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PSICOLOGIA, TRANSEXUALIDADES PSICOLOGIA, TRAVESTILIDADES E TRANSEXUALIDADES Compromissos ético-políticos da despatologização CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA DE SANTA CATARINA – CRP-12 DIRETORIA DO IX PLENÁRIO DO CRP-SC (GESTÃO 2016-2019) Conselheiro Presidente Fabrício Antônio Raupp Conselheira Vice-Presidenta Simone Vieira de Souza Conselheiro Secretário Marcos Henrique Antunes Conselheiro Tesoureiro Rodrigo Gomes Ferreira CONSELHEIRAS(OS) DO IX PLENÁRIO DO CRP-SC (GESTÃO 2016-2019) Alexandre Donisete Aleixo Elisa Rita Ferreira de Andrade Ematuir Teles de Sousa Jaira Terezinha Rodrigues Joice Danusa Justo Joseane de Oliveira Luz Júnior Cesar Goulart Marivete Gesser Nasser Haidar Barbosa Pâmela Silva dos Santos Paulo Roberto Wovst Leite EMATUIR TELES DE SOUSA | MARÍLIA DOS SANTOS AMARAL | DANIEL KERRY DOS SANTOS (Organizadores) PSICOLOGIA, TRAVESTILIDADES E TRANSEXUALIDADES AUTORAS(ES) Bruna G. Benevides Céu Cavalcanti Christian Pedro Mariano Daniel Kerry dos Santos Ematuir Teles de Sousa Hailey Kaas Jaqueline Gomes de Jesus João Walter Nery (in memoriam) Lirous K’yo Fonseca Ávila Maria Luiza Rovaris Cidade Marília dos Santos Amaral Sandra Elena Sposito Tatiana Lionço Florianópolis, 2019 Compromissos ético-políticos da despatologização CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA DE SANTA CATARINA – CRP-12 GT Gênero e Sexualidades do Conselho Regional de Psicologia de Santa Catarina (CRP-12) Ematuir Teles de Sousa Marília dos Santos Amaral Daniel Kerry dos Santos Assessoria de Comunicação do CRP-SC Sidiane Kayser dos Santos Revisão Final Michela Silva Moreira Projeto Gráfico, Diagramação e Capa Rita Motta Imagem da Capa Ayomí Araceli A imagem foi cedida ao CRP-SC pela artista Ayomí Araceli, agradecemos pela disponibilidade de atender tão prontamente o pedido do “GT Gênero e Sexualidades” para realizar esta bela ilustração. Uma obra de arte representativa do conteúdo abordado neste livro e que na composição com o mesmo o deixou ainda mais belo e potente. Nossos agradecimentos por este encontro. P974 Psicologia, travestilidades e transexualidades : compromissos éticopolíticos da despatologização / Ematuir Teles de Sousa, Marília dos Santos Amaral, Daniel Kerry dos Santos (organizadores). – Florianópolis: Tribo da Ilha, 2019. 155 p. : il. Formato: PDF Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: www.crpsc.org.br Inclui referências ISBN: 978-65-80478-02-6 (e-book) 1. Psicologia. 2. Transexualidade. 3. Gênero. 4. Patologia. I. Sousa, Ematuir Teles de. II. Amaral, Marília dos Santos. III. Santos, Daniel Kerry dos. CDU: 159.9 Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. É proibida a reprodução parcial ou integral desta obra, por quaisquer meios de difusão, inclusive pela internet, sem prévia autorização dos organizadores. EDITORA TRIBO DA ILHA Rod. Virgílio Várzea, 1991 – S. Grande Florianópolis-SC – CEP 88032-001 Fones: (48) 3238 1262 / 9-9122-3860 editoratribodailha@gmail.com www.editoratribo.blogspot.com l “Não se acovardem. Ser o que somos não tem preço. Viver uma mentira nos enlouquece.” (João W. Nery, 2018 – in memoriam) l SUMÁRIO PREFÁCIO – CARTA AOS qUE VIRãO Jaqueline Gomes de Jesus APRESENTAÇãO ATUAÇãO DO GT GÊNERO E SEXUALIDADES DO CRP-SC: ENFRENTAMENTOS À LÓGICA PATOLOGIZANTE DIANTE DE INTERPELAÇÕES (CIS)NORMATIVAS Ematuir Teles de Sousa Marília dos Santos Amaral Daniel Kerry dos Santos PATOLOGIZAÇÕES, AUTODETERMINAÇÕES E FÚRIAS – UMA BREVE CARTA DE AMOR Céu Cavalcanti A PSICOLOGIA ENTRE A PATOLOGIZAÇãO E A DESPATOLOGIZAÇãO DAS IDENTIDADES TRANS Tatiana Lionço (DES)PATOLOGIZAÇãO DAS EXPERIÊNCIAS TRANS: CONTRIBUIÇÕES, COMPARECIMENTOS E RESISTÊNCIAS DA PSICOLOGIA Maria Luiza Rovaris Cidade “VOCÊS SÓ PODEM SER NORMAIS PORqUE NÓS SOMOS CONSIDERADOS DOENTES!” – A PATOLOGIZAÇãO DOS CORPOS TRANS COMO MEIO DE PRODUZIR A “NORMALIDADE” CIS João Walter Nery OS MECANISMOS DA PATOLOGIZAÇãO DAS VIDAS TRANS Hailey Kaas CORPO TRANS: CONDIÇÕES DE SAÚDE, BEM-ESTAR E POSSIBILIDADES DE EXISTÊNCIA Christian Pedro Mariano ASSOCIAÇãO EM DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS COM ENFOqUE EM GÊNERO E SEXUALIDADE (ADEH): PRÁTICAS DE RESISTÊNCIAS FRENTE ÀS VULNERABILIDADES DA POPULAÇãO TRANS Lirous K’yo Fonseca Ávila A ATUAÇãO DAS(OS) PSICÓLOGAS(OS) EM RELAÇãO ÀS PESSOAS TRAVESTIS E TRANSEXUAIS E O POSICIONAMENTO ÉTICO-POLÍTICO A PARTIR DA RESOLUÇãO CFP Nº 01/2018 Ematuir Teles de Sousa Sandra Elena Sposito POSFÁCIO – DESPATOLOGIZAÇãO DAS VIDAS TRANS: POSSIBILIDADE DE (RE) EXISTÊNCIAS LIVRES Bruna G. Benevides SOBRE AS(OS) AUTORAS(ES) ANEXO 1 – RESOLUÇãO CFP Nº 1, DE 29 DE JANEIRO DE 2018 ANEXO 2 – RESOLUÇãO CFP Nº 10, DE 27 DE MARÇO DE 2018 ANEXO 3 – RESOLUÇãO CFP Nº 1, DE 22 DE MARÇO DE 1999 l PREFÁCIO – CARTA AOS qUE VIRãO Eu pensei que ia acusar Se eu tenho alguma coisa no cérebro Não, acusou que eu tenho cérebro Um aparelho que pensa bem pensado Que pensa positivo E que é ligado a outro que não pensa Que não é capaz de pensar nada e nem trabalhar Eles arrancaram o que está pensando E o que está sem pensar E foram examinar esse aparelho de pensar e não pensar Ligados um ao outro na minha cabeça, no meu cérebro Estudar fora da cabeça Funcionar em cima da mesa Eles estudando fora da minha cabeça Eu já estou nesse ponto de estudo, de categoria (Poema do livro “Reino dos Bichos e dos Animais é o meu Nome”, de Stela do Patrocínio). Eu ofereço estas breves linhas ao meu saudoso amigo e referência João W. Nery, cuja voz poderosa (transformada em letras desde o “Erro de Pessoa: Joana ou João”, de 1984, passando pelo antológico e necessário “Viagem Solitária” e desembocando na sua esperançosa “Viagem Solidária”, que tive a honra de prefaciar com a genial Laerte) ressoa neste livro, junto a voz de tantas outras pessoas queridas, companheiras na jornada de tecer amanhãs melhores para os que virão. A vida de João, como a de nossas antepassadas travestis, ao longo da história da população trans no Brasil e no mundo, é marcada por uma resistência tremenda, uma vontade de poder ser, no sentido desenvolvido por Friedriech Nietzche, que venceu o ódio, a náusea, a exclusão extrema, até a morte. Somos herdeiros, herdeiras e, para quem não se identifica com essa generificação, herdeires de tamanha força, desses mártires. Há algo de paradoxalmente cristão nessa constatação; entretanto, ela é cabível, faz todo o sentido. Gozamos das conquistas que eles nos trouxeram, com tanto sofrimento, e seguimos responsáveis por continuar abrindo caminhos. Nós somos um futuro deveras inimaginável para quem viveu aquelas estórias. quando eu escrevo sobre os que virão, não me restrinjo às pessoas trans e travestis. Eu me refiro também às pessoas cisgêneras ou, em outras palavras, às que se identificam com o gênero que lhes foi atribuído socialmente. Faço isso por compreender que as questões relacionadas à patologização refletem uma visão de mundo acerca da categoria “gênero” que prejudica frontalmente o gozo pleno da vida por parte da população trans, evidentemente, como é abordado nesta publicação, mas ela também encarcera as pessoas cis. Ao afirmarem que as pessoas trans são doentes, transtornadas, é o próprio gênero que está sendo transformado, de uma categoria social, em uma categoria diagnóstica, como tão bem descreveram Berenice Bento e Larissa Pelúcio (2017)1. Patologizar é considerar que determinadas formas de ser prejudicam os sujeitos, e que, portanto, devem ser tratadas. Há muito de moralismo nas atribuições feitas ao que é considerado doença, como 1 BENTO, Berenice; PELÚCIO, Larissa. Despatologização do gênero: a politização das identidades abjetas. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 20, n. 2, p. 569-581, maio 2012. ISSN 1806-9584. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ ref/article/view/S0104-026X2012000200017>. Acesso em: 7 maio 2019. 9 • psicologia, travestilidades e transexualidades tão detalhadamente atestou George Canguilhem ao problematizar a diferença entre o normal e o patológico, ao apontar que normal é aquilo que se adequa à realidade de tal organismo. Antes da ascensão do pensamento científico como eixo orientador dos discursos acerca da realidade, o pensamento religioso prevalecia. E tudo que, em seu universo de práticas, não fosse considerado digno ou moral era tido como pecaminoso, particularmente no âmbito do pensamento judaico-cristão hegemônico na Europa e, por conseguinte, em suas colônias. quando o pecado deixou de ser a justificativa dominante para o controle dos corpos, com a ascensão dos Estados Nacionais, a figura do crime tomou-lhe o lugar, ao haver códigos e legislações que penalizavam certas existências que fugiam do padrão moral socialmente propalado e almejado pelas elites. Era a Justiça determinando quem poderia existir e quem não poderia. Com a progressiva descriminalização de existências como as da população de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexo (LGBTI), algo ainda em curso em vários países, o discurso patologizante foi ocupando o espaço vazio deixado pela falta de penalidades. Seguiu o moralismo: o pecado (algo a ser purificado) se tornou crime (algo a ser punido) e, sob o manto da ciência, ou pseudociência, tornou-se doença, transtorno, patologia, algo a ser curado. No entanto, os outrora pecaminosos, criminosos e doentes se negaram a aceitar tais destinos impostos, e começaram a contar novas histórias, apesar dos registros oficiais feitos pelos reprodutores do discurso excludente dominante. Aqueles atores sociais menosprezados produziram riquíssimas culturais orais, geralmente usurpadas, negadas ou apropriadas; porém, sempre resistentes. E as gerações mais recentes começaram a escrever, a tomar a palavra escrita para si, a contar nossas próprias estórias, nossos pontos-de-vista, nossas análises e críticas. Lembro aqui dos poemas de Anderson “Bigode” Herzer, das publicações premiadas de Ruddy Pinho, entre tanta produção bibliográfica, protagonizada por escritores trans, que vem sendo acumulada. Há algo de muito precioso nessa difícil consolidação de saberes, pois escrever, para povos humilhados, ofendidos 10 • psicologia, travestilidades e transexualidades e explorados como os nossos, é conquistar um dos instrumentos de poder dos nossos opressores, e subvertê-lo! Este livro é parte desse processo, é uma carta para o futuro, um futuro no qual as pessoas se reconhecerão e serão reconhecidas a partir de seu direito próprio e inalienável a se autoidentificarem, e não como ainda ocorre hoje, quando estatutos sociais cissexistas aprisionam a liberdade de ser o que se é a um binarismo biologicista simplista, com o qual nem mesmo as pessoas que se identificam com boa parte dos estereótipos de gênero se identificam. Eu acredito que esse futuro é possível. E, ao ler esta obra, você perceberá que essa também é a percepção dos meus companheiros e companheiras de escrita, luta e vida – sejam eles trans ou cis. Eles são “gente ansiosa por alimentar a esperança de fato” – e não apenas superficialmente, por meio de belas palavras vazias – de que nós todos somos iguais, por sermos humanos, e por isso mesmo inevitavelmente diferentes e únicos, como proclama o paradoxo fundamental da diversidade, cunhado por Gordon W. Allport. Não. Não posso afirmar, sem idealizações e com o olhar desvelado, que formamos uma comunidade. Ainda precisamos construir fundações mais resistentes para tamanho edifício de hábitos, rituais e solidariedade orgânica, digamos assim. Mas sou otimista, acredito que estamos no caminho para tanto, mesmo que a meta seja alcançada apenas pela próxima geração, ainda mais considerando este momento político nefasto que estamos vivenciando no mundo e no Brasil, com o avanço do fundamentalismo político-religioso, do autoritarismo e do fascismo, o qual também busca, por meio de determinados discursos ditos científicos, tentativas de justificar a exclusão de gente considerada inferior, e em alguns casos, sequer tida como humana. Não entendo que a despatologização das identidades trans seja algo dado (a mera realocação das identidades, de um capítulo da Classificação Internacional de Doenças para outro, não me parece argumento suficiente para defender que se não se tratam mais tais formas de ser como doenças, visto que tais identidades ainda não vistas a partir de uma nosologia); porém, ela avança, graças à campanha internacional de ativistas, pesquisadores e profissionais da saúde conscientes 11 • psicologia, travestilidades e transexualidades e aliados, e devido, igualmente, a ações locais que acabam tendo um impacto global, ao questionarem e enfrentarem as desigualdades e iniquidades aqui e ali. Exalto a iniciativa dos meus colegas de ciência-profissão, a Psicologia, de se engajarem politicamente em prol desse compromisso social, e de terem agregado, nas páginas que seguem, estas reflexões seguras e estudos confiáveis. Vamos, assim, superando a História da Psicologia Moderna, tão marcada, desde os seus primórdios, pelo afã de submeter corpos aos interesses institucionais. Por fim, a quem nos lê, antecipo que terá uma caminhada segura e recompensadora, entre os textos destes autores que eu admiro e que, na tessitura de suas palavras, propõem um mundo melhor para todos nós, inclusive você. Parafraseando o filósofo Baruck Spinoza, eu lhe afirmo que eis aqui “um bom encontro”. Jaqueline Gomes de Jesus Chapel Hill/Carolina do Norte, Estados Unidos da América, 7 de maio de 2019. 12 • psicologia, travestilidades e transexualidades l APRESENTAÇãO O IX Plenário do Conselho Regional de Psicologia de Santa Catarina (CRP-12), a partir do acúmulo de experiências desenvolvido pelo “GT Gênero e Sexualidades”, estabeleceu como um dos objetivos da gestão (2016-2019) a produção deste livro a fim de dar continuidade com a problematização da temática da “Despatologização das Travestilidades e Transexualidades”, demarcando o compromisso ético-político da Psicologia diante da produção histórica de categorias patologizadoras e excludentes que marginalizam pessoas travestis e transexuais. Destacamos que o Sistema Conselhos de Psicologia, composto pelos seus 24 Conselhos Regionais e o Conselho Federal de Psicologia (CFP), ao longo de suas gestões, vem denunciando e se contraponto às demandas à categoria de psicólogas(os), por diferentes instituições, a ocuparem um lugar de prescrição e normalização das vidas de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTs). Na contramão desta realidade, temos orientado a categoria profissional para o compromisso ético-político da Psicologia no que se refere aos processos de autonomia das pessoas travestis e trans sobre os seus corpos, bem como sobre o enfrentamento aos processos de marginalização e violências a que esta população está sujeita na nossa sociedade. Para continuar esta conversa, convidamos as pessoas que participaram dos seminários “Despatologização das Travestilidades e Transexualidades” desenvolvidos pelo CRP-SC em 2016 e 2017, bem como outras pessoas importantes no cenário brasileiro destas discussões, para ampliar o debate sobre como o exercício da Psicologia pode possibilitar a construção de espaços de resistência aos processos de patologização que envolvem as experiências das pessoas trans e travestis, no Brasil. Dedicamos este livro in memoriam ao psicólogo, defensor dos direitos da população LGBT, homem trans, João Walter Nery que, infelizmente, nos deixou em 2018. A história de João foi marcada por uma vida comprometida com os direitos das pessoas que vivenciam processos de sofrimentos em decorrência do ódio, do preconceito, da desigualdade e da exclusão. Em seu nome, dedicamos ainda a todas as pessoas travestis e transexuais que têm experienciado o dissabor de uma sociedade marcada por processos de violências. Se depender de nós, defenderemos sempre uma ciência e prática que se compromete com a vida digna para todas as pessoas. Reafirmamos que nossa profissão reconhece a potência da existência das diferenças, sejam elas quais forem. Desejamos a todas(os) uma ótima leitura! IX Plenário do CRP-12 14 • psicologia, travestilidades e transexualidades VOLTA AO SUMÁRIO l ATUAÇãO DO GT GÊNERO E SEXUALIDADES DO CRP-SC: ENFRENTAMENTOS À LÓGICA PATOLOGIZANTE DIANTE DE INTERPELAÇÕES (CIS)NORMATIVAS Ematuir Teles de Sousa Marília dos Santos Amaral Daniel Kerry dos Santos Iniciando a conversa: contextualização do cenário da patologização das travestilidades e transexualidades Nos últimos anos, temos testemunhado no Brasil um gradativo aumento de pesquisas acadêmicas e de movimentos sociais que vêm problematizando questões que envolvem as experiências das transexualidades e travestilidades. Neste cenário, o campo dos estudos de gênero e sexualidades, especialmente em suas correntes que dialogam com o transfeminismo1, tem produzido contundentes críticas aos discursos e às práticas que patologizam as experiências travestis e trans. 1 Segundo Bia Bagagli (2013), o transfeminismo é um movimento que torna visível as experiências travestis e trans no campo dos estudos de gênero, teoria queer e estudos feministas; com isso, provoca tensionamentos teóricos e políticos em torno da cisgeneridade compulsória. A lógica patologizante que recai sobre sujeitos que divergem das normas cisgêneras2 produz efeitos concretos de exclusão, estigmatização, discriminação e violência. A patologização das experiências travestis e trans tem funcionado há décadas como uma forma de gestão e tutela de sujeitos que desafiam padrões normativos de gênero e que instauram outras modalidades discursivas e materiais de reconhecimento e inteligibilidade do corpo e daquilo que pode adquirir estatuto de humano. Dentre as instituições que atualizam de maneira mais rígida as estruturas de poder que alocam as experiências travestis e trans no campo da (psico)patologia, destacam-se aquelas ligadas ao judiciário, à biomedicina e à saúde. Seja como empecilhos jurídicos no que diz respeito ao acesso a documentos que legitimem a existência das pessoas travestis e trans como cidadãs, ou por meio de burocracias que impedem e/ou dificultam o acesso à saúde integral. A cisheteronorma3 que atravessa os saberes e as práticas nessas esferas se constitui como um dos mecanismos efetivos para a manutenção de dispositivos biopolíticos que precarizam algumas vidas. Diante desse quadro, algumas vertentes da psicologia crítica brasileira, em consonância a um crescente movimento global constituído por diversas(os)atrizes/atores sociais, têm afirmado um posicionamento radical pela despatologização das experiências travestis e trans. Ainda que historicamente a psicologia tenha sido conivente (e ainda seja, em alguns contextos) com discursos que patologizam as experiências de identidade de gênero que não correspondem à cisgeneridade, temos observado um giro teórico e epistemológico no que tange à compreensão do gênero, especialmente em relação às travestilidades e transexualidades. Ao se aproximar do vasto campo de conhecimento fundamentado por perspectivas críticas das teorias (trans)feministas e dos estudos 2 Cisgêneros ou cisgêneras são pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento (JESUS, 2012). 3 Discursos e práticas que excluem, patologizam e punem as identidades de gênero e os relacionamentos afetivos e sexuais que se manifestem fora da coerência entre sexo-gênero-desejo. Baseia-se na ideia de que pessoas cisgêneras e heterossexuais são naturalmente superiores ou “mais normais” do que as pessoas trans e homossexuais. 16 • psicologia, travestilidades e transexualidades de gênero, a psicologia brasileira se reinventa. Tais parcerias teóricas têm abalado o conjunto de enunciados das psicologias consideradas clássicas e rompido definitivamente com concepções psicologizantes, essencialistas, patologizantes e individualizantes que pressupõem a existência de um sujeito universal e a-histórico. Ao dimensionar o sujeito nas complexas tramas históricas e sociais que orientam os modos pelos quais se pode (ou não) experienciar o gênero e a sexualidade, a psicologia tem podido pensar desde outro paradigma que resiste e não cede às lógicas da patologização dos gêneros, e no atual contexto à (re) patologização das sexualidades. Neste cenário, importantes instituições e movimentos sociais nacionais e internacionais têm se manifestado e constituído uma agenda de luta constante para que as expressões de gênero, de travestis e transexuais deixem de ser consideradas patologias, como é o caso da Campanha Internacional Stop Trans Pathologization, mobilizada desde 2012, pela retirada da classificação dos processos de transição entre gêneros como transtorno mental dos catálogos diagnósticos (o DSM, da Associação Psiquiátrica Estadunidense, e o CID, da Organização Mundial de Saúde). Nesse sentido, em apoio à luta das pessoas travestis e transexuais por visibilidade e direitos, o Conselho Federal de Psicologia tem se manifestado em prol da despatologização das expressões trans produzindo campanhas e materiais diversos de orientação à categoria profissional e para a sociedade, o que culminou na recém-criada Resolução CFP nº 01/2018, que estabelece normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas transexuais e transexuais. Esse atual posicionamento do Conselho Federal de Psicologia ratifica a emergência de uma revisão crítica por parte da profissão, abrindo caminho para uma revisita à trajetória histórica da Psicologia, que nos mostra o quanto contribuímos para os processos de normalização e patologização das expressões humanas consideradas fora da norma. Um histórico que fez com que a Psicologia fosse convocada por diferentes setores da sociedade para corroborar com práticas de correção, coerção e patologização de comportamentos considerados “desviantes”. Ao longo dos anos, diferentes psicologias, bem como o Sistema Conselhos de Psicologia, têm se mantido vigilantes para que essas 17 • psicologia, travestilidades e transexualidades práticas que individualizavam problemas de ordem social não se repitam. A Psicologia tem problematizado os efeitos da naturalização dos processos de exclusão e dos dispositivos reguladores dos corpos, dentre eles o dispositivo da diferença sexual, que se sustenta por uma noção binária e linear entre o sexo o gênero (Mulher/vagina/feminina versus homem/pênis/masculino). Uma divisão de base biologicista que não reconhece as expressões de gênero como distintas do sexo, reforçando a ideia de uma “verdadeira mulher” e de um “verdadeiro homem”, preservando relações sociais hierárquicas entre homens e mulheres pautados em um entendimento hegemônico de corpos e de gênero a partir da genitália. Insistir nesse discurso que toma o binarismo homem e mulher, macho e fêmea como única forma de compreensão do campo de gênero, nada mais é que a regulação do poder que naturaliza e instaura a cisheteronormatividade como condição inerente à vida, e, portanto, à existência dos corpos, gêneros e desejos. Nesse sentido, o Conselho Regional de Psicologia de Santa Catarina (CRP-12) tem desenvolvido diversas ações, de modo a orientar e fomentar o engajamento das(os) psicólogas(os) para uma atuação em direitos humanos de modo ético e político, especificamente no que se refere à despatologização das experiências travestis e trans. Considerando uma perspectiva crítica e social dos diferentes vetores de opressão vivenciados por esta parcela da população brasileira e debatendo os aspectos históricos e políticos que possibilitaram a produção de discursos biomédico/psiquiátricos, jurídicos e psis que contribuem, reforçam e fazem a manutenção da patologização. As ações e problematizações do GT Gênero e Sexualidades sobre a temática Alinhado a posicionamentos éticos e políticos sobre os modos de se fazer psicologia, o Grupo de Trabalho (GT) Gênero e Sexualidades, vinculado à Comissão de Direitos Humanos do CRP-12, realizou uma 18 • psicologia, travestilidades e transexualidades série de atividades que visaram à orientação de profissionais e estudantes de Psicologia e demais interessadas(os) nas questões relativas à despatologização das transexualidades e travestilidades. O referido GT foi criado no segundo semestre de 2016 e vem desenvolvendo diversas ações, como orientação junto à categoria profissional de psicólogas(os); participação em eventos com temáticas sobre gênero e sexualidades; atuação no controle social local – ocupando uma cadeira no Conselho Municipal de Direitos LGBT de Florianópolis (Gestão 2017-2018); aula pública; organização e participação em audiência pública; produção de material informativo; lançamento de campanha; oficinas na sede do CRP-12, localizada em Florianópolis, e nas subsedes, localizadas nas cidades de Criciúma, Joinville e Chapecó. Em cada uma destas cidades das subsedes, foram realizadas duas oficinas, com duração de três horas cada e que tiveram como foco principal, discussões em torno da construção de perspectivas despatologizantes nas diversas práticas psicológicas. A primeira oficina, “Implicações ético-políticas da psicologia frente às questões trans”, teve como objetivo promover um debate sobre o compromisso da Psicologia diante da produção histórica de categorias patologizadoras e excludentes que marginalizam pessoas travestis e trans. Já a segunda oficina, “A produção de documentos psicológicos para pessoas trans”, teve como objetivo produzir uma reflexão sobre uma ética despatologizante na produção de documentos psicológicos. Além dessas ações, destacam-se os dois seminários, realizados em Florianópolis, que contou com a presença de importantes pesquisadoras(es) e militantes brasileiras(os) que trouxeram grandes contribuições que problematizaram o papel da Psicologia em prol dos direitos e da despatologização das expressões de gênero e sexualidades. O “I Seminário Despatologização Travestilidades e Transexualidades: contribuições da Psicologia4 e o “II Seminário Despatologização 4 Realizada em junho de 2016 na gestão do VIII Plenário do CRP-12. A gravação do evento na íntegra pode ser conferida no seguinte link: https://www.youtube.com/ watch?v=WjSqHLBSgbY&t=3514s. 19 • psicologia, travestilidades e transexualidades das Travestilidades e Transexualidades: Psicologia e Práticas de Resistência em tempos de retrocessos de direitos sociais”5. Assim, destacamos a partir daqui alguns pontos trazidos por psicólogas(os) e estudantes de psicologia, o que nos fez refletir sobre o quanto as questões de gênero e sexualidades ainda precisam ser mais bem desenvolvidas por nós, profissionais da psicologia. Um fator preocupante é ainda o número reduzido de discussões críticas sobre gênero e sexualidades na maior parte dos currículos de formação em Psicologia. Isso se torna um fator problemático na medida em que as(os) profissionais da psicologia são constantemente convocadas(os) como técnicas(os) para falarem e produzirem documentos psicológicos sobre as pessoas travestis e trans. Observamos que a inexistência de conhecimento aprofundando, e principalmente sob uma base crítica por parte das(os) profissionais, tende a levá-las(os) a considerações, por vezes ingênuas, do ponto de vista da criticidade, ou até mesmo preconceituosas e discriminatórias, ora pela via de discursos patologizantes, buscando-se explicações para a origem e a causa das travestilidades e transexualidades, ora pela retomada e manutenção do discurso de um sujeito humano universal e a-histórico, que desconsidera os marcadores de gênero, sexualidades, classe, raça/etnia etc. Dessa forma, consideramos importante que as(os) psicólogas(os) possam fazer uma avaliação das demandas que surgem à Psicologia, analisando de que modo estão diretamente relacionadas a uma questão ética e política, visto que é no mínimo perigosa a ausência de um viés distante da leitura histórica e política da realidade, considerando que somos profissionais demandados para falar sobre gênero e sexualidades nos mais diversos espaços. Urge considerarmos gênero e sexualidades não apenas como variáveis, mas como categorias analisadoras fundamentais para compreender nossos modos de organização social, política e econômica, bem como a produção de subjetividades. 5 Realizada em junho de 2017 na gestão do VIII Plenário do CRP-12. A gravação do evento na íntegra pode ser conferida no seguinte link: https://www.youtube.com/ watch?v=kLIHxxwwmlo. 20 • psicologia, travestilidades e transexualidades “Somos todos humanos, somos todos iguais” Durante as atividades desenvolvidas pelo GT Gênero e Sexualidade, um dos argumentos recorrentes nos espaços que circulamos, e também via e-mail era o de que, ao evidenciarmos as diferenças de gênero, raça/etnia, orientação sexual, classe..., estaríamos acirrando a desigualdade e a exclusão, já que nossa profissão é orientada por uma única categoria, a de “humano”. Compreendemos que esses desconfortos manifestados por profissionais da Psicologia dizem respeito a uma histórica prática da Psicologia em considerar o sujeito de forma a-histórica e universal, descontextualizado de fenômenos históricos e culturais, ou ainda centrando todas as questões unicamente na pessoa ou na história “pessoal” do indivíduo. Outra fala que nos chamou a atenção, considerando as atividades do GT que tinham como proposta a crítica à patologização das travestilidades e transexualidades foi o desconhecimento por parte de profissionais da Psicologia e estudantes sobre a diferença entre orientação sexual e identidade de gênero. Essa visão desconsidera que o que reconhecemos como humano é atravessado por nossas concepções hegemônicas e normas sociais, que produzem noções jurídicas, biológicas e psis sobre os corpos. É importante destacar que o modelo de sociedade capitalista e neoliberal é permeada por lógicas que apostam na ideia da “igualdade” como dispositivo para definir o que é humano e os seus direitos, desconsiderando e/ou deslegitimando, por vezes, as diferenças. Entretanto, a questão que propomos é a de problematizar “qual o ideal regulatório de humanidade opera quando convocamos a igualdade para definir os direitos para todas e todos, sem considerar as diferenças de gênero, raça/etnia, orientação sexual, identidade de gênero, classe, deficiência, entre outras?”. Essa perspectiva de análise sobre o mundo e sobre os sujeitos influenciará diretamente no entendimento de que apenas algumas pessoas são dignas de direitos, desde que seu modo de vida se adeque aos ideais normativos daquilo que se considera humano. Essa definição será determinante para a produção de mortes, violências, opressões e 21 • psicologia, travestilidades e transexualidades discriminações vivenciadas pelos mais diversos segmentos vulnerabilizados na nossa sociedade, pois dita a regra de quais vidas valem a pena proteger e salvar e quais devem de fato ser aniquiladas e/ou corrigidas. É exatamente por isso, que apostamos na radical importância de se considerar uma perspectiva interseccional, isto é, uma compreensão que considera as diferenças dentro de uma realidade sociopolítica e que produz noções de sujeitos e constroem relações sociais. Obviamente que estas constatações devem ser analisadas considerando que apenas muito recentemente alguns cursos de Psicologia começaram a implementar nas suas matrizes curriculares disciplinas de gênero e sexualidades com um viés crítico da realidade social. Até recentemente eram comuns práticas nas quais o gênero e as sexualidades eram analisados somente como variáveis da experiência humana e não como categorias analíticas de constituição do sujeito e da vida em sociedade. A ausência dessa discussão crítica tornava possível que questões como estas fossem tratadas em disciplinas como a psicopatologia ou disciplinas que consideravam as existências LGBT sob a lógica do desvio, da perversão, do transtorno mental. Outro ponto a se considerar importante para a visibilidade das discussões de gênero e sexualidade é ascensão dos movimentos sociais LGBT e Feministas que passaram a reivindicar direitos sociais e a tensionar visões que individualizavam questões de ordem histórica e social, bem como as práticas corretivas e normalizadoras presentes no discurso “psi” nas quais as experiências “fora da norma” eram tidas como objeto de estudo. A entrada de pessoas que historicamente foram impossibilitadas de acessar os espaços acadêmicos nas universidades possibilitou ampliar a produção de conhecimento considerando as desigualdades e violências presentes na nossa sociedade. As demandas relacionadas à produção de documentos psicológicos para as pessoas trans No Conselho Regional de Psicologia de Santa Catarina buscamos avançar na discussão sobre as demandas de produção de documentos 22 • psicologia, travestilidades e transexualidades psicológicos por parte das(os) profissionais do judiciário e do campo da saúde, em alguns casos solicitados até mesmo pelas escolas. O viés jurídico e biomédico exigia até muito recentemente, antes da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em 1º de março de 20186, que as pessoas travestis e transexuais apresentassem em seu processo judicial um documento produzido pelas(os) psicólogas(os) como uma forma de serem reconhecidas(os) como “verdadeiras(os)” e dignas(os) do acesso e garantia aos direitos fundamentais, tais como sua própria identidade de gênero. Desse modo, buscamos problematizar durante as oficinas e atividades do GT a postura ética profissional nestes casos, ao mesmo tempo em que salientamos a importância de considerarmos as demandas trazidas por pessoas travestis e transexuais que buscavam, a partir dos documentos produzidos por nós, a cidadania conferida pela retificação do nome civil, pela terapia hormonal e por meio de intervenções cirúrgicas que promovam a adequação ao gênero com o qual se reconhecem. Este olhar torna-se relevante, justamente por sabermos da conjuntura histórica e cultural de preconceitos e processos de exclusão em que estas pessoas estão submetidas, como as dificuldades de acesso, vínculo e permanência nos espaços de educação, saúde, trabalho e emprego. Dificuldades estas que tendem a se agravar no cenário de instabilidade política atual em que um projeto de sociedade neoliberal e concepções fundamentalistas religiosas tomam força. Uma das demandas recorrentes antes da decisão do STF era pela produção de documentos psicológicos voltados ao processo de retificação de nome civil e sexo nos documentos de identificação de pessoas travestis e trans. Em termos de história, é muito recente que as pessoas travestis e trans não necessitem mais de um documento “psi” para terem acesso ao direito básico de serem reconhecidas(os) no modo como se autodeterminam. O fato é que o contexto brasileiro de pouco menos de um ano atrás exigia a produção destes documentos. E, por esse motivo, o Sistema Conselhos de Psicologia vinha 6 Decisão que autoriza pessoas trans a retificarem o nome civil sem a exigência de cirurgia ou processo judicial. 23 • psicologia, travestilidades e transexualidades desenvolvendo ações para minimizar os impactos destas formas de opressões, tais como a formulação de diferentes notas técnicas por meio dos conselhos regionais. Nesse sentido, passamos a afirmar, naquele momento, a não necessidade de ser obrigatório que a modalidade de documento produzida para estes fins seja relatório ou laudo psicológico, já que, entre as modalidades de documento previstas até então pela Resolução CFP nº 007/2003 que Institui o Manual de Elaboração de Documentos Escritos produzidos pelo psicólogo7, estava o parecer. E isso se configurou como uma opção mais interessante à demanda por se tratar de “[...] um documento fundamentado e resumido sobre uma questão focal do campo psicológico cujo resultado pode ser indicativo ou conclusivo” (CFP, 2003). Naquela ocasião, a indicação do uso do parecer para responder às solicitações jurídicas acerca das questões trans se devia ao fato de ser um instrumento que possibilita que a(o) psicóloga(o) possa explicar, aprofundar e olhar para as condições de possibilidades em que sujeitos estão submetidos a determinadas normativas e processos excludentes, e se posicionar. Ou seja, permitia problematizar e deslegitimar o discurso da patologização, bem como expor e assegurar a autoderminação e/ou autoatribuição do gênero pela própria pessoa requerente. Entende-se com isso que se aliar e posicionar-se desse modo crítico, ético e político é um dispositivo de garantia de direitos que minimiza o sofrimento em decorrência do preconceito social e das múltiplas formas de discriminação e violação de direitos. Nesta modalidade de documento, a(o) profissional pode assumir uma perspectiva de não localizar no sujeito a problemática em questão, mas especialmente nos aspectos “exteriores” em que este está submetido e se produz como sujeito. Outro aspecto importante é o fato de o documento permitir que sejam apresentadas no texto argumentações teóricas e científicas para responder e elucidar uma “questão problema”. Dessa forma, acreditamos que foi possível utilizar deste instrumento da Psicologia para que as(os) solicitantes (no caso o judiciário) 7 Atualizada em 2019 para Resolução CFP nº 006/2019. 