficiência, quando exerce o poder, ou quando está numa situação de relativa camaradagem e solidariedade, mas também quando «can enlist audience support to destroy H’s face without losing his own.»106 As estratégias que constituem, efectivamente, comportamento cortês encontram-se nos três grandes conjuntos de superestratégias, notadas em 2, 3 e 4, no esquema. Agindo racionalmente, um locutor recorre a elas, como os melhores meios para – protegendo a(s) face(s) do alocutário, em primeiro lugar, mas também a(s) sua(s) própria(s) – conseguir os fins desejados.107 As estratégias on record, com reparação de cortesia positiva (que os autores subdividem em quinze subestratégias) são dirigidas «to the addressee’s positive face, his perennial desire that his wants (or the actions/acquisitions/values resulting from them) should be though of as desirable. Redress consists in partially satisfying that desire by communicating that one’s own wants (or some of them) are in some respects similar to the addressee’s wants.»108 Grosso modo, estas estratégias manifestam solidariedade, da parte do locutor. Através delas, o potencial de ameaça dum acto on record é minimizado «by the assurance that in general S wants at least some of H’s wants». Ambos os interactantes têm, por exemplo, os mesmos interesses e gostos. Há uma reciprocidade de direitos, dúvidas 106 BROWN & LEVINSON, 19966: 69. Cf. id.: 91. 108 Id.: 101. 107 129 e expectativas de que o FTA «doesn’t mean a negative evaluation in general of H’s face.»109 A superestratégia de cortesia negativa é constituída por um conjunto de dez subestratégias de minimização, dirigidas «to the addressee’s negative face: his want to have his freedom of action unhindered and his attention unimpeded. It is the heart of respect behaviour, just as positive politeness is the kernel of “familiar” and “joking” behaviour.»110 As estratégias de cortesia negativa são, por isso, essencialmente de evitação («avoidance») e constituem, regra geral, os chamados comportamentos formais corteses. É caracterizada, assim, por atitudes de autoapagamento e de restrição verbal e não verbal, na realização de um FTA. Os interactantes recorrem, então, aos pedidos de desculpa, por interferências ou transgressões, à deferência verbal ou não verbal, a processos de modalização da força ilocutória, de impessoalização, de indirectividade convencionalizada «and the others softening mechanisms that give the addressee an “out”, a facesaving line of escape», permitindo ao alocutário «to feel that his response is not coerced.»111 Por último, e recordando a FIG. 2, temos as superestratégias de 4, ou seja, a realização «off record» de um FTA: «A communicative act is done off record if it is done in such a way that it is not possible to attribute only one clear communicative intention to the act. In other words, the actor leaves an “out” by providing himself with a number of defensible interpretations; he cannot be held to have committed himself to just one particular interpretation of his act. Thus if a speaker wants to do an FTA, but wants to avoid the responsibility for doing it, he can do it off record and leave it up to the addressee to decide how to interpret it.»112 Através das estratégias deste tipo (os autores inventariam e descrevem quinze), o locutor como que mascara ou dissimula as suas verdadeiras intenções, evitando, assim, 109 Id.: 70. Brown & Levinson fazem um longo inventário e uma pormenorizada descrição das estratégias linguísticas de cortesia positiva, em id.: 101-129. Para versões abreviadas das mesmas, cf. BLANCAFORT & VALLS, 1999: 167 e KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 174-175. 110 BROWN & LEVINSON, 19966: 129. 111 Id.: 70. Inventário e descrição das estratégias linguísticas de cortesia negativa, em id.: 129-211. Para versões abreviadas das mesmas, cf. BLANCAFORT & VALLS 1999: 167-168 e KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 175. 112 BROWN & LEVINSON, 19966: 211. 130 que lhe seja atribuída, directamente, a responsabilidade do FTA. Nesta categoria, incluem-se processos linguísticos como o recurso à metáfora e à ironia, às perguntas retóricas, ao implícito, à tautologia, ou seja, a «all kinds of hints as to what a speaker wants or means to communicate, without doing so directly, so that the meaning is to some degree negotiable.»113 Referimos já a aceitação generalizada que a proposta teórica de Brown & Levinson teve junto dos linguistas que estudam a cortesia linguística. Não falta, porém, quem lhe aponte falhas e imprecisões, como se verá, no capítulo seguinte, ao apresentarmos o modelo de análise proposto por Kerbrat-Orecchioni, este que, todavia, retoma, corrige e aperfeiçoa a teoria daqueles autores. 113 Id.: 69. Inventário e descrição das estratégias linguísticas de cortesia off record, em id.: 211-227. Para versões abreviadas das mesmas, cf. BLANCAFORT & VALLS, 1999: 168 e KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 175. Capítulo III O «SISTEMA DE CORTESIA» LINGUÍSTICA DE CATHERINE KERBRAT-ORECCHIONI Uma proposta ecléctica O homem não é mais do que a sua imagem. Os filósofos bem podem explicar-nos que a opinião do mundo pouco conta e que só importa aquilo que somos. Mas os filósofos não percebem nada. Enquanto vivemos entre os seres humanos, seremos aquilo que os seres humanos considerarem que somos. Milan Kundera1 O modelo de cortesia linguística de Kerbrat-Orecchioni é, nos seus pontos fundamentais, a teoria de Brown & Levinson que, todavia, corrige e desenvolve.2 Esta linguista não deixa, contudo, de ter em consideração as propostas de Lakoff e sobretudo de Leech, bem como de outros autores que, depois dos fundadores, têm vindo a estudar também os fenómenos verbais da cortesia. Pode-se dizer, por isso, que a sua proposta resulta ecléctica, cuja matriz principal é, não obstante, o modelo de Brown & Levinson. De facto, por um lado, mantém o essencial desta teoria e, por outro, introduz-lhe significativas melhorias conceptuais e estruturais, dando origem, assim, a um sistema de cortesia (ainda mais) coerente, operativo e universal. À constituição desse sistema tem dedicado a linguista parte da sua obra mais recente. São de referir, em particular, os tomos II e III de Les Interactions Verbales e os capítulos 7 a 15 de La Conversation, que resumem estes dois volumes e o essencial da sua proposta.3 1 KUNDERA, Milan, 1990: A Imortalidade. Lisboa: Dom Quixote; p. 127. Eelen situa a teoria de Kerbrat-Orecchioni no conjunto daquelas que introduzem correcções teóricas nas três teorias fundadoras. [Cf. EELEN, 1999: 37-38] 3 No tomo I de Les Interactions Verbales, Kerbrat-Orecchioni introduz a Análise Conversacional das interacções verbais e estuda a sua estrutura, entendendo-as como textos colectivamente produzidos por dois ou mais interlocutores (interactantes), num determinado contexto ou situação de comunicação. No tomo II, o estudo incide sobre a construção das relações interpessoais que se verificam nas interacções 2 132 Neste capítulo, daremos conta das principais críticas que Kerbrat-Orecchioni faz à teoria de Brown & Levinson e das melhorias que lhe introduz; descrevermos, depois, o «sistema de cortesia» que propõe e, por último, apresentaremos listagens das manifestações linguísticas através das quais se realizam os fenómenos de cortesia verbal. 1. Críticas e melhorias da teoria modelo Não obstante reconhecer, explicitamente, que a abordagem da cortesia feita por Brown & Levinson é, no essencial, conforme à sua,4 Kerbrat-Orecchioni coloca algumas reservas ao modelo, as quais, todavia, segundo declara, não põem em causa o seu poder teórico descritivo.5 A concepção demasiado pessimista e negativista das comunidades, subjacente à teoria de Brown & Levinson, segundo a qual os indivíduos, nas suas interacções verbais e não verbais, ameaçam habitualmente as faces dos respectivos interactantes, é uma das críticas. Os actos de fala são, por isso, FTA’s que, nas melhores das hipóteses, apenas podem ser evitados ou reparados, através de estratégias de cortesia. São estas que tornam possível a comunicação e a vida em sociedade.6 Kerbrat-Orecchioni aceita a noção de FTA, na medida em que, fazendo lembrar Bally,7 todos os actos humanos «sont susceptibles dans certaines circonstances et à des degrés divers de menacer celui qui les verbais, com especial destaque para os fenómenos e funcionamento da cortesia, em geral, e da cortesia linguística, em particular, propondo, para esta, um modelo de descrição. O tomo III está dividido em duas partes: na primeira, a linguista reflecte, segundo uma perspectiva contrastiva, sobre as variações culturais que afectam as componentes estruturais e relacionais das interacções; a segunda é constituída pela aplicação das teorias, anteriormente descritas e sistematizadas, a dois tipos diferentes de trocas verbais rituais a desculpa e o cumprimento. [Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1990; 1992; 1994; 1996. Em KERBRAT -ORECCHIONI, 1987, 1988, 1989, 1996a, 19912, 1997, 2000, 2000a e 2000b, a autora aborda também a problemática da cortesia linguística.] 4 Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 176. 5 Cf. id.: 176-177 e 253-270. Nestas últimas pp., a autora desenvolve alguns dos «limites» e «fraquezas» da teoria de Brown & Levinson, mas onde também critica a crítica de outros críticos, para reafirmar «les mérites de la théorie de la politesse [de Brown & Levinson com as melhorias por ela introduzidas] comme ménagement des faces». [Id.: 253.] Outras visões críticas, algumas das quais coincidentes com as «reservas» de Kerbrat-Orecchioni, encontram-se em CHODOROWSKA-PILCH, 1998: 10-12; EELEN, 1999; FRASER, 1990; KASPER, 1990 e 19982; MEDEIROS, 1985: 68; OLIVEIRA, 1995: 407 e 410; PEDRO, 1993; PERNOT, 1996: 225-227; RUZICKOVÁ, 1998: 24-36; TRAVERSO, 1996: 38; WATTS, IDE & EHLICH (eds.), 1992. 6 «From a gross ethological perspective, perhaps we can generalize somewhat: the problem for any social group is to control its internal aggression while retaining the potential for aggression both in internal social control and, especially, in external competitive relations with other groups [...]. In this perspective politeness [...], like formal diplomatic protocol [...], presupposes that potential for aggression as it seeks to disarm it, and makes possible communication between potentially aggressive parties.» [BROWN & LEVINSON, 19966: 1] 7 Ver, supra, cap. I, 2.1. 133 accomplit (lequel risque toujours de les voir “échouer”), et celui auquel ils se destinent (puisqu’ils tentent d’exercer sur lui certaines contraintes spécifiques, ne serait-ce que celles de l’enchaînement).»8 Só que, além do lado negativo dos FTA’s, há também uma série de actos de discurso «anti-FTAs», destinados a valorizar as faces dos interactantes. A estes actos Kerbrat-Orecchioni chama, à semelhança do que tinham feito Brown & Levinson para os actos ameaçadores, Face Flattering Acts, com a respectiva sigla FFA’s (que mantemos), actos que «sont en quelque sorte le pendant positif des FTA’s».9 A introdução da noção de FFA constitui, de facto, um contributo conceptual e metodológico importante, tornando o sistema de cortesia mais equilibrado e operativo, ao mesmo tempo que torna a análise dos actos de discurso, a este nível, mais clara e coerente. Kerbrat-Orecchioni propõe, como consequência, que «l’ensemble des actes de langage se répartissant alors en deux grandes familles, selon qu’ils ont sur les faces des effets essentiellement négatifs (comme l’ordre ou la critique), ou essentiellement positifs (comme le compliment ou le remerciement).»10 A noção de FFA permite, por outro lado, uma clarificação das noções de cortesia negativa e de cortesia positiva, as quais, observa a autora, em Brown & Levinson apresentam-se ligeiramente confusas. De facto, aqueles linguistas não distinguem, claramente (antes confundem), a noção de cortesia positiva da noção de face positiva,11 nem a noção de cortesia negativa da noção de face negativa.12 Assim sendo, o quadro das superestratégias da teoria modelo torna-se inaceitável (é mais uma reserva da autora), uma vez que toma a cortesia positiva e a cortesia negativa como a realização on record de um FTA com acção reparadora. A cortesia positiva figura, desse modo, ao lado da cortesia negativa, mas é-lhe atribuído um grau de menor importância, na escala 8 KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 173. KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 54. Cf. também 1992: 171-172. Nesta última obra, os actos valorizadores da face, negativa ou positiva, são designados apenas, por actos «anti-ameaçadores» ou «antiFTAs». Eelen interpreta a noção de FFA de Kerbrat-Orecchioni, como «face-enhancing act (FEA)», que equivale à noção de «face-boosting act» (FBA), proposta por Arin Bayraktaroglu, para referir «an act that satisfies the positive face wants of speaker or hearer.» [EELEN, 1999: 37 e 35. Cf. BAYRAKTAROGLU, 1991, para noção de FBA]. As noções de FFA, FEA e FBA são, no fundo, designações sinónimas. 10 KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 54. 11 Retomando a definição de face positiva de Brown & Levinson, via Goffman, Kerbrat-Orecchioni, simplificando, diz que tal noção «correspond en gros au narcissisme». [Id.: 51; cf. também 1992: 168] 12 Dado corresponder, grosso modo, à noção goffmaniana de território, este termo aparece frequentemente, nos trabalhos de Kerbrat-Orecchioni, como sinónimo de face negativa. Traverso reconhece as noções de face positiva e de face negativa, propostas por Brown & Levinson, mas prefere utilizar, simplesmente, tal como faz Goffman, os termos, respectivamente, de face e de território. [Cf. TRAVERSO, 1996: 37 e 1999: 51] Em nosso entender, porém, muito embora se possam utilizar estes termos como sinónimos daqueles, devem-se manter os termos de face positiva e de face negativa, por coerência terminológica com as noções de FTA e de FFA, noções que Traverso também utiliza nos seus estudos. 9 134 da cortesia,13 de acordo, aliás, com a visão etnocentrista de Brown & Levinson. Consideram estes autores que, nas culturas ocidentais, ao pensar-se em cortesia, «it is negative-politeness behaviour that springs to mind», e daí que a cortesia negativa seja «the most elaborated and the most conventionalized set of linguistic strategies for FTA redress».14 Mas, porque ser cortês consiste tanto em atenuar a expressão dum FTA, como produzir um FFA, conclui Kerbrat-Orecchioni que «la politesse positive occupe en droit dans le système global [de la politesse] une place aussi importante que la politesse négative». E acrescenta, como reforço, que «dans nos représentations prototypiques, la louange passe pour “encore plus polie” que l’atténuation d’une critique.»15 A autora de Les Interactions Verbales precisa, então, as noções de cortesia negativa e de cortesia positiva, delas dando as seguintes definições (aqui apresentadas em paralelo, para facilitar a sua leitura comparativa): CORTESIA NEGATIVA CORTESIA POSITIVA «La politesse négative est de nature abs- «La politesse positive est au contraire de tentionniste ou compensatoire: elle consiste nature productionniste: elle consiste à ef- à éviter de produire un FTA, ou à en adoucir fectuer quelque FFA pour la face négative par quelque procédé la réalisation – que ce (ex.: cadeau) ou positive (ex.: compliment) FTA concerne la face négative (ex.: ordre) du destinataire.»16 ou la face positive (ex.: critique) du destinataire.» Numa interacção verbal, por isso, em que estejam presentes, pelo menos, dois interactantes, são quatro as faces que se encontram em presença. Os actos de discurso por eles produzidos, de cortesia negativa (evitação e compensação de FTA’s) e/ou de cortesia positiva (produção de FFA’s), podem atingir, de um lado, a face negativa e/ou a face positiva do alocutário, e, de outro, a face negativa e/ou a face positiva do locutor. 13 Ver, supra, cap. I, FIG. 2, onde a cortesia negativa aparece em terceiro lugar e a cortesia positiva em segundo, na escala das estratégias. 14 BROWN & LEVINSON, 19966: 129-130. 15 KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 54. 16 KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 54. Cf. também 1992: 177. 135 Com o esquema apresentado na figura seguinte pretendemos ilustrar as faces que, numa interacção verbal (sobretudo em contextos face-a-face) são atingidas, directa e/ou indirectamente, com a realização de um FTA ou de um FFA. INTERACÇÃO VERBAL Face positiva Face positiva FTA FFA Locutor Face negativa Alocutário Face negativa FIG. 1 – Orientação e efeito de boomerang na realização de um FTA e/ou de um FFA. Um locutor tem sempre uma face positiva e uma face negativa, e ao realizar actos verbais de cortesia negativa (FTA atenuado) e/ou positiva (FFA), conforme o contexto e a dinâmica da interacção verbal, atinge, directamente e em primeiro lugar (orientação das setas contínuas), a face negativa e/ou a face positiva do alocutário e, indirectamente (por uma espécie de efeito boomerang, orientação das setas tracejadas), a sua própria face (negativa ou/e positiva). Pode acontecer, ainda, que um locutor, respeitando a orientação dos princípios da cortesia, formule actos verbais (geralmente) descorteses ou (excepcionalmente) corteses directamente dirigidos a si próprio, os quais, todavia, atingem também, se bem que indirectamente, a face (negativa ou/e positiva) do(s) seu(s) interlocutor(es). Apresentadas as principais críticas17 que Kerbrat-Orecchioni faz ao modelo de Brown & Levinson, no sentido de o aperfeiçoar, vejamos agora como ela nos apresenta e descreve o «sistema da cortesia» linguística que propõe, o qual deve ser «à la fois universel et modulable, en ce sens qu’il permet d’engendrer autant de sous-systèmes qu’il y a de façons de hiérarchiser les différents principes constitutifs du système.»18 17 A linguista critica ainda a falta de distinção clara entre princípios A-orientados e princípios L-orientados (cuja descrição se fará infra), na concepção de cortesia de Brown & Levinson, bem como o inventário «um pouco anárquico» e uma classificação «muito arbitrária» das estratégias que compõem as superestratégias. [Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 176-177] 18 KERBRAT-ORECCHIONI, 1994: 89. 136 2. O «sistema de cortesia» Kerbrat-Orecchioni define a cortesia como «un ensemble de procédés permettant de concilier le désire mutuel de préservation des faces avec le fait que la plupart des actes accomplis durant l’interaction risquent de venir menacer telle ou telle des faces en présence».19 Tais processos obedecem a um conjunto de princípios ou regras que dependem dum princípio geral supremo: «Ménagez-vous les uns les autres.»20 Neste sentido, a cortesia tem por função estabelecer o carácter harmonioso das relações sociais, prescrevendo, não só, «les comportements que le locuteur doit adopter envers son partenaire d’interaction», mas também «les attitudes que le locuteur doit adopter vis-à-vis de lui-même».21 Assim, já não é só, ou sobretudo, a problemática dos constituintes do texto conversacional e sua organização que interessa estudar,22 mas também as relações que, a nível interpessoal, os interlocutores manifestam numa dada situação ou contexto de conversação.23 Kerbrat-Orecchioni, baseada na teoria fundadora de Brown & Levinson, que combina com a de Leech, organiza o «sistema de cortesia», em torno de três eixos principais: 19 KERBRAT-ORECCHIONI, 1994: 88. KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 52. Princípio que pode ser interpretado como uma outra formulação do Princípio de Cortesia (PCa) de Leech, ou uma das máximas em que Lakoff desdobra a regra de competência pragmática, a saber, Sê / seja cortês. Ver, supra, cap. I, respectivamente, 1.2. e 1.1. 21 Id.: 50-51 e 62. 22 São numerosos os estudos realizados no domínio das interacções verbais. O tomo I de Les Interactions Verbales [1990; cf. também caps. 1-6 de La Conversation, 1996] trata, como vimos, da construção textual e da análise das conversações, onde se pode encontrar bibliografia abundante sobre o tema. Kerbrat-Orecchioni, ao sumarizar os estudos levados a cabo no âmbito da Análise Conversacional, escreve que os primeiros realizados neste domínio «portaient essentiellemnt sur ce que l’on peut appeler les aspects organisationnels des conversations», entre os quais se destacam «règles d’alternance des tours de parole, procédés assurant la cohérence interne des différentes interventions (paires adjacentes, structuration hiérarchique, marqueurs et connecteurs), organisation thématique, activités “réparatrice” et “régulatrice”, etc.» [KERBRAT-ORECCHIONI, 1996a: 31] No âmbito da dimensão relacional das interacções verbais, a linguista inclui, também, o estudo da componente dos afectos ou emoções, de emergência recente, no quadro da Análise do Discurso. Além disso, refere o interesse, também recente, pelo estudo de outros tipos de interacções, muito frequentes na sociedade dos nossos dias: a conversação familiar, a comunicação através das novas tecnologias (diálogos homem-máquina, internet, correio electrónico...) e, mais recentemente ainda, o interesse dos conversacionalistas pelos diálogos em que intervêm vários interlocutores, diálogos esses que designa por «trilogues». [Cf. id.: 32-33] Sobre a problemática estrutural e relacional dos «trilogues», cf. KERBRAT-ORECCHIONI & PLANTIN (dir.), 1995. Sobre as emoções nas interacções, cf. PLANTIN et al. (dir.), 2000. 23 Na noção de contexto ou situação de comunicação estão incluídos, não só, o tempo e o espaço da interacção, mas também o número de participantes e as suas características individuais, o objectivo individual e geral da conversação, além das relações mútuas de lugares que os interactantes atribuem e se atribuem, no respeito ou desrespeito que expressam, simétrica ou assimetricamente, por si próprios e pelo(s) outro(s), presente(s) ou mesmo ausente(s). [Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 75-82 e 1996: 16-17] 20 137 1- Eixo dos princípios que regem os comportamentos verbais que o locutor deve adoptar em relação a si próprio (princípios L-orientados) e em relação ao seu alocutário (princípios A-orientados). 2- Eixo dos princípios que relevam da cortesia negativa vs. cortesia positiva. 3- Eixo dos princípios que dizem respeito à face negativa vs. face positiva.24 Articulando e cruzando estes eixos, são hierarquizados, em função da sua importância e poder discriminatório, cinco princípios gerais que, no quadro seguinte (FIG. 2), resumimos, a partir do apresentado pela linguista. Precavendo-se contra eventuais críticas de que este sistema de regras seja fruto do acaso, a linguista fundamenta a sua validade declarando que «il repose sur de très nombreuses observations, consignées dans les traités de savoir-vivre, les œuvres littéraires, ou les études scientifiques sur la question ; et l’on pourrait prouver que tous ces principes existent bien, puisqu’on les rencontre à chaque instant lorsqu’on se trouve confronté à la description de conversations.»25 Trata-se, pois, de princípios e regras que resultam do reconhecimento da importância da cortesia verbal e não verbal na vida social, como norma geralmente reconhecida e praticada,26 através da qual os indivíduos em interacção (e para que a interacção se desenvolva em equilíbrio e harmonia) procuram conciliar o respeito devido ao outro com o respeito que devem a si próprios, conforme o sistema goffmaniano das faces.27 Respeitar, por isso, as regras de cortesia é um acto de racionalidade, uma vez que «il est plus raisonnable de favoriser la viabilité de l’échange que de s’employer à précipiter sa mort». Racionalidade que faz, por outro lado, com que a cortesia seja considerada «un phénomène universel», uma vez que universal também é «l’importance attachée au territoire, et à la face».28 Isto, apesar da diversidade das suas formas, o que 24 Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 179-180. Estes eixos procuram corresponder a sugestão de Craig et al. para melhoramento, precisamente, do modelo de Brown & Levinson. [Cf. id.: 183, nota 1] 25 Id.: 186. 26 Daí que a sua ausência seja frequentemente mais notada e sentida do que a sua prática. [Cf. KASPER, 1990: 208]. Em princípio, «les comportements impolis sont “marqués” par rapport aux comportements polis». Há, contudo, excepções, contextos em que as regras de cortesia ficam suspensas: «en cas d’urgence par exemple, ou d’interaction fortement agonale, ou de communication à caractère ludique». [KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 60 e 1992 : 255-256] 27 Interpretação baseada na leitura dos capítulos que a autora dedica aos fenómenos da cortesia, em geral, e da cortesia linguística, em particular. Convém, a propósito, referir que a linguista, nomeadamente no tomo II de Les Interactions, recorre frequentemente a trabalhos de outros autores (linguistas ou não) para fundamentar as suas propostas. [Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: passim] 28 KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 65 e 66. Cf. também 1992: 318-321. A universalidade da cortesia e, em particular, das suas regras ou princípios é posta em causa por vários autores. Por exemplo, Moeschler & Reboul consideram «qu’il serait absurde de définir les règles de politesse comme des règles universelles.» [MOESCHLER & REBOUL, 1994: 253] Cf. também KASPER, 1990: 195. 138 implica que «l’usage de ces règles et principes doive être contrôlé (en particulier par l’observation rigoureuse de la façon dont ils s’exercent effectivement dans divers types de sociétés et de situations interactives)».29 Efectivamente, os princípios de cortesia têm uma realização e uma eficácia que dependem muito das sociedades e suas culturas, e dos contextos concretos em que ocorrem e em que se desenvolvem as interacções.30 SISTEMA DE CORTESIA (I) Princípios A-orientados (1) Cortesia negativa: Evite ou atenue actos verbais ameaçadores para a) a face negativa do alocutário b) a face positiva do alocutário. (2) Cortesia positiva: Produza actos verbais valorizadores de a) a face negativa do alocutário b) a face positiva do alocutário. (II) Princípios L-orientados A- Princípios favoráveis a L (1) Cortesia negativa: Proceda de modo a não perder, de forma demasiado ostensiva, a) a sua face negativa b) a sua face positiva. (2) Cortesia positiva (sem princípios) B- Princípios desfavoráveis a L (1) Cortesia negativa: Evite ou atenue a formulação de actos valorizadores de a) a sua face negativa b) a sua face positiva. (2) Cortesia positiva: Realize actos ameaçadores em relação a a) sua face negativa b) sua face positiva. FIG. 2 - «Sistema de cortesia», adaptada de KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 184. 29 KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 321. Para uma visão geral da problemática intercultural (e mesmo intracultural), cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1994: 1.ª Parte e 1996: caps. 11-13. 30 139 Os princípios orientados para o alocutário (A-orientados) são dois (na FIG. 2 notados como I-1 e I-2, ver página anterior) e vêm à cabeça do sistema, porque representam a cortesia em sentido estrito: por abstenção ou compensação (no caso da cortesia negativa, I-1) e por produção (no caso da cortesia positiva, I-2), tais princípios são sempre favoráveis a uma face, negativa ou positiva, do alocutário. Segundo o princípio I-1, o locutor deve evitar ou, não sendo evitáveis, atenuar os actos que ameacem as faces negativa ou/e positiva do alocutário, através de processos verbais, paraverbais e não verbais, adequados ao contexto. São muitos os FTA’s que podem ocorrer numa interlocução. De evitar são, regra geral, os insultos e os actos directivos directamente formulados, descorteses por natureza, mas também as observações deselegantes, as críticas duras, as refutações radicais, as admoestações violentas... Se, porém, tais actos não puderem ser evitados, deve a sua formulação ser suavizada através de processos (estratégias) atenuadores, substitutivos ou/e acompanhantes (cuja listagem se elaborará a seguir), segundo as regras de cortesia e o sistema de cada língua. Kerbrat-Orecchioni faz corresponder, no seu quadro, o princípio I-1 às máximas de Leech. Ao princípio de cortesia negativa, orientado para a face negativa do alocutário (I-1a), corresponde, na máxima do tacto, à submáxima segundo a qual se deve minimizar o custo de actos que desejamos que o outro pratique. Ao princípio de cortesia negativa, orientado para a face positiva do alocutário (I-1b), correspondem, na máxima da aprovação, a submáxima segundo a qual devem ser minimizadas as críticas, na máxima do acordo, a submáxima segundo a qual deve ser minimizado o desacordo; finalmente, na máxima da simpatia, a submáxima segundo a qual devem ser minimizadas expressões de antipatia. O princípio I-2 é de cortesia positiva e propõe, por isso, a valorização da face (negativa e positiva) do alocutário, através da realização de FFA’s, como seja autopropostas de ajuda e de serviços, a oferta de “presentes verbais”, elogiando-lhe os bens, os filhos, a sua pessoa, dirigir-lhe cumprimentos, felicitações, manifestações de acordo, interesse, simpatia, etc. Os tratamentos corteses, em geral, e, dentro deles, os honoríficos e deferenciais, em particular, são realizações linguísticas deste princípio, desde que adequados ao contexto. Porque a hipercortesia é, regra geral, descortesia.31 O princípio de cortesia positiva, quando dirigida à face negativa do alocutário (I-2a), corresponde à submáxima do tacto de Leech, segundo a qual o locutor deve 31 Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 162 e passim. 140 maximizar o benefício em favor do outro. Quando dirigida à face positiva do alocutário (I-2b), corresponde à submáxima da aprovação, segundo a qual o locutor deve maximizar os elogios («praises») dirigidos ao outro; à submáxima de acordo, segundo a qual este deve ser maximizado; e à submáxima da simpatia que recomenda a maximização desta atitude. Na hierarquia dos princípios de cortesia, vêm, em segundo lugar, os princípios orientados para o locutor (L-orientados), distinguindo, desta vez, entre princípios favoráveis a L (II-A) e princípios desfavoráveis a L (II-B). No que toca a II-A, regista-se apenas um princípio (II-A-1), o qual recomenda que L deverá salvaguardar, tanto quanto possível, os seus próprios territórios de, por exemplo, intrusos e inoportunos, bem como não fazer promessas impensadas. Mas, por outro lado, não deve arrastar nem permitir que lhe “arrastem a face pela lama”, isto é, que a sua imagem seja injustamente atacada, do que resulta, como consequência, ter de responder a críticas, ataques, insultos, ou seja, à defesa da honra e dignidade.32 A cortesia positiva não propõe qualquer princípio favorável a L. Nas sociedades ocidentais, «on ne saurait raisonnablement admettre, parmi les principes constitutifs du savoir-vivre, quelque chose comme “faites votre propre éloge”». A não ser em circunstâncias especiais, «le plaidoyer pro domo est proscrit dans notre société, qui juge sévèrement les manifestations trop insolentes de auto-satisfaction.»33 Ou seja, a protecção da nossa própria face positiva não aconselha a sua valorização ostensiva, por modéstia, ou seja, por cortesia para com o outro. 34 Acontece, pelo contrário, encontrar-se frequente32 Para este princípio, Kerbrat-Orecchioni não indica qualquer correspondência com máximas de Leech. Id.: 184. 34 Uma excepção: «l’auto-glorification est de règle chez les hommes politiques – mais c’est justement qu’ils sont “fous” (la normalité, c’est bien la modestie)». [Id.: 188] A preocupação com a própria face faz com que algumas figuras, mais ou menos públicas, tenham assessores para que lhes façam e/ou protejam a imagem. A título de exemplo, veja-se esta passagem duma crónica de José Júdice: «Ninguém poderá […] levar a mal que se questione por que razão o Dr. Judas, que mesmo não sendo nenhuma Cláudia Schiffer […], precisa de quatro assessores que custam mil contos por mês para lhe tratarem da imagem. A explicação mais plausível, atendendo ao seu passado comunista e sindicalista, é que serão todos muito ciosos das suas funções profissionais. O “assessor de imagem” ajeita-lhe a gravata e transporta a fita métrica para conferir se a barba é mesmo de três dias, a fotógrafa fotografa, e os dois assessores para a “comunicação social” distribuem as fotos pelo público. Se for isso, até se poderia elogiar a contenção de despesas do Presidente de Cascais por não ter assessores avençados para bater palmas. Suponho que estes sejam voluntários. Há gente para tudo.» [24 Horas, 10-03-00] Mas há também quem se encarregue ou seja encarregado de destruir a boa imagem / face pública de pessoa ou mesmo instituição. A política é fértil em exemplos. Ora veja-se esta passagem duma crónica de Pedro Cid, a qual, tal como a anterior, tanto mostra os cuidados de figuração como de desfiguração: «Há uma clara tentativa para destruir, na opinião pública, a imagem de Durão Barroso, depois de ter sido “cultivada” como a esperança do PSD no regresso ao poder. / Tudo tem servido para denegrir o líder do PSD: a falta de jeito para passar mensagens políticas, a inabilidade no contacto humano com os eleitores, as eternas dúvidas quanto à sua capacidade para ser primeiro-ministro de Portugal.» [Jornal de Notícias, 01-10-99] 33 141 mente, no sistema de cortesia, regras que jogam, sobretudo, a desfavor do locutor. São os princípios II-B. O princípio II-B-1 propõe que, a ter de se fazer o nosso próprio elogio, recorramos, por exemplo, a processos de indirecção discursiva ou a figuras retóricas, como o litote, a metáfora, a ironia, ou a outros processos de substituição ou de minimização. À alínea a) do princípio II-B-1 corresponde a submáxima da generosidade de Leech, segundo a qual o locutor deve minimizar o benefício em relação a si próprio, enquanto à alínea b) do mesmo princípio corresponde a submáxima da modéstia, segundo a qual o locutor deve evitar os auto-elogios. Mas se a auto-glorificação é, em princípio, socialmente proscrita, já a autodegradação da(s) face(s) é, regra geral, socialmente prescrita. Pode até dizer-se que a heterocortesia passa, frequentemente, pela autodescortesia. Estamos no âmbito do princípio II-B-2, que defende comportamentos aparentemente «masoquistas». Por modéstia, tendo em vista o bom relacionamento interpessoal – de cortesia, em suma – lesamos os nossos territórios, ou degradamos, sincera ou insinceramente, a nossa face positiva, conforme os contextos. Este princípio corresponde a submáximas de Leech: à alínea a) de II-B-2, a submáxima da generosidade, segundo a qual o locutor deve maximizar os custos em relação a si próprio, e à alínea b) de II-B-2, a submáxima da modéstia, segundo a qual o locutor deve maximizar a autodegradação, máxima que não deixa, todavia, de causar alguma perplexidade. «Comment expliquer un principe aussi peu “naturel” que cette loi de modestie?», pergunta Kerbrat-Orecchioni. Eis a resposta, que recorda o que chamámos efeito de boomerang: «s’il n’est pas convenable d’exalter sa propre face positive, c’est parce qu’un tel comportement atteint indirectement, par un mouvement inverse de dévalorisation implicite, la face d’autrui; s’il ne faut pas se rehausser soi-même, c’est que cela risque de rebaisser l’autre, et s’il convient parfois de se rabaisser, c’est qu’il y a des chances pour que l’autre s’en trouve du même coup rehaussé.»35 É evidente, pelas correspondências estabelecidas entre os princípios e as máximas, que a teoria de Leech, mesmo formulada em termos diferentes, não se afasta, no essencial, da teoria de Brown & Levinson. Com efeito, no sistema de máximas e sub35 KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 188. 142 máximas em que o PCa se desenvolve, encontram-se os três eixos acima referidos. Os princípios L-orientados e A-orientados podem ser identificados com as submáximas que, no quadro teórico de Leech, orientam os actos para o «self» e o «other», respectivamente. Por outro lado, os processos de minimização de actos descorteses e a maximização de actos corteses são integrados nas noções, respectivamente, de cortesia negativa e cortesia positiva. Aliás, o próprio Leech utiliza estas noções,36 as quais diz ter colhido, explicitamente, em Brown & Levinson.37 O terceiro eixo – face negativa vs. face positiva – corresponde, por um lado, às máximas do tacto e da generosidade, e, por outro, às máximas de aprovação, modéstia, acordo e simpatia. Com efeito, as noções de “custo” e “benefício” das primeiras remetem para a noção de face negativa, porque, como observa Kerbrat-Orecchioni, «le coût est une lésion, et le bénéfice un accroissement territorial», enquanto as outras dizem respeito à face positiva.38 Aliás, Leech afirma que «speech acts are like other kinds of action in involving some cost or benefit to s[peaker] or h[earer]» e que alguns deles por exemplo, as perguntas - podem exigir não só «some cooperative effort on the part of the person addressed», mas também serem vistos como «a serious imposition in that they threaten the privacy of h».39 A este propósito, o autor considera também relevantes os estudos de Goffman «on face and territories of self.»40 Os fenómenos da cortesia verbal não são, todavia, tão lineares e simples quanto a descrição pode sugerir. Com efeito, nem sempre é fácil determinar, com precisão, por exemplo, se um acto verbal é cortês ou descortês; se ele ameaça, protege ou valoriza a face de cada um dos interlocutores, ou as faces de ambos ao mesmo tempo, ou ora as de um ora as de outro; se os actos de cortesia são verdadeiros ou fingidos; se são estratégias para relações de cortesia, ou estratégias de cortesia para outros fins, etc. Pode-se até dizer que a prática de uns princípios entra em conflito com o que determinam outros, parecendo pôr em causa a validade do sistema. Daí, também, que nem sempre seja fácil 36 «Negative politeness [...] consists in minimizing the impoliteness of impolite illocutions, and positive politeness consists in maximizing the politeness of polite illocutions». [LEECH, 199610: 83-84] 37 «The ‘positive’ and ‘negative’ aspects of politeness derive from Brown and Levinson’s distinction between positive and negative face [...], and their consequent distinction between positive and negative politeness». [LEECH, 199610: 102, nota 1]. Leech remete, obviamente, para a referência bibliográfica BROWN & LEVINSON, 1978. Cf., a propósito, supra, cap. II, pp. 106-106, nota 4. 38 KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 183. 39 LEECH, 199610: 140. 40 Id.: 150, nota 4. 143 reconhecer o tipo de relação interpessoal que, através desses actos, os interlocutores estabelecem, alteram ou denegam. Concluímos, todavia, com Kerbrat-Orecchioni: «Les règles qui composent le PP41 sont complexes et contradictoires. Pour les respecter tant bien que mal, il nous faut souvent nous résoudre au compromis (être poli, c’est savoir composer), et nous livrer à des contorsions qui peuvent être plus ou moins élégantes ou boiteuses. Mais l’essentiel est qu’elles soient suffisamment souples pour que les situations de double contrainte dans lesquelles elles nous plongent ne soient pas sans issue – ce sont en quelque sorte à des double binds mous que l’on a généralement affaire dans la vie quotidienne. Les règles interactionnelles ne sont pas tyranniques au point que l’on ne puisse avec elles louvoyer, et se tirer honorablement de ce travail d’équilibriste qu’elles nous imposent. Il y a dans le fonctionnement des interactions beaucoup de “jeu”, et c’est ce qui permet aux sociétés humaines de ne pas sombrer dans une schizophrénie collective qui serait sinon inéluctable.»42 2.1. Processos linguísticos de cortesia Kerbrat-Orecchioni, na sequência aliás do que fazem Brown & Levinson, também inventaria e descreve processos linguísticos que, aos níveis da cortesia negativa e da cortesia positiva, o locutor pode utilizar em relação ao seu interlocutor e/ou a si próprio, dentro dos parâmetros dos sistemas de faces e de cortesia acima descritos. Segundo a autora, estes sistemas são incontornáveis, porque estão implicados, a todos os níveis, no funcionamento das interacções e, por isso, «sont susceptibles de rendre au linguiste des services considérables», na análise dos observáveis.43 O cumprimento dos princípios de cortesia manifesta-se tanto a nível verbal, como aos níveis do paraverbal e do não verbal. Aqui interessam-nos, apenas, as realizações verbais que expressam comportamentos corteses ou descorteses, no decurso duma interacção verbal, tanto em sentido estrito como em sentido lato. A cortesia ou a sua 41 PP = Politeness Principle ou Principe de Politesse. A sigla funciona tanto para a forma inglesa como para a francesa. PP (que traduzimos por princípio de cortesia, PCa) não corresponde, nesta citação, inteiramente, ao PP de Leech, acima descrito. Kerbrat-Orecchioni admite, contudo, tal como Leech, um PP, mas com uma formulação diferente, como vimos, e que em Português se pode traduzir por «Cuidemo-nos uns aos outros!», ou «Respeitemo-nos uns aos outros!», ou «Amemo-nos uns aos outros!» 42 KERBRAT- ORECCHIONI, 1992: 288-289. Para uma descrição desenvolvida e exemplificada das “contradições” e “paradoxos” relativos ao cumprimento (ou não) das regras de cortesia e sua explicação, cf. id.: 241-321 (cap. 3). 43 Id.: 193. 144 falta torna-se mais evidente, sem dúvida, quando recorre às fórmulas, isto é, a realizações estereotipadas, ritualizadas e rotineiras que, devido ao seu uso recorrente e mais ou menos institucionalizado, se encontram já lexicalizadas e gramaticalizadas. Mas a cortesia linguística realiza-se também através de formas que os interactantes criam ou recriam no decurso da interacção, algumas das quais revelando construções discursivotex-tuais de certa subtileza, que só o contexto e a dinâmica da interacção poderão ajudar a reconhecer, a interpretar e a aceitar ou a rejeitar, por excesso ou por defeito de cortesia. Dos interactantes que utilizam umas e outras, conforme os contextos, se pode dizer que possuem (também) uma competência de cortesia (obrigatoriamente incluída na macrocompetência comunicativa44) que se manifesta através de processos não verbais, paraverbais e verbais, que vão da prioridade e tomada de palavra nos turnos de fala, à organização das trocas verbais e sucessão das intervenções, do tipo de actos de fala às formas mais ou menos formais de cortesia.45 Vem a propósito observar que a competência de cortesia verbal é resultado da educação, duma aprendizagem que acompanha a aquisição da própria língua materna, mas que, em nosso entender, a escola deve continuar, desenvolver e aprofundar, tal como o faz em relação aos aspectos gramaticais e linguísticos, o mesmo valendo para o ensino-aprendizagem das línguas segundas e das línguas estrangeiras. Observa Kerbrat-Orecchioni que, por mais difíceis que sejam de explicitar, as regras de convivência social «sont intériorisées par l’enfant en même temps que les règles plus spécifiquement linguistiques».46 A propósito, a linguista refere vários estudos que põem em evidência a aprendizagem, segundo os estádios de desenvolvimento da criança, dos diferentes comportamentos discursivo-textuais que constituem aspectos da competência de cortesia, como exigência familiar e social.47 44 «To function as members of a culture, speakers must have a high degree of communicative competence. They must know how to speak appropriately in given situations: what degree of respect is appropriate, what markers of politeness are required, what rules governing turn-taking are in force, and much more.» [CHIMOMBO & ROSEBERRY, 1998: 6] Carlos Gouveia considera que a «delicadeza» (é a designação que utiliza) integra a competência comunicativa do falante, a par duma «competência social», isto é, «saber que determinados contextos situacionais requerem da sua parte um comportamento linguístico e social mais formal, quando comparados com outros contextos em que tal não lhe é exigido.» [GOUVEIA, 1996 : 409] 45 A breve descrição de competência comunicativa de Chimombo & Roseberry (cf. nota anterior) aproxima-se muito desta noção de competência de cortesia. Sobre a organização estrutural das interacções verbais, cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1990 e, resumo, em 1996: caps. 3-6, bem como, supra, cap. I, 1.2.] 46 KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 128. 47 Cf. id.: 128-130 e sobretudo 294-300, onde se encontra abundante bibliografia sobre o tema. 145 Segundo a linguista, a aprendizagem das regras de cortesia pela criança é uma aquisição que se inscreve no âmbito da competência pragmática: «Il va de soi que la politesse n’a rien de “naturel”: elle n’est nullement indispensable à la satisfaction des besoins élémentaires de l’individu. Mais au fur et à mesure que se développe chez l’enfant le sentiment du “territoire” et de la “face” (sentiment précoce, et puissant), et que se multiplient les conflits à ce sujet, apparaît la nécessité de réguler ces conflits par les procédés du “face work”. D’autre part, au fur et à mesure que l’enfant se socialise, il lui faut intérioriser les règles rituelles qui gouvernent les relations interpersonnelles – on peut remarquer que la langue française dit “bien élevé” l’enfant poli: l’éducation, et par un dressage systématique (techniques de sollicitation, répétition, correction, évaluation – “Dis bonjour à la dame”, “Merci qui?”, etc. – bien décrites par Greif 1984).»48 Haverkate, por seu turno, refere que a importância sociocultural da etiqueta «es la causa de que, hasta el día de hoy, sea corriente que los padres se esfuercen por enseñarles a sus hijos las normas vigentes de cortesía, desde el momento en que éstos dicen sus primeras palabras», certamente porque «se dan cuenta de que el camino por recorrer es largo». Trata-se duma aprendizagem lenta e progressiva, relativamente aos sistemas fonológico e morfossintáctico. Segundo refere o autor, esta diferença tem uma explicação natural: «desde un punto de vista puramente racional, las normas de la cortesía verbal van contra la claridad y la eficacia comunicativa», uma vez que «los niños tienden a orientarse hacia el componente proposicional y al objeto ilocutivo de las locuciones que producen, sin tener en consideración los factores interactivos [...] distancia social, poder y grado de imposición.»49 Consideramos, nesta ordem de ideias, que a descrição dos diferentes processos verbais de cortesia e de descortesia é, pelo menos, tão importante quanto as descrições gramaticais e linguísticas. Em nosso entender, tão importante é, por exemplo, saber classificar as palavras duma língua e descrever a sua combinação frásica e organização textual, como saber, por exemplo, que essa combinação e essa organização são também 48 Id.: 295. A autora refere E. B. Greif, 1984: «What’s the Magic Word: Learning Language throught Politeness Routines», Discourse Processes, 7-4: 493-502. A propósito do sentimento que cedo as crianças começam a ter da sua face (negativa e positiva), Kerbrat-Orecchioni refere que estudo de H. Jisa mostra muito bem que «dès les premières années les enfants ont un sens aigu de leur territoire (possessions, territoire spatial et corporel), ainsi que de leur face (exemple du “lalalalère” lancé par l’une des fillettes étudiées pour défier la seconde); et que la grande majorité des disputes entre les enfants de deux ou trois ans trouvent leur source dans des conflits territoriaux ou des querelles d’amour-propre – ce qui apporte évidemment de l’eau au moulin de la théorie de Goffman et Brown & Levinson.» [Id.: 295, nota 1] 49 HAVERKATE, 1994: 11e 42. 146 uma exigência (ou consequência) do tipo de relação que temos ou julgamos ter, ou que desejamos estabelecer, recuperar, anular, manter e/ou desenvolver com os nossos interlocutores. Saber, por exemplo, que determinadas palavras e expressões se usam ou não usam conforme os contextos, mas também por que razões as usamos, isto é, saber que tais usos ou abusos têm muito a ver com o sistema de cortesia vigente numa dada cultura e comunidade, e com o(s) efeito(s) de cortesia ou de descortesia que queremos ou não produzir, com as relações interpessoais de proximidade, indiferença ou distanciamento, dos diferentes graus de concórdia, discórdia ou conflito que temos ou queremos ter com quem (nos) encontramos e com quem con-vivemos. A aprendizagem (ou a sua reaprendizagem em termos actuais) das formas verbais e não verbais de cortesia começa a sentir-se, em Portugal, como uma necessidade educativa, a nível familiar e escolar. Ao nível do «socialmente correcto» (para utilizarmos o título do livro que é já um best-seller50), observa Bobone que a educação «serve, tal como a gramática para as línguas, para tornar natural e espontâneo aquilo que foi aprendido e assim fazer parte do automatismo das reacções.» Defende, por isso, que a educação «deve ser transmitida às crianças por um processo de impregnação familiar quotidiano», pois só assim a sua eficácia e profundidade permanecerão «para toda a vida». E acrescenta, mais adiante, que pais e encarregados de educação, «por várias razões, vêem-se constrangidos a remeter para as escolas, sem resultados garantidos, a resolução dos problemas de educação e boas maneiras de seus filhos». Considera, por isso, que «seria desejável que os professores voltassem a ensinar os conceitos elementares de cortesia e civismo aos mais pequenos, como aconteceu em tempos não muito distantes.»51 A educação familiar, escolar e social das crianças deve contemplar, de facto, também esta vertente de formação prática dos diferentes comportamentos e expressões de cortesia. Mas não só em relação às crianças. Também os adultos estão a precisar de acções de formação contínua e continuada neste domínio.52 No que ao nosso estudo diz 50 O lançamento recente e o sucesso editorial, em Portugal, de alguns livros sobre etiqueta e boas maneiras não deixa de ser significativo, a este respeito. Repare-se, a título de exemplo, que o livro de Bobone, Socialmente Correcto, publicado em 1999, ia já, em Março de 2002, na 16.ª edição. 51 BOBONE, 1999: 26 e 28. 52 A este respeito, é de recordar o editorial dum jornal diário, intitulado precisamente «Educação»: «A falta de educação e o excesso de dinheiro são uma mistura explosiva para qualquer sociedade. A portuguesa não foge à regra e os seus efeitos nefastos estão a afectar seriamente a vida de muitos cidadãos que tiveram a sorte de ser educados pelos seus pais a viver civilizadamente e a respeitar escrupulosamente regras básicas de convívio com os seus semelhantes. São princípios velhos como os tempos, que não se aprendem nos livros nem nos bancos da escola. São princípios elementares que deveriam acompanhar qualquer ser humano desde o berço. São princípios que 147 directamente respeito, defendemos que é analisando, descrevendo e sistematizando os diferentes processos verbais, a nível linguístico e discursivo-textual, que se compreende a utilização de determinadas formas e fórmulas (pense-se, por exemplo, nas interjeições) cujo uso corrente e abundante levou à sua dessemantização (total ou parcial), mas que uma análise contextualizada faz relevar os seus valores semântico-pragmáticos, cuja importância, a nível discursivo-textual, não podem deixar de ser considerados. Será possível, até, recuperar funções e valores linguísticos que se haviam perdido ou esquecido. Regressamos, assim, ao sistema de cortesia proposto por Catherine Kerbrat-Orecchioni e aos processos linguísticos da sua expressão. A linguista inventaria e descreve as manifestações linguísticas de cortesia negativa e de cortesia positiva, incluindo, no conjunto das primeiras, as estratégias off record de Brown & Levinson, isto é, o recurso a processos de indirecção discursiva. Aos processos verbais de cortesia negativa, através dos quais os interlocutores, por abstenção ou compensação, atenuam a potencial descortesia de um acto de fala, chama Kerbrat-Orecchioni atenuadores («adoucisseurs»53), que divide em substitutivos e acompanhantes.54 não se compram com dinheiro. Na falta deles, as sociedades modernas recorrem cada vez mais a normas escritas, regras publicadas, códigos, deontológicos ou de outra natureza, regulamentos e até à tolerância zero nas estradas para evitar que os cidadãos se matem e matem outros seres humanos. É evidente que esta procura desesperada de balizas para tornar a vida suportável não resolve o problema da falta de educação. Apenas adia o diagnóstico e as soluções para a verdadeira crise de valores e princípios que assola as sociedades, em que a portuguesa não é, obviamente, excepção. / Uma vez por outra, Portugal agita-se com polémicas absurdas sobre questões básicas de educação e civismo. Agora, discute-se se é ou não legítimo escutar e tornar públicas conversas alheias. Por este andar, amanhã estaremos a elaborar teses profundas sobre a legitimidade de se espreitar pelo buraco da fechadura ou ouvir o que se passa na casa do vizinho. Velhos tempos em que os pais ensinavam os filhos a cultivar a virtude da discrição. Dentro e fora de casa. A sociedade portuguesa não precisa de mais normas, proibições, códigos ou tolerâncias zero. O que faz falta é educação. [...] Mas da que se aprende desde o berço e que não há livro de boas maneiras que substitua. Com educação evita-se muita coisa. Até os disparates.» [António Ribeiro Ferreira, Diário de Notícias, 01/12/99] 53 KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 196 e 1996: 55. Brown & Levinson designam tais estratégias por softners [cf. BROWN & LEVINSON, 19966: 70], que estudiosos espanhóis também traduzem por atenuadores [cf. BLANCAFORT & VALLS, 1999: 169]. Há, porém, autores que propõem outras designações. Para uma amostragem, até porque «la terminologie est en la matière profuse», cf. KERBRATOREC-CHIONI, 1992: 196. A propósito, é de referir que alguns autores tomam «hedges» como sinónimo de «softners». Kerbrat-Orecchioni retoma e usa o termo «hedges», segundo a definição dada por Lakoff («words whose job is to make things fuzzier or less fuzzy»), considerando-o, todavia, não ser equivalente a «softners». Para a linguista francesa trata-se de processos que, ao nível da cortesia negativa, acompanham a formulação de FTA’s dirigidos ao A[locutário] e que, não sendo formas de modalização propriamente dita, classifica, todavia, como marcadores de cortesia «próximos dos modalizadores» de proximidade ou distanciamento. Interpretando a definição de Lakoff, escreve que se trata de «mettre en évidence le flou qui caractérise les notions que l’on manipule en langue naturelle, et l’existence dans le lexique de nombreux marqueurs d’approximation (ou de non-approximation), dont la fonction est de spécifier la relation, plus ou moins étroite ou lâche, que le référent dont on parle entretient avec le prototype». Depois de apresentar exemplos destes marcadores, conclui que eles têm, ao nível da cortesia, uma função semelhante à dos modalizadores, isto é, «arrondir les angles d’une assertion pour lui donner des allures moins terroristes (et en même temps plus prudentes).» [KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 222 e 223] Meyer- 148 Apresentamos a seguir os principais processos linguísticos e discursivo-textuais, através dos quais os interlocutores procuram ser corteses, consciente ou inconscientemente, sinceramente ou não. A. PROCESSOS DE CORTESIA NEGATIVA55 A.1. Substitutivos: substituição duma formulação explícita dum FTA por uma formulação mais suave. Para o efeito, o locutor pode recorrer: A.1.1. à indirecção (v.g. pergunta e asserção por ordem; pergunta por censura ou refutação; confissão de incompreensão por crítica...); A.1.2. a desactualizadores modais (utilização ou combinação de modalidades...), temporais (condicional, imperfeito, futuro...) e pessoais (apagamento do(s) interlocutor(es), através da passiva, da impessoalização, da indefinitização...); A.1.3. a pronomes pessoais [vós de cortesia, por tu; nós de solidariedade ou modéstia, por eu, em caso de vitória (v.g. “Ganhámos”, por “Ganhei”), ou por tu, em caso de derrota (“Perdemos”, por “Perdeste”)...]; A.1.4. a figuras de estilo (enálage, litote, eufemismo, ironia, metáfora...); A.1.5. ao tropo comunicacional: processo discursivo de natureza retórica que, para ser cortês, «consiste à feindre d’adresser un énoncé menaçant à quelqu’un d’autre que celui auquel on le destine véritablement.» 56 A.1.6. outros processos ... Hermann utiliza o termo empregue por Brown & Levinson, de quem cita a definição: «A ‘hedge’ is a particle, word, or phrase that modifies the degree of membership of a predicate or a noun phrase in a set» [BROWN & LEVINSON, 1978: 150, cit. por MEYER-HERMANN, 1984: 179-180] Contudo, os autores de Politeness, ao esclarecerem a definição, acrescentam: «it says of that membership that it is partial, or true only in certain respects, or that it is more true and complete than perhaps might be expected (note that this latter sense is an extension of the colloquial sense of ‘hedge’).» [BROWN & LEVINSON, 1987: 145]. De assinalar que Meyer-Hermann indica, a seguir, ao «hedge» dever, «-verbos modais-» [MEYER-HERMANN, 1984: 180] Carreira, por seu turno, traduz «hedges» para Francês por «protecteurs». E a propósito, comenta a tradução literal de «hedge» por «sebe», por não lhe parecer a melhor solução, «car en anglais il ya des expressions du type “to hedge in answering”, “répondre à côté, éviter de répondre”, “don’t hedge”, “dis-le franchement / directement”, ce qui n’est pas le cas en français ni en protugais.» [CARREIRA, 1995: 211 e nota 2] Haverkate, por seu turno, toma «hedge» como sinónimo de «softner»: «La modificación de la proposición por cortesía se hace de varias formas. Una de las estrategias principales consiste en emplear atenuantes, término que corresponde al inglés hedge. Podríamos definir el atenuante como una partícula, palabra o expresión que sirve para modificar el significado de un predicado de forma que se indique que ese significado sólo se aplica parcialmente al objeto descrito.» [HAVERKATE, 1994: 209] 54 Em KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 214, a linguista chama «additifs» a estes «adoucisseurs». 55 Para inventário, descrição e exemplificação de processos verbais, paraverbais e mesmo não verbais, ao nível da língua francesa, cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 195-227, e resumo em 1996: 55-59. 56 KERBRAT-ORECCHIONI, 1996 : 57. Cf. também 1990: 92-98, 1992: 212-213; 1996: 19-20; e sobretudo 1986: 93-157, para «uma teoria standard desenvolvida» do conceito. A estratégia do tropo comunicacional pode ser incluído nos processos de referência e tratamento delocutivos propostos por CARREIRA, 1995: 24-25, ou, infra, cap. V, 1.2. 149 A.2. Acompanhantes: consistem em fazer acompanhar um FTA de outros processos «qui sont autant de gants que l’on prend pour ménager les faces délicates de son partenaire de l’interaction.»57 Por exemplo, a formulação de um FTA pode ser atenuada, fazendo-a acompanhar de: A.2.1. fórmulas de cortesia especializadas, já lexicalizadas e por isso convencionais (v.g., “Se faz favor”, “Por favor”...); A.2.2. um enunciado “preliminar” (ou simplesmente “pré-”, segundo os conversacionalistas58), mais ou menos convencional [v.g., “Posso pedir-lhe(te) um favor?”, “Posso fazer-te uma pergunta?”, “Posso fazer(-te) um (pequeno) reparo?”, “Estás livre logo à noite?” ...]; A.2.3. pedido de desculpa ou duma ou mais justificação ou explicação [v.g., “Peço-lhe desculpa (por interrompê-lo, incomodá-lo), onde ficam os correios?”, “Esqueci-me do relógio em casa, que horas são?” ...];59 A.2.4. minimizadores, que parecem reduzir a ameaça do FTA [v.g., “Eu queria simplesmente fechar a porta...”, “Podes dar-me um pouco de atenção...”, “Dá-me aqui uma mãozinha / uma pequena ajuda”...]; A.2.5. modalizadores (v.g., “penso”, “creio”, “acho”, “tenho a impressão”, “parece-me”, “sem dúvida”, “provavelmente”, “cá para mim”, “em meu entender” ...); A.2.6. “desarmes por antecipação” («désarmeurs»), prevendo e prevenindo uma possível reacção negativa do destinatário (v.g., “Não queria interromper-te / importunar-te / incomodar-te / distrair-te, mas ...”, “Não leves a mal, mas ...”, “Sei que não gostas de emprestar os teus CDs, mas ...”); A.2.7. acariciadores («amadoueurs»), espécie de “rebuçado que ajuda a engolir a pílula” (v.g., “Passa-me o pão, meu anjo”; “Tu que costumas saber tudo, diz-me...”; “Empresta-me os teus apontamentos, tu que sabes tirá-los tão bem...”60); A.2.8. outros processos... Kerbrat-Orecchioni termina o inventário dos processos de cortesia negativa, observando que: 57 KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 57. «Ces annonces, qu’il est devenu usuel, depuis certain article de Schegloff (1980), d’appeler des “pré-” (“préliminaires”, énoncés “préparatoires”, “précautions”, “préfigurations”, et “préfaces”).» [KERBRAT-ORECCHIONI, 1992 : 215] 59 Dada a importância e frequência destes processos, a linguista dedica-lhes estudos específicos em KERBRAT- ORECCHIONI, 1994: 149-197 e 1996: 83-88, para os seus aspectos essenciais. 60 Nos diálogos que trava com os seus principais interlocutores, a Salta-Pocinhas do Romance da Raposa de Aquilino Ribeiro recorre, frequentemente, a este tipo de «carícias verbais», como se verá, no cap. XV. 58 150 a) é rica e variada a panóplia de atenuadores que cada língua põe à disposição dos seus utilizadores; b) os diferentes processos atenuadores são cumuláveis; c) os atenuadores têm também o seu lado negativo - os intensificadores («durcisseurs») dos FTA’s - cuja panóplia de processos é semelhante e cuja função discursivo-textual consiste em reforçar o acto de discurso em vez de o amortecer, e de aumentar o seu impacto em vez de o atenuar; d) a utilização de atenuadores e intensificadores é, todavia, muito diferente: com excepção dos casos especiais de interacções altamente agonais, os intensificadores negativos («durcisseurs») são muito mais raros e «marcados» do que os intensificadores positivos («adoucisseurs»), no acompanhamento dum FTA, pelo menos. Porque, no caso dos FFA’s, é precisamente o contrário o que verifica, como se passa a ver, a propósito dos processos de cortesia positiva.61 B. A. PROCESSOS DE CORTESIA POSITIVA Os processos linguísticos deste tipo dizem respeito, essencialmente, à produção de FFA’s que se manifestam através de actos de acordo, ofertas, convites, cumprimentos, agradecimentos, fórmulas votivas e de boas-vindas, etc. Ao contrário dos FTA’s, o seu funcionamento é, por um lado, muito mais simples e, por outro, a sua realização vem acompanhada, geralmente, de intensificadores. Porque, «d’une manière générale, les locuteurs ont tendance à adoucir la formulation des actes menaçants, et à renforcer celle des actes valorisants; à litotiser les énoncés impolis et hyperboliser les énoncés polis».62 Assim, por exemplo, quando se agradece um favor, um presente ou um cumprimento, um gesto de simpatia, diz-se não apenas «Obrigado !», mas também, intensificando-se a gratidão, real ou fingida, «Muito obrigado!», ou «Muitíssimo obrigado!», ou «Fico-lhe/te muito grato/agradecido por tudo!», etc. A intensificação, nestes casos, é tão natural e aceitável, consoante os contextos, que é pragmaticamente «agramatical» minimizar o agradecimento, dizendo, por exemplo, como fórmula de agradecimento *Pouco obrigado!63 61 A síntese das observações que elaborámos baseou-se em KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 58-59 e 1992: 223-227. 62 KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 59. Para descrição e desenvolvimento, cf. 1992: 227-233. 63 Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 59. 151 Sendo ou não sincero, mas sendo cortês, diz-se à dona de casa, reforçando uma apreciação positiva, que o arroz de cabidela estava uma delícia; ou então, voltando a ser cortês, amenizando-se uma apreciação negativa (apesar de tudo menos frequente), afirmando que a sopa estava um pouquinho salgada, para o meu gosto, minha amiga! Não é, porém, só ao nível dos actos discursivo-textuais que se manifesta a cortesia verbal. Também ao nível da organização preferencial das trocas verbais. A este nível, Kerbrat-Orecchioni defende, como princípio geral, que «dans le paradigme des enchaînements possibles à un acte de langage donné, les différents types de réaction n’ont pas tous le même statut, ni le même degré de probabilité: certains sont “préférés” (ou non marqués), et d’autres sont “non préférés” (ou marqués)».64 Estes reconhecemse pela sua formulação com alguma demora, frequentemente precedidos de marcadores de hesitação e apresentarem formulações mais elaboradas que os primeiros. É por isso que os encadeamentos favoráveis são, regra geral, mais corteses e, consequentemente, preferidos aos encadeamentos desfavoráveis, que são descorteses e por isso não preferidos. A título de exemplo, comparem-se as duas interacções verbais (IVa e IVb) seguintes, retiradas d’O Malhadinhas de Aquilino. IVa é dominada pela relação de cortesia verbal entre os interactantes, Rita [R] e Malhadinhas [M], onde paira um jogo mútuo de seduções afectivas. IVb é dominado pelas descortesias verbais entre M e Brízida [B], onde o conflito afectivo é evidente. IVa 64 IVb KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 61 e, para a respectiva descrição desenvolvida, 1992: 233-239. 152 [R1] – Durma bem e sonhe com os santinhos... [B1] – Que há, primo? [M1] – Vou sonhar com a Rita que também é [M1] – Chega aqui – [...] – Anda comigo... santinha... [R2] – Ui! sou uma peste; lá que sonhe comigo, não acredito. [M2] – Acredite que hei-de adormecer – se puder adormecer! – a pensar em si... [R3] – Jure lá... [M3] – Pela luz dos meus olhos! [R4] – Então também hei-de adormecer consi- [B2] – Aonde? [M2] – Aonde, eu to direi. Põe a roca! [B3] – Quero saber primeiro... [M3] – Mau! [B4] – Quero saber... Senti-a estrebuchar, com ganas de semear alarme, e rapei da faca: [M4] – Vês esta folha? Tem-se farto de matar go no pensamento – e, ditas estas palavras com a cabras. Não queiras tu espetar-te nela, depois espesua risadinha, voltou a cara e fugiu.65 tar-me eu!66 Em IVa, as intervenções, além de fáticas, ou melhor, uma intervenção fática por natureza é transformada em sequência também transaccional. Os interactantes entregam--se a trocas de valorização mútuas das respectivas faces positivas, com R, inclusive, a autodegradar-se, como resposta, recusa cortês, por modéstia, dos presentes verbais recebidos. Repare-se que as intervenções de cada interactante são relativamente desenvolvidas, não se limitando, em geral, aos actos directores. Repare-se, ainda, que esta sequência podia ter-se limitado a uma troca verbal simples cortês (grau zero de cortesia, digamos) de Boa noite! Esta sequência verbal desenvolve-se em cortesias verbais (FFA’s) mutuamente dirigidas. Em IVb, uma vez iniciado o diálogo, as intervenções, tanto de B como sobretudo de M, situam-se fora do quadro da cortesia verbal. Trata-se duma série de actos directivos não acompanhados de justificações ou explicações e, por isso, limitados apenas aos actos directores, com excepção da intervenção [M4], onde os actos subordinados, todavia, não atenuam a directividade e a descortesia, antes as intensificam. É certo que o contexto (incluindo o narrativo) não permitia que nem M, pelas intenções inconfessadas que tinha (raptar B), nem que B, por carácter, condição e reacção, se entregassem a cortesias. Mas o que se vê e mostra é que os actos corteses e descorteses têm influência na organização e composição das práticas discursivo-textuais que constituem. 2.2. A importância das variantes sociais 65 RIBEIRO, 1989: 45. Rita, filha de abastado lavrador, sente-se afectivamente atraída por Malhadinhas, que na altura tinha rompido o namoro com a prima Brízida. 66 Id.: 51. O diálogo prepara o rapto que Malhadinhas fez de Brízida. 153 O efeito de cortesia depende, como defendem os especialistas, a começar, como vimos, pelos fundadores da cortesia linguística, dos factores ou variantes sociais D e P, isto é, das relações de distanciamento e de poder existentes ou presumidas entre os interactantes, além de outros aspectos contextuais. Tais factores estão na origem, respectivamente, das relações horizontais e verticais67 que os interactantes estabelecem ao longo duma interacção verbal. Kerbrat-Orecchioni, comentando a incidência dos factores sociais no funcionamento da cortesia,68 fala de um terceiro tipo de relação interpessoal, conforme «sa tonalité est plutôt consensuelle ou au contraire conflictuelle», acrescentando que «les affinités sont ici claires entre consensus et politesse, conflit et impolitesse».69 Além disso, reconhece que as formas de tratamento, desde as mais simples às honoríficas, além de marcadores claramente relacionais, são fenómenos que «même s’ils ne sont pas toujours envisagés comme tels, s’inscrivent bien dans le cadre plus général de la politesse.»70 As formas verbais que manifestam as distâncias (horizontal ou vertical) entre os interactantes inscrevem-se, assim, também no conjunto dos fenómenos e princípios de cortesia, e devem, por isso, ser incluídas no conjunto dos respectivos marcadores ou processos discursivo-textuais. Aliás, “respeitar as distâncias”, ou seja, o estatuto social, a idade, o sexo, a profissão, o cargo, a habilitação académica, os gostos, o conhecimento mútuo, a situação, etc., é uma regra do viver socialmente correcto. Aos marcadores linguísticos e discursivo-textuais que manifestam, ao nível das distâncias horizontal (ou de relação proxémica71) e vertical (ou de relação taxémica72), as relações entre os interlocutores, chama Kerbrat-Orecchioni, respectivamente, rela67 A distância ou relação horizontal «renvoi au fait que, dans l’interaction, les partenaires en présence peuvent se montrer plus ou moins “proches” ou au contraire “éloignés”». Existe, assim, um eixo horizontal, gradual e simétrico, orientado, de um lado, para a familiaridade e intimidade, e, do outro, para o distanciamento. O poder, ou relação vertical (também dita de poder, hierárquica ou de dominação) estabelece uma “relação de lugares” entre os interlocutores: «cette dimension renvoi au fait que les partenaires en présence ne sont pas toujours égaux dans l’interaction». Assim, um deles pode ocupar uma posição alta, enquanto o outro pode ocupar uma posição baixa. Gradual, como a horizontal, a vertical é, porém, «par essence dissymétrique». [KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 41 e 45] 68 Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 259- 265. 69 Id.: 265. 70 Id.: 161. 71 Criado por Hall, proxémia designa «o conjunto das observações e teorias referentes ao uso que o homem faz do espaço enquanto produto cultural específico.» [HALL, 1986: 11] Contrapondo proxémia a cinésia, o antropólogo esclarece que a proxémia «traite de l’architecture, de l’ameublement et de l’utilisation de l’espace... La proxémique cherche à déterminer comment nous établissons les distances». [HALL, 1981: 196, cit. por CARREIRA; 1995: 9] Tomo, aqui, proxémia e proxémico(a) para referir, exclusivamente, distâncias e/ou relações horizontais. 72 «Du grec taxis = “place” (dans une structure de préférence hiérarchique)» [KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 75, nota 1]. Tomo, aqui, taxémia e taxémico(a) para referir, exclusivamente, distâncias e/ou relações verticais. 154 cionemas horizontais e relacionemas verticais (ou simplesmente taxemas), subdividindo os últimos em taxemas de posição alta e taxemas de posição baixa. Além disso, os relacionemas são classificados ainda em indicadores ou construtores, conforme se limitam a manifestar, respectivamente, um tipo de relação já existente, ou a construir uma relação, no início ou durante uma interacção.73 Os relacionemas são de natureza diversa e manifestam-se de diferentes modos, mas é apenas a sua realização verbal que de momento nos interessa.74 Kerbrat-Orecchioni inventaria, como principais relacionemas horizontais, os seguintes marcadores: a) formas de tratamento, pronominais e nominais (e, em Português, também as formas pronominalizadas, além das verbais, marcadas estas pelos respectivos morfemas de desinência de tempo / modo); b) escolha de temas: não se fala, por regra, de temas íntimos ou pessoais a estranhos, tal como “não se fala de corda em casa de enforcado”, mesmo que (ou sobretudo em) se tratando de pessoa íntima; c) níveis de língua: as situações formais exigem, por regra, registos elevados, enquanto as informais se associam a registos mais ou menos familiares. Por seu turno, os principais taxemas são: a) formas de tratamento, pronominais e nominais (e, em Português, também as formas pronominalizadas, além das formas verbais, marcadas pelos respectivos morfemas de desinência de tempo / modo); b) organização dos turnos de fala, no que toca, por um lado, aos seus aspectos quantitativos (v.g., falar mais e durante mais tempo é sinal de posição alta) e, por outro, aos seus aspectos qualitativos (v.g., as interrupções e as intrusões são também entendidas como taxemas de posição alta); c) organização estrutural da interacção verbal: àquele que ocupa uma posição alta cabe, regra geral, abrir e fechar as sequências dialogais; d) actos de discurso: quem ocupa uma posição alta pode realizar FTA’s (ordem, proibição, autorização, conselho, crítica, censura, zombaria, insulto, etc.) relativamente às faces, negativa e/ou positiva, do interactante, passando este, nesses casos, a situar-se, ou a ser situado, numa posição baixa; esta posição pode, por outro lado, ser auto- 73 Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 45-57 e 82-101, para inventário e descrição, respectivamente, dos relacionemas horizontais e verticais, e 1996: 42-44 e 46-47, para os resumos correspondentes. 74 Para um inventário e descrição dos relacionemas não verbais e paraverbais, horizontais e verticais, cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 41-44 e 75-82, e resumos correspondentes em 1996: 42-43 e 46. 155 manifestada, quando um locutor realiza FTA’s dirigidos a si próprio, como quando pede desculpa, agradece, confessa, se retracta, se autocritica, se humilha, etc. Exceptuando-se os taxemas indicados em d) - actos discursivo-textuais que remetem explicitamente para o sistema de faces e, consequentemente, para o sistema de cortesia - e, em parte, os relacionemas formas de tratamento, os restantes não aparecem contemplados nos elencos dos processos verbais de cortesia negativa ou positiva, acima apresentados. Ao estudarmos, porém, as suas representações, teremos oportunidade de verificar como os mecanismos verbais de distância proxémica e taxémica também condicionam as expressões verbais de cortesia ou de descortesia, nos outros aspectos, os quais devem, por isso, ser integrados também no conjunto dos fenómenos verbais corteses e/ou descorteses. 3. Observações críticas O sistema de cortesia linguística proposto Kerbrat-Orecchioni apresenta-se-nos como um modelo teórico de análise altamente eficaz para a descrição linguística e discursivo-textual dos fenómenos de cortesia que os interlocutores utilizam nas diferentes interacções verbais que realizam, tendo em vista, mais que a transmissão de informação, o estabelecimento duma relação equilibrada e harmoniosa a nível interpessoal. Aliás, a informação será transmitida tanto mais eficazmente quanto mais acompanhada for de cortesia. Nas próprias palavras da linguista, a cortesia linguística é «une machine à maintenir ou restaurer l’équilibre rituel entre les interactants, et corrélativement, à fabriquer du contentement mutuel».75 Julgamos, porém, que algumas observações críticas devem ser feitas a esta proposta. Observações que a seguir enumeramos e depois descrevemos de forma integrada: (i) a não inclusão, no «sistema de cortesia», das formas de cortesia orientadas para a face dupla de terceiros, presentes ou ausentes;76 (ii) a pouca atenção prestada aos fenómenos verbais de descortesia, os quais, em nosso entender, podem ser analisados também segundo os eixos de orientação e das faces, acima referidos; 75 76 KERBRAT-ORECCHIONI, 2000b: 34. Formas de referência delocutiva, no sentido que lhes dá Carreira, como se verá no cap. V. 156 (iii) não considerar que, na realização cortês de um FTA, se encontram também FFA’s e que, por isso, os processos de cortesia negativa se conjugam, por vezes, com processos de cortesia positiva; (iv) considerar que os fenómenos verbais de cortesia e/ou de descortesia se destinam, sobretudo, a promover, respectivamente, a “paz social” ou “a guerra” entre os interlocutores, não relevando a importância que eles podem ter, também, como estratégias discursivo-textuais que visam outros objectivos retórico-argumentativos. Admitindo, embora, que «c’est en “face à face” que s’exercent les lois de la politesse»,77 convém ter presente, todavia, que, muito frequentemente, o tema duma conversa(ção) é (ou passa por) um terceiro, ausente ou presente, que sempre será referido também através de formas ou/e fórmulas de maior ou menor cortesia. Além disso, a referência cortês ou descortês a terceiros pode ser uma estratégia discursiva que visa outros objectivos, explícitos ou implícitos, que não apenas os do estabelecimento e/ou manutenção duma boa relação interpessoal. Podem visar estratégias, por exemplo, de figuração. Os processos de cortesia ou de descortesia verbal podem visar objectivos de construção (figuração) ou restauro (refiguração) duma face pública própria ou alheia que se deseja, ou que foi, justa ou injustamente, degradada, desfigurada. O relato autobiográfico que, n’O Malahdinhas de Aquilino Ribeiro, o reformado almocreve faz aos escrivães e manatas de Vila Nova de Paiva (antiga Barrelas), das aventuras (venturas e desventuras) da sua vida adulta, inscreve-se, em nosso entender, num claro processo de autorrefiguração. Processo esse que passa, também, por um processo de (con)figuração favorável daqueles com quem ele simpatizava, como de (con)figuração desfavorável (desfiguração) daqueles com quem não simpatizava, inclusive os seus próprios ouvintes, apesar de os tratar (ironicamente, em nossa opinião) por Vossorias, (meus) senhores, (meus) fidalgos e (meus) amigos. É certo, por outro lado, que as descortesias verbais, pela sua própria natureza, estão excluídas do sistema de cortesia. São, todavia, FTA’s orientados também ora para o locutor, ora para o alocutário, ora para terceiros, e destinados a lesar ora a face pública de um, ora a face pública de outros. Convém recordar que, no sistema de cortesia, os actos auto-humiliativos ou autodegradantes do locutor são descortesias. Além disso, as descortesias formuladas em relação a um ou mais terceiros podem constituir uma estratégia de, indirectamente, ser agradável ou desagradável para com o(s) interlocutor(es) e 77 KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 59. 157 assim, lesar ou valorizar, respectivamente, a(s) sua(s) face(s) pública(s). Se, por exemplo, aceitamos e apoiamos apreciações desfavoráveis feitas pelo nosso interlocutor a respeito dum terceiro, estamos a ser corteses para com ele, mas descorteses para com esse terceiro. Se, pelo contrário, não aceitamos nem apoiamos tais apreciações, estamos a ser descorteses para com o nosso interlocutor e corteses para com esse terceiro. Por outro lado, as descortesias que expressarmos relativamente a um terceiro podem ser ora corteses, ora descorteses em relação ao nosso interlocutor, conforme as relações de simpatia ou antipatia que este (man)tenha com aquele. Além disso, as formas verbais de descortesia, com especial destaque para os insultos, expressam claramente as relações de distância e de poder que os interactantes têm ou desejam ter entre si e em relação a terceiros. Por tudo isto e porque não há, por se tratar de excepções às regras da boa e normal convivência social, um sistema de descortesia (apesar das suas manifestações serem muito frequentes e receberem realizações linguísticas diversas), é que consideramos que os fenómenos descorteses podem e devem ser incluídos também no âmbito da análise da cortesia linguística, como o reverso da medalha. Aliás, há descortesias corteses e cortesias descorteses, como quando, por exemplo, tratamos afectivamente o filho por burrinho, ou ironicamente por vossa excelência. A distinção entre cortesia negativa, associada sobretudo aos FTA’s, e cortesia negativa, associada sobretudo aos FFA’s, é importante, a nível teórico e metodológico. Tal distinção e tais noções não nos devem levar a pensar, contudo, que a realização cortês de um FTA não pode coocorrer com a realização dum FFA. De facto, a realização cortês de um FTA pode ser acompanhada pela realização dum ou mais FFA’s, valorizador(es), por compensação, da face pública do alocutário. Talvez seja necessário, por isso, introduzir no sistema de cortesia de Kerbrat-Orecchioni uma distinção entre FFA’s de cortesia negativa, destinados a compensar as lesões provocadas pela realização dum FTA, e FFA’s de cortesia positiva, destinados simplesmente a valorizar a face pública do alocutário. Também a este respeito cabe observar que a realização de actos de cortesia positiva A-orientados podem visar objectivos que não os estritamente informativos (ao nível do conteúdo proposicional) ou relacionais (criação de um bom relacionamento interpessoal), mas outros, mesmo que não imediatamente claros. O bom relacionamento interpessoal que, regra geral, o uso de FFA’s estabelece pode ser considerado, além dum fim em si mesmo, uma estratégia para a realização dum ou mais FTA’s, ou para levar o alocutário a mudança de comportamento, de pensamento, de opinião ou de crença. Os FFA’s são, assim, sincera ou fingidamente formulados, também estratégias retóricas de 158 sedução e persuasão, artes em que era mestra, como se sabe e oportunamente se verá, uma dada senhora de muita treta.78 78 Ver, infra, cap. XV. Referimo-nos, obviamente, à Salta-Pocinhas, protagonista do Romance da Raposa de Aquilino Ribeiro. Cf. RIBEIRO, 1961. SEGUNDA PARTE CORTESIAS / DESCORTESIAS VERBAIS EM PORTUGUÊS Lembrai-vos em primeiro lugar, que a polidez e o uso do mundo consiste em saber esquecer-se de si mesmo, em ter cuidado nos outros, em aproveitar a occasião de lhes dar consideração, em lhes testemunhar o desejo de os obsequiar, de lhes ser agradavel; em usar para com elles de mansidão, condescendencia, bons modos, e muita attenção; em fazer crer que nos temos em pouca conta, por isso que é necessario mostrar-nos agradecidos ás mais ligeiras attenções, aos mais ordinarios cumprimentos. J.-I. Roquette1 1 ROQUETTE, 18592: 50. Capítulo IV INTRODUÇÃO Os (inter)locutores portugueses dispõem duma grande variedade de formas, pertencentes às diversas categorias linguísticas, que, ao utilizarem-nas em práticas discursivo-textuais, activam ou constroem valores e efeitos de maior ou menor cortesia, se visam proteger e/ou valorizar sobretudo a(s) face(s) do(s) outro(s), ou, pelo contrário, de descortesia, se visam lesar essa(s) mesma(s) face(s), com maior ou menor gravidade. Algumas dessas formas encontram-se gramaticalizadas e lexicalizadas, enquanto outras são construções novas (mais ou menos originais), consoante os contextos de interacção verbal. A cortesia e a descortesia verbal não se limitam, por isso, a uma listagem de formas mais ou menos fixas e convencionais, mas também e principalmente a todo um conjunto complexo de processos, situados, conforme explica Carreira, ao nível da língua e do discurso. Ao nível da língua encontram-se, segundo a autora, as formas corteses convencionais, tais como as formas de tratamento, as fórmulas de saudação ou cumprimento, de agradecimento, de felicitação e de desculpa; ao nível do discurso, as formas linguísticas mais ou menos complexas, como os processos de modalização e de (in)direcção ilocutória, mais ou menos explícitos, e estratégias, mais ou menos explícitas de cortesia, ao longo duma interlocução, como seja a distribuição de encorajamentos, elogios, expressão de acordo ou desacordo, etc.1 Tendo em conta esta distinção, situamos no primeiro conjunto as formas mais frequentemente utilizadas pelos interlocutores. Trata-se, em geral, de formas esteretipadas, rotineiras, ritualizadas, convencionais, lexicalizadas e gramaticalizadas, às quais vamos chamar, por isso, fórmulas. No conjunto das segundas, por apresentarem construções morfossintácticas e sobretudo semântico-pragmáticas mais complexas, incluindo realizações originais, vamos chamar formas. Neste sentido, as primeiras constituem 1 Cf. CARREIRA, 1995: 28. 162 apenas um subconjunto (relativamente aberto) dentro do grande conjunto das segundas (também aberto2), o que pode ser representado na figura seguinte: CORTESIA / DESCORTESIA VERBAL FORMAS Fórmulas FIG. 1 – Repartição das noções de fórmulas e formas de cortesia / descortesia De referir que esta distinção é sobretudo de natureza metodológica, pois todas as fórmulas são também formas. Acontece, porém, que o movimento contrário não se verifica, pelo menos num dado momento de evolução da língua, isto é, as fórmulas não passam as formas. Existem actualmente formas que, com o uso, passarão também a fórmulas, substituindo outras fórmulas que entretanto se desgastaram ou morreram, semântica e pragmaticamente. Como observa Heinz Kröll, «as palavras costumam gastar-se, como as medalhas, pelo uso. O que hoje ainda é um eufemismo, amanhã já pode ser um disfemismo.»3 Por outro lado, muito frequentemente fórmulas e formas coocorrem e cooperam, em vista do efeito de maior ou menor cortesia ou descortesia intendido e/ou do maior ou menor efeito perlocutório desejado. Sobre este aspecto, referira-se que, como já observámos, os processos corteses ou descorteses utilizados nem sempre são, em nosso entender, puras estratégias para a cortesia ou descortesia, mas também estratégias de cortesia ou de descortesia para a obtenção de objectivos que ultrapassam o simples estabelecimento de relações interpessoais pacíficas ou conflituosas. Há sempre momentos ou situações em que ser cortês ou descortês é um meio sincero ou fingido de levar ou desviar a água do moinho (próprio ou dos outros). São os valores de natureza retórica, polifonicamente enunciados, que as fórmulas e formas de cortesia e de descortesia também expressam. 2 Por mais exaustivo que se possa ser na identificação e descrição das formas de cortesia ou de descortesia, é sempre possível construir e descobrir outras que expressem tais valores. 3 KRÖLL, 1984: 12. 163 Alguém que procure saber como se pode ser cortês em Português, oralmente ou por escrito, será possivelmente tentado a consultar gramáticas, dicionários e manuais didácticos, por um lado, guias de conversação e livros de etiqueta ou boas-maneiras, por outro. Nestes últimos encontram-se listas mais ou menos completas de fórmulas, regra geral apenas (e pouco) formalmente contextualizadas, cujas descrições, todavia, nem sempre primam pela correcção gramatical e discursivo-textual.4 No conjunto dos primeiros, encontramos inventários mais ou menos incompletos, acompanhados de descrições dos seus valores morfossintácticos, semânticos e, por vezes, pragmáticos (a que alguns autores chamam geralmente «estilísticos» ou «afectivos»), com exemplos quase sempre desco(n)textualizados ou insuficientemente co(n)textualizados. A propósito, não deixa de causar alguma estranheza que, tratando-se de manuais, uns e outros destinados a ensinar os bons usos da língua, nos diferentes contextos de interacção social, os seus autores pouca ou nenhuma atenção dêem aos usos efectivos daquelas fórmulas, co(n)textualizando devidamente as ocorrências exemplificativas e as suas descrições linguísticas. São assim ignorados e/ou desvalorizados os reais efeitos (ou defeitos) de cortesia que os seus eventuais utilizadores possam expressar, nas diferentes práticas discursivo-textuais.5 Porque até as fórmulas mais corteses podem servir efeitos de descortesia, e vice-versa, como se sabe. 4 A título de exemplo, observe-se o que se lê num manual de boas-maneiras, recentemente publicado em Portugal, no capítulo precisamente intitulado «Erros linguísticos»: «Corrija os erros linguísticos. Transmitem imediatamente uma imagem medíocre de si. Sempre que tiver dúvidas consulte a gramática ou o dicionário (sobretudo, nunca caia no erro de dizer: “há-des”, “vistes” ou “puze-o”). // Por incrível que lhe possa parecer, “pu-lo” é a contracção do verbo “pôr” com o artigo definido masculino.» Ou o seguinte, com a curiosidade de, ao mesmo tempo que proíbe o uso de palavrões, bordões e erros fonéticos, acrescenta: «É podre de chique, mas não diga “T’fone”. Está errado.» E começa a licenciada autora por dizer que conhece «muitos doutores que cometem às dúzias de erros linguísticos», para recomendar logo de seguida: «Se não sabe, aprenda. Seja um autodidacta. Pior do que a ignorância é o desinteresse pela aprendizagem.» [MENEZES, 2001: 36 e 37] Não será, evidentemente, com manuais como este que os portugueses passarão a ser mais corteses nas suas práticas discursivo-textuais. 5 Encontram-se levantamentos mais ou menos completos de fórmulas de cortesia (assim designadas ou não), em CASTELEIRO (dir.), 1984: 66 (levantamento lexical); CASTELEIRO et al., 1988 (registo de fórmulas segundo as diferentes situações de comunicação); CARREIRA & BOUDOY, 1993 (registo de diferentes fórmulas de cortesia e como tal identificadas). Sob o termo geral «POLITESSE», estas últimas autoras remetem, no «index», para usos de diferentes formas e sobretudo fórmulas de cortesia, usadas em Português, desde o emprego do condicional ou imperfeito de cortesia, às diferentes fórmulas de contacto (começar ou acabar uma conversa). As formas de tratamento, apesar de se situarem também no conjunto das fórmulas de cortesia, merecem das autoras uma ficha autónoma. [Cf. id., índice remissivo, termos «ADRESSE» e «POLITESSE»] A propósito de CASTELEIRO et al., 1988, é de referir que se trata de volume destinado a responsáveis pela organização de cursos e de materiais, bem como a professores de Português língua estrangeira ou língua segunda, metodologicamente perspectivada para a aquisição e desenvolvimento de competências comunicativas. 164 Mas se, apesar de tudo, ainda se encontram inventários, descrições e análises de fórmulas e formas de cortesia, como regras de comportamento social prescrito, muito pouco existe acerca das descortesias verbais, insultuosas ou não, por se tratar, certamente, de comportamentos socialmente proscritos, ainda entendidos, muitos deles, como tabus. Tal facto, porém, não impede que os falantes de Português, como os de outras línguas, recorram, mais ou menos conscientemente, também a fórmulas e formas descorteses, com maior ou menor frequência, mesmo aqueles que têm sempre o máximo cuidado em não ofender ninguém, evitando dizer um palavrão, um insulto, uma calúnia, uma injúria, um impropério, uma blasfémia, para nos referirmos apenas às ofensas mais evidentes. A cortesia e a descortesia verbal são sempre manifestações de comportamentos verbais que visam atingir, directa (alocutivamente) ou indirectamente (delocutivamente), o outro, mesmo quando somos corteses ou descorteses em relação a nós próprios (elocutivamente). Tal como são inúmeros os meios linguísticos, discursivo-textuais e prosódicos a que um falante de Português pode recorrer para ser cortês, também inúmeros são os meios linguísticos a que o mesmo falante pode recorrer para ser descortês. Aliás, nem sempre é fácil determinar onde começa o mínimo de cortesia e onde acaba o máximo de descortesia, ou, mais simplesmente, onde começa a cortesia e acaba a descortesia, ou onde começa a descortesia e acaba a cortesia. Só o co(n)texto, no sentido dinâmico e dialéctico que lhe atribuímos, poderá ajudar a interpretar a produção e a recepção de actos corteses e descorteses. Contrariamente ao que se verifica noutros países, as fórmulas e formas verbais de descortesia em Português ainda não foram estudadas, nas suas diversas dimensões linguísticas e discursivo-textuais. Apenas o calão e a gíria (que podem não ser obrigatoriamente descortesias verbais) têm merecido alguns estudos,6 a par de dicionários que procuram fazer o registo dos respectivos termos e locuções.7 Merecem, todavia, especial referência os estudos que Kröll (nomeadamente em KRÖLL, 1981 e 1984) dedicou ao tema, sob a designação de disfemismos, por oposição a eufemismos. Considera este linguista alemão, lusófono e lusófilo, que 6 Cf. bibliografia em PRAÇA, 2001, ou em KRÖLL, 1984. Cf. NEVES & SANTOS, 2001; PINTO, 1993; PRAÇA, 2001. Para outros dicionários, ver a bibliografia nesta última referência. 7 165 «O sentimento da polidez, da civilidade, do decoro, do respeito é uma das causas principais do eufemismo. A vida exige a cada momento que respeitemos os outros e obriga-nos a recorrer a meios de expressão que a língua põe à nossa disposição para podermos encobrir a verdade, amenizando-a por amabilidade ou por deferência.»8 Pode-se dizer, portanto, que a cortesia e a descortesia verbal são o verso e reverso duma mesma medalha, isto é, o estabelecimento dum determinado tipo de relações interpessoais, mais ou menos harmoniosas ou agonais, num dado co(n)texto de interacção ou comunicação, com efeito mais ou menos prolongado. Aliás, é de recordar que grande parte das fórmulas e formas de cortesia se destina mais a proteger as faces dos interactantes [locutor e alocutário(s)], do que propriamente a valorizá-las, ainda que a protecção possa ser entendida também como um processo de valorização. Protege-se o que tem ou julga ter valor. Veja-se, por exemplo, a quantidade de meios que podem ser utilizados para a realização cortês dum FTA, comparativamente à quantidade de meios que podem ser utilizados na realização dum FFA. Por outro lado, convém não esquecer que a realização dum FFA (acto cortês, por definição) serve também para atenuar a realização de um FTA (acto descortês, por definição). E mesmo a realização dum FFA é, por vezes, entendida como lesiva da(s) face(s) do alocutário. Pense-se, por exemplo, nas fórmulas que acompanham os conselhos, sugestões ou os elogios: Posso dar-te/-lhe um conselho / uma sugestão? Desculpa/e o elogio, mas tu/você ...9 Nesta ordem de ideias, ao descrevermos as fórmulas e formas linguísticas e discursivo-textuais de cortesia, anotaremos também fórmulas e formas de descortesia, já que muito frequentemente aquelas são um processo de evitação ou atenuação destas. Por outras palavras, é-se cortês, porque não se pode ser completamente descortês. Porque ser cortês é uma exigência natural da vida em sociedade. Daí que a ausência de cortesia seja mais notada e sentida que a sua prática. 8 KRÖLL, 1984: 29. Em entrevista ao então presidente do Sporting Clube de Portugal, José Roquete, na emissora radiofónica TSF, o jornalista Carlos Magno dirige-lhe, a dado momento, o seguinte comentário: «Quando um dirigente fala com esta tranquilidade e este bom senso, permita-me o elogio.» (10-06-2000). E o publicitário Edson Athayde observa, numa das suas crónicas: «Também de vez em quando faço elogios ao País (que costumo tratar por “nosso”). Curiosamente, consigo incomodar mais com os meus elogios do que com as minhas críticas. Os portugueses não estão acostumados a ser elogiados (e menos a se elogiarem).» [Diário de Notícias, 03/12/2001] 9 166 Nas gramáticas de Língua Portuguesa por nós consultadas, os autores não dedicam qualquer capítulo ou secção específica às formas e fórmulas de cortesia e, muito menos, às de descortesia. Apenas os tratamentos (corteses) merecem algum destaque, mas como subalínea no capítulo dos pronomes. Encontram-se depois breves referências dispersas aos valores semântico-pragmáticos de cortesia, a propósito da descrição de outras categorias gramaticais, com especial destaque para os tempos e modos verbais. Compreende-se que gramáticos e linguistas prestem mais atenção aos valores de cortesia ou de descortesia que os tempos e modos verbais podem expressar. De facto, são estes que constituem o principal elemento na construção duma relação predicativa, ao situarem um determinado estado de coisas no tempo, ao expressarem a posição do locutor face a esse estado de coisas, ao relacionarem o(s) agente(s) e o(s) paciente(s). São as formas verbais que servem, por outro lado, para criar um estado de coisas, ao configurarem diferentes actos discursivo-textuais. Porque as formas verbais e os actos de discurso (corteses e descorteses) andam intimamente relacionados (a ponto de haver quem os confunda), decidimos começar a descrição das fórmulas e formas de cortesia e de descortesia pelos valores semântico-pragmáticos que os tempos e modos verbais do Português podem exprimir ou ajudar a exprimir, para depois nos fixarmos nos actos de discurso que, consoante a sua realização directa ou indirecta, mais ou menos atenuada ou intensificada, serão mais ou menos corteses ou descorteses. Neste ponto, analisaremos os valores de cortesia e de descortesia dos actos directivos em geral, aproveintando-se a oportunidade para clarificar as noções dos principais, nomeadamente da ordem. Terminaremos esta parte com um estudo sobre as interjeições e locuções interjectivas portuguesas e os seus valores linguísticos e pragmáticos de cortesia ou de descortesia. Antes, porém, apresentaremos os principais estudos sobre a cortesia e descortesia verbal em Português, realizados por linguistas nacionais ou estrangeiros. Capítulo V CORTESIA / DESCORTESIA LINGUÍSTICA EM PORTUGUÊS Principais estudos Apesar dos portugueses constituírem uns dos povos que maior número de formas verbais corteses e descorteses possuem e usam, são ainda em número muito reduzido os estudos linguístico-pragmáticos sobre os fenómenos da cortesia verbal em Português e, menos ainda, sobre os fenómenos verbais da descortesia. Além das formas de tratamento (nem sempre vistas, contudo, no seu conjunto, como manifestações de cortesia ou de descortesia), algumas expressões corteses e descorteses têm sido estudadas. Merecem, por isso, especial destaque e atenção os trabalhos de Carreira, em particular a sua tese de doutoramento, apresentada, em 1995, à Universidade de Paris IV-Sorbonne. Exporemos, a seguir, os seus principais contributos para o estudo da cortesia linguística em Português contemporâneo, seguindo-se a apresentação de outros estudos, de natureza monográfica, que outros autores, portugueses e estrangeiros, realizaram também no âmbito das manifestações verbais da cortesia e/ou da descortesia em Português de Portugal. 1. Maria Helena Araújo Carreira Cortesia verbal – proxémia e modalidade Em Modalisation Linguistique en Situation d’Interlocution: proxémique verbale et modalités1, Carreira não estuda apenas as formas verbais de cortesia,2 mas também, por intimamente relacionadas com elas (e todas elas entre si), as formas de tratamento3 e 1 Cf. CARREIRA, 1995 e 1997; este corresponde à edição de 1995, em livro. Além deste estudo, a linguista também analisa expressamente os fenómenos verbais de cortesia linguística em Português, em vários outros estudos, recentemente reunidos em CARREIRA, 2001. 2 Carreira utiliza, sistematicamente, em Português, o termo delicadeza. 3 Sobre as formas de tratamento, ver, infra, cap. X, 5. 168 as fórmulas interlocutórias.4 Trata-se de três meios verbais de modalização que, segundo refere a autora, são particularmente aptos à regulação da distância interlocutiva, porque «il s’agit bien des choix du JE, selon son intentionnalité, ses visées énonciatives».5 Neste sentido, tais meios são analisados tanto ao nível da língua como do discurso,6 uma vez que é conveniente ter presente «non seulement des moyens linguistiques dont disposent les locuteurs pour manifester leurs visées énonciatives lorsqu’ils produisent leurs discours en situation interlocutive, mais il convient aussi d’étudier leurs réalisations discursives.»7 A linguista situa, por isso, o seu estudo na esfera da modalidade e da interlocução, tomando como quadros teóricos principais a «semântica pragmática» de Pottier,8 por um lado, e a teoria de cortesia linguística de Brown & Levinson + Leech + Kerbrat-Orecchioni, por outro.9 A distância interlocutiva ou proxémia verbal é um dos conceitos fundamentais que percorrem este estudo, conceito que a autora adopta e adapta de Edward Hall:10 «Si nous nous fixons sur la situation interlocutive dans laquelle deux ou plusieurs locuteurs / énonciateurs coproduisent leurs discours et si nous nous restreignons à leurs productions verbales, nous pouvons nous demander, en paraphrasant librement Hall: comment les interlocuteurs établissent-ils des distances (rapprochement vs éloignement) 4 As fórmulas interlocutórias não constituirão tema específico deste nosso estudo. Carreira define-as assim: «Nous regroupons sous cette désignation des mots et des expressions de classes grammaticales diverses, comprenant des mots grammaticaux et des mots lexicaux ayant un haut degré de figement. Ces mots et ces expressions ont des fonctions discursives variées et constituent un ensemble de moyens linguistiques auquel les interlocuteurs ont recours pour réguler leur relation interlocutive». [CARREIRA, 1995: 125] 5 Id.: 7. 6 Ao nível da língua, a linguista dedica os capítulos 2, 3 e 4, respectivamente, às formas de tratamento, às fórmulas interlocutórias e às formas cortesia linguística. Ao nível do discurso, tais formas e fórmulas, encaradas também como modalidades de que se serve o sujeito enunciador, nas diferentes situações de interlocução, são estudadas, sobretudo, nos capítulos 7, 8 e 9. 7 Id.: 5. 8 Cf. id.: 11, 28, passim e, sobretudo, 361-365. A semântica pragmática é, em Pottier, uma das quatro «semânticas complementares», a qual Carreira resume assim: «la “sémantique pragmatique” (celle qui correspond à la zone de communication verbale des relations entre les interlocuteurs): elle “tient compte des relations de SAVOIR et de VOULOIR entre les interlocuteurs, lesquelles déterminent grandement le contenu des messages”.» [Id.: 363-364 e POTTIER, 1992: 20] Além desta, o linguista francês propõe também a existência de mais três «semânticas complementares», consideradas fundamentais para a linguística: a «referencial», a «estrutural» e a «discursiva». Além destas quatro, Pottier propõe ainda a existência de três «semânticas independentes»: a «semiótica textual», as «semiologias paralelas» e as «semânticas não linguísticas». [Para apresentações da teoria linguística, cf. CARREIRA, 1995: 363-364 e POTTIER, 1992: 20-21, ou POTTIER, 1993: 15-18.] Carreira faz também «uma leitura guiada de Sémantique générale, de Pottier, com adaptações ao português», em CARREIRA, 2001: 11-42. A título de curiosidade, referira-se que Pottier foi o orientador da dissertação de doutoramento da linguista portuguesa. 9 Cf. CARREIRA, 1995: 29. Para uma visão geral deste(s) modelo(s), ver, supra, caps. II e III. 10 Sobre a noção de proxémia, ver, supra, cap. III, nota 71 (p. 153), ou CARREIRA, 1995: 9. 168 169 dans et par leurs discours? Comment se dessine verbalement “l’architecture”, “l’ameublement”, “l’utilisation” de l’espace interlocutif?»11 Trata-se, pois, da regulação das distâncias (aproximação, contacto e afastamento) que os interlocutores estabelecem, negoceiam e/ou denegam, nas suas relações pessoais, durante as interlocuções. 1.1. O trimorfo e o(s) eixo(s) das distâncias Adpatando uma representação esquemática das relações espaciais proposta por Pottier, Carreira retoma uma figura de base, o «trimorfo cílico», que desenha um espaço interlocutivo abstracto do interlocutor A e do interlocutor B, bem como as suas posições de aproximação (I), presença ou contacto (II) e de afastamento (III).12 I II III Interlocutor A Interlocutor B I II III FIG. 1 - Trimorfo cíclico, segundo CARREIRA, 1995: 13 A partir desta figura em espelho, onde as setas representam a direcção do movimento de cada um dos interlocutores, é desenhada uma nova figura que continua a anterior, para a representação simétrica do espaço interlocutivo, teoricamente prolongável até ao infinito. 11 Id.: 10. Para a construção do seu «trimorphe cyclique», a autora refere, por um lado, POTTIER, 1992 e, por outro, seminários dirigidos por Pottier, a que assistiu. Cf. também CARREIRA, 2001: 45-51. 12 169 170 Interlocutor A Interlocutor B FIG. 2 - Desenvolvimento simétrico do trimorfo, segundo CARREIRA, 1995: 14. A complexidade e a dinâmica das trocas verbais fazem com que haja também entre os interlocutores, à partida ou no decurso duma interlocução, posições assimétricas, cuja representação apresenta na figura seguinte (FIG. 3).13 Na primeira, variante a), enquanto o interlocutor B mantém o contacto, o interlocutor A afasta-se e volta a aproximar-se, eventualmente (parte da linha curva ponteada), da zona de contacto. Pode darse também o inverso e temos a variante b): A mantém o contacto, enquanto B se afasta, para, eventualmente (parte da linha ponteada), voltar a aproximar-se. Variante a) Interlocutor A Interlocutor B Variante b) FIG. 3 - Desenvolvimento assimétrico do trimorfo, segundo CARREIRA, 1995: 15. Podem ocorrer outros tipos de posições assimétricas, conforme se representa na figura seguinte (FIG. 4). Na variante a), A passa do afastamento a uma aproximação progressiva, até à zona de contacto. Ao mesmo tempo, B mantém-se na zona de contacto, começando a afastar-se, no momento em que A a atinge. Na variante b), temos a situação inversa. 13 Cf. CARREIRA, 1995: 15. 170 171 Carreira adverte para a possibilidade duma multiplicidade de combinações de movimentos, numa situação de interlocução, com entrecruzamentos frequentes. Além disso, a complexidade das interlocuções aumentará, não só porque são construídas pelos interlocutores, mas também porque eles podem ser mais que dois.14 Variante a) Interlocutor A Interlocutor B Variante b) FIG. 4 - Desenvolvimento assimétrico do trimorfo, segundo CARREIRA, 1995: 15. A regulação da distância interlocutiva relaciona-se, por outro lado, com os conceitos de eixo horizontal vs. eixo vertical, propostos por Roger Brown & Albert Gilman, no conhecido ensaio «The Pronouns of Power and Solidarity».15 Estes dois eixos têm sido geralmente considerados como representando as duas dimensões presentes nas relações interlocutivas, em todas as línguas e culturas, e, por isso, considerados universais, se bem que com realizações diferentes, em cada uma delas.16 Brown & Gilman, analisando os tratamentos em várias línguas europeias (nomeadamente o Francês, o Inglês, o Alemão e o Italiano), opõem a «semântica do poder» à «semântica da solidariedade» (ou a sua variante «formalidade» vs. «intimidade»), oposição binária que situa os tratamentos nos paradigmas de T[u] ou V[os].17 14 Sobre a complexidade das interacções verbais com mais de dois interlocutores, ver KERBRAT-ORECCHIONI & PLANTIN (dir.), 1995. 15 Cf. BROWN & GILMAN, 1960. 16 Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1994. 