Bessie Head
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Buscando um deus da chuva
por Bessie AmeliA emery HeAd (1937-1986)
Tradução: F. V. Silva, 2018
É
solitário nos campos aonde as pessoas
vão para arar. Esses campos são vastas
clareiras no meio do matagal, e o matagal
selvagem é solitário também. Aproximadamente
todos os campos ficam a uma distância do vilarejo
que se pode percorrer a pé. Em certas partes do
matagal, onde a água subterrânea está bastante
próxima da superfície, as pessoas construíam para
si pequenos postos de descanso e cavavam poços
rasos para saciar sua sede durante a jornada rumo
a suas próprias terras. Elas vivenciavam toda a
sorte de coisas quando deixavam o vilarejo. Era
possível descansar em balneários com sombras,
cheios de um exuberante emaranhado de árvores
com delicadas flores de um dourado pálido e
roxo surgindo entre o musgo macio e verde, e as
crianças podiam perambular em busca de figos
selvagens e quaisquer frutinhas que eventualmente
estivessem em época de colher. Contudo, a partir
2
Buscando um deus da chuva
de
1958, umaLouis.
seca de
sete anos
acometeu
o país,
HOLBERG,
Jornada
subterrânea
de Niels
e mesmo
balneários
uma descida
aparência
Klim;
sendo os
uma
narrativa ganharam
de sua fantástica
a
terras
subterrâneas;quanto
junto aaum
parecer
acercade
de animais
tão desoladora
dos
matagais
espinhos
inteligentes
árvores
do planeta
Nazar e e
do interior;e as
folhashabitantes
das árvores
encaracolaram
omurcharam;
f irmamento.oOriginalmente
publicada
em 1741.
musgo tornou-se
seco e duro
e, sob
a sombra do
dasinglês
árvores
o chão
Traduzido
por emaranhadas,
F. V. Silva. Fonte:
NielstornouKlim’s
journey
the ground.
Boston:preta
Saxton,ePeirce
& Co.,
1845.
se umunder
montão
de poeira
branca,
pois
não
havia mais chuva. As pessoas diziam com certo
humor que, se você tentasse conter a chuva em uma
xícara, só teria o suficiente para encher uma colher
de chá. Próximo ao início do sétimo ano de seca,
a passagem do verão tornou-se uma angústia. O ar
estava tão seco e sem umidade que queimava a pele.
Ninguém sabia o que fazer para escapar do calor.
Havia tragédia no ar. No início daquele verão, um
grupo de homens deixou suas casas e se enforcou
nas
árvores.
C A
P Í A Tmaioria
U L dasO pessoas
X I havia
I Ise
sustentado com as colheitas, mas nos últimos dois
O INÍCIO todas
DA QUINTA
anos retornaram
para MONARQUIA
suas terras, portando
apenas
cobertores
de pele
enrolados
utensílios
exército
vitorioso
marchou
para oe reino
de
para cozinhar.
Apenas
os
charlatões,
encantadores
Tanaqui e acampou em frente a sua capital.
e curandeiros
[witch-doctors]
fizeram
uma pilhasede
Nesse
meio-tempo,
um terror
generalizado
dinheiro
nessa
época,
já
que
as
pessoas
sempre
intensificou de tal forma que os magistrados foram
de
encontro
aosno
conquistadores
em postura
de
recorriam
a eles
desespero, buscando
pequenos
submissão,
entregando-lhes
as
chaves
da
cidade.
talismãs e ervas para esfregar no arado de forma
O
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que as plantações crescessem e a chuva caísse.
As chuvas estavam atrasadas naquele ano.
Vieram no início de novembro, com promessa
de boa temporada. Não era o aguaceiro farto,
constante dos anos de boa chuva, mas um
chuvisco fino, parco, enevoado. Ele amaciou
a terra e uma rica massa de coisinhas verdes
floresceu em toda a parte para que os animais
comessem. As pessoas foram chamadas ao
kgotla1 do vilarejo para ouvir a proclamação do
início da temporada de aragem; elas se agitaram
e famílias inteiras começaram a partir rumo aos
campos para arar.
A família do velho Mokgobja estava entre
aqueles que partiram cedo para os campos. Eles
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Um kgotla é uma reunião pública,
conselho comunitário ou tribunal tradicional
de uma aldeia do Botswana. Geralmente é
encabeçado pelo chefe ou líder da aldeia, e as
decisões da comunidade são sempre obtidas
por consenso. Qualquer pessoa pode falar e
ninguém pode interromper enquanto alguém
estiver falando.
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Buscando um deus da chuva
tinham um carro de burros e nele empilharam
tudo. Mokgobja — que tinha mais de setenta anos
—; duas garotinhas, Neo e Boseyong; sua mãe Tiro
e uma irmã solteira, Nesta; além do pai e provedor
da família, Ramadi, que conduzia o carro de
burros. No ímpeto de esperança imediata de chuva,
o homem, Ramadi, e duas mulheres, limparam a
terra de arbustos espinhentos e então cercaram a
vasta área de aragem com o mesmo espinheiro,
de forma a proteger a futura plantação das cabras
que trouxeram por causa do leite. Eles limparam e
cavaram mais o antigo poço de água lamacenta, e
ainda nessa chuva leve, nevoenta, Ramadi aparelhou
dois bois, revolvendo o solo com um arado de mão.
O campo estava pronto e lavrado, esperando
pela colheita. À noite, a terra se tornava vívida com
insetos cantando e sussurrando por aí em busca de
comida. Mas de repente, na metade de novembro, a
chuva foi embora. Nuvens foram embora e deixaram
o céu vazio. O sol dançava vertiginosamente pelo
céu, com uma crueldade incomum. A cada dia,
a terra se cobria de um nevoeiro, como se o sol
estivesse sugando até a última gota de umidade do
chão. A família sentou-se em desespero, esperando
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e esperando. Suas esperanças haviam sido
excitadas de sobremaneira; quando as cabras
começaram a produzir leite, eles avidamente
despejaram-no em seu mingau, porém agora
comiam mingau puro, sem leite. Era impossível
plantar sementes de milho, maíz, abóbora e melão
no solo seco. Eles ficavam sentados o dia inteiro
na sombra das cabanas e até mesmo pararam de
pensar, pois a chuva tinha ido embora. Somente
as crianças, Neo e Boseyong, estavam felizes em
seu mundinho de meninas. Elas levavam adiante
sua brincadeira de casinha assim como suas mães
faziam, e tagarelavam uma com a outra em tons
baixos, suaves. Elas faziam crianças com galhos
que havia por ali, os quais prendiam a trapos e a
quem davam sermões com severidade, em uma
simulação exata de sua própria mãe. Dava para
ouvir suas vozes dando sermões o dia inteiro.
“Sua estúpida, quando mando você buscar água,
por que você derruba metade dela do balde?!”
“Sua estúpida! Não consegue cuidar da panela de
mingau sem deixar queimar!” E então elas batiam
nos traseiros de suas bonecas com semblantes
severos.
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Buscando um deus da chuva
Os adultos não prestavam atenção nisso; eles
tampouco ouviam aquela tagarelice divertida; eles
permaneciam sentados aguardando a chuva; seus
nervos estavam tensionados a ponto de quebrar,
desejosos de que a chuva caísse do céu. Nada além
daquilo importava. Todos os seus animais tinham
sido vendidos durante os anos ruins para comprar
comida, e de todo o seu rebanho, apenas duas cabras
sobraram. Foram as mulheres da família que, por
fim, tiveram um colapso sob o esforço da espera
por chuva. Foram mesmo as duas mulheres que
causaram a morte das garotinhas. A cada noite elas
começavam um lamento bizarro, estridente, que
começava com um tom baixo, lúgubre, e se exaltava
ao ponto de um frenesi. Então elas batiam os pés
e gritavam como se tivessem perdido suas cabeças.
Os homens permaneciam sentados, quietos e
contidos; era importante aos homens manterem o
autocontrole a todo momento, embora seus nervos
estivessem à beira de um colapso também. Eles
sabiam que as mulheres estavam sendo assombradas
pela fome do ano que se avizinhava.
Por fim, uma memória antiga agitou o velho
Mokgobja. Quando era bastante jovem e os
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costumes dos ancestrais ainda governavam o
país, ele fora testemunha de uma cerimônia
de invocação da chuva. E retomou um pouco
da vivacidade se esforçando para lembrar dos
detalhes soterrados por anos e anos de orações na
igreja cristã. Assim que os nevoeiros dissiparam
um pouco, ele começou a pedir orientação de
seu filho caçula, Ramadi. Havia, ele disse, um
certo deus da chuva que só aceitava o sacrifício
de corpos de crianças. Então a chuva cairia, e as
plantações cresceriam, ele disse. Ele explicou o
ritual e, conforme a mentira falava, sua memória
tornou-se uma convicção. Então começou a falar
com autoridade inabalável. Os nervos de Ramadi
foram destroçados pelo lamento feminino. Logo
os dois homens começaram a cochichar com
as duas mulheres. As crianças continuaram sua
brincadeira: “Sua estúpida! Como você pode ter
perdido o dinheiro a caminho da loja! Você deve
estar inventando de novo!”
Quando tudo estava acabado e os corpos das
duas garotinhas foram dispersos pelo campo,
a chuva não caiu. Ao invés disso, houve só o
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Buscando um deus da chuva
silêncio mortal pela noite e o calor devorador do sol
pelo dia. Um terror, extremo e profundo, acometeu
toda a família. Eles embalaram as coisas, enrolaram
seus cobertores de peles e panelas, e zarparam de
volta para o vilarejo.
As pessoas no vilarejo logo deram falta das
duas garotinhas. Elas morreram nos campos e
foram enterradas lá, a família disse. Mas as pessoas
perceberam seus rostos empalidecidos, apavorados,
e surgiram murmúrios. O que matou as crianças?
— eles queriam saber. Então a família respondeu
que elas simplesmente morreram. E as pessoas
comentaram entre si que era estranho que as
duas mortes tivessem ocorrido ao mesmo tempo.
Houve um sentimento de grande inquietação em
decorrência da aparência pouco natural da família.
Logo veio a polícia. A família lhe contou a mesma
história de morte e sepultamento nos campos. Elas
não sabiam do que as crianças morreram. Então a
polícia pediu para ver os túmulos. Nisso, a mãe das
crianças caiu em prantos e contou tudo.
Por todo aquele verão terrível, a história
das crianças pairou sobre o vilarejo como uma
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nuvem escura de sofrimento, e o sofrimento
não se dissipou quando o velho e Ramadi foram
condenados à morte por assassinato ritual.
Tudo o que constava nos livros do estatuto era
que assassinato ritual era contra a lei e devia ser
eliminado à base de pena de morte. A história
penetrante de desgaste e fome e colapso era uma
evidência inadmissível em corte. Contudo, todas
as pessoas que viviam das plantações sabiam
em seus corações que haviam sido salvas por
um triz de um destino semelhante ao da família
Mokgobja. Elas poderiam ter matado algo para
fazer a chuva cair.
Este livreto foi distribuído gratuitamente em maio de 2019.
Ele foi traduzido por Felipe Vale da Silva a partir do original
(HEAD, Bessie. Looking for a rain-god: a story of Botswana.
The New African, April 1966, Dakar Festival Supplement, p. 65)