24 • psicologia, travestilidades e transexualidades tivessem ciência sobre como a Psicologia se posiciona em relação às questões trans, colocando-se contrária à patologização e demarcando a autonomia da pessoa na autodeterminação de seu gênero. Demarcamos que, quando os documentos estão embasados em instituições que defendem a despatologização dos gêneros (Conselho Federal de Psicologia, Associação Psicológica Americana e Sociedade Britânica de Psicologia) e nos direitos humanos (Princípios de Yogyakarta, Organização Mundial da Saúde e Organização das Nações Unidas), é possível à psicologia adotar um posicionamento crítico considerando o histórico de luta das pessoas travestis e trans, uma vez que o principal fator determinante de sofrimento para pessoas travestis e transexuais é o próprio sistema cisheteronormativo que estrutura nossa sociedade e impossibilita que suas expressões de gênero sejam reconhecidas como possibilidade de expressão humana. Entretanto, cabe avaliarmos que essa questão ultrapassa a discussão em torno da modalidade de documento psicológico, mas, sobretudo, diz respeito à racionalidade patologizante ou despatologizante que vai sustentar a prática profissional da(o) psicóloga(o). Diante disso, buscamos avançar a discussão no sentido de problematizar o compromisso ético-político da psicologia frente às questões travestis e trans, dentre elas a demanda que existia pela produção de documentos psicológicos. Portanto, salientamos que a atuação das psicólogas(os) deve estar orientada por uma concepção de direitos humanos, de autonomia à livre expressão de gênero e sexualidade, compreendendo isso como uma forma de promoção de saúde integral do sujeito. Isto é, práticas que estejam em consonância com o que tem sido pesquisado no campo da psicologia sobre as questões de gênero e sexualidades e com os marcos legais que fundamentam os direitos humanos. Para continuar a conversa... As falas trazidas pelas psicólogas(os) e estudantes nos possibilitaram refletir e problematizar sobre o modo como profissionais psicólogas(os) têm atuado em relação ao sofrimento ético-político 25 • psicologia, travestilidades e transexualidades apresentados por sujeitos vulnerabilizados socialmente, como é o caso das pessoas LGBT. Percebemos nas nossas ações um desconhecimento de que a travestilidade e a transexualidade são reconhecidas pelo saber biomédico em categorias psiquiátricas e de como a nossa sociedade é permeada por mecanismos da patologização que contribuem para a segregação, exclusão e mortes de pessoas travestis e trans. Diante disso, percebemos o quanto algumas práticas da psicologia ainda estão muito distantes das experiências vivenciadas pelas pessoas travestis e trans em seu cotidiano. Consideramos que as ações do GT Gênero e Sexualidades, além de disseminar as discussões sobre a articulação da psicologia com as questões trans para o interior do estado, regiões que, como constatamos, ainda carecem desses tipos de debates, também funcionou como um dispositivo de análise e de implicação que aproximou as(os) participantes à temática apresentada de uma forma crítica e compromissada socialmente. Referências BAGAGLI, Beatriz Pagliarini. Máquinas discursivas, ciborgues e Transfeminismo. Revista Gênero, Niterói, v. 14, n. 1, p. 11-27, 2013. JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. Brasília: Autor, 2012. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Resolução nº 007, de 14 de junho de 2013. Institui o Manual de Elaboração de Documentos Escritos produzidos pelo psicólogo, decorrentes de avaliação psicológica e revoga a Resolução CFPº 17/2002. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/ uploads/2003/06/resolucao2003_7.pdf. Acesso em: 10 fev. 2019. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Resolução nº 01, de 29 de janeiro de 2018. Estabelece normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas transexuais e travestis. Disponível em: https://atosoficiais. com.br/cfp/resolucao-do-exercicio-profissional-n-1-2018-estabelece-normas-de-atuacao-para-as-psicologas-e-os-psicologos-em-relacao-as-pessoas-transexuais-e-travestis?origin=instituicao&q=001/2018. Acesso em: 10 fev. 2019. 26 • psicologia, travestilidades e transexualidades CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Resolução nº 006, de 29 de março de 2019. Institui regras para a elaboração de documentos escritos produzidos pela(o) psicóloga(o) no exercício profissional e revoga a Resolução CFP nº 15/1996, a Resolução CFP nº 07/2003 e a Resolução CFP nº 04/2019. Disponível em: https://atosoficiais.com.br/lei/elaboracao-de-documentos-escritos-produzidos-pelo-psicologo-decorrentes-de-avaliacao-psicologica-cfp?origin=instituicao. Acesso em: 28 abr. 2019. CRP-SC. Despatologização das transexualidades e travestilidades: contribuições da Psicologia. 24 de jun. 2016. (3h 19 min. 31 s). Disponível em: https://www. youtube.com/watch?v=WjSqHLBSgbY&t=3514s. Acesso em: 10 fev. 2019. ENFOCO FILMES. II Seminário despatologização das travestilidades e transexualidade. 27 jun. 2017. (2h 54 min. 15 s). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kLIHxxwwmlo. Acesso em: 10 fev. 2019. 27 • psicologia, travestilidades e transexualidades VOLTA AO SUMÁRIO l PATOLOGIZAÇÕES, AUTODETERMINAÇÕES E FÚRIAS – UMA BREVE CARTA DE AMOR Céu Cavalcanti Por isso escrevo, por todas as travestis que não alcançaram saber que estavam vivas, pela culpa e vergonha de não serem corpos para serem amados e morreram jovens, antes de serem felizes. Morreram sem haver escrito nem uma carta de amor. (Cláudia Rodriguez – Manifesto Horrorista Travesti1). Rio de Janeiro, inícios de 2019 Caras leitoras, caros leitores. Tomo a liberdade de iniciar esse ensaio em formato de carta por, durante o início da escrita, recordar três elementos. Em primeiro, gostaria de compor conversas íntimas, 1 Conferir em: https://issuu.com/isidoracartoneraeditorial/docs/manifiesto_horro-rista_y_otros_escri. próximas, espaços de diálogos que nos convidem às trocas. Um contorno de cartas sempre parece conseguir tocar nessas composições de algum pacto entre nós – eu que aqui por hora escrevo, e você que por hora me lê. Como segundo ponto que me convida a tecer uma carta-ensaio, lembro-me de Peter Sloterdijk quando, ao iniciar seu livro “Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo”, traz que livros talvez sejam somente cartas dirigidas aos amigos, apenas mais longas. Aqui, ele aponta as trocas que se possibilitam a partir da escrita e cita Nietzsche quando lembra que para este a escrita seria “[...] o poder de transformar o amor ao próximo ou ao que está mais próximo, no amor à vida desconhecida, distante, ainda vindoura” (SLOTERDIJC, 2000, p. 10). Como terceiro e mais incrustrado ponto, lembro-me da Cláudia Rodriguez que inicia seu manifesto dedicando toda a sua escrita àquelas entre nós que morreram jovens, sem nunca haver escrito sequer uma carta de amor. A dedicatória de Cláudia, embora pequena, aponta-nos elementos fundamentais para que possamos observar algumas das relações que as cisgeneridades estabelecem com as vidas trans. Morrer sem haver escrito sequer uma única carta de amor é uma poderosa metáfora que fala sobre uma ausência absoluta das possibilidades de afeto. Fala de corpos que supostamente não foram feitos para serem amados e vidas que se esgotam antes mesmo de chegar o tempo de alguma felicidade. Cláudia, com seu manifesto, abre uma densa relação com cartas enquanto elementos metafóricos que apontam para a própria possibilidade de comunicação, troca e afetividade. Assim pensando, alimento meu desejo de que esse ensaio se vista das polifonias das cartas enquanto compomos espaços de diálogos. Apesar de viver a era das comunicações rápidas, pensar em cartas me remete a um sentido de proximidade composto por afetos em uma perspectiva de produzir pontes. Glória Anzaldúa (2010) nos escreve uma carta2 e, com isso, nos convida ao potente ato da escrita. Sua carta retumba enfática ao lembrar o quanto ainda mais fundamental se faz a escrita quando somos aquelas indesejáveis, quando nossas 2 Publicada na Revista Estudos Feministas, com o título “Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo”. 29 • psicologia, travestilidades e transexualidades vidas têm menor valor na perversa hierarquia social que transforma diferenças em desigualdades. Ao pensar em cartas, lembro-me, portanto, de Anzaldúa em paralelo a Cláudia Rodriguez quando esta pauta a importância de políticas da escrita para pessoas trans e travestis. Muito me emociona o Manifesto horrorista travesti, pois sempre me recorda as linhas de violência que muitas vezes ainda parecem ser inevitáveis para tantas de nós. Nesse exato momento penso em nossa comunidade trans, penso na Cláudia e no seu apontamento sobre todas que morreram sem ao menos ter sido felizes, crendo não possuir corpos para serem amados, sem nunca haver escrito uma única carta de amor. Este texto é, ao seu modo, uma carta de amor Poucas semanas atrás, uma de nós teve o coração arrancado com cacos de vidro por, segundo o delírio do assassino sorridente, ser ela a própria encarnação de um demônio. O coração físico foi retirado pelo assassino e levado embora. Em seu lugar, ele põe uma imagem de uma santa dentro do corpo esburacado. Em nível simbólico, esse foi o aviso mais cruel possível sobre o limite extremo de desumanização a que podemos ser submetidas apenas por viver em nossas existências trans. E nossa vida é por um fio ou assim, em alguns dias, parece ser. Podemos pensar necropolítica como um conceito que descreve o manejo do horror e da violência como exercício de poder e soberania. Vivendo no país que mais mata pessoas trans no mundo, e lembrando (ou sendo lembradas) constantemente que aqui nossa expectativa de vida é ainda de 35 anos (um pouco menos se você for uma pessoa trans negra), observar as linhas necro é exercício cotidianamente nos imposto. Estranha dicotomia – observar a morte e tentar produzir vida. Mas apesar de densa, essa relação nos ajuda a conversar sobre pontos ainda fundamentais para que entendamos o processo que instaura a cisgeneridade como vivência hegemônica e, como consequência, produz marginalização e aniquilamento de vidas não cisgêneras. O sentimento 30 • psicologia, travestilidades e transexualidades por nós percebido é que muitas vezes parece haver algum acordo entre quase todas as instâncias de modo a nos negar as possibilidades de vida e reconhecimento. Não me espanta quando praticamente todas as primeiras matérias que noticiam o assassinato da moça que teve o coração arrancado a trataram completamente no masculino e, em movimentos muito mais difíceis do que perguntar a alguém o seu nome, buscaram documentos de registro para, com algum perverso gozo, noticiá-la expondo ao máximo possível um nome que não era seu, como que desmascarando alguma farsa engendrada por ela. Entre nós, temos um termo para acontecimentos como este: Era de Cisperar! Por falar em como um ideal de cisgeneridade autocentrada se estabelece como verdade absoluta a partir da negação do corpo trans, vimos também recentemente uma grande matéria no fantástico que, com ares policialescos se propôs a resolver o mistério “da mulher que se passou por homem por 50 anos”. Será que, em pleno 2019, não ocorreu a ninguém de toda a equipe de jornalismo que ELE poderia ser um homem trans? O ódio a essa possibilidade e a necessidade de desmascarar a suposta farsa que constitui a transgeneridade é tanta que nossas autodeterminações, nossos processos de transição e todos os circuitos de vida e afeto que tecemos a partir disso tornam-se inteligíveis para pessoas que acreditam demasiado em sua suposta natureza cisgênera (inclusive algumas pessoas cisgêneras LGBs). Autodeterminação é, portanto, um conceito político em disputa. E a desigualdade posta nos diferentes circuitos de enunciação se dá ainda hoje pela legitimação coletiva da Psiquiatria enquanto campo de saber que teria algo a falar sobre pessoas trans. Acontece, caras pessoas leitoras que até aqui me acompanham, que a Psiquiatria com sua pretensão à cientificidade positivista e seu viés universalista, cria e termina por impor uma série de critérios diagnósticos levianos que tanto nos cobra determinadas posições para termos alguns acessos, quanto acaba por engendrar subjetividades profundamente interpeladas pelas exigências dos critérios diagnósticos. Nesse sentido, cabe aqui já com alguma intimidade, compartilhar que os níveis da maquinaria patologizante são tão abusivos que mesmo esta que vos escreve, em uma determinada consulta com endocrinologista, foi 31 • psicologia, travestilidades e transexualidades “diagnosticada” com portando “apenas” um “leve transtorno de identidade de gênero”. O médico (que nem ao menos era psiquiatra) chegou a esta percepção após uma série de recusas minhas em responder questões aleatórias sobre meus brinquedos de criança e quais pessoas eram alvo de meu desejo erótico. Enquanto recusava me submeter ao jogo discursivo, eu tentava explicar ao médico que, sendo psicóloga, e na ocasião escrevendo uma dissertação em Psicologia, poderia lhe explicar e indicar bibliografias que apontavam que o procedimento ali encenado não tinha nenhuma relação com a medição simples de minhas taxas hormonais. Como consequência, além de não abrir possibilidades de diálogo, ignorando solenemente qualquer argumento meu, ao concluir que eu não era tão “trans de verdade”, ele me receitou uma dosagem de hormônio mais baixa do que o indicado. Como efeito dessa primeira relação atravancada com a patologização da minha experiência através do corporativismo médico, as dinâmicas de poder postas me ensinaram a não confiar no campo da medicina hegemônica que pauta vidas trans através da embaçada lente do transtorno, enquanto todo o campo de saber/poder se veste de autoridade suprema sobre a “verdade” trans. A experiência de patologização, muito longe de ofertar cuidado, apenas reforçou em mim o desejo de automedicação como processo de vida. Extirpar partes importantes de minha subjetividade unicamente para agradar o profissional de saúde e receber dele a validação sobre quem eu poderia ser, definitivamente seria um processo de mortificação. Reitero, para pessoas trans, muitas vezes aprender e recorrer à automedicação se configura sim como um processo de vida diante de uma lógica de saúde que é ainda incapaz de nos enxergar em nossas singularidades e que, em nome da universalização de expectativas e critérios inviáveis, nos violenta. Recorri brevemente a essa digressão autocentrada por pensar que para que cheguemos a uma tão baixa expectativa de vida (baixa tanto quantitativa quanto qualitativamente), vários atravancões precisam estar somados. E a patologização, muito longe de nos ofertar saúde, é mais uma dessas pedras que nos dificultam acessos, redes e inviabilizam o próprio ato de caminhar. 32 • psicologia, travestilidades e transexualidades Tutela é uma palavra-chave aqui posta; e, ao nomear assim, ela nos ajuda a entender algumas dinâmicas às quais estamos sujeitos(as). Nos últimos anos, a psicologia enquanto campo teórico e prática profissional se remodela ao compor pensamento crítico sobre suas relações e as densas linhas de poder que se condensam nela e a partir dela. Com relação às vidas trans, podemos pensar que, no Brasil, o campo da Psicologia é atravessado por posições ambíguas e antagônicas. Por um lado, vemos profissionais que tomam para si a tarefa de compor novas relações, promovendo espaços de cuidado e acolhimento, questionando os princípios da patologização e buscando alianças com os movimentos trans. Esse polo abre margem para que inclusive pessoas trans possam também se apropriar do campo de saber da Psicologia, sendo apenas não mais objetos, mas assumindo protagonismos e fortalecimentos desde dentro dos discursos e práticas psis. No contraponto, vemos grupos conservadores que percebem na Psicologia importante nicho de mercado, capaz de emprestar discursos normalizantes que enquadrem as diferenças no campo das patologias e do que precisa ser corrigido. Esse modelo defende abertamente terapias de suposta reorientação sexual e de gênero, ainda que saiba de sua comprovada ineficácia, e dança perigosos passos que misturam Psicologia com religiões fundamentalistas. No cerne desses movimentos, pensar o lugar das pessoas trans através das grandes composições que disputam territórios e hegemonias é algo que me interessa no decorrer deste ensaio. Para tal, um marco temporal pertinente que pode ser aqui evocado enquanto divisor das relações institucionalmente estabelecidas com todo o segmento de pessoas trans é a Resolução CFP nº 01/2018, lançada em janeiro de 2018, que é a primeira resolução de um conselho de classes que visa a proteger as pessoas trans de violências transfóbicas praticadas cotidianamente sob o uso dos discursos da Psicologia. Não raro, ao estabelecer normas de atuação a serem seguidas por profissionais de psicologia quando atendendo pessoas trans, alguns pontos da nota merecem destaque. 1. O princípio da autodeterminação. 2. O uso da cisgeneridade como categoria analítica. 3. O reconhecimento de violências estruturais como atravessadores a serem considerados pela psicologia. 33 • psicologia, travestilidades e transexualidades Os três elementos listados, somados, fazem com que a resolução adquira relevância não só para o campo da Psicologia, mas também se configure como instrumental importante no diálogo dos movimentos trans com as mais diferentes instituições e ainda opere como importante precedente que, ao ser operacionalizado, convida diferentes espaços institucionais a também repensarem suas posições ante debates com vivências trans. Pensar sobre autodeterminação para as identidades trans é ir na contramão de um paradigma patologizante centrado no saber psiquiátrico enquanto espaço hegemônico a dizer sobre o que é e qual critério deve ter uma pessoa trans. Contudo, apesar de todo um aparato discursivo mobilizado durante todo o Século XX cujo objetivo foi catalogar e enquadrar as pessoas trans em moldes diagnósticos, precisamos cada vez mais recorrer à debates de outros campos de saber que, desde os anos 1970 avançam na construção de complexas teorias de gênero. Pensar sobre os processos de autoidentificação é desorganizar a suposta natureza autocentradada da cisgeneridade como único destino possível para todas as pessoas. Pautar autodeterminação, na medida em que nos convoca todas a entender os sinuosos meios de produção e agenciamento das verdades, reposiciona as linhas de poder que, até então, creditam ao onisciente profissional psi o estatuto de enunciar as verdades possíveis sobre pessoas trans. Seguindo o viés da autodeterminação, deslocamos esse aparato ao entender que são complexas as constituições de subjetividade e de narrativas que nos explicitem ao mundo, de modo que é desde sempre impossível categorizar as vivências trans em uma divisão binária de vivências verdadeiras ou falsas, a partir do critério eleito pela interpretação do próprio profissional de saúde. Lembro aqui uma narrativa que ouvi vários anos atrás, quando uma psicóloga dizia ser descrente com a verdade de mulheres trans que chegavam a seu consultório de calças. “– Como ela quer ser mulher e usa calça? Fico desconfiada de que ela não quer ser mulher assim”. Ela chegava a dizer isso publicamente, enquanto ela própria sempre usava calças jeans. Na mesma linha, lembro-me de um renomado profissional da Psicanálise brasileira que, alguns vários anos atrás, quando eu ainda era estudante 34 • psicologia, travestilidades e transexualidades de graduação, esteve em um evento na minha cidade explanando sobre sua enorme expertise no atendimento às pessoas trans ao mesmo tempo em que reforçava os supostos critérios diagnósticos e o sofrimento compulsório que precisávamos ter com nossos corpos para recebermos o correto diagnóstico. Na ocasião, eu ainda era iniciante nas leituras sobre gênero, de modo que não consegui elaborar nada para comentar; contudo, um amigo homem trans presente levantou a mão e disse que a fala não procede, pois ele próprio nunca teve problemas com seu corpo e vagina e não se considerava menos homem por isso. O renomado palestrante, de forma arrogante em um auditório lotado, disse ao homem trans que, na verdade, meu amigo não era trans, mas apenas um “confuso de gênero” e que deveria procurar um psicanalista para se decidir. Hoje, lembrando a cena, ela me chega ainda mais absurda e abusiva do que pude perceber na ocasião, e me chega a ser ridículo alguém indicar Psicanálise para uma pessoa trans porque ela não sofre com seu corpo, pois aquele profissional considerava que por sermos trans, necessariamente deveríamos sofrer. Não que não soframos com o processo de transição, mas aqui chamo atenção para a necessária percepção de que os sofrimentos, ainda inevitáveis, não decorrem de demandas individualizadas, centradas apenas em nós mesmos(as). Nossos sofrimentos, quando observados em proximidade sempre têm relações com as teias que nos capturam desde antes de nossas transições, em lógicas de violências e abusos por todos os lados. Entender aqui que há sofrimento nas populações trans implica, portanto, entender que este advém dos mesmos lugares e ideais que tornam nossa vida tão curta e dura. Sofrimento decorrente de violências sistêmicas, generalizadas e estruturais. Precisamos com urgência pensar sobre nossos sofrimentos, mas na mesma medida, precisamos com urgência estabelecer processos de desindividualização e desprivatização desse sofrimento, especialmente os que decorrem de transfobia em seus vários níveis. Mas aqui nos atentemos juntes, pessoas leitoras, desprivatizar não implica abandonar a percepção das linhas de singularidade que nos forjam em nossas próprias diferenças. Desprivatizar dores não é dessingularizar dores. E em relação às pessoas trans, é justamente o movimento de 35 • psicologia, travestilidades e transexualidades privatização da dor e recusa às singularidades que promove o viés patologizante com vazia pretensão universalista. Prestemos atenção. Ainda sobre as dores, ajuda-nos recordar Michel Foucault ([1977]1993) quando, no texto “Introdução a uma vida não fascista”3, nos aponta alguns cuidados constantes a tomar e, ao apresentar brevemente sua leitura do “O anti-édipo4”, situa alguns inimigos que, segundo ele, o livro de Deleuze e Guattari pretende combater. Entre eles, encontram-se os terroristas da teoria, os funcionários da Verdade e os deploráveis técnicos do desejo. Tais personagens são facilmente perceptíveis por qualquer pessoa trans que esteja atenta às posições sutis (às vezes, nem tão sutis também) de toda a gama de profissionais que passam a produzir carreiras sobre nossas dores. E estes aparecem em diferentes vias, enquanto terroristas da teoria, que há décadas escrevem sobre nossas dores, porém sem nenhuma implicação em sua transformação. Para estes, é impensável que alguma pessoa trans passe a também ocupar o lugar de construir teorias, especialmente quando nos apropriamos das performances discursivas historicamente criadas muito distantes de nossas vidas. Tal grupo se confunde com os outros dois, sendo terroristas da teoria, passam também a ser funcionários da Verdade, com V maiúsculo. Como se houvesse uma ordem divina sobre as coisas e que coubesse apenas a alguns poucos iluminados captar e traduzir as regras transcendentalmente estabelecidas para a humanidade. No terceiro grupo, os deploráveis técnicos do desejo, que passam a regular nossas subjetividades a partir do sintoma e da falta. Estes, por crerem demais na teoria, aniquilam nossos discursos e se vestem da vaidade de dizer sobre nós todas as nossas possibilidades, afirmando inclusive se somos pessoas “de verdade” ou apenas “confusos de gênero” que obviamente, precisam de alguma correção pela ferramenta psicanalítica (ou qualquer outra). 3 Trata-se de um prefácio realizado por Michel Focault ao livro “Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia” de Gilles Deleuze e Felix Guattari, publicado originalmente em “New York: Viking Press, 1977”. 4 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2010. 36 • psicologia, travestilidades e transexualidades Combater estes inimigos é, para Foucault, combater formas de microfascismo que se inserem em nossas vidas cotidianas e vão nos diminuindo, nos mortificando em níveis simbólicos, e garantindo trajetos de produção de dor rentável. Carniceiros que gozam nossas tragédias. Contudo, apesar de todos os vários pesares, não somente das dores precisamos falar. Aqui segue Foucault nos lembrando dos perigos de passar a operar sempre pelo negativo e pela reação. Atuar pelas linhas da tristeza e pelas políticas do medo apenas produz em nós sufocamento e morte. Talvez um grande segredo de sobrevivência que nossas ancestralidades trans nos sopram aos ouvidos é justamente como extrair alegria, coletividade e mesmo escárnio como ferramentas de guerra. Produzir felicidades ainda que breves em meio a um mundo hostil adquire a complexidade da produção das linhas de fuga que, por momentos, desestabilizam os destinos que as normas da cisgeneridade tóxica e compulsória traça para nós. Recentemente pude visitar um amigo muito querido que passou pela transição de gênero paralelamente a mim. Além dessa temporalidade, ele compartilha comigo o fato de ter também se graduado em Psicologia, elemento que nos fez habitar as mesmas redes desde muito antes da transição, pois compúnhamos, na mesma época, um movimento de estudantes de Psicologia das regiões Norte-Nordeste. O que me chamou atenção foi perceber que a vida dele seguia com certas levezas, que ele encontrava espaços dentro e através da Psicologia, que ele se inseriu em grupos onde sua autodeterminação é inquestionável e suas opiniões constantemente buscadas e validadas. E me peguei emocionada em ver que, durante e pós-transição, ele encontrou lugares confortáveis no mundo, onde a vida e os afetos se fazem tão possíveis quanto para outras pessoas cis de nossos convívios. É complexo e ambíguo me afetar por levezas e possíveis. Isso me apontou que, em nível de coletividade, nossas vidas trans têm sido ainda tão atravessadas por impedimentos e negativas que, inevitavelmente a vida mais possível de qualquer “um/uma/ume” de nós torna a minha própria vida um pouco mais possível e respirável. Esse também é um dos nossos segredos de sobrevivência: mesmo sem perceber, agimos por contágio e proliferação. quando, ainda que sendo única, percebo 37 • psicologia, travestilidades e transexualidades que os espaços que passam a conviver comigo se tornam acolhedores, é maior a chance de que esses mesmos espaços sejam acolhedores para outras pessoas trans que vierem depois de nós. E aqui podemos perceber um ponto nodal, na temporalidade ambígua que configura nosso presente, somos a primeira geração de pessoas trans que conseguem ir furando estatísticas absurdas. Começamos aos poucos e nos últimos anos a sermos vistas em espaços de pós-graduação, em cargos os mais variados, em salas de aula, coordenando equipes, entre muitas outras possibilidades. Não à toa, somos herdeiros(as) de toda uma história de muito sangre, dor e desamor. Jota Mombaça nos lembra de que, apesar dos avanços, o mundo segue sendo nosso trauma. Contudo, nossas vidas, ainda que impossibilitadas por engessamentos e aridez, seguem se manifestando umas nas outras e, ambiguamente, apesar de um país que nos mata tão cedo e de tantas formas, acabamos por ser imorríveis. Àquelas de nós cuja existência social é matizada pelo terror; àquelas de nós para quem a paz nunca foi uma opção; àquelas de nós que fomos feitas entre apocalipses, filhas do fim do mundo, herdeiras malditas de uma guerra forjada contra e à revelia de nós; àquelas de nós cujas dores confluem como rios a esconder-se na terra; àquelas de nós que olhamos de perto a rachadura do mundo, e que nos recusamos a existir como se ele não tivesse quebrado: eles virão para nos matar, porque não sabem que somos imorríveis. Não sabem que nossas vidas impossíveis se manifestam umas nas outras. Sim, eles nos despedaçarão, porque não sabem que, uma vez aos pedaços, nós nos espalharemos. Não como povo, mas como peste: no cerne mesmo do mundo, e contra ele. (MOMBAÇA, 2016, p. 1).5 Por imanência, nossas vidas aos poucos ficam cada vez menos impossíveis. Essas aberturas são resultantes de complexos processos sociais e políticos que atravessam historicamente os movimentos trans e suas pautas. E a possibilidade de produção de alianças entre diferentes 5 Texto completo em: https://piseagrama.org/o-mundo-e-meu-trauma. 38 • psicologia, travestilidades e transexualidades gentes que, desde seus espaços, toma também para si a tarefa de nos ajudar a respirar. Através dessas alianças, nossas vidas são possibilitadas e os sufocamentos evitados. Com um conjunto de potentes alianças, é que hoje temos em vigência a Resolução CFP nº 01/2018. Por isso, refazer os pactos coletivos de morte e os substituir por pactos de vida coletiva, vivível e leve, é fundamental para que possamos, desde hoje, inventar futuros trans. O contato recente com o meu amigo homem trans psicólogo, lembrou-me de algo que, às vezes, diante de tanta dor coletiva, eu esqueço: o direito à leveza enquanto política de vida é um dos elementos mais fundamentais de todas as nossas lutas trans. Vidas leves são necessariamente vidas reconhecidas, respeitadas e vivíveis. E quando vidas trans começam a poder estar nesses lugares, sem em hipótese alguma negar sua própria experiência trans, há um enorme efeito político a se produzir. Pesos, sufocamentos e silêncios partem dos mesmos campos, e aqui Audre Lorde nos ajuda a colocar em análise os modos como as políticas do medo se transformam em silêncios, o que acaba nos levando ao sufocamento por um mundo onde nossas palavras próprias parecem ser abafadas pelas gramáticas das hegemonias normativas. Ela, de forma enfática, afirma o quanto nossos silêncios nunca vão nos proteger, muito pelo contrário, pois eles próprios se engendram nos nebulosos circuitos de mortificação constante das nossas diferenças. Estabelecer alianças, para Audre, somente é possível com a superação dos silêncios enquanto destino. Eu ia morrer cedo, tivesse falado ou não. Meus silêncios não tinham me protegido. Tampouco protegerá a vocês. Mas cada palavra que tinha dito, cada tentativa que tinha feito de falar as verdades que ainda persigo, me aproximou de outras mulheres, e juntas examinamos as palavras adequadas para o mundo em que acreditamos, nos sobrepondo a nossas diferenças. E foi a preocupação e o cuidado de todas essas mulheres que me deu forças e me permitiu analisar a essência de minha vida. As mulheres que me ajudaram durante essa etapa foram negras e brancas, velhas e jovens, lésbicas, bissexuais e heterossexuais, mas todas compartilhamos a luta da tirania do silêncio. Todas 39 • psicologia, travestilidades e transexualidades elas me deram a força e a companhia sem as quais não teria sobrevivido intacta. Nessas semanas de medo agudo – na guerra todas lutamos, sutilmente ou não, conscientemente ou não, contra as forças da morte – compreendi que eu não era só uma vítima, mas também uma guerreira. que palavras ainda lhes faltam? O que necessitam dizer? que tiranias vocês engolem cada dia e tentam torná-las suas, até asfixiar-se e morrer por elas, sempre em silêncio? Talvez para algumas de vocês hoje, aqui, eu represento um de seus medos. Porque sou mulher, porque sou negra, porque sou lésbica, porque sou eu mesma – uma poeta guerreira Negra fazendo seu trabalho. Pergunto: vocês, estão fazendo o seu? (GEDELÉS, 2015, [s. p.]).6 quais palavras nos faltam? Como inventar palavras sobre nossas vidas que, seguindo sentidos opostos ao da universalização patologizante que nos categoriza e separa, possam gerar sementes de articulação coletiva? Inventar palavras que promovam pontes e cuidado. Inventar sobrevivências é, em alguma medida, inventar redes. E, como nos lembra Audre, lutar contra as tiranias do silêncio e “juntes” examinar as palavras que julgamos mais adequadas para nós e para o mundo é um potente ato de produzir vida. Por fim, termino essa carta ensaio nos desejando a “todes” futuros atravessados pelas políticas da leveza. que possamos criar estratégias diante das linhas de medo e deslegitimação que nos tentam impor a todo o momento. que nossas alegrias nos salvem dos engessamentos e adoecimentos impostos. “Não imaginem que seja preciso ser triste para ser militante, mesmo se o que se combate é abominável. É a ligação do desejo com a realidade (e não sua fuga nas formas da representação) que possui uma força revolucionária” (FOUCAULT, 1993, p. 198). Ao fim dessa estranha carta de amor, agradeço às tantas e queridas pessoas cis que se encarregam de construir alianças, possibilitando campos habitáveis e terrenos férteis onde construir paisagens mais amenas. que possamos sempre ampliar as redes coletivas a fim de produzir mundos outros e comuns, para “todes nós”. 6 Comunicação de Audre Lorde no painel “Lésbicas e literatura” da Associação de Línguas Modernas em 1977 e publicada em vários livros da autora, disponível em: https://www.geledes.org.br/a-transformacao-do-silencio-em-linguagem-e-acao. 40 • psicologia, travestilidades e transexualidades queridas pessoas trans que aqui me leem, almejo em níveis muito fundos que vocês sigam suas vidas pelos caminhos possíveis e desejados. que nunca esqueçamos que somos um corpo coletivo, nossos possíveis e devires inevitavelmente ampliam os possíveis e devires de várias outras gentes entre nós, que quando respiramos e seguimos inventando nossas próprias palavras, sem perceber, ajudamos pessoas trans a também respirar, mesmo que um pouco. E desejo a “todes nós” que levezas nos sejam possíveis, que rompamos com as amarras de silêncios e dores sempre privatizadas. que, das formas possíveis, possamos imprimir no mundo as nossas próprias palavras. São as vidas das várias pessoas trans que sigo, mesmo aquelas que nem conheço, que emprestam sentido e lugar para a minha própria vida e todos os dias, ao acordar, agradeço por me perceber como parte dessa grande corrente. Desejo a nós amor, nos seus níveis mais fundos. Amor-próprio para saber das potências de nossos corpos não cisgêneros. Amor por nós, amor entre nós. Amor pelas nossas ancestralidades trans, posto que hoje somos seus impossíveis sonhados. Amor pelas gerações trans a vir depois de nós, posto que somos somente o começo de seus passos ainda inimagináveis. que amor e leveza, ambos enquanto conceito político, sejam cotidianos presentes e direitos inquestionáveis para nós. E finalizo essa carta de amor, louvando a memória de Lohana Berkins quando, em sua carta, de despedida escreve: “O motor de transformação é o amor. O amor que nos negaram é nosso impulso para mudar o mundo. Todos os golpes e desprezo que sofri não se comparam com o amor infinito que me rodeia nestes momentos. Fúria travesti sempre!” (LOHANA, 2016, [s. p.]). que possamos aprender com Lohana que, algumas vezes, fúria e amor são apenas sinônimos que, juntos, nos ajudam a habitar e transformar mundos hostis. Fúria Travesti Sempre! Com amor, Céu Cavalcanti. 41 • psicologia, travestilidades e transexualidades Referências ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 8, n. 1, p. 229-236, jan. 2000. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ ref/article/view/9880>. Acesso em: 11 fev. 2019. LOHANA Berkins morreu. Página 12, 5 fev. 2016. Disponível em: https:// www.pagina12.com.ar/diario/ultimas/20-291862-2016-02-05.html. Acesso em: 11 fev. 2019. FOUCAULT, Michel. O anti-édipo: uma introdução à vida não fascista. In: CADERNOS DE SUBJETIVIDADE. Núcleo de estudos e pesquisas da subjetividade do programa de estudos pós-graduados em psicologia clínica da PUC-SP, v. 1, n. 1. São Paulo: PUC, 1993. p. 197-200. LORDE, Audre. Transformação do silêncio em linguagem e ação. Gedelés, 28 mar. 2015. Disponível em: https://www.geledes.org.br/a-transformacao-do-silencio-em-linguagem-e-acao/. MOMBAÇA, Jota. O mundo é meu trauma. Piseagrama, Belo Horizonte, n. 11, p. 20-25, 2017. Disponível em: https://piseagrama.org/o-mundo-e-meu-trauma/. Acesso em: 11 fev. 2019. RODRÍGUEZ, Claudia. Manifiesto horrorista y otros escritos. 12 oct. 2015 (30 telas). Disponível em: https://issuu.com/isidoracartoneraeditorial/docs/manifiesto_horrorista_y_otros_escri. Acesso em: 11 fev. 2019. SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. Tradução de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2000. 