17 Brown & Gilman definem, como segue, a semântica do poder: «One person may be said to be power over another in the degree that he is able to control the behavior of the other. Power is a relationship between at least two persons, and it is nonreciprocal in the sense that both cannot have power in the same area of behavior. The power semantic is similarly nonreciprocal: the superior says T and receives V.» E, como segue, a semântica de solidariedade: «Now we are concerned with a new set of relations which are symmetrical; for example, attended the same school or have the same parents or practice the same profession […] Solidarity is the name we give to the general relationship and solidarity is symmetrical. The corresponding norms of address are symmetrical or reciprocal with V becoming more probable as solidarity declines. The solidarity T reaches a peak of probability in address between twin brothers or in a man’s soliloquizing address to himself.» [BROWN & GILMAN, 1960: 255 e 258] 171 172 A teoria de Brown & Gilman pode ser resumida aos seguintes pontos fundamentais. Os sistemas de tratamento podem ser reduzidos as duas grandes categorias de formas, simbolizadas por T e V, que correspondem, respectivamente, aos tratamentos pronominais latinos tu e vos, ambos dirigidos a um só alocutário: o primeiro usado no tratamento familiar e o segundo no tratamento dirigido ao imperador.18 Posteriormente, ter-se-á alargado a outras figuras públicas dotadas de poder (religioso, civil e militar), tendo-se expandido e consagrado, nas sociedades e línguas românicas, a partir do séc. XII. Nasceram, assim, as duas principais dimensões gerais dos tratamentos: as formas T, associadas às relações de solidariedade, e as formas V, associadas às relações de poder. Mas porque a relação interpessoal dos interlocutores pode ser diferente, os tratamentos podem ser, consequentemente, recíprocos ou simétricos ( T ⇔ T, ou V ⇔ V), não recíprocos ou assimétricos (T ⇔ V, ou V ⇔ T). O uso de formas de tipo não recíproco ou assimétrico expressa uma diferença de estatuto hierárquico, entre os interlocutores.19 Carreira retoma e parafraseia as definições de eixo horizontal e de eixo vertical dadas por Kerbrat-Orecchioni, já acima apresentadas.20 Ao comparar, porém, a noção de lugar («place»), proposto por esta linguista, para designar também a distância vertical, restringindo-a às relações hierárquicas, e a noção de lugar, proposta por François Flahault21 (a quem, aliás, Kerbrat-Orecchioni foi buscar o termo22), a linguista portuguesa prefere a noção deste último autor. Flahault, apesar de considerar inconveniente a sua utilização, dada a sua generalidade,23 adopta o termo, acrescentando-lhe, porém, determinações. Distingue, assim, quatro registos,24 que a seguir apresentamos, conforme síntese de Carreira: «− “le registre inconscient” (p.139) (“à partir des rapports de places qui ont marqué d’une empreinte inaltérable, inconsciente, le locuteur”, p.138); − “le registre idéologique” (p. 142) (“sur la base de systèmes discursifs qui correspondent à sa place dans la formulation sociale à laquelle [le locuteur] appartient”, p. 138); 18 «In the Latin of antiquity there was only tu in the singular. The plural vos as a form of address to one person was first directed to the emperor [...]. The use of the plural to the emperor began in the fourth century.» [Id.: 254] 19 Cf. id.: 259-260. 20 Cf., supra, cap. III, 2.2., ou CARREIRA, 1995: 17 e KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: caps. 2 et 3. 21 Cf. FLAHAULT, 1978. 22 Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 71 e nota 2. 23 «L’inconvenient du concept général de “place”, c’est qu’il vaut indifféremment pour tout rapport dans lequel se fonde et se définit l’identité de chacun d’entre nous.» [FLAHAULT, 1978: 137] 24 Cf. id.: 137-152 (Cap. V / «Quatre registres pour la détermination des rapports de places») 172 173 − “le registre institué par telle situation de parole” (p. 144) (“une place est dévolue au locuteur dans le système de place qui rend possible la présente situation de production de parole, p. 144) ; − “le registre de la circulation d’insignes dans le tissu discursif” (il s’agit du rapport entre “la place” de l’interlocuteur et “le discours dominant”) ( voir p. 147).»25 1.2. Referência alocutiva, elocutiva e delocutiva. As relações subjectivas e sociais (pré-construídas, já existentes ou novas) entre os interlocutores / interactantes e destes com os outros, numa dada situação de interlocução / interacção, têm a ver directamente com os processos de auto e heterorreferência. Para designar estes processos de identificação e de localização no espaço interlocutivo e interaccional, Carreira adopta e adapta a classificação terminológica tripartida, proposta por Patrick Charaudeau,26 ao nível dos actos locutivos, e por Michel Maillard,27 ao nível da relação predicativa: «P. Charaudeau et M. Maillard utilisent les termes “élocutif”, “allocutif”, “délocutif” pour qualifier soit “Acte”, soit “Prédicat”. Pour notre part, nous ferons un usage plus élargi de ces termes et, en conséquence, nous prendrons les noms ELOCUTION, ALLOCUTION, DELOCUTION qui spécifient la désignation: de soi-même (JE), de l’autre à qui JE s’adresse (TU), de l’autre (IL / ELLE) absent de l’espace interlocutif, dont JE parle.»28 25 CARREIRA, 1995: 17-18. Cf. CHARAUDEAU, 1992. 27 Cf. MAILLARD, 1994. 28 CARREIRA, 1995: 24-25. Para as classificações e definições de Charaudeau e Maillard, cf. id.: 22-23 e 24, respectivamente. Para precisar estas noções segundo Charaudeau, cf. CHARAUDEAU, 1992: 574575. A linguista refere ainda as classificações de Michel Grimaud, relativamente aos «terceiros excluídos», bem como a de «terceiros presentes» de Elisabeth Rigatuso. O primeiro autor, ao estudar os apelativos, propõe, além da alocução e delocução, a noção de «terlocution» (do latim tertius). Com os neologismos «terlocution» e «terlocutif», Grimaud sublinha a importância da influência de terceiros presentes numa conversação, os quais, embora dela excluídos, «écoutent sans même participer, et à qui nous nous adressons toujours quelque peu». Aos «terceiros excluídos» é atribuído, deste modo, um «estatuto oficial», uma vez «on parle à quelqu’un (allocution), de quelqu’un (délocution), mais souvent on parle à quelqu’un de quelqu’un (ou de quelque chose) en présence d’un tiers que je puis vouloir tenir informé au même titre (ou à un titre différent, ce qui peut poser problème) que mon interlocuteur officiel» [GRIMAUD, 1989: 71, cit. por CARREIRA, 1995: 23] Rigatuso, por seu turno, distingue, numa conversação, o papel do «destinatario “addressee” – el interlocutor al que el hablante se dirige en forma vocativa durante la interacción», do papel «de oyentes en general - integrados o no al hecho de habla-, participantes también de la conversación, pero a los cuales el emisor no interpela directamente». [RIGATUSO, 1987: 163, cit. por CARREIRA, 1995: 24] 26 173 174 De referir que, nesta citação, a linguista não inclui os terceiros presentes. Fá-lo, porém, ao esclarecer que numa interlocução «chaque locuteur se réfère à lui-même – élocution–, à son allocutaire, – allocution –, à des tiers (humains ou “choses”) présents ou absents – délocution –, identifiant et localisant personnes, choses et événements.»29 Numa interacção verbal, porém, o recurso à delocução não se verifica apenas ao nível de terceiros, presentes ou ausentes. Por estratégia de cortesia ou/e de descortesia, o locutor utiliza, por vezes, construções delocutivas para se referir a si próprio ou ao seu interlocutor directo. Há, em tais casos, um EU ou um TU que são, respectivamente, auto ou heterorreferidos com se fossem um ELE, por cortesia ou descortesia. Tais processos de elocução-delocutiva e de alocução-delocutiva, além de expressarem uma certa teatralidade ao nível da enunciação, revelam, por outro lado, a nosso ver, formas de desdobramento plurivocal e de personalidade que colocam, evidentemente, a questão da polifonia discursivo-textual, assim também configurada. As escolhas que os interlocutores fazem, nas suas construções linguísticas, de formas de cortesia ou de descortesia e, dentro delas, especialmente das formas de tratamento, estão, por outro lado, intimamente relacionadas com os fenómenos da deixis social, cuja importância Carreira também releva. Reconhecendo a complexidade do fenómeno, o qual está na origem da multiplicidade de pontos de vista sobre o assunto, a linguista, depois de expor brevemente as concepções de Guy Bourquin30 e de C. Fillmore,31 opta pela definição de Stephen Levinson: «social deixis concerns the encoding of social distinctions that are relative to participant-roles, particularly aspects of the social relationship holding between speaker and addressee(s) or speaker and some referent».32 A deixis social, nesta última concepção, além dos exemplos fáceis de reconhecer, ao nível lexical e morfossintáctico, inclui muitos outros processos linguísticos que é preciso ter também em consideração. Em síntese, cabe ao linguista, segundo a autora: 29 Id.: 25. (Negrito da nossa responsabilidade) Para Bourquin, «la formule générale de la deixis est à poser non pas comme “JE montre IL à TU”, mais comme:”JE se montre devant TU quant à IL ou mieux encore: JE manifeste, présentifie JE (eu égard à TU) (eu égard à IL)». [BOURQUIN, 1992: 391-392, cit. por CARREIRA, 1995: 25-26] 31 Fillmore situa a deixis social em relação aos actos de linguagem: «that aspects of sentences which reflect or establish or are determined by certain realities of the social situation in which the speech act occurs». [FILLMORE, 1975: 76, cit. por CARREIRA, 1995: 26] 32 LEVINSON, 1987: 63. 30 174 175 «saisir la diversité des possibilités offertes par une langue donnée, pour exprimer les identités et les relations sociales des interlocuteurs et des entités auxquelles ils se réfèrent, mais il s’agit, aussi, de délimiter des formats de situations communicatives, pour étudier les moyens linguistiques mis en oeuvre par les interlocuteurs, dans des situations déterminées.»33 Além doutras referências, é no capítulo 4 que Carreira analisa algumas manifestações da cortesia verbal em Português,34 ao nível da língua,35 porque considera que tais formas (como também os tratamentos e as formas interlocutórias), mais que «un domaine restreint de listes peu intéressantes, que seul le niveau discursif pourrait transformer en un objet complexe d’étude», constituem, «bien au contraire, un domaine très riche pour ce qui est des ressources de la langue.»36 Relacionando os conceptualizações com as possibilidades oferecidas pela língua, a autora delimita as características subjacentes aos empregos daquelas formas, ou seja, o seu «núcleo semântico». É esse núcleo que, em seu entender, permite compreender a plasticidade e a variação das formas, e responder à seguinte questão: «qu’est-ce qui rend une forme donnée théoriquement plus adéquate qu’une autre à une certaine régulation de l’espace interlocutif?»37 Embora tome, como teoria de base, o modelo de Brown & Levinson, com os melhoramentos introduzidos por Kerbrat-Orecchioni,38 Carreira começa por considerar os fenómenos da cortesia em geral, adoptando a seguinte definição de Weinrich: «La politesse est une forme de comportement communicatif, verbal ou non-verbal, destiné soit à découvrir, à supposer ou à imaginer chez une autre personne une certaine ex- 33 CARREIRA, 1995: 27. «Chapitre 4. La politesse linguistique: quelques manifestations en portugais européen». [Id.: 193-288] 35 Observa a autora que «c’est au niveau des principales ressources offertes par la langue que nous nous efforcerons d’éclairer les formes de politesse du portugais.» [Id.: 197] Análises das manifestações verbais de cortesia, ao nível dos discursos, isto é, como actualizações das virtualidades da língua, são feitas sobretudo ao longo do capítulo 8 («Solutions discursives de la régulation de la distance interlocutive: quelques illustrations») [Id.: 432-474), tomando como corpus entrevistas recolhidas e transcritas pela equipa do Português Fundamental, como refere no capítulo 7 («Quelques aspects méthodologiques») [Id.: 432-474 e 421-431, respectivamente]. 36 Id.: 291. 37 Id.: ibid. 38 Id.: 29. 34 175 176 cellence individuelle ou sociale soit à ménager la face de cette personne si cette dernière ne peut on ne veut pas exceller dans le domaine».39 Assim concebida, a cortesia ilustra bem, segundo a autora, a noção de semiologias paralelas proposta por Pottier, as quais «regroupent l’ensemble des systèmes sémiologiques qui sont utilisés en parallèle avec le système linguistique.»40 Mas se a cortesia geral pode ser expressa unicamente através de semiologias não verbais, a expressão da cortesia verbal é sempre acompanhada doutras semiologias, fazendo dela uma expressão polissemiológica. Além das formas linguísticas, a autora considera, no conjunto das semiologias paralelas ao sistema da cortesia verbal, a regulação do espaço, os gestos e a mímica, o olhar, o sorriso, o vestuário, etc., a par da prosódia e dos sinais tipográficos que acompanham a mensagem verbal (oral ou escrita), aspectos estes que manifestam, em conjunto, uma determinada intenção de cortesia. Só assim haverá acordo ou «isossemia» entre as diferentes manifestações semiológicas. Caso contrário, haverá desacordo (porque a isotopia deixa de se verificar), originando diferentes efeitos comunicativos, segundo a interpretação que o receptor fizer dos diferentes signos que constituem uma mensagem. As ocorrências e a sua interpretação concordante ou discordante passam também pela variabilidade das semilogias tanto a nível intra como intercultural.41 1.3. Cortesia verbal e modalização É tendo em consideração este quadro geral que Carreira passa a analisar o domínio específico da cortesia linguística, retomando definição de Pottier. Para este autor, segundo citação da autora, as formas de cortesia «expriment “la considération que l’on veut accorder à son interlocuteur” […] et constituent un “aspect de la modalité axiologique”, “lié à la sémantique pragmatique”).»42 Na mesma linha de pensamento, a nossa linguista considera que, de um ponto de vista alargado, a expressão verbal duma intenção de cortesia não se limita às formas propriamente ditas de cortesia («les termes d’adresse, les formules de salutation, de présentation, de remerciement, de félicitation, 39 WEINRICH, 1993-1994: 891, cit. por CARREIRA, 1995: 193. A propósito, Weinrich observa, segundo citação da linguista portuguesa, que a cortesia positiva é «primordial e prioritária», enquanto a cortesia negativa tem apenas «o valor menor duma estratégia auxiliar». 40 POTTIER, 1992: 21, cit. por CARREIRA, 1995: 193, nota 1. 41 Cf. CARREIRA, 1995: 194. 42 Id.: 28. A autora cita POTTIER, 1992: 219. Para a noção de semântica pragmática, ver, supra, nota 8. 176 177 d’excuse, etc.»). Ela compreende também os processos mais ou menos complexos, mais ou menos explícitos de modalização e de indirecção, bem como estratégias de cortesia como «la manière de distribuer tout au long de l’interaction verbale des encouragements, des éloges, d’exprimer l’accord ou le désaccord.»43 É, porém, com base nos modelos teóricos da cortesia linguística acima referidos que Carreira analisa as formas verbais, mais ou menos corteses, em Português europeu contemporâneo. Reconhecendo ser difícil, senão mesmo impossível, inventariar, devido à sua grande variedade, os meios linguísticos de que os interlocutores se podem servir para expressar cortesia, baseando-se nos estudos, entretanto realizados sobre o assunto,44 esboça, todavia, o seguinte inventário de meios: a) « formes plus ou moins figée»;45 b) «l’atténuation du propos (ou, dans certains cas comme l’éloge, son intensification)»; c) «l’euphémisme»;46 d) «le ton vague»; e) «l’indirection [...] de certains actes de langage»; f) «les modulations diverses du dégré d’implication de l’énonciateur (tout particulièremente si celui-ci constitue une source déontique)»; g) «l’incertitude»; h) «l’hésitation – différents degrés de désactualisation modale et temporelle sont possibles».47 E os diferentes níveis em que estas manifestações se encontram realizadas são, segundo a autora, sem querer ser exaustiva: 43 CARREIRA, 1995: 28. A autora apresenta uma lista bibliográfica, evidentemente incompleta, de estudos sobre cortesia linguística, de autores estrangeiros e portugueses, em CARREIRA, 1995: 196. 45 Neste nível, a autora situa as formas de cortesia imediatamente disponíveis, como o pedido de desculpa, o agradecimento e os cumprimentos. Observa, contudo, que a cortesia linguística se, por um lado, não se reduz a estas formas (aparentemente) simples, mais ou menos fixas, será errado, por outro, não as ter em consideração. [Cf. CARREIRA, 1995: 196] 46 Acerca dos eufemismos, em Português, observa Kröll: «Os eufemismos de delicadeza, de cortesia, são muito frequentes hoje em dia e o seu número aumenta inegavelmente. Para evitar palavras descorteses que podem ofender o ouvinte, inventam-se constantemente novas expressões, novos processos eufémicos.» [KRÖLL, 1984: 29] 47 CARREIRA, 1995: 196. A apresentação por alíneas é da nossa responsabilidade. Cabe observar que, relativamente ao «eufemismo», a autora, ao remeter para a noção de «adoucisseur», tradução do Inglês «softner», proposta por Kerbrat-Orecchioni, como vimos, pode levar a uma interpretação menos correcta deste termo. Para esta última linguista, um «adoucisseur» é qualquer estratégia linguística de cortesia negativa, através da qual um locutor «amortece» a realização inevitável dum FTA. O eufemismo é apenas um desses processos ou estratégias, situado nos processos retóricos, no conjunto dos atenuadores substitutivos. 44 177 178 a) «celui des formes plus ou moins figées (evoquées ci-dessus)»; b) «celui des choix lexicaux, morpho-syntaxiques ou / et discursifs (par exemple, le thème choisi et son développement rhématique)»; c) «celui des stratégies conversationnelles [...] coopératives telles que la façon de distribuer tout au long de l’interaction verbale des assentiments, des encouragements, des éloges, l’accord ou le désaccord.»48 A linguista considera, em relação às escolhas indicadas em b), que, por um lado, as manifestações de cortesia «sont présents d’une façon diffuse dans les réalisations linguistiques» e que, por outro, «les différents moyens linguistiques, supports des manifestations de politesse, s’éparpillent dans le discours.»49 Esta última observação colhe também relativamente aos meios linguísticos indicados em c). Face à multiplicidade e diversidade de manifestações linguísticas de cortesia e na impossibilidade de as estudar uma a uma, a autora analisa-as em torno dum «eixo semântico conceptual», assente em zonas polares, correspondendo uma zona à noção de /ATENUAÇÃO/ e outra à noção de /INTENSIFICAÇÃO/. Com base neste eixo, são identificados e descritos processos característicos da expressão da cortesia verbal, relevando as principais tendências semântico-pragmáticas a eles subjacentes, e que se manifestam como meios de expressão e regulação da distância interpessoal. Na zona da /ATENUAÇÃO/ situar-se-ão50 sobretudo «les manifestations liées à la politesse à caractère abstentionniste ou compensatoire (politesse négative)», bem como «celles (liées à la politesse positive) qui créent un certain climat de solidarité et de partage affectif entre les interlocuteurs.»51 Exemplos são as formas verbais que servem para suavizar a realização de actos directivos, através de escolhas lexicais eufemísticas ou hipocorísticas, ou de escolhas linguísticas que exprimem incerteza, hesitação, indirecção, sugestão, etc., destinadas a proteger a face do interlocutor. Na zona polar da /INTENSIFICAÇÃO/, situam-se, por um lado, «des manifestations plutôt liées à un type de politesse à fort caractère compensatoire» e, por outro, 48 CARREIRA, 1995: 196. Id.: 196-197. 50 Carreira sublinha que o enquadramento semântico-pragmático que faz das formas de cortesia em Português, é um «processo aberto», no sentido de «hipótese» que lhe dá Seiler, e, por outro, que tem em conta «a relatividade cultural e pragmática» da língua e cultura portuguesas. [Id.: 222] Segundo Seiler, uma conceptualização (princípio, categoria, conceito) «au lieu d’être un monolithe, se construit par une suite ordonnée de paramètres constitutifs. Dans ce processus, qui est en principe un processus ouvert, chaque nouvelle langue nous apporte soit des confirmations soit des rectifications de notre hypothèse». [SEILER, 1994, cit. por CARREIRA, 1995: 222]. 51 CARREIRA, 1995: 224. 49 178 179 «des manifestations liées à la politesse positive fortement marquée».52 Exemplos de /INTENSIFICAÇÃO/, ao nível da cortesia negativa, são os «actos reparadores»,53 como o pedido de desculpa e por favor, bem como a apresentação de justificações, enquanto que, ao nível da cortesia positiva, são referidos os elogios e os agradecimentos. A partir do eixo (conceptual, abstracto54) / ATENUAÇÃO / ↔ / INTENSIFICAÇÃO /, Carreira faz derivar «d’autres axes qui rendent possible le recouvrement de solutions linguistiques à la fois semblables (de par leur noyau sémantico-pragmatique) et différentes (de par les nuances introduites par différents types de modulation).»55 Tratase, neste caso, de eixos ou «escalas parassinonímicas onomasiológicas» que permitem que os interlocutores possam escolher, de entre a variedade de formas e processos disponíveis, as soluções linguísticas mais adequadas à situação, em virtude de nelas existir, precisamente, um sema comum, o «núcleo sémico».56 Tais soluções de relação parassinonímica podem ser «des procédés morpho-syntaxiques, des formules plus ou moins figées, des énoncés ou, alors, des discours à longueur variable.»57 Por exemplo, conjugando os traços de ± CORTESIA, com os traços de ± DIRECÇÃO, a propósito das possibilidades de realização do acto directivo da ordem, entre uma formulação não atenuada e uma atenuada, a autora constrói o seguinte eixo: « − Politesse + Direction + Politesse − Direction (acte direct) Acte directe d’ordre (acte indirect) Acte directe d’ordre + formule(s) de politesse Demande [+ formule(s) de politesse] Conseil / Suggestion Souhait » FIG. 5 – Eixo de injunção e cortesia, segundo CARREIRA, 1995: 227. 58 52 Id.: 224. Retoma o conceito de GOFFMAN, 1973(2): cap. IV. 54 «L’axe de référence / ATTÉNUATION – INTENSIFICATION (“abstraction nécessaire à un niveau conceptuel utilisable”, B. Pottier, 1992, p.47 [...]». [CARREIRA, 1995: 225] 55 Id.: 225. 56 Cf. id.: 225 e POTTIER, 1992: 42-43. 57 CARREIRA, 1995: 226. 58 Também, com menor desenvolvimento, em 2001: 86. 53 179 180 Segundo este eixo, a realização directa da ordem é descortês, valor pragmático que sofre alguma atenuação se for acompanhado de uma ou mais fórmulas de cortesia, caso que, todavia, o localiza ainda muito próximo da directividade, digamos, forte. A realização do mesmo acto situar-se-á, por outro lado, já na zona da cortesia, mas de forma ainda não totalmente indirecta e por isso mais cortês, se for atenuado como formulação de pedido, acompanhado ou não de fórmula(s) de cortesia. O acto directivo da ordem directa só recebe uma realização verdadeiramente cortês, quando é atenuado, isto é, realizado como conselho, sugestão ou desejo. Numa palavra, como acto indirecto. Os meios linguísticos de atenuação dizem respeito, fundamentalmente, à realização de actos discursivo-textuais que, sendo susceptíveis de ameaçar a face do interlcoutor, são realizados através de processos vários de atenuação, como é o caso dos actos directivos em geral. Por outro lado, a autora estuda também aqueles actos que valorizam a face do alocutário, isto é, aqueles actos que, sendo intrinsecamente valorizadores da face do interlocutor, contribuem para criar uma certa afectividade entre os interlocutores, como é o caso paradigmático da oferta.59 Tanto uns actos como outros, porém, podem sofrer modulações diversas de /ATENUAÇÃO/ e de /INTENSIFACAÇÃO/ pelo locutor. Não nos deteremos, de momento, no resto da exposição dos processos de / ATENUAÇÃO / e/ou de / INTENSIFACAÇÃO /, na realização dos actos discursivotextuais, com maior ou menor cortesia. Retomá-la-emos sempre que ela nos ajude a descrever e a compreender os fenómenos da cortesia verbal, em particular os valores dos tempos e modos verbais e os tratamentos, a nível semântico-pragmático. Gostaríamos, todavia, antes de passar à apresentação de outros estudos sobre a cortesia em Português europeu, destacar o importante contributo que os estudos de Carreira trouxeram à descrição linguística (da morfossintaxe à semântica) e pragmática (ao nível do discurso-texto) destes fenómenos. Apesar da sua descrição separada, segundo a sua classificação em três grandes categorias (tratamentos, formas interlocutórias e formas de cortesia), a linguista não deixa de referir e sistematizar, à luz da noção do trimorfo, as relações que estas formas têm entre si, enquanto processos linguísticos que criam e marcam as relações interlocutivas e interpessoais dos interlocutores / interactantes que as utilizam. Face ao valor e utilidade que tem para quantos se interessam pela cultura portuguesa, em geral, e pelo ensino da Língua Portuguesa, em particular, cada vez mais 59 Cf. id.: 226-274. Também, com menor desenvolvimento, em 2001: 43-171. 180 181 necessitado de estudos aprofundados segundo perspectivas simultaneamente ao nível do sistema linguístico e sobretudo ao nível das práticas discursivo-textuais, para quando a edição em Português de Modalization Linguistique en Situation d’Interlocution ? 2. Outros estudos A dissertação de Carreira constitui, no panorama dos estudos linguístico-pragmáticos sobre a cortesia / descortesia em Português, o único trabalho mais desenvolvido e mais completo. Outros estudos, contudo, têm sido realizados, segundo perspectivas pragmáticas e sociolinguísticas. Alguns destes estudos foram publicados, enquanto de outros (nomeadamente teses de mestrado) tivemos conhecimento. De entre os publicados, destacamos os seguintes. 2.1. Meyer-Hermann: atenuação e cortesia no ensino do Português LE Num estudo com objectivos didácticos, intitulado «Formas de “atenuação” no ensino do Português como língua estrangeira»,60 Reinhard Meyer-Hermann inventaria quarenta «formas / meios de atenuação», que distingue e agrupa em sete tipos. Antes, porém, de os indicar, segundo uma perspectiva onomasiológica, o romanista descreve os elementos que contribuem para uma definição linguística de atenuação. Serve-se, para o efeito, de dois estudos sobre os fenómenos da cortesia verbal. O primeiro é do linguista alemão Wolfram Bublitz sobre a cortesia no Inglês.61 Este autor, na leitura de Meyer-Hermann, «caracteriza a atenuação como atitude do falante» que, utilizando determinados meios linguísticos, «pode mais ou menos atenuar o efeito dum acto comunicativo.»62 O segundo é o conhecido ensaio de Brown & Levinson, publicado em 1978, onde colhe os «dois desejos básicos» do homem («de agir livremente» e «de ser estimado por outrem»), bem como a concepção de que «a comunicação representa, embora seja uma necessidade, em princípio uma ameaça».63 Considerando que, ao participarem numa comunicação, os interlocutores sofrem restrições, uma vez que estabelecem «obrigações» entre si, o autor define atenuação como segue: 60 Cf. MEYER-HERMANN, 1984. BUBLITZ, Wolfram, 1980: «Höflichtkeit im Englischen», Linguistik und Didaktik, 41: 56-70. 62 MEYER-HERMANN, 1984: 174. 63 MEYER-HERMANN, 1984: 174. O autor refere-se, como se sabe, às noções de, respectivamente, face negativa, face positiva e FTA, propostas por Brown & Levinson. 61 181 182 «Atenuação é uma função interactiva dum acto comunicativo a (contendo meios de atenuação) graças à qual – comparado com um acto comunicativo a’ menos atenuado, que este seja realizado concretamente no contexto ou seja hipotético (realizável) – os participantes da interacção aceitam e/ou estabelecem menos obrigações do que pelo acto comunicativo a’.»64 Apresentamos, na FIG. 6, para simplificar, os sete tipos de atenuadores e as formas/meios que lhe correspondem, segundo a descrição do autor. Meyer-Hermann não analisa nem descreve cada um destes meios/formas que extraiu de fragmentos de discursos-textos orais. Refere, todavia, que numa comunicação, «o falante tenciona reduzir as obrigações em relação a si mesmo e/ou ao ouvinte», socorrendo-se para o efeito de tais atenuadores, os quais desempenham «as funções interactivas [...] mais variadas».65 Como, por exemplo, o emprego de como se costuma dizer, em «outros [filhos] coitadinhos porque não têm pais e são atirados às feras como se costuma dizer».66 TIPOS Advérbios Formas talvez, às vezes, por vezes, possivelmente, provavelmente, etc. Partículas assim, pouco, bocado, bocadinho, mais ou menos, não sei, sei lá, ou qualquer coisa, não é (em posição final), etc. «Hedges» (Verbos mo- dever, poder, querer, é capaz de + infinitivo, julgo que, penso que, dais) parece que, tenho a impressão, se bem entendi, se bem percebi... Tipos de frase pergunta alternativa, pergunta alternativa negada, frase de comparação... Tempos verbais e mo- futuro e imperfeito do indicativo, condicional... do conjuntivo Fenómenos de hesita- digamos, quer dizer, ah, eh, etc. ção e pausas sonoras Metacomunicação isto é para já uma opinião pessoal, a minha opinião, como se costuma dizer, quanto a mim... FIG. 6 – Atenuadores linguísticos, baseado em MEYER-HERMANN, 1984: 177-186. 64 Id.: 175-176. Poucas linhas antes, o autor, a propósito do pedido, acto que «restringe a liberdade de acção» do alocutário, observa: «Uma vez que restrições equivalem a obrigações pode resumir-se que os meios de atenuação servem para reduzir as obrigações estabelecidas pelos e para os participantes na comunicação.» [Id.: 175] 65 MEYER-HERMANN, 1984: 186. 66 Id.: 186. 182 183 O romanista fixa-se na «frase metacomunicativa» como se costuma dizer, referindo que ela «serve para atenuar obrigações estabelecidas pelo emprego da expressão atirados às feras.» Através daquela «frase», o falante quer distanciar-se desta «expressão», considerando-a uma espécie de citação, declinando, assim, a sua responsabilidade pela sua enunciação. Porque atirados às feras pode ser interpretado, explica o autor, como uma infracção contra determinadas normas do comportamento comunicativo, ao utilizar como se costuma dizer, o falante procede a uma espécie de profilaxia contra sanções. Profilaxia que é «uma das muitas funções interactivas da atenuação», tal como outras, por exemplo, «uma “oferta” (do falante) de constituir um foco, a manifestação da cooperação na constituição dum tema na comunicação, etc., para os processos de topicalização».67 A importância do fenómeno “atenuação” e o seu ensino, «como processo básico da competência comunicativa», leva o linguista a propor que o ensino do Português LE (como de outras línguas) seja baseado, não nos formas e moldes da gramática tradicional, mas «num tipo de gramática que esteja dividida em capítulos», por um lado, «segundo funções comunicativas – por exemplo “atenuação” e subfunções» e, por outro, «segundo esquemas / processos / rituais interactivos (comunicativos) característicos da comunidade comunicativa portuguesa.»68 Segundo esta proposta, num dado contexto de comunicação / interacção, «o falante não precisa de saber quais seriam as diversas funções [por exemplo] do imperfeito, mas tem que resolver o problema de realizar um determinado acto verbal, digamos um pedido. Tem que proceder a uma avaliação da situação, isto é, das características do ouvinte, do tipo de conversa, etc., etc. Com base nesta avaliação o falante determina a (não-)utilização de meios de “atenuação” na realização do pedido.»69 Defender uma gramática organizada segundo as funções de atenuação / intensificação é relevar que os usos duma língua são fundamentalmente actos verbais duma competência de comunicação alargada, de que a competência de cortesia é parte inalienável, como temos defendido, enquanto subcompetência da competência discursivo-textual. 67 Id.: 187. Id.: 190 e 193. 69 Id.: 191. 68 183 184 2.2. Sílvia Skorge e Emília Ribeiro Pedro: diminutivos e cortesia Em meados do século passado, Sílvia Skorge publica um interessante estudo,70 de natureza filológica, estilística e etnográfica, sobre a formação e as funções dos sufixos diminutivos em Português. Descreve, com especial desenvolvimento, as formas em -inho e -ito, por considerar que se trata dos sufixos mais utilizados e mais expressivos, desde os textos portugueses mais antigos.71 A partir de exemplos retirados, sobretudo, de obras literárias (cultas e tradicionais), mas também de exemplos orais, a autora faz, por um lado, uma descrição dos processos gerais de sufixação diminutiva em Português e, por outro, um levantamento exaustivo das suas funções, as quais classificamos de semântico-pragmáticas. Segundo a autora, os diminutivos continuam a mostrar «vitalidade e produtividade», na linguagem corrente do Português actual, como «meio estilístico através do qual se dá sobretudo expressão ao afecto».72 Antes, porém, de proceder ao seu levantamento, a autora tece algumas considerações gerais sobre os valores funcionais daqueles sufixos. Deixando de parte «saber se o sufixo diminutivo originàriamente apenas era diminutivo tornando-se depois afectivo, ou se o valor diminutivo e afectivo estiveram ligados logo no princípio», a autora chama a atenção, em primeiro lugar, para o facto das formas em -inho e -ito não serem «em geral, termos fixos, mas variáveis de sentido», cujos valores «têm que ser sempre considerados em relação com o contexto».73 Por outro lado, observa que, embora «não altere [em geral] o significado do radical da palavra sufixada», o sufixo diminutivo «traduz, no entanto, com maior intensidade os sentimentos, os afectos, ou as intenções cambiantes das pessoas que o empregam tornando assim certas expressões mais sugestivas, penetrantes ou delicadas.» E acrescenta, destacando, mais uma vez, valores de natureza pragmática e retórica: «Por vezes [as pessoas] parecem até usá-lo para influenciar o interlocutor, para o distrair ou para despertar nele maior atenção para algo.»74 De entre a longa lista de funções elaborada, interessam-nas apenas aquelas que dizem respeito aos fenómenos de cortesias e/ou de descortesia, de que o recurso aos diminutivos são também um meio ou estratégia. 70 Cf. SKORGE, 1956-57 e 1958. Cf. id.: 222. Considerando as distinções entre os valores destes sufixos, a autora observa que, em geral, se pode «comprovar que -ito é mais diminutivo e -inho mais afectivo». [Id.: 62] 72 Id.: 54. 73 Id.: 223. 74 Id:: 224. 71 184 185 No grupo de diminutivos que, em Português, são usados como meio de atenuação, Skorge agrupa, descreve e exemplifica aqueles substantivos e adjectivos,75 através dos quais o locutor expressa: a) modéstia e eufemização de palavras feias; b) depreciações, como insultos, expressões de miséria e indigência; c) ironia; d) fórmulas interlocutórias («Dirigindo-se ao interlocutor»); e) tratamentos alocutivos e delocutivos; f) adjectivos diminutivos. A descrição que Skorge faz dos diminutivos portugueses revela valores semântico-pragmáticos de cortesia e de descortesia que, por atenuação ou intensificação, eles desempenham no estabelecimento, manutenção, recuperação ou denegação das boas relações entre os interlocutores, quer os referentes sejam eles próprios, quer terceiros ausentes. A autora resume, como segue, as suas observações sobre os sufixos diminutivos protugueses. Observações que, passados cinquenta anos, não deixaram de ter actualidade, ou melhor, ganham maior actualidade, no âmbito dos estudos da Linguística Pragmática. «O emprego de sufixos diminutivos indica ao leitor ou interlocutor que aquele que fala ou escreve põe a linguagem afectiva no primeiro plano. Não quer comunicar ideias e reflexões, resultantes de profunda meditação, mas o que quer é exprimir, de modo espontâneo e impulsivo, o que sente, o que o comove ou impressiona – quer seja carinho, saudade, desejo, prazer, quer, digamos, um impulso negativo: troça, desprezo, ofensa. Assim se encontra no sufixo diminutivo um meio estilístico que elide a objectividade sóbria e a severidade da linguagem, tornando-a mais flexível e amável, mas às vezes também mais vaga. O que, por um lado, possibilita a expressão espontânea e adequada de afectos, pode, por outro lado, servir para substituir sentimentos sinceros por fingidos. Uma vez encontrada a forma, já nem sempre importa o conteúdo.»76 Nesta ordem de ideias, os diminutivos, além de estratégia (sobretudo) de cortesia, inscrevem-se também no âmbito da expressão dos afectos e emoções (E as formas 75 76 Cf. id.: 225 e ss. SKORGE, 1958: 50-51. 185 186 de cortesia e de descortesia não são também expressões de afectos e emoções?...), domínio que, como já referimos, ganha cada vez mais terreno no campo dos estudos linguísticos, nomeadamente ao nível da Estilística Linguística, da Análise Discursivo-textual e da Retórica Interpessoal. Emília Ribeiro Pedro também descreve, segundo uma perspectiva contrastiva e sociocultural, as funções que desempenham os diminutivos e construções com o item lexical «pequeno» em Português, enquanto «marcadores de delicadeza»,77 face ao Inglês. A teoria adoptada é a de Brown & Levinson, embora a autora siga o modelo de análise que, com os mesmos objectivos, Maria Sifianou utilizou no estudo dos diminutivos gregos, por nele ter encontrado, segundo refere, muitas conclusões semelhantes às suas.78 Para a linguista portuguesa, o uso de diminutivos e de construções com “pequeno” desempenham, nas língua e cultura portuguesas (tal como na inglesa, na grega e nas línguas europeias em geral) funções ao nível do afecto, do envolvimento interaccional, da cortesia e da própria sociedade. Por outro lado, considera questionável, como faz Sifianou, a teoria de Brown & Levinson sobre as noções de imposição e hierarquia de imposições, na explicação sobretudo dos pedidos.79 Independentemente dos processos de derivação e construção sintagmática específicos de cada língua, a autora confirma, com base precisamente no estudo de Sílvia Skorge e em observações da experiência quotidiana, que, em Português, os diminutivos são utilizados «numa extensa variedade de situações entre crianças e adultos», enquanto que, em Inglês, se verifica uma «quase inexistência de diminutivos e uma muito clara preferência pela forma “please”».80 A explicação para esta diferença encontra-a no facto dos interlocutores (tal como os gregos, segundo Sifianou) se sentirem, «psicológi77 PEDRO, 1993: 413-414. Ao longo de toda a comunicação, Pedro utiliza sempre o termo «delicadeza» para designar o que nós referimos por cortesia. 78 Id.: 406. A autora refere-se a SIFIANOU, 1992. Esta linguista desenvolve um estudo contrastivo da cortesia linguística em Grego e Inglês, segundo uma perspectiva intercultural, com base também na teoria de Brown & Levinson, em SIFIANOU, 19992. Logo no início desta obra, a autora esclarece: «The research presented here has been motivated by a general concern for the study of the principles underlying interaction in cross-cultural contexts and has been inspired by work of Brown and Levinson, exploring mainly their distinction between ‘positive’ and ‘negative’ politeness.» [SIFIANOU, 19992: 1] Sobre os diminutivos em Grego, como atenuadores corteses de pedidos, cf. id.: 165-169. Sobre construções, em Grego, com «liγo» (pouco) e «mikro» (pequeno), como atenuadores, cf. id.: 169-173. 79 Pedro considera também, tal como têm feito outros autores, que a teoria de Brown & Levinson, ao considerar «toda a acção linguística como potencialmente ameaçadora expressa uma visão muito pessimista da interacção e representa uma avaliação negativa da delicadeza, reflectindo uma grande preocupação com as imposições.» [PEDRO, 1993: 407] 80 PEDRO, 1993: 415. 186 187 ca e socialmente, muito mais próximos uns dos outros», por uma questão de «extrema necessidade», facto comprovado, por exemplo, na expressão recíproca do afecto, considerado «de grande importância, enquanto obviante de inseguranças pessoais e sociais.» Por outro lado, a autora considera que «em sociedades onde os falantes se encontram nitidamente em situação psicológica e social de distância», como a inglesa, os interlocutores expressam menos as suas emoções e evitam, por isso, o uso de diminutivos, preferindo, «expressões de maior formalidade» que lhes garantem «a segurança psicológica e social».81 Nesta ordem de ideias, as diferenças linguísticas que, no Português e no Inglês, se manifestam ao nível dos usos de diminutivos, «dão testemunho das diferenças culturais entre as duas sociedades»,82 uma vez que «a língua condiciona e é condicionada pelas características socioculturais do povo que a fala».83 Emília Pedro conclui, assim, que a sociedade portuguesa tem (como Sifianou concluiu em relação à grega84), uma orientação geral para a cortesia positiva, enquanto a sociedade inglesa parece estar mais voltada para a cortesia negativa.85 Tendo em consideração a realidade linguística e sociocultural portuguesa, Pedro descreve o uso dos diminutivos em Português, começando por considerar que as suas 81 Id.: 415. A mesma opinião encontra-se em WIERZBICKA, 1985: 168, citado por PEDRO, 1993: 413. PEDRO, 1993: 407. 83 Id.: 405. A linguista admite, como outros, que o uso de diminutivos pode ser também uma marca que distingue o falar das mulheres, mais voltadas para estratégias de cortesia positiva, por oposição ao falar dos homens, mais voltados para as estratégias de cortesia negativa. [Id.: 412] Sobre este ponto, ver também BROWN & LEVINSON, 19966: 251. 84 Sifianou, ao tratar o ponto «Greek culture and the notion of face», depois de comparar as sociedades grega e inglesa, em termos de orientação de cortesia, conclui: «Summing up, it could be suggested that although positive and negative politeness interact in intricate ways, Greeks tend to use more positive politeness devices, especially to their in-group members, as opposed to the English who seem to prefer more negative politeness devices.» [SIFIANOU, 19992: 43] Esta ideia de que os ingleses, como os restantes povos ocidentais, preferem sobretudo estratégias de cortesia negativa, encontra-se já em Brown & Levinson: «When we think of politeness in Western cultures, it is negative-politeness behaviour that springs to mind. In our culture, negative politeness is the most elaborate and the most conventionalized set of linguistic strategies for FTA redress; it is the stuff that fills the etiquette books (but not exclusively – positive politeness gets some attention).» [BROWN & LEVINSON, 19966: 129-130] 85 A propósito de línguas e culturas onde, como a portuguesa, «os sentimentos e as emoções, negativos e positivos, tendem a ser expressos de modo explícito», escreve Pedro: «O uso extensivo dos diminutivos como marcadores de delicadeza positiva indica que na interacção quotidiana é preferida uma estratégia de delicadeza positiva, principalmente para a comunicação de similaridade entre os interlocutores e informalidade. Numa sociedade com orientação de delicadeza positiva, torna-se natural que um tal sistema tenha sido desenvolvido para satisfazer essas necessidades de delicadeza.» Pelo contrário, na língua e cultura anglo-saxónica, que «não encoraja a expressão das emoções [...] o sistema de diminutivos não é tão necessário e é, portanto, restrito.» Todavia, avisa a linguista (como também faz Sifianou) que «embora as sociedades se possam distinguir de acordo com as suas orientações de delicadeza positiva ou negativa, este facto é mais relativo do que absoluto». [PEDRO, 1993: 413 e 414]. Sobre a classificação das sociedades e culturas, segundo o tipo de cortesia que, eventualmente, as caracterizam, ver BROWN & LEVINSON, 19966: 242-255, KERBRAT-ORECCHIONI, 1994, 1996, 2000, 2000b e SIFIANOU, 19992. 82 187 188 «funções primárias [...] parecem, desde sempre, ter-se alargado, para servir uma variedade de necessidades», entre as quais a expressão de cortesia positiva, «quer partilhando um espaço afectivo comum, quer mostrando solidariedade para com o interlocutor». E explica : «O sistema muito desenvolvido da derivação de afecto em Português mostra uma orientação positiva de delicadeza na sociedade que o desenvolveu. Quando os falantes usam diminutivos com referência às suas próprias coisas, características ou realizações, a conotação pode ser de afecto, mas, ao mesmo tempo, pode exprimir uma tentativa para reduzir a possibilidade dos enunciados serem interpretados como auto-louvor (trago-lhe este presentinho, a minha casita). É uma estratégia de delicadeza positiva.»86 A linguista portuguesa manifesta, todavia, «muitas dúvidas quanto à “plausabilidade” do modelo de Brown e Levinson»,87 na análise da expressão da cortesia em Português, nomeadamente quanto à noção de imposição e às atitudes dos interlocutores em relação ao envolvimento interaccional.88 Propõe, por isso, que «em vez de [se] considerar sociedades de predominância de estratégias de delicadeza positiva e/ou negativa», como fazem Brown & Levinson e seus seguidores, se passe a «utilizar os conceitos de proximidade e/ou distância psicológica e social».89 Apresentados os pontos essenciais da comunicação de Pedro, sobre as funções de cortesia dos diminutivos na língua e cultura portuguesa, face à língua e cultura inglesa (e grega, via Sifianou), gostaríamos de comentar, de momento, a opinião da autora segundo a qual Brown & Levinson centram o seu estudo na análise da língua e cultura inglesas. Convém recordar que os autores de Politeness tiveram em consideração também outras línguas e outras culturas. Além do Inglês, «from both sides of the Atlantic», os autores utilizaram também construções do Tzeltal, «a Mayan language spoken in the community of Tenejapa in Chiapas, Mexico», e do Tamil, do sul da Índia, «from a village in the Coimbatore District of Tamilnadu», bem como, ocasionalmente, outras lín- 86 PEDRO, 1993: 409. Id.: 414. 88 Cf. PEDRO, 1993: 407. 89 Id.: 414-415. Recorde-se que, como vimos, as noções de proximidade e de afastamento são propostas também por Carreira, para a análise das formas de tratamento, interlocutórias e de cortesia. 87 188 189 guas de culturas ocidentais e orientais.90 Quanto à questão dos certos pedidos serem ou não impositivos, comentá-la-emos ao analisarmos os actos directivos.91 Cabe observar, por último, que Pedro não teria conhecimento, na altura, das correcções e melhoramentos do modelo de Brown & Levinson, introduzidos por Kerbrat-Orecchioni. Facto compreensível, já que a comunicação da linguista portuguesa ocorreu no mesmo ano da publicação do tomo II de Les Interactions Verbales (1992). 2.3. Maria Emília Ricardo Marques: cortesia e deferência Em Complementação Verbal - Estudo sociolinguístico,92 dissertação de doutoramento, a autora tece algumas breves considerações sobre as «formas de delicadeza», ao abordar os «níveis de deferência», nos quais inclui, enquanto «designação genérica» também os níveis de fala / registo, as formas honoríficas e as formas de tratamento.93 A autora retoma, no livro didáctico Sociolinguística,94 os problemas tratados no primeiro volume da dissertação, mas introduz-lhe várias correcções e alterações, anexando-lhe, além disso, vários estudos, sobretudo seus, mas também alheios, como «Leituras Complementares»95 de temas expostos, bem como exercícios («Práticas»), a realizar pelos estudantes. Consideramos este livro uma nova edição (que podemos entender como corrigida e aumentada) do referido primeiro volume. Será baseados sobretudo nele, por isso, que exporemos as observações que a autora formula a propósito da cortesia verbal. As fórmulas de delicadeza constituem, segundo a linguista, um outro aspecto da noção de deferência que considera, ao mesmo tempo, tratar-se dum dos mais importantes em Sociolinguística. Recusa, todavia, a existência de sinonímia entre cortesia e deferência: a cortesia «é uma dimensão que difere da deferência», na medida em que «pode-se ser delicado sem mostrar deferência» e «falar indelicadamente, mas com marcas exteriores de extrema deferência». Ou, para vincar a distinção, porque «ares superiores de condescendência podem transparecer em fórmulas delicadas: porque comportamen90 Cf. BROWN & LEVINSON, 19966: 59 e passim. Ver, infra, cap. VII. 92 MARQUES, 1988. 93 MARQUES, 1995: 137. A autora utiliza frequentemente o termo «delicadeza», mas por vezes também o termo «cortesia». 94 MARQUES, 1995. 95 CARDOSO, 1995; CARREIRA, 1995a, 1995b, 1995c; LAPA, 1995, MARQUES, 1995a, 1995b, 1995c, 1995d, 1995e, 1995f, 1995g e 1995h. 91 189 190 tos, falhos na mínima cortesia, podem ser ritualmente deferentes.» Nesta ordem de ideias, a deferência exprime-se na opção por certas formas honoríficas e por determinados registos, enquanto que a cortesia «é sobretudo marcada por linhas de entoação, por formas eufemísticas ou indirectas do dizer, por formas que tornam difusas, que atenuam ideias expressas e que respondem a uma intenção do locutor: a de ser delicado, a de não ferir, a de não chocar.» 96 Marques interessa-se, sobretudo, por «aquelas formas de contextos em que a intenção de delicadeza levou a estratégias ou positivas a atenuar o dito, ou negativas a diminuir o grau de implicação-responsabilização no discurso, pela distância criada.»97 E refere os seguintes processos linguísticos: a) «certas modalidades»; b) «alguns tipos de estruturas (relativas, completivas...)»; c) «perífrases do tipo “Ele é mais para o género...”, ou “Isso pode ser mal interpretado”»; d) «apagamento do sujeito gramatical ou sua transformação em sujeito indefinido/indeterminado, etc.»98 Contrariamente à posição da autora, que considera a cortesia (delicadeza) um outro aspecto da noção de deferência, nós, de acordo com a noção alargada de cortesia que seguimos, vemos antes a deferência como um aspecto da cortesia, «un cas particulier de politesse», como também defende Kerbrat-Orecchioni.99 O termo cortesia funciona como um arquilexema que recobre as noções de tacto, cortesania, delicadeza, polidez, civilidade, urbanidade, boas maneiras, etiqueta, deferência, educação, etc. Para a linguista francesa, a deferência é «une espèce particulière de politesse, dont la spécificité tient à ce qu’elle reflète le statut hiérarchique des participants, et qu’elle consiste dans la manifestation d’une subordination symbolique à autrui».100 Há, de facto, contextos onde o bom funcionamento duma interacção verbal exige que a cortesia assuma atitudes de deferência e mesmo de reverência. Recorde-se, por exemplo, como o povo católico cumprimenta, geralmente, as altas figuras do clero. 96 MARQUES, 1995: 202. Id.: ibid. A propósito, a autora refere, em nota, LAKOFF, s/d e BROWN & LEVINSON, 1978. A referência aos autores de Politeness não aparece em MARQUES, 1988. 98 MARQUES, 1995: 202-203. As alíneas são da nossa responsabilidade. 99 KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 258. 100 Id.: 163. 97 190 191 A distinção que Marques defende entre deferência e cortesia encontra-se também noutros autores, sobretudo entre aqueles que estudam as manifestações duma e outra, em termos culturais.101 Para esses autores, na síntese de Kerbrat-Orecchioni, a) «la déférence et la politesse n’empruntent pas pour s’exprimer les mêmes voies: honorifiques et le niveau de langue dans le premier cas [...], procédés plus diversifiés dans le second (contour intonatif, formulation indirecte, “hedges”, etc.)»; b) «elles ne relèvent pas du même degré de codage, la déférence étant “grammaticalisée”, à la différence de la politesse.»102 Kerbrat-Orecchioni é de opinião que a deferência, como a cortesia pode ter formas gramaticalizadas ou não, ser recíproca ou não, estar dependente do contexto ou não. A propósito do contexto, a linguista francesa considera que, apesar das regras de cortesia serem «par excellence “context-sensitive”, c’est-à-dire soumises à des conditions d’application qu’il est nécessaire de spécifier pour que ces règles puissent devenir véritablement opératoires», tais regras são, todavia, «éminemment flexibles».103 Contesta, por isso, a posição dos que, como Fraser & Nolen, defendem que a cortesia é uma propriedade apenas de enunciados realizados («utterances») e não de enunciados abstractos («sentences»), isto é, que se possa dizer que uma frase, fora de contexto, é mais cortês que outra. Kerbrat-Orecchioni considera «inconstestável» a existência de enunciados corteses «em si», ao contrário de outros que o são em menor grau, ou que não o são. Por isso, tal como são necessárias determinadas condições de «felicidade» para a realização com sucesso dos actos ilocutórios, também «la politesse est bien une propriété intrinsèque de l’énoncé abstrait, mais une propriété virtuelle, qui pour s’actualiser a besoin que soient réunies un certain nombre de conditions contextuelles de réussite». 104 101 Kerbrat-Orecchioni observa que é sobretudo em países com relações sociais hierarquicamente organizadas (como o Japão e a Coreia), que a deferência encontra o seu «terreno de eleição». [Cf. Id.: 163] 102 Id.: 164. Alineação da nossa responsabilidade. 103 Id.: 257. 104 Id.: ibid. A autora comenta a seguinte citação de Fraser & Nolen: «No sentence is inherently polite or impolite. We often take certain expressions to be impolite, but it is not the expressions themselves but the condition under which they are used that determines the judgment of politeness (...). A speaker becomes impolite just in cases where he violates one or more of the contractual terms». [FRASER & NOLEN, 1981: 96-97, cit. por KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 257. Cf. também FRASER, 1990: 233] 191 192 O uso de enunciados «em si» corteses que não satisfazem tais condições levam, por um lado, ao fracasso do chamado «efeito de cortesia» e, por outro, à produção de outros efeitos, desejados ou não, como serão os de «hipercortesia», de cortesia «deslocada», ou mesmo de descortesia. Com maior ou menor desenvolvimento, segundo perspectivas de análise diversas (lexicais, morfossintácticas, semânticas, semântico-pragmáticas, conversacionais, linguística contrastiva, linguística aplicada...), outros estudos se vem referindo, ultimamente a alguns dos fenómenos que, explícita ou implicitamente, se integram no âmbito da cortesia linguística. Alguns desses estudos serão tidos em consideração, ao tratarmos pontos com os quais estejam directamente relacionados, nos capítulos seguintes e sobretudo ao analisarmos as formas de tratamento em Português. 192 Capítulo VI TEMPOS E MODOS VERBAIS DE CORTESIA / DESCORTESIA Reconhece a generalidade dos gramáticos e linguistas a existência de tempos e modos verbais que, pelos valores semânticos que os caracterizam, são mais aptos à realização de actos corteses, enquanto outros o são à realização de actos descorteses. Assim, as formas do imperfeito, do condicional e do futuro (bem como todas as formas do conjuntivo, em geral) são geralmente consideradas de cortesia, ao passo que as formas do imperativo (e do indicativo, em geral) são consideradas de menos cortesia e mesmo de descortesia. Veremos que nem sempre assim é, se bem que tais considerações possam ser aceites, à partida, como regra geral, ao nível sobretudo de sistema. Consideraremos, neste capítulo, os valores corteses e descorteses que, a nível semântico-pragmático, podem expressar, por um lado, o imperativo, o indicativo e o conjuntivo, descrevendo estes modos, isoladamente e/ou contrastivamente, seguindo-se a descrição dos respectivos tempos verbais. Esta distinção, como se verá, tem apenas interesse analítico e metodológico, uma vez que a noção de tempo e de modo são indissociáveis, isto é, não há modo sem um tempo de realização, tal como não há tempo sem modo em que se situe. 1. Os Modos 1.1. O imperativo O imperativo, embora seja o modo verbal que menos formas próprias tem, é, todavia, o que mais valores semânticos e pragmáticos pode expressar, tanto em enunciados afirmativos como negativos. São próximas as relações que este modo mantém com formas do indicativo e sobretudo do conjuntivo. Com efeito, além das formas próprias que «corresponde[m] praticamente à 2.ª pessoa do singular e do plural do presente 194 do indicativo, com um s a menos»,1 o imperativo socorre-se ainda, para as restantes pessoas gramaticais, de formas supletivas que pertencem ao presente do conjuntivo. Mas os valores da imperatividade poderão ser realizados também, indirectamente, através de formas de outros tempos/modos, bem como de outros meios linguísticos pertencentes a outras categorias gramaticais, que vamos designar por formas substitutas. As formas próprias e supletivas do imperativo são alocutivas por natureza, i. e., o locutor dirige-se a um alocutário para que este realize uma determinada acção física ou verbal, ou mesmo um actividade mental (imaginar, pensar, reflectir, raciocinar...), num futuro mais ou menos próximo,2 ocorrendo, por isso, apenas em orações independentes (absolutas, principais e coordenadas). Cunha & Cintra, em Nova Gramática do Português Contemporâneo, registam que o imperativo, nas suas formas próprias e supletivas, podem exprimir: - «uma ordem, um comando» (v.g., «Cala-te, não digas nada.»3); - «uma exortação, um conselho» (v.g., «Sê todo em cada coisa. Põe quanto és / No mínimo que fezes.»4); - «um convite, uma solicitação» ( v.g., «Georges! anda ver meu país de romarias / E procissões!»5); - «uma súplica» (v.g., «- Jesus, valha-me Nossa Senhora!...»6); - «uma hipótese em lugar de asserções condicionadas» (v.g., «Suprima a vírgula, e o sentido ficará mais claro.», por «Se suprimir a vírgula, o sentido ficará mais claro.»7 1 LAPA, 19758: 209. Este estilista considera, por outro lado, que as formas afirmativas (que designa de «positivas»), «marca[m] uma ordem dada com energia», na qual «se manifesta fortemente a vontade do ordenante». O imperativo negativo, por seu turno, «é expresso pelo conjuntivo», fazendo com que a «ordem proibitiva» por ele realizada «seja mais atenuada do que a ordem positiva». [Id.: 209] Como veremos a seguir, o imperativo negativo não se expressa apenas através das formas do presente do conjuntivo. 2 A propósito, Cunha & Cintra relevam que este modo, apesar de enunciado no tempo presente («presente do imperativo»), «tem valor de um futuro», uma vez que «a acção que exprime está por realizar-se.» [CUNHA & CINTRA, 1984: 476] E Mário Vilela observa que, nas formas do imperativo, há «um sema evidente [...] de “futuro” (o tempo da realização).» [VILELA, 1995: 140] Carreira, numa perspectiva semântico-pragmática, observa que o imperativo é «prospectivo, já que o seu efeito perlocutório se situa num advir». [CARREIRA, 2001: 98, nota 6] 3 Exemplo colhido pelos autores em Carlos de Oliveira, 19758: Uma Abelha na Chuva. Lisboa: Sá da Costa; p. 98. 4 Retirado, pelos autores, de Fernando Pessoa, 1960: Obra Poética. Rio de Janeiro: Aguilar; p. 239. 5 Retirado, pelos autores, de António Nobre, 18982: Só. Lisboa: Guillar & Aillaud; p. 32. 6 Exemplo colhido em Bernardo Santareno, 1969: A Traição do Padre Martinho. Lisboa: Ática; p. 25. 7 Frase da autoria dos autores, cf. CUNHA & CINTRA, 1984: 475. Na exemplificação dos valores imperativos registados, Cunha & Cintra recorrem, por sistema, a exemplos retirados de textos literários. Todavia, porque não co(n)textualizados, tais exemplos nem sempre ilustram com clareza o(s) valor(es) proposto(s). Os autores recorrem, por vezes, a exemplos da linguagem corrente, ou por si inventados. Justificam, todavia, a sua opção por exemplos literários, no «Prefácio» da Nova Gramática, ao apresentarem-na como «uma tentativa de descrição do português actual na sua forma culta, isto é, da língua como a têm 195 Além dos valores de ordem, pedido e conselho, Mário Vilela, em Gramática da Língua Portuguesa,8 refere que o imperativo realiza ainda valores de «ameaça» e de «advertência».9 Ao descrever os tipos de frase, o linguista observa que, com as imperativas, se procura fazer com que o destinatário faça algo, acrescentando que há vários meios linguísticos para exprimir uma ordem, «com diferentes matizes e efeitos», sendo o meio mais marcado «a forma imperativa do verbo».10 Dentro duma perspectiva claramente semântico-pragmática, Carreira, ao analisar os fenómenos da cortesia linguística e a realização dos actos directivos em Português europeu actual, observa que o imperativo é, possivelmente, o processo mais imediatamente disponível para se exprimir uma injunção.11 E, ao analisar as diferentes realizações atenuadas, ou seja, com maior ou menor cortesia, do acto directivo da ordem, coloca no pólo, ou área polar, + Delicadeza // - Direcção (acto indirecto), oposto ao pólo ou área polar –Delicadeza // +Direcção (acto directo), o pedido, o conselho, a sugestão, o desejo, actos que, quando formulados com «valor injuntivo», atenuam a realização directa e directiva da ordem.12 Na Gramática da Língua Portuguesa de Mira Mateus et al., os modos verbais são descritos segundo uma perspectiva pragmática, pois o seu emprego está ligado aos tipos de actos ilocutórios que realizam. Segundo as autoras, há factores que, ao adquirirem preponderância na interacção verbal, fazem com que a atitude do locutor não seja apenas determinada pelo grau de conhecimento que este tem do estado de coisas do conteúdo proposicional, mas também pelo «factor “alocutário”», como é o caso dos actos utilizado os escritores portugueses, brasileiros e africanos do Romantismo para cá, dando naturalmente uma situação privilegiada aos autores dos nossos dias.» Observam, por outro lado, não terem descurado «dos factos da linguagem coloquial», sobretudo ao analisarem «os empregos e os valores afectivos das formas idiomáticas.» [Id.: XIV] De ora em diante, a referência Nova Gramática diz respeito a este título. 8 VILELA, 1995. A propósito, é de referir e realçar o facto de Vilela organizar a sua Gramática em torno de três grandes domínios, presentes desde logo no subtítulo da obra, a saber: «Gramática da palavra», «Gramática da frase» e «Gramática de texto e textologia». É, quanto julgamos saber, a primeira gramática portuguesa que dedica um longo capítulo à problemática do texto e da textualidade, capítulo que, na segunda edição (1999), apresenta desenvolvimentos e revisões importantes. 9 Cf. id.: 140. 10 Id.: 247. 11 CARREIRA, 1995: 228. 12 Cf. id.: 228 e ss.; 1995c: 86 e ss., e 2001: 105 e ss. Convém observar que a autora não afirma que todos estes actos, incluindo o acto directo da ordem, sejam expressos pelo imperativo. A propósito, é de referir que não nos parece suficientemente clara a descrição feita entre actos com valor injuntivo que realizam actos indirectos de ordem (pedidos, conselhos, sugestões, desejos...) e o acto directivo directo de ordem. É frequente associar-se o imperativo aos actos directivos, dado o seu valor injuntivo. Por exemplo, em BROWN & LEVINSON, 19966: 95 e passim, CHARAUDEAU, 1992: 583, HAVERKATE, 1994 : 162, KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 200 e 1996: 55, LEECH, 199610: 119, MATEUS et al., 19892: 107, OLIVEIRA, 2000: 110, RODRIGUES, 1996: 96 e WEINRICH, 1989: 162, entre outros. De observar que estes autores não afirmam que as formas imperativas são as únicas que realizam actos directivos. 196 imperativos. Reconhecem também que o imperativo anda habitualmente associado à realização de actos directivos (de ordem ou de pedido), uma vez que através deles o locutor tenta que o alocutário realize, no futuro, o conteúdo proposicional da frase proferida. Na estrutura das frases simples imperativas, o verbo encontra-se, por isso, «modalizado pela atitude que o locutor assume em relação ao alocutário, em função de um objectivo ilocutório directivo». O verbo pode então ocorrer quer nos modos imperativo, conjuntivo, indicativo, quer no infinitivo ou no gerúndio. Seja qual for o modo utilizado, o locutor procura sempre controlar, a «vários graus», a acção futura do alocutário, particularmente na expressão da ordem.13 Com as formas do imperativo, o locutor atribui, por isso, a si próprio um certo estatuto de autoridade e ao seu alocutário um certo estatuto de inferioridade14 mesmo que este não reconheça nem aceite um e/ou outro desses estatutos. O efeito perlocutório de vontade ou desejo procurado pelo locutor encontra-se, de facto, como observa Joaquim Fonseca, vinculado, «por convenção pragmática», ao uso do imperativo, quer através de enunciados impositivos, «com força ilocutória de ordem», quer através de enunciados não impositivos, os quais projectam, consoante o contexto, «valores ilocutórios como advertência, aviso, conselho, recomendação ou incitamento (persuasivo ou dissuasivo).»15 O imperativo é, por isso, um modo utilizado, sobretudo, «em situações enunciativas mais ou menos marcadamente assimétricas», isto é, «caracterizadas por uma distribuição desigual de lugares entre os interactantes», situações essas que, além disso, «envolvem muito regularmente um trabalho de figuração que [...] matiza largamente a definição dos lugares enunciativos.»16 Os actos directivos podem ser reforçados e/ou atenuados, através das formas imperativas. Os autores da Nova Gramática distinguem e exemplificam outros possíveis processos de reforço da ordem.17 Entre esses processos, registam 13 Cf. MATEUS et al., 19892: 89, 107 e 249. De observar que o conteúdo proposicional de um enunciado nem sempre coincide com a acção a realizar pelo alocutário. Por exemplo, no Minho, pelo menos, quando alguém entra num espaço e deixa a porta aberta, é costume perguntar-se-lhe «É(s) de Braga?», cujo objectivo ilocutório é que feche a porta, ou que a devia ter fechado, tratando-se, neste caso, também dum acto de censura. O alocutário, se se ativer apenas ao conteúdo proposiconal, poderá responder com um simples «sim» ou «não», tornando perlocutoriamente infeliz aquele acto directivo indirectamente formulado. 14 Cf. CHARAUDEAU, 1992: 582 e 648. Cf. também FONSECA (F.), 1994: 32 e 33, e HAVERKATE, 1994: 38 e nota 2 15 FONSECA (J.), 1993: 150 e 166. 16 Id.: 153. 17 Cf. CUNHA & CINTRA, 1984: 478-479. Mantemos a designação dos autores, mesmo sabendo que nem todos os exemplos apresentados pelos autores poderão ser considerados actos de ordem, como depois se verá (infra, cap. VII). 197 a) a repetição da forma verbal (v.g., «- Fale, fale, que eu vou ouvindo...»18) b) uso «de um advérbio, de uma expressão de insistência, ou de imprecações» é outro processo (v.g., «Escreva por amor de Deus imediatamente para Barcelona!...»19) c) emprego da 3.ª pessoa do conjuntivo «aplicada ao interlocutor», (v.g,. «Pega... Pega... Lá se foi... Que o leve o diabo.»20) Dos exemplos indicados como reforço da ordem, o último parece-nos o menos adequado. Com efeito, é usada a 3.ª pessoa do conjuntivo («leve»), dirigida a um interlocutor, a quem foram dirigidas, antes, formas imperativas de 2.ª pessoa repetidas («Pega... Pega»). Com as reservas resultantes da ausência de co(n)texto, mas tendo em conta a descrição feita, não nos parece que a mudança de tuteamento («Pega») para voceamento («Que o leve o diabo»), se enquadre nos processos de reforço da ordem. Aqui, tal mudança é mais um comentário de censura pelo facto do interlocutor não ter pegado alguma coisa. Falta saber se aquilo que o locutor deseja que seja levado pelo diabo é o que não se conseguiu pegar, ou o alocutário a quem se pedia para o pegar. Parece-nos mais plausível a primeira hipótese, caso contrário não se compreenderia «Lá se foi...», expressão apreciativa de desagrado, que confirma também a ocorrência dum evento indesejado. «Que o leve o diabo» é expressão que, com valor interjectivo, depois de «Lá se foi...», também com valor interjectivo,21 manifesta a aceitação resignada do locutor pelo sucedido, parafraseável pela interjeição «Paciência!» Os processos de reforço das formas imperativas referidos por Cunha & Cintra dizem respeito aos actos de ordem, mas os autores não especificam se o efeito perlocutório resulta em maior ou menor custo para o alocutário (que pode reverter também, directa ou indirectamente, em benefício do locutor), ou em maior ou menor benefício para o alocutário. É que, no caso de se verificar a primeira hipótese, a repetição do imperativo será descortês, constituindo um FTA; no caso de se verificar a segunda hipótese, a repetição será cortês, constituindo um FFA. Mas se os actos directivos de efeito perlocutório orientado exclusivamente para benefício do locutor serão mais ou menos descorteses e podem ser intensificados, também os actos directivos de efeito perlocutótio orientado para benefício do alocutário serão mais ou menos corteses e como tais podem ser também reforçados. Em síntese, 18 Colhida, pelos autores, em David Mourão-Ferreira, 1965: O Irmão. Lisboa: Guimarães Editores; p. 44. Colhida, pelos autores, em M. de Sá-Carneiro, 1959: Cartas a Fernando Pessoa II. Lisboa: Ática; p. 9. 20 Retirada, pelos autores, de Martins Pena, 1956: Teatro (2 vol.). Rio de Janeiro: MEC/INL; p. 36. 21 Sobre os valores das interjeições, ao nível da cortesia/descortesia verbal, ver, infra, cap. VIII, 2. 19 198 pode-se dizer que os actos descorteses podem ser reforçados até ao insulto, do mesmo modo que os actos corteses podem ser reforçados até à excelência. Consoante os co(n)textos existentes, criados e/ou negociados, incluindo os objectivos ilocutórios e interpessoais que um ou outro dos interactantes visam, ou todos os que numa interacção verbal participam, sincera ou insinceramente. Acontece, por outro lado, que por «dever social e moral, evitamos geralmente ferir a susceptibilidade do nosso interlocutor com a rudeza de uma ordem.» Com esta observação, que nos recorda, inevitavelmente, a noção de FTA e as estratégias de cortesia utilizadas na sua realização, os gramáticos colocam o problema da ordem no âmbito do tema principal deste nosso estudo - a cortesia / descortesia linguística. De facto, consideram os autores que existem «numerosos meios de que nos servimos para enfraquecer a noção de comando» (alguns dos quais foram já descritos) destacando, «pela sua eficiência», as «fórmulas de polidez ou de civilidade, tais como: por favor, por gentileza, digne-se de, tenha a bondade de, etc.»22 É o que se verifica, com as reservas, novamente, da ausência de co(n)texto, em «- Fale mais alto, por favor!»23 e «- Tenham a bondade de sentar e esperar um momento.» 24 Ao procederem ao inventário e descrição dos valores do modo imperativo, nas suas formas próprias, supletivas e substitutas, os autores da Nova Gramática chamam a atenção para dois aspectos importantes na realização dos enunciados com valores «afectivos» e/ou «estilísticos»: a entoação e o contexto. Trata-se, a nosso ver, de dois factores de natureza pragmática, fundamentais na produção e recepção de todos os enunciados, em geral, e dos imperativos, em particular. Factores que, todavia, estes gramáticos não desenvolvem, dado estarem as suas preocupações orientadas para o uso normativo da língua enquanto sistema. Ao longo da Nova Gramática, os autores vão fazendo, porém, breves apontamentos de natureza pragmática, quanto à entoação e ao co(n)texto. Observam, por exemplo, que, como factor geral a ter em consideração, os valores semântico-pragmáticos (que chamam «estilísticos» e/ou «afectivos») de algumas formas verbais imperativas «dependem do significado do verbo, do sentido geral do contexto e, principalmente, da entoação que dermos à frase imperativa», de tal modo que, «conforme o tom de voz, 22 CUNHA & CINTRA, 1984: 479. Retirada, pelos autores, de Fernanda Botelho, s/d: Xerazade e os outros. Amadora: Bertrand; p.177. 24 Retirada, pelos autores, de R. Braga, 1958: 100 crônicas escolhidas. Rio de Janeiro: J. Olympio; p. 272. 23 199 a noção de comando pode enfraquecer-se até chegar à de súplica.»25 E, ao tratarem «os variados recursos estilísticos» de que a Língua Portuguesa dispõe «para reforçar ou atenuar a vontade», manifestada através do imperativo, referem que a «sua eficácia, porém, está sempre condicionada ao tom de voz que é, nas formas afectivas da linguagem, um elemento essencial»26 e «de suma importância», porque um enunciado, não obstante o emprego daquelas «fórmulas de polidez ou de civilidade», pode tornar-se «rude e seco, ou mesmo insolente, com a simples mudança de entoação.»27 Por uma questão de cortesia negativa, de protecção das faces dos interlocutores, os enunciados imperativos são geralmente realizados, por isso, com recurso a processos linguísticos de atenuação discursivo-textual, por substituição e/ou compensação, segundo propõe Kerbrat-Orecchioni, na sequência de Brown & Levinson, bem como muitos outros linguistas que este(s) modelo(s) seguem, na análise dos fenómenos da cortesia/descortesia verbal. 1.2. Indicativo vs. Conjuntivo O indicativo é tradicionalmente definido, por estilistas e gramáticos com idêntica orientação interpretativa, como o modo que exprime, geralmente, «uma acção ou um estado considerado na sua realidade ou na sua certeza»,28 enquanto o conjuntivo expressa a atitude do locutor perante «a existência ou não existência do facto como uma coisa incerta, duvidosa, eventual ou, mesmo, irreal».29 Confrontando os valores do indicativo e do conjuntivo, ao nível da estilística, Lapa regista os mesmos valores, mas acrescenta, em relação ao último, que os valores 25 CUNHA & CINTRA, 1984: 476. Itálicos da nossa responsabilidade. Id.: 478. Itálicos da nossa responsabilidade. 27 Id.: 478 e 479. Itálicos da nossa responsabilidade. Os autores descrevem a entoação, como «linha ou curva melódica descrita pela voz ao pronunciar palavras, orações e períodos», em id.: 167-176. Mário Vilela chama também a atenção para a importância do contexto e da entoação na concretização do valor do imperativo, referindo que ele «está intimamente ligado à situação, ao contexto, tanto mais que supõe a presença de um partner de quem o falante pode esperar a realização do que “é ordenado”.» E acrescenta: «A situação – intervindo aqui também a entoação – indica em que medida o que é pedido se caracteriza como “pedido”, “ordem”, “conselho”, “ameaça”, “advertência”, etc.» [VILELA, 1995: 140. Itálicos da nossa responsabilidade.] Também Carreira sublinha a importância da entoação, como valor determinante na realização das injunções. [Cf. CARREIRA, 1995: 236-238 e 2001: 82-93)] 28 CUNHA & CINTRA, 1984: 447 e 463. 29 Id.: 464 e 471. A propósito desta definição, Campos & Xavier chamam a atenção para o facto de que ela «não engloba o uso do conjuntivo em enunciados com valor apreciativo.» [CAMPOS & XAVIER, 1991: 342, nota 1] Acontece, porém, que os autores da Nova Gramática referem que também se emprega este modo verbal, nas orações subordinadas substantivas, quando a oração principal exprime, além de vontade («nos matizes que vão do comando ao desejo») e dúvida, «um sentimento, ou uma apreciação que se emite com referência ao próprio facto em causa». [CUNHA & CINTRA, 1984: 466] 26 200 de possibilidade e de incerteza denotam «o sentimento da dúvida, o desconhecimento, o desejo, a surpresa, a probabilidade, etc.», de tal modo que o conjuntivo é, por isso, «um veículo de dúvidas e vacilações».30 Mateus et al., perspectivando uma orientação claramente mais linguística e pragmática, observam que o conjuntivo «aparece fundamentalmente ligado a um estado de coisas reconhecido pelo locutor ou como possível ou como contingente», expressando «vários graus de condicionalidade», podendo ocorrer «em estruturas complexas de coordenação e subordinação».31 O indicativo é, para as autoras, o modo menos marcado quanto à «expressão da atitude ou da relação que se estabelece entre locutor, alocutário e universo de referência». Ocorre, por isso, normalmente em frases simples e na oração subordinante de frases complexas factuais. As autoras observam, todavia, que o indicativo pode substituir o imperativo, «sempre que a relação locutor-alocutário permita ao locutor encarar a realização de uma ordem como necessária», como em «Agora dás um beijo à mãe e vais para a cama.»32 Cunha & Cintra vão, porém, mais no sentido de que os valores do conjuntivo se encontram sobretudo em ocorrências sintacticamente dependentes ou subordinadas, cujo sentido do verbo está ligado à ideia de ordem, de proibição, de desejo, de vontade, de súplica, de condição e outras correlatas. Quando ocorre em orações independentes, o conjuntivo «envolve sempre a acção verbal de um matiz afectivo que acentua fortemente a expressão da vontade do indivíduo que fala».33 Pondo em confronto os valores do indicativo e do conjuntivo, nas orações subordinadas substantivas, os autores estabelecem dois princípios gerais norteadores do emprego dos dois modos: «1.º) O INDICATIVO é usado geralmente nas orações que completam o sentido de verbos como afirmar, compreender, comprovar, crer (no sentido afirmativo), dizer, pensar, ver, verificar. 2.º) O CONJUNTIVO é o modo exigido nas orações que dependem de verbos cujo sentido está ligado à ideia de ordem, de proibição, de desejo, de vontade, de súplica, de 30 LAPA, 19758: 208 e 209. MATEUS et al., 19892 : 106 e 108. 32 Cf. id.: 107-108. 33 CUNHA & CINTRA, 1984: 464. 31 201 condição e outras correlatas. É o caso, por exemplo, dos verbos desejar, duvidar, implorar, lamentar, negar, ordenar, pedir, proibir, querer, rogar e suplicar.»34 Vilela regista que o conjuntivo expressa «uma acção como não dada ou como dada, mas avaliada subjectivamente», sendo, por outro lado, o modo «sobretudo das subordinadas», nomeadamente com «verbos de “vontade”» e com «verbos que exprimem dúvida». Todavia, «é parcialmente verdade» que seja o modo das subordinadas, uma vez que também se encontra nas subordinantes «em ligação com certas expressões, como talvez ou oxalá ou em expressões de desejo ou ordem», como em «Não falemos mais nisso».35 O indicativo é considerado «a forma básica dos modos», denotando, além dos valores já referidos, ainda «o previsível e o que está em vias de se realizar».36 Fonseca (F.) considera, por seu turno, que existem apenas formas dependentes do conjuntivo. Segundo explica, dadas as características próprias, intimamente relacionadas com a falta de autonomia do conjuntivo no texto, as formas deste modo (que a autora considera ser portador também de valores temporais) surgem sempre como dependentes de uma outra forma verbal presente ou pelo menos implicitamente presente no cotexto. E acrescenta, justificando: «Esta dependência sintáctica está de acordo com o carácter logicamente não autónomo dos processos significados pelo conjuntivo, que surgem como dependentes da potência volitiva ou intelectual de um sujeito», o que «implica um valor temporal relativo, só actualizável pela dependência em relação a uma outra forma verbal presente no contexto.»37 É essa «presença implícita» que explica, segundo a linguista, os empregos ditos independentes (porque só aparentemente o são) do conjuntivo, em cujo conjunto se incluem os empregos do conjuntivo em substituição do imperativo nas 3.as pessoas. Nesta ordem de ideias, e no que à nossa língua diz respeito, tais empregos «são verdadeiramente independentes e funcionam como imperativos, já que a 3.ª pessoa é, em Português, forma de tratamento corrente.» Enunciados, por isso, do tipo «Saia!», «Saiam!», são «performativos-imperativos» que implicam «uma relação directa 1.ª-2.ª pessoas (ainda que esta esteja formalmente representada pela 3.ª pessoa e, logo, pelo conjuntivo).»38 34 Id., ibid. VILELA, 1995: 139. 36 Id.: 138. 37 FONSECA (F.), 1994: 22 e 23-24. 38 Id.: 23, nota 19. 35 202 Mas o conjuntivo, além dos valores sintácticos e semânticos anotados, apresenta também a característica da «não assertividade», conforme refere Teresa Oliveira. Explica a autora que «o emprego do conjuntivo põe em causa a atribuição de um valor de verdade, deixa essa atribuição em suspenso, permitindo ao enunciador não se comprometer com essa decisão».39 Neste sentido, afirma que o conjuntivo exclui os contextos declarativos, citando, a propósito, Jean-Paul Confais: «le SUBJ sert à annuler ou à désamorcer le potentiel déclaratif de la séquence concernée, en ce sens que le locuteur ne pourrait pas utiliser cette séquence comme support d’un acte de déclaration».40 Oliveira, situando a sua análise no quadro da Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas, proposto por Antoine Culioli, faz várias observações sobre o conjuntivo, em contraste com o indicativo, ao nível da relação predicativa e dos valores modais que são ou não validados, numa determinada situação de enunciação origem (Sit0).41 Segundo esta teoria, o valor modal de um enunciado resulta da localização da relação predicativa em relação ao parâmetro sujeito da enunciação (S0), o qual «exprime diferentes tipos – e para cada tipo diferentes graus – de relação entre o enunciador e a relação predicativa subjacente a esse enunciado.»42 Descritos os valores semânticos do conjuntivo vs. indicativo, ao nível das modalidades epistémica e apreciativa, a autora observa que a modalidade intersujeitos se encontra presente em enunciados que exprimem ordens, pedidos, desejos, permissões, etc. E acrescenta que sendo o imperativo, o modo interagentivo por excelência, função que partilha com o conjuntivo, este último permite a construção de inúmeras formas, que reflectem o tipo de relação interagentiva existente, tanto de incentivo à acção, como à sua inibição. Por isso, esta modalidade «constrói a relação predicativa como validável ou não-validável em Sit0, razão pela qual dificilmente ocorre com verbos do indicativo.»43 Ao nível da «construção de possibilidades», dentro do quadro teórico culioliano, «o conjuntivo exprime uma mira (“visée”) do sujeito enunciador», ou seja: «encarando o conjunto das possibilidades em aberto, o sujeito percorre todos os valores possíveis, orienta-se para um deles e selecciona-o, sem poder, no entanto, rejeitar liminarmente os 39 OLIVEIRA, 2000: 107. A autora cita o trabalho de Jean-Paul Confais, Temps, mode, aspect, pulicado em 1995 (2.ª ed.), em Toulouse, por Presses Universitaires du Mirail; p. 337. 41 Apresentações, mais ou menos desenvolvidas, da teoria de Antoine Culioli, em Portugal, e sua aplicação ao Português, encontram-se em CAMPOS, 1997 e 1998; CAMPOS & XAVIER, 1991; MOREIRA, 1995: RODRIGUES, 1998; VALENTIM, 1998, entre outros. 42 CAMPOS & XAVIER 1991: 338. 43 OLIVEIRA, 2000: 110. 40 203 outros».44 É o que se verifica, com particular evidência, nas orações condicionais hipotéticas, como em «Se estivesses com atenção, percebias a matéria.» Aqui, o conjuntivo constrói uma hipótese como possível, pouco provável ou contrafactual. Ora, acrescenta a autora, construir hipóteses «corresponde a encarar diferentes possibilidades, validáveis ou não-validáveis, pelo que este valor modal é marcado fundamentalmente pelo conjuntivo e pelo imperativo.»45 Encarar, todas as possibilidades em aberto exige, por outro lado, que o enunciador crie, segundo observa Teresa Oliveira, uma distância em relação a essas possibilidades, de forma a poder ponderá-las. É por isso que, ao usar o conjuntivo, o enunciador não se compromete com a validação da relação predicativa, mantendo em relação a ela uma distância segura, de modo que, assim, a responsabilidade não lhe poderá ser imputada. Com o indicativo, porém, o enunciador compromete-se com a validação predicativa, responsabiliza-se por essa validação. Pode, todavia, utilizar certas formas do indicativo para construir uma distância modal, criando assim uma desresponsabilização em relação ao que foi construído, como em «A Ana disse que o João saiu.» (onde se verifica uma dissociação entre S0 e S1), ou em «Segundo testemunhas oculares o arguido teria confessado a sua culpa, logo após o crime, mas será necessário aguardar a decisão do juíz.», através da utilização do condicional e do futuro do indicativo.46 Além destes usos de distanciamento do enunciador (para continuarmos a utilizar o termo preferido pela autora) relativamente à relação predicativa, a autora refere ainda o uso do conjuntivo ou do indicativo, nas construções relativas, «domínio particularmente interessante», segundo observa, pois que «o modo verbal não é seleccionado em virtude de nenhum condicionalismo sintáctico, mas surge como uma opção do sujeito enunciador, que assim marca a forma como encara a validação da relação predicativa.»47 Oliveira conclui afirmando que este modo funciona sempre como «um marcador de distanciamento entre o enunciador e a validação da relação predicativa, quer esse distanciamento reflicta a aceitação de diferentes possibilidades, quer marque uma recusa consciente do enunciador em se comprometer com essa mesma validação.»48 44 Id.: 111. Id., ibid. 46 Cf. id.: 112- 113. O segundo exemplo é uma adaptação do exemplo da autora, a fim de reunir numa só frase os valores de condicional e futuro do indicativo. 47 Id.: 113. 48 Id.: 114. 45 204 1.3. Conjuntivo, modo da cortesia Face aos valores sobretudo semântico-pragmáticos do conjuntivo (dependência, incerteza, dúvida, eventualidade, irrealidade, não-factualidade, contingência, condicionalidade, não afirmação, não assertividade, subjectividade, distanciamento, afectividade, não comprometimento...), reconhecidos por estilistas, gramáticos e linguistas, com maior ou menor unanimidade, poderá pôr-se agora a seguinte hipótese: Sendo as formas do imperativo, na sua grande maioria, realizações do conjuntivo, é este fenómeno também uma questão de cortesia? Recorde-se que, na sua etimologia (que a Nomenclatura Gramatical Brasileira mantém, ao designá-lo por subjuntivo), o conjuntivo tinha já um carácter de subordinação e de ligação. Fonseca (F.) observa, a propósito, que o conjuntivo «começou por estar vinculado, pelo seu significado modal, à expressão de situações reais de dependência; depois generalizou-se o seu uso como expressão da dependência linguística, que pode ou não corresponder a uma dependência real, lógica.»49 Lapa já anotara que «para atenuar a dureza do imperativo categórico», se emprega o conjuntivo, como em «Sejas bem-vindo, meu querido amigo», comentando que se sente «perfeitamente que a forma sejas é menos seca, mais doce e afectiva do que sê.»50 E os autores da Nova Gramática observam que, apesar da etimologia da palavra («imperare»), «não é para ordem ou comando que, na maioria dos casos» se usa o imperativo, uma vez que há «outros meios mais eficazes» para se expressar esta noção. Concluem que quando se emprega este modo, geralmente se tem o intuito de exortar o interlocutor a cumprir a acção indicada pelo verbo. O imperativo é, por isso, «mais o modo da exortação, do conselho, do convite, do que propriamente do comando, da ordem.»51 A partir da observação de João Malaca Casteleiro, segundo a qual o «imperativo formal deixou de ter a primazia na expressão da ordem», passando a ser «principalmen- 49 FONSECA, (F.), 1970: Para o estudo dos valores do conjuntivo em português moderno, Dissertação de Licenciatura. Coimbra; pp. 164-165, cit. por OLIVEIRA, 2000: 114. 50 LAPA, 19758: 210. 51 CUNHA & CINTRA, 1984: 474. 205 te expressa pelo conjuntivo formal»,52 Fonseca (F.) mostra que, no Português contemporâneo, o conjuntivo é «le mode le plus répandu comme configuration des actes relevant de la volonté», concretamente, na expressão «de l’ORDRE, du SOUHAIT, du REGRET et du REPROCHE». A prova dessa vitalidade reside, entre outros factores, na «pleine conservation de sa valeur modale optative», tanto na expressão do desejo («SOUHAIT»), como na expressão do pesar («REGRET»), por um lado, e em «sa nette “invasion” du domaine voisin de l’injonctif», tanto na expressão da ordem («ORDRE»), como na expressão da censura («REPROCHE»),53 por outro. Tal «vitalidade» e «invasão» são confirmadas pelas formas do imperfeito e mais-que-perfeito do conjuntivo, em usos independentes como «Estudasses!» e «Tivesses estudado!». Segundo a linguista, estas formas comportam também valores de «imperatividade», se bem que no domínio psicológico da «frustração», porque «Le REGRET est [...] un SOUHAIT frustré et le REPROCHE un ORDRE frustré»,54 na medida em que os primeiros sentimentos são expressos a posteriori, enquanto os segundos a priori. Estes valores injuntivos «frustrados», mas «vivos» e «operativos», presentes na realização das formas verbais do conjuntivo referidas, são explicados, em síntese, deste modo pela linguista: «Il est évident que le JE ne peut pas imposer au TU de faire quelque chose qui est déjà passée. Mais on peut concevoir que le JE envisage un fait passé comme un manque en impliquant le TU et en s’attribuant un statut d’autorité sur lui: impliquer le TU revient, ici, à le considérer comme responsable du manque qu’il ressent; s’attribuer un statut d’autorité sur le TU revient à pouvoir le juger. C’est à dire, la force illocutionnaire présente dans l’ORDRE, le rapport de dominance du JE sur le TU continuent à exister, mais cette dominance devient d’ordre moral : le JE juge le TU, le considère comme responsable de la non réalisation d’un fait passé qu’il ressent comme un manque – le JE fait un Reproche au TU.»55 52 CASTELEIRO, 1961: 165, cit. por FONSECA (F.), 1994: 29. Cf. FONSECA (F.), 1994: 36. 54 Id.: 33. 55 Id.: 33. Nesta descrição, a autora segue, em parte, estudo de Patrick Charaudeu, 1977: Les Conditions Linguistiques d’une Analyse du Discours, tese mimeografada. Paris. Não tivemos acesso a este estudo, mas cremos que a sua proposta de análise enunciativa do discurso será coincidente com a que propõe em CHARAUDEAU, 1980: 39-49 e 1992: 569-619. 53 206 A autora refere-se, concretamente, ao acto da ordem, mas, a nosso ver, o mesmo raciocínio aplica-se também aos actos do desejo, bastando substituir, para tal, os valores próprios da injunção pelos da opção. Epifânio da Silva Dias foi, segundo refere Fonseca (F.), um dos poucos gramáticos que se interessaram pelos valores imperativos do imperfeito e do mais-que-perfeito do conjuntivo. A autora transcreve duas passagens da Sintaxe Histórica Portuguesa, em que o gramático se refere explicitamente ao assunto: a) «Também têm sentido imperativo as orações do pretérito imperfeito ou mais-que-perfeito do conjuntivo coordenadas a uma oração condicional, correspondendo este conjunt[iv]o a um período hipotético irreal, v. g. Fosses e verias (= se tivesses ido verias)» b) «Com sentido imperativo emprega-se o conjuntivo, no mais-que-perfeito ou no pretérito imperfeito, servindo de exprimir o que deveria ter-se feito (em contraposição ao que se fez) – jussivo do passado».56 Classificar, todavia, estes enunciados como imperativos do passado é, para a linguista, «une manière simpliste de résoudre le problème», porque, para se perceber «cette affinité avec l’impératif, il faut remplacer la notion (paradoxal) d´“ordre passé” par celle d’ordre frustré». Explica a autora que «la force illocutionnaire impérative subsiste, mais elle est inopérante parce que dirigée ver le passé» e, por isso, «il ne s’agit plus d’un ORDRE mais d’un REPROCHE.» Por outro lado, é insuficiente analisar enunciados como «Estudasses!» como frases hipotéticas elípticas. É que, de facto, se por um lado se trata de frases incompletas e implicitamente condicionadas, «il y a quelque chose de plus: c’est le rapport alocutif JE-TU et le statut d’autorité du JE vis à vis du TU.» O locutor não se limita «à constater qu’il y a une condition qui n’a pas été remplie e dont la conséquence désirable devient impossible: il en juge le TU responsable et le lui reproche.»57 A definição pragmática que Fonseca (F.) dá do acto de censura («reproche»), actualizado por enunciados como estes, é clara a este respeito: «o acto de censura resulta, nestes empregos, de uma força ilocutória imperativa tornada inoperante e frustrada 56 57 DIAS, 1918: 202, cit. por FONSECA (F.), 1994: 35. FONSECA (F.), 1994: 35. 207 por visar a modificação de uma situação passada e, portanto, já não susceptível de ser modificada.»58 Fonseca (J.) retoma este estudo da linguista anterior para integrar aqueles usos do imperfeito e mais-que-perfeito do conjuntivo, na descrição pragmática dos enunciados com sequências ‘p! e q’ e ‘p! ou q’, com «economia do segmento q».59 Embora reconheça que Fonseca (F.) tratara já as «dimensões centrais» daqueles empregos, «marcadamente típicos, ou mesmo exclusivos, do português», o linguista considera, todavia, que alguns aspectos, de «grande relevância», «estão ausentes», ou não foram «totalmente explicitados».60 Da análise complementar que Fonseca (J.) faz do estudo de Fonseca (F.), interessa-nos, de momento, face ao estudo que desenvolvemos, a noção de «discurso de vítima», que aquelas formas verbais pressupõem, segundo o primeiro linguista. «Em intervenção imediatamente anterior à enunciação das produções do tipo em referência61 [...], o Aloc deu conta», implícita ou explicitamente, ao Loc de que cometeu uma omissão, isto é, que não realizou «algo» que se apresenta, a posteriori, «como irreparável e como irrecuperável», algo «de bom/positivo/vantajoso que (se) poderia ter “obtido” se tal omissão não houvesse tido lugar.»62 Este «discurso de vítima», que tanto se encontra na «ordem frustrada» («censura») como no «desejo frustrado» («lamento»), «indiciam uma situação interactiva assimétrica: o enunciador do discurso de vítima (o Aloc) coloca-se num lugar baixo, enquanto que o enunciador daquelas produções (o Loc) se posi58 Id.: 141. Referira-se que Casteleiro não aceita que o imperfeito e o mais-que-perfeito do conjuntivo possam realizar a ordem, uma vez que este acto, porque «tem de ser executável, deduz-se que certas frases desiderativas do passado não podem ser consideradas como “ordens”». E apresenta as seguintes situações, com(o) exemplos: «1. Um indivíduo queixa-se de o galo cantar a desoras; a irmã alvitra que se mate, mas ele censura-a por não o ter vendido ainda: “- Olha, levásse-lo à feira”. 2. Uma rapariga critica um cavalheiro atrevido: “Para que se vem meter com quem está quedo? Seguisse o seu caminho, ninguém o chamava cá”.» [CASTELEIRO, 1961: 32, cit. por FONSECA (F.), 1994: 31] Repare-se que o «narrador» Casteleiro diz que o imperfeito de 1. (levásse-lo) é uma censura e que o de 2. (seguisse) é uma crítica. 59 A primeira citação corresponde ao título do estudo que o autor inclui em FONSECA (J.), 1993: 149179. A segundo encontra-se em id.: 149. 60 Cf. id.: 170. 61 Enquanto Fonseca (F.) prefere enunciados construídos, como vimos, a partir do verbo estudar e fazer [cf. FONSECA (F.), 1994: 30 e 36, respectivamente], Fonseca (J.) prefere-os a partir do verbo correr. Além disso, analisa tais «produções discursivas» não só, por um lado, na segunda pessoa do singular, como também terceira e primeira pessoa do singular, e, por outro, tanto nas suas formas afirmativas como negativas. [Cf. FONSECA (J.), 1993: 169 e ss.] 62 Id.: 170-171. 208 ciona num lugar elevado, assumindo a dominância que lhe permite formular a censura que nelas realiza.»63 Outro aspecto que Fonseca (J.) releva, a propósito destas formas, e ainda relacionado com o «discurso de vítima», prende-se com o facto de que tais construções discursivas «contêm inequivocamente a expressão de um “irreal do passado”», para cuja formulação habitual se emprega o condicional. De facto, a forma censória e crítica de «Estudasses!» [para continuarmos com a forma de Fonseca (F.)] pode ser perfeitamente parafraseável pela seguinte forma no condicional: «Se tivesses estudado, terias obtido melhor resultado.»64 Cabe aqui anotar, em nosso entender, dois aspectos que nem Fonseca (F) nem Fonseca (J.) referem, explicitamente, pelo menos. Além dum acto de censura ou crítica, por omissão de acção favorável, num passado presumivelmente recente, que implicita também actos de ordem ou de desejo frustrados, realizações semelhantes às que temos vindo a analisar encerram também, por derivação ilocutória, actos de ordem ou de desejo prospectivos, com valor de advertência ou de aviso, de natureza pedagógica, porque destinados a prevenir/acautelar novos efeitos negativos por omissão de acções iguais ou idênticas. Aliás, é sabido que, em tais co(n)textos, o locutor, porque, como se viu, investido de autoridade (real ou pelo menos consentida), frequentemente faz acompanhar aqueles enunciados elípticos de um comentário/recomendação de evitação: «Estudasses! /Tivesses estudado! E para a próxima já sabes o que tens a fazer, estuda(r)!»; ou simplesmente: «... E para a próxima, já sabes o que tens a fazer!»; ou mais simplesmente: «... E para a próxima, já sabes!»; ou ainda mais simplesmente, com entoação ascendente suspensiva: «... Para a próxima...» O verbo, que nestes casos fica subentendido, é que referencia a acção / comportamento / atitude a realizar omitida e por isso censurada, mas que não pode / deve ser omitida no futuro, para que os efeitos positivos não voltem a gorar-se, ou os negativos a verificar-se. Continua-se no âmbito do discurso de vítima, proposto por Fonseca (J.), onde a ordem frustrada e inoperante da censura evolui (digamos assim) para uma ordem ou desejo prospectivos e operativos, onde os valores directivos, com formas explícitas ou não do imperativo, de novo se encontram presentes. É nossa opinião, aliás, que será mais este valor prospectivo e directivo, de acção / comportamento / atitude a não voltar 63 64 Id.: 173. Cf. id.: 172. 209 a ser praticado ou omitido, que o locutor pretende, quando responde daquela(s) forma(s), naquele(s) modo(s), à confissão/desabafo/queixa do outro colocutor. Outro aspecto diz respeito aos processos discursivo-textuais de cortesia/descortesia verbal. É evidente que o emprego das formas «Estudasses! / Tivesses estudado!» são menos corteses do que a sua formulação condicionada, quer na formulação suspensiva de apenas um segmento oracional («Se tivesses estudado...»), quer na formulação completa(da) da subordinação («Se tivesses estudado, não terias chumbado!», formulação esta ainda mais cortês, por ser menos directa, e assim atenuar os aspectos censórios e críticos acima referidos. Para um outro aspecto gostaríamos ainda de chamar a atenção: o facto da cortesia verbal ser proporcional ao desenvolvimento textual do discurso em coconstrução. Ou seja, as produções discursivo-textuais mais breves, mais concentradas, mais elípticas, mais directas, são, em geral, menos corteses (e eventualmente mesmo descorteses), que as produções discursivo-textuais mais desenvolvidas. Os circunlóquios, a indirecção, os eufemismos, as divagações, as perífrases, os rodeios... inscrevem-se no conjunto destas estratégias de cortesia negativa, através das quais, por abstenção e/ou compensação, se procura atenuar “o que de mal” ou “de menos bom”, real ou aparente, fizemos, fazemos ou intendemos fazer ao nosso interlocutor, salvaguardando as suas faces, sem perder as nossas. Sempre condicionados e/ou influenciados pelos co(n)textos, evidentemente. A propósito, Carreira observa que «la distance interlocutive à laquelle correspond le respect du “territoire” de l’autre, c’est-à-dire un haut degré de politesse, s’accompagne d’un allongement du discours émis.»65 E Weinrich, citado por Carreira, propõe, a este respeito, uma regra aplicável à cortesia verbal em geral: «Lorsque de deux formes d’expression qui se présentent au choix dans une situation, l’une présente des contours nets et l’autre des contours faibles, c’est toujours celle qui est faiblement délimitée/contournée qui sera considérée comme la plus polie.»66 65 CARREIRA, 1995: 233. Cit. por CARREIRA, 2001: 102. Cf. também 1995: 284 e 285, onde a autora aplica a observação de Weinrich ao eixo semântico, a propósito das formas de tratamento, situando no pólo +Cortesia as realizações de «contour faible» e no pólo -Cortesia as realizações de «contour net». (Carreira observa, em nota, que o estudo de Weinrich de que retirou esta citação se encontra em alemão e que a sua tradução «oral» para Francês é da responsabilidade de Sibylle Sauerwein. [Id.: 102, nota 3]) Idêntica observação encontra-se também em WEINRICH, 1989: 77: «En règle générale les effets de politesse tels qu’ils se réalisent dans la langue nous révèlent qu’une expression plus vague est plus polie, en particulier lorsqu’on s’adresse à quelqu’un.» 66 210 Regressando aos valores semântico-pragmáticos do conjuntivo e do indicativo, face ao imperativo, retomamos o estudo de Fonseca (F.) em que a linguista defende que a preponderância do conjuntivo sobre o imperativo, na expressão da ordem, «est essentiellement due au remplacement progressif de la deuxième personne par la troisième qui s’est produit en portugais», passando esta a ser «la forme d’interpellation la plus courante».67 Como explicitaremos, a propósito da história do pronome pessoal vós forma de tratamento,68 a expansão dos tratamentos de terceira pessoa é uma exigência, por um lado, do nosso paradigma de voceamento e, por outro, de simplificação da complexa flexão verbal do Português. A nosso ver, os portugueses, mesmo utilizando menos e com menor frequência tratamentos tradicionais de elevada cortesia, ou de cortesia formalmente menos elevada, não deixam, por isso, de ser corteses, nas suas relações interlocutivas (e não só), sinal também de que as distâncias sociais e humanas (que não do mesmo modo as económicas) se vão também diminuindo. Estas novas relações de cortesia, ou de cortesia nova, tendem, por isso, a manifestar-se através de novos ou renovados relacionemas, de que o recurso mais frequente a formas do conjuntivo, inclusive quando nos dirigimos a vários que individualmente tuteamos, é um deles. Este fenómeno sociolinguístico de preferência pelo conjuntivo pode ser compreendido também à luz destas alterações. As formas imperativas puras e duras (tipo come e cala / comei e calai) que, como se sabe, são formas do indicativo, vêem a rudeza da sua directividade atenuada através dos tempos do conjuntivo, cujos valores semântico-pragmáticos descrevemos. Convém, todavia, não esquecer que os efeitos perlocutórios desejados pelos interlocutores são sempre condicionados pelo co(n)texto em que se encontram e que (re)constroem, para além dos valores morfossintácticos construídos e semânticos representados pelos verbos que os realizam. Não há, por outro lado, modos verbais totalmente puros. Os seus valores semânticos e pragmáticos manifestam-se através de formas temporais integradas em práticas discursivo-textuais. E os valores de cortesia ou de descortesia que estes modos verbais podem expressar aí se inscrevem e manifestam, consoante os co(n)textos de ocorrência. 67 68 FONSECA (F), 1994: 29. Ver, infra, cap. XI, 1. 211 2. Os tempos Os tempos verbais do indicativo e do conjuntivo, bem como as formas nominais do infinitivo e do gerúndio, a par das construções passivas, ao servirem sobretudo como formas substitutas do imperativo, expressam também valores de cortesia ou de descortesia verbal. Essas formas ora podem atenuar ora reforçar actos directivos ou assertivos que, consoante lesem, em maior ou menor grau, as faces dos interactantes, serão mais ou menos descorteses ou corteses. Tais valores e funções são também reconhecidos e anotados e/ou descritos por estilistas, gramáticos e linguistas, consoante as perspectivas e os modelos de análise que seguem. 2.1. Tempos / modos do presente 2.1.1. Presente do conjuntivo Os autores da Nova Gramática registam, apenas, que este tempo / modo pode indicar um facto presente ou futuro.69 Todavia, ao descreverem os valores do conjuntivo, nas suas ocorrências independentes (orações absolutas, principais e coordenadas), dão exemplos que expressam: a) - «um desejo, um anelo» (v.g., «Chovam hinos de glória na tua alma!»70); b) - «uma hipótese, uma concessão» (v.g., «Seja a minha agonia uma centelha / de glória!... »71): c) - «uma ordem, uma proibição (na 3.ª pessoa)» (v.g., «Que levem tudo no caixão: / A alma e o suporte!»72 / «Que não se apague este lume!»73); d) - «uma exclamação denotadora de indignação» (v.g., «Raios partam a vida e quem lá ande!»74) e) - «uma dúvida (geralmente precedido do advérbio talvez)» (v.g., «Paula talvez lhe telefonasse à noite.»75)76 69 Cf. CUNHA & CINTRA, 1984: 471. Os gramáticas referem ter recolhido o exemplo em Antero de Quental, mas não precisam a localização na obra do poeta português. 71 Recolhido, pelos autores, em Olavo Bilac, 1904: Poesias. Rio de Janeiro: Guarnier; p.197. 72 Recolhido, pelos autores, em Miguel Torga, 19543: Cântico do Homem. Coimbra: s/ed.; p. 31. 73 Recolhido, pelos autores, em Augusto Meyer, 1957: Poesias. Rio de Janeiro: São José; p. 126. 74 Recolhido, pelos autores, em Fernando Pessoa, 1960: Obra Poética. Rio de Janeiro: Aguilar; p.316. 75 Recolhido, pelos autores, em M. Judite de Carvalho, s/d: Paisagem sem Barcos. Lisboa: Arcádia; p. 34. 76 Cf. CUNHA & CINTRA, 1984: 465. 70 212 Embora o último exemplo não apresente o verbo no presente do conjuntivo, registámo-lo, uma vez que é possível também a sua realização com a forma verbal neste tempo/modo: «Paula talvez lhe telefone à noite.» É evidente que as formas verbais destas frases, desco(n)textualizadas como estão, não nos permitem dizer que elas constituem, em si mesmas, construções corteses ou descorteses. Por outro lado, convém referir que não são apenas as formas verbais, consideradas isoladamente, que expressarão cortesia ou descortesia, bem como os valores indicados pelos gramáticos, mas a frase no seu conjunto, isto é, no seu co(n)texto. A título de exemplo, diga-se que se o desejo expresso na frase de a) pode ser considerado cortês, o facto fica-se a dever não tanto à forma verbal, mas mais à orientação do efeito da acção em benefício do alocutário. Se o locutor dissesse «Chovam hinos de glória na minha alma!», estaríamos, possivelmente [falta o co(n)texto], perante uma descortesia, uma vez que os processos de autoglorificação não são, no nosso diassistema cultural, socialmente bem vistos, ou seja, corteses para quem ouve. É de referir que nem sempre é fácil distinguir, sobretudo na ausência de co(n)texto, uma forma do presente do conjuntivo duma mesma forma com valor de imperativo, quando não precedidas de que. Segundo os autores da Nova Gramática, quando tal se verifica, o imperativo exprime ordem ou exortação, enquanto o presente do conjuntivo exprime desejo ou anelo. Por exemplo, nas frases «Caiam de bruços!» e «Caiam sobre vós as bênçãos divinas!», a forma «Caiam» seria, respectivamente, imperativo e presente do conjuntivo.77 A propósito das orações que, como as acima apresentadas, começam por que, anotam que esta «partícula» é, em tais casos, «de classificação dificíl», uma vez que o seu valor «é mais afectivo do que lógico», descrevendo-a, por isso, como «uma espécie de prefixo conjuncional, peculiar ao conjuntivo.»78 Ao descreverem, porém, as orações subordinadas substantivas, de que o conjuntivo «é por excelência o modo», Cunha & Cintra registam que ele se usa, «geralmente», quando a oração principal exprime, entre outros valores, «a vontade (nos matizes que vão do comando ao desejo) com referência ao facto de que se fala».79 E um dos dois exemplos traz o verbo no presente do conjuntivo: «Não quero que ele me julgue sem pudor, uma mulher de prendas desoladas, nada tendo a defender.»80 Trata-se de exemplo que é a manifestação dum desejo a um alocutário, a propósito dum terceiro, possi77 Id.: 474. Id.: 466. 79 Id., ibid. 78 80 Recolhido, pelos autores, em N. Piñon, 1980: O Calor das Coisas. R. de Janeiro: Nova Fronteira; p. 466. 213 velmente ausente. Mas pode ser também uma forma indirecta do locutor dizer, delocutivamente, ao alocutário: «Não me julgue sem pudor ...» Estaríamos, neste caso, perante uma forma atenuada e, por isso, cortês de realização dum acto directivo (eventualmente um pedido, uma súplica, uma advertência...) Mira Mateus et al. registam, por seu turno, que o presente do conjuntivo, com valor modal de futuro, se utiliza na expressão de estados de coisas futuros, «sempre que a modalidade em que é assertada uma dada proposição p ocorre explicitamente, quer sob a forma de é ADJ que p [como em “É necessário que ele venha amanhã à reunião.”], quer sob a forma x V que p, em que o Verbo seja um verbo ilocutório de ordem ou de pedido [como em “Ordeno-te que te cales!” e em “Peço-te que não deixes de vir à reunião.”], ou à classe dos verbos criadores de universos de referências do tipo desejar, esperar [como em “Espero que te cures depressa.”]».81 Cabe observar que a estrutura é ADJ que p, dirigida a um ou mais ALOC (para utilizarmos a representação seguida pelas autoras), serve também para reforçar enunciados imperativos e actos directivos, como é o caso, em co(n)texto adequado, de «É necessário que venhas/venham amanhã à reunião.» Por outro lado, os verbos criadores de universos de referência expressam e intensificam, perfomativamente, a vontade (querer) do locutor em relação a um estado de coisas não factual, mas desejável que se verifique. Tais construções discursivo-textuais integram-se, por isso, no conjunto dos actos directivos, na medida em que todas elas se apresentam dependentes da vontade do locutor, ainda que os efeitos perlocutórios de uns sejam favoráveis para o próprio locutor e outros para o(s) alocutário(s). 2.1.2. Presente do indicativo Serve este tempo/modo, segundo Cunha & Cintra, para substituir o imperativo, em frases como «O senhor traz-me o dinheiro amanhã», em vez de «Traga-me o dinheiro amanhã», atenuando-se, desta forma, «a rudeza da forma imperativa».82 Já ao explicitarem os «valores afectivos» do presente do indicativo, os autores haviam referi81 MATEUS et al., 19892 : 88-89. CUNHA & CINTRA, 1984: 477. Embora os autores refiram, a propósito de outros processos, a importância do contexto e da entoação, estes factores, além de outros, podem servir também para intensificar a forma imperativa da referida frase. Repare-se na realização da mesma, em tom exaltado: «O senhor trazme o dinheiro amanhã!» Tal imperatividade tornar-se-á ainda mais clara, se for construída como segue: «O senhor traz-me o dinheiro amanhã, ouviu?!» O elemento de natureza fática e interlocutória («ouviu?») reforça, claramente, a exigência do enunciador, tornando-a de pouca cortesia. 