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COORDENAÇÃO CIENTÍFICA ADVERTÊNCIAS O presente Manual foi escrito a várias mãos. Paulo Guerra, Juiz Desembargador Lucília Gago, Procuradora-Geral Adjunta PRODUÇÃO EXECUTIVA Foi respeitado o estilo de cada autor, sem uniformizar o texto em demasia, ganhando-se em autenticidade, o que se perde em homogeneidade de escrita. A grafia adotada é a do novo acordo ortográfico, excecionando-se citações de obras e arestos em que tal acordo não foi seguido. Os acórdãos indicados sem outra referência específica estão disponíveis na Base de Dados do IGFEJ. Os conteúdos e textos constantes desta obra, bem como as opiniões pessoais que nela são expressas, são da exclusiva responsabilidade dos seus Autores não vinculando nem necessariamente correspondendo à posição do Centro de Estudos Judiciários relativamente às temáticas abordadas. Paulo Guerra, Juiz Desembargador AUTORES DOS TEXTOS CIG – Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (Recolha, seleção e compilação de textos realizada por Manuel Albano e Marta Silva) Ana Massena, Procuradora da República e Docente do CEJ Catarina Fernandes, Procuradora da República e Docente do CEJ Diogo Ravara, Juiz de Direito e Docente do CEJ Francisco Mota Ribeiro, Juiz de Direito e Docente do CEJ Helena Susano, Juíza de Direito e Docente do CEJ Lucília Gago, Procuradora-Geral Adjunta e Docente do CEJ Maria Perquilhas, Juíza de Direito e Docente do CEJ Paulo Guerra, Juiz Desembargador e Diretor-Adjunto do CEJ Sérgio Pena, Procurador da República e Docente do CEJ Recolha de jurisprudência portuguesa e do TEDH – Auditores de Justiça do 31º Curso de Formação para os Tribunais Judiciais REVISÃO DOS TEXTOS Ana Massena Catarina Fernandes Paulo Guerra REVISÃO FINAL Paulo Guerra (Diretor-Adjunto do CEJ - Juiz Desembargador) Edgar Lopes (Coordenador do Departamento da Formação/CEJ - Juiz Desembargador) ÍNDICE NOTA DE ABERTURA 17 I A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA Caraterização do fenómeno e respostas aptas à sua erradicação - CIG 1 QUESTÕES CONCEPTUAIS E EVOLUÇÃO HISTÓRICA 2 TIPOS DE VIOLÊNCIA 3 MITOS E ESTEREÓTIPOS SOBRE A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA/CONJUGAL 4 PROCESSOS E DINÂMICAS ABUSIVAS 5 IMPACTO TRAUMÁTICO E CONSEQUÊNCIAS NA VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA 6 A AVALIAÇÃO E CONTROLO DO RISCO 7 A PROTEÇÃO DA VÍTIMA 7.1. QUESTÕES GERAIS NA INTERVENÇÃO COM VÍTIMAS 7.2. A VÍTIMA NOS SISTEMAS JUDICIAIS EUROPEUS 7.3. A CONVENÇÃO DE ISTAMBUL NO ORDENAMENTO JURÍDICO PORTUGUÊS 7.4. OS PROFISSIONAIS DE APOIO À VÍTIMA FACE À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA/CONJUGAL 7.5. COMPETÊNCIAS E ESTILOS DE COMUNICAÇÃO 7.6. GUIA DE RECURSOS ONLINE 7.7. A TELEASSISTÊNCIA A VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA 8 O TRATAMENTO DO AGRESSOR DOMÉSTICO 20 II A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA Enquadramento legal 1 BREVE REFERÊNCIA AOS PRINCIPAIS INSTRUMENTOS JURÍDICOS INTERNACIONAIS – CIG 70 21 31 34 37 40 42 43 43 47 50 52 61 64 64 67 71 2 OS PLANOS NACIONAIS CONTRA A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – CIG 3 EVOLUÇÃO DO CONCEITO NA ORDEM JURÍDICA NACIONAL – Catarina Fernandes 4 O CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – Catarina Fernandes 5 BREVE RESENHA DA JURISPRUDÊNCIA NACIONAL – Helena Susano 6 A JURISPRUDÊNCIA DO TEDH – Catarina Fernandes III A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – O PROCESSO PENAL 1 A DENÚNCIA DO CRIME E A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL 1.1. A DENÚNCIA – Sérgio Pena 1.2. A INTERVENÇÃO MÉDICO-LEGAL E FORENSE – Paulo Guerra 1.3. A INTERVENÇÃO DOS ÓRGÃOS DE POLÍCIA CRIMINAL E DO MINISTÉRIO PÚBLICO – Sérgio Pena 1.3.1. BREVÍSSIMA NOTA SOBRE O INQUÉRITO E A COMPETÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DOS ÓRGÃOS DE POLÍCIA CRIMINAL 1.3.2. A AVALIAÇÃO DO RISCO 1.3.3. AS MEDIDAS CAUTELARES E DE POLÍCIA 1.3.4. A INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO DECURSO DO INQUÉRITO – A DIRETIVA N.º 2/2015, DE 24 DE NOVEMBRO DE 2015 1.4. A DEFESA DOS INTERESSES DA VÍTIMA: PROCEDIMENTOS URGENTES – Maria Perquilhas 1.4.1. AFASTAMENTO DA VÍTIMA DA RESIDÊNCIA HABITUAL 1.4.2. SERVIÇOS DE INFORMAÇÃO 1.4.3. LINHA NACIONAL DE EMERGÊNCIA SOCIAL 1.4.4. ESTRUTURAS DE ATENDIMENTO 78 81 84 107 115 134 135 135 139 140 140 142 144 151 154 154 154 155 155 ÍNDICE 1.4.5. ACOLHIMENTO DE EMERGÊNCIA 1.4.6. CASAS DE ABRIGO 1.4.7. RETIRADA DA RESIDÊNCIA DE BENS DE USO PESSOAL E EXCLUSIVO DA VÍTIMA – Catarina Fernandes 1.5 A VÍTIMA ENQUANTO INTERVENIENTE NO PROCESSO PENAL – Catarina Fernandes 1.5.1. IMPORTÂNCIA DO PRIMEIRO CONTACTO DA VÍTIMA COM O SISTEMA FORMAL DE JUSTIÇA 1.5.2. O ESTATUTO DE VÍTIMA 1.5.3. INTERVENÇÃO INICIAL 1.5.4. A INQUIRIÇÃO DA VÍTIMA 1.5.5. DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA 1.5.6. OUTRAS MEDIDAS DE PROTEÇÃO DA VÍTIMA NO PROCESSO PENAL 1.6 A DETENÇÃO – Francisco Mota Ribeiro 1.6.1. FINALIDADES DA DETENÇÃO 1.6.2. PRESSUPOSTOS DA DETENÇÃO 1.6.3. QUEM DEVE OU PODE DETERMINAR OU LEVAR A CABO A DETENÇÃO 1.6.4. QUEM PODE SER ALVO DE DETENÇÃO – SUJEITO PASSIVO DA DETENÇÃO 1.6.5 IMUNIDADES OU MEDIDAS ESPECIAIS DE PROTEÇÃO DE CARÁTER PESSOAL, FUNDADAS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA E NA LEI ORDINÁRIA 1.6.6. DURAÇÃO DA DETENÇÃO – PRAZOS MÁXIMOS 1.6.7. ATOS SUBSEQUENTES À DETENÇÃO 1.7 A INTERVENÇÃO DO JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL NO INQUÉRITO – Francisco Mota Ribeiro 1.7.1. ESTRUTURA ACUSATÓRIA DO PROCESSO PENAL E COMPETÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA A REALIZAÇÃO DO INQUÉRITO 156 156 157 157 159 160 161 164 165 173 175 176 179 183 187 187 190 192 194 194 1.7.2. LIMITES FUNCIONAIS À COMPETÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO – IMPOSIÇÃO CONSTITUCIONAL DA INTERVENÇÃO DE JUIZ NO INQUÉRITO 1.7.2.1. ATOS DA EXCLUSIVA COMPETÊNCIA DO JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL 1.7.2.2. ATOS A ORDENAR OU A AUTORIZAR PELO JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL 1.7.2.3. OUTROS ATOS QUE TAMBÉM PODEM CABER NAS COMPETÊNCIAS DO JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL 1.8 AS MEDIDAS DE COAÇÃO – Helena Susano 1.9 A SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO – Catarina Fernandes 1.9.1. ENCONTRO RESTAURATIVO 2 A ACUSAÇÃO, A INSTRUÇÃO E O JULGAMENTO 2.1. DEDUÇÃO DA ACUSAÇÃO – Sérgio Pena 2.1.1. COMUNICAÇÕES PREVISTAS NO ART.º 37.º DA LEI N.º 112/09, DE 16/9 – DECISÕES FINAIS E DECISÕES DE ATRIBUIÇÃO DO ESTATUTO DE VÍTIMA PROFERIDAS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO 2.2. A FASE DE INSTRUÇÃO – Helena Susano 2.3. A FASE DE JULGAMENTO: A PRODUÇÃO E VALORAÇÃO DA PROVA – Helena Susano 2.3.1. FASE PRELIMINAR: O DESPACHO PROFERIDO NOS TERMOS DO ARTIGO 311º 2.3.2. INQUIRIÇÃO DA VÍTIMA 2.3.3. REPRODUÇÃO OU LEITURA PERMITIDA DE DECLARAÇÕES DO ASSISTENTE, TESTEMUNHA OU PARTE CÍVEL NA AUDIÊNCIA DE DISCUSSÃO E JULGAMENTO 195 195 198 201 202 210 221 222 222 225 226 233 233 235 237 ÍNDICE 3 A SENTENÇA CONDENATÓRIA E A SUA EXECUÇÃO 3.1. A EXECUÇÃO DA PENA PRINCIPAL – Paulo Guerra 3.2. A SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO – Paulo Guerra 3.3. AS PENAS ACESSÓRIAS – Paulo Guerra 3.4. FORMAS ESPECIAIS DE PROCESSO –Paulo Guerra 3.5. A INDEMNIZAÇÃO EM PROCESSO PENAL – Francisco Mota Ribeiro 3.5.1. PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL 3.5.2. PRINCÍPIO DA ADESÃO, PRINCÍPIO DO PEDIDO E LEGITIMIDADE 3.5.3. DEVER DE INFORMAÇÃO DOS EVENTUAIS INTERESSADOS LESADOS 3.5.4. PRINCÍPIO DA REPRESENTAÇÃO DO LESADO POR ADVOGADO 3.5.5. A FORMULAÇÃO DO PEDIDO: TERMOS EM QUE O MESMO PODE SER DEDUZIDO E NATUREZA DO RESPETIVO PRAZO (ARTIGO 77º CPP) 3.5.6. A CONTESTAÇÃO: TERMOS DA SUA DEDUÇÃO E O RESPETIVO PRAZO E REPRESENTAÇÃO OBRIGATÓRIA POR ADVOGADO 3.5.7. AS PROVAS RELATIVAS AO PEDIDO CÍVEL E A PRESENÇA DO LESADO, DOS DEMANDADOS E DOS INTERVENIENTES NA AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO 3.5.8. O PRINCÍPIO DA LIVRE DISPONIBILIDADE DO PEDIDO CÍVEL: RENÚNCIA E DESISTÊNCIA DO PEDIDO 3.5.9. A DETERMINAÇÃO DO OBJETO DA PRESTAÇÃO INDEMNIZATÓRIA E A POSSIBILIDADE DA SUA CONVERSÃO ALTERNATIVA 239 239 246 251 252 260 260 262 265 266 267 269 270 270 270 3.5.10. A LIQUIDAÇÃO «EM EXECUÇÃO DE SENTENÇA», O REENVIO PARA OS TRIBUNAIS CIVIS E A POSSIBILIDADE DE O TRIBUNAL ESTABELECER UMA INDEMNIZAÇÃO PROVISÓRIA, A REQUERIMENTO OU OFICIOSAMENTE 3.5.11. ARBITRAMENTO OFICIOSO DE REPARAÇÃO À VÍTIMA PELOS PREJUÍZOS SOFRIDOS, INDEPENDENTEMENTE DA DEDUÇÃO DO PEDIDO CÍVEL NO PROCESSO PENAL – EM ESPECIAL NA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA 3.5.12. ARBITRAMENTO OFICIOSO DE REPARAÇÃO À VÍTIMA DE CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – NULIDADE DA SENTENÇA POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA 3.5.13. REPARAÇÃO DA VÍTIMA EM CASOS ESPECIAIS, NOMEADAMENTE ÀS VÍTIMAS DE CRIMES VIOLENTOS E DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA 3.5.14. EXEQUIBILIDADE PROVISÓRIA DA CONDENAÇÃO EM INDEMNIZAÇÃO CIVIL 3.6. RESTITUIÇÃO DE BENS APREENDIDOS NO PROCESSO PENAL – Francisco Mota Ribeiro 3.6.1. RESTITUIÇÃO DE BENS EM PROCESSO PENAL PERTENCENTES À VÍTIMA 3.6.2. REEMBOLSO DAS DESPESAS RESULTANTES DA PARTICIPAÇÃO NO PROCESSO PENAL IV A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – O DIREITO DA FAMÍLIA E DAS CRIANÇAS 1 DIVÓRCIO E RESPONSABILIDADES PARENTAIS – Maria Perquilhas 271 272 272 273 274 275 275 276 277 279 ÍNDICE 2 PROMOÇÃO E PROTEÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS EM PERIGO – Paulo Guerra 3 INTERVENÇÃO TUTELAR EDUCATIVA – Lucília Gago 4 ARTICULAÇÃO ENTRE AS VÁRIAS INTERVENÇÕES: O PROCESSO PENAL, O PROCESSO TUTELAR EDUCATIVO, O PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO E AS PROVIDÊNCIAS TUTELARES CÍVEIS – Ana Massena V A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: O DIREITO DO TRABALHO – Diogo Ravara 1 A QUALIFICAÇÃO DAS AUSÊNCIAS AO TRABALHO COMO FALTAS E O SEU ENQUADRAMENTO LEGAL 2 A SUSPENSÃO DO CONTRATO DE TRABALHO 3 A MUDANÇA DO LOCAL DE TRABALHO 4 O TELETRABALHO 5 A ALTERAÇÃO DO TEMPO DE TRABALHO 6 A FORMAÇÃO PROFISSIONAL 7 A CADUCIDADE DO CONTRATO DE TRABALHO 8 O DESPEDIMENTO ILÍCITO 295 314 323 336 339 348 349 351 353 354 354 356 O ME D O VA I T E R T U D O , T U D O … P E N S O N O Q U E O ME D O VA I T E R E T E N H O ME D O Q U E É J U S TA ME N T E O Q U E O ME D O Q UE R… A l exan dr e O ’ N ei l l Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 16 - - INTRODUÇÃO O problema da violência doméstica constitui uma chaga social no nosso país. Na verdade e infelizmente correspondendo a uma cultura longamente enraizada em alguns meios sociais e familiares acerca do uso da violência contra familiares e próximos, o país continua a ser tragicamente conhecido por altas taxas deste tipo de criminalidade. As consequências são conhecidas nas cifras negras das vítimas, na ocupação do sistema judicial, em números elevados de reclusão, em indemnizações não pagas pelos agressores, nas famílias desfeitas e, frequentemente, na reprodução de comportamentos delinquentes nas gerações seguintes dos carrascos e das vítimas. Ao longo dos últimos anos, o Centro de Estudos Judiciários tem dedicado atenção particular a esta temática, quer no âmbito da formação inicial de magistrados, quer no da formação contínua de magistrados e de outros profissionais do Direito e, finalmente, também na formação de dirigentes das novas comarcas. E fê-lo ainda no âmbito do programa Justiça para tod@s, no qual os temas da violência no namoro e na escola (bullying e ciberbullying) constituem