42 • psicologia, travestilidades e transexualidades VOLTA AO SUMÁRIO l A PSICOLOGIA ENTRE A PATOLOGIZAÇãO E A DESPATOLOGIZAÇãO DAS IDENTIDADES TRANS Tatiana Lionço Por mais que tenhamos avançado na afirmação do reconhecimento da diversidade sexual e das expressões de gênero, é ainda necessário provocar a reflexão de profissionais e estudantes de Psicologia sobre como podemos nos engajar na luta política pelas garantias de direitos para a população LGBT. Hoje, proponho refletir mais detidamente sobre as pessoas trans. Talvez a melhor forma que tenhamos para entrar nessa luta política em parceria com essa comunidade seja fazendo um exercício bastante reflexivo em relação à Psicologia. Devemos nos questionar qual é o lugar deste campo do conhecimento, assim como do conjunto de práticas desencadeadas no exercício da profissão, na promoção da patologização ou da despatologização das transexualidades e travestilidades. Ao invés de apenas reforçar os avanços que nós conseguimos estabelecer, devemos não apenas reconhecer a parcialidade desses avanços em relação à participação bastante desastrosa da Psicologia no processo histórico de patologização, mas também entender que ainda é insuficiente o que a Psicologia tem feito em relação às questões de transexualidade, já que mudanças normativas não necessariamente implicam transformações nas práticas, nem nas representações. Penso que a Psicologia é um campo de conhecimento que informa um conjunto bastante amplo e capilarizado de intervenções práticas nas mais variadas instituições. Em relação à questão do mercado de trabalho, é bom lembrar que os(as) profissionais de Psicologia também atuam em instituições privadas ou órgãos públicos, desenvolvendo práticas de recrutamento de pessoas e de processos reflexivos sobre as condições de trabalho e outros contextos organizacionais. Nesse âmbito, a discussão sobre as transexualidades é insipiente ausente. Na Psicologia, quando discutimos sobre transexualidade, quando muito, falamos da saúde mental na lógica da Psicologia Clínica, de questões afeitas ao direito à educação, que deveria remeter à Psicologia Escolar, embora se silencie bastante sobre tais questões nos debates do campo. Majoritariamente, a questão da transexualidade na Psicologia está remetida à questão clínica ou à questão social, na perspectiva da garantia dos direitos sociais por meio de políticas públicas, sobretudo os direitos à saúde e à educação, embora existam muitos outros ainda silenciados, tais como direito ao trabalho, à moradia, à cultura. Não se reflete amplamente sobre gênero e sua relação com os processos de subjetivação, restando a questão da transexualidade, na Psicologia, um tema para escassos especialistas. Assim, devemos entender que a precariedade da Psicologia nesse tema é muito grande. Temos uma ausência inquietante de discussão de gênero na Psicologia. quando nos lançamos ao debate, temos de recorrer às Ciências Sociais, à Filosofia, à História. No geral, as questões de gênero não integram a maior parte dos currículos de formação de base em Psicologia. Dependemos sempre de um personalismo, de figuras que possam trazer alguma reflexão sobre gênero na Psicologia a partir de um olhar não normalizador. Eu costumo dizer que a Psicologia discute gênero sem saber que está discutindo. Porém, isso costuma acontecer dentro de uma lógica absolutamente normalizadora, quando, por exemplo, a Psicologia do Desenvolvimento adotou nas pesquisas gênero como uma variável interveniente, ou seja, que agrega sentido analítico para a compreensão de fenômenos, mas que tem seu sentido prévio já demarcado, não sendo passível de alteração. A suposta verdade biológica do sexo orientou esta presunção de sentido para o gênero adotado pela 44 • psicologia, travestilidades e transexualidades Psicologia, que reificou a heteronormatividade e o binarismo de gênero (OLIVEIRA; MADUREIRA, 2014). Podemos afirmar, por outro lado, que ainda que Psicologia se tornou também um ator político estratégico na luta pela despatologização das travestilidades e transexualidades. Há um paradoxo na Psicologia em relação à patologização e à despatologização das identidades travestis e transexuais. É importante reconhecermos que a Psicologia participou diretamente, em aliança com a Medicina Psiquiátrica, na construção de uma ideia de anormalidade associada às subjetividades trans. Inclusive o conceito de “identidade de gênero” surge com Robert Stoller (1993) nas ciências psicológicas – mais especificamente em uma Psicanálise norte-americana pretensamente empiricista e bastante aliada à Medicina na lógica da classificação de doenças mentais e em alinhamento a interesses de nicho de mercado e de ofertas de tecnologias biomédicas. Desse modo, é importante reconhecermos que questionamos bastante o lugar da Medicina Psiquiátrica nesse processo de patologização, mas muitas vezes acabamos invisibilizando as discussões sobre como a Psicologia participou diretamente desses processos de patologização. Existe um paradoxo bastante fundamental na patologização da transexualidade e na lógica da produção discursiva histórica da Medicina Psiquiátrica em seus manuais diagnósticos que produziram a doença mental “transexualismo”. Isso porque, desde a origem da proposição dessa classificação diagnóstica, a própria Medicina Psiquiátrica, para estabelecer critérios de diagnósticos, afirmou que o “transexualismo” não seria equiparável à condição delirante e, ao mesmo tempo, que a transexualidade (ou transexualismo) – como doença que estava sendo construída discursivamente pela medicina psiquiátrica – não teria base orgânica. David Cauldwell (1949) em sua “Psychopathia Transexualis” cunhou estes critérios, que perduraram posteriormente na classificação diagnóstica adotada pelos compêndios médicos: o “transexualismo como doença mental” não é delirante e não tem base orgânica. Ou seja, a própria Medicina Psiquiátrica assume que há uma arbitrariedade na classificação de uma doença mental que tem como fundamento questões morais. Isso é evidente no caso da transexualidade e também nos 45 • psicologia, travestilidades e transexualidades ajuda a lembrar que a Medicina Psiquiátrica, na sua consolidação epistemológica, não dispõe de uma base para aferir uma condição etiológica do ponto de vista da determinação orgânica. Foucault (2006) nos ajudou a compreender que, na falta da base orgânica, a atribuição de anormalidade baseada em normas morais teve, como prova empírica, a chamada hereditariedade, passível de ser apreendida por meio de histórias familiares onde o suposto desvio poderia ser passível de identificação. Além disso, o excesso masturbatório também constou largamente como fator empírico ou base orgânica para as doenças mentais produzidas pelo discurso médico no Século XX. Isso começou a mudar na segunda metade do Século XX, com o advento das neurociências, quando então a medicina começou a ter uma base orgânica para justificar as suas doenças mentais, e é sempre bom lembrar que isso veio acompanhado de uma estrondosa oferta mercadológica de medicação psiquiátrica. Assim, nós não precisamos ter medo de dizer que a patologização da transexualidade é uma arbitrariedade de desqualificação moral de determinados sujeitos que não expressam feminilidade ou masculinidade de acordo com a cisnormatividade e também com a heteronormatividade. Algumas pessoas do movimento trans com inserção acadêmica têm proposto o conceito de cisnormatividade (VERGUEIRO, 2015) como uma nova forma de avançar a reflexão do que haveria de fato nessa estrutura que o movimento feminista, na sua origem, sempre chamou de patriarcal. O que seria essa ordem normativa, do ponto de vista moral e do agenciamento de subjetividades e de subalternização nas possibilidades de sermos humanos? De alguma forma, a Psicologia também participa desse processo de um modo paradoxal, pois, muito recentemente, ela tem buscado se afirmar como categoria de classe profissional em resistência à subalternização histórica que nós – como profissão e campo discursivo científico – sempre sofremos em relação à hegemonia do discurso médico. Nesse sentido, a Psicologia vive um paradoxo muito grande que é ser um ator político contemporâneo e estratégico de enunciação de discursos e de apelo à despatologização da transexualidade, ao mesmo tempo em que ela foi um ator estratégico, historicamente falando, da aliança com a Medicina Psiquiátrica 46 • psicologia, travestilidades e transexualidades na consolidação da patologia “transexualismo”. Isso coloca a Psicologia em um lugar bastante complexo, que é o de um “abismo” entre as discussões políticas e certos discursos hegemônicos no campo das ciências psicológicas. No âmbito do Sistema Conselhos de Psicologia – que tem como uma das atribuições orientar o exercício profissional –, percebe-se a cobertura de algumas lacunas da formação de base por meio de debates que muitas vezes não são desenvolvidos nas graduações, alinhados a reivindicações dos movimentos sociais, da política pública etc. Ao mesmo tempo, os profissionais de Psicologia não têm, na sua formação de base, elementos críticos para pensar temáticas relativas a gênero. Muitas pessoas aprendem na graduação que usar o DSM e o CID é um recurso, sem que haja sequer uma crítica em relação à nossa subserviência à hegemonia da retórica médica da Psiquiatria no âmbito da saúde mental. Ainda há profissionais de Psicologia que são formadas para atender ao cumprimento da retórica médica. Vemos, desse modo, um abismo entre a discussão política no Sistema Conselhos de Psicologia e algumas produções acadêmicas, de um lado, e de outro lado alguns/algumas profissionais de Psicologia que são o tempo todo revelados(as) pelas pessoas trans e por outras categorias profissionais que convivem conosco nos serviços e dispositivos de cuidado, como profissionais patologizadores e violadores de direitos humanos no âmbito dos processos assistenciais. Nesse sentido, o que nós precisamos fazer? Acho que acabamos falando muito para nós mesmos(as). No entanto, não conseguimos vencer a participação da Psicologia no processo de patologização. De fato, se o profissional de Psicologia não está acompanhando esse debate político, não está acompanhando a produção acadêmica atualizada, se esse(a) profissional for a uma livraria ou a uma biblioteca para acessar material bibliográfico de referência, dificilmente ele(a) irá encontrar esses discursos contra-hegemônicos. Ele(a) vai encontrar outras coisas, as retóricas patologizadoras produzidas no Século XX e não necessariamente disporá de uma perspectiva crítica em relação ao caráter histórico da produção discursiva da ciência psicológica. Se tomarmos como parâmetro, por exemplo, a Resolução CFP nº 01/99 47 • psicologia, travestilidades e transexualidades – que está sob ataque e que veta a patologização da homossexualidade e as terapias de reversão da orientação sexual, ela é uma medida normativa importante, pois a Psicologia patologizou, fez e faz tratamento de reversão da orientação sexual. Acontece que alguns profissionais de Psicologia vão atrás de referências bibliográficas e leem textos em teorias psicológicas que são absolutamente datados, que não levam em consideração o caráter histórico, não só da produção de conhecimento mas também o caráter histórico da construção de uma identidade profissional, de uma categoria profissional que assumiu, historicamente, compromissos com a sociedade – como é o caso da Psicologia, que assumiu o compromisso com a democratização e com os direitos humanos. Esse compromisso da Psicologia é absolutamente recente: é um compromisso pós-redemocratização, que vem tudo junto após a Constituição Federal de 1988. Estamos, assim, falando de um processo absolutamente recente de revisão histórica da Psicologia. Temos, então, esse paradoxo abissal da Psicologia. Isso porque a maior parte da produção discursiva da Psicologia ao longo de um pouco mais um século de sua estruturação como campo de conhecimento se refere a uma forma de conhecimento psicológico normalizador e, neste sentido, pendendo à patologização de subjetividades desviantes da normalidade. A maior parte do conhecimento disponível para ser acessado, da retórica para ser lida, para ser estudada, é normalizadora. Em razão disso, os cursos de graduação têm sido insuficientes para ajudar as pessoas a se situarem com a perspectiva histórico-política em relação aos materiais teóricos de referência. A Psicologia precisaria fazer uma tarefa muito maior do que a que temos feito. Não devemos desmerecer os avanços, pois a Psicologia, de fato, pode servir como um motor para ampliar essa discussão sobre a despatologização junto a outros nichos de interesse por esses debates. É interessante pensarmos: a quem serve a patologização e a quem serve a despatologização da transexualidade? Eu entendo que em parte a patologização serve a interesses mercadológicos. Mas o que não serve a interesses mercadológicos? Toda a oferta biomédica disponível de alteração dos caracteres sexuais e de cirurgias plásticas serve a esses 48 • psicologia, travestilidades e transexualidades interesses, e isso está alcançando a população cisgênero e a população transexual. A diferença maior é em relação à tutela, pois a quem interessa tutelar o acesso de pessoas transexuais a modificação corporal do sexo? Isso interessa também a um nicho de mercado, de produção de laudos etc. Tudo isso implica consultas, em acesso a serviços. Sabemos que muitas pessoas transexuais não dão conta de esperar o tempo de espera no SUS para acessar esses dispositivos reguladores. Temos aí, portanto, um mercado: o de acesso a esses dispositivos reguladores e de tutela para as pessoas trans terem acesso a esses procedimentos biomédicos e a essas tecnologias biomédicas. Esse mercado se ramifica cada vez mais, cria alternativas de como oferecer, disponibilizar e regular serviços. Ao mesmo tempo, a patologização da transexualidade interessa também, fundamentalmente, à manutenção de uma ordem moral hegemônica, pois despatologizar a transexualidade é desestabilizar uma lógica de essencialismo e naturalização do gênero – associada a corpos reguláveis, digamos assim, por uma ordem social. Despatologizar a transexualidade é simplesmente liberar a vida social para apropriações singulares dos referenciais simbólicos e do acesso aos espaços sociais, independente da naturalização da feminilidade ou masculinidade. Eu diria, então, que a patologização da transexualidade interessa a quem está comprometido com a manutenção de uma lógica patriarcal de desigualdade entre os homens e mulheres; e com um sistema de subalternização dentro dos grupos de homens e mulheres que sempre estarão condicionando uma certa delegação de autonomia, poder a sujeitos que reificam a dominação masculina em uma lógica bastante desigual de distribuição de reconhecimento, poder e oportunidade sociais. O debate de despatologização evidentemente beneficiaria muito as pessoas travestis, transexuais ou como as pessoas se autodeterminarem, transvestigêneres, como a provocação que a Indianare1 faz que é: não importa que palavra que se use, se travesti, transexual, transgênero. É evidente socialmente quais sujeitos estão subalternizados 1 Indianare Alves Siqueira, é uma das lideranças históricas do movimento trans no Brasil, tem defendido o uso do termo “transvestigêneres”, partindo de sua autodeterminação como trans e travesti. 49 • psicologia, travestilidades e transexualidades dentro dessa lógica de atribuição de anormalidade em torno da expressão de gênero cisnormativa. Portanto, despatologizar interessa, diretamente e em uma lógica ampla, as pessoas trans em sua diversidade, inclusive para serem reconhecidas em sua ampla variedade de expressões; mas, indiretamente interessa à sociedade. Se não interessa à sociedade hegemônica patriarcal, despatologizar ao menos interessa à contra-hegemonia, o que inclui pessoas cisgênero que são não cisnormativas. Interessa diretamente às pessoas trans não binárias, pois a patologização da transexualidade também cria, entre esse grupo social que é diverso, todo um sistema de subalternização e de precarização, dificultando o acesso aos dispositivos de garantia de direitos. Gostaria de chamar a atenção para o fato de que o debate acerca da despatologização é muito importante para esse momento histórico de desmontes daquilo que já conquistamos no processo de democratização. Trata-se também de um debate muito importante para o Sistema Único de Saúde (SUS), pois toda a questão da regulação do acesso das pessoas transexuais no Sistema Único de Saúde infelizmente se organizou em torno da hegemonia da Medicina – como se observa na lógica do processo transexualizador. Diria também que o que aconteceu foi um golpe de gestão, pois as pessoas envolvidas naquela discussão, naquele momento histórico, em 2005, estavam conscientes da importância da despatologização (ainda que a campanha pela despatologização tenha ocorrido posteriormente, primeiramente a campanha internacional e depois a do próprio Conselho Federal de Psicologia impulsionado pelo CRP de São Paulo). O debate da despatologização já estava presente quando as pessoas trans e travestis diziam que não entendiam o porquê a porta de entrada no SUS tinha de ser o laudo e o diagnóstico – isso já era um debate sobre patologização e despatologização. O debate que tentamos sempre fazer é sobre a atenção integral à saúde. Desde 2005, quando iniciamos este debate no Ministério da Saúde impulsionadas pelo Programa Brasil sem Homofobia mas sobretudo pela pressão do Ministério Público pela regulamentação “das cirurgias de mudanças de sexo”, tentamos pautar a integralidade como princípio do cuidado. Daí surgiu o nome “Processo Transexualizador”, que na época parecia ser um caminho para ampliar o escopo da 50 • psicologia, travestilidades e transexualidades estratégia de cuidado para além da meta cirúrgica implicada na noção de mudança de sexo. Hoje penso que o nome é ruim, pois mantém ênfase no processo de transição pautado em medidas biomédicas; desse modo, seria preferível afirmar atenção integral à saúde de travestis e transexuais. Na época, no entanto, era muito importante para a população trans conquistar acesso aos procedimentos biomédicos; e ainda o é, embora saibamos que as determinações sociais da saúde e do adoecimento não se tratam com pílulas, nem com incisões cirúrgicas. Porém, esse debate naquele momento era muito difícil, de modo que a justificativa da doença e da resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) era o único caminho possível de conseguir discutir internamente a construção de uma política ou de uma estratégia de garantia de direitos à saúde. Foi, portanto, todo um processo de negociação. Podemos entender que a assistência à saúde de pessoas transexuais, desde a sua origem, sofreu o golpe da hegemonia biomédica. As pessoas que participaram da discussão naquele processo histórico também sofreram um golpe da área técnica do departamento de alta complexidade. Isso porque as discussões estavam iniciando e, quando vimos, a norma saiu publicada, ajeitada por uma área bastante específica da gestão de política de saúde que é a da alta complexidade – uma área bastante governada, digamos assim, pela medicina cirúrgica. Eu diria, então, que o debate de despatologização da transexualidade é um debate de defesa do SUS, é também um debate de defesa da atenção integral à saúde. É um debate que precisamos fazer antenadas de que não precisamos reproduzir a retórica norte-americana no cenário brasileiro. A discussão que a Judith Butler (2006) faz sobre o acesso das pessoas transexuais aos serviços de saúde estar condicionado ao diagnóstico somente faz sentido no sistema de saúde norte-americano. O Sistema Único de Saúde brasileiro não condiciona o acesso de pessoas a uma classificação de doenças, pois nossa constituição democrática afirma a saúde como um direito social, e não meramente como um bem passível de mercantilização. A Psicologia pode trabalhar nessa direção, ou seja, discutir a despatologização na lógica de uma disputa contra hegemônica, tensionando as hierarquias historicamente impostas entre as categorias de classe profissional e, prioritariamente, 51 • psicologia, travestilidades e transexualidades em defesa do SUS, em defesa de uma atenção democrática a saúde. Penso que é nessa direção. Observamos a participação da Psicologia no cenário político contemporâneo de uma forma paradoxal também. Se olharmos para essa ideia do discurso religioso na política, que é o que está fazendo ruir todos os avanços da agenda de direitos sexuais e reprodutivos, seja da agenda de direitos das mulheres ou da população LGBT, como a Psicologia pode participar desse processo? Não é suficiente dizer que a psicologia está sendo atacada, pois ela não deixa de estar sendo atacada, mas também participa desse processo contribuindo para certa legitimidade para o discurso fundamentalista que usa como estratégia certo manto de cientificismo e de legalismo. Uma das questões a serem observadas é que fundamentalismo religioso na política não usa retórica religiosa, e nem por isso precisamos ter medo de chamar isso de fundamentalismo religioso. É fundamentalismo religioso, pois é um processo antidemocrático de imposição a todo o conjunto da sociedade de determinados preceitos morais – é claro que os interesses deles não são necessariamente morais, pois eles são políticos, partidários, de nicho eleitoral, econômicos, é um projeto de tomada de poder. Mas a Psicologia participa como desse processo? Sendo acionada na fala do pastor – pois o Silas Malafaia não perde a oportunidade de dizer que é psicólogo; com as polêmicas e participação dos profissionais que se autointitulam psicólogos e psicólogas cristãs e cristãos; trazendo uma retórica pretensamente científica para esse debate; não assumindo que isso é violação ética descarada de exercício de associação da fé religiosa no exercício profissional. É muito paradoxal que os ataques à Resolução CFP nº 01/99, feitos pelos fundamentalismos religiosos no Congresso, encontram como principais interlocutores profissionais de Psicologia: pessoas com formação em Psicologia e que vão lá argumentar a favor de uma absoluta distorção do sentido normativo da resolução, como se fossemos uma máquina de produzir gays. É sempre bom lembrar que nós não tomamos decisões pelas pessoas: se a pessoa vai ficar ou sair do armário, se vai experimentar o que na vida sexual dela, não somos nós quem decidimos, mas é prudente dispor de ampla flexibilidade moral para podermos acompanhar eticamente escolhas de sujeitos que serão 52 • psicologia, travestilidades e transexualidades radicalmente diferentes daquelas que nós mesmas faríamos em nossas vidas particulares. O que a resolução impõe como norma é que profissionais se abstenham de decidir junto com o sujeito que é atendido que ser homossexual é ruim e que a direção do tratamento seria deixar de sê-lo. Não prometeremos cura, não apenas porque a homossexualidade e, mais recentemente respaldada na Resolução CFP nº 01/20182, também a transexualidade não é doença. Não prometeremos cura, pois isso por si, prometer cura, é um veto para a categoria profissional segundo nosso Código de Ética. Temos que avançar nos argumentos! Falamos que a questão da “homossexualidade não é doença, por isso não tratamos algo que não seja doença”. Não precisamos ser doentes para buscar tratamento na Psicologia, pois trabalhamos em outra lógica, não podendo prometer cura de nada. Em relação à questão da saúde mental, a resolução do CFM condiciona o acesso das pessoas trans a uma terapia e procedimentos plásticos de alteração da anatomia sexuada ao diagnóstico diferencial: diagnostica-se transexualismo, mas também em diferenciação a outros transtornos mentais. Na Nota Técnica que construímos em 2013 para orientar profissionais de Psicologia que assistem pessoas trans, além de ter afirmado que a transexualidade não é uma doença mental, nós buscamos afirmar que a transexualidade pode estar associada a condições subjetivas que se enquadram no que seria, na lógica médica, transtorno mental, o que na retórica da Psicologia poderíamos denominar por sofrimento psíquico grave: depressão, pânico, ou como se manifestasse o sofrimento excessivo. Tivemos como preocupação que o sofrimento psíquico grave não fosse um impeditivo para o acesso de pessoas trans aos serviços do “Processo Transexualizador” e outros serviços públicos e privados de saúde. Na Nota Técnica sobre assistência à saúde de transexuais, ocorreu uma mudança entre o que fora acordado pelo grupo de trabalho e o teor da redação publicada pelo conselho. E a ideia de que a psicoterapia poderia constar no processo de assistência à saúde passou a ser 2 Disponível em: http://site.cfp.org.br/wpcontent/uploads/2018/01/Resolu%C3 %A7%C3%A3o-CFP-01-2018.pdf. 53 • psicologia, travestilidades e transexualidades sinalizada como devendo constar no processo assistencial. Entre poder e dever há uma diferença significativa, sobretudo diante da questão ética implicada na compulsoriedade da psicoterapia. A questão é que profissionais de Psicologia não necessariamente oferecem psicoterapia em serviços de saúde, cabendo variadas outras intervenções na lógica da atuação em saúde coletiva, por exemplo, o empoderamento da própria comunidade na reivindicação do direito à saúde, grupos para o fortalecimento de redes comunitárias e/ou articulação entre serviços etc. A não compulsoriedade da psicoterapia é uma reivindicação histórica das pessoas trans, e é importante lembrarmos que a psicoterapia compulsória é um problema ético para nossa categoria profissional. Não devemos impor procedimentos, mas sim atender demandas de sujeitos com perspectivas ampliadas e críticas, a fim de assegurar a autonomia de as pessoas acessarem, continuarem ou interromperem seus atendimentos. Com a Resolução CFP nº 01/2018, espera-se que a questão da compulsoriedade da psicoterapia encontre um fundamento normativo para não mais se sustentar legalmente. A afirmação da autodeterminação das pessoas trans implica a destituição da tutela de profissionais de Psicologia sobre a resposta diagnóstica sobre suas identidades de gênero. Resta, ainda, o problema da normativa médica sobre os critérios de acessibilidade das cirurgias e outros procedimentos biomédicos para as modificações corporais do sexo, que presumem os dois anos de acompanhamento psicoterapêuticos. No entanto, a Psicologia brasileira já se pronunciou a respeito, e o fez afirmando a autodeterminação das pessoas trans sobre suas identidades, o que implica também o respeito à sua autonomia nas escolhas sobre modificações corporais que apenas determinada pessoa saberá avaliar se é realmente necessária ou não, sendo a questão ética fundamental o esclarecimento médico sobre os riscos e os benefícios implicados nos procedimentos a serem adotados. Por fim, é importante salientar que em um país de dimensão continental como o Brasil há uma ampla diversidade social, incluindo ampla diversidade entre as pessoas trans. Isso significa que é muito importante que profissionais de Psicologia se capacitem tecnicamente, por meio do estudo teórico, do diálogo com os movimentos sociais. Mas também é necessário afirmar que muitas pessoas que rompem 54 • psicologia, travestilidades e transexualidades com a cisnormatividade, reconhecendo-se transexuais, travestis, ou não, não necessariamente estão acompanhando os debates dos movimentos sociais; talvez sequer usem os mesmos termos para se referirem a si mesmas e às suas realidades subjetivas e sociais. A Psicologia deve respeitar todas essas pessoas, respeitando a autonomia e a autodeterminação delas, sem tutelar sua significação sobre si mesmas e sobre a construção de suas identidades sociais e políticas. Este é o nosso desafio ético. Referências BUTLER, Judith. Deshacer el género. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 2006. CAULDWELL, David O. Psychopathia Transexualis. Sexology, v. 16, p. 274280, 1948. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Resolução nº 01, de 22 de março de 1999. Estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da Orientação Sexual. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/1999/03/resolucao1999_1.pdf. Acesso em: 10 fev. 2019. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Resolução nº 01, de 29 de janeiro de 2018. Estabelece normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas transexuais e travestis. Disponível em: https://site.cfp. org.br/wp-content/uploads/2018/01/Resolução-CFP-01-2018.pdf. Acesso em: 10 fev. 2019. FOUCAULT, Michel. O Poder Psiquiátrico. São Paulo: Martins Fontes, 2006. OLIVEIRA, Maria Cláudia Lopes de; MADUREIRA, Ana Flávia do Amaral. Gênero e Psicologia do Desenvolvimento> quando a ciência é utilizada como força normatizadora das identidades de gênero. Labrys Estudos Feministas, [s. p.], jul./dez. 2014 Disponível em: https://www.labrys.net.br/labrys26/psy/ maria%20claudia.htm. Acesso em: 10 fev. 2019. STOLLER, Robert. Masculinidade e Feminilidade: apresentações de gênero. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. 55 • psicologia, travestilidades e transexualidades VERGUEIRO, Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. 2015. 244 f. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade) – Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015. 56 • psicologia, travestilidades e transexualidades VOLTA AO SUMÁRIO l (DES)PATOLOGIZAÇãO DAS EXPERIÊNCIAS TRANS: CONTRIBUIÇÕES, COMPARECIMENTOS E RESISTÊNCIAS DA PSICOLOGIA Maria Luiza Rovaris Cidade Este manuscrito parte de um convite de (re)escrita de uma pequena fala-escrita, fala do ano de 2016 e escrita do início ano de 2019, contendo dados e reflexões provocadas pelo convite a participar desse evento, levantadas em minha pesquisa de mestrado (CIDADE, 2016)1 defendida em 2016 e em práticas coletivas no ativismo feminista, em direção a uma discussão sobre a Psicologia enquanto campo de produção de conhecimento e de prática profissional. Sendo uma pessoa cisgênera2 e branca, gostaria de compartilhar algumas ideias antes de tratar sobre o que eu vim apresentar aqui hoje. Inicialmente, eu quero enfatizar a honra que é compor esse espaço, pois eu sou formada em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina, sou “manezinha” da ilha e foi aqui que eu cresci e me formei enquanto pessoa no mundo. Além 1 Com O título “Nomes (Im)Próprios: Registro civil, norma cisgênera e racionalidades do Sistema Judiciário”. Dissertação defendida, em 2016, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGP/UFRJ). 2 Contraponto que indica a norma da qual as experiências trans divergem, ou seja, a cisgeneridade indica as experiências de pessoas que, de alguma forma, localizam-se no espectro de sexo/gênero que lhes foi designado. disso, reconheço a importância desse evento, convocado pelo Conselho Regional de Psicologia de Santa Catarina (CRP-SC), que está trazendo pessoas trans ao lugar de compartilharem suas experiências, inclusive as que estão na plateia, pois normalmente não são pessoas consideradas como produtoras de conhecimento ou protagonistas de várias dessas questões que as e nos atravessam. Nesse sentido, eu gostaria de propor que a gente rompa certas hierarquias, como essa de alguém que fala aqui nessa mesa e as outras escutam. Eu gosto muito de lembrar a intelectual negra bell hooks que fala sobre as noções de comunidade de aprendizagem e de uma pedagogia engajada3, então precisamos de vocês e de suas falas para ocuparmos esse espaço da melhor forma possível. Sobre as pessoas que estão na mesa junto comigo: Lirous K’yo Fonseca Ávila me acompanhou durante a formação em psicologia em meu estágio na Associação em Defesa dos Direitos Humanos com Enfoque nas Sexualidades (ADEH), sendo uma pessoa fundamental na minha formação como psicóloga. Além dela, Fabrizia de Souza Felipe a Kelly Vieira igualmente foram pessoas fundamentais na minha formação. Foi na ADEH e em suas trincheiras que eu tive contato com várias questões e concepções de atuação profissional que me tocaram enquanto graduanda de Psicologia e que me tocam até hoje, como psicóloga. João Nery (in memoriam), quem conheci hoje, é uma pessoa fundamental que precisamos conhecer em termos de trajetória. Gostaria de lembrar uma entrevista de 1984 da TV Manchete4, a qual João forneceu à repórter sem mostrar o rosto. No vídeo, são duas pessoas que não mostraram o rosto: João Nery, pois ele estava em uma situação de clandestinidade que perdurou até o momento de seu falecimento, e um psicanalista. É muito importante que João Nery esteja nessa mesa conosco, mostrando seu rosto e dizendo quem ele é e para o que veio. Importante lembrarmos que nem sempre foi assim, pois ele não teve acesso à possibilidade jurídica e legal de alteração de seu registro civil 3 No livro “Ensinando a transgredir: A educação como prática da liberdade”. 4 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=D8DKky-KFvI. 58 • psicologia, travestilidades e transexualidades em sua época. É imprescindível pensarmos em modos de reparação nesse sentido. Sobre a outra pessoa na respectiva entrevista de 1984, identificada na entrevista como um psicanalista, não foi mencionada nenhuma informação além sua expertise com relação à sexualidade e o que considerava ser transexual. É importante também que nós, eu e todas as pessoas que são profissionais psi nesse espaço, estejamos aqui mostrando o rosto e colocando nossos saberes à prova. Como o conselheiro do CRP-SC Ematuir de Sousa comentou inicialmente, por mais que haja movimentos, campanhas e novas normativas de despatologização das experiências de pessoas trans, é muito importante considerarmos que esse é um território em disputa. Muitos direitos já garantidos são constantemente ameaçados e a própria Psicologia e seus profissionais atuam, muitas vezes, em sentidos conservadores, relativos a retrocessos. Nesse sentido, o tema da minha exposição de hoje está relacionado exatamente com essa questão de dualidades e tensionamentos em como a Psicologia historicamente construiu e habitou a ideia de transexualidade, antes de falarmos das suas contribuições nos sentidos da despatologização, que é a proposta inicial desse encontro. Ou seja, a ideia é provocar uma reflexão de como nossa profissão historicamente insere noções discrepantes a partir de certas normativas sem mencioná-las enquanto tais. quando recebi o convite e vi a temática do presente evento, que seria relacionada às contribuições da Psicologia na despatologização das experiências trans, achei interessante inserir essa afirmação enquanto um questionamento: quais são as contribuições da Psicologia que podem servir tanto para patologizar quanto para despatologizar as experiências de pessoas trans, transexuais e travestis? A partir de uma ideia sobre subjetividade em constante produção histórica, social e singular, que pode ser considerada um de nossos objetos de atuação enquanto profissionais da Psicologia, podemos afirmar que esse conceito é amplo e que diversas abordagens teóricas tratam de diversas maneiras. Aqui, eu gostaria de abordar sobre uma lógica de produção de conhecimento e de atuação profissional que a Psicologia instituiu desde o Século XIX e que acabamos reinstituindo, 59 • psicologia, travestilidades e transexualidades no sentido de desnaturalizá-la. Para pensarmos sobre as contribuições da Psicologia no campo das identidades de gênero, podemos partir de três elementos, a partir dos quais creio que podemos esboçar uma reflexão mais complexa, que são: 1) Sentidos das contribuições da Psicologia: de que produções sociais e condicionantes históricos tratamos?; 2) Caminhos e descaminhos das contribuições da Psicologia: como a Psicologia comparece?, e, por fim, 3) Possibilidades de resistência: como a Psicologia pode instrumentalizar? Espero que seja frutífero para o diálogo que virá depois! Sentidos das contribuições da psicologia: de que condicionantes históricos e produções sociais tratamos? Muitas psicólogas e psicólogos desconhecem nossas normativas profissionais e resoluções éticas, o que podemos considerar como uma falha estrutural nas formações universitárias. Nesse sentido, é importante frisar que o Sistema Conselhos de Psicologia atua no sentido da regulamentação e acompanhamento da profissão no que tange aos limites e às possibilidades do exercício da Psicologia, para que não afirmemos redes autoritárias de saber-poder e desconectadas do exercício dos direitos humanos perante a sociedade. Tudo o que diz respeito aos profissionais, como regulamentação salarial, campos de trabalho e regimes de contratação, fica a cargo das organizações sindicais do campo da Psicologia. Pois bem, a Resolução nº 07/20035 do Conselho Federal de Psicologia é a resolução de referência técnica da profissão para a elaboração de documentos escritos. Aborda que a avaliação psicológica é entendida como um processo técnico-científico de coleta de dados, estudo e intepretações de informações a respeito de fenômenos, descritos como psicológicos, que são resultantes da relação do sujeito com a sociedade. Utilizando-se de estratégias, métodos, técnicas e procedimentos que porventura sejam necessários, a técnica que é primordial e 5 Atualizada em 2019 para Resolução CFP nº 06/2019. 60 • psicologia, travestilidades e transexualidades obrigatória para utilizamos é a entrevista. Nós não podemos intervir em psicologia sem realizarmos uma entrevista, ou seja, não há avaliação psicológica sem entrevista, a despeito de todas as técnicas e procedimentos utilizados. Mas por quê? Para evitar conclusões técnicas sem o contato com o usuário ou usuária6. Parece óbvio, mas são elementos que precisam ser normatizados, porque historicamente a Psicologia exerceu inúmeras práticas sem consentimento e sem possibilidade de construção conjunta com as pessoas usuárias em questão. A Resolução CFP nº 07/2003 conceitua, como exposto, o que seria uma avaliação psicológica. E o que vem depois que ela é realizada? Considero essa etapa, talvez, a mais importante. Segundo a mesma resolução, os resultados das avaliações devem considerar e analisar os condicionantes históricos e sociais e seus efeitos no psiquismo, com a finalidade de servirem como instrumentos não só para o sujeito em questão como também para a transformação social desses condicionantes. É exatamente sobre essa perspectiva histórica e de condicionantes sociais que devemos nos debruçar, pois com relação a experiências de pessoas trans, temos uma historiografia muito complicada no Brasil. Não podemos nos eximir de mencionar, para colocarmos em análise, a capa de um jornal fluminense, denominado Notícias Populares, datada de 1984, que traz uma artista brasileira famosa com um trecho que diz: “a mulher mais bonita do Brasil é homem”. Ela foi uma das primeiras pessoas trans a aparecer na mídia brasileira de uma forma abrangente, especialmente a partir de uma veiculação embasada na sua experiência de identidade de gênero. Ela já era uma modelo famosa; porém, esse acontecimento marca uma ampliação exponencial de suas aparições midiáticas. Nesse sentido, ela teve sua privacidade e intimidade expostas de diversas formas, tamanho fetiche e interesse que as pessoas tinham (e ainda têm). 