82 214 do que este tempo é utilizado como «forma delicada de linguagem», denotando «intimidade entre pessoas», na realização dum pedido, quando, «logicamente, deveria sê-lo no imperativo ou no futuro». Por exemplo, com «Você resolve-me isto amanhã», em vez «Resolva-me isto amanhã.»83 Mais uma vez cabe observar que não é apenas a forma verbal que atenua a exigência, mas a sua realização conjugada com o adverbial de tempo amanhã. Também aqui temos uma metáfora temporal (ver, infra, 2.3.1.): digo, neste momento, que consinto que faça(s) amanhã o que devia(s) fazer hoje. Carreira recorda que o imperativo não é a única forma para, em Português, se exprimir um acto de injunção, para acrescentar, de seguida, que «poderá sê-lo também pelo presente [...] do indicativo», reforçando-se, assim, uma ordem dada, «já que o acto perlocutório é actualizado no tempo presente».84 Outro processo de substituição de formas imperativas e, por isso, eventualmente descorteses, registadas pelos autores da Nova Gramática, consiste no emprego do presente do indicativo do verbo querer, em frases interrogativas, com o verbo que «exprime a ordem», no infinitivo. Assim, uma ordem, como «Levante-se!», pode ser substituída por «Quer levantar-se?»85 Os autores não referem, neste caso, se se trata de reforço ou atenuação da ordem. Contudo, ao descreverem os valores deste tempo, já haviam referido que esta estrutura se emprega para «atenuar a rudeza do tom imperativo», ou seja, «Quer sentar-se, minha senhora?...» substitui «Sente-se!»86 Este processo de atenuação dum acto directivo (que não apenas da ordem, embora o primeiro exemplo dê a entender tratar-se duma injunção indirecta) inscreve-se nos processos de modalização.87 Nos exemplos acima dados, o acto directivo a realizar pelo alocutário [mesmo sem co(n)textualização] sofre uma atenuação dos seus eventuais valores impositivos, ao ser apresentado, por um lado, na dependência da vontade (querer) do alocutário e, por outro, ao ser formulado como uma pergunta. Além disso, no segundo exemplo, o acto a realizar pelo alocutário é, em princípio [dada a ausência de co(n)texto], favorável ao próprio alocutário, sendo ainda acompanhado por uma forma 83 Id.: 449. CARREIRA, 2001: 86 e 1995: 228. A autora observa, na mesma passagem, que idênticos valores injuntivos podem ser realizados pelo futuro do indicativo. 85 CUNHA & CINTRA, 1984: 478. 86 Id.: 450. Este último exemplo é retirado de Camilo Castelo Branco, 18622: Scenas Contemporâneas. Porto: Cruz Coutinho; p. 198. 87 A propósito do verbo de modalidade querer, regista Weinrich que ele serve «souvent les règles de la courtoisie, et en particulier lorsqu’il est utilisé dans une forme atténuée par l’emploi des temps du récit (souvent avec bien)», como em «je voudrais bien vous poser une question». [WEINRICH, 1989 : 193] 84 215 de tratamento cortês - minha senhora - elemento que atenua ainda mais o acto, que podemos classificar [na ausência de co(n)texto] de sugestão ou convite. Trata-se, conforme explica Carreira, tanto num caso como noutro, dum processo de indirecção discursiva que consiste «[dans] un questionnement quant au [...] VOULOIR de l’allocutaire». Em ambos os casos, porém, há «[un] déplacement de la source déontique», do locutor para o alocutário. No primeiro caso, de natureza alética, ao passar a obrigatoriedade de levantar para a dependência da vontade do alocutário, que reverte, todavia, eventualmente, a favor do locutor. No segundo caso, de natureza axiológica, porque o acto a realizar passa a depender da vontade do alocutário, tal como o seu efeito, em princípio. Estamos perante, portanto, um processo de indirecção discursiva, que a autora explica como segue, apesar da citação dizer respeito sobretudo à realização indirecta e atenuada dum acto de ordem: «Le verbe modal querer étant par nature prospectif, garde ce trait même lorsqu’il se présente comme subissant un injonction. C’est son sémantisme prospectif qui le rend apte à l’atténuation d’un ordre, d’autant plus que la visée de l’injonction transforme l’allocutaire en source déontique de son propre FAIRE / DIRE.»88 Cria-se, assim, uma distância entre os interactantes, através da qual aquele que formula o acto directivo procura expressar o seu respeito pelo «território» (face negativa) do outro. Nesta ordem de ideias, tais actos integram-se nos processos de cortesia negativa. Ainda como processo de substituição das formas imperativas com o verbo querer e outros que marcam «a vontade do locutor», no presente do indicativo, Cunha & Cintra registam que, com o fim de «fazer sentir a intervenção do indivíduo que fala», é costume subordinar a tais verbos o verbo denotador da acção a cumprir, como em «Quero que retornes ao Colégio.», em vez de «Retorna ao Colégio.» e «Ordeno-te que me respondas.», por «Responde-me.»89 Os autores não situam estes casos no conjunto das formas de reforço ou intensificação do acto directivo. Em nosso entender, porém, é o que se passa, de facto, quando o co(n)texto é adequado. O locutor procura 88 CARREIRA, 1995: 232. A autora inclui também o verbo modal poder («POUVOIR») na descrição da modalidade deôntica. 89 CUNHA & CINTRA, 1984: 478. 216 fazer com que o seu alocutário faça ou diga alguma coisa, explicitando, directa e performativamente, a sua vontade («Quero», «Ordeno-te»). Assim sendo, talvez estejamos [dada a ausência de co(n)texto], em presença de actos directivos pouco corteses ou mesmo descorteses. Convém referir, contudo, que não é pelo facto do locutor dizer, explicitamente, «Ordeno-te que ...», que o acto directivo realizado é, só por isso, uma ordem. A este propósito é de notar, ainda, que se encontram descrições e definições da ordem que não a distinguem, semântica e pragmaticamente, com suficiente clareza, na sua realização directa como indirecta, dos outros actos directivos, nomeadamente, do desejo, pedido, conselho, aviso, instrução, etc., como veremos, no capítulo seguinte. No âmbito ainda das estruturas perifrásticas, os autores da Nova Gramática observam: «Ressalta sobremaneira o sentido do verbo a perífrase formada de ir (no IMPERATIVO) e do verbo principal (no INFINITIVO)».90 Os exemplos apresentados (v.g., «Não se vá afogar, moço.»91) são frases negativas, na variante brasileira, que utilizam formas imperativas supletivas do presente do conjuntivo. Encontram-se, porém, frases, em Português europeu, com ir nas formas próprias do imperativo + infinitivo do verbo principal, com realização positiva. Exemplos: «Vai dar uma volta!» / «Vai desligar o computador!» / «Ide lavar as mãos!» / «Vamos jantar!» Além disso, encontramos também formas imperativas negativas, com igual estrutura, mas com o verbo ir no presente do indicativo, em vez de formas imperativas supletivas, como em «Não vais brincar, pois não?!», por «Não brinques!», ou «Não ides cantar agora!», por «Não canteis/cantem agora!» Tratar-se-á, evidentemente, de actos pouco corteses... mas, de novo, temos a falta do co(n)texto. Cabe observar, a propósito, que Cunha & Cintra afirmam que, por não ter «nenhuma forma própria», o imperativo negativo é «integralmente suprido pelo presente do conjuntivo.»92 De facto, nem sempre assim acontece. Como observa Fonseca (F.), referindo-se à ordem, o emprego do conjuntivo não se limita, em Português, «aux ordres négatifs: il est très répandu aussi dans les ordres affirmatifs s’avérant être le mode le plus employé comme configuration linguistique des actes injonctifs.»93 Não faltam, aliás, situações em que o imperativo negativo, mesmo nas ordens, ou melhor, sobretudo em actos directivos, com força injuntiva forte, é realizado por formas do presente do 90 Id., ibid. Colhido pelos autores em Aníbal Machado, 1965: João Ternura. Rio de Janeiro: J. Olympio; p. 72. 92 CUNHA & CINTRA, 1984: 474. 93 FONSECA (F.), 1994: 30. 91 217 indicativo, como se acaba de ver. Mas podemos acrescentar mais estes, quando um pai diz a um filho que não quer obedecer-lhe: «Não fazes isso, ouviste?» / «Não sais, pronto!» / «Não chegas mais àquela hora!» É evidente que construções deste tipo, formuladas em co(n)textos e com entoações adequadas, reforçam, em maior ou menor grau, a natureza directiva de tais enunciados, tornando-as, eventualmente, mais descorteses. Mesmo que não se trate de ordens propriamente ditas, como se há-de ver. Os autores da Nova Gramática encontram, por outro lado, nas perífrases do verbo ir no presente do indicativo + infinitivo do verbo principal, formas substitutas do futuro do presente simples, «para indicar uma acção futura imediata», como em «Vamos entrar no mar.» 94 Os autores não referem, contudo, os valores de natureza imperativa que estas formas, como vimos acima, também podem expressar. É de referir, porém, a observação feita pelo autores, segundo a qual, o uso da primeira pessoa do plural (do presente do conjuntivo, subentende-se), como forma imperativa, «denota estar o indivíduo que fala disposto a associar-se ao cumprimento da ordem, conselho ou súplica que dirige aos outros.»95 Em nosso entender, tais valores também se podem encontrar, segundo o co(n)texto, na primeira pessoa do plural do presente do indicativo, como na pergunta «Vamos cuidar deste coração?», feita/dita pelo médico ao doente. Claro que, neste caso, a forma verbal e a pergunta fazem com que esta ordem, indirectamente formulada (o que o médico diz é «Tenha cuidado com / Cuide do coração!»), se enquadre também na estratégia cortês do nós inclusivo, tendendo a criar uma relação de maior proximidade e solidariedade entre médico e doente. Como substituto, desta vez, do futuro do indicativo,96 encontram-se, «na conversação», segundo os mesmos gramáticos, perífrases verbais constituídas pelo presente do indicativo do verbo ter + preposição de + infinitivo do verbo principal, «para indicar uma acção futura de carácter obrigatório, independente, pois, da vontade do sujeito»97. Em nosso entender, porém, face aos exemplos apresentados, mesmo sem os respectivos co(n)textos, não nos parece que tal acção futura obrigatória se apresente assim tão independente da vontade do sujeito e que não possa ser, por isso, incluída, também, no conjunto das formas substitutas do imperativo. 94 CUNHA & CINTRA, 1984: 459. A frase foi retirada, pelos autores, de Adonias Filho, 1971: Luanda, Beira, Bahia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; p. 113. 95 CUNHA & CINTRA, 1984: 474. 96 Os autores designam este tempo, segu(i)ndo a Nomenclatura Gramatical Brasileira, por «futuro do presente simples», distinguindo-o, assim, do «futuro do pretérito simples», a que, segu(i)ndo a Nomenclatura Gramatical Portuguesa, chamamos condicional. [Cf. id.: 462, observação 3.ª] 97 Id.: 458 e 459. 218 Um dos exemplos apresentados é «Temos de resolver isso em primeiro lugar.»98 Não sabemos quem é o locutor deste enunciado, nem quem é (são) o(s) seu(s) alocutário(s), nem onde, nem quando, nem como, nem para quê foi proferida. Reconhece-se, apenas, que o locutor se dirige a um ou mais indivíduos, a quem aconselha (no mínimo) que uma acção terá de ser feita antes de outra, acção que o(s) segundo(s) se proporia(m) ou desejaria(m) fazer em primeiro lugar. Se o efeito perlocutório de «Temos de resolver isso em primeiro lugar» se verificou e foi aceite, é porque o locutor tinha (algum) ascendente sobre aquele(s) a quem se dirige e a sua vontade terá sido cumprida. Ora, se a sua vontade foi cumprida, temos que o enunciado pode ser parafraseado por uma das imperativas seguintes: «Resolvamos isso em primeiro lugar» / «Resolvemos isso em primeiro lugar». Os próprios autores reconheceriam, aliás, esta interpretação, uma vez que o locutor mostra estar disposto a associar-se ao cumprimento da ordem, conselho ou súplica que dirige ao(s) outro(s). Além disso, mantendo-se a mesma hipótese, a primeira pessoa do plural pode ser apenas uma forma indirecta do locutor dar uma ordem - «Resolva(m) / resolve(i) isso em primeiro lugar» - sem que ele participe, de facto, na acção. Trata-se de mais um nós inclusivo, expresso pela desinência verbal, uma forma cortês e solidária de atenuação do acto injuntivo, mas de intensificação ao nível do efeito perlocutório desejado. Henriqueta Costa Campos observa que, a substituição do modal dever pelo semi-modal ter de ou ter que99 se processa «quando o enunciador-locutor pretende exprimir um valor [modal] mais forte», ou «quando o enunciador não se assume como origem da obrigação, nem como solidário com ela, mas apenas como seu transmissor».100 Embora a ausência de co(n)texto não no-lo permita afirmar categoricamente, cremos que, ao dizer-se «Temos de resolver isso em primeiro lugar», parece que se está perante «a constatação duma necessidade imposta por leis», que o próprio locutor não controla. Intensifica-se, assim, a obrigatoriedade e a prioridade da acção a realizar, cuja formulação reforçada se apresenta como «obrigação constatada – e não construída – em Sit0, tendo, 98 Pepetela, 1982: Mayombe. São Paulo: Ática; p. 130. A autora observa, em nota, que as diferenças entre TER DE e TER QUE serão de «natureza sócio-cultural», sem influências «no comportamento sintáctico-semântico destes marcadores. TER QUE – acrescenta – parece ser apenas uma variante estilística de TER DE, já que lhe posso atribuir o mesmo valor modal.» [CAMPOS, 1998: 130, nota 16] 100 Id.: 131. 99 219 portanto, uma origem que é exterior ao enunciador-locutor».101 Uma estratégia de polifonia, portanto, dizemos nós, e de cortesia negativa. Enunciados como estes dão origem, por isso, a valores aparentemente contraditórios: ao mesmo tempo que se reforça o acto ilocutório injuntivo, apresentando a acção a realizar como obrigatória, necessária e prioritária, o locutor atenua a sua formulação, cortesmente, como se se tratasse duma exigência de todos, dele e do(s) outro(s), mas para que, no fim de contas, seja feito, de facto, o que há a fazer, como ele quer (e manda). Cabe observar, por isso, que «Temos de resolver isso em primeiro lugar» nos remete para uma construção modal deôntica, lexicalizada na forma Temos de..., que lhe confere um valor de obrigatoriedade, associada à modalidade alética, porque a acção a executar é apresentada também como necessária.102 A entender-se tal enunciado como acto directivo, a executar apenas pelo(s) alocutário(s), estaremos perante uma «deslocação da fonte deôntica», desta vez, porém, inversa à acima referida, a propósito do verbo modal querer, ou seja do alocutário para (também) o locutor. Por uma questão de cortesia, evidentemente, ou melhor, por uma questão de cortesia estratégica. 2.2.Tempos / modos do futuro 2.2.1. Futuro do indicativo É outro tempo / modo cujas formas Cunha & Cintra registam como podendo substituir também o imperativo, como em «Tu irás comigo», por «Vem comigo» / «Não matarás», por «Não mates». Com estes enunciados, «atenuamos ou reforçamos o carácter imperativo», consoante «a entoação que lhes emprestarmos».103 Ao descreverem o «futuro do presente simples», estes autores registam que este tempo/modo se 101 Id.: 133. A propósito dos valores da forma ter de / ter que, a autora cita Epifânio da Silva Dias e Said Ali. O primeiro anota: «Com o verbo ter e também haver (nos tempos simples) e o infinitivo precedido da preposição de, exprime-se que o praticar a acção é necessidade imposta pelas leis da natureza (ou da lógica), ou pelas circunstâncias, ou conveniências, ou pela lei moral». O segundo observa que a forma ter de em relação à forma haver tem «a vantagem de exprimir com mais precisão a necessidade imperiosa, o acto a praticar independentemente da vontade.» [Cf. id.: 131-132] A primeira citação foi retirada de DIAS, E. da S., [1918] 19705: Syntaxe Histórica Portuguesa. Lisboa: Livraria Clássica Editora; p. 248; a segunda citação foi retirada de ALI, M. S. [1908] 19666: Dificuldades da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Livraria Académica; p. 118. 102 Sobre os valores modais de ter de / ter que, cf. CARREIRA, 2001: 112 e CAMPOS, 1998: 125-135, particularmente 131-135. 103 CUNHA & CINTRA, 1984: 477. Cuesta & Luz também registam que, tanto no Português como no Espanhol, se usa o futuro «com valor de imperativo». [CUESTA & LUZ, 1971: 525] 220 emprega também «como forma polida de presente», como em «-E que vou eu fazer para Angola, não me dirá?»104 O segmento não me dirá?, embora pergunta retórica, tem, a nosso ver, um claro valor imperativo (que os autores, todavia, não referem), como se pode verificar, facilmente, pela sua paráfrase afirmativa diga-me. Mas também de discórdia, pois o locutor [apesar da ausência do co(n)texto] parece não concordar com o facto de ser mandado ou aconselhado a ir para Angola. Em contrapartida, anotam os gramáticos que o futuro do presente simples se emprega «como expressão de uma súplica, de um desejo, de uma ordem, caso em que o tom de voz pode atenuar ou reforçar o carácter imperativo»,105 como na ordem «Honrarás pai e mãe», cujos valores imperativos são semelhantes ao exemplo «Não matarás», acima descritos. Vilela anota que o futuro do indicativo, por exemplo em «Levantar-nos-emos amanhã às dez horas. Entendido?», pode exprimir uma ordem. Acrescenta, depois, que, «além do sema “futuridade”», se encontram, ao nível do texto («textualmente», escreve) outros valores, «como, por exemplo, a “atenuação” ou “modalização” de uma “ordem”». É o caso de «Far-me-á o favor de abandonar imediatamente a sala!» Ocorrências como «Não matarás» são consideradas, pelo autor, como «ordem de natureza moral intemporal».106 A sua localização num futuro indefinido, formulada por um EU anónimo e dirigida a um TU igualmente anónimo, numa situação de enunciação situada em T0, é que torna enunciados como estes menos descorteses, porque não lesam nem a face do(s) alocutário(s) nem do locutor. Carreira mostra que o futuro do indicativo serve para reforçar a formulação indirecta do acto da ordem, quando ocorre numa pressequência do tipo «Será que posso pedir-lhe / dar-lhe um conselho...?» Deste modo, o efeito prospectivo do enunciado é intensificado. O acto de ordem é indirectamente formulado e por isso atenuado, como se fosse um pedido ou um conselho, porque os actos a realizar são apresentados «comme étant postérieurs à l’acceptation par le TU du questionnement du JE.» Além disso, observa a autora que, em tais processos de indirecção do acto da ordem, se verifica também uma desactualização modal, mais precisamente uma sobremodalização do incerto: «Dans “Será que posso...?”, le valeur prospective est exprimé par: - le futur d’un verbe 104 CUNHA & CINTRA, 1984: 457. Exemplo colhido, pelos autores, em Joaquim Paço d’Arcos, Crónica da Vida Lisboeta, p. 699. 105 Id.: 458. 106 VILELA; 1995: 128 e 133. 221 d’existence (ser) – l’interrogation et le verbe modal poder qui s’applique à JE, source deôntique.»107 Estes processos de indirecção discursiva e de desactualização temporal e modal constituem, por outro lado, estratégias de cortesia negativa, ou seja, meios linguísticos de atenuação, por substituição e/ou por compensação, de actos directivos: «modulée par une intention de politesse, une injonction subit des procédés de modalisation, parmi lesquels les jeux d’indirection illocutoire et de desactualisation modale».108 Referimos, acima, ocorrências com valores de maior ou menor imperatividade, em construções onde o presente do indicativo substitui o futuro do indicativo. A este propósito, Cunha & Cintra chamam a atenção para os «efeitos estilísticos opositivos» de tais construções: «se o emprego do presente pelo futuro empresta ao facto a ideia de certeza, o uso do futuro pelo presente provoca efeito contrário, por transformar o certo em possível.»109 Campos regista, a propósito desta observação, que este é um dos valores modais do futuro, o de «suposição» ou «dubitativo», através do qual, segundo explica, o locutor não pode ou não quer assumir a validação da relação predicativa modalizada.110 E cita, em nota, Said Ali, que se refere a um modo de inquirir polido e cauteloso. O gramático brasileiro distingue, no «futuro problemático» (outra possível designação para o «futuro de suposição»), o caso particular do «futuro diplomático», que descreve assim: «servirme-ei de um modo de inquirir polido e em todo o caso cauteloso. Revelarei a minha curiosidade, e, embora desejoso de informação, finjo não esperar que me respondam».111 Segundo Campos, a explicação que o gramático brasileiro atribui a cada um destes usos «identifica as operações que lhes são subjacentes e que consistem, fundamentalmente, na deslocação de um “facto da actualidade para uma época vindoura”, seja esse facto objecto de uma asserção ou de uma interrogação.»112 Além deste, Campos descreve ainda o «futuro de certeza», que «corresponde à construção, por parte do locutor, da certeza de que um determinado estado de coisas terá lugar, quer essa certeza tenha origem na própria vontade do locutor, quer ela se baseie numa crença e/ou resignação perante as imposições de uma força exterior.» 107 CARREIRA, 2001: 107. Cf. também 1995: 233-234. CARREIRA, 2001: 108. 109 CUNHA & CINTRA, 1984: 458. 110 Cf. CAMPOS, 1998: 243. A autora regista outras designações para este valor do futuro, entre gramáticos e linguistas portugueses e estrangeiros. [Cf. id.: 250] 111 ALI, 19717: 319, cit. por CAMPOS, 1998: 243. Para Said Ali há «futuro problemático», «quando se tem dúvida ou incerteza sobre fatos ou sucessos próprios do tempo presente». 112 CAMPOS, 1998: 243. 108 222 A linguista conclui que, ao contrário do «futuro de suposição», o valor de certeza, «ao combinar-se com o verbo que constitui o predicado da relação predicativa, reforça o valor assertivo do enunciado» que, todavia, corresponde «a um valor imperativo». Por exemplo, em e a propósito de «Farás o que te digo», observa que se trata duma «situação de enunciação em que o futuro substitui a forma do imperativo, a certeza, em T0, da realização em T2 de um estado de coisas que é apresentado como tal ao interlocutor». E explica: «Há, com efeito, a acentuação da relação intersubjectiva locutor-interlocutor, pela minimização do papel deste último. Formalmente, nada é pedido ou imposto ao interlocutor, ao contrário do que se passa com o imperativo. Tudo está, de antemão, decidido, sem que, nessa decisão, o interlocutor seja chamado, sequer, a intervir.»113 É evidente que, neste caso, tal enunciado se situa no âmbito dos fenómenos verbais da descortesia, mesmo que a relação assimétrica de lugares entre os interlocutores permita ao locutor falar assim. A propósito dos «valores particulares» que o «futuro de certeza» pode exprimir, a autora cita novamente Ali, que chama a este tempo «futuro compulsivo», em que reconhece valor de imperativo e por isso ser também seu substituto, tanto com valor de «categórico» como apenas de «sugestivo», de acordo, sempre, com a entoação. Segundo o gramático brasileiro, o futuro categórico «exprime uma ordem dada no tempo presente, contando-se que será cumprida.» Neste caso, trata-se, em nosso entender, de um reforço da ordem, uma vez que, como explica, estamos perante uma «linguagem mais enérgica que o modo imperativo, pois que não faz o mínimo caso da vontade do indivíduo com quem se fala.» O futuro sugestivo «tem sobre o imperativo comum a vantagem de dar a perceber que se conta com a realização vindoura da acção, que esta realização é uma quase profecia, mas que não se entende senão como simples conselho, pedido ou sugestão.»114 Trata-se duma estratégia de cortesia negativa, acrescentamos nós, de atenuação duma ordem. Estamos, novamente, no âmbito dos processos discursivos de indirecção, pois que se formula uma ordem, por atenuação, como se fosse um simples conselho, pedido ou sugestão. 113 CAMPOS, 1998: 244 e 245-246. Também para este valor a autora regista outras designações do futuro, quer de autores portugueses, quer de estrangeiros, as quais, «consoante os contextos, será designado por futuro volitivo, futuro compulsivo, futuro profético, futuro gnómico.» [Id.: 250] 114 ALI, 19717: 317-318, cit. por CAMPOS, 1998: 244. 223 Por último, Campos regista que o futuro tem ainda um valor modal de «atenuação», cuja descrição retoma de Robert Martin: «Futur d’atténuation: Je vous avouerait que ..., Je vous dirai que ... Ce futur n’est possible qu’avec un verbe en emploi performatif. Il donne à l’interlocuteur l’illusion qu’il peut faire obstacle à l’énonciation.»115 A autora, por sua vez, recorda que este valor modal do futuro de atenuação corresponde àquele que, como vimos acima, Cunha & Cintra designam como «forma polida de presente». «A explicação deste valor do futuro é a mesma que para o futuro de suposição: embora construído por S0 em T0, o acontecimento é projectado num tempo T1, posterior a T0, onde é/será assumido por um locutor S1, numa situação de enunciação Sit1 construída como distinta de Sit0. Esta dissociação abstracta entre enunciador S0 e locutor S1, definindo situações de enunciação distintas, marca a distanciação do enunciador em relação a uma asserção da qual o responsável é S1 e não ele próprio. Atenua-se assim a tensão modal entre S0 e o seu coenunciador.» 116 E aliviar tal tensão é, acrescentamos nós, uma forma de, polifonicamente de novo, se estabelecer ou manter uma boa relação interpessoal, numa dada interacção verbal, ou seja, respeitar a(s) face(s) do alocutário, isto é, utilizar estratégias de cortesia negativa. A propósito deste e outros processos de atenuação por modalização, explica Kerbrat-Orecchioni que, quando os modalizadores «accompagnent une assertion, instaurent une certaine distance entre le sujet d’énonciation et le contenu de l’énoncé, et par là même lui donnent des allures moins péremptoires, donc plus polies», uma vez que «au lieu d’asséner des vérités», a modalização «se présente comme laissant à autrui toute liberté de conserver son quant-à-soi».117 Observa a autora de La Conversation que há, 115 MARTIN, 1983: 128, cit. por CAMPOS 1998: 246. Rober Martin descreve o funcionamento do «futuro de cortesia» a partir duma forma interrogativa: «Ce sera tout, Madame? Je fais comme si, par une délicatesse toute commune, je ne prenais pas encore la responsabilité d’une telle question, restant à l’entière disposition de mon aimable clientèle.» [MARTIN, 1983 : 207] 116 CAMPOS, 1998: 246. 117 KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 57-58 e 1992: 221. Vem a propósito citar Michel Lacroix: «Aucune société n’a porté au même degré que la nôtre la dissemblance des individus. Les opinions, les valeurs, les choix moraux, les styles de vie, les convictions religieuses et politiques, les éducations varient à l’infini. Dans nos sociétés, deux personnes qui dialoguent ont de fortes chances d’être en désaccord sur 224 em francês, uma espécie de «futuro de cortesia», cuja descrição retoma de Maurice Grevisse, para quem o futuro simples «prend la valeur d’un présent pour atténuer la pensée et marquer une nuance d’extrême politesse. En recourant au futur on semble donner l’illusion que le fait présenté n’est pas encore en voie de s’accomplir».118 Admitindo ser possível aproximar o valor de suposição do valor de atenuação, Campos observa, todavia, que no futuro de suposição, «é a validação da relação predicativa que é distanciada», enquanto que no futuro de atenuação, «é a própria enunciação que se projecta, abstractamente, num tempo T1 posterior a T0.» Por outro lado, o primeiro «corresponde a um valor não assertivo», enquanto o segundo «marca um valor de asserção estrita.» Como teste distintivo, a autora faz notar que, no futuro de suposição, a forma, por exemplo, haverá, pode ser substituída por talvez haja, enquanto que, no futuro de atenuação, a forma, por exemplo, direi, não pode ser substituída por talvez diga. Neste caso, ao dizer Direi que..., «o enunciador-locutor está efectivamente a dizer que ...»119 Exemplificando, nos enunciados seguintes, haverá pode ser substituído por talvez haja, mas Direi não admite a substituição por Talvez diga: «Ao destruir tal poema (...), Antero haverá [/talvez haja] imaginado ter-se enfim libertado do peso do modo herculiano.»120 «Direi [/*Talvez diga] apenas que há uma outra razão para nos desinteressarmos dos “grandes problemas” da vida nacional: a consciência muito nítida de que não atrasa nem adianta dar-lhes atenção.»121 De facto, ao futuro de atenuação corresponde «um valor de asserção e marca o enfraquecimento da tensão intersujectiva criada pela enunciação.»122 Direi é aqui, evidentemente, como diriam Cunha & Cintra, «uma forma polida de presente»,123 como d’innombrables sujets, et la probabilité de heurter les convictions de l’interlocuteur est très élevée.» E conclui: «Il est donc impératif d’accepter d’exprimer ses opinions sous une forme atténuée, pour permettre aux idées de chacun de coexister pacifiquement. Tel est le rôle de la délicatesse.» [LACROIX, 1990: 339-340] 118 Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 206. A autora cita a edição de Le bom usage, de 1964, cuja primeira edição data de 1936. Na nova edição da obra de Maurice Grevisse, revista e actualizada por André Goosse, apresenta uma descrição mais reduzida: «Le futur simple peut s’employer au lieu de l’indicatif présent, par politesse, pour atténuer: // Je vous DEMANDERAI une bienveillante attention.» [GREVISSE, 199313: 1257] 119 CAMPOS, 1998: 247. 120 A frase foi colhida, pela autora, em Joel Serrão, Jornal de Letras, 07.07.81. 121 122 A frase foi colhida, pela autora, em Augusto Abelaira, O jornal 18.12.81. CAMPOS; 1998: 250. 123 Ver, supra, ou CUNHA & CINTRA, 1984: 457. 225 facilmente se verifica pela paráfrase «Digo apenas ...». O locutor, por uma questão de cortesia, diz que dirá o que está a dizer, naquela situação de enunciação, mas como quem não o está a dizer, porque diz que o dirá depois. Há uma desactualização temporal e modal, do presente para o futuro, e do certo para o contingente, sugerindo, assim, um certo distanciamento relativamente ao que é dito, mas também um certo apagamento do locutor. Atenua-se, assim, a força do modo de dizer e, neste sentido, encontramo-nos no âmbito da modalidade intersujeitos e no âmbito da cortesia negativa, por substituição. E mais uma vez, polifonicamente. É como processo de atenuação, inscrito no quadro da cortesia linguística, que Carreira situa também a escolha do futuro do indicativo, em vez do presente do indicativo: «Dans le cas du futur de l’indicatif le non-présent postérieur à T0 a une forte affinité sémantique avec l’incertain. Ceci expliquerait la possibilité que le futur de l’indicatif (accompagné d’une intonation interrogative et suspensive) a, en portugais, d’exprimer l’incertitude, par rapport non seulement à des événements futurs, mais aussi à des événements de T0.»124 2.2.2. Futuro do conjuntivo Como vimos acima, formas do imperativo são empregues, em vez do futuro do conjuntivo, para sugerir uma hipótese, em lugar de asserções condicionadas. Mas o inverso também ocorre, isto é, o futuro do conjuntivo, numa asserção condicionada, substitui o imperativo e o acto directivo que realiza, atenuando-o. Assim, invertendo o exemplo acima dado - «Se suprimir a vírgula, o sentido ficará mais claro», por «Suprima a vírgula, e o sentido ficará mais claro»125 - a asserção condicionada, no futuro do conjuntivo, substitui a forma imperativa. É evidente que o segundo enunciado, dito com a entoação adequada, é, além de directo, mais directivo que o primeiro. O futuro do conjuntivo serve, assim, para atenuar a directividade das formas imperativas, valor que, todavia, os autores da Nova Gramática não referem, pelo menos explicitamente. 124 125 CARREIRA, 1995: 235. Cf. CUNHA & CINTRA, 1984: 475. 226 2.3. Tempos / modos do passado 2.3.1. Imperfeito do indicativo Este tempo substitui o imperativo, segundo Cunha & Cintra, em frases de entoação interrogativa. Nesses casos, usa-se, «não raro», o infinitivo do verbo que exprime a ordem, precedido do imperfeito do indicativo do verbo querer (como o presente do indicativo, segundo foi já referido acima), como em «Queria fechar a janela?», por «Feche a janela!»126 Trata-se duma construção indirecta e atenuada, tanto pela interrogativa como pela desactualização temporal, bem como pela deslocação da fonte deôntica da vontade do locutor para o alocutário. Estamos, portanto, diante dum processo de modalização com o verbo modal querer, cujas observações acima feitas, a propósito de idênticos valores do presente do indicativo, se mantêm. Resta acrescentar que o recurso ao imperfeito do indicativo atenua ainda mais o acto injuntivo, na medida em que, sendo o imperfeito um tempo do passado, como que faz do acto a realizar uma acção irreal. Os autores da Nova Gramática já haviam referido que este tempo pode substituir o presente do indicativo, «como forma de polidez para atenuar uma afirmação ou um pedido», destacando que tal emprego constitui o chamado «imperfeito de cortesia».127 Os exemplos desco(n)textualizados não serão, todavia, os mais indicados para mostrar tais valores. Na vida quotidiana não faltam, porém, ocorrências simples do imperfeito de cortesia. Num bar ouve-se pedir «Queria um café», com ou sem a fórmula atenuadora de cortesia por favor, e na casa de um amigo dizemos «Tomava um copo de água», ou «Com a janela fechada, estava-se melhor, não estava?...», para, em co(n)texto adequado, pedirmos que nos dêem de beber, ou autorização para fechar a janela. Michael Metzeltin, com a colaboração de Marcolino Candeias, refere o «uso do imperfeito do indicativo para indicar um acontecimento do presente», a que chama também «imperfeito de cortesia». Estes autores situam estas construções no conjunto dos usos metafóricos dos tempos verbais, que descrevem assim: «A relação entre to e tq tal como se exprime num comunicado pode coincidir com a realidade dos factos. Tq, porém, também se pode deslocar ficticiamente (tf), o que permite actualizar um acontecimento do passado [...] ou do futuro [...], distanciar para o passa126 Id.: 478. Id.: 451. Lapa chama ao imperfeito «o tempo da simpatia». [LAPA, 18758: 205] Cuesta & Luz registam também que, tanto no Espanhol como no Português, há «o imperfeito de cortesia». [CUESTA & LUZ, 1971: 525] 127 227 do um acontecimento presente, tornando-o assim menos brutal e por isso mais cortês [...] ou deslocar um acontecimento do seu momento real para um momento posterior, dando-lhe assim um matiz de insegurança».128 O imperfeito do indicativo em Português, como noutras línguas, é de facto um tempo de cortesia, pela desactualização temporal e consequente atenuação dos actos directivos que realiza ou acompanha. Observa Carreia que este tempo / modo «situe un événement ou un état envisagés dans leur durée dans un temps antérieur au moment de l’énonciation, T0. Cette désactualisation temporelle (pedia, aconselhava à la place de peço, aconselho) crée une distance, un décrochage relativement à T0.» E acrescenta, para explicar o valor modal também deste tempo: «L’affinité entre le non-présent antérieur a T0 et l’irréel expliquerait la valeur modale d’une forme verbal (imparfait de l’indicatif) ayant par ailleurs une valeur temporelle.»129 «Inséré comme temps d’arrière-plan dans des textes de commentaire – regista por seu turno Weinrich – l’imparfait peut aussi exprimer une nuance de politesse, en particulier de discrétion et de modestie.» Além disso, combinado com a conjunção condicional se, «il désigne la condition irréelle (“irrealis”), qui peut aussi exprimer, lorsqu’elle n’est suivie d’aucune conséquence, un souhait qui n’est pas – ou difficilement – réalisable».130 E Kerbrat-Orecchioni também refere o imperfeito, a que chama «passé de politesse», no conjunto dos processos substitutivos de realização da cortesia negativa, orientada para o alocutário. Em Francês, segundo refere, o imperfeito é o tempo de ate128 METZELTIN & CANDEIAS, 1990: 135. Os itálicos são da nossa responsabilidade e correspondem ao uso metafórico do imperfeito de cortesia. O símbolo «to» corresponde ao «momento em que o emissor actual (Eo) manifesta o seu comunicado» e tq ao «momento em que se dá o acontecimento (Q1) de que fala Eo». [Id.: 120] Ao estudar as relações de tempo no verbo português, Fonseca (F.) também se refere à noção de metáfora temporal, para afirmar que a sua realização, no nosso sistema verbal, ocorre tanto com tempos do indicativo como do conjuntivo, nomeadamente do imperfeito e do mais-que-perfeito. [Cf. FONSECA (F.), 1994: 26-27] Sendo a metáfora temporal «uma modalização do enunciado», através da qual se passa do potencial para o irreal, tal noção aproxima-se da noção de «tempo fictivo» que a mesma autora trata desenvolvidamente em FONSECA (F.), 1992. Defende a linguista que «fictivo é, de um ponto de vista enunciativo, tudo o que não está directamente ancorado na situação de enunciação.» E explicita: «Sempre que há a necessidade de estabelecer, no enunciado, um marco de referência não-coincidente com a situação de enunciação, institui-se uma ficção em sentido amplo, desencadeia-se a força referencial da linguagem, a sua capacidade de projectar mundos». [Id.: 152] O recurso aos tempos verbais de cortesia, que atenuam, regra geral, os actos directivos, podem ser interpretados, nesta ordem de pensamento, como uma ficção dos enunciados que os realizam, sobretudo indirectamente. Sobre a noção de metáfora temporal, cf. também WEINRICH, 1973: cap. VIII (225-258). 129 CARREIRA, 2001: 108. A propósito dos valores modais e temporais das formas verbais, também Fonseca (F.) defende que, segundo uma perspectiva enunciativa, «longe de haver incompatibilidade, há íntima ligação entre o que era tradicionalmente designado por valor modal e por valor temporal: a escolha dos tempos verbais tem uma incidência em toda a organização do discurso por parte do locutor e constitui, pois, um meio importante de modalização do enunciado.» [FONSECA (F.), 1994: 22] 130 WEINRICH, 1989: 143. 228 nuação mais usado, pois com ele «on atténue l’imposition en présentant la requête comme caduque, fictivement bien sûr puisqu’on la formule du même coup».131 E também cita Rober Martin: «Je voulais vous dire que... Là aussi je le veux toujours, puisque je suis en train de le dire. Le rejet dans le passé fait naître l’impression d’une rupture que seul appelle le souci de la politesse».132 Brown & Levinson também observam que a mudança de ponto de vista é uma estratégia, através da qual o locutor se distancia do alocutário ou da realização de um acto ameaçador de face (FTA): «One set of mechanisms involves manipulating the expression of tense to provide distancing in time. As the tense is switched from present into past, the speaker moves as if into the future, so he distances himself from the here and now. Hence we get negative polite FTAs with increasingly remote, for requests: I have been / was wondering whether you could do me a little favour. and for questions: I was kind of interested in knowing if ...»133 Haverkate aborda também o «imperfecto de cortesía», como estratégia atenuadora dos actos de fala não corteses, ou seja, dos «actos exhortativos impositivos» que correspondem aos nossos actos directivos.134 O autor parte da observação, já referida por Brown & Levinson e também por Alarcos Llorach,135 segundo a qual «el imperfecto 131 KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 206. MARTIN, 1983: 118, cit. por KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 207. Grevisse / Goosse, por seu turno, distinguem, entre os usos particulares deste tempo, o «imparfait d’atténuation» que «concerne un fait présent que l’on rejette en quelque sorte dans le passé, pour ne pas heurter l’interlocuteur.» [GREVISSE, 199313: 1251] 133 BROWN & LEVINSON, 19966: 204-205. 134 Haverkate distingue «actos exhortativos impositivos» de «actos exhortativos no impositivos», baseando-se na «intención del hablante»: «el hablante impositivo procura conseguir que el oyente realice el acto exhortado primariamente en beneficio del mismo. Ejemplos prototípicos de esta clase son: el ruego, la súplica y el mandato. El hablante no impositivo, en cambio, procura conseguir que el oyente realice el acto exhortado primariamente en beneficio de sí mismo. Los principales componentes de esta clase son el consejo, la recomendación y la instrucción.» [HAVERKATE, 1994: 148] 135 «La perspectiva de alejamiento común a todos los pasados (en cualquier modo) explica los usos llamados de “modestia” o “cortesía”: “quería pedir-te un favor” (en lugar de quiero), donde el hablante se “aleja” por cortesía del hecho objetivo, su propio “querer”...» [E. Alarcos Llorach, 1978: Estudios de gramática funcional del español. Madrid Gredos; p. 107, cit. por HAVERKATE, 1994: 192] Geoffrey Leech também observa que os pedidos, realizados com verbos nos tempos do passado, «signify a hypothetical action by h, and so in reply, h can in theory give a positive reply to the question without commit132 229 de cortesía opera mediante un proceso de distanciamento», de natureza deíctica, porque se trata, «efectivamente, de un distanciamiento estratégico del momento del acto de habla, que constituye el núcleo de la coordenada de tiempo». Por outro lado, o linguista holandês observa que só o imperfeito, entre os tempos do pretérito, «puede utilizar-se para transmitir cortesía.» E explica que esta escolha se fica a dever ao valor aspectual imperfectivo deste tempo «que, en el contexto metafórico referido [«podemos interpretar la distancia temporal entre presente y pasado como espacio metafórico»], actualiza una interpretación durativa, sugiriendo que la situación hipotéticamente colocada en el pasado puede convertirse en realidad.»136 2.3.2. Imperfeito do conjuntivo É outro tempo/modo que pode substituir o imperativo, na medida em que «transforma a ordem numa simples sugestão», como em «(E) se você se calasse!?», por «Cale-se!», segundo interpretam Cunha & Cintra.137 Ao descreverem o «conjuntivo subordinado», observam ainda estes gramáticos que, nas orações substantivas, se usa «geralmente» este modo, quando a oração principal exprime, entre outros valores, «a vontade (nos matizes que vão do comando ao desejo) com referência ao facto de que se fala». Por exemplo, «Em todo o caso, gostava que me considerasse um amigo.»138 Encontramos, nesta frase, também valores de relativa directividade, se bem que atenuados, ao nível do desejo / pedido, axiologicamente modalizado, desactualizado pelo imperfeito do indicativo da oração subordinante («gostava»), como aliás a sua paráfrase mostra, com o presente do conjuntivo valendo como imperativo: «Em todo o caso, considere-me um amigo.» De referir, a propósito, que Fonseca (F.) mostra que o emprego independente do imperfeito do conjuntivo, como em «Estudasses!» (bem como no mais-que-perfeito composto do conjuntivo, como em «Tivesses estudado!») apresenta também valores semântico-pragmáticos do imperativo, ainda que ao nível da frutração, porque expressos a posteriori, quando utilizados com intenções de censura ou crítica, como se viu acima. ting himself to anything in the real world.» As orações hipotéticas são, por isso, «pragmatically highly specialized towards the function of indicating “on the record” politeness.» [LEECH, 199610: 121] 136 HAVERKATE, 1994: 193. 137 CUNHA & CINTRA, 1984: 477. 138 Cf. id.: 466. A citação foi retirada, pelos autores, de M. Judite de Carvalho, 19782: Armários Vazios. Amadora: Bertrand; p. 119. 230 2.3.3. Mais-que-perfeito Os autores da Nova Gramática não incluem o mais-que-perfeito na lista dos substitutos do imperativo, mas observam, ao descreverem os valores deste tempo verbal, que ele é usado também para «atenuar uma afirmação ou um pedido», denotando «um facto passado em relação ao momento presente», como em «-Eu tinha vindo para convencê-lo de que Pedro é seu amigo e pedir-lhe que apoiasse Hermeto.»139 Observam depois que, na linguagem corrente, o emprego do mais-que-perfeito, em lugar do pretérito imperfeito do conjuntivo, «fixou-se em certas frases exclamativas», como «Quem me dera!», por «Quem me desse!», «Pudera!» e «Tomara (que)!»140 Em nosso entender, porém, o mais-que-perfeito também se emprega com valores imperativos (e um pedido também se pode formular com formas do imperativo), como em «Quem me dera que não me interrompesses!», por «Não me interrompas!», ou «Tomara eu que conseguisses acabar esse trabalho!», por «Faz só o trabalho que tens a fazer!» Estes usos, porém, consoante o co(n)texto e os valores entonacionais, preparam e atenuam o acto directivo que a integrante realiza, já de si afectada de atenuação, também, pelo emprego do imperfeito do conjuntivo. Também a este respeito se pode falar de «metáfora temporal» e de «tempo fictivo», por se tratar da deslocação, para o passado, da realização dum estado de coisas que se deseja concretizado no presente ou num futuro breve. Por outro lado, o locutor toma como revertendo a seu favor ( sinceramente ou não), o êxito do acto a realizar pelo alocutário. A relação interpessoal assim criada pode ser interpretada como cortês ou descortês, consoante o efeito do acto desejado pelo alocutário reverta a favor deste ou não. 2.3.4. Condicional Os autores da Nova Gramática não referem, explicitamente, que o futuro do pretérito simples (seguindo a Nomenclatura Gramatical Brasileira, que preferem), ou o condicional (segundo a Nomenclatura Gramatical Portuguesa141), se emprega também como substituto do imperativo. Registam, contudo, que se usa «como forma polida de 139 CUNHA & CINTRA, 1984: 455. O exemplo foi colhido, pelos autores, em Ciro dos Anjos, 1956: Montanha. Rio de Janeiro; p. 243. 140 Id.: 455 e 456. 141 Os autores explicam a sua opção pela designação «futuro do pretérito», porque se trata, «na verdade, de um tempo (e não de um modo)», porque só se distingue do futuro do presente por «se referir a factos passados», enquanto este último «se relaciona com factos presentes.» [CUNHA & CINTRA, 1984: 462] 231 presente, em geral denotadora de desejo», como em «Seríeis capazes, minhas Senhoras, / De amar um homem deste feitio?»142 Além disso, registam que serve para denotar «surpresa ou indignação», em certas frases interrogativas e exclamativas, como em «O nosso amor morreu... Quem o diria?»143 O condicional utilizado nestes exemplos, desco(n)textualizados, não mostra valores imperativos. A nosso ver, porém, encontrámos tais valores, em frases como «Gostaria que soubesses que já não vou nas tuas cantigas!», por «Sabe ou fica sabendo que não acredito em ti!», ou em «Eu faria doutra maneira!», por «Faz doutra maneira!», ou em «Eu não diria isso!», por «Não diga(s) isso!», desde que, evidentemente, realizadas em co(n)textos adequados. Cunha & Cintra não registam, por outro lado, que o condicional composto também pode ser empregue com valores imperativos. Uma pergunta, evidentemente irónica e possivelmente de censura, como «Quem teria feito tão bem a cama da Eva?...», dita por um dos pais, de maneira que a filha ouça, é, claramente, por indirecção, desactualização temporal e modalização, uma ordem (indirecta e atenuada, é certo, mas uma ordem) dirigida à filha, parafraseável por: «Eva, vai fazer a tua cama!» Vilela também não inclui o condicional (que, na sua definição, «exprime o “irreal” no passado») entre os processos indirectos de realização da ordem. Regista, todavia, que também exprime o pedido, como em «Eu desejaria (= desejava) visitar o Palácio da Bolsa» ou em «Eu quereria / queria falar com o chefe». Além disso, refere que é também utilizado para «suavização de uma afirmação», como em «Eu diria que o senhor não tem razão» / «Dir-se-ia que estamos perante um caso de corrupção».144 Convém referir que as orações subordinantes funcionam como preactos que atenuam a formulação das asserções, inscrevendo-se nos processos de cortesia negativa, portanto. Ao estudar as formas injuntivas, face às formas de cortesia linguística, Carreira, a propósito do(s) enunciado(s) «Pedir-lhe-ia / Aconselhá-lo-ia a / que não atendesse o telefone», observa que o acto directo de ordem «Não atenda o telefone!» sofre uma atenuação, graças ao emprego do condicional, que considera «la forme verbale prototypique de l’irréel», ainda que, como sublinha, o imperfeito do indicativo seja o tempo/modo mais usado actualmente em Português «pour exprimer l’hipothèse, en quelque sorte à la 142 Citação colhida pelos autores em António Nobre, 18982: Só. Lisboa: Guillard & Aillaud; p. 79. CUNHA & CINTRA, 1984: 461. O exemplo é retirado pelos autores de Florbela Espanca, 196210: Sonetos. Porto: Tavares Martins; p. 168. 144 VILELA, 1995: 140. É, certamente, a empregos deste tipo que Cuesta & Luz chamam «condicional de modéstia», realizado tanto por portugueses como por espanhóis. [CUESTA & LUZ, 1971: 525] 143 232 place du conditionnel.» Para a autora, escolher entre o imperfeito e o condicional tem apenas, como efeito, uma diferença de grau ao nível da desactualização modal que resulta «tout particulièrement de la moindre usure que subit le conditionnel, employé dans un registre plutôt soigné.» A escolha do condicional é, por isso, uma forma cortês de reforço da expressão «de l’hypothèse contrefactuell, ou, en d’autres termes, de l’irréel.»145 Nesta ordem de ideias, o condicional é um processo de atenuação dos actos directivos e uma manifestação linguística de cortesia, pelo relativo distanciamento que estabelece, aos níveis da construção discursivo-textual e das relações interpessoais, sendo assim uma forma de manifestar respeito relativamente a «le “territoire”, la “face” de l’allocutaire».146 E, mais uma vez, uma estratégia polifónica. O valor semântico de incerteza que o caracteriza faz com que o condicional, segundo Weinrich, sirva para a expressão da cortesia, mesmo irónica, ainda mais que o futuro. O linguista alemão refere que o condicional se emprega «souvent dans la question polie ou dans une demande discrète, en particulier lorsqu’il est associé à des verbes de modalité», quando não se tem a intenção de não importunar o interlocutor. Realça, a propósito, o papel particularmente importante da «sintaxe da cortesia», quando alguém se compromete, de algum modo, numa interacção verbal, com um interlocutor desconhecido ou pouco familiar: «On ne peut pas commencer par le contrarier par une prétention un peu brutal, et c’est pourquoi on l’aborde au début de façon plutôt humble en lui parlant de façon indirecte ou édulcorée.» O condicional encontra-se, por isso, com frequência, «dans nombre de tournures locutionnelles qui servent à engager la conversation», como em «j’aimerais faire une petite remarque».147 Além disso, o condicional serve muito bem para se dizer não, de forma polida: «il est souvent de restreindre ou tout au moins d’atténuer la force de son refus par une tournure prudemment polie».148 Kerbrat-Orecchioni inclui o condicional nos «procédés substitutifs» para a realização de FTA’s, processos que, no seu conjunto, «sous la forme de divers désactualisateurs modaux, temporels, ou personnels [...] ont pour fonction commune de mettre à distance la réalisation de l’acte problématique.»149 E a autora regista que, em Francês, este tempo é «l’adoucisseur de FTA’s par excellence», quer como «variante» do presente (v.g., «Tu pourrais fermer la porte ?»), quer como processo que por si só trans145 CARREIRA, 2001: 108. Cf. também CARREIRA & BOUDOY, 1993: 67. CARREIRA, 1995: 236. 147 WEINRICH, 1989: 156. 148 Id.: 157. Para usos do condicional, pelos verbos modais (pouvoir, savoir, vouloir, devoir), como processos discursivos de atenuação, cf. id.: 192-195. 149 KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 204. 146 233 forma uma asserção num pedido (v.g., «J’aimerais que tu m’embrasses», em vez de «J’aime que tu m’embrasses».)150 O condicional é descrito por Haverkate, como processo de cortesia ou atenuação de actos de fala, nomeadamente, das asserções «argumentativas» e «sob reserva», por um lado, e dos actos directivos («exhortativos»), directos e indirectos, por outro.151 O autor situa a asserção e a injunção no conjunto dos actos de fala não corteses, mas analisa apenas as suas realizações não descorteses, porque os actos descorteses «son incompatibles con la expresión de cortesía». O interesse do estudo destes actos tem a ver com o facto de serem «neutros en el sentido de que no sirven para comunicar cortesía intrínseca.» A cortesia que possam manifestar é, portanto, de «tipo extrínseco.»152 2.3.5. Pretérito perfeito Cunha & Cintra não referem este tempo como podendo substituir também, em contextos apropriados, formas do imperativo e realizar, por isso, actos directivos.153 Mas Mário Vilela regista-o entre os meios possíveis para a realização da ordem, como em «[na aula de ginástica] Levantou! Rodou à esquerda!» 154 Além deste valor imperativo, outros idênticos se encontram no pretérito perfeito do indicativo, os quais denotam que a acção a realizar é urgente, como quem diz que ela já devia ter sido praticada. Por exemplo, o enunciado interrogativo negativo «Ainda não acabaste?!...», com tom exclamativo e suspensivo, denotador de censura, pode substituir, em co(n)texto adequado, a directiva imperativa «Acaba depressa!» Repare-se que, em «[na aula de ginástica] Levantou! Rodou à esquerda!», é o co(n)texto, minimamente descrito na informação entre parênteses rectos, que faz com que 150 Id.: 205-206. Ver HAVERKATE, 1994: 141-147 e 185-192. O autor faz uma análise «pragmalingüística» das formas do espanhol, mas afirma que valores semelhantes se encontram noutras línguas. O linguista holandês, professor de Linguística Espanhola na Universidade de Amsterdão, descreve os fenómenos da cortesia verbal segundo uma perspectiva complementar dos seus aspectos pragmáticos e linguísticos (daí a designação). Através da perspectiva pragmática presta atenção particular «a las nociones de cortesía positiva y negativa, al análisis coste-beneficio y a las máximas conversacionales y de cortesía.» No plano linguístico, «el centro de gravedad será el estudio de las características formales de los actos de habla corteses y no corteses», distinguindo claramente «entre actos de habla directos e indirectos», bem como «entre focalización y desfocalización referencial.» [Id.: 9] 152 Id.: 116. 153 Convém referir, contudo, que é nesta Nova Gramática que se encontram, apesar de incompleto e com algumas descrições menos precisas, mais descrições dos valores semântico-pragmáticos das formas próprias, supletivas e substitutas do imperativo, mesmo que os exemplos apresentados, independentemente de serem literários ou não, não se encontrarem minimamente co(n)textualizados. 154 VILELA, 1995: 141. 151 234 o exemplo (e outros como este), realizado num determinado tempo de enunciação presente, mas usando um tempo verbal do passado, com acção a realizar num futuro imediato, seja interpretado pelo(s) destinatário(s) como uma ordem. Além disso, como veremos, a relação taxémica existente entre quem possui a voz de comando e aquele que executa a acção comandada mostra que há uma assimetria de lugares (poder ou autoridade), naquele co(n)texto de interacção verbal. Cuesta & Luz referem, por seu turno, que os portugueses usam o pretérito perfeito simples, «com certos verbos», em vez do imperativo, «em casos de ordem muito enérgica e tão impaciente que se dá por realizada no ânimo daquele que a exprime, como em «Girou!», «Andou!» e «Calou!».155 Recordando situações certamente vividas por todos, «Acordou, vá, acordou!» é forma com valor imperativo utilizada, por exemplo, pelos pais, ao acordarem uma criança e para que se levante. Quando dois ou mais homens se juntam para, por exemplo, levantar um objecto pesado, ainda é costume um deles, quando verifica que o(s) outro(s) está(ão) a postos para o esforço conjunto, comandar: «Levantou!» / «Puxou!» / «Parou!» Estaremos, nestes casos, perante mais um processo de impessoalização e de desactualização ou metáfora temporal, pelas razões acima apontadas: enuncia-se num tempo presente uma acção a realizar num futuro próximo, como se fosse um tempo passado. Além disso, ao não explicitar-se o sujeito gramatical, ao fazê-lo apenas através da desinência verbal e ao referi-lo delocutivamente como terceira pessoa, impessoaliza-se o destinatário. Neste sentido, pode-se dizer que tais ordens, comandos ou desejos sofrem uma atenuação ao nível da sua força ilocutória e que, por isso, expressam também cortesia negativa relativamente à face negativa («território») do(s) seu(s) alocutário(s). Mas o sujeito locutor também se apaga, ao não usar formas de 1.ª pessoa. Nestes casos, teremos uma estratégia cortês também ao nível da polifonia, orientada tanto para o alocutário como para o locutor. Não temos conhecimento de usos semelhantes do pretérito perfeito com valores imperativos atenuados e de cortesia, noutras línguas. Haverkate observa que o pretérito é um tempo aspectualmente perfectivo e que por isso o seu uso é excluído «para producir efectos de cortesía», uma vez que «establece una separación fundamental entre pasa155 CUESTA & LUZ, 1971: 526. A propósito, as autoras referem que os portugueses utilizam também, com frequência, o perfeito pelo futuro, comentando que tal se fica a dever ao facto dos portugueses serem «um povo de imaginação exuberante que tende, como o Espanhol, a antecipar e a dar por realizados os factos simplesmente possíveis.» [Id.: 526] 235 do y presente.»156 Todavia, Charaudeau, admite, a propósito das configurações implícitas da injunção, que ela «peu égallement transparaître sous des formes qui appartiennent, par vocation, à d’autres Modalités, à condition que la situation de communication permette de comprendre qu’il s’agit d’une “Injonction” masquée.»157 2.4. Formas verbais nominais 2.4.1. Infinitivo As formas próprias e supletivas do imperativo podem ser substituídas, ainda, pelo infinitivo impessoal, «principalmente na expressão de um comando, de uma proibição», como em «Marchar!», «Não falar ao motorista com o carro em movimento.» ou «Não fumar!»158 Ao descreverem as «tendências» (porque não lhes parece acertado falar em «regras»), no emprego do infinitivo não flexionado, os autores da Nova Gramática voltam a indicar o «valor imperativo» daquela forma verbal,159 conjugada pronominalmente, como em «Se o indez morre, deixá-lo...»160 Cuesta & Luz também registam que o «infinito impessoal» se emprega como imperativo, «em ordens rápidas ou dirigidas a um público indefinido e vago»,161 enquanto Vilela o inclui entre os vários processos possíveis «para a realização da “ordem”».162 Carreira, por seu turno, coloca o infinitivo entre os processos de atenuação da ordem e, por isso, entre as formas corteses da sua realização, uma vez que «posant l’acte à accomplir comme délié de toute entité (qui, en fait, est l’allocutaire) atténuent l’injonction.»163 Weinrich, ao descrever o imperfeito de cortesia, regista que o infinitivo, «en particulier dans la négation», é usado, em Francês, para atenuar, de forma polida, «un ordre ou une interdiction», como, por exemplo, em «pour toute information s’adresser au guichet d’en face» e «ne pas toucher la marchandise, s.v.p.»164 156 HAVERKATE, 1994: 193. CHARAUDEAU, 1992: 582. 158 CUNHA & CINTRA, 1984: 477. 159 Cf. id.: 483. 160 Colhida pelos autores em Mário de Sá-Carneiro, 1953: Poesias. Lisboa: Ática; p. 142. 161 CUESTA & LUZ, 1971: 531. 162 VILELA, 1995: 140. 163 CARREIRA, 1995: 228. Também em 2001: 86. 164 WEINRICH, 1989: 168-169. Também em id.: 187-188. 157 236 Idênticas construções, com idênticos valores semântico-pragmáticos, temos também em Português, em co(n)textos instrucionais, como, por exemplo, na chamada «literatura» que acompanha os medicamentos ou livros de receitas, ou manuais de instrução de electrodomésticos. Ou naqueles avisos que, por vezes, se afixam na porta dos gabinetes, como «Não interromper! Em reunião», acto directivo de proibição, que é um FTA dirigido a quem pretenda entrar naquele espaço, ou deseje falar com alguém aí reunido. A sua atenuação através do infinitivo e da impessoalização, bem como a cortesia daí resultante, serão todavia reduzidas, se aquele acto directivo, com relativo valor injuntivo, não for acompanhado da justificação «Em reunião». Mas será mais atenuado e mais cortês se for acompanhado duma fórmula de cortesia, como em «Não interromper, por favor! Em reunião». Como a própria designação indica, este infinitivo permite uma impessoalização, quer do locutor quer do alocutário, ou seja, será mais uma das estratégias de cortesia, através da qual se pode proteger as faces dos interactantes, conforme o co(n)texto de realização. E de novo encontramos a importância explicativa da polifonia, ao nível da cortesia discursivo-textual: alguém fala como se não fosse ele, a alguém que não se nomeia explicitamente, isto é, como se não fosse efectivamente o destinatário. 2.4.2. Gerúndio Também esta forma verbal é usada como substituta do imperativo. Trata-se, segundo explicam os autores da Nova Gramática, duma construção elíptica, frequente na linguagem popular, de valor geralmente depreciativo para quem recebe a ordem, como em «Andando!», por «Vá andando! Ande!»165 Cuesta & Luz acrescentam, por seu turno, que o gerúndio também «serve para marcar a superioridade do indivíduo que fala e a impossibilidade das suas ordens serem desobedecidas.»166 Vilela não inclui esta forma verbal na lista dos processos lexicais, fonéticos e gramaticais possíveis para a realização da ordem,167 mas Carreira refere que o gerúndio, servindo também para atenuar a sua realização, faz dele um processo de cortesia, ao colocar o acto a realizar 165 CUNHA & CINTRA, 1984: 478 e 490. Actualmente, emprega-se também as fórmulas «Andou!» (ver, supra, pretérito perfeito) e mesmo «Andor!». 166 CUESTA & LUZ, 1971: 536. 167 Cf. VILELA, 1995: 140. 237 como que desligado do interlocutor a quem é dirigido, tal como acontece com o infinitivo.168 Há, porém, construções com gerúndio que, em nosso entender, funcionam também como processos de atenuação de um acto directivo, pela impessoalização do acto a realizar pelo alocutário. Por exemplo, no enunciado directivo directamente formulado «Estuda e passarás no exame», a forma imperativa (descortês) é atenuada pela oração condicional reduzida no gerúndio «Estudando, passarás no exame», equivalendo à subordinada condicional, «Se estudares, passarás no exame», com o verbo no futuro do conjuntivo, construção esta que dá ao acto ainda mais cortesia, como vimos acima. É de observar, na sequência destes exemplos, a mudança de categoria nas orações. No primeiro enunciado, a oração reduzida estuda é subordinante ou principal, numa relação consecutiva com a subordinada, passando nos enunciados seguintes a subordinada condicional, processo que faz de tais orações formas atenuadas e por isso corteses do primeiro enunciado, pela impessoalização e pela desactualização temporal. 2.4.3. Particípio Tal como se verificou em relação ao pretérito perfeito, também só Vilela refere o particípio com valor imperativo, na realização da ordem, embora se limite aos exemplos: «Levantado! Quieto!»169 Consoante o acto restrinja mais ou menos a liberdade do alocutário e reverta ou não a seu favor, actos assim realizados serão mais ou menos descorteses. É evidente que, se um pai, ordena ao filho «Calado!», para que possa ouvir o que outro filho diz, mesmo sem recorrer a fórmulas de cortesia, está a ser menos descortês do que se tal enunciado for dito a um colega. O recurso a esta, como a outras formas elípticas (no caso, omissão do auxiliar) revelam da parte do locutor um estatuto, real ou presumido, de superioridade. Estatuto que, se não co(n)textualmente reconhecido e aceite, pode dar origem a intervenções reactivas como «Manda calar a tua tia!», também elas nada corteses. 3. Construções passivas 168 169 Ver, supra, ou CARREIRA, 1995: 228 e 2001: 86. VILELA, 1995: 141. 238 Além dos tempos e modos, Vilela regista ainda, como processos de realização da ordem, a «passiva de estado», como em «Agora, está-se de pé! Nesta altura, está-se sentado!»170 O linguista não refere, todavia, quaisquer valores de cortesia ou descortesia que esta e outras construções passivas possam realizar. Por outro lado, admitindo-se embora que tal enunciado possa ser a ocorrência duma ordem, a ausência de co(n)texto (cuja importância, todavia, o autor assinala, na interpretação das formas imperativas em geral) não nos permite saber se estamos, efectivamente, perante um acto cortês ou descortês. Cunha & Cintra, Mateus et al. e Cuesta & Luz não registam que as passivas possam expressar valores imperativos. Todavia, as últimas autoras registam, na gramática de que são coautoras, que o locutor português utiliza a passiva quando tem interesse em que o agente não seja mencionado, indeterminando-o ou impessoalizando-o.171 Cabe observar, contudo, que as passivas servem tanto para impessoalizar e indeterminar o locutor, como o alocutário, como ambos. Os exemplos frequentes encontram-se em locais públicos, com o valor de ordens, conselhos, sugestões, avisos, ou em literatura de avisos, informações e instruções: «É proibido cortar árvores ou arbustos neste jardim»; «É proibido fumar neste local»; «Aconselha-se o consumo do produto antes de terminado o prazo de validade»; «Só pode vender-se mediante receita médica». Segundo refere Kerbrat-Orecchioni, «peut être mis au service de la politesse tout procédé visant à estomper la référence aux interlocuteurs, et ce que l’expression de la relation intersubjective peut avoir pour eux de brutal et de menaçant.»172 A passiva inscreve-se, por isso, no âmbito da cortesia linguística, como um processo de atenuação, por substituição, na realização de um FTA, isto é, como estratégia de cortesia negativa. Brown & Levinson observam que a construção passiva «is perhaps the means par excellence in English of avoiding reference to persons involved in FTAs.»173 Haverkate, a propósito dos enunciados «Esta carta no está bien traducida» e «Usted no ha traducido bien esta carta», observa que é evidente a diferença entre ambos, ao nível da expressão de cortesia. No primeiro, «utilizando una construcción pasiva sin agente especificado», o locutor «deja de referirse abiertamente al oyente, por lo que el reproche adquiere un carácter indirecto», protegendo, deste modo, a face posi170 Id., ibid. Cf. CUESTA & LUZ, 1971: 523-524. Sobre construções semipassivas, como processo autorreferencial ambíguo, de apagamento do eu locutor e da dissolução «numa não pessoa», ver também, infra, cap. X, 5., ou MARQUES, 1995: 167. 172 KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 207. 173 BROWN & LEVINSON, 19966: 194. 171 239 tiva do alocutário. Discordamos, contudo, que se trate, como refere o autor, duma estratégia de cortesia positiva. Na linha da teoria de Kerbrat-Orecchioni, a realização dum acto directivo por substituição, realizado indirectamente através dum assertivo, é estratégia que se situa no âmbito da cortesia negativa. O segundo enunciado, «en cambio, no manifiesta ninguna forma de cortesía», dado que «el pronombre personal de segunda persona se refiere explícitamente al oyente, dirigiéndole un reproche directo, no atenuado.»174 O recurso à passiva é, por isso, também uma das «estratégias de anonimato» e, por isso, em nosso entender, também polifónica. Ao comentar o enunciado «Ce problème n’a pas été résolu correctement», em substituição de «Tu n’as pas résolu ce problème correctement», observa Kerbrat-Orecchioni que «il est évident que si le passif peut servir à l’effacement du “je”, c’est surtout en tant qu’il permet, dans les énoncés qui impliquent quelque critique envers A[allocuttaire], de gommer pudiquement la responsabilité du “tu” dans le procès qu’il peut être mis au service de la politesse.»175 Ao longo deste capítulo, referimo-nos aos valores semântico-pragmáticos que estilistas, gramáticos e linguistas reconhecem nos usos dos tempos e modos verbais, em construções discursivo-textuais. Tais valores foram descritos a propósito, sobretudo, da realização cortês de actos directivos, nomeadamente na realização atenuada da ordem, com o objectivo, consciente ou inconsciente, de proteger (por vezes atacar) as faces próprias e dos outros, construindo ou destruindo as respectivas imagens, através de mecanismos linguísticos como os de modalização, impessoalização, indirecção, desactualização, polifonia, que se reflectem nas práticas discursivo-textuais e nas relações interpessoais que elas estabelecem, consoante os co(n)textos e a sua dinâmica. 174 175 HAVERKATE, 1994: 32-33. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 208. Capítulo VII CORTESIA / DESCORTESIA VERBAL E DIRECTIVIDADE Os modos e os tempos verbais não são os únicos meios linguísticos, apesar da sua evidente importância, de que os interactantes se servem para realizar actos corteses ou descorteses, nas diferentes interacções verbais em que intervêm. Há, de facto, outros processos que gramáticos e linguistas também registam e descrevem, em particular a propósito da realização dos diferentes actos directivos e das formas mais ou menos imperativas utilizadas. Acontece, porém, que, por vezes, tais observações denotam, a nosso ver, alguma imprecisão relativamente à definição de cada um dos actos directivos, nomeadamente da ordem, tanto na sua realização directa como indirecta. Julgamos conveniente, por isso, caracterizar melhor a noção de cada um desses actos, uma vez que tal caracterização nos ajudará também a descrever e a interpretar melhor as suas ocorrências e as relações de cortesia ou de descortesia que eles realizam e expressam. O tema permitir-nos-á, por outro lado, clarificar as noções de directividade e de impositividade, face às estratégias de cortesia negativa e positiva. 1. Noção e classificação dos actos directivos Os actos ilocutórios directivos (também chamados «injuntivos», «imperativos», «impositivos», «jussivos») são aqueles em que o locutor, através do enunciado que realiza, num determinado co(n)texto de interacção verbal, quer que o alocutário pratique uma dada acção, num futuro mais ou menos próximo. Essa acção constitui o efeito perlocutório desejado, o qual pode ser alcançado ou não, conforme as relações interpessoais existentes entre os interactantes, no momento da sua formulação. Os actos directivos, além de poderem ser realizados directa e indirectamente, podem ainda visar obter: 242 a) apenas respostas físicas de realização ou não realização duma acção, comportamento ou atitude; b) apenas respostas verbais; c) respostas mistas, isto é, respostas físicas e verbais, ao mesmo tempo. Além disso, os actos directivos e as suas respostas podem estar orientados para: d) benefício ou satisfação dos interesses do locutor e exigirem da parte do alocutário um maior ou menor custo na resposta (física ou psicológica) ; e) benefício ou satisfação dos interesses do alocutário e, em contrapartida, exigirem um maior ou menor custo (físico ou psicológico) ao locutor. Os actos directivos podem ser, por outro lado: f) «de acção explícita, i. e., os actos em que a acção, verbal ou física, que o locutor quer ver praticada pelo alocutário é expressa pelo próprio locutor no seu enunciado, como acontece com os pedidos, com as ordens, com os convites, com as exortações e com as súplicas, por exemplo»; g) «de informação, ou seja, os actos em que a acção verbal executada pelo alocutário permite ao locutor conhecer algo que até aí desconhecia e que, portanto, não está expressa no conteúdo proposicional do seu enunciado, como acontece com as perguntas».1 O acto directivo da ordem é aquele que mais frequentemente aparece indicado como sendo realizado através de formas próprias, supletivas ou substitutas do imperativo, chegando, por vezes, a considerar-se que todos os actos directivos no imperativo são ordens. Resulta esta relativa confusão, certamente, das noções que os falantes duma língua têm e utilizam, tanto na vida corrente, como as que encontram em textos, literários e não literários, do que é dar e/ou receber uma ordem, e que os próprios dicionários e gramáticos também reflectem. Em entradas lexicais de alguns dicionários e em discursos atributivos de textos literários (ou outros), encontramos referidos como ordens actos verbais que, de facto, não são, em termos da Pragmática Linguística. Por exemplo, o DLPACL regista, entre 1 GOUVEIA, 1996: 395. 243 um conjunto alargado de definições do lexema ordem, a seguinte: «Acto pelo qual uma pessoa ou uma entidade manda fazer alguma coisa», apresentando como quasessinónimos imposição e mandado, com os seguintes exemplos: «Em casa dele ninguém dá ordens.», «Estar sob as ordens de alguém.» e «Executar, receber uma +.»2 O Dicionário Morais, também ele apresentando um longo conjunto de definições de ordem, regista, entre elas, as seguintes: «Prescrição, mandato, comissão para se fazer alguma coisa» e «Acção de mandar, verbal ou por escrito, emanada por superior».3 Encontramos nestas definições deste dicionarista as duas principais noções da ordem. A primeira cobre o seu sentido corrente e mais amplo, enquanto a segunda, ainda que também corrente, é mais precisa, de âmbito mais restrito, uma vez que a acção ordenada só é, de facto, uma ordem, se proferida por um superior, isto é, por alguém com poder para a dar. É neste último sentido que entendemos a noção de ordem como acto ilocutório directivo, dadas «as condições de felicidade» que a sua realização exige. Procurando esclarecer a noção e a elaboração duma «tipologia», Isabel Casanova defende haver dois grandes tipos de actos directivos - a ORDEM e o DESEJO - cuja distinção reside na «coercividade» que acompanha a noção do primeiro, mas não a do segundo. A coercividade é, por isso, o seu traço definidor. Neste sentido, um acto directivo só é, de facto, uma ordem «se a não satisfação da vontade do locutor for sancionável, isto é, se o acto directivo for coercivo». Será um desejo «se o alocutário puder sem sanção satisfazer ou não a vontade do locutor».4 A expressão lexicalizada quero, posso e mando é, a nosso ver, uma síntese perfeita da definição do acto directivo da ordem, se nos abstivermos das conotações depreciativas que exercícios de poder abusivos, autoritários ou despósticos lhe deram. Para que um acto directivo seja uma ordem é necessário que, como testes possíveis, o alocutário não possa ripostar, sem riscos conscientes ou inconscientes de sanção, com, por exemplo, «(Mas) Quem é(s) você (tu), para me dar(es) ordens?!», ou «Vá / vai mandar (n)outro!» Uma ordem, produzida em co(n)texto adequado, independentemente da construção discursivo-textual como é formulada, pressupõe, sempre, por isso, uma relação assimétrica entre os interlocutores: o direito de mando ou poder, da parte do locutor, e o dever de obediência, da parte do alocutário. «Só ordena quem tem poder: sem poder só 2 DLPCACL, 2001 (vol. 2): 2681. SILVA, 195410 (vol. 7): 538. 4 CASANOVA, 1996: 430. 3 244 o desejo é possível», observa Casanova. Por isso, «a ordem (legítima) é para ser cumprida», enquanto «o desejo é para ser satisfeito.» Uma ordem é legítima, ou «objectiva», quando, por um lado, é «dimanada de uma entidade com poderes para o fazer» e, por outro, o seu conteúdo se inscreve «dentro do âmbito dos poderes de que essa entidade está revestida».5 Ultrapassar esse âmbito é realizar ordens ilegítimas e, nesse sentido, poderão ser ou não cumpridas. Mas não o sendo, o alocutário não pode ser sancionado, pois não é obrigado a cumpri-las, por ausência do dever de obediência, ou seja, as leis ilegítimas não são coercivas. Não manda quem quer, mas quem pode! é outra expressão lexicalizada que vinca o aspecto coercivo da ordem, embora não denegue a vontade ou querer que lhe está também subjacente. Em casos de ordem ilegítima, apesar da aparência formal de ordem e do poder que, noutros co(n)textos, o locutor possa efectivamente ter sobre o alocutário, não há ordem, mas um outro acto, ainda que de natureza também directiva: um pedido, uma sugestão, um conselho, um aviso, uma instrução. Porque, como observa a autora, uma ordem não é uma questão de «grau», nem de «forma».6 O que a distingue, como aos outros actos directivos, é a sua força ilocutória, independentemente de ser realizada directa ou indirectamente, cuja base reside «na relação ternária locutor – alocutário – conteúdo proposicional».7 Ou seja, tendo em consideração o co(n)texto de ocorrência e o objectivo ilocutório de cada um, sem descuidar as relações de maior ou menor delicadeza (a autora prefere este termo) que os interlocutores desejam (man)ter ou não entre si. Uma ordem pode ser formulada como desejo, pedido ou sugestão, mas isso é uma questão de cortesia, através da qual o locutor recorre a formas menos impositivas, de indirecção discursiva, minimizadoras dos seus aspectos desagradáveis. Por outro lado, não é porque se formula, por exemplo, um pedido como ordem (aparentemente ordem, portanto) que esse pedido passa a ordem. Teremos, nesses casos, uma intensificação do pedido, o qual, todavia, por mais intensificado que seja, não passa, apesar disso, a ordem. Mesmo quando o alocutário, também por uma questão de cortesia, (cor)responda ao locutor, comentando, sem ironia, ou com descortesia e com ironia, «O seu / teu pedido é uma ordem!» 5 Id.: 431-432. Id.: 430. 7 Id.: 435. 6 245 De facto, é o co(n)texto e, dentro dele, a relação de poder existente (ou a sua ausência) entre os interactantes que fazem, não com que um pedido seja uma ordem, ou que uma ordem seja um pedido, mas tão só com que uma ordem seja cortesmente formulada, isto é, atenuada, como se fosse um pedido, e que um pedido seja descortesmente formulado, intensificado, como se fosse uma ordem. Há, porém, situações em que uma ordem ilegítima se torna coerciva, isto é, se torna uma ordem subjectiva. Verifica-se nos casos de salvaguarda da integridade física ou da própria vida, ou de segredos comprometedores. Casanova dá, como exemplos de ordens subjectivas, para o primeiro caso, «um bandido que, de pistola em punho, exige a entrega de dinheiro»; para o segundo, a posse de segredos cuja revelação pode comprometer alguém.8 É esse poder que, pela força das circunstâncias, num caso como noutro, legitima tais ordens e as torna por isso coercivas. A ordem e o desejo, são assim, para a autora, no que toca à sua força ilocutória, duas subclasses completamente distintas dos actos directivos, os quais têm em comum a satisfação da vontade (QUERER) do locutor, mas cuja satisfação, por parte do alocutário, é obrigatória num caso (ordem) e facultativa no outro (desejo). Estabelecida esta primeira distinção, a autora elabora uma tipologia dos actos ilocutórios directivos, mostrando que o pedido e a sugestão são formas ou actos directivos de realização do desejo, e que o conselho, o aviso e a instrução são formas ou actos directivos de realização da sugestão, personalizada ou despersonalizada. Casanova resume e esquematiza, no quadro seguinte, a sua proposta de tipologia dos actos directivos: Objectiva (i. e. ordem social ou institucionalmente reconhecida) ORDEM Subjectiva QUERER Pedido (→ LOC) DESEJO conselho aviso Sugestão (→ ALOC) despersonalizada aviso personalizada 8 A autora refere, concretamente, a chantagem que, n’O Primo Bazílio, Juliana exerce sobre Luíza, uma vez na posse das cartas que a patroa recebera do amante. [Cf. id.: 432] 246 instrução FIG. 1 – Tipologia dos actos directivos, segundo CASANOVA, 1996: 435. Para satisfazer um desejo, pode-se fazer um pedido ou dar uma sugestão, um e outra constituindo actos directivos não sancionáveis, por não coercivos. Mas se o traço coercividade é que distingue a ordem do desejo, que traço distingue um pedido duma sugestão? A «direcção de interesses», responde a autora, que acrescenta: «o pedido visa beneficiar e satisfazer o locutor, a sugestão visa beneficiar o alocutário.» Também aqui «a forma não é determinante da força ilocutória».9 Por uma questão de cortesia, o locutor pode fazer um pedido, dando-lhe a forma de sugestão, ou fazer uma sugestão, dando-lhe a forma de pedido. No primeiro caso, atenua-se o pedido; no segundo, intensifica-se a sugestão. Ao formular uma sugestão, o locutor pode manifestar, contudo, maior ou menor empenho na sua concretização pelo alocutário. Quando tal acontece, está-se perante uma «sugestão personalizada» que se transforma então em conselho: «acto directivo não sancionável (desejo), cuja direcção de interesses aponta para o alocutário (sugestão), revelando um empenhamento expresso do locutor». Quando, porém, o locutor manifesta indiferença relativamente à realização da sugestão, está-se perante uma «sugestão despersonalizada», ou seja, uma instrução: «acto directivo não sancionável (desejo) cuja direcção de interesses aponta para o alocutário (sugestão) não manifestando empenhamento expresso do locutor».10 Restam os avisos, para se completar a descrição da tipologia. Segundo a autora, quando os conselhos e as instruções se revestem de «carácter preventivo», estamos perante avisos, que, se «personalizados», estão mais próximos do conselho, e que, se «despersonalizados», estão mais próximos da instrução.11 Casanova propõe a sua tipologia dos actos directivos apenas em relação aos actos de resposta física, mas, em nosso entender, a referida tipologia poder-se-á aplicar também aos actos directivos de resposta verbal. Por outro lado, os exemplos que apresenta são todos recolhidos em textos literários de autores portugueses.12 Por se tratar de estudo integrado num volume colectivo de introdução ao estudo da Linguística Geral e 9 Cf. id.: 433. A «direcção de interesses» é assinalada, no quadro, pelas setas. Id.: 434. 11 Cf. id.: 435. 12 Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição; Júlio Dinis, Uma Família Inglesa; Vergílio Ferreira, Manhã Sumersa; Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal; Eça de Queiroz, O Primo Bazílio; Alves Redol, Avieiros. 10 247 Portuguesa, destinado, por isso, sobretudo a estudantes do ensino superior que começam a estudar esta(s) matéria(s), quer na sua complexidade global, quer a propósito de temas mais particulares, a autora não terá desenvolvido a problemática dos actos directivos quanto a sua complexidade exige. Trata-se, porém, duma abordagem que permite uma clarificação, a nível semântico e pragmático, dos principais actos directivos, à luz das relações de cortesia. A propósito, é de referir que a autora se situa, apenas, no quadro teórico proposto por Leech,13 embora ao longo do artigo nunca lhe faça referência. O acto directivo da ordem ou injunção e a sua expressão, mais ou menos cortês, em Português europeu contemporâneo, é também analisado por Carreira, na sua dissertação de doutoramento,14 a que já nos referimos.15 Além disso, trata a problemática dos actos directivos em geral, na sua estreita relação com os fenómenos da cortesia linguística, em vários estudos dispersos que recentemente reuniu em volume.16 Em todos estes estudos, a linguista descreve os processos semântico-pragmáticos que a Língua Portuguesa põe à disposição para a realização, com maior ou menor cortesia, dos actos directivos, directa ou indirectamente, que meios linguísticos e paraverbais (entoação) utilizar para atenuar a ameaça que a realização directa de tais actos acarreta (sobretudo) para a face negativa do alocutário. Em resumo, tais processos situam-se ao nível da indirecção, da desactualização temporal e/ou modal, e do recurso a formas e fórmulas de cortesia. Interessa-nos, agora, verificar o que a autora entende por acto directivo de ordem ou injunção, e por actos mais ou menos indirectos da sua realização, ou seja, que actos, com valor injuntivo, são utilizados também para realizar, indirectamente, uma ordem com maior ou menor cortesia ou descortesia. A autora considera que a ordem, isto é, a realização directa e manifesta da ordem, se situa num pólo ou área polar de um eixo, e que as suas realizações indirectas se situam num pólo ou área polar oposto, situando nesta última o pedido, o conselho, a sugestão e o desejo, desde que realizados com «valor injuntivo», como frisa.17 Para a descrição semântico-pragmática do acto da ordem directa e das usas realizações indirectas, a linguista parte da «classe conceptuelle, sous-jacente aux manifestations linguistiques à valeur injonctive», a saber, «FAIRE EN 13 Para uma visão de síntese deste modelo de análise, ver, supra, cap. II, 1.2. Cf. CARREIRA, 1995. 15 Ver, supra, cap. V, 1. 16 Cf. CARREIRA, 2001. 17 Cf. id.: 86 e 107, ou, supra, cap. V, 1.3.. 14 248 SORTE QUE L’AUTRE AGISSE (un DIRE, un FAIRE).»18 Explicitando, acrescenta que, de um ponto de vista comunicativo, «le JE vise à provoquer un changement dans le comportement du TU, mais ce changement ne peut se produire que si le VOULOIR/POUVOIR du TU est en syntonie, quelque peu soit-il avec le VOULOIR FAIRE L’AUTRE (= TU) AGIR du JE.» 19 E mais adiante, ao sintetizar as descrições feitas da injunção e dos actos que, com valor injuntivo, a substituem (pedido e conselho), como realização indirecta e atenuada ou cortês, resume como segue o acto directo da ordem: «Le VOULOIR du JE s’impose au TU en vue de la satisfaction du JE.»20 A noção de ordem, enquanto acto directivo directo, proposta pela autora, é, em nosso entender, incompleta, por não ter em consideração todos os aspectos necessários à felicidade ilocutória da sua realização. Há, de facto, na sua noção, como descreve, um locutor que quer que o seu alocutário faça ou diga qualquer coisa, mas desde que o segundo possa ou queira fazer o que o locutor quer. Acrescenta ainda que o querer do locutor se impõe ao querer ou poder do alocutário e que a resposta deste se destina a satisfazer o querer daquele. Estamos, a nosso ver, perante a noção comum de ordem, isto é, aquela que inclui tanto as ordens reais (objectivas e subjectivas), como as ordens aparentes. Não é relevado o aspecto de poder do locutor, não enquanto capacidade, mas sobretudo enquanto autoridade, apesar de se dizer que o querer do locutor se impõe ao alocutário. Querer impor a sua vontade não é suficiente, para que haja ordem. É preciso que aquele que ordena tenha poder (legítimo ou não) para a impor e que tal poder seja reconhecido (socialmente ou por meios violentos) pelo alocutário. Por outro lado, é dado como efeito desejado, com a realização da ordem, a satisfação do locutor. Ora acontece que nem sempre uma ordem visa a satisfação do locutor. Pode satisfazer o próprio alocutário ou terceiros. Pode, por outro lado, visar apenas impedir (ou prevenir) a realização de alguma acção, cujo efeito prejudicaria o locutor, o alocutário ou terceiros. Além disso, como 18 Id.: 104. Id.: 107. 20 Id.: ibid. 19 249 acima foi referido por Casanova, uma ordem não é para ser satisfeita, mas para ser cumprida. Daí que o seu incumprimento esteja sujeito a sanções, mesmo que estas não venham a ser aplicadas. Outro aspecto em relação ao qual discordamos diz respeito ao poder ou querer do alocutário. Numa situação de ordem legítima, o poder do alocutário não significa autoridade, mas apenas capacidade ou possibilidade para fazer o que o locutor ordena. E quanto ao querer, o alocutário, numa situação de ordem objectiva ou subjectiva, não tem propriamente querer, mas obedecer. A vontade do alocutário, numa situação de ordem, não é tida em conta, regra geral. Repare-se nas expressões que, por vezes, acompanham as ordens, quando o alocutário se recusa a obedecer: Quer queira(s) quer não / Queira(s) ou não queira(s) / Aqui não há querer ou não querer / Aqui a sua / tua vontade não conta / Neste caso, o seu / teu querer nada vale, vai(s) fazer X, dizer Y, ou mesmo ser Z. O par poder / querer, isto é, ser capaz de agir e ter vontade para agir faz parte da definição do pedido, desde que o efeito desejado reverta a favor do próprio locutor. Esta é, aliás, a definição semântico-pragmática que, com outras palavras, dá de pedido («demande») a autora: «L’accomplissement du VOULOIR du JE est sous la dépendance du VOULOIR du TU. C’est la satisfaction du JE qui est visée.»21 Só que esta é a definição de pedido que a autora dá como forma de realização indirecta do acto da ordem, definição que, em nosso entender, é de pedido, desde que não seja injuntivo, isto é, desde que não seja uma ordem disfarçada de pedido. Porque numa ordem, mesmo quando formulada indirectamente, a realização da vontade do locutor nunca está dependente da vontade do alocutário. Dá-se a entender que está, sem de facto estar, por estratégia polifónica de cortesia, ou exercício de poder mal assumido. A autora define, por outro lado, o conselho, com valor injuntivo, isto é, enquanto realização indirecta da ordem, nos seguinte termos: 21 Id.: ibid. 250 «Le SAVOIR du JE est mis au service de la satisfaction du TU. Pour que celle-ci soit effective, le VOULOIR du TU est nécessaire.»22 O que aqui temos é uma definição de conselho, independentemente de ser injuntivo ou não. O locutor põe o seu saber (que é também, como se sabe, uma forma de poder) ao serviço do alocutário. Numa situação injuntiva, porém, o que temos é uma ordem disfarçada de conselho e não um conselho propriamente dito. E as razões para optar pelo conselho (realização indirecta da acto da ordem) serão certamente as mesmas que foram indicadas para fazer um pedido, em vez de se dar uma ordem directa: questão de cortesia ou exercício tímido ou incompetente do poder ou autoridade. Quando se convoca o querer do alocutário (v.g., «Queira ter a bondade de sair!», «Quer / queres ter a bondade de sair?») não se está a colocar, de facto, a realização efectiva do objectivo ilocutório da ordem na dependência do vontade do alocutário, mas antes a intensificar ou a atenuar, por indirecção e desactualização temporal e/ou modal, conforme o co(n)texto de ocorrência, a realização dessa ordem. O facto do locutor realizar, por cortesia real ou aparente,23 em vez do acto directo da ordem, um acto indirecto com o mesmo objectivo ilocutório, seja ele um pedido ou um conselho, um desejo ou uma sugestão, não faz de cada um destes actos uma ordem, apenas a «mascara», ou seja, realiza-se uma ordem indirectamente (implicitamente), formulando directamente (explicitamente) outros actos ilocutórios. Um processo, como temos referido, também de polifonia enunciativa ao serviço da cortesia verbal, isto é, das boas relações entre os interactantes e das suas práticas discursivo-textuais. O alocutário, ao ser sancionado por não ter cumprido uma ordem indirecta, dada por um locutor legítimo, não poderá advogar, em sua defesa, que o que o locutor lhe comunicou foi um pedido ou um conselho. Está subjacente a esta observação uma outra a que nem sempre se dá a devida atenção: a importância duma competência de comunicação, desenvolvida não só ao nível da produção, mas também ao nível da recepção, competência que tem de incluir uma dimensão pragmática também ao nível da cortesia linguística. Para que, por exemplo, ninguém seja «condenado» por ter tomado um pedido, um conselho ou uma sugestão por ordem, ou o contrário. 22 Id.: ibid. Exemplo típico de ordem indirecta, formulada com cortesia aparente, verifica-se quando um professor, depois de ter admoestado determinado aluno (a quem trata por tu) por comportamento incorrecto, decide expulsá-lo da sala de aula dirigindo-lhe, em vez de «Sai!», «Fora!», ou «Rua!», o seguinte enunciado, com a entoação apropriada: «Queira ter a bondade de sair!» Neste caso, a cortesia é irónica e serve apenas para intensificar a ordem dada, evidenciando a diferença de lugares que, institucionalmente, um e outro ocupam, ou seja, o poder / autoridade de um (professor) e o dever de respeito e obediência do outro (aluno). 23 251 A sanção, nestes casos, poderá ser aplicada ou não e, a sê-lo, através de sanções mais ou menos pesadas. Poderá ser apenas uma repreensão ou observação verbal, mais ou menos directamente formulada, com maior ou menor cortesia (irónica ou não). Por exemplo, o locutor que indirecta, mas legitimamente deu uma ordem, poderá dizer/comentar: «Não foi isso que eu lhe / te disse [i.e., mandei] para fazer!» «Porque não fez / fizeste como eu lhe / te disse / pedi / sugeri / aconselhei [i.e., mandei]?» «Desculpe / a, mas vai / s fazer isto de novo, tal como eu lhe / te disse / pedi / sugeri / aconselhei [i.e., mandei]!» «Está bem, mas não foi isso o que eu lhe / te pedi [i.e., mandei]!» «Está bem, mas para a próxima faz / es como lhe / te disse [i.e., mandei]!» Trata-se de comentário(s) a actos de discurso que só aparentemente foram pedidos / desejos / conselhos / sugestões / avisos, do mesmo modo que há ordens aparentes, isto é, actos mais ou menos directivos que, apesar de acompanhados ou não de formas ou fórmulas de cortesia, não passam de pedidos, desejos, conselhos, sugestões ou avisos. Resumindo, não é por ser formulado como sendo outro acto directivo, com mais ou menos cortesia, ainda que com valor injuntivo, que uma ordem deixa de ser ordem, isto é, pode deixar de ter de ser cumprida e o seu incumprimento deixar de ser sancionável. As próprias escolhas lexicais e morfossintácticas exigem coocorrências metalinguísticas, ao nível do efeito perlocutório desejado, que respeitam aqueles valores semântico-pragmáticos. Diz-se que uma ordem foi ou não foi cumprida, que um pedido foi ou não foi atendido, que um desejo foi ou não foi satisfeito, que um conselho ou sugestão foi ou não foi seguido. 2. Impositividade e cortesia / descortesia Vem a propósito retomar-se a questão colocada por Emília Pedro, sobre se certos pedidos são ou não impositivos, por um lado, e a importância que a impositividade tem 252 no modelo teórico de Brown & Levinson, por outro. Para os autores de Politeness, na leitura da linguista portuguesa, «os pedidos envolvem sempre algum grau de imposição» e, portanto, pedir cortesmente é «uma questão de ter cuidado na minimização de imposições», o que se consegue «usando os meios de atenuação adequados.»24 Ora, segundo a autora, na sociedade portuguesa (como na grega, segundo Maria Sifianou, onde existem «fortes relações de dependência grupais e uma certa “desconfiança” institucional»), «a “instituição”, psico-socialmente mais próxima, do amigo ou do “padrinho”, parece produzir mais espaço de confiança do que a instituição na sua forma impessoal e distante.»25 Conclui a autora que há, por isso, situações em que os pedidos não são interpretados como imposições, isto é, «quando os participantes têm determinados direitos e obrigações de realizar actos particulares, específica, cultural e situacionalmente (eu [i. e., Pedro] acrescentaria institucionalmente) condicionados, ou quando o resultado de um pedido beneficia directa ou indirectamente o interlocutor.»26 Nesta ordem de ideias, Emília Pedro é de opinião que, em Português e em Portugal, «pedir um “copinho de água” dificilmente será considerado uma imposição, tanto mais que o uso do diminutivo acrescenta mitigação.» E, reforçando a sua interpretação, acrescenta que, «mesmo sem usar o diminutivo, pedir um copo de água ao empregado do café ou a um amigo que visitamos, estará longe de ser considerado uma imposição», porque se trata, no primeiro caso, de ter «o direito a um serviço» e, no segundo, de «um pedido agradavelmente satisfeito.»27 É de referir que Brown & Levinson consideram que os pedidos, melhor, a formulação atenuada de pedidos constitui também realização de estratégias de cortesia positiva e não apenas de cortesia negativa. Depende da relevância que cada um dos factores D (distância social), P (relação de poder) e G (grau de imposição do FTA), além de outros, tem na avaliação de R (o risco global) 28 de um FTA, realizado pelos interlocutores, em determinadas circunstâncias. Assim, por exemplo, para Brown & Levinson, enunciados como: (a) «Got the time, mate?» (b) «Mind if I smoke?» 24 PEDRO, 1993: 409-410. Id.: 410-411. 26 Id.: 410. 27 Id.: 410. 28 Cf., supra, cap. II, 1.3. 25 253 (c) «Hey, got change for a quarter?» realizam FTA’s, mas com recurso a estratégias de cortesia positiva. Já enunciados como os seguintes realizam FTA’s, mas com recurso a estratégias de cortesia negativa. (d) «Excuse me, would you by any chance have the time?» (e) «Excuse me sir, would it be all right if I smoke?» (f) «Look, I’m terribly sorry to bother you but would there be any chance of your lending me just enough money to get a railway ticket to get home? I must have dropped my purse and I just don’t know what to do.» A distinção entre as frases (a) e (d) reside, segundo Brown & Levinson, no facto do factor D ser o único a variar, no entendimento que o locutor tem relativamente ao seu alocutário, «where the relative power of S and H is more or less equal, and the imposition is not great.»29 E assim, (a) ocorrerá «where S and H were close (either known to each other, or perceptibly “similar” in social terms)», e (d) «where (in S’s perception) S and H were distant (strangers from different parts, say)». O que distingue, por seu turno, (b) de (e) é a variável P, mantendo-se constantes e de baixo valor as outras duas. Nestes casos, o “bem livre” a pedir será formulado com recurso a (b), se for um patrão a dirigir-se a um empregado, ou com (e), se a situação for a inversa, i. e., o empregado a dirigir-se ao patrão. A diferença entre as formulações (c) e (f) radica, por último, continuando a exposição de Brown & Levinson, no facto de ser G a única variável que muda, sendo P de baixo valor e D de elevado valor, mas constantes. O viajante de comboio considerará que o pedido de dinheiro para o bilhete é um FTA de alta imposição para a face do alocutário e, nesse caso, utilizará (f), ou então considerá-lo-á um FTA de baixa imposição e utilizará (c).30 Quando, por isso, Pedro põe em causa a noção de imposição e de hierarquia de imposições, e apresenta como uma das razões o facto de Brown & Levinson terem em 29 A propósito, os autores referem como actos que encerram imposições menores («small impositions»), os pedidos de «bens livres» («free goods»), que definem como «those things and services (like a match, or telling the time, or giving directions) which all members of the public may reasonably demand from one another.» [BROWN & LEVINSON, 19966: 80] 30 Cf. id.: 80-81, para citações feitas e descrições mais desenvolvidas. 254 consideração exemplos que «se referem, claramente, a imposições menores»,31 convém recordar que, como se viu no que acaba de ser exposto, a avaliação do grau de imposição de um pedido, mesmo que se trate de “bens livres”, não resulta apenas do conteúdo proposicional do acto de discurso, mas também das formas verbais utilizadas na sua formulação. Um e outras condicionados, inevitavelmente, pela relação interpessoal (de poder e/ou de distância) existente entre os interactantes, ou desejada pelo locutor, ou da maior ou menor vontade e necessidade que o locutor tem de ver esse acto perlocutoriamente satisfeito, tal como das condições co(n)textuais em que o acto se realize, bem como da competência de cortesia que o locutor possua, a nível verbal, paraverbal e mesmo não verbal. Tudo isto tem influência, por outro lado, no recurso às formas de cortesia a utilizar, mais ou menos elevadas, em maior ou menor número, o que se reflecte também nas práticas discurso-textuais mais ou menos extensas. Como observa Kerbrat-Orecchioni, a propósito precisamente das diferentes realizações linguísticas de cortesia que os pedidos podem ter nas diferentes línguas e culturas, é de ter na devida conta, em primeiro lugar, os factores contextuais, mas, ao mesmo tempo, que «la politesse d’une requête doit être proportionnelle au “degré d’imposition” qu’elle représente pour le destinataire» e que «le degré de politesse d’un énoncé de requête repose non seulement sur la formulation de l’acte lui-même, mais aussi sur ses divers [procédés] accompagnateurs».32 Uma questão de competência comunicativa, ao nível da cortesia verbal, numa palavra: «A person who is skilled at assessing such rankings, and the circumstances in which they vary, is considered to be graced with “tact”, “charm”, or “poise”.»33 Para nós, porém, dentro do modelo de cortesia linguística proposto pela linguista francesa, na continuação e desenvolvimento do modelo de Brown & Levinson, não só enunciados como (d), (e) e (f), mas também enunciados como (a), (b) e (c), em Português e em Portugal, encerram estratégias de cortesia negativa, na realização dos respectivos FTA’s. Embora nos primeiros se encontrem processos de atenuação de um pedido 31 PEDRO, 1993: 413. KERBRAT-ORECCHIONI, 1994: 43. Para uma análise sobre a variação intercultural na realização cortês dos pedidos, com abundante referências a estudos, contrastivos ou não, realizados por outros linguistas, cf. id.: 40-44. Também em KERBRAT-ORECCHIONI, 2000, onde a linguista traça as linhas gerais de uma abordagem dos actos de linguagem numa perspectiva intercultural, nos seus valores ilocutórios e de retórica interaccional, no quadro da cortesia linguística. 33 BROWN & LEVINSON, 19966: 78. 32 255 mais desenvolvidos e em maior número, nos segundos a sua formulação é acompanhada também de processos de atenuação (por substituição e/ou compensação) que também protegem, objectivamente, a face negativa e/ou positiva do alocutário e, indirectamente (pelo efeito de «boomerang»), as faces negativa e/ou positiva do locutor. Sendo certo, porém, que, nestes últimos enunciados, os processos de cortesia são em menor número e apontam para níveis de cortesia mais baixos. Em nosso entender, não é só o facto de locutor e alocutário serem conhecidos ou próximos, nem o facto do locutor ocupar uma posição superior à do alocutário, nem o facto da imposição estimada pelo locutor, em relação a um determinado acto, ser maior ou menor, que fazem com que um pedido deixe de ser, em maior ou menor grau, uma invasão do «território» (face negativa) e/ou um «ataque» ao «narcisismo» (face positiva) do alocutário. Mesmo em situações em que o efeito do pedido resulte, directa ou indirectamente, em benefício do alocutário, frequentemente o locutor recorre a formas ou fórmulas de cortesia. É que, em tais casos, pedir a alguém que faça alguma coisa em seu próprio benefício não deixa de ser, em certa medida, uma interferência na liberdade de acção do alocutário. Por outro lado, o recurso a formas de cortesia mais ou menos desenvolvidas é também uma consequência ou uma exigência da noção que se tem da cortesia e da sua importância nas relações com os outros. Noção e importância que têm muito a ver, também, com as noções de face, sobretudo positiva (autoestima) que os locutores têm de si próprios e querem dar de si próprios. Ninguém gosta, em condições normais, de passar por descortês (ou mal-educado). Uma questão, sempre, de auto e heterofiguração. Recorde-se que, numa interacção verbal, a realização cortês dum FTA, como a realização dum FFA, constituem sempre um acto psicossocial complexo, onde se encontram sempre quatro faces em presença: a face positiva e a face negativa do alocutário, e a face positiva e a face negativa do locutor. Mesmo sabendo-se que os actos de cortesia se dirigem, em primeiro lugar e objectivamente, às faces do alocutário e só indirectamente às faces do locutor. Nesta ordem de ideias, não concordamos com a classificação e as explicações que Pedro dá de actos que se possam realizar, com base nas seguintes proposições: (a) pedir um copinho de água; (b) pedir um copo de água (num café ou durante a visita a um amigo); (c) pedir um pequeno favor; 256 (d) pedir um pouco de papel. Segundo a linguista, trata-se de pedidos que os portugueses, nas suas comunicações quotidianas, dificilmente interpretam como imposições, uma vez que ocorrem em situações onde, por um lado, os locutores têm o direito de os fazer e, por outro, os seus eventuais destinatários a obrigação (profissional, de prazer, solidariedade, afectividade) de satisfazer; ou, então, porque a sua satisfação resulta em benefício directo ou indirecto para os seus destinatários. E, assim sendo, são actos que se inscrevem nas estratégias de cortesia positiva, uma vez que a sociedade portuguesa está orientada nesse sentido, facto comprovado pelo uso extensivo e abundante de diminutivos pelos portugueses. Pedro considera que (a),34 em Português, dificilmente será considerado uma imposição, porque, além das razões co(n)textuais acima referidas, o uso do diminutivo acrescenta mitigação. Mas a linguista não esclarece se essa mitigação diz respeito ao objecto do pedido (conteúdo proposicional = quantidade de água) se ao próprio acto de pedir. Não refere que relações taxémicas e/ou proxémicas existem entre os eventuais interactantes, nem a finalidade do pedido, nem em que quadro espácio-temporal ocorre. O conhecimento que temos do mundo leva-nos, contudo, à interpretação de que o diminutivo,35 em condições normais, visa mitigar o acto de pedir, isto é, minimizar o dano, real ou simbólico (quase sempre mais simbólico que real), que um tal FTA causará (sobretudo) na face negativa do destinatário. O recurso ao diminutivo é, por isso, uma estratégia de cortesia negativa, com objectivos evidentes de atenuação, tendo em vista a sua satisfação perlocutória. A prova de que um pedido destes contém sempre um certo grau de imposição e de que lesa, de alguma maneira, a face negativa do alocutário, reside no facto de que, uma vez satisfeito o pedido, mesmo que agradavelmente praticado, o locutor não deixa de agradecer. A não ser que a sua competência de cortesia seja muito reduzida (ou mesmo nula) e ignore que a satisfação dum pedido, mesmo que de um copinho de água se trate, não exige a recompensa simbólica dum simples obrigado.36 Ao não agradecer (como ao não pedir com um mínimo de cortesia), o locutor põe em risco a sua própria 34 Atendemos agora apenas este pedido, por considerarmos que as reflexões que a seu propósito fazemos valem, com as devidas reservas, para os pedidos formulados com base nas proposições (b), (c) e (d). 35 Sobre os valores corteses (e, por vezes, descorteses) dos diminutivos, ver, supra, cap. V, 2.2. 36 Recordem-se aquelas situações em que, depois de prestado um serviço a uma criança (que pode ser, precisamente, um copinho de água), os pais, com o objectivo claro de lhe educarem a competência de cortesia, lhe ensinam: «Diz (muito) obrigado(a)!, filho(a)», ou «Como se diz, filho(a)?» Evidentemente que, se os pais forem competentes em cortesia, também agradecerão o serviço prestado. 257 face positiva, como já se referiu,37 a não ser que o alocutário saiba tanto de cortesia, quanto o locutor. Mas se for mais competente, pode ser que, da próxima, em vez de água, lhe sirvam antes um chá,38 adoçado com pozinhos de cortesia. Se, por uma questão de cortesia, o amigo não deve deixar de satisfazer com (real ou hipócrita) agrado o pedido, também por uma questão de cortesia, quem pede não pode deixar de agradecer o pedido satisfeito (e mesmo não satisfeito39). Sempre que a sua face negativa é (muito ou pouco) «ferida», o alocutário espera sempre que, em compensação, a sua face positiva seja, de algum modo, «curada». Mesmo quando comenta, por uma questão de cortesia, que é com (muito) prazer que satisfaz o pedido. Porque, a este nível de análise, não é só (ou apenas) o acto ilocutório que se tem em consideração, mas também e sobretudo o valor retórico interaccional desse acto, no estabelecimento e preservação de harmoniosas e equilibradas relações interpessoais. Relações que só se conseguem, em nosso entender, no respeito que os interlocutores / interactantes / coagentes têm pelos princípios ou regras de cortesia, sem excessos nem defeitos, de parte a parte, conforme o co(n)texto de cada interacção verbal. 37 Na altura em que redigimos este comentário, ouvimos várias vezes, no estabelecimento onde habitualmente tomávamos o nosso café matinal, interacções verbais (pedidos) como a seguinte: Cliente – Olhe, um café e um copo de água, faz favor. Empregado (pousando as bebidas) – Com licença! Cliente – Obrigado! 38 No sentido de que, em Português, dar chá a alguém é «censurá-lo indirectamente», «ridicularizá-lo». A propósito, recorde-se a expressão «Não tomou chá em pequeno», relativamente a alguém que «se mostra falto de educação, de quem é grosseiro, mal-criado». [SILVA, 1949-195910 (vol. 3): 13] A cortesia também se educa e aprende, evidentemente. 39 Quem não assistiu ou participou já numa interacção verbal (pedido) idêntica à seguinte? Locutor – Tem horas, por favor? Alocutário – Não tenho relógio, desculpe. Locutor – Obrigado! Capítulo VIII CORTESIA / DESCORTESIA VERBAL FORMAS SUBSTITUTAS DO IMPERATIVO E INTERJEIÇÕES Além dos processos linguísticos e discursivo-textuais até agora referenciados e descritos, dispõem os falantes, escreventes e escritores da Língua Portuguesa de outros processos, mais ou menos lexicalizados e gramaticalizados que, consoante os contextos de ocorrência, podem realizar também valores imperativos e constituírem, por outro lado, expressões de maior ou menor cortesia ou de descortesia verbal. Um deles é o recurso a interjeições e a locuções interjectivas. Trata-se de formas linguísticas geralmente esquecidas e ainda insuficientemente estudadas, apesar da sua recorrência nas práticas discursivo-textuais e dos valores pragmáticos que nelas expressam e desempenham. Decidimos, por isso, dedicar-lhes este capítulo, no quadro das estratégias portuguesas de cortesia / descortesia linguística que temos vindo a descrever. 