preocupações centrais, não apenas com vista à sensibilização dos jovens acerca da violência em si, como também sobre as consequências dos seus atos perante o Direito e a Justiça. António Pedro Barbas Homem PROFESSOR CATEDRÁTICO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA DIRETOR DO CEJ 2011-2016 Na formação inicial como na formação contínua a atenção incidiu não apenas nas questões técnico-jurídicas cujo domínio é indispensável pelos magistrados, como na necessidade de humanizar a relação entre a justiça e os cidadãos. A justiça, os seus magistrados e os seus funcionários, têm que saber lidar com o público, especialmente com as pessoas vulneráveis, vítimas diretas e indiretas de atos e situações violentas. Só assim se consegue uma justiça de rosto humano, programa cuja realização sempre se impõe convocar. O Centro de Estudos Judiciários publicou trabalhos em todas estas áreas, dedicando-lhes centenas de horas de formação, inclusivamente por todo o país. Estão acessíveis de forma livre, gratuita e universal na página do CEJ na Internet. É ilusório, no entanto, pretender que é apenas através da formação dos agentes do Estado que se podem resolver situações sociais complexas, frequentemente o resultado, como acima referido, de contextos educacionais problemáticos. Enfrentamos, de um lado, a ilusão de que se pode ter um polícia atrás de cada pessoa, e, de outro, o preconceito de que, por trás de cada situação levada aos tribunais, encontraremos sempre crianças complexadas, pais violentos e desinteresse do Estado. Não é assim: a complexidade do fenómeno da violência encontra-se bem descrita nos artigos iniciais deste trabalho, cabendo aqui não apenas um especial agradecimento institucional à Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, como também um pessoal, aos seus dirigentes e funcionários envolvidos no projeto. MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 17 - Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 18 - - É importante, de outro lado, ter atenção às questões simbólicas: o sistema judicial não só tem que ser mais eficiente no modo como lida com a violência doméstica, como deve adotar uma estratégia que demonstre à opinião pública a sua preocupação com as vítimas, com a justiça e adequação dos procedimentos, com a punição e regeneração dos criminosos. À medida da sua função, foi o que o Centro de Estudos Judiciários quis fazer com esta publicação. Sabe-se bem quais são os limites de uma escola de magistratura, na sua relação com a autonomia do Ministério Público e a independência dos Tribunais. Mas também se sabe que a legitimidade dos tribunais e a confiança na justiça se adquirem através de uma cultura de cidadania, que eleve os níveis da literacia jurídica da sociedade. Frequentemente desconhecidos pela opinião pública, existem boas práticas já implementadas há muito em diferentes departamentos das instituições do Estado, do Ministério Público aos tribunais e polícias de proximidade, sem esquecer importantes Organizações Não Governamentais. Foi também para estas instituições e boas práticas que se quis chamar a atenção. Uma obra como a que agora se apresenta nunca está concluída: na realidade, sabemos que leis e regulamentos da administração estão continuamente a ser alterados e que instruções e orientações administrativas igualmente são reformuladas periodicamente. E que as boas práticas institucionais e funcionais sempre podem ser melhoradas. I. Daí a vantagem e o interesse da versão eletrónica deste documento: ele proporciona ao leitor rápida abertura de páginas e documentos na Internet e permite atualizar essas mesmas ligações sempre que existir uma nova alteração. Este modelo permite ainda atualizar os próprios textos, sempre que comprovada a necessidade de os atualizar ou de os rever, em função de novos subsídios críticos que imponham essa revisão. Ao longo de cerca de ano e meio e sob a direção do Juiz Desembargador Paulo Guerra e da Procuradora-Geral Adjunta Lucília Gago foi assim possível articular diversos planos científicos e profissionais e conjugar matérias muito diferentes, de modo a proporcionar um retrato do direito aplicável, não apenas penal e processual penal, mas também organizativo, administrativo, da família e das crianças e laboral. Fica um agradecimento muito especial aos coordenadores deste volume e a todos os autores que o tornaram possível. Uma obra que fica como um marco de excelência na literatura jurídica e como um contributo essencial para melhorar a qualidade da justiça no âmbito do combate à violência doméstica. MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 19 - Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 20 - - 1. QUESTÕES CONCEPTUAIS1 E EVOLUÇÃO HISTÓRICA I A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA Caraterização do fenómeno e respostas aptas à sua erradicação - CIG Ao longo dos anos, a questão da violência doméstica, a sua definição e as políticas e estratégias de intervenção, entre outros aspetos que a envolvem, sofreram progressivas evoluções conceptuais. Estas diferentes formas de abordar o problema assentam em diferentes construções da realidade e do mundo, quer científicas quer políticas, quer ainda ao nível das ideologias e da cultura que caraterizam determinada sociedade em determinada época. Assim, neste primeiro capítulo, abordaremos a questão da violência doméstica numa perspetiva histórica e evolutiva, definindo e distinguindo conceitos como o de violência, violência contra/sobre as mulheres (VSM), violência doméstica (VD), violência conjugal (VC), maus tratos (MT), entre outros. Começando pela noção mais lata e, talvez por isso, sujeita a maior diversidade de definições, com elevadas semelhanças entre si, optamos pela seguinte definição de violência, construída a partir de algumas das definições que nos pareceram mais completas e adequadas: quando neste estudo falarmos de violência, estaremos a falar de qualquer forma de uso intencional da força, coação ou intimidação contra terceiro ou toda a forma de ação intencional que, de algum modo, lese os direitos e necessidades dessa pessoa. Quanto à VSM, de acordo com a Organização das Nações Unidas (2000) e partindo da Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação da Violência Sobre as Mulheres (1993), constitui violência contra as mulheres “todo o ato de violência baseado na pertença ao sexo feminino que tenha ou possa ter como resultado o dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico da mulher; inclui-se aqui também a ameaça de tais atos, a coação ou a privação arbitrária de liberdade, na vida pública ou na vida privada”. A VSM assume, assim, diversas formas, incluindo a violência física, emocional e psicológica, social e económica, sexual; a violação e o tráfico de mulheres e raparigas, a prostituição forçada; a violência em situações de conflito armado, os homicídios por motivos de honra, o infanticídio feminino, a mutilação genital feminina e outras práticas e tradições prejudiciais para as mulheres. De forma similar, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (2002), define a VSM como “qualquer ação ou conduta, baseada no género, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado”. 1 MANUAL PLURIDISCIPLINAR Metodologias e Indicadores para o estudo da investigação e intervenção na Violência Doméstica em Portugal Resultados de um estudo de aplicação exploratória - Celina Manita – 2006. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 21 - Violê nc ia Domé s t ic a - - CAR ATER IZAÇÃO DO F ENÓMENO E R ESP O STA S A P TA S À SUA ER R ADICAÇÃO - CIG imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 22 - Entende-se que a violência contra a mulher inclui violência física, sexual e psicológica, quer a que tenha ocorrido na esfera privada - dentro da família ou unidade doméstica 2 ou em qualquer outra relação interpessoal em que o agressor conviva ou tenha convivido no mesmo domicílio que a mulher vitimizada, estando ligados por laços de consanguinidade ou de convivência -, quer a que tenha ocorrido na esfera pública, compreendendo, entre outros, os maus tratos, a violação, o abuso sexual, a tortura; o tráfico de mulheres, a prostituição forçada; o sequestro e o assédio sexual no lugar de trabalho; o uso de linguagem sexista nos meios de comunicação social ou a difusão de imagens estereotipadas sobre os papéis sexuais na publicidade, e até mesmo a que pode ocorrer nos espaços institucionais (serviços de saúde, polícias, escolas, …) através de maus tratos diretos infligidos às mulheres ou da discriminação no acesso aos serviços. Grande parte das medidas dirigidas à erradicação do problema da violência sobre as mulheres tem-se dirigido às suas manifestações no âmbito privado. Há, contudo, uma desvantagem na centração quase exclusiva nesta forma de violência, pois, não obstante a gravidade e a magnitude da VSM na esfera privada, circunscrevê-la a esta dimensão acaba por limitar a sua compreensão e, consequentemente, as possibilidades de intervir sobre ela. Conceptualizado como um fenómeno mais lato que a violência doméstica, a VSM deve o essencial da sua definição e consolidação à intervenção e lutas dos movimentos feministas. Efetivamente, estes movimentos têm procurado denunciar e modificar a ordem social que sustenta este tipo de crenças sobre a superioridade masculina, assim como tornar visíveis as distintas formas de VSM (física, sexual, psicológica, patrimonial...), contribuindo para relativizar a ideia de que ela consistiria essencialmente ou exclusivamente na violência física. Uma das formas de VSM que mais tem preocupado as entidades internacionais dedicadas a esta causa na última década é, para além da violência doméstica, o tráfico de mulheres (e de crianças). Acredita-se que este fenómeno alimenta sobretudo a exploração sexual com fins comerciais, crime responsável pelo encaixe anual de lucros na ordem dos 8000 milhões de dólares (Organização Internacional para as Migrações, cit. in ONU, 2000). Entre as vítimas contar-se-iam quer mulheres que participam voluntariamente, “atraídas por promessas de maiores rendimentos e de libertação da pobreza” quer as são coagidas, terminando muitas “na prostituição, contra a sua vontade” (idem). Em Portugal, a realidade da prostituição de rua e o fenómeno do tráfico e exploração sexual de mulheres começa a ser alvo de investigação científica (Oliveira, 2004; Manita e Oliveira, 2002; Oliveira e Manita, 2002; Costa e Alves, 2001; Silva, 1998). Assim, é importante referir também noções como as de Agressão Sexual, outro domínio frequentemente associado aos campos da VSM e da VD. A agressão sexual engloba todos os atos sexuais praticados sem o consentimento da pessoa, implementados com recurso à força, à coação, intimidação, presunção de superioridade ou engano, atos praticados por via vaginal, anal ou oral, ou com uso de outros meios, modos ou instrumentos auxiliares. 