6 Agradeço o acesso a essa discussão a meu orientador Prof. Dr. Pedro Paulo Gastalho de Bicalho, que gentilmente me proporcionou a possibilidade de atuar por duas vezes como estagiária docente na inovadora disciplina “Técnicas de Entrevista”, que se tornara disciplina obrigatória no currículo novo do Curso de Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 61 • psicologia, travestilidades e transexualidades O processo de retificação de seu registo civil, datado da década de 1980, foi julgado por diversas instâncias, até o Supremo Tribunal Federal, e não foi considerado passível de aprovação. quando ela conseguiu retificar seu registro civil no ano de 2005, mediante a atuação de 11 especialistas convocados, alguns de seus laudos foram divulgados na mídia, assim como também seu suposto diagnóstico psicológico e sua condição genital. É interessante pontuar que não existe nenhum outro processo jurídico que envolva a menção da conformidade genitália de forma tão exposta como os casos que envolviam identidades de gênero destoantes do que entendemos como norma7. Ainda em termos de condicionantes históricos, cerca de dez anos antes desse aparecimento na mídia brasileira, acontecera um fato inédito: o médico Roberto Farina fora condenado penalmente em 1978, mesmo que logo posteriormente absolvido após apelo, devido a um procedimento cirúrgico inédito realizado em uma mulher trans no estado de São Paulo, o qual fora exposto devido à solicitação de alteração de seu registro civil em 1975. Aparentemente, fora a primeira vez que o Estado brasileiro teve conhecimento da temática. Nesse sentido, é importante resgatar que o registro civil, em termos de registros públicos no Brasil, é regido por um princípio de imutabilidade8. Não é possível a alteração do prenome, exceto em algumas exceções relacionadas a casamento, se a pessoa é considerada como testemunha com risco de vida ou conhecida por apelido público notório, além de casos de nomes constrangedores ou vexatórios. Com relação a pessoas trans, o caso mencionado da década de 1970 foi o primeiro que se tem registro ou, pelo menos, é o primeiro levado a público. Nesse caso, a pessoa não só teve a alteração do registro civil negada como o médico que realizou um procedimento a 7 Atualmente, a temática está regulada pelo Provimento 73/2018 do Conselho Nacional de Justiça, que autoriza a mudança de registro civil sem a necessidade de processo judicial, o que não evita os múltiplos processos de violação e violências existentes nesses procedimentos, especialmente pelos cartórios. 8 Verificar Lei nº 6.015/73 (Lei de Registros Públicos) em: http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/leis/L6015compilada.htm. 62 • psicologia, travestilidades e transexualidades serviço da usuária foi incriminado. Esse fato foi extensamente debatido na mídia brasileira na época, demonstrando que a sociedade brasileira parece ter uma fixação e afetações pela temática, por mais que pareça rechaçá-la no sentido de produzir discursos e de tentar normatizar experiências divergentes da norma. A medicina e o direito andam em profunda aliança. Na pesquisa de mestrado que eu desenvolvi no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ, sob orientação do Prof. Dr. Pedro Paulo Gastalho de Bicalho, foram colocadas em análise 16 decisões judiciais públicas, datadas de 2000 a 2014, relacionadas à alteração do registro civil de pessoas trans no estado do Rio de Janeiro. Nesse sentido, ao longo da pesquisa, fomos percebendo que o Sistema Judiciário brasileiro tem uma conceituação própria do que supostamente seria transexualidade e travestilidade e, ainda, chama todas essas experiências, que podem ser muito diferentes entre si, de transexualismo, no sentido de afirmar uma conotação conceitual biomédica e pejorativa. Palavras como “angústia”, “desconforto”, “erro” e “crime” vão aparecendo como frequentes nas decisões judiciais, pois são permeadas de discursos normativos. Além dessas, aparecem palavras como “identidade”, “mudança”, “gênero”, “direito”, “SUS”, o que nos indica a complexidade de lógicas presentes nessas decisões. Esses processos de alteração do registro civil de pessoas trans trazem muitos elementos relacionados à maneira como o Estado visualiza e significa essas experiências. Aqui, não necessariamente precisamos tratar dos argumentos jurídicos propriamente ditos, mas é possível perceber a presença de certo grau de anormalidade que se dá ao outro que é trans em tais processos, sem nomear um contraponto do que seria o normal. Com essa noção de normalidade, a cisgeneridade não nomeada pelo Estado, especialmente o judiciário, e pela cultura de uma forma geral, quando seletivamente somente colocamos em questão a nomeação das pessoas trans a partir de categorias jurídicas e biomédicas, inclusive no campo da Psicologia, acabamos produzindo e reproduzindo uma série de processos de violações e criminalizações. Há três questões relevantes com relação aos processos jurídicos e à prática da Psicologia nesse campo que são importantes de serem 63 • psicologia, travestilidades e transexualidades consideradas. A primeira questão é relacionada à atuação técnica propriamente dita da Psicologia no campo judiciário e para além dele. Se não colocarmos em análise a demanda que emerge de figuras como um magistrado, no sentido de construirmos uma demanda conjunta, o trabalho da Psicologia, especialmente no campo da elaboração de documentos, será a resposta exclusiva à demanda do juiz, que nem sempre condiz com a demanda da pessoa solicitante. Essa esfera nos apresenta um complexo desafio que não pode ter apenas saídas individuais; assim, o debate em torno da profissão e do Sistema Conselhos é crucial nesse sentido. Em segundo lugar, em relatório da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, entre 2010 e 2016, foram feitas 170 solicitações que se tornaram processos de alteração de registro civil de pessoas trans no estado, processo denominado pela instituição de requalificação civil9. Essas solicitações, de uma forma geral, antes da mudança de 2018, eram operacionalizadas a partir de uma petição inicial elaborada por defensor(a) público(a) ou advogado(a) particular. Usualmente, os argumentos centrais se localizavam na defesa da dignidade da pessoa humana e na utilização de uma série de argumentos relacionados à garantia de direitos das pessoas trans e na afirmação de legislação internacional de direitos humanos. Ou seja, já era produzida uma defesa inicial da causa da pessoa solicitante. Em anexo a essa petição inicial, no sentido de fortalecê-la, ia algum tipo de documento, especialmente um relatório de algum outro profissional da Psicologia e/ou do Serviço Social, a partir do contato com a pessoa solicitante. Assim, quando o processo se inicia, já consta um relatório de avaliação profissional, que muitas vezes é um documento psicológico que poderia ser válido para o andamento menos moroso do processo. Porém, o que acontecia era que essa documentação prévia era basicamente anulada, considerando-se que novos profissionais deveriam ser convocados para atuarem no caso, em termos de afirmação de uma suposta neutralidade. 9 Disponível em: http://defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/80aaf879f83e42a9a 9909d1168f79783.pdf. 64 • psicologia, travestilidades e transexualidades Por fim, como terceira questão a ser levantada, a justiça brasileira, até 2018, entendia o processo de alteração do registro civil como um processo litigioso, ou seja, que colocava a solicitação da pessoa trans em conflito com o Estado brasileiro, mesmo que isso não se apresentasse de antemão de forma explícita. Por exemplo, em casos de casamento e divórcio, se uma mulher cisgênera se divorcia de um homem cisgênero e solicita que seu registro civil seja alterado para a retirada do sobrenome do ex-marido, caso constasse, esse processo é muito menos custoso, mais rápido e não precisaria de avaliação profissional. O que acontecia no caso de pessoas trans é como se o Estado instalasse um conflito, a partir de uma assimetria de poder, com a pessoa solicitante, tendo ela que provar que é “realmente” transexual, a partir de uma noção de verdade que passa por saberes científicos e históricos. A pessoa solicitante passava por uma série de procedimentos e avaliações até conseguir a alteração de registro civil. Em pesquisa desenvolvida, identificamos que os principais argumentos utilizados pelo Ministério Público, suposto representante dos interesses do Estado e dos cidadãos, nos casos que envolviam a solicitação de alteração do registro civil de pessoas trans eram: 1) A presença de antecedentes criminais, visto que a alteração do registro civil insere apenas mudanças relativas ao pronome e declaração de sexo/gênero, ou seja, nada impede que a pessoa continue respondendo ao suposto crime; 2) existência de dívidas ou processos relativos a finanças, o que insere a mesma questão anterior, já que o CPF e demais dados não são alterados e, por fim, a mais grave a meu ver, que seria 3) o argumento de preservação de terceiros de boa-fé, que implica a possibilidade de que a pessoa com o registro civil alterado possa vir a supostamente enganar pessoas ao omitir a declaração de sexo/gênero que recebeu ao nascer. Nesse sentido, o que é absolutamente terrível, podia entender-se que uma pessoa trans poderia “enganar” alguém ao tentar constituir família, por exemplo. Tal fato torna o judiciário muito mais uma espécie de vidente do que a instituição responsável por garantir direitos e acessos a populações que têm suas experiências marcadas por desigualdades estruturais. Nesse caso em específico, a partir do exemplo sobre a alteração do registro civil baseada na situação de divórcio, no 65 • psicologia, travestilidades e transexualidades caso de uma mulher trans, já seria excepcionalmente difícil ela conseguir a autorização para se casar com seu respectivo nome social, a não ser que fosse retificado. Assim, a técnica psicológica em relação com a demanda do judiciário, a constante anulação do trabalho profissional de defesa de direitos quando a solicitação se tornava processo e a necessidade de comprovação não apenas da verdade da experiência transexual, mas da garantia de que o sujeito em questão seria um sujeito “de bem”, insere na atuação da psicologia uma série de atravessamentos extremamente complexos que exigem atenção crítica, posicionamento político e mobilizações coletivas, como a que fizemos no referido evento do CRP-SC. Caminhos e descaminhos das contribuições da Psicologia: como a Psicologia comparece? Historicamente, a Psicologia, enquanto campo de saber e de prática profissional, está muito próxima da conduta normativa e inquisitiva do Sistema Judiciário, mesmo que muitas e muitos colegas façam resistência a tais estratégias de dominação. Não podemos pensar nas contribuições da Psicologia nos sentidos da despatologização sem nos atentarmos para as contribuições da Psicologia para a produção do estigma e da patologização das experiências de pessoas trans ao longo da história. É um jogo de disputas e correlação de forças. A partir da década de 1950, estudos e eventos científicos foram realizados com essa temática e nomes de profissionais e pesquisadores dos campos psi como Harry Benjamin, John Money e Robert Stoller se tornam conhecidos. A partir de 1953, surgiu na historiografia médica o que foi denominado de “fenômeno transexual” e o início da produção do que seria o diagnóstico de transexualismo e seus similares10. Interessante pontuar 10 Discussão mais sistemática em “Algumas reflexões para estabelecer a cronologia do “fenômeno transexual” (1910-1995), de Castel (2011). 66 • psicologia, travestilidades e transexualidades que, em todo relançamento do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais a partir de suas revisões sistemáticas, há revisão do nome da patologia relacionada às experiências de pessoas trans, mas com pouca alteração em termos de conteúdo e metodologia diagnóstica. Aqui, considero importante mencionar que em algumas decisões judiciais fluminenses consta o termo “transgenitalismo” como um suposto diagnóstico, mas que conceitualmente não existe, ainda que exista em normativas do Conselho Federal de Medicina brasileiro. Já em 1955 e posteriormente a essa data, surgiu, a partir de trabalhos e experimentos do campo da Psicologia do Comportamento, o conceito técnico de “gênero”, que implica uma suposta diferenciação das características sexuais, no que diz respeito às dinâmicas de aprendizagem das diferenças entre o que seriam os sexos11. O que os movimentos feministas a partir da década de 1960 tentaram produzir é a abertura de possibilidades de pensar a categoria “gênero” enquanto relacional12, que marca muito mais uma organização social baseada em dinâmicas de desigualdade do que apenas características apreendidas a partir do que é ser homem e do que é ser mulher de forma normativa. A partir das pesquisas em Psicologia, especialmente com crianças intersexuais, foi sendo produzida uma série de experimentos, verdadeiros horrores tachados de técnicas científicas, com o objetivo de se comprovar as hipóteses de que há algo de aprendizagem comportamental na diferença entre os sexos. É justamente por práticas como essas que a nossa profissão, historicamente, demandou um Código de Ética que organizasse os princípios éticos da profissão e penalidades de âmbito profissional para quem os descumprisse. Temos um passado que muitas vezes não é lembrado. Estudos como esses corroboraram com afirmações taxativas e concepções naturalizadas em nossa cultura de que supostamente a conformidade genital garante uma designação em termos de sexo/gênero. E, consequentemente, quem desvia disso, 11 Discussão mais sistemática consultar “Texto Yonqui”, de Preciado (2008). 12 Não que não houvesse movimentações feministas anteriores a esse período, mas a categoria “gênero” se tornou mais massivamente utilizada como um marcador social de desigualdades nesse período histórico. 67 • psicologia, travestilidades e transexualidades tecnicamente deve estar doente em algum ponto de sua experiência e tal doença demanda um status psicopatológico. O temo identidade de gênero foi criado já na década de 1960 para designar certa compreensão de si. É interessante pontuar que temos, ao longo dessa análise de concepções e bibliografias, uma base de formação estadunidense e europeia no campo da Psicologia. Se lembrarmos em aulas de Psicologia do Desenvolvimento, é muito difícil termos problematizado essa relação entre designação em termos de sexo/gênero e autoatribuição, assim como possivelmente não foi problematizada a heterossexualidade compulsória nas perspectivas de desenvolvimento humano13, nem as origens das teorias e concepções que balizavam a nossa formação, no sentido de nos atentarmos a produções teóricas mais localizadas e advindas de nossas realidades histórico-políticas. Em “Psicologia” (LINDZEY; HALL; THOMPSON, 1977), um manual de Psicologia do Desenvolvimento, há a menção de que qualquer padrão de desenvolvimento e comportamento humanos tem base fisiológica e que a espécie humana, como a maioria das outras, divide-se em machos e fêmeas. O manual também afirma que o suposto gênero biológico ficaria determinado no momento da concepção, ou seja, se o esperma fertilizante carregar um cromossomo x, o “fruto” será feminino, mas, se carregar um cromossomo Y, o “fruto” será masculino. O mais interessante é que no manual se afirma que isso é inevitável, com exceção de raras anomalias genéticas fetais. Interessante, pois essa conceituação é absolutamente inaplicável em termos de produção social da realidade; a partir dela, fica explícita a direção que a produção científica em Psicologia dá para os padrões normativos vigentes. Se fôssemos apenas determinantes fisiológicos do momento da concepção, não haveria por que existir Psicologia, um campo de produção sobre subjetividades e experiências humanas as mais diversas, muito menos quaisquer intervenções psicológicas. A partir do exposto, percebe-se uma historiografia inicial de certos processos históricos de como certa Psicologia comparece na 13 Discussão mais sistemática é encontrada em “Para pensar a cisheteronormatividade na psicologia: lições tomadas do transfeminismo”, de Mattos e Cidade (2016). 68 • psicologia, travestilidades e transexualidades patologização de experiências de pessoas trans que vão culminar nos discursos que visualizamos em certas decisões judiciais analisadas em pesquisa de mestrado. Nota-se que o Conselho Federal de Medicina, com suas normativas desde 1997, estabelece certas lógicas de como atuar junto a pessoas trans; e, nesse sentido, tenta legislar sobre como outras profissões devem atuar também, mesmo que não seja de sua competência14. Dessa forma, o critério diagnóstico afirmado pela medicina brasileira está relacionado a um suposto desconforto com o “sexo natural” e a uma suposta necessidade de alteração corporal, que sabemos que nem sempre estão presentes para construir modos de produção de identidades de gênero e nomeações de si diferentes do que foi designado ao nascimento. O que nos interessa, nesse ponto, é que a medicina brasileira vai regular o tempo mínimo de intervenção junto às pessoas trans que demandam procedimentos em saúde, que nem sempre são cirúrgicos, podendo ser de acesso à atenção básica ou endocrinológica por exemplo. São dois anos, no mínimo, de atuação junto a essas pessoas, tempo que para nós não faz sentido de ser estabelecido de forma universal, tampouco deve ser compulsório o acompanhamento psicológico. A compulsoriedade implica, basicamente, a extinção da possibilidade legítima da construção de vínculo entre profissional e usuária ou usuário. Em 2013, finalmente, a Psicologia brasileira se posicionou sobre o processo transexualizador15, com uma nota técnica que garante a defesa dos direitos humanos, a universalidade e integralidade de acesso e que, principalmente, insere duas noções que torna possível outra racionalidade nos casos de alteração do registro civil de pessoas trans. A nota técnica vem reverberar o acesso de pessoas trans à condição de sujeitos de direito ao afirmar que a transexualidade e a travestilidade são experiências de vida legítimas, não constituindo condições psicopatológicas por si só. Além disso, afirma que a Psicologia tem a 14 Resolução CFM nº 1.955/2010, disponível em: http://www.portalmedico.org.br/ resolucoes/cfm/2010/1955_2010.htm. 15 Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2013/09/Nota-t% C3%A9cnica-processo-Trans.pdf. 69 • psicologia, travestilidades e transexualidades função de garantir possibilidades de qualidade de vida e o apoio a essas pessoas, já que as experiências de pessoas trans fazem parte das múltiplas possibilidades de vivências no campo das sexualidades humanas. Nesse sentido, há um erro na nota técnica, pois se trata do campo das identidades de gênero, não necessariamente das sexualidades. Mas a Resolução nº 01/2018 do CFP vem afirmar essa lógica das identidades de gênero de uma forma mais contundente. Assim, pensando em como a Psicologia é convocada e como comparece em processos tão complexos, se não tomarmos a história como ponto de análise fundamental, perdemos fios da meada, processos naturalizados e afirmações ditas científicas que precisam ser questionadas em profundidade. Nesse sentido, somos convocadas e convocados na elaboração de documentos e relatórios, em salas de aula, em práticas em políticas públicas, em nossos consultórios... O ponto central é pensarmos: “como e com que qualidade de trabalho temos comparecido?”, “por que essa discussão é relevante?” Trago aqui dois trechos de documentos psicológicos colhidos em minha pesquisa de mestrado. A ideia não é necessariamente culpabilizar os profissionais que emitiram esses documentos, mas pensarmos em termos de construção da profissão: XXXX é uma pessoa com a aparência do sexo masculino, adulto jovem, branco, discretamente obeso, asseado, mas sem sinais de excesso, vestido de forma adequada para a situação de entrevista e sempre mantendo contato visual direto [...] (Estudo psicológico transcrito em julgado de primeira instância, 2009)16. Parece, então, que o homem trans em questão precisa ser asseado, olhar diretamente para a pessoa que está realizando a entrevista e não pode ser obeso, somente discretamente obeso. Nenhuma dessas informações nos é relevante, se pensarmos bem. O próximo parecer se refere ao caso de uma mulher trans: Alega sentir-se muito constrangida quando é chamada em algum lugar público pelo nome de batismo [sic] Interação com 16 Trecho presente em minha dissertação de mestrado. 70 • psicologia, travestilidades e transexualidades a imagem feminina. Veste-se como mulher, age como mulher. É bonita, feminina e muito educada, possui um bom nível de aspiração com relação à vida pessoal e profissional. (Estudo psicológico transcrito em julgado de primeira instância, 2014)17. A utilização do termo “nome de batismo” é consideravelmente perigosa. Precisamos utilizar sempre “nome de registro”, pois o batismo se refere a uma cerimônia religiosa que nem todas as pessoas compartilham e, sempre importante afirmar, nosso Estado ainda é laico. Esse trecho é importante de ser analisado; afinal, por exemplo, eu, como mulher cisgênera, não correspondo a essa descrição mencionada, pois nem sempre sou muito educada e não necessariamente tenho um nível de aspiração na vida pessoal, ou seja, como uma pessoa cisgênera, eu não correspondo necessariamente a esses requisitos. Será que todas as mulheres cisgêneras correspondem, para algo do tipo ser exigido de mulheres trans? Por fim, o que eu quero mencionar é que as pessoas trans passavam e ainda passam por uma série de procedimentos totalmente inquisitórios, a partir de uma lógica medieval de testagem e de comprovação com certa noção de verdade sobre o que é transexualidade. qual nosso dever enquanto profissionais de um campo que se pretende ético a todas e diferentes formas de afirmação de vida e suas potencialidades? Como podemos comparecer de formas mais acolhedoras de certas diferenças, no lugar de rechaçá-las? Possibilidades de resistência: como a Psicologia pode instrumentalizar? Perante tal cenário, que resistências podemos acionar? que conjunturas outras podemos apresentar para fazer frente a essa historicidade, que demanda uma transformação urgente dos nossos modos de pensar e atuar profissionalmente? Assim, considero importante trazer 17 Trecho presente em minha dissertação de mestrado. 71 • psicologia, travestilidades e transexualidades à tona formas outras pelas quais a Psicologia é convocada e comparece, traçando alianças que vão além da aliança descrita anteriormente entre direito e medicina, através da qual a psicologia por vezes se enlaça. A Psicologia também é convocada em situações importantes, por exemplo, o Recurso Extraordinário (RE) 845779 do ano de 2015 do Supremo Tribunal Federal, que na época do referido evento estava sob pedido de vistas do Ministro Luiz Fux. Tal Recurso Extraordinário dizia respeito ao direito de pessoas trans serem tratadas pelo seu nome social e atingiria mais de 700 processos sobre a questão em território nacional. Nessa situação, a psicóloga Dra. Jaqueline Gomes de Jesus compareceu enquanto pessoa convocada a defender a tese relacionada à defesa dos direitos humanos, especificamente com relação a pessoas trans. Nesse sentido, a produção de conhecimento em psicologia, em determinados contextos, pode influenciar em termos de saber-poder os embasamentos teóricos e práticos no que diz respeito à desnaturalização de pressupostos e na afirmação de outros modos de pensar e agir. Portanto, é importante afirmar que há discursos e noções de verdade em disputa e que cabe posicionamento de cada gestão regional, além da federal, dos conselhos profissionais, além dos profissionais individualmente. Há muitos de nós em trincheiras de lutas nesse sentido, inclusive no Sistema Judiciário. Também cabe a cada profissional a busca por formação contínua e continuada, no sentido de revisão e aprimoramento constante de suas práticas, para a afirmação de vidas e não de mais estereótipos que criminalizam e contribuem para estatísticas de violência. Em conjunto com a argumentação de Jaqueline Gomes de Jesus, que se posiciona a partir de outra concepção histórica, há produção de conhecimento e de práticas inventivas com e por outras pessoas trans que são fundamentais para que a nossa profissão se reinvente. Outro ponto fundamental de resistência é a defesa intransigente das nossas Resoluções nº 01/99 e 01/2018 que tratam sobre as experiências relacionadas a homossexualidades, transexualidades e travestilidades não serem consideradas perversão ou doença. Tais normativas técnicas são imprescindíveis para nossa atuação profissional, não apenas por defenderem o acesso de pessoas LGBT a redes de proteção e cuidado, como também por servirem de argumentos em jurisprudências para 72 • psicologia, travestilidades e transexualidades tomada de decisões de pessoas magistradas nas questões que envolvem disputas judiciais em torno de questões de gênero e sexualidades. Então, vários documentos que nós emitimos, enquanto profissionais de Psicologia, podem ser utilizados para compor materiais que são usados como se leis fossem. Temos, aí, quase que uma guerra discursiva na qual é fundamental haver a atuação e a formação de profissionais no campo sociojurídico. Além disso, outra frente de resistência possível, no campo da produção de conhecimento em Psicologia, reflete-se na ruptura com uma categoria inventada pelo campo do direito: o suposto sexo psicológico. Aqui, portanto, o que está em questão não é exclusivamente as normativas da profissão e a elaboração de laudos ou pareceres. É considerada verdade em termos de doutrina pátria o que o direito brasileiro afirma ser verdade. A definição de sexo para a doutrina pátria brasileira afirma que há uma dimensão psicológica no que diz respeito à afirmação identitária. quando somos convocadas ou convocados para falarmos, enquanto profissionais, sobre a transexualidade ou travestilidade, seja no processo transexualizador ou no processo de alteração do registro civil no judiciário, eles querem que atestamos qual é sexo psicológico da pessoa. Por um acaso, isso existe enquanto categoria psicológica analisada a fundo e transmitida em disciplinas das faculdades de Psicologia? Desconfio que essa tenha sido uma categoria que o direito historicamente afirmou para que se busque a definição de “sexo” em uma noção de interioridade e, por isso, há tantos procedimentos e avaliações para se definir se essa pessoa é realmente transexual ou não. Então, quando nós fazemos esse debate, de que conceitos estamos falando? quando produzimos uma avaliação e um documento, estamos abordando nossa escuta a partir de um viés predeterminado ou o que faz sentido na história no sujeito, narrada pelo sujeito? É necessária a produção de novos campos teóricos e novas modalidades de pesquisa para além da descrição comportamental, tão cara à Psicologia, que acaba mascarando séries acríticas e repetitivas de modos de produção de subjetividade, sem o questionamento do que é necessário transformar para ampliar as possibilidades de vida de pessoas historicamente excluídas da própria possibilidade de viver. 73 • psicologia, travestilidades e transexualidades quando se fala de transexualidade e travestilidade, para muitas pessoas é a nomeação de algo considerado anormal e, nesse sentido, precisamos efetivamente nos tornarmos defensoras e defensores de um outro discurso que supere a dicotomia da normalização. Se tem uma anormal, de qual norma estamos falando? Naturalizamos ou nomeamos essa norma, para que possamos aprofundar nossas análises? No fim dos anos de 1990 e início do ano de 2000, principalmente pelo protagonismo dos movimentos sociais de pessoas trans e da afirmação do transfeminismo enquanto potência política18, a cisgeneridade tem sido afirmada cada vez mais como uma possibilidade analítica essencial para as articulações dos marcadores sociais de desigualdades. A cisgeneridade afirma uma matriz normativa e designações compulsórias de cada pessoa que nasce, em relação à determinação em termos de sexo/gênero pela lógica medica-jurídica. Por que não tratar dela em nosso campo político? A intelectual transfeminista Viviane Vergueiro (2012) afirma que o uso analítico do conceito de cisgeneridade surge para viabilizar a percepção das opressões e das ideologias de estruturas sociopolíticas que ela autoriza, implícita e explicitamente19. Se não falamos sobre isso, acabamos caindo em um abismo conceitual. Com relação ao trabalho da Psicologia, uma palavra que não é nomeada implica todo um posicionamento epistemológico apolítico. Mesmo tratando dos manuais de Psicologia do Desenvolvimento, dos pareceres que têm sido cada vez mais elaborados com o aumento das demandas, da discussão sobre o tipo de documento que será elaborado e de tantas outras questões referentes à profissão, nós não chegaremos à questão central que justamente se afirma da reprodução de normativas cisgêneras por parte da psicologia historicamente. Assim, e por fim, a base de toda essa discussão se localiza em como entendemos as dimensões do sujeito que encontramos em nosso cotidiano profissional e, que ao longo dessa conversa realizada em 2016 e atualizada em texto para o início de 2019, eu considerei importante 18 Para acessar debates imprescindíveis, recomendo o blog “https://transfeminismo.com/”. 19 Para ver uma discussão mais sistemática, ler: “Pela descolonização das identidades” (VERGUEIRO, 2012). 74 • psicologia, travestilidades e transexualidades esmiuçar e torcer, para que não apenas desconfiemos de nossas certezas, como também para estarmos abertas e abertos a encontros a partir da alteridade, ou seja, da narrativa do outro e não da busca por certezas absolutas que reiterem as nossas narrativas enquanto profissionais. Enquanto profissionais de Psicologia, nós participamos do encontro que a entrevista e toda intervenção proporciona. Cabe a nós decidirmos se vamos inquirir alguém ou compor com esse alguém novas formas de lutas e de vidas. Obrigada! Referências BRASIL. Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/leis/L6015compilada.htm. Acesso em: 11 fev. 2019. CASTEL, Pierre-Henri. Algumas reflexões para estabelecer a cronologia do “fenômeno transexual” (1910-1995). Revista Brasileira de História, São Paulo. v. 21, n. 41, 2011. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0102-01882001000200005. Acesso em: 11 fev. 2019. CIDADE, Maria Luiza Rovaris. Nomes (Im)Próprios: Registro civil, norma cisgênera e racionalidades do Sistema Judiciário. 2016. 200 f. (Mestrado em Psicologia) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 1.955/2010. Dispõe sobre a cirurgia de transgenitalismo e revoga a Resolução CFM nº 1.652/02. Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/ cfm/2010/1955_2010.htm. Acesso em: 11 fev. 2019. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Nota técnica sobre processo transexualizador e demais formas de assistência às pessoas trans. 2013. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2013/09/Nota-t%C3%A9cnica-processo-Trans.pdf. Acesso em: 11 fev. 2019. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Resolução nº 01, de 22 de março de 1999. Estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da Orientação Sexual. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/1999/03/resolucao1999_1.pdf. Acesso em: 10 fev. 2019. 75 • psicologia, travestilidades e transexualidades CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Resolução nº 007, de 14 de junho de 2013. Institui o Manual de Elaboração de Documentos Escritos produzidos pelo psicólogo, decorrentes de avaliação psicológica e revoga a Resolução CFPº 17/2002. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/ uploads/2003/06/resolucao2003_7.pdf. Acesso em: 10 fev. 2019. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Resolução nº 01, de 29 de janeiro de 2018. Estabelece normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas transexuais e travestis. Disponível em: https://site.cfp. org.br/wp-content/uploads/2018/01/Resolução-CFP-01-2018.pdf. Acesso em: 10 fev. 2019. DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Diretoria de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça. Relatório de ações de requalificação civil. Disponível em: http://defensoria.rj.def.br/uploads/arquiv os/80aaf879f83e42a9a9909d1168f79783.pdf. Acesso em: 11 fev. 2019. HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: A educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2013. LINDZEY, Gardner; HALL, Calvine S.; THOMPSON, Richard F. Psicologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1977. MATTOS, Amana Rocha; CIDADE, Maria Luiza Rovari. Para pensar a cisheteronormatividade na psicologia: lições tomadas do transfeminismo. Periodicus, Salvador, v. 1, n. 5, p. 132-153, 2016. Disponível em: https://portalseer. ufba.br/index.php/revistaperiodicus/article/view/17181/11338. Acesso em: 11 fev. 2019. NERY, João Walter. Entrevista com João W Nery para Tv Manchete em 1985. (17 min 53 s). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=D8DKky-KFvI. Acesso em: 11 fev. 2019. PRECIADO, Beatriz. Texto Yonqui. Madrid: Espasa, 2008. VERGUEIRO, Viviane. Pela descolonização das identidades trans. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE ESTUDOS SOBRE A DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO DA ABEH, 6., Salvador. Anais eletrônicos... Salvador: UFBA, 2012. Disponível em: http://www.academia.edu/2562141/Pela_ descoloniza%C3%A7%C3%A3o_das_identidades_trans_pr%C3%A9-projeto_para_a_disserta%C3%A7%C3%A3o_Por_inflex%C3%B5es_decoloniais_ de_corpos_e_identidades_de_g%C3%AAnero_inconformes_. Acesso em: 11 fev. 2019. 76 • psicologia, travestilidades e transexualidades VOLTA AO SUMÁRIO l “VOCÊS SÓ PODEM SER NORMAIS PORqUE NÓS SOMOS CONSIDERADOS DOENTES!” – A PATOLOGIZAÇãO DOS CORPOS TRANS COMO MEIO DE PRODUZIR A “NORMALIDADE” CIS João Walter Nery Apesar das duas próteses nas pernas, eu prefiro falar em pé, porque assim vejo todo mundo – se eu não aguentar ficar de pé, eu sento. Primeiramente, eu queria agradecer ao CRP ao nome da presidente e da organização do evento. Para mim, é uma honra. Ainda mais porque, até hoje, meu nome social ainda não foi incluído no CRP – continuo com o nome feminino no CRP. Aliás, o nome social dá direito ao psicólogo de exercer sua profissão. Mas, em razão das minhas circunstâncias físicas – e etárias também –, eu não estou mais atendendo em consultório. A minha atividade hoje é na militância, palestrando, ajudando os homens e mulheres trans, os gays e os negros etc. Eu sou um ativista dos direitos humanos – das ditas minorias, que na verdade não são tão minorias. Bom, a questão da patologização é uma questão muito importante para a nossa sociedade, pois, se nós não formos patologizados, se os trans não forem doentes mentais, o que vocês vão ser? Vocês só podem ser normais porque nós somos doentes! Então, fica muito confortável ser doente. Eu não dei o “boa tarde” a todos, a todas e a “todes” – porque, afinal de contas, os não binários também merecem ser vistos, ou os entregêneros, ou qualquer rótulo que queiram nos nomear. Mas, o fato é que o grande mal da nossa cultura é ser, nesse aspecto da sexualidade, ser binarista, heterosexista, ser normativa, em todos os âmbitos e instituições. E nós absorvemos esses valores: alguns trans desenvolvem uma transfobia internalizada; apesar de teoricamente os gays não serem mais considerados doentes, muitos psicólogos ainda tentam curá-los (aliás, a Marisa Lobo foi readmitida do CRP. Grande vergonha! Eu acho que o CRP deveria rever essa questão). Eu sou... quem não conhece a minha história, levanta o dedo. É a minoria. Eu não irei contar toda a minha história aqui, pois estou com 66 anos, se não eu irei ficar aqui até amanhã. Mas, eu irei dar uma resumida e irei emitir muitos conceitos que eu acho importante. Eu nasci na década de 1950 (hoje estou com 66 anos de idade) em uma época em que na palavra transexual começava a existir no mundo. No Brasil, ainda não existia. Fui criado em uma família de classe média, tive a oportunidade de estudar e sofria desde os três ou quatro anos de idade – quando toda pessoa começa a construir o seu gênero, em função da cultura e da época em que vivi. Eu construí o meu masculino e, infelizmente, para a maioria das pessoas, eu não combinava com o meu corpo. Isso não quer dizer que meu corpo estava errado. Eu acho que quem estava errada era a cultura, porque, se eu pudesse ter mamas e ir para a praia de sunga, por que então eu tiraria as mamas? Se eu pudesse ser homem sem pênis, como eu sou, e ter a minha documentação reconhecida como psicólogo, por exemplo, para que eu iria colocar um pênis? E vice-versa, assim também para mulheres trans. Acontece que inventaram a palavra transexualidade. Mas, era uma doença. Aliás, “transexualismo”, que é o que vigora. A medicina fez mais uma invenção, já não bastavam todas as invenções que fez desde o final do Século XIX, criando todas as doenças e perversões. Inclusive a palavra homossexual, em 1879 – e, com isso, quando se cria o homossexual, se cria o heterossexual, o bissexual, o assexual, e assim vai. E a indústria farmacêutica enriquece cada vez mais. quando mais doentes se inventam, mais os remédios fluem. quanto mais complexos de depressão e síndromes do pânico, mais se fatura. Em relação ao “transexualismo”, 78 • psicologia, travestilidades e transexualidades que foi criado na década de 1950 mais ou menos, eu não sabia desse rótulo. Eu fui criado sofrendo aquilo que hoje chamamos de “transfobia” (termo que também não existia). Na pracinha em que brincava eu era chamado de “Maria homem”, porque eu era um garotinho. Tanto que minha mãe me levou a um psicólogo aos nove anos – mas é claro que a psicóloga não me avaliou como trans, pois essa palavra não existia. Então, eu era um “ET”, porque, embora eu sempre me apaixonasse por mulheres – e eu me considero heterossexual, na época eu também não me considerava lésbica. Então eu não era porra nenhuma. É o que eu digo no meu livro “Viagem Solitária”, onde eu conto toda a minha história, da infância até a velhice: era a ironia, pois todos querem fugir do rótulo, mas eu procurava um, que eu só fui descobrir na década de 1970. E assim foi. Foi uma infância que eu brincava na pracinha, onde me chamavam de Maria homem. Aí deixei de brincar na pracinha. Fiquei brincando dentro do quintal da minha casa, ficando cada vez mais recluso para me proteger do preconceito. Depois, na escola, me chamavam de “paraíba” e eu não sabia o que essa palavra significava. Enfim, o tempo todo, em todos os lugares, eu era olhado como um bicho. “É homem? É mulher? O que é aquilo?”