1. Formas substitutas do imperativo Cunha & Cintra, no registo que fazem de formas substitutas do imperativo, referem que uma ordem pode ser realizada por frases nominais e por «simples interjeições». Por exemplo, quando se diz «Fogo!», por «Atire! Faça Fago!», ou «Silêncio!» por «Cale-se! Faça silêncio!», ou «Avante!», por «Siga avante!», ou «Mãos ao alto!», por «Levante as mãos! Ponha as mãos ao alto!» Explicam os gramáticos que, em tais construções, «a supressão do verbo reforça o tom de comando», uma vez que «perdem o seu valor próprio para denotar uma ideia verbal de acção.»1 1 CUNHA & CINTRA, 1984: 476. 260 Além destas, muitas outras formas, doutras categorias gramaticais, podem realizar, em ocorrências mais ou menos isoladas, tanto actos directivos (que não apenas a ordem) como de outro tipo. Referimos, a título de exemplo: a) advérbios, v.g. «(Mais) Acima!», «(Mais) Abaixo!», «Depressa!», «Devagar!», etc.); b) conjunções («E?!...», «E depois?...», «E então?», «Mas?...», «Quando?», etc.); c) numerais («O decálogo é constituído por dez mandamentos. Primeiro?...»); d) pronomes («Qual?», «O quê?», etc.), etc. Para que cada uma das formas anteriores constitua a realização concreta dum acto discursivo-textual, seja de que tipo for, com valores de cortesia ou descortesia, é necessário, por um lado, que ocorra em co(n)texto adequado e que, por outro, esteja orientado, directa ou indirectamente, para a valorização (cortesia) ou a desvalorização (descortesia) da(s) face(s) do(s) alocutário(s), ou para a desvalorização (por modéstia cortês) da face do locutor. Tomemos em consideração, por exemplo, a forma «Fogo!». Proferida em vez de «Atire! Faça fogo!», será uma ordem ou comando, se a sua ocorrência se verificar num co(n)texto de guerra, de instrução militar, ou escola de tiro. Nestes casos, trata-se de ordem proferida por alguém com autoridade para a dar e cuja acção ordenada (disparar) se quer realizada rápida e imediatamente. Noutros co(n)textos, aquela frase nominal poderá ser um pedido de socorro. Por exemplo, nas aldeias, os incêndios são (ainda) anunciados pelo toque a rebate do sino da igreja e por gritos de «Fogo!» Pode ser também um aviso. Rebentamentos em pedreiras eram anunciados por «Fogo!», prevenindo quem se encontrasse no respectivo raio de acção.2 Pode ainda ser um simples pedido. Uma pessoa, com cigarro nos dedos, aproxima-se de outra e pede «Fogo, por favor!» Pode constituir ainda uma oferta. Uma pessoa que vê outra de cigarro apagado prontifica-se a acender-lho, perguntando: «Fogo?...»3 2 Recordam-se tempos de infância vividos em aldeia situada a sul do concelho de Ponte de Lima, onde, com excepção dos rebentamentos em pedreiras, o aviso e o pedido de socorro contra incêndios continuam a fazer-se do mesmo modo. 3 É de observar que, se até há bem poucos anos, oferecer um cigarro era uma cortesia, hoje tal gesto (gentileza) começa a ser visto como descortesia, dada a consciência que as pessoas vão tendo sobre os malefícios do tabaco. Já se ouve responder, entre amigos, a quem oferece um cigarro: «- Queres-me matar, não?» E há quem chame aos cigarros «pregos para o caixão!» 261 Além destes e outros valores, «Fogo!» pode ainda ocorrer como interjeição, exprimindo irritação, admiração, espanto, indignação, dor, desagrado, etc., usada, normalmente, como eufemismo do palavrão «Foda-se!»4 É sabido que, em casos de urgência (v.g., pedido de socorro), exercício do poder das autoridades legítimas (v.g., tribunal, polícia) ou ilegítimas (v.g., assalto), ou de instrução, as regras de cortesia ficam suspensas no realização do acto. O exemplo dos autores da Nova Gramática inscreve-se, evidentemente, neste quadro. A forma «Fogo!», como outras frases nominais, pode expressar também cortesia, no caso da oferta, ou seja, quando o acto ilocutório visa beneficiar o alocutário. É, porém, descortesia, no caso de interjeição-palavrão eufemística, mesmo quando usada para expressar ou acompanhar a expressão de admiração por alguém ou alguma coisa. Tal descortesia será mais ou menos forte, consoante os co(n)textos de ocorrência. Em certos locais, na presença de certas pessoas, a cortesia proíbe o uso de palavrões, ainda que eufemísticos. É admissível (desculpável) que um jovem manifeste a outro a sua admiração por uma bela rapariga que vê passar, dizendo «Fogo, que mulher!» Se for proferido de modo que ela ouça, o comentário será um piropo cortês, ainda que as boas maneiras não aconselhem o uso de galanteios deste tipo, pelo menos em público. Mas se o mesmo jovem disser a um colega «Fogo, tens cá uma máquina!», exprimindo a sua admiração pelo novo carro do amigo, é mais elevada a cortesia expressa, uma vez que o elogio se centra no objecto e não na própria pessoa. Num caso como noutro, a interjeição «Fogo!» reforça a admiração (sincera ou fingida) do jovem pela beleza da rapariga e pela beleza ou potência do automóvel. Trata-se dum processo de cortesia positiva, realização de FFA’s, orientados sobretudo para a valorização da face negativa («território») do outro. Directamente (alocutivamente), no caso do carro, indirectamente (delocutivamente), no caso da rapariga. Advérbios, em contextos adequados, empregam-se também como substitutos do imperativo, na realização de actos de maior ou menor directividade, com graus diferentes de cortesia ou de descortesia. Por exemplo: na noite em que raptou Brízida, António Malhadas, chegado com ela, montados no «machito», ao cimo dos montes Adomingueiros, onde havia «cortes de gado para os pastos de verão», ordenou «– Abaixo, Brízida 4 Cf. DLPCACL (vol. I), 2001: 1778; NEVES & SANTOS; 2001: 60 e PRAÇA, 2001: 114 262 [...] Vamos aqui pernoitar.»5 O advérbio abaixo, neste co(n)texto, concentra um acto directivo de ordem ilegítima, cuja paráfrase é «Desce do cavalo, Brízida. [...]» A forma concentrada do acto directivo, reduzida ao advérbio, intensifica, por um lado, a ordem dada e, por outro, apresenta a acção ordenada como inquestionável e de obediência imediata. Ordem, todavia atenuada, quer pelo vocativo do nome próprio da moça, quer pela justificação acrescentada, ainda que formulada também com alguma imperatividade / directividade, através da realização da primeira pessoa do plural do presente de verbo ir + infinitivo do verbo principal.6 Entendemos que, no co(n)texto narrativo do episódo, não nos parece que se possam invocar, neste caso, os valores de atenuação e sobretudo de cortesia do nós inclusivo. António Malhadas rapta Brízida contra sua vontade e força-a a entrar na corte para passarem o resto da noite, com o bjectivo inconfessado, mas pressentido, de fazer da donzela (sua) mulher.7 2. As interjeições Como vimos, algumas destas formas também ocorrem, frequentemente, como interjeições. E as interjeições podem ser também formas imperativas e simultaneamente realizar e/ou acompanhar a ocorrência de diferentes actos discursivo-textuais, mais ou menos corteses ou descorteses. Analisemos, por isso, os seus valores a este nível. A interjeição é definida por Cunha & Cintra como «uma espécie de grito com que traduzimos de modo vivo as nossas emoções», ou seja, «sentimentos súbitos e espontâneos» que equivalem «a frases emocionais», não sendo de incluir, por isso, «entre as classes de palavras».8 Habitualmente subcategorizadas consoante o sentimento que expressam, este «depende fundamentalmente do contexto e da entoação».9 Cuesta & Luz, consideram que existe em Português, como no Espanhol, uma grande variedade de interjeições e de locuções exclamativas, muitas delas coincidentes, 5 RIBEIRO, 1989; 54. Itálico da nossa responsabilidade. É de esclarecer que o Malhadinhas acrescentou ainda outra explicação, terminando com (nova) informação, também ela com valor de ordem, naquele co(n)texto: «A noite está escura como breu e caminhos mais estuporados não os trilhou Cristo quando veio a este mundo para salvar os pecadores. Amanhã, com a alba, rompemos.» [Id.: ibid.] 6 Ver, supra, cap. VI, valores semântico-pragmáticos, a propósito das estruturas perifrásticas das formas do presente ir + infinitivo do verbo principal. 7 «Entrámos para a cortinha bem lastrada de mato, com um alpendre de giestas a agasalhá-la do cieiro. Entrámos é um modo de dizer, que foi-me preciso dar-lhe um bom empurrão. Acomodei o machito ao fundo; com a roupa do aparelho armei a cama. E ali, sem mais testemunhas que Deus do céu, depois de breve briga – tinha de ser – da coitanaxa fiz dona.» [RIBEIRO, 1989: 54] 8 CUNHA & CINTRA, 1984: 587 e 588. 9 Id.: 587. 263 ainda que sem correspondência no significado. As autoras apresentam uma lista das interjeições portuguesas, incluindo as que são usadas para atrair ou afastar animais.10 Resumimos, no quadro seguinte (FIG. 1), os valores das interjeições / locuções interjectivas que Cunha & Cintra e Cuesta & Luz registam nas respectivas gramáticas: INTERJEIÇÕES / LOCUÇÕES INTERJECTIVAS ah!; oh!; ai!; óptimo!; magnífico!; belo!; estupendo! avante!; coragem!; eia!; vamos!; bis!; bem!; bravo!; viva!; magnífico!; hip; hip hurra!; muito bem!; ânimo!; anda!; agora!; olé! oh!; oxalá!; tomara eu!; quem me dera!; Deus queira!; Deus o permita!; prouvera a Deus!; quem nos dera! ai!; ui!; ah!; oh!; ai, de mim!; ai, meu Deus!; Deus meu! ah!, chi!, ih!, ué!, oh!, olá!, olé!, eia!, ena!, ih caramba!, cáspite!, essa é boa!, ora toma! hum!, hem!, irra! alô!, ó!, olá!, psiu!, psit!, escuta!, ouve cá!, olha lá!, cuidado! atenção!, cautela!, socorro! psiu!, pschiu!, schiu!, chut!, caluda!, cale-se!, pouco barulho!, silêncio! alto!, basta!, alto lá!, morra!, abaixo!, fora!, safa!, credo!, apre!, irra!, abrenúncio!, basta!, diacho!, diabo! ui!, uh! ai!; hui!; uf!; ai, Jesus!; oh!; valha-me Deus!; coitadinho!; meu Deus!; ai de mim!; coitado do homem!; que pena! Raios te partam; ora bolas; hum!; heim! bich-bich!; prr, prr!; te, te, te!; pio, pio!; xó!; xó-xó!; uxtix!; uxte! VALORES Alegria Animação, aplauso entusiasmo Desejo Dor Admiração, espanto ou surpresa Impaciência Invocação, chamar a atenção, pedir socorro Pedir ou impor silêncio Suspensão, indignação, repulsa, cólera Terror Desagrado ou pena Dúvida, falta de confiança Chamar ou afastar animais FIG. 1 – Interjeições portuguesas, com base em CUNHA & CINTRA, 1984: 587 e CUESTA & LUZ, 1971: 461-462. O quadro não mostra, como é óbvio, todas as interjeições utilizadas pelos portugueses, nem todos os valores que podem expressar nas diferentes práticas discursivo-textuais. Trata-se duma categoria aberta e a lista pode ser enriquecida com consultas de outras gramáticas, dicionários, guias de conversação, manuais de ensino do Português, mas principalmente através da leitura e registo de ocorrências realizadas em práticas discursivo-textuais orais e escritas, sabendo-se, de antemão, que a exaustividade será difícil. Uma recolha e classificação, baseada na análise das respectivas ocorrências co(n)textualizadas, segundo os seus valores corteses e descorteses, faria exceder, largamente, os limites e os objectivos deste estudo. Cabe referir, todavia, a tentativa levada a 10 Cf. CUESTA & LUZ, 1971: 461-462. 264 cabo por Delmira Maçãs, em estudo publicado em 1976, onde faz um levantamento de interjeições e respectivos valores semântico-pragmáticos que, integradas no conjunto das «fórmulas interlocutórias», os portugueses utilizam em diálogos coloquiais. Seguindo estudo de Jutta Gorgas sobre o uso de tais fórmulas, com características comuns ao Espanhol e ao Francês, a autora portuguesa agrupa as interjeições do Português conforme a classificação feita pela autora alemã, registando ocorrências e propriedades comuns às três línguas, e acrescentando as que são específicas da nossa. Apresenta, depois, uma longa lista de palavras e de expressões (cerca de 750), colhidas em transcrições de conversas, na audição de entrevistas radiofónicas e sobretudo em textos literários (romances e teatro), que depois agrupa segundo uma exagerada e por vezes redundante classificação onomasiológica, em 70 categorias.11 No conjunto das fórmulas interlocutórias que regista, encontram-se interjeições e exclamações, perguntas retóricas e de cortesia, formas de tratamento corteses e descorteses (insultos), formas e fórmulas de cortesia (saudação, agradecimento, atenuação e reforço), figuras retóricas, etc. No que às interjeições portuguesas diz respeito, Maçãs descobre, nas ocorrências analisadas, valores que podemos integrar no quadro acima apresentado. O seu inventário permite verificar que uma mesma interjeição ou locução interjectiva pode realizar, consoante o co(n)texto, valores semântico-pragmáticos e discursivo-textuais diferentes. Por outro lado, ao mesmo tempo, um mesmo sentimento pode ser expresso por diferentes interjeições ou locuções interjectivas. Por exemplo, a interjeição ha! expressa, segundo a recolha e interpretação da autora, admiração agradável, desgosto, espanto, prazer, surpresa agradável ou desagradável, podendo funcionar ainda como forma apelativa e de intensificação, bem como para retardar e fazer a transição discursiva.12 Mas o sentimento, por exemplo, de admiração, mais ou menos agradável, pode ser expresso também através das interjeições am!, anh!, ham!, apre!, arre!, ena!, hom!, caramba!, safa!, bestial!, boa!, uma (coisa) assim!, não me diga(s)!13 De facto, como observa Vilela, uma mesma expressão interjectiva pode ter «uma ampla bateria de valores e sentidos», como seja «alegria, ódio, receio, etc.»14 O autor 11 Cf. MAÇÃS, 1976. A autora toma como modelo de classifcação o estudo de GORGAS, J., 1969: Begleitformen des Gesprächs im Französischen und Spanischen (Inaugural-Dissdertation zur Erlangung der Doktorwürde der Pgilosophischen Fakultät der Albert-Ludwigs- Universität zu Freiburg im Breisgau), de que fez recensão crítica no vol. XVI da Revista Portuguesa de Filologia, 1972-74: 2-4. 12 Cf. id.: 167-168. 13 Cf. id.: 162-179. 14 VILELA, 1995: 210 e 211. 265 não menciona, explicitamente, as interjeições no conjunto dos processos imperativos de realização da ordem, mas observa que se integram no discurso, «como formas de saudação e cumprimento, formas de cortesia e de diálogo, ou expressões parentéticas, etc.» Apesar de, em seu entender, não terem qualquer caracterização morfológica e sintáctica, por se situarem fora da frase, as interjeições fornecem à semântica desta valores emocionais importantes, para exprimir, «de forma condensada sentimentos e emoções».15 O significado das interjeições depende, porém, do co(n)texto, onde a entoação, a mímica, o gesto do falante, etc., desempenham também um papel importante.16 Muito pouco estudadas ainda em Português,17 como aliás noutras línguas,18 as interjeições têm vindo a merecer, nos últimos tempos, a atenção de linguistas, em particular daqueles que centram o seu campo de investigação no âmbito da Linguística Pragmática. Miguel Gonçalves procura estudar as interjeições em Português «fora dos cânones de análise tradicionalmente utilizados»19 (entenda-se perspectivas de gramáticos e linguistas «tradicionais»), a fim de lhes evidenciar «o lugar que verdadeiramente lhes cabe na linguagem, bem diverso do carácter marginal ou “adicional” que quase todos, sem excepção, lhes atribuem.»20 Contrariando a «fragilidade das breves análises», «a marginalização» ou «definitiva exclusão» a que têm sido votadas estas «partículas», o autor considera que as interjeições constituem categorias gramaticais que podem e devem ser também linguisticamente descritas ao nível da sintaxe e da semântica intencional. E explica, justificando: «Ao enunciarmos uma interjeição, não nos limitamos apenas a exprimir algo; fazemos mais do que isso: manifestamos, representamos... Utilizamo-la como um “objecto dis- 15 Id.: 211. A importância da entoação e do co(n)texto na realização e interpretação das interjeições é referido e reconhecido por todos os autores que estudam as interjeições, com maior ou menor desenvolvimento. Digamos que se trata dum universal pragmático. 17 Miguel Gonçalves observa que, a par da «floresta de enganos» que envolve a definição de interjeição, há «um árido deserto, em termos de investigação e de produção sobre o assunto.» Isto, «entre nós», porque em relação a outras línguas, que não a Portuguesa, «será injusto manter, hoje, idêntica afirmação.» [GONÇALVES, 1998: 90 e 88] 18 Apesar da ressalva feita por Gonçalves, na nota anterior, alguns autores referem que as interjeições foram e continuam a ser pouco estudadas. Por exemplo, Haverkate observa: «La interjección es una categoría cuyo estatus gramatical está poco claro, lo que se explica por el escaso interés que ha recibido en la bibliografía lingüística.» [HAVERKATE, 1994: 198] E Antonio Jesús Camacho observa que as interjeições têm sido «marginadas durante siglos por gramáticos y lingüistas». [CAMACHO, 2000: 1] 19 GONÇALVES, 1998: 93. 20 Id.: 101. 16 266 cursivo”, numa estratégia elaborada e dirigida a um alocutário. E é a este nível que a interjeição se relaciona com os constituintes da frase ou com a frase em si mesma.»21 O autor não descreve os valores das interjeições ao nível das relações de cortesia ou de descortesia, mas importa salientar o facto de, no seu estudo, ter chamado a atenção para os valores informativos e sobretudo pragmáticos que as interjeições têm no discurso, que considera o «seu campo de acção privilegiado».22 Christine Sirdar-Iskandar (que Gonçalves também cita, em parte) observa que a interjeição «c’est le lieu privilégié où se marque l’interaction des individus», aí desempenhando duas funções fundamentais: a) modalizadora, através da qual o enunciador «peut adopter des attitudes, jouer des rôles»; b) argumentativa, através da qual o enunciador «peut également se présenter comme agissant sur autrui en le faisant entrer dans son jeu, en le forçant en quelque sorte à tirer une conclusion qu’il a lui-même déterminée à l’avance».23 É sobretudo a estes níveis que, a nosso ver, as interjeições podem substituir formas imperativas e realizar ou acompanhar actos de maior ou menor directividade, bem como, por isso, expressar ou ajudar a expressar actos de cortesia ou de descortesia, entre os interatantes. 3. Valores corteses e descorteses da interjeição portuguesa O Português europeu utiliza uma grande variedade interjeições cujos valores linguísticos (semântico-pragmáticos) e (sobretudo) discursivo-textuais, todavia, estão ainda por descrever e sistematizar, com o desenvolvimento e a profundidade que a sua frequência e funções merecem. Não podemos realizar, neste trabalho, um levantamento das suas ocorrências, em número significativo, de modo a podermos retirar conclusões válidas. É nosso intenção, todavia, prosseguir, no futuro, o estudo das interjeições portugue21 Id.: 95. Id.: 96. 23 SIRDAR-ISKANDAR, 1980: 161. Alineação da nossa responsabilidade. Cf. também DUCROT et al., 1980: passim; Weinrich considera que as interjeições «sont essentiellement des morphèmes phatiques dont le sens se rapporte à l’action.» [WEINRICH, 1989: 501] 22 267 sas, cujas ocorrências em práticas discursivo-textuais (orais e escritas) temos vindo a recolher, bem como bibliografia. Observamos, porém, desde já, que as diferentes interjeições portuguesas podem expressar ou ajudar a expressar diferentes valores, consoante os co(n)textos de ocorrência. Parece, todavia, que o seu emprego, sobretudo daquelas cuja realização mais se aproxima dos sons instintivos produzidos pelo homem24 (ah!, eh!, nh!, ai!, ui!, etc.), é socialmente visto como uma descortesia, ou pelo menos, pouco cortês. É o que se pode depreender, por exemplo, deste fragmento dialogal, travado entre Rola e Florinda, em Terras do Demo, de Aquilino Ribeiro: «- Dize cá, Florinda [...], se hoje larapiasses dinheiro, que é um supor, e tivesses de o esconder, onde é que o metias? - Sei lá! [...] Num buraco. - Mas ouve, cabeça de arolo, há esconder e esconder. Esconder coisa de que ninguém deu fé e de que ninguém anda à coca, é um cantar; esconder coisa que deu nas vistas e que escape ao lúzio do mais pintado, é outro cantar. Estás percebendo? - Ham? - Ham, zurram os burros. - Entendo-te lá, homem! - Se suspeitasses que vinham a descobrir a ariosca, onde o metias?»25 A intervenção de Rola, comentando e censurando o uso da interjeição Ham? por Florinda, mostra que estas fórmulas não são maneiras próprias de gente, mas de ani24 Herculano de Carvalho observa que está na «origem dos significantes interjectivos nas suas formas mais típicas, - como ah!, ó!, ai!, ui!, arre!, irra!, etc. – não qualquer cópia ou imagem intencional de um objecto sonoro, mas sons que, produzidos pelo homem, constituem prolongamentos externos, com carácter instintivo – não intencional, portanto -, de estados emocionais, de perturbações internas de natureza psico-física, como são o grito – de dor, de surpresa ou medo, de alegria -, o gemido, o suspiro, etc.» Estes «puros indícios, da mesma natureza que um esgar de dor, ou que os sons emitidos pelos animais» transformaram-se, com o tempo, em interjeições plenamente constituídas, ganhando um carácter intencional, uma forma constante e um valor significativo, ao serem produzidos «repetidamente pelos mesmos sujeitos numa série de actos determinados por circunstâncias similares». O linguista considera, todavia, que «tanto como as onomatopeias, também as interjeições não são verdadeiras palavras», porque (i) «representam globalmente a situação a que se referem», (ii) «não desempenham função na frase», antes valendo por si mesma como «toda uma frase» e (iii) «o conteúdo intelectual (informativo) das interjeições é mínimo, sendo o seu significado, portanto, quase exclusivamente conotativo, de natureza emotivovolitiva». O autor considera, em síntese, que «temos nas interjeições sinais intencionais em que, apesar de uma parcial convencionalidade, se conserva sem dúvida uma também parcial conexão originária natural com o objecto – emoção – que representam», ocupando, portanto, «um lugar inteiramente marginal relativamente ao sistema linguístico da comunidade a que pertencem.» [Cf. CARVALHO, 1973 (Tomo I): 194 a 198] 25 RIBEIRO, 1983b: 98. Itálicos da nossa responsabilidade. 268 mais. Por outras palavras, o seu emprego é uma descortesia, não só em relação ao alocutário, mas também em relação ao próprio locutor, conforme resulta da metáfora depreciativa utilizada.26 Embora o comentário de Rola também nada tenha, por isso, de cortês, a verdade é que, fruto da evidente relação assimétrica de lugares existente entre os interactantes, Florinda, compreendendo a censura do homem, substitui a interjeição pela asserção de que não havia entendido a explicação por ele dada, sem contudo utilizar uma negativa explícita. É a partícula «lá» que aí desempenha essa função. A interjeição Ham?, neste co(n)texto, funciona, na sua forma elíptica, por um lado, como resposta negativa (parafraseável por «Não estou a perceber») e, por outro, como pedido de repetição (parafraseável por «Como?», ou «Repete.») Ao produzir uma interjeição não lexical, em vez dum enunciado, o locutor estabelece com o seu alocutário uma relação de proximidade e familiaridade, dada a conotação da interjeição com o grito instintivo e emocional, pondo assim em causa a face positiva do outro. É por isso que, entre conhecidos, iguais e/ou próximos (sobretudo jovens), as interjeições não lexicais (de saudação, de estabelecimento, manutenção, recuperação ou confirmação de contacto), num co(n)texto informal, são consideradas, regra geral, não propriamente descorteses. Já entre desconhecidos, com relações taxémicas e proxémicas de relativa distância (real ou presumida), são consideradas descorteses. É por isso também que, em co(n)textos informais de natureza polémica, em que há uma relação assimétrica (real ou presumida) de lugares entre o locutor e o alocutário, conhecidos ou desconhecidos, o primeiro entra e/ou mantém o contacto com o segundo, recorrendo a interjeições. É o que se verifica, a título de exemplo, nas intervenções que a seguir apresentamos. Durante o rapto de Brízida, o jovem António Malhadas, ao ser surpreendido por Agostinho, pai da rapariga, acompanhado pelo padre de Britiande, também interessado na moça, e duma «choldra sem conta» que os perseguiam, deitou mão ao bacamarte e gritou «– Olá, amigos, que é isso?» E um pouco mais adiante, quando o povoléu em alarido se juntou aos perseguidores, tolhendo-lhes o passo, de novo gritou o jovem almocreve: «- Eh lá, gentes! [...] Se alguém se atravessa, está aqui está no inferno!...»27 26 Lê-se em livro relativamente recente de etiqueta e boas maneiras: «Se não percebemos qualquer coisa que nos digam, nunca deveremos perguntar “O quê?”, e muito menos “Hã?”, pois há outras expressões bastante mais delicadas, como por exemplo, “Desculpe, não percebi o que disse”, ou simplesmente “Como?”» [GIÃO, 1988: 144] 27 RIBEIRO, 1989: 61 e 63. Itálicos da nossa responsabilidade. 269 Trata-se, evidentemente, de situações onde as relações entre os interactantes nada tinham de amigável, apesar de mutuamente conhecidos e próximos. O raptor criara com o grupo perseguidor uma relação hostil, por isso de distanciamento28 e de assimetria de poderes. Em tal circunstância, as cortesias deixaram de ter lugar, para o objectivo da empresa ser bem sucedido. Tais interjeições, neste co(n)texto [e em co(n)textos semelhantes] funcionam, por isso, como actos exortativos (com valores fáticos e de advertência), mas descorteses. Repare-se que é o co(n)texto de ocorrência, ao nível de cada uma das intervenções e, neste caso, ainda do discurso-texto narrativo em que se integram, que faz com que estas interjeições expressem aqueles valores. A ausência do co(n)texto levaria a que as mesmas interjeições fossem interpretadas como formas de estabelecimento ou revelação de relações de proximidade e camaradagem, e por isso de cortesia. Comparem-se as intervenções anteriores com, respectivamente, «- Olá, amigos!» e «- Eh lá, gentes!», onde os vocativos de ordem afectiva e proximidade, reforçariam as relações e atenuariam eventuais «ataques» à(s) face(s) negativa(s) do(s) alocutário(s), causados pela «invasão» dos seus «territórios». Cabe ainda observar que, aquelas interjeições (e outras com valores idênticos) ocorrem, obrigatoriamente, ao nível da sintagmática, no início da intervenção, uma vez que a sua colocação no final ou no interior do enunciado, com o mesmo objectivo ilocutório, torná-las-ia agramaticais: «*- Que é isso? Olá, amigos!» e «*- Se alguém se atravessa, está aqui está no inferno, eh lá, gentes!» A primeira intervenção seria apenas aceitável, se o curioso locutor se tivesse esquecido de saudar os amigos, circunstância que, para ser cortês, deveria depois remediar, acrescentando uma intervenção reparadora. Nesse caso, a redacção da intervenção complexa poderia ser: «- Que é isso? Olá, amigos! Desculpem não ter começado por cumprimentá-los!» Mas neste caso, o co(n)texto já não seria, claramente, o de confronto. Não nos parece possível, por outro lado, que, alterando o objectivo ilocutório, haja um co(n)texto em que a intervenção «*- Se alguém se atravessa, está aqui está no inferno, eh lá, gentes!» possa deixar de ser agramatical. Os valores semântico-pragmáticos dos segmentos anteriores à locução interjectiva não consentem que se explique primeiro e se exorte depois. 28 Distanciamento que a partícula «lá» reforça, tanto numa como noutra intervenção de António Malhadas. Recorde-se que, como explica Herculano de Carvalho, olá! é uma forma «a respeito da qual se perdeu inteiramente a consciência dos elementos etimológicos da sua formação», a saber, «de “Ó lá” = “ó tu que estás lá”». [CARVALHO, 1973 (Tomo I): 198, nota) 270 Utilizámos exemplos ficcionais, mas são conhecidas interacções verbais da vida quotidiana, como a seguinte. Em casa (na rua, ou na escola), dois ou mais rapazes começam à bulha, ou então, vê-se um dos grandes maltratar, física e/ou verbalmente, um dos pequenos. Alguém, com poder (institucional, físico ou moral, reconhecido ou assumido) intervém, procurando pôr fim à contenda, proferindo, muito possivelmente, como advertência e censura, um dos seguintes enunciados, entre outros possíveis: «Eh lá, menino/a, que vem a ser isso?!» «Eh lá, menino/a, isso faz-se?!» «Ei!, tu aí, que estás a fazer?!» «Pst! / Ei! / Ó tu! / Então!, não tens vergonha?!» «Ó, tu aí, que vem a ser isso?!» Ou então, aquelas situações em que alguém tenta furar uma fila e é repreendido por outrem, cansado ou não de esperar: «Eh / Ei / Ó senhor / cavalheiro / minha senhora, não viu a bicha?!» Referimos, sobretudo, ocorrências de interjeições não lexicais. Passar-se-á o mesmo com ocorrências de interjeições lexicais, isto é, com aquelas interjeições que constituem lexemas e expressões dotadas, apesar do seu estatuto, de relativa autonomia referencial? Vejamos. Encontram-se, na lista de interjeições portuguesas acima apresentada, várias delas cujos valores semântico-pragmáticos, por um lado, se encontram já lexicalizados e, por outro, estão mais orientados para a valorização e/ou ameaça [em contextos não irónicos)] da(s) face(s) do(s) alocutário(s) e que, por isso, podem ser consideradas, respectivamente, corteses e descorteses. Reunimos, no quadro seguinte, as interjeições que, em tais c(o)ntextos não irónicos, consideramos orientadas para a(s) face(s) do(s) alocutário(s) (A-orientadas), valorizando-a(s) (FFA’s) ou ameaçando-a(s) (FTA’s). Há, porém, outras interjeições que, consoante os co(n)textos de ocorrência, tanto podem valorizar a(s) face(s) do(s) alocutário(s), como ameaçá-la(s). Trata-se de interjeições que, quando proferidas com o sentido de, por exemplo, advertir alguém de perigo eminente, ou de ajuda e incentivo a acção, ou 271 comportamento favorável ao alocutário, realizam ou acompanham FFA’s. Quando, porém, o seu sentido visa efeitos contrários a estes, realizam ou acompanham FTA’s. Colocamos na coluna de «Mistas» as interjeições que podem realizar e/ou acompanhar FFA’s ou FTA’s.29 INTERJEIÇÕES A-ORIENTADAS De valorização (FFA’s) Mistas De ameaça (FTA’s) Belo! Bravo! Coitadinho/a! Coragem! Estupendo! Óptimo! Que pena! Viva! ... Alto! Avante! Caramba! Cuidado! Deus queira! Oxalá! Quem nos dera! Silêncio! ... Abaixo! Abrenúncio! Basta! Bem, bem! Fora! Morra! Ora esta! Toma! ... FIG. 2 – Orientação de interjeições portuguesas para o alocutário As interjeições lexicais, apresentadas na FIG. 2, constituem uma selecção das apresentadas no quadro das interjeições, supra. A título de exemplo, vamos descrever os valores semântico-pragmáticos que, ao nível da expressão de cortesia ou de descortesia, uma interjeição de cada um dos conjuntos pode expressar. Consideremos, por exemplo, a interjeição «Alto!», acompanhada ou não de partículas de reforço e apelo. O DLPCACL dá desta interjeição as seguintes definições: «1. Voz de comando usada para mandar parar ou suspender determinada acção ou actividade. Alto!, gritou o polícia, levantando a mão. 2. Usa-se para manifestar desacordo com o que acaba de ser dito e para interromper o discurso. alto aí, o m[esmo] que alto. Alto aí que esse carro é meu! alto lá, o m. que alto. Alto lá, não te admito que me fales dessa maneira.»30 As definições 1 e 2 situam a utilização desta interjeição no âmbito dos fenómenos descorteses, uma vez que se trata de actos directivos que lesam, de algum modo, 29 Para a distribuição destas interjeições, segundo os seus valores de cortesia e de descortesia, servimo-nos, por um lado, da nossa experiência pessoal e das definições que se encontram nas entradas do DLPCACL. 30 DLPCACL, 2001 (vol. I): 191. 272 a(s) face(s) do alocutário, ao serem realizados sem atenuadores. Cabe observar, porém, que o primeiro exemplo se situa fora do âmbito dos fenómenos da cortesia / descortesia, por se tratar duma ordem dada por uma autoridade legítima. A definição 1 pode verificar-se, todavia, noutras situações, ainda com objectivos ilocutórios directivos, mas com efeitos perlocutórios diferentes, ao nível dos benefícios que podem reverter ou não para o alocutário. Imagine-se, por exemplo, o seguinte contexto de ocorrência. Um condutor pára o automóvel numa via inclinada, descuida-se e a viatura começa a deslizar em direcção a uma parede. Um transeunte apercebe-se do caso e grita, batendo no veículo: «Alto!» O aviso preocupado interjectivo é, neste caso, um acto A-orientado e cortês, pois o efeito desejado é a protecção da face negativa («território» bem material, o automóvel) do alocutário. Trata-se, por isso, dum FFA, cuja realização exige, como contrapartida, um acto reparador da parte do alocutário, se for cortês: «(Muito) Obrigado!» Imagine-se agora que o transeunte se encontra entre a viatura e a parede. O grito «Alto!» seria descortês, um FTA, uma vez que o efeito desejado reverteria a seu favor, na protecção da sua face negativa («território» corporal). O acto reparador formulado pelo condutor já não seria de agradecimento, mas de desculpa. Ainda que devesse também agradecer, pois que o aviso do peão ter-lhe-ia evitado graves responsabilidades civis e eventuais prejuízos materiais. Neste sentido, a última ocorrência da interjeição é, numa primeira instância, descortês para o automobilista e cortês para o peão, mas, numa segunda instância, também cortês para o distraído condutor. A definição 2 dada pelo DLPCACL, referindo que a interjeição «Alto!» se usa para manifestar desacordo e/ou interrupção da intervenção do interlocutor, situa as suas ocorrências no âmbito da descortesia. Se não forem acompanhadas de atenuadores, repita-se. A interjeição é, nesses casos, um FTA que lesa as faces positiva e/ou negativa do alocutário, tratando-se, por isso, de actos mais ou menos descorteses. O sentido geral para a descortesia de tal interjeição prender-se-á, em nossa opinião, com o facto dela, como refere o DLPCACL, ter a sua etimologia na forma alemã «halt!, imp[erativo] de hakten», que significa parar.31 Valor imperativo que se mantém em Português e que, por isso, é também um meio que pode substituir a realização do imperativo, no sentido de proibição, isto é, de acção ou actividade física ou verbal que não deve ser concretizada. 31 DLPCACL, 2001 (vol. I): 191. 273 As interjeições que colocámos na coluna dos FFA’s realizam actos de cortesia positiva, através dos quais o locutor valoriza e/ou enriquece as faces positiva e/ou negativa do alocutário. É o caso, consoante o co(n)texto, das interjeições que expressam em relação ao alocutário, por um lado, felicitações, elogios, cumprimentos, incitamentos, etc., e, por outro, as que expressam ou compartilham sentimentos de pesar, de dor, de compaixão, etc. Por exemplo, a interjeição «Viva!», para o primeiro conjunto, e a interjeição «Coragem!», para o segundo. Esclarece o DLPCACL que a interjeição «Viva!» é uma exclamação que «traduz aclamação, saudação festiva, júbilo.»32 Por exemplo, terminado o jogo do pau entre o jovem António Malhadas e o jogador de Santa Eulália, os assistentes gritaram: «– Vivam os valentes! Vivam! – [...] – Não há vencedor nem vencido!»33 Nesta ocorrência, a interjeição é um FFA, uma vez que se trata duma valorização da face (no caso positiva) dos jogadores.34 Segundo o DLPCACL, um locutor ao utilizar a interjeição «Coragem!», visa «incutir ânimo, força perante o sofrimento ou qualquer dificuldade», como em «Coragem!, tudo se há-de resolver. Coragem!, a dor vai passar.»35 Ainda que a interjeição encerre directividade (conselho e/ou desejo), trata-se dum FFA, pois que está orientado para a protecção da face positiva do alocutário, ao ser uma manifestação de solidariedade para com o alocutário, consolando-o e incentivando-o a vencer uma situação difícil. As interjeições lexicais A-orientadas que realizam ou acompanham a realização de FTA’s são descorteses, porque constituem ameaças para a(s) face(s) do(s) alocutário(s). Trata-se de expressões através dos quais o locutor reprova, abomina, critica, se indigna, se revolta, se distancia, etc., em relação a alguém e/ou ao seu comportamento, por um lado, ou se satisfaz, alegra, congratula, etc., com o mal que fez ou sucedeu ao(s) alocutário(s), por outro.36 É o que se verifica, por exemplo, com o uso da expressão «Bem, bem!», cuja definição lexical, segundo o DLPCACL, diz que «exprime repreensão, censura ou reprovação», como em «Bem, bem! Olha que já sabes como elas te mordem!» Ou, então, com a locução «Bem feita!», que o mesmo dicionário diz servir «para indicar que, na opinião do locutor, o mal que acontece é merecido», exprimindo 32 DLPCACL, 2001 (vol. II): 3769. RIBEIRO, 1989: 39. Itálicos da nossa responsabilidade. 34 É de esclarecer que, de facto, sempre tinha havido um vencedor – o António Malhadas. Nem sequer os assistentes se tinham apercebido da facilidade e rapidez com que o jovem almocreve cortara os botões do colete ao outro jogador. Cf., para o episódio, id.: 35-41. 35 DLPCACL, 2001 (vol. I): 972. Definição 8 da respectiva entrada. 36 Os termos em itálico resultam das definições que o DLPCACL dá de interjeições que, em nosso entender, ameaçam a(s) face(s) do alocutário (FTA’s). 33 274 também «satisfação pelo mal sucedido a alguém.»37 É, pois, a face positiva e/ou a face negativa do alocutário que é mais ou menos atingida e lesada por cada uma destas interjeições e que, por isso, situamos no âmbito dos fenómenos verbais da descortesia. Os valores pragmáticos de cortesia ou de descortesia que as expressões interjectivas lexicais podem exprimir tornam-se mais evidentes, ao manipular-se o seu emprego, procedendo ao teste da comutação. Verifica-se, por um lado, haver expressões interjectivas que podem funcionar como quasessinónimos, mas, por outro, que nem todas as substituições são possíveis, uma vez que tornam a frase agramtical ou de aceitabilidade duvidosa, ao nível das relações de cortesia, pelo menos. Considere-se, por exemplo, a seguinte troca verbal. L – Então, Eugénio, já acabou o curso?!... A – Sim, sr. professor. L – Parabéns! A – Obrigado! A segunda intervenção de L é constituída apenas pela interjeição «Parabéns!», através da qual felicita o êxito de A. Não cuidando agora o tipo de relação interpessoal que as formas interjectivas também expressam ou pressupõem entre o locutor e o alocutário, a interjeição de felicitação proferida por L pode ser substituída, entre outras, por «- Muito bem! / Bravo! / Viva! / Boa! / Bestial / Sim senhor! / Óptimo! / Estupendo! / Magnífico! / Excelente! / Porreiro! / Maravilha! / Formidável!», mas não por «– *[Cruzes! / Livra! / Safa! / Ora bolas! / Francamente! / Essa é boa! / Credo! / Pudera! / Bem feita! / Raios te partam! / Valha-te Deus!]38 Sintetizando-se, temos que as interjecções, enquanto expressões de cortesia e/ou de descortesia, podem expressar valores corteses ou descorteses, consoante os co(n)textos de ocorrência, tanto ao nível da sua localização/relação sintagmática na 37 DLPCACL, 2001 (vol. I): 510. O exemplo é retirado do livro Cavalo do Lenço Amarelo (p. 20), de Mário Castrim. 38 O asterisco marca a agramaticalidade de todas as expressões interjectivas, naquele contexto, colocadas entre parênteses rectos. 275 intervenção, como da(s) unidade(s) textual(is) de maior dimensão em que se integram e de que fazem parte, bem como do universo discursivo-textual construído e/ou em construção. São sobretudo as interjeições não lexicais que, a este nível, mais ocorrem com valores diferentes e mesmo opostos. A explicação deve-se, a nosso ver, ao facto de se tratar de morfemas que, por não serem dotadas de autonomia referencial (ou terem-na muito reduzida), apenas adquirem valores pragmáticos de cortesia ou de descortesia, isto é, adquirem referência actual, em contextos de ocorrência. Valores que, por isso, são frequentemente explicitados pelo(s) acto(s) de discurso que essas expressões interjectivas acompanham. É por isso, também, que as expressões interjectivas não lexicais ocorrem com menor frequência como constituintes únicos duma intervenção, ao contrário do que se verifica com as lexicais. No que a estas últimas diz respeito, os valores pragmáticos de cortesia ou de descortesia que podem expressar, embora estejam também muito dependentes do co(n)texto, resultam dos valores semântico-pragmáticos que o uso lhes fixou e consagrou, gozando duma relativa autonomia referencial. A reduzida autonomia referencial faz, por outro lado, com que as formas interjectivas sejam utilizadas, frequentemente, como processos de intensificação ou de atenuação de actos discursivo-textuais, ora para os tornar mais corteses, ora menos descorteses, ora mais descorteses. Tomemos, a título de exemplo, a seguinte interacção verbal, colhida no conto «Mestre grilo cantava e a giganta dormia», de Aquilino Ribeiro. Co(n)textualizando-se temos que, irritada com o permanente cantar do Grilo, que assim não a deixava dormir descansada, uma noite gritou-lhe a Abóbora menina: [A1] – Eh lá, seu casaca! Você não pode calar a caixa? Com tal brequefesta como hei-de eu dormir?! [G1] – Ora a palerma! – retorquiu o grilo escandalizado - Não querem lá ver, tem-se na conta de menina e é tão mona. Ah! Sua calaceira, cante, cante connosco a chamar o Sol que se não demore muito detrás dos montes e nos traga alegria e claridade. [A2] – Estou mesmo para isso! Olhe, sabe que mais, outro ofício e deixe dormir quem tem sono. [G2] – Outro ofício!... Essa não é má! Saiba, sua estúpida, que eu nasci para cantar. Tenho-o como um dever. Quando não cantar, rezem-me por alma.»39 39 RIBEIRO, 1989a: 12-13. Segundo os métodos de análise das interacções verbais, numerámos os turnos de fala de cada personagem – Abóbora e Grilo – precedendo-as da respectiva inicial ([A1], [G1], etc.). 276 É com uma locução interjectiva - Eh lá – constituída por uma interjeição propriamente dita (Eh) e por uma partícula enfática (lá), seguida dum vocativo que é também um tratamento insultuoso com valor também interjectivo - seu casaca - que A, com [A1], se dirige a G. Com ela, A visa chamar a atenção de G para o comportamento que este está a ter, o qual é visto por A, simultaneamente, como estranho, desagradável e reprovável, procurando, assim, impedir a sua continuação, objectivo que o acto injuntivo (director) realiza e os seus actos justificativos (subordinados) seguintes reforçam. Trata-se, por isso, duma intervenção que fere a face dupla do alocutário. A face negativa, porque viola o seu território, ao entrar abruptamente em contacto com ele, mas também ao invocá-lo depreciativamente através duma sinédoque, ao dirigir-lhe um acto injuntivo (ainda que seguido de justificação) e ao fazer comparações, também depreciativas, em relação à actividade de G. A face positiva, porque é a autoestima do alocutário que é ferida, não só através destes processos, mas também através dos insultos que lhe dirige. É também com uma interjeição – Ora a palerma! – que inclui também um tratamento insultuoso, que G reage, expressando estranheza, indignação, desprezo e desvalorização pelo interlocutor e pelo que ele disse. Reacção emotiva que acentua quando, em vez de responder directamente a [A1], convoca terceiros, através duma fórmula interlocutória também ela com valor interjectivo - Não querem lá ver – para lhe desfigurar, de seguida, a face pública de menina. Este processo de referência delocutiva é uma estratégia de descortesia: o locutor trata e refere-se ao interlocutor como um ausente, recusando, por um lado, aceitar participar na interacção verbal iniciada e, por outro, dando início a outra troca verbal de que o interlocutor é aparentemente excluído, ainda que seja o tema desta nova troca verbal (incompleta, porque retórica). Trata-se, por isso, duma estratégia polifónica de distanciamento descortês em relação a A. Só depois G se dirige directamente a A, começando também por uma interjeição que, mais que confirmar o contacto, o (re)estabelece, negativamente, porque acompanhado duma forma vocativa insultuosa – Ah! Sua calaceira. Num caso como noutro, G lesa, sobretudo, a face positiva de A. Mas ao dirigir-lhe, na mesma intervenção, um acto directivo com 277 valor injuntivo - cante, cante connosco a chamar o Sol - ainda que acompanhado de justificação - que se não demore muito detrás dos montes e nos traga alegria e claridade - o locutor fere sobretudo a imagem negativa do interlocutor, ao propor-lhe uma actividade para a qual não estava nada (pre)disposto, como se verá pela resposta. Cabe observar que, com esta intervenção complexa, através da qual, por um lado, não responde directamente a [A1] e, por outro, lhe propõe outro tema de conversa, G acentua a conflitualidade e as relações descortesia entre ambos. Que A não estava (pre)disposta a cantar, di-lo na intervenção reactiva, formulando um enunciado exclamativo irónico – Estou mesmo para isso! – exclamação que, por isso, encerra também valor interjectivo. Em [A2], A dá de imediato início a uma nova troca verbal, com uma nova intervenção, recorrendo, para o efeito, mais uma vez, a formas que podemos considerar como preactos que apresentam, ao mesmo tempo, valores de natureza injuntiva (imperativos), fática (contacto e orientação discursiva), enfática (intensificação) e interjectiva (sentimentos) - Olhe, sabe que mais, outro ofício - preparatórios do acto director – deixe dormir quem tem sono. Acto este que constitui uma reformulação que explicita e reforça a injunção já realizada (tentada) com o acto «Você não pode clara a caixa?» Desta feita, porém, A não recorre a insultos nem a referências depreciativas. Aliás, A, apesar de tudo, dirige menos insultos e é menos descortês que G. Além disso, denota uma capacidade discursiva e argumentativa menor. Repare-se que a fórmula interlocutória e interjectiva sabe que mais revela não só isso mesmo, mas também (e por isso) que não é capaz de continuar a interacção verbal. Como desde início se percebeu, G desenvolve este «diálogo de surdos» retomando e repetindo o acto interjectivo «Outro ofício!», transformando-o em acto director, quando para A mais não era do que expressão (interjeição) de desagrado e desvalorização pela e da actividade do interlocutor. O acto director de [A2] continua a ser que G se cale e a deixe dormir. Ao tomar «Outro ofício!» como acto director, na intervenção [G2], G não só desvaloriza e desconsidera, mais uma vez, a face positiva da interlocutora, como também denega o objectivo ilocutório pretendido por A. Denegação que é reforçada por mais uma locução interjectiva, desta feita irónica – «Essa não é má!» – que, além dos valores de estranheza e discordância, funciona também como avaliação negativa da tentativa de injunção. O locutor ridiculariza deste modo a interlocutora, ao afirmar, ironicamente, que ela não sabe o que diz. Daí os preactos de natureza fática e enfática, também interjectivos, além de directivos e insultuosos, e por isso descorteses, com que G inicia a última 278 intervenção – «Saiba, sua estúpida que eu nasci para cantar. Tenho-o como um dever. Quando não cantar, rezem-me por alma.» É com esta intervenção que G responde, efectivamente, à questão inicialmente posta por A - «Você não pode calar a caixa? Com tal brequefesta como hei-de eu dormir?!» depois repetida, por reformulação, em [A2], com «deixe dormir quem tem sono.» São evidentes as várias funções que, nesta interacção verbal polémica, desempenham as expressões interjectivas destacadas ao nível da estruturação da sequência dialogal e, sobretudo, ao nível das relações interpessoais que os interlocutores estabelecem e desenvolvem. A este nível, são evidentes as funções fáticas de estabelecimento e/ou de manutenção de contacto, com que, através das interjeições, os interlocutores sistematicamente se interpelam um ao outro. É criada, assim, uma relação de claro conflito, com emoções e sentimentos extremados que as interjeições expressam de modo intenso, a par dos insultos (também eles fáticos, enfáticos e interjectivos), ao mesmo tempo que anunciam, orientam e intensificam os actos directivos realizados com intenções de ordem, mas que a relação interpessoal estabelecida e desenvolvida, fortemente antagónica e descortês, fez redundar em actos discursivos falhados. Aliás, quando dois interlocutores dirigem «ordens» um ao outro é porque entre ambos não existe uma relação de poder e nenhum se encontra obrigado, por isso, a cumpri-las, porque não coercivas, não sancionáveis. Fica assim clara, em nosso entender, a importância que as expressões interjectivas têm ao nível das práticas discursivo-textuais e das relações interpessoais (corteses e descorteses) que através delas também se estabelecem e manifestam. TERCEIRA PARTE CORTESIA / DESCORTESIA VERBAL E FORMAS DE TRATAMENTO EM PORTUGUÊS Em Portugal, uma pessoa está sujeita a ser interpelada de quatro, ou mesmo de cinco modos diferentes e a cada um desses modos está associado um grau diverso de intimidade ou de respeito, cada um deles fixa firmemente o tipo de relação entre a pessoa interpelada e a pessoa que se lhe dirige. Peter Fryer & Patricia McGowan Pinheiro1 1 FRYER, P. & PINHEIRO, P. McG., 1961: Oldest Ally. Londres, p. 230, cit. por CINTRA, 19862: 9-10. Capítulo IX INTRODUÇÃO Se a cortesia e, correlativamente, a sua falta vigiam permanentemente as práticas discursivo-textuais de quem fala ou escreve, isto é, de quem realiza actos de comunicação in præsentia ou in absentia, as formas de tratamento (FT’s), corteses e descorteses, são as marcas mais evidentes dessa vigilância. As FT’s corteses são meios linguísticos de que os interlocutores se servem para estabelecer uma plataforma de relacionamento interpessoal capaz de, à partida, assegurar o bom andamento duma interacção verbal. Em princípio, não se entra e mantém contacto com outro(s) através de FT’s descorteses, a não ser em casos especiais de conflito existente ou procurado, ainda que se saiba que a simples abordagem do outro, nomeadamente desconhecido ou pouco conhecido, ou dum superior conhecido, possa ser entendida como invasão da sua privacidade, do seu território, e por isso uma descortesia, e por isso se deva pedir desculpa, atenuando e reparando a lesão causada por tal invasão, segundo mandam as regras da cortesia. A primeira função dos tratamentos corteses é, por isso, de natureza relacional. Através dos usos que deles fazem, os interactantes estabelecem contactos, atribuem, reconhecem ou negoceiam lugares, no respeito mútuo pelas faces positivas e/ou negativas de cada um, conforme os co(n)textos em que se encontram e de que eles próprios também fazem parte e que podem alterar. Esse bom relacionamento pode servir também como estratégia para alcançar outros fins, confessados ou não. É o que acontece, por exemplo, quando um locutor pretende algo que resulte em seu benefício e considera de realização mais ou menos custosa para o alocutário. Nesses casos, o locutor prepara e desenvolve a revelação desse objectivo, recorrendo para o efeito, sincera ou fingidamente, a diferentes formas e níveis de cortesia verbal, incluindo as de auto e heterorreferência, de que os tratamentos também fazem parte. Pode, contudo, tal objectivo apresentar-se inviável, por impossibilidade, dificuldade ou recusa pura e simples do interlocutor. Neste último caso, pode acontecer que o bom relacionamento diminua, ou degenere em conflito aberto, ou mesmo 282 acabe. Pode, então, o locutor tentar conseguir, pela descortesia, o que não conseguiu, pela cortesia. Neste caso, um dos interlocutores coloca-se, explicitamente, fora do quadro da cortesia, das boas relações interpessoais, alterando, por completo, o equilíbrio das posições de cada um, até aí existentes. Uma vez dado o primeiro passo para o campo da descortesia, a interacção verbal poderá terminar imediatamente ou continuar por mais ou menos tempo. Regra geral, uma interacção verbal agonal é de curta duração. Em se enveredando, então, pelos insultos (noção em que incluímos as FT’s descorteses), unilateral ou bilateralmente dirigidos, o fim dessa interacção torna-se eminente. Os cuidados que cada interactante tem das faces do(s) outro(s) e, devido ao efeito boomerang, das suas próprias faces (em primeiro lugar, em tais casos), não consentem que uma interacção se inicie e desenvolva assente em insultos, a não ser em casos lúdicos. Tudo depende, mais uma vez, da competência de cortesia e, a contrario, de descortesia, que cada interactante possui e da sua performance, em relação a si próprio e ao(s) outro(s), conforme os co(n)textos. Consideramos, portanto, que a utilização das FT’s constituem um dos processos mais eficazes, por um lado, de captatio benevolentiæ, como via para a persuasão ou convencimento, e, por outro, como meio de agressão verbal, com os mesmos objectivos retóricos ou não. Já Aristóteles observava: «Os elementos que se relacionam com o auditório consistem em obter a sua benevolência, suscitar a sua cólera, e, por vezes, atrair a sua atenção ou o contrário.»1 Colocamos, assim, as FT’s no âmbito da Retórica, procurando destacar os seus valores nos processos de argumentação e persuasão, de acordo, aliás, com a «definição geral» que Michel Meyer dá da Retórica contemporânea: «c’est la négociation de la distance entre des hommes à propos d’une question, d’un problème. Celui-ci peut d’ailleurs aussi bien les réunir que les opposer, mais il renvoie toujours à une alternative.»2 1 2 ARISTÓTELES, 1998: 211. MEYER, 1993: 22-23. 283 Evelyne Largueche (se bem que refirindo-se à injúria), também considera que se trata «de l’art de convaincre ou d’argumenter, ne reposant pas forcément sur la vérité (le vérité précisément) mais aussi bien sur le vraisemblable (le vérifiable, le justifiable?).»3 De facto, se num acto de injúria se encontra «l’idée d’empêcher l’autre de répliquer, de lui “clouer le bec”», «de combat oratoire – de joute, dit-on parfois – où perd celui que se tait et dans lequel l’art de répliquer est considérée comme une maîtrise de soi», 4 os tratamentos corteses visam objectivos inversos, isto é, que o locutor, agindo verbalmente sobre o interlocutor, o seduza e o leve também a agir, física ou verbalmente, de determinada maneira. Seduzir e convencer o outro, recorrendo a estratégias corteses que também são as FT’s, é uma forma de vitória do locutor sobre o alocutário. Nos estudos sobre as FT’s em Português de Portugal, cujos principais pontos sintetizaremos no capítulo seguinte, os seus autores apresentam e/ou referem diferentes classificações, segu(i)ndo critérios essencialmente morfossintácticos, por um lado, e semântico-pragmáticos, por outro. Ao mesmo tempo, de forma mais ou menos explícita e explicitada, situam-nas em categorias que podemos considerar subclasses ou hiperclasses daquelas. Assim, além de classificadas em pronominais, pronominalizadas, nominais e verbais, são ainda classificadas em formas sujeito, vocativo e objecto. Ao nível da referência enunciativa, em alocutivas, delocutivas e elocutivas, e ao nível da semântica lexical, no que toca à classe das nominais, distinguem-nas, consoantes os referentes, em FT’s que têm como termo principal: a) nome próprio (NPp) e/ou nome apelido (NAp) (v.g.: António, Antónia; (António) Marques; Antónia Marques5); b) nome de parentesco (NPt) (v.g.: pai; mãe; filho/a; avô/ó; tio/a; irmão/ã; etc.); c) nome de afecto (NAf) (v.g.: querido/a; caro/a; lindo/a; amor; etc.); d) nome de profissão (NPf) (v.g.: carpinteiro; taxista; porteiro; professor; etc); e) título académico (TAc) (v.g.: engenheiro; professor; arquitecto; doutor, etc.), político (TPl) (v.g.: secretário de estado; ministro; Presidente da República; deputado; etc.), civil (TCv) (v.g.: administrador; presidente; secretária; chefe; etc.), militar (TMl) (v.g.: sargento; capitão; coronel; general; comandante; etc.) ou religioso (TRl) (v.g.: padre; frade; irmã; cónego; bispo; etc.); 3 LARGUECHE, 1983: 7. Id., ibid. 5 Em Português, ainda não é usual indivíduos do sexo feminino serem tratados apenas pelo NAp. 4 284 f) título nobiliárquico (TNb) (v.g.: duque; conde; fidalgo; príncipe; majestade; etc.); g) títulos honoríficos (THf) (v.g.: [Vossa] Graça; [Vossa] Magnificência; [Vossa] Reverência; Vossa Santidade; etc.); g) senhor/a e/ou dona (Sr /Srª /Dª) (v.g.: senhor; senhora; dona; senhora dona); h) nomes de relação especial (NRe) (v.g.: camarada; vizinho/a; colega; amigo/a; etc.); i) insultos (Ins) (v.g.: burra/o; canalha; estúpida/o; bacoco/a; palerma; cão; cabra; etc.).6 Convém observar que os tratamentos que realizam cada uma destas subclasses podem vir acompanhados ou não de determinantes (definidos e/ou possessivos), de adjectivos, ou/e de outras FT’s, bem como, no caso de vocativos, da respectiva partícula interjectiva. O determinante utilizado (definido e/ou possessivo, em regra) poderá aumentar ou reduzir a expressão de cortesia ou de descortesia da FT usada e, consequentemente, a relação de proximidade (proxémica) ou de afastamento (taxémica). A nível semântico-pragmático, além de classificadas como marcadores fáticos e deícticos pessoais e sociais, as FT’s portuguesas pronominais, pronominalizadas e nominais aparecem-nos ainda também classificadas como de intimidade, familiaridade, solidariedade, proximidade, afectividade, informalidade, por um lado, e de distanciamento, hierarquia, formalidade, respeito, poder, etc., todas elas marcadas por traços de [+] ou [-], ou ainda por [±]. Ao mesmo tempo, determinadas FT’s são classificadas de cortesia ou de deferência. A par destes tratamentos (e com eles se confundindo), encontram-se também os títulos honoríficos (mais lexicalizados), em oposição aos tratamentos auto-humiliativos e de modéstia. Se conjugarmos as classificações propostas pelos autores que estudam as FT’s em Português contemporâneo e situarmos os tratamentos alocutivos mais habituais num eixo, em cujos pólos e centro situamos os termos classificatórios, teremos o seguinte quadro: 6 As subclasses das FT’s nominais referidas correspondem, no essencial, à tipologia proposta por MEDEIROS, 1985: 56 e sobretudo por BRAUN 1988: 9-11. Medeiros resume, depois, a sua primeira classificação, de 14 para 6 categorias «mínimas», três das quais integramos na classe das FT’s pronominais (tu, você e V. Ex.ª) e outras tantas na das nominais (NPp ou NAp; Sr./ª, Dª ou Sr.ª Dª; Sr./ª + TAc, TPf. [Cf. MEDEIROS, 1985: 194] Por outro lado, a autora inclui a FT V. Ex.ª na classe dos «propronomes», que corresponde aos tratamentos nominais de Lindley Cintra, enquanto chama às pronominais «pronomes puros» e às verbais «formas zero», como se verá. [Cf., infra, cap. X, 1. 2.] 285 + FAMILIARIDADE - DISTÂNCIA Tu Você(s) o/a + NPp ± FAMILIARIDADE ± DISTÂNCIA o/a (NPp) NAp. - CORTESIA o/a Sr./ª /Dª -FAMILIARIDADE +DISTÂNCIA o/a T. ±CORTESIA o/a Sr./ª + T V. Exª /Sria +CORTESIA FIG. 1 – As FT’s e as relações interpessoais Seguimos em parte, na elaboração deste quadro, a apresentação feita por Carreira, limitando-nos, porém, aos tratamentos que consideramos mais correntes, nos dias hoje, situando-os na escala da cortesia. Como se verá, esta linguista portuguesa analisa as FT’s segundo os eixos da horizontalidade (cujas ocorrências podem expressar familiaridade superior, igual ou inferior) e da verticalidade (cujas ocorrências podem expressar distância superior, igual ou inferior), segundo os valores semânticopragmáticos de cada uma, disponíveis em língua. A autora não inclui, explicitamente, no seu quadro, o eixo de cortesia superior, igual e inferior, relacionado com as noções e eixos de horizontalidade e de verticalidade. Em nosso entender, porém, o estudo que faz das FT’s está enquadrado também no campo das formas de cortesia, tanto na sua dissertação de doutoramento, como noutros dos seus estudos. 7 Aliás, ao concluir o ensaio «Délimitation sémantico-pragmatique des formes d’adresse en portugais», esclarece ter procedido segundo pontos de vista complementares que entre si se articulam, sendo um deles, precisamente, o da cortesia das FT’s.8 Em nosso entender, as noções semânticopragmáticas de familiaridade e de distância não são compreensíveis, nem operativas, sem as dimensões de cortesia e de descortesia que elas também claramente expressam. Segundo alguns autores, são consideradas apenas de cortesia aqueles tratamentos que expressam, sobretudo, -FAMILIARIDADE e +DISTÂNCIA, seguindo-se-lhes aqueles que se situam entre este pólo e a zona média do eixo de ±FAMILIARIDADE e ±DISTÂNCIA, espaço onde é possível encontrar ou situar diversos níveis ou graus de cortesia. Os tratamentos situados no pólo +FAMILIARIDADE e -DISTÂNCIA serão os que expressarão níveis mais baixos de cortesia, ou de cortesia neutra ou nula, mas que nós preferimos designar por cortesia de grau zero, sendo possível encontrar ou situar 7 8 CARREIRA; 1995, ou 1997 e 2001. CARREIRA, 2001: 75. Também em 1995: 114. 286 também neste espaço (entre este pólo e a zona média do eixo), FT’s que expressem diferentes níveis ou graus de cortesia. A FIG. 1, a par das descrições feitas pela autora e por outros linguistas, permite-nos verificar que as FT’s portuguesas actuais que expressam reduzida cortesia ou o seu grau zero, por um lado, e de mais elevada cortesia, por outro, são realizadas por tratamentos pronominais. É certo que os tratamentos de mais elevada cortesia, hoje incluídos na categoria das FT’s pronominais, foram, na sua origem e durante muitos anos, FT’s nominais. Como explicar que tratamentos constituídos por nomes abstractos tenham perdido o valor semântico-pragmático de elevada cortesia que denotavam (pense-se no caso de Vossa Mercê / você, por exemplo) e, ao perderem-no, tenham mudado de categoria lexical, enquanto outros, embora tendo mudado de categoria (V. Ex.ª, por exemplo, seja considerado hoje um tratamento pronominal), mantenham ainda esse valor? Cremos que a explicação se poderá encontrar na abordagem histórica dessas e outras FT’s. Perante o quase total desaparecimento do tratamento voseado (utilização do pronome vós), dirigido a um só alocutário como a vários, é nossa opinião que o actual sistema de tratamentos em Português de Portugal se desenvolve dentro de dois grandes paradigmas, a saber, o das FT’s de tuteamento e o das FT’s de voceamento. À semelhança da proposta de Brown & Gilman,9 também representamos tais paradigmas, respectivamente, pelas iniciais T e V, mas cuja decodificação não é coincidente, tanto ao nível das formas que cada um pode representar, como ao nível dos valores de maior ou menor cortesia que cada um pode expressar. A nossa redução a estes dois paradigmas fica-se a dever ao facto dos portugueses europeus actuais se dirigirem uns aos outros empregando frequentemente FT’s de T ou FT’s de V, o que não quer dizer que utilizem, necessariamente, as formas pronominais tu e você, respectivamente. Poderão utilizá-las ou não, mas, mesmo não as utilizando, a coocorrência de outras FT’s (verbais e/ou nominais) no discurso em curso permite verificar facilmente em qual dos paradigmas se processam os tratamentos e as relações que os interlocutores mantêm ou estabelecem. Cabe aqui uma observação sobre a expressão tratamentos de cortesia. Em nosso entender, segundo a concepção ampla de cortesia linguística que temos vindo a defender, tratamentos corteses são todos aqueles que se inscrevem e contribuem para que os 9 Sobre a proposta T vs. V de Brown & Gilman, ver, supra, cap. V, 1.1., ou BROWN & GILMAN, 1960. 287 interlocutores estabeleçam e desenvolvam relações interpessoais de harmonia e equilíbrio, ao longo duma interacção verbal e na coconstrução dessa mesma interacção verbal. Relacionemas, por isso, lhe chamamos, proxémicos ou taxémicos, consoante regulem, respectivamente, as distâncias horizontais ou verticais. Neste sentido, FT’s de cortesia são tanto as formas e/ou fórmulas de V como de T, sendo certo, porém, que dentro de cada paradigma encontramos formas e/ou fórmulas que expressam diferentes níveis ou graus de cortesia. Daí que entendamos, por outro lado, que uma outra classificação dos tratamentos em Português (como noutras línguas) pode ser feita em FT’s corteses e FT’s descorteses (ou insultos),10 podendo as realizações destas últimas situar--se também no paradigma T ou V. Aliás, com excepção das ocorrências de ó tu e ó você (ainda que pouco frequentes), que se situam, respectivamente, apenas em T e V, todos as restantes FT´s Ins podem ocorrer tanto num como noutro paradigma. Contudo, os Ins precedidos de possessivo de 1.ª pessoa (v.g., meu besta) e de 3.ª pessoa (v.g., seu besta) tendem a ocorrer, respectivamente, em T e V. Acontece, por vezes, que quando a interacção verbal evolui ou se situa no âmbito declarado das ofensas verbais, a relação entre os interlocutores, se se situa em formas de T, passa a formas de V, e passa a formas de T, se situa em formas de V. Num caso como noutro, porém, a mudança de paradigma acentua o conflito, ao aumentar a distância entre os interlocutores que os Ins também já denotavam. Por exemplo, no fragmento da sequência dialogal seguinte, travado entre pai e filho desavindos, em Terras do Demo de Aquilino Ribeiro: «- Sabe que mais, meta a sanfona no saco dos seus sermões, bah...! – e o Luís traçava a mão espalmada pela boca, num arremedo de náusea. - Dizes bem, cão. Ao meu rico dinheirinho já nem Deus nem Santa Maria lhe vale. Tem-lo no papo, excomungado, mas ninguém o há-de dizer! - Ladre, enquanto ladra não morde! – tornou-lhe o filho, voltando face, pois já o Rola arrancava dum estaqueiro para o desancar. - Larápio! Safado! Casou-se com a fome! Vá, coma da bêbera da mulher. Saia às estradas! - Unhas de fome! Judeu duma fona! Monturo! – repontava o filho, andando seu caminho.»11 10 Cabe observar que uma FT pode ser descortês sem ser propriamente um insulto. Por exemplo, tratar alguém inadequadamente (usar o tuteio quando seria de esperar o voceio) não é propriamente um insulto, mas apenas descortesia. 11 RIBEIRO, 1983b: 67. Itálicos da nossa responsabilidade. 288 Destacámos, apenas os Ins vocativos (ou exortativos), deixando de parte outras ocorrências que, com idênticos valores semântico-pragmáticos, seja o emprego do verbo ladrar, como metáfora depreciativa do falar do pai, a qual pode ser interpretada como uma forma indirecta de lhe chamar cão, seja a metáfora depreciativa que o pai dirige, delocutivamente, à mulher do filho, referindo-a (tratando-a) por bêbera,12 entre outros processos de referência insultuosa. O que interessa destacar, de momento, é o emprego de FT’s Ins, dirigidas a alocutários a quem um dos locutores começa por dirigir formas de T, passando depois a formas de V. Repare-se, a propósito, na mudança do paradigma de T para V, operada pelo pai em relação ao filho, depois deste o ter tratado, indirectamente, por cão. Interpretamos estas mudanças de tratamento, corteses e descorteses, entre os mesmos interactantes, no decurso duma mesma interacção verbal, como processos retóricos e de polifonia enunciativa de práticas discursivo-textuais. Os valores pragmáticos das FT’s portuguesas, corteses e descorteses, e suas condições de uso dependem, fundamentalmente, além dos valores semântico-lexicais que cada uma denota, das propriedades reais ou presumidas (representações) dos interlocutores (considerados individualmente ou como auditório) – idade, sexo, cultura, estatuto socioprofissional, etc. – das suas relações de poder ou solidariedade, do quadro espáciotem-poral onde se encontram e onde se dá e desenvolve a interacção verbal, bem como do objectivo pretendido. Numa palavra, do co(n)texto. Na sequência de proposta de Parkinson, Kerbrat-Orecchioni reconhece também que as FT’s desempenham três funções pragmáticas essenciais em relação (i) ao acto de linguagem que acompanham (e, em certas situações, também realizam, a nosso ver, como se verá); (ii) à «mecânica da conversação»; (iii) ao nível das relações interpessoais.13 Quanto a (i), o tratamento é uma exigência dos actos de chamamento, sendo usual também nos actos de cumprimento e de agradecimento, e facultativo nos actos de 12 «bêbera – figo temporário da primeira novidade que dão as figueiras; cal. gorda, porca.» [ALMEIDA, 1988: 46] Evidentemente que o pai utiliza o termo com a definição de cal[únia]. 13 Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 24. A autora refere, a propósito, PARKINSON, D. B., 1985: Constructing the Social Context of Communication. Terms of Address in Egyptian Arabic. Berlin / New York / Amsterdam: Mouton de Gruyter. 289 pedido. O seu emprego serve, segundo os casos, tanto para atenuar um FTA, como para reforçar um FFA. Neste caso, trata-se, evidentemente, duma FT cortês, porque um Ins, além de ser, em si mesmo, um FTA, serve também para reforçar o FTA. A linguista francesa não considera que a realização duma FT possa ser também um acto de discurso. Em nosso entender, tal também se verifica, nomeadamente, em ocorrências de chamamento e/ou como vocativo, actos estes que incluímos no domínio dos directivos, uma vez que exigem do alocutário uma resposta, uma re-acção. Estabelecer contacto começa, geralmente, por se dirigir uma FT a alguém. Por exemplo: – (Ó) António! – Diz / Diga! – Pode(s) chegar aqui, por favor? É evidente que o sucesso do acto (directivo) de contacto depende muito, como veremos, da FT utilizada e do contexto (incluindo os aspectos prosódicos). O emprego duma determinada FT está dependente, por outro lado, do tipo de acto de linguagem que acompanha e do objectivo ilocutório pretendido. As FT’s desempenham papel importante, também ao nível de (ii), em particular no que toca à gestão dos turnos de fala, isto é, da sua distribuição, da tomada de palavra, das interrupções e intrusões. Por último, quanto a (iii), cada FT desempenha um papel importantíssimo ao nível da negociação das identidades e das relações que se têm ou se desejam estabelecer. Através da FT escolhida, pode-se mostrar deferência ou desprezo, distância ou intimidade, ternura ou agressividade, elogiar-se ou injuriar-se, ser-se sedutor ou impertinente, simpático ou antipático. E ser-se tudo isto (e até brincar), cortês ou descortesmente. De facto, as FT’s têm um papel vital, a todos os níveis da comunicação humana e nas suas diferentes práticas discursivo-textuais, em todas as sociedades mais ou menos organizadas, de que constituem um dos reflexos e marcas mais evidentes. Servem estas considerações gerais de introdução aos capítulos que constituem esta parte da dissertação, onde procuraremos desenvolvê-las e aprofundá-las. Depois duma apresentação crítica dos principais estudos realizados por autores nacionais e estrangeiros sobre o sistema, as formas e os valores sobretudo semântico-pragmáticos dos tratamentos portugueses, procederemos a uma abordagem da origem e evolução das principais e mais frequentes FT’s portuguesas actuais, segundo uma perspectiva diacró- 290 nica, tendo presente os seus aspectos de cortesia ou de descortesia. Geralmente pensados como servindo sobretudo para referir e situar o(s) interlocutor(es) – alocução - as FT’s servem também para o locutor se referir e situar a si próprio – elocução – e a terceiros, presentes ou ausentes – delocução - consoante o co(n)textos, que incluem os círculos de afectos favoráveis ou desfavoráveis, a que o locutor e/ou o(s) alocutário(s) pertençam, digam pertencer ou desejem pertencer. Capítulo X TRATAMENTOS EM PORTUGUÊS Principais estudos Os tratamentos em Português de Portugal são, dentro das formas de cortesia e de descortesia verbal, o tema mais abordado por estudiosos, nacionais e estrangeiros, segundo perspectivas ora morfossintácticas, ora semântico-pragmáticas, ora sociolinguísticas. Daremos conta, neste capítulo, dos principais estudos realizados sobre os tratamentos em Português. 1. L. F. Lindley Cintra: primeira abordagem de sistematização (diacrónica e sincrónica) Os trabalhos que este autor reúne, em 1972, no volume Sobre “Formas de Tratamento” na Língua Portuguesa,1 constituem, ainda hoje, uma referência obrigatória nos estudos dos tratamentos em Português europeu. Trata-se dum conjunto de três ensaios: «Origens do sistema de formas de tratamento do português actual»2, «Tratamento de intimidade e tratamento de cortesia nas obras de Gil Vicente»3 (escritos em 1965) e «“Tu” e “Vós” como formas de tratamento de Deus em orações e na poesia em língua portuguesa»4 (escrito em 1971). O livro contém, ainda, como apêndices, uma apresentação esquemática das formas-sujeito de tratamento no português padrão contemporâneo,5 um esquema da evolução do sistema das formas de tratamento na língua portuguesa6 e dois documentos régios, conhecidos por leis das cortesias (um de 1597, de D. Filipe II,7 e outro de 1739, de D. João V8). Com estas leis, os monarcas procura- 1 Cf. CINTRA, 19862. Id.: 9-37. 3 Id.: 38-62. 4 Id.: 63-102. 5 Id.: 103-105. 6 Id.: 106-108. 7 Id.: 109-111. 8 Id.: 112-115. 2 292 vam regulamentar os tratamentos devidos àqueles que ocupavam os lugares mais altos na pirâmide da hierarquia social, nessas épocas. Dos ensaios referidos interessa-nos sobretudo o primeiro - «Origens do sistema de formas de tratamento do português actual». Nele, o linguista descreve o sistema de formas-sujeito utilizadas no Português de Portugal9 e apresenta, segundo uma perspectiva diacrónica, a evolução dos tratamentos que conduziu ao aparecimento da «complicada estrutura»10 que actualmente o caracteriza. Conclui o ensaio enumerando as «tendências» na evolução dos tratamentos portugueses.11 Ao analisar as origens, evolução e complexidade das FT’s portuguesas, o autor tem sempre em consideração factores de natureza sociocultural, os quais, como afirma, contribuem ora para a relativa estabilidade do sistema, ora para a sua inevitável transformação, dentro da dialéctica interrelação língua - sociedade ou sociedade - língua. Observa, com efeito, que: «não são só os indivíduos e a sociedade em que se organizam que agem sobre a língua que falam, e que por isso mesmo os reflecte em algumas das suas características, mas que a própria estrutura da língua herdada ou aprendida pode moldar, e molda muitas vezes, a maneira de ver o mundo dos indivíduos que a empregam».12 É de opinião, por isso, que o sistema português, em particular «a escala riquíssima» dos tratamentos de cortesia, está ligado intimamente, por um lado, a «uma sociedade fortemente hierarquizada» e, por outro, «a um certo comprazimento, a um certo gosto na própria hierarquização e na matização estilística», ou, ainda, «a uma dificuldade inconsciente ou subconsciente em aceitar uma nivelação maior».13 9 Cintra não analisa, «a não ser como termo de comparação ocasionalmente aludido», as FT’s utilizadas no Português do Brasil. [Cf. id.: 11] 10 Id.: 16. Cintra confessa, na introdução à 2.ª edição, que ambicionava escrever uma História das formas de tratamento em Português, de que estes ensaios eram o «ponto de partida» [Id.: 7-8]. 11 Cf. id.: 34-35. 12 Id.: 35. 13 Id.: 15-16. O comprazimento dos portugueses por uma sociedade fortemente hierarquizada, através dos tratamentos, parece continuar. Dois exemplos. Miguel Esteves Cardoso, em crónica publicada no jornal Expresso, em meados da década de oitenta, insurge-se contra o facto de, «aspecto da maior importância», os partidos políticos serem «desrespeitosos e malcriados», por «nos cartazes tutearem-nos todos até à medula», «com uma familiaridade angustiante e ordinária», enquanto «nos debates os dirigentes partidários, apesar de se conhecerem, tratarem-se com o maior respeito – “senhor doutor” para aqui, “senhor professor” para lá». O cronista considera, por outro lado, que «este abuso de confiança», o tutear, é «um novo fenómeno mil vezes mais perigoso e contagiante que a S.I.D.A.», «uma infecção vulgar que afecta aquelas partes do cérebro normalmente destinadas a desempenhar as funções da boa educação, da cortesia e do respeito», que «provoca anomalias galopantes nas diversas formas de tratamento que a língua e a 293 No inventário e descrição dos tipos fundamentais de tratamentos em uso,14 Cintra limita o seu campo de observação, por um lado, ao «conjunto das formas que se usam actualmente na alocução ou tratamento directo – isto é, no diálogo entre dois interlocutores – não como simples vocativos intercalados na frase [...], mas sim como sujeitos do próprio enunciado» e, por outro, «à linguagem das camadas cultas (ou semicultas) das grandes cidades de Portugal». Não considera, portanto, «as formas que hoje se empregam exclusivamente na linguagem popular, quer das cidades, quer dos campos, apesar do interesse que algumas dessas formas apresentam».15 Para o inventário e descrição histórica das FT’s, cujo objectivo principal é apresentar «todas as grandes transformações que estão na base da fixação da estrutura actual»,16 o autor serve-se apenas de documentos escritos (históricos e literários).17 Cintra classifica, segundo uma perspectiva morfossintáctica, as formas com função de sujeito, em cultura portuguesa há muitos séculos consagraram.» E observa mais à frente: «A praga da CÚNFIA [sigla do «vírus» Condescendência Untuosamente Néscia Fomentando Informalidades Aberrantes] alastra-se insidiosamente [...]. As formas de tratamento que permite a nossa língua são de uma complexidade e variedade maravilhosas e constituem uma parte do património pelo menos tão importante como os pedregulhos romanos e os javalis selvagens. Todas estas subtilezas tendem hoje a perder-se, através da CÚNFIA, numa redução preocupantemente parola ao “Tu” e ao “Você”». E conclui: «Urge des-CUNFIAR a sociedade portuguesa. [...] Hoje em dia já quase que não se pode “dar” confiança, porque a confiança já foi de antemão, e colectivamente, tomada. Tratar alguém por “tu” é cada vez menos um sinal de intimidade mutuamente desejada, e cada vez mais um automatismo desprivilegiado e banal. Perde-se, com o respeito, outras qualidades, como todos os matizes subtis de erotismo, de ironia e de cumplicidade que permite a manipulação perita e deliciosa das formas de tratamento. [...] Nós, os portugueses, somos um povo respeitoso, polido e formal – mesmo quando desejamos ofender alguém. Ou não tem mais graça dizer “V. Ex.ª não me levará a mal se eu o mandar respeitosamente à merda” do que simplesmente “vai à merda”?» [CARDOSO, 1986: 65-67, reproduzido em MARQUES, 1995: 173-175.] Agora este excerto de acontecimento vivido pelo colaborador desportivo do Jornal de Notícias, Vaz Mendes: «Fernando Santos [treinador do Futebol Clube do Porto] intimidou este jornalista, perante a estupefacção dos outros meus colegas: “Tu (mas que confiança é essa senhor engenheiro...) não falas alto para mim, tu não tens esse direito!”, tu isto, tu mais aquilo. Só visto. [...]. Com muita pena minha, ontem, pela primeira vez, um treinador de futebol dirigiu-se-me em tons agressivos e indelicados, sem que nada o justificasse.» [Jornal de Notícias, 14 de Setembro de 1999] 14 Outras sínteses em CARREIRA & BOUDOY, 1993: 295-298; CUESTA & LUZ, 1971: 482-490; CUNHA & CINTRA, 1984: 292-298; LAPA, 19758: 151-155. 15 CINTRA, 19862: 11. 16 Id.: 32. 17 Além das leis acima referidas (também chamadas pragmáticas), o linguista refere, expressamente, as novelas de cavalaria, as crónicas de Fernão Lopes e Gomes Eanes de Zurara, autos de Gil Vicente e Francisco Manuel de Melo, peças de teatro de Correia Garção, António José da Silva, Manuel de Figueiredo e Almeida Garrett, bem como a Corte na Aldeia de Rodrigues Lobo. A propósito das peças dramáticas, considera as comédias e as farsas de cada época como os textos mais informativos sobre os tratamentos, uma vez que elas «mais claramente do que qualquer outra fonte, nos provam como a preocupação com a forma de tratamento adequada não era exclusiva de Filipe II ou de D. João V e das suas cortes, mas constitui, durante séculos, uma espécie de “preocupação nacional” – ou, melhor: uma preocupação de toda aquela pequena parte da população que vive nas cidades e que costuma tradicionalmente considerar-se a si própria como “a nação”.». [CINTRA, 19862: 26-27] Recorde-se que, nos outros dois ensaios, o autor analisa os tratamentos de intimidade e de cortesia nas obras de Gil Vicente, e nas orações e na poesia portuguesa. 294 a) pronominais (v.g., «tu, você, vocês, V. Ex.ª, VV. Ex.as»); b) nominais (v.g., «o senhor, a senhora, os senhores, as senhoras»; «o senhor Doutor, o senhor Ministro»; «o pai, a mãe, o avô»; «o António, a Maria»; «o meu amigo, o patrão, etc»); c) verbais ou seja, «a simples utilização da desinência do verbo como referência ao interlocutor-sujeito» (v.g., «Queres?, Quer?, Querem?»)18 Há, todavia, diferenças de valor fundamentais entre estes três tipos. Enquanto as FT’s pronominais e verbais, segundo refere o autor, nada evocam do que caracteriza o interlocutor, limitando-se a chamar a sua atenção para o enunciado que lhe diz respeito, o tratamento nominal, pelo contrário, distingue-se por ser, «em certa medida, caracterizador e por se opor, com as suas referências a traços concretos e individualizadores, à tendência para a abstracção própria das partículas de relacionação, das unidades puramente gramaticais como os pronomes ou as desinências.»19 O tratamento nominal lembra sempre, por isso, alguma coisa própria do alocutário, a saber: a) o sexo, «unicamente», em o senhor, a senhora; b) a categoria social ou a profissão, em o senhor Doutor, o senhor Ministro; c) o parentesco, em o pai, a mãe; d) alguma coisa de «intimamente ligado à personalidade de cada um» - o nome próprio, o nome de baptismo, como em o António, a Manuela.20 Além desta classificação (morfossintáctica), o autor distingue ainda duas características principais: uma diz respeito à «extraordinária variedade e frequência de emprego dos tratamentos de tipo nominal», alguns dos quais com «muitas variantes»21; outra à «estruturação» dos tipos fundamentais em três planos: «a) Formas próprias da intimidade [tu]; b) Formas usadas no tratamento de igual para igual (ou de superior para inferior) e que não implicam intimidade [você]; 18 Id.: 12-13. Para um inventário mais completo, Cf. «Apêndice 1», em id.: 103-105. Id.: 13-14. 20 Id.: 13. Alineação da nossa responsabilidade. 21 Id.: 14. 19 295 c) Formas chamadas “de reverência” - “de cortesia” -, por sua vez repartidas por uma série muito variada de níveis, correspondentes a distâncias diversas entre os interlocutores. [V. Ex.ª, o senhor, o senhor Dr., o António, a Maria, o Sr. António, a Sr.ª 22 Maria, a D. Maria, etc.] » Estes planos correspondem a uma classificação semântico-pragmática dos tratamentos. As FT’s são agrupadas segundo níveis psicossociais de intimidade, de igualdade e de distância, onde um tuteamento íntimo se opõe a um voceamento igualitário23 e cada um destes, por seu turno, ao conjunto dos tratamentos ditos de cortesia. A parte mais desenvolvida do ensaio trata da evolução das FT’s que estão na base do actual sistema português. Cintra inventaria e descreve, tendo sempre presente factores socioculturais, as FT’s em uso desde o Português antigo (finais do século XIII), ao Português contemporâneo (primeira metade do século XX).24 Ao fazermos a «história» de cada uma das principais FT’s usadas no Português europeu, ainda hoje em uso, retomaremos observações que, a propósito, o autor tece sobre esta questão. Cintra termina este seu estudo enumerando as quatro tendências mais vivas de evolução que, em seu entender, iriam verificar-se no sistema das FT’s portuguesas, a partir dos anos sessenta do século XX. Consistiam tais tendências: 1.º Progressiva eliminação do tratamento por V. Ex.ª, mantendo-se, todavia, «profundamente enraizado na língua escrita», enquanto, na língua falada, se usaria apenas em certos ambientes (academias, tribunais, diplomacia, etc.) e certas profissões (empregados do comércio, telefonistas, etc.). 2.º Progressivo alargamento do emprego de tu e da 2.ª pessoa do singular dos verbos, sobretudo entre os jovens, mas também entre pessoas de diversas idades; o tuteamento perderia o carácter de intimidade, mas não eliminaria a distância associada ao emprego dos tratamentos na 3.ª pessoa. 22 Id.: 15. Os exemplos, apresentados entre [ ] são os fornecidos pelo autor, mas aí colocados por nós. Tuteamento e voceamento são da nossa responsabilidade. O autor nunca usa estes termos, como não utiliza os termos tutear e vocear. 24 Cf. também «Evolução do sistema das formas de tratamento na Língua Portuguesa (Esquema)», «Apêndice 2», em id.: 106-108. Em LUZ, 1956, 1957 e 1958-59, encontra-se um desenvolvido levantamento das FT’s no Português arcaico. 23 296 3.º Progressiva ampliação do emprego de você; o matiz despectivo que o caracterizava tenderá a desaparecer; o emprego de tu expande-se e você ganha terreno no tratamento afectuoso. 4.º Manutenção de tratamentos nominais variados, continuando uma das riquezas e principais dificuldades do Português; lenta mas progressiva eliminação de tratamentos assentes na diferenciação social.25 Um dos aspectos mais importantes a relevar neste ensaio diz respeito à distinção que o autor faz entre formas próprias da intimidade, da igualdade, de superior para inferior e de reverência ou cortesia. Tal distinção destaca, desde logo, os valores que, a nível semântico-pragmático, as FT’s expressam, bem como as relações interpessoais de simetria e assimetria, proximidade e distanciamento, que elas também estabelecem. O linguista, todavia, não explicita tais relações, em virtude, certamente, das restrições que impôs ao estudo, ao situar a sua análise apenas no âmbito da alocução, deixando de parte a elocução e a delocução. Cabe observar, por outro lado, que é discutível a colocação, sem mais, dos tratamentos V. Ex.ª e VV. Ex.as a par das formas pronominais tu e você(s). Além disso, os tratamentos o senhor e a senhora começam por ser colocados entre as formas nominais, para de seguida serem considerados os mais pronominalizados de todos.26 Por último, devemos observar que, em nosso entender, há uma distinção entre tratamentos de cortesia e tratamentos de reverência e/ou deferência. Estes constituem apenas uma subclasse dentro da classe daqueles. Tratamentos corteses são, para nós, todos aqueles que, consoante os factores sociais existentes e reconhecidos entre os interactantes, se adequam aos co(n)textos de ocorrência, tendo em vista o estabelecimento, a manutenção e/ou a recuperação dum estado de equilíbrio favorável ao desenvolvimento das interacções verbais, a nível linguístico e interpessoal. A nossa noção de FT’s corteses é, por isso, mais abrangente do que a pressuposta por Cintra, nela cabendo tanto as formas de tuteamento (T) como de voceamento (V). Uma última observação para a ausência de referência aos tratamentos descorteses. 25 26 Id.: 34-35. Cf. id.: 12 e 13. 297 2. Sandi Michel de Oliveira: estudo sociolinguístico - entre a variação e a (re)negociação Um dos estudos mais desenvolvidos sobre as FT’s em Português europeu contemporâneo encontra-se em A Model of Address Form Negotiation: a Sociolinguistic Study of Continental Portuguese, dissertação de doutoramento que Oliveira (Medeiros)27 apresentou à Universidade do Texas (EUA), em 1985.28 Esta investigadora norteamericana29 estuda os tratamentos portugueses, analisando as formas usadas sobretudo por informantes residentes em Évora, com breves referências a outras zonas de Portugal.30 Oliveira (Medeiros) elabora as suas conclusões baseando-se na análise da riqueza, variedade e complexidade do sistema português, na interpretação dos valores semânticos das suas formas e no uso individual destas, considerando também um número significativo de factores sociais e individuais, com destaque para a importância da imagem pública positiva e de autoconceito. Conclusões que, no tocante sobretudo ao uso interpessoal das FT’s, resume assim: «The results indicate that address form relationships are negotiated by speakers; in such relationships, conventionalized considerations by markedness and appropriateness are superseded by the negotiation process. The manipulability of address form system makes negotiation possible. Negotiation, in turn, leads to variation in the semantic interpretation and use of the forms.»31 A autora considera, além disso, que tais conclusões, embora resultado de estudo levado a cabo essencialmente numa comunidade linguística particular (Évora), são também verificáveis e aplicáveis a todo Portugal e a outras comunidades linguísticas. 27 A autora assina os seus trabalhos mais recentes usando apenas o apelido Oliveira. [Cf. OLIVEIRA, 1995 e 1997] 28 Cf. MEDEIROS, 1985. 29 A autora é natural dos EUA, apesar do(s) apelido(s), e declara, não só, falar fluentemente o Português, como também conhecer intimamente a cultura portuguesa. [Cf. id.: 4] 30 Para uma descrição física e sobretudo social de Évora, cidade onde a investigadora residiu e trabalhou, entre Setembro de 1982 e Agosto de 1983, bem como das condições em que realizou a recolha de dados e a metodologia respectiva adoptada, cf. id.: caps. II e V. 31 Id.: vi-vii. Cf. também id.: 247-252. 298 Oliveira (Medeiros) procedeu à recolha dos dados em convívio diário com a comunidade eborense,32 recorrendo para o efeito a «participant and non-participant observation, semi-structured interviews, spontaneous conversations on directed topics, personal narratives and questionnaires involving both discrete-item and open-ended questions».33 Precisando a opção pela nossa língua, refere que as FT’s em Português europeu não constituem um «sistema binário», ao contrário do que acontece com outras línguas europeias (Castelhano, Alemão, Francês), cujos sistemas são baseados, fundamentalmente, nas formas pronominais tu e vos, como propõem Brown & Gilman e seus seguidores. É que, segundo refere, além destas formas, «a large number of nouns and noun phrases are used as pronouns in direct address».34 E acrescenta, explicando e concluindo: «The variety in forms means that some aspects of the address form phenomenon which have escaped description in other languages are more overt in Portuguese, making Portuguese a good starting point for a study of nuances in address. In fact, Portuguese nearly demands a comprehensive approach because so many choices exist. To limit one’s discussion of Portuguese address forms to tu and você would be inaccurate, misleading, and totally inadequate to describe the variety of communicative patterns.»35 A sociolinguista critica a classificação proposta por Cintra, porque «does not capture the essence of the inter-relationship of the pronominals and nominals».36 Propõe, por isso, uma nova classificação das FT’s portuguesas, baseada mais em distinções comunicativas que gramaticais.37 Substitui, assim, a designação morfossintáctica do linguista português em tratamentos pronominais, nominais e verbais, por, respectivamente, «”pure” pronouns, “pro-pronouns”, and Zero Form».38 Na categoria dos primeiros, refere tu, você e vossemecê (e plurais); na segunda, nomes e sintagmas nominais usados, à semelhança do Inglês, como pronomes; na terceira, as formas dos verbos, das segunda e terceira pessoas, sem sujeito expresso. Estabelece, ainda, uma distinção entre 32 A investigadora conseguiu uma «social network» de cerca de centena e meia de pessoas, 85 do sexo masculino e 71 do sexo feminino, que agrupa, por um lado, segundo as idades (0-34 anos e mais de 34 anos) e, por outro, segundo a estratificação social (classe alta, média e baixa). [Cf. id.: 108-110] 33 Id.: vi, 1 e 96. Em anexo, são apresentados questionários e entrevistas realizados. [Cf. id.: 260-302] 34 Id.: 3 e 4. 35 Id.: 4. 36 Id.: 41. 37 Cf. id.: 40. 38 Id.: 41. 299 a forma zero [você] (graficamente representada entre parênteses rectos) e o pronome “puro” você (representado sem parênteses rectos), porque, explica: «Você refers to the actual spoken form, while [você] is used to represent those instances when the verb form (third-person singular) is used without the “pure” pronoun (você or vossemecê) or a form originating from a noun phrase, such as senhor.»39 A justificação para a designação de pro-pronomes, é a seguinte: «Portuguese is distinct from other Romance languages because of its capacity to use nouns and noun phrases as pronouns in direct address. I have labelled them “pro-pronouns” because they substitute the “pure” pronoun you both in the grammatical structure of the sentence and in their semantic indication of direct address.»40 Outra distinção diz respeito aos «Integrative and Vocative Pronouns». Os primeiros «are an integral part of the sentence (i.e., the Integrative pronoun is the subject of the sentence)», enquanto os segundos «can be used to attract the attention of the hearer at a distance, initiate a conversation, or close the conversation.»41 Tendo em consideração estas classificações e baseada na recolha feita, elabora um quadro das FT’s em Português europeu, que distribui por catorze categorias: «“Pure” pronouns»; «Zero Form»; «First or Last Name»; «Kinship»; «Potentially Status--Free Forms»; «[Senhor(a) +] Educational Title [+ Name]»; «[Senhor(a) +] Profession»; «Senhor(a) + Profession»; «Profession»; «Senhor(a) + Professional Title»; «Senhor/Mestre [+ Trade or FN]»; «Senhor/Mestre + Profession/Trade + Rank (humorous)»; «Social Class»; «Protocol/Ceremonial»; «Solidarity»; «Terms of Affection».42 Nestas categorias, que antes definiu e descreveu, a investigadora encontra as principais possibilidades do sistema de tratamento português, segundo «[the] norm, or unmarked, usage»,43 limitando-se às formas alocutivas ou de referência alocutiva. 39 Id.: 40. Id.: 41. Partindo de frases portuguesas como “O senhor / A mãe / O senhor engenheiro / O colega tem tempo agora para falar comigo?”, observa a autora: «All of those questions are correctly translated as “Do you have time now to talk with me?”», onde os sintagmas nominais sublinhados são traduzidos para Inglês pelo pronome you. 41 Id.: 41 e 42. A autora retoma e descreve a importância dos vocativos no fenómeno dos tratamentos, em id.: 203-207. 42 Id.: 56. Os termos entre [ ] podem coocorrer ou não. 43 Id.: 59. 40 300 Construindo um hipotético destinatário do sexo feminino (a quem chama Maria), oriundo duma família abastada e com formação académica superior, a investigadora exemplifica a variação das diferentes FT’s, conforme as diferentes «identidades» desse destinatário e reconhecidas na comunidade, e as relações existentes com o locutor. Resumimos o exemplo no quadro seguinte (FIG. 1): DESCRIÇÃO DO LOCUTOR FT’s Amigos e familiares tu Amigo ou familiar, irritado ou zangado você Rural, como sinal de respeito vossemecê Amigo, familiar ou colega com semelhante posição social, sem intimidade, ou superior no local de trabalho Conhece desde a infância, mas sem intimidade menina [Maria] Estranho que lhe desconhece o estatuto minha senhora Vizinhos urbanos oriundos de meios rurais Maria vizinha Subordinados e desconhecidos com quem não têm relações título profissional Colegas de posição inferior, ou igual, sem intimidade, que sabem o seu grau académico Jovens ou conhecidos que, exteriores ao trabalho, não têm intimidade para a tratar por tu ou por Maria simplesmente Situação de protocolo44 doutora [Maria] [senhora] dona Maria Vossa Excelência FIG. 1 – Variação das FT’s segundo as «identidades» dum mesmo destinatário, baseado em MEDEIROS, 1985: 58-59. A sociolinguista defende que, além do uso segundo a norma ou não-marcado, os tratamentos portugueses constituem «a complex system based on the semantic variability of the forms and the conscious and subconscious manipulability the system itself.» 45 E é porque podem ser manipuladas que as FT’s podem ser negociadas e, consequen- temente, sofrer variação semântica (semântico-pragmática, diríamos nós), segundo um processo que representa assim: «Manipulability 44 Negotiation Semantic Variability»46 Traduzimos «protocol» por protocolo, que Oliveira (Medeiros) traduz por «cerimónia». [Cf. id.: 281] Id.: 168. 46 Id.: 222. Apesar de distinguir a «variabilidade semântica» da «manipulação» são, todavia, duas das «three broad areas of variability in the address form system» que a autora considera no seu estudo. (A terceira grande área é constituída pelas «individual attitudes toward the role of address in society and the 45 301 O processo47 da variabilidade semântica situa-se ao nível da interpretação que o locutor faz de cada FT, resultando daí que «the gloss of each address forms is a set of semantic features»48 e que, por isso, «there is no one-to-one correspondence between form and meaning.»49 Para provar esta conclusão, apresenta, como exemplo, a seguinte FT que, consoante o conhecimento que se tem do alocutário e o tipo de relação existente, num dado contexto de comunicação, apresentará valores semânticos diferentes. Um indivíduo, habitualmente tratado por outros por senhor+título, pode ser tratado apenas por senhor. Neste caso, o tratamento inclui os valores semânticos de [+Confiança], [+Intimidade], [−Respeito], [−Protocolo] e [−Afastamento]. Mas um indivíduo que não possua qualquer título, poderá ser tratado também por senhor. Neste caso, é caracterizado pelos valores [−Confiança], [+Protocolo] e [+Afastamento]. Por último, alguém que seja tratado por outros por menino, pelo nome próprio ou pelo apelido, pode ser tratado também apenas por senhor. Neste caso, o tratamento denota valores de [+Irritação], [+Ironia] e [+Afastamento].50 A FT senhor ilustra claramente a ausência de total correspondência entre forma e sentido dum tratamento, segundo a autora. A variabilidade semântica das FT’s, tanto ao nível da percepção e interpretação que delas têm e fazem os informantes, como ao nível do uso, é que permite a sua manipulação e (re)negociação. Aliás, «without manipulability, negotiation is impossible.» 51 A manipulação do sistema das FT’s encontra-se logo ao nível da variabilidade semântica, se bem que de forma «inconsciente». Mas é sobretudo52 ao nível das mudanças «in mood (humor, anger, and irony), behavior modification, and various uses of vocatives»53 que a manipulação consciente se realiza.54 Por outro lado, a manipulação number of address forms available to the Portuguese speaker.») [Id.: 170] A sociolinguista considera, por isso, que a variabilidade semântica é também um processo de manipulação do sistema das FT’s por cada um dos locutores, consoante as situações e os respectivos repertórios de formas disponíveis. [Cf. id.: 173] 47 Oliveira (Medeiros) distingue «variation» de «variability», definindo a primeira como «resultado» e a segunda como «processo». É sobretudo neste sentido que analisa os sistema das FT’s. [Cf. id.: 173] 48 Id.: 174 49 Id.: 175. 50 Cf. id.: 174-175. A autora, por um lado, não traduz para Português «Respect», «Protocol», «Anger» e «Irony», e, por outro, os valores semânticos que apresenta em Português estão sublinhados. A propósito de «[−Respect]», no caso dum alocutário com título ser tratado apenas por senhor, a sociolinguista observa que «Lack of respect may be shown via use of senhor, but use of senhor does not automatically impply a lack of respect.» [Id.: 175] 51 Cf. id.: 189. 52 «Manipulation can take many forms». [Id.: 189] 53 Id.: 189. 54 «The section on variability in semantic interpretation illustrates manipulation of the system which may be subconscious by the speaker, while the section entitled “Manipulability of the Address Form System” describes overt [or “conscious”] manipulation of the address form system.» [Id.: 173] 302 mostra que a escolha duma forma «can alter participants’ perception of the situation.»55 A manipulação do sistema das FT’s, segundo diferentes objectivos, «is an important aspect of individual variation», pois indica: «a) that address forms do more than merely reflect the social status of the speaker and hearer; b) that the system is flexible rather than monolithic or stagnant; and c) that there is not a one-to-one correspondence between the form and its semantic interpretation.»56 Quanto à manipulação, consequência também da variabilidade semântica, são os locutores que, individualmente, negoceiam e renegoceiam as FT’s que utilizam. Várias situações, relatadas ou directamente observadas, revelam a utilização de «estratégias» (que correspondem, por sua vez, a «um grupo de processos cognitivos»57) pelos locutores, consciente ou inconscientemente,58 para negociar ou renegociar, explícita ou implicitamente, o tratamento mais adequado ao tipo de relação social desejada.59 Nesta ordem de ideias, a autora retoma e segue a noção de estratégia proposta por Brown & Levinson,60 para considerar que a escolha duma FT é automática, («involving no conscious thought»), semi-automática («normally involving no thought, until a situation arises in which the speaker has no ready response»), ou não-automática («involving constant thought»).61 É apresentado um conjunto de nove «estratégias» para o processo de renegociação das FT’s, cujos exemplos resultam duma interpretação dos dados recolhidos junto de eborenses.62 Nem todas elas, porém, se situam, por um lado, ao mesmo nível de consciência dos interlocutores, nem, por outro, incluem negociação explícita da mudança. As estratégias de renegociação consciente, directa e explícita,63 55 Id.: 189. Id.: 207. 57 Id.: 128. Os «processos cognitivos» serão descritos aqui, a seguir, ao apresentar-se o modelo de análise das FT’s, baseado na «negociação individual», proposto por Oliveira (Medeiros). 58 «The concept of “negotiation” implies some level of consciousness, although some of the strategies may be applied without conscious forethought.» [Id.: 129] 59 Cf. id.: 221-222. 60 Cf. id.: 129, ou BROWN & LEVINSON, 19966: 85. 61 MEDEIROS, 1985: 131. 62 Cf. Id.: 163. 63 Oliveira (Medeiros) não vai tão longe, quanto nós, nas suas distinções, uma vez que se situa apenas ao nível da consciência e da espontaneidade. [Cf. id.: 165]. Julgamos, porém, que é possível e legítimo fazer as distinções que fazemos, uma vez que elas se encontram também na formulação que a investigadora dá de cada uma das estratégias, se bem que não explicitamente. 56 303 são, conforme enumera: n.º 1 − «Suggest use of the new form»;64 n.º 2 − «Ask to use the new form»;65 n.º 3 − «Ask how the other likes (or prefers) to be addressed»;66 n.º 4 − «Invite the other to use a new form»;67 n.º 5 − «Clue verbally the change to a new form»;68 e n.º 8 − «Take a humorous approach in trying to “force” use of tu or some other form signally greater intimacy».69 Estas estratégias de (re)negociação são introduzidas, como se vê, através de uma proposta de mudança de FT, a qual é, assim, constituída tema (tópico ou assunto) duma troca verbal de natureza fática.70 Como processos de ®enegociação consciente, directa, mas implícita (i. e., não antecedida de indicação explícita de mudança de tratamento ou de troca verbal, cujo tema foi, precisamente, essa mudança), temos as estratégias n.º 6 − «Initiate use of the new form without prior cluing»71 − e a n.º 7 − «Use discourse markers which are either morphologically marked as tu-forms or are generally used in tu-relationships».72 A estratégia n.º 9 − «Spontaneous and subconscious use of the new form» − é, por último, directa, mas inconsciente e implícita. A propósito, a investigadora comenta que estes casos «are probably based on a subconscious feeling of rapport.»73 As estratégias de renegociação de tratamento visam estabelecer entre os interactantes uma relação sobretudo de tuteamento, mas serve igualmente «for renegotiating to 64 A sociolinguista considera que esta estratégia pode ser realizada por uma das perguntas seguintes: «Shall we stop this “você” bit? / Wouldn’t it be easier if we address each other by tu? / I think we could address each other by tu, don’t you?» [Id.: 164. Cf. também 1993: 333] 65 A sociolinguista apresenta o seguinte exemplo, para a realização desta estratégia: «“Do you mind if I address you by tu?» [MEDEIROS, 1985: 164] 66 A sociolinguista comenta que esta é uma estratégia de renegociação «when the speaker is hoping that the hearer will respond by saying that a form signifying greater intimacy be used.» [Id.: 164] 67 Exemplo: «“(If you like,) [Y]ou may address me by tu.”» [Id.: 164] 68 Como exemplo que, segundo comenta a autora, «dá ao alocutário uma possibilidade de objectar», é indicada a frase: «“I’m going to begin addressing you by tu.”» [Id.: 164] 69 Exemplo, fornecido à investigadora por uma informante do sexo feminino: «“If you don’t address me by tu, I’ll never speak to you again!”» [Id.: 164-165] 70 Sobre as trocas verbais fáticas e transaccionais, Cf. RODRIGUES, 1994: 125 e, supra, cap. I, 1.2. 71 Segundo descreve a investigadora, alguns informantes disseram que «after initiating the new form they listen carefully for clues as to how the other speaker views this new usage and how he/she reacts». Outros, por sua vez, dizem que usam a nova forma «without checking for a reaction», enquanto que alguns jovens informantes «(teenagers)» disseram que «they automatically address people of the same age by tu.» [MEDEIROS, 1985: 164] Assim sendo, este procedimento dos jovens deveria ser referido, como se verá a seguir, no conjunto das estratégias de negociação. 72 Oliveira (Medeiros) indica, como exemplos de tais marcadores discursivos, formas imperativas como ««Olha» e «Sabes». A investigadora considera, por outro lado, que esta estratégia é «really an “exploratory choice”, as these forms are used as discourse markers and not address forms.» [Id.: 164]. A escolha exploratória tem a ver com a «máxima exploratória», proposta por Scotton. Conforme cita Oliveira (Medeiros), a máxima de escolha exploratória «urges the speaker to “make an exploratory choice as a candidate for an unmarked choice in a nonconventionalized exchange” (1983: 125).» [Id.: 71] 73 Id.: 165. 304 any form reflecting greater Intimidade or Confiança than the form previously negotiated.» 74 Nem sempre resultam, porém, as propostas e as tentativas de renegociação. A autora diz que a falha se fica a dever, principalmente, a uma de duas razões: «a) the desire of the other speaker to maintain the affective distance (Afastamento); or b) timidity on the part the speaker.»75 No primeiro caso, observa, baseada nos dados, que o alocutário, querendo manter-se distante do locutor, recusará o tuteamento, respondendo com «[você], você, senhor, TITLE, or senhor + TITLE; avoid the other person; or give a direct reprimand to the other, requesting a discontinuance of use tu (or some other offending form).» No segundo caso, a timidez é um importante obstáculo à realização da renegociação do tratamento. «The person who feels inferior may be too timid to accept the other’s suggestion for reciprocal tu», em virtude das grandes diferenças que existam entre ela e o interlocutor, «in terms of education, rank, age, [and] social class».76 O uso individual que cada locutor faz do sistema de tratamento, tanto em relação a estranhos, como entre conhecidos e amigos, está sempre dependente, por isso, de vários factores, cuja relativa importância afecta a escolha. Factores que são tidos, ou em menor ou maior consideração, consoante, respectivamente, a rotina ou o hábito predominem, ou quando o locutor tem necessidade de (re)avaliar a importância desses factores.77 Os factores dizem respeito não só «to considerations of respect, intimacy, solidarity and relative age and/or status (educational, professional or social)», mas também a «the protocol of the situation, the way the hearer wishes to be addressed, the way the hearer is known, a change in mood or environment, the presence of certain other people, a desire to modify the behavior of the hearer or to renegotiate the address form relationship, current fads, a desire for reciprocity and a speaker’s reaction to the hearer’s efforts to renegotiate the relationship.»78 Ao nível dos factores que determinam a escolha da FT, a sociolinguista presta especial atenção, por um lado, à importância que os interlocutores dão à preservação da sua «imagem pública positiva» («positive public image») e ao seu «autoconceito» 74 Id.: 163. Id.: 165-166. 76 Id.: 166. 77 Cf. id.: 248. 