2 Quando se refere a violência doméstica, o espaço doméstico é, quase sempre, concebido como o lugar em que ocorre a violência que se produz no interior da família. MANUAL PLURIDISCIPLINAR Um outro conceito que vem ganhando destaque e que se associa frequentemente à ideia de criminalidade sexual, embora não redunde necessariamente nela, é o fenómeno do “stalking”3 (perseguição): um conjunto de comportamentos dirigidos a uma dada pessoa, envolvendo proximidade visual e física persistente, a insistência na comunicação não consensual ou o recurso a ameaças verbais, escritas ou implícitas, ou a combinação destas, passível de provocar elevado medo nas vítimas e repetindo-se em diferentes ocasiões (Tjaden e Thoennes, 1998). O conceito de “mulher maltratada” traduz a forma como a VSM começou a ser conceptualizada a partir dos anos 70, sob a égide dos movimentos feministas europeus e norte-americanos. O conceito centra a VSM “na figura da mulher, concebendo-a como vítima de uma situação particular, e entendendo o problema como uma questão de direitos humanos com origem na própria estrutura da sociedade” (Guerrero Caviedes, 2002). Reforça-se, assim, a ideia de que, desde o início da sua conceptualização, o problema da VSM foi configurado a partir “de um contexto estrutural de desigualdades sociais e económicas, por referência às diversas discriminações que afetam a situação da mulher e a sua posição na sociedade (pobreza, analfabetismo, discriminação laboral, etc)”. A VSM é consequência da ordem de género socialmente estabelecida, ordem essa que “determina uma hierarquia e um poder distintos para ambos os sexos” (idem). Esta ordem hierárquica define uma posição de subordinação da mulher relativamente ao homem, sendo que estes exercem o poder sobre as mulheres de diferentes formas, entre as quais a violência se revela uma das mais graves manifestações desse poder. Esta ordem hierárquica é mantida pelo conjunto da sociedade, através de mecanismos vários (leis, instituições), verificando-se que a discriminação e a violência contra as mulheres acabam por ser socialmente aceites na medida em que fazem parte do sistema social estabelecido. Estas definições colocam claramente a VD como um dos casos particulares no domínio mais alargado da VSM, onde vários outros fenómenos que vitimam as mulheres estão compreendidos. De notar que nos cenários acima descritos de VSM se encontram integrados quer crimes de natureza extraordinária e mais conjuntural (como os vários tipos de agressões sobre as mulheres em cenário de conflito armado, por exemplo), quer crimes que beneficiam de um suporte nas crenças e tradições culturalmente enraizadas e que apresentam, por isso mesmo, um caráter mais estrutural, até pela longevidade que apresentam no curso da História, como são o caso da VD e da discriminação social ou laboral da mulher. A violência doméstica é definida globalmente como um comportamento violento continuado ou um padrão de controlo coercivo exercido, direta ou indiretamente, sobre qualquer pessoa que habite no mesmo agregado familiar (e.g., cônjuge, companheiro/a, filho/a, pai, mãe, avô, avó), ou que, mesmo não coabitando, seja companheiro/a, ex-companheiro/a ou familiar. Este padrão de comportamento violento continuado resulta, a curto ou médio prazo, em danos físicos, sexuais, emocionais, psicológicos, imposição de 3 Com interesse, Stalking: abordagem penal e multidisciplinar [Em linha]. Lisboa: Centro de Estudos Judiciários, 2013. Disponível na internet: <URL http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/Stalking/Stalking.pdf> MANUAL PLURIDISCIPLINAR - 23 - Violê nc ia Domé s t ic a - - CAR ATER IZAÇÃO DO F ENÓMENO E R ESP O STA S A P TA S À SUA ER R ADICAÇÃO - CIG imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 24 - isolamento social ou de privação económica à vítima, visa dominá-la, fazê-la sentir-se subordinada, incompetente, sem valor ou fazê-la viver num clima de medo permanente. De acordo com diferentes estudos, a violência doméstica é a forma mais frequente de violência sofrida pelas mulheres. São atos e comportamentos dirigidos contra a mulher que correspondem a agressões físicas ou sua ameaça, a maus tratos psicológicos e emocionais, a intimidação e a coação, a abusos ou assédios sexuais, ao desrespeito dos seus direitos na esfera da vida reprodutiva ou da cidadania social. “A violência doméstica, em especial o espancamento da mulher, é talvez a forma mais generalizada de violência contra as mulheres. Em países onde se encontram disponíveis estudos fiáveis (…) verifica-se que 20% das mulheres foram vítimas de maus tratos por parte dos homens com quem vivem” (ONU, 2000). Dentro da violência doméstica – que pode abarcar familiares em diferentes graus, de ambos os sexos – particulariza-se a violência conjugal (VC), forma de violência exercida por um dos companheiros ou ex-companheiro sobre o outro. Uma das maiores e mais complexas especificidades da violência doméstica é precisamente ocorrer no contexto de relações íntimas, nas quais o agressor, para além de uma particular proximidade afetiva, dispõe de todo um leque de conhecimentos e estratégias para controlar a(s) vítima(s). As relações de conjugalidade, para além de íntimas, são complexas; as interações entre companheiros estão envolvidas por uma forte componente emocional e sexual e, para além disso, eles partilham projetos, papéis e responsabilidades relativos à sua vida e à vida dos filhos, como a gestão dos bens, a alimentação, a educação, as atividades sociais, profissionais (Manita, 2004). É, assim, mais fácil ao agressor criar uma rede de dependências e controlos que “armadilham“ a relação e tornam mais difícil à vítima a rutura com a relação abusiva. Neste contexto, assume particular relevância, no quadro dos estudos e das intervenções na VC, a consideração do ciclo da violência. De acordo com este modelo, a VC desenvolve-se através de ciclos cuja intensidade e frequência aumenta com o tempo. No contexto da VC qualquer incidente pode desencadear uma crise acompanhada de ameaças ou agressões psicológicas que são, muitas vezes, seguidas de agressões físicas. Após esta crise, instala-se muitas vezes um período de remissão dos comportamentos violentos durante a qual o homem violento, temendo perder a sua companheira, minimiza o que fez, justifica o seu comportamento através de racionalizações e desculpas várias (álcool, stress, provocações pela mulher...). Por vezes, assume-se até como culpado dos seus atos e tem atitudes afetuosas com a mulher, prometendo nunca mais tornar a repeti-los e adotando atitudes não violentas. Esta mudança de atitude cria na mulher a esperança de que ele não voltará a ser violento e poderá mesmo redescobrir nele um companheiro calmo e atencioso. Contudo, o exercício da violência sobre a vítima surgirá de novo, sendo que muitos destes períodos de “lua-de-mel” se apresentam bastante curtos e tendem a desaparecer ao longo do tempo. Com as sucessivas repetições deste ciclo, a mulher passará a avaliar-se como incompetente na sua vida de casal (e não só), sendo frequente sentir-se responsável pela existência da própria violência4. 4 O conhecimento deste ciclo é fundamental quer na formação dos profissionais que intervêm junto de vítimas de VD, quer na própria intervenção com as vítimas. MANUAL PLURIDISCIPLINAR De uma forma sintética, pode considerar-se que o ciclo da violência conjugal tende a evoluir seguindo dois grandes processos: - o “ciclo da violência” propriamente dito, que engloba três fases centrais: fase do aumento da tensão, fase do ataque violento ou do episódio de violência, e fase de apaziguamento, reconciliação ou “lua-de-mel”; - um processo segundo o qual os atos de violência tendem a aumentar de frequência, intensidade e perigosidade ao longo do tempo. Numa primeira fase da evolução da relação abusiva, a vítima ainda acredita que vai ser capaz de evitar a violência, apaziguar o agressor; acredita que se trata de atos isolados, que não se vão repetir, e encontra justificações para esses atos (em muitos casos, aceita até parte ou a totalidade da responsabilidade/culpa pela situação). Porém, com o passar do tempo e com o aumento da violência, ela acaba por constatar que não tem qualquer controlo sobre a situação (nem culpa) e as racionalizações que até aí iam permitindo “desculpar” ou entender o ato, deixam de funcionar. Mas, até que essa constatação seja feita, o “ciclo da violência” é vivido pela vítima com um misto de medo, esperança e amor. A primeira das três fases do ciclo da violência é a fase mais prolongada, a última a mais curta e, em situações de violência continuada, tende mesmo a desaparecer. Na maioria dos casos, oferecer resistência ou responder agressivamente tende a produzir uma escalada na violência em vez de a suspender. Ao longo do tempo, os atos de violência tendem a aumentar de frequência, intensidade e perigosidade. Assim, não só o risco para a vítima aumenta e as consequências negativas são mais intensas, como, à medida que o tempo passa, ela perde cada vez mais a sensação de controlo e poder sobre si própria e sobre a sua vida, perde o sentimento de autoconfiança e de competência pessoal e desenvolve sentimentos de impotência e de “desânimo aprendido”. Acaba, assim, por se tornar “refém” deste ciclo de violência, sendo-lhe cada vez mais difícil romper com a situação abusiva. Para as vítimas de VD/VC, a casa não é um lugar de paz e de segurança, mas um espaço de medo onde são quotidianamente confrontadas com a violência e a destruição pessoal. Milhares de mulheres em todo o mundo são, assim, quotidianamente expostas à humilhação, ao desprezo, ao controlo e às agressões, vivendo no medo, na insegurança; centradas nas variações do estado de humor do seu companheiro, adaptando-se progressivamente às suas exigências e orientando a sua vida quase exclusivamente para a satisfação das necessidades do homem, excluindo-se a si enquanto pessoa e enquanto ator social. Para estas, a casa não é um lugar de paz e de segurança, mas um lugar onde são quotidianamente confrontadas com a violência5. Não podemos esquecer que, ao contrário do que é frequentemente afirmado (ou, se calhar, frequentemente esquecido...), a VD atravessa todas as culturas, sociedades e classes. Vítimas e agressores são provenientes de qualquer estrato socioeconómico – esta é uma 5 Para além dos casos em que os episódios violentos acontecem no domicílio do casal, deve ser dada particular atenção às situações de assédio ou de agressões que ocorrem frequentemente no local de trabalho da mulher, no seu novo domicílio, em redor da escola dos seus filhos ou mesmo na via pública. MANUAL PLURIDISCIPLINAR - 25 - Violê nc ia Domé s t ic a - - CAR ATER IZAÇÃO DO F ENÓMENO E R ESP O STA S A P TA S À SUA ER R ADICAÇÃO - CIG imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 26 - forma de violência transversal aos diferentes padrões culturais, religiosos, económicos, profissionais, etc. Um aspeto diferente é a constatação, comum a diferentes estudos e estatísticas, de que a VD/VC ocorrerá mais frequentemente nos estratos socioeconómicos mais desfavorecidos – o que pode ser um efeito de fatores culturais-educacionais mais fortemente legitimadores da violência presentes nestes estratos socioculturais ou, simplesmente, um efeito da maior visibilidade que vítimas e agressores destes estratos têm, dado que, por falta de alternativas económicas e sociais, tenderão a recorrer mais às instâncias públicas de apoio a vítimas, às instâncias oficiais de controlo social e a escapar menos à vigilância das instâncias de regulação judicial e apoio social. Para além disso, a maior parte dos abusadores não apresenta psicopatologia relevante nem problemas de alcoolismo ou de toxicodependência. A ideia da psicopatologia como causa do comportamento violento está generalizada entre cidadãos e profissionais de diferentes áreas. No entanto, estudos internacionais demonstram que apenas 5 a 10% dos perpetradores de VD/VC terão algum tipo de psicopatologia/perturbação mental associada. É difícil aceitar a ideia de que estes padrões de violência continuada possam ser exercidos por indivíduos normais (e, contudo, são-no) e, além disso, aceitar que um indivíduo “igual a nós” pode ser um agressor é ter de aceitar que “um de nós” [eu próprio, o/a