. “Um homem dominável”, “um ser indefinido”, “indefinível”. Como dizem os acadêmicos, um “não ser”, um “não sujeito”. Nem “pessoa” eu podia ser considerado. É como as travestis hoje: matam, empalam, queimam, dão 20 facadas nelas e não sai na imprensa, ninguém vai ao enterro e ainda enterram com o nome masculino. quando a imprensa fala delas usa a expressão “o traveco”, “o travesti” (eu nunca conheci uma travesti que fosse do gênero masculino). E a sociedade ainda fica aliviada dessa higienização, dessa limpeza que os assassinos fazem para limpar esta ameaça à sociedade – porque, cada vez que surge um trans ou uma travesti, isso implica para o outro questionar sua própria identidade. Então, quando vocês olham para mim, de barba, bigode, sem pênis (e não sou intersexual!). Não tenho nenhuma anomalia fisiológica e não sou nenhum desses “sexos” que inventaram – genético, morfológicos, psicológicos... E vão inventando sexos! Aí vocês param e pensam: “o que é ser mulher?”; “o que é ser homem?”. Alguém se habilita a responder? Algum homem aí se habilita a responder o que é ser homem? Não são os “donos do 79 • psicologia, travestilidades e transexualidades poder”? São inseguros? Pois é: trata-se de uma pergunta mesmo difícil e sem resposta. Mas já fizeram essa pergunta a um grupo de homens heterossexuais e deram algumas respostas. A primeira foi: “ser homem é gostar de mulher” – ou seja, “lésbica é homem”; a segunda foi: “ser homem é ter um pênis” – ora, e os homens que perdem seus pênis por gangrena, devido diabetes, por acidentes, por falta de assepsia ou por câncer, deixam de ser homens? que eu saiba a identidade masculina não está no pênis. Eles podem até ficar com a autoestima abalada, podendo até refazer o pênis, é permitido! Só não é permitido fazer o pênis para os trans. No Brasil, a neofaloplastia ainda é considerada uma cirurgia experimental. Só no Brasil e só para trans homens – para vocês verem o preconceito da medicina. Aliás, eu sou para a medicina um “transexual feminino”, não sou um “transexual masculino”. Denominar-me “transexual masculino” é “porque eu quero”, porque na ficha irá constar “feminino” e sabe por quê? Porque “nasci com vagina e quem manda é o genital”: uma parte que ninguém vê, mas uma parte que é fundamental para definir o seu sexo. A parte que você vê da pessoa, que é o gênero, o comportamento, as roupas, a aparência, essas são secundárias. Aliás, secundárias “em termos”. São tantas coisas para falar... Mais adiante falarei sobre essa questão dos “laudos”, que fiquei arrepiado. Mas vou falar também do papel do psicólogo nessa história, que é muito séria mas poucos entendem. Aliás, a cadeira de “Gênero e Sexualidade” existe como obrigatória na UFSC – é uma das únicas no Brasil! Tem também na Bahia, em Assis/SP. Alguém sabe se como cadeira obrigatória tem em outra universidade? Em Criciúma tem? Ah, que notícia boa! Preciso ir lá! Onde mais? Parabéns! Santa Catarina sempre na frente. Perde um pouquinho para São Paulo em questões de decretos, mas é realmente um lugar respeitável e respeitado pela transexualidade. Inclusive nos encontros do Transday1, para os quais eu tive a oportunidade de ser convidado – e que é uma maravilha, e nos vários eventos que fazem dentro da Universidade e no estado de Santa Catarina sobre sexualidade. 1 João se referia aos encontros “Trans Day - Seminário Transfobia, Cidadania e Identidades Trans”, organizados pelo Núcleo de Identidade de Gênero e Subjetividades (NIGS) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). 80 • psicologia, travestilidades e transexualidades Bom, continuando a minha história... A adolescência foi a pior parte, pois é onde aparecem todos os hormônios sexuais. No Brasil não é oficialmente permitido usar os hormônios bloqueadores que, no meu caso, evitaria o crescimento das mamas, evitaria a “monstruação” – que é como trato no meu livro: um “monstro”. Enfim, eu já com seios e aí aparece a “monstruação”. Aliás, o homem transexual também pode engravidar, sobretudo se não faz histerectomia. Mas isso não faz dele uma mãe. É importante vocês terem a clareza de que a gravidez também pertence ao mundo masculino. Eu conheço vários homens trans que engravidaram – ou porque são casados com mulheres trans etc. Porém ela – a mulher trans, ela é a mãe. Ela pode oferecer o sêmen, mas ela é a mãe. E ele pode engravidar porque tem o útero, mas ele é o pai. Então a gravidez não é, de jeito nenhum, um privilegio do mundo feminino. Enquanto a nossa sociedade ainda discute se é ético ou não amamentar em público, nós já estamos em outra questão. No meu livro, eu trato sobre esse tema: tem um capítulo sobre os homens grávidos. Eu tentei ser mulher aos 16 anos. Eu era bonita, tinha três irmãs. Éramos em quatro filhas. Eu era a mais bonita de todas as filhas, tudo em cima e a autoestima no pé. Minhas irmãs me dando salto alto, batom, o que quisesse. Minha mãe nem me cobrava a hora para chegar em casa, contanto que eu saísse “de mulher”. E aí eu experimentei me travestir. Fazia um gênero, eu era uma mulher bonita. Durou um ano a palhaçada. Eu sabia que no fundo era um grande circo e que aquilo não iria me trazer nenhuma gratificação. Arranjaram um namorado para mim; e, no primeiro beijo, acabou também. Finalmente, aos 19 anos, fui para a faculdade de Psicologia, no Rio de Janeiro, de onde sou natural. Depois me formei e dei aula em três universidades. Fiz especialização que na época se chamava “sexologia” – hoje é “gênero e sexualidade”, e comecei o mestrado. Aos 22 anos, eu saio de casa, vou morar com a minha namorada. Isso na década de 1970, década muito importante de movimentos culturais e quando se cria a moda unissex. Aí foi tudo para mim, pois pude usar calça jeans – aliás, só havia calça jeans ou calça leggings. Não tinha outra coisa, não havia internet. Depois cortei o cabelo mais curto, passei a usar camisa xadrez com o bolso na frente. Eu não tinha muita mama não, mas era meio caída e 81 • psicologia, travestilidades e transexualidades eu amarrava uma faixa. Não me hormonizava, nem sabia que tinha hormônio. Eu passava plenamente por um “rapazinho”. Aqui2 eu com 14 anos de idade, com identidade feminina, e aqui eu com 27 anos, sem hormônio, não tinha barba e essa carinha aqui eu já tinha desde os 22 e, com ela, eu passava batido como um “rapazinho”, como marido da minha mulher – para o porteiro e para todos os desconhecidos, eu era um homem. Para os familiares e para os amigos do trabalho eu tinha que ser mulher. Então era a maior confusão! Eu nunca sabia se iam me chamar de “senhor” ou “senhora”. Uma hora em engrossava a voz, baixava o rosto, falava grosso; ou então afinava a voz e era uma confusão, uma loucura! Chegava na hora do cinema, se eu fosse apresentar a minha carteira de estudante, era o caos: “falsidade ideológica!” Não podia! Não entrava! Eu comprava a entrada inteira para não mostrar a minha carteia de estudante. quando o guarda me parava no trânsito e pedia o documento era um caos. Mostrava meus documentos legais: “falsidade ideológica! O guarda dizia: “O que? Carteira da tua irmã para cima de mim? Da tua irmã?”, e quase me levava preso! Era uma merda total. E isso os transexuais, as travestis e todos os transgêneros vivem esta situação de falta de cidadania, pois quem não tem um documento que lhe represente não existe, não é um cidadão, não tem representatividade na sociedade. Pode pagar imposto, como pagamos, mas não é o nome social que vai resolver nossa questão. Sem dúvida nenhuma, o nome social é uma luta que as mulheres trans e as travestis há dez anos vem fazendo. É uma conquista, sem dúvida nenhuma. Agora, em 28 de abril de 2016, finalmente “Dilminha” assinou. Já os pastores evangélicos querem tirar essa migalha que os trans conseguiram e que é só para evitar constrangimentos nos lugares que respeitam e reconhecem. Pois é, a coisa é muito séria. Ser trans “não é mole não!”. Eu tenho orgulho de ser trans. Se eu nascesse homem, seria um babaca, iria ficar batendo continência para essa sociedade machista. Eu tenho horror! Eu sou um homem trans – ou um trans homem. Eu prefiro este termo porque o trans vem na frente e eu sou mais trans do que homem. Mas 2 Nesse momento João mostra as fotos que estão estampadas na capa do seu livro autobiográfico. 82 • psicologia, travestilidades e transexualidades também sou feminista e acho que a grande patologia é o machismo: os machistas deveriam procurar os psicólogos. Agora, temos clareza que não só os homens que são machistas, mas sim toda a sociedade é machista. As mulheres também, seja por conivência, por comodidade ou mesmo por introjeção, muitas delas são machistas. Elas criam filhos machistas. Então esse binarismo doentio que há na nossa cultura, que tudo de generificado: os brinquedos, as cores, a comida, o kinder ovo rosa ou azul. Tem até água generificada! Cada vez generifica mais. Tem mulher de Vênus, homem de Marte. E trans é de qual planeta? Eu acho que eu sou de Plutão que acabou! E as pessoas compram, adoram! Viram o sucesso que fez “50 tons de cinza”? Tinha que ser “50 tons de gênero”, ficaria muito mais interessante. Aliás, Nova Iorque acabou de aceitar 34 gêneros diferentes. E eu acho que é pouco! Para a quantidade da humanidade, quanto mais diversos nós somos, mais ricos nós nos apresentamos. Nada como ser híbridos: somos cada vez melhores e cada um tem as suas peculiaridades e suas individualidades. O fato de uma mulher ser masculina não a faz lésbica. O fato de um homem ser feminino não o faz gay. E por que não pode? E por que discriminar? Por que o feminino ameaça tanto o mundo masculino? Por que uma “gayzinha”, “pintosa”, bem feminina, bem delicada é considerada “up”. Mas, dentro do próprio movimento LGBT, os gays colocam ela lá embaixo: “assim você me compromete”. Mas ela deveria estar no topo, pois é ela que faz os gays saírem do armário! É como as travestis dizem: “você vai na esquina comprar pão e já está gritando”. Não tem como esconder! E é essa militância que incomoda, pois o seu próprio corpo é político. Continuando com a minha trajetória. Aos 26 anos eu descubro uma equipe pioneira no Rio de Janeiro que estudava o “transexualismo”. E eu penso: “Finalmente!”. Vou correndo ao hospital “Moncorvo Filho”. Estava se formando a equipe e eu me submeti a todos os testes e exames. Não sabia se tinha médico para operar ou não. Finalmente descobri o médico Roberto Farina. Farina foi quem me operou, em São Paulo. E ele já faleceu. Um consertinho não chega a ser preso, mas Farina foi condenado a dois anos de prisão; porém, ficou em sursis, porque era primário e cirurgião plástico de fama internacional. Por causa da Valdirene, que entrou na justiça para mudança de nome (de Valdir para 83 • psicologia, travestilidades e transexualidades Valdirene), e aí um promotor aproveitou isso para incriminar o Farina, que ficou sem operar durante dois anos. Bom, porque além de eu ser o primeiro homem trans a ser operado no Brasil, na época da ditadura militar, eu acho que eu também sou o primeiro homem transbiônico: eu tenho cinco próteses no corpo e sou uma cobaia da medicina, porque ninguém, até hoje, foi capaz de dizer se a testosterona interfere na minha artrose sistêmica. Eu tenho artrose e já cortei as duas cabeças do fêmur fora, já coloquei uma placa na coluna de titânio, outra na barriga, um stent no coração. que eu me lembre, é isso. Fora também as órteses. Sabem o que são órteses? São diferentes das próteses! As órteses são seriam “próteses removíveis”, por exemplo, as dentaduras são órteses. Tudo o que você pode retirar do corpo e recolocar. Outro exemplo é um aparelho auditivo. Os garotos dizem usar “próteses”, mas é um termo errado, medicamente falando. Voltando a falar dos homens trans, que é o assunto que domino. Aliás, na sua bibliografia3 eu senti falta dos homens trans. Só tem mulher trans: a Viviane – que eu respeito muito, a Jaqueline Gomes Jesus também, mas eu também tenho publicado artigos acadêmicos. Inclusive, meu coautor que eu quero agradecer e que está presente aqui, o Eduardo Meinberg. Está lá no fundinho. Levanta, Eduardo! Então... Tenho alguns artigos escritos com ele, em algumas revistas publicadas, sobre os homens trans no ciberespaço. Valeria a pena dar uma olhada, já que tem tão pouca coisa escrita sobre o homem trans – somos mais invisíveis ainda que a mulheres trans. Como comecei e entrei na menopausa aos 27 anos e tomei testosterona ninguém sabe direito o que vai acontecer com meu corpo. Também não tem nenhum endocrinologista capaz de me dar um prognóstico do que vai acontecer ou até mesmo o que está acontecendo. Minha própria reumatologista não sabe se a testosterona causa a minha artrose, já que não tenho nenhuma explicação genética. A minha careca: meu pai não é careca, meus avôs não são carecas; portanto, essa eu sei que é a testosterona, até porque conheço vários homens trans que, depois dos 40 ou 50 anos, todos ficam carecas. Portanto, 3 João se referia às referências bibliográficas utilizadas pela palestrante que havia realizado uma exposição anteriormente à sua fala. 84 • psicologia, travestilidades e transexualidades nós também desmistificamos algumas afirmativas da ciência dizendo que a calvície é puramente genética. Não é puramente genética. É claro que a questão genética interfere, mas não é a única causa. Depois eu faço a minha operação. Eu fiz a chamada mastectomia – que é a retirada das mamas, palavra médica erradamente colocada, pois quem faz esse procedimento é a mulher com câncer. Retiram os seios e não colocam nem o mamilo nela. Não é caso dos homens trans! Os homens trans fazem uma mamoplastia masculinizadora, ou seja, transformam uma mama feminina em uma mama masculina. Portanto, é uma cirurgia reconstrutora e que os planos de saúde não querem pagar, pois alegam que é procedimento estético, claro! Assim como a ginecologia, que é o único ramo da medicina, dito exclusivamente feminino. Sabem o que acontece se um homem trans procura um ginecologista – e ele precisa, sobretudo se ele não fez a histerectomia? Ele tem que dar o nome feminino dele, obrigatoriamente, mesmo que ele tenha nome social. E mesmo que ele tenha mudado o nome na justiça. Aí complica, porque o SUS vai reconhecer o atendimento dele como “fraude”, pois “não pode ter homem sendo assistido por ginecologista”. Então, vejam o preconceito e como muita coisa tem que ser mudada dentro da própria medicina e do sistema de saúde. No Brasil, temos cinco equipamentos do SUS que atendem transexuais e as travestis: um no Rio de Janeiro, um no Rio Grande do Sul, um em Goiânia, um em São Paulo e um Pernambuco. E o do Rio de Janeiro está com as inscrições fechadas há três anos; o de São Paulo, a fila de cirurgia é de 10 a 20 anos; no Rio Grande do Sul, que era o mais avançado, também já está com a fila de espera grande. Sabem por quê? Porque é realizada apenas uma cirurgia por mês, ou seja, cinco cirurgias de trans por mês no Brasil. A Região Norte não tem equipamentos do SUS para atender trans. Agora abriu um ambulatório em Belém/PA que oferece um suporte psicológico e endocrinológico, assim como temos em Curitiba que também faz esse atendimento gratuito; porém, não faz cirurgia. Então, é complicado porque, para aqueles trans homens que me procuram do Acre me pedindo ajuda pelo Facebook, eu não tenho nem um psicólogo para indicar para ele. Não pensem que é qualquer psicólogo que atende trans! Os garotos vão ao psicólogo e vêm falar comigo. Eles 85 • psicologia, travestilidades e transexualidades dizem: “João, eu fui na psicóloga ontem, perto na minha casa e ela não sabia nem o que era transexual! E quando eu falei que era homem trans, ela gaguejou e disse ‘volta daqui uns dois meses que eu vou dar uma pesquisada’ – essa era particular, e ainda cobrou meia consulta”. “Teve outra psicóloga que tentou me curar da transexualidade. Ela ficou colocando na minha cabeça que era um trauma de infância, porque eu não tinha vivido o Complexo de Édipo integralmente”. A Psicanálise é complicada quando se fala em transexualidade, essas forclusões4, como dizia Lacan... Enfim, não irei entrar na questão de linha teórica, mas eu sempre tive implicância com a Psicanálise. Tenho horror àqueles termos todos. E quando eu li Malinowski e descobri que o Complexo de Édipo não é universal, foi um grande alivio para mim! Eu estudo sexualidade desde a época da faculdade. Estudo todas as sexualidades: da Margareth Mead, das tribos de Samoa, a tudo que vocês possam imaginar, para desmistificar e ter certeza de que realmente era uma conduta cultural. Tenho horror da palavra “instinto”, e fui descobrir, na época, que existiam 5.384 instintos diferentes. quando você não conseguia explicar a conduta humana, dava-se o nome de instinto. Então “o cara mata por instinto bélico” etc. Nós não somos animais, somos seres sociais. Somos e temos significados em uma cultura. O nosso corpo é um corpo social: se não houver linguagem, não pode haver corpo de mulher nem corpo de homem. Não pode haver nada, sem linguagem não há nada, porque é ela que dá o significado às coisas. A própria Judith Butler (2003) não faz essa diferenciação entre sexo e gênero. Mas “descen- 4 Segundo Laplanche e Pontalis (2001) o termo “forclusão” foi introduzido na Psicanálise pelo psicanalista francês Jacques Lacan. “Forclusão” seria um “mecanismo específico que estaria na origem do fato psíquico; consistiria numa rejeição primordial de um “significante” fundamental (por exemplo: o falo enquanto significante do complexo de castração) para fora do universo simbólico do sujeito” (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001, p. 195). João Nery não desenvolve essa questão em sua fala, mas ele está se referindo a interpretações muito recorrentes entre alguns psicanalistas de que os sujeitos transexuais teriam se constituído pela forclusão, ou seja, seriam “sujeitos estruturalmente psicóticos”. Tal hipótese teórica é amplamente questionada, criticada e rejeitada no âmbito dos estudos trans e também entre alguns psicanalistas e psicólogos(as). 86 • psicologia, travestilidades e transexualidades do” um pouco o plano para simplificar, nós teríamos o sexo como uma questão biológica e o gênero como uma questão de construção social. Isso para simplificar a história. Acontece que se levarmos em conta os intersexos – que são três tipos, aí já se tem cinco sexos biológicos, só biológicos. Enfim, é uma canseira isso! Não sei por que a genitália é tão importante. A primeira coisa que se faz quando uma criança intersexual nasce – e não são poucos os casos, é um para cada 2 mil nascimentos, é fazer uma operação nessa criança. Com dois ou três meses de idade essas crianças já estão entrando na faca, porque “tem que ser homem ou mulher, tem que batizar e escolher o nome”. Ora, coloca um nome neutro, deixa a criança escolher o gênero que ela quiser depois! Agora, eles mutilam a criança! Não é somente uma cirurgia, mas sim várias! E quando uma criança chega com nove ou dez anos e pergunta ao pai que cicatriz é aquela... E sabe a verdade? É uma merda, o grau de suicídio é altíssimo. E se o gênero que escolheram para ela não era o gênero que ela queria? Como a própria medicina diz “é mais fácil fazer um buraco do que levantar um poste”. Então, com isso, se “feminiliza” a maioria das crianças intersexuais. Isso é uma coisa muito séria! Há um movimento internacional contra essas cirurgias intersexuais. Voltando à minha história. quando eu me operei, eu não tinha como trabalhar. Por quê? Porque eu precisava de documentos masculinos. Como que eu ia trabalhar com essa cara? Um dia eu recebi uma mulher trans na minha casa, com um marido e um bebê que ela tinha adotado, e foi ela que me deu força para eu retirar a nova documentação – que eu sabia que era crime! E aí eu fui em um cartório no subúrbio do RJ, vestido de matuto, como se morasse no interior, e nunca tivesse sido registrado, como se eu fosse um lavrador. Minha amiga falou: “Você não abra a boca, deixa que eu falo, porque você está nervoso”. quando o cara perguntou: “Qual a sua idade?” – eu estava com 27 anos, aí a minha amiga respondeu: “18 anos”. Eu cheguei a “tremer nas bases”. A desculpa era de que eu iria servir ao exército; então, eu tinha que ter 18 anos. E, então, ele falou que eu teria que pagar uma multa pelo atraso, por nunca ter sido registrado. Eu não tinha dinheiro, mas minha amiga conseguiu emprestado. No fim, tirei a minha nova certidão de nascimento com o nome masculino. Com essa nova certidão eu cometo o meu segundo 87 • psicologia, travestilidades e transexualidades crime. O primeiro foi a cirurgia; o segundo foi a documentação. Até hoje tenho dois CPFs: um de mulher e outro de homem. Podia aproveitar para colocar a receita em um, fazer um monte de contas, corrupção, laranjas e etc. Mas deixo isso para os políticos... Por que é importante despatologizar? Primeiro: pedir um diagnóstico a um psicólogo é a mesma coisa que dizer que eu sou “objeto patologizador”. Pronto, isso ai já é uma merda. Por quê? Porque para eu pedir um diagnóstico é preciso que eu me reconheça como um doente. Ora, o setor do SUS que cuida do processo transexualizador é obrigado a seguir o DSM-5 – o “Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais”, e o CID-10. E lá constamos como o número 64.0. Se formos crianças ou transcrianças, será 64 e “outro pontinho”; se for travesti, será 64 e “outro pontinho” também. Apesar de o termo “transtorno de identidade de gênero” ter mudado no último DSM para “disforia de gênero”, não mudou nada! Continuamos dentro do capítulo de doenças mentais. Então, o que acontece quando um trans vai procurar uma ajuda para obter o laudo ou para realizar a sua cirurgia ou a sua hormonização? Lembrando que a testosterona não é como uma pílula anticoncepcional que se compra em qualquer farmácia. Ela é um anabolizante usado por homes cis, por mulheres cis que fazem fisiculturismo; usado por homens não só que frequentam academia, mas também entre aqueles que se encontram na andropausa. Mas as farmácias boicotam a testosterona! Imagina chegar um trans homem que nem tem barba, com aquela figura ambígua, com a receita que ele “suadamente” conseguiu de um endocrinologista e o farmacêutico diz não ter testosterona para vender. É muito séria a questão. Então, a testosterona é um dos produtos mais usados no mercado paralelo, sobretudo nas academias. Ela é vendida só Deus sabe como! Os trans homens importam do Paraguai muita testosterona “malhada”, que inclusive é um perigo à saúde. Se um homem trans vai a qualquer endocrinologista que não tenha sido indicado por mim, ele vai sofrer. O médico vai perguntar primeiro: “Cadê o laudo do psicólogo?”. Se não tiver, ele diz: “Eu não hormonizo mulher! Eu não hormonizo sapatão! Eu não dou testosterona para lésbica!”. É isso que o trans homem irá ouvir. Se ele vai ao psicólogo, o psicólogo não sabe fazer laudo, não tem essa cadeira, 88 • psicologia, travestilidades e transexualidades nunca se trabalhou com laudo, por isso toda essa besteira aí. Primeiro: o psicólogo não é obrigado a colocar o CID em um laudo – isso é função do psiquiatra, não de um psicólogo. O que o psicólogo precisa escrever em um laudo é o tempo que ele está com o paciente – isso é importante, e dizer que não se verifica nenhum estado psicótico no paciente. E, caso queira, para aliviar a barra do trans, escrever que ele é trans. Vocês sabem que para trans e travestis não existe banheiro; eles mijam nas calças ou não mijam e a maioria dos trans possui cistite crônica, pois na rua não há lugar para urinar. Aqui nesse local eu fui ao banheiro e vi que tem dois banheiros para deficientes físicos. Eu nunca vi isso. Normalmente quando no lugar existe banheiro para deficientes físicos, é nesses que as pessoas trans usam, uma vez que esses banheiros não possuem gênero. Mas aqui tem! Cadeira de rodas masculino e feminino! quer dizer: e quem não é nenhum dos dois, vai onde? Eu sou deficiente físico, posso ir nos dois? (Aliás, eu tenho essa vantagem: quando vejo aquela fila de mulheres no banheiro feminino e o banheiro masculino vazio – e nenhuma mulher ousa entrar no banheiro masculino (raras as exceções). Vocês deviam bagunçar essa frescura! Banheiro é para mijar e cagar, mais nada! Estupro acontece dentro de casa, na família, sobretudo! Nem falei ainda da minha paternidade! Eu tenho um filho de 29 anos que é heterossexual, cisgênero, casado, engenheiro, tudo que eu não sou. A minha família não é homoafetiva, é transafetiva – assunto que ninguém fala! Agora mesmo, no dia 30 de junho, eu fui convidado para palestrar sobre transcrianças em um congresso internacional de homoafetividade. Eu já falei para a Berenice Dias: “você tem que mudar esse termo”. Mas ela falou: “esse termo já é complicado, se nós falamos em trans, então, neguinho arrepia”. Mas enfim... Eu casei quatro vezes! Adoro ser casado! Se for para eu ficar sozinho eu fico no “além” depois. No caixão eu vou ficar sozinho; na eternidade, não sei mais onde. Aqui na terra eu quero dividir, compartilhar. E eu conheci o Darcy Ribeiro no Golpe de 64 – eu tinha 14 anos, quando meu pai foi cassado e exilado para o Uruguai. E ele foi meu mentor intelectual, que me ensinou muitas coisas interessantes, me ensinou a falar palavrão – lá em casa não se podia falar frescura que 89 • psicologia, travestilidades e transexualidades papai se arrepiava. Então, Darcy fazia exercícios comigo: “Fala merda!”. Eu falava “Merda, merda”, bem baixinho. “Não! Enche a boca de bosta”, ele dizia. E se eu não tivesse perdido o medo das palavras eu não tinha escrito esse livro que eu escrevi. E ele me dizia que o bom do amor é que você pode amar várias vezes. E ele estava certo! Se a relação não está boa, parte para outro. Já estou no quarto casamento há 20 anos e não tenho pretensão de ser uma Elizabeth Taylor que casou seis vezes. Eu pretendo ficar no quarto casamento mesmo. Mas no terceiro casamento minha mulher engravidou – de outro homem obviamente, pois sou estéril. E eu, apesar dos chifres, fiz algo que dificilmente o homem faz, que é assumir a paternidade da criança. E eu sou um homem, não só um trans homem feminista, transfeminista, mas como feminino também. Eu tenho uma herança feminina forte. Um dia meu filho perguntou: “Papai, as mulheres são complicadas! Você podia me explicar?”. Eu respondi que ele perguntou para a pessoa certa, pois ninguém entende mais de mulher que papai. Eu contei a minha história para o meu filho quando ele tinha 13 anos. Contei em duas partes: a primeira que eu não era o seu pai biológico... Aliás, não irei mais falar nada, pois assim ninguém comprará o livro! Vou vender meu livro por R$ 50,00 reais lá fora. Tem maquininha de cartão também. É um livro que tem salvado muita gente e que vai virar um longa-metragem agora! O roteiro já está pronto e já estão capitando recursos. Para concluir, gostaria de falar sobre a “Lei de identidade de gênero” que foi o tema da parada esse ano em São Paulo e vai ser o tema da parada de Maringá. Um beijo para Maringá, que me convidou para ser padrinho da parada, mas infelizmente a grana da associação está curta. Agora os garotos de Sorocaba vão fazer vaquinha para pagar a minha passagem para que eu possa ir para Sorocaba/SP – fiquei tão emocionado! Pois trans, vocês sabem, não tem trabalho. Ninguém dá! Não sei por que uma mulher trans não pode ser comissária de voo – é só para servir comida! Na África do Sul contrataram, mas aqui no Brasil os garotos perguntam se eu mando currículo com o nome social ou de registro. Eu falo que tem que mandar com o nome social! “Você com essa cara de menino vai chegar lá e vai dar maior confusão, depois você explica pessoalmente”. Mas aí, quando chega a hora, está tudo certo. 90 • psicologia, travestilidades e transexualidades Vai assinar a carteira e mostra os documentos, perde a vaga! Então é assim: trans apavora, e eles mal sabem que quem dá trabalho aos trans possuem ótimos empregados, pois os trans sabem o quanto será difícil arrumar outro empego. Por isso, o trans é extremamente dedicado! Mas, “garotes”, o que eu quero dizer é que eu perdi o meu diploma de psicólogo depois que mudei o meu nome. Tornei-me um analfabeto e eu não pude mais exercer a profissão. E aí passei a exercer outras profissões que não exigem escolaridade: fui pedreiro, pintor de parede, de quadros – vendi quadros para caramba! Vendedor de uma porção de coisa, chofer de taxi. Foi bom, pois sei construir uma casa. Só a parte elétrica e trifásica que eu não sei, mas o resto eu faço. O mundo ficou mais fácil, dando a oportunidade de eu conhecer várias coisas. Portanto, se tiver algum trans homem que queria se apresentar [nesse momento, ninguém no auditório se apresenta]. É raro mesmo! Ou uma trans mulher que queria se identificar [uma pessoa se apresenta]... Muito bem! Eu acho que essa diferença de trans mulher ou travesti é uma questão puramente política, pois tantas mulheres trans ou travestis podem ou não se operar. Conheço inclusive várias mulheres trans que se operaram mas fazem questão de serem mantidas como travesti. Nossa cultura acha que travesti é sinônimo de prostituição. O que não deixa de ser verdade, porque 90% – aliás, segundo uma travesti, 97% das travestis são prostitutas. Enfim, é uma coisa terrível mesmo, pois somos expulsas de casa muito cedo, não há abrigo para trans. Só tem abrigo feminino ou masculino. Aqui em Santa Catarina, se uma mulher ou homem trans for expulso de casa, vai para onde? Não vai para um abrigo. Uma mulher trans ou uma travesti não vai para um abrigo de homens! Para quê? Para ser escorraçada, para apanhar? Ela prefere ir para debaixo da ponte, mesmo com esse frio todo. E ela não consegue trabalho. O único trabalho é a prostituição – para não morrer de fome. E muitas se drogam para conseguir fazer isso. E a sociedade está cagando, e ainda olha para ela e chama de “traveco” ou de “mulherzinha”. Vocês vejam que “mulher não vale porra nenhuma”! Chamam viado de “mulherzinha”, confundem travestis com viados, fazem uma confusão desgraçada. Uma bagunça total! E é isso o que somos: “esses trastes”. A última coisa que quero dizer é: todo trans que vai procurar um psicólogo, ele quer o laudo. E o que ele faz, sobretudo no SUS? Ele 91 • psicologia, travestilidades e transexualidades representa um círculo, porque a preocupação dele é atender a expectativa do psicólogo, o estereótipo do psicólogo, pois, para ser trans tem que ser “magrinho, para ser trans mulher ou travesti, tem que usar brinco, maquiagem, decotão”! Então, ela vai assim para poder ser aceita no processo transexualizador. Eu tenho uma amiga que foi com calça jeans e sem brinco e não foi aceita! Disseram que ela não era mulher! Então o grande problema da patologização é primeiro: você não ter autonomia sobre a sua própria identidade – quem tem que dizer “quem você é” é o psicólogo, o assistente social ou o psiquiatra. Você não sabe nada sobre seu respeito. Não adianta nada você dizer que é trans – isso não vai te dar laudo, não vai te dar porra nenhuma! E, segundo, perdermos autonomia sobre os nossos corpos. qualquer um aqui pode colocar silicone onde quiser, mexer na cara, fazendo vários procedimentos sem precisar ter um diagnóstico. Agora, nós, para mexermos na vagina ou no pênis, que ninguém vê, temos que passar por dois anos representando para uma equipe multidisciplinar, de pessoas cisgêneras, sexistas e que nunca estudaram gênero e sexualidade, cheias de estereótipos. Psicólogo não é dono do poder! Tem que ter é um ouvido enorme e um coração enorme para poder respeitar o outro, ouvi-lo e compreendê-lo. Muito obrigado! Referências BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, Jean-Bertrand. Vocabulário da psicanálise. Tradução de Pedro Tamen. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 92 • psicologia, travestilidades e transexualidades VOLTA AO SUMÁRIO l OS MECANISMOS DA PATOLOGIZAÇãO DAS VIDAS TRANS Hailey Kaas É sempre difícil ser a primeira a falar e abrir o assunto, por que o assunto é tão extenso. Há tanta coisa para falar, que acabamos perdendo um pouco do horizonte. queria me focar um pouco mais na questão política geral, mais do que qualquer aspecto técnico da despatologização, pois acho também que aqui – estamos em um seminário onde há psicólogos presentes, que fazem parte ou não do conselho – seria quase que “pregar para convertido” entrar nos detalhes das resoluções e dos aspectos técnicos da questão da despatologização, acho que isso já é um fato dado. Então, o que eu queria colocar: nesse momento, temos um governo onde as instituições estão “caindo de podre”, um governo altamente ilegítimo em todos os sentidos.1 Temos uma crise que faz com que a classe capitalista, para continuar lucrando, faça “passar goela abaixo” dos trabalhadores medidas de austeridade que prejudicam a qualidade de vida de nós, reles mortais, que não temos “costas quentes”. Então, eu acho que a “bancada fundamentalista” vai se aproveitar desse cenário de instabilidade política. Eu não irei dizer em avanço conservador, pois não acredito no avanço conservador e sim no enfraquecimento de grupos progressistas; então, temos várias figuras, mas 1 A autora estava se referindo ao governo do ex-presidente Michel Temer. não há nenhuma figura forte que apresente uma saída para a crise. Isso faz com que a política vire um “salve-se quem puder”. quem conseguir, conseguiu; quem não conseguiu, não conseguiu. Vão tentar de tudo, vão tentar passar de tudo. Estava até conversando com o Ematuir2, que parece que o projeto de lei da “cura gay” voltou em pauta. Eu não sabia, mas nenhuma novidade! Esse é o cenário onde os deputados irão tentar passar “goela abaixo” esses projetos conservadores; não só projetos que atacam LGBTs, mas outros projetos que flexibilizam a privatização e aprofundam o neoliberalismo no Brasil. Projetos que favorecem políticos e empresas privadas. Então, temos um “salve-se quem puder”, o que der deu para fazer... Faz. O que não deu, paciência! Acredito que seja esse o cenário político. Estão unidos em um único propósito: aprofundar esses ataques a todos os trabalhadores. Eu estou aqui como trans. Eu sou uma pessoa trans, e uma pessoa trans trabalhadora, sendo um detalhe importante por mais que possa não parecer, pois nesse país uma pessoa trans que tira o sustento de um trabalho que não seja o trabalho sexual é uma coisa rara. Há um dado da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) que diz que 90% das travestis estão na situação de trabalho sexual de alguma forma. Para além da discussão do trabalho sexual, o que eu acho é que esse tema em particular merece outro evento. Sendo uma discussão complexa, eu não vou querer reduzir essa questão aqui. Há um consenso de que nós, trans, não temos acesso ao mercando formal de trabalho, nem reserva de mercado de trabalho à população trans é. Por mais que ocupemos eventualmente cargos como telemarketing e atendente de supermercado, qualquer outra forma de trabalho precarizado, não é um tipo de trabalho que temos a garantia de conseguir, pois sempre a questão da transexualidade é uma questão que coloca essas pessoas no lugar da incerteza em relação ao emprego. Você nunca sabe como a pessoa irá reagir ou como o entrevistador vai “te ver”, se ele vai ou não “te respeitar” ou se vai “fechar a porta na sua cara”. É uma roleta, um jogo de sorte! 2 Conselheiro do CRP-SC (Gestão 2016-2019). 