78 Id.: vii. 75 305 («self-concept»). Por outro lado, analisa – a fim de mostrar a sua inadequação e insuficiência explicativa – a importância tradicionalmente atribuída aos factores «poder» e «solidariedade» (propostos no modelo de Brown & Gilman), face à importância que outros factores têm, efectivamente, na complexidade dos processos convencionais (ou não negociados) e (re)negociados das FT’s, usadas pelos eborenses, em particular, e pelos portugueses, em geral. Mais que a própria FT usada, é a personalidade de cada uma das pessoas envolvidas que constitui o factor mais importante na sua escolha. Muitos informantes referiram a necessidade de pensar no tratamento a utilizar, antes de se dirigirem a alguém, sobretudo com quem não têm muita confiança. E as razões são: a) porque não sabem quem é o alocutário, nem como ele quer ou gosta de ser tratado; b) porque têm opiniões e atitudes diferentes em relação ao uso e valores dos tratamentos tradicionais; c) porque receiam ofender o alocutário; d) porque se encontram em contexto de comunicação não habitual (formal); e) porque se encontram perante alguém que tem múltiplas identidades; f) porque, entretanto, o destinatário mudou de estatuto ou posição social; g) porque aguardam ser primeiro tratados pelo outro, para só depois lhe corresponderem com uma forma explícita, que pode ser de aceitação ou de recusa da relação pretendida pelo outro.79 Em consequência dos estudos realizados, os factores de «poder» e de «solidariedade», propostos no modelo de Brown & Gilman, são para a autora, apesar da sua comodidade e popularidade, «insufficient to account for all address form choices».80 A investigadora sujeitou, para o efeito, à apreciação de informantes um conjunto de dez factores, por eles também sugeridos, sobre a importância nas escolhas duma FT, a saber: confiança, respeito, solidariedade, intimidade, chique, superioridade, protocolo, hábito, afastamento e inferioridade.81 Os informantes foram convidados, em primeiro lugar, a avaliar a importância de cada um destes factores e a indicar se cada um deles «afecta muito», «afecta pouco» ou 79 Cf., para exemplos, id.: 130-135 e passim. Id.: 225. 81 Id.: 227. Traduzimos para Português os factores que a investigadora apresenta em Inglês: «Respect», «Chic», «Protocol» e «Habit». 80 306 «não afecta» a sua decisão. Havia ainda uma quarta opção: «não sei; nunca pensei nisso».82 Em segundo lugar, foi-lhes pedido que hierarquizassem, de 1 a 10, esses factores, «assigning a 10 to the most important characteristic, a 1 to the least important, and 2 a 9 to the intermediate characteristics.»83 Foram obtidas 49 respostas, depois divididas, por um lado, segundo as idades (entre os 18 e os 33 anos, e com 34 anos ou mais) e, por outro, segundo o seu nível socioeconómico84 (classe média alta, classe média baixa e classe trabalhadora). Observe-se o quadro seguinte (FIG. 2): Informantes com 18 a 33 anos POSIÇÃO Informantes com 34 ou + Intimidade 1 Intimidade Respeito 2 Respeito Solidariedade 3 Igualdade Igualdade 4 Hábito Hábito 5 Solidariedade Protocolo 6 Protocolo Afastamento 7 Inferioridade Inferioridade 8 Superioridade Superioridade 9 Afastamento Chique 10 Chique FIG. 2 – Hierarquia dos factores, por idades, baseado em MEDEIROS, 1985: 232. Apresentámos no quadro (adaptado e traduzido por nós) a posição que os informantes eborenses mais novos, por um lado, e os mais velhos, por outro, atribuíram a cada um dos factores, segundo a ordem da sua importância. A conclusão mais importante a retirar é, observa a autora, o facto de todos os informantes atribuírem posições muito idênticas aos factores, inclusive a mesma posição a alguns: intimidade, respeito, protocolo, e chique. Por outro lado, os cinco primeiros lugares85 são ocupados pelos mesmos factores, com pequena variação de posições: intimidade, respeito, solidariedade, igualdade e hábito. 82 Id.: 281 e 227. Id.: 227. 84 As respostas dos estudantes universitário foram excluídos desta análise. Para as razões, cf. id.: 235. 85 A consideração, sobretudo, dos cinco primeiros factores é devida ao facto de, segundo a investigadora, «as 5 is the mid-point on the scale (1 to 10), one might logically assume that any factor with a value above 5 is [+influential].» [Id.: 242] 83 307 Os resultados das respostas, segundo as classes sociais, vêm no quadro seguinte (que também traduzimos e adaptámos): Posição C. Média Alta C. Média Baixa Classe Trabalhadora 1 Respeito Intimidade Respeito 2 Intimidade Respeito Igualdade 3 Protocolo Solidariedade Intimidade 4 Solidariedade Hábito Solidariedade 5 Igualdade Igualdade Hábito 6 Hábito Protocolo Protocolo 7 Afastamento Afastamento Chique 8 Superioridade Inferioridade Inferioridade 9 Inferioridade Superioridade Superioridade 10 Chique Chique Afastamento FIG. 3 – Hierarquia dos factores, por classes sociais, baseado em MEDEIROS, 1985: 236. Com ligeira variação de lugar e algumas coincidências de posição, os factores que, neste quadro, ocupam os cinco primeiros lugares são praticamente os mesmos do quadro anterior. Todavia, cremos ser de assinalar, embora a investigadora não faça tal leitura, mas os dados estão lá, que, a considerar-se a média das preferências das três classes sociais, respeito ocuparia o 1.º lugar, seguindo-se intimidade, solidariedade, igualdade, hábito e protocolo. Curiosa a posição de protocolo, ao ocupar, para a classe média alta, o terceiro lugar, enquanto que, nas classes média baixa e trabalhadora, ocupa o sexto. Em contrapartida, o factor chique vem em sétimo lugar, na preferência da classe trabalhadora, e o último lugar, nas outras duas classes. São, aliás, aqueles seis factores, com o de confiança (não sujeito a avaliação, mas também sugerido por informantes86), que Oliveira (Medeiros) considera, tendo em consideração os dados colhidos, 86 A sociolinguista considerava, a princípio que confiança era sinónimo de intimidade e daí, certamente, a sua não inclusão na lista de factores que sujeitou a apreciação dos informantes. [Cf. id.: 227] A sua inclusão na lista definitiva de factores foi-lhe sugerida por um par de informantes. [Cf. id.:242] Baseada em noções de informantes eborenses, Oliveira (Medeiros) distingue, como segue, as noções de [+Confiança] de [+Intimidade]: «Having a [+Confiança] relationship with someone implies a verbal sharing of one’s feeling and social activities. Having a [+Intimidade] relationship with someone implies a more complete sharing of feelings as well as joint participation in social activities. Confiança, then, leads to Intimidade, and is a prerequisite for it. Whereas Intimidade implies a very close relationship, one can have Confiança in someone without having a particularly close relationship.» [Id. : 22] 308 como os mais determinantes na escolha duma FT. Por isso, a conclusão: «This means that address form choice can be linked to at least six dimensions, rather than two, as suggested by Brown and Gilman.»87 Oliveira (Medeiros) reconhece algumas limitações nos métodos utilizados na recolha das apreciações, nomeadamente, o facto dos informantes não terem sido informados se, nas suas respostas, deveriam considerar as FT’s em situações de relação negociada ou não negociada, uma vez que «the cognitive processes are not the same when addressing strangers as when addressing acquaintances or friends.»88 Além disso, em nosso entender, a recolha dos dados através de questionários, leva a que as respostas dos informantes se situem, sobretudo, no nível da meta-comunicação, o que poderá não coincidir, totalmente, com o uso efectivo dessas FT’s. Uma coisa é dar uma resposta sobre o uso hipotético duma FT, num hipotético co(n)texto de comunicação, e outra é usar, efectivamente, uma FT, num dado co(n)texto. Todavia, não se pode deixar de reconhecer que os resultados dos questionários vieram provar, como defende a investigadora, que: «a) Portuguese speakers consider as distinct factors the various elements which Brown and Gilman combine when redefining “Power” and “Solidarity”; and b) “Power” and “Solidarity”, defined narrowly, do not account for all address form usage.»89 Analisando, em particular, cada uma das dimensões propostas por Brown & Gilman, a autora considera que tanto os termos que estes autores agrupam sob a noção de «solidariedade», como os termos que agrupam sob a noção de «poder» «are not semantically equivalent and therefore must be considered as individual factors».90 Brown & Gilman, segundo a investigadora, consideram que a «semântica do poder» inclui respeito, protocolo, superioridade e afastamento, enquanto que a «semântica da solidariedade» inclui solidariedade, intimidade, igualdade e inferioridade.91 A sociolinguista, baseada no estudo feito em Évora, verifica, por seu turno, que: 87 Id.: 242. Id.: 239. 89 Id.: 241. Cf. também id.: 68 e 225; também 1993: 330. 90 MEDEIROS, 1985: 241. 91 Oliveira (Medeiros) não exclui, contudo, a hipótese de todos estes factores poderem ser combinados «under the broader terms to explain choice». [Id.: 241] Por outro lado, admite que o uso de um modelo «in which all relationships are reduced to a single binary contrast may appear defensible for languages with only two pronoun choices (i.e., someone either has some sort of power or does not and uses the T- or V-form accordingly).» [Id.: 242] 88 309 « Solidariedade ≠ Intimidade Solidariedade ≠ Igualdade Superioridade ≠ Respect Protocol ≠ Respect »92 O modelo teórico de Brown & Gilman,93 como qualquer outro «currently used in sociolinguistic research» não são, por isso, «adequate to examine the address form phenomenon in its entirety».94 Fenómeno onde o sistema de tratamentos em Português de Portugal constitui um caso típico e particularmente interessante. A análise sociolinguística que, em termos teóricos e metodológicos, Oliveira (Medeiros) faz das FT’s portuguesas, merece-nos as seguintes observações. Convém destacar, antes de mais, aqueles aspectos que, em nosso entender, se nos afiguram mais importantes e que a seguir enumeramos. Reconhece e prova a investigadora: a) A riqueza e complexidade das FT’s portuguesas, ao nível sobretudo dos usos / escolhas que cada locutor pode fazer, no estabelecimento e/ou (re)definição de relações com o(s) seu(s) alocutário(s), a sós e / ou perante terceiros. b) Uso estratégico das FT’s na construção e preservação de uma imagem pública positiva e do autoconceito do locutor, em primeiro lugar, mas também do alocutário. c) Um mesmo destinatário pode ser tratado por diferentes FT’s, por um único ou vários locutores, ou ser tratado por uma única FT por diferentes locutores, conforme as múltiplas identidades e os diferentes estatutos pessoais por que é (re)conhecido, de acordo com os contextos e as relações estabelecidas ou desejadas. d) Importância das variáveis (factores) pessoais, sociais e contextuais, na interpretação, selecção e uso duma FT. e) Importância do emprego de FT’s, sobretudo manipuladas e/ou re-negociadas, como estratégia para obtenção de determinados efeitos discursivos e de relação interpessoal (irónicos, humorísticos, de irritação). 92 Id.: 241. Oliveira (Medeiros) refere, a propósito, que os portugueses distinguem intimidade de solidariedade. A intimidade «includes the important distinction of inviting people to one’s home, as opposed to seing them around town exclusively. Solidariedade, on the other hand, implies some sort of sense of shared situation, such as a similar political, social, religious, or professional affiliation, without implying Intimidade. Using co-workers as example, they may have a relationship which is [+Solidariedade] but [−Intimidade]. Such a situation is, in fact, quite common.» [Id.: 243] 93 «In the case of Portuguese, the Brown and Gilman model is inadequate because it offers only a binary opposition, while rules of Portuguese syntax allow for an unlimited number of nouns to be used as pronouns, referred to in this work as “pro-pronouns”.» [Id.: 244] 94 Id.: 2. 310 f) O uso (ou o não uso) calculado de FT’s, como forma dos interlocutores comunicarem ou não os seus pontos de vista acerca uns dos outros e do universo onde se encontram. g) A escolha duma FT é também um acto racional (e, por isso, estratégico), ao nível das competências linguística e sobretudo de comunicação. Daí a importância do conhecimento, por um lado, do sistema e, por outro, do uso apropriado das FT’s, na aprendizagem do Português, sobretudo como língua estrangeira.95 h) Utilização, na recolha de dados, de métodos de observação directa e indirecta, através de participação activa e passiva na vida dos informantes. Apesar da importância que lhe reconhecemos, julgamos ser de questionar os seguintes aspectos: a) Análise das FT’s centrada apenas na dimensão alocutiva, esquecendo as dimensões elocutiva e delocutiva. b) Ausência duma clara e explícita perspectiva teórica ao nível da Pragmática, apesar das constantes referências e importância atribuída às variáveis co(n)textuais. c) Inclusão de todas as FT’s nominais na categoria dos «pro-pronomes», tomando como paradigma de descrição a morfossintaxe do Inglês e não a do Português. d) Conclusões sobre a variação, ao nível da interpretação semântica individual das FT’s, baseada em opiniões de apenas alguns informantes (1 ou 2, por vezes); e) Excessivo individualismo na interpretação (mais psicossociológica que sociolinguística) do sistema das FT’s e de alguns dos seus usos, esquecendo os seus valores semântico-pragmáticos. Deixa entender que é apenas o locutor que constrói o sentido e o significado das FT’s, sobre que reflecte ou que usa numa dada situação de interlocução, como se estes signos linguísticos tivessem apenas referência actual e não referência virtual ou lexicalizada. Se assim fosse, como é que a «manipulação» duma FT, para se obter efeitos de ironia, humor ou irritação, é entendida, com esses significados, pelo alocutário, e não nos seus sentidos habituais?96 95 A sociolinguista termina a sua tese de doutoramento com «sugestões destinadas a professores de língua estrangeira», uma vez que, segundo a sua própria experiência, o uso das FT’s «is generally discussed superficially, sometimes as a cutural comment, and practiced little.» Sugere, por isso, aos professores que «1) Expose students to the gamut of address forms»; «2) Simulated real-world strategies»; «3) Incorporate address forms into all communication»; «4) Aid students in analyzing address form usage in dialogues (oral / written) and prose»; «5) Provide basic tips». [Cf. id.: 254-256] 96 Carreira observa, a propósito desta interpretação «psicossociológica» de Oliveira (Medeiros), que, servindo-se dum exemplo dado pela sociolinguista, «si la forme de tratamento V. Exª peut être choisie pour plaisanter, voire critiquer quelqu’un que le locuteur tutoie habituellement et que si cette intention peut être comprise par l’interlocuteur grâce à l’emploi de cette forme (inhabituelle pour les interlocuteurs 311 f) Considerar o estudo das FT’s fora do sistema de cortesia verbal, como se as FT’s corteses fossem apenas as que assim são correntemente designadas. A nosso ver, as FT’s são também manifestações linguísticas, a par de outras, de cortesia (ou de descortesia) verbal. Daí, a ausência de análise de FT’s ofensivas, como se não houvesse também pessoas verbalmente tratadas mal ou mal-tratadas. g) Também ao nível do ensino-aprendizagem duma língua materna é importante o conhecimento do sistema de tratamento e dos valores semântico-pragmáticos que as respectivas FT’s denotam e expressam em situações concretas de uso. Há também uma competência de cortesia, como dimensão fundamental da macrocompetência comunicativa, que é preciso adquirir e desenvolver, nos seus aspectos teóricos e práticos, isto é, uma competência discursivo-textual. h) Considerar que os textos literários não são representativos, como refere a autora, «of the current sociolinguistic patterns» das FT’s, «because it often presents patterns which are passé».97 Convém recordar, todavia, que o domínio dos estudos linguísticos em que Oliveira (Medeiros) desenvolve os seus ensaios – o da Sociolinguística, sobretudo, norte-americana de orientação teórica e metodológiga laboviana – não é o que nós próprios adoptamos e seguimos, na elaboração deste nosso estudo. O nosso trabalho está orientado para o estudo das formas verbais de cortesia e de descortesia, em geral, e das FT’s corteses e descorteses, em particular, enquanto relacionemas verticais e/ou horizontais, e o papel que umas e outras desempenham na organização e configuração discursivo-textual, ao serem utilizadas pelos interlocutores, nas diferentes situações de interacção verbal em que se encontrem, sempre como interactantes, isto é, co-agentes mais ou menos directa ou indirectamente nelas implicados e por elas corresponsáveis. 3. M. E. Ricardo Marques: as formas de tratamento, «símbolos» de mudanças ou rupturas sociais Nas obras já acima referidas,98 Emília Marques analisa também as FT’s portuguesas, nos aspectos morfossintácticos e sobretudo sociossemânticos, segundo os parâ- dont il est question) c’est parce qu’un des traits de V. Exª est celui d’être associée à des situations de communication formelles et protocolaires. Ceci correspond à l’emploi banal de V. Exª. Si cette banalité d’emploi est rompue c’est que le locuteur choisit, par une sorte de détournement de la forme d’adresse, d’attirer l’attention sur une inadéquation.» [CARREIRA, 1995: 88] 97 MEDEIROS, 1985: 74. Sobre a nossa posição sobre esta questão, ver, supra, Introdução Geral. 312 metros da deferência e da distância que os interlocutores estabelecem, consoante os factores sociais e as características individuais. É também no domínio da Sociolinguística que situa o estudo, definindo as FT’s como «símbolos linguísticos de tramas interactivas urdidas entre interlocutores social e culturalmente situados».99 Afirma, por isso, que «a situação, a interacção e as regras sociais, tanto quanto as restrições linguísticas, determinam escolhas entre modos de acção e estratégias discursivas culturalmente aceites, embora sempre de acordo com determinada intenção de comunicação, por parte do sujeito enunciador.»100 Com o objectivo de «despistar e interpretar [...] diferenças culturalmente significativas em manifestações de sistemas socioverbais», procede a «uma análise contrastiva de formas de tratamento e de formas de delicadeza,101 ocorrentes em estruturas de complementação com marcas interlocutórias.» A opção por tais expressões resulta do facto de que «qualquer escolha decorrerá sempre, e directamente, da situação e das relações estabelecidas entre os interlocutores».102 Tais formas constituem, por isso, um excelente domínio de observação, «dado permitir conclusões relevantes quando de análises que foquem a competência de comunicação».103 O estudo das FT’s é, por isso, campo sociolinguístico privilegiado para «correlacionar escolhas verbais e factores sociais e culturais».104 Segundo a autora, tal estudo a) permite delinear o modo como interagem os falantes dentro e através de determinado sistema social, e qual o grau de orientação - centrípeta em EU ou aberta em rede; b) contribui para identificar e descrever estruturas sociolinguísticas definidoras de certos grupos ou determinadas comunidades; c) verificar que comunidades diferentes apresentam diferenças significativas na manifestação, em discurso, dos respectivos sistemas sociolinguístiocs (tratamentos, honoríficos, deferência, delicadeza...); d) verificar que os tratamentos tanto permitem delinear simbolicamente uma estrutura social como indiciar mudanças ou rupturas sociais; 98 Trata-se de MARQUES, 1988 e 1995; ver, supra, cap. V, 2.3. MARQUES, 1995: 135. 100 Id.: 134. 101 A autora separa as FT’s das formas de delicadeza, termo que prefere a «cortesia». 102 MARQUES, 1995: 134. 103 Id.: 135. São sumariados alguns aspectos mais relevantes desta competência: «problema da escolha entre fala e silêncio; o domínio, em instâncias de produção e recepção, de conteúdos discursivos referenciais e sociais; a capacidade para adequar o dito/falado/escrito à ocasião [...]; a competência para escolher a variante apropriada a determinada situação e momento social – ou seja, o ser capaz de saber ONDE, QUANDO e COMO ALGUÉM fala a OUTREM.» [Id.: 134] 104 Id.: 135. 99 313 e) verificar que o sistema português das FT’s é, de entre as línguas ocidentais, o que mais se aproxima, pela sua complexidade, dos sistemas orientais de tratamento honorífico.105 É como indiciadores de mudanças ou rupturas sociais que Marques se interessa, em particular, pela análise contrastiva das FT’s. Toma como corpus discursos de deputados produzidos na Assembleia Nacional, nos anos de 1972-73 e 1973-74, e na Assembleia Constituinte, no ano de 1975-76. Os respectivos contextos parlamentares são claramente distintos: imediatamente antes e imediatamente após a Revolução de 25 de Abril de 1974. Segundo a autora, a complexidade e a subtileza do sistema de tratamento português tornam-se mais facilmente observáveis em acontecimentos verbais (“speech events”) que ocorram em: a) «períodos de instabilidade e em comportamentos socioverbais ritualizados, além de processados em universos fechados»; b) «estruturas dialógicas encenadas, visando, pela argumentação e pela força discursiva, a obtenção de um poder – neste caso, do poder político»; c) «situação polémica de assembleia, onde a força da palavra e a, por vezes violenta, acção verbal orientam e condicionam debates parlamentares.»106 Marques inclui as FT’s no conjunto das formas linguísticas que manifestam níveis de deferência, nesta «designação genérica» incluindo também níveis de fala / registos, formas honoríficas e formas de delicadeza.107 Em seu entender, existe «coerência sintagmática entre os vários meios de expressão da deferência, [...] seja qual for o ponto da cadeia frásica em que ocorram».108 Daí a importância que a escolha dessas formas tem, tanto ao nível da estrutura de complementação, como das relações entre os interlocutores. Neste sentido, considera que, em estruturas dialógicas, seja qual for o grau ou tipo de ritualização, «é importante a escolha da forma de tratamento, como condição necessária para a aceitação social dos enunciados produzidos.» E acrescenta: «Tal escolha, mesmo se pertinente, tem contudo de ser acompanhada por outras, de 105 Cf. id.: 135. Alineação da nossa responsabilidade. Id.: 136. Alineação da nossa responsabilidade. 107 Cf. id.: 137. 108 Id. ibid. e 192. 106 314 molde que haja, em todo o enunciado, um mesmo nível de deferência, ou de delicadeza, resultante da situação e das relações entre os interlocutores e os participantes envolvidos.» 109 A autora conclui, por isso, que a escolha da FT «quase permite prever a ocorrência de outras expressões ou de outros termos, de outras fórmulas de deferência e de delicadeza.»110 Consideramos este ponto importante, uma vez que, em nosso entender, o emprego duma FT, como de outros processos de cortesia ou de descortesia, se reflecte nas práticas discursivo-textuais, a nível morfossintáctico, semântico e pragmático, que os (inter)locutores realizam, consoante os contextos em que se encontram. A linguista situa, portanto, as FT’s no âmbito da deferência e da delicadeza, noções que, como se verifica, distingue, distinção esta que comentaremos abaixo. Perante as relações próximas que existem entre níveis de deferência e registos, Marques opta por incluir, no conjunto dos primeiros tanto níveis de fala / registo como formas honoríficas, formas de tratamento e formas de delicadeza. Aliás, indo mais longe na compreensão da expressão, a autora faz equivaler registos a níveis de fala, bem como a estilos, uma vez que todos são «objecto de estudo com estatuto idêntico em sociolinguística».111 Porém, na concepção abrangente de registos / níveis de língua (fala) / estilos, inclui aspectos marcados não só pela gramaticalidade resultante da competência linguística, mas também pela gramaticalidade socioverbal, resultante da competência comunicativa. «Em suma, não é só a gramática que obedece a regras, mas também o uso da língua em situação – o que nos obrigará a ter em conta a adequação a situação e contexto, logo, a aceitabilidade social do dito / falado, escrito. Daí que, para além da competência linguística (conhecimento das regras que regulam compreensão e produção de frases gramaticais), se tenha de aceitar uma outra, a de comunicação em situação, que se pode definir, sumariamente, como sendo o conhecimento dos usos verbais adequados àquelas situações de comunicação que podem ocorrer em determinada sociedade – cultura. Trata--se aqui de dominar regras sociais que determinam usos diferenciados da linguagem.»112 109 Id.: 137. Id.: ibid.. 111 Id.: 139. 112 Id.: 134 110 315 Trata-se, como é evidente, duma concepção ampla de comunicação, onde naturalmente se inclui, conforme se deixa entrever, no co(n)texto do tema tratado pela autora, o que chamamos uma competência discursivo-textual de cortesia, adquirida e desenvolvida em performances sociais, que não exclui, a contrario, uma competência e uma performance de descortesia. Aliás, tal como o erro gramatical só é detectado por quem sabe gramática, também só quem sabe cortesia identifica as descortesias. A autora esclarece, portanto, que há «processos gramaticais (morfológicos, sintácticos...) que podem surgir como características de certos níveis de fala e como seus indiciadores.» Observa, todavia, que «a noção de registo abarca muito mais do que a simples “gramaticalidade”», uma vez que ela reúne, entre outros, «problemas de escolha, entre variantes igualmente gramaticais», escolha que é «condicionada pelo tipo de relação entre os participantes, pelos respectivos estatutos e pelo maior / menor formalismo, ou até pela total informalidade da situação.»113 Marques identifica os seguintes níveis de língua: a) «íntimos, familiares»; b) «não íntimos, de distanciação . objectiva, impessoal deferência, cortesia . subjectiva menosprezo desprezo»114 Os estudos realizados sobre deferência, ainda que nem todos coincidentes sobre o número de níveis115 (até porque utilizam métodos diferentes na recolha de dados116) acentuam a importância dos factores sociais na sua descrição, definição e taxinomia. E, na sequência de outros investigadores, Marques destaca os seguintes: a) «factor situação: / formal / não formal /informal»; b) «factor estatuto condicionado por / idade / família / profissão / sexo / . . .» 113 Id.: 137. Id.: 131. 115 Observa a sociolinguista portuguesa que «os estudiosos nem sempre concordam com o número de níveis habitualmente reconhecido, nem com a respectiva ordem hierárquica. Alguns reconhecem seis níveis; outros cinco, outros ainda quatro.» [Id.: 194] 116 Utilização de formas orais e/ou escritas, ritualizadas ou não, formais e/ou informais, recurso a testes de escolha múltipla, de expressão de julgamento, de disponibilidade, de reconhecimento. [Cf. id.: 190-191] 114 316 c) «factor marginalidade ou sentido de “out-groupness” [...], em relação a situação(ões) e grupo(s).»117 Além dos registos / níveis de língua / estilos, considera ainda os padrões de usos – comuns, assimétricos, simétricos – e o estilo pessoal de cada interlocutor, na descrição dos referidos níveis. É de opinião, porém, que todos estes aspectos, nas escolhas que os interlocutores fazem, são marcados por traços sociossemânticos, que distribui conforme resumimos no quadro seguinte: ASPECTOS TRAÇOS Registos Usos comuns Usos assimétricos Usos simétricos [± solidariedade] vs. [± estatuto] [± poder/autoridade] vs. [± solidariedade/camaradagem] [± estatutos díspares] [+ solidariedade] FIG. 4 – Padrões de uso e traços sociossemânticos, segundo MARQUES, 1995: 193-196 Constituindo as FT’s um dos «conjuntos de expressões linguísticas que denotam vários graus da deferência que o falante pode demonstrar ao seu interlocutor»,118 pergunta-se: em que (de)grau começa e em que (de)grau termina a deferência, ou que forma(s) do nosso sistema de tratamento os realiza(m) e manifesta(m)? A autora, no capítulo dos níveis de deferência, não “responde” completamente à questão, nem mesmo quando analisa, em seu parecer, o nível mais alto de FT’s - as formas honoríficas que define como «aquelas que permitem ao locutor mostrar grande deferência pela pessoa de que fala, ou a quem fala.»119 São três as fórmulas que, em seu entender, poderão representar graus elevados de tratamento deferencial: v. ex.ª, o doutor e vossência. Visando «apreender a articulação de formas de tratamento e de deferência – a partir de estruturas complexas, sobretudo, sintácticas, de complementação – com níveis de língua»,120 Marques submeteu estas fórmulas, integradas em frases, à apreciação e correcção de informantes, através de um teste de reconhecimento.121 117 Id.: 196. Adaptámos a apresentação. Id.: 194. 119 Id.: 198. 120 Id.: 191. 121 Aplicado, em 1975, na aldeia da Várzea, concelho de Lamego, a informantes com idades compreendidas entre os 10 e os 70 anos. [Cf. id.: 192] 118 317 Numa frase como Peço a v. ex.ª que me ajude, o tratamento v. ex.ª não foi corrigido, mas sim a completiva, substituída por o favor de me ajudar, o favor se me pode ajudar, a esmola de me ajudar e que me dê uma mãozinha.122 Curiosamente, a fórmula vossência, na frase Aviso vossência que deve ajudar, foi substituída, por todos os informantes, pela fórmula v. ex.ª. Além disso, Aviso foi substituído por Peço o favor de (30%), ou pela reformulação da frase, apagando a estrutura de complementação. A substituição da fórmula pronominal mostra, como noutros casos de formação semelhante, que a amálgama leva à degradação do nível da deferência. Na frase O doutor supõe estar a ajudar, a forma nominal sujeito foi substituída (45 informantes, em 100) pela expressão O Senhor Doutor e 20 informantes substituíram supõe por acredita.123 O uso de honoríficos marca atitudes e comportamentos da parte do locutor, ora em relação a si próprio, ora ao(s) seu(s) alocutário(s), ora ainda a terceiro(s), presente(s) ou ausente(s), referido(s) no discurso. Temos, portanto, que as formas honoríficas podem ser auto e heterorreferenciais. Mas, é evidente, como observa Marques, que a autorreferência honorífica só acontece num número reduzido de casos, isto é, «aqueles em que, por exemplo, ou se acentua ofensa, cólera», bem como «ironia, comicidade.» Nos casos de heterorreferência, a escolha é determinada, sobretudo, por «factores sociais, externos», os quais funcionam, dum modo geral, como na «escolha dos níveis de língua marcados por deferência». Daí, a conclusão: «Este tipo de formas assenta em contrastes binários de [+ honorífico] vs. [- honorífico], no caso de deferência explícita e directa, ou de [+ humilde] vs. [- humilde], deferência explícita, mas indirecta.»124 A sociolinguista desenvolve, sobretudo, a análise de um caso particular e complexo de referência, onde «o referente é uma terceira pessoa, presente ou não na situação interlocutória.»125 Trata-se duma relação triádica que tem em consideração não só a relação locutor – referente, mas também as relações entre sujeito locutor e alocutário, bem como entre este último e o referente. Descreve, a propósito, tendo em conta o estatuto dos interlocutores e dos referentes, uma «taxonomia relacional» que, como regras, procura explicar o uso de honoríficos em relação a esse terceiro.126 Mas também a este 122 Cf. id.: 199. Cf. id.: 201. 124 Id.: 198. 125 Id.: ibid. 126 Cf. id.: 198-199. 123 318 nível, conclui que «as fórmulas, de deferência ou de humildade, que funcionam como pólos centrípetos, atraem itens e formas estruturais do mesmo registo».127 Mas se, na análise dos honoríficos, por um lado, a autorreferência é considerada em termos de elocução e, por outro, a heterorreferência em termos de alocução e delocução, na análise do sistema das FT’s,128 são referidos apenas os processos de elocução e de alocução. É também sob a dimensão deferência que Marques analisa o sistema português das FT’s, continuando a ter, como principal corpus, discursos de deputados produzidos nos contextos parlamentares acima referidos. A deferência será descrita tendo em consideração os seguintes descritores, no continuum seguinte, com limites máximo e mínimo: «(Ø / ± majestático), (Ø / ± comum), (Ø / ± neutro), (Ø / ± humilde)»129 Entre a forma marcada pelo traço [+majestático], «muitas vezes denotadora de posição distanciada em momentos de conflito»130 e a forma marcada pelo traço [+ humilde], «em que o locutor honra, ou mostra particular deferência, para com o(-s) interlocutor(-es)»,131 a sociolinguista afirma existirem «restrições fortes na coocorrência de formas de tratamento, auto- e hetero-referenciais». As escolhas são, por isso, «determinadas por componentes extralinguísticos, socioculturais, que obrigam a níveis específicos de deferência».132 Na diversidade da autorreferência pronominal, a autora inclui e distingue formas como eu, nós, a gente, etc., as quais têm implicações na «escolha da(-s) forma(-s), ou de designação do(-s) outro(-s), do verbo superior de complementação ou mesmo da estrutura da própria completiva».133 Analisando, sobretudo, o uso do pronome de primeira pessoa do plural, nos discursos parlamentares, isto é, produzidos por actores sociais adultos específicos (deputados) com igual status, chega às seguintes conclusões: 127 Id.: 201. Id.: 159-170. Neste trabalho, Marques omite as primeiras considerações com que introduz o tema, no primeiro volume da dissertação. [Cf. MARQUES, 1988: 105-107] Aqui, a autora inclui, na noção de FT’s «tanto os termos que referem o par destinador-destinatário, como os vocativos usados para chamar a atenção deste último.» Além disso, transcreve dois quadros em que Jensen faz, por um lado, o inventário das formas sujeito de segunda pessoa e, por outro, o inventário das formas pronominais objecto (directo e indirecto) de segunda pessoa, baseado na variante do Português do Brasil. [Cf. MARQUES, 1988: 106-107; JENSEN, 1981: 56 e 53] 129 MARQUES, 1995: 162. 130 Id.: 163. 131 Id.: 162. 132 Id.: 163. 133 Id.: 162. Na dissertação, a autora inclui também a forma «o partido». [MARQUES, 1988: 109] 128 319 a) a FT nós, inclusiva, só pode ser utilizada pelo «presidente da mesa, pelo líder do grupo parlamentar, de uma facção ou de um grupo mais geral ou abstracto», uma vez que só estes gozam do estatuto de primus inter pares, ocorrendo ainda nas formas nós - deputados, nós – esquerda, nós – povo; b) o uso da forma majestática nós, na Assembleia Constituinte, produzia, por isso, algum desconforto; c) «Exceptuam-se, aqui, [...] as formas que ocorrem em certos escritos oralizados, com fortes marcas de ritos jurídicos, por exemplo; ou aquelas em que, voluntariamente, apenas se quer atenuar o grau de implicação-responsabilização em alguns actos.»134 Nas formas pronominais de segunda pessoa, Marques considera as formas você e o senhor, como pólos comunicativos opostos a tu, situação que complexifica e destrói o chamado padrão ocidental T[u] → V[ós]. A autora considera que, perante o quase desaparecimento de vós, utilizado apenas em tipos muito específicos de discurso (religioso e oratório, v.g.), as formas pronominais de segunda pessoa se agrupam nos pares EU – TU, EU – VOCÊ(s) e EU – O SENHOR (-a, -es, -as). Constituindo correlações portadoras de significações diferenciais, estabelecidas por regras sociolinguísticas, esta proposta deve-se ao facto de «em português, este tipo de pronomes não ser mero substituto do nome»135 e, por isso, «o seu uso ter de ser compreendido, não apenas no âmbito do conceito gramatical tradicional de “pessoa”, mas a partir de conceitos reflexos de interacção, de títulos e de formas de distância comunicativa, de fórmulas / formas de deferência e de delicadeza, decorrentes de vários tipos de situações sociais.»136 Nesta ordem de ideias, o par EU – TU aponta para usos recíprocos, independentemente da existência, ou não, de traços adicionais de solidaridade. Tais usos implicam «relações de simetria (idade, estatuto...), situações informais, e algumas mais formais, por vezes assimétricas (+ → –) – abstracção feita de efeitos pontuais de moda, de extracto social e de marcas idiolectais, ou sociopolíticas.»137 Os pares EU – TU, EU – VOCÊ e EU – O SENHOR, por seu turno, representam, com frequência, usos assimétricos ( + → – e – → +). A autora faz notar, todavia, que o par EU – O SENHOR é uma forma de delicadeza que pode designar qualquer 134 Id.: 163. Id.: ibid. Trataremos esta questão no cap. XI, 3.1. 136 Id.: 163-164. 137 Id.: 164. 135 320 adulto e que os pares EU – TU ou EU – VOCÊ raramente ocorrem naqueles casos em que um locutor, com menor estatuto, se dirige a, refere alguém com estatuto superior ou alguém mais velho. É que esta é uma relação diádica que reflecte muitas vezes relações de solidariedade, ou seja, de pertença a um grupo especial específico. «Daí que, por vezes, este factor apenas apague diferenças etárias, mas não, num mesmo grupo, as de estatuto social ou hierárquico»,138 conclui. A propósito da FT pronominal V.ª EXCELÊNCIA, regista que esta «forma de cortesia» é usada «quando o destinatário tem estatuto social ou hierárquico muito superior e quando o destinador pretende mostrar-lhe respeito e deferência.»139 Nas formas nominais, contempla o uso de apelidos, títulos, títulos mais apelidos e/ou nomes próprios ou outras formas nominais que identifiquem a pessoa, ora como vocativos, ora como sujeitos, ora como objectos. Acrescenta, todavia, que, se, como vocativos [porque permitem «chamar a atenção do(-s) destinatário(-s)»], as formas nominais se completam a si próprias, quando usadas como sujeito ou objecto referindo o destinatário, «só a análise da totalidade da combinatória em que se inserem e do modo como aí se distribuem permite definição mais precisa da interacção ou estabelecida pelo, ou reflectida, no discurso.»140 O uso do nome próprio pelos deputados é raro, em contexto de Assembleia, pois verifica-se aí um tipo de estilo formal marcado pela distância e até pela deferência, ainda que só aparente. Uma FT desse tipo, «meio de identificação de crianças, ou seja, daqueles que ainda não têm estatuto social»141 e «índice social de um grau de intimidade», não se adequa a marcas honoríficas, incompatível com o lugar de ênfase atribuído aos deputados. Estes são referenciados, por isso, pelo nome de família, precedido ou não de título, independentemente do sexo.142 O apelido ou nome completo, acompanhados de título, usam-se, sobretudo, quando, numa situação determinada, são muitos os que têm o mesmo título (doutor, professor, deputado...). Em tais casos, tal FT aparece como meio de identificação e como processo de evitar confusões. Nos contextos parlamentares, contudo, tais tratamentos são geralmente «apagados, dada a necessidade de, simetricamente, se mostrar 138 Id., ibid. Id.: 165. 140 Id.: ibid. 141 Id.: 168. 142 Cf. id.: 166. 139 321 deferência mútua e se diluir, tanto quanto possível, o indivíduo, dele ficando apenas o papel que desempenha na Assembleia.»143 A autora conclui que, nos contextos parlamentares, «há uma procura de termos que neutralizam o indivíduo e lhe enfatizam a função – a mesma para todos», pelo recurso a «designações genéricas neutras (Sr. Deputado, por exemplo)». É assim instituído «um nível de tratamento zero», através do qual os discursos dos participantes nos debates são marcados por «formas democráticas e igualitárias».144 Na categoria de terceira pessoa verbal, definida pela não ocorrência de formas de sujeito gramatical expresso ou de sujeito indeterminado ou indefinido, chama-se a atenção para alguns modos da sua realização. Os usos de formas verbais, sem sujeito expresso, por exemplo, «tanto podem remeter para uma primeira, como para uma terceira pessoa». Tais usos permitem e originam ambiguidades referenciais, pela «dissolução do eu numa não pessoa» (alguém), o que pode significar «voz de autoridade», ou «desejo de não implicação-responsabilização no discurso». Dá-se, deste modo, um «apagamento do eu», processo que se verifica também em formas de semipassiva. Nestas, o sujeito real «surge marcadamente indefinido em estruturas do tipo “diz-se”, “dizem” ou do tipo “ocorre dizer que ...”, “o que equivale a dizer que ...”, “o que quer dizer ...”, etc.» Marques conclui, por isso, que estes processos revelam haver uma tendência nas FT’s de deferência do português para um «sistema fortemente hierarquizado e ritual», revelador duma vontade de distanciação e objectividade, e mesmo «como reformulação de um discurso sentencioso, que se tenta marcar de universal».145 A sociolinguista termina o capítulo sobre as FT’s com um conjunto de reflexões que, sob o título de «perspectivas», sintetizam aspectos importantes deste sistema. Em Portugal, «a diferenciação nas relações sociais, por factores de idade, de estatuto profissional ou outros, ainda está profundamente enraizada», e não atingiu ainda «a expressão diádica habitual nas sociedades ocidentais.»146 O português continua, assim, «a ter dois pólos orientadores das escolhas designativas de O OUTRO: por um lado poder/status, por outro solidariedade.» Tendo em consideração factores sociais como idade, estatuto social e nível profissinal, é afirmado, como princípio genérico, que «em português, todo o adulto, estranho, é tratado com marcas de deferência e que a hierarquia, numa organi- 143 Id.: ibid. Id.: 167. 145 Id., ibid. 146 Id.: 167-168. 144 322 zação, funciona sempre, independentemente da idade.»147 Na língua e sociedade portuguesas, ainda «se mantém um certo estatismo», de tal modo que «as relações formais de autoridade são definidas por ritos quase pormenorizados e ainda observados estritamente.» Admite que, em alguns aspectos, a sociedade portuguesa se encaminha para «formas mais igualitárias, o que é indiciado, sobretudo, pelo uso de formas, mais marcadas por deferência, em direcção a pessoas que, noutras épocas, teriam sido tratadas de modo menos deferente.» Por outro lado, verifica-se uma certa expansão de formas familiares recíprocas (tratamento por tu, você ou nome próprio), «o que conduz, apesar de tudo, a padrões mais irregulares e complexos.»148 Este estudo de Marques é importante, sobretudo, por chamar a atenção para os mecanismos morfossintácticos e semântico-pragmáticos de coocorrência, exigidos pelo uso, consoante os contextos, de determinadas formas de cortesia, com destaque para as formas de tratamento. De criticar, a nosso ver, uma certa imprecisão relativamente às noções de deferência e delicadeza, a que já nos referimos acima.149 4. Gunther Hammermüller: formas de tratamento e convenções sociais A complexidade do sistema das FT’s em Português é analisada também numa dissertação de doutoramento que Gunther Hammermüller defendeu, em 1992, na Universidade de Kiel, Alemanha, e que foi publicada, em 1993. Trata-se de Die Anrede im Portugiesischen. Eine soziolinguistische Untersuchung zu Anredekonventionen und Anredeformem des gegenwärtigen europäischen Portugiessisch, título que Carreira traduz para Francês por «L’adresse en portugais. Une recherche sociolinguistique des conventions et des formes d’adresse du portugais européen contemporain».150 O estudo de Hammermüller pode ser considerado, segundo resumo feito por Carreira,151 sob três planos concêntricos: «celui de l’adresse en général (problématique 147 Id.: 168. Id.: 170. 149 Cf., supra, cap. V, 2.3. 150 CARREIRA, 1995: 89. Original em HAMMERMÜLLER, 1993. 151 Cf. id.: 89-96. A exposição do estudo de Hammermüller sobre as FT’s portuguesas é feita por Carreira «sur des parties traduites amicalement, par l’auteur et par Willemien Visser, sur des questionnaires en portugais et sur d’autres travaux en portugais de G. Hammermüller.» A linguista portuguesa considera, por isso, que se trata duma apresentação «forcément incomplète». [Id.: 89, nota 1] A nossa exposição dos 148 323 linguistique, sociolinguistique, antropologique et histoire de la recherche), celui du tratamento en portugais et enfin, le noyau de cet ouvrage, l’étude empirique sociolinguistique des conventions du tratamento dans le portugais européen contemporain, à partir tout particulièrement de la forme d’adresse Você.»152 O tratamento está particularmente relacionado, segundo o autor alemão, com o carácter convencional das relações interpessoais, os estatutos e os papéis sociais, bem como com o distanciamento social e comunicativo. Para certas FT’s são evocadas as suas relações cotextuais (contexto linguístico) com formas de saudação, de cortesia, de apelo e com o vocativo, bem como questionados os valores de FT’s directas e indirectas (respectivamente, alocutivas e delocutivas). Um dos aspectos mais interessantes deste estudo prende-se com o que Hammermüller designa por tratamento de evitação, ou seja, segundo Carreira, o emprego da 3.ª pessoa das formas verbais é suficiente para o locutor «evitar» a escolha de formas pronominais ou nominais que explicitam a referência aos estatutos dos interlocutores.153 O autor alemão centra a parte empírica do seu estudo na forma Você. Servindo-se de dois tipos de questionários, realizados a informantes adultos do Norte de Portugal (Porto e Barcelos), o autor investiga as avaliações que os locutores fazem desta FT e as dificuldades que sentem em categorizá-la. Com base na análise de Você, forma polissémica, resultou o diagrama seguinte (FIG. 5, pág. seguinte), onde se coordenam as suas variantes semânticas. (Reprodução conforme tradução de Carreira.) Hammermüller também classifica as FT’s em nominais, pronominais e verbais. Distingue, todavia, as FT’s propriamente ditas das que chama apelemas. Estas podem ser realizadas como vocativo, como em Ó João, vem cá, ou sem vocativo, como em Vem cá, João!154 Além de perspectivas de transposição didáctica, apresenta também perspectivas de investigação das FT’s, destacando Carreira as seguintes: principais aspectos do estudo de Hammermüler corre, assim, o risco de ser ainda mais incompleto: leitura de leitura alheia, síntese de síntese alheia. 152 Id.: 90. 153 Cf. id.: 90-91. 154 Cf. HAMMERMÜLLER, 1993: 36 e 40-41, segundo CARREIRA, 1995: 95. Em nosso entender, o enunciado Vem cá, João! não deixa de ser vocativo, pelo facto de o invocado não se encontrar precedido da partícula interjectiva ó e/ou de vir posicionado no princípio ou no fim do enunciado. Tal construção apenas lhe reduzirá a força de chamamento, tornando a sua formulação, por isso, mais próxima da nomeação e, por isso, menos directiva e, por isso, menos descortês. A propósito da noção de apelemas, Carreira observa, em nota: «Cette catégorie intègre parfaitement la forme pá (ex. (Ó) pá, vem connosco! / vem connosco, pá!) qui ne peut être employée comme une forme d’adresse au sens strict, selon G. Hammermüller.» E acrescenta, depois de recordar que pá é uma abreviação de rapaz: «L’emploi de pá s’est généralisé à divers groupes d’âge (par exemple, des hommes d’un âge avancé peuvent se dire pá) et à 324 a) «- le choix de la forme d’adresse mis en relation avec la distance»; b) «- le tratamento selon la norme ou plutôt selon l’initiative du locuteur»; c) «- la liberté dans le choix des formes d’adresse portugaises»; d) «- la possibilité d’examiner les règles de tratamento.»155 Différenciation au niveau de l’application langagier métalinguistique Différenciation concernant l’intention communicative positionnement de l’interlocuteur (celui / celle à qui l’on s’adresse) dans la structure sociale positionnement de la relation envers l’interlocuteur Você méta fonction communicative «spontannée» pour assurer la compréhension changement selon la situation Distance diminution augmentation VOCÊdesamb VOCÊafect VOCÊdist celui / celle à qui l’on s’adresse peut être envisagé(e) supérieur(e) égal(e) inférieur(e) VOCÊresp VOCÊigual VOCÊcond Abréviations : VOCÊmeta = VOCÊ métalinguistique VOCÊdesamb = VOCÊ désambiguisateur VOCÊafect = VOCÊ affectif VOCÊdist = VOCÊ de mise à distance VOCÊresp = VOCÊ respectueux VOCÊigual = VOCÊ d’égalité VOCÊcond = VOCÊ de condescendance FIG. 5 – Polissemia da FT você, segundo HAMMERMÜLLER, 1993: 108. 156 O estudo termina com o subcapítulo «Wahl der “richtigen” Anredform», que Carreira traduz por «“Choix de la forme d’adresse correcte”».157 Das reflexões que o investigador alemão tece sobre esta questão, a linguista portuguesa releva: certains groupes féminins (restrictions d’âge tout particulièrement mais aussi de milieu socioprofessionnel).» [CARREIRA, 1995 : 95, nota 1] Sobre a forma pá, ver WILHELM, 1976/77. 155 CARREIRA, 1995: 95. Alineação da nossa responsabilidade. 156 Cit. por CARREIRA, 1995: 94. 325 a) «- le tratamento est un moyen de situer le partenaire de l’interaction»; b) «- le choix adéquat correspond au tratamento non marqué. Ce niveau non marqué permettrait la construction d’échelles de politesse»; c) «- il est possible d’analyser les “conventions” de tratamento et leur dynamique dans l’interaction»; d) «- en conséquence, il est possible d’enseigner / apprendre ces moyens linguistiques interactifs.»158 Hammermüller e Oliveira (Medeiros), apesar de terem seguido vias diferentes, visam encontrar essencialmente, como observa Carreira, respostas para a pergunta Que forma de tratamento escolher? Porém, enquanto Oliveira (Medeiros) situa a escolha da FT, como vimos, segundo apenas o ponto de vista do locutor, Hammermüller dedica também uma parte da investigação ao efeito que essa escolha tem no interlocutor. Ou seja, é tido em consideração o par interlocutivo EU-TU, deste modo se sublinhando «la dynamique de l’interaction qui intervient dans la constitution et dans la mise en œuvre des normes d’adresse.»159 5. M. H. Araújo Carreira: formas de tratamento e regulação das distâncias interpessoais Para responder a questão semelhante à acima formulada - «Qu’est-ce qui rend une forme d’adresse théoriquement plus adéquate qu’une autre à une certaine régulation de l’espace interlocutif?»160 - Carreira analisa também, na sua dissertação de doutoramento já referida, as FT’s em Português europeu contemporâneo. Nesse sentido, procede, por um lado, à sua delimitação semântico-pragmática161 e à caracterização das suas 157 Id.: 95. Id.: 95-96. 159 Id.: 96. 160 Id.: 97. 161 Id.: 99-100. 158 326 principais formas,162 tendo em conta os seus valores próximos da ortonímia,163 e, por outro, a sua escolha em relação a possíveis conceptuais.164 A autora define as FT’s como «des moyens verbaux de régulation proxémique auxquels les locuteurs ne peuvent pas échapper en interlocution», pois é com elas que «les interlocuteurs s’adressent les uns aux autres en se désignant et en désignant des tiers.»165 Em Português, como nas outras línguas, os tratamentos constituem, assim, também um meio de regulação das distâncias entre os interlocutores (de aproximação, de contacto, ou de afastamento), que se expressa linguisticamente tanto ao nível da língua, como ao nível do discurso, como vimos.166 Antes de analisar, semântico-pragmaticamente,167 as FT’s, a autora faz um balanço crítico dos principais estudos, realizados por autores portugueses e estrangeiros. A partir da análise de gramáticas, de métodos de ensino do Português LE, e de estudos linguísticos, segundo uma perspectiva comparativa entre as variantes do Português de Portugal vs. Brasil,168 Portugal vs. Angola169 e Portugal vs. Moçambique,170 ou considerando apenas a variante do Português europeu, a linguista conclui que os sistemas de tratamento naqueles países lusófonos tendem para a simplificação, enquanto que o Português «garde une gamme diversifiée, complexe et très vivante, de possibilités de modulation de la distance interlocutive». 171 Como nos estudos acima referenciados, também Carreira considera que são múltiplas e complexas as escolhas das FT’s em Português, devido a um elevado número de factores, com especial destaque para a hierarquização sócio-profissional, embora seja também elevada a sua variabilidade a nível individual. Apesar disso, as FT’s são estudadas apenas ao nível da língua, uma vez que, em seu entender, «il est possible d’attribuer des valeurs sémantico-pragmatiques de bases aux formes d’adresse», os quais «permettent d’identifier les formes d’adresse, les unes par rapport aux autres, et d’en ébaucher les potentialités de sens que les discours actualiseront dans leur variabili162 Id.: 100-114. «L’hortonymie - concept emprunté à B. Pottier- correspond au caractère immédiat de la désignation: “L’expression ‘il faut appeler un chat un chat’ révèle cette intuition que les entités ont une désignation, immédiate, dans une situation, un environnement bien déterminés.” (B. Pottier, 1992, p. 123.» [Id.: 98] 164 Id.: 96-98 e 114-124. 165 Id.: 6. 166 Cf., supra, cap. V, 1., ou CARREIRA, 1995: 5. 167 «La classification sémantico-pragmatique tient compte des conditions d’emploi des formas de tratamento dans le contexte psychosocial.» [Id.: 55] 168 JENSEN, 1981; BIDERMAN, 1972/73; WILHELM, 1979. 169 SILVA-BRUMMEL, 1984. 170 CARVALHO, 1991. 171 CARREIRA, 1995: 48. 163 327 té.»172 A delimitação semântico-pragmática das diferentes FT’s funda-se, por isso, «nécessairement sur un ensemble de valeurs et de facteurs sociaux et intersubjectifs dont il convient de dégager les éléments les plus pertinents.»173 Assim sendo, baseando-se nas reflexões produzidas pelos autores cujos estudos expusera criticamente, e articulando os eixos vertical (hierarquização de lugares) e horizontal (grau de intimidade), apresenta uma nova proposta de delimitação semântico-pragmática das FT’s em Português europeu contemporâneo. No estudo das FT’s portuguesas, os valores sociais e profissionais, por um lado, e os valores de familiaridade e de idade, por outro, constituem, segundo a linguista, os factores mais importantes na hierarquização dos lugares que os interlocutores podem ocupar no eixo vertical. Tendo em consideração tais hierarquizações, cada locutor escolhe o tratamento que resulta da avaliação que faz desses factores e situar-se-á a si próprio (elocução) e ao(s) outro(s) a quem se dirige (alocução) ou de quem fala (delocução), «au même niveau, à un niveau supérieur ou à un niveau inférieur.» O grau de intimidade, de respeito e até de deferência, bem como o sexo, coloca os interlocutores em torno do eixo horizontal e a FT a utilizar será aquela que melhor exprimir tal grau. Este está muito ligado, por outro lado, «au degré de connaissance des interlocuteurs, aux places relatives dans l’échelle hiérarchique, au degré de formalité de la situation de communication.»174 Com estes pressupostos teóricos, Carreira elabora quatro quadros em que apresenta, segundo um continuum, a gradação das FT’s, num eixo horizontal, cujos pólos são +FAMILIARIDADE / -DISTÂNCIA e -FAMILIARIDADE / +DISTÂNCIA, conforme se trate de usos alocutivo (cf. FIG. 6) delocutivo (cf. FIG. 7) e elocutivo (cf. FIG. 8). Para cada caso são indicadas as formas sujeito, as desinências verbais, os complementos (tónicos e átonos) e o vocativo (para a alocução). O conjunto destes quadros constitui, a nosso ver, uma excelente visão de sínteses da variedade e riqueza das FT’s portuguesas, nas suas diferentes categorias e funções semântico-pragmáticas, em termos de distâncias. A linguista elabora também um quadro sobre as relações que as FT’s de parentesco estabelecem entre os interlocutores, a nível alocutivo, delocutivo e elocutivo, que a seguir se reproduz (FIG. 9) (Traduzimos para Português informações dadas em 172 Id.: 97. Id.: 99. 174 Id.: 99. 173 328 Francês. Por facilidade de exposição, apresentam-se as referidas figuras nas páginas seguintes.) Carreira formula, de seguida, algumas considerações importantes acerca dos tratamentos nominais alocutivos. As suas ocorrências, em Português, são sempre acompanhadas do verbo na 3.ª pessoa (voceamento) e podem estar omissas, ficando a marca de tratamento reduzida à respectiva desinência verbal. Neste caso, essas formas só serão interpretadas como alocutivas graças aos dados contextuais. E, a propósito, cita Maillard que, ao comparar o Português ao Francês e às línguas orientais, diz encontrar em tal processo de tratamento «un phénomène d’interférence entre Personne et Honorification qui n’est pas très éloigné de ce qui se passe en coréen et en japonais, où la même forme verbale se prête, selon les situations de communication à des usages locutoires différents.»175 Para a linguista portuguesa, esta «evitação» da explicitação duma forma nominal ou pronominal de tratamento «correspond à une sorte de degré zéro de l’expression de respect», tornando-se «une solution de recours quand, par exemple, le locuteur ne sait pas exactement quelle forme d’adresse choisir.»176 Mas pode funcionar também, em nosso entender, como estratégia para não se utilizar tratamentos a que o alocutário ou o delocutado possam ter direito. 175 176 MAILLARD, 1994: 58, cit. por CARREIRA, 1995: 105. Id.: 105. Ao referir a estratégia de «evitação», a autora recorda e cita Hammermüller; ver supra. 329 + FAMILIARIDADE ← – DISTÂNCIA SUJEITO A desinência L verbal O VOCATIVO C U T Á R I O COMPLEMENTO tu Você ± FAMILIARIDADE ± DISTÂNCIA o + (nome pr.) apelido a + (nome pr.) apelido + 3.ª pessoa verbal o / a nome pr. ti o senhor o + título [apelido / [nome pr.] apelido]; profissional ou outro a senhora / Dona a senhora Dona a + título; + nome pr; + nome pr. [apelido]; N.B. As formas nominais de o menino [nome pr.] tratamento combinam-se com a a menina [nome pr.] 3.ª p. Verbal o senhor + título a senhora + título V. Ex.ª Vossa Senhoria Senhor + título! Senhora + título! V. Ex.ª!; Vossa Senhoria s senhor + título! a senhora + título V. Ex.; Vossa Senhoria Ø 3.ª p. sing -s (2.ª p.) (ó) tu! (ó) pá! – FAMILIARIDADE + DISTÂNCIA → você! você (nome pr. +) apelido! nome pr.! si o / a [nome pr. +] apelido [você] Senhor + nome pr. / [nome pr.] apelido! Senhora / Dona + nome pr. menino [nome pr.] menina [nome pr.] si / o senhor [nome pr. / [nome pr.] apelido] si / a senhora [/Dona + nome pr.] si o / a [nome pr. +] apelido [você] título! Senhora Dona + nome pr.[apelido] título! a senhora Dona o + título + nome pr. [apelido]; a + título o menino [nome pr.] a menina [nome pr.] te SUJEITO A L O C U T Á R I O S desinência verbal VOCATIVO vocês o/a se lhe vocês o/a o/a se se lhe lhe vocês / o / a nome pr. / [apelido] / o + apelido /o / a ... ... ... ... o/a se lhe os senhores [+ título] as senhoras [+ título] N.B. É possível acrescentar as formas do singular - 3.ª p. pl. vocês! vocês! vocês! / nome pr. [nome pr. +] apelido (+ verbo 3.ª p. pl.) COMPLEMENTO TÓNICO vocês vocês vocês / vós / o / a / + nome pr. [apelido] / o + nome pr. /o/a COMPL. acusativo ÁTONO dativo vos / os / / as vos/ os / as vos / lhes vos / os / as se vos / lhes vós / os senhores etc. (ver acima) / as senhoras vos / os / as se vos / lhes FIG. 6 - Tratamento alocutivo e grau de «familiaridade» vs. «distância» (singular e plural), segundo CARREIRA, 1995: 101. Vossas Ex.as Vossas Senhorias V. Ex.as! Vossas Senhorias! Vossas Ex.as Vossas Senhorias 330 SUJEITO ou COMPLEM. TÓNICO + FAMILIARIDADE – DISTÂNCIA ← o nome pr. ele (s) ela (s) a nome pr. o [nome pr.] o Sr. + [Nome pr.] apelido a nome pr. a Sr.ª / Dona / Sr.ª Dona + Nome pr. – FAMILIARIDADE + DISTÂNCIA → O Sr. + título Sua Ex.ª A Sr.ª + título Sua Ex.ª -Ø verbo 3.ª p. sing -m verbo 3.ª p. pl. desinência verbal COMPLEM. ÁTONO - acusativo - dativo o(s), a(s) lhe(s) o(s), a(s) lhe(s) FIG. 7 - Tratamento delocutivo e grau de «familiaridade» vs. «distância» (singular e plural), segundo CARREIRA, 1995: 102. SUJEITO L O C U T O R L O C U T O R E S desinência verbal COMPLEMENTO TÓNICO COMPLEMENTO ÁTONO SUJEITO desinência verbal COMPLEMENTO TÓNICO COMPLEMENTO ÁTONO + FAMILIARIDADE – DISTÂNCIA ← paradigma aberto: ex: este teu amigo / esta tua amiga ... ... ... ... ... ... paradigma aberto (v. acima forma sujeito) ... ... ... ... ... ... eu o + função a + função (ex: o / a engenheiro / a) – FAMILIARIDADE + DISTÂNCIA → Nós -o (1.ª pes. sing.) mim o / a + função mos (1.ª pes. pl.) nós me se nos a gente (paradigma nós aberto; ex: estes vossos amigos / estas vossas amigas) -mos (1.ª pes. pl.) nós os / as + função (ex: os / as engenheiros / as responsáveis) se se nos os / as + função FIG. 8 - Tratamento «elocutivo» e grau de «familiaridade» vs. «distância» (singular e plural), segundo CARREIRA, 1995: 102. 331 (1) ALOCUÇÃO (2) DELOCUÇÃO PAI / MÃE → ← FILHO / FILHA nome pr. o pai / a mãe diminutivo(s) o paizinho / a mãezinha tu o papá / mamã o [meu] filho / a [minha] filha + 3.ª pes. do verbo 3.ª pes. do verbo ou [tu], 2.ª pes. sing. vocativo: (Ó) pai ! (Ó) mãe! vocativo: (Ó) filho! / (Ó) filha! etc. nome pr. AVÔ / AVÓ → ← NETO / NETA o avô / a avó nome pr. o avôzinho / a avozinha diminutivo(s) tu o vôvô / a vóvó o meu neto / a minha neta + 3.ª pes. sing. netinho / netinha [ou tu + 2.ª pes. do sing. + 3.ª pes. do verbo vocativo: (Ó) avó! / (Ó) avó! vocativo: (Ó) nome pr. / (Ó) neto! / (Ó) neta! (Ó) vôvô! (Ó) vóvó! TIO / TIA → ← SOBRINHO / SOBRINHA nome pr. o tio / a tia diminutivo(s) + (3.ª pes. do verbo ou 2.ª pes. tu sing.) (o sobrinho / a sobrinha) 3.ª pes. do verbo vocativo: (Ó) nome pr. (Ó sobrinho! / Ó sobrinha!) (Ó) tio! / (Ó) tia! PRIMO / PRIMA → ← PRIMO / PRIMA reciprocidade: nome pr. diminutivo(s) vocativo: (Ó), nome pr.! tu PAI / MÃE → ← FILHO / FILHA o [meu] pai o / a + nome pr. a [minha] mãe diminutivo(s) [ou diminutivos] o meu filho / a minha filha ele / ela ele / ela (3) ELOCUÇÃO PAI / MÃE o pai do / da + nome pr. [apelido] a mãe do / da + nome pr. [apelido] eu FILHO / FILHA o filho de + nome pr. [apelido] a filha de + nome pr. [apelido] eu AVÔ / AVÓ → o / a + nome pr. diminutivo(s) o meu neto / netinho a minha / netinha ele / ela AVÔ / AVÓ o avô do / da + nome pr. [apelido] a avó do / da + nome pr. [apelido] eu NETO / NETA o neto de + nome pr. [apelido] a neta de + nome pr. [apelido] eu TIO / TIA o tio do / da + nome pr. [apelido] a tia do / da + nome pr. [apelido] eu SOBRINHO / SOBRINHA o sobrinho de + nome pr. [apelido] a sobrinha de + nome pr. [apelido] eu + idade não reciprocidade (factor idade): MARIDO → tuteamento nome pr., (voceamento vocativo: Ó mulher! nome pr. diminutivo(s) tu ← MULHER recíproco diminutivo(s) excepcional) (Ó) nome pr. Ó homem! - idade ← NETO / NETA o avô / a avó o avôzinho / a avozinha o vôvô / a vóvó ele / ela TIO / TIA → ← SOBRINHO / SOBRINHA o [meu] tio [+ nome pr.] o / a + nome pr. a [minha] tia [+ nome pr.] diminutivo(s) o meu sobrinho / a minha sobrinha ele / ela ele / ela PRIMO / PRIMA → ← PRIMO / PRIMA o / a nome pr., diminutivo(s) [+ nome pr.] o meu primo [+ nome pr.] a minha prima ele/ ela PRIMO / PRIMA o primo de + nome pr. [apelido] a prima de + nome pr. [apelido] eu a primo / a prima a + nome pr. diminutivo(s) a minha mulher a minha esposa ela MARIDO → ← MULHER o + nome pr. diminutivo(s) o meu marido [o meu esposo (pouco usado)] [o meu homem (popular)] ele MARIDO o marido de + nome pr. [apelido] eu FIG. 9 - Tratamento [(1) alocutivo, (2) delocutivo, (3) elocutivo] e formas de parentesco, segundo CARREIRA, 1995: 104. MULHER a mulher de + nome pr. a esposa de + nome pr. eu Os valores semântico-pragmáticos das formas portuguesas de voceamento disponíveis em língua, seguindo a mesma gradação, são também descritos por Carreira. Todavia, porque tais descrições são, na sua maior parte, idênticas às que foram feitas por outros autores, registamos, apenas, aquelas que nos parecem mais originais e inovadoras.177 O emprego de O / A + NOME PRÓPRIO, com o verbo na 3.ª pessoa, tanto pode ser alocutiva como delocutiva. Apenas o contexto permitirá distinguir se o locutor se refere ao alocutário ou a um terceiro, presente ou ausente. A propósito do carácter delocutivo deste tratamento, Carreira cita a reflexão de Joly sobre o modo como Benveniste e Guillaume encaram a noção de pessoa. Segundo Joly, Benveniste privilegia a função referencial («parler de quelqu’un ou de quelque chose»), não tendo em consideração a função predicativa («en dire quelque chose»). Por isso, a análise de Benveniste, para Joly, é incompleta, uma vez que «rien n’est dit du fonctionnement linguistique de je dans le cadre de l’énoncé».178 Guillaume, por seu turno, considera que «la personne locutive n’est pas seulement la personne qui parle; elle est, de plus, celle qui, parlant, parle d’elle-même. De même, la personne allocutive n’est pas seulement la personne à qui l’on parle; elle est de plus, la personne à qui l’on parle d’elle. Seule la troisième personne est vraiment une, n’étant que la personne de qui l’on parle».179 Joly retoma a análise de Guillaume e completa a de Benveniste, apresentando um modelo em que o plano da enunciação e a função referencial são relacionados com o plano do enunciado e a função predicativa. Resultam, deste modelo, combinações entre a pessoa delocutiva (sempre subjacente ao nível do enunciado e da função predicativa) e as pessoas locutiva ( «eu»), alocutiva («tu») e delocutiva («ele»), situadas ao nível da função referencial da pessoa, isto é, no plano da enunciação. Joly representa, assim, três ordens de pessoas, a saber, segundo refere Carreira : « première: “je” = loc /dél deuxième: “tu” = all / dél 177 Para a descrição semântico-pragmática das formas alocutivas de voceamento, Cf. id.: 106-113. JOLY, 1994: 49, cit. por CARREIRA, 1995: 109. 179 Carreira cita G. Guillaume [Leçons, 1943-44, vol. X, p. 114], via JOLY, 1994 : 48, a quem pertencem também os destaques a itálico na citação. Cf. CARREIRA, 1995: 109. 178 333 troisième: “il” = dél / dél »180 Deste modo, para Joly, na sequência de Guillaume, o papel da terceira pessoa, sempre implícita, está «sous-jacente à toutes les personnes» e, por isso, é «le fondement du système, puisqu’il est toujours parlé de quelqu’un (ou de quelque chose)».181 Analisando, deste ponto de vista, o uso alocutivo das formas delocutivas (uma das características do tratamento português), a linguista portuguesa acrescenta um terceiro nível ao modelo, quanto às formas de voceamento, passando a haver, assim, para a 2.ª pessoa, « dél / dél / allo, puisque l’allocution est implicite, elle aussi.»182 A 3.ª pessoa verbal exprime um afastamento quer em relação ao EU quer em relação ao TU. Adapta-se, além disso, à manifestação duma distância interlocutiva, mais ou menos acentuada, consoante a escolha do tratamento que a acompanhe.183 No caso da escolha de formas nominais de voceamento, o nome próprio é mais familiar do que o apelido, ou do que o nome próprio + apelido. Quando estes tratamentos são acompanhados por o / a senhor /a, ou, no caso de adultos do sexo feminino, por a dona, ou de a senhora dona, o grau de familiaridade diminui, aumentando, correlativamente, o de distância. Idêntica gradação se verifica quanto ao emprego do título profissional (dr./a, eng.º/ª, arq.º/ª, professor/a, etc.), ou título de função (presidente, ministro/a, director/a, etc.), quando acompanhados ou não de o/a senhor/a. O estudo que, segundo uma perspectiva semântico-pragmática, Carreira faz das FT’s portuguesas põe em destaque vários aspectos importantes quanto aos seus valores sociais, quer em termos taxémicos, quer em termos proxémicos, ou melhor, em termos taxémico-proxémicos, ao mesmo tempo. A ordem social e as suas hierarquias, as funções de familiaridade, as diferenças de idade e de sexo são, por ordem decrescente, os factores que, mais directamente, influência têm na escolha dos tratamentos, através dos quais os portugueses se relacionam entre si, com maior ou menor cortesia ou descortesia. 180 JOLY, 1994: 50, cit. por CARREIRA, 1995: 109. JOLY, 1994: 48, cit. por CARREIRA, 1995: 109 e 110. 182 CARREIRA, 1995: 110. A autora exclui deste modelo o tratamento pronominal vós, por exigir a segunda pessoa do verbo. Além disso, o seu uso é restrito a certas regiões do Norte e Centro de Portugal, e ao discurso religioso e político. [Cf. id.: 110, nota 1] 183 Cf. id.: 110. 181 334 Os quadros organizados segundo os pólos +FAMILIARIDADE / -DISTÂNCIA e -FAMILIARIDADE / +DISTÂNCIA, além de constituírem um inventário das FT’s disponíveis em Português, mostram também a quantidade e diversidade de formas e de valores, bem como a sua complexidade, quer ao nível da sua análise, quer ao nível do seu uso, em particular por estrangeiros. Os diferentes factores sociais que influenciam a escolha do(s) tratamento(s) [alocutivo(s), delocutivo(s) e elocutivo(s)] que os interactantes podem fazer nas suas práticas discursivo-textuais, interajam directa ou indirectamente, são os mesmos que levam, ao mesmo tempo, a que as FT’s possam expressar ou criar relações interpessoais de maior ou menor cortesia ou descortesia. Um dos pontos, sem dúvida, mais importantes e originais do estudo de Carreira é aquele em que a linguista, na sequência de propostas conceptuais e metodológicas de Pottier, analisa a escolha das FT’s, relacionando-as com representações esquemáticas do espaço interlocutivo, de que fizemos acima uma apresentação breve.184 Tais propostas podem ser consideradas, em nosso entender, um modelo de análise das FT’s, com aplicação universal, ao nível das relações dinâmicas de distância horizontal e vertical que elas podem estabelecer. Observe-se a figura seguinte (FIG. 10): I Posições simétricas de A e B A/B Posições assimétricas de A e B A II A/B B A A B Ver, supra, cap. V, 1., ou id.: 13-15. B A B 184 A/B B A B III A 335 FIG. 10 – Organização semântica da combinatória dinâmica das posições no espaço interlocutivo, segundo CARREIRA, 1995: 115. Com base naqueles esquemas conceptuais, a linguista elaborou um quadro (FIG. 10, supra) sobre as posições simétricas (três) e assimétricas (seis) dos interlocutores (A e B), no uso das FT’s em Português europeu contemporâneo, no espaço interlocutivo de aproximação (I), de contacto (II) e de afastamento (III).185 As posições dos interlocutores (A e B) são simétricas se a orientação dinâmica evidenciada é do mesmo tipo (por exemplo de aproximação); são assimétricas se não for do mesmo tipo (por exemplo, quando a posição de A segue o movimento de aproximação, enquanto a de B segue o movimento de afastamento). As três posições simétricas, que correspondem à parte superior do quadro anterior, são representadas no quadro seguinte (FIG. 11): I A/B II A/B III A/B FIG. 11 – Posições simétricas no espaço interlocutivo de A e B, segundo CARREIRA, 1995: 116. Na posição II A / B, zona média do trimorfo (de presença ou contacto), onde se dá uma espécie de equilíbrio dos movimentos centrípeto (I) e centrífugo (III), as FT’s imediatamente disponíveis são menos marcadas. O interlocutor que ocupa a posição alta faz escolhas alocutivas e elocutivas que, em princípio, atenuam as diferenças hierárquicas, ou que, pelo menos, não as acentuam. No caso do interlocutor ocupar a posição baixa, espera-se que as suas escolhas não neguem a hierarquização dos respectivos lugares. No limite, estas escolhas poderão levar à neutralização da diferença dos lugares. Se, porém, não há diferenças hierárquicas, sejam elas sociais ou profissionais, familiares ou etárias, as escolhas serão recíprocas. Por seu turno, na delocução, designação de terceiro(s), presente(s) ou ausente(s), ter-se-á em consideração a hierarquização dos lugares (EU – TU – ELE / A) ou a sua reciprocidade. 185 A descrição que a seguir fazemos, dos esquemas de representação das possíveis posições interlocutivas, segue de perto a exposição de Carreira. 336 Na zona I A / B, de aproximação, o interlocutor que ocupa o lugar mais elevado escolhe as FT’s que atenuarão claramente a hierarquia dos lugares. E o interlocutor que ocupa o lugar inferior escolherá tratamentos que manifestem as diferenças hierárquicas. Nesta situação as escolhas são recíprocas, «lorsque les places hiérarchiques sont semblables et les formes d’adresse de base sont accompagnées d’expressions affectives, telles que les diminutifs.»186 Quanto à designação delocutiva, os interlocutores seguem as mesmas tendências, quanto ao grau de manifestação verbal das diferenças hierárquicas. Na zona III A / B, de afastamento, a tendência para o emprego das FT’s é a inversa à esboçada em II A / B. As diferenças hierárquicas manifestar-se-ão claramente, mas, no caso delas não existirem, é provável que se recorra a usos metafóricos. As manifestações de afectividade, nesta zona, serão de carácter negativo, com recurso, por exemplo, ao uso irónico de diminutivos. As seis posições assimétricas, são as seguintes (FIG. 12): I 1. A B 2. II B A A B 3. B A III B A A B FIG: 12 – Posições assimétricas no espaço interlocutivo de A e B, segundo CARREIRA, 1995: 118. As seis posições de cada um dos interlocutores (A e B), representadas na figura anterior, correspondem às três posições assimétricas de base, numeradas de 1 a 3. Na posição assimétrica 1, um interlocutor (B ou A) situa-se relativamente ao movimento II do trimorfo (presença / contacto), numa zona de equilíbrio interlocutivo, caracterizada pela adequação. O outro interlocutor (A ou B), por seu turno, situa-se relativamente ao movimento I (de aproximação), isto é, procura atenuar a distância interlocutiva resultante de diferenças hierárquicas (sociais, profissionais, familiares ou etárias) ou/e de regulação 186 Id.: 117. 337 do grau de familiaridade ou proximidade (eixo horizontal). Na posição assimétrica 2, um interlocutor (A ou B) situa-se em relação ao movimento II e o outro interlocutor (B ou A) em relação ao movimento III (de afastamento). Este último cria, assim, um distanciamento interlocutivo, reforçando as diferenças hierárquicas ou/e representa (finge) uma regula- ção do grau de familiaridade que o interlocutor sente como inadequado. Na posição assimétrica 3, por fim, um interlocutor (B ou A) situa-se relativamente a I e o outro (A ou B) relativamente a III. Carreira indica, de seguida, quais as FT’s imediatamente disponíveis em língua para a realização de cada uma destas três possíveis posições. Na combinatória 1, constituída pelos movimentos de aproximação (I) e de presença/contacto (II), o interlocutor, que ocupe o lugar mais alto e se situe relativamente ao movimento de aproximação (I), escolherá tratamentos de atenuação das diferenças hierárquicas existentes. Por exemplo, usará uma forma verbal de 3.ª pessoa simples. Mas se ocupa um lugar inferior, escolherá FT’s que dêem conta da hierarquização dos lugares. Por exemplo, usará uma forma nominal que refira o nível profissional do interlocutor, v.g. o senhor engenheiro. O interlocutor que se situa na zona II, tenderá sobretudo a aceitar as escolhas do outro, ou a atenuá-las, caso elas manifestem uma inferioridade hierárquica. A escolha, por exemplo, duma forma de respeito, como o senhor, seguida duma forma verbal na 3.ª pessoa, atenua a inferioridade hierárquica do interlocutor. Na combinatória 2 – com os movimentos II e III – as escolhas a a fazer serão inversas às anteriores. O interlocutor que se situe no movimento de afastamento (III), optará por FT’s que acentuem a separação entre ele e o interlocutor, se houver diferenças hierárquicas. Neste caso, se o locutor ocupa um lugar alto, escolherá uma FT que sublinhe o lugar de inferioridade do seu interlocutor. Por exemplo, usando a forma a senhora Maria, quando a adequada seria a dona Maria. Mas se o locutor ocupa um lugar baixo, recorrerá a uma forma que minimize o lugar alto do interlocutor. Por exemplo, em vez de o tratar por o senhor doutor Jacinto, tratá-lo-á apenas por o senhor Jacinto. No caso de ambos os interlocutores ocuparem lugares do mesmo nível, o locutor escolherá FT’s que criem distância. Por exemplo, utilizará o nome próprio, quando o tratamento habitualmente utilizado é o diminutivo. A propósito, observa Carreira que os diminutivos e outras expressões afectivas, no seu valor ortónimo, não são utilizados, nesta situação. Acontece, pelo contrário, que o recurso a formas que se afastam desse valor, como o emprego, por exemplo, duma metáfora irónica, se adapta perfeitamente ao movimento de afastamento. O locutor que se situa no movimento II (de presença/contacto) fará escolhas 338 que irão no sentido duma atenuação das formas marcadas pela distância realizadas pelo interlocutor. Em vez de escolher uma forma de evitação de 3.ª pessoa verbal simples, usará um tratamento de respeito, que considere adequado. Por exemplo, utilizar a senhora dona Maria, ou um diminutivo afectivo, em vez do nome próprio. Por último, os tratamentos na combinatória 3, aquela que une dois movimentos opostos, a aproximação (I) e o afastamento (III). Trata-se da combinatória que corresponde às escolhas mais diversas das FT’s, sobre o eixo da distância. Ao movimento de afastamento estão ligadas as formas que acentuam claramente a separação. O que distingue as escolhas deste movimento relativamente à combinatória anterior é o grau de intensidade das marcas hierárquicas ou de distanciamento (nomeadamente afectivo), se os interlocutores ocupam lugares semelhantes. Essa intensidade é mais forte no movimento de afastamento da combinatória 3, do que no movimento de afastamento da combinatória 2. As escolhas do locutor que se situa em relação ao movimento I seguirão a tendência inversa às do interlocutor: as FT’s escolhidas atenuarão fortemente as diferenças hierárquicas e acentuarão a proximidade. Os diminutivos e expressões afectivas, no caso de haver familiaridade, reforçam as escolhas dos tratamentos que tendem a atenuar, até mesmo a contrabalançar, escolhas ligadas ao movimento de afastamento. Em todas estas combinatórias, as tendências dizem respeito tanto à alocução, como à delocução e à elocução. Trata-se de tendências de base, subjacentes às escolhas dos tratamentos, em relação quer às posições simétricas e assimétricas, quer ao trimorfo, como na figura seguinte (FIG. 13, página seguinte) se representa, com tradução para Português. Esse quadro permite visualizar a hierarquização (+ / - ) ou a reciprocidade ( = ) dos lugares, conforme as tendências gerais que caracterizam as escolhas das FT’s, sempre situadas em relação às três zonas do trimorfo. A proposta respeita apenas às FT’s próximas da ortonímia, «en rapport avec des positions interlocutives saillantes.»187 Trata-se, portanto, de formas muito diversas, para as quais foram indicadas «les tendances de base sous-jacentes à leur choix, par rapport à des possibles conceptuels liés à l’espace interlocutif».188 Mas se, ao nível conceptual e de língua, é possível relacionar as FT’s com os seus potenciais interlocutores, e assim saber, até certo ponto, qual a forma teoricamente mais adequada a uma certa regulação, 187 «Le caractère “saillant” d’une forme est à mettre en relation avec la “latence” et la “prégnance”. En effet, comme le souligne B. Pottier, il convient de tenir compte du caractère dynamique de la perception qui, parmi un certain nombre de formes latentes isole un certain nombre de formes saillantes. Si ces formes prennent un intérêt particulier, elles deviennent prégnantes. Il s’agit, par conséquent, de différents “dégrés de perception”. B. Pottier les présente selon un continuum». [Id.: 98] 188 Id.: 124. 339 «c’est au niveau des discours produits en interlocution que les formes d’adresse prennent des significations particulières, plus au moins proches ou éloignées de leur noyau sémantique.»189 189 Id., ibid. 340 I Posições não recíprocas + (em relação ao - + atenuação das diferenças hierárquicas + atenuação das diferenças hierárquicas - manifestação das diferenças hierárquicas - manifestação (ou leve atenuação) das dife- - acentuação ou pelo contrário não respeito das renças hierárquicas diferenças hierárquicas = reforço da familiaridade não recíprocas assimétricas + (em relação ao - + das tendências _ b) Formas de tratamento recíprocas: = = manutenção do contacto Reforço a) Formas de tratamento trimorfo) + atenuação das diferenças hierárquicas b) Formas de tratamento recíprocas: = Posições III a) Formas de tratamento simétricas «trimorphe») II = = distanciamento Reforço + das tendências Reforço + das tendências _ _ Ver acima Ver acima Ver acima (posições simétricas) (posições simétricas) (posições simétricas) = = FIG. 13 - Tendências básicas, subjacentes às escolhas das FT’s, relativamente aos possíveis conceptuais, segundo CARREIRA, 1995: 1 Capítulo XI PRINCIPAIS FORMAS DE TRATAMENTO EM PORTUGUÊS EUROPEU Uma história de cortesias As FT’s que os portugueses actuais mais utilizam não são criação sua, apesar da maior ou menor originalidade de realização que lhe possam emprestar e das formas novas que possam criar. Os tratamentos fazem parte dum sistema linguístico e sociocultural português, cujas primeiras manifestações encontram-se documentadas em fontes escritas medievais (séculos XIV e XV).1 É muito provável, por isso, que já circulassem oralmente em tempos anteriores. A partir de então, essas FT’s não deixaram de sofrer alterações de natureza diferente ao longo dos tempos, de forma mais ou menos lenta. Desde logo, quanto às pessoas a quem eram dirigidas, com maior ou menor exclusividade, como se de um direito social inalienável se tratasse. Nem todas as pessoas podiam ser tratadas pelas mesmas fórmulas ou formas. O nível de poder político, religioso, económico e social conferia aos seus detentores diferentes estatutos e determinava formas mais ou menos institucionalizadas de tratamento (fórmulas) que deviam ser respeitadas. A uma sociedade altamente hierarquizada correspondia um sistema de FT’s igualmente hierarquizado. Às alterações sofridas pela sociedade pensava-se e defendia-se que deveriam corresponder alterações nos direitos a usar e a receber determinados tratamentos, ou, dito de outro modo, as alterações verificadas no sistema das FT’s eram reflexo também das alterações verificadas, em curso ou desejadas pela sociedade.2 Como observa Delphine Perret: «Les hommes, par l’usage de termes d’adresse institutionnalisés, tendent à se constituer eux-mêmes en système. Chaque homme se veut comme un terme distinct et lié aux 1 Ver CINTRA, 19862: 16 e ss. Para a origem e usos das «fórmulas de tratamento» no Português antigo, ver LUZ, 1956, 1957 e 1958-59. 2 É em períodos de revolução política e social que, consoante a orientação ideológica dominante, se busca uma igualitarização ou uma hierarquização dos tratamentos. Sobre esta problemática, ao nível político parlamentar, cf. MARQUES, 1988. A título de exemplo, como reflexo social e crítico dos «abusos» dos tratamentos em Portugal, após o 25 de Abril de 1974, cf. CARDOSO, 1995, ou 1986: 65-67. 342 autres termes par le type de relation qu’il entretient avec eux. X est “Pierre” pou A, “monsieur” pour B, “papa” pour C, “oncle Pierre” pour D, “monsieur le directeur” pour E, etc. C’est ainsi qu’il définit socialement et il semble y tenir. […] L’homme veut être appelé adéquatement à ce qu’il pense être pour l’autre. Le terme d’adresse affirme alors cette relation.»3 Intimamente ligadas com as relações sociais, de que são uma das suas manifestações mais evidentes, as FT’s sofreram também alterações linguísticas, ao longo dos tempos, a nível morfológico, morfossintáctico, semântico e pragmático. Tais alterações levaram à formação de novas FT’s e à recategorização linguística de outras, bem como ao aparecimento de novas regras de coocorrência. Paralelamente, à medida que a sociedade se foi tornando menos hierarquizada, pela ascensão de cidadãos aos bens económicos e culturais, por um lado, e a uma maior participação na vida social e política, por outro, o sistema de tratamento português foi reduzindo o seu número de formas, ao mesmo tempo que outras, ainda em uso, iam e vão perdendo alguns dos seus valores semânticos e pragmáticos tradicionais. Algumas das FT’s nominais e pronominais caíram em desuso ou ocorrem com reduzida frequência, limitadas a contextos particulares e/ou a certos estratos sociais e/ou regiões. Outras, pelo contrário, recuperam usos, antes menos recomendados por descorteses, a par de outras que passaram a ocorrer com maior frequência. São os casos de vós, vossa senhoria e vossa excelência, quanto ao primeiro aspecto, e de você e senhor, quanto ao segundo. Na história do sistema de tratamento em Português de Portugal encontram-se, segundo Lindley Cintra,4 três grandes períodos. O primeiro, situado entre finais do séc. XIII e as primeiras décadas do séc. XV, é o tempo das FT’s pronominais tu e vós, a primeira usada entre íntimos e próximos, a segunda entre pessoas cuja relação não consentia o uso de tu, fosse ela o rei ou o arcebispo, o rústico ou o vilão. Entre o séc. XV e finais do séc. XVIII, embora se mantenha o emprego de tu e vós, como no período anterior, dá-se o aparecimento e a expansão, por um lado, de algumas FT’s nominais de elevada cortesia (vossa mercê, vossa senhoria, vossa excelência, vossa alteza, vossa majestade, vossa excelência, vossa reverência, etc.) e, por outro, a degradação e abandono de 3 4 PERRET, 1968: 9. Cf. CINTRA, 19862:16-33 e 106-108. 343 algumas delas, a par de tentativas régias de regulamentação do seu uso, nos reinados de Filipe II e João V, através das pragmáticas de 1597 e 1739, respectivamente.5 A partir da segunda metade do séc. XVIII, dá-se a invasão de novas formas nominais corteses, com expansão nos dois séculos seguintes. Os tratamentos de vossa excelência e vossa senhoria mantêm-se, mas a FT vós, como tratamento cortês de 2.ª pessoa, dirigido apenas a um alocutário, desaparece. Ao mesmo tempo, aumenta a degradação de vossa mercê, com a correspondente expansão de você e outras formas igualmente contraídas. Ficava assim aberto o caminho, refere Cintra, ao uso de «outras formas substantivas que levam o verbo para a 3.ª pessoa – desde o senhor a o senhor Dr., a o pai, o meu pai, o meu amigo, o patrão, o António, a Maria, a D. Maria, a Sr.ª D. Maria, a Sr.ª Dr.ª D. Maria, etc. »6 Cada uma das FT’s tem, porém, a sua própria história. Não cabe fazê-la, como é evidente, aqui e agora. Julgamos, todavia, importante apresentar a evolução que, a vários níveis, sofreram algumas delas, nomeadamente tu e vós, você, senhor, vossa excelência e vossa senhoria. A propósito de cada uma destas FT’s, faremos referência a outras que tenham estado na sua origem ou evolução, ou que com elas tenham estreita relação. 1. Tu e vós Tu é FT que andou sempre associada a relações de proximidade e/ou intimidade. Na Idade Média, era mesmo tratamento dirigido ao rei, «em textos literários, com valor estilístico.»7 Actualmente, tende a ser empregue não só entre íntimos e próximos, mas também entre desconhecidos (jovens) e mesmo de filhos para pais. O tuteamento tende, assim, «a ultrapassar os limites da intimidade propriamente dita, em consonância com uma intenção igualitária ou, simplesmente, aproximativa.»8 O uso de formas T, de filhos para pais (que pessoalmente também já verificámos ocorrer de alunos para professores), mostra, em nosso entender, que a cortesia também se encontra em T. A história da FT vós foi, no início, comum à de tu, por ser entendida como o seu plural (que de facto não é). Começou por ser usada também como forma de relação 5 Cf. id.: 109-111 e 112-115, respectivamente, para as leis filipina e joanina. Id.: 33. 7 LUZ, 1956: 49 e 107. 8 CUNHA & CINTRA, 1984: 293. 6 344 entre aqueles que não se tuteavam, passando depois a forma de cortesia ou cerimónia9 dirigida ao rei, antes deste ser tratado por vossa mercê. Já no latim vos tinha emprego de distinção e com esse valor transitou para o tratamento régio em Portugal e assim se manteve, durante toda a Idade Média, segundo anota Marilina Luz. Acrescenta esta autora que, no século XVI, «ainda podia falar-se ao rei por vós», mesmo que o pronome não viesse «obrigatòriamente expresso», bastando para isso a forma verbal, o que «prova a simplicidade do primitivo tratamento real.»10 Não era, porém, só ao rei e à rainha que os portugueses se dirigiam antigamente por vós. Observa Cintra que, mesmo no século XV, segundo se depreende das crónicas de Fernão Lopes, era o tratamento de cortesia mais utilizado: «Normalmente, o rei, a rainha, o condestável, os nobres tratam os seus vassalos por vós e é este mesmo tratamento que esses vassalos empregam quando se lhes dirigem. Também é este o tratamento que tanto nobres como eclesiásticos como plebeus empregam quando falam uns com os outros.»11 O tratamento por vós, dirigido a um só indivíduo, masculino ou feminino, como manifestação de cortesia, manteve-se ao longo dos séculos, pelo menos até meados do XVIII. Baseado em textos dramáticos («muito claros a este respeito»12), Cintra situa, na passagem do reinado de D. João V para o de D. José, a queda em desuso desta FT. No caso, porém, de continuar em uso, era «traço arcaizante e um tanto ridículo da fala de pessoas velhas ou provincianas».13 Aliás Bluteau, em 1721, estranhava que os cristãos 9 Cunha & Cintra chamam «de cerimónia» ao pronome vós, «com referência a uma só pessoa». [Id.: 287] Lapa também chama ao pronome vós, nestes casos, «tratamento de cerimónia». [LAPA, 19758: 153] 10 LUZ, 1956: 357 (107). Para os valores de vos, no latim, como «pronome de cortesia», ver id.: 276 (26). Lapa refere também o modo modesto e humilde dos nossos primeiros reis. «Quando os soberanos tinham o bom costume de ouvir os povos, convocando cortes, especialmente durante o período que vai de D. João I até D. Afonso V, usavam nos documentos um estilo de modéstia: Nós, el-rei, fazemos saber... A fórmula quadrava bem com o espírito mais ou menos democrático das instituições medievais; o rei era uma espécie de emanação da vontade geral, era, por assim dizer, o que o povo queria que fosse. De aí se compreende a austeridade do tratamento que a si próprio se dava, que não excluía aliás uma certa grandeza. Com D. João III aparece o absolutismo real. O monarca não dá satisfação dos seus actos, porque supõe-se enviado de Deus na terra. Tudo lhe deve obediência. Esta nova concepção do orgulho da realeza já não podia suportar a fórmula antiga do nós. A provisão de 16 de junho de 1524 mandou mudar a 1.ª pessoa do plural para a 1.ª do singular. Passou a escrever-se – Eu, el-rei, faço saber... Diz o cronista, percebendo perfeitamente a razão estilística, que assim se fez “por ser mais próprio e decente à majestade real”.» [LAPA, 19758: 152] Sobre a introdução e os valores do «nós de majestade», pelos imperadores romanos, consequência do tratamento por Vos recebido, cf. LUZ, 1956: 1276-278 (26-28). 11 CINTRA, 19862: 17. 12 São referidas as obras de António José da Silva, Manuel de Figueiredo e Correia Garção. [Cf. id.: 30] 13 Id.: 29-30. 345 tratassem a Cristo por vós, quando tal tratamento, «de hum homem a outro homem, pareça injúria». E acrescenta: «Em Hespanha, e particularmente em Portugal, sem grande familiaridade, ou dependência, ninguém leva hum Vós com paciência.»14 Cintra explica que a extrema degradação do vós, como pronome próprio da 2.ª pessoa do singular do discurso, se ficou a dever à rápida ampliação do emprego de vossa mercê, vossa senhoria e vossa excelência. Este fenómeno social e linguístico ficou-se a dever ao «número progressivamente maior de pessoas a quem se tornou possível aplicar estes tratamentos de cortesia», ficando o emprego do vós reduzido a pessoas que não mereciam aqueles. E o autor conclui: «Vós e a 2.ª pessoa do plural dos verbos acabaram por ser uma maneira demasiadamente rude, rasteira, baixa, de se dirigir até mesmo a um amigo com quem não existia a intimidade que permitisse o emprego de tu. Por outro lado, para o lugar que o vós deixou vago no sistema apresentou-se a partir de certo momento, como candidato possível, o você, decaído do seu valor inicial, mas não tanto que não pudesse assumir gradualmente estas funções.»15 Apesar da anunciada «morte» desta FT, a verdade é que ela, como tratamento individual, continuou no séc. XVIII e seguintes, pelos menos em alguns meios rurais.16 Luz, baseada em estudo de Dorinda Agualusa, anota que o emprego deste vós era ainda usado, em oitocentos, «em casos de exaltação de ânimo, de afectação e na linguagem cuidada, “falando com meia cortesia”, o que prova o seu relativo vigor.» Mas acrescenta que esta FT arrasta hoje «a sua existência cansada, no tratamento popular de algumas regiões do Norte, assim como “nas preces, no estilo oratório, na poesia, na linguagem de ficção quando a pluralidade não se refere a seres humanos e no estilo oficial”.»17 14 BLUTEAU, Raphael, 1721: Vocabulário Portuguez e Latino ... VIII. Coimbra, s. v. vossê, cit. por CINTRA, 19862: 30. Em Espanha, porém, parece que a desgraça do tratamento por Vós começou mais cedo. Segundo refere Cárceles, citada por Luz, já nos princípios do séc. XVI «vosear a una persona implicaba, cuando no un insulto, una intima familiaridad, o superior categoría social por parte del que hablaba». [Revista de Filología Española, vol. X, 1923, p. 245, cit. por LUZ, 1956: 279 (29) e nota 50] 15 CINTRA, 19862: 30-31. 16 Recorde-se que Cintra limita o seu «campo de observação [...] à linguagem das camadas cultas (ou semicultas) das grandes cidades de Portugal». [Id.: 11] 17 LUZ, 1956: 279 (29). O estudo de Agualusa, intitulado Fórmulas de tratamento em português no século XIX, é, segundo informa a autora na bibliografia, dissertação de licenciatura, dactilografada, inédita e apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em 1947. A autora cita ALI, M. S., 19312: Gramática histórica da língua portuguesa, S. Paulo, Cayeirasm, Rio; p. 94. 346 Em 1931 já se tinha perdido «o hábito do tratamento de vós, tam galante», anota Cláudio Basto, registando também que quase só o povo o empregava, em alguns pontos do norte do país e nos Açores, «não falando das rezas, bem que muitas vezes o povo se dirija a Santos, tratando-os por tu.»18 Lapa chama-lhe «pronome perdido», quer como FT individual, quer como FT colectiva. Anota: «Antigamente vós também se empregava como tratamento de cerimónia, substituindo a 2.ª pessoa do singular. Um poeta dirigia-se a uma dama e desfechava-lhe este galanteio: Vós sois meu bem e meu mal. Hoje este modo de dizer está abolido. Os poetas preferem tratar mais democraticamente as suas inspiradoras por tu, encurtando a distância entre um e outro.»19 Quando, porém, «o namoro estava pegado», os namorados abandonavam o tu e passavam a tratar-se por vós, não fossem as más línguas dizer que havia entre eles «familiaridades comprometedoras». Como forma de segunda pessoal do plural, designando mais que um indivíduo, vós já não existe «na linguagem de todos os dias».20 O seu uso no sul é considerado arcaísmo, sendo, por isso, geralmente substituído por vocês. Cunha & Cintra também registam o desaparecimento, «praticamente», do pronome vós, da linguagem corrente do Brasil e de Portugal. Acrescentam, todavia, que «em discursos enfáticos alguns oradores ainda se servem da 2.ª pessoa do plural para se dirigirem cerimoniosamente a um auditório qualificado.» Observam, por outro lado, que «com referência a uma só pessoa, normal como tratamento em português antigo e clássico», vós «emprega-se ainda, uma vez por outra, em linguagem literária de tom arcaizante para expressar distância, apreço social».21 O uso desta FT, como pronome recto ou oblíquo, como expressão de alta cortesia, isto é, como forma majestática de tratamento e designação de um só indivíduo, parece ter chegado definitivamente ao fim. E quanto ao seu emprego, como tratamento e 18 BASTO, 1931: 193-194. Para um estudo das FT’s tu e vós, «como formas de tratamento de Deus em orações e na poesia em língua portuguesa», ver CINTRA, 19862: 63-102. 19 LAPA, 19758: 153. 20 Cf. id.: 153 e 154. Por experiência pessoal, podemos afirmar que, ainda hoje, no distrito de Viana do Castelo, há muita gente, rural como urbana, mais ou menos escolarizada, que continua a utilizar vós como FT de segunda pessoa do plural, para se referir a vários indivíduos, a quem individualmente se trate por tu ou por você. 21 CUNHA & CINTRA, 1984: 287. 347 designação de vários, parece ter também os dias contados. Fonseca (F.), ao analisar a «substituição» do imperativo pelo conjuntivo, na expressão da ordem, observa: «En portugais […] la troisième personne est devenue la forme d’interpellation la plus courante: au singulier dans le vouvoiemnet (le «você» tout à fait généralisé au Brésil et coexistant avec le “tu» au Portugal) et, au pluriel, comme forme presque unique (la deuxième personne ne survit que dans quelques variétés régionales, dans l’oratoire – surtout religieuse – et dans certaines formes du langage soutenu, senties comme “démodées”).»22 Ocorrências com vós, ou apenas pela correspondente forma verbal, tendem a ser consideradas agramaticais, ou, pelo menos, pouco aceitáveis, mesmo quando o enunciador trata, individualmente, cada um dos destinatários por tu. Assim, por exemplo, quando, numa conversa a dois, pais e filhos se tuteiam mutuamente, os mesmos passam a formas de voceamento, isto é, de terceira pessoa, quando se dirigem a mais que um dos membros da família.23 Quando usada, hoje, como 2.ª pessoa do plural, vós expressará pouca ou reduzida cortesia, dado, por um lado, a sua condição de pronome e, por outro, o facto de indicar proximidade ou superioridade do locutor para com os alocutários. A nosso ver, tratar por vós um auditório, mesmo que se tuteie, individualmente, cada um dos elementos, é diluir no plural a individualidade e a identidade de cada um, é tratar como iguais quem é diferente, mesmo quando integrados num mesmo contexto de comunicação. E a cortesia tem muito a ver, ainda hoje, com o respeito pelas diferenças, mesmo entre indivíduos aparentemente iguais, ou que como tal se consideram ou são considerados. Cortesia e respeito são uma mesma via com trânsito nos dois sentidos, mas onde há sempre alguém com direito reconhecido de prioridade, para que não haja lugar para descortesias. 2. Você 22 FONSECA (F.), 1994: 29. A propósito da distinção entre as expressões «vou sair com vocês» e «vou sair convosco», José Pedro Machado observa que não se trata de expressões sinónimas e acrescenta, em jeito de explicação: «A segunda utiliza-se com quem se faz certa cerimónia no trato, ao passo que a primeira costuma ser utilizada quando há intimidade com os interlocutores, geralmente pessoas que tratamos por tu.» Verbete sobre «Língua portuguesa», Diário de Notícias, 01-08-99. Lapa escreve que «a forma da 2.ª pessoa do plural não se usa em estilo corrente e tem carácter antiquado», acrescentando que no estilo familiar, «substitui-se pela 3.ª pessoa: - Não venham tarde! – Não sejam impacientes!» [LAPA, 19758: 210] 23 348 Compreender a formação e evolução de você, a nível morfossintáctico e semântico-pragmático, leva-nos, inevitavelmente, à descrição de vossa mercê. Vossa mercê foi o primeiro tratamento nominal dirigido ao rei, depois de vós, antes de ser tratado por vossa alteza e depois por vossa senhoria, com usos prováveis a partir de meados do séc. XV.24 A primeira ocorrência escrita de vossa mercê encontra-se nas cortes de 1331. Deixa, porém, de ser utilizada para o rei, a partir de 1490, passando para duques e infantes, para, nos inícios do século XVI, ser dirigida também a patrões burgueses.25 Era tratamento nominal, pois caracterizava uma qualidade do soberano, a mercê, isto é, a generosidade, mas também «o arbítrio do poder real».26 Importada do Castelhano, depressa se tornou tratamento a conquistar por cada vez maior número de pessoas, de tal modo que, na lei de 1597, Filipe II já não regula o seu emprego. Observa Cintra que vossa mercê teria já, nesta altura, «um campo de utilização mais vasto, situado em todo o caso a um nível superior ao do simples vós».27 A vulgarização de vossa mercê, tratamento que «já nos fins do século XV era corrente para fidalgos e mesmo para gente não tão altamente colocada», passou a preocupar muitos que continuavam a ser por ela tratados, e sobretudo pelas suas «formas fonéticas decadentes vossancê ou você».28 Veja-se, como exemplo, a reacção de D. Urraca, filha de fidalgos, quando um criado se atrevera a tratá-la por vossa mercê: «Mercê? A mim, Mercê? Mercê? Maroto / Atrevido, insolente! Vai-te embora! / Tu não sabes falar? Dize a teu amo / que te mande ensinar: logo pareces / criado de vilão ...»29 24 Cf. CINTRA, 19862: 17, 18 e 21. Cf. também LUZ, 1956: 300 (50), que informa: «Nos primeiros tempos da nossa monarquia, o rei mal se distinguia dos outros nobres. Nem o poder real era suficientemente forte para afastar de si as outras classes, nem as condições de vida medievais lhe permitiam sustentar um tal fausto que tornasse quase obrigatórias fórmulas de tratamento profundamente reverenciosas e mais ou menos complicadas. / Os riscos da guerra contra o inimigo comum e a familiaridade que a vida militar daquele tempo pressupunha, ainda mais irmanavam o rei com os seus vassalos. [...] / No século XIII, [o rei] distancia-se das outras classes, deixando de ser um simples “primus inter pares”, mas é só no século XV que o rei consegue aniquilar qualquer espécie de autoridade oposta à sua e apresentar-se [...] grandioso, magnânimo, esforçando-se por rodear de sumptuosidade a sua pessoa, a sua mulher, os seus filhos, os seus acostados, a sua habitação.» [Id.: 274-275 (24-25)] 25 Cf. CINTRA, 19862: 21. 26 LUZ, 1956: 359 (109). A propósito, a autora esclarece que se usava, na Idade Média, «a palavra mercê para formular pedidos e agradecê-los, assim como noutras ocasiões em que era preciso mostrar delicadeza (cumprimentos, saudações, fórmulas de despedida): encomendo-me em vossa mercê, vou-me com vossa mercê, beijo as mãos de vossa mercê.» [Id.: 359 (109)] 27 CINTRA, 19862: 23. 28 Id.: 26 e 27. Basto regista ainda as variantes «vossemecê, voss’mecê, vomecê, vom’cê, võcê (voncê)», além de outras, ainda nos anos 20-30 do séc. passado. [BASTO, 1931: 191] 29 A citação é de Assembleia ou Partida (1770) de Correia Garção. GARÇÃO, Correia, Obras Completas. Texto fixado, prefácio e notas por António José Saraiva, II, Prosas e Teatro, Lisboa [1958], pp. 52-53, citado por CINTRA, 19862: 29 e 37, nota16. 349 Na segunda metade do século XVIII, o tratamento de vossa mercê parece ocorrer dirigido sobretudo a indivíduos de estatuto social menos elevado, ainda que gozando de algum prestígio. Frei Luiz do Monte Carmelo,30 ao tratar as FT’s, no seu Compendio de Orthografia,31 publicado em 1767, refere-se, indirectamente, a vossa mercê, ao advertir que «nunca se-diga juntamente Senhor, e Seu; ou Senhora, e Sua», em formas como «O Senhor seu pae, o Senhor seu irmâm, a Senhora sua filha, a Senhora sua Esposa, &c.», porque não é assim que se diz na corte nem é moda. De tais incorrecções é exemplo a seguinte fala dum rústico, dirigindo-se «ao Magnate da sua Aldêa»: «O Senhor seu porco entrou hoje na minha horta, e comeu até dizer: Nam quero mais. Eu estimei isto por ser coisa de V. Mercê.»32 Por outro lado, Carmelo observa que também nunca se deveria dizer «Senhor irmâm, &c. de V. Mercê, de V. Senhoria, de V. Excellencia»,33 o que prova, em nosso entender, que o tratamento de vossa mercê figurava ainda a par dos tratamentos mais elevados de vossa senhoria e de vossa excelência. Observa Menéndez, a propósito da «anedota» do rústico, que com ela Carmelo está «a criticar a divulgação do tratamento de “senhoria” fora da alta nobreza e casa Real.»34 Concordando com esta observação, gostaríamos de acrescentar que o uso de vossa mercê, pelo rústico, ao dirigir-se ao Magnate da Aldeia, mostra também o desgaste que, a nível semântico-pragmático, esta fórmula tinha já sofrido. Além disso, encontramos nela também uma crítica ao emprego dos possessivos seu e sua nos tratamentos, processo já ridicularizado também por Rodrigues Lobo, na Corte da Aldeia.35 Vossa mercê chegou mesmo a ser considerado tratamento insultuoso, nos séculos seguintes. Num curioso livro intitulado Codigo do Bom Tom [...],36 publicado em 30 Frei Luís do Monte Carmelo (1715-1785) era natural de Viana do Castelo. Foi um dos principais filólogos que, na segunda metade do séc. XVIII, se preocupavam com a pureza e a correcção da Língua Portuguesa. Sobre a vida e a importância, a nível linguístico, da sua obra, cf. MENÉNDEZ, 1997: 89-96, 159-175, 235-241, 311-319 e passim. 31 O título da obra, conforme uso na época, é muito mais extenso. Menéndez regista o seguinte: «Compendio de Orthografia, com sufficientes catalogos, e novas Regras, paraque em todas as provincias, e Dominios de Portugal, possam os curiosos comprehender facilmente a Orthologia, e Prosodia, isto he, a recta pronunciaçam, e Accentos proprios, da Lingua Portugueza (...). Lisboa: Na Officina de Antonio Rodriguez Galhardo.» [MENÉNDEZ, 1997: 390] As reticências entre parênteses curvos são da responsabilidade de Menéndez, sinal de que o título do Compendio é ainda mais extenso. 32 Citado por MENÉNDEZ, 1997: 163. Por considerarmos que as observações dizem respeito sobretudo ao uso de senhor / a, apresentaremos a transcrição completa do excerto ao abordarmos estes tratamentos. 33 Citado por MENÉNDEZ, 1997: 163. 34 Id.: 164. 35 Sobre o uso impróprio de seu / sua, ver, infra, 3.4. 36 Para título completo, ver Bibliografia. Veja-se, infra, também a passagem onde o deputado Calisto Elói, n’A Queda dum Anjo, de Camilo, refere o facto dum «tendeiro» que, em Lisboa, vendia «figos de comadre», se ter sentido ofendido com o tratamento de «vossemecê» que lhe dirigira. [Camilo Castelo Branco, 197011: A Queda dum Anjo. Lisboa: Parceria A. M. Pereira; p. 63] 350 1845, com segunda edição, «Consideravelmente augmentada e corrigida», em 1859 (a que consultámos), o autor ensina aos filhos que «numa sala de pessoas bem criadas o Vossa Mercê não tem entrada».37 Nos finais do séc. XIX, você teria passado já a tratamento pronominal e seria adoptado, «embora não definitivamente», como «forma a utilizar entre iguais».38 Recorde-se, ainda, a reacção-comentário de «você é estrebaria» a quem tal fórmula utilizava: «“Você” é estrebaria; / Nela come e nela se cria / Com dez réis de palha por dia.»39 Nos anos trinta do século XX, porém, segundo refere Basto, «é moda, é do bom tom, é chic, o tratamento de você.»40 Muito recentemente, José Pedro Machado, esclarecia o uso «de estrebaria», associado a você: «Lembro-me bem de tal comentário [«é de estrebaria»], na verdade agora em decadência, ou mesmo já caído em desuso. Era manifestação de repugnância dita por alguém a quem desagradara ser tratado por você, sobretudo quando o alvejado se julgava atingido por pessoa que considerava sua inferior sob qualquer ponto de vista.»41 Acrescenta, todavia, que «o mesmo tratamento era tolerado entre aqueles que, conhecendo-se, não faziam cerimónia entre si sem conseguir a amizade, sendo também há décadas frequente no relacionamento de raparigas com rapazes.» Além disso, era ainda frequente «entre dirigentes e dirigidos, sobretudo em situações difíceis, por vezes mesmo substituindo o tu: - então você não está a ver o que fez?» E conclui: «Não era, portanto, vocábulo em bom conceito, antes julgado forma de gente ordinária, de quem, por exemplo, lidava com cavalos, gente de cocheiras, de estrebarias.»42 Cunha & Cintra sintetizam o uso actual da FT você, no que toca ao Português de Portugal, como segue: 37 ROQUETTE, 18592: 50. CINTRA, 19862: 32. 39 Cf. BASTO, 1931: 198, nota 4. O terceto foi colhido por Basto na Revista do Minho, vol. XII, coluna 84, mas o dito é dado como existindo nos Açores e no Alentejo. 40 Id.: 193. 41 José Pedro Machado, «Língua Portuguesa», Diário de Notícias, 21 de Maio de 2000. 42 Id.: ibid. A propósito, o mesmo autor refere que «é de estrebaria» também se dizia de «expressão reles ou de um disparate». Ver também, infra, crónica de José Barata-Feyo. Há cerca de cinco anos, no final duma palestra realizada na ESE de Viana do Castelo, em que abordámos as FT’s em Português de Portugal, uma professora do Primeiro Ciclo confidenciava-nos que a mãe lhe ensinara que «tratar alguém por você era uma falta de educação». Em algumas localidades (por exemplo, em certas zonas rurais do concelho de Ponte de Lima), a forma você corre, geralmente, sem sentido depreciativo, mas a forma vossemecê é considerada mais respeitosa. Basto também anota que «Vossemecê, para os aldeãos, é mais respeitoso que você.» [BASTO, 1931: 187] Será por ser contracção que se encontra foneticamente mais próxima da fórmula primitiva (Vossa Mercê) e dos seus valores semântico-pragmáticos originais?... 