companheiro/a, pai/mãe, familiar, amigo/a, colega, pode, afinal, ser também um/a agressor/a]. Da mesma forma, uma coisa é afirmar que o abuso de álcool ou outras drogas surge associado a situações de VD/VC, outra é tomá-los como a causa dessa violência, o que é incorreto. É correto dizer que o uso de álcool/drogas pode ser, em certas ocasiões, facilitador ou desencadeador de situações de VD/VC, mas é incorreto achar que a VD/ VC só ocorre sob efeito destas substâncias ou por causa delas. Para o contradizer basta pensar que existem perpetradores de VD/VC que não consomem álcool, que a maioria dos agressores agride mesmo quando não está sob efeito do álcool e que a maioria das pessoas que se embriaga/consome drogas não agride – o consumo de álcool/drogas funciona essencialmente como desculpa/estratégia de racionalização para evitar a responsabilidade pelos comportamentos violentos: dizer “não fui eu, foi o álcool” ou “só aconteceu porque bebi demasiado”, é uma desculpa muito conveniente. Além disso, os perpetradores de VD/VC, mesmo quando consomem álcool, não agridem alvos indiscriminados: habitualmente embriagam-se fora de casa, mas esperam até chegar a casa para agredir intencionalmente a mulher e/ou os filhos. Acresce ainda destacar que, não obstante ocorrerem fenómenos de “transmissão intergeracional da violência”, a maioria das crianças abusadas não se torna abusadora/agressora e apenas uma minoria dos agressores foi alguma vez vítima no passado (Manita, 2004). A VD é resultado de um comportamento deliberado, através do qual um agente procura controlar outro, negando-lhe a liberdade a que tem direito. Há que contrariar, por último, a tendência para encerrar a VD na questão mais imediata da violência física. Persiste-se, muitas vezes, quando se pensa em violência doméstica, em considerar apenas a violência física; no entanto, a experiência deste tipo de abuso tem impacto ao nível da saúde mental, social e espiritual. Domínios como a comunicação, a liberdade de pensar e sentir, o desenvolvimento e o bem-estar físico, o sentimento de pertença, de partilha, de cuidado, diminuem com os abusos sistemáticos no âmbito da VD (DVPU, 1998; JHUMUNC, 2004). Sabe-se hoje, aliás, que a violência doméstica tem elevados custos (Greaves et al., 1995; Day, 1995; Blumel et al., 1993; Kerr et al., 1996; Snively, 1994; Stanko et al., 1998; Gelles, 1997; Gelles e Loseke, 1993; Lisboa, 2003), não só na esfera pessoal, emocional, psicológica, mas também custos sociais e económicos (despesas relacionadas com a saúde, segurança social, polícia, justiça e serviços correcionais, dirigidos às vítimas, agressores e suas famílias6), para já não falar nas elevadas taxas de homicídio relacionado com situações de violência doméstica (Pais, 1998). Um grande número de estudos está de acordo no que diz respeito ao reconhecimento de que as causas de violência são multifatoriais e de que a concomitância/cruzamento de alguns fatores pode tornar mais provável a ocorrência de situações de abuso. Assim, existe relativo consenso sobre a necessidade de intervir em múltiplos níveis para se atingir a máxima eficácia na intervenção sobre este fenómeno, combinando a ponderação dos fatores de risco individuais com fatores culturais e transgeracionais. Tal como a VSM, a VD deve ser perspetivada no entrecruzamento de diferentes vetores, onde se englobam, não só o abuso e a violência exercida sobre as companheiras, como, genericamente, o vetor da violência e das questões específicas de género e representações associadas, da discriminação e do tráfico humano; o vetor das crenças sociais e culturais inerentes ao fenómeno, aspetos que representam, aliás, os principais obstáculos à garantia da segurança no lar; o vetor da História, que contribuiu para a perpetuação do fenómeno ao longo do tempo e à escala internacional, na medida em que proporcionou condições para a cristalização do domínio masculino e do modelo patriarcal (JHUMUNC, 2004). A questão do género tem provocado cisões entre autores de diferentes orientações. Alguns, defendem que ela deve ser sempre enfatizada e contestam a utilização de termos neutros em relação ao género, como o de violência doméstica ou o de violência intrafamiliar, considerando que, ao recorrer-se a estes conceitos, se está a colocar a ênfase na dinâmica familiar, como se essa violência afetasse indiferentemente todos os seus membros, sem referir de forma explícita que a maior parte das vítimas são mulheres e que a violência surge devido às relações de género subjacentes. Com eles não se questiona, igualmente, o modelo de família vigente, baseado na desigualdade de poderes e com uma forte cota de autoritarismo. Propõem, por isso, o uso de noções como VSM. Paralelamente, há autores que se colocam no “polo oposto”, considerando que o facto de se falar sistematicamente na violência contra mulheres ou de se usar o feminino para falar de vítimas e o masculino para falar de agressores, produz um enviesamento na leitura da realidade, pois, lembram, a maior incidência da violência sobre as mulheres não nos deve impedir de ter em conta as situações de violência perpetrada por mulheres e as situações de violência sobre os homens. Várias críticas têm vindo a público, em diferentes países, relativamente às políticas de intervenção na violência doméstica, contestando MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 6 Algumas estimativas indicam que este valor pode chegar a ser 14 vezes superior à despesa que os governos têm para com os serviços de apoio direto às vítimas (segundo o relatório integral do “Ending Domestic Violence – Programs for Perpetrator” - Austrália). - 27 - Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 28 - designadamente a centração quase exclusiva na figura da mulher-vítima e do homem-agressor, que muitos afirmam ter como consequência o esquecimento do papel da mulher como protagonista de várias formas de agressão no seio da família (sobre crianças, sobre idosos e sobre homens)7. Saliente-se, a este respeito, que a vitimação da mulher encerra também o risco de vitimação da criança, na medida em que estamos perante o risco acrescido de maus tratos sobre mulheres grávidas e a possibilidade de lesões sobre o feto; perante o risco acrescido de as crianças cujas mães são vítimas de VD serem também vítimas do mesmo tipo de crime, praticado pelo agressor (estima-se existirem maus tratos sobre crianças em 33 a 77% das famílias em que existem maus tratos cometidos sobre adultos); perante o risco acrescido de mulheres vítimas de violência conjugal continuada se tornarem agressoras dos seus filhos8; e perante o facto de a exposição a um contexto de VD ser uma forma de vitimação indireta sobre as crianças, dela resultando dano traumático independentemente da existência de violência direta sobre a mesma (Committee on Child Abuse and Neglect, 1998; Secretaria Sectorial de la Mujer e de la Juventud, 2000; Sani, 2002 a,b; Manita, 2004). Contudo, de entre os vários tipos de violência envolvidos na violência doméstica, a violência sobre as mulheres continua a ser a mais frequente. Citando o II Plano Nacional contra a Violência: “Segundo o Conselho da Europa, a violência contra as mulheres no espaço doméstico é a maior causa de morte e invalidez entre mulheres dos 16 aos 44 anos, ultrapassando o cancro, acidentes de viação e até a guerra9. Este dado internacional, se relacionado com os indicadores disponíveis em Portugal (embora apenas indicativos e ainda a necessitar de confirmação mais rigorosa) que sugerem que semanalmente morrem mais de cinco mulheres por razões direta e indiretamente relacionadas com atos de violência doméstica, dá-nos uma fotografia de uma realidade que nos ofende na nossa dignidade humana enquanto pessoas, e na nossa condição de cidadãos portugueses”. Importa não esquecer, também, as questões da violência doméstica/conjugal em casais homossexuais (masculinos e femininos). Começa-se agora a dar os primeiros passos em Portugal, designadamente ao nível da investigação que permita conhecer esta realidade e sustentar uma mais adequada intervenção. Disso é exemplo um estudo concluído na Universidade do Minho (Machado e Antunes, 2004) e outro em início na Universidade do Porto, no âmbito do I Mestrado em Psicologia do Comportamento Desviante: Violência, Crime e Vítimas (Ferreira e Manita, em curso). Tal como tivemos já oportunidade de referir em texto anterior (Manita, 2004), a variedade de atores envolvidos e a variedade de comportamentos que recaem sobre a esfera 7 8 9 Subscrevemos estas preocupações, na medida em que a violência exercida sobre os homens e qualquer forma de violência familiar exercida por mulheres deve ser condenada e alvo de intervenção. Isso não nos deve impedir, porém, de reconhecer que, apesar de ambos poderem ser responsáveis por atos de violência, a maioria das vítimas de violência doméstica são, de facto, mulheres e a maioria dos agressores homens, tendo as mulheres um risco acrescido de vitimação no seio do casal, como o demonstraram já diversos estudos. Como já atrás ressaltamos, as mulheres podem estar envolvidas nas situações de violência doméstica enquanto vítimas ou no papel de agressoras. Não obstante serem mais frequentemente vítimas, não é de descurar a frequência com que o são (vítima e agressora) em simultâneo: este cenário encontra-se com alguma regularidade nos casos em que a mulher é vitimizada pelo seu companheiro e, fruto dessa complexa situação e das suas consequências, vitimiza as crianças da família (Manita, 2004). Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, Recomendação 1582 (2002). MANUAL PLURIDISCIPLINAR CAR ATER IZAÇÃO DO F ENÓMENO E R ESP O STA S A P TA S À SUA ER R ADICAÇÃO - CIG da violência doméstica dificulta quer a sua operacionalização, quer a avaliação dos programas de intervenção, quer ainda a definição e o cálculo estatístico da incidência e prevalência destes atos, nas estatísticas criminais oficiais como nas estatísticas das instituições de apoio a vítimas e de intervenção em agressores. Efetivamente, de entre as sucessivas dificuldades que se colocam ao conhecimento da dimensão do problema, destacam-se aspetos como o estigma social associado à violência no casal, o medo de retaliação pelo agressor, quando há uma denúncia, entre outras preocupações com a segurança das vítimas. Assim, considera-se fundamental a revisão das estratégias que, do ponto de vista metodológico, permitem realizar estimativas sobre a VSM, sabendo-se que apenas uma percentagem deste tipo de crimes é denunciada à polícia (o problema das cifras negras) – alguns estudos apontam para que apenas 40 a 50% dos crimes chegam ao conhecimento das autoridades (Reiss e Roth, 1993). Os inquéritos de vitimação são considerados atualmente as ferramentas metodológicas mais adequadas para contornar as limitações que se impõem à recolha de informação a partir da criminalidade reportada às autoridades (Machado, 2004; Farral et al., 1997; Lourenço, Lisboa e Pais, 1997; Lourenço e Lisboa, 1991; Manita e Machado, 1999; Machado e Manita, 1997; Negreiros, 1997, 1999). Infelizmente, são ainda muitas as limitações ao nível da comparabilidade dos estudos nacionais e inter-países, na medida em que se verifica o recurso a metodologias de inquérito muito variadas, que partem de diferentes definições de violência, resultando em estimativas muito diferentes entre si. Carlson et al (2000) resumem assim essa variabilidade: “as estimativas sobre quantas mulheres são vítimas de um parceiro violento variam entre 9,3 para 1000 mulheres (Bachman, 2000; Bachman e Saltzman, 1995) e 116 para 1000 mulheres (Straus e Gelles, 1990)”. Esta variabilidade metodológica resulta na impossibilidade da comparação de resultados oriundos deste tipo de inquéritos. Para além disso, é necessário acautelar o risco de má utilização dos resultados destes inquéritos, destacando-se, a este nível, o seu uso indiscriminado pelos decisores políticos que comparam resultados de inquéritos diferentes ou de aplicações em séries temporais muito curtas para daí inferiram taxas de evolução ou involução do fenómeno, sem terem em consideração estas limitações à comparabilidade. Um dos tipos mais registados e mais estudados de criminalidade decorrente da VD é o homicídio conjugal. Relativamente a este tipo de violência, dados recentes de estudos não nacionais (Fox e Zawitz, 2003) têm dado conta da ocorrência de uma diminuição significativa deste crime ao longo do tempo. Esta diminuição é visível sobretudo nos crimes em que o parceiro masculino é assassinado pela sua companheira, sendo menos saliente na situação inversa. Ou seja, as mulheres ainda continuam vulneráveis ao homicídio perpetrado por um companheiro do sexo oposto, enquanto o número de homens assassinados pelas companheiras reduziu significativamente. O homicídio de um companheiro, praticado por uma mulher, poderá ser encarado como o corolário de um processo de vitimação continuada da mulher (em Portugal, os dados existentes sobre esta realidade confirmam esta circunstância – cfr. Pais, 1998; Sousela, 2006). Dadas as transformações sociais e de agenda política, a sua diminuição ao longo dos anos deverá ser relacionada com o aumento da capacidade da mulher em escapar a essa MANUAL PLURIDISCIPLINAR - 29 - Violê nc ia Domé s t ic a - - CAR ATER IZAÇÃO DO F ENÓMENO E R ESP O STA S A P TA S À SUA ER R ADICAÇÃO - CIG imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 30 - relação abusiva, na sequência de uma maior informação pública e da melhoria das condições de apoio a vítimas, com o aparecimento de recursos vários (abrigos e outros serviços) dirigidos às mulheres vítimas de VD: “oferecendo proteção, fuga e ajuda às mulheres ameaçadas, desenvolve-se a consciência de que existem alternativas à permanência numa relação com risco de interações violentas” (Browne e Williams, 1989). Por seu turno, alguns questionários como a “Conflict Tactics Scale (CTS)” (Straus e Gelles, 1990), que têm conhecido crescente utilização em diversos países, incluindo Portugal, no estudo e caraterização da VD, poderão não ser sensíveis às circunstâncias nas quais os atos de violência entre o casal têm lugar, na medida em que não consideram fatores importantes como quem desencadeia a violência, em que circunstâncias, por que motivo, o tamanho e força relativos dos envolvidos e a natureza da relação dos envolvidos (Dobash et al, 1992; Saunders e Size, 1986). Talvez por isso alguns dos resultados da sua aplicação indicam taxas de violência dos homens sobre as mulheres idênticas às taxas de violência praticada pelas mulheres sobre os homens. No entanto, os autores destes estudos e destes instrumentos, defendem-se desse tipo de crítica (Straus e Gelles, 1990), argumentando que o significado dos resultados estaria a ser mal entendido. Salientam que “para compreender a elevada taxa de violência intrafamiliar praticada pelas mulheres é importante compreender que muitos dos atos de violência das mulheres sobre os companheiros são atos de retaliação ou autodefesa”, o que não teria sido feito nos estudos que, recorrendo a estes instrumentos, chegaram a essas conclusões sem as integrar ou esclarecer devidamente. Será, assim, importante recorrer a outras formas de conhecimento, complementares a este tipo de inquéritos, como: - entrevistas ou inquéritos que recolham informações relativas a formas de violência “menos graves” que surgem com frequência na resolução de conflitos entre o casal; - o estudo das agressões e episódios que não são entendidos pelos seus atores como “crime” – o que tem importantes consequências sobre a prevenção primária, uma vez que estas formas menos danosas estão com frequência na base de formas de violência mais graves (Straus, 1988); - o recurso a dados qualitativos de amostras clínicas que possam esclarecer sobre o contexto em que a violência ocorre; e também - a promoção de narrativas que deem voz às vítimas e que deem conta não só do contexto como da natureza persistente da relação violenta. - Na base de algumas das transformações acima descritas está obviamente a evolução dos sistemas judiciais e legislativos e a alteração na forma como a vítima é, por eles, encarada e acompanhada. * Finalmente, ficam aqui dados estatísticos sobre a violência doméstica (2014): http://www.sg.mai.gov.pt/Noticias/Paginas/Violência-doméstica-2014---Relatórioanual-de-monitorização-.aspx. 2. TIPOS DE VIOLÊNCIA10 A violência doméstica/conjugal é exercida de múltiplas formas e tende a aumentar em frequência, intensidade e, logo, gravidade dos atos perpetrados (e risco para a vítima). A tipologia mais frequentemente utilizada distingue os seguintes tipos de violência, apresentados pela ordem mais frequente do seu surgimento ao longo da evolução das trajetórias violentas na conjugalidade (o que não significa que todos os casos de VC comecem com atos de abuso emocional e evoluam para crimes sexuais ou que todas as formas de violência ocorram em todas as situações de VD/VC ou que estas não possam começar logo com atos de violência física e/ou sexual graves). De facto, as situações de VD envolvem, geralmente, mais do que uma forma de violência: 9 Violência emocional e psicológica: consiste em desprezar, menosprezar, criticar, insultar ou humilhar a vítima, em privado ou em público, por palavras e/ou comportamentos; criticar negativamente todas as suas ações, caraterísticas de personalidade ou atributos físicos; gritar para atemorizar a vítima; destruir objetos com valor afetivo para ela, rasgar fotografias, cartas e outros documentos pessoais importantes; persegui-la no trabalho, na rua, nos seus espaços de lazer; acusá-la de ter amantes, de ser infiel; ameaçar que vai maltratar ou maltratar efetivamente os filhos, outros familiares ou amigos da vítima; não a deixar descansar/dormir (e.g., despejando-lhe água gelada ou a ferver, passando um isqueiro aceso frente às pálpebras quando ela adormece, etc.), entre muitas outras estratégias e comportamentos. As últimas estratégias referidas enquadram-se já nos domínios da ameaça e da intimidação, duas outras formas de violência frequentes que visam impedir a vítima de reagir aos abusos perpetrados pelo companheiro. 9 Intimidação: intrinsecamente associada à violência emocional-psicológica, consiste em manter a mulher vítima sempre com medo daquilo que o agressor possa fazer contra si e/ou contra os seus familiares e amigos (sobretudo filhos), a animais de estimação ou bens. O ofensor pode recorrer a palavras, olhares e expressões faciais, agitação motora, mostrar ou mexer em objetos intimidatórios (e.g., limpar a espingarda, carregar o revólver, afiar uma faca, exibir um bastão, dormir com armas à cabeceira da cama, ter armas na mão quando aborda sexualmente a sua companheira). Inclui-se também aqui a utilização dos filhos para a imposição de poder sobre a vítima (e.g., levar os filhos a humilhar a vítima; ameaçar que, em caso de separação, conseguirá afastar as crianças da vítima, ameaçar que se suicida caso a vítima o abandone). Através destas estratégias, o agressor consegue manter a vítima sob domínio, na medida em que, num contexto de tensão e violência iminente, esta acaba por viver submergida pela ansiedade e pelo medo. 10 MANUAL PLURIDISCIPLINAR Guia de Boas Práticas para Profissionais de Instituições de Apoio a Vítimas - Guia para o atendimento a vítimas de violência doméstica/conjugal - Celina Manita - 2006 MANUAL PLURIDISCIPLINAR - 31 - Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 32 - 9 Violência física: consiste no uso da força física com o objetivo de ferir/causar dano físico ou orgânico, deixando ou não marcas evidentes - engloba atos como empurrar, puxar o cabelo, dar estaladas, murros, pontapés, apertar os braços com força, apertar o pescoço, bater com a cabeça da vítima na parede, armários ou outras superfícies, dar-lhe cabeçadas, dar murros ou pontapés na barriga, nas zonas genitais, empurrar pelas escadas abaixo, queimar, atropelar ou tentar atropelar, entre outros comportamentos que podem ir desde formas menos severas de violência física até formas extremamente severas, das quais resultam lesões graves, incapacidade permanente ou mesmo a morte da vítima. 9 Isolamento social: resulta das estratégias implementadas pelo agressor para afastar a vítima da sua rede social e familiar, dado que uma vítima isolada é mais facilmente manipulável e controlável do que uma vítima com uma boa rede de apoio familiar e social. Estas estratégias consistem basicamente em proibir que a mulher se ausente de casa sozinha ou sem o consentimento do agressor, proibi-la, quando tal é economicamente viável, de trabalhar fora de casa, afastá-la do convívio com a família ou amigos - seja por via da manipulação (“estamos tão bem os dois, para que precisas de mais alguém...”, “o teus pais não gostam de mim”...), seja por via da ameaça à própria ou a terceiros significativos, caso a vítima mantenha contactos sem a sua autorização. Por sua vez, a própria vítima acaba por se afastar dos outros, quer por vergonha da situação de violência que experiencia ou de eventuais marcas físicas visíveis resultantes dos maus tratos sofridos, quer por efeito das perturbações emocionais e psicossociais produzidas por situações de VD/VC continuada, como mais à frente será referido. 9 Abuso económico: associado frequentemente ao isolamento social, é uma forma de controlo através do qual o agressor nega à vítima o acesso a dinheiro ou, mesmo, a bens de necessidade básica (como alimentos, aquecimento, uso dos eletrodomésticos para cozinhar, etc.). Mesmo que a vítima tenha um emprego, a tendência é para não lhe permitir a gestão autónoma do vencimento, que é cativado e usado pelo agressor. Passa também por estratégias de controlo da alimentação e da higiene pessoal (da vítima e, por vezes, também dos filhos), como manter o frigorífico, armários ou dispensas fechados com cadeados, esconder as chaves de diversos compartimentos da casa, controlar as horas a que o aquecimento geral/local ou um esquentador ou cilindro pode ser ligado, manter aquecida apenas uma divisória da casa, na qual apenas o agressor pode entrar/permanecer, bloquear telefones, impedir a ida sozinha a supermercados ou cafés. 