94 • psicologia, travestilidades e transexualidades Esse cenário de ataques faz com que a situação da população trans nesse país seja uma situação que se torne ou poderá se tornar mais precária. Temos uma Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) que será flexibilizada, em que o acordado valerá mais que o legislado, em um cenário em que empregadores não contratam pessoas trans ou, quando contratam, também não garantem a permanência. Pois, quando falamos em contratação, não basta somente a assinatura do contrato. Estamos falando também de assédio, nome social no crachá, acesso ao banheiro correto, alteração do nome no sistema se houver, e-mail, e por aí vai... Eu conheço pessoas trans que são funcionárias públicas que por mais que tenham seu direito de “trabalho garantido”, a situação no trabalho é tão insuportável, com tanto assédio e discriminação, que se torna impossível se manter no espaço. Enfim, eu acho que nós temos que pensar além da questão única da empregabilidade e pensar também na questão de qualidade vida. É mais ou menos aí onde queria chegar, que é quando falamos da questão da patologização. A patologização é um mecanismo que faz com que as pessoas trans não tenham qualidade de vida enquanto sujeitos. Não só enquanto sujeitos de direitos, cidadãos que possuem seus direitos humanos reconhecidos, mas enquanto pessoas que tenham o acesso a determinados serviços sociais, serviços providos pelo Estado e que tenham também direito ao atendimento público de saúde e de qualidade, inclusive o atendimento psicoterapêutico, seja análise ou psicoterapia. Um dos grandes problemas que nós, trans, enfrentamos é a grande carga de sofrimento. E não estou falando do sofrimento interno, mas da questão externa mesmo. O quanto temos que, como diz popularmente, “cortar um 12”, como temos que “engolir sapos, rãs, enfim, a lagoa inteira”, para conseguir continuar simplesmente vivendo e andando na rua, acessando a universidade... A dificuldade é tanta que as pessoas trans que conseguem viram casos que aparecem na mídia, por exemplo, “a primeira travesti doutora”. Ao mesmo tempo em que é um motivo a ser celebrado, é também algo lamentável que uma travesti virar doutora seja uma novidade ou uma notícia, do ponto de vista de que falhamos muito em criar mecanismos para que as pessoas trans consigam navegar nesses espaços que todo mundo deveria. Podemos 95 • psicologia, travestilidades e transexualidades entrar em outras discussões, por exemplo, a questão racial. Enfim... E que a universidade é uma instituição que barra a minoria, não só as pessoas trans. Mas o quanto temos falhado para criar esses mecanismos de acolhimento e de atendimento psicossocial a essas pessoas. Nesse sentido, a questão da despatologização, além de ser uma questão que toca na ideia de que não somos doentes mentais, também tem muito a ver com a qualidade de vida que nós não temos nessa sociedade. Afinal, a única forma que temos de acessar o atendimento médico é nos desagenciando, é utilizando do mecanismo da patologização para conseguir um documento, mesmo assim não se sabe se o juiz vai fazer a alteração do prenome. É tudo um “e se” ou um “talvez”.3 Um documento ou um laudo não te garantem nada a priori. Nós temos que passar por essa violência, de nos vermos naquele espaço onde os profissionais, não só tem uma visão patologizada da transexualidade, mas também uma visão machista e visões heteronormativas. Hoje, ainda é muito difícil falar em mulheres trans lésbicas, homens trans gays e pessoas trans bissexuais e pansexuais, de sexualidades não heterossexuais. Então, imagina o que é uma pessoa trans que não possui uma sexualidade normativa se descobrir trans e perceber que seu desejo não é heterossexual? Como ela navega nos espaços LGBTs? Como ela se entende? Ela não tem apoio “psi” nenhum! E, de certa forma, isso é luxo. No país que mais mata travesti, isso é luxo. Ainda estamos engatinhando na formação das pessoas trans, formação no sentido amplo, no atendimento às pessoas trans enquanto cidadãs, pois, em todos os aspectos e em todos os lugares que eu vou, acesso à Educação não tem, bem-estar social não tem, formação profissionalizante não tem. O que temos são Organizações Não Governamentais (ONGs) fazendo cursinho de manicure. Nem entrarei nesse mérito; mas, passam os anos, passam décadas, e estamos ainda nos cursinhos de cabelereiros com a visão de que travesti tem que ser cabelereira ou manicure. E as travestis que sonham em ser cientistas, bió3 No momento desta fala, ainda não estava consolidada a decisão tomada em 2018 pelo Supremo Tribunal Federal, sobre a possibilidade de mudança de nome e gênero nos documentos de identificação sem ser por meio da Judicialização. 96 • psicologia, travestilidades e transexualidades logas, engenheiras? Nem estou “puxando sardinha” para a área de humanas, que é a minha área, pois os professores estão ganhando muito mal. Eu não sou professora, mas fiz letras; então, minha área está ali junto com os professores. E professor nesse país está uma tragédia. Não temos ideia da dimensão que é, e do quão longe que estamos de nos igualarmos com as pessoas que não são trans – as quais eu comumente chamo de pessoas cisgêneras. Em quase todos os critérios, alteração corporal temos poucas pesquisas, nem uma que fale sobre a questão da hormonioterapia. Nem vou entrar no mérito de que no SUS temos o protocolo que estabelece um remédio padrão, para todas as pessoas. O que tem na farmácia, segundo o SUS, de graça; se não tiver, não receitamos. Nós não temos pesquisas sobre a hormonioterapia, não temos profissionais endócrinos médicos que são preparados para atender pessoas trans, não temos psicólogos nem psiquiatras preparados para atender pessoas trans, não temos professores preparados para atender pessoas trans... Estou falando para vocês de uma visão geral. Eu tenho colegas que possuem boa intenção, que vem no Facebook: “ai tem uma aluna trans na sala, o que eu faço?”. Os professores não possuem noção – e estou falando sem sentido de valor da ignorância, no sentido mais puro – porque não têm contado. Somos uma categoria de pessoas tão estigmatizadas, marginalizadas socialmente, é aquilo né! Dá meia noite, o relógio bate as doze badaladas e saem as travestis do “buraco do centro da terra”. Trabalham. Depois, dá seis horas e elas voltam para o buraco... Pois onde vocês veem essas pessoas circulando socialmente? Em lugar nenhum. Então, eu acho que a questão aqui, claro, com ressalva a muitos avanços que tivemos na última década, especificadamente, nos anos 2000, em relação a todos os ganhos que a militância conseguiu junto ao protocolo transexualizador. Não estou jogando isso “embaixo do ônibus”, mas temos que ter a dimensão do quão distante que ainda é essa luta pelo bem-estar social das pessoas trans, de conseguir até mesmo um emprego digno e de estudar... O que fazemos para profissionalizar essas pessoas? O que temos feito, para que essas pessoas consigam acessar e permanecer na universidade? Porque penso assim, os profissionais e pesquisadores que 97 • psicologia, travestilidades e transexualidades lidam com a questão das minorias têm muito claro que há uma questão de racismo na universidade, onde as pessoas negras não acessam a universidade, precisando de cotas. Pelo menos no geral, essa é uma discussão que já está dada. Mas em relação às pessoas trans? Ainda não se fala, não falamos das pessoas trans, falamos muito de pessoas LGBTs. Claro que não possuo uma opinião separatista que acha que as pessoas trans tenham que sair da sigla, mas são coisas diferentes, até pelo fato de que as pessoas trans podem ser duas letras da sigla. Eu sou duas letras da siglas, o B e o T. Então, o que isso significa em um país onde mal conseguimos discutir se a pessoa trans pode mijar ou cagar no banheiro? Estamos nesse nível: se posso entrar no banheiro e fazer minhas necessidades. Essa matéria inclusive está no STF para apreciação e, ao mesmo tempo em que sentamos para assistir torcendo para o negócio passar, é uma tragédia que a mais alta corte do país tenha que decidir se as pessoas trans podem ir ou não ao banheiro. Já encaminhando para o final, eu acho que temos que começar a pensar também o que temos produzido à transexualidade, no sentido de quais critérios temos reforçado e estabelecido para que as pessoas trans se encaixem e acessem. Não estou falando somente do critério patológico clássico; estou falando dos critérios de comportamento, critérios de sexualidades, critérios de autoimagem que temos reforçado para que essas pessoas trans acessem esses espaços, como “a pessoa trans é aquela que é feminina”. Mas o que é ser feminina? Ao mesmo tempo é necessário que haja alguns critérios. Estamos engatinhando na questão de entender que na mesma forma que as pessoas cisgêneras vivenciam o gênero delas de formas distintas, inclusive as pessoas gays e lésbicas vivenciam suas masculinidades e feminilidades de formas distintas, as pessoas trans também. Nosso gênero é exatamente igual ao de vocês. Nossa vivência com o gênero não é uma vivência especial ou particular. A única diferença é que reivindicamos um espaço e um lugar perante o Estado e a sociedade que nos entendem como algo problemático, algo a ser combatido, “pois sentir, você pode sentir o quanto quiser; o que não pode é se expressar”. Como o pessoal diz: “você pode ser gay, só não pode desmunhecar”; “você pode ser gay, só não pode namorar ninguém, não pode sair na rua, não pode fazer nada”. quer dizer, na sua cabeça, você é gay, mas no resto da sua vida você não é. 98 • psicologia, travestilidades e transexualidades Nós ainda estabelecemos muitos critérios e essa é uma discussão que a Psicologia tem que enfrentar, como que as pessoas trans têm vivenciado o gênero delas? Por que temos os critérios de masculinidade de feminilidade estabelecidos paras essas pessoas? Não estou falando apenas dos critérios clássicos, como mulher usa maquiagem e homem usa barba. Estou falando de outros critérios, inclusive de comportamento, de características emocionais, gostos pessoais, que tenho visto muito serem reforçados, sobretudo práticas sexuais. Aliás, acho que esse é um assunto que necessita de outro evento, pois temos também estabelecido práticas sexuais padrões para as pessoas trans, como “quem é passivo ou ativo? “quem faz o quê?”, para além da questão da cirurgia de redesignação sexual. Voltando ao começo sobre a situação política, eu acho que tudo isso caminha para um entendimento de que esse bem-estar social e a forma que temos de promover acesso às pessoas trans tem a ver com o pensamento que temos de positivar as vivências das pessoas trans e que nós precisamos trazê-las cada vez mais para o centro do debate da Psicologia. Pois os psicólogos são sempre chamados para falar sobre pessoas trans, mas eles não possuem uma disciplina. Então, ao mesmo tempo em que temos que trazer esta questão para o centro de debate da Psicologia, temos que trazer literalmente as pessoas. E não estou falando somente nesses eventos, mas na formação enquanto psicólogos, enquanto alunos de Psicologia, mestrandos, doutorandos, mestres, doutores, enquanto outros profissionais, enquanto médicos, inclusive. Toda essa situação de crise, de falta de recursos, de dificuldade de acesso, de universidades fechando, de falta de direitos para LGBTs e pessoas trans, de retrocessos... É uma situação que, no final das contas, diz respeito ao fato de que temos um sistema que faz existirem pessoas que sejam reserva de mercado de trabalho, criando desemprego, pois o capitalismo gera desemprego. Não iremos resolver essa situação de desemprego enquanto não se resolver a questão do capitalismo, que é um sistema que ataca nossos direitos e que cada vez mais tem colocado e transferido a renda dos mais pobres para os mais ricos. Então, não conseguiremos esses projetos, essas ideias e toda a questão de acesso à saúde, a questão de formação de profissionais, se nós 99 • psicologia, travestilidades e transexualidades também não combatermos, em outra frente, esses ataques para a precarização do trabalho, da reforma da previdência, mais especificadamente a reforma trabalhista. Eu defendo que a militância LGBT se una com a militância partidária, especialmente a militância socialista, e que reivindiquemos direitos LGBTs, mas também direitos trabalhistas; afinal de contas, também somos trabalhadores. 100 • psicologia, travestilidades e transexualidades VOLTA AO SUMÁRIO l CORPO TRANS: CONDIÇÕES DE SAÚDE, BEM-ESTAR E POSSIBILIDADES DE EXISTÊNCIA Christian Pedro Mariano Desejo iniciar minha fala salientando a importância de observarmos a nossa consciência corporal. quando estou assim em exposição para o público, gosto de informar a vocês o que estou sentindo: o nervosismo, a ansiedade, os tremores nas mãos, a sudorese e todas as sensações que este momento presente, com esta situação, trazem. Oferecer um relato de minha vida nestas palestras e rodas de conversa, é algo muito especial para mim; mas, tem algumas consequências disso. É muito difícil sair de casa, chegar pontualmente nos compromissos assumidos, enfim, fazer parte desta sociedade, pois é muito complicado o enfrentamento a transfobia cotidiana. quando falamos em despatologização, necessariamente nos remete à ideia de um corpo que carrega consigo o estigma da doença, mesmo sem de fato possuir qualquer patologia. No caso das identidades trans, é necessário e urgente a desmistificação e desconstrução desta ideia. Paralelamente, chamo a atenção aqui para refletirmos também sobre existência e resistência de nossos corpos ao possibilitar a transição entre gêneros. Apesar de admitirmos a transformação aparente de nossos corpos com intervenções cirúrgicas e/ou químicas, na busca por padrões e códigos normativos do que se acredita ser um tipo, já predeterminado, do que é “passável” e permitido à moral da sociedade; antes ainda de qualquer possibilidade de questionamento de binaridade, ambiguidade ou, ainda, a ausência de gêneros pela autoderminação dos sujeitos, a ideia de corpo já existia e este corpo já se manifestava, antes mesmo de suas vontades e ambições de gênero. Se há tal patologia, ela já nasce com este corpo? Ela é adquirida ou desenvolvida? E quem deve determinar esse gênero ou a ausência dele, senão este corpo manifestado em identidade? Na contextualização de uma suposta construção de gênero, podemos lembrar aqui da frase memorável de Simone de Beauvoir (1980, p. 9), em sua obra “O segundo sexo”, na qual afirmou que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. Neste sentido, a construção social do que é ser mulher e, por consequência, do que é ser homem, desvaloriza aspectos de amplitude corporal, considerando de forma limitada a experiência do indivíduo com a sociedade ou seus pares, mas para além, anulam e desprezam o ser em sua totalidade, negligenciando a experiência de relação consigo mesmo e sua satisfação nessa perspectiva íntima e pessoal do ser que habita os corpos. E qual seria a nossa transgressão se não fossemos divididos, classificados e nomeados ao nascer como homens e mulheres, com comportamentos femininos e masculinos? A pessoa transgênero vive permanentemente dividida e tensionada entre a transgressão dessas normas e a busca pela conformidade com elas, só que, em geral, dentro de uma categoria de gênero que é oposta àquela em que a pessoa foi enquadrada ao nascer. Mas o “estado de conflito” em que a pessoa transgênera é habitualmente descrita nunca foi dela com ela mesma, ou da sua subjetividade com a sua corporalidade, mas a consequência imediata da sua transgressão das normas sociais de gênero, através de “pensamentos, palavras, atos e omissões” (LANZ, 2014, p. 23-24). A transgressão à regra normativa de gênero tem nas identidades trans, especialmente em transexuais, seu maior poder potencializado quando estes indivíduos decidem, através de uma descoberta íntima fazer sua transição de gênero por meio de intervenções corporais, e isso parece incomodar grande parte da sociedade. É exatamente nas identidades trans que podemos notar a materialidade de algo que é 102 • psicologia, travestilidades e transexualidades diverso e plural na sociedade: os indivíduos, dotados de corpos, vontades, anseios, frustrações, desconfortos e suas performances. No entanto, percebam que trago aqui, através de minha experiência como homem trans, o anseio que se origina no desconforto desta relação corpo-performance (exigida). O uso dos hormônios, e as possíveis intervenções cirúrgicas que buscamos, é pela satisfação íntima de se reconhecer e de comunicar quem se é, e não no “dever ser”. Não se trata de um ideal de gênero, muito embora esta fusão de valores ocorra quando a sociedade pressiona e tensiona minha experiência íntima, por meio da bússola controladora dos códigos normativos. Existe ainda uma crítica que a opinião pública faz a respeito da hormonioterapia e das cirurgias reparadoras na transição de gêneros, que é a de que reforçamos, com estas ações, o capitalismo e seu sistema de consumo, por alimentar a indústria química e a máfia das cirurgias plásticas. Porém, eu que ainda não fiz as cirurgias pela dificuldade de acesso às mesmas, trago aqui toda carga de um sentimento conflituoso íntimo de reconhecimento de identidade, que somente é reforçado com a falta de respeito ao uso do nome social. É o ser para o outro, mas não para si. Vai além da subjetividade. Trata-se especificamente em uma tentativa, exitosa para a maioria dos casos, de uma reabilitação orgânica, de se reconhecer inteiro, pleno, completo, em uma relação de harmonia interna através de tecnologias disponíveis para a maioria da população de pessoas cisgêneros, mas renegada a nós, pessoas trans. Assim como há corpos que nascem sem algumas funções e precisam de uma readequação funcional, algumas pessoas transexuais sentem o desconforto e a necessidade de suprir o que julgam lhes faltar, ou adequar alguns órgãos para melhorar suas funções já existentes, quando não, retirar órgãos que julgam estar em desalinho com a identidade sentida. Ainda assim, isto está distante de se tratar de uma patologia, muito embora haja vasta discussão sobre os limites para as cirurgias e já se encontrou o nível do bom senso, que é a readequação genital, a colocação de próteses e a mamoplastia masculinizadora. Com as intervenções corporais, busca-se a integralidade adequada ao meio de vida, e não para uma questão performática apenas. Trata-se de uma questão de saúde e bem-estar. Atualmente encontramos 103 • psicologia, travestilidades e transexualidades também nas identidades trans uma parcela significativa de pessoas que se autodeterminam como não binárias e/ou bissexuais e assexuais. Isto nos mostra mais uma vez que o desejo por “moldar” corpos nem sempre reforçam os padrões da heteronormatividade, como também é difundido na academia. Para afastar a ideia de que estes corpos possuem necessariamente doenças de alguma ordem, falo de um exemplo pessoal, pois depois que me descobri e passei a fazer uso regular e periódico dos hormônios, como repositores, não precisei utilizar nenhum medicamento ou substância química pela ausência de estados patológicos, visto que a saúde mental e o bem-estar que a transformação me proporciona, garantem a minha condição de integralidade psíquica e fisiológica, além de melhorar meus níveis de ansiedade, stress e imunidade. Houve também estabilidade de humor, pressão arterial, disposição física, entre outras, observadas e registradas com exames periódicos e acompanhamento médico e psicológico. O único tratamento que atualmente faço é para a psoríase, doença autoimune que se desenvolveu devido à exposição a vários quadros traumáticos ao longo dos anos. Aqui em Florianópolis existe um movimento de ativistas em diversas causas como Direitos Humanos, Direitos da população LGBTI+, pessoas ligadas ao serviço público de saúde, profissionais da área da saúde pública e privada, usuários trans do serviço SUS de saúde etc., que visibilizam o debate sobre as questões trans e em específico sobre a despatologização. Para as Identidades Trans é importante a retirada da Transexualidade da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID) como doença mental, ou seja, como Disforia de Gênero. Porém, como dependemos da criação e ampliação de serviços na área da saúde – como programas para prevenção e tratamento de doenças, fornecimento de hormônios, colocação de próteses, retirada e reconstrução peitoral, entre outros – é razoável que se estabeleça um código de saúde, mas no sentido de bem-estar, e não para doença. Percebemos o mesmo equívoco que havia em relação à homossexualidade, antes reconhecida como doença mental: o homossexualismo. Tal qual ocorre atualmente, em que se admite a palavra transexualismo por equivocada definição. 104 • psicologia, travestilidades e transexualidades Frente a essas discussões mais amplas e de níveis internacionais, não costumo ampliar muito meu ativismo em causas trans, direitos humanos e étnico-raciais para além da cidade onde moro (Florianópolis), que é onde tenho mais acesso, por poder também estar perto de amigas e amigos trans, com vivências semelhantes à minha. Há cerca de cinco anos, criamos um grupo de WhatsApp, onde rapazes trans (somente homens trans) tinham melhor acesso a informações sobre a transição e discussões específicas a nossa experiência. É um grupo que, além de prestar informações sobre hormônios, cirurgias, uso de roupas, agendamento de consultas no ambulatório etc., serve também como rede de apoio e acolhimento. As regras são: serem moradores do sul do país, ter identidade trans por autodeterminação, manter o respeito e evitar discussão de assuntos muito polêmicos, como religião, política e times esportivos. Estes rapazes são inseridos no grupo pelos administradores (eu e mais dois homens trans), são convidados a se apresentarem, de preferência com foto, informando tempo de hormonioterapia, se fez cirurgias (quais?), e o deixamos sempre à vontade caso queiram manifestar outras informações, como orientação sexual. Este grupo é um canal intermediário entre os rapazes trans e o nosso ambulatório. Sempre que possível, divulgamos informações do ambulatório, mantendo-os vinculados ao projeto. Eles passam pelo mesmo processo que passei e com dificuldades muito parecidas, como não conseguir emprego, dificuldades com a família, assédio moral, perseguição na escola, conflitos específicos nos relacionamentos íntimos, o abandono familiar, as tentativas de suicídio devido às opressões, e outras vivências. E é neste ambiente virtual coletivo que nos aconselhamos e buscamos soluções criativas, buscando um ambiente afetuoso e uma relação de confiança e amizade. Para os rapazes que decidiram fazer a hormonioterapia, observamos uma significativa evolução nas características lidas socialmente como masculinas e, de acordo com o propósito alcançado, notam-se expressivas melhoras na condição de autoestima e de socialização. A busca pelo serviço de atendimento e acompanhamento psicológico também se mostra fundamental para manter a saúde mental diante da ansiedade e expectativa pelas mudanças corporais. 105 • psicologia, travestilidades e transexualidades Costumo enfatizar a existência do nosso serviço médico de saúde às pessoas trans, que por meio de um projeto social, passou a atender centenas de pessoas trans em busca de hormonioterapia. É importante ressaltar o quanto a tecnologia da medicina familiar aplicada a este fim tem transformado a realidade de muitas pessoas na cidade de Florianópolis. O atendimento acontece no Centro de Saúde, em horário diferenciado, por médicos e residentes do curso de extensão em saúde, da Universidade Federal de Santa Catarina. As pessoas trans são acolhidas pela equipe, e através da autodefinição como pessoa trans, já são reconhecidas como tal, sem necessidade de enquadramento em critérios diagnósticos. A partir daí, os médicos solicitam exames para saber a condição de saúde, e passam a prescrever os hormônios. Penso ser desnecessário o checklist de potenciais “características trans”, mesmo porque acredito ser complexo atender a toda diversidade por dicas, regras e normas de conduta, bastando realmente a autoidentificação expressa informada aos médicos. Os médicos deste Centro de Saúde (chamado popularmente de Ambulatório Trans) nos recebem com um controle de triagem e atendem com hora agendada por e-mail ou por encaixe, em alguns casos. Assinamos um termo de responsabilidade pelo uso dos hormônios, quando somos informados de que alguns efeitos são irreversíveis, recebemos a receita e vamos à farmácia comprar o hormônio para iniciarmos a transição. Hoje, minha crítica ao serviço de saúde oferecido para pessoas trans na cidade é que precisamos avançar e ampliar os cuidados com os corpos trans de forma mais específica, contemplando os programas que já existem, como o da saúde da mulher e da saúde do homem. Precisamos ter ciência que existem corpos masculinos com vagina, ânus, útero, mamas, ovários, que engravidam e abortam, ou ainda, desejam retirar as mamas e reconstruir seus genitais, assim como corpos femininos que desejam ter mamas, cuidar da próstata, construir vaginas, retirar seus pênis, que possuem demandas de controle de natalidade, prevenção às Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) e HIV/ AIDS, questões de fonoaudiologia, nutrição, ginecologia, urologia, e outras especialidades e necessidades. Este serviço foi uma conquista muito árdua para a nossa população, já que não fomos contemplados 106 • psicologia, travestilidades e transexualidades ainda com a criação do Ambulatório Especializado para pessoas trans, tal como existe em algumas outras capitais. Temos cotidianamente a preocupação de que este projeto não seja ampliado ou que simplesmente seja interrompido. Nossas condições de acesso à saúde têm impacto direto em nossa existência, um exemplo é o quanto é difícil conseguirmos trabalho e emprego; porém, quando temos acompanhamento médico e a terapia psicológica, surgem força de vontade e ânimo para sair de casa e participar de processos seletivos altamente competitivos. Julgo importante mencionar que o modelo e regras que foram colocadas pelo Ministério da Saúde, através da Portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013, apresentada aos médicos e técnicos da rede pública de saúde, oferecem na verdade uma definição de como deve ser “diagnosticada” a Transfobia de Gênero, fundamentando-se em características do que é ser mulher e homem trans. Como se a identidade trans seguisse padrões lineares e predefinidos a respeito de seus cabelos, barba ou a falta dela, vontade ou não de fazer cirurgias para colocar os seios, ou a mamoplastia masculinizadora para retirar os seios, a intervenção com os hormônios, para além, o desejo por usar roupas masculinas ou femininas. Entretanto, essas “pré” definições caem por terra, quando se percebe que a verdadeira realidade do universo de pessoas trans, é muito mais ampla e plural, por exemplo, muitas pessoas sequer desejam a cirurgia rompendo assim com a busca de satisfazer o sistema cisnormativo e machista da nossa sociedade. Nós questionamos muito mais a sociedade depois que nos descobrimos, pois, além de levarmos estas reflexões à sociedade que nos cerca, passamos a entender que nossos corpos já são políticos desde sempre, por nossa luta e resistência. Com isso, também não é rara a mudança de orientação sexual após a transição, fazendo romper as expectativas heteronormativa que circundam a experiência de homens e mulheres. Por romper com certas barreiras de normatividades, foi que cheguei até aqui e sobrevivi. E “só” por isso valeu a pena escapar das minhas tentativas de suicídio, pois não era, de fato, um desejo de morte, mas de provocar mudanças na realidade dentro e fora de mim, conectando-me com outras pessoas com este mesmo sentir. 107 • psicologia, travestilidades e transexualidades O sofrimento psíquico, físico e emocional que as pessoas trans relatam vivenciar desde crianças, através das mais variadas violências, fica gravado no corpo de diversas formas, e isto, implica marcas e cicatrizes muitas vezes manifestadas em forma de doenças, traumas ou desequilíbrios de toda sorte; mas, ainda assim, isso não significa que a própria transexualidade ou outra espécie de identidade trans seja em si uma patologia, nem tão pouco é ela em si a única causa de todo desconforto vivido. Não somos pessoas trans todas iguais. O uso do nome social ou a retificação de nome, por exemplo, não fazem parte do desejo de todas as identidades trans. Mas, mesmo assim, buscamos a consolidação de leis que garantam o direito de todas as pessoas que desejarem ter acesso a este direito, através de políticas públicas específicas para nossas demandas e necessidades. Desejamos levar o debate das pautas trans para todos os espaços políticos, as quais são necessidades de ordem básica e comum a toda população, como o direito à saúde, segurança, educação, de personalidade entre outros. Outra conquista difícil é a recolocação no mercado de trabalho, durante e após as transformações com o uso de hormônios. No meu caso, fiquei quatro anos no mercado informal como freelancer, pela minha frágil condição, devido à retificação de nome que ainda não consegui, através do moroso processo judicial em andamento. O preconceito é velado, mas aparece na forma de impedimentos e processos dificultados propositalmente, ficando quase impossível alcançar o êxito da contratação. Desde que me reconheci homem trans, passei a trabalhar como segurança de eventos, cuidador de crianças, faxineiro, e outras atividades entendidas socialmente como subempregos. Mesmo possuindo nível superior completo, não consegui mais me inserir no mercado de trabalho. Esta semana passada, consegui uma indicação de emprego com a possibilidade de contratação em uma Instituição de Ensino. Ao divulgar esta conquista, os comentários que ouvi foram com os aspectos filantrópicos de quem me contratou por eu ser trans, e não pelas minhas qualidades profissionais. Lamentável isso. Desvalorizam as pessoas trans, reduzindo-as a uma única característica. Nossas condições humanas ficam para segundo plano sempre. Antes 108 • psicologia, travestilidades e transexualidades da transição, eu nunca havia ficado mais de um mês desempregado, mesmo com todas as crises econômicas que vi passar. Eu poderia contar a vocês outros episódios sobre a minha vivência, mas prefiro lançar estas questões ao debate e responder às perguntas, focando assim no momento político que enfrentamos hoje, conforme a colega disse em sua fala anteriormente. Assim pensamos juntos em garantias ao que já foi conquistado, e avanços possíveis. Confesso ser uma pessoa bem otimista ao cenário geral do país. Hoje, por exemplo, estamos aqui, em um evento do Conselho Regional de Psicologia, trazendo como pauta um tema que jamais ouviríamos falar em espaços como esses cinco anos atrás. Percebo que muitas estratégias estão sendo feitas para além de níveis governamentais, mas principalmente por nós, cidadãos. Não se pode isentar o papel das Políticas Públicas em nossas vidas! Devemos cobrar isso das autoridades. Sei que não é um tema agradável a vocês, já que a maioria massacrante das pessoas que estão aqui são cisgêneras e estão confortáveis habitando seus corpos, ou com a condição das intervenções possíveis para buscar o conforto que precisam ter, através de plásticas ou uso de próteses, ou outras estratégias como vestimenta, acessórios e maquiagens, por exemplo. Sei também que é um assunto polêmico, que traz diversos questionamentos internos, de ordem íntima e pessoal, de quebra de paradigmas, por vezes traumáticas. Já houve ocasiões, em palestras, onde pessoas se identificaram como trans, pelos meus relatos de vida e isso nem sempre é tranquilo de acontecer. Porém, penso ser importante desconstruir preconceitos em todos os níveis para que transpareça a conclusão mais óbvia e simples que existe: a de que todas e todos nós possuímos anseios e desejos diversos. Temos e somos a própria diversidade intrínseca em nossos processos e conflitos, e precisamos entender isso para que justamente tenhamos uma maior compreensão do outro (sujeito). Agradeço pela presença de cada uma e cada um de vocês, pelos olhares acolhedores que recebi. Muito obrigado mesmo! 109 • psicologia, travestilidades e transexualidades Referências BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013. Redefine e amplia o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS). Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/ prt2803_19_11_2013.html. Acesso em: 11 fev. 2019. LANZ, Letícia. O corpo da roupa. Curitiba: Transgente, 2014. 110 • psicologia, travestilidades e transexualidades VOLTA AO SUMÁRIO l ASSOCIAÇãO EM DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS COM ENFOqUE EM GÊNERO E SEXUALIDADE (ADEH): PRÁTICAS DE RESISTÊNCIAS FRENTE ÀS VULNERABILIDADES DA POPULAÇãO TRANS Lirous K’yo Fonseca Ávila Boa tarde a todos e “todes”. Primeiramente, quero agradecer pelo evento – essa mesa maravilhosa –, pois estou com todos os meus amigos aqui. O que quero trazer um pouco é a experiência que temos na instituição e que vem sendo maravilhosa, desde o ano de 2010. Para quem não sabe, a Fabrízia – que está ali, que pode levantar a mão (risos) –, ela é coordenadora da instituição junto comigo, e nós, desde 2010, estamos coordenando a ADEH juntas, exatamente no mesmo ano em que a Psicologia começa a se aproximar da instituição de uma forma mais efetiva digamos assim. E, diferentemente, do que se pensa, nós colhemos coisas muito boas, pois graças à equipe da Psicologia, é que estamos fazendo um belíssimo atendimento e estamos nos desconstruindo, principalmente como seres humanos. Assim como qualquer um que está aqui dentro, nós também somos preconceituosas, racistas, sexistas, machistas. E estamos quebrando isso todos os dias, e até mesmo para conseguir dar conta de todas as opressões de gênero que batem na porta da instituição. E, na maioria das vezes, não sabemos o que fazer. Então, a contribuição da Psicologia na ADEH veio de uma forma magnífica, e nós, como diretoria, aprendemos muito com as pessoas muito mais do que ensinamos algo ou ajudamos com algo, é uma troca mútua. A ADEH é uma Associação em Defesa dos Direitos de Humanos que acolhe pessoas vítimas de violência, trabalhando diretamente com a população de travestis, transexuais, e também de lésbicas, gays e bissexuais. Fica na Rua Trajano, nº 168, no centro de Florianópolis/SC, é de fácil acesso. Nosso telefone é (48) 3371-0317, atendemos das 14 às 18 horas, e temos uma equipe de psicólogos e estagiários de Psicologia, aconselhamento jurídico e atendimento social. Esses serviços são todos gratuitos e para toda a população. Afinal, não é pela instituição ter sido fundada e dirigida por travestis e transexuais que não atendemos toda a população; atendemos sim, e realizamos o encaminhamento da melhor forma possível. O desenvolvimento da ADEH hoje tem uma íntima relação com a entrada da Psicologia na instituição, pois foi com ela que começamos a fazer eventos na universidade; com isso, conseguimos fazer “pontes” bacanas e hoje conquistamos o ambulatório, que é um privilégio nosso, funcionando das 18 às 22 horas, somente nas segundas-feiras. Sobre o ambulatório, nossa maior crítica e que, como temos pouco acesso ao SUS e temos dificuldades, principalmente, para sermos atendidas nas unidades básicas de saúde, o único local que conseguimos ir e que sabemos que seremos muito bem acolhidas é no ambulatório1. Então, temos esse período para nos “programar” se queremos ficar doentes, isto é, apenas nas segundas-feiras ou no domingo! (risos). Então, na ADEH nós fazemos esse trabalho de acolhimento, de atendimento psicológico às meninas e meninos travestis, transexuais 1 O Ambulatório de Atenção Primária à Saúde para Pessoas Trans de Florianópolis é um projeto criado por residentes do Programa de Residência em Medicina de Família e Comunidade, da Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis e em parceria com a Associação de Direitos Humanos com Enfoque em Gênero e Sexualidade (ADEH). O ambulatório iniciou os atendimentos em agosto de 2015, no Centro de Saúde Lagoa da Conceição. Atualmente, o projeto é realizado no Centro de Saúde Saco Grande. 112 • psicologia, travestilidades e transexualidades e pessoas lésbicas, gays e bissexuais em geral que tenham interesse, também encaminhamos ao ambulatório as pessoas que desejam o processo hormonal, acompanhamos a retificação do nome, e outros serviços, por exemplo, rodas de conversas, cine debates. Vamos ter, agora em breve, uma festa junina e cafés mensais, inclusive para quem quer conhecer o espaço. Nesse contexto, uma das problemáticas que vem surgindo ao serviço de Psicologia na ADEH é a questão da elaboração de laudos, muitas pessoas trans pagam altos valores de consultas para terem acesso a um documento que atesta a veracidade de sua transexualidade e as categoriza como pessoas com transtornos mentais. Ficamos com as “mãos atadas”, pois na instituição somos muito críticas a este tipo de documento e seu discurso patologizante, e não aceitamos fazer o laudo. Nós queremos realizar o processo de retificação de nome, mas não queremos nos submeter a um laudo anexado, que ateste algo sobre nós para um juiz! Essa burocracia que foi instituída faz com que a população em maior vulnerabilidade e menor acesso aos profissionais da saúde cheguem à instituição solicitando o laudo. Frente a isso, nossos profissionais de Psicologia têm trabalhado com pareceres como forma de não colaborarmos com a patologização das pessoas trans e com um mercado paralelo constituído por profissionais que não têm conhecimento e visão crítica sobre nossas experiências2. Outras dificuldades cotidianas e que afetam diretamente a saúde mental das pessoas travestis e trans é a questão hormonal, pois a testosterona não é distribuída gratuitamente pelo SUS; com isso, é comum ser criado outro mercado paralelo: o de negociação de compra e venda de hormônios feita por alguns homens transexuais. Nesse mercado, uma pessoa que possui o laudo, consequentemente, possui acesso ao médico e à receita, e com isso pode comprar a testosterona e vender por um valor bem elevado para os homens trans que 2 Em 1º de março de 2018 o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou lei que autoriza todas as pessoas trans a retificarem o nome civil sem a exigência de cirurgia ou decisão judicial. Portanto, sem a necessidade de documentos psicológicos. 