38 351 «É este último valor, de tratamento igualitário ou de superior para inferior (em idade, em classe social, em hierarquia), e apenas este, o que você possui no português normal europeu, onde só excepcionalmente – e em certas camadas sociais altas – aparece usado como forma carinhosa de intimidade. No português de Portugal não é ainda possível, apesar de certo alargamento recente do seu emprego, usar você de inferior para superior, em idade, classe social ou hierarquia.»43 Actualmente, face ao que se ouve e lê, o tratamento de você encontra-se largamente expandido entre os portugueses de Portugal, sinal de que os valores depreciativos ou insultuosos que outrora o marcaram terão já desaparecido, ou estarão em vias de desaparecer.44 Deu-se, assim, uma inversão de tendência. A fórmula vem sendo usada não só entre desconhecidos, ou entre conhecidos com assimetria de lugares, mas também entre iguais e próximos, mesmo como termo de afecto.45 Tudo isto fruto, certamente, da evolução democrática da sociedade portuguesa, mas devido também à existência 43 CUNHA & CINTRA; 1984: 294. Apesar da reconhecida autoridade dos autores na matéria, todos nós já ouvimos, certamente, inferiores tratarem superiores por você. Em nosso entender, você é, nos dias de hoje, uma fórmula passe-partout. Talvez se esteja a chegar a um sistema simplificado e binário. Perdido de vez o voseamento, aproxima-se o sistema binário (ao nível das FT’s pronominais), com formas de tuteamento para relações de intimidade e proximidade, e de voceamento para relações de relativo distanciamento proxémico e/ou taxémico. Ou mesmo a um sistema unitário, como já desejava Basto, nos anos trinta do séc. passado: «Talvez não fôsse mau aproveitar esta monção favorável da moda [uso de Você], e fixar-se em Portugal o tratamento único de você, correspondente ao Usted espanhol (fr. vous, etc.) – desaparecendo assim a incómoda multiplicidade de tratamentos que temos.» [BASTO, 1931: 193] Não se pense, todavia, que esta tendência ou desejo dum sistema binário ou unitário é recente. Já em meados do século XIX, no início do capítulo «Dos Tratamentos», observava Roquette: «Se alguma cousa invejo na lingua franceza é a facilidade com que podêmos tratar com toda a sorte de pessoas (que não são da familia real) sem estarmos com duvidas se lhe fallaremos por Excellencia, por Senhoria ou por Mercê; nada mais commodo que o vous francez, e nada mais embaraçoso que as distincções que entre nós somos obrigados a fazer, e que muitas vezes por descuido ou por ignorancia involuntaria nos fazem passar por impoliticos e grosseiros.» [ROQUETTE, 18592: 46] 44 Continua a haver, contudo, pessoas a quem ainda desgosta e incomoda o tratamento de você e por isso protesta. Em carta publicada na revista Notícias Magazine, uma professora de Carcavelos, identificada apenas pelas iniciais A. A., diz lutar de «forma incessante contra o hábito» dos seus alunos tratarem os professores por você. Hábito, acrescenta, que considera uma característica da região onde vive «há quase 30 anos», quando forçadamente teve de deixar a terra onde nascera. A docente, saindo do âmbito escolar, confessa sentir-se «francamente incomodada» com o uso «repetitivo» de você, por «humilhante», dirigido por Maria Elisa aos concorrentes do Quem quer ser milionário. Além disso, protesta por ter visto, no programa Acontece, uma entrevista «ao dr. Graça Moura, em que o jovem entrevistador, que não identifiquei, se dirige a uma pessoa mais velha, de nível cultural mais elevado, de condição social mais elevada porque é convidado, utilizando o dito “você”». Esta professora começa, porém, a carta, assim: «Estou a chegar aos sessenta anos e luto contra moinhos de vento.» [Notícias Magazine, n.º 460, 18-03-01, p. 14] 45 Na terceira «tendência», de entre as «actualmente mais vivas», quanto à evolução do sistema de tratamento Português de Portugal, escreve Cintra que, por um lado, se verifica uma «progressiva ampliação do emprego do pronome você – a que raramente se atribui o matiz depreciativo que ainda não há muitos anos lhe era associado com muita frequência em determinados meios» e, por outro, que «à medida que o emprego do tu se vai expandindo, você aparece adoptado como tratamento afectuoso, mais íntimo do que tu». [CINTRA, 19862: 34] Cf. também BOBONE, 1999: 88. 352 de programas televisivos com audiências garantidas: por um lado, as telenovelas brasileiras e, por outro, aqueles programas em que os protagonistas passaram a ser gente anónima (para deixar de o ser), com coragem para se expor publicamente, de qualquer forma e a qualquer preço, por outro.46 Usada entre iguais ou desiguais, de superior para inferior ou vice-versa, você é hoje tratamento corrente que situa, todavia, os interlocutores no quadro da cortesia, se bem que a um nível ou grau pouco elevado.47 A sua ocorrência numa situação de interacção verbal marca sempre uma relação minimamente respeitosa (que até pode ser íntima ou próxima) e servirá, por isso, para acompanhar um FFA, ainda que de grau pouco elevado. Como pouco atenuará, por outro lado, o FTA que acompanhe. Mas estes valores usuais podem ser alterados, de acordo com o co(n)texto a evolução da interacção, ou as relações que se tem ou deseja ter (ou mostrar que se tem) com o(s) interlocutor(es). 3. Senhor / a Com origem na forma latina senior («homem mais velho»), esta FT parece ter entrado em Portugal, contudo, por via francesa. Aparece nos textos antigos portugueses com o significado de pessoa que tem autoridade e direitos sobre alguém ou alguma coisa. Senhor, na Idade Média, não era, portanto, «uma simples apóstrofe cortês» dirigida ao monarca, já que o monarca era «o primeiro dos “senhores”» e, por isso, o termo era também «sinónimo de “rei”».48 Como aconteceu em relação a outros tratamentos ditos 46 Veja-se, a propósito, o estudo de CHARAUDEAU & GHIGLIONE, 2000. Veja-se, como exemplo do uso actual de você, corrente mesmo entre desconhecidos, e com valores de relativa cortesia, a sua inclusão, também significativo por isso, no subtítulo de O Pequeno Livro da Etiqueta e Bom Senso. 501 conselhos para você brilhar em qualquer ocasião [cf. MENEZES, 2001]. Ou, para confirmar, a seguinte publicidade dum banco: «No X, achamos que o seu dinheiro é um assunto tão pessoal que você até deve ter uma pessoa a trabalhar só para si: o seu Director Particular. Alguém que, inclusive, vai pessoalmente ao seu encontro, sempre que não quiser deslocar-se até ao X. Que está sempre contactável, até por telemóvel. Que, no entanto, não fica à espera que você lhe ligue para lhe dizer qual a melhor aplicação a dar ao seu capital. Que o aconselha sobre todas as soluções que o X lhe oferece [...]. E que só não lhe escolhe a roupa porque, de facto, isso é realmente muito pessoal.» [Publicidade inserida em Ensino Superior, Revista do SNESup, n.º 1, Novembro de 2001. Substituímos, obviamente, o nome do banco por X. Itálicos da nossa responsabilidade] 48 LUZ, 1956: 284 (34) e 357 (107). O historiador Oliveira Marques, ao estudar a nobreza portuguesa na Idade Média, observa, a propósito dos ricos-homens, que eles «detinham os principais cargos governativos, administrativos e militares», possuíam as propriedades fundiárias «mais extensas e rendosas», e «outro tipo de benesses», e acrescenta: «Tinham direito ao título de dom (> dominus), visto serem senhores de pendão e caldeira, mantendo sob a sua chefia contingentes numerosos que alimentavam e protegiam à maneira feudal, recebendo fidelidade (posteriormente, aliás, tanto dom como senhor se generalizaram à maioria dos nobres).» [MARQUES, 1971: 149-159] 47 353 de cortesia, os reis portugueses sempre gostaram de ser tratados por senhor. Na provisão de 1597, Filipe II prescreve: «Ordeno, e mando, que no alto das Cartas, ou papeis que se me escreverem se ponha, Senhor, sem outra couza, e no fim dellas, Deos guarde a Catholica pessoa de V. Magestade; [...] e no sobre escrito, só porá a El Rey Nosso Senhor. E os Duques, e Marquezes, e seus filhos primogenitos sómente poderão pôr no sobrescrito: A El Rey meu Senhor, e o mesmo sobrescrito poderão pôr todos os mais filhos dos Duques alem do primogenito, que tiverem parentesco com a Coroa Real dentro quarto grao, contando conforme a direito Canonico. E quando não tiverem o dito parentesco, ou não estiverem dentro do dito grao, não poderão pôr o dito sobrescrito, nem o poderá pôr outra algũa pessoa de qualquer qualidade, dignidade, e condição, que seja.»49 E D. João V, na pragmática de 1739, manda «abolir e revogar» a lei filipina, «excepto o que nela foi disposto a respeito da formalidade que deve praticar-se nas Cartas e papeis que se me escreverem, ou às Rainhas, Principes herdeiros, Princesas, Infantes, e Infantas destes reinos».50 Repare-se que o rei regulamentava não só como ele próprio devia ser tratado por senhor, mas também quem assim o devia ou podia fazer. O rei não era, evidentemenmte, o único senhor. Havia outros, entre a alta nobreza e o alto clero, a quem os reis concediam o privilégio de também assim serem tratados. Além do rei, a quem se devia tratar por vossa majestade, também aqueles a quem a provisão obrigava a tratar por vossa alteza e por excelência51 (ou seja, em resumo, os chamados grandes do reino) tinham o direito de receber cartas e papéis com a invocação e o endereço de senhor. Todavia, os filhos e filhas legítimos dos infantes, aqueles a quem a lei filipina obrigava que fossem tratados por excelência, além de poderem ser 49 Cf. CINTRA, 19862: 109-110. Itálicos da nossa responsabilidade, à excepção de V. Magestade. Segundo a Corte na Aldeia, publicado em 1619, «sobrescrito é uma notícia vulgar da pessoa a quem se escreve e do lugar aonde lhe mandam a carta, exprimindo-se nele o nome e a dignidade por onde é mais conhecida, e o lugar onde naquele tempo assiste.» [LOBO, 1990: 90] Esta obra, segundo Maria Ema Tarracha Ferreira, «obedece a um objectivo simultaneamente didáctico e social: estabelecer as características do cortesão ou do discreto.» [Cf. LOBO, 1990: 50] A leitura da Corte ajudará a compreender as regras de cortesia e alguns dos termos utilizados nas leis régias que procuravam regulamentá-la, regras e termos que eram praticados e discutidos em Portugal, nos princípios de seiscentos, pouco tempo depois da publicação da primeira pragmática, à qual, aliás, Lobo se refere: «- No sobrescritos temos pouco que tratar (tornou Solino) que, depois que com a pragmática os cercearam, não há prezados, magníficos, honrados e ilustríssimos, nem os senhores.» [Id.: 90] 50 Cf. CINTRA, 19862: 112. 51 Para se ver a quem Filipe II e João V obrigavam a tratar por alteza e excelência, cf. id.: 110 e 112-113, respectivamente. 354 invocados, nas cartas, por senhor, também os sobrescritos lhes eram endereçados assim: «Ao Senhor D. N. ou à Senhora D. N.»52 João V vai ser um pouco mais magnânimo. Além dos acima referidos, determina que nos escritos os «Grandes Eclesiásticos e Seculares» fossem tratados, respectivamente, por «Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor» e «Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor». Ficava, porém, interdito serem invocados por «Meu senhor, ou Senhor meu» (reservados ao rei), proibição a observar também em relação aos Secretários de Estado e a «todas as pessoas de qualquer qualidade.» E «aos Bispos que assistirem neste Reyno, e não forem nomeados por mim, e aos Ministros da Santa Igreja Patriarchal de habito Prelaticio», ordenava que se pusesse, nos papéis e sobrescritos, «o tratamento de Illustrissimo e Reverendissimo Senhor».53 Nem só o rei procurava fixar o tratamento de senhor. Também os principais filólogos de setecentos, em geral puristas da língua, se preocuparam com a correcção e normativização dos seus usos, nomeadamente das FT’s dirigidas aos indivíduos de estatuto político e social mais elevado. Regular o emprego das FT’s, segundo a categoria social do destinatário era, por isso, também um processo de defesa da língua. Observa Menéndez que «os filólogos portugueses setecentistas encontram-se preocupados em estabelecer uma norma para a pureza e a legitimidade da língua portuguesa, de modo a colocá-la no mesmo plano das outras línguas europeias, senão num plano superior (sobretudo através da repetida evocação do estreito parentesco com o Latim).»54 Monte Carmelo foi um desses «puristas» que, no tocante às FT’s com senhor / a, regista, cerca de trinta anos depois da lei joanina, como principais normas a cumprir, para que se fale correctamente a Língua Portuguesa sem «abusos», o seguinte: «13. Advirto, que o Prenome Senhor, e Senhora, só se-applicam aos Senhores Infantes, e Senhoras Infantas aos naturaes, e reconhecidos Filhos, e Filhas de Rei, Principe, ou Infante; aos Netos destes, se o Monarca lhes-faz a mercê deste Prenome Titular; e aos Senhores de Terras, como o Senhor de Belmonte, Senhor de Pancas, &c. Tambem por obsequiosa lembrança se-applica a algum Rei defunto, particularmente quando se-falla com seus Descendentes, como v.g. o Senhor rei D. Joam // Joâm V. o Senhor Rei D. Pedro, ou Senhor D. Joâm V. a ninguem mais se-applica este Prenome, ou Titulo, diante das Magestades, ou Pessoas Reaes. Nunca se-diz Senhora Raînha, Senhor Principe, 52 Cf. id.: 110. Cf. id.: 113. 54 MENÉNDEZ, 1997: 224. 53 355 Senhora Princêza, quando se-falla da Raînha, Principe, ou Princeza existentes; mas a Raînha nossa Senhora; o Principe nosso Senhor; ou sómente a Raînha, o Prîncipe, a Princeza. Quando se-falla com algum a respeito dos seus Consanguîneos, ou Consortes, nam se-diz v.g. O Senhor seu pae, o Senhor seu irmâm, a Senhora sua filha, a Senhora sua Esposa, &c. porque isto he por algum modo insinuar por escravo, ou escrava, a pessoa, a quem se-falla, e trata politicamente como Senhor, ou Senhora. Assim se-costume na Corte; e nam o que disse hum rustico fallando ao Magnate da sua Aldêa, isto he: o Senhor seu porco entrou hoje na minha horta, e comeu até dizer: Nam quero mais. Eu estimei isto por ser coisa de V. Mercê. Costuma pois dizêr-se Seu páe, Seu irmám, Seu filho, &c. O inferior, ou igual, que falla politicamente com seu Monarca, ou com pessoas principaes a respeito de consan guîneas, &c. se estas sam Reis, Principes, ou Titulares, diz v.g. O senhor rei D. Joâm V, pae de Vossa Magestade, ou O Senhor Rei D. Pedro, Avô de Vossa Magestade, ou A Fidelissima Raînha, Mâe de Vossa Magestade, ou O Serenissimo Duque de Parma, sobrinho de Vossa Magestade, &c. e nunca se-dirá v.g. O Pae, mãe, Sobrinho, &c. de Vossa Magestade, sem o epîtheto de Augustissimo, Fidelissimo, ou Serenissimo; porque o contrario serîa demaziada confiança, ou proprio de chocarreiros. E fallando politicamente com as outras pessoas referidas, diga v.g. A Duqueza sua Mãe minha Senhora; A Condessa sua filha minha Senhora, &c. ou A Senhora Marqueza; o Senhor Conde, seu Irmâm, &c. Se nâm tem Título, se-diz v.g. A Senhora Dona Antonia minha Senho/ra, sua irmãa; ou A Senhora Dona Maria, sua mãe, minha Senhora &c. Senam quer chamár-lhe Senhora, diga v.g. Sua filha, a Senhora Dona Luiza; Sua mãe, a Senhora D. Jozefa, &c. de sorteque nunca diga juntamente Senhor, e Seu; ou Senhora, e Sua; nem ainda Senhor Irmâm, &c. de V. Mercê, de V. Senhoria, de V. Excellencia. Em fim os Prenomes Senhor, e Senhora, ou se-ham de ajuntar aos Nomes sem respeito às pessoas, a quem se-falla; ou se-lhes hade ajuntar Meu, Meus, ou Minha, minhas; porque assim he Móda. Pp. 11-12».55 É longa a citação, mas a sua transcrição justifica-se, em nosso entender, pelas interessantes informações que fornece, a níveil linguístico e sociodiscursivo, relativamente aos tratamentos e ao seu uso, na segunda metade do século XVIII. Tal interesse é tanto maior quanto o autor era perito em gramática, tendo sido certamente por isso nomeado «Deputado ordinário» da Real Mesa Censória («importante órgão de controle da “inteligência” portuguesa», nas palavras de Menéndez), de que chegou a ser «Presi- 55 Cit. por MENÉNDEZ, 1997: 163-164. A citação, informa Menéndez, corresponde ao «ponto 13» do parágrafo em que Carmelo trata, no Compendio de Orthografia, «Da Divisâm do Nome». [Cf. id.: 163] 356 dente Substituto». Além de «exemplo do pormenor normativo»56 que preocupava o autor em relação ao uso da língua, Menéndez encontra também, neste excerto, vários aspectos de interesse, destacando, por um lado, «a rigorosa gradação social que Carmelo considera existir nas formas de tratamento» e, por outro, as «referências normativas ao costume da Corte e à moda.»57 Além disso, considera que a preocupação do filólogo com as formas de tratamento é também reflexo da necessidade de adequação de cada discurso «à situação e ao interlocutor a que se destina», bem como «a sua cuidadosa divisão da língua em níveis estilísticos.»58 É à volta da construção dos tratamentos com o «Prenome Senhor e Senhora», acompanhado ou não pelos possessivos seu e sua, que o carmelita desenvolve as suas considerações. O excerto deixa entender, por um lado, a importância política e social do tratamento de senhor / a e, por outro, a sua expansão no acompanhamento de outros tratamentos. Consequência lógica de tal expansão reflectia-se nos usos incorrectos desses tratamentos, ao nível da relação sintáctica e da referência semântico-pragmática, como o exemplo anedótico do rústico mostra. Repare-se que o autor considera, implicitamente, haver uma espécie de contradição nos termos, quando se usa senhor / a seguido de seu/sua, «porque isto he por algum modo insinuar por escravo, ou escrava, a pessoa, a quem se-falla». São os valores semântico-pragmáticos, situados ao nível do eixo taxémico, que encontramos nesta observação. Por outro lado, é simultaneamente ao nível do eixo proxémico que se encontra a observação segundo a qual «seria demaziada confiança, ou próprio de chocarreiros», um inferior ou igual não se referir aos parentes dos grandes do reino com os títulos e os epítetos a que têm direito. Repare-se, por último, que o autor regista, como norma, ser moda o uso de senhor(es) meu(s) e de senhora(s) minha(s), em vez não só de senhor seu [...], ou senhora sua [...], mas também de senhor(es) nosso(s) e senhora(s) nossa(s). Pode-se dizer que a pragmática de D. João V e o Compêndio do frade Carmelo se complementam: se a primeira determina politicamente os usos dos tratamentos, o segundo prescreve-os gramaticalmente. Mas, como sempre, nem decretos nem gramáticos conseguem fixar eternamente as regras a que devem obedecer os tratamentos. A título de exemplo, recorde-se que os usos de fórmulas com a estrutura «O Senhor seu [...]» ou «A Senhora sua [...]», criticados e corrigidos por Carmelo, não deixaram de 56 Id.: 163. Id.: 164. 58 Id.: 167. 57 357 persistir. Aquilino Ribeiro, em Uma Luz ao Longe, novela com acção situável em finais do século XIX, coloca na intervenção de Luís França, a seguinte referência (tratamento delocutivo) à mãe de Amadeu, seu interlocutor: « - O poldrinho não tem más manhas, não tem. Jurei-o ao Monge e à senhora sua mãe, e mantenho a palavra, mas é preciso saber lidar com ele.»59 É possível que os valores semânticos de senhor/a e de seu/sua, no século XVIII, não permitissem ainda compreender que tratar delocutivamente um progenitor com recurso a FT’s de cortesia elevada é, por um lado, promover a face positiva do delocutado e, por outro, a face negativa do alocutário. Os parentes fazem parte do «território» de cada um.60 O tratamento de senhor, isolado ou acompanhado, percorre toda a História de Portugal. Tratamento dirigido, de princípio, sobretudo ao rei e aos membros da família real, depois, à alta nobreza e alto clero, o seu uso vai alargar-se progressivamente a um número de pessoas cada vez maior, ao longo dos tempos. Actualmente, como se sabe, usa-se frequentemente entre conhecidos (não próximos, excepto em casos especiais) e desconhecidos, a par de você. Estas FT’s continuam, todavia, a expressar respeito do locutor para com o(s) alocutário(s), sendo consideradas, por isso, de alguma cortesia.61 Além de ocorrer como FT isolada, senhor coocorre também acompanhando NPp e/ou NAp, NPf ou TAc, TPl ou TCv, TMl ou TRl. Um desconhecido, porém, tratar alguém por o senhor + NPp e/ou NAp pode ser considerado um tratamento menos cortês, dada a proximidade abusiva que manifesta e/ou pretende estabelecer. Tivemos já oportunidade de assistir a encontros em que um indivíduo se dirige a outro tratando-o por (o) senhor NPp e este lhe ter ripostado Mas o senhor conhece-me de algum lado? É que tratar alguém pelo NPp só é socialmente correcto (isto é, cortês), entre conhecidos e próximos ou íntimos. Juntar, por isso, um tratamento de distância (senhor) a um tratamento de proximidade (NPp), quando o conhecimento entre ambos não é bilateral, ou bilateralmente reconhecido, é misturar níveis diferentes de relação. É, no fundo, não ser 59 RIBEIRO, 1983a: 99. Itálicos da nossa responsabilidade. Cf. GOFFMAN, 1973 (2): 52. 61 Cf. CUNHA & CINTRA, 1984: 294. 60 358 cortês, ou seja, descortês.62 Mesmo quando o objectivo é estabelecer atendimentos ditos personalizados que, todavia, nem todos estão dispostos a aceitar. Veja-se, a propósito, a passagem seguinte, retirada duma crónica de José Barata-Feyo. Conta o jornalista que, tendo perdido os números de telefone duma agenda electrónica, procurou recuperá-los através de amigos, do 118 e das três redes de telemóveis. O resultado prático, porém, foi «irrisório», diz, mas, em contrapartida, confessa que o contacto foi «rico em ensinamentos no que respeita ao modo como os operadores de telefones móveis tratam os seus clientes, reflectindo, certamente, a maneira como no entender deles todos nós devíamos tratar-nos uns aos outros.» E relata: «- Muito boa tarde, está a falar com o Fábio Bruno. Em que posso ajudá-lo? Explico que preciso de saber qual o “puk” do meu telemóvel, omitindo vergonhosamente a minha total ignorância sobre o que pode significar tão estrambólica palavra, mas enfim, já me resignei a viver com e na dependência de palavras ou siglas que ultrapassam a pobreza da língua portuguesa, a mesma que eu acho tão rica. O meu interlocutor pede-me o nome e alguns dos números a que a administração moderna tende a reduzir o cidadão, dá-me um pouco de música anglo-saxónica e regressa à linha: - Muito obrigado por ter esperado, senhor José, faça o favor de tomar nota do seu “puk”...» Comenta, de seguida, Barata-Feyo: «Depois do “vossemecê” das aldeias, arcaico mas nosso, e o “senhor” ou “senhora” das cidades terem sido arrasados pelo “você” das telenovelas brasileiras (que entre nós se utilizava eminentemente nas estrebarias e nos quartéis), eis chegada a época do “senhor José”, evolução semântica que, por mais que eu procure, só consigo explicar através do “Sô Reinaldo” das mesmas telenovelas. Já é sina dos povos e das culturas a quem castraram a personalidade!» A crónica termina com o jornalista a comentar a informação duma amiga «especialista em publicidade de mercados», segundo a qual aquele tratamento é um «atendimento personalizado, percebes?» 62 Sobre o problema do conhecimento e o tipo de relação que o uso dos nomes próprios e apelidos estabelece, entre conhecidos e desconhecidos, ver PERRET, 1968. Sobre os valores semântico-pragmáticos dos nomes próprios em textos (sobretudo) literários, ver GOUVARD, 1998: 56-98. 359 «Que não, que não percebo, antes pelo contrário, um tratamento assim parece-me incitar à despersonalização, foi aliás isso mesmo que o maoismo fez em algumas regiões da China, onde só agora começam a devolver às pessoas o direito a usar de novo o nome de família. E depois em que é que o senhor José é atendido mais personalizadamente do que o senhor Silva, visto que até deve haver mais senhores José que senhores Silva, podes dizer-me? – Ora aí está! Não vês que já quase ninguém se trata por senhor Silva, porque todos nos tratamos por senhor José?...»63 Convém notar, todavia, que se o tratamento de senhor / a se encontra hoje degradado, face aos seus valores originais, em virtude da extensão do seu uso, este mesmo fenómeno reflecte, por outro lado, segundo observa Delphine Perret, «une conception capitaliste où tous les hommes peuvent devenir des “seigneurs”.»64 3.1. O senhor, pronome ? Este fenómeno social tem as suas repercussões a nível linguístico. Ultimamente, vem-se considerando o / a senhor / a uma forma pronominalizada e mesmo pronominal. Cintra, começa por situá-lo no conjunto dos tratamentos nominais, mas observa, logo de seguida, que é «o [tratamento nominal] mais pronominalizado de todos eles».65 Na Nova Gramática, trabalho realizado em coautoria com Celso Cunha, é dado como pronome de tratamento, a par de você e vossa excelência, definidos como «certas palavras e locuções que valem por verdadeiros pronomes pessoais».66 Contrariando a definição e observação de Cintra, Eberhard Wilhelm é de opinião que, se «visto com base num critério puramente semântico», esta FT tem «fortes características duma expressão pronominal», mas que segundo um «critério formal, acompanhando a linguística moderna, “o senhor” poderá já dificilmente ser considerado como pronome.» Se é certo que, como observa, a forma serve para tratar «um empregado de 15 anos,67 em quem o superior certamente não vê um senhor como soberano, proprietá63 BARATA-FEYO, José Manuel: «O homem que não morde um cão / Crónica», Xis, n.º 4261, 17-11-01, p. 7. No século XIX, Roquette recomendava aos filhos: «Por maior que seja a intimidade nada há que desculpe o costume que muita gente tem de dizer: Sim, senhor Pedro; não, senhor Paulo... Quando tiverdes grande confiança com algum homem, chamai-o pelo nome da pia; fóra d’isso dizei: o senhor, ou V. Ex., V. S. [...]: assim fallão as gentes bem criadas.» [ROQUETTE, 18592: 84] 64 PERRET, 1968: 9. 65 CINTRA, 19862: 13. 66 Cf. CUNHA & CINTRA, 1984: 192 e 474. 67 Mesmo uma criança chega(va) a tratar outra, em relação à qual se sente inferior, por senhor. Em Uma Luz ao Longe (1948), Amadeu, chegado ao colégio, enfrenta os novos colegas, cujas idades seriam idênticas à sua. E a uma pergunta trocista dum deles, «- Não és da de riba?», respondeu: «- Não, senhor.». 360 rio, etc.», por outro lado, mesmo quando utilizada como FT, «tem comportamento de sintagma nominal, constituído de artigo + substantivo».68 Todavia, o mesmo autor, mais à frente, considera «o senhor, a senhora, o menino, a menina, a senhorita» como «nomes de distância bastante pronominalizados da 3.ª pessoa do singular».69 A forma o / a senhor / a é empregue hoje com funções que a aproximam dos valores referenciais que têm as FT pronominais que outrora foram nominais. A verdade, porém, é que continua a haver gente que encontra nesta FT antigos valores caracterizadores de «nobreza de alma». Repare-se no seguinte comentário de Isabel Stilwell, a propósito da «raiva» que lhe causou «a indiferença» de certas pessoas que assistiram a «um senhor tropeçar e estatelar-se mesmo no meio da rua»: «Umas meninas dos seus 20 anos continuaram calmamente a comprar o passe no quiosque da Carris e até o homem (ia chamar-lhe senhor, mas arrependi-me...) que esperava a mudança de cor do “peão”, não saiu do sítio!»70 O problema da classificação de FT’s como o senhor (nominal, pronominal, propronome, pronominalizada?) não está ainda resolvido. Marques considera que o seu uso tem de ser compreendido, «não apenas no âmbito do conceito gramatical tradicional de “pessoa”, mas a partir de conceitos reflexos de interacção, de títulos e de formas de distância comunicativa, de fórmulas / formas de deferência e de delicadeza, decorrentes de vários tipos de situações sociais.»71Carreira, por seu turno, diz ter encontrado a solução num estudo de Hammermüller cuja tradução é, segundo a linguista portuguesa, «Será que a forma de tratamento [FT] o senhor é um nome, um pronome ou antes um pronome?»72). O estudioso alemão, baseando-se na distinção estabelecida por Bülher entre «pronome (pessoal)» e função deíctica, defende que o que caracteriza as FT’s é uma [RIBEIRO, 1983a: 31] Tratar um jovem por senhor pode até servir para ele tomar consciência de mudanças na vida: «Rubens tinha cerca de catorze anos quando uma rapariguinha, que devia ter metade da idade dele, o deteve na rua para lhe pedir! “O senhor importava-se de me dizer as horas?” Era a primeira vez que uma desconhecida o tratava por senhor. Sentiu-se arrebatado e julgou ver abrir-se uma nova etapa na sua vida.» [KUNDERA, M., 1990: A Imortalidade. Lisboa: Dom Quixote; p. 262] 68 WILHELM, 1979: 11. 69 Id.: 35 e 39. Recorde-se que Oliveira (Medeiros), como vimos acima, classifica o senhor e outras formas nominais de tratamento como «pro-pronomes». [MEDEIROS, 1985: 41, ou, supra, cap. X, 2.] 70 Isabel Stilwell, «Que raiva que me faz a indiferença», Notícias Magazine, n.º 350, 07-02-99, p. 8. Itálicos da nossa responsabilidade. Repare-se que a autora refere a pessoa que caiu por «senhor», termo que se arrepende de utilizar em relação ao indivíduo do semáforo que ficou indiferente perante a queda, que por isso não merece o tratamento delocutivo de «senhor», mas apenas de «homem». 71 MARQUES, 1995: 163-164. 72 HAMMERMÜLLER, 1993a. Tradução de Carreira. A indicação [FT] no título é da responsabilidade da linguista. Cf. CARREIRA, 1995: 53. 361 relação de correferência, ao terem uma espécie de dupla referência, intra e extradiscursiva, caracterização que se aplica a todas as FT’s de terceira pessoa, de que o senhor é paradigma. Considerando-a inovadora «dans la littérature linguistique sur ce sujet», Carreira observa que a proposta de Hammermüller «consiste à adopter un point de vue de complémentarité et non pas d’opposition des classifications». Ou seja : «o senhor […] est une forme nominale qui a une fonction déictique (o senhor) et définitoire (o/um senhor).» A linguista portuguesa sublinha a vantagem da relação entre as componentes morfológica e semântica que, numa interpretação semântica (ao nível da deixis e da definição), glosa do seguinte modo: «o senhor: voici à qui je parle + celui à qui je parle est um senhor, d’où, o senhor à qui je parle.»73 Em nosso entender, nesta proposta de Hammermüller, encontram-se mecanismos implícitos de relação anafórica. Ao tratar-se alguém por o senhor, mesmo que saibamos que ele não é senhor de coisa nenhuma (bens, poder, aspecto), estamos a pressupor um pensamento (anterior), não formulado em discurso-texto, mas que pode ser explicitado pela seguinte construção linguística: Aquele a quem me vou (ou estou) a dirigir (penso que) é (ou desejo que seja) um senhor. Neste sentido, o / a senhor / a, um SN definido, é uma retoma anafórica de um senhor, um SN indefinido, antecedente não formulado, mas preconstruído (culturalmente). O chamado termo antecedente, segundo uma perspectiva estritamente textual, não se encontra, de facto, introduzido no discurso anterior, mas faz parte da memória que, numa dada situação de interacção, os interlocutores aceitam e actualizam. Observa Kleiber: «Il n’est […] plus besoin d’avoir un antécédent dans le texte pour que l’on parle d’anaphore, le caractère saillant ou manifeste (ou encore accessible) du référent anaphorique pouvant provenir d’une autre source que le texte, à savoir la situation (perception de la situation) et les inférences que l’on peut tirer du texte et/ou de la situation.»74 A FT o/a senhor/a concentra, neste sentido, um duplo valor: de deixis social, por um lado, e de anafórico, por outro. De deixis, na medida em que designa aquele a quem se fala. De anáfora, na medida em que, numa dada situação de comunicação, retoma e correfere um termo antecedente implícito, não formulado no discurso-texto anterior, mas culturalmente admitido, reconhecido. 73 74 CARREIRA, 1995: 54 e 54-55. KLEIBER, 2001: 30. 362 3.2. «Minhas senhoras e meus senhores» O / a senhor / a, além de anteceder os nomes e títulos acima referidos, ocorre também precedida do determinante possessivo meu / minha, singular e plural, como vocativo [meu(s) senhor(es) / minha(s) senhora(s)] e como sujeito ou objecto [o(s) [meu(s)] senhor(es) / a(s) [minha(s)] senhora(s)]. Cabe observar, todavia, que a forma meu senhor, no vocativo, como sujeito ou objecto, é menos frequente no Português actual que a sua correspondente no feminino. A um destinatário adulto desconhecido masculino trata-se por o senhor ou ó senhor, enquanto que um idêntico destinatário feminino tanto pode ser tratado por a senhora e ó senhora (menos frequente), como por a minha senhora e ó minha senhora (mais frequente). Porque expressam cortesia mais elevada, as FT’s precedidas de possessivo são mais utilizadas em relação aos indivíduos adultos do sexo feminino. Como se sabe, as senhoras continuam a ser o alvo prioritário das manifestações de cortesia, cuja simples presença leva a certas restrições linguísticas. Ainda se ouvem comentários como «Então isso diz-se diante duma senhora?» dirigidos a quem profere, por exemplo, um palavrão. Recorde-se, por outro lado, a fórmula e a sequência das FT’s com que, em ambientes formais (sessões mais ou menos solenes), os oradores costumam dirigir-se a um auditório misto: «Minhas senhoras e meus senhores!». Só em contextos destes a fórmula meus senhores é, hoje, praticamente usada. No quadro da cortesia linguística, as FT’s com senhor / a, tendo-se em consideração apenas os seus valores semântico-pragmáticos, podem ser entendidas como valorizadoras da(s) face(s) positiva(s) do(s) destinatário(s), integrando-se, por isso, no âmbito da cortesia positiva. Quando acompanham a realização de FTA’s, integram-se no âmbito da cortesia negativa, ao atenuarem as eventuais «lesões» desses actos. As diferentes ocorrências de senhor / a, dando origem a outras tantas FT’s, remetem, portanto, para níveis diferentes de cortesia, de acordo com o diassistema cultural português. Assim, minha(s) senhora(s) e meu(s) senhor(es) são os tratamentos mais corteses, isto é, aquelas que expressam (e por isso se situam n)um nível mais elevado de cortesia, seguindo-se-lhes a(s) senhora(s) e o(s) senhor(es) e depois apenas senhora(s) / senhor(es). 3.3. Valores interjectivos de senhor / a 363 Cabe aqui uma observação sobre o emprego (quase) interjectivo de senhor / a, na sua forma afirmativa ou negativa, em ocorrências dialogais ou mesmo monologais. Observa Basto que, como resposta a chamada ou pergunta, «usa-se na Beira, Trás-os-Montes e Alentejo, nhôr, nhôra», acrescentando que «muitas vezes» é utilizada a forma feminina, «mesmo que seja homem quem chama ou pergunta», inclusive a forma plena senhora, cujo emprego, «para afirmar, negar, ou responder», diz ser «popular».75 Nestes casos, senhor / a, em sim senhor / a ou não senhor / a, funciona como processo cortês de negação, de afirmação ou de confirmação do contacto, ainda que intensificado, ocorrência que se aproxima dos valores de locução interjectiva.76 Nestes casos, ao utilizar a forma senhor(es) ou senhora(s), o locutor, por um lado, não se dirige objectivamente ao(s) seu(s) alocutário(s) - por vezes parece dirigir-se mais a si próprio - a tal ponto que, falando com um interlocutor do sexo masculino, utiliza senhora; outras vezes, falando com um interlocutor feminino, utiliza senhor; outras ainda, falando a um só interlocutor, utiliza o plural, outras o singular, ou o inverso. Além disso, encontra-se, por vezes, o emprego destes termos, em conversas de tuteamento simétrico ou assimétrico. 75 Cf. BASTO, 1931: 186-189. Por experiência própria, podemos testemunhar que, em freguesia rurais, situadas a sul do concelho de Ponte de Lima, ainda hoje se usa nhôr / a e senhor / a, para se responder, afirmativa ou negativamente, a pergunta, ou corresponder a chamamento, formulados por pessoa mais velha e merecedora de respeito, seja familiar, conhecido ou desconhecido. Responder aos pais, avós, tios, padrinhos, abade (aliás “Sôr’abade”, por Senhor Abade), professor(a), etc., independentemente do sexo, não utilizando a fórmula, é falta de educação (de cortesia), porque não respeitador das distâncias, das faces do outro. Por exemplo: Pai: - David, foste tu que fizeste X? Filho: - Não senhor(a)! / Sim senhor(a)! Pai: - David! / Ó rapaz! (Chamamento) Filho: - Nhôr(a)! / Senhor(a)! Acontece, por vezes, que os pais, mesmo tendo ouvido a resposta, insistem na pergunta ou no chamamento, até que o/a filho/a lhes (cor)responda com a fórmula “educada”. Outras vezes, o / a filho / a é advertido / a, explicitamente: «- Senhor/a, aprende!», ou «- Senhor/a!, que sou teu pai», ou «- Senhor/a!, que não sou teu irmão!» 76 Basto também regista que «quando se diz sim senhor, não senhor, esta expressão corresponde a simples sim e não», acrescentando que o povo «diz sim senhora sempre, quer se dirija a homens ou mulheres, - e outras vezes sempre sim senhor!». E comenta: «A palavra “senhor” funde-se mentalmente em sim de tal maneira que é vulgar o emprêgo de sim-senhor! como locução interjectiva», por exemplo, em «- Sim senhor! Vocês estão bem criados!» [BASTO, 1914: 350]. Maçãs observa que «pelo muito uso, a forma [Senhor / a] já não é sentida como título dirigido pessoalmente» e prova disso está «no facto de se empregar sim senhora, não senhora dirigida a homem e não senhor, a mulher.» E noutro ponto, anota que, pelas mesmas razões, senhor «perde o sentido primitivo e torna-se simples exclamação para chamar a atenção sobre o ponto principal [do diálogo].» [MAÇÃS, 1976: 206 e 199, respectivamente.] 364 São evidentes, por outro lado, os valores dialógicos e polifónicos de tais expressões. O locutor parece responder a perguntas, questões ou asserções implícitas, postas por outro ou até por ele próprio. Nem sempre será fácil, porém, reconhecer, sobretudo em textos escritos, se senhor(es) ou senhora(s) têm (mais) função interjectiva que de tratamento, cortês ou descortês. Aquilino Ribeiro utiliza, com relativa frequência, estas formas, as quais, em nosso entender, umas vezes funcionam como FT’s e outras (mais) como interjeições. Nestes casos, regra geral, o escritor tem o cuidado, por exemplo n’O Malhadinhas, de não utilizar vírgula a separar a partícula do vocativo. Compare-se, por exemplo, os seguintes fragmentos: «Já os olhos de Rita se alegravam e me pareciam estorninhos a saltaricar num jardim. Sim, senhores, não façam troça que, tê-la ali a ver-me como me via, se me não trouxe ânimo – que tinha para dar e vender – trouxe-me sangue-frio e vontade para levar a bom termo a desafronta que estivera magicando.»77 «Estávamos nós trincando o nosso migalho de pão com chouriça, chega o Fontinhas, almocreve também como nós, com um rompante, Santíssimo Sacramento [...]! O homem vai-se direito à estrebaria e deu de cara com os nossos machos. As argolas, que lá lhe pareciam as melhores, estavam tomadas por eles, e em vez de se conformar, que chegara depois de nós, não senhores, rompeu logo aos roncos.»78 No primeiro fragmento, o velho Malhadinhas, perante as dúvidas do auditório, quanto ao agrado que a habilidade, no jogo do pau com o «fanfarrão» de Santa Eulália, tinha despertado em Rita,79 reafirma a informação e convoca os ouvintes, objectivamente, separando, por vírgula, a partícula afirmativa da FT: «Sim, senhores». Cabe observar, todavia, que, neste caso, a partícula de reafirmação tem mais valor interjectivo, na medida em que expressa (e intensifica) um sentimento pessoal que visa, ao mesmo tempo, convencer os ouvintes (e o leitor).80 77 RIBEIRO, 1989: 37. Itálicos da nossa responsabilidade. Id.: 105. Itálicos da nossa responsabilidade. 79 Para recordar o episódio, cf. RIBEIRO, 1989: 33-42. 80 «Também se emprega como interjeição para reforçar o sentido de uma afirmativa», é uma das definições lexicais de sim [SILVA, 195710: 187] E sim é advérbio que também se usa, por um lado, para «anunciar ou intensificar firmemente uma decisão, uma afirmação, podendo surgir no início ou no fim da frase» e, por outro, «enfatizar uma realidade ou uma verdade». [DLPCACL, 2001 (vol. 2): 3414] O valor semân78 365 No segundo fragmento, a expressão «não senhores» tem valor sobretudo interjectivo: o tio Malhadinhas não se dirige objectivamente aos ouvintes, procura apenas manifestar o seu estado de espírito de desagrado e estranheza, perante o comportamento afrontoso do outro almocreve.81 A vírgula, neste caso, é desnecessária. Aliás, uma pausa aí colocada daria a entender que o narrador estaria a responder, como no primeiro fragmento, a uma reacção do auditório, interpretação que o co(n)texto não favorece. A utilização de vírgula, a nível da expressão escrita, pode não ser suficientemente determinante. No Romance da Raposa, encontramos duas ocorrências, uma separada por vírgula e outra não, mas cujos valores interjectivos, de intensificação do discurso anterior ou do discurso posterior, são os que em ambos os casos se revelam: «- O mundo vai mal! O mundo vai mal! - emitiu o raposão em tom pessimista. - Quem houver de levar a vidinha segundo as regras do amor ao pêlo precisa de lume no olho... Sim, senhora! Hoje em dia, assaltar uma capoeira é um problema difícil de matemática...»82 «- Não sou mudo, não senhora - respondeu o laparoto, todo lépido. - Minha mãe é que me mandou estar calado, senão, que vinham lá as feras e comiam-me. Sabe vossemecê!?»83 No primeiro fragmento, o raposo, estando presente também a “mulher”, dirige-se à Salta-Pocinhas, a quem trata por tu. Prevenindo a filha, prestes a ter de abandonar a “casa” paterna, das dificuldades que iria encontrar na vida, o velho raposo diz «Sim, senhora!». Desta vez, o autor utiliza a vírgula, mas a expressão é mais uma forma do raposo intensificar e reafirmar a advertência e o seu pessimismo.84 Neste co(n)texto, «Sim, senhor/ a!» funciona ainda, além de valor interjectivo, como paráfrase explicativa, sendo facilmente substituível por isto é, ou seja, quero dizer, ou porque, como se vê: «- O mundo vai mal! O mundo vai mal! - emitiu o raposão em tom pessimista. - Quem houver de levar a vidinha segundo as regras do amor ao pêlo precisa de lume no olho... tico-pragmático de sim pode situá-lo, também, na subclasse dos advérbios de realce, de que falam, brevemente, CUNHA & CINTRA, 1984: 548. 81 Para recordar o episódio, cf. RIBEIRO, 1989: 105-111. 82 RIBEIRO, 1961: 15-16. Itálicos da nossa responsabilidade. 83 Id.: 94. Itálicos da nossa responsabilidade. 84 Para recordar o diálogo, cf. id.: 14-18. 366 isto é /ou seja / quero dizer / porque, hoje em dia, assaltar uma capoeira é um problema difícil de matemática...» No segundo fragmento, é um coelhinho que reage à ofensa e desafio da Salta-Pocinhas. A expressão «não senhora» é uma clara intensificação interjectiva da denegação feita, assim respondendo à provocação da senhora de muita treta, segundo a qual era mudinho, o láparo, agachado entre penedos, onde ela não podia chegar o dente.85 Veja-se, agora, um exemplo, construído por Bruto da Costa. À pergunta da jornalista Catarina Pires se «o limiar de pobreza não é diferente nos países industrializados e nos países em vias de desenvolvimento», responde: «Algumas organizações internacionais, por razões de mera facilidade metodológica, convencionaram que pobreza num país pobre seria ter menos que um dólar por dia. Mas isso não tem qualquer base científica, é uma convenção. Um dólar – duzentos escudos – por dia, veja o que dá. E em relação a esta questão também é preciso muito cuidado. Sim senhor, o limiar de pobreza para um país pobre pode não ser exactamente igual ao de um país rico, mas isso pode levar a colocar baixo demais o limiar de pobreza nos países pobres, como se estes não tivessem o mesmo direito de dignidade humana que os países ricos.»86 Também aqui, além de valor interjectivo e fático (e enfático) de convocação do interlocutor para o discurso e de reforço, neste caso, do segmento discursivo-textual imediatamente anterior («E em relação a esta questão também é preciso muito cuidado.»), também neste «Sim senhor» (dirigido a um alocutário do sexo feminino, repare-se) podemos encontrar valores de paráfrase explicativa. Bruto da Costa reformula o que disse, explicando o cuidado que se deve ter na análise da questão do que é limiar de pobreza. Ou seja, é preciso ter (também aqui) em atenção os contextos políticos, culturais, sociais e económicos de cada um dos países pobres. E mais uma vez, o valor polifónico da fórmula se manifesta. «Sim senhor / a!» e «não senhor / a!», como locuções interjectivas, servem ainda para manifestarmos, respectivamente, admiração ou aprovação, e desgosto ou reprovação, perante actos ou comportamentos (verbais ou físicos) de outros e até de nós pró85 86 Para recordar o diálogo, cf. id.: 93-96. Notícias Magazine, n.º 487, 23/09/01, p. 11. (Itálicos da nossa responsabilidade.) 367 prios, tendo, nestes últimos casos, valores irónicos, como em «Fizeste-la boa, sim senhor / a!» e «Não me admira nada, não senhor / a!» Nestes casos, senhor / a perde os seus valores semântico-pragmáticos de tratamento propriamente dito, para se tornar sobretudo numa fórmula fática e enfática que expressa estados de espírito (emoções e sentimentos de natureza positiva ou negativa) perante os comportamentos dos homens ou mesmo de animais, nossos directos interlocutores ou não. Quanto aos animais, já ouvimos alguém proferir, num desfile de gado bovino, em feira rural, sem se dirigir especificamente a ninguém: «- Sim senhora! Belos animais!» 3.4. Seu/sua, formas reduzidas de senhor/a, ou possessivos? As FT’s senhor / a encontram-se, na Língua Portuguesa, em Portugal como nos restantes países lusófonos, sob forma reduzida, nomeadamente através das formas abreviadas seu e sua, respectivamente. Acontece, porém, que estas mesmas formas, como determinantes possessivos, constituem FT’s complexas nominais. O aparecimento de seu(s), sua(s) em FT’s complexas, no sistema de tratamento português, deu-se, segundo observa Luz, na segunda metade do séc. XV, quando a terceira pessoa do singular, dirigida à segunda pessoa do discurso, se consolidou, no tratamento do rei. Nos princípios do século seguinte, porém, firma-se o seu «prestígio», com a substituição de vossa alteza por sua alteza.87 Lobo, na Corte na Aldeia, ridiculariza, todavia, tal substituição.88 No «Diálogo II / Da polícia e estilo das cartas missivas» - encontra-se a referência ao emprego de seu e sua, nos tratamentos. Apesar de longa, vale a pena transcrever a passagem, por mostrar também como a cortesia era, nos princípios de seiscentos, não só uma aprendizagem de saber con-viver e con-versar (também oralmente, embora o diálogo gire em torno das cartas), sem excessos nem defeitos. Recorde-se que esta obra foi publicada em 1619, isto é, cerca de vinte anos depois da pragmática de Filipe II que determinava como se devia falar e escrever.89 O Doutor Lívio, D. Júlio, Píndaro, Solino e Leonardo conver87 LUZ, 1956: 359. Cf., também, id.: 304-306. A autora anota ainda: «Ao lado das fórmulas vossa mercê, vossa senhoria e vossa alteza, foram usadas também no período medieval [...], as fórmulas sua mercê, sua senhoria e sua alteza, em referências ao rei.» [Id.: 356] 88 Tal crítica relativamente ao uso de seu/sua, como expressão de cortesia, parece ter durado até há bem pouco tempo. Luz comenta: «Ainda hoje [1956], no tratamento cerimonioso, e mesmo meio cerimonioso, evita-se com cuidado o emprego de seu, sua.» [Id.: 306] 89 Cf. CINTRA, 19862: 109. 368 sam, sobre «o que há-de ter uma carta para ser cortesã e bem escrita.»90 A dada altura, D. Júlio pede a Leonardo: «- E, tornando à cortesia [das cartas missivas], que cousas tem mais de que tratar? - A terceira (tornou ele), é o nome e sinal do que escreveu a carta, que nem há-de estar tão junto das letras que pareça sôfrego delas, nem no meio do papel como quem escolheu melhor lugar, nem tão apartado que fique ausente das regras, nem tanto na ponta do fim que pareça que se amuou àquele canto; mas com um meio ordinário, como é assinar-se um pouco abaixo das regras, mais inclinado à parte direita que à esquerda, que é uma certa modéstia e humildade de quem escreve. - E que dizeis (perguntou o Doutor) do acompanhamento do sinal? Porque há uns que se nomeiam servidor da vossa mercê N., outros, vassalos; outros, cativo; outros, seu N., e há nisto muita variedade e ignorância. - Primeiramente (continuou Leonardo) servidor já se passou das cartas para os retretes; servo, para os matos, e cativo, para os cumprimentos refinados em a prática; criado, era termo bem criado, e seu é descortesia; e por fugir desta, e de alguns extremos, o mais seguro é escrever cada um o seu nome sem mais leitura. - Não sejais tão estreito nas licenças (disse Solino) que deitais a perder cartas que só pelos cumprimentos do sinal merecem fama. Um homem, escrevendo a sua própria mulher, se assinou vosso servo N., e ela o fazia tal na mesma ausência. O outro, de que contam vulgarmente porque corria nos sinais o menor criado de vossa mercê N., escrevendo a sua mulher se assinou o menor marido vosso N., e a senhora devia de ter mais varões que a Samaritana. - De uma gentil dama sei eu (disse Píndaro) que, escrevendo a um seu galante, se assinou sua N., e ele, lendo a carta, voltou para um amigo com que estava, e disse: Sempre temi esta nova; e perguntando-lhe o outro que era? respondeu: Sua N., e é princípio de Verão.91 Outro, em Coimbra, querendo-se humilhar muito aos pés de um amigo a que escrevia, se assinou Antípoda de vossa mercê N. 90 LOBO, 1990: 88. O escritor apresenta e caracteriza estas personagens, no «Diálogo I / Argumento de toda a obra»: «Entre outros homens que naquela companhia se achavam eram nela mais costumados, em anoitecendo, um Letrado que ali tinha um casal e que já tivera honrados cargos de governo da justiça na Cidade, homem prudente, concertado na vida, Doutor na sua profissão e lido nas histórias da humanidade; um Fidalgo mancebo, inclinado ao exercício da caça e muito afeiçoado às coisas da pátria, em cujas histórias estava bem visto; um Estudante de bom engenho, que, entre os seus estudos, se empregava algumas vezes nos da poesia; um velho não muito rico, que tinha servido a um dos Grandes da Corte, com cujo galardão se reparara naquele lugar, homem de boa criação, e, além de bem entendido, notavelmente engraçado no que dizia, e muito natural de uma murmuração que ficasse entre o couro e a carne, sem dar ferida penetrante. Ao senhor da casa chamavam Leonardo, ao Doutor, Lívio, ao Fidalgo, D. Júlio, ao Estudante, Píndaro, ao velho, Solino.» [Id.: 73-74] 91 Luz refere-se, apenas, a este trocadilho semântico entre «sua», pronome possessivo de deferência, e «sua», forma do verbo «suar». [Cf. LUZ, 1956: 306] 369 - Quanto mais galantes são essas histórias (tornou Leonardo) tanto mais de estimar é a moderação e bom termo de não sair daquele limite da cortesia comum».92 Basto observava, em 1931, a propósito da FT vossa excelência, que «o povo diz muitas vezes Sua: Sua Incelência (ou Inçulência)», explicando que tal emprego «não é só influência de se dizer Sua quando se fala de terceira pessoa, mas ainda influência de se tratar a pessoa com quem se fala, como se fosse terceira.» E acrescenta que, «em circunstâncias excepcionais – por ironia, geralmente –, se emprega Sua, por Vossa», quando, por exemplo, um pai, zangado com o filho, lhe fala assim: «Sua Excelência há de ter muito que fazer lá por fora, para não estar a horas em casa!» Segundo o autor, o pai manifesta, desta forma, a sua irritação perante o comportamento do filho, de duas maneiras: «1.º, por não tratar o filho por tu e lhe dar, irònicamente, o mais elevado tratamento (Excelência); 2.º, por se lhe dirigir indirectamente, usando Sua, e não Vossa, como se estivesse a falar, não a êle, mas dêle». Explicando, observa que, assim, se torna mais saliente «a ironia do tratamento, pois quando se diz Sua Excelência de alguma pessoa “ausente”, é porque essa pessoa é da mais alta categoria, e respeitabilíssima.» Tratar, por isso, «uma criatura por forma muito mais elevada do que à sua categoria (ou à intimidade havida) compete, é sinal de contundente ironia.»93 Se não for também descortesia, acrescente-se. Há, porém, quem não interprete o emprego de seu(s) / sua(s), como possessivos que substituem as FT’s pronominais vosso(s) / vossa(s). Cunha & Cintra registam que, apesar de se referirem à 3.ª pessoa, aquela de quem falamos, FT’s como sua alteza, sua eminência, etc. podem empregar-se dirigidas à 2.ª pessoa, «como expressão de máxima 92 LOBO, 1990: 94. Para um estudo, segundo a perspectiva da análise conversacional, do «Diálogo I», da Corte na Aldeia, ver FONSECA (J.), 1996. Recorde-se também a observação de Frei Luís do Monte Carmelo, supra, 3.4., a propósito das formas senhor/a mais seu/sua. 93 BASTO, 1931: 183-184. «Usando-se Você por tu, ou o Senhor por Você, isto é, tratamento imediatamente superior ao habitual, há irritação, ou censura, mas em regra não há ironia», acrescenta o autor. [Id.: 184] A propósito da distinção entre «seu “dêle”» e «seu “de Você”» e da ambiguidade referencial que pode gerar, o autor transcreve o seguinte diálogo camiliano: «- Hontem á tarde foi o senhor procurado por um sujeito bem parecido e aceado. Disse-lhe que o senhor estava na Foz, e elle mostrou pezar de o não achar. [...] - Como se chama? – atalhei. - Theotonio José de Sousa. Meditei, e disse á senhora: - Não sei quem é. - De certo não sabe. Pediu um banho, tomou chá, e recolheu-se ao seu quarto. - Ao meu?! - Não senhor, ao d’êlle ...» [Cf. BASTO, 1927: 202.] O excerto de Camilo é retirado de Memórias do Cárcere, I, pp. 180-181. Repare-se na fórmula com valor interjectivo - «Não senhor» - através da qual «a senhora» intensifica a negação e mostra o seu espanto perante a pergunta do interlocutor. 370 cerimónia, mormente quando seguidas de aposto que contenha um título determinado por artigo.» Por exemplo, em «Sua Excelência, o Senhor Ministro, aprova a medida?»94 Consideram, por outro lado, que, anteposta a um nome próprio, senhor assume, na linguagem corrente de Portugal (e principalmente do Brasil), a forma seu. Por exemplo, em «- Seu Malhadas, seu Malhadas, fosse você cavalheiro, não aceitava o meu copo!» e «- Seu Firmino, o senhor duvida da minha palavra? / - Deus me livre, seu Alexandre. Quem é que duvida?» 95 Como formas também reduzidas, respectivamente, de senhor / a, interpreta Bechara os empregos de seu e sua. Defende este gramático brasileiro que, em frases como «Qual cansadas, seu Antoninho!» e «Ande, seu diplomático, continue», seu «não é, como parece a alguns estudiosos, a forma possessiva de 3.ª pessoa do singular», mas «uma redução», que «admite ainda as variantes seo, sô», do «termo nobre, senhor», formas abreviadas que assim traduzem «nossa familiaridade ou depreciação». Além destes «valores afectivos», como os classifica, Bechara observa ainda que «fingido respeito ou cortesia – bem entendido, aliás, pelos presentes – pode determinar a presença da forma plena» de senhor/a, como em «Diga, senhora mosca-morta?», acrescentando que a forma feminina sua foi modelada pela forma abreviada seu, dando, para o efeito, o seguinte exemplo: «E ri-se você, sua atrevida?!- exclamou o moleiro, voltando-se para Perpétua Rosa».96 Formas abreviadas de senhor / a, em Português europeu, a nível oral e popular, são ainda «siôr (siôra), siô, sôr (sôra), sô» e ainda «ser (= s’r’)», registadas por Basto. A última forma, na região de Entre-Douro-e-Minho, pelo menos, mas só antes de vogal (ou h) (v.g., «“ser’António”, “ser’Ana”, “ser’Henrique”»), porque, antes de consoante, reduz-se a se (v.g., «“Se Francisco”, “se Doutor”, “se Dona Maria”...») E o autor conta, 94 CUNHA & CINTRA, 1984: 293. Id.: 296. O primeiro exemplo colheram-no os autores n’O Malhadinhas (p. 67) e o segundo em Alexandre e outro heróis (p. 111), de Graciliano Ramos. 96 BECHARA, 200137: 184. As frases foram colhidas pelo autor, segundo a ordem da sua apresentação, em: Lima Barreto, 1915: Triste Fim de Policarpo Quaresma; Machado de Assis, 1899: Memórias Póstumas de Brás Cubas; Lima Barreto, id., e Alexandre Herculano, 1876: Lendas e Narrativas. Os principais dicionários portugueses e brasileiros registam outras formas reduzidas de senhor e sobretudo senhora, bem como definições interessantes destes termos, enquanto FT’s. A título de exemplo, vejam-se as do Dicionário Morais, por mais completas. Para senhor: «Título honorífico de alguns monarcas», «Título que [antigamente] se conferia a pessoas distintas, já pela sua posição, já pela dignidade de que estavam investidas», «Título de nobreza de alguns fidalgos», «Título dado por cortesia a qualquer homem a quem se fala, mas cujo nome se não cita ou se ignora», «Tratamento entre pessoas que se não tratam por tu, nem por você», «Título dado por cortesia a qualquer homem a quem se fala ou a quem se escreve», «Tratamento de criados para os amos» [SILVA, 195710: 51-52] E para senhora: «Tratamento que se dá por cortesia às damas seguido do adjectivo possessivo minha», forma que se diz também «em geral das mulheres em boa ou modesta posição social», e «Tratamento dado a qualquer mulher a quem se fala ou se escreve». [SILVA, 195710 (vol. 10): 53-54]. 95 371 como ilustração, um diálogo ouvido em Contumil (Porto), a propósito de Sebastião, nome próprio de rapaz que outro tratava apenas por Bastião. Advertido de que não era Bastião, mas Sebastião a forma correcta, retorquiu o rapaz: «- Êle não é senhor.»97 Há, todavia, quem considere que seu / sua são apenas determinantes possessivos, por um lado, ora formas contraídas de senhor / a, por outro. O Dicionário Morais regista seu como abreviatura de senhor, com exemplos colhidos em textos literários de autores brasileiros.98 Refere, contudo, que se usa, «muito frequentemente [como possessivo] por vosso quando se fala com alguém a quem não se trata por tu.»99 Não regista, porém, que sua seja forma abreviada de senhora, mas observa que, como possessivo, serve, entre outras funções, «para reforçar insultos», como em «Então, sua palerma, é assim que se bota sentido num herói»100 Além disso, anota que sua e suas são formas «da segunda pessoa, no caso do possuidor ser a pessoa com quem se fala, e não recebe, da parte de quem fala, o tratamento de tu».101 O DLPCACL define seu e sua como possessivos relativos à terceira pessoa gramatical, «quer se trate da pessoa de que se fala», parafraseáveis, neste caso, por, respectivamente, dele e dela, quer se trate da pessoa a quem é dirigida a mensagem, no tratamento formal por «o senhor», «a senhora», ou no tratamento por você. Acrescenta, depois, que estas formas são também usadas «em apóstrofes para interpelar pessoas, acentuando ideia de reprovação e sarcasmo», como em «Ó seu idiota! Ó sua besta!»102 O Dicionário Aurélio, por seu turno, regista, como primeira acepção de seu e sua, que se trata de substantivos, que são equivalentes, respectivamente, a senhor e senhora, «vindo claro o nome da pessoa, ou outro axiônimo, ou palavra designativa de profissão, etc.», como em «Seu Acrísio», «seu doutor», «seu sargento» e «seu moço».103 Dá uma segunda definição de seu: «Com a mesma equivalência, (podendo envolver desdém, desprezo, ou, ao contrário, simpatia, camaradagem, ou, ainda, malícia), usa-se seguido de algum substantivo, ou em fim de frase ou período, tendo, neste último caso, um matiz interjetivo».104 Exemplos: «Ele sorriu maliciosamente, e disse-me : - Seu 97 BASTO, 1931: 188. Para outras FT’s reduzidas de senhor e senhora (sê, senhozinho, sô, sor, sinhã , sinha, siá, sai, senha, sora, etc.) cf. DLPCACL, 2001; FERREIRA, 19862; FIGUEIREDO, 1985.15 98 Cf. SILVA, 195710 (vol. 10): 150. 99 Cf. id.: 149. 100 O exemplo foi colhido pelo autor em Macunaíma, de Mário de Andrade. 101 Cf. SILVA, 195710 (vol. 10): 416. 102 DLPCACL, 2001 (vol. 2): 3405. 103 FERREIRA, 19862: 1579. Os dois primeiros exemplos são colhidos em textos literários, respectivamente, Infância de Graciliano Ramos e Contos Vários de José Carlos Cavalcanti Borges. Citámos, apenas, as FT’s. 104 Id.: 1579-1580 e, para sua, id.: 1617. 372 maganão! Recordações do passado, hem?», «Dormiu, seu preguiçoso?», «- Mas parece que o moço tinha razão de matar a moça. / Qual tinha razão nada, seu! Bandido!» e «Que tal minha cara? Você nem disse nada, sua bruxa!»105 Em nosso entender, as formas seu e sua ocorrem, em Português europeu contemporâneo, quer como forma contraída de senhor / a (sobretudo a nível oral e popular), quer como determinante possessivo. É este, em geral, o valor predominante, ainda que, por vezes, nem sempre seja fácil decidir se se trata, de facto, de possessivo que acompanha FT, ou de FT que acompanha outra FT, uma vez que a sua ocorrência isolada não se verifica, a não ser em frases elípticas, como em «ó seu...», com objectivo mais ou menos insultuoso. Por exemplo, sua bruxa, em «Você nem disse nada, sua bruxa!», sua é determinante possessivo ou forma reduzida de senhora? A análise de seu / sua, ao nível das FT’s, deve ter em consideração os valores semântico-pragmáticos que, ao longo do tempo, aquelas formas foram tendo. Vimos já como elas entraram nos tratamentos de Portugal e a sua aceitação e expansão, com maior ou menor resistência. Quando foram introduzidas, seu / sua eram, evidentemente, possessivos e marcavam, ao acompanharem tratamentos como mercê, alteza, senhoria, senhor / a, em situação interlocutiva assimétrica ou simétrica, uma maior relação de cortesia ou deferência. O destinatário passou a ser tratado indirectamente, pela terceira pessoa, estabelecendo-se assim uma relação de maior distanciamento e de respeito entre quem fala ou escreve e quem recebe o tratamento, tanto a nível proxémico (em caso de simetria), como taxémico (em caso de assimetria).106 Todavia, a «qualidade individualizada» dirigida aos interlocutores, através de um ou mais «substantivos abstractos honoríficos»,107 continua a ser algo «que lhes cabe ou pertence», com a qual mantêm «uma relação de posse ou pertinência, real ou figurada»,108 e que eles, explícita ou/e implicitamente, prezam e estimam, em virtude da figuração e preservação das faces a que têm socialmente direito. 105 Os exemplos foram recolhidos pelo autor, respectivamente, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, Maria Isabel, de Lúcia Benedetti, Novelas Paulistanas, de Antônio de Alcântara Machado e O Jardim Selvagem, de Lígia Fagundes Teles. O último exemplo ilustra o emprego de sua, cuja entrada se encontra na p. 1617. 106 Embora referindo-se aos requerimentos, observa Lapa que o emprego da terceira pessoa, em vez do «orgulhoso eu», é «um processo de retenção social, de cortesia, atenuação imposta pelo próprio interesse e pela vida em comum.» [LAPA. 19758: 153] 107 LUZ, 1956: 335. Recorde-se que, como vimos supra, Carmelo vê, na segunda metade do século XVIII, na estrutura de tratamento o/a Senhor/a seu/sua ..., uma insinuação de escravatura do alocutário em relação a um terceiro que lhe seja familiar próximo. 108 CUNHA & CINTRA, 1984: 318 e 323. 373 Nestes casos, os possessivos seu / sua acentuam «matizes afectivos» que, consoante o co(n)texto, podem ser «de deferência, de respeito, de polidez»,109 se o tratamento que acompanham estiver orientado para a valorização da face positiva do interlocutor, directo ou apenas delocutário, num dado co(n)texto de interacção verbal. É que, além destes valores afectivos de orientação positiva (que poderemos situar, considerados isoladamente, no conjunto dos FFA’s propostos por Kerbrat-Orecchioni), os possessivos seu e sua podem expressar, pelo contrário, valores «de ironia, de malícia, de sarcasmo»,110 ou «forte sentido recriminativo».111 Visam lesar, nestes casos, com maior ou menor profundidade, a face positiva (e, por vezes, a negativa) do referente, interlocutor de facto ou simples delocutário. Tratar-se-á, então, de tratamentos complexos (ou locuções de tratamento) que se podem inscrever no âmbito dos FTA’s. 3.5. Senhor/a, dom/dona como insultos Convirá, distinguir, a este nível, entre tratamentos irónicos positivos, tratamentos irónicos negativos e tratamentos objectivamente insultuosos (ou simplesmente insultos). Vimos acima, referido por Basto, um tratamento irónico negativo, quando o pai trata o filho por «Sua Excelência», ao repreendê-lo por chegar tarde a casa. Esta estratégia de pseudocortesia não é nova, entre os portugueses, nem, certamente, noutros povos e culturas. Quanto a Portugal, observa Luz que empregar «fórmulas supercerimoniosas», em relação a uma pessoa, «é, de certo modo, ridicularizá-la, visto que se põe em evidência a sua condição de inferioridade», como era o caso, no Português arcaico, do emprego (irónico) de dom e dona, senhor / a, e mesmo títulos nobiliárquicos e outros tratamentos corteses, associados a uma palavra ou a uma expressão que os tornassem despropositados. Colhidos em textos teatrais do séc. XVI, a autora regista os tratamentos de dom ou dum e dona ou duna com nomes de animais, como «dom perro», «dum filho d’aranha morta», «dom cabrão», «dona cegonha esfolada», «dona bugia», «dũa gaze109 CUNHA & CINTRA, 1984: 324. Estes autores referem-se aos valores afectivos dos possessivos em geral, ainda que, nos exemplos (literários) apresentados, apenas se encontrem possessivos de primeira pessoa do singular. A nosso ver, porém, tais valores encontram-se sobretudo nos possessivos de terceira pessoa, uma vez que os de primeira acrescentam valores «de intimidade, de amizade» e «de simpatia», também referidos e exemplificados pelos autores. A este respeito, é de recordar o tratamento, vocativo ou não, de «Ó meu», nos tempos actuais, entre adolescentes e jovens. Bechara também refere que, além de «exprimir a idéia de posse», o possessivo adquire também «variados matizes contextuais de sentido», de que destaca «simpatia [...], afeto, cortesia, deferência, submissão». [BECHARA, 200137: 183 e 184] 110 CUNHA & CINTRA, 1984: 325. 111 LAPA, 19758: 162. Lapa anota, por outro lado, que o possessivo pode exprimir, também, «certa malícia e ironia familiares». [Id.: 162] 374 la». Mas também associados a «substantivos ou adjectivos injuriosos», como «dom ladrão», «dom villão», «dom alcoviteirinho», «dum falso», «dom tredo», «duna mà», «dona torta», «dona sicrana», «dom rosto de funil», «dum miolo de cabaça».112 O tratamento de senhor, segundo refere a autora, destronou, depois, o tratamento de dom, «como prenome irónico e insultuoso».113 Servindo-se, ainda, de textos teatrais do séc. XVI, regista «senhor tartarugo», «senhor madraça» e «senhor ladrão».114 Quanto aos possessivos, usados na primeira, segunda ou terceira pessoas, anota que tais formas também foram utilizadas, no Português arcaico, com idênticos fins, tendo sido criadas FT’s depreciativas, à semelhança das verdadeiras, com um substantivo abstracto, como «vossa doçura», «sua velhacaria», «minha mercê», entre outras. Não pudemos analisar, diacronicamente, os diferentes usos de seu e sua, nos seus valores de forma reduzida de senhor / a, como determinante possessivo, ou ainda como simples exortativo, com maior ou menor valor interjectivo e insultuoso. Cremos, contudo, que no Português europeu actual, além das fórmulas consagradas e formais, de maior ou menor cortesia, acima referidas (ironicamente formuladas ou não, como sua excelência, seu Gomes, ser António, se Joaquina, etc.), é sobretudo como determinantes possessivos que seu e sua ocorrem, como adjuntos pronominais de nomes115 comuns ou abstractos, nomeadamente de afecto, favorável ou desfavoravelmente orientados para as faces positiva e/ou negativa do(s) interlocutor(es). Se nem sempre será fácil distinguir, a nível gramatical, se estamos perante uma redução de senhor / a ou um possessivo, cremos que, a nível pragmático, isto é, ao nível das relações interlocutivas e interpessoais estabelecidas ou a estabelecer em co(n)textos concretos de interacção, seu e sua, mesmo quando substituíveis por senhor ou senhora, não deixam de marcar também o valor de propriedade positiva ou negativa que, real ou ironicamente, pertence ou é atribuída ao(s) destinatário(s). Estes valores são mais facilmente reconhecidos nas locuções insultuososas. Por exemplo, tratar alguém por seu/sua estúpido/a, embora possa ser parafraseável, por senhor/a estúpido/a, serve melhor o objectivo de intensificação da propriedade negativa (o insulto) e assim atingir mais gra- 112 Cf. LUZ, 1958-59: 89-91. Id.: 94. 114 Id.: 91. Nas cantigas de escárnio e maldizer dos cancioneiros medievais galego-por-tugueses já se encontram muitos tratamentos irónicos, jocosos e insultuosos. Cf. LAPA, 19702. 115 Podem ser utilizadas também formas que o léxico classifica como adjectivos, mas que nestes co(n)textos passam a nomes. 113 375 vemente a(s) face(s) do interlocutor. Aliás, estas formas são mais facilmente parafraseáveis por meu/minha .... do que por senhor/a. 4. Vossa senhoria e vossa excelência A história destes tratamentos corre a par, ainda que vossa senhoria tenha começado a ser utilizada primeiro. Terão entrado no sistema português, a partir dos meados do séc. XV, como tratamentos dirigidos apenas ao rei.116 Começaram como FT’s nominais, dado serem caracterizadoras, por expressarem «traços concretos e individualizadores»117 do destinatário. Não admira, por isso, que, face ao prestígio alcançado, tantos tivessem lutado por receber, como títulos, tais tratamentos. Vossa senhoria é utilizada, no tratamento régio, para isolar, como substância, «uma das qualidades que se atribuíam à realeza: [...] a “senhoria”, isto é, o “senhorio”, dito à italiana».118 Esta FT degradou-se, porém, muito rapidamente, ao ser usada, primeiro, pela e entre a nobreza, bem como, depois, pela e entre a alta burguesia. O prestígio que concedia era tal que se tornou «numa aspiração» daqueles que queriam «subir na escala social».119 O «assalto» ao uso de vossa senhoria e de vossa excelência, bem como de outro tratamentos de mais elevada cortesia, causou tais «desordens e abusos» que Filpe II procurou regular, em 1597, o seu emprego.120 Ao tratamento de vossa excelência é reservado um lugar superior ao de vossa senhoria (e ambos em relação a vossa mercê, já em declínio). O disputado tratamento de vossa excelência passa a ser devido apenas «aos 116 Cf. CINTRA, 19862: 18 e LUZ, 1957: 74, 85 e 360-361. Como curiosidade, referira-se que Cintra situa a entrada de Vossa Senhoria, como tratamento régio, a partir de 1442, enquanto Luz regista a sua primeira ocorrência escrita em 1434, em carta dirigida ao monarca. 117 CINTRA, 19862: 13-14. 118 Id.: 18 e 19. A fórmula terá sido importada de Itália. 119 Id.: 21. 120 Antes de Portugal, Filipe II tinha já feito publicar, em Espanha, uma mesma «provisão», em 1586, sinal de que idêntica situação também preocupava os espanhóis. [Cf. id.: 22]. Começa como segue a provisão para os portugueses: «Dom Felippe por graça de Deos Rey de Portugal ... Fasso saber aos que esta minha ley virem, que sendo eu informado das grandes dezordens, e abuzos, que se tem introduzido no modo de falar, e escrever, e que vão continuamente em crescimento, e tem chegado a muito excesso, de que tem rezultado muitos inconvenientes, e que converia muito a meu servisso, e ao bem, e sossego de meus vassaloz, reformar os estilloz de falar e escrever, e reduzilos a ordem, e termo certo, praticando-o, e tratando-o com pessoas de meu Conselho, e outras de letras, e de experiencia, ordenei de prover nisto na forma e maneira ao diente declarada.» [Cf. id.: 109-111] 376 filhos, e filhas legitimos dos [...] Infantes», bem como «ao Duque de Bragança.»121 É longa, por seu turno, a lista das pessoas a quem ficava devido o tratamento de vossa senhoria: arcebispos (excepto o de Braga, a quem, «como Primaz, se poderá falar e escrever por Senhoria Reverendissima»), bispos, duques e filhos, marqueses e condes, Prior do Crato, vice-reis e governadores, o Regedor da Justiça da Casa da Suplicação, Governador da Relação do Porto, vedores da fazenda, presidentes do Desembargo do Paço e da Mesa da Consciência e Ordens (estes, só quando «estiverem em seus Tribunaes»), embaixadores com assento na capela real «e a qualquer outra pessoa, que por algum respeito» o rei mandasse cobrir.122 Esta tentativa régia123 de regulamentar os tratamentos volta a pôr-se em 1739, com D. João V, que, para remediar abusos, fez nova lei. Merecem nela especial atenção precisamente vossa excelência e vossa senhoria, sinal das mudanças que, desde a pragmática filipina, tais tratamentos tinham sofrido. Senhoria é mesmo tomada, no preâmbulo, como exemplo da «confusão que sucede nos tratamentos». Aí se diz que o tratamento tinha vindo «a estender-se com tanto excesso e vulgaridade, que se confunde a ordem, e se perverte a distinção que faz os tratamentos estimaveis».124 Longas são as listas daqueles a quem se devia tratar, em primeiro lugar, por excelência e, em seguida, por senhoria. Remetemos para a pragmática joanina,125 mas pode-se dizer, em síntese, que tais tratamentos ficavam restringidos aos grandes do reino, membros do clero e da nobreza. Não tiveram sucesso, como era de esperar, estas e outras126 tentativas de fixação, por decreto, das FT’s. Como observa Cintra, tais tentativas não resistiram «às forças que, apesar de todas as pressões, continuam sempre a agir 121 Cf. id.: 110. As restantes fórmulas regulamentadas são vossa majestade, dirigida aos reis e rainhas; vossa alteza, dirigida aos príncipes e sucessores do trono, princesas, infantes e infantas, bem como a genros e noras, cunhados e cunhadas dos reis. [Cf. id., Apêndice 3: 109-110] 122 Cf. id., Apêndice 3: 110-111. 123 Não eram os reis, evidentemente, os únicos (nem certamente os mais) preocupados com a vulgarização dos tratamentos estimáveis. Aliás, os próprios documentos régios sugerem que outros sentiriam os seus direitos ameaçados, a tal respeito. Filipe II diz que fora «informado das grandes dezordens, e abuzos» [Id.: 109], e D. João V decide legislar, porque lhe constava a confusão que reinava nos tratamentos. [Id.: 112] Cintra, baseando-se nas obras dramáticas da época, é de opinião que tal preocupação seria «nacional», pois era sentida por «toda aquela pequena parte da população que vive nas cidades e que costuma tradicionalmente considerar-se a si própria como “a nação”». [Id.: 27] O direito social a um tratamento estimável continua, ainda hoje, a ser reivindicado. Veja-se, supra, cap. X, 1., a crónica de Miguel Esteves Cardoso, por exemplo. 124 Cf. id.: 112. 125 Cf. id.: 112-115. 126 D. José publicou também dois alvarás, em 1759, e uma lei, em 1764, através dos quais concedia o uso de Excelência a «Gentis Homens da Camara de Sua Magestade» e aos «Mestres de Campo Generaes», e de Senhoria a «todos os Ministros, que tivessem carta de Conselho», bem como aos «Sargentos Móres de batalha.» [ROQUETTE, 18592 : 49] 377 e a agitar-se, em tudo quanto depende do espírito do homem ou com a sua vida se relaciona»,127 como é a língua dum povo. No que toca a vossa senhoria e vossa excelência, continuaram a ser, durante o século XIX, tratamentos utilizados por camadas sociais cada vez mais largas, ainda que contestados, por vezes. Porque, como observa Roquette, «bem vedes que não era cousa indifferente entre os nossos maiores» os tratamentos. É que, apesar dos «muitos abusos [que] se hão introduzido», eles «na sociedade e no trato das pessoas bem educadas têem quasi força de lei.»128 Cabe aqui lembrar a conhecida intervenção que Camilo põe na boca de Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, deputado transmontano que, no Parlamento de 1865, se insurge contra os tratamentos dados e/ou exigidos por quem deles não era digno, além de atacar outras misérias sociais lisboetas. «E eu já vi, sr. Presidente, andarem as senhorias e excelências, as pobres esfarrapadinhas, por meio destes paralvilhos, que saem de casa do alfaiate com o foro grande e o desaforo maior. Que desbarato e corruptela é esta dos tratamentos em Lisboa?» E mais adiante, servindo-se do encontro que tivera com um tendeiro, a quem comprara «figos de comadre», o qual se sentira ofendido «de receber um vossemecê» que «longânimamente» lhe dirigira, o deputado Calisto recorda a pragmática de D. João V, enumera a lista dos que podiam receber tratamento de senhoria e remata: «sr. presidente, falta uma senhoria legal para o homem que me vendeu os figos. Criemos esta senhoria, para aliviarmos de escrúpulos os que lha derem a medo. Legislemos a podridão dos tratamentos nobilitários. Atiremos ao esterquilínio com esta moeda refece. Isto já não vale nada, não prova nada, não estrema coisa nenhuma.»129 Nos séculos seguintes, as FT’s vossa excelência e vossa senhoria continuaram a ser utilizadas, quer como locução, quer nas formas contraídas, respectivamente, de vossência e vossoria,130 estas mais a nível oral e coloquial. Terá sido durante a primeira 127 CINTRA, 19862: 24. ROQUETTE, 18592: 49-50. 129 BRANCO, Camilo Castelo, 197011: A Queda dum Anjo. Lisboa: Parceria A. M. Pereira; pp. 62 e 63. 130 Basto regista também as formas vosselência e (no povo) vossa incelência ou mesmo vossa inçulência, além de, «em circunstâncias excepcionais - por ironia, geralmente», se substituir o possessivo vossa por sua. De vossa senhoria, o autor encontra, no «povo aldeão», aquela forma «adulterada» em Vòssinhoria, Vòssioria e Vàssoria. [BASTO, 1931: 183 e 185] 128 378 metade do séc. XIX que passaram a pronominais, ainda que só nos finais do mesmo século e/ou nos princípios do seguinte se tenha operado de facto a recategorização.131 Como locuções ou amálgamas, são fórmulas com uso actualmente muito reduzido. Vossa excelência ainda se usa, na linguagem oral, em determinados ambientes ou situações formais, ao passo que, a nível escrito (com a grafia abreviada a V. Ex.ª), «é largo o seu uso, principalmente na correspondência oficial e comercial.»132 Vossa senhoria é muito menos utilizada. Ocorre, todavia, na forma graficamente abreviada de v. sr.ia, em documentos escritos (cartas comerciais, requerimentos, ofícios, etc.), «quando não é próprio o tratamento de Vossa Excelência»,133 ou então «lorsque l’interlocuteur est militaire (de haut rang)», fórmula que, neste caso, exprime «le plus haut degré de distance».134 Se os usos degradados destes tratamentos forem análogos, por um lado, à degradação semântica da forma e, por outro, a uma relativa degradação social dos primitivos destinatários,135 quem as emprega não estará, apenas, a utilizar formas populares e contraídas de vossa excelência e de vossa senhoria, mas também, ao fazê-lo, a acentuar, paradoxalmente, essa mesma degradação social, apesar de tão cortesmente tratados, consciente ou inconscientemente. À luz dos valores semântico-pragmáticos que o léxico e o diassistema cultural português lhes atribui(u), estas fórmulas são dirigidas, por regra, a alguém que se tem como ocupando um lugar superior, em relação ao qual se manifesta, real ou fingidamente, respeito, consideração e deferência. Poderá ocorrer, portanto, entre iguais, mas, neste caso, será um relacionema proxémico, havendo então um tratamento recíproco, simétrico. Entre desiguais, usar-se-á de inferior para superior e, neste caso, trata-se dum rela131 Cf. CINTRA, 19862: 32. CUNHA & CINTRA, 1984: 296-297. Cf. também CARREIRA & BOUDOY, 1993: 297 e CUESTA & LUZ, 1971: 486-487. 133 CUNHA & CINTRA, 1984: 297. Os autores registam, todavia, algumas páginas antes, no elenco das «formas de tratamento reverente», que Vossa Senhoria ou V. S.ª se emprega para se tratar funcionários públicos graduados, oficiais até coronel e, «na linguagem escrita do Brasil e na popular de Portugal, pessoas de cerimónia.» [Id.: 292] 134 CARREIRA, 1985: 113. Basto diz que «Vossa Senhoria é hoje fórmula usada no comércio e na tropa», obrigando o «Regimento» desta última que o tratamento seja dado «de capitão a alferes (subalternos)», enquanto v. excelência é obrigatório de «major para cima». [BASTO, 1931]. Lapa, por seu turno, observa que a «manutenção entre nós, portugueses, [da forma v. ex.ª ] indica uma certa sobrevivência dos costumes antigos, próprios duma sociedade decadente.» [LAPA, 19758: 154] 135 Observa Luz que as expressões de cortesia «estão particularmente sujeitas a perderem o seu significado, banalizando-se. Em muitas, o desgaste fonético acompanha o desgaste semântico (por exemplo, vossa mercê, transformada fonética e semânticamente, em você). É que as fórmulas de tratamento corteses são expressivas, por vezes exageradas, e o valor expressivo das palavras atenua-se ràpidamente, pelo uso frequente que delas se faz. Assim, não causa admiração que a linguagem cortês se renove mais depressa que qualquer outra.» [LUZ, 1956: 271 (21)] 132 379 cionema taxémico, não recíproco, assimétrico. Tratar-se-á sempre, por outro lado, no quadro da cortesia linguística, de tratamentos que reforçam FFA’s (cortesia positiva), ou atenuam a realização de FTA’s (cortesia negativa). Intencionalmente ou não, com estas FT’s, o locutor pode visar outros objectivos, o primeiro dos quais é, sem dúvida, criar, assegurar, manter ou recuperar uma plataforma comum de conversação não conflituosa, para que depois outros objectivos sejam alcançados. Capítulo XII AS FORMAS DE TRATAMENTO NO QUADRO DA CORTESIA LINGUÍSTICA As principais FT’s descritas no capítulo anterior, como processos de referência e expressão de cortesia ou de descortesia que são, podem estar orientadas para o alocutário (realização mais frequente), para o próprio locutor ou para terceiros, presentes ou ausentes. Consoante esta tripla orientação, as FT’s são designadas, respectivamente, de alocutivas, elocutivas e delocutivas. Neste capítulo, vamos analisar os principais tratamentos portugueses, segundo esta tripla orientação, no quadro da cortesia / descortesia linguística que temos vindo a seguir. 1. Tratamentos alocutivos A descrição dos valores que, ao longo dos séculos, os tratamentos portugueses foram expressando, foi feita, principalmente, segundo uma perspectiva alocutiva, isto é, segundo os valores semântico-pragmáticos e o tipo de relação que um determinado locutor, caracterizado por um determinado estatuto social, expressaria e estabeleceria com diferentes alocutários, caracterizados também eles por diferentes estatutos sociais. Tal locutor teria ou desejaria ter com cada um dos seus alocutários uma relação de proximidade ou de afastamento, através das FT’s utilizadas. Neste sentido, consoante a posição em que se encontra (ou julga encontrar-se) e a posição que reconhece ou atribui ao(s) seu(s) alocutário(s), tendo em vista também o objectivo ilocutório pretendido, o locutor escolherá os tratamentos que julgar mais adequados e convenientes à interacção verbal e ao co(n)texto. As FT’s podem expressar, como vimos, relações simétricas ou recíprocas e relações assimétricas ou não-recíprocas entre os interlocutores. Observe-se a FIG. 1 (página seguinte). 380 Eixo Taxémico + CORTESIA V. Ex.ª V. Sr.ia V. Ex.ª V. Sr.ia Sr./ Srª Eixo Proxémico Sr./ Srª Você Você Tu Tu - CORTESIA FIG. 1 – Relações simétricas Tendo em conta apenas as FT’s antes descritas, representámos as relações simétricas, na FIG. 1. No quadro da cortesia linguística, em situações normais, os interlocutores, numa relação recíproca ou simétrica, mantêm os seus estatutos e tratam-se mutuamente utilizando, regra geral, as mesmas FT’s. Não revelam, ainda que existam, relações taxémicas, isto é, de poder de um sobre o(s) outro(s). Todavia, à medida que se vai subindo na escala das FT’s, aumenta a distância proxémica entre os interlocutores ou interactantes. Neste sentido, quanto mais elevadas são, na escala da cortesia, as FT’s utilizadas mutuamente pelos interlocutores, numa situação simétrica de lugares reconhecidos ou aceites, mais eles se afastam proxemicamente. É de observar que os eixos taxémico, proxémico e da cortesia não são fixos, apontando apenas orientações. Cada um deles pode, por isso, ser deslocado, na leitura deste como na dos quadros seguintes, para cima ou para baixo (eixo proxémico), e para a esquerda ou para a direita (eixos taxémico e de cortesia). Por outro lado, a pirâmide invertida para que aponta o quadro deve ter uma leitura inversa, em termos quantitativos, ao que pode sugerir. O número de pessoas que usam FT’s de cortesia menos elevada é muito superior ao número daquelas que usam FT’s (mais) elevadas. Isto em termos gerais, obviamente. Cabe observar, por último, que as FT’s que situámos no paradigma de V (de você(s) a v. sr.ias / ex.as ), podem coocorrer ao longo duma interacção verbal, dirigidas ao(s) mesmo(s) alocutário(s). Basta reparar, por exemplo, nos debates parlamentares, onde os deputados utilizam, mutuamente, tanto v. ex.as, como o(s) senhor(es) deputado(s), como inclusive você(s). Ou o caso do narrador autodiegético d’O Malhadinhas 381 que trata os seus ouvintes (auditório) de vós («vos») e «m’amigos» (meus amigos), até «vossorias» e «(meus) fidalgos».1 Por último, é de referir e insistir que o uso simétrico de FT’s depende muito do co(n)texto em que ocorrem. Em público, os interlocutores utilizam, regra geral, FT’s formalmente mais corteses e de menos afectividade do que em privado. Todavia, os interlocutores esquecem-se, por vezes, no decurso duma interacção verbal, das exigências formais do co(n)texto, e passam a usar formas de cortesia menos elevadas, o que não quer dizer que tenham deixado de ser menos corteses por isso. A propósito, é de referir que -CORTESIA não significa ausência ou negação de cortesia, mas apenas FT’s cujos valores semântico-pragmáticos habituais são considerados de cortesia menos elevada. As relações assimétricas ou não recíprocas entre os interlocutores podem ser, como vimos, de dois tipos: o locutor situa-se (i) em lugar inferior, ou (ii) em lugar superior. É sobretudo em torno do eixo taxémico, por isso, embora articulado geralmente com o eixo proxémico, que essas relações se estabelecem e que são reflectidas pelas FT’s. Representamos, na FIG. 2, as relações de tipo (i). Eixo Taxémico + CORTESIA V. Ex.ª V. Sr.ia Sr./ Srª Eixo Você Proxémico Tu - CORTESIA FIG. 2 – Relações assimétricas, a partir de Tu. Este quadro representa o locutor sempre (auto)situado num lugar inferior ao(s) do(s) interlocutor(es), em posições assimétricas. O primeiro dirige ao(s) segundo(s) utilizando FT’s de maior ou menor cortesia (linhas curvas setadas contínuas), enquanto 1 Para outros exemplos de mudança estratégica de tratamentos, pelas mais variadas razões, ver caps. seguintes. 382 o(s) segundo(s) lhe corresponde(m) sempre com formas de T (linhas curvas setadas descontínuas).2 Tomando-se agora em consideração a hipótese dum locutor, situado na posição de receber tratamento de você, este tratará o(s) seu(s) interlocutor(es) por FT’s de T, por um lado, e por sr. / srª (seguido ou não de nome ou título), ou v. sr.ia / exª, por outro. Situar-se-á, no primeiro caso, numa posição superior e, nos segundos, em posição inferior. Teremos, assim, o quadro seguinte (FIG. 3): Eixo Taxémico + CORTESIA V. Ex.ª V. Sr.ia Sr./ Srª Eixo Proxémico Você Tu - CORTESIA FIG. 3 – Relações assimétricas, a partir de Você. É de observar que os tratamentos representados na FIG. 3 não são fáceis de manter. Dificilmente aqueles que são tratados por sr. / srª (seguidos ou não de nome ou título) ou por v. sr.ia / exª, tratarão, durante muito tempo, o seu interlocutor apenas por formas de você (ou outras formas de 3.ª pessoa). Representamos, no quadro seguinte (FIG. 4), outro tipo de relação assimétrica, efeito ou causa do uso de FT’s distanciadoras. Agora, um locutor, colocado na posição de receber tratamento de sr. / srª, dirige-se a interlocutor(es) de estatuto(s) superior(es), tratando-o(s) por v. sr.ia / exª, e a interlocutor(es) com estatuto(s) inferior(es), por você ou por tu. 2 Nesta, como nas figuras seguintes, as linhas curvas setadas procuram representar os movimentos ascendentes e descendentes que, respectivamente, os interlocutores assumem, consoante as FT’s que dirigem e os lugares que ocupam. 383 Eixo Taxémico + CORTESIA V. Ex.ª V. Sr.ia Eixo Sr. /Srª Você Proxémico Tu - CORTESIA FIG. 4 – Relações assimétricas, a partir de Sr. / Srª. Também em relação aos usos assimétricos representados neste quadro se deve observar que, por um lado, aquele que recebe dum inferior (talvez não tanto quanto isso) tratamento de v. sr.ia e/ou v. exª, acaba sempre por receber outros tratamentos de V. Por outro lado, aquele que se encontra na posição de receber tratamento de sr. / srª (seguido ou não de nome e/ou título) receberá, tanto do superior como de inferiores, também o tratamento de sr. / sr.ª (minha sr.ª). Temos, por último (FIG. 5, página seguinte), as situações assimétricas em que um interlocutor se situa na posição mais alta e recebe, por isso, FT’s da mais elevada cortesia (v. sr.ia / exª), dirigindo, por seu turno, FT’s que expressam ou atribuem posições inferiores à sua (sr. / srª, seguido ou não de nome e/ou título, você, pronome e/ou desinência verbal, e tu, pronome e/ou desinência verbal). A eventualidade dum interlocutor que recebe tão elevadas FT’s tratar o(s) seu(s) alocutário(s) por tu, será, como se observou em relação a casos anteriores, muito reduzida, a não ser que se dirija a criança(s). Mas será que, nesses casos, uma criança trata o interlocutor por v. sr.ia ou v. exª ?... As figuras representam as diferentes relações que, no uso das FT’s descritas no capítulo anterior, os interlocutores estabelecem entre si, bem como os lugares que, através delas, atribuem ao(s) alocutário(s). 384 Eixo Taxémico + CORTESIA V. Ex.ª V. Sr.ia Sr. / Srª Eixo Você Proxémico Tu - CORTESIA FIG. 5 – Relações assimétricas, a partir de V. Sr.ia / Exª. Com já referimos, no uso dos tratamentos, como doutros relacionemas, verticais ou horizontais, verifica-se o que chamamos efeito de boomerang: qualquer FT alocutiva (e mesmo elocutiva ou delocutiva) atinge, directamente, o interlocutor e, indirectamente, o próprio locutor. Observe-se a FIG. 6. Eixo Taxémico + CORTESIA V. Ex.ª V. Sr.ia Sr./ Srª Você Eixo A Proxémico B C D - CORTESIA FIG. 6 – Relações assimétricas: elevação do alocutário com rebaixamento do locutor. 385 Explicitando a FIG. 6, dizemos que o locutor, situado em posição baixa, quando dirige FT’s de cortesia (mais ou menos) elevada ao(s) seu(s) alocutário(s) (linhas curvas setadas contínuas), vai descendo (linhas curvas setadas ponteadas), simultaneamente, de posição, em termos simbólicos. Ou seja, distanciando o(s) seu(s) alocutário(s), o locutor distancia-se a si próprio dele(s). Muda de A para B, usando você; de B para C, com sr. / sr.ª; de C para D, empregando v. sr.ia / exª. Em sentido inverso, o locutor colocado em posição alta, ao utilizar tratamentos descendentes (na escala da cortesia) dirigidos ao(s) seu(s) alocutário(s), vai rebaixando esse(s) mesmo(s) alocutário(s) e subindo ou reforçando, gradualmente, o seu próprio lugar, aumentando um distanciamento progressivamente maior em relação ao(s) alocutário(s), a nível sobretudo taxémico. A FIG. 5, supra, mostra já, em parte, os efeitos desse distanciamento, para cuja (re)leitura, sobre este aspecto, remetemos. Resumindo este ponto, diremos que quando o locutor, ocupando posição elevada reconhecida, se dirige directamente ao seu alocutário utilizando sr. / srª, você e tu, além de afastar o(s) seu(s) interlocutor(es), afasta-se também ele próprio desse(s) mesmo(s) interlocutor(es), mesmo que só aparentemente, simbolicamente, retoricamente, polifonicamente, mude de lugar, isto é, de posição, de estatuto, de identidade, em termos discursivo-textuais, pelo menos. 2. Tratamentos elocutivos e delocutivos Além dos tratamentos alocutivos, os interlocutores também usam FT’s dirigidas a si próprios e a terceiros, presentes ou ausentes. No primeiro caso (tratamentos elocutivos), o locutor utiliza, regra geral, formas de modéstia ou mesmo de auto-humilhação, por uma questão de cortesia real ou fingida, com objectivos mais ou menos confessados ou inconfessados. Os autotratamentos elogiosos são, todavia, proscritos no diassistema cultural português, pois que, ao engrandecer-se, o locutor está, ao mesmo tempo, a diminuir o(s) seu(s) interlocutor(es), a atacar-lhe(s) a(s) face(s) sobretudo positiva(s). Ao rebaixar-se, porém, não o deve fazer em excesso, para não correr o risco de provocar o efeito contrário, isto é, ultrapassando os limites do aceitável, entrar nos domínios da 386 descortesia, por falsa modéstia, a qual poderá ser interpretada, além disso, como estratégia para alcançar fins inconfessados.3 No que toca a terceiros, presentes ou ausentes, a utilização delocutiva de tratamentos é mais complexa. Regra geral, as FT’s por que são nomeados ou referidos situam-se a níveis de cortesia menos elevados, do que em co(n)textos de face-a-face, ou quando em situação de terceiros presentes, isto é, assistindo à interlocução, sem contudo nela intervirem de facto. Acresce ainda, para maior complexidade, que, muito frequentemente, os tratamentos dirigidos a terceiros podem atingir, favorável ou desfavoravelmente, a(s) face(s) do locutor como do alocutário, integrando-se assim também nos processos de auto e heterocortesia e do trabalho de faces (figuração ou desfiguração). Ao referir-se, positiva ou negativamente, a terceiro que pertence ao seu círculo de afectos, o locutor pode estar, por um lado, a valorizar ou a desvalorizar, de forma objectiva ou não, a(s) face(s) desse terceiro, mas também a(s) sua(s) própria(s) e a(s) do(s) seu(s) interlcoutor(es). Mutatis mutandis, o mesmo se pode dizer dos tratamentos utilizados para se referir terceiro que pertença ao círculo de afectos do interlocutor. São, portanto, quatro os tipos de relação que o terceiro (T), singular ou plural, pode ter com o locutor (L) e o alocutário (A), no decurso duma interacção verbal e que através dos respectivos discursos se manifestam: a) T pertence ao círculo de afectos de L; b) T pertence ao círculo de afectos de A; c) T pertence ao círculo de afectos comum a L e A; d) T não pertence ao círculo de afectos nem de L nem de A. Além disso, em todos os tipos anteriores, as relações de T com L e/ou A podem ser, tal como as destes, simétricas ou assimétricas em relação a ambos, ou simétrica em relação a um e assimétrica em relação a outro. Procuramos representar na FIG. 7 a descrição que acabámos de fazer: 3 Recorde-se os princípios L-orientados que o modelo de cortesia linguística, proposto por Kerbrat-Orecchioni, reconhece e recomenda. Cf., supra, cap. III, 1. 387 ≠+ = ≠+ T = L A ≠- ≠- T FIG. 7 – Relações dos interlocutores com terceiros. Explicitando-se a leitura da FIG. 7, temos, por exemplo, que L[ocutor], em interacção verbal com A[locutário], refere-se a T[erceiro], em relação ao qual e a A, e cada um destes em relação a L, pode haver posições simétricas (=), ou assimétricas de superioridade (≠ +) ou de inferioridade (≠ -), quer T pertença apenas ao círculo de afectos de L (oval interior que cinge L e T), ao círculo de afectos de A (oval interior que cinge T e A), ao círculo de ambos (oval maior), ou a nenhum destes círculos (T fora da grande oval, mas que pertence, é tema ou referência do discurso e do mundo dos interlocutores – semioval tracejada). Pode-se dizer que, neste caso, L e A têm em relação a T uma relação de indiferença ou neutra. Ao mesmo tempo, cada interlocutor, ao referir-se a T, seja qual for o círculo de afectos a que pertença ou não, é sempre referido por FT’s delocutivas, corteses ou descorteses, que atingem, favorável ou desfavoravelmente e em graus diferentes, não só a(s) face(s) de T, como a(s) face(s) de L e a(s) de A [linha curva setada que envolve T, cujas extremidades começam ou terminam em L e A. A propósito, refira-se que L, A e T não representam indivíduos, mas posições que indivíduos, enquanto interlocutores (L e A) ou objecto da interlocução (T) ocupam]. Os factores de natureza proxémica e/ou taxémica entre, por um lado, L e A e, por outro, de cada um deles em relação a T, bem como a intencionalidade discursivotextual, confessada ou não, que L e A têm, condicionam, inevitavelmente, a escolha das FT’s delocutivas, mais ou menos corteses e descorteses, a utilizar por cada um deles em relação a T. L que, numa interacção não conflituosa, queira referir-se a T, presente ou ausente, e que pertença ao círculo de afectos de A (um amigo, por exemplo), não se refere, 388 por regra, a T menos respeitosamente, para não ferir a(s) face(s) de T, nem a(s) de A, nem mesmo a(s) sua(s) própria(s). Quem meus filhos beija minha boca adoça é provérbio que também a este propósito poderá ser recordado. Se, pelo contrário, L valoriza ostensivamente as faces de T, sabendo que é inimigo de A, tal acto é entendido como descortesia, uma vez que tal valorização ataca a(s) face(s) de A e, por isso, também as de L, ainda que esteja a ser cortês (e verdadeiro) em relação a T. A sentença Quem não é por mim é contra mim, apesar do seu evidente maniqueísmo, poderá pôr em causa a continuação duma interacção verbal que se deseje mais ou menos harmoniosa, no respeito pelas regras da cortesia linguística, isto é, sem ferir a autoestima e o território do interlocutor. Vejamos um exemplo, retirado d’O Malhadinhas. O jovem almocreve, apaixonado por Brízida, sua prima direita, receoso de que o abade de Britiande lha conquistasse, face às aceitações que ela e o pai concediam ao coroado, decidiu interpelá-la, com estas queixas assolapadas: «– Olha, Brízida – disse eu – albardado seja quem se ilude. Até há pouco o pai era por feiras e adjuntos tu cá tu lá com o Tenente da Cruz. Já lhes chamavam os dois da vigairada. Agora é com o abade de Britiande. Mas deixa, eu dê ainda hoje um estoiro no inferno se o padreca não for corrido daqui a toque de caixa... – Que mal te fez o senhor abade, primo? Então já não é senhor de estar onde lhe apeteça? – É; mas eu também sou senhor de lhe fazer a barba à coroa, cá a meu modo, para lhe lembrar que é casado com a Igreja. – Credo! – Credo, digo eu. O padre é o vosso santantoninho por quem sois. Cuidas que sou cego? Mais de uma vez te apanhei a espenujares-te diante dele, que nem parecias donzela de assento. – Anjo custódio! Outra venha que rabo tenha... Rio-me para ele; que mal tem? – Tem muito. Alguém acredita que o coroado vem para aqui caçar por caçar? Lebres e perdizes tem-nas a dois passos, a dar com um pau, na serra de Tarouca.»4 Nesta interacção verbal, fragmento duma sequência dialogal de ficção literária, dois interlocutores M[alhadinhas] e B[rízida] referem-se um terceiro ausente, A[bade 4 RIBEIRO, 1989: 19-20. Para recordar a interacção verbal completa, cf. id.: 19-21. 389 de] B[ritiande], que pertence ao círculo de afectos de ambos, embora despertando sentimentos opostos em cada um deles. Entre B e AB prevaleciam os afectos mutuamente favoráveis, enquanto que entre M e AB predominavam os afectos mutuamente desfavoráveis. Além disso, as relações entre B e AB eram vistas e sentidas por M como lesivas das suas faces, positiva e negativa (M e B eram namorados assumidos, mas AB era um concorrente que gozava das simpatias de B e era elogiado pelo pai de B). Por outro lado, a animosidade de M em relação a AB lesavam as faces de B, ao não crer na sua fidelidade. As FT’s delocutivas que M e B utilizam, respectivamente, ao referirem-se a AB reflectem a oposição de afectos. Com se resume na FIG. 8: o abade de Britiande o senhor abade [senhor de estar o padreca onde lhe apeteça] lhe ele casado com a Igreja M (≠ +) o padre (≠ -) AB (≠ +) (≠ -) B [vosso santantoninho por quem sois] ele o coroado FIG. 8 – FT’s delocutivas e relações assimétricas, entre M, AB e B, n’O Malhadinhas As FT’s que M utiliza para referir-se a AB situam-se em níveis de baixa cortesia e da descortesia. Consequentemente, M coloca-se numa posição assimétrica superior (≠+) em relação a AB, que coloca, por isso, numa posição inferior (≠ -). Por seu turno, B, através das FT’s de mais cortesia que utiliza, coloca AB num lugar superior (≠ +) ao seu (≠ -). Os valores semântico-pragmáticos contrários das FT’s utilizadas revelam também, por um lado, que AB pertence ao círculo de afectos desfavoráveis de M e, por outro, ao círculo de afectos favoráveis de B. As FT’s de M e B constituem, respectivamente, ataques e valorizações das faces positiva e negativa de AB e, ao mesmo tempo, ataques de M às faces positiva e negativa 390 de B e, por outro lado, ataques de B às faces positiva e negativa de M.5 Os ataques de M à face positiva de B são, contudo, mais fortes que os de B a M, na medida em que, além do mais,6 M inclui, numa FT dirigida a AB (vosso santantoninho por quem sois), B e o pai. Simultaneamente M valoriza, perante B,7 a sua figura de destemido, de alguém que tem poder (isto é, não receia) para se referir como refere a AB. Por seu turno, B não inclui M nas FT’s com que se refere a AB. Ao referir-se, porém, com tratamentos delocutivos de elevada cortesia a AB, no co(n)texto daquela interacção enamorada, B estava a lesar as faces de M e ao mesmo tempo a valorizar as suas próprias. Valorização esta que M interpretava, como vimos, sobretudo como desvalorização. Entre M e B estava instalado, portanto, o desacordo, porque relações antagónicas (man)tinham relativamente a AB e entre si. Desacordo que as FT’s delocutivas utilizadas, com evidentes valores semântico-pragmáticos opostos, ajudaram a concretizar. Muitas e diversas são as interacções verbais em que os interlocutores se servem para, referindo-se delocutivamente a terceiros (ou como tal os considerando), estabelecer e/ou desenvolver relações de aproximação ou distanciamento, não só em relação a esses terceiros, mas também, através dessas referências e tratamentos, valorizar ou desvalorizar, atacar ou proteger o(s) seu(s) interlcoutor(es) e/ou a si próprios. Cremos que a descrição teórica feita, a par do fragmento dialogal analisado, nos dispensa da apresentação doutros exemplos que mostrem a complexidade e a multiplicidade das relações humanas que as FT’s delocutivas também estabelecem ou ajudam a estabelecer. A complexidade das relações humanas, consoante os contextos e os objectivos das diferentes interacções verbais, não cabem nunca em esquemas, por mais completos que eles sejam. As diferentes formas verbais corteses e descorteses que podem ser usadas para estabelecer e expressar essas relações e essa complexidade são sempre insuficientes e incompletas. Trata-se sempre de tentativas, de aproximações, de representa5 As FT’s que atacam ou valorizam a autoestima inscrevem-se no âmbito da noção de face positiva, enquanto as FT’s que atacam ou valorizam os «territórios do eu» inscrevem-se no âmbito da noção de face negativa. 6 Além do mais, isto é, ao facto de M acusar B de proteger (é senhor de estar onde lhe apeteça) e de se deixar seduzir (espenujares-te diante dele; rio-me para ele) por AB. 7 Recorde-se que o velho Malhadinhas conta a crónica da sua vida adulta aos escrivães e mantas de Vila Nova de Paiva, antiga Barrelas. Por isso, as FT’s que utiliza inscrevem-se tanto no processo de figuração daqueles que conheceu e/ou com quem conviveu, como nos processos da sua própria refiguração. Vejase, a propósito, infra, cap. XIV. 391 ções. As relações representadas nas figuras anteriores são isso mesmo, por isso, isto é, tentativas teóricas, na medida em que têm em consideração sobretudo relações interpessoais mais ou menos formais e fixas, construídas a partir do conhecimento que se tem dos comportamentos habituais das pessoas que vivem em comunidades (preconstruídos culturais). As relações humanas, contudo, nem sempre são constantes, ao longo duma interacção verbal. As FT’s seguem, por isso, essas mesmas variações. É natural que, no decurso duma interacção verbal equilibrada, uma vez estabelecido um determinado tipo de relacionamento, os tratamentos se mantenham num dos dois paradigmas acima referidos. Pode acontecer, porém, que esse relacionamento se tenha alterado, antes duma nova interacção, ou venha a alterar-se, por mútuo acordo (através de negociação mais ou menos explícita) ou em consequência de conflito, no decurso (e no discurso) duma interacção. Em caso de mudança por mútuo acordo, é habitual que os interlocutores passem de usos simétricos V⇔ V ou assimétricos T ⇔ V, para formas simétricas de T⇔ T. Habitualmente, um interlocutor propõe «E se nos tratássemos por tu?» e nunca «*E se nos tratássemos por você?» Ao apresentar esta última proposta, o locutor (em Português de Portugal, evidentemente) desejaria que, entre ele e o interlocutor, passassem a existir relações de distanciamento, evidentemente proxémico, mas também taxémico. Tal proposta seria, ao nível das relações interpessoais, de pouco ou nula cortesia, apesar de propor o uso de tratamentos formalmente mais corteses. É por isso que consideramos tal proposta um enunciado agramatical, ao nível da competência e desempenho da cortesia linguística. É de observar, por outro lado, que quem propõe «- E se nos tratássemos por tu?» possui, regra geral, um estatuto superior (ou pelo menos idêntico) ao do interlocutor. Pode haver entre ambos ou um tratamento simétrico, situado no âmbito de V (V ⇔ V) ou de V ⇔ T (dirigir tuteamentos e receber voceamentos). No caso de V ⇔ T, é quem tuteia (isto é, quem ocupa um lugar mais elevado) que propõe formas de T. Por uma questão de cortesia positiva, o proponente valoriza a face positiva do interlocutor, elevando-o a uma igualdade de lugares, ao mesmo tempo que lesa a sua própria face, ao integrar o outro no círculo dos seus afectos favoráveis. (Pense-se na expressão ter ou manter relações tu cá tu lá com alguém.) Proceder ao contrário é, por isso, descortesia: o tuteado não tem poder (nem direito) para propor tratamentos de T àquele que trata por V. Seria atacar a face positiva do interlocutor, desejar que ele passasse a ocupar um 392 lugar igual ao seu, isto é, que baixasse de posição, de menor prestígio, de maior proximidade. Convém observar ainda, por um lado, que tais propostas de aproximação se dão entre interlocutores cujas relações proxémicas e taxémicas não são muito distantes e, por outro, que exigem, regra geral, algum tempo de convívio prévio à proposta de negociação, que poderá ser mais ou menos demorada, mais ou menos bem sucedida. Se é certo que, por livre iniciativa e por uma questão de cortesia (sincera ou fingida), os interlocutores recorrem a processos discursivos de autodegradação, dificilmente aceitam que tais processos lhe sejam impostos ou mesmo sugeridos por quem é (de facto ou presumidamente) inferior. Pensará, por exemplo, em enunciados de comentário como «- Mas que atrevimento! / Olha o atrevido!», como hipotética resposta a «*- E se nos tratássemos por tu?». Dizemos pensará, porque se proferisse «- Mas que atrevimento! / Olha o atrevido!», o locutor estaria a ser mais ou menos descortês, consoante o contexto. Os humanos desejam ter uma face pública respeitada («face want»), ao mesmo tempo que trabalham por que seja preservada e mesmo enriquecida («face work»). As FT’s desempenham um papel fundamental no estabelecimento de relações de cortesia ou de descortesia, as quais têm muito a ver, também, com processos de figuração. Através dos tratamentos corteses e descorteses que se dirigem e recebem, cada interlocutor constrói ou resconstrói, ajuda a construir ou a reconstruir, repara ou ajuda a reparar, a figura daquele com quem fala, daquele de quem fala e de si próprio. Mesmo que seja necessário recorrer também a processos de desfiguração. Porque se ninguém quer perder a face, todos querem fazer boa figura, mesmo que para isso tenham de ser (ou parecer) uns figurões, socorrendo-se dos seus próprios méritos ou de terceiro(s). QUARTA PARTE CORTESIA / DESCORTESIA LINGUÍSTICA UMA COMPETÊNCIA DISCURSIVO-TEXTUAL Práticas e Análises Figuramos, desfiguramos e transfiguramos o mundo – com a linguagem trabalhamos a nossa identidade e a identidade das coisas. Maria Lucília Marcos1 1 MARCOS, Maria Lucília, 2001: Sujeito e Comunicação. Perspectiva tensional da alteridade. Porto: Campo das Letras; p. 13. Capítulo XIII INTRODUÇÃO Ao longo dos capítulos anteriores, a propósito da exposição crítica das principais teorias de cortesia / descortesia linguística e dos principais estudos sobre comportamentos verbais corteses e descorteses em Português europeu, fomos procedendo também a descrições dos valores semântico-pragmáticos que diferentes fórmulas e formas (ou respectivas categorias) os expressam ou já expressaram, bem como dos mecanismos sobretudo linguísticos que lhes estão subjacentes. Tais descrições incidiram em exemplos fornecidos por gramáticos, estilistas e linguistas, por um lado, e sobre opiniões acerca de práticas corteses ou descorteses da vida quotidiana (relatadas em textos jornalísticos e literários), por outro. Além disso, recorremos a registos de ocorrências pessoalmente observadas. As análises efectuadas ocuparam-se, todavia, de fórmulas, formas, construções, frases e segmentos geralmente curtos e desco(n)textualizados. Os valores corteses ou descorteses aí expressos apresentam-se, por isso, mais como realizáveis do que realizados, isto é, situam-se mais ao nível da língua e da frase que dos seus usos e construções em práticas discursivo-textuais concretas, prototipicamente completas ou incompletas e mais ou menos simples ou complexas. Nesta última parte, vamos (continuar a) analisar construções explícitas e implícitas de cortesia e de descortesia, na sua função de relacionemas (horizontais e/ou verticais), indic(i)adores e gestores de relações interpessoais existentes, por um lado, ou de construtores e gestores de relações presumidas e desejadas, por outro. Ao mesmo tempo, procurar-se-á descrever como um e outro tipo dessas relações influenciam na selecção e construção desses relacionemas e na configuração das diferentes práticas discursivo-textuais, e como o género ou tipo de discurso-texto a coproduzir ou em coprodução influi também naquela selecção. Seleccionámos para análises mais desenvolvidas destes aspectos de natureza fundamentalmente discursivo-textuais, sem deixarmos de integrar também aqueles valores corteses e descorteses já construídos em língua, sequências narrativas literárias de obras aquilinianas. Trata-se, fundamentalmente, de dois tipos de sequências. Uma pri- 396 meira, monogal, é constituída pelo texto-discurso que enquadra (introduz e conclui) a novela O Malhadinhas, e servirá para analisarmos, no capítulo XIV, processos linguísticos e discursivo-textuais de construção e expressão de intenções explícitas e implícitas de cortesia ou de descortesia, a nível alocutivo, elocutivo e delocutivo. Constitui este discurso-texto uma interacção verbal em sentido lato. As duas sequências dialogais a analisar com mais pormenor, no capítulo XV, encontram-se representadas no Romance da Raposa. São constituídas por práticas discursivo-textuais coconstruídas por duas personagens, uma das quais é a conhecida Salta-Pocinhas, que interage directamente com o teixugo Salamurdo, num caso, e com a ave de rapina Bufo, noutro. O capítulo XV inclui, no final, retoma de reflexões sobre a problemática da enunciação polifónica, dimensão discursivo-textual intimamente relacionada com a construção de valores corteses e descorteses, em geral, e o uso de tratamentos (corteses e descorteses também eles), em particular. Teremos em consideração, neste caso, uma sequência dialogal representada n’A Via Sinuosa, em que duas personagens - Estefânia e Libório – interagem directamente, que analisaremos apenas sob a vertente polifónica. Estas três sequências dialogais constituem interacções verbais em sentido estrito. Na análise de todas estas sequências serão tidas sempre em consideração a complexidade e a dinâmica dos respectivos co(n)textos, com especial destaque para as relações interpessoais e socioculturais existentes, presumidas e desejadas (ou mesmo indesejadas) entre os interactantes, interlocutores efectivos ou não. Além das razões gerais apresentadas na introdução deste estudo, sobre a nossa preferências pela obra de Aquilino Ribeiro, por um lado, e a validade de análises linguísticas de discursos-textos literários, por outro,1 acrescentamos mais as seguintes justificações, directamente relacionadas com o corpus ora referido. A cortesia / descortesia linguística é, como defendemos, uma competência discursivo-textual que se realiza nas diferentes práticas da actividade da linguagem co(n)textualizada, nelas deixando inscritas, por isso, marcas explícitas e/ou implícitas da sua construção e expressão. Por outras palavras, o exercício da actividade da linguagem verbal, em virtude da sua natureza intrinsecamente interaccional,2 implica que as diferentes práticas discursivo-textuais coconstroem sempre diferentes, diversas e mais ou menos complexas formas corteses e/ou descorteses. Numa palavra, todas as interacções 1 2 Ver, supra, «Introdução Geral», 2. Ver, supra, cap. I. 397 verbais co(n)textualizadas, estritas ou latas, são mais ou menos afectadas por construções explícitas e/ou implícitas de cortesia ou de descortesia. Por outro lado, além de estratégias de construção, recuperação e/ou manutenção de relações interpessoais de concórdia ou de discórdia, as formas explícitas ou implícitas de cortesia e de descortesia funcionam também como estratégias de outros fins, confessados, inconfessados e mesmo inconfessáveis. Em tais casos, as cortesias e descortesias verbais assumem objectivos de natureza retórico-argumentativa (sedução e persuasão), que se inscrevem, regra geral, nos trabalhos de auto e heterofiguração (favorável e/ou desfovorável). Estes processos implicam, além disso, a utilização de diferentes fórmulas e construções, numa mesma interacção e com os mesmos interactantes, ora de autodesvalorização e de heterovalorização (em casos sobretudo de relações de cortesia), ora de autovalorização e heterodesvalorização (em casos sobretudo de descortesia), segundo a teoria das faces descrita e integrada no sistema de cortesia linguística seguido.3 Dirigir diferentes formas de cortesia e de descortesia, em particular tratamentos corteses e descorteses, a uma mesma entidade, interactante directa (alocução), indirecta (delocução), ou a si próprio (elocução), no decurso duma mesma interacção, ou em interacções diferentes, resulta do facto de um ou todos os interactantes, directa e/ou indirectamente envolvidos em cada uma delas, terem mudado, real ou simbolicamente, momentânea ou definitivamente, de identidade, ou desejar-se, ou mesmo exigir-se que tal mudança se concretize. Tais mudanças vão implicar, por isso, mudanças aos outros níveis da construção das práticas discursivo-textuais que constituem cada uma das interacções verbais em que esses interactantes intervenham, directa ou indirectamente. É a dimensão dialógica e sobretudo polifónica da linguagem, que permite e explica uma gestão mais ou menos pacífica ou conflituosa de identidades e das suas representações linguísticas e sobretudo discursivo-textuais corteses ou descorteses. Consideramos que se encontram realizados, nos discurso-textos aquilinianos acima referidos, os principais aspectos que acabámos de sumariamente apresentar e que serão desenvolvidos ao longo das análises que nos próximos capítulos faremos. Acontece, porém, que as construções corteses e descorteses, e os valores retórico-argumentativos, dialógicos e polifónicos, implícita ou explicitamente construídos nessas interacções verbais, fazem parte de práticas discursivo-textuais situadas no âmbito da literatura 3 Ver, supra, caps. II, 1.3. e III. 398 e, em particular, da narração escrita. Julgamos conveniente, por isso, recordar, ainda que brevemente, a complexidade do fenómeno sui generis que é a comunicação narrativa. Afirma Umberto Eco, referindo-se sobretudo à narrativa literária, que «um texto postula o próprio destinatário como condição indispensável não só da sua própria capacidade comunicativa concreta, como também da própria potencialidade significativa». Daí que o autor deva «prever um Leitor-Modelo capaz de cooperar na actualização textual como ele, o autor, pensava, e de se mover interpretativamente tal como ele se moveu generativamente.»4 Esse leitor-modelo, consoante as competências de leitura que o autor nele prevê, admite ou mesmo deseja, pode ser desdobrado num leitormodelo ingénuo e num leitor-modelo crítico. O primeiro fará uma interpretação semântica ou semiósica do texto, utopicamente «única», procurando «um segredo individual ainda desconhecido». O segundo entregar-se-á a uma interpretação crítica ou semiótica, «não necessariamente única», buscando a «explicação do motivo por que um texto permite ou encoraja interpretações semânticas.»5 Abeiramo-nos, assim, da complexidade da comunicação narrativa literária,6 cujos aspectos principais, como interacção verbal em sentido lato, que encerra, por seu turno, regra geral, interacções verbais em sentido estrito, iremos brevemente descrever, partindo do esquema representado na figura seguinte (FIG. 1). AUTOR REAL AUTOR LEITOR NARRADOR PERSONAGEM PERSONAGEM IMPLÍC. NARRATÁRIO IMPLÍC. LEITOR REAL FIG. 1 – Esquema da comunicação narrativa 4 ECO, 1983: 56 e 58. Já Jean-Paul Sartre escrevia que «Tous les ouvrages de l’esprit contiennent en eux l’image du lecteur auquel ils sont destinés.» [SARTRE, 1942: 92] 5 ECO, 1992: 34 e 35. 