9 Violência sexual: toda a forma de imposição de práticas de cariz sexual contra a vontade da vítima (e.g., violação, exposição a práticas sexuais com terceiros, forçar a vítima a manter contactos sexuais com terceiros, exposição forçada a pornografia), recorrendo a ameaças e coação ou, muitas vezes, à força física para a obrigar. Outros comportamentos, como amordaçar, atar contra a vontade, queimar os órgãos sexuais da vítima são também formas de violência sexual. A violação e a coação sexual são alguns dos crimes sexuais mais frequentemente praticados no âmbito da VD mas que muitas das vítimas, por força de crenças MANUAL PLURIDISCIPLINAR CAR ATER IZAÇÃO DO F ENÓMENO E R ESP O STA S A P TA S À SUA ER R ADICAÇÃO - CIG erróneas, valores e mitos interiorizados, acabam por não reconhecer como tal, achando, incorretamente, que “dentro do casal não existe violação”, que são “deveres conjugais” ou “exigências naturais” do homem. A violência sexual engloba também a prostituição forçada pelo companheiro. MANUAL PLURIDISCIPLINAR - 33 - Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 34 - 3. MITOS E ESTEREÓTIPOS SOBRE A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA/ CONJUGAL Apesar de hoje em dia ser quase consensual a condenação da violência contra as mulheres, alguns preconceitos e mitos, profundamente enraizados na nossa cultura/sociedade, continuam a dificultar a revelação/denúncia de situações de VD/VC e, sobretudo, a dificultar a intervenção neste domínio. Eles não só constituem explicações simplistas (e falsas) para a VD/VC, como levam a pensar que estes fenómenos apenas acontecem aos “outros”. Muitas vítimas de VD/VC acabam por ser também vítimas dos mitos populares que as levam a sentir-se inferiores e incapazes de reagir ao abuso ou de pedir ajuda quando a violência se estrutura nas suas relações. Urge, por isso, desconstruir estes falsos argumentos, desmistificá-los e combatê-los. Vejamos alguns exemplos de falsas crenças/mitos: ■ “Entre marido e mulher não se mete a colher” Interferir nas situações de VD/VC; combater ativamente estas práticas; denunciar casos de que se tenha conhecimento; lutar por uma sociedade de igualdade e sem violência; educar as crianças e os adultos para a não-violência, para a igualdade de géneros e para igualdade de direitos; exercer e estimular o exercício da cidadania ativa, são obrigações sociais e, por vezes, legais de todos os cidadãos e, por maioria de razões, dos profissionais que contactam com vítimas e/ou agressores. ■ A mulher só é agredida porque não faz nada para o evitar ou porque merece (associados à crença de que o homem “tem o direito” de bater na mulher) Estes mitos levam, frequentemente, a atribuir a responsabilidade pela VD/VC à vítima (estão intrinsecamente associados à questão que muitos cidadãos e profissionais se colocam frequentemente, sobretudo nas fases iniciais do contacto com vítima: porque é que ela não deixou o agressor/não saiu de casa?). A primeira ideia assenta na falsa conceção de que a mulher tem o poder de interromper a situação abusiva quando quiser, quando tal não é, na maioria dos casos, a verdade – fruto das estratégias de manipulação e controlo que o abusador implementa e das consequências psicológicas da própria VD/VC e suas dinâmicas abusivas, mais à frente referidas, muitas vítimas tendem a só tomar plena consciência da sua situação quando MANUAL PLURIDISCIPLINAR CAR ATER IZAÇÃO DO F ENÓMENO E R ESP O STA S A P TA S À SUA ER R ADICAÇÃO - CIG a violência se tornou já regular e grave e a rutura é complexa e exige capacidades que, por efeito de estratégias de coação/intimidação exercidas pelo agressor, medo/terror paralisante sentido pela vítima, dependência emocional, económica ou social do agressor, crença de que o casamento “é uma cruz a ser carregada”, investimento no projeto conjugal como elemento central da sua identidade e realização pessoal, etc., a vítima não possui naquele momento. A segunda crença enraíza-se na legitimidade social que durante décadas foi atribuída à violência exercida pelo homem com uma função de “educação/correção” dos filhos e esposa e num conjunto de estereótipos sobre os papéis de género, o papel da mulher e do homem no casamento, os deveres de obediência e serviço das mulheres aos maridos, etc., ainda hoje presentes em diversos segmentos da nossa sociedade. Podemos ainda ouvir homens afirmar que agrediram as esposas porque “o jantar não estava pronto às 20h”, a mulher “foi ao café sem a sua autorização” ou “não cuidou das lidas da casa” e estes argumentos serem aceites pela comunidade (ou mesmo por profissionais). Modalidades de violência sexual dentro do casamento, como a violação, a exposição forçada a pornografia ou à prática de atos sexuais com terceiros, ainda hoje não são encaradas como tal por muitos cidadãos (incluindo vítimas) e por alguns profissionais com elevada responsabilidade social, precisamente por serem consideradas “um direito do homem” e “uma obrigação da mulher”. ■ “Bater é sinal de amor” ou “uma bofetada de vez em quando nunca fez mal a ninguém” Bater nunca é um sinal de amor, é um exercício ilegítimo e abusivo de poder/controlo. E, além disso, a VD/VC não é “uma bofetada de vez em quando”, é um padrão continuado de violências várias exercidas sobre a vítima com a intenção de a subjugar/dominar. ■ A violência e o amor/afeto não coexistem nas famílias/relações íntimas Mesmo nos casos mais graves de VD/VC existem períodos em que não ocorrem agressões. Sobretudo nos primeiros tempos da relação, estes períodos de não-violência, ou mesmo de manifestação de afetos positivos, alternam ou coexistem com períodos em que são exercidos atos violentos. É, por isso, frequente (e normal) que muitas vítimas – companheiras/os ou filhas/os - continuem a sentir afetos positivos/amor pelos agressores, mesmo quando a VD/VC já se instalou. ■ A VD/VC só ocorre nos estratos socioeconómicos mais desfavorecidos Vítimas e agressores são provenientes de qualquer estrato socioeconómico – a VD/VC é transversal aos diferentes padrões culturais, religiosos, económicos, profissionais, etc. Algo diferente é a constatação comum a diferentes estudos e estatísticas de que ela ocorrerá mais frequentemente nos estratos socioeconómicos mais desfavorecidos – o que pode ser um efeito de fatores culturais-educacionais mais fortemente legitimadores da violência presentes nestes estratos socioculturais ou, simplesmente, um efeito MANUAL PLURIDISCIPLINAR - 35 - Violê nc ia Domé s t ic a - - CAR ATER IZAÇÃO DO F ENÓMENO E R ESP O STA S A P TA S À SUA ER R ADICAÇÃO - CIG imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 36 - da maior visibilidade que vítimas e agressores destes estratos têm, dado que, por falta de alternativas económicas e sociais, tenderão a recorrer mais às instâncias públicas de apoio a vítimas, às instâncias oficiais de controlo social e a escapar menos à vigilância das instâncias de regulação judicial e apoio social. 4. PROCESSOS E DINÂMICAS ABUSIVAS ■ A VD/VC só ocorre sob efeito do álcool ou outras drogas Já atrás se sublinhou: uma coisa é o abuso de álcool ou outras drogas surgir associado a situações de VD/VC, outra e incorrecta, é tomar essa circunstância como a causa dessa violência. O uso de álcool/drogas pode por vezes ser facilitador ou desencadeador de situações de VD/VC, mas concluir que esta só ocorre sob o seu efeito, ou por sua causa é abusivo. ■ A VD/VC resulta de problemas de saúde mental Esta é uma ideia generalizada entre cidadãos e profissionais de diferentes áreas. No entanto, estudos internacionais demonstram que apenas 5 a 10% dos perpetradores de VD/VC terão algum tipo de psicopatologia/perturbação mental associada. É difícil aceitar a ideia de que estes padrões de violência continuada possam ser exercidos por indivíduos normais (e, contudo, são-no) e, além disso, aceitar que um indivíduo “igual a nós” pode ser um agressor é ter de aceitar que “um de nós” (eu próprio, o/a companheiro/a, pai/mãe, familiar, amigo/a, colega) pode, afinal, ser também um/a agressor/a. ■ As crianças vítimas de maus tratos serão, no futuro, maltratantes ou os agressores são-no por terem sido vítimas na sua infância Ideia determinista e presente também na noção de “transmissão intergeracional” da violência – à semelhança do que acontece com o álcool/outras drogas, é correto afirmar que uma criança vítima direta ou indireta de violência poderá ter maior probabilidade de vir a ser maltratante no futuro, mas é incorreto afirmar que as vítimas se tornarão maltratantes ou que os maltratantes o são porque foram vítimas. Estudos mais recentes e multidimensionais demonstram que apenas uma minoria das vítimas de maus tratos se torna um dia maltratante e que a maioria dos agressores não teve, no seu passado, experiências de maus-tratos ou vitimação relevante. A VD/VC é uma forma deliberada e intencional de exercício de poder e controlo sobre a vítima, não o resultado direto de uma qualquer perturbação ou experiência direta de vitimação no passado. ■ A VD/VC é um fenómeno raro/infrequente Todas as estatísticas nacionais e internacionais contrariam esta ideia. Não obstante, é mais fácil acreditar que a VD/VC é um problema apenas de alguns (poucos, outros), do que admitir que ela possa existir no seio da nossa família, entre os nossos amigos, colegas ou vizinhos. MANUAL PLURIDISCIPLINAR Ao contrário da maioria das vítimas de crime, as vítimas de violência doméstica não sofrem uma “repentina e imprevisível” ameaça à sua segurança ou à sua vida. A VD/VC é, por definição, uma situação de violência continuada, quase sempre múltipla, e muitas vezes mantida em segredo durante anos. O conhecimento das “dinâmicas da violência doméstica” e dos seus efeitos/consequências é, por isso, um instrumento fundamental para um mais adequado apoio a estas vítimas e para o favorecimento da sua colaboração com o sistema judicial e de apoio. Neste contexto, assume particular relevância a ideia de que existe um ciclo da violência. Ou seja, de acordo com diferentes autores, a VD/VC tende a evoluir através de diferentes fases que se repetem ciclicamente. Dessa forma, e por mecanismos que abaixo descrevemos, qualquer (não-) motivo ou incidente pode desencadear uma crise ou conflito suscitados pelo agressor, acompanhados de ameaças ou agressões psicológicas que culminam, muitas vezes, em agressões físicas e/ou sexuais. De acordo com este modelo (que atrás referimos) a VC passa pelo “ciclo da violência” propriamente dito (“aumento da tensão”, “ataque violento” ou “episódio de violência”, e “apaziguamento”, “reconciliação” ou “lua-de-mel”) e pela consideração de que enquadra um processo segundo o qual os atos de violência tendem a aumentar de frequência, intensidade e perigosidade ao longo do tempo. a) Fases do “ciclo da violência” (1) Fase de aumento da tensão Em todas as relações íntimas ocorrem episódios de tensão, divergência ou conflito entre os pares, mas, enquanto numa relação não-violenta o processo de escalada da tensão é, a dado momento, interrompido pelo recurso a estratégias de negociação ou resolução dos diferendos de forma não violenta (o designado “ritual de interrupção”), nas relações abusivas, o agressor não só não sabe ou não quer recorrer a este tipo de estratégias, como, dada a sua necessidade de exercício de domínio/controlo sobre a vítima, utiliza basicamente todas as situações do quotidiano para produzir uma escalada de tensão para a vítima, criando um ambiente de iminente perigo para esta. Assim, qualquer pretexto serve ao agressor para se orientar agressivamente para a vítima, sejam situações do quotidiano (no âmbito das refeições, gestão da economia da casa, arrumação e limpeza da casa, compras, programas na televisão, etc.), seja o facto de a vítima ter saído de casa nesse dia ou ter chegado depois da hora estipulada pelo agressor, seja a acusação de que tem um amante, seja outro qualquer. O aumento da tensão dá origem, na maioria dos casos, a discussões, primeiro patamar para a passagem ao ato violento (tensão que MANUAL PLURIDISCIPLINAR - 37 - Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 38 - como se viu pode ser aumentada pelo facto de o companheiro violento ter consumido álcool ou outras drogas). (2) Fase do ataque violento ou do episódio de violência Geralmente, começa com violência verbal (rapidamente associada a violência física) e vai escalando para uma combinação de diferentes tipos de violência. Muitas vítimas não reagem porque percebem intuitivamente, ou pela experiência anterior, que isso pode agravar a violência perpetrada e procuram apenas defender-se dos ataques mais violentos, reagindo