113 • psicologia, travestilidades e transexualidades desejam realizar a hormonioterapia. Assim, começamos a criar outros mecanismos de crime, outras máfias, de certo modo. São essas duas problemáticas que mais chegam à instituição ultimamente, e nós perguntamos o que fazer? Outro exemplo de desafio é quando vemos que as meninas querem fazer a cirurgia de transgenitalização; porém, o tempo de espera é muito grande, e elas querem fazer o quanto antes, e por ser longo o período, elas acabam se submetendo a qualquer tipo de profissional. Assim como os homens trans quando desejam a cirurgia de mamoplastia masculinizadora. Atualmente, ainda é frequente também, o uso do silicone – vemos que, mesmo com todo o conhecimento sobre os malefícios e perigos do hidrogel e do silicone industrial, as meninas ainda se “bombam”, por verem um bom custo-benefício e por terem um acesso maior. Então, quando penso na área de saúde, eu não consigo desvincular uma coisa da outra; não consigo pensar somente na Psicologia, sem pensar na Endocrinologia, enfim, sem pensar em todos os fatores que envolvem a saúde da população travesti e trans. Isto ficou claro para nós quando foi instituído o ambulatório, pois imaginamos que a procura pelo serviço seria somente pela hormonioterapia, mas percebemos que a maioria dos atendimentos eram voltados a problemas de saúde que poderiam ter sido prevenidos ou tratados nas Unidade Básica de Saúde, e que, em função das dificuldade de acesso e situações de constrangimento vivenciados pelas pessoas trans, agravaram os problemas de saúde dos meninos e meninas que procuram o ambulatório. quando falamos das vulnerabilidades da saúde física e mental das travestis e pessoas trans, estamos de certa forma falando de dignidade e qualidade de vida. E isso tudo tem muito a ver com a capacidade de gerenciar a própria vida, ou seja, com trabalho. Sobre isso, estamos tentando implantar na ADEH o projeto de economia solidária. E esse projeto é voltado à população trans, no intuito de que essa população consiga autonomia – não sei se é um pouco utópico, mas acredito que a partir do momento que começamos a “dar a cara a tapa”, montando espaços públicos para ofertar nosso trabalho, pode ser que isso venha a quebrar o preconceito da população – já que, vendo essas pessoas trabalhando e atuando é possível que futuramente se abram espaços no mercado de trabalho; afinal, sabemos que não há mercado de trabalho para pessoas trans em Florianópolis/SC, assim como no país todo. 114 • psicologia, travestilidades e transexualidades São poucas as meninas e os meninos que conseguem alguma coisa. Muitos relatam passar por diversas seleções e geralmente chegam a um momento “x”, – eu me lembro, isso é um caso verídico meu, em uma seleção de trabalho que fiz e a psicóloga não me aceitou justificando que era muito difícil conseguir me tratar no feminino, estando minha documentação no masculino. Lembro-me de ter pensando: É só não olhar! (risos). Frente a isso, nosso projeto de economia solidária preocupa-se com uma questão que muitas vezes passa despercebida pelo olhar do profissional da saúde, que é a questão da autoestima. Falamos muito sobre a questão de prevenção, IST, HIV, AIDS, mas como iremos trabalhar as questões de saúde nesse âmbito, se a própria população não tem autoestima o suficiente para querer se cuidar? As dificuldades de inserção no mercado de trabalho também é uma forma de não aceitação que faz com que as pessoas se frustrem. Muitas pessoas chegam à instituição imprimindo currículos, querendo entregar currículos. E nós vemos que é uma maratona sem fim, por que é muito difícil a mão de obra desta população ser absorvida. Então, o foco do projeto é conseguirmos juntar toda essa população e instalar, de verdade, um local onde a população se sinta bem, acolhida para trabalhar. Sabemos que é comum uma pessoa trans entrar em uma empresa e ser hostilizada por todo mundo, desde a pessoa que deveria ajudar você, àquela que o contratou, os outros profissionais da assistência ou da psicologia que acabam não fazendo um processo de regular os empregados que estão ali, como mediadores de conflitos, e com isso muitas meninas ou meninos que conversamos, relataram que acabaram desistindo devido à hostilidade dos próprios companheiros/colegas, mostrando o quanto é difícil ser aceita em locais que deveriam ser simples de aceitação. É isso tão absurdo! Por isso, a necessidade de um trabalho de capacitação constante dos profissionais, mobilizando não só os profissionais, mas também as pessoas que estão na empresa. Falando mais um pouco sobre a questão da parceria da universidade e o quanto ela é importante, acho fundamental mencionar que foi graças à parceria com a UFSC que conseguimos motivar muitas 115 • psicologia, travestilidades e transexualidades pessoas travestis e trans a estarem entrando dentro na universidade. Eu fui uma delas, a Fabrízia foi outra. E temos outras meninas que acabaram tendo esta vontade, inserindo-se e conseguindo um lugar, mesmo sabendo e vivenciando o que é estar em um local onde geralmente não somos bem acolhidas. Sou muito franca em dizer que a universidade ainda é um local hostil para nós. Enfrentamos muitos problemas de transfobia, mas parece que essas instituições fecham os olhos e enfim... Mas a Psicologia também tem sido muito importante para nós nessa questão, pois nos ajuda a construir muitas capacitações para instituições, profissionais, empresas... Inclusive, vamos desde casas noturnas, com gestores da segurança pública, da educação, com profissionais da assistência social, do turismo, e colhemos bastantes frutos. Ficamos com pena de ser restrito este tipo de trabalho e capacitação nas escolas, onde acreditamos que seria o início de tudo e para tudo. Infelizmente, não estamos tendo muito acesso às escolas, por causa das polêmicas criadas em torno da discussão de gênero3. Porém, conseguimos que alguns professores sensíveis, nos convidem para fazer algumas falas, mesmo nos pedindo roteiro e uma lista do que vamos abordar. Muitas vezes de antemão eles já sinalizam algumas coisas que julgam serem “difíceis de conversar”. Talvez isso vamos ter de deixar para um próximo governo que aceite. Enfim, gostaria de agradecer a presença da Profa. Maria Juracy Toneli na ADEH, que é maravilhosa e que, com a Psicologia, vem desenvolvendo projetos junto conosco. Ela é uma das guerreiras que aposta em nosso trabalho e está nisso. Ao pessoal do estágio do serviço de psicologia, que estão todos aí, levantem as mãozinhas! Meu muito obrigada! 3 Referência aos debates sobre o que grupos religiosos denominam “ideologia de gênero”, segundo o qual acreditam que é necessário um combate às discussões de gênero e sexualidade na sociedade em prol da proteção e moral das crianças e das famílias. Um discurso emergente entre grupos conservadores e fundamentalistas que visam a atacar os avanços nos direitos sexuais e reprodutivos. 116 • psicologia, travestilidades e transexualidades VOLTA AO SUMÁRIO l A ATUAÇãO DAS(OS) PSICÓLOGAS(OS) EM RELAÇãO ÀS PESSOAS TRAVESTIS E TRANSEXUAIS E O POSICIONAMENTO ÉTICO-POLÍTICO A PARTIR DA RESOLUÇãO CFP Nº 01/2018 Ematuir Teles de Sousa Sandra Elena Sposito Contextualizando... O Sistema Conselhos de Psicologia, constituído pelo Conselho Federal de Psicologia1 e seus 24 Conselhos Regionais distribuídos por todo o país, tem construído ao longo de suas gestões um posicionamento ético-político contrário às situações de violências e opressões que a população de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBTs) vivenciam no seu cotidiano. Esse posicionamento foi sendo 1 O Conselho Federal de Psicologia (CFP) é uma autarquia federal, dotada de personalidade jurídica de direito público, criada por meio da Lei nº 5.766/71, destinada a orientar, disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão de psicólogo e zelar pela fiel observância dos princípios de ética e disciplina da classe. Conforme estabelece a referida Lei, faz parte da competência deste Conselho Federal servir de órgão consultivo em matéria de Psicologia, bem como expedir as resoluções necessárias ao exercício profissional, pautado pela ética e cientificidade que regem a Profissão. tecido por meio da produção de conhecimento no campo científico da Psicologia brasileira e da prática profissional marcada pelo compromisso com direitos fundamentais. O envolvimento do CFP com as questões que envolvem a população LGBT é decorrente do alinhamento ético-político da autarquia com a defesa intransigente dos Direitos Humanos, especialmente ausentes e distantes dos grupos sociais estigmatizados, marginalizados e vulneráveis socialmente. Parece-nos ser consenso que as mais variadas práticas que constituem o campo da Psicologia se debruçam minimamente sobre as condições de possibilidades de produção de saúde e qualidade de vida para as pessoas. Para tanto, é fundamental compreendermos a subjetividade como produto das relações históricas, sociais e culturais. Abrem-se, desse modo, intervenções da Psicologia no contexto que incide diretamente na produção de sofrimento ético-político para além dos modelos de intervenção individualizantes e normatizadores das expressões subjetivas. Se partirmos exclusivamente do Código de Ética profissional da(o) Psicóloga(o), dispositivo máximo que regulamenta a prática profissional no Brasil, já teríamos elementos suficientes para situar este compromisso ético-político da Psicologia. Cabe situar, por exemplo, os três primeiros princípios fundamentais da prática profissional, sendo eles: I. O psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos. II. O psicólogo trabalhará visando promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades e contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. III. O psicólogo atuará com responsabilidade social, analisando crítica e historicamente a realidade política, econômica, social e cultural. (CFP, 2015). 118 • psicologia, travestilidades e transexualidades Nessa direção, o fazer da Psicologia tem sido em prol da garantia de direitos fundamentais e da qualidade de vida das pessoas. Exatamente por isso, é importante pensarmos em como podemos contribuir para que as pessoas que historicamente têm sido vilipendiadas em direitos básicos – incluindo aí o direito à vida – possam ter suas existências reconhecidas como vidas possíveis, de forma digna, sem serem impelidas a vivenciarem discriminações, opressões e processos de exclusão em razão de suas orientações sexuais, expressões de gênero, raça/etnia, classe etc., como é o caso da população de Travestis e Transexuais. Para ter noção da realidade de vulnerabilidade social a que as pessoas LGBTs estão submetidas, não há hoje no Brasil uma forma jurídica/legal2 que tipifique as violências e os homicídios em decorrência de preconceito e exclusão devido à orientação sexual e identidade/expressão de gênero e que responsabilize as pessoas que cometem estas violências – a qual consensuamos intitular de LGBTfobia, seguindo as vozes dos diferentes movimentos sociais. Isso em um país como o nosso, considerado como o 1º do ranking mundial no assassinato de pessoas LGBTs, em especial às pessoas travestis e transexuais. Esse levantamento tem sido feito de forma não oficial por Associações e Organizações Não Governamentais (ONG) de âmbito internacional e nacional, como é caso da ONG Transgender Europe3, que demonstrou por meio de relatório que entre 2008 e junho de 2016, 868 travestis e transexuais foram assassinadas de forma brutal no Brasil; do Grupo Gay da Bahia, que divulgou relatório de 20184, registrando 420 mortes de pessoas LGBTs, e da Associação Nacional de Pessoas Travestis e 2 No dia 13 de fevereiro de 2019, o Supremo Tribunal Federal, iniciou o julgamento do Mandato de Injução (MI) 4733 DF a da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, dois processos que discutem sobre a omissão do congresso nacional em realizar leis que criminalizem a LGBTfobia. 3 Organização internacional sem fins lucrativos voltada para o combate à discriminação e a defesa dos direitos de pessoas trans. Para saber mais, acessar: http://tgeu.org/ 4 Consultar em: https://homofobiamata.files.wordpress.com/2019/01/relatorio2018-1.pdf 119 • psicologia, travestilidades e transexualidades Transexuais (ANTRA), que divulgou Dossiê dos assassinatos e violências contra pessoas travestis e transexuais no ano de 2018, destacando a ocorrência de 163 assassinatos de pessoas trans, sendo 158 travestis e mulheres transexuais, quatro homens trans e uma pessoa não binária (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2019)5 Tais dados revelam a assustadora realidade de extermínio da população trans, demonstrando a nossa forma de organização social marcada por processos de desvalorização da vida destas pessoas, que culmina em outras vulnerabilidades como a falta de acesso e permanência à Educação, à Saúde e a empregos/trabalhos formais. A pergunta que cabe nesse momento é, “poderia a Psicologia se omitir de sua responsabilidade social em relação a esta realidade produtora de sofrimento, violências e mortes?”. Para algumas pessoas esta resposta poderia ser afirmativa, se considerar uma prática isenta, apática e neutra da realidade brasileira, o que nitidamente ignoraria as discussões críticas mais recentes no “campo psi”. Essas discussões consideram a perspectiva interseccional dos marcadores de diferenças de raça/etnia, geração, orientação sexual, identidade/expressão de gênero, gênero, classe, entre outros, como fundamentais para compreensão das relações de poder e hierarquizações de sujeitos no nosso contexto social, tal como nos sinalizam Conceição Nogueira (2013) e Jurema Werneck (2014). Obviamente que posturas contrárias a essa perspectiva crítica, evidenciam para quê e para quem serve este tipo de prática profissional e possivelmente culmina na repetição de parte da história da Psicologia que nos envergonha, pois respaldava e ainda fornece substrato para práticas de normalização, patologização e aprisionamento das diferenças. Isso nos faz sujeitos críticos e vigilantes de nossa ciência e prática para que não corramos o risco de repetir os erros já cometidos por nós, psicólogas(os). É necessário enfatizar que, atualmente, não há possibilidade de pensar uma prática profissional isenta desta responsabilidade social. 5 Acessar em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2019/01/dossie-dos-assassinatos-e-violencia-contra-pessoas-trans-em-2018.pdf. 120 • psicologia, travestilidades e transexualidades Desse modo, acreditamos que somente é possível uma intervenção da Psicologia que dialogue com fenômenos sociais se considerarmos a subjetividade marcada por processos de desigualdades de classe, raça/ etnia, gênero e orientação sexual etc. A partir das considerações da teórica Judith Butler (2002), podemos considerar que esses processos fazem parte de um domínio cultural que vai ditando as regras de inteligibilidade para (des)legitimarmos alguns sujeitos como (des)humanos, possibilitando, assim, que determinadas existências não sejam consideradas como vidas que valem a pena proteger e salvar. Considerar a existência dos marcadores de diferenças e as relações de poder construídas a partir desses nos oferece a oportunidade de, enquanto psicólogas(os), analisarmos criticamente o contexto político, econômico e social. São categorias analíticas que possibilitam compreensão dos mecanismos da violência e opressão que delineiam os lugares que as pessoas passam a ocupar na nossa sociedade, servindo, portanto, como fundamentais para intervir na direção do que pontua o nosso código de ética profissional. Dessa forma, as expressões das transexualidades e das travestilidades devem ser entendidas em uma perspectiva científica e ético-política, em interlocução com as demandas sociais que incidem sobre essas pessoas, destacando-se, nessa conjuntura, a contínua e crescente violência a que estão sujeitas. Breves considerações sobre o campo científico e a despatologização das travestilidades e transexualidades No que tange à cientificidade, o caminho conceitual engendrado para o entendimento da questão trans são os denominados estudos de gênero. Gênero é uma categoria histórico-cultural, que se articula na definição do que é ser homem e do que é ser mulher no decorrer da história e nas manifestações culturais de cada grupo social. Não há mais subsídio científico que sustente a afirmação de que a diferença biológica entre o corpo nomeado macho e o corpo nomeado fêmea se materialize em divergências comportamentais e sociais uniformes e estáveis no decorrer do desenvolvimento da humanidade. 121 • psicologia, travestilidades e transexualidades Joan W. Scott (1990) enfatizou a análise do gênero como mecanismo de poder político, referindo-se aos conjuntos de leis que hierarquizam os gêneros no que tange ao acesso a direitos e possibilidades de acúmulo de bens materiais e exercício de atividades laborais, nos quais a mulher mantém, invariavelmente, posições de menos favorecimento. A manutenção dessa submissão hierárquica do gênero feminino é possível a partir da naturalização das diferenças sexuais, da suposição de uma interioridade típica da mulher e do homem, que colocam ambos em permanente oposição nos modos de ser e estar no mundo. A própria ciência promoveu várias atualizações e modificações conceituais para explicar as diferenças sexuais e comportamentais, desde a concepção de sexo único, que se manifestava em duas formas distintas (homem e mulher), conforme explica Thomas Walter Laqueur (2001), até as atuais proliferações de gêneros que extrapolam o binômio masculino e feminino e se apresentam como gênero fluído, gênero neutro e afins. Apreender o gênero como categoria biológica e perene, como fator determinante dos modos de existência de homens e mulheres, é ignorar mais de um século de estudos no âmbito das ciências humanas e da saúde que apontam a preponderância dos elementos históricos culturais na constituição das masculinidades e feminilidades. Dessa forma, se a produção da subjetividade como masculina ou feminina (ou outra) está mais atrelada às vivências e experiências das pessoas e menos ao corpo biológico, torna-se incoerente criar uma relação direta e “natural” ou “normal” entre corpo (macho ou fêmea) e subjetividade (masculina ou feminina). Em outras palavras, não é do corpo que decorre o gênero, é o oposto: a experiência pessoal e íntima de pertencer a um gênero que se manifesta nas vivências e transformações corporais. A ênfase na gênese sociocultural do gênero sofre uma intensa resistência e tentativas de invalidação por segmentos da sociedade que agem intencionalmente para manter a falsa prevalência do biológico, promovendo saberes e práticas que resistem às evidências da historicidade da construção das masculinidades e feminilidades. Tais grupos, beneficiados pela naturalização das práticas sociais de hierarquização, 122 • psicologia, travestilidades e transexualidades poder e violência, mantêm-se em posições de privilégio em relação a grupos sociais que passam a ser oprimidos com “legitimidade”, como mulheres, transexuais, travestis, drag queens, intersexos, dentre outros, como nos pontuou Gayle Rubin (1992). Na ciência, observamos à retomada constante de estudos que visam a reestabelecer as “normas naturais” da relação entre a diferença sexual e os gêneros, objetivando demonstrar que há uma regra universal e imutável entre sexo-gênero, juntamente com a necessidade de patologizar as vivências de gênero que escapam aos padrões estabelecidos pela cisnormatividade (macho = masculino e fêmea = feminino). Para a ciência cisnormativa, gênero não é uma expressão subjetiva de vivências e afetos, mas sim um elemento importante para o diagnóstico de transtornos mentais. O não enquadramento no binômio sexo-gênero tem sido considerado um transtorno mental por grupos que ainda resistem às evidências da construção sociocultural das formas de viver as masculinidades e feminilidades. A partir de uma lógica “adaptativa”, em que o corpo/subjetividade não se adaptou ao gênero (destino), criou-se um transtorno, uma disforia, uma incongruência que se manifestou no indivíduo que não se desenvolveu adequadamente, de acordo com os ditames biológicos. As patologias relacionadas ao gênero, além de supostamente confirmarem a lógica biologizante (pouco evidente nos estudos atuais), autorizam a intervenção direta sobre as pessoas que portam tais enfermidades, em uma ação de desrespeito à sua integridade e autonomia sobre o próprio corpo e seus modos de vida. Por isso, as mudanças corporais são entendidas como mutilação, suas vivências subjetivas são investigadas à exaustão para extrair-se o gênero verdadeiro ou, ainda, traumas de infância, abusos sofridos, dinâmicas familiares desestruturadas que motivaram o transtorno de gênero. Receber o diagnóstico de transtorno de identidade de gênero – TIG2 – é ser, de certa maneira, considerado doente, errado, disfuncional, anormal e sofrer uma certa estigmatização em consequência desse diagnóstico. Assim, alguns psiquiatras ativistas e pessoas trans têm argumentado que o diagnóstico 123 • psicologia, travestilidades e transexualidades deveria ser totalmente eliminado, que a transexualidade não é um transtorno psiquiátrico – não devendo ser entendida como tal – e que as pessoas trans estão engajadas em uma prática de autodeterminação, um exercício de autonomia. (BUTLER, 2009, p. 96-97). No âmbito jurídico, há resistência de alguns legisladores em reconhecer a vivência de gênero de cada pessoa, de ampliar o escopo de formas de se autoidentificar nos documentos legais, de legitimar formas de aliança entre as pessoas de diferentes gêneros e impedir a aprovação de leis de proteção às pessoas que estão vulneráveis à violência decorrente do preconceito e das discriminações LGBTfóbicas. Nos locais de saberes e socialização, as pessoas trans – normalmente associadas à patologia mental ou às expressões de vilania moral e pecaminosa – são comumente excluídas, muitas vezes de forma violenta. Nas escolas, o índice de evasão escolar e abandono das crianças e adolescentes trans é evidente, juntamente com a recusa de professores(as) e funcionários(as) em respeitarem o nome social e a identidade de gênero, mesmo quando há formulações jurídicas que indiquem o reconhecimento do nome social e a forma de expressão das pessoas trans no espaço escolar. No âmbito familiar, é comum o relato de pessoas trans sendo expulsas de casa em situações de humilhações e agressões. No âmbito laboral as pessoas trans possuem pouca inclusão, por falta de qualificação decorrente da ausência de escolarização ou por falta de empregadores. Segundo apontou o Relatório da APA (2015), as pesquisas revelam aspectos preocupantes acerca do preconceito e discriminação vivenciados por pessoas trans ou, como nomeado pela APA, pelas pessoas TGNC (Pessoas trans em não conformidade de gênero). Em uma amostra representativa nacional de 7.898 jovens LGBT na educação primária, 55,2% dos participantes relataram assédio verbal, 22,7% relataram assédio físico e 11,4% relataram agressão física com base em sua expressão de gênero (Kosciw, Greytak, Palmer, & Boesen, 2014). Em uma pesquisa comunitária nacional com TGNC adultos, 15% relataram, como 124 • psicologia, travestilidades e transexualidades resultado do assédio, terem deixado de forma prematura o espaço educacional, do jardim de infância à faculdade (Grant et al., 2011). Muitas escolas não incluem identidade de gênero e expressão de gênero em suas políticas de não discriminação escolar; isso deixa os jovens TGNC sem proteções necessárias contra bullying e agressão nas escolas (Singh & Jackson, 2012). (APA, 2015, p. 18). Dessa forma, o dispositivo de patologização das identidades trans tem operado na sociedade de modo a produzir expressões de profunda violência sobre esse grupo de pessoas. A Resolução CFP nº 01/2018 e o seu compromisso com a vida de pessoas trans Os esforços para garantir a vida digna e os direitos para a população trans tem se manifestado de modo contundente no sentido de despatologizar e impedir práticas médico-jurídicas que limitem ou cerceiam as possibilidades de vida das pessoas trans, com a justificativa do transtorno mental ou da anormalidade. Podemos citar seis ações em defesa da população trans que possibilitam explicitar os aspectos factíveis presentes na sociedade. Tais ações6 forneceram parte do 6 Além destas ações foram também consultados uma série de documentos internacionais que versava sobre o tema e que serviram de referenciais para a montagem da Resolução, tais como: a) Resolução da Associação Americana de Psicologia (APA) para “Não discriminação de transgêneros, identidade de gênero e expressão de gênero”; b) Documento da APA que versa sobre “questões sobre Identidade Transgênero na Psicologia”; c) Documento da APA que versa sobre perguntas frequentes sobre pessoas transgênero, identidade de gênero e expressão de gênero; d) Relatório da Força Tarefa da APA sobre Identidade de Gênero e Variações de Gênero; e) Diretrizes e Revisão de Literatura para psicólogos(as) trabalharem terapeuticamente com clientes das minorias sexuais e de gênero, produzido pela Sociedade Britânica de Psicologia. 125 • psicologia, travestilidades e transexualidades substrato para a Resolução CFP nº 01/2018 – que estabelece normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas transexuais e travestis: 1. Campanha Stop Trans Pathologization.7 2. Campanha Livre & Iguais da ONU – Organização das Nações Unidas Pela promoção da igualdade de direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, pessoas trans e intersexo. Iniciativa inédita e global da ONU reconhece que orientação sexual e identidade de gênero atuam como fatores que estruturam desigualdades sociais e impactam negativamente a fruição plena dos direitos humanos das pessoas LGBTI.8 3. Documento publicado pela Associação Americana de Psicologia, em 2015, indicando a despatologização das identidades trans e os cuidados destinados a essa população.9 4. Estudos científicos que recomendam à OMS a retirada das identidades trans da CID -11 (BELLUCK, 2016).10 5. Nota que solicita a despsicopatologização da variabilidade de gênero em todo mundo, divulgada em maio de 2010 pela World Professional Association for Transgender Health (WPATH, 2010a,2010b), associação voltada para a promoção de cuidados com base em evidências, educação, pesquisa, advocacia, políticas públicas e respeito à saúde de transgêneros. A nota f) Princípios de Yogyakarta. Princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero; g) Resposta da Associação Mundial de Profissionais pela saúde das pessoas transgênero em relação ao critério para gênero incongruente proposto para o DSM 5. 7 http://www.stp2012.info/STP_Nota_de_Prensa_Octubre2017.pdf. 8 https://nacoesunidas.org/campanha-da-onu-faz-apelo-pelos-direitos-da-populacao-trans-brasileira. 9 “Guidelines for Psychological Practice With Transgender and Gender Nonconforming People”, disponível em: http://www.apa.org/practice/guidelines/transgender. pdf, e tradução oficial em: http://crprs.org.br/upload/others/file/35a995b2ba849 3c19d715c00a03721bd.pdf 10 https://www.nytimes.com/2016/07/27/health/who-transgender-medical-disorder.html 126 • psicologia, travestilidades e transexualidades informa que a expressão de características de gênero, incluindo identidades que não condizem com o sexo atribuído ao nascimento, é um fenômeno humano culturalmente diversificado que não deve ser julgado como inerentemente patológico ou negativo. Esclarece que a psicopatologicação das características e identidades de gênero podem induzir ou reforçar o estigma, tornando o preconceito e a discriminação mais provável, o que pode levar à marginalização e exclusão e, consequentemente, provocar riscos crescentes ao desenvolvimento mental e ao bem-estar físico.11 6. Declaração de Reconhecimento de Identidade, publicada pela World Professional Association for Transgender Health (WPATH), em novembro de 2017, que reconhece que a livre expressão da identidade de gênero, independentemente de estar ou não em conformidade com as expectativas dos outros, é essencial para a saúde física e mental. A WPATH declara que se opõe a todos os requisitos médicos que atuam como barreiras para aqueles que desejam alterar o sexo legal ou os marcadores de gênero em documentos e convoca os governos a eliminar as barreiras existentes ao reconhecimento de gênero, bem como a instituir procedimentos administrativos transparentes e acessíveis que reconhecem a autodeterminação das pessoas em relação à sua identidade de gênero.12 A partir dos elementos fáticos e científicos explanados, e citando o papel outorgado pelo Estado ao Conselho Federal de Psicologia, no que tange à responsabilidade de regulamentar a profissão, coube a prerrogativa de estabelecer limites à prática profissional, assegurando o menor prejuízo e a proteção dos usuários dos serviços de Psicologia em todo o território nacional. Desse modo, no âmbito do sistema Conselhos de Psicologia, desde o lançamento da Campanha Internacional 11 Consultar: https://tgeu.org/wpath-urges-for-de-psychopathologisation-of-gender-variance-worldwide e https://amo_hub_content.s3.amazonaws.com/Association140/files/de-psychopathologisation%205-26-10%20on%20letterhead.pdf. 12 https://tgeu.org/wpath-2017-identity-recognition-statement. 127 • psicologia, travestilidades e transexualidades Stop Trans Pathologization (2012), o Conselho Federal de Psicologia tem se mantido atento aos processos que envolvem as demandas à Psicologia de ratificar o lugar de prescrição, normatização e normalização das expressões de travestis e transexuais. Acompanhando, os diferentes movimentos sociais e as instituições têm se mobilizado para que as travestilidades e transexualidades deixem de ser consideradas patologias. Desde então, há um alinhamento da autarquia em prol da luta das pessoas travestis e transexuais por visibilidade e direitos na direção da despatologização, produzindo-se campanhas e materiais de orientação à sociedade e às psicólogas(os), que culminou na criação de uma Resolução que normatizasse a prática profissional no que se refere às demandas relacionadas às pessoas travestis e transexuais, a Resolução CFP nº 01/2018. Listaremos a seguir um histórico dessas ações: • (1999) Publicação da Resolução CFP nº 01/99, que visa a orientar a atuação profissional em relação a orientação sexual, impedindo atuações preconceituosas e patologizantes.13 • (2011) Publicação de “Psicologia e Diversidade Sexual”14, decorrente de um seminário realizado no mesmo ano, o CFP já abria espaço para interlocução com estudos científicos que apontavam a despatologização como referência para a prática profissional, direcionada à população de transexuais e travestis. • (2013) Nota Técnica voltada à categoria de psicólogas(os) no que se refere ao processo transexualizador e às demais formas de assistência às pessoas trans15. Esta nota se justificou naquele momento, considerando o cenário em que profissionais da Psicologia estavam sendo convocadas(os) a produzir documentos psicológicos com viés normativo das travestilidades e transexualidades. E instaurou na Psicologia a necessidade de superarmos a lógica patologizadora no atendimento às pessoas 13 https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/1999/03/resolucao1999_1.pdf. 14 https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2011/05/Diversidade_Sexual_-_Final.pdf. 15 http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2013/09/Nota-t%C3%A9cnica-processo-Trans.pdf 128 • psicologia, travestilidades e transexualidades • • • • 16 trans. Isto é, neste documento, o CFP afirmou a necessidade de despatologização das identidades de transexuais e travestis: “A transexualidade e a travestilidade não constituem condição psicopatológica, ainda que não reproduzam a concepção normativa de que deve haver uma coerência entre sexo biológico/ gênero/desejo sexual”. (2014) Lançamento de uma campanha de comunicação em apoio à luta pela despatologização das Identidades Trans e Travestis. Esta campanha contou com diferentes profissionais da psicologia, pesquisadores e pesquisadoras, ativistas, pessoas transexuais e travestis, que foram convidadas(os) para debater as práticas da psicologia em relação às questões vivenciadas pelas pessoas travestis e transexuais. (2015) Lançamento do Site “Despatologização das Identidades Trans”16, projeto desenvolvido pela Comissão de Direitos Humanos do CFP contra a patologização das travestilidades e transexualidades. Neste site, podem ser conferidos diferentes materiais, vídeos e publicações referentes à temática da Psicologia e à Despatologização das identidades trans e travestis, que incluem a discussão teórica e científica que respaldam a despatologização. (2016) O Sistema Conselhos de Psicologia define em Assembleia de Políticas, da Administração e das Finanças (Apaf), a criação de um Grupo de Trabalho para revisar a Resolução CFP nº 01/99 – que estabelece normas de atuação para as(os) psicólogas(os) em relação à questão da orientação sexual, incorporando nesta resolução as questões que envolvem as pessoas trans. (2017) O GT de Revisão da Resolução CFP nº 01/99 continuou se debruçando na possibilidade de inclusão ou não nesta resolução das questões que envolviam as pessoas trans. Cabe destacar o cenário atual em que esta resolução passou a ser fortemente atacada por Projetos de Leis (PL) e neste mesmo http://despatologizacao.cfp.org.br 129 • psicologia, travestilidades e transexualidades ano por uma ação liminar judicial solicitando a mudança de sua interpretação – interpretação que vai na contramão do que propõe a própria resolução, a de atuar contrária às práticas discriminatórias, patologizadoras e normatizadoras da sexualidade. Considerando este cenário e as especificidades que envolvem as pessoas travestis e transexuais, tal como a confusão ainda muito presente entre orientação sexual e identidade/expressão de gênero, o GT decidiu em preservar a Resolução CFP nº 01/99 na íntegra e formular outra, especificamente para as questões trans. • (2018) Aprovação, assinatura e divulgação da Resolução CFP nº 01/2018, que regulamenta a prática profissional da(o) psicóloga(o) em relação às travestilidades e transexualidades. Vale ressaltar que as edições do VII, VIII e IX Congresso Nacional da Psicologia, instância máxima de deliberação do Sistema Conselhos de Psicologia, responsável por definir as diretrizes e ações políticas que devem ser priorizadas para o triênio subsequente, realizadas nos anos de 2010, 2013 e 2016, já apontavam para o caminho da despatologização das diferentes identidades de gênero. A elaboração de uma resolução que trouxesse referências ao fazer de psicólogas (os) consta como uma das deliberações do IX CNP. Tal normativa deveria construir diretrizes éticas e técnicas a respeito da avaliação e do acompanhamento do processo transexualizador, fomentando a criação de espaços de discussões de modo a superar o modelo biomédico.17 Com essa finalidade, em 2018, houve a publicação da Resolução CFP nº 01/2018, que indica os limites e as possibilidades da atuação profissional frente às pessoas transexuais e travestis. Considerando estes aspectos, a Resolução CFP nº 01/2018 demarca três eixos importantes: a) O enfrentamento a transfobia – a Psicologia se coloca de uma maneira mais objetiva no enfrentamento ao preconceito e discriminação que a população trans vivencia no seu cotidiano; 17 http://9cnp.cfp.org.br/wpcontent/uploads/sites/20/2016/02/CFP_CadCNP_Deliberacoes_WEB.pdf. 130 • psicologia, travestilidades e transexualidades em consequência, está a proteção e o cuidado para com as pessoas travestis e transexuais. b) A despatologização como eixo do trabalho da psicóloga – reafirma que as travestilidades e transexualidades não são doenças, mas são possibilidades de expressão da subjetividade, e por assim ser, o acesso e permanência a saúde não devem estar condicionada a um viés da patologia, mas sim a um direito. Entendemos que este movimento por parte da Psicologia, neste cenário em que vivemos, passa a ser um importante dispositivo de garantia de direitos e de luta! c) A autodeterminação da pessoa como referência – a autodeterminação ou autonomeação de gênero deverá nortear a prática da psicóloga e do psicólogo. Nesta Resolução CFP nº 01/2018, o limite da atuação está respaldado pela conjuntura factível da necessidade de impedir a violência direcionada à população trans e pelas evidências científicas, hoje hegemônicas no âmbito das ciências humanas, que não existem anormalidades ou patologias relacionadas às expressões de gênero que fogem aos padrões cisnormativos. Nesse sentido, a Psicologia tem feito a crítica às concepções diagnósticas psiquiátricas e patologizadoras em relação às travestilidades e transexualidades e aos modelos de organização social que se estruturam por meio de mecanismos da exclusão, violência e opressão. Concluindo... Em um país atravessado pelo preconceito, pela discriminação e pela violência direcionada à população LGBT, consideramos que é dever de o legislador atuar de modo protetivo e interventivo para minimizar e inibir a expressão de visões equivocadas cientificamente sobre o comportamento humano. A permissão de visões cientificamente desatualizadas, enviesadas pela moralidade ou por valores religiosos, devem ser impedidas por normativas diretivas e explícitas acerca da conduta do profissional no seu espaço laboral. 131 • psicologia, travestilidades e transexualidades A livre expressão total de qualquer profissional, guiado por princípios científicos e éticos, não existe de fato. Há direcionamentos nos modos de compreender a realidade, oriundas de paradigmas e epistemologias específicos da ciência e da postura ética, que balizam o modo de agir, definindo vetos e limites, bem como possiblidades e experimentações autorizadas. Da mesma forma, como um médico cirurgião realiza procedimentos interventivos previamente autorizados pelo seu Conselho Profissional, sendo impedido de atuar de modo destoante aos procedimentos regulamentados mediante comprovação científica, também acontece com o profissional da Psicologia, que deve limitar-se aos procedimentos normatizados a partir da base científica estabelecida. As controvérsias acerca das epistemologias e paradigmas científicos em debate no campo do conhecimento da Psicologia devem ser objeto de discussão e disputa no âmbito acadêmico e das entidades que legislam e organizam fóruns consultivos e deliberativos acerca dessas questões. Nesse sentido, pretendemos com esse texto situar como a Resolução CFP nº 01/2018 foi pensada na direção de constituir, no exercício da Psicologia, espaços de resistência aos processos de patologização que envolvem as experiências das pessoas travestis e transexuais, no Brasil. Este processo diz respeito a um alinhamento com posicionamentos de movimentos sociais e de discussões internacionais. Acreditamos que a Resolução nº 01/2018, a exemplo da Resolução CFP nº 01/99 extrapolará o campo da Psicologia, na medida em que possivelmente passará a ser um importante dispositivo/instrumento de garantia de direitos e de caráter educativo e crítico para os setores demandantes dos serviços da Psicologia. Desse modo, a construção da referida resolução se fundamentou em extensa produção científica, nacional e internacional, sobre a despatologização das pessoas transexuais e travestis. Fundamenta-se, sobretudo, na defesa dos Direitos desse público, até então marginalizado, o que leva à produção de intenso sofrimento psíquico e transforma essas pessoas em vítimas de extrema violência social. No que se refere às pessoas transexuais e travestis, entendemos que a Psicologia tem a responsabilidade social de promover práticas de proteção e promoção de saúde e impedimento de violência e preconceito. Tais atuações são fundamentais para a promoção do bem-estar psicológico e social. 132 • psicologia, travestilidades e transexualidades Cabe destacar, ainda, outras decisões históricas que reforçam a direção tomada pelo Conselho Federal de Psicologia no que tange à despatologização das travestilidades e transexualidades, como é caso da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que em março de 2018 decidiu ser possível a alteração de nome e gênero nos cartórios de registro civil sem a necessidade de realização de procedimento cirúrgico de mudança de sexo e laudos psiquiátricos e/ou psicológicos, na direção da autodeterminação de gênero. Outra decisão histórica foi a tomada pela Organização Mundial da Saúde em junho de 2018, atualizando o Código Internacional de Doenças (CID-11), em que os casos que envolvem processos de transição entre gêneros deixaram de ser compreendidos no capítulo de doenças mentais, passando para o capítulo de saúde sexual, caracterizando a travestilidade e transexualidade como expressões humanas e o acesso à saúde das pessoas trans como um direito que possui as suas especificidades, mas sem considerá-las como doentes mentais. Por fim, destacamos que essas decisões foram tomadas após a assinatura da Resolução CFP nº 01/2018, reforçando e corroborando com o compromisso ético-político da psicologia em relação às pessoas travestis e transexuais. Certamente, há muito a se comemorar; entretanto, além de serem decisões e normativas recentes, as violências contra essa população continuam a acontecer, sendo necessário que sejamos constantemente vigilantes e atuemos contra os mecanismos da patologização, da exclusão e da violência. Referências AMERICAN PSYCHOLOGICAL ASSOCIATION. Guidelines for Psychological Practice With Transgender and Gender Nonconforming People. 2015. Disponível em: http://www.apa.org/practice/guidelines/transgender.pdf. Acesso em: 12 mar. 2019. AMERICAN PSYCHOLOGICAL ASSOCIATION. Diretrizes para práticas psicológicas e com pessoas trans e em não conformidade de gênero. Tradução de Ramiro Figueiredo Catelan e Angelo Brandelli Costa. [s. d.]. Disponível em: http:// 133 • psicologia, travestilidades e transexualidades crprs.org.br/upload/others/file/35a995b2ba8493c19d715c00a03721bd. pdf. Acesso em: 10 fev. 2019. BELLUCK, Pam. W.H.O. Weighs Dropping Transgender Identity From List of Mental Disorders. 26 july 2016. 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Acesso em: 17 mar. 2019. 134 • psicologia, travestilidades e transexualidades CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Caderno de Deliberações do VIII Congresso Nacional da Psicologia. 2013a. Disponível em: http://site.cfp. org.br/wp-content/uploads/2013/08/MinutaCadernodelibera%C3%A7o es14.08.pdf. Acesso em: 11 mar. 2019. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Nota Técnica sobre processo transexualizador e demais formas de assistência às pessoas trans. 2013 b. Disponível em: http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2013/09/Nota-t%C3%A9cnica-processo-Trans.pdf. Acesso em: 13 mar. 2019. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Caderno de Deliberações do IX Congresso Nacional da Psicologia. 2016. Disponível em: http://9cnp.cfp.org.br/ wp-content/uploads/sites/20/2016/02/CFP_CadCNP_Deliberacoes_WEB. pdf. Acesso em: 11 mar. 2019. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Resolução nº 01, de 29 de janeiro de 2018. 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E é a partir deste olhar que chamo atenção para a importância de continuarmos discutindo de onde vem a ideia sobre o sofrimento e a falta de autonomia defendida como fatores principais para a tutela das vidas trans. Entendemos que o saber médico não pode justificar os transtornos por alguma disfunção biológica inexistente ou ainda ser usado para controlar a singularidade do indivíduo. E isso denuncia o quanto a patologização das existências travestis e transexuais reforça a descriminação, nega as questões outras que envolvem a vida das pessoas trans e seus valores históricos, culturais, sociais e econômicos, reafirma velhos estigmas e contribui para perpetuar tabus contra travestis, mulheres transexuais, homens trans e demais pessoas trans, reafirmando o olhar médico de que pessoas trans não teriam autonomia sobre suas escolhas, suas vivências ou que suas existências seriam uma fraude, ou que elas estariam confusas e/ ou doentes, necessitando deste saber médico para salvá-las/curá-las. Tenho refletido sobre como, sob o olhar cisgênero, muitas pesquisas, escritas, teses, livros e afins, assim como práticas no atendimento e acolhimento têm sido responsáveis pela criação e disseminação de uma imagem trans muitas vezes focada no sofrimento, ignorando suas causas reais, e que majoritariamente vinha sendo atribuída à condição trans. Sendo inclusive a cisgeneridade responsável pelos processos de perpetuação e manutenção da exclusão, bem como de adoecimentos e negação de nossas narrativas, exatamente por termos sido vistas como pessoas incapazes, em nome da manutenção da normalidade ou do que se poder ser chamado de aceitável. É importante resgatar que os saberes médicos, psicológicos e jurídicos têm sido os principais algozes nesta discussão. E que ao passo em que fomos avançando, a Psicologia começa a entender e demonstrar outros olhares sobre a violência que nos foi imputada durante tanto tempo. Falar sobre despatologização é, antes de mais nada, tentar apontar caminhos para fazer o resgate desta autonomia. Pelo reconhecimento da legitimação de nossos corpos como possíveis, nossas vivências como reais e de nossas narrativas em contraponto as afirmações hegemônicas sobre o que é ser travesti ou transexual. Pessoas trans não sofrem exatamente devido à sua condição. Ser trans não me faz sofrer; pelo contrário, faz-me vivenciar minha existência livremente, e de forma plena. É a melhor e mais libertadora forma de experiência que pode acontecer com alguém. Por isso, não podemos ignorar os efeitos positivos das transições de gênero na vida das pessoas. É inegável que pessoas que podem ter experiências positivas na construção de suas identidades sofrem menos os efeitos dessa cobrança, que até aqui identificamos como essa tal disforia; bem como aquelas que, sofrendo, conseguem acesso ao processo transexualizador e seus procedimentos tem uma melhora na qualidade de vida significativa. Porém, devido à dificuldade de discussões e entendimento sobre orientação sexual, identidade e expressão de gênero, há uma confusão generalizada sobre esses pontos. Especialmente em uma sociedade binária, cis-hetero-performativa que demoniza, criminaliza, patologiza 138 • psicologia, travestilidades e transexualidades e persegue as pessoas de “gênero divergentes”, e impõe um modelo cisgênero de ser (homem ou mulher) que deve ser perseguido por “todxs”, a fim de amenizar efeitos de uma disforia (sic) que nos é (também) imposta, como se a cisgeneridade fosse a salvação das pessoas trans, e estivesse livre de inseguranças com seus corpos ou questionamentos sobre a cisgeneridade compulsória. Criaram um transtorno mental para nos enquadrar, e nos adoeceram ao patologizar nossa condição vista como antinatural, determinaram uma “cura” através de mudanças físicas e químicas. E, neste meio, são as pessoas trans que sofrem toda sorte de perseguições, preterições, negação de espaços e de direitos na busca para amenizar esse sofrimento a que estamos submetidas devido à imposição dessa condição patológica. Não estou dizendo que não há pessoas que sofrem, mas que este sofrimento está ligado diretamente ao meio em que estamos inseridas ou excluídas, das impossibilidades de vivenciar nosso gênero livremente e do não acesso às alterações que desejarmos em nossos corpos. Mas posso afirmar que nem toda pessoa trans sofre disforia, como ela esta posta. As alterações que faço no meu corpo, são mudanças que vem agregar a uma estética que me faz sentir melhor frente ao espelho, como qualquer outra pessoa que faz qualquer outra alteração corporal. Eu não realizei cirurgias de afirmação de gênero (sic), meu gênero já estava (re)afirmado e bem estabelecido a partir do momento em que me reconheço como uma pessoa não cisgênera e independente das intervenções que venha a realizar (ou não). Eu não mudei meu corpo por sofrer disforia, mudei para cada vez mais estar feliz e expressar quem eu sou. Sem sofrer por isso. Pessoas que conheço, comumente, sofrem de problemas como ansiedade, síndrome do pânico, depressão etc., devido à exclusão, negação de sua identidade ou impossibilidade de vivenciá-la devido ao convívio com familiares intolerantes, problemas de bullying tranfóbico nas escolas, universidades e demais espaços sociais, além da violência cotidiana e dos processos violentos que enfrentamos no dia a dia. 139 • psicologia, travestilidades e transexualidades Há ainda profissionais da saúde mental que seguem a lógica arcaica sobre quem é transexual de verdade ou quem seria uma travesti. Impondo uma hierarquia, delimitando nossos corpos e o prazer que podemos sentir com eles devido à dificuldade de ampliar este entendimento ao ignorar os estudos de gênero, a cultura e a antropologia dos corpos dissidentes, e não mais pelas questões biomédicas. Enquanto vemos a OMS rever seu posicionamento a respeito das identidades trans em 2018, retirando as identidades trans da classificação de transtornos mentais, nestes últimos tempos surgem narrativas tendenciosas de profissionais que alegam existir “uma maior adesão às variações de gênero como fenômeno midiático” e que pessoas “confusas” e “instáveis” seriam, de alguma forma, “atraídas” ao que se supõe ser um “novo paradigma” decorrente de um “fenômeno mundial”, como se a transgeneridade fosse algo passível de ser contagioso ou transmitido de uma pessoa para outra.1 Tais alegações acabam não apenas sendo imprecisas e cientificamente infundadas mas também coniventes com a reafirmação de estigmas e incompreensões que precisam ser urgentemente superadas, tal como a noção, embora vaga, de que as identidades trans constituem um perigo social a ser evitado. Afirmam, ainda, que pessoas estariam transicionando para se tornarem celebridades midiáticas, ignorando todo o contexto de violência que uma pessoa trans, ao externar publicamente sua condição, passa a estar exposta. Invertendo a lógica da luta por visibilidade, sugerindo que a representatividade trans nos diversos espaços sociais estaria “incentivando” que pessoas cisgêneras – especialmente jovens, passassem a se identificar como trans – bem semelhante ao discurso fundamentalista que designa e sustenta a “ideologia de gênero” como algo maligno. Abrindo mão de observar as singularidades de cada pessoa e que o fato das lutas trans estarem saindo da invisibilidade ter permitido com que mais 1 Para saber mais sobre o assunto, acesse: https://www.antrabrasil.org/2019/04/24/ o-mito-da-disforia-de-inicio-rapido-e-de-contagio-social-mencionada-por-alexandre-saadeh 140 • psicologia, travestilidades e transexualidades pessoas pudessem ser “quem são de verdade” e passem reivindicar as suas reais existências, não mais sob um viés normativo-cisgênero. Diante de todos os desafios que enfrentamos para afirmar nosso lugar na sociedade, como esperam que tenhamos uma saúde mental de qualidade, quando, neste exato momento, estamos travando uma luta para sobreviver no Brasil, o país que mais assassina pessoas trans do mundo? Portanto, neste momento, acredito que temos de continuar discutindo a despatologização, a fim de mudar não apenas as teorias, mas as práticas no atendimento e acolhimento da população de travestis e transexuais. Devemos, ainda, discutir como será garantida a saúde das pessoas trans com a mudança do CID, inclusive com acesso aos procedimentos previstos no SUS, como a terapia combinada de hormônios sexuais e as cirurgias, bem como garantir a atenção à saúde integral; o respeito máximo à autonomia da pessoa trans; um projeto terapêutico que respeite a singularidade da pessoa trans; empoderar a pessoa trans para que utilize sua autonomia de modo a lidar melhor com as normas de gênero; garantir a divulgação ampla e periódica de campanhas pela despatologização e defesa da Portaria nº 01/2018 do CFP; realizar debates, formações e discussões sobre o tema, a fim de elucidar questões e minimizar estigmas e quebrar tabus sobre as pessoas trans; e pensar formas para trabalhar a redução de danos frente à realização de intervenções corporais clandestinas. Sem esquecer do principal, que é garantir a participação efetiva de pessoas trans em todo e qualquer espaço que se proponha a falar, pesquisar, discutir ou realizar qualquer campanha e ações sobre a despatologização, bem como qualquer assunto que diga respeito a nós. Não falem sobre nós, falem conosco. Bruna G. Benevides 141 • psicologia, travestilidades e transexualidades VOLTA AO SUMÁRIO l SOBRE AS(OS) AUTORAS(ES) Bruna G. Benevides Bruna G. Benevides é TransAtivista; autora do Dossiê dos Assassinatos da População Trans Brasileira; membro das Diretorias da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) e da Associação Brasileira LGBTI (ABGLT); membro fundadora do Fórum TT-RJ e Co-organizadora do 1º Ciclo de Palestras pela Despatologização das Identidades Trans no Rio de Janeiro. Céu Cavalcanti Céu Cavalcanti é psicóloga; mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Christian Pedro Mariano Christian Pedro Mariano é negro, transmasculino, ativista em questões ambientais, humanitárias, raciais e de gênero; formado em Gestão Ambiental pela Universidade Leonardo Da Vinci – Florianópolis/SC (2010); graduando em Direito e pós-graduando em Direito Ambiental e Urbanístico na Faculdade Cesusc, mantida pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina (Florianópolis/SC); formado em Transformação de Conflitos & Estudos de Paz pelo Instituto Paz & Mente – Florianópolis/SC/Cátedra UNESCO (Innsbruck/ Áustria); membro da direção e da coordenação para assuntos étnico-raciais e pessoas trans no Instituto Acontece Arte e Política LGBTI+; educador social e palestrante em diversidade, gênero e conflitos raciais e socioambientais. Daniel Kerry dos Santos Daniel Kerry dos Santos é psicólogo; doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); mestre pela mesma universidade; professor do Curso de Psicologia da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul); membro do núcleo de pesquisa Margens – Modos de vida, Família e Relações de Gênero (UFSC); membro do Grupo de Trabalho (GT) Gênero e Sexualidades vinculado à Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia (CRP-12, Gestão 2016-2019). Entre 2014 e 2015, realizou estágio doutoral no exterior com bolsa CAPES-Sanduíche no Discourse Unit – Centre for qualitative and Theoretical Research on the Reproduction and Transformation of Language, Subjectivity and Practice, na cidade de Manchester, Inglaterra. Tem experiência na área de Psicologia Social Crítica e Psicologia Clínica. Ematuir Teles de Sousa Ematuir Teles de Sousa é psicólogo, mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC, 2017); especialista em Psicologia Clínica Gestáltica pelo Instituto Granzotto de Psicologia (2017); conselheiro e membro da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Santa Catarina – CRP-12 (Gestão 2016-2019); membro da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia (Gestão 2017-2019). Faz parte do corpo docente do Curso de Formação Plena em Gestalt-terapia no Instituto Granzotto de Psicologia Clínica Gestáltica. Tem experiência na área de Psicologia Social, atuando principalmente nos seguintes temas: Direitos Humanos, Gênero e Sexualidades, Gênero e Educação, Despatologização das Travestilidades e Transexualidades. Atua como psicólogo clínico. Hailey Kaas Hailey Kaas é transfeminista, escritora e tradutora. Foi uma das responsáveis pela introdução do transfeminismo no Brasil através de um dos primeiros blogues e textos sobre o assunto. Atualmente participa de diversas iniciativas com o objetivo de divulgar o transfeminismo no Brasil. Sua pesquisa circula entre as áreas de Linguística, Estudos de Gênero, Feminismo e Teoria queer. Jaqueline Gomes de Jesus Jaqueline Gomes de Jesus é professora de Psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ); doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela Universidade de Brasília (UnB), com pós-doutorado pela Escola Superior de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV Rio). É pesquisadora-Líder do ODARA – Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em Cultura, Identidade e Diversidade (IFRJ – Campus Belford Roxo); autora de dezenas de publicações científicas sobre identidade e movimentos sociais, com foco em gênero, orientação sexual e cor/raça – entre elas, o livro “Transfeminismo: Teorias e Práticas”. Foi agraciada com a Medalha Chiquinha Gonzaga em 2017, concedida pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro a mulheres com reconhecidas contribuições à sociedade, por indicação da vereadora Marielle Franco. 143 • psicologia, travestilidades e transexualidades João Walter Nery (in memoriam) João Walter Nery foi um psicólogo e escritor brasileiro. Considerado o primeiro homem transexual a realizar cirurgia de mamoplastia masculinizadora e de histerectomia, tornou-se conhecido por ser ativista e defensor dos Direitos Humanos e da população LGBT. Em 2011, pela Editora Leya Casa da Palavra, lançou o livro “Viagem Solitária – Memórias de um Transexual 30 Anos Depois”. Seu legado de luta e de ativismo pela população trans motivou o Projeto de Lei nº 5.002/2013 do deputado Jean Wyllys e da deputada Erika Kokay que leva seu nome, denominado Lei João W. Nery, Lei de Identidade de Gênero. Com base na Lei de Identidade e Gênero da Argentina, o PL garante o direito do reconhecimento à identidade de gênero de todas as pessoas trans no Brasil, sem a necessidade de apresentar autorização judicial, laudos médicos e/ou psicológicos, cirurgias ou tratamentos hormonais. Em 2017, João fez parte do livro “Vidas Trans – A Coragem de Existir”, lançado pela Editora Astral Cultural. Ainda no mesmo ano, inspirou e contribuiu com a autora Gloria Perez para a construção do primeiro personagem transmasculino em novela brasileira (A Força do querer). Em agosto de 2018, recebeu da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) a aprovação da outorga do título de Doutor Honoris Causa. João faleceu em outubro de 2018. Lirous K’yo Fonseca Ávila Lirous K’yo Fonseca Ávila é Assistente Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Coordenadora da Associaçao em Defesa dos Direitos Humanos com Enfoque em Gênero e Sexualidade (ADEH) – instituição que acolhe pessoas LGBT vítimas de violência oferecendo acolhimento psicológico, social e jurídico gratuito a toda a população – e DJ pela Academia Internacional de Música Eletrônica (AIMEC). Atua nos movimentos sociais LGBT desde 2004 e na ADEH desde 2010. Coordenou a setorial LGBT da União Catarinense dos Estudantes de Santa Catarina (UCE) e a Associação Cultural de Videogame (ASSOPRA) da instituição Desdobrando Arte Ateliê. Foi presidenta do Fórum Diversidade Grande Florianópolis e membra do conselho municipal LGBT. Em 2012, recebeu o prêmio “Anita Garibaldi” como uma das 15 mulheres ativistas mais influentes no estado de Santa Catarina. Em 2016, recebeu os prêmios “Honra ao Mérito – Medalha Zumbi dos Palmares” da Câmara dos Vereadores de Florianópolis e “Amigos do Pop Gay”, da Prefeitura de Florianópolis. Pelos trabalhos prestados à comunidade LGBT, em 2018, da Câmara de Vereadores de Florianópolis, recebeu a “Medalha Antonieta de Barros” que reconhece mulheres que se destacam nos trabalhos sociais em Florianópolis. 144 • psicologia, travestilidades e transexualidades Maria Luíza Rovaris Cidade Maria Luiza Rovaris Cidade é psicóloga, formada na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Atuou como estagiária em Psicologia Social na Associação em Defesa dos Direitos Humanos com Enfoque nas Sexualidades (ADEH) em Florianópolis/SC. É mestra e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atua como psicóloga em equipe sociojurídica no Projeto Maré de Direitos Mulheres, situado na Casa das Mulheres da Maré – Redes de Desenvolvimento da Maré (ONG), no Rio de Janeiro/RJ. Marília dos Santos Amaral Marília dos Santos Amaral é psicóloga, doutora e mestra em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); professora do Curso de Psicologia da Faculdade Cesusc mantida pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina; integrante do Grupo de Trabalho Gênero e Sexualidades vinculado à Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia (CRP-12, Gestão 2016-2019); pesquisadora do Núcleo de Pesquisa Margens – Modos de vida, família e relações de gênero (PPGP/UFSC), onde participa e desenvolve pesquisas no campo da Psicologia Social Crítica, com ênfase nos Estudos de Gênero, Teorias Feministas e Estudos queer ligadas aos temas: Sexualidades, Gênero, Corpo, Travestilidades, Processos de Subjetivação, Direitos Humanos e Políticas Públicas. Sandra Elena Sposito Sandra Elena Sposito é psicóloga; doutora em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) de Assis (2015); mestra em Educação para Ciência pela UNESP de Bauru (2007) e graduada em Psicologia pela UNESP de Bauru (1996). Atualmente, atua como docente nos cursos de Psicologia da Fundação Educacional de Penápolis (FUNEPE) e no Instituto Municipal de Ensino Superior de São Manoel (IMES-SM). Possui Experiência no Ensino Superior desde 2002. É Conselheira do Conselho Federal de Psicologia (Gestão 2017-2019). Tatiana Lionço Tatiana Lionço é psicóloga, mestre em Psicologia Clínica e doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília (UnB). É professora e coordenadora do Núcleo de Estudos da Diversidade Sexual e de Gênero do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares da UnB. Nos últimos anos, pesquisa a incidência da religiosidade na política, com ênfase em políticas públicas de garantia dos direitos sexuais e direitos reprodutivos, e colabora com o Sistema Conselhos de Psicologia para debates sobre diversidade sexual e laicidade na profissão. 145 • psicologia, travestilidades e transexualidades VOLTA AO SUMÁRIO l ANEXO 1 CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA RESOLUÇÃO CFP Nº 1, DE 29 DE JANEIRO DE 2018 Estabelece normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas transexuais e travestis. O CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, no uso de suas atribuições legais e regimentais, que lhe são conferidas pela Lei nº 5.766, de 20 de dezembro de 1971, e pelo Decreto nº 79.822, de 17 de junho de 1977; CONSIDERANDO os princípios fundamentais previstos no Art. 1º da Constituição Federal de 1988, que estabelece a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito, e o Art. 5º, que dispõe que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”; CONSIDERANDO o Art. 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948, o qual enuncia: “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”; CONSIDERANDO os Princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero presentes na Convenção de Yogyakarta, de novembro de 2006; CONSIDERANDO a Declaração de Durban – Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância 146 • psicologia, travestilidades e transexualidades Correlata –, que reafirma o princípio de igualdade e de não discriminação, adotada em 8 de setembro de 2001; CONSIDERANDO a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, publicada em 2013 pelo Ministério da Saúde; CONSIDERANDO o Código de Ética Profissional das Psicólogas e dos Psicólogos, editado por meio da Resolução CFP nº 10/2005, de 21 de julho de 2005; CONSIDERANDO as expressões e identidades de gênero como possibilidades da existência humana, as quais não devem ser compreendidas como psicopatologias, transtornos mentais, desvios e/ou inadequações; CONSIDERANDO que expressão de gênero refere-se à forma como cada sujeito apresenta-se a partir do que a cultura estabelece como sendo da ordem do feminino, do masculino ou de outros gêneros; CONSIDERANDO que identidade de gênero refere-se à experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo e outras expressões de gênero; CONSIDERANDO que cisnormatividade refere-se ao regramento social que reduz a divisão das pessoas apenas a homens e mulheres, com papéis sociais estabelecidos como naturais, postula a heterossexualidade como única orientação sexual e considera a conjugalidade apenas entre homens e mulheres cisgêneros; CONSIDERANDO a cisnormatividade como discursos e práticas que excluem, patologizam e violentam pessoas cujas experiências não expressam e/ou não possuem identidade de gênero concordante com aquela designada no nascimento; CONSIDERANDO que a autodeterminação constitui-se em um processo que garante a autonomia de cada sujeito para determinar sua identidade de gênero; CONSIDERANDO que a estrutura das sociedades ocidentais estabelece padrões de sexualidade e gênero que permitem preconceitos, discriminações e vulnerabilidades às pessoas transexuais, travestis e pessoas com outras expressões e identidades de gênero não cisnormativas; 147 • psicologia, travestilidades e transexualidades RESOLVE: Art. 1º - As psicólogas e os psicólogos, em sua prática profissional, atuarão segundo os princípios éticos da profissão, contribuindo com o seu conhecimento para uma reflexão voltada à eliminação da transfobia e do preconceito em relação às pessoas transexuais e travestis. Art. 2º - As psicólogas e os psicólogos, no exercício profissional, não exercerão qualquer ação que favoreça a discriminação ou preconceito em relação às pessoas transexuais e travestis. Art. 3º - As psicólogas e os psicólogos, no exercício profissional, não serão coniventes e nem se omitirão perante a discriminação de pessoas transexuais e travestis. Art. 4º - As psicólogas e os psicólogos, em sua prática profissional, não se utilizarão de instrumentos ou técnicas psicológicas para criar, manter ou reforçar preconceitos, estigmas, estereótipos ou discriminações em relação às pessoas transexuais e travestis. Art. 5º - As psicólogas e os psicólogos, no exercício de sua prática profissional, não colaborarão com eventos ou serviços que contribuam para o desenvolvimento de culturas institucionais discriminatórias em relação às transexualidades e travestilidades. Art. 6º - As psicólogas e os psicólogos, no âmbito de sua atuação profissional, não participarão de pronunciamentos, inclusive nos meios de comunicação e internet, que legitimem ou reforcem o preconceito em relação às pessoas transexuais e travestis. Art. 7º - As psicólogas e os psicólogos, no exercício profissional, não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização das pessoas transexuais e travestis. Parágrafo único: As psicólogas e os psicólogos, na sua prática profissional, reconhecerão e legitimarão a autodeterminação das pessoas transexuais e travestis em relação às suas identidades de gênero. Art. 8º - É vedado às psicólogas e aos psicólogos, na sua prática profissional, propor, realizar ou colaborar, sob uma perspectiva patologizante, com eventos ou serviços privados, públicos, institucionais, comunitários ou promocionais que visem a terapias de conversão, reversão, readequação ou reorientação de identidade de gênero das pessoas transexuais e travestis. 148 • psicologia, travestilidades e transexualidades Art. 9º - Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação. ____________________________________________________ Documento assinado eletronicamente por Rogério Giannini, Conselheiro Presidente, em 29/01/2018, às 16:31, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, de 8 de outubro de 2015. Decreto nº 8.539. ____________________________________________________ A autenticidade deste documento pode ser conferida no site externo= http://sei.cfp.org.br/sei0, informando o código v verificador/controlador_externo.php?acao=documento_conferir&id_orgao_acesso 0024901 e o código CRC 8F5DCF4A. _ 149 • psicologia, travestilidades e transexualidades VOLTA AO SUMÁRIO l ANEXO 2 CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA RESOLUÇÃO CFP Nº 10, DE 27 DE MARÇO DE 2018 Dispõe sobre a inclusão do Nome Social na Carteira de Identidade Profissional da Psicóloga e do Psicólogo e dá outras providências. O CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, no uso de suas atribuições legais e regimentais que lhe são conferidas pela Lei nº 5.766, de 20 de dezembro de 1971, e pelo Decreto nº 79.822, de 17 de junho de 1977; CONSIDERANDO o direito à cidadania e o princípio da dignidade da pessoa humana, previstos no Art. 1º, incisos II e III, da Constituição Federal de 1988; CONSIDERANDO o direito à igualdade de todos os cidadãos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, previsto no Art. 5º da Constituição Federal de 1988; CONSIDERANDO o disposto na Lei nº 6.206, de 7 de maio de 1975, que “dá valor de documento de identidade às carteiras expedidas pelos órgãos fiscalizadores de exercício profissional”; CONSIDERANDO que o documento de identificação da Psicóloga e do Psicólogo é a Carteira de Identidade Profissional (CIP), conforme termos do Art. 14, da Lei nº 5.766, de 20 de dezembro de 1971, Art. 47, do Decreto nº 79.822, de 17 de junho de 1977, e do Art. 47, da Resolução CFP n.º 003/2007; CONSIDERANDO que o Art. 47, do Decreto nº 79.822, de 17 de junho de 1977, estabelece ainda que, deferida a inscrição, será fornecida à Psicóloga e ao Psicólogo CIP, na qual serão feitas anotações relativas à atividade da portadora e do portador; CONSIDERANDO o Decreto nº 8.727, de 28 de abril de 2016, que dispõe sobre o uso do Nome Social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional; CONSIDERANDO a decisão do Plenário do Conselho Federal de Psicologia, na 14ª Reunião Plenária, realizada nos dias 26 e 27 de janeiro de 2018; CONSIDERANDO o constante dos autos dos processos nos 576600003.000083/2018-15 e 576600001.000044/2017-57, RESOLVE: Art. 1º. Assegurar às pessoas transexuais e travestis o direito à escolha de tratamento nominal a ser inserido na CIP da Psicóloga e do Psicólogo, por meio da indicação do Nome Social, bem como nos atos e procedimentos promovidos no âmbito do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e dos Conselhos Regionais de Psicologia (CRP), tais como registros dos sistemas de informação, cadastros, programas, serviços, fichas, formulários, boletos de pagamento, informativos, publicidade e congêneres. § 1º. As CIP, expedidas após a publicação desta Resolução, serão confeccionadas, contendo campo adequado para a inserção do Nome Social da Psicóloga e do Psicólogo que assim requerem. O Nome Social deverá ser disposto, preferencialmente, próximo à foto, ao RG e ao CPF, em campo principal designado para esta finalidade. § 2º. Nos sistemas informatizados de acesso ao público, serão apresentados apenas o Nome Social, seguido do número de registro, conforme solicitado pelo profissional. Nos sistemas internos do Conselho Federal de Psicologia e dos Conselhos Regionais de Psicologia, em que seja estritamente necessário o cadastramento e visualização do Nome Civil da Psicóloga e do Psicólogo, deverá ser dado destaque ao Nome Social. § 3º. Nos processos administrativos, em que seja imprescindível o uso do Nome Civil, deverá constar, primeiramente, o Nome Social, seguido da inscrição “registrada(o) civilmente como”. Art. 2º. A Psicóloga e o Psicólogo solicitarão, por escrito, ao Conselho Regional de Psicologia, a inclusão do pronome que corresponda à forma pela qual se autodetermine. 151 • psicologia, travestilidades e transexualidades Parágrafo único. As Conselheiras e os Conselheiros, funcionárias e funcionários, assessoras e assessores, colaboradoras e colaboradores do Conselho Federal de Psicologia e dos Conselhos Regionais de Psicologia deverão tratar as pessoas transexuais e travestis pelo prenome indicado, que constará dos atos escritos. Art. 3º. Fica permitida a assinatura nos documentos resultantes do trabalho da Psicóloga e do Psicólogo, bem como nos instrumentos de sua divulgação, o uso do Nome Social, juntamente com o número de registro do profissional, não sendo necessária a inclusão do Nome Civil. Parágrafo único. Para efeito de tratamento profissional da Psicóloga e do Psicólogo, a exemplo de crachás, dentre outros, deverá ser utilizado somente o Nome Social e o número de registro. Art. 4º. É garantido o uso de banheiros, vestiários e demais espaços segregados por gênero, quando houver, de acordo com a identidade de gênero de cada sujeito no Conselho Federal de Psicologia e Conselhos Regionais de Psicologia. Art. 5º. Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação. Rogério Giannini Conselheiro Presidente ____________________________________________________ Documento assinado eletronicamente por Rogério Giannini, Conselheiro Presidente, em 28/03/2018, às 11:08, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015. ___________________________________________________ A autenticidade deste documento pode ser conferida no site http:// sei.cfp.org.br/sei/controlador_externo.php?acao=documento_ conferir&id_orgao_acesso_externo=0, informando o código verificador 0037173 e o código CRC BBB3EAF6. Referência: Processo nº 576600003.000083/2018-15 SEI nº 0037173 152 • psicologia, travestilidades e transexualidades VOLTA AO SUMÁRIO l ANEXO 3 CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA RESOLUÇÃO CFP Nº 001/99 DE 22 DE MARÇO DE 1999 Estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da Orientação Sexual. O CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, no uso de suas atribuições legais e regimentais, CONSIDERANDO que o psicólogo é um profissional da saúde; CONSIDERANDO que na prática profissional, independentemente da área em que esteja atuando, o psicólogo é frequentemente interpelado por questões ligadas à sexualidade. CONSIDERANDO que a forma como cada um vive sua sexualidade faz parte da identidade do sujeito, a qual deve ser compreendida na sua totalidade; CONSIDERANDO que a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão; CONSIDERANDO que há, na sociedade, uma inquietação em torno de práticas sexuais desviantes da norma estabelecida socioculturalmente; CONSIDERANDO que a Psicologia pode e deve contribuir com seu conhecimento para o esclarecimento sobre as questões da sexualidade, permitindo a superação de preconceitos e discriminações; RESOLVE: Art. 1º - Os psicólogos atuarão segundo os princípios éticos da profissão notadamente aqueles que disciplinam a não discriminação e a promoção e bem-estar das pessoas e da humanidade. 153 • psicologia, travestilidades e transexualidades Art. 2º - Os psicólogos deverão contribuir, com seu conhecimento, para uma reflexão sobre o preconceito e o desaparecimento de discriminações e estigmatizações contra aqueles que apresentam comportamentos ou práticas homoeróticas. Art. 3º - os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados. Parágrafo único - Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades. Art. 4º - Os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica. Art. 5º - Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação. Art. 6º - Revogam-se todas as disposições em contrário. Brasília, 22 de março de 1999. Ana Mercês Bahia Bock Conselheira Presidente 154 • psicologia, travestilidades e transexualidades VOLTA AO SUMÁRIO O IX Plenário do Conselho Regional de Psicologia de Santa Catarina (CRP-12), a partir do acúmulo de experiências desenvolvido pelo “GT Gênero e Sexualidades”, estabeleceu como um dos objetivos da gestão (2016-2019) a produção deste livro a m de dar continuidade com a problematização da temática da “Despatologização das Travestilidades e Transexualidades”, demarcando o compromisso ético-político da Psicologia diante da produção histórica de categorias patologizadoras e excludentes que marginalizam pessoas travestis e transexuais. Para continuar esta conversa, convidamos as pessoas que participaram dos seminários “Despatologização das Travestilidades e Transexualidades” desenvolvidos pelo CRP-SC em 2016 e 2017, bem como outras pessoas importantes no cenário brasileiro destas discussões, para ampliar o debate sobre como o exercício da Psicologia pode possibilitar a construção de espaços de resistência aos processos de patologização que envolvem as experiências das pessoas trans e travestis, no Brasil. AUTORAS(ES) Bruna G. Benevides Céu Cavalcanti Christian Pedro Mariano Daniel Kerry dos Santos Ematuir Teles de Sousa Hailey Kaas Jaqueline Gomes de Jesus João Walter Nery (in memoriam) Lirous K'yo Fonseca Ávila Maria Luíza Rovaris Cidade Marília dos Santos Amaral Sandra Elena Sposito Tatiana Lionço ISBN: 978-65-80478-02-6 9 7 8 6 5 8 0 4 7 8 0 2 6