6 Sobre a problemática da comunicação literária, face à comunicação linguístico-pragmática, ver ADAM, 1991; MAYORAL (org,), 1987; REYES, 1994; SILVA, 19824: 173-200; VIDAL, 1993: 235-247. Para análises da narrativa, segundo a linguística discursivo-textual, cf. ADAM, 1985 e 1992: cap. II e ADAM & LORDA, 1999. 399 Conforme se procura esquematizar na FIG. 1, o autor real e o leitor real, entidades exteriores ao texto em graus diferentes, interagem entre si através desse mesmo discurso-texto, mas sempre de forma diferida, no tempo e no espaço, não comunicando, por isso, directamente, tanto no momento da produção como no momento da recepção. Todavia, no acto de ler, o leitor real estabelece uma especial comunicação com esse objecto empírico que é o discurso-texto, a totalidade desse objecto e a sua transtextualidade, interagindo (i) directamente (sentido da seta em linha contínua que parte de leitor real) com o mundo possível desse discurso-texto e (ii) indirectamente (sentido da seta em linha ponteada), com o mundo-instituição (essencialmente literário e cultural) do autor real, mundo este de que esse objecto em leitura também faz parte (geralmente impresso e editado em livro, complexificando assim ainda mais o contexto dessa especial interacção). Trata-se, por isso, duma interacção em graus diferentes de compreensão, consoante as competências de leitura que o leitor real possua – linguísticas, literárias, estéticas, culturais e outras. Daí a representação, no esquema, por linhas descontínuas diferentes, do tipo de diálogo que o leitor real estabelece com o discurso-texto e com o autor real. Neste tipo de comunicação, estabelecem-se outras relações e interacções directas e indirectas entre as diferentes entidades narrativas. O leitor não interage, directamente, com o autor real, mas com a representação que dele faz, através da imagem que o primeiro de si próprio dá a ver (autor implícito), nesse e, eventualmente, noutros discursos-textos. É esta entidade que, através do seu porta-voz, a entidade narrativa o narrador, interage com os destinatários, explícitos [narratário(s) intradiegético(s) identificado(s)] ou implícitos [narratário(s) extradiegético(s) anónimo narrativamente reconhecido ou reconhecível como leitor implícito, modelo ou ideal].7 A descrição poderia ser feita em sentido inverso, isto é, partindo do leitor real e das entidades narrativas situadas à direita do esquema. É na complexidade destas relações que se situam as interacções verbais em sentido estrito, coproduzidas pelas entidades narrativas personagens. São elas, duas ou mais, que trocam intervenções entre si, segundo os turnos de fala que lhes cabem, realizando uma ou mais sequência dialogais propriamente ditas. Convém não deixar de ter presente, todavia, que a representação dum diálogo, numa narrativa não é nunca a fiel transcrição duma interacção verbal estrita. O narrador e, em última instância, o autor 7 Para breves descrições de cada uma destas entidades, nomeadamente as destacadas a negrito, cf. REIS & LOPES, 19902. 400 real (uma vez que o narrador foi por ele constituído seu porta-voz,8 naquele acto de comunicação ficcional, mesmo quando de terceira pessoa), é quem, no fundo, organiza e modeliza o discurso-texto individual e o discurso-texto colectivo que as personagens coconstroem. Por outro lado, convém ter presente que tais sequências dialogais, independentemente da sua extensão e composição, fazem parte duma interacção verbal mais vasta, a narrativa, de cuja estruturação dependem e para a qual concorrem. A autonomia das personagens é sempre relativa, pois, como observam Reis & Lopes: «o discurso das personagens aparece sempre inserido no discurso do narrador, entidade responsável pela organização e modelização do universo diegético.»9 E Graciela Reyes, no seu excelente estudo sobre a polifonia textual em narrativas literárias, observa: «El narrador, solidarizándose con el personaje, toma a su cargo su discurso y lo remodela, lo reformula, aparece diciendo lo que dijo el personaje, o lo que quiso decir, o lo que pensó, sintió y percibió el personaje, todo en sus propias palabras, no en las del personaje. El discurso está controlado por el narrador, un narrador sapiente y autoritario, que manipula y analiza el discurso ajeno, pero que, sin embargo, respeta sus percepciones y creencias, su sistema conceptual.»10 A representação discursivo-textual duma sequência dialogal, numa ficção literária, encontra-se, geralmente, reduzida às trocas verbais essenciais entre as personagens, dispensando-se, frequentemente, as sequências fáticas de abertura e/ou de fechamento. Além disso, muito frequentemente, o narrador deixa implícitas trocas verbais ou intervenções dos interlocutores, narrativiza outras, ou relata-as em discurso indirecto ou em discurso indirecto livre. Adensa e complexifica, deste modo, ainda mais a polifonia construída na narrativa e que o leitor real deve saber interpretar, de acordo com a proposta de esquematização narrativa, também ela discursivo-textual, que lhe é apresentada. «Um texto é um artifício destinado a produzir o seu próprio leitor-modelo. O leitor empírico é o que faz uma conjectura sobre o leitor-modelo postulado pelo texto. O que significa que o leitor empírico é o que tenta conjecturas não sobre as intenções do autor 8 Reyes utiliza a sugestiva metáfora do ventríloquo, para explicar o fenómeno. [Cf. REYES, 1984: 127] REIS & LOPES, 19902: 310. 10 REYES, 1984: 201. 9 401 empírico, mas sim sobre as do autor-modelo. Este é o que, como estratégia textual, tem tendência para produzir um certo leitor-modelo.»11 Resumindo, podemos dizer que uma narrativa é, na sua configuração discursivo-textual de comunicação diferida, uma interacção verbal complexa. O narrador / locutor, por delegação do autor real, prevê e em parte constrói ou representa a figura dum destinatário / alocutário, intra ou extradiegético, identificado ou anónimo, a quem influencia, explícita ou implicitamente, finalidade esta que, em contrapartida, faz com que seja por ele indirectamente também influenciado. É através das imagens que das suas criaturas [narrador(es), narratário(s), personagens] mostra, nas formações discursivo-textuais que coproduz, que o autor real acaba por agir sobre o leitor real e, correlativamente, em virtude das representações que deste faz, dele sofrer também influências.12 A coconstrução das interacções verbais em sentido estrito e em sentido lato, a analisar nos capítulos seguintes, são afectadas e condicionadas pelas intenções e efeitos de cortesia e de descortesia, explícita ou implícita, que os respectivos interactantes, interlocutores efectivos ou não, visam com e pelas suas práticas discursivo-textuais. Analisar, ao nível discursivo-textual, a complexidade da comunicação / interacção verbal, na sua dimensão polifónica, a qual articula e conjuga diferentes vozes que correspondem a outras tantas (id)entidades, pessoais ou alheias, ajudará a compreender como são pouco pertinentes as reservas de hipocrisia ou falsidade que se fazem, por vezes, à utilização de construções corteses e descorteses, no decurso das diferentes interacções verbais. Porque não é, no fundo, dum problema de verdade ou de ética, puras e duras, que se trata, mas, fundamentalmente, duma estratégia retórico-argumentativa de sedução, persuasão e adesão, por um lado, ou de afastamento, recusa e exclusão, por outro. Ou, numa palavra, duma competência discursivo-textual, que se realiza em desempenhos que visam objectivos de comunhão ou de excomunhão, que até podem ser de comunhão para atingir a excomunhão e vice-versa. Como nos próximos capítulos se mostrará, a propósito sobretudo das práticas daquela senhora de muita treta aquiliniana. 11 ECO, 1992: 38. Para uma relativa aproximação desta descrição a uma descrição no âmbito da linguística discursivo-textual, ver, supra, cap. I, nomeadamente subsecção 2.5. 12 Capítulo XIV CORTESIAS E DESCORTESIAS DISCURSIVO-TEXTUAIS EM INTERACÇÕES VERBAIS EM SENTIDO LATO Narra tudo quanto chama a atenção para o teu próprio valor. Aristóteles1 Vamos analisar, neste capítulo, processos linguísticos que realizam, explícita e implicitamente, expressões corteses e descorteses numa interacção verbal em sentido lato, isto é, numa prática discursivo-textual monologal, segundo uma perspectiva fundamentalmente de figuração (na dupla dimensão de «face want» e «face work»).2 Seleccionámos, para o efeito, o discurso-texto que enquadra (introduz e conclui) a narração memorial e autobiográfica da novela O Malhadinhas de Aquilino Ribeiro, que transcrevemos a seguir, assinalando, com reticências colocadas entre parênteses rectos, o espaço ocupado pelo discurso-texto da narrativa autodiegética. «Danado aquele Malhadinhas de Barrelas, homem sobre o meanho, reles de figura, voz tão untuosa e tal ar de sisudez que nem o próprio Demo o julgaria capaz de, por um nonada, crivar à naifa o abdómen dum cristão. Desciam-lhe umas farripas ralas, em guisa de suíças, à borda das orelhas pequeninas e carnudas como cascas de noz; trajava jaleca curta de montanhaque; sapato de tromba erguida; faixa preta de seis voltas a aparar as volutas dobradas da corrente de muita prata – e, Aveiro vai, Aveiro vem, no ofício de almocreve, os olhos sempre frios mas sem malícia, apenas as mandíbulas de dogue a atraiçoar o bom-serás, as suas façanhas deixaram eco por toda aquela corda de povos que anos e anos recorreu. Na velhice, o negócio tilintado através de gerações, as andanças de recoveiro, o ver e aturar mundo, tinham-no provido de lábia muito pitoresca, levemente impregnada dum egoísmo pândego e glorioso. Nas tardes de feira, sentado da banda de fora do Guilhermino, ou num dos poiais de pedra, donde já tivessem erguido as belfurinhas, alegre do verdeal, desbocava-se a desfiar a sua crónica 1 2 ARISTÓTELES, 1998: 216. Ver, supra, caps. II, 1.3. e III. 404 perante escrivães da vila e manatas, e eu tinha a impressão de ouvir a gesta bárbara e forte dum Portugal que morreu.3 [ ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ] Provecto dos anos, uma tarde, ergueu-se do borralho e saiu a porta para fora, amparado ao porretinho de marmeleiro. Andava há dias a chocar a morte e deixaram-no ir, que era relapso a prevenções e cuidados. Sentou-se no poial de pedra, que servia de amassadoiro do linho. Com mão incerta aconchegou as abas da capucha contra os joelhos regélidos. Nevara, codejara, e as árvores, com o sincelo, estalavam ao peso das candeias. António Malhadinhas fechou os olhos à semelhança do romeiro que torna de Santiago, farto de correr léguas, ver terras, passar pontes e vaus, enxotar cães que arremetem ameaçadores de currais e quintãs, e adormece a sonhar com o céu num recosto do caminho. Vergou brandamente a cabeça para o peito, ao tempo que os dedos lhe pendiam para o chão como vagens maduras. E – o Justo Juiz lhe perdoe as facadas que as não deu em nenhum santo – nem se sentiu a atravessar as alpoldras duma margem para a outra do negro rio.»4 1. A complexidade discursivo-textual da novela O Malhadinhas Esta narrativa aquiliniana é, ao nível da enunciação, composição e organização discursivo-textual, uma novela com moldura. Segundo Cristina Cordeiro, este subgénero narrativo apresenta-se como a «encenação da palavra de um narrador, que se dirige directamente a um auditor, e cuja enunciação ocorre no interior de uma situação diegética que se apresenta como “moldura”, forma de enquadramento concertada por uma estratégia inicial e conclusiva.»5 Franck Evrard, por seu turno, define-a segundo as instâncias da narração e a relação sequencial entre as narrativas encaixante e encaixada que a constituem, distinguindo dois narradores: «le narrateur premier (N 1) dispose le cadre du récit avant de déléguer sa parole à un narrateur second (N 2) qui assume la responsabilité de raconter l’histoire.»6 3 RIBEIRO, 1989: 11 RIBEIRO, 1989: 161. 5 CORDEIRO, 2001: 128. 6 EVRARD, 1997: 42. 4 405 Um dos aspectos que os narratólogos destacam, como característica importante destas novelas, é o da oralidade: «a novela põe em cena a voz de um “contador de histórias”, privilegiando a personalidade e a “disposição” de quem conta.»7 Com esta estratégia narrativa, N1 visa conferir verdade e sinceridade, verosimilhança, quer à sua narrativa quer à de N2, encenando, para o efeito, diferentes situações de enunciação. Idêntica situação enunciativa se encontra n’O Malhadinhas. Esta novela é constituída por dois discursos-textos narrativos distintos, atribuídos as duas entidades enunciadoras (narradores) distintas. O primeiro (enquadrador, objecto desta análise) é produzido por um narrador (heterodiegético), a que os narratólogos chamam editor, 8 e o segundo por um narrador (autodiegético, neste caso) que é também protagonista da narrativa. Trata-se de entidades ficcionais, cujas designações narratológicas vamos manter, mas que entendemos como vozes de locutores enquanto tais a que o autor real (escritor) dá um corpo (polifonicamente), na (co)construção verosímil da narrativa.9 Ou seja, o autor-escritor, para contar a crónica do almocreve de Barrelas, assume-se como um narrador que exerce, por um lado, a função de narrador-editor e, por outro, a função de narrador autodiegético. Temos, assim, que a novela O Malhadinhas é um objecto discursivo-textual complexo constituído pelo discurso-texto do narrador-editor (D-TE) e pelo discurso-texto do narrador autodiegético (D-TNA), complexidade que, ao nível da sua composição e organização, representamos como segue (FIG. 1): O Malhadinhas D-TE1 D-TNA D-TE2 N1 N2 N1 FIG. 1 – Composição discursivo-textual d’O Malhadinhas 7 CORDEIRO, 2001: 127. Não se confunde com a entidade homónima, «responsável pela produção e difusão da obra literária». A narratologia chama «editor de uma narrativa à entidade que esporadicamente aparece no seu preâmbulo, facultando uma qualquer explicação para o aparecimento do relato que depois se insere e de certo modo responsabilizando-se pela sua divulgação; trata-se, pois, de um intermediário entre o autor e o narrador, intermediário que mantém com qualquer dos dois relações muito estreitas.» [REIS & LOPES, 19902: 111] Cf. também REIS, 1985 e TACCA, 1983: 38-60. 9 Cf., supra, cap. I, 2.7. 8 406 A complexidade narrativa e enunciativa d’O Malhadinhas aumenta consideravelmente quando se tem em consideração que o D-TNA inclui, na sua composição e configuração, diferentes sequências dialogais (a maior parte interacções verbais em sentido estrito, outras narrativizadas), travadas entre as personagens que interagem naquele mundo possível. Tendo em consideração a estrutura desta especial esquematização discursivo-textual, isto é, os discurso-textos que a constituem e as entidades externas e internas, reais e imaginárias (ficcionais), por ela e por eles narrativamente responsáveis, elaborámos o quadro seguinte (FIG. 2), no qual procuramos mostrar as principais relações / interacções que, directa e indirectamente, tais entidades estabelecem entre si. Entendemos, portanto, esta narrativa como um acto (macroacto) de comunicação verbal complexo, fortemente condicionado pelas tais relações / interacções existentes, presumidas ou desejadas entre os diferentes interactantes (interlocutores ou não). AUTOR REAL O Malhadinhas Autor modelo NARRADOR NARRATÁRIO Heterodiegético (Editor) Extradiegético Implícito (Leitor modelo) Extradiegético Explícito (Auditório) Autodiegético (Velho Malhadinhas) Personagem Personagem Leitor-modelo LEITOR REAL FIG. 2 – Relações / interacções n’O Malhadinhas 407 Explicitando-se a FIG. 2, diremos que, partindo-se da base, o leitor real interage, directa, mas assimetricamente, com o livro-objecto O Malhadinhas (a sua edição), passando depois a interagir, directa e ainda assimetricamente, com a novela. E é sempre através desta que o leitor real interage, por outro lado, com as entidades narrativas que nela se encontram configuradas, explícita ou implicitamente, desde as personagens ao leitor e autor modelos. Destas entidades o leitor real constrói uma representação, baseando-se, fundamentalmente, nos discursos-textos por elas produzidos, bem como no D- -TE e no D-TNA. É tendo em conta este universo de ficção literária que o leitor real interage, indirecta e, mais uma vez, assimetricamente, com o autor real, entendido como autor-escritor, do qual aliás pode possuir já uma representação mais ou menos incompleta, mais ou menos próxima ou coincidente com a representação do autor modelo. Esta interacção será tanto mais aprofundada e intensa quanto maior for o conhecimento que o leitor real tiver do autor real (escritor), da sua biografia e bibliografia (activa e passiva). O leitor real deverá possuir, por isso, uma competência não só linguística, mas também cultural, literária e narrativa (competência enciclopédica, numa palavra) que, consoante o grau de desenvolvimento, lhe permitirá interagir mais ou menos criticamente (semioticamente) com o todo discursivo-textual que é a novela.10 A linha descontínua (ponteada e tracejada) que une o leitor real ao autor real (escritor) procura representar a complexidade das redes que um leitor terá de atravessar para interagir, comunicar com O Malhadinhas. Tal, porém, como o leitor real constrói uma imagem do autor-escritor, também este constrói e dá a ver a imagem dum leitor modelo, isto é, daquele leitor a quem, explícita ou implicitamente, se dirige. A este propósito, convém referir que, no caso da edição d’O Malhadinhas consultada, são configuradas três imagens de leitores modelos: (i) a que é proposta pelo autor-escritor, na «Nota Preliminar» que antecede a novela; (ii) a que é proposta pelo narrador-editor, no D-TE; (iii) a que é proposta pelo narrador autodiegético, no D-TNA. 10 O mundo criado pelo narrador «es producido por la escritura pero sobre todo recreado por el lector interpretante a partir de sus propios conocimientos, de sus recuerdos y su imaginación. El descriptor [os autores referem-se sobretudo aos processos de descrição também presentes na narrativa] se apoya continuamente en ese bagaje del oyente/lector, ya que en la difícil tarea de recrear mediante la linearidad de las palabras el mundo real en tres dimensiones se recurre constantemente a la experiencia del narratario.» [ADAM & LORDA, 1999: 141] 408 O leitor modelo proposto ou sugerido pelo discurso-texto do autor real é extradiegético, mas o facto não significa que o autor-escritor não preveja aí já a imagem dum leitor não só para as duas novelas (O Malhadinhas e Mina de Diamantes), como para toda a sua obra.11 O discurso-texto do editor (D-TE) sugere também um leitor modelo, que pode ser identificado com a noção de narratário extradiegético e implícito. O leitor modelo de D-TNA não corresponde, exactamente, ao narratário extradiegético explícito do relato do velho Malhadinhas. Este, ao narrar as façanhas da sua vida adulta, tinha um auditório que não se confunde, evidentemente, com o leitor modelo.12 Temos que a novela O Malhadinhas se desenvolve numa rede polifónica e dialógica, de sucessivas assunções e delegações discursivas: o autor real delega num narrador heterodiegético a sua competência de produção narrativa, o qual delega, por seu turno, tal competência num editor que, por seu turno, a delega no narrador autodiegético que encarna o velho contador, o qual é capaz, também, de reproduzir as intervenções que as personagens produzem. Intervenções que tais personagens organizam em trocas e sequências dialogais, por delegação e sob controle, em primeira instância, desse narrador autodiegético e, em última instância, do autor real. Uma rede dialógica e polifónica, pois como observam Adam & Lorda, «quien relata va desempeñando los distintos papeles de aquellos cuyo diálogo cita [...] directamente.»13 Temos assim que, partindo agora do interior da FIG. 2, as personagens interagem, directa e indirectamente (seta quebrada contínua bidireccionada), no seio duma interacção indirecta mais ampla, aquela em que o narrador autodiegético (velho Malhadinhas) interage, directa mas assimetricamente, com um narratário extradiegético explícito (setas quebradas unidireccionais, constituídas, uma, por uma linha contínua e, outra, por uma linha descontínua), indirecta e ainda mais assimetricamente, com o leitor modelo e o leitor real. Esta última interacção, por seu turno, ocorre no seio duma outra interacção ainda mais ampla, aquela que se verifica entre o narrador-editor e o narratário extradiegético implícito, que identificamos como leitor modelo. Toda esta cadeia (ou circuito) de relações se integra, enquadra, desenvolve e organiza, por último, na interac- 11 Cf. RIBEIRO, 1989: 7 e 9. Em RIBEIRO, 1989, encontra-se também a novela Mina de Diamantes. Identificado tal auditório, pelo narrador-editor, como constituído, sobretudo, pelos «escrivães da vila e manatas» de Barrelas, entretanto elevada à categoria de Vila Nova de Paiva (1883), o narrador autodiegético, isto é, o velho Malhadinhas, vai dirigir-se-lhes, todavia, utilizando diferentes tratamentos que expressam diferentes níveis de relação cortês: Vossorias, fidalgos, senhores, amigos e até vos (vós). Os tratamentos nominais são acompanhados, por vezes, de determinantes possessivos e/ou definidos. 13 ADAM & LORDA, 1999: 124. 12 409 ção ainda mais ampla que o leitor real tem e mantém com a obra O Malhadinhas, o seu autor-escritor e o respectivo universo literário. Tratando-se dum discurso-texto monogal, que não deixa, por isso, de constituir uma interacção verbal, poderíamos considerar a novela O Malhadinhas (D-TE + D-TNA) como um demorado turno de fala que numa longa e muito complexa intervenção se concretiza – o próprio autor-escritor chama-lhe «longo monólogo»14 – configurada por um autor real que finge de narrador / editor, para a introduzir e concluir, depois de fingir que é o locutor / narrador tio Malhadinhas que conta, de facto, a sua própria crónica a um determinado auditório, com o qual interage face-a-face, ainda que unidireccionalmente.15 O autor real desdobra-se, assim, sucessivamente, em diferentes personalidades que cria e controla, atribuindo-lhe diferentes vozes narrativas, fingindo ser como elas, para contar a história com verosimilhança. Autor real que, em contrapartida, através de cada e para cada um dos seus fingimentos, cria, consciente ou inconscientemente, outras tantas fingidas personalidades de recepção, nomeadas ou anónimas, para com elas poder interagir, dialogar, comunicar. 2. O discurso-texto do narrador-editor d’O Malhadinhas Dado que O Malhadinhas é uma novela com moldura, o D-TE pode ser considerado a narrativa encaixante16 da narrativa encaixada D-TNA. D-TE apresenta-se, por isso, segmentado em duas partes distintas: uma primeira (ocupando uma página) que antecede e constitui o proémio do D-TNA, parte que anotámos D-TE1, e uma segunda (pouco mais de meia página) que segue e constitui o epílogo de D-TNA, notada D-TE2. Em D-TE1, o editor apresenta e caracteriza, psicológica e fisicamente, em traços gerais, «aquele Malhadinhas de Barrelas», no seu duplo estatuto de protagonista (e tema) da narrativa e de contador das suas próprias façanhas e aventuras (narrador autodiegético e protagonista da narração), bem como outros dados co(n)textuais relativos à primitiva 14 RIBEIRO, 1989: 8. Cf. Também MENDES, 19772: 89-90. Cabe observar que, frequentemente, o narrador autodiegético realiza actos verbais de natureza fática que constituem réplicas a possíveis reacções verbais ou não verbais do auditório. Como exemplo, veja-se esta passagem: «Já os olhos de Rita se alegravam e me pareciam estorninhos a saltaricar num jardim. Sim, senhores, não façam troça que, tê-la ali a ver-me como me via, se me não trouxe ânimo [...] trouxe-me samgue-frio e vontade para levar a bom termo a desafronta que estivera magicadndo.» [RIBEIRO, 1989: 37. Itálicos da nossa responsabilidade.] 16 A narrativa D-TE pode ser entendida, também, como resumo da narrativa D-TNA. 15 410 narração oral (tempo, espaço e narratários). Em D-TE2, o editor narra a morte do velho almocreve, já que este não o podia fazer, por se tratar dum relato autobiográfico. Como representámos na FIG. 2, o editor interage, ainda que assimetricamente, com o leitor modelo do seu próprio texto (mais directamente) e do texto do narrador autodiegético (menos directamente), além de interagir com o leitor real (indirectamente). Os dados pessoais que o editor fornece explicitamente a seu respeito e dos seus hipotéticos interactantes são muito reduzidos, bem como a respeito do quadro espácio--temporal de realização do seu discurso-texto.17 Presta mais informações acerca do tema e finalidades (internas e externas) desta sua actividade discursivo-textual. É no final de D-TE1, imediatamente antes de ceder a palavra, a voz e o turno de fala ao narrador autodiegético, que o editor se refere a si próprio: (1) «Nas tardes de feira, sentado da banda de fora do Guilhermino, ou num dos poiais de pedra, donde já tivessem erguido as belfurinhas, alegre do verdeal, [o Malhadinhas de Barrelas] desbocava-se a desfiar a sua crónica perante escrivães da vila e manatas, e eu tinha a impressão de ouvir a gesta bárbara e forte dum Portugal que já morreu.»18 Não é, todavia, para apenas informar que foi dos que ouviram o tio Malhadinhas contar as suas façanhas, nem mesmo para informar que é a instância enunciadora de DTE, que o editor utiliza o deíctico de primeira pessoa («eu»). O que ele pretende sobretudo afirmar é que foi um ouvinte diferente, uma testemunha especial desse relato original, com interesses especiais e, por isso, com uma postura intelectual também diferente dos restantes ouvintes. Apresenta-se, assim, como um sujeito locutor credenciado e por isso credível, conforme recomenda o ethos retórico.19 Sugere, deste modo, para si próprio um lugar à parte, distante e superior, não só em relação à crónica do almocreve (e ao próprio almocreve), mas também e principalmente em relação aos narratários deste último e em relação ao leitor comum, quanto à interpretação que dessa crónica deverá ser feita. Representamos, na FIG. 3 (página seguinte), estas oposições. 17 No final da novela encontra-se apenas a seguinte indicação: «Lisboa, 1922.» [RIBEIRO, 1989: 161] Id.: 11. O destaque a negrito é da nossa responsabilidade. 19 Cf., supra, cap. I, 2.6. 18 411 Editor Escrivães e manatas Leitor modelo e real FIG. 3 – O editor vs. seus interactantes. A oposição mais vincada do editor é em relação aos escrivães e manatas, ou melhor, à interpretação que eles fariam do relato dessas façanhas. Enquanto eles ouviriam e veriam nelas apenas uma divertida crónica autobiográfica, seduzidos pela «lábia muito pitoresca, levemente impregnada dum egoísmo pândego e glorioso» do experiente conversador e contador, ele, por seu turno, ouvia e via nelas, mais que isso, «a gesta bárbara e forte dum Portugal que morreu.» E esta é também a interpretação que ele quer, implicitamente, que o leitor (modelo e real) faça. O editor exclui-se, assim, do grupo dos escrivães e manatas, por um lado, mas eleva e aproxima(-se de) o leitor (modelo e real), por outro. O triângulo anterior terá, portanto, uma representação parcialmente invertida (FIG. 3’), uma vez que o editor deseja que o leitor (modelo e real) seja dotado duma competência idêntica à sua. Editor Leitor modelo e real Escrivães e manatas FIG. 3’ – O editor vs. seus interactantes. Ao nível da relação de poder (taxémica), editor e leitor encontrar-se-ão, então, a um mesmo nível. As diferenças situar-se-ão, apenas, ao nível da relação de proximidade (proxémica). Explícita ou implicitamente, cada autor (ou seus delegados) quer sempre um leitor à sua altura, isto é, dotado duma competência correlativa, para que a interac- 412 ção que com ele estabelece seja, de facto, um pôr em comum, uma partilha, comunicação. Nesta ordem de ideias, o leitor, mais que um oponente, é um colaborador, um cooperante, um interlocutor desejado, imprescindível. O autor (ou seus delegados) valoriza, assim, ainda que implicitamente, as qualidades do leitor, atingindo-o favoravelmente na sua autoestima, na sua face positiva, segundo a retórica do pathos. O autor (ou seus delegados) é assim implicitamente cortês com o(s) seu(s) leitor(es), através do discurso- -texto (logos) que constrói (coconstrói). Tais processos inscrevem-se assi, no quadro dos actos valorizadores de faces (FFA).20 A oposição escrivães / manatas vs. leitor (modelo e real) é, todavia, aparente, isto é, mais desejada (ou receada) que efectiva. (Daí a linha tracejada.) O receio de que o leitor se fique (fixe) apenas nos aspectos pitorescos (superficiais) da narrativa, tal como os escrivães e manatas o teriam feito (linha da base, na FIG. 3), é que leva, por outro lado, o editor a fazer aquela sugestão interpretativa, obviamente de natureza ideológica e cultural. Ao contrário da oposição editor vs. escrivães / manatas, que entendemos como bidireccionada (↔),21 a oposição editor vs. leitor é unidireccionada (→), uma vez que a entendemos como uma implícita instrução ou orientação de leitura, por um lado, e como manifestação da intencionalidade última da narrativa, por outro. Neste sentido, «a gesta bárbara e forte dum Portugal que morreu» pode ser a macroproposição que resume a macroestrutura semântica d’O Malhadinhas. 2.1. Construções corteses e descorteses Explicitemos as construções implícitas de cortesia / descortesia que, com uma quádrupla orientação, encontramos em D-TE, a saber: 20 Ver, supra, caps. II e III, passim. É possível encontrar nos tratamentos delocutivos escrivães da vila e manatas sinais de que o editor não estimaria muito tais personalidades, ou quem elas representavam, do mesmo modo que elas também não o estimariam a ele, ou quem ele representava. [Cf. RIBEIRO, 1989: 9]. Por outro lado, o velho Malhadinhas declara, a dado momento do relato, que se fosse rei, «mondava Portugal», mandando queimar num outeiro ministros, juízes, escrivães e doutores de má morte, todos uma «choldra de ladrões!» [RIBEIRO, 1989: 153]. Henrique Almeida, procurando explicitar quem seriam tais «escrivães da vila e manatas», anota: «pessoas socialmente importantes, talvez alguns mais letrados, mas sem aquela experiência de vida, que ensina o que a vida é...» Tratar-se-ia de «um ou outro magnata, indivíduos grados de haveres e de posição, ou mais influentes no meio», a par de «janotas, os bon vivant, ou seja, os que viviam ociosamente com as preocupações que não chegavam a ter. Formalmente, são pois pessoas que gozam de um estatuto de superioridade em relação ao narrador [velho Malhadinhas], independentemente dos factores dessa relevância social.» [ALMEIDA, 1992: 53] 21 413 (i) para a face do leitor; (ii) para a face dos escrivães e manatas; (iii) para a face do próprio editor; (iv) para a face do narrador autodiegético.22 Quanto a (i), em vez de recomendar, explicitamente, através dum acto directivo, parafraseável por (2) “O leitor deve ler / ouvir o relato do velho Malhadinhas de Barrelas como a gesta bárbara e forte dum Portugal que morreu”, o editor manifesta / propõe a sua interpretação da crónica, atenuando, desse modo, o efeito directivo e depreciativo que tal acto causaria nas faces, positiva e negativa, do leitor. Dizer ou indicar explicitamente a um leitor que ele leia / interprete de determinada maneira é, por um lado, invadir-lhe o território (face negativa) e, por outro, pressupor que ele possui, no mínimo, uma competência de leitura / interpretação deficiente, o que é um ataque ao seu “narcisismo”, à sua autoestima (face positiva). Por outro lado, o editor atenua a possível ameaça da sua instrução de leitura («ouvir a gesta bárbara e forte dum Portugal que morreu»), precedendo-a de um preacto modalizador de natureza epistémica («eu tinha a impressão de»). Dizer que se tinha a impressão de é uma estratégia (um aspecto da competência) discursivo-textual de cortesia, através da qual o locutor simultaneamente prepara e atenua o objectivo ilocutório do acto verbal seguinte, deixando ao interactante a liberdade de aceitar ou não tal impressão, isto é, sugestão implícita. Os modalizadores, «lorsqu’ils accompagnent une assertion, instaurent une certaine distance entre le sujet d’énonciation et le contenu de l’énoncé, et par la même lui donnent des allures moins péremptoires, donc plus polies».23 Os escrivães e manatas [orientação (ii)], por seu turno, têm também a sua face salvaguardada, na medida em que o editor não diz, explicitamente, que eles se ficam (fixam) pelos aspectos pitorescos (superficiais) da narração, apenas é insinuada tal (in)competência, ao afastar-se deles na interpretação que faz e implicitamente propõe da crónica. 22 23 Este ponto será analisado, infra, em 2.2. Processos de figuração. KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 57-58. 414 Orientando, por um lado, e criticando, por outro, indirecta e indirectivamente, um e outros, também o editor protege [orientação (iii)] a sua própria face, uma vez que ele nunca diz, explicitamente, que o leitor deve interpretar o relato do velho Malhadinhas segundo a sua impressão (sugestão), nem que os escrivães e manatas o interpretavam desta ou daquela maneira. Deve-se referir, a propósito, que o preacto modalizador acima referido reverte também a favor da valorização da face positiva do editor, na medida em que atenua, quer a asserção explícita, quer o seu valor injuntivo implícito. Marcador discursivo desta oposição implícita, a nível de capacidade interpretativa e/ou da intencionalidade d’O Malhadinhas, encontra-se no valor polifónico e contrastivo do morfema e que conecta os segmentos (p) e (q), como se pode verificar na paráfrase do respectivo fragmento: (3) (p) “Os escrivães da vila e os manatas (ou)viam, sobretudo, no relato do velho Malhadinhas, a narração pitoresca duma crónica autobiográfica, mas (q) eu tinha a impressão de ouvir a gesta bárbara e forte dum Portugal que morreu.” O marcador e, i. e., mas, é um operador que altera a orientação argumentativa de p para uma determinada conclusão implícita r (parafraseável por “o leitor deve interpretar a crónica do velho Malhadinhas como a interpretavam os escrivães e manatas”), oposta à conclusão explícita q (não r), «eu tinha a impressão de ouvir a gesta bárbara e forte dum Portugal que morreu». Ou seja, o editor, servindo-se da autoridade / credibilidade (ethos) que a circunstância especial de ter sido testemunha privilegiada da narração primitiva lhe confere, orienta o leitor no sentido da interpretação desejada (pathos), através do discurso-texto (logos) que produz. Temos, assim, duas posições distintas, face à narração do velho Malhadinhas: a dos escrivães e manatas, por um lado, e a do narrador-editor («eu»), por outro. Tais posições, em virtude dos respectivos estatutos, levam a interpretações também distintas, ao nível do género e valor estético (crónica, aspecto realista, menos literário, mais pitoresco vs. gesta, aspecto simbólico, mais literário, com pretensões épicas), e ao nível ideológico e cultural (Portugal que ainda vive vs. Portugal que morreu).24 Trata-se de 24 Recorde-se que a novela foi publicada em 1922, mas o tempo da narração situa-se nos fins da monarquia. Lembre-se também que Aquilino Ribeiro foi sempre um republicano defensor da liberdade. 415 interpretações que resultam de competências de leitura também distintas, ingénua ou semiósica vs. crítica ou semiótica, recordando-se as noções de Eco.25 O editor deseja, obviamente, que o leitor real faça sobretudo uma leitura semiótica, já que essa é uma exigência do seu leitor modelo. Esquematiza-se, na FIG. 4, a breve descrição feita. O Malhadinhas Auditório escrivães e manatas e eu (mas) crónica autobiográfica pitoresca gesta bárbara e forte (Portugal ainda vivo) Portugal que morreu (Leitura ingénua ou semiósica) (Leitura crítica ou semiótica) (Leitor comum) (Leitor modelo) Leitor FIG. 4 – Leitura e interpretações d’O Malhadinhas, segundo o editor. Cabe observar que a leitura da FIG. 4 tanto pode ser feita no sentido descendente, como ascendente. Seguir pela via da esquerda ou pela via da direita depende, fundamentalmente, da competência de leitura de cada um, ou da leitura que queira fazer cada um. Uma coisa, porém, é certa: o editor segue e recomenda a via da leitura semiótica. Convirá referir, a propósito, que o editor, ao propor e desejar uma leitura semiótica para 25 Cf., supra, cap. XIII. 416 a narração do velho Malhadinhas, que ele próprio configurou em narrativa escrita literária, como se verá a seguir, é exigir, ainda que implicitamente, o reconhecimento, por um lado, de tal trabalho e, por outro, o valor estético do texto produzido. Em termos de cortesia, podemos dizer que, neste caso, o editor (e pela sua voz o autor real), procede(m) a um trabalho também de preservação da(s) sua(s) face(s) pública(s), de figuração.26 Permite-nos a descrição desta oposição implícita aos escrivães e manatas retomar a definição da entidade ficcional editor. Como já tivemos oportunidade de referir, o fragmento textual (1), depois parcialmente parafraseado em (3), fecha D-TE1, imediatamente antes de ceder a palavra (a voz) ao narrador autodiegético. Termina esta parte com o segmento q, que consideramos manifestar a orientação da leitura / interpretação desejada e a intencionalidade da narrativa (a sua mira ilocutória). Consideramos estratégica a posição que este fragmento e particularmente o segmento q ocupam em D-TE1. Tal posição, tendo em conta as considerações acima feitas, pretende sugerir que o texto narrativo literário escrito, imediatamente situado a seguir e a ler (a narrativa memorial e autobiográfica encaixada), não é da responsabilidade narrativa do reformado almocreve, mas sim dele próprio, narrador-editor. Com efeito, é este (ficção polifónica do autor-escritor), testemunha pessoal da narração primitiva oral («eu tinha a impressão de ouvir»), informal («desbocava-se»), desconexa («desfiar»), repetida («nas tardes de feira»), feita por um ébrio («alegre do verdeal»), que nos permite dispor, como observa Carlos Reis, de «uma narrativa razoavelmente estruturada, superando a rudeza e a precaridade cultural que não é difícil reconhecer no narrador». Relevando esta «função», o narratólogo considera, por isso, que o editor é «co-responsável pela estratégia narrativa instaurada n’O Malhadinhas». A ele coube a corresponsabilidade da «configuração final da narrativa, entendida como processo de harmonização e organização de elementos diversos (acções, reflexões, componentes espaciais, vivências temporais)», fazendo da narração do velho, ébrio, inculto e insipiente narrador, apesar da lábia, uma narrativa, ou seja, de «um conjunto disperso de recordações» uma «totalidade inteligível».27 Corresponsabilidade do editor, por delegação, repita-se, do autor real. Na «Nota Preliminar», recorrendo a um processo cortês de apagamento (impessoa- 26 Este trabalho de figuração do narrador-editor pode ser aproximado de idêntico esforço da parte do autor-escritor. Com efeito, encontramos na «Nota preliminar» vários segmentos discursivo-textuais que mostram claramente quanto o autor prezava a sua imagem de escritor e de cidadão, ou melhor, de cidadão-escritor ou escritor-cidadão. Cf. RIBEIRO, 1989: 7-8. 27 REIS, 1985: 46 e 48. 417 lização), o autor-escritor adverte que, na escrita d’O Malhadinhas, «se desdenhou da corruptela prosódica, fonte abundante e fácil de pitoresco», para acrescentar: «Reproduzir a linguagem dum rústico, já não digo com fidelidade mas artifício, redundaria num árduo e incompensável lavor literário. O que se cometeu foi filtrá-la, mais na substância do que na forma, com o cuidado, por conseguinte, de poupar ao oiro verbal as suas pepitas preciosas.»28 Como é evidente, o verdadeiro responsável pela novela O Malhadinhas é o seu autor-escritor, ainda que ele finja ser outras entidades que, num desdobramento de personalidade, exigem logicamente outras vozes narrativas, para assim tornar mais realista, objectiva e verosímil a história que conta. 2.2. Processos de figuração Em D-TE1, o narrador-editor faz também a caracterização física e psicológica do Malhadinhas de Barrelas, na sua dupla condição de protagonista da narração (contador) e protagonista da narrativa (personagem). Aliás, é por esta caracterização que começa, precisamente: (4) «Danado aquele Malhadinhas de Barrelas, homem sobre o meanho, reles de figura, voz tão untuosa e tal ar de sisudez que nem o próprio Demo o julgaria capaz de, por um nonada, crivar à naifa o abdómen dum cristão.»29 Obedece este processo de caracterização pejorativa a uma estratégia discursivo-textual de figuração externa (isto é, independente da vontade do próprio), através do qual o editor retrata a face pública do almocreve que, como marca indelével, o identifica. É por isso que o primeiro acto discursivo-textual (41) domina e condiciona toda a novela, desde o D-TE ao D-TNA. (41) «Danado aquele Malhadinhas de Barrelas [!]» 28 29 RIBEIRO, 1989: 8. Id.: 11. 418 O narrador-editor resume em (41) os principais dados acerca da personagem protagonista: nome-apelido intimamente associado ao topónimo de nascimento e residência («Malhadinhas de Barrelas»), precedido dum deíctico de distanciamento («aquele») e dum qualificativo depreciativo («danado»). A estrutura de (41), porém, apresenta uma ordenação sintagmática inversa à enumeração acabada de fazer. A sua construção predicativa inversa (a “Aquele Malhadinhas de Barrelas [é] danado”) e truncada (ausência da forma verbal) resulta da sua realização exclamativa (apesar da falta do respectivo sinal de pontuação). Tal ordenação desloca para o lugar de sujeito ou tópico o predicado obrigatório (nome predicativo do sujeito) ou comentário. O termo danado, recebe, assim, o valor de informação conhecida, e, além disso, um acento de intensidade que o aproxima dos valores pragmáticos da interjeição. O editor expressa, assim, o seu estado de espírito de surpresa, relativamente à maneira de ser e actuar do Malhadinhas. É formulado, deste modo, como dado indiscutível, um juízo de valor sobre o almocreve, cuja verdade é apresentada como reconhecida e aceite também pelo leitor, na medida em que, como interjeição, danado tem também um valor fático30 que reclama um interlocutor e a sua atenção. Por outro lado, o editor serve-se duma estratégia discursivo-textual polifónica de relativo apagamento enunciativo, sugerindo tratar-se mais duma citação anónima e reconhecida por uma comunidade, sobre um estado de coisas, do que duma asserção da sua inteira responsabilidade.31 Ao enunciar (41), o editor realiza, pois, um acto ilocutoriamente complexo, uma hiperasserção.32 Além do estado de coisas asserido e do estado de espírito expresso, encerra também valores de performatividade, ou seja, de verdade irrefutável que não admite discussão ou contestação. Não sendo, porém, um acto declarativo puro, a sua realização aproxima-se, por isso, mais de tese que exige a apresentação das razões que a validem. Todo o acto (41) e particularmente o seu primeiro termo - danado - passam a 30 «Les interjections sont essentiellement des morphèmes phatiques dont le sens se rapporte à l’action. A la différence des phatiques décrits plus haut et dont le sens se rapporte essentiellement au dialogue luimême [«l’entrée en dialogue», «la continuation du dialogue», «la sortie du dialogue» e de «l’assentiment et la contradiction»], les interjections renvoient plus nettement à la situation d’actance pragmatique pour l’intégrer à la situation de dialogue par un énoncé phatique plus ou moins spontané. Dans les cas-limites il peut même s’agir d’un état de choses abstrait ou d’un événement (naturel) qui n’est pas en soi une situation d’actance mais qui appelle des actions en réponse.» [WEINRICH, 1989 : 501.] 31 Perelman observa que, quando um orador quer «agir eficazmente pelo seu discurso» sobre o seu auditório, deve adaptar-se a ele, consistindo essa adaptação, «essencialmente», «em o orador só poder escolher, como ponto de partida do seu raciocínio teses, admitidas por aqueles a quem se dirige.» [PERELMAN, 1993: 41] 32 O termo «hiper-asserção» é utilizado por Sylvie Durrer para definir os valores que, de um ponto de vista pragmático, encontra nas exclamações, uma vez que «sont énoncés présentés comme ayant une valeur de vérité irréfutable, qui ne sont pas soumises à la discussion». [DURRER, 1994 : 118] 419 funcionar, nestas condições co(n)textuais, como um operador discursivo-argumentativo, dado que, uma vez proferido, cria no leitor um horizonte de expectativas a que o enunciador não pode deixar de corresponder, passando a sentir-se como que obrigado a justificar por que razão ou razões assim refere e trata o almocreve protagonista, se não quiser ser descortês. Ao formular este enunciado exclamativo, o mesmo editor está, por outro lado, a produzir um enunciado referencialmente ambíguo, pois que pode funcionar, simultaneamente, como anáfora de conhecimento (deíctico exofórico), ou catáfora discursiva (deíctico endofórico). Enquanto processo de relação anafórica, remete para o conhecimento que se tem dum estado de coisas anterior à situação de enunciação e, por isso, ainda não discursivamente realizado. Estado de coisas que é também (re)conhecido, pelo menos em parte («aquele Malhadinhas de Barrelas» e os seus comportamentos), pelo seu hipotético leitor interactante. Enquanto processo de referência catafórica, (41) remete para termos ou estados de coisas localizáveis no discurso-texto em curso. Uma representação esquemática deste duplo processo de referência (movimento) anafórica e catafórica, pode ser a seguinte: Anáfora de conhecimento «Danado aquele Malhadinhas de Barrelas [!]» Catáfora discursivo-textual FIG. 5 – Anáfora de conhecimento e catáfora discursivo-textual. A propósito da função das exclamações, observa Weinrich que quando um estado de coisas se nos apresenta muito diferente do que eram as nossas expectativas, reagimos com uma exclamação, através da qual manifestamos a nossa surpresa. E acrescenta: «Un grand nombre d’exclamations peuvent se décrire dans leur structure grammaticale comme des réponses ayant la forme de questions. Cette structure duale exprime bien la 420 fonction des exclamations dans le dialogue: ce sont des réponses pour autant qu’elles expriment une réaction à des situations ou à des faits surprenants, et ce sont des questions dans la mesure où elles manifestent un besoin de clarté supplémentaire sur des faits ressentis comme étonnants.»33 É esta necessidade de clareza suplementar (movimento catafórico) que obriga o editor a justificar por que refere e trata o Malhadinhas por «danado». Danado, porquê? E quem é esse tal Malhadinhas de Barrelas? Perguntar-se-á o hipotético alocutário, o leitor (modelo e real). Danado, porque tal indivíduo (justifica o narrador-editor), ao contrário do que o seu aspecto físico sugeria, i. e., apesar de se tratar dum (42) «homem sobre o meanho, reles de figura, voz tão untuosa e tal ar de sisudez», não era o bom-serás34 que parecia, a ponto de (43) «que nem o próprio Demo o julgaria capaz de, por um nonada, crivar à naifa o abdómen dum cristão.» O Malhadinhas é, pois, danado (41), porque, apesar das aparências (42), é um facínora (43). Convém referir, todavia, que (43) não é a razão ou a causa do conteúdo proposicional de (41), do enunciado, mas da enunciação, do dizer. Parafraseando-se o que, a propósito de construções que encerram uma dimensão de causalidade, servindo-se da distinção entre «causais de re/do enunciado e causais de dicto/da enunciação», observa Fonseca que «o estado de coisas contido em q [(43), no nosso caso] é visto, e invocado, como razão suficiente da enunciação de p [(41), no nosso caso]».35 Apesar, ou além de (42). É, contudo, o contraste entre o parecer (42) e o ser (43), entre a aparência e a realidade, que gera a surpresa e leva à exclamação (41). Repare-se que o editor, para justificar (41), recorre a uma construção consecutiva, de que (42) constitui a chamada oração principal e (43) a subordinada. O editor deixa, deste modo, para o fim do período a apresentação da razão por que Malhadinhas é danado e por que o faz com uma excla33 WEINRICH, 1989 : 559. «Bom-serás» é o termo que o editor utiliza para sintetizar as características que as aparências físicas do almocreve davam a entender. Cf., infra. 35 FONSECA (J.), 1994: 138 e 139. 34 421 mativa. Tal como Adam observa, a propósito da organização sintagmática canónica das proposições que constituem os insultos rituais, também a justificação de (41), através de (42) e (43), «n’est pas aléatoire, mais déterminé par la recherche d’un effet de sens, d’un effet rhétorico-stylistique de “pointe” qui consiste à placer en position finale l’élément le plus inattendu».36 A surpresa que o editor sente e quer partilhar com o leitor não é, assim, só pelo facto do almocreve ser um facínora, mas também por as suas aparências funcionarem como argumentos que orientam para uma conclusão oposta, isto é, não facínora, ou seja, bom-serás. A forma negativa por que começa a consecutiva corrige a orientação / conclusão de leitura / interpretação implicada por (42), mas não formulada, para reforçar a orientação / conclusão oposta realizada em (43).37 Aquele Malhadinhas de Barrelas é apresentado, desta forma, como triplamente danado, isto é, condenado. Danado pelos danos que, com a naifa, fez e era capaz de fazer, danado por uma inclinação natural38 (como que de ordem genética) ter para o uso de tal arma, danado por hábil e competente ser no seu uso. Sabido por que razão era danado (condenado), faltava responder, a quem não soubesse, quem era aquele Malhadinhas de Barrelas, protagonista da narrativa. Depois de o descrever pelas características do rosto, calçado, vestuário e adornos, as quais, à excepção das «mandíbulas de dogue», também levavam a vê-lo como um bom-serás, o editor informa que se trata dum almocreve, com território demarcado, ao longo de muitos anos, em viagens e trocas realizadas entre Barrelas e Aveiro. Sendo, como propomos, a condição de danado a dominar a construção de D-TE (como a de D-TNA), danado era também o Malhadinhas para e nas artes de almocreve, como o eco (ou fama) de suas façanhas (não só com faca) deixado naqueles povos atesta.39 Mas o editor diz-nos também, ainda em D-TE1, que o Malhadinhas era também danado por, para e no uso da língua, competência adquirida e desenvolvida nas artimanhas da vida e nos negócios de terra-em-terra praticados. Foi assim que ficou dotado «de lábia muito pitoresca, levemente impregnada dum egoísmo pândego e glorioso», competência discursivo-textual que, na velhice, lhe serviu para, através do relato dos principais acontecimentos vividos e reflexões afins, mostrar que não fora danado, nem como tal deve continuar a ser visto (condenado). 36 ADAM, 1999: 167. Sobre os valores sintáctico-semânticos e pragmáticos das consecutivas em Português, cfr. FONSECA (J.), 1994: 133-195. 38 Danado, neste sentido, encontra-se, também, nesta intervenção de Claudina Bisagra: «[...] Hábeis e danados para a vida não há como filhos de padre...» [RIBEIRO, 1989: 50.] 39 RIBEIRO, 1989: 11. 37 422 2.3. Da figuração descortês à figuração cortês. O segmento (41) − «Danado aquele Malhadinhas de Barrelas» − é também uma forma de tratamento (FT), cuja composição e funções vamos agora analisar, no quadro do sistema de cortesia / descortesia linguística. Além duma referência obviamente delocutiva, é uma forma de tratamento complexa que reúne dados de natureza diversa, relativamente ao indivíduo delocutado: - [a] - «Danado» - avaliação negativa; - [b] - «aquele» - distanciamento social (também temporal e espacial); - [c] - «Malhadinhas» - identificação pelo nome-apelido; - [d] - «de Barrelas» - identificação pelo topónimo. Considerado na sua globalidade, (41) constitui uma forma de tratamento situável no âmbito dos insultos, através do termo [a], chamado a tópico do acto hiperasserido, o qual sintetiza um juízo de valor que é uma sentença de condenação (a que andam associados também valores de reprovação, crítica, censura), por actos reprováveis cometidos. Estamos, por isso, perante um FTA (uma descortesia), orientado para a face positiva do Malhadinhas. Sendo delocutivo, atinge apenas indirectamente o visado e, por isso, menos lesivo é o ataque verbal proferido. O editor assume, deste modo, uma posição duplamente distanciada relativamente ao almocreve: proxémica, ao sugerir ausência de solidariedade e familiaridade; taxémica, ao colocar-se num lugar superior em relação a ele. Distanciamento que o determinante demonstrativo [b], dando seguimento à dimensão catafórica iniciada por [a], torna mais evidente. Aquele, em (41), remete para alguém que, não só em termos de deixis de lugar e tempo de narração / enunciação, se encontra afastado, mas também e sobretudo em termos de deixis social, estabelecendo uma relação ou movimento de relativo afastamento. Dizemos relativo afastamento, na medida em que [b] é constituinte dum SN complexo, constituído também pelo N [c], Malhadinhas, e pelo SP [d], de Barrelas. Ora acontece que [c] é um diminutivo (o nome próprio do protagonista era António Malhadas). Como tivemos já oportunidade de verificar, os diminutivos portugueses em -inho, além de expressarem a ideia de pequeno, servem também para expressar 423 familiaridade, informalidade, carinho, ternura e cortesia.40 Que o almocreve Malhadinhas não era de estatura avantajada, diz-nos o editor {de novo a dimensão catafórica de (41)}, ao retratá-lo como «homem sobre o meanho» e «reles de figura». Pensamos, todavia, como já tivemos oportunidade de referir, que o editor, ao referir / tratar o almocreve por Malhadinhas, está também a sugerir e a expressar uma relativa familiaridade e afecto em relação ao delocutado. Aliás, vem a propósito recordar que o almocreve era também tratado, pelos seus conterrâneos e conhecidos, pela forma diminutiva, precedida, por vezes, pelo tratamento respeitoso de tio. Nesta ordem de ideias, a referência / tratamento pelo diminutivo pode ser entendida / o como uma atenuação da ofensa contida em [a] e do afastamento em [b], deste modo deixando entrever, desde o início da novela, a ideia de que o almocreve não teria sido assim tão danado (condenado) como se dizia.41 Em D-TE2, aquela parte do discurso-texto do narrador-editor que enquadra e conclui a novela, já não é tanto a imagem dum indivíduo associal que se oferece do almocreve. Outra é, agora, a sua face pública. Se não completamente nova, pelo menos favoravelmente restaurada, refigurada: (5) «António Malhadinhas fechou os olhos à semelhança do romeiro que torna de Santiago, farto de correr léguas, ver terras, passar pontes e vaus, enxotar cães que arremetem ameaçadores de currais e quintãs, e adormece a sonhar com o céu num recosto do caminho. Vergou brandamente a cabeça para o peito, ao tempo que os dedos lhe pendiam para o chão como vagens maduras. E – o Justo Juiz lhe perdoe as facadas que as não deu em nenhum santo – nem se sentiu a atravessar as alpoldras duma margem para a outra do negro rio.»42 Recordando-se a imagem ou face pública exposta em D-TE1 e comparando-a com a imagem ou face pública (re)figurada em (5), verifica-se que o almocreve passou de facínora a romeiro, de danado a perdoado. Tornou-se outro, como tendo outra personalidade. Outro é, por isso, o tratamento por que passa a ser identificado e reconheci- 40 Ver, supra, cap. III, 2.2. Aliás, uma das preocupações do velho Malhadinhas é justificar os actos por que o acusavam de danado. A propósito do uso da faca, comenta: «A faca é feia e cruel, está certo; mas se em vez de naifa eu trouxesse um punhal com cabo de prata; se em vez de almocreve fosse um desses senhores D. Gaifeiros de que rezam os rimances, eu queria ver se alguém erguia a voz a acoimar-me de desalmado». [RIBEIRO, 1989: 104. Itálico da nossa responsabilidade] 42 RIBEIRO, 1989: 161. 41 424 do: o descortês aquele Malhadinhas de Barrelas é substituído pelo cortês António Malhadinhas. Observe-se que o editor mantém o diminutivo do apelido, assim sugerindo que deva ser votado a esquecimento definitivo o apelido Malhadas, forma cuja conotação semântica estaria mais de acordo com a sua primeira imagem ou face pública de reconhecido insociável.43 Repetimos que o tratamento danado (condenado) domina toda a construção d’O Malhadinhas. O narrador-editor justifica, em D-TE1, logo no incipit, que o protagonista era danado, porque era «capaz de, por um nonada, crivar à naifa o abdómen dum cristão.» Em D-TE2, o mesmo narrador-editor propõe, no desfecho da narrativa, que o mesmo protagonista seja perdoado, porque as «facadas [...] as não deu em nenhum santo». Dum círculo de afectos desfavorável (sobretudo para escrivães, manatas e leitores comuns), o velho almocreve é admitido num círculo de afectos favorável (sobretudo para o narrador-editor, bem como para o leitor modelo e quantos, como estes, idênticas competências de leitura e interpretação possuam). O narrador-editor sugere, no final D-TE1, que o processo de refiguração do almocreve se fica a dever à narração que o próprio fez das suas próprias aventuras. Não vamos analisar o D-TNA que constitui a narrativa encaixada e, no fundo, a novela O Malhadinhas propriamente dita. Gostaríamos, todavia, de observar que o facto do narrador-editor, por delegação do autor-escritor, ter cedido a palavra ao tio Malhadinhas, para que seja ele próprio (como se fosse ele próprio) a contar a crónica da sua vida adulta, se inscreve também no mesmo processo de figuração, que encerra também um gesto de cortesia da parte de quem lhe dá a vez e a voz, para que conte a sua versão dos acontecimentos. Os comportamentos negativos (mesmo criminosos) de natureza afectiva, profissional e social que o almocreve realizara, deram-lhe uma imagem ou face pública fortemente desfavorável. Pressente-se que essa figuração, lendo-se a sua crónica, foi favorecida pelo próprio, enquanto útil lhe foi, nos diferentes negócios da vida e pela vida se meteu. Chegado, porém, à velhice, com «quase dois carros de anos» (cerca de 80 43 Malhar, regista o DLPCACL, significa «bater repetidamente com malho ou martelo» e malhadas a acção correspondente. Além disso, malhada, também significa, curiosamente, «Série de acções emaranhadas que constituem uma história enredada, em que há intriga.» [DLPCACL (vol. 2), 2001: 2346] O apelido Malhadas pode ser, por isso, uma metáfora tanto dos actos físicos e verbais com que o almocreve atacou quem não pertencia ao seu círculo de afectos favorável, fazendo justiça por sua conta e risco, como, por isso mesmo, da sua própria existência. 425 anos)44 intensamente vividos, arrumado o rebanho de dezanove filhos, seguro de bens e dinheiro cabonde, cansado de correr terras e enfrentar perigos, põe-se a deitar contas à vida e vê-se socialmente mais difamado que afamado, ou melhor, afamado mas por difamação. A sua imagem ou face pública fora desfigurada, porque todos os seus comportamentos haviam sido mal interpretados, não compreendidos. Inicia, portanto, um processo de reabilitação, corrigindo e recompondo o retrato social desfigurado e desfigurante que dele haviam pintado.45 Põe-se então a (re)contar a sua vida adulta, ocasião para rebater acusações, apresentar razões e explicações, argumentando e contra-argumentando, na plena convicção de que tudo o que fez, com as armas que melhor sabia utilizar – o pau, a faca, a língua – foi sempre em defesa da honra e dignidade próprias, da família e dos amigos, dos fracos e de Deus.46 A narração memorial e autobiográfica do Malhadinhas é, neste co(n)texto, também um processo de ressocialização. A propósito, registe-se a seguinte observação de Adam & Lorda: «relatar, sea cual sea la situación narrativa, y ya se trate de experiencias vividas, soñadas o imaginadas, constituye uno de los medios más eficaces de relacionarse con otras personas, por lo que es una actividad fundamental para la sociabilidad.»47 A má fama de que gozava não passaria, por isso, duma ingrata difamação. E se perdurava era porque alguns dos seus contemporâneos, cuja conduta de vida indigna 44 Cf. RIBEIRO, 1989: 13. Esclarece o Dicionário de Morais que um «carro de anos» significa uma «porção de 40 anos contados.» [SILVA, 195010 (vol. II): 967] 45 Repare-se na seguinte reflexão: «Afinal maluquei para comigo: “António, o teu pior inimigo é a fama que em má hora granjeaste de bulhão e de matador. É em nome dessa fama que o ladrão [Fontinhas] que derrubaste a teus pés em boa e legítima defesa se tornou em pobre de Cristo, destes viandantes dos caminhos que vão de terra em terra sem fazer sombra, e tu não passas dum facínora que anda às soltas. Quem não quer ser lobo não lhe veste a pele, e tu vestiste a pele do lobo!.”» [RIBEIRO, 1989: 69-70] 46 «Que a minha língua era ponteira como a faca que trazia à cinta – murmuravam as bocas do mundo mal consideradas. Cantigas, ó Rosa! A faquinha, assim Deus me salve, tinha uma função e não mais, cortar a côdea, o queijo, a febra do presunto, quando andava de jornada. / Algumas vezes, também, arremediava-me a consertar os atafais do macho se o Demo queria que estoirassem. Quando, por grande acaso, se apartava desta pacífica missão, é que a minha vida corria perigo e trazer eu a peito defendê-la, pois se Deus ma deu – tantas vezes o tenho dito – a Deus tenho obrigação de a restituir, mas só quando ele for servido e mais ninguém. / Quanto à língua, cortaram-me a trave ao nascer; mas nunca levantei falsos testemunhos, nem acoimei de curta mulher honrada, nem de cornel sujeito que não tivesse testa para marrar. Guar-te de homem que não fala e de cão que não ladra, por isso eu sempre falei, falo e falarei franco até morrer, pois se nós o temos no pensamento, acautelá-lo da boca só por ronha ou cobardia. / Mas onde eu punha epitáfio, caía mais certo que os nabos no advento. Onde cortava nos “podres” é que os podres buliam com Deus e com os homens.» [Id., 1989: 92-93] 47 ADAM & LORDA, 1999: 13. 426 atacara, sempre na boa intenção de os corrigir,48 continuavam a difamá-lo, isto é, a denegrir-lhe a face ou imagem. Concluindo, podemos registar que, analisando-se a configuração d’O Malhadinhas segundo a perspectiva da figuração, na sua dupla dimensão de face want e face work, temos que D-TE1 se pode entender como a desfiguração do almocreve, o D-TNA como a sua refiguração (autorrefiguração, que passa também pela heterodesfiguração de adversários e inimigos) e D-TE2 como a transfiguração que valida todo este processo, quando o narrador-editor pede ao Justo Juiz que lhe conceda o perdão que a injustiça dos homens sempre lhe negou. Mas só depois de ter reorganizado (reconfigurado) a sua vida em narrativa, através da qual recompôs, pessoal e socialmente, a memória da sua existência fortemente malhada. Vem a propósito recordar a seguinte reflexão do psicólogo Jerome Bruner: «Quando se vê alguém acreditar, desejar ou agir de uma forma que não tem em conta o estado do mundo, fazer um acto verdadeiramente gratuito, é olhado, do ponto de vista da psicologia comum, como tolo, a não ser que enquanto agente consiga ser narrativamente reconstruído como enredado numa situação difícil mitigadora ou em circunstâncias esmagadoras. Realizar semelhante reconstrução pode revestir a forma inquiridora de processo judicial na vida real ou de uma novela na ficção».49 Quem fala ou escreve não é cortês ou descortês apenas em contextos de interlocução / interacção face-a-face, nem quando emprega formas verbais explícitas de cortesia ou descortesia. A actividade da linguagem humana, sendo interaccional por natureza, implica que, também em co(n)textos de comunicação diferida, se é sempre mais ou menos cortês ou descortês, em relação àqueles a quem ou de quem indirectamente se fala ou escreve, incluindo quem fala ou escreve. Mesmo quando um locutor, escrevente 48 Exemplos de actos que se destinavam a «endireitar o mundo que andasse torto» são, entre outros, a cena em que o Malhadinhas fez com que Manuel Bisagra, que «era senhor duma destas galhaduras, mais formosas, compridas e retorcidas como não há memória que andasse armada a testa dum serrano», descobrisse que a mulher lhe era infiel. Provocado a que mostrasse ser homem, dirigiu-se a casa onde «fora encontrar a mulher com o Padre Antunes da Lousada». Despertados pelo «banzé», os amigos do Bisagra acudiram e verificaram que ele «zupava nos dois como em amassadoiro de linho»; ou, então, a cena na adega do Duarte, onde, depois de ter amansado a mulher mandona, com falsos elogios e de convite à participação no comes e bebes do grupo, fez com que o marido lhe desse o ensinamento devido, aplicando-lhe à noite «uma sova de criar bicho». [Cf. RIBEIRO, 1989: 93-96, 99-102] 49 BRUNER, 1997: 49. 427 ou escritor, tenta esconder-se em subtis construções discursivo-textuais, aparentemente neutras, cuja análise põe a descoberto intenções conscientes ou não de cortesia ou de descortesia linguística. O que, tanto nos casos de produção como de recepção, pressupõe e exige, sempre, uma competência discursivo-textual também a esse nível. «Le foisonnement des interactions verbales quant à leurs contenus et à leurs fonctions mais aussi quant aux moyens linguistiques mis en œuvre par les interlocuteurs, nous laissent perplexes lorsque l’on cherche à rendre compte avec une certaine rigueur de cette complexité.» 50 50 CARREIRA, 2001: 45. Capítulo XV CORTESIAS E DESCORTESIAS DISCURSIVO-TEXTUAIS EM INTERACÇÕES VERBAIS EM SENTIDO ESTRITO AS FORMAS DE TRATAMENTO (Aspectos retórico-argumentativos e polifónicos) Se não tens dinheiro na bolsa, tem mel na boca. Provérbio Uma das personagens aquilinianas que melhor sabe utilizar e explorar, discursivo-textualmente, os diferentes valores retórico-argumentativos das FT’s, corteses e descorteses, nas relações que estabelece, tendo em vista os objectivos que pretende alcançar, em cada momento do co(n)texto da interacção verbal, com os interactantes que encontra e defronta, é a Salta-Pocinhas, a famosa protagonista do Romance da Raposa de Aquilino Ribeiro. Foi certamente por isso que o narrador decidiu acrescentar-lhe, ao nome próprio (NPp), o aposto de senhora de muita treta,1 como propriedade inalienável que passou a constituir, por isso, outra FT por que ficou também conhecida. É esta criatura dotada de «palavreado» com que facilmente «ilude» e «engana», «ataca» e «derriba» quem se lhe opõe, física ou verbalmente.2 Para iludir e enganar, realiza, estrategicamente, uma série de actos discursivo-textuais, segundo uma dupla orientação cortês: valorização directa e indirecta das faces do alocutário, por um lado, e desvalorização das suas próprias faces, por outro. Ao invés, para atacar e derribar, realiza também uma série de outros actos discursivo-textuais que, por lesarem, com maior 1 Cf. RIBEIRO, 1961: 7 e passim. Os itálicos correspondem a citações parciais ou adaptadas do Romance da Raposa. 2 Os termos entre parênteses foram colhidos nas entradas «treta» e «tretas» do Dicionário Morais [cf. SILVA, 194910 (vol. XI): 216]. Recorde-se que, segundo os dicionários, se usa, em registo mais ou menos familiar, a FT «treteiro / a» dirigida a pessoa que fala muito, com capacidade discursiva fácil e que não olha a meios verbais para convencer, tentando ludibriar. O item treta pode ser entendido, assim, como um disfemismo de retórica. 430 ou menor gravidade, as faces do alocutário, se situam no âmbito da descortesia e, em particular, do insulto. A senhora de muita treta, para ver satisfeitos os seus desígnios, procura seduzir o interlocutor, por aproximação e deferência, recorrendo a FT’s que expressam diferentes níveis de cortesia, elevando-o, se necessário, aos píncaros do tratamento honorífico. Inversamente, mas com o mesmo objectivo, dirige a si própria tratamentos de humilhação, desvalorizando-se e colocando-se deste modo nos lugares mais baixos e afastados da relação. Por outro lado, em caso de infortúnio (e mesmo de sucesso), com a mesma ou maior facilidade, destrona o interlocutor do pedestal onde antes o colocara, remetendo-o, através duma enfiada de insultos e outras descortesias, aos lugares mais ínfimos, ao mesmo tempo que se guinda a si própria a lugares superiores, invertendo por completo a relação interpessoal que anteriormente havia construído. Dessas cortesias e descortesias verbais faz outras tantas estratégias que, discursivamente manipuladas, a nível relacional e transaccional,3 lhe permitiram vencer as constantes lutas de subsistência e sobrevivência que enfrentou. Neste sentido, conseguir os objectivos pretendidos passa também por um processo de negociação das distâncias, através das FT’s utilizadas. Um uso retórico, pois, dos tratamentos corteses e descorteses, os quais podem ser considerados, por isso, argumentos ad hominem. «On minimise les différences, on les accroît, on s’appesantit sur les identités ou au lieu de les souligner, on les atténue, selon que l’on pense qu’il existe une identité ou une différence entre l’auditoire et le locuteur, entre autrui et soi. // […] // Dans la distance qu’il faut négocier, on peut se dévaloriser pour atténuer (cela s’appelle un chleuasme), ou alors attaquer l’adversaire par la disqualification et le mettre en cause directement (ad hominem).»4 Analisaremos, neste capítulo, as representações linguísticas de cortesia e descor5 tesia a que a Salta-Pocinhas recorreu, utilizando, retórica e polifonicamente, o sistema 3 Recorde-se que o nível relacional diz respeito ao tipo de relação que os interlocutores ou interactantes duma dada interlocução estabelecem, mantêm ou alteram entre si, num dado co(n)texto de interacção verbal. O nível transaccional diz respeito, sobretudo, ao conteúdo informativo que, a propósito dum tema ou estado de coisas, é trocado entre os interactantes. É evidente que, numa interacção verbal, estes níveis estão sempre presentes e condicionam-se reciprocamente. Ver, supra, cap. I, 2.6. e 2.7. 4 MEYER, 1993: 121 e 123. 5 Desconhecemos a existência de teoria que, à semelhança do que acontece com a cortesia, descreva, na sua globalidade, os fenómenos de descortesia. Cremos, contudo, que o modelo de Kerbrat-Orecchioni serve também para explicar os fenómenos descorteses, particularmente os discursivos. Como observa 431 de FT’s e suas virtualidades discursivo-textuais. Consideraremos apenas algumas sequências dialogais representadas no Romance da Romance, aquelas onde os tratamentos corteses e descorteses são mais abundantes e, sobretudo, mais significativos, como processos de sedução e persuasão, por um lado, e de figuração ou desfiguração, por outro.6 1. Cortesias e descortesias duma senhora de muita treta 1.1. Interacção verbal Salta-Pocinhas vs. D. Salamurdo7 A interacção verbal travada entre a raposa Salta-Pocinhas (SP) e o teixugo D. Salamurdo (DS) é constituída por duas sequências dialogais. A primeira é truncada: aos sucessivos turnos de fala de SP, mais ou menos complexos, ao nível das intervenções que os constituem, DS nunca responde, por se encontrar em sono profundo (facto que SP desconhecia). O contacto, por isso, não foi estabelecido e a sequência transaccional, apesar do tema ter sido formulado, não se concretizou a nível de trocas verbais explícitas. A segunda sequência é um conflito verbal que termina em ruptura definitiva. DS, despertado e ofendido pela invasão verbal de SP que, além disso, fedia à légua, passa uma descompostura à atrevida e nega-se a satisfazer-lhe o pedido. Por isso, SP, ofendida nas suas faces positiva e negativa, retoma, irreverente e irritada, as ofensas. A interacção verbal só podia degenerar, por isso, em agressões verbais mútuas, terminando em separação. DS foi queixar-se ao vizo-rei, o lobo D. Brutamontes, de quem era leal servidor. SP, logo que pôde, invadiu o castelo de DS, assim o ofendendo, causando-lhe danos (claras ofensas ao «território», ou face negativa). Precisemos o co(n)texto desta interacção. Perdida de fome e sem que ninguém a pudesse ou quisesse socorrer, SP foi informada pelo irmão Pé-Leve de que DS havia pilhado pata e de que ele era esmoler. SP procura então saber onde mora DS, interrogando quantos foi encontrando pelo caminho. Camille Pernot, os principais traços da cortesia desenham a contrario, «dans ses grandes lignes, la figure immuable de l’impolitesse, celle que les différents codes ont invariablement bannie et qu’aucun d’eux ne pourra jamais admettre.» [PERNOT, 1996: 357] 6 Aos processos discursivos de «figuração como meio de agressão», de que fala Goffman, chamamos desfiguração, estejam eles orientados, directa ou indirectamente, para as faces do locutor (autodesfiguração) ou do alocutário (figuração). Os processos indirectamente orientados dizem respeito a terceiros que todavia pertençam ao círculo de afectos de cada um dos interactantes. 7 Cf. reprodução co(n)textualizada completa desta interacção verbal, no fim deste capítulo. 432 SP e DS têm conhecimentos e representações8 diferentes um do outro. SP sabe, pelas informações que foi colhendo, que DS tem mantimentos, mora num castelo e ocupa um lugar superior, na hierarquia dos bichos que povoam aquele mundo de selvas e penedias. DS, por seu turno, sabe apenas que SP, sendo raposa, só pode ter as características próprias da espécie. Estes dados co(n)textuais prefiguram a existência, entre DS e SP, duma relação distanciada, tanto proxémica como taxemicamente, o que podemos ilustrar na figura seguinte (FIG. 1): Eixo Taxémico DS + CORTESIA Eixo Proxémico - CORTESIA SP FIG. 1 – Posições taxémicas e proxémicas de DS e SP, antes da interacção. Ao nível das relações co(n)textualmente construídas,9 DS e SP situam-se, simultaneamente, em posições opostas e afastadas, instituindo um tipo de relação de cortesia 8 Representações, no sentido que dá Grize ao termo, de “formações imaginárias” que os interlocutores têm de si próprios e um do outro, dessa mesma relação, do contexto de comunicação, do tema da conversa, etc. [Ver, supra, cap. I, 2.3.4., ou GRIZE, 1990: 33-34 e 1996: 63-65] 9 A imagem de Salta-Pocinhas que o narrador constrói e o leitor reconstrói tem muito a ver, também, com o preconstruído cultural que o fabulário popular foi esquematizando acerca da raposa. Seguimos, neste comentário, a noção grizeana de comunicação como esquematização, conforme descrição feita, supra, no cap. I, 2.3. [Cf. GRIZE, 1990: cap. IV e 1996: cap. III] 433 que o diassistema cultural português recomenda em tais situações, a saber, de respeito do inferior pelo superior, dado gozarem de estatutos sociais assimétricos. Foi, porém, esta a relação que a SP começou por assumir e respeitar? A visita de SP tinha por único objectivo obter de DS alimento com que matasse a fome. Para o conseguir (excluído o furto), SP teria de, em primeiro lugar, estabelecer contacto e, depois, rogar alimento, isto é, fazer um pedido. Ora, contacto e pedido são, embora a níveis diferentes, actos directivos que invadem o território do alocutário e são, por isso, FTA’s. O locutor coloca-se, nestes casos, em posição relativamente alta e afastada face ao outro. Ou seja, tais actos, na impossibilidade de serem evitados, deveriam ter sido atenuados. (Se SP tivesse querido ser cortês, evidentemente.)10 E como procedeu ela? «A Salta-Pocinhas, como o olfacto lhe certificasse que estava diante do solar do teixugo, chamou à porta: [SP1] – [1] Ó da casa! Ó da casa!»11 Deixando de parte o acto de cortesia não verbal (deter-se à porta12), fixamo-nos na FT de chamamento utilizada por SP. Em [SP1], temos a duplicação da FT nominal de chamamento Ó da casa! Trata-se duma construção elíptica, utilizada nos meios rurais, como fórmula mais ou menos informal de contacto. Com ela, o locutor anuncia a sua presença e intenta dar início a 10 É a conhecida questão dos princípios de preservação e figuração das faces («face want» e «face work») que o sistema de cortesia preconiza. Recorde-se que, como vimos, supra, cap. II, as noções de face want e de face work são complementares e estão, como é evidente, intimamente relacionadas, por um lado, com a noção geral de face e, por outro, com as noções de FTA e de FFA. Ou seja, por um lado, todos os interactantes desejam ver cuidada a sua face, tanto negativa como positiva, mas, por outro, qualquer acto de comunicação é potencialmente ameaçador dessa mesma face. Assim, a contradição aparente entre a impossibilidade de não comunicar e o desejo de preservação da face resolve-se através de processos de figuração permanente, o que passa pela realização de diferentes estratégias de cortesia. Por isso, a cortesia também se define como «un moyen de concilier le désir mutuel de préservation des faces, avec le fait que le plupart des actes de langage sont potentiellement menaçants pour telle ou telle de ces mêmes faces.» [KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 53]. 11 RIBEIRO, 1961: 28. Conforme a prática seguida em estudos de análise conversacional, cada interactante é aqui indicado pela inicial – SP, de Salta-Pocinhas, e DS, D. Salamurdo – imediatamente seguida do número de turno de fala – [SP1], neste caso. Quando entrar em cena D. Salamurdo, será [DS1]. Os números entre parênteses rectos indicam a numeração sucessiva das FT’s utilizadas, independentemente de serem realizadas por [SP] ou [DS]. 12 Uma invasão do espaço físico do outro é sempre um FTA não verbal e, por isso, um ataque ao seu território, à sua face negativa. É, todavia, por receio e não por cortesia que a raposa não o comete. Conta o narrador: «Passaram-se minutos, e a raposinha tentada, vai não vai, a arremeter por ali dentro, à ventura, fosse o que Deus quisesse. D. Salamurdo, porém, tinha garras de aço que apertavam como turqueses, dentes possantes que uma vez ferrados não abriam mais, e acobardou-se.» [Id.: 29] 434 uma interacção verbal que, realizada com sucesso a sequência fática de abertura, evoluirá para a(s) sequência(s) transaccional(is). Em tais co(n)textos, tanto o locutor como o alocutário são, em princípio, mutuamente estranhos e anónimos.13 Trata-se, por isso, dum FTA que lesa directamente a face negativa (território) de DS e, indirectamente, mas com sentido positivo, a face positiva de SP, uma vez que tem ou pretende ter poder sobre o outro, para o poder chamar e perturbar. Com a FT de chamamento Ó da casa, SP constrói e estabelece, por isso, uma relação de distanciamento simultaneamente proxémica e taxémica, como na FIG. 2 se procura ilustrar: Eixo Taxémico SP + CORTESIA Eixo Proxémico - CORTESIA DS FIG. 2 – Posições de DS e SP, no início da interacção SP, com [SP1], inverte a relação de lugares e de distanciamento que os dados co(n)textuais, anteriores ao início da interacção, haviam prefigurado. A realização deste FTA deveria ter sido, por isso, atenuada. Desse modo, SP teria suavizado o ataque que, com o chamamento, atingiu a face de DS e, correlativamente, teria protegido tam- 13 Há casos, porém, em que tal fórmula é denotadora de familiridade e/ou boa vizinhança. Sabemos, por experiência própria, que em meios rurais do concelho de Ponte de Lima, parentes próximos e vizinhos anunciam ludicamente as suas chegadas com Ó da casa! As características sonoras da fala identificam o locutor, fazendo com que a fórmula expresse uma certa afectividade entre os interactantes. 435 bém a sua própria face. Deveria tê-lo feito, desde logo, ao nível dos termos utilizados na construção da FT,14 pedindo, depois, desculpa pela invasão e justificando-se. SP não chega a formular, explicitamente, ao longo da interacção, qualquer acto reparador de desculpa, embora venha a apresentar algumas justificações, as quais, como as FT’s corteses utilizadas, podem ser interpretadas como realizações implícitas de desculpa.15 Não pedir desculpa, como forma de minimizar FTA’s, voluntária ou involuntariamente cometidos, é indicador, por outro lado, de superioridade, ainda que revelador de falta de cortesia. É por isso que, empregar Ó DA CASA, entre estranhos ou entre interlocutores com estatutos assimétricos (inferior → superior), é tido como descortesia, por excesso de familiaridade. A não ser em co(n)textos lúdicos. Mas será que, de acordo com o princípio de figuração das faces, não se encontra, mesmo assim, na realização deste FTA, nenhum traço de atenuação, de valorização de faces de DS? Recordemos o esquema através do qual procurámos representar os efeitos que a realização dum FTA ou dum FFA pode ter nas faces do locutor e do alocutário.16 INTERACÇÃO VERBAL Face positiva Face positiva FTA FFA Locutor Face negativa Alocutário Face negativa FIG. 3 – Orientação e efeito de «boomerang» na realização dum FTA e/ou dum FFA Numa interacção diádica, em que estão em presença, pelo menos, quatro faces, um FTA não fere todas elas de igual modo, nem com o mesmo grau de gravidade. Além 14 O discurso atributivo do narrador não nos fornece elementos paraverbais que a SP tenha utilizado também na realização de [SP1]. Actos não verbais e paraverbais podem acompanhar e atenuar também a realização verbal dum FTA. 15 Análises desenvolvidas de trocas verbais rituais (uma reparadora - pedido de desculpa - e outra de cumprimento - agradecimento) encontram-se em KERBRAT-ORECCHIONI, 1994: 149-301. Versões resumidas, em 1996: 83-88. Cf. também EGNER, 1988; GOFFMAN, 1973: 101-180. 16 Para a descrição da FIG. 3, ver, supra, cap. III, 1. 436 disso, em princípio, ao ataque a uma das faces do alocutário corresponde, assimetricamente, uma valorização da face oposta do locutor e vice-versa. Encontram-se, de facto, na realização do acto [1], proferido por SP, aspectos que podem ser interpretados como atenuadores. Quem chama Ó da casa, reconhece, indirecta mas positivamente, que se dirige a alguém que possui ou goza de habitação (e, logo, de privacidade), identificando-o e confundindo-o mesmo com essa habitação, o que equivale a uma manifestação de respeito pelo território e estatuto do DS. Neste sentido, trata-se, por isso, duma valorização implícita das faces negativa e positiva do alocutário. Em contrapartida, [1] é lesivo, de forma indirecta mas negativamente, da face negativa de SP, pois reconhece que está junto de propriedade alheia, além de que, pragmaticamente, se chama é porque precisa de alguma coisa.17 A análise da FT Ó da casa, de ocorrência reiterada, leva a concluir que SP não cumpriu, no início da interacção, as regras elementares da cortesia verbal, tradicionalmente estabelecidas pelas sociedades.18 Observam Perelman & Olbrechts-Tyteca: «Em nosso mundo hierarquizado, ordenado, existem geralmente regras que estabelecem como a conversa pode iniciar-se, um acordo prévio resultante das próprias normas da vida social.»19 Comparando-se [1] com as realizações não elípticas (1’), (1’’), (1’’’) e sobretudo (1’’’’), progressivamente mais corteses, para as faces de DS, verifica-se como SP não utilizou a FT mais apropriada, naquele co(n)texto. [1] Ó da casa! (1’) Ó gente da casa! (1’’) Ó patrão da casa! (1’’’) Ó dono da casa! (1’’’’) Ó senhor da casa! 17 A intervenção reactiva frequente a chamamentos deste tipo é a interrogativa Que quer? Tanto mais quanto D. Salamurdo se situava a si próprio numa posição superior, metaforicamente dizendo viver em casas com portas de certa teoria. [RIBEIRO, id.: 30] 19 PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 1996: 17. 18 437 Mas porque ela já sabia a quem se dirigia, também poderia ter chamado, utilizando tratamentos ainda mais corteses, como Ó senhor Salamurdo!, Ó senhor D. Salamurdo!, ou mesmo ó D. Salamurdo! É certo que SP ignorava que DS estava a dormir, mas, mesmo que estivesse acordado, com aquele chamamento, ela não seria certamente bem sucedida, sobretudo quanto ao pedido. Convencida, porém, de que DS se encontrava efectivamente em casa e desperto, SP repete o chamamento, mas, perante a infelicidade perlocutória do acto, muda rapidamente de estratégia. [SP2] – [2] Ó da casa!... Sou eu, [3] a comadrinha raposa, [4] meu rico senhor D. Salamurdo! Sou eu!20 Com esta nova intervenção fática, SP introduz, por um lado, uma FT nominal elocutiva – [3] a comadrinha raposa – e uma FT nominal alocutiva – [4] meu rico senhor D. Salamurdo. Num instante, abandona o anonimato, seu e do alocutário: apresenta-se e reconhece a identidade e a categoria social do destinatário. O objectivo ilocutório destes actos de chamamento e de autoidentificação (que são também tratamentos) continua a ser o estabelecimento de contacto que permita a conversa que há-de levar à formulação do pedido. O discurso-texto de SP é, desta feita, mais cortês, manifestando certa afectividade, no tratamento elocutivo complexo por que se identifica. Em relação a DS, porém, utiliza uma expressão ainda mais complexa de tratamentos, num misto de formalidade e informalidade. Trata-se de estratégia sedutora de aproximação proxémica e taxémica que visa atenuar, por compensação, o FTA de contacto (agravado pela reiteração), procurando criar uma plataforma favorável à interlocução e aceitação interpessoal.21 Tal estratégia valoriza e/ou desvaloriza, em graus e orientações diferentes, ora a dupla face (positiva e negativa) de DS, ora a dupla face (positiva e negativa) de SP. O recurso a estes processos atenuadores faz com que a directividade do FTA de contacto seja suavizada e que o FTA de pedido possa vir a ser formulado num co(n)texto interpessoal mais favorável. SP preocupa-se, assim, através duma negociação implícita e unilateral, com a redefinição e regulação dos lugares, seu e de DS. Dada a complexidade de cada um dos tratamentos que em [SP2] se encontram em presença, analisaremos um de cada vez. 20 RIBEIRO, 1961: 28. «Los actos de presentación permiten el reconocimiento de los sujetos y su identificación permiten el reconocimiento de los sujetos y su identificación grupal, con lo que se aminora la distancia social que los separa y se combate la exclusión y la alienación.» [LABORDA, 1996: 11] 21 438 Com [3] – [Sou eu,] a comadrinha raposa – SP baixa de lugar (eixo taxémico) e aproxima-se (eixo proxémico) do lugar de DS, num processo de relativa desvalorização directa da sua face negativa - ao identificar-se, expõe-se e diminui22 o seu território individual - e de valorização indirecta da face positiva de DS - apresentar-se é também expor-se, reconhecer ao outro um estatuto superior23 e, além disso, correr o risco de ser recusado ou ignorado. Mas [3] é também uma desvalorização indirecta da face positiva de SP - o anonimato e a estranheza deixam de a proteger – e, correlativamente, é também uma valorização indirecta da face negativa de DS - ao apresentar-se, SP alarga, “enriquece” o leque de relações sociais do interlocutor. Além disso, este acto é ainda lesivo da face positiva de SP por dois motivos. Em primeiro lugar, apresenta-se a um estranho (apesar de saber quem ele é), com quem, ainda por cima, não se encontra face-a-face. Em segundo lugar, se DS não se encontrasse em casa, estaria a expor-se ao ridículo. Mas, em virtude do princípio de figuração, encontram-se também, implicitamente, valores atenuadores da desvalorização das faces de SP e, simultaneamente, de mitigação da valorização das faces de DS. Com efeito, ao construir [Sou eu,] a comadrinha raposa, enunciado metacomunicativo de deixis pessoal e de asserção com valor performativo, SP afirma as suas faces positiva e negativa. Começa por afirmar a sua existência e individualidade – Sou eu – e só depois a sua incompleta identificação – a comadrinha raposa – numa reformulação de explicitação pelo tratamento social (afectivo) e de espécie, para terminar com a reafirmação da existência – Sou eu! Repare-se, ainda, que SP se identifica como a comadrinha raposa. Pretende indicar, assim, que é uma personalidade socialmente conhecida e íntima, e ao mesmo tempo fazer passar a ideia de que é querida (repare-se no diminutivo comadrinha) e como tal tratada e considerada na comunidade. Logo (tentativa de persuasão implícita), também DS não pode ignorá-la nem deixar de a atender. A autorreferência pelo diminutivo, seja ele entendido como NPt ou NAf,24 tentativa de aproximação pelo lado da afectividade,25 e a identificação pelo nome da espécie são estratégias de cortesia negativa 22 O morfema {INHO} inclui, também, o sentido de [diminuição]. «A regra fundamental das apresentações é a seguinte: a pessoa que se considera de categoria inferior é a que deve ser apresentada à de condição superior». [GIÃO, 1988: 136] 24 Para se recordar o tipo de tratamento nominal correspondente a cada uma destas e seguintes siglas, ver, supra, cap. IX. 25 «As formas em –inho e –ito [...] não são, em geral, termos fixos , mas variáveis de sentido e têm que ser sempre considerados em relação com o contexto. Embora, na maioria dos casos, o sufixo diminutivo não altere o significado do radical da palavra sufixada, traduz, no entanto, com maior intensidade os sentimentos, os afectos, ou as intenções cambiantes das pessoas que o empregam tornando assim certas 23 439 com que SP, naquela situação de interacção, protege a sua face positiva.26 Protecção necessária, uma vez que, ao apresentar-se por livre iniciativa, está também a lesar a face negativa de DS (ao apresentar-se, chamando, invade o território do outro27). Uma última observação: SP não se apresenta e identifica, explicitamente, como comadrinha de DS – ela não usa o possessivo de propriedade ou intimidade. Fazê-lo, implicaria que ela tratasse também o alocutário por meu compadrinho ou, no mínimo, por meu compadre, ou, mais simplesmente, por compadre. Estaria, neste caso, a propor que as distâncias proxémica e taxémica diminuíssem ainda mais, o que implicaria uma lesão maior da face positiva de DS e uma valorização atrevida de si própria, das suas faces, negativa e positiva. Na mesma estratégia de contacto e aproximação taxémica e proxémica, com sedutora afectividade, se situa o tratamento realizado pelo exortativo [4] meu rico senhor D. Salamurdo. Com esta FT complexa, SP procura, agora, num movimento inverso complementar, elevar e aproximar o lugar de DS do seu, tentando instaurar uma relação interpessoal simultaneamente mais familiar e igualitária (aliás, já preparada com [3]). Recorre, para o efeito, a uma FT que é, ao mesmo tempo, uma valorização directa das faces positiva e negativa de DS: da face positiva, porque o trata, cumulativamente, pelo NPp, pelo TNb e por um THf; da face negativa, porque o trata, também cumulativamente, por meu rico, um NAf, de sedutora proximidade e afectividade, que o determinante possessivo e o adjectivo acentuam. De facto, meu rico senhor D. Salamurdo é a acumulação de FT’s, através das quais SP joga o formal com o informal, o honorífico com o afectivo, o nobiliárquico com o comum. Por isso, se, por um lado, procura, com os tratamentos formais, consolidar o movimento de ascensão de DS (desejado e construído por ela), por outro, com o tratamento informal meu rico, ela inverte ou, pelo menos, reduz a orientação daquele movimento. Utilizando uma estratégia como a de Penélope, SP faz e desfaz, dá e tira, eleva e igualiza, seduz e afasta. Esta senhora de muita treta não pratica, de facto, a cortesia por obrigação social, mas tão só por dedicação a si própria. Não admira, por isso, que tão facilmente oscile entre as mais elevadas cortesias e as mais rudes descortesias. expressões mais sugestivas, penetrantes ou delicadas. Por vezes parecem até usá-lo para influenciar o interlocutor, para o distrair ou para despertar nele maior atenção para algo.» [SKORGE, 1956: 223-224]. 26 Cf., supra, cap. III, 2., quadro do sistema de cortesia, princípios L-orientados, A-(1). 27 Os actos preliminares que antecedem, em situações sobretudo formais, as autoapresentações ou as apresentações denotam esta faceta FTA como invasão do território do alocutário: «Dá-me licença que lhe apresente fulano?», ou «Posso apresentar-lhe fulano?»; e «Posso apresentar-me?», ou «Permita / deixe que me apresente.» 440 Com estes tratamentos elocutivos e alocutivos, se bem sucedidos, as distâncias taxémica e proxémica teriam ficado equilibradas. As posições e os estatutos de cada um estariam regulados e definidos. Uma plataforma de equilíbrio e harmonia interpessoal ter-se-ia estabelecida. SP teria incluído (ousou incluir) DS no círculo dos seus afectos favoráveis, ou ter-se-ia incluído no círculo dos afectos favoráveis de DS. Mas este só lhe responde com o mesmo silêncio. SP, apesar de tudo, não desiste. Aliás, ela nunca desiste. Terá pensado, então, que este seria o momento adequado para formular o pedido, razão principal por que insistia em bater à porta daquele senhor. Um pedido (acto directivo) é, em princípio, tanto mais fácil de formular, quanto mais próximas forem as relações entre quem pede e aquele que o pode satisfazer. Diz-se até que, entre amigos próximos e íntimos, alguém não solicitar ajuda, em caso de necessidade, é sinal de orgulhosa descortesia. SP avança, pois, com o pedido: [SP3] – Ando negra de fome... Por alma das suas obrigações, dê alguma coisinha!28 Em [SP3], SP não recorre a qualquer tratamento nominal, sendo no domínio de V (voceamento) que ela continua a dirigir-se a DS, que as desinências verbais e o pronominal (suas) marcam. Não é objectivo, de momento, analisar todas as estratégias discursivo-textuais de cortesia, uma vez que nos fixamos apenas nos valores corteses e descorteses das FT’s. São de referir, todavia, os cuidados discursivo-textuais com que SP acompanha a formulação do pedido, explicitamente formulado com - dê alguma coisinha! Constituem tais cuidados processos atenuadores (por compensação) deste FTA directamente formulado, e da sua teimosa insistência no contacto (ainda que não explicitamente assumida). Em primeiro lugar, apresentando a causa, isto é, justificando(-se), com o acto preliminar ando negra de fome, que é ao mesmo tempo uma forma de autodegradação (autodesfiguração), assim ferindo (continuando a ferir), directamente, as próprias faces negativa e positiva. Em seguida, desarmando uma hipotética resposta negativa de DS, à imagem e semelhança dos pedintes, recordando-lhe ou atribuindo-lhe, com o acto também preliminar por alma das suas obrigações, os deveres de caridade dos ricos (sem fome) para com os pobres (famintos). Por fim, formulando explícita e directivamente o pedido, atenuando-o, todavia, pela indeterminação e mini28 RIBEIRO, 1961: 28. 441 mização do objecto do pedido - alguma coisinha - desvalorizando, assim, o custo da sua satisfação. Um pedido é um FTA e a sua realização ilocutória deve ser, por isso, atenuada, para ser cortês e mesmo perlocutoriamente bem sucedido. Apesar de tudo, naquele castelo de alta fidalguia, não buliu vivalma. Mas a senhora de muita treta nunca desiste. Volta, por isso, a chamar, carpindo-se: [SP4] – Ouvi dizer que [5] Vossa Senhoria pilhou pata... Sou [6] a Salta-Pocinhas, sua amiga leal, verdadeira!29 Em [SP4], SP dirige-se, formal e deferencialmente, a DS, utilizando uma FT THf – [5] Vossa Senhoria - enquanto volta a identificar-se. Desta feita, pelo NPp – [6] Salta-Pocinhas – declarando-se e autorreferindo-se, ao mesmo tempo, como sua amiga leal, verdadeira. Esperaria SP, assim, num último esforço de contacto e justificação da sua insistência, reconhecido explicitamente o estatuto social do alocutário e, em contrapartida, confessada e aceite a sua baixa e humilde condição (posição), que DS, por fim, a ouvisse e atendesse. Cria (criaria), deste modo, um significativo distanciamento taxémico e proxémico, de elevada cortesia, em relação a DS. Vossa Senhoria é tratamento de alta cortesia que SP utiliza, como estratégia discursivo-textual, na progressiva e ascendente valorização da face (sobretudo) positiva de DS.30 Valorização com orientações taxémica e proxémica que a fórmula, não acompanhada do nome próprio, ainda mais acentua, e a sintaxe e a semântica da sua construção confirmam. Trata-se de FT que, embora dirigida a um alocutário (logo segunda pessoa), exige concordância de terceira pessoa. Uma espécie de alocução delocutiva: o locutor dirige-se a um vós singular (de elevada cortesia, por isso) que é, todavia, um tu, como se fosse um ele. Uma construção polifónica, portanto. Na mesma estratégia de alta cortesia, mas de sentido inverso, se situa a forma de autoidentificação [6] [Sou] a Salta-Pocinhas, sua amiga leal verdadeira. Resta acrescentar, ao que acima já foi dito, incluindo a propósito de [3], que com esta FT elocutiva, SP acentua ainda mais a autodesvalorização das próprias faces. Já não se identifica apenas pelo tratamento social e de espécie, mas pelo NPp. Ou seja, já não pode ser confundida com nenhuma outra comadrinha raposa (nem assim ser tratada), mas por ela 29 RIBEIRO, 1961: 28. Sobre os valores semântico-pragmáticos da FT vossa senhoria e sua forma degradada vossoria, ver, supra, cap. XI, 4. 30 442 própria, como ser individual e único.31 Receando, todavia, que tudo isto não bastasse, SP promete vassalagem a DS, numa derradeira estratégia de sedução e persuasão, com submissão afectiva. O tratamento de Vossa Senhoria, sua amiga leal e verdadeira lembra o contrato feudal de vassalagem, através do qual, o senhor «devia ao vassalo protecção e mantimento», enquanto este «devia ao senhor obediência, respeito, ajuda, conselho e tudo o que pertencesse a acrescentamento de sua honra e estado.»32 Como feudal era, segundo quer o narrador, o regime que reinava naquelas selvas e penedias, antes dos bichos terem decidido proclamar a república.33 A descrição e análise feitas mostram as estratégias discursivo-textuais de que a senhora de muita treta se serviu, também ao nível dos tratamentos, para atingir os seus objectivos. Num duplo processo de heterofiguração e de autodesfiguração, elevando o alocutário e rebaixando-se a si própria, honorificando o alocutário e humilhando-se a si própria, progressivamente invertendo os respectivos lugares, SP tentou, com a treta e a persistência sabidas,34 atenuar os FTA’s de contacto e pedido. Ao longo desta interacção, como noutras, SP foi-se referindo a si própria e a DS utilizando diferentes FT’s, procedendo, também assim, a uma espécie de «reidentificação de um objecto (ou de uma rede de objectos) através de um nome diferente.»35 Neste sentido, um locutor tratar-se a si próprio e a um mesmo alocutário, durante uma mesma interacção verbal, por FT’s diferentes, também pode ser considerado um processo discursivo-textual de reformulação, cujos objectivos, além de relacionais, são também de (re)conhecimento. Mudar a FT elocutiva, alocutiva ou delocutiva não é, por isso, mudar simplesmente de tratamento, porque, como observa Coutinho (ainda que não se referindo explicitamente aos tratamentos), «o que fica em causa é muito mais do que o nome [...]: mudar o nome equivale, em última análise, a mudar de ponto de vista sobre o objecto.»36 Neste sentido, poder-se-á dizer que um mesmo indivíduo, ao receber dife- 31 O nome próprio é «alguma coisa de intimamente ligado à personalidade de cada um». [CINTRA, 19862: 13] 32 A. H. de O. M., «Vassalagem», in SERRÃO (dir.), 1971 (vol. 4): 259. 33 RIBEIRO, 1961: 74. 34 Apesar de recorrer a procedimentos verbais progressivamente corteses, o facto de insistir no contacto sem obter resposta é também um FTA, uma descortesia. As estratégias cada vez mais corteses também podem ser explicadas tendo em consideração este comportamento. Por outro lado, se DS, estando em casa e acordado, não correspondesse ao chamamento, teria tido ele um comportamento descortês. 35 COUTINHO, 1999: 228. 36 Id.: ibid.. 443 rentes FT’s, como que recebe também diferentes identidades (ou como as podendo ter), consoante é visto, tratado, sincera ou fingidamente, pelo locutor. Uma questão de polifonia, mais uma vez, pois corresponde a cada uma dessas identidades uma mudança de voz. Representamos na figura seguinte as posições taxémicas e proxémicas que SP, com recurso às FT’s autorreferenciais (elocutivas) e heterorreferenciais (alocutivas), foi construindo para si própria e para DS. Eixo SP (Anónima) Eixo Taxémico + CORTESIA Vossa Senhoria Sou eu, a comadrinha raposa D. Salamurdo senhor meu rico Proxémico Sou a Salta-Pocinhas, sua amiga leal, verdadeira - CORTESIA Ó da casa! (Anónimo) DS FIG. 4 - Posições de SP e DS ao longo da 1.ª sequência, consoante as FT’s utilizadas NB - O movimento descendente de autodesfiguração é representado pela seta de cauda tracejada e o movimento ascendente de heterofiguração de DS, pela seta de cauda contínua. As FT’s elocutivas encontra- -se a itálico, as alocutivas a negrito, cuja leitura deverá ser feita segu(i)ndo a orientação indicada pelas referidas setas. No co(n)texto conhecido e construído ao longo dos turnos de fala desta sequência, a senhora de muita treta, utilizando as FT’s, geriu as relações interpessoais até aos limites máximos da cortesia. Por isso, quando verificou que, depois de tudo, mais uma 444 vez a sua súplica se perdera no silêncio da terra, provocante e furiosa, gritou,37 à entrada do corredor que dava acesso ao solar de DS: [SP5] – [7] Pai teixugo, narigudo, barrigudo, alma de besugo, larga a pata! Larga a pata!... a pata!38 SP salta, assim, para o campo aberto da descortesia, de que os insultos39 são uma das manifestações mais evidentes, tanto como reacção e provocação, como de agressividade, de poder, de afirmação e defesa da personalidade.40 Não é só com insultos que SP ofende DS. Em [SP5], comete várias ofensas verbais, três espécies de FTA’s: (i) actos directivos (o chamamento [7] e a pseudo-ordem – larga a pata); (ii) o chamamento utilizado é uma enfiada de insultos pessoais41 que, como tais, são considerados também actos directivos, pois exigem uma resposta;42 37 Com este verbo de enunciação, o narrador fornece informações paraverbais, as quais podem ser também corteses ou descorteses. Ao gritar, a raposa está não só a procurar fazer-se ouvir, mas também a ser descortês. Gritar é comportamento prosódico que acompanha, regra geral, o insulto. «El insulto es la traducción verbal de la violencia, y esto se manifiesta naturalmente en una distorsión de los elementos prosódicos y entonativos: el acento es más intenso, el tono más agudo, aunque también puede hacerse más grave, y no es raro que la articulación sea más tensa y el silabeo más pronunciado. En estos casos, a la intención ofensiva se le suma amenaza, aun cuando ésta no se exprese mediante un lexema concreto.» [BELCHÍ, 1996:134] 38 RIBEIRO, 1961: 29. 