passivamente, na esperança de que “a não resposta” atenue a ira do agressor e leve à interrupção do ataque violento. Por vezes, as agressões são tão severas que a vítima necessita de receber assistência médica. Alguns agressores permitem esse cuidado no momento em que termina a agressão e acompanham a vítima ao hospital, para garantir (ora pela manipulação, sedução e promessa de mudança, ora pela intimidação, ameaça ou coação) que estas não falarão sobre o ocorrido. Outros, recusam assistência médica à vítima (o que constitui outra forma de comportamento violento e criminal) ou só a deixam receber cuidados médicos quando percebem que a situação pode pôr em causa a sua vida (se não era essa a intenção...). É nesta fase que o agressor tende a invocar razões, atenuantes ou desculpas para a sua ação e a atribuir frequentemente a culpa à vítima (processos de racionalização do tipo “foi ela que me provocou” ou “vê o que me obrigaste a fazer”) ou a fatores “externos” (“não fui eu, foi o álcool”, “foi um dia mau”, “não sei o que me passou pela cabeça”, “não estava em mim”), atribuições que ajudam a racionalizar comportamentos que, de outra forma, seriam inaceitáveis. CAR ATER IZAÇÃO DO F ENÓMENO E R ESP O STA S A P TA S À SUA ER R ADICAÇÃO - CIG efetiva possibilidade de mudança do comportamento do agressor. A esperança na mudança é reforçada pela vontade que esta tem de ver o seu “projeto de vida a dois” ser bem-sucedido e pela identificação de aspetos positivos no companheiro, mais não seja, a ideia de que ainda existe amor. b) Evolução em frequência, intensidade e perigosidade Ao longo do tempo, os atos de violência tendem a aumentar de frequência, intensidade e perigosidade. Assim, não só o risco para a vítima aumenta e as consequências negativas são mais intensas, como, à medida que o tempo passa, ela perde cada vez mais a sensação de controlo e poder sobre si própria e sobre a sua vida, perde o sentimento de autoconfiança e de competência pessoal e desenvolve sentimentos de impotência e de “desânimo aprendido”. Acaba, assim, por se tornar “refém” deste ciclo de violência, sendo-lhe cada vez mais difícil romper com a situação abusiva. Importa salientar, por último, que se a vítima tomar a decisão de se afastar do companheiro, a rutura com a relação abusiva e o afastamento do agressor, por si só, não garantem o fim da violência. Sabe-se hoje que o risco de agressão física severa, tal como o de tentativa de homicídio ou homicídio consumado, aumenta quando a vítima rompe com a situação de conjugalidade violenta. (3) Fase de apaziguamento, reconciliação ou de “lua-de-mel” Depois de praticar o(s) ato(s) violento(s) o ofensor tende a manifestar arrependimento e a prometer não voltar a ser violento. Na sequência das estratégias e racionalizações já referidas para a fase 2, pode invocar motivos para que a vítima desculpabilize o seu comportamento, como, por exemplo, naquele dia estar muito aborrecido com uma dada ocorrência, ela tê-lo levado ao “limite da paciência”, estar embriagado, etc. Para reforçar o seu pedido de desculpas, trata com atenção e afetos positivos a vítima, fazendo-a acreditar que foi uma vez sem exemplo ou, se já não é a primeira vez, que foi essa a última vez que ele se descontrolou e que tudo vai mudar dali para a frente. A vítima, por sua vez, tenta restabelecer o mais rapidamente possível um sentimento de normalidade na sua vida. Porque este período corresponde, em muitos casos, a um autêntico período de “enamoramento” e atenção positiva para com a vítima, esta fase é também chamada de lua-de-mel. Esta oscilação comportamental do agressor e consequente ressonância e impacto cognitivo-afetivo constitui um dos fatores que mais dificultam a rutura por parte da vítima, fazendo-a acreditar, ora que existe amor na relação, ora que existe a MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR - 39 - Violê nc ia Domé s t ic a - - CAR ATER IZAÇÃO DO F ENÓMENO E R ESP O STA S A P TA S À SUA ER R ADICAÇÃO - CIG imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 40 - 5. IMPACTO E CONSEQUÊNCIAS TRAUMÁTICAS NA VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA • • • • • Condições e contextos de ocorrência História anterior de vitimação Gravidade dos danos Rede de apoio social/familiar Recursos pessoais, familiares, sociocomunitários e institucionais disponíveis. As situações de violência continuada resultam numa diversidade de consequências e danos físicos, psicológicos, relacionais, etc, que, nos casos mais graves, poderão conduzir à incapacitação, temporária ou permanente, da vítima ou, mesmo, à sua morte. Algumas das consequências traumáticas mais comuns em vítimas de VD/VC são: • danos físicos, corporais e cerebrais, por vezes irreversíveis (e.g., fraturas nas mandíbulas, perda de dentes, lesões óculo-visuais, perturbações da capacidade auditiva, fraturas de costelas, lesões abdominais, infertilidade na sequência de sucessivas infeções e/ou lesões vaginais e uterinas, entre muitas outras; algumas mulheres desenvolvem uma perturbação equivalente à dos lutadores de boxe, em virtude dos danos neurológicos provocados pelas pancadas sucessivas na zona do crânio e face - algo similar, nos seus efeitos, à doença de Parkinson) • alterações dos padrões de sono e perturbações alimentares • alterações da imagem corporal e disfunções sexuais • distúrbios cognitivos e de memória (e.g., flashbacks de ataques violentos, pensamentos e memórias intrusivos, dificuldades de concentração, confusão cognitiva, perturbações de pensamento - não é raro as vítimas afirmarem que “estão a enlouquecer”, dado que a sua vida se torna ingerível e incompreensível) • distúrbios de ansiedade, hipervigilância, medos, fobias, ataques de pânico • sentimentos de medo, vergonha, culpa • níveis reduzidos de autoestima e um autoconceito negativo • vulnerabilidade ou dependência emocional, passividade, “desânimo aprendido” • isolamento social ou evitamento (resultantes, frequentemente, dos sentimentos de vergonha, auto-culpabilização, desvalorização pessoal, falta de confiança que as vítimas sentem) • comportamentos depressivos, por vezes com tentativa de suicídio ou suicídio consumado Muitas vítimas apresentam um quadro de Perturbação de Stress Pós-Traumático (PTSD). Quanto aos fatores que influenciam o impacto traumático da vitimação, podemos enumerar os seguintes: • Frequência da ocorrência dos maus tratos • Severidade dos maus tratos • Tipos de maus tratos MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR - 41 - Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 42 - 6. A AVALIAÇÃO E CONTROLO DO RISCO CAR ATER IZAÇÃO DO F ENÓMENO E R ESP O STA S A P TA S À SUA ER R ADICAÇÃO - CIG 7. A PROTEÇÃO DA VÍTIMA 7.1. Questões gerais na intervenção com vítimas Ver: http://www.pgdlisboa.pt/docpgd/files/1436798180_gestao_risco_emar.pdf. MANUAL PLURIDISCIPLINAR Muitas vezes, as vítimas desconhecem quer a dimensão criminal dos atos violentos exercidos contra si quer os seus direitos. Não se identificam, em muitos casos, como vítimas e não procuram a ajuda a que têm direito. Há, no entanto, momentos em que, por efeito de uma escalada da violência sofrida, um ataque mais violento aos filhos, efeito de “saturação” ao longo dos anos de vitimação, efeito de informação obtida através dos meios de comunicação social, novelas e filmes, conversas no trabalho, nos espaços comerciais, transportes públicos, centros de saúde, escolas, etc., acabam por ultrapassar as resistências e obstáculos e tomar a decisão de romper com a situação violenta. A vítima de VD/VC pode queixar-se dos crimes que o agressor tiver praticado contra si ou contra os seus bens. A apresentação de uma queixa-crime inicia um processo-crime. Pode apresentar a queixa-crime junto da Guarda Nacional Republicana (GNR), da Polícia de Segurança Pública (PSP) ou da Polícia Judiciária (PJ), que comunicarão ao Ministério Público o(s) crime(s) praticado(s). A vítima pode, ainda apresentar a queixa-crime diretamente ao Ministério Público, junto do Tribunal da área onde ocorreram os factos. Provas dessa violência (bilhetes com ameaças, bens destruídos, exames médicos que comprovem lesões sofridas,…), cópias de anteriores denúncias e testemunhas dos atos praticados pelo agressor são um importante contributo e devem ser preservadas e apresentadas às instâncias judiciais. Quando uma vítima de VD/VC, independentemente de ter já apresentado queixa ou não, toma a iniciativa de romper com o ciclo da violência e procurar ajuda, os profissionais têm a obrigação ética e deontológica de estar preparados para lhe oferecer um adequado e eficaz atendimento e/ou encaminhamento. A rutura conjugal não é, no entanto, a única alternativa. A vítima pode desejar permanecer na relação conjugal, pretendendo antes que a violência seja interrompida, procurando uma forma de modificar o comportamento do seu companheiro ou, por vezes, desejando apoio emocional ou psicológico para si própria, sem abandonar a relação. O profissional tem o dever de a apoiar, seja qual for a sua decisão, de a informar clara e objetivamente dos seus direitos e dos procedimentos a tomar, bem como das implicações e consequência de cada um deles, avaliando o risco em que vítima (e filhos, quando os há) se encontra, encaminhando-a para os diferentes tipos de apoio de que necessita, elaborando relatórios das ocorrências e, se necessário, planos de segurança, devendo também alertá-la para o perigo de represálias ou para um eventual aumento da violência por MANUAL PLURIDISCIPLINAR - 43 - Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 44 - parte do agressor no momento em que seja notificado no âmbito do inquérito criminal que venha a ser aberto, se se mantiver a coabitar com ele. Pode também fornecer-lhe informação sobre serviços/programas de intervenção em agressores, ajudando-a a ponderar se e como deve transmitir essa informação ao companheiro. Mesmo quando a vítima não denuncia a situação, devem os profissionais das diferentes áreas saber reconhecer sinais indiciadores da ocorrência de violência e incentivar a sua revelação. Qualquer profissional que contacte com vítimas de VD/VC deve... • Afastar/combater crenças e mitos que dificultam ou impedem a intervenção nesta área • Ter um conhecimento suficiente sobre os fatores associados à VD e sobre as dinâmicas e processos abusivos utilizados pelo agressor no contexto da VD • Conhecer/saber identificar os tipos mais frequentes de atos envolvidos na VD/ VC e suas consequências para a vítima • Saber reconhecer sinais indiciadores da ocorrência de violência e incentivar a revelação por parte da vítima • Conhecer/reconhecer as consequências da VD/VC • Saber que a maioria desses atos constitui crimes, como os maus tratos a cônjuge, a coação, o sequestro, a violação, as ofensas corporais, entre outros consignados no Código Penal e aplicáveis em situações de VD/VC • Adquirir as competências e estratégias básicas de comunicação/atendimento, seja presencial seja telefónico, estar sensibilizados para esta problemática e para lidar com as especificidades emocionais e comportamentais de vítimas de violência continuada • Saber quais os tipos de apoio disponíveis e quais os tipos de encaminhamento e de articulação com outros serviços que podem disponibilizar em cada área de intervenção A preocupação primeira CAR ATER IZAÇÃO DO F ENÓMENO E R ESP O STA S A P TA S À SUA ER R ADICAÇÃO - CIG • AVALIAÇÃO DO IMPACTO DA VIOLÊNCIA SOFRIDA Para uma mais adequada tomada de decisão sobre o apoio a fornecer às vítimas é também fundamental proceder a uma avaliação do impacto/danos (físicos, psicológicos, sexuais, sociais, etc) causados