39 O narrador chama-lhes injúrias. Insulto e injúria, na linguagem corrente, como nos dicionários, são tidos como sinónimos. Há, porém, quem os distinga. Segundo informa Largueche, os psicólogos Chastaing e Abdi concluíram que o insulto «se distinguerait de l’injure en tant qu’elle pourrait être sinon vérifiée, du moins vérifiable ou justifiable», enquanto que a injúria «en revanche, serait du domaine de l’invérifiable, et de l’injustifiable». [LARGUECHE, 1983: 6. A autora cita artigo de Maxime Chastaing & Hervé Abdi, publicado em Journal de Psychologie normale et pathologie, n.º 1, 1980; pp. 31-62]. Opto aqui pelo termo insulto. «El insulto es el resultado de un conflito interpersonal, manifiesta un juicio de valor negativo y supone la atribución de una cualidad negativa o la negación de una cualidade positiva del ofendido.» [BELCHÍ, 1996: 152] Trata-se, por isso, de uma agressão pessoal. 40 «Que les interdits s’estompent et le gros mot, juron ou injure, est vidé de tout pouvoir: pouvoir de libérer des tensions, de l’agressivité, pouvoir de permettre l’afirmation de soi face à autrui.» [ROUAYRENG, 19983: 124] 41 Recordamos a distinção, estabelecida por Labov, entre insultos pessoais e insultos rituais. Estes, praticados como elemento de coesão grupal, são «véritables joutes verbales où, à l’aide de formules faites à partir de quelques canevas syntaxiques déterminés, le locuteur doit non seulement s’assurer la supériorité sur l’adversaire par son sens de la repartie, mais encore s’attirer l’admiration des spectateurs en provoquant leur rire.» Trata-se, portanto, do insulto lúdico, simbólico, o qual, por convenção social, não ofende verdadeiramente ninguém: «tous les participants savent que le contenu exprimé est absolument invraisemblable». O insulto pessoal, pelo contrário, é uma agressão e, ao ser percebido como tal, «appelle une dénégation et peut dégénérer en conflit». [ROUAYRENG, 19983: 107 e 120] Cf. também LABOV, 1978: 223-288, onde o autor estuda «les insultes rituelles» entre grupos de jovens negros dos EUA. Cf. também ADAM, 1999: 157-173, onde os insultos rituais são analisados, como género discursivo-textual. 42 «L’injure implique un destinataire (qui peut évidemment être parfois le destinateur), que l’on veut provoquer ou surprendre, qui est contraint par là à réagir et dont la réaction peut être très variable.» [ROUAYRENC, id.: 110.] 445 (iii) passagem ao tuteamento que, tendo em conta os dados co(n)textuais, é também um insulto.43 Os insultos apresentam diferente estrutura morfossintáctica e semântico-lexical.44 Aqui, fixar-nos-emos apenas naqueles que apresentam uma estrutura sintagmática própria do vocativo axiológico, nominal ou adjectival, idêntica, aliás, à das FT’s nominais. Os insultos, assim considerados, constituem FT’s, só que descorteses por natureza. Em [SP5], [7], temos uma série rimada de insultos, com valor de vocativo axiológico. SP ataca directamente as faces negativa e positiva de DS. Nem todas as formas utilizadas, porém, são em si mesmo insultos. Narigudo e barrigudo são aumentativos depreciativos que ofendem, claramente, aspectos fisionómicos do alocutário, atingindo assim a sua face negativa, o seu território corporal. Alma de besugo ofende também a face negativa de DS, mas (digamos) a nível moral. Mas que insulto se encontra na expressão Pai teixugo, expressão que em si mesmo nada tem de insultuoso? É a sua inclusão no co(n)texto e a intenção com que é proferida que faz dela um insulto,45 dirigido também à face negativa de DS. Tem-se, assim, que narigudo, barrigudo e alma de besugo são expressões insultuosas por natureza, enquanto Pai teixugo é uma expressão de efeito insultuoso. Correlativamente, SP, ao insultar, está também a revalorizar a sua face positiva. Até porque as descortesias e, em particular, os insultos têm este efeito contraditório de afastamento e aproximação do ofendido, ao mesmo tempo.46 43 «Il est en tout cas certain que lorsque son usage est manifestement “marqué”, décalé, déviant, le tutoiement prend une tonalité variable, mais toujours négative: paternalisme, mépris, agressive – et c’est à la limite ce tutoiement violemment agonal, souvent associé au langage de l’insulte». [KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 61] 44 Encontram-se análises do insulto, no âmbito dos estudos linguísticos, em BELCHÍ, 1996; LABOV, 1978: 223-288; LUQUE et al., 1997; MILNER, 1978; ROUAYRENG, 19983; RUWET, 1982: 239-314 e WINDISCH, 1987. Ver também, para uma perspectiva psicanalítica, LARGUECHE, 1983 e para uma visão dos insultos nas diferentes línguas europeias, BURGEN, 1996. 45 «Un même mot, un même geste ou un même acte peuvent, selon le contexte, avoir ou non un caractère injurieux.» [LARGUECHE, id.: 2] Luque et al., por seu turno, observam: «Resulta interesante destacar que palabras que no tienen un valor peyorativo o denigratorio para unos, sí lo tienen para otros. Así, términos inocuos como individuo o persona suelen considerarse en algunos ambientes rurales como tremendos insultos, tanto por el desconocimiento de su significado como por la pista engañosa de los contextos insultantes en los que aparecen con frecuencia: “Ese individuo no es de fiar; es una mala persona; es una persona poco seria”, etc.» [LUQUE et al., 1997: 18] O conto «A palavra mágica» de Vergílio Ferreira ilustra, muito bem, como «qualquer palavra, mesmo inofensiva [“inócuo”, no caso]», se pode transformar num intolerável insulto, uma vez erguido em «pendão desfraldado no pau alto da vingança. [...] Uma palavra informe, soprada de todos os furores seria então a melhor arma.» Cf. Vergílio Ferreira, 1976: Contos. Lisboa: Arcádia; pp. 59-67; a citação encontra-se na p. 66. 46 Observa Pernot, a propósito da descortesia em geral: «Sous sa première forme l’impolitesse creuse la distance entre les êtres: à l’attitude d’accueil elle substitue l’indifférence. Plutôt que le contraire de la politesse, c’en est l’absence. L’homme impoli de cette façon réduit ses relations avec les autres à des rapports utilitaires: un commerce social désintéressé n’a pas de valeurs à ses yeux. Sous une autre forme, de sens apparemment opposé à celui de la précédente mais qui, en réalité, se combine aisément avec ce 446 Com [SP5], SP inverte as posições que havia definido imediatamente antes, para si e para o seu interlocutor. DS é derrubado do pedestal em que, hipócrita e interesseiramente, SP o havia colocado, passando ela a reocupar um lugar alto, mas ambos fora do quadro da cortesia. Ou seja, SP regressa à sua posição inicial, agravada agora pela série de FTA’s descorteses, insultuosas que produziu. Termina aqui a primeira sequência da interacção verbal, ainda que unilateral e por isso truncada, como dissemos. Sequência onde o locutor vê condicionada, influenciada fortemente a sua actividade discursivo-textual pela representação que tem e faz do interlocutor, mesmo sem este lhe ter reagido nunca verbalmente (nem doutra forma). Sequência fortemente marcada, por isso, a nível retórico, pelos processos de heterofiguração e de autodesfiguração discursivo-textual (logos), tanto pelas FT’s e outras cortesias e descortesias que o locutor dirige a si próprio (ethos), como ao seu alocutário (pathos). Processos através dos quais o locutor procurou construir e dar a ver, de si próprio e do alocutário, várias imagens, aquelas que a obtenção dos objectivos (contacto, aproximação, afastamento...), consoante a dinâmica da própria interacção, lhe iam exigindo. Dar a ver várias imagens de si e do outro é desdobrar a personalidade de um e de outro e, portanto, incorporar e dar corpo a diferentes vozes, assumindo comportamentos verbais ora de cortesia, ora de descortesia, sempre na tentativa de co-agir, de con-vencer o interlocutor. Interacção verbal ou actividade discursivo-textual de esquematização, portanto, onde as dimensões de alteridade, dialogismo, polifonia, argumentação, retórica... são evidentes, particularmente através da utilização estratégica das diferentes FT’s corteses e descorteses (co)construídas. Continuando a narrativa, comenta e informa o narrador que nem injúrias, nem lágrimas, nem rogos conseguiram despertar DS. Mas a senhora de muita treta, impertinente e irreverente, não desiste, nunca desiste, como sabemos. Cautelosa, procurou certificar-se se DS estaria efectivamente em casa. Espreitou pela clarabóia47 e verificou que ele estava de facto no solar, confortavelmente instalado. SP volta, por isso, às exortações e ao pedido: dernier, l’impolitesse consiste à minimiser les distances, voire à ne pas en tenir compte. Ce n’est plus la simple absence de politesse mais son contraire exact: la grossièreté.» [PERNOT, 1996: 357] 47 Espreitar é um insulto não verbal que lesa a face negativa do outro, por se tratar duma invasão visual de território. 447 [SP6] – [8] Ó meu rico senhor, tenha dó! Ando mirradinha de fome! Já nem me recorda que engolisse um escaravelhinho...48 SP regressa ao terreno da cortesia. Retoma o tratamento deferencial e afectivo já utilizado em [4], de [SP2], cujos traços principais foram descritos acima. Todavia, se com [SP2] procurou definir uma relação de distanciamento próximo e igualitário, com [SP6] o distanciamento proposto é ainda maior, taxémica e proxemicamente, apesar da FT que dirige a DS não ser tão honorífica, por ausência de NPp antecedido do THf - D. Salamurdo. Em relação a si própria, SP já não se apresenta, limita-se a autodegradar, de novo, as próprias faces, positiva e negativa, pedindo compaixão (tenha dó) e confessando o seu estado debilitado pela fome. Estes actos de súplica justificada podem ser entendidos como uma reformulação do pedido feito acima (tenha dó é equivalente a dê alguma coisinha). Além disso, são razões para que DS a atenda e explicações para a presença, chamamento e insistência. Em [SP6], SP serve-se novamente do discurso miserabilista típico dos pedintes, como estratégia de, através da degradação das próprias faces (positiva e negativa), processo discursivo-textual (retórico e polifónico) de autodesfiguração, seduzir e persuadir o interlocutor. Estabelece-se, enfim, o diálogo: [SP7] – [9] Ó meu rico senhor! [DS1] – Qual rico senhor, nem qual diabo! – regougou afinal D. Salamurdo – Não tenho nada que dar, mas, tivesse eu galinhas ou patas aos montes, sob pena de para aí apodrecerem, não eram para [10] você que vem empestar-me a casa. Apre, quando tiver de pedir esmola a portas de certa teoria, lave-se primeiro, trate de desencardir-se da catinga, que fede à légua!49 DS, apesar da cortesia da FT [9], não é cortês na sua intervenção reactiva. Com [DS1], comete uma série de FTA’s, todos eles lesivos das faces negativa e positiva de SP. Porém, nem todos os actos de [DS1], sendo embora descorteses, são insultos. Insultos são os actos assertivos (vem empestar-me a casa e fede à légua) e os directivos (lave-se primeiro e trate de desencardir-se da catinga) com que acusa SP de insuportável falta de higiene. Actos que podem ser resumidos numa FT insultuosa como sua 48 49 RIBEIRO, 1961: 29. Id.: 30. 448 fedorenta. Nenhum destes insultos, porém, é vocativo, ou FT, e, por isso, não nos deteremos na sua análise. Repare-se, todavia, que DS começa a sua intervenção reactiva por denegar a FT meu rico senhor, por que fora interpelado. Porquê? Em nosso entender, por abusiva e inadequada à sua alta autoestimada posição, como a expressão portas de certa teoria, referindo-se a si próprio, mostra. Posição que, por outro lado, era de cargo e não de fortuna, porque ser rico e nada ter para dar é mais condição de quem é apenas um senhor pobre, ou um pobre senhor, bem feitas as contas. Ao tratamento de natureza afectiva proferido por SP (rico quasessinónimo de querido) dá DS uma interpretação económica (rico quasessinónimo de afortunado). O tratamento afectivo era abusivo, descortês, dadas as relações assimétricas existentes entre ambos. Daí que, por outro lado, DS não tenha respondido imediatamente ao chamamento de [SP7], aitude que é também uma descortesia. Entre as FT’s mais corteses e a realidade que elas referenciam não existe uma correspondência total. São sobretudo os valores pragmáticos, discursivos e relacionais que elas marcam, como principais unidades no jogo taxémico e proxémico dos interactantes, isto é, da figuração e/ou desfiguração das respectivas faces. Observa Goffman: «L’individu a généralement une réponse émotionnelle immédiate à la face que lui fait porter un contact avec les autres: il la soigne; il s’y “attache”. Si la rencontre confirme une image de lui-même qu’il tient pour assurée, cela le laisse assez indifférent. Si les événements lui font porter une face plus favorable qu’il ne l’espérait, il se “sent bien”. Si ces vœux habituels ne sont pas comblés, on s’attend à ce qu’il se sente “mal” ou “blessé”.»50 Ainda quanto a [DS1], observe-se que DS trata SP explicitamente por você [além das formas verbais e pronominais (reflexos) correspondentes], a qual tem, naquele co(n)texto, não só um sentido de afastamento, mas também de depreciação.51 Contrariamente ao desejado por SP, estava instalado o conflito. SP, perante tão cruel descompostura, ofendida na sua autoconsideração de mocinha airosa, briosa e graciosa, (ofendida nas suas faces positiva e negativa, diríamos nós) não se conteve e 50 GOFFMAN, 1974: 10. Ver, supra, cap. XI, 2., os valores de mais ou menos cortesia ou de descortesia que esta FT tem tido na história dos tratamentos em Português de Portugal. 51 449 depressa saltou novamente para o campo aberto da descortesia, mais precisamente dos insultos: [SP8] – [11] Teixugo narigudo, barrigudo, alma de besugo, larga a pata! Sobre estes insultos, ver, supra, o que foi dito a propósito dos tratamentos realizados em [SP5]. Registe-se, apenas, que, desta vez, a gravidade dos insultos é maior, pois que DS já se encontra acordado e SP sabia-o. É de observar, ainda, que responder a insultos com insultos é também uma estratégia discursiva de protecção das próprias faces, conforme o sistema de cortesia proposto por Kerbrat-Orecchioni, segundo o qual não devemos permitir que nos cobram as faces de lama.52 Observa Belchí, por seu turno: «quien recibe un insulto se siente herido en algo más que en su sensibilidad: es toda su persona la ofendida, ya que el insulto atenta directamente contra su imagen, ya sea negando la existencia de una cualidad positiva o afirmando la de una cualidad negativa, independientemente de la verdad o falsedad de su contenudo».53 Não satisfeita com [SP8], SP insiste, dali em diante, na cantilena descortês, pelo conteúdo e pela repetição, que é o acto directivo da pseudoordem (SP não gozava de poder sobre DS para lhe dar ordens) [SP9] – Larga a pata! que vai repetir até ao fim da interacção, como fórmula irritante de zombaria. Observa Arthur Schopenhauer, na sua Dialéctica Erística (redigida entre 1830-31), com o significativo subtítulo de Arte de Ter a Razão em 38 Estratagemas: «Irritar o adversário e provocar-lhe a cólera, pois, dominado por ela, não estará em condições propícias a julgar com rectidão nem a aproveitar as suas vantagens. Encoleriza- 52 53 Cf., supra, cap. III, 2. BELCHÍ, 1996: 131. 450 -se tratando-o injustamente sem respeito algum, incomodando-o e, de modo geral, comportando-nos insolentemente.»54 A interacção verbal entre SP e DS só podia degenerar, evidentemente, em «diálogo de surdos»:55 [DS2] – Que trabalhos os meus! – exclamou D. Salamurdo.– Larga a pata?!... A pele hás-de [12] tu largar-me nos dentes, se algum dia te caço a jeito! [13] Descarada, celerada, enjeitada de chacal! [SP10] – Larga a pata! [DS3] – Chegou-se a uma época, com seiscentos moscardos! em que [14] a gente já nem segura está na sua casinha. Vem [15] o mariola e enxovalha-nos, vem [16] o ladrão e rouba-nos. Não há ordem, não há nada! [SP11] – Larga a pata! [DS4] – Não calas a sanfona? Então deixa, [17] minha ladra, minha saca de mentiras, que vais ter o pago. [18] O vizo-rei há-de sabê-lo ainda hoje. E [19] ele, que não é para brincos, dá-te o catatau!56 Interessa referir, antes de mais, que DS passa a tratar SP por formas de T, cujos valores, neste co(n)texto, ofensivos e distanciadores (ou de aproximação, consoante as perspectivas), já foram referidos acima. Além disso, a par doutras ofensas verbais, DS dirige a SP novas FT’s que constituem novos insultos: [13] Descarada, celerada, enjeitada de chacal e [17] minha ladra, minha saca de mentiras. Trata-se de ofensas que não atingem os aspectos físicos de SP, mas sim o seu património (digamos) moral, a sua dignidade pessoal. Há, todavia, em [DS3], três FT’s, duas nominais – [15] o mariola e [16] o ladrão - e uma pronominalizada – [14] a gente – indirectamente dirigidas, que merecem atenção. [DS3] é uma espécie de monólogo dialógico, em que o locutor se dirige a si próprio e a um alocutário (só aparentemente) ausente. Estratégia enunciativa polifónica. O locutor faz do alocutário simples ouvinte, assim o desconsiderando. DS refere-se a SP como se fosse um ELE, uma terceira pessoa, estratégia discursiva de delocução, procedimento descortês para a face positiva do alocutário. Além disso, insultar indirectamente SP de 54 SCOPENHAUER, 2001: 60. A citação constitui o «estratagema» 8. Gilbert Dispaux define assim este tipo de diálogo: «Désaccord sur un ensemble défini d’observations et désaccord sur un ensemble défini de normes.» [DISPAUX, 1984: 57] 56 RIBEIRO, 1961: 31-32. 55 451 mariola e ladra, serve também para a excluir da categoria de gente em que DS a si próprio se inclui. A indirecção discursiva e a impessoalização são, regra geral, estratégias de cortesia. Neste caso e neste co(n)texto, são processos de descortesia. Repare-se, por outro lado, que DS se refere e trata, delocutivamente, o lobo D. Brutamontes, utilizando uma FT de tipo TPl, [18] O vizo-rei, e uma FT pronominal, [19] ele. Estes tratamentos podem ser tomados como exemplos de como os tratamentos delocutivos, mesmo quando dirigidos a alguém que ocupa o topo das diferentes pirâmides sociais, recebem formas menos corteses do que quando produzidos face-a-face ou na presença desse terceiro. Compare-se estas FT’s delocutivas com as alocutivas que DS utilizou, no início da interacção verbal, quando foi queixar-se ao mesmo vizo-rei, o lobo D. Brutamontes, da afronta de SP: «(Ó) meu senhor!», «Senhoria», «Vossa Mercê» e «Vossa Senhoria». A si próprio identifica-se como «o teixugo», «o teixuguinho Salamurdo, vosso leal servidor». Por seu turno, D. Brutamontes tuteia DS (utilizando o pronome e as formas verbais correspondentes), tratando-o ainda por «o meu leal servidor» e «Salamurdo», sem nunca descer, contudo, a grandes proximidades, enquanto a si próprio se trata por «Minha Grandeza».57 Ao usar, todavia, FT’s de cortesia menos elevada, como em [DS4], o locutor pode querer mostrar, ou que mantém relações de proximidade e pouco distanciamento com o delocutado, ou que não tem grande consideração pelo mesmo delocutdo. Num caso como noutro, o locutor visa valorizar a sua face positiva perante o alocutário e, por efeito boomerang, lesar as faces deste. Ainda que tal atitude de DS fizesse dele um pobre lacaio denunciante, popularmente conhecido por «queixinhas», o que em nada abona a favor da sua imagem pública, face positiva. Os insultos que, por falta de higiene, DS dirigiu a SP, são FTA’s que atingem directamente a sua face negativa (o território corporal) e indirectamente, mas de forma ainda mais lesiva, a sua face positiva58 (desejo de ser apreciado pelos demais). Com os insultos [13] e [17], DS atinge sobretudo a face positiva de SP. 57 Cf. id.: 33-38. O narrador informa que DS, por ser cortesão, também tomou os devidos cuidados aos níveis da cortesia não verbal e paraverbal. Chegado à porta do vizo-rei, DS «limpou o focinho húmido à manga da véstia, lambeu-se, cofiou os bigodes». Além disso, «depois de tossir baixinho», adiantou «dois passos» e só depois é que chamou «em tom brando e adocicado.» Tudo estratégias de figuração da face negativa do outro, por se tratar duma invasão do seu território, mas também de si próprio. 58 Os insultos são geralmente considerados actos ameaçadores da face positiva dos interactantes. O próprio narrador, ou a Salta-Pocinhas pela sua boca, através do recurso ao discurso indirecto livre, considera os insultos de falta de higiene como FTA’s dirigidos à face positiva da raposa: «Grandemente se sentiu a raposinha com tão cruel descompostura. [...] Não era desonra pertencer à ralé, nem faltarem-lhe costados de fidalguia. Mas cheirar mal, ser assim fedorenta, ofendia-a na ideia que concebera dos seus agrados, mocinha airosa, briosa, graciosa que se julgava». [Id.: 30. Itálicos da nossa responsabilidade.] 452 O conflito entre SP e DS acentuara-se e a ruptura tornara-se inevitável. DS, impossibilitado de fazer justiça pelas próprias mãos, recorreu ao poder instituído, indo queixar-se ao vizo-rei, o lobo D. Brutamontes. É geralmente assim que acontece, quando um inferior ofende um superior. Observa Belchí que «el superior puede insultar al inferior sin que su acto tenga consecuencias; lo contrario no puede ocurrir, y si ocurre el ofensor será sancionado, bien por el ofendido, bien, en determinadas circunstancias, por una institución.»59 Todavia, «el insulto es la mejor arma que tiene la gente corriente para defenderse contra los incesantes esfuerzos de todas las esferas del poder por imponerle ideas preconcebidas y hábitos de conducta controlables.»60 Sendo como é, a senhora de muita treta não respeita, porém, hierarquias nem poderes estabelecidos. Logo tratou, por isso, de se vingar de DS, ofendendo-o através de comportamentos não verbais.61 Vingança que veio a terminar na anulação física do teixugo, como se sabe. Ao espiar as queixas que DS fazia ao vizo-rei, ficou SP a saber que D. Brutamontes padecia de horríveis dores de dentes. Então, untuosa e dengosa, recorrendo, em sua melhor prosa, a novas estratégias de cortesia e retórica discursiva, a senhora de muita treta convenceu o desesperado D. Brutamontes de que cobrir a parte dorida com pele de teixugo, ainda quente, acabadinha de esfolar, era remédio abençoado na cura de tais maleitas.62 Também nesta interacção é importante o papel das FT’s que SP utiliza, como estratégia de aproximação e persuasão de D. Brutamontes, a quem trata, honorífica e deferencialmente, por Vossa Mercê e meu senhor, além de se lhe referir ao pai como ilustríssimo.63 Mas esta é outra interacção verbal que não vamos analisar agora. 1.2. Interacção verbal Salta-Pocinhas vs. Bufo64 59 BELCHÍ, 1996: 135. LUQUE et al., 1997: 13. 61 «E delambida, atrevida mas precavida, fusgando à direita, fusgando à esquerda, não houvesse ali cilada, entrou na cova do teixugo. Percorreu-a de ponta a ponta: comer, de grilo! Adiante: foi-se à cama do maganão, de fofo musgo, deliciosa para dormir e sonhar, e sem vergonha, não só por acinte, mas também com ronha, estirou-se, rolou-se, espojou-se. E isto feito e outras coisas mais, crente que o cheiro do seu corpo afugentaria para todo o sempre o esquisito senhor, regougou de alegria.» [RIBEIRO, 1989: 32] 62 Observa Kerbrat-Orecchioni que a «guerra verbal» pode degenerar em confronto corporal que pode levar à morte. [Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 147] 63 Cf. RIBEIRO, 1961: 39-41. 64 Cf. reprodução co(n)textualizada completa desta interacção verbal, no fim deste capítulo. 60 453 Em muitas outras ocasiões, servindo-se de idênticas estratégias discursivotextuais, corteses e descorteses, a senhora de muita treta conseguiu levar a água ao seu moinho. Por exemplo, naquela conversa que manteve com o bufo, para que este lhe fizesse um inestimável favor.65 Não podendo sair da toca (que fora de DS), em virtude da terrível ratoeira que o bicho-homem lhe armara à entrada, SP inventa um estratagema. Pede ao bufo que lhe vá chamar o escrivão (o gato montês), porque se encontra às portas da morte e deseja fazer testamento a favor dum filho enjeitado da fortuna. Desta vez, porém, SP não recorre aos insultos, mas as FT’s que expressam valores pragmáticos de cortesia positiva e negativa mais ou menos elevada (A-orientadas e L-orientadas), algumas das quais dotadas de afectividade e originalidade. O macroacto desta interacção verbal é, pois, também a realização ilocutória e perlocutória dum pedido, um FTA cujo efeito reverte em benefício do locutor e que, por outro lado, põe ao alocutário o custo da sua realização. Para ser bem sucedido, a sua formulação terá de obedecer, por isso, às regras de cortesia negativa, isto é, ser acompanhada de formas que atenuem e/ou compensem essa directividade e esse custo. Passa essa atenuação, entre outros meios (re)compensadores, pela utilização de FT’s que ajudem a preparar a formulação do pedido e gratifiquem, de certo modo, a sua satisfação. Os dados co(n)textuais prefiguram, entre os dois interactantes, relações diferentes daquelas que vimos, na interacção anterior, entre SP e DS. As relações entre SP e o bufo (B), antes do início da interacção, seriam de relativo afastamento proxémico. Seria uma relação entre vizinhos conhecidos, mas que sempre se olharam mutuamente com desconfiança. As FT’s que se dirigiriam eram ao nível de Você e respectivas formas verbais. Tinham, portanto, relações simétricas situadas sobretudo em torno do eixo proxémico. A armadilha colocara, porém, SP numa situação de inferioridade em relação a B: ela encontrava-se prisioneira dentro da sua própria toca, não podia movimentar-se, perdera poder (também no sentido de capacidade); B, pelo contrário, é uma ave de rapina em liberdade, gozando, por isso, de poder (também no sentido de capacidade). No início da interacção verbal, os lugares que ambos ocupam são, portanto, assimétricos e situam-se, por isso, em torno do eixo taxémico. No decurso da interacção, as FT’s elocutivas e alocutivas utilizadas por SP mostram, mais uma vez, como a senhora de muita treta sabe jogar (manipular) nos dois eixos e assim conseguir, através de estratégias de sedu- 65 Cf. id.: 105-111. 454 ção, os efeitos desejados da persuasão e convencimento, isto é, que B lhe faça a vontade, caindo nas armadilhas discursivo-textuais (retóricas e polifónicas) que ela lhe foi preparando. SP, a par de estratégias discursivo-textuais autodegradantes e humiliativas, isto é, de autodesfiguração, vai dirigir a B uma série de FT’s simultaneamente formais e informais, honoríficas e afectivas, taxémicas e proxémicas, que, mais que proteger as faces de B, visam sobretudo valorizar-se e engrandecer-se a si própria. Estratégias que manipula, consoante as reacções que vai obtendo são de indiferença, de recusa, de dúvida, de acordo, de aceitação ou de adesão. Podemos encontrar, nestes diferentes movimentos, mais ou menos oscilantes, os três momentos de que fala Grize, a propósito do papel do interlocutor, sujeito à acção discursivo-textual (esquematização) do locutor: «recevoir, accorder et adhérer», isto é: «Recevoir, c’est être disposé à reconstruire la schématisation et être en état de le faire. Accorder, c’est ne pas avoir d’objections à présenter et adhérer, c’est faire sienne la schématisation. Accorder est un peu de l’ordre de la conviction (l’orateur est vainqueur), adhérer de l’ordre de la persuasion, c’est être amené à faire entièrement sien ce qui est proposé.»66 Subjaz a este observação de Grize uma noção alargada de argumentação, como acção discursivo-textual sobre o interlocutor, como vimos acima.67 Para estabelecer o contacto e abrir a interacção (sequência fática de abertura), acto que ameaça a face negativa de B, SP atenua a sua formulação utilizando uma FT que se situa num nível de cortesia (digamos) média (sr.+ NPp), que repetiu, em virtude de B não ter ouvido a primeira intervenção: [SP1] – [1] Ó senhor bufo! – tornou ela mais forte.– Senhor bufo!... [B1] – Quem chama? – proferiu então a voz desconsolada. [SP2] – É [2] a Salta-Pocinhas, [3] meu príncipe, é [4] esta infeliz da sorte!68 66 GRIZE, 1990: 41. Cf. também 1996: 73-76. Ver, supra, cap. I, 2.3. 68 RIBEIRO, 1961: 105-106. 67 455 A FT sr.+ NPp é, em condições normais, um tratamento de respeito e consideração que o locutor, sendo de facto ou considerando-se inferior, dirige a um alocutário que lhe é ou considera superior. Trata-se, por isso, duma FT alocutiva orientada para a valorização da face positiva de B. Contra a intervenção simultaneamente reactiva e iniciativa de B, com [B1], SP avança com [SP2]: identifica-se utilizando a terceira pessoa (processo cortês, por mitigador da afirmação do eu, referência delocutiva sendo elocutiva) e o NPp – Salta-Pocinhas. Ao mesmo tempo, coloca B num lugar ainda mais alto, ao tratá-lo por meu príncipe, que tanto pode ser entendido como um THf, como um TNb, como um NAf, misturando sentimentos de afecto, submissão e de honorificação. Acrescenta, ainda, uma forma de referência e tratamento auto-humiliativa (elocutivo-delocutiva) – esta infeliz da sorte. Através das FT’s alocutivas, SP distancia-se cortesmente de B (proxémica e taxemicamente), preservando e valorizando-lhe sobretudo a face positiva, num processo de figuração crescente. Ao mesmo tempo, assimetricamente, através das FT’s elocutivo-delocutivas auto-humiliativas, distancia-se, também cortesmente, de B (proxémica e taxemicamente), degradando progressivamente a sua face positiva (desfiguração). Repare-se no cumprimento deste aspecto, como «manda» o princípio de cortesia: a cortesia A-orientada é geralmente acompanhada de descortesia L-orientada. Valorização e desvalorização que, independentemente de serem sinceras ou não, são de facto estratégias retóricas e polifónicas, isto é, discursivo-textuais de convencimento. Podemos encontrar, nesta sequência fática, um exemplo que ilustra os movimentos assimétricos (simbolicamente ascendentes e descendentes) que as FT’s alocutivas e elocutivas geram, ao mesmo tempo, a nível taxémico e proxémico. Retomando o desenho da FIG. 6, apresentado no cap. XII, e que a seguir designamos por FIG. 5, teremos Eixo Taxémico + CORTESIA Meu Príncipe Sr. Bufo SP Eixo [Você] 456 Proxémico SaltaPocinhas Esta infeliz da sorte - CORTESIA FIG. 5 – Movimento simbólico ascendente das FT’s alocutivas e descendente das FT’s elocutivo-delocutivas Ao tratar B por senhor bufo e meu príncipe, ao mesmo tempo que se trata a si própria por Salta-Pocinhas e esta infeliz da sorte, SP vai, por um lado, elevando o interlocutor e, por outro, rebaixando-se a si própria, num processo assimétrico e inverso de cortesia estratégica. (Conforme as respectivas setas, o movimento das linhas curvas ponteadas correlacionam-se com o movimento das linhas curvas contínuas, na representação da assimetria das respectivas FT’s. As marcações de SP e [Você] referem as posições simétricas que, a nível proxémico, ocupariam as personagens, antes de iniciarem a interacção.) Assim engrandecido, directa e indirectamente, B atende SP e dá sinais de alguma disponibilidade para cooperar: [B2] – Então que é? [SP3] – Que há-de ser, bateu a minha última hora. [B3] – Hum, temos velhacaria! [SP4] – Velhacaria quê, [5] ilustre ave nocturna! Mais hora, menos hora digo adeus ao mundo. [B4] – Mas onde está [6] a comadre, que a não vejo? [SP5] – Estou aqui à boquinha da cova... mesmo à boquinha. [B5] – Tropeçou, [7] comadre, tropeçou, e partiu os focinhos!? Dê graças que conserva pulmões para buzinar que está com a morte nos gorgomilos! Ah! ah! ah! [23] E o grande rapinante, dando estalos com o bico, voltou à cantilena macarena: [B6] – Viram bois!... Viram bois!...69 Sabendo com quem fala, B não só desconfia, com [B3], da informação fornecida por SP, mas também receia tratar-se de mais uma velhacaria de SP. B ofende, assim, a 69 Id.: 106. 457 face positiva do interlocutor, porque, ao mesmo tempo que interpreta [SP3] como disfarce de mais um acto ou procedimento malévolo, traiçoeiro, está a chamar-lhe, indirectamente, velhaca, isto é, alguém que, por má índole, se serve duma astúcia para enganar ou fazer mal.70 Mas SP nem assim desiste. A situação é de pura sobrevivência: ou fica prisioneira e morre emparedada, ou arrisca a saída e cai na ratoeira. Só lhe resta, por isso, manter o contacto, continuar a seduzir o interlocutor, até que o convença. Por isso, embora SP denegue a intervenção de [B3], não responde ao insulto, preferindo antes dirigir-lhe novo tratamento de exortação, [5] ilustre ave nocturna, FT que é um verdadeiro presente verbal de valorização do narcisismo de B (da sua face positiva), dum FFA de cortesia negativa (segundo a classificação que propomos dos FFA’s que acompanham a realização de FTA’s), para, de seguida, reafirmar o seu estado de moribunda, um FTA orientado para a sua face positiva. B volta, então, a manifestar algum interesse por SP, chegando mesmo a tratá-la por [6] comadre, uma FT de aproximação taxémica e proxémica, ou melhor, de aproximação proxémica que reduz a distância taxémica. O co(n)texto e o turno de fala seguinte ([B5]) fazem com que este tratamento de [6] comadre receba sobretudo um valor irónico e trocista, dados os actos ofensivos que a acompanham, incluindo a gargalhada final. Com este acto paraverbal, B dá a entender que não continua interessado na conversa. Daí que possa ser entendido como acto fático de fechamento. O narrador informa, por isso, que o grande rapinante voltou à cantilena: – Viram bois!... Viram bois!...71 Mas SP não tinha esgotado ainda as suas capacidades discursivo-textuais (retóricas e polifónicas) de sedução e persuasão. Insiste, por isso, no restabelecimento do contacto, dando início a uma nova sequência fática, seguida de quatro sequências transaccionais, uma delas encaixada na segunda. [SP6] – [8] Senhor bufo, por quem é! – gemeu a raposa.– Deixe lá os bois e oiça... [B7] – Viram bois! [SP7] – Por alma de quem lá tem... Lembre-se que [9] minha avó e [10] seu ilustríssimo avô estiveram juntinhos e foram amigos na arca de Noé. 70 Os itálicos marcam definições adaptadas de velhacaria e velhaco, colhidas em DLPCACL (II Vol.), 2001: 3716. 71 RIBEIRO, 1961: 106. 458 [B8] – Que quer [11] você, [12] sua desenvergonhada? – exclamou o bufo, em tom de cólera. [SP8] – Pouca cousa... pouca cousa. [13] Vossa Senhoria sabe que há viver e morrer? Sabe, que é [14] senhor de muito entendimento. Pois já que sabe, antes de ir mais longe, queria que me perdoasse as ofensas, se algumas lhe fiz... [B9] – Ofensas suas não tenho, que [15] eu quero menos dares e tomares [16] consigo que as moscas com o picanço. [SP9] – Embora, deite-me o seu perdão. Também se peca por pensamentos... [B10] – Está perdoada! [SP10] – Bem haja, [17] meu rico senhor, bem haja.72 SP volta a utilizar a FT de chamamento - senhor bufo - mas a que B não corresponde. SP recorda, então, eventuais laços de proximidade entre antepassados de ambos, referindo e tratando, delocutivamente, o avô de B por [10] ilustríssimo, forma indirecta de elogiar as faces positiva e negativa de B, enquanto se refere à sua parente simplesmente por [9] minha avó. A estratégia argumentativa (retórica, centrada tanto no pathos como no ethos) é clara e a conclusão não o é menos: se os avós foram íntimos e amigos, também os netos devem ser. Esta rememoração, acompanhada de novos actos exortativos, faz com que B ceda, ainda que contrafeito e ofendido. B corresponde colérico (informa o narrador) ao chamamento, utilizando FT’s (FTA’s) de clara descortesia e por isso de afastamento. A intervenção reactiva é composta por uma interrogativa cujo sujeito é o pronominal [11] você, seguido dum insulto que é, também ao nível morfossintáctico e semântico-pragmático, uma manifestação de enfado e de afastamento – [12] sua desenvergonhada, onde sua é possessivo e não forma contraída de senhora. Aos elogios (FFA’s) recebidos, B responde com ofensas (FTA’s), mas nem assim SP desiste. Ela sabe que as relações entre ambos ainda não permitem a formulação do pedido,73 cuja satisfação é vital para a sua sobrevivência. Assim, depois de minimizar os custos do que deseja, volta a valorizar as faces positiva e negativa de B, dirigindo-lhe uma FT de elevada cortesia – [13] Vossa Senhoria - e atribuindo-lhe sabedoria, sendo definido e tratado, por isso, também por [14] senhor de muito entendimento, mais um evidente presente verbal, um FFA de cortesia negativa. Ao mesmo tempo, 72 Id.: 106-107. Na linha de pensamento de Perelman & Olbretchs-Tyteca, observa Constantin Salavastru que qualquer orador deseja influenciar o auditório a que se dirige, através do discurso que produz, discurso esse que é também condicionado pelo conhecimento que esse orador tem desse mesmo auditório. Por isso, o sucesso do acto discursivo «est dépendant de la qualité de la relation entre l’orateur et l’auditoire.» [SALAVASTRU, 1998: 33] 73 459 SP volta a humilhar-se, a degradar a própria face, pedindo perdão, humilhação que reforça, ao pedir perdão por ofensas nunca praticadas, ou apenas pensadas. Perdão que, uma vez obtido, é agradecido e intensificado pelo acompanhamento duma FT de elevada cortesia e deferência – [17] meu rico senhor – que é, ao mesmo tempo, uma expressão estratégica da submissão e de afecto, a cuja ambiguidade taxémica e proxémica já nos referimos. Estamos, de novo, perante o jogo discursivo dos processos de figuração e autodesfiguração, um e outro crescentes, embora com sentidos inversos, mas coorientados para o mesmo fim. SP, devido à treta de que era senhora, consegue que as relações com B tendam para o equilíbrio desejado, propício à continuação e desenvolvimento da interacção. A plataforma de entendimento mútuo (acordo) está conseguida.74 SP avança, por isso, para a formulação do pedido, macroacto que domina toda a interacção e sobretudo a próxima sequência transaccional. Porém, esta é interrompida por uma sequência transaccional encaixada, destinada a explicar, por um lado, a razão do pedido e, por outro, a causa da agonia em que SP se diz encontrar. Repetimos, no fragmento seguinte, [SP10], por neste turno de fala se encontrar, além da intervenção reactiva ao acto director (Está perdoada!) de [B10], a intervenção iniciativa, constituída pelo acto subordinado explicativo Para morrer em paz e pelo acto director só me resta que Vossoria me vá chamar o escrivão, constituindo este último o pedido (o macroacto ilocutório). [SP10] – Bem haja, [17] meu rico senhor, bem haja. Para morrer em paz, só me falta que [18] Vossoria me vá chamar o escrivão... [B11] – Essa é boa! O escrivão, para quê? [SP11] – Para fazer o testamento. Tenho esta cova, queria deixá-la a um filho que é mesmo um enjeitadinho da fortuna...75 SP formula o pedido acompanhando-o de [18] Vossoria, tratamento que, apesar de morfologicamente amalgamado, expressa ainda elevada cortesia em relação a B, neste co(n)texto. SP atenua, assim, a formulação do acto, para, ao mesmo tempo, o intensificar ao nível do objectivo ilocutório e sobretudo da felicidade perlocutória. Além disso, este FTA é ainda atenuado pela justificação (argumento de valor universal, preconstruí- 74 «Tous les actes argumentatifs impliquent une précaution élémentaire qui renvoie à l’accord minimal entre l’intervenant argumentatif et l’auditoire.» [SALAVASTRU, 1998: 34] 75 RIBEIRO, 1961: 107. 460 do cultural) do direito a morrer em paz. Continuando na mesma estratégia argumentativa, SP chega ao limite da autodegradação – a eminência da morte - estado de que se serve para, num derradeiro gesto de amor pelo filho, também ele por ela degradado (desfigurado) nas suas faces negativa e positiva, convencer B. (O testamento a favor do filho desafortunado é uma valorização da sua face positiva, mas, ao mesmo tempo, confessar que o estado do filho é uma desvalorização das faces negativas dele e dela.) SP sabia muito bem que a um moribundo nada se recusa. Começa, portanto, a inverter a orientação estratégica de autodesfiguração, passando ao processo de autorrefiguração, de reconstrução da própria face, de limpar a sua própria imagem. B, apesar de reticente, deixara já de ofender SP e mostra-se interessado em saber a causa da agonia da vizinha: [B12] – Está a morrer... Mas que lhe aconteceu? [SP12] – Que me havia de acontecer!... Quis o mal de meus pecados que ontem, a horas de ceia, descobrisse um galinheiro com o buraco por tapar. Galinheiro de fidalgo, pai da vida, onde cada bicho era um pote de enxúdias... [B13] – E [19] você entrou lá e passou tudo a fio de espada?... [SP13] – É como diz [20] o meu bufo. Entrei lá com tanta sorte que nem tossiu homem, nem ladrou cão. Fiz bem? Fiz mal? No outro mundo me tomarão contas. Quer-me parecer que prestei grande serviço à humanidade em libertá-la dum galaroz que [21] nos acordava do sono com tão agudos cocoricós, duma galinha-da-índia, que andava sempre de maus instintos, mata! mata! e até do peru, que, ao ver gente, se encarniçava e pragueja que parecia Belzebu! [B14] – Adiante... [SP14] – Fiz a chacina e tratei de trazer tudo cá para a cova. Trouxe dois coelhos mansos... [B15] – Dois coelhos mansos?! Dá-me um, [22] comadrinha, dá-me um? [SP15] – Ouça a relação. Trouxe dois coelhos mansos, um peru, três galinhas, uma pata, e vinha na quinta viagem com o galo nos dentes quando me saiu pela espádua o bicho-homem e disparou o arcabuz. Alcançou-me um bago de chumbo no coração, estou às portas da morte... [B16] – Não ouvi o tiro. [SP16] – Foi longe, para o povo. E como havia de ouvir se [23] Vossa Senhoria está sempre: Viram bois! Viram bois!76 76 Id.: 108-109. Esta sequência dialogal constitui a sequência encaixada a que nos referimos acima. O tema do escrivão é suspenso para dar lugar ao motivo da agonia. 461 B está conquistado. Ele próprio dá o flanco, com [B12], à continuação e desenvolvimento da interacção verbal. SP aproveita para contar a sua última grande aventura, ocasião também para mostrar que, apesar do infortúnio, ficou bem abastecida de alimentos, a cuja enumeração, como troféus de caça, se dedica, entre o prazer e o remorso, sem se esquecer de referir os benefícios resultantes para o bem-estar dos vizinhos. SP procede, assim, a uma revalorização das próprias faces positiva e negativa (recuperação de prestígio e poder), iniciando um processo de autorrefiguração ascendente. Neste momento, as FT’s trocadas estão reduzidas a você e às formas verbais correspondentes. A conversa evolui tão harmoniosa e a relação, entre os dois interactantes, torna-se de tal modo próxima que, a dada altura, SP já trata B por [20] o meu bufo, aquele mesmo a quem tratara antes por senhor bufo, meu príncipe, ilustre ave nocturna, Vossa Senhoria, senhor de muito entendimento, meu rico senhor e Vossoria. Aquela FT expressa, desde logo na sua constituição sintáctica e nos valores semântico-pragmáticos que denota, a existência duma relação (ou a vontade de que exista) de maior proximidade e afectividade. Repare-se, por outro lado, que SP emprega uma FT pronominal inclusiva, [21] nos, ainda que seja mais de valor majestático que de modéstia.77 Com B seduzido, restava avançar o argumento final, para que ficasse definitivamente convencido: referir que, entre os bens pilhados, havia dois coelhos mansos. É 77 Observa Meyer, reflectindo sobre a retórica da sedução, que o sedutor utiliza a lógica da inclusão, que «vise à diminuer la distance, et, procède comme si celle-ci était abolie ou n’avait plus d’importance.» [MEYER, 1993: 126] A propósito dos valores que o pronome nós pode ter, quando utilizado num dado contexto de comunicação / interacção verbal, observa Jeandillou: «Nous demeure un pur embrayeur quand englobe je + tu, et quand il a une valeur de 1re personne atténuée (le nous du discours scientifique) ou amplifiée (le nous dit de majesté = je + je + je…) : il permet alors au locuteur de parler en tant qu’individu mais aussi comme sujet occupant une fonction ou une position sociale collectivement reconnue.» [JEANDILLOU, 1997: 56] Pode essa função ou posição não se encontrar (ainda) socialmente reconhecida, acrescentamos nós, mas ser apenas desejada pelo locutor, como processo de autofiguração ou de autorrefiguração, como é o caso de SP. Quanto ao uso, em Português, do nós majestático, observam Cunha & Cintra que, de início, este tratamento «deveria ser uma fórmula de modéstia: o rei a confundir-se com a nação, que falava por sua boca», enquanto «na Igreja seria, no princípio, uma forma de humildade: os prelados a solidarizarem-se com os seus fiéis dentro de uma comunidade». E acrescentam: «Mas, perdido o valor originário, este plural com que superiores se dirigiam a inferiores veio a ser sentido como uma enfática expressão de grandeza, de poder, de majestade do cargo.» [CUNHA & CINTRA, 1984: 286]. Os mesmos autores observam, quanto ao chamado plural de modéstia, que, a fim de evitar «o tom impositivo ou muito pessoal de suas opiniões, costumam os escritores e os oradores tratar-se por nós em lugar da forma normal eu», procurando, desta forma, «dar a impressão de que as ideias que expõem são compartilhadas pelos seus leitores ou ouvintes, pois que se expressam como porta-vozes do pensamento colectivo.» [Id.: 285] A designação «plural de modéstia» não nos parece a mais correcta, na medida em que, a nível semântico, o emprego de nós (ou nos, ou nosso) pode não ter outro referente senão o próprio locutor. Por outro lado, morfologicamente, nós nunca é o plural de eu (nem vós de tu). Como observa Gouvard, a designação «plural» resulta duma analogia com a terceira pessoa do plural que, de facto, semântica e morfologicamente, é um plural (ele/eles; ela/elas). O autor propõe, por isso, que se utilize a designação de «referente colectivo», evitando-se, assim, «toute confusion avec les anaphoriques de troisième personne, dont ni la morphologie ni le fonctionnement référentiel ne sauraient être comparés aux pronoms de première et de deuxième personnes». [GOUVARD, 1998 : 51-52] 462 neste momento que SP e B invertem, definitivamente, os lugares que até então vinham ocupando.78 B pede a SP um dos coelhos, pedido cuja formulação acompanha duma FT que expressa, também ela, proximidade e afectividade – [22] comadrinha. SP não corresponde imediatamente ao pedido, adiando a resposta para o fim da relação dos troféus e revelação da causa próxima do seu estado às portas da morte. A descortesia de SP (adiar a resposta ao pedido) não terá agradado a B, voltando por isso a duvidar da veracidade do relato. SP sabe, porém, com quem está a lidar e, sendo ela treteira como é, imediatamente avança com uma explicação, acompanhada duma FT de elevada cortesia – [23] Vossa Senhoria – assim voltando a seduzir B. De tal modo, que é o próprio B que retoma a formulação do pedido, sinal de que está convencido e disposto a realizá-lo: [B17] – [24] A comadre quer então o escrivão? [SP17] – Quero, para fazer testamento. [B18] – Não conheço tal número... [SP18] – [25] Homem, não conhece o gato montês, calabrês, miador e furtador? Aquele que fez o testamento do urso Mariana quando o pobrezinho esticou o pernil? Mora aqui perto... [B19] – Vou ver se o descubro. Tenho então um coelho? [SP19] – Os dois, [26] meu senhor, os dois. Para que os quero eu!?79 Neste segmento, que retoma a sequência anterior à encaixada, os interactantes retomam as posições taxémicas e proxémicas que vinham ocupando, a partir da relação da pilhagem. B, além de se mostrar disponível para realizar o pedido, trata SP por [24] comadre. Esta, por seu turno, depois de reafirmar o motivo da necessidade do escrivão, trata B simplesmente por [25] homem. Uma e outra FT denotam proximidade, embora SP comece a ocupar um lugar ligeiramente superior, como a FT utilizada denota e o acto de discurso que introduz e acompanha confirma, ao censurar B por desconhecer onde mora o escrivão, tão conhecido, por morar perto e ter sido ele quem escreveu o testamento do urso Mariana. Mas se SP queria o escrivão, B não se esquecia do coelho prometido. Por isso, perante nova dúvida, SP não só reafirma o cumprimento da promessa, como a intensifica, aumentando-a de um para os dois coelhos. Além disso, volta a dirigir-lhe uma FT – 78 De sedutor, o locutor passa a predador, que utiliza a lógica da exclusão, explica Meyer, porque «convaincre, c’est vaincre.» [MEYER, 1993: 126] 79 RIBEIRO, 1961: 109. 463 [26] meu senhor - que denota ao mesmo tempo cortesia e valorização da face positiva do interlocutor, e submissão afectiva da sua parte. E a lógica explicação aí está, no acto subordinado, constituído pela interrogativa retórica Para que os quero eu!? Pois, se estava às portas da morte!... Mas B volta a duvidar das boas intenções de SP. B duvidava de SP, mas SP acreditava na força das FT’s corteses e honoríficas que dirigia a B, mesmo sabendo(-se) que não estava a ser sincera. Só que a lógica da actividade discursivo-textual não é a verdade, é a persuasão, através do verosímil. Não é a demonstração, é a argumentação: «Argumenter, c’est avoir choisi le discours contre la force, même si c’est pour séduire ou manœuvrer pour faire agir.»80 «O bufo calou-se um instante e, quando a raposa já o julgava a bater asas para largar, ouviu que lhe dizia: [B20] – Olhe lá, [27] comadre, não é intrujice? [SP20] – Intrujice! Ora essa, como podia isso ser... [B21] – Alguma esparrela ao gato bravo... [SP21] – Qual! [28] Eu sempre tive mais medo dele que ele de mim... Não, é pura verdade. Apanhei o tiro e para aqui me vim arrastando com tanto custo, tanto custo, que nem a cama pude chegar. [B22] – Mas fala tão espevitada... [SP22] – Então o tiro não foi na língua... [B23] – Bem, eu vou chamar o gato bravo. Um coelho está certo...?! [SP23] – Dois, [29] meu coraçãozinho de oiro, dois.81 B duvida de que se trata de mais uma intrujice da [27] comadre. A promessa do coelho manso, porém, foi superior, acabando con-vencido. Mas para que B, durante a viagem, não voltasse a ter mais dúvidas, mesmo depois dele lhe ter chamado indirectamente intrujona, SP reafirma-lhe a promessa dos dois coelhos, que acompanha de nova FT (mais um FFA de cortesia negativa) – [29] meu coraçãozinho de oiro – através da qual volta a aproximar e a aproximar-se afectivamente de B, reduzindo todas as distâncias taxémicas e proxémicas, situando a relação de cortesia ao nível da intimidade. SP sabia que tinha conseguido, enfim, ludibriar o bufo e que com esse ludíbrio recuperaria a liberdade e que jamais cumpriria o prometido. Meu coraçãozinho de oiro não passa, 80 81 MEYER, 1993: 8. RIBEIRO, 1961: 109-110 464 por isso, dum pobre presente verbal envenenado, mas simbólico e, por isso, operativo ao nível das relações interpessoais, até porque se trata duma metáfora.82 Tendo-se, porém, em consideração as FT’s de elevada cortesia que SP dirigiu a B, durante as várias sequências, meu coraçãozinho de oiro é mais um tratamento irónico e, por isso, de descortesia. Neste sentido, lesaria as faces do interlocutor, mas B já estava convencido pela acção discursivo-textual de SP e deixara-se, por isso, co-agir, isto é, passou à co-acção, satisfazendo o pedido. A Salta-Pocinhas é a imagem de alguém que, dotado duma elevada competência discursivo-textual, sabe utilizar (manipular) os recursos retórico-argumentativos como estratégias de cortesia ou descortesia, consoante os co(n)textos das interacções em que participa. Estratégias que incluem também o saber usar, sincera ou fingidamente, o sistema das formas de tratamento e seus valores semântico-pragmáticos, corteses e descorteses, através dos quais estabelece, negoceia ou anula, relações de maior ou menor proximidade, de maior ou menor poder, com o objectivo de, seduzindo e convencendo, atingir os seus próprios fins. Como sempre fez a protagonista do Romance da Raposa, cuja estratégia narrativa do narrador passa, precisamente, por dar da Salta-Pocinhas a imagem duma senhora de muita treta, ou seja, duma treteira que sabe utilizar («esquematizar») os recursos discursivo-textuais, nos seus diferentes valores retóricos, ainda que ao nível da chamada «retórica negra»:83 «En fait, la rhétorique est la rencontre des hommes et du langage dans l’exposé de leurs différences et de leurs identités. Ils s’y affirment pour se retrouver, pour se repousser, pour trouver un moment de communion, ou au contraire, pour en évoquer l’impossibilité et constater le mur qui les sépare. Chaque fois et toujours, le rapport rhétorique consacre une distance sociale, psychologique, intellectuelle, qui est contingente 82 A propósito do uso das figuras de estilo como argumentos retóricos, observa Michel Meyer, sintetizando pensamento de Perelman & Olbrechts-Tyteca sobre a mesma questão, que «le but des figures est d’évoquer une présence, de la renforcer ou de l’atténuer, de faire voir mieux ou autrement ce qui, sinon, pourrait demeurer inaperçu comme inessentiel.» Segundo estes autores, continua Meyer, uma figura de estilo «est ornemental [...] si, précisément, elle n’est plus destinée aux fins de l’argumentation, donc à rappeler ou à susciter le sentiment communautaire, l’accord de cœurs et des esprits.» [MEYER, 1993: 98 ; cf. também PERELMAN & OLBRECHTS TYTECA, 1996 : 194-203] Um dos estudos mais interessantes a desenvolver, no âmbito da cortesia linguística, é sem dúvida a questão dos valores corteses e/ou descorteses das chamadas figuras retóricas, nas diferentes práticas discursivo-textuais. 83 Sobre a oposição «retórica negra» vs. «retórica branca», cf. MEYER, 1993: 41-42. 465 et d’occasion, qui est structurelle en ce qu’elle se manifeste, entre autres, par des arguments ou par séduction.»84 2. Formas de tratamento e polifonia discursivo-textual Breves observações Intimamente relacionado com a problemática dos valores dos tratamentos está, como fomos anotando, a dimensão polifónica (cuja origem é também de natureza retórica, como vimos85) de toda a actividade discursivo-textual. Trata-se de tema que desenvolveremos oportunamente, dada a sua complexidade e não ter sido possível fazê-lo durante o processo desta dissertação. Gostaríamos, não obstante, de referir, desde já, que tal dimensão se encontra inscrita sempre nas práticas discursivo-textuais corteses e descorteses, em geral, e dos tratamentos corteses ou descorteses, em particular. O locutor, por estratégia de cortesia (que pode ser até para alcançar fins que depois se verifica nada serem corteses), realiza actos elocutivos que desvalorizam ou desfiguram a sua imagem / face aos olhos (interiores) do(s) seu(s) interlocutor(es), ou mesmo de terceiros presentes, testemunhas ratificadas ou laterais, espias ou não. É descortês para consigo, dirigindo-se auto-FTA’s, ou recusando FFA’s que lhe sejam dirigidos. Diz, então, ser o que de facto não é, ou nega ter as qualidades favoráveis que o(s) outro(s) lhe atribui(em). Recuperando noções de Bakhtine e de Ducrot, reinterpretadas por Adam,86 diremos que o locutor ser do mundo passa a ser outro, um ser de ficção, um ser imaginário, como outro(s) passa(m) a ser aquele(s) a quem se dirige, tratando-o(s) cortês ou descortesmente. Mudanças de personalidade(s) e de identidade(s), que as difererentes vozes, dele e do(s) outro(s), corporizam, através das FT’s utilizadas. Em nosso entender, é só tendo presente esta dimensão polifónica que se compreende e explica que um mesmo locutor, dirigindo-se a um mesmo alocutário, o trate, ao longo duma mesma interacção verbal, de diferentes maneiras, utilizando diferentes FT’s. Assim se compreende e explica, igualmente, que um mesmo locutor se dirija a si próprio descortesias mais ou menos fortes e recuse receber tratamentos ou cortesias valorizadores, enquanto dirige aos outros tratamentos corteses, por vezes de alta cortesia, e não seja considerado mentiroso, quando se sabe que nem um nem outros estão a 84 Id.: 22. Ver, supra, cap. I, 2.6. 86 Ver, supra, cap. I, 2.3. 85 466 ser verdadeiros. Só assim se compreende também que certos insultos sejam considerados, umas vezes, formas carinhosas de tratamento e, outras vezes, certos insultos (calúnias, difamações, ultrajes...) sejam vistos como uma questão de honra que exige pedidos (públicos ou não) de desculpas, recurso a tribunais, quando não a vias de facto, porque os duelos formais passaram de moda. Mudança(s) de personalidade, de identidade e de relação momentânea ou duradoura, que polifonicamente se reflecte(m) nas práticas discursivo-textuais e particularmente no uso de diferentes FT’s, encontra(m)-se nas passagens do tuteamento ao voceamento, ou vice-versa, bilateral ou não, uma ou mais vezes, no decurso duma mesma interacção verbal. É em co(n)texto de conflito declarado, ou que para ele evolui, que tais mudanças sobretudo se operam. Os interactantes consideram que já não são, ou não querem ser, o que até dado momento eram (ou pareciam ser), passando a ser (ou parecer) outros, que pode ser voltarem a ser o que já foram (ou pareciam ser). Mas pode ser, ainda, que outros tantos sejam ou desejem ser quantos são ou parecem ser pelas diferentes vozes a que dão voz, explícita ou implicitamente, nas práticas discursivotextuais que realizam, em co(n)textos de comunicação face-a-face ou diferida, literária ou corrente. A título de ilustração, apenas, veja-se a seguinte sequência dialogal, colhida n’A Via Sinuosa de Aquilino Ribeiro. Trata-se duma interacção verbal de natureza afectiva, onde duma relação de proximidade, intimidade (ao nível do eixo proxémico) se transita para uma relação de afastamnento e de poder (nível do eixo taxémico), entretanto perdido por uma das personagens e correlativamente ganho pela outra, no enredo de afectos proibidos e clandestinos. Aliás, a interacção verbal é toda ela coconstruída no desenvolvimento dum subtil jogo amoroso87 de aproximação e afastamento, que as mudanças de tratamento claramente expressam. A sequência é longa, mas vale a pena transcrevê-la, tanto pela polifonia discursivo-textual nela representada, como por todo um conjunto de cortesias e descortesias verbais, paraverbais (risos e sorrisos) e não verbais (toques) que nela se encontram também referidas, bem como pela interpretações de natureza metacomunicativa que a este nível são produzidas. (Marcamos e numeramos os turnos de fala, através de [E] e [L], 87 Sylvie Weil, em Trésors de la Politesse Française, observa: «Entre un homme et une femme, le passage du vous au tu, du tu au vous, constitue un jeu amoureux un peu semblable à celui qui consisterait, pour une femme, à se cacher et à se découvrir alternativement le visage avec une écharpe ou un éventail.» [WEIL, 1983 : 69] 467 iniciais, respectivamente, de Estefânia e Libório, personagens da sequência dialogal representada, e por [N] o discurso do narrador.) [N1] «De madrugada, [...] bateram-me à porta. Não duvidei que fosse Estefânia, porque era hábito seu, deixando o marido em soneira, cometer a adorável imprudência de me visitar àquela hora. [...]. Entrou silenciosa e grave, sem aquele ar prazenteiro que iluminava o quarto. Tomando-lhe as mãos, beijei-lhas e puxei-a para junto da cama. [E1] - Não me demoro – [N2] pronunciou ela, repelindo-me brandamente. [L1] - Ainda estás amuada? [E2] - Amuada? ah! ah! Faz de mim uma ideia muito baixa… [L2] - Aí está... [E3] - Não venho para discutir... o senhor, ontem, portou-se indignamente comigo. Tal coisa não esperava... Largue... largue-me as mãos... tudo acabou entre nós. Pode continuar ao serviço de meu marido, não lhe pego, mas eu deixei de ser a que era. Ouviu bem? Digo-lhe isto para que à mesa não se ponha a fazer caretas, e meu marido não cobre mais suspeitas. Não o viu já ontem? Olhe que é menos asno do que parece... [L3] - Perdoa, não quis melindrar-te! – [N3] balbuciei em voz tremida. [E4] - Não o autorizo a tratar-me por tu; não lhe disse já que tudo acabou entre nós? O senhor não me melindrou, ofendeu-me irreparavelmente. [L4] - Porquê? [E5] - Porquê? O inocente! Não sabe que há palavras soltas da boca que ferem como pedras? Ah!... [L5] - Mas em que a ofendi, santo Deus? [E6] - Ofendeu-me. Quando ontem lhe perguntei quanto ou como me amava, deu-me uma destas respostas de chichisbéu, que nenhuma mulher, que se preza, toleraria. Falhou-lhe o espírito; pois largasse uma tolice, mas uma tolice limpa. Dissesse que me amava como burro, e estava entendido... [N4] Sorri, em despeito da tortura que me garrotava. [E7] - Não ria! – {[N5] exclamou ela de lábios coléricos, batendo o pé.} – Com quem julga que está a lidar? [N6] Senti uma grande vontade de rir, de exagerar meu riso torpemente e mandá-la à cozinha a quebrar dois pratos para refrigério dos nervos, mas reprimi-me, fincando mandíbula sobre mandíbula. [...]. 468 [E8] - Está a armar em homem superior – {[N7] prosseguiu em tom agressivo} – e profere baboseiras daquelas! Depois, chamado à ordem, fica tartamudo, sem saber desculpar-se, nem ao menos ter arte para mentir... [ L6] - ! [E9] - Ria, que me diverte, ria! Não imagina como é engraçado! Oh! há-de comer ainda muito sal para brincar com uma mulher como eu. Creia! O senhor não sabe nada do mundo... [L7] - Mas oh! semhora!... [E 10] - Oh! senhora!... – {[N8] repetiu, dando à voz uma curva melíflua e irónica de piedade. E, meneando a cabeça, tornou:} - A nenhuma mulher se deixa ver que se amou outra. É uma imprudência. A mulher toma ainda mais ciúmes do passado que do futuro. Não sabia? Pois fica sabendo. Nós somos egoístas do afecto que nos votam e queremos ter a ilusão de que foi, é, e será o único. Percebeu? A verdade é que a nossa alma é feita de nuvens, enquanto a dos senhores não passa de bolbo. [...] [N9] Estefânia acabara a fala no tom mavioso que lhe conhecia; seu ar era, porém, sisudo e magoado. O roupão abrira-se e eu via-lhe pojar o seio na camisa de rendas. E ante aquelas carnes brancas que se me negavam, a minha luxúria aguçava-se do apetite histérico de mordê-la... e como um favo a ir chupando e triturando. [L8] - Se não amo outra!... – [N10] exclamei. [E11] - Pois sim, mas deu-me a perceber que amara. Foi involuntariamente, emendasse. Porque não negou? O senhor é dos tais que entendem profanar um sentimento mentindo. Olá, mentir! E vê, depois do disparate, a mentira era mais moral e mais necessária que a verdade... [L9] - Pois se eu nunca amei! [E12] - Agora é tarde! – {[N11] replicou ela, sorrindo.} – Dissesse-mo ontem. [L10] - Perdoe. [E13] - Não perdoo. Adeus! durma, não pense mais em mim... [N12] Ia a retirar, e saltei da cama como estava a prendê-la. [E14] - Largue-me... [L11] - Não, Estefânia, não! [N13] Debatemo-nos, eu com desespero, ela com porfia. [E15] - Larga-me, meu marido pode acordar... [L12] - Deixá-lo! Que venha ele, que venha o Diabo, que me matem, pouco importa! [N14] Presa pelas mãos, apercebendo-se da minha desatinada angústia, deteve-se. [E16] - Que homem! [L13] - Ouça, Estefânia... 469 [E17] - Que me queres?»88 Sob muitos e diversos aspectos se poderia analisar esta sequência dialogal, no quadro do sistema de cortesia (e descortesia) linguística, em geral, e dos tratamentos corteses e descorteses, em particular. Não é, porém, este o nosso objectivo de momento, mas apenas exemplificar marcas de polifonia que as mudanças ou variação de tratamentos também manifestam. As personagens E e L, no decurso do diálogo, operam mudanças de tratamento com a seguinte evolução, em termos gerais: tuteamento → voceamento → tuteamento. Resultam tais mudança, por seu turno, duma série de outras mudanças (evidentemente simbólicas) em cadeia, que podemos esquematizar assim: mudança de comportamento → mudança de atitude → mudança de personalidade → mudança de identidade → mudança de relação → mudança de tratamento. Explicitando, temos que, reagindo desfavoravelmente a comportamento anterior de L, considerado ofensivo (cf. L1, E2, E5, E6, E10, E11), E muda de comportamento e de atitude em relação a L e a si própria (cf. E1, E3, entre outras); esta mudança implica uma mudança de personalidade (cf. E3: «eu deixei de ser a que era»); mudança esta que implica mudança de identidade (cf. E7: «Com quem julga que está a falar?»), que, por seu turno, exige mudança de relação entre ambos (cf. E3, sobretudo) e por isso, também de tratamento (cf. E4: «Não o autorizo a tratar-me por tu», além das formas utilizadas de 3.ª pessoa, tanto nominais, como pronominais, como sobretudo verbais, até ao tuteio, cf. E15, E17). Observe-se que E tem perfeita consciência de tais mudanças, quer em relação a si própria, quer em relação a L, como os seus comentários de natureza metacomunicativa o provam. Cabe referir que, uma vez discursivo-textualmente assumidas e expressas por E, tais mudanças constituem, por outro lado, uma exigência a que L proceda simetricamente de igual modo. Ou seja, em termos de polifonia, as novas vozes que E passa a ter exigem outras idênticas da parte de L. Porque duma interacção verbal se trata, onde ambos têm de cooperar, mesmo que em situação de polémica. Não é, porém, apenas ao nível dos tratamentos que a polifonia se inscreve e manifesta nesta prática discursivo-textual. Mulher / casada / infiel / amante / apaixonada / ciumenta / sedutora / experiente ... de cada um destes estados ou propriedades faz E ouvir a respectiva voz, a cada uma destas personalidades e identidades dá voz, ou de 88 RIBEIRO, 1983: 265-268. 470 cada uma delas recebe a voz. A título de exemplo, veja-se E10. Polifonia que inclui vozes do marido (cf. E3) e de L (cf. E2, E6). As mudanças de tratamento serviram a E para, polifonicamente, jogar no campo dos afectos e assim despertar em L ainda maiores manifestações amorosas, num retorno à paixão por ambos ardentemente desejada (cf. E14 e seguintes). Mas tais mudanças podem funcionar também (como estrategicamente funcionaram entre E e L), para recriminar, censurar, castigar o outro. Sobretudo quando se passa, em interacções com os mesmos interactantes, do uso de FT’s que expressam uma relação de proximidade, afectividade e intimidade, para o uso de FT’s que expressam uma relação de afastamento e separação, particularmente quando o destinatário passa a ser visto, referido, tratado como um terceiro excluído. Por exemplo, uma mãe revela, com a mudança do tratamento, a reprovação e o desgosto sentido e a fazer sentir pelo mau comportamento do filho. Um dia, no colégio onde estudava, Amadeu foi publicamente insultado por um colega dos grandes, enfiando-lhe um bacio na cabeça e dando-lhe uma grande sova. O pequeno defendeu-se (as suas faces negativa e positiva) com navalha. Foi expulso. Recebido em casa, na ponta das lanças, passou a ser outro, para a mãe e a mãe outra, para ele: «Minha mãe ouviu o relato funesto com evidente assombro. A reserva, quase mutismo de que se revestiu, significava a condenação formal da minha conduta. Nobre e hirta como uma ressentida mas imperturbável magistratura. [...] De resto, alterou para comigo. Quando tinha que se dirigir a mim, e só em casos excepcionais, era na terceira pessoa. Onde ia sua etiqueta terníssima, ela que não encontrava vozes bastantes, deturpando umas palavras e inventando outras, para me exprimir o seu amor?»89 Repare-se que o narrador d’Uma Luz ao Longe, na narrativização das interacções verbais havidas entre mãe e filho, relaciona a mudança de tratamento com a cortesia («etiqueta terníssima») e a polifonia («vozes bastantes»). E como as FT’s servem também para o locutor agir, favorável ou desfavoravelmente, sobre o alocutário. Todas as interacções verbais condicionam e influenciam, e são condicionadas e influenciadas 89 RIBEIRO, 1983a: 175. Itálicos e negritos da nossa responsabilidade. Observa Weil: «Au XIXe siècle, où le tu était de plus en plus habituel envers les enfants, les parents passaient volontiers au vous quand ils avaient à faire une réprimande. Une vieille dame racontait que le pire des châtiments, pour elle, était que sa mère lui dît : “Allez, Mademoiselle, je ne vous connais plus.” Elle sanglotait alors jusqu’à ce que sa mère lui dît à nouveau tu, et ce tu était le signe qu’elle était pardonnée.» [WEIL, 1983 : 69] Lá como cá, ou vice-versa. 471 por aqueles que nelas directamente intervêm e pelas relações que nelas e com elas se estabelecem e desenvolvem. Os exemplos apresentados servem, por último, para mostrar também que a passagem de FT’s de T a FT’s de V, tidas estas como formalmente mais corteses que aquelas, nem sempre corresponde a que existam ou passem a existir relações mais corteses (isto é, equilibradas e pacíficas) entre os interlocutores e interactantes. Tudo depende dos co(n)textos e das intenções dos interactantes e da competência de cortesia / descortesia que, na produção como na recepção, eles possuam e ponham em prática. A intenção mais ou menos consciente do locutor em ser cortês ou descortês depende muito da conjugação e articulação dos vários factores em presença, onde a interpretação do efeito desejado pelo interlocutor constitui elemento essencial. 1.1. Interacção verbal Salta-Pocinhas vs. D. Salamurdo A Salta-Pocinhas, como o olfacto lhe certificasse que estava diante do solar do teixugo, chamou à porta: – Ó da casa! Ó da casa! Esperou, tornou a esperar e ninguém lhe respondeu... – Ó da casa!... Sou eu, a comadrinha raposa, meu rico senhor D. Salamurdo! Sou eu! O mesmo silêncio, o mesmo céu baço e a chuva impertinente a rufar na folhagem a igual, irreal cantiguinha. – Ando negra de fome... Por alma das suas obrigações, dê alguma coisinha! – gemeu no tom mais lamúrias que soube achar. Não bulia, porém, vivalma naquele castelo de alta fidalguia... Tornou ela a carpir-se: – Ouvi dizer que Vossa Senhoria pilhou pata... Sou a Salta-Pocinhas, sua amiga leal, verdadeira! E mais uma vez a súplica se perdeu no silêncio da terra e do solar adormecido. Em tom provocante, furiosa, gritou, então, à entrada do corredor: – Pai teixugo, narigudo, barrigudo, alma de besugo, larga a pata! Larga a pata!... a pata!!! Mas nem injúrias, nem lágrimas, nem rogos conseguiram despertar o morador. Passaram-se minutos, e a raposinha tentada, vai e não vai, a arremeter por ali dentro, à ventura, fosse o que Deus quisesse. D. Salamurdo, porém, tinha garras de aço que apertavam como turqueses, dentes possantes que uma vez ferrados não abriam mais, e acobardou-se. Dando voltas ao entendimento sobre o que havia a fazer e não fazer, lembrou-se de ir espreitar pela clarabóia. Oh! lá estava o maganão no jaquetão cor de café, topete e peitilho alvos de neve, rolado em 472 macio musgo e folhas secas ! Depois de admirar a gordura do nababo e o conforto do aposento, a raposeta, pintalegreta, senhora de muita treta, tornou a gemer: – Ó meu rico senhor, tenha dó! Ando mirradinha de fome! Já nem me recorda que engolisse um escaravelhinho... O bicho não respondeu; mas, sempre à espreita, viu-lhe a Salta-Pocinhas abrir as pálpebras, sacudir as orelhas, soprar, fungar, coriscar lume das pupilas verdes, dando em tudo sinal de incomodado. E renovou a cantilena: – Ó meu rico senhor! – Qual rico senhor, nem qual diabo! – regougou afinal D. Salamurdo. – Não tenho nada que dar, mas, tivesse eu galinhas ou patas aos montes, sob pena de para aí apodrecerem, não eram para você que vem empestar-me a casa. Apre, quando tiver de pedir esmola a portas de certa teoria, lave-se primeiro, trate de desencardir-se da catinga, que fede à légua! Grandemente se sentiu a raposinha com tão cruel descompostura. De sobra sabia ela que o teixugo é bicho muito limpo e asseado, e que a outros que tais, como o almíscar, fadou a natureza tão bem cheirosos que estar ao pé é apanhar uma dor de cabeça. Não lhes invejava a prenda. Bicho ganhão, bicho labregão. Não era desonra pertencer à ralé, nem faltarem-lhe costados de fidalguia. Mas cheirar mal, ser assim fedorenta, ofendia-a na ideia que concebera dos seus agrados, mocinha airosa, briosa, graciosa que se julgava. E por vingança, por pirraça, mais se debruçou à janela a ganir a cegarrega. Ouviu-a o teixugo Salamurdo, ouviu, tornou a ouvir, até que cheio de razões correu fora para castigar a entremetida. Mas ela esgueirou-se a tempo. Tornou ele ao quarto de dormir, reapareceu ela ao postigo: – Teixugo narigudo, barrigudo, alma de besugo, larga a pata! Postou-se no alpendre Salamurdo, de emboscada, a ver se lhe podia chegar ao pêlo. Por trás da árvore, de soslaio, negaceava com ele a comadrinha. – Larga a pata! Volveu o bicharoco a recolher-se, e logo ela, à portinhola, a ladrar: – Larga a parta! – Que trabalhos os meus! – exclamou D. Salamurdo. – Larga a pata?!... A pele hás-de tu largar-me nos dentes, se algum dia te caço a jeito ! Descarada, celerada, enjeitada de chacal! – Larga a pata! – Chegou-se a uma época, com seiscentos moscardos! em que a gente já nem segura está na sua casinha. Vem o mariola e enxovalha-nos, vem o ladrão e rouba-nos. Não há ordem, não há nada ! – Larga a pata ! – Não calas a sanfona? Então deixa, minha ladra, minha saca de mentiras, que vais ter o pago. O vizo-rei há-de sabê-lo ainda hoje. E ele, que não é para brincos, dá-te o catatau ! 473 O Salamurdo, dizendo isto, saiu de rompante, furioso, a queixar-se, se a ameaça era verdadeira, ao lobo D. Brutamontes, vizo-rei daquelas selvas e penedias. A raposinha viu-o ir e considerou: – Se só o meu cheirete te causa tantos engulhos, eu te ensino. Tenho fé que doravante não dormirei mais ao sete-estrelo. E delambida, atrevida mas precavida, fusgando à direita, fusgando à esquerda, não houvesse ali cilada, entrou na cova do teixugo. Percorreu-a de ponta a ponta: comer, de grilo! Adiante: foi-se à cama do maganão, de fofo musgo, deliciosa para dormir e sonhar, e sem vergonha, não só por acinte, mas também com ronha, estirou-se, rolou-se, espojou-se. E isto feito e outras coisas mais, crente que o cheiro do seu corpo afugentaria para todo o sempre o esquisito senhor, regougou de alegria. E a furta-passo, mais silenciosa que se calçasse alpargatas de ladrão, nariz à flor da terra a tomar os ventos, meteu na peugada do teixugo, que ia levar queixa ao vizo-rei. RIBEIRO, 1961: 28-33 1.2. Interacção verbal Salta-Pocinhas vs. Bufo Chegou a Salta-Pocinhas à porta, o mais fora que podia sem pisar o terreno traiçoeiro da armadilha, e ganiu de focinho ao alto: - Ó senhor bufo! senhor bufo! A ave de rapina continuava com a cantilena macarena: - Viram bois!... Viram bois!.... - Ó senhor bufo! – tornou ela mais forte. – Senhor bufo!... - Quem chama? – proferiu então a voz desconsolada. - É a Salta-Pocinhas, meu príncipe, é esta infeliz da sorte! - Então que é? - Que há-de ser, bateu a minha última hora. - Hum, temos velhacaria! - Velhacaria quê, ilustre ave nocturna! Mais hora, menos hora digo adeus ao mundo. - Mas onde está a comadre, que a não vejo? - Estou aqui à boquinha da cova... mesmo à boquinha. - Tropeçou, comadre, tropeçou, e partiu os focinhos!? Dê graças que conserva pulmões para nos buzinar que está com a morte nos gorgomilos! Ah! ah! ah! E o grande rapinante, dando estalos com o bico, voltou à cantilena macarena: - Viram bois!... Viram bois!... - Senhor bufo, por quem é! – gemeu a raposa. – Deixe lá os bois e oiça... - Viram bois! 474 - Por alma de quem lá tem... Lembre-se que minha avó e seu ilustríssimo avô estiveram juntinhos e foram amigos na arca de Noé. - Que quer você, sua desenvergonhada? – exclamou o bufo, em tom de cólera. - Pouca cousa... pouca cousa. Vossa Senhoria sabe que há viver e morrer? Sabe, que é senhor de muito entendimento. Pois já que sabe, antes de ir mais adiante, queria que me perdoasse as ofensas, se algumas lhe fiz... - Ofensas suas não as tenho, que eu quero menos dares e tomares consigo que as moscas com o picanço. - Embora, deite-me o seu perdão. Também se peca por pensamentos... - Está perdoada! - Bem haja, meu rico senhor, bem haja. Para morrer em paz, só falta que Vossoria me vá chamar o escrivão... - Essa é boa! O escrivão, para quê? - Para fazer o testamento. Tenho esta cova, queria deixá-la a um filho que é mesmo um enjeitado da fortuna... - Está a morrer... Mas que lhe aconteceu? - Que me havia de acontecer!... Quis o mal de meus pecados que ontem, a horas de ceia, descobrisse um galinheiro com o buraco por tapar. Galinheiro de fidalgo, pai da vida, onde cada bico era um pote de enxúdias... - E você entrou lá e passou tudo a fio de espada?... - É como diz o meu bufo. Entrei lá com tanta sorte que nem tossiu homem, nem ladrou cão. Fiz bem? Fiz mal? No outro mundo me tomarão contas. Quer-me parecer que prestei grande serviço à humanidade em libertá-la dum galaroz que nos acordava do sono com tão agudos cocoricós, duma galinha-da-índia, que andava sempre de maus instintos, mata! mata! e até do peru, que, ao ver gente, se encarniçava e praguejava que parecia Belzebu! - Adiante... - Fiz a chacina e tratei de trazer tudo cá para a cova. Trouxe dois coelhos mansos... - Dois coelhos mansos?! Dá-me um, comadrinha, dá-me um? - Ouça a relação. Trouxe dois coelhos mansos, um peru, três galinhas, uma pata, e vinha na quinta viagem com o galo nos dentes quando me saiu pela espádua o bicho-homem e disparou o arcabuz. Alcançou-me um bago de chumbo no coração, estou às portas da morte... - Não ouvi o tiro. - Foi longe, para o povo. E como havia de ouvir se Vossa Senhoria está sempre: Viram bois! Viram bois! - A comadre quer então o escrivão? - Quero, para fazer testamento. - Não conheço tal número... 475 - Homem, não conhece o gato montês, calabrês, miador e furtador? Aquele que fez o testamento do urso Mariana quando o pobrezinho esticou o pernil? Mora aqui perto... - Vou ver se o descubro. Tenho então um coelho? - Os dois, meu senhor, os dois. Para que os quero eu!? O bufo calou-se um instante e, quando a raposa já o julgava a bater asas para largar, ouviu que lhe dizia: - Olhe lá, comadre, não é intrujice? - Intrujice! Ora essa, como podia isso ser... - Alguma esparrela ao gato bravo... - Qual! Eu sempre tive mais medo dele que ele de mim... Não, é pura verdade. Apanhei o tiro e para aqui me vim arrastando com tanto custo, tanto custo, que nem a cama pude chegar. - Mas fala tão espevitada... - Então, o tiro não foi na língua.. - Bem, eu vou chamar o gato bravo. Um coelho está certo...? - Dois, meu coraçãozinho de oiro, dois. RIBEIRO, 1961: 105-110. CONCLUSÕES FINAIS Il faut bien voir qu’une bonne partie de l’activité symbolique des sujets a pour fonction de reconstituer en permanence la réalité du moi, de l’offrir aux autres pour ratification, d’accepter ou de rejeter les offres que font les autres de leur image d’eux-mêmes. Jean-Michel Adam1 O estudo que ora concluímos sobre a cortesia / descortesia verbal em Português europeu foi realizado, fundamentalmente, tendo em vista os seguintes objectivos: (a) apresentar criticamente as principais teorias que estão na origem e desenvolvimento deste novo ramo de investigação - a cortesia linguística; (b) expor criticamente estudos sobre a cortesia / descortesia verbal em Português europeu, de âmbito geral ou particular, realizados por autores nacionais e estrangeiros (gramáticos e linguistas), no quadro dessas teorias ou de outras; (c) questionar a aplicabilidade dessas teorias e desses estudos, analisando descrições gramaticais, construções linguísticas e práticas discursivo-tex-tuais, reconhecidas ou reconhecíveis como realizações, explícitas ou implícitas, de comportamentos verbais corteses e descorteses; (d) descrever mecanismos de construção e reconhecimento de formas verbais corteses e descorteses, insuficientemente desenvolvidos ou mesmo não contemplados nessas teorias e/ou nesses estudos; (e) articular tais mecanismos com os processos do sistema ou modelo de descrição teórica e análise dos comportamentos verbais corteses e descorteses. 1 ADAM, 1999 : 107 476 Em termos mais práticos, o objectivo geral deste estudo pode ser resumido como segue: Identificar e descrever fórmulas e formas linguísticas e discursivo-textuais utilizadas e construídas, na expressão explícita e implícita de valores corteses e descorteses, por aqueles que interagem (in præsentia ou in absentia) em Português europeu e reconhecer que funções exercem todas elas a nível intralinguístico e extralinguístico. O modelo teórico, cujas linhas fundamentais adoptámos e adaptámos, quando que necessário, mas respeitando sempre o seu quadro conceptual e terminológico, é o «sistema de cortesia» desenvolvido por Kerbrat-Orecchioni2 que, por sua vez, retoma e reúne, corrigindo-as e desenvolvendo-as, as principais teorias fundadoras da cortesia linguística (Lakoff, Leech e sobretudo Brown & Levinson).3 Trata-se, por isso, duma proposta ecléctica que integra também contributos doutras áreas e disciplinas linguísticas, bem como doutras áreas das ciências sociais. Confirma-se assim, mais uma vez, que o estudo da cortesia linguística é de natureza profundamente interdisciplinar, exigência que resulta também do carácter eminentemente social do seu objecto. O referido sistema assenta, fundamentalmente, nas noções de território, face e operações de figuração propostas por Goffman e adaptadas e adoptadas pelos principais estudiosos da cortesia linguística. Estas noções e operações são universais, nos seus valores, recebendo, todavia, interpretações e realizações específicas, segundo as diferentes sociedades ou comunidades. Os fenómenos gerais de cortesia ou de descortesia são, por isso, antes de mais, de natureza intracultural. Cada indivíduo possui uma face pública com uma dupla dimensão: uma face negativa e uma face positiva. Estas correspondem, respectivamente, às noções goffmanianas de território e face. Os interlocutores, no decurso duma interacção verbal, procuram proteger mutuamente essas faces, incluindo as próprias, num permanente trabalho de figuração («face want» e «face work»). Para o efeito, não lhe sendo possível evitar a realização dum acto que ameace essas faces (FTA: Face Threatening Act), do(s) outro(s) e próprias, cada interlocutor recorre a diversas estratégias linguísticas e discursivo-textuais, simples ou complexas, de atenuação e/ou compensação das lesões entretanto causadas ou a causar. 2 3 Ver, supra, cap. III. Ver, supra, cap. II. 477 No decurso duma interacção verbal, porém, os interactantes não realizam apenas FTA’s (excepto em contextos de urgência, exercício de autoridade, ou de conflito real ou lúdico), mas também actos valorizadores das mesmas faces (FFA: Face Flattering Act). Estes últimos podem funcionar também como estratégias de atenuação, na realização dum FTA, ou como estratégia de intensificação ou reforço doutro FFA, com intenções que podem ultrapassar o simples estabelecimento duma relação pacífica ou conflituosa. Segundo este sistema, a evitação e a realização atenuada dum FTA constituem estratégias ou processos verbais de cortesia negativa, de natureza abstensionista e/ou compensadora, enquanto a formulação de FFA’s constitui estratégias ou processos de cortesia positiva, de natureza construtora. As noções de face negativa - face positiva, FTA – FFA, cortesia negativa - cortesia positiva, constituem as bases teóricas fundamentais deste modelo de análise. A partir delas, Kerbrat-Orecchioni elaborou o referido sistema, composto por um conjunto de regras e princípios que justificam e explicam as realizações e o funcionamento dos fenómenos verbais de cortesia e, a contrario, de descortesia. É geralmente reconhecida a capacidade descritiva e explicativa deste modelo, ainda que, a nosso ver, se situe, quase exclusivamente, ao nível da alocução e elocução, descurando a dimensão delocutiva. São consideradas, por isso, sobretudo as formas construídas em interacções verbais estritas, deixando à margem as construções corteses e descorteses, construídas nas interacções verbais em sentido lato.4 Ao introduzir a dimensão delocutiva e ao analisar os fenómenos corteses tanto ao nível da língua (valores morfossintácticos e semântico-pragmáticos) e do discurso (interlocução), o estudo de Carreira vem complementar o modelo de Kerbrat-Orecchioni, embora continue a privilegiar as práticas sobretudo interlocutivas. A linguista portuguesa considera apenas as interlocuções, onde, além dos processos alocutivos, os interlocutores utilizam construções que se referem a si próprios, podendo referir-se também a terceiros fisicamente ausentes (ou presentes como tal considerados), podendo estes últimos ser os próprios interlocutores, por uma questão de cortesia ou de descortesia. A propósito da existência de FFA’s que atenuam a realização de FTA’s, defendemos que os FFA’s, que acompanham a realização inevitável ou inevitada dum FTA, se situam no âmbito das estratégias de cortesia negativa, uma vez que funcionam como 4 Sobre esta distinção, ver, supra, cap. 1. 478 actos compensatórios (espécie de presente verbal) pelas lesões causadas ou a causar na(s) face(s) do(s) destinatário(s). Carreira segue também, no essencial, o referido sistema de Kerbrat-Orecchioni e teorias fundadoras, na descrição das formas de cortesia em Português europeu contemporâneo, integrando-o/as, todavia, no quadro da «semântica pragmática» de Pottier, em particular no que toca às construções dos valores modais.5 No conjunto ainda reduzido (comparativamente à quantidade que se vem produzindo sobretudo noutros países ocidentais) de estudos sobre a cortesia linguística em Português, levados a cabo por autores nacionais e estrangeiros, cabe destacar os trabalhos de Carreira, pela visão abrangente [a nível semântico-pragmático e discursivo (discursivo-textual, para nós)] e pelas propostas inovadoras de análise, assente na noção do trimorfo cíclico e seu desenvolvimento. Tarata-se dum esquema que sintetiza a dinâmica das relações de aproximação, contacto e afastamento que, ao nível da proxémia, os interlocutores podem estabelecer , manter ou anular entre si, no decurso duma interlocução. Foi com base nesse trimorfo que elaborámos os esquemas onde representámos as relações interpessoais horizontais (proxémicas) ou verticais (taxémicas), existentes ou de novo geradas e geridas pelos interactantes (interlocutores ou não), consoante o co(n)texto e sua dinâmica, através das construções verbais corteses e descorteses, nomeadamente na análise dos tratamentos.6 As observações, análises e reflexões que fomos fazendo sobre a complexidade dos fenómenos verbais de cortesia e descortesia em Português europeu, suas realizações e funcionamentos, intra e extralinguísticos, explícita ou implicitamente, levam a concluir que tais fenómenos ou comportamentos se encontram presentes e condicionam tanto as interacções verbais em sentido estrito, como as interacções verbais em sentido lato. Ou seja, em síntese, a actividade da linguagem contextualizada é sempre realizada de forma mais ou menos cortês ou descortês. Mesmo quando não inclui formas ou fórmulas explícitas de expressão de cortesia ou de descortesia, um discurso-texto só aparentemente é neutro, a este nível. Como observa uma personagem de Rei dos Álamos, de Michel Tournier, «la parole est toujours caresse ou agression, jamais miroir de vérité».7 Nas interacções em sentido estrito, orais e bi ou pluridireccionais, correntes ou ficcionais, encontra-se, regra geral, maior quantidade, diversidade e construções de mais 5 Ver, supra, cap. V, 1., para as formas de cortesia, e cap. X, 5., para os tratamentos. Cf. Também CARREIRA, 1995, 1997 e 2001. 6 Ver, supra, cap. XII, FIGs. 2 a 6 e cap. XV, FIGs. 4 e 5. 7 Cit. por KERBRAT-ORECCHIONI, 1992: 13-14 479 elevada cortesia ou descortesia verbal, uma vez que é sobretudo face-a-face que se é cortês ou descortês, e mais cortês ou descortês. A razão é (aparentemente) simples: é em tais co(n)textos que mais directamente expomos e mostramos a(s) nossa(s) face(s) e, por isso, mais facilmente podemos também protegê-la(s) ou lesá-la(s), ao sermos mais ou menos corteses ou descorteses para com o(s) nosso(s) interlocutor(es). Os efeitos dos comportamentos corteses e descorteses, em geral, e dos verbais, em particular, assemelham-se ao lançamento dum boomerang: os FTA’s e os FFA’s que um locutor dirige ao(s) seu(s) interlocutor(es) atingem directamente, favorável ou desfavoravelmente, uma ou ambas as faces desse(s) interlocutpr(es) e ao mesmo tempo, mas indirectamente, uma ou ambas as suas faces de locutor. E idênticos movimentos se verificam quando um locutor dirige FTA’s ou FFA’s a si próprio: atinge directamente uma ou ambas as faces próprias, mas indirectamente uma ou ambas as faces desse(s) interlocutor(es).8 É por isso que, em regra, se é cortês com quem é cortês e descortês com quem é descortês. Ainda que, segundo mandam as regras vigentes no diassistema sociocultural português (como na maioria dos países ocidentais), devamos ser descorteses para connosco próprios, porque é assim que somos corteses para com os outros. Em / como princípio, a autovalorização ostensiva das próprias faces encontra-se proscrita, enquanto a heterovalorização das faces do outro é prescrita. Temos assim que se, por um lado, tais regras levam a que os interactantes coproduzam práticas discursivo-textuais de autodescortesia (desfiguração das próprias faces) e de heterocortesia (figuração das faces do outro), por outro lado, é a gestão contextualizada dessas práticas e/ou a coconstrução de outras que faz com que os interactantes revelem relações de cortesia ou de descortesia já existentes, as negoceiem ou criem novas. Neste sentido, consideramos que a cortesia / descortesia verbal ocupa um espaço nas relações humanas, onde as interferências entre o linguístico e o sociocultural mais se aproximam e por vezes se confundem. É a natureza essencialmente interaccional da actividade da linguagem (seja em práticas correntes ou literárias, orais ou escritas), como provado está, a partir sobretudo de Bakhtine, que está na origem e na explicação da construção de cortesias ou de descortesias verbais, explícitas ou implícitas, em número e grau variado, também na coconstrução duma interacção verbal em sentido lato. Quando se fala ou escreve, seja em que co(n)textos de comunicação for, está-se sempre a influenciar e a ser influencia- 8 Ver, supra, cap. III, 1. e cap. XV, 1.1. 480 do, consciente ou inconscientemente, com maior ou menor sucesso, e por isso a ser sempre condicionado, por uma série de factores que, no quadro da lógica natural, Grize definiu e sistematizou, com clareza e coerência, na sua teoria de «esquematização discursiva». Foi com base nas ricas e coerentes reflexões teóricas e conceptuais deste autor, conjugadas com os contributos introduzidos por Adam, que as adaptou aos domínios específicos da linguística do discurso e do texto, a par das reflexões contidas também, entre nós, em estudos de Coutinho, Menéndez e Opitz,9 que propomos e defendemos que a actividade co(n)textualizada da linguagem pressupõe e exige uma competência discursivo-textual, a qual se operacionaliza em diferentes desempenhos, tanto ao nível da produção como da recepção (incluindo a crítica ou analítica).10 A actividade da linguagem é sempre condicionada pelas representações e imagens que quem fala ou escreve tem e quer dar de si próprio, dos outros, do tema, dos objectivos que, com o discurso-texto construído ou em construção (coconstruído ou em coconstrução) pretende fazer, isto é, alcançar, bem como pelas representações e imagens que sabe, pensa, presume que tem ou quer que tenha aquele a quem se dirige, directa ou indirectamente. É na complexidade desta rede de representações e imagens, a que andam indelevelmente associados os processos de figuração das faces (próprias e alheias), que se pode descrever e compreender a comunicação verbal, em geral, nos seus diferentes tipos e planos de enunciação, co(n)textualmente realizados, bem como as bases linguísticas duma análise mais rigorosa das formas de cortesia e de descortesia, como partes condicionantes e condicionadas de diferentes práticas discursivo-textuais. A competência discursivo-textual é, assim, uma competência alargada que inclui, inevitavelmente, uma subcompetência voltada para a realização de construções e reconhecimento de comportamentos verbais corteses e descorteses, adequadas às relações existentes, presumidas ou desejadas, formais ou informais (incluindo as irónicas, satíricas e lúdicas). Competência que não exclui antes integra fórmulas, formas e valores de cortesia ou de descortesia já construídos em língua e que são activados e actualizados a par de novas construções mais ou menos originais, nas realizações concretas, co(n)textualizadas, dos diferentes exercícios da actividade da linguagem. A propósito do co(n)texto, a entender como o conjunto de factores extralinguísticos e intralinguísticos 9 Ver, supra, cap. I, 2.4., ou cf. obras destas linguistas portuguesas, infra, na Bibliografia. Sobre toda esta problemática, ver, supra, cap. I, (teoria) e caps. XIV e XV, para análises de práticas corteses e descorteses, como expressão de competência discursivo-textual. 10 481 (cotexto), ora naturais ora ficcionais,11 convém destacar a sua importância na realização dos comportamentos verbais corteses e descorteses, a par dos aspectos prosódicos (entoação) nos casos de interacções em sentido estrito. Ser competente em cortesia/descortesia verbal exige, por isso, não só (re)conhecimento da quantidade e diversidade de fórmulas e formas, mais ou menos convencionais e fixas, mais ou menos originais, como o (re)conhecimento dos mecanismos linguísticos que suportam e explicam a sua construção e emprego adequado. A competência de cortesia encerra, neste caso, uma dimensão de metacompetência. As construções discursivo-textuais corteses e descorteses percorrem os diferentes domínios da competência comunicativa, desde os linguísticos aos socioculturais, que têm em consideração não só o que se pode ou deve dizer (oralmente e por escrito), ms também os modos de o dizer, conforme aos objectivos autofavoráveis ou heterofavoráveis pretendidos e a alcançar, imediata ou mediatamente, aspectos entre os quais existe uma relação de íntima interdependência. Desde o género de discurso-texto a coproduzir, que implica determinada organização e composição das unidades e sequências que o constituem, até à selecção das fórmulas e formas, mais ou menos fixas e convencionais, à construção de outras mais ou menos originais, passando pelos níveis de língua ou registo, de acordo com o co(n)texto de comunicação, tudo isto condiciona as e é condicionado pelas construções linguísticas e discursivo-textuais que expressam, explícita ou implicitamente, intenções e efeitos de cortesia ou de descortesia. Ao longo desta dissertação, depois dum inventário dos processos linguísticos através dos quais os interactantes (interlocutores ou não) podem realizar comportamentos verbais corteses e descorteses, procedemos a descrições sobretudo semântico-ragmáticas de alguns deles, nomeadamente dos tempos e modos verbais12 e os tratamentos.13 Os valores semântico-pragmáticos de cortesia e de descortesia que os tempos e modos verbais expressam resultam, por um lado, das construções modais e, por outro, dos valores que adquirem em co(n)texto. Pode-se concluir, depois das descrições e análises feitas por gramáticos e linguistas, que todos os tempos/modos verbais podem servir para realizar e/ou acompanhar (reforçando ou atenuando) a construção de 11 FTA’s e de Porque consideramos que o contexto é também coconstruído pela actividade discursivo-textual dos interactantes, particularmente ao nível de discursos-textos literários, escrevemos co(n)texto para, numa só palavra, marcar sobretudo este último aspecto. 12 Ver, supra, cap. VI. 13 Ver, supra, cap. XI. 482 FFA’s. Há, todavia, tempos / modos que estão mais aptos, pelos valores semântico-pragmáticos que os caracterizam, para a realização de actos corteses (imperfeito e futuro do indicativo, condicional e formas do conjuntivo, em geral), enquanto outros para a realização de actos descorteses (imperativo e formas do indicativo, em geral). Os valores semântico-pragmáticos corteses e descorteses que os tempos / modos podem expressar resultam de mecanismos linguísticos de modalização, impessoalização, indirecção, desactualização temporal e de polifonia enunciativa. A par dos tempos / modos verbais e a propósito das formas substitutas e supletivas do imperativo, reflectimos, por menos estudados e marginalizados, sobre os valores corteses e descorteses que as interjeições, por um lado, e os diminutivos, por outro, podem também expressar. Em termos gerais, pode-se afirmar que o uso de interjeições, nomeadamente as não lexicais (ai!, ui! eh!, hã!) constituem formas de descortesia, enquanto os diminutivos são formas de cortesia. Tanto umas como outros, porém, (como se passa, aliás, com os outros meios linguísticos e discursivo-textuais) podem servir para expressar comportamentos corteses ou descorteses, desde que, além da forma, seja tido em consideração, mais uma vez, o contexto e a entoação, cuja importância deve ser, nestes casos, realçada, por se tratar de formas que expressam, também, afectos e emoções favoráveis e desfavoráveis. Os tratamentos são as formas que expressam, com maior evidência, as relações de cortesia ou de descortesia existentes, presumidas ou desejadas entre os interactantes (interlocutores efectivos ou não). Constituem processos e estratégias discursivo-textuais através dos quais se estabelece e gere tais relações. As formas de tratamento (FT’s) e as de cortesia / descortesia (a separação é apenas analítica, porque os tratamentos são apenas alguns dos meios de expressão de cortesia ou de descortesia verbal) constituem, por isso, processos linguísticos e discursivo-textuais que, como observa Moreno Fernández, «se exigen mutuamente y que, por lo tanto, no pueden explicarse de forma independiente».14 Esta é também a nossa opinião. O destaque que lhes concedemos tem a ver, precisamente, com a importância que lhe atribuímos na manifestação, expressão e gestão estratégica, nas práticas discursivo-textuais, dos níveis ou graus de cortesia e descortesia, a nosso ver mais importantes que os seus valores estritamente deícticos e fáticos. Trata-se de fórmulas e formas corteses e descorteses, alocutivas, elocutivas e delocutivas, através das quais se valoriza ou ameaça, protege ou ataca as faces do alocutário, do próprio locutor e de terceiros, e assim também se dá a ver uma imagem favorável ou 14 FERNÁNDEZ, 1998: 149. 483 desfavorável da representação que se tem, diz ter ou quer mostrar a quem as recebe ou de quem se fala. Na selecção e utilização das diferentes FT’s, ao longo duma interacção verbal, seja ela estrita ou lata, encontramos reunidos os principais aspectos de natureza interpessoal e linguística que definem a competência discursivo-textual de quem fala ou escreve. A gestão adequada das FT’s corteses ou descorteses, segundo os contextos de comunicação e a sua dinâmica (que elas próprias também ajudam a construir e a gerir), é a manifestação mais evidente daquela competência. Competência que, no caso do Português europeu, se torna mais exigente, dadas a variedade, riqueza e complexidade do seu sistema de fórmulas e formas, por um lado, e a reconhecida sensibilidade dos portugueses aos tratamentos, por outro. Saber empregar e mesmo manipular as FT’s constitui, por isso, uma subcompetência discursivo-textual de cortesia / descortesia, subcompetência que integra outras subcompetências, de que destacamos, por geralmente ignoradas, as de natureza polifónica e retórico-argumetativa.15 Uma conclusão poderemos retirar da análise das FT’s actualmente em prática no Português europeu: assiste-se a uma clara tendência para a utilização de formas que situamos em duas grandes categorias - tuteamento e voceamento – incluindo cada uma delas formas não apenas pronominais, mas também nominais e verbais, umas e outras de maior ou menor cortesia ou de descortesia. Cabe também observar que as FT’s de tuteamento ou de voceamento não são, respectivamente, corteses ou descorteses por natureza. É o seu uso co(n)textualmente adequado ou não a uma dada situação de comunicação e ao seu desenvolvimento que faz delas usos corteses ou descorteses (abusos). As descrições e análises parciais realizadas ao longo do trabalho e, em particular, as análises mais desenvolvidas que realizámos de interacções verbais em sentido lato e em sentido estrito, respectivamente, nos capítulos XIV e XV, mostram claramente que a construção explícita e implícita de cortesia e de descortesia verbal é uma competência discursivo-textual sempre nelas presente e delas condicionantes, ainda que em maior ou menor grau. Concluindo, voltamos a repetir que agir discursivo-textualmente é sempre interagir verbalmente, seja em co(n)textos de comunicação in præsentia (bidireccionada ou unidireccionada), seja em co(n)textos de comunicação in absentia (unidireccionada, 15 Recorde-se, a este respeito, as análises realizadas, supra, no cap. XV. 484 mas sempre interaccional e por isso dialógica e polifónica), tanto a nível oral, como a nível escrito, incluindo o literário. O interactante locutor, real ou imaginário, constrói o seu discurso-texto tendo em maior ou menor consideração a sua própria personalidade, a representação que tem de si próprio e a imagem ou face que de si próprio quer mostrar. Simultaneamente, tendo em maior ou menor consideração também a personalidade do interlocutor (real ou imaginário, ou como tal considerado) a quem, imediata ou mediatamente, se dirige. O interactante alocutário (interlocutor ou não) está sempre, por isso, também a agir sobre a actividade discursivo-textual do interactante locutor, através da representação que este dele tem e da imagem ou face que dele quer mostrar. Imagem ou face que tanto pode ser para que o próprio alocutário nela se reveja, a ela se conforme ou a rejeite; para que dela o próprio locutor se sirva e eventualmente dela retire proveito, em termos ilocutórios e perlocutórios; para que terceiro(s), ausente(s) ou presente(s) [ou como tal considerado(s)], a receba(m) ou reconheça(m). Imagens ou faces que, por isso, são tantas quantas as (id)entidades e os desdobramentos pluridiscursivos que, consoante os co(n)textos, os interactantes representam ou desejam ver representados. Toda a actividade de comunicação é, assim, intrinsecamente social e relacional. Nas diferentes e diversas interacções verbais e através delas, os interactantes encontram-se, confrontam-se e/ou desencontram-se. Condicionam-se, por isso, reciprocamente, o que se manifesta, inevitavelmente, nas esquematizações discursivo-textuais que, em diálogo ou monólogo, mas sempre dialogicamente, constroem (portanto coconstroem), sob maior ou menor co-acção do(s) outro(s), seja para promover e/ou cimentar a concórdia (cortesia), seja para evitar ou estabelecer a discórdia (descortesia). As formas verbais de cortesia e de descortesia estão sempre, por isso, presentes ou, pelo menos, pressentidas em toda e qualquer interacção verbal, dependendo a sua maior ou menor gradação e frequência dos respectivos co(n)textos de ocorrência e mesmo da concorrência entre os interactantes, a esse nível. Ninguém gosta de passar por descortês. Por isso, mesmo quando se é, pede-se desculpa por ter sido e/ou inventam-se razões que justifiquem os maus actos que se fizeram, para que se seja perdoado. E se preciso for, reorganiza-se a vida numa história, como fez aquele afamado danado almocreve de Barrelas.16 16 Ver, supra, cap. XIV. 485 Em princípio, são as relações corteses que predominam: é a paz social, a sua manutenção e/ou desenvolvimento que se procura e pratica, por uma questão de cortesia, que é, no fundo, uma exigência do viver em sociedade. As diferentes formas verbais de cortesia, sendo a sua expressão e a sua condição sine qua non, marcam sempre, por isso, de forma explícita ou implícita, todas as práticas discursivo-textuais. Pode-se dizer, por isso, parafraseando-se Pottier, que consoante a competência que a este nível se tem, a cortesia e/ou o receio da sua ausência (descortesia) são as sentinelas das nossas construções e práticas discursivo-textuais.17 Cortesia que se prende, regra geral, mais ou principalmente com o tom e o modo (falar com bons ou maus modos) como se diz e a quem se diz (o ethos e o pathos retóricos) que se reflecte, inevitavelmente, no que é dito (logos). Mesmo quando se interage com leitores mais ou menos hipotéticos, que poderão vir a sentir-se ofendidos por uma prática, ou aspecto(s) dessa prática, ofensa de que o próprio escrevente ou escritor tem consciência: «Peço desculpa pelo tom saudosista deste texto, mas o telemóvel foi uma praga que a vida me rogou.»18 A cortesia / descortesia verbal deixou de ser apenas um aspecto da etiqueta social ou boas/más maneiras, a cumprir em co(n)textos formais. É um domínio fundamental da linguística contemporânea: aquele em que se estuda os mecanismos linguísticos e discursivo-textuais (nas sua dimensões enunciativas, referenciais, dialógicas, polifónicas, retórico-argumentativas) que os interactantes (interlocutores efectivos ou não) utilizam em co(n)textos de comunicação face-a-face ou diferida, para estabelecer e manter boas, indiferentes ou más relações interpessoais, intensificando-as ou atenuando-as, preservando ou destruindo, mutuamente, as representações, as imagens ou faces que cada um tem, constrói e assim dá a ver de si próprio, dos outros, e das relações entre uns e outros. Por isso, como observa Kerbrat-Orecchioni: «on admet aujourd’hui qu’il est impossible de décrire efficacement ce qui se passe dans les échanges communicatifs sans tenir compte de certains principes 17 18 Cf. POTTIER, 1992-1993, cit. por CARREIRA, 1995: 197. Ana Sá Lopes, «Crónica saudosista», Público, 04/08/02. Negritos da nossa responsabilidade. 486 de politesse, dans la mesure où tels principes exercent sur la fabrication des énoncés des pressions très fortes».19 Mas se tais princípios exercem pressões assim fortes sobre a construção dos enunciados, de tal modo que se torna impossível descrever com eficácia o que de facto se passa nos actos de comunicação, se não forem tidos em consideração, o que é a cortesia / descortesia linguística senão uma competência discursivo-textual? Competência que não se verifica, por isso, ao nível apenas das interacções verbais estritas, mas também ao nível de toda a actividade da linguagem co(n)textualizada. Propor, depois de quanto foi exposto e descrito, uma definição de cortesia linguística, talvez seja a melhor forma de terminar uma fase da nossa investigação sobre os fenómenos verbais corteses e descorteses, fase que com esta dissertação se conclui. A cortesia / descortesia linguística é uma subcompetência discursivo-textual que os interactantes (interlocutores efectivos ou não, falantes, escreventes ou escritores) activam na coconstrução e recoconstrução de um conjunto aberto de processos linguísticos e práticas discursivo-textuais, segundo as diferentes situações e objectivos de vida e con-vivência, que sempre são de comunicação e por isso de interacção, mesmo quando as realizações se situam apenas ao nível da alocução. Conjunto de processos e práticas através dos quais os interactantes, interlocutores efectivos ou não, reflectem as relações interpessoais existentes, presumidas ou desejadas, entre si e com terceiros (ou como tal considerados), mas também as relações que estabelecem, criam e gerem. Processos e práticas ora mais simples, ora mais complexos, como simples e complexas são, ou queremos que sejam, as relações humanas. «Peço desculpa aos meus leitores e ao público em geral pelo sofrimento que este livro possa causar, e rogo-vos que o usem com cuidado.»20 19 KERBRAT-ORECCHIONI, 1996: 50. Também em 1992: 159-160. M. Scott Peck, 2001: Gente da Mentira. Cascais: Sinais de Fogo (Trad. port. de People of the Lie, the Hope for Healing Human Evil, 1985); p. 11. Negritos da nossa responsabilidade. 20 BIBLIOGRAFIA ADAM, Jean-Michel 1985: Le Texte Narratif. Traité d’analyse textuelle des récits (avec des travaux et leurs corrigés). Paris : Nathan. 1990: Éléments de Linguistique Textuelle. Liège: Mardaga. 1991: «Cadre théorique d’une typologie séquentielle», Études de Linguistique Appliquée, 83: 7-18. 1991a : Langue et Littérature. Analyses pragmatiques et textuelles. Paris : Hachette. 1992: Les Textes : Types et Prototypes. 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