pela VD/VC continuada, dos recursos e das capacidades que a vítima tem para tomar decisões e concretizar autonomamente projetos alternativos à relação abusiva. Esta avaliação, sobretudo nas suas componentes físicas e psicológicas, deverá ser feita por profissionais especializados, respetivamente das áreas médica e psicológica. Nos casos em que o profissional que fez o primeiro acolhimento não tenha condições ou formação adequada para dar apoio ou fazer acompanhamento à vítima, é fundamental que a encaminhe para instituições especializadas no atendimento/apoio a vítimas. Quando a vítima não deseja ou não pode regressar a casa, e não existe suporte familiar ou de amigos, o profissional poderá sugerir um alojamento temporário ou um Centro de Acolhimento. Se não houver vaga em nenhum Centro, deverá ajudar a vítima a encontrar alojamento temporário numa instituição de acolhimento temporário, em residenciais ou hotéis. Estes últimos, por implicarem elevados encargos económicos, devem ser considerados a última opção. A fazê-la, deve garantir-se apoio económico a estas vítimas, se elas não tiverem meios para o assegurar sozinhas. Existindo filhos, deve haver o cuidado de não os separar da mãe. Deve garantir-se o apoio às despesas de alimentação, despesas de saúde, cuidado aos filhos, transporte e escola, se necessário. Se a vítima pretender a separação e/ou avançar com uma queixa-crime, deve ser apoiada e informada dos procedimentos legais e das suas implicações, estar preparada para lidar com as diferentes etapas, instâncias e situações envolvidas no processo judicial e ter consciência de que estes processos abarcam desde as questões relacionadas com os filhos menores e a família ao processo-crime contra o agressor. Para todos estes processos pode requerer patrocínio judiciário ao Tribunal. Poderá ser necessário também acompanhamento policial, numa deslocação à residência, para ir buscar bens ou documentos necessários, ou para deslocações a Tribunal, ou outras, em que exista risco de ataque pelo agressor. Para tal é necessário proceder a: • AVALIAÇÃO DO RISCO A maioria das vítimas que procura ajuda está em risco/perigo (p.e., risco de violência física grave, risco de sequestro, risco de homicídio conjugal) É necessário garantir condições de segurança à vítima e filhos. Por isso, é fundamental proceder à avaliação do risco. Planos de segurança Quer a vítima decida afastar-se quer decida permanecer com o cônjuge maltratante, muito particularmente nesta última situação, o profissional deverá ajudar a vítima a elaborar um plano de segurança pessoal, isto é, a formular um conjunto de estratégias para aumentar o seu grau de segurança nas diferentes situações de risco ou de violência por que pode passar. Assim, é importante analisar com ela as situações mais frequentes de violência e os acontecimentos que mais vezes as precipitam, os contextos em que ocorrem e as alternativas de fuga que tem face a cada uma. Deve planificar-se com a vítima a reação a ter perante os episódios de violência, bem como a prevenção de situações de risco: aprender a reconhecer os sinais de tensão que antecedem um episódio violento, saber quais as melhores escapatórias de casa (portas, janelas...), evitar ficar “presa” em divisórias da casa sem saída, evitar a proximidade de MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR é sempre garantir a segurança e integridade da vítima - 45 - Violê nc ia Domé s t ic a - - CAR ATER IZAÇÃO DO F ENÓMENO E R ESP O STA S A P TA S À SUA ER R ADICAÇÃO - CIG imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 46 - objetos ou utensílios que possam ser usados como armas pelo agressor (candeeiros, espelhos, facas, louças...), ter em local acessível ou memorizar os números de telefone de emergência ou o contacto de uma pessoa de confiança a quem possa pedir auxílio, combinar com um vizinho de confiança um código de alerta para situações de violência (fazer determinados ruídos, gritar, acender e apagar luzes...), ensinar os filhos a usar o telefone para chamar a polícia ou a recorrer à ajuda de uma pessoa de confiança (aliás, os filhos devem treinar também planos de segurança adequados à sua idade). • Se sair de casa, deve levar consigo qualquer elemento de prova da VD/VC: exames médicos comprovativos de lesões, cópias de anteriores queixas/autos de denúncia, bilhetes ou cartas com ameaças, objetos ou roupas destruídos pelo agressor. • É importante também que conheça pessoas dispostas a testemunhar os atos de violência de que foi alvo. • Não deve nunca levar consigo bens que pertençam ao agressor nem destruir os seus pertences por raiva ou retaliação, mesmo que ele lho tenha feito a si. • Convém que a vítima tenha à mão, ou escondido em casa de alguém de confiança, um “saco de saída”, para o caso de ter de fugir de repente de casa, no qual tenha algumas peças de roupa, para si e/ou os filhos, algum dinheiro, moedas ou cartão de telefone, para o caso de ter de ligar de cabinas públicas, medicamentos de toma regular, cópias das chaves de casa e carro, cópias dos documentos de identidade, segurança social, utente do SNS, contribuinte, certidão de casamento, cédula de nascimento os filhos, entre outros necessários para o dia-a-dia e para apresentar ao longo do(s) processo(s) judicial(ais). • É necessário ainda que a vítima planeie de antemão o que vai fazer se tiver de sair de casa (contactos, alojamento, quem vai avisar, como vai ajudar os filhos a lidar com a situação, etc.). • A vítima, mesmo depois de separada, pode continuar a ser alvo de ameaças ou ataques pelo agressor. Convém, por isso, que tome algumas medidas de segurança, designadamente: ■ Se for ela a sair de casa, avisar os amigos, os familiares e no emprego e alertá-los para o risco de serem contactados ou perseguidos pelo agressor, não revelar a sua nova morada, não contactar o agressor com números de telefone identificáveis, alterar os percursos que utiliza para ir trabalhar, buscar os filhos, fazer compras..., evitar andar na rua sozinha, informar a escola dos filhos da situação e indicar quem pode e quem não pode levar as crianças; ensinar as crianças a não revelar a sua localização, a não viajarem com o pai sem autorização, a utilizarem o telefone para pedir ajuda. ■ Se necessário, pedir proteção policial e medidas de afastamento do agressor. ■ Se for o agressor a sair de casa, deve a vítima mudar as fechaduras, reforçar portas e colocar fechaduras de segurança, alterar o número de telefone e pedir que lhe seja atribuído um número confidencial, instalar alarmes e outros meios de segurança, combinar com vizinhos sinais que estes emitam se virem MANUAL PLURIDISCIPLINAR o agressor a aproximar-se (luzes, telefonema, ruídos...); ensinar as crianças a não abrir a porta a ninguém, nem sequer ao pai (se for o agressor). 7.2. A vítima nos sistemas judiciais europeus As transformações ocorridas nas últimas três décadas levaram à tomada de consciência, pelos Estados Europeus, da necessidade de realizar uma revisão nos modelos judiciais vigentes. Sendo assim, observa-se o aparecimento de iniciativas ao nível da União Europeia, mais concretamente ao nível do Conselho da Europa, de forma a promover uma revisão concertada e uniforme dos sistemas judiciais no que diz respeito à proteção das vítimas de crime. É com base neste objetivo que surge a Recomendação (85)11 do Conselho da Europa. Este documento é constituído por um conjunto de linhas de orientação que visam o melhoramento da administração da justiça sob o ponto de vista da vítima. Especificamente, a Recomendação (85)11 pode ser dividida em três vetores: - informação dada à vítima; - compensação do ofensor ou do Estado; - tratamento e proteção da vítima pela Justiça. O impacto deste documento nas revisões dos textos judiciais europeus foi analisado num estudo realizado por Brienen & Hoegen11, terminado em 2000, que versou 22 países europeus. Os autores, para além de realizarem um estudo comparado da aplicação da Recomendação nos diferentes países, realizam também uma análise crítica dos diferentes sistemas judiciais na forma como eles veem a vítima. Por conseguinte, podemos observar que não houve uma adoção uniforme da Recomendação, quer ao nível do espaço europeu, quer no que diz respeito à total amplitude legislativa do documento. O primeiro vetor que é realçado pela Recomendação diz respeito à informação que os serviços de administração da justiça fornecem à vítima ao longo de todo o processo judicial. A informação é aqui tratada sob dois planos: conhecimento, por parte da vítima, dos seus direitos legais, assim como conhecimento sobre a evolução do processo judicial. Em alguns países não existe qualquer obrigação por parte das autoridades judiciais de informar a vítima sobre os seus direitos, como, por exemplo, o direito de indemnização, muito menos sobre o desenvolvimento da atividade processual. Este dever de informar encontra-se parcialmente estabelecido na Áustria, Islândia, no cantão suíço de Zurique e em Portugal, já que nestes casos as autoridades judiciais são obrigadas, pelo menos, a informar a vítima do seu direito de indemnização (de salientar que, em Zurique, a polícia tem o dever de fornecer informações às vítimas de crimes sexuais e violentos sobre a forma de obter assistência nos serviços de apoio a vítimas). Nos países nórdicos (nomeadamente na Suécia e Noruega), na Holanda, na Inglaterra e Gales, Escócia, Espanha e Bélgica existe uma obrigação formal das autoridades judiciais 11 Brienen, M. & Hoegen, E. (2000). Victims of Crime in 22 European Criminal Justice Systems: The Implementation of Recomendation (85) 11 of the Council of Europe on the Position of the Victim in the Framework of Criminal Law and Procedure. University of Tilburg. Nimegen. The Netherlands. MANUAL PLURIDISCIPLINAR - 47 - Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 48 - CAR ATER IZAÇÃO DO F ENÓMENO E R ESP O STA S A P TA S À SUA ER R ADICAÇÃO - CIG em informar as vítimas, estando esta prerrogativa estabelecida nos códigos de processo judicial, assim como nos códigos de procedimentos de cada instituição da Justiça, concretamente nas polícias e nos serviços do Ministério Público. De referir que na Suécia e na Noruega é procedimento comum que as vítimas sejam notificadas a comparecer nas esquadras de polícia com o intuito de receberem informações acerca do desenrolar do processo. Um dos aspetos que demonstra a importância que a vítima adquire no seio do sistema jurídico e na sociedade em geral é o facto de existirem organizações de apoio à vítima, sejam estas ligadas a organismos públicos ou iniciativas de organizações não-governamentais. Ao analisar o panorama europeu relativamente ao sistema assistencial das vítimas de crime conseguimos observar uma grande discrepância entre países, alguns com redes que têm uma cobertura nacional, desenvolvidas desde há duas décadas, e outros em que este movimento só agora dá os primeiros passos. Em vários países não existem sequer serviços especializados de apoio a vítimas, sendo que este tipo de assistência é realizado por serviços generalistas de assistência social. No entanto, num grande número de países europeus existe uma organização nacional que presta apoio a vítimas de crime sob variadas formas, como por exemplo apoio jurídico e psicológico. De salientar que estas organizações assumem cada vez mais um papel preponderante na definição das políticas que dizem respeito às vítimas de crimes, nomeadamente na Bélgica, Inglaterra e Holanda, onde são consideradas como parceiras assíduas nas reformas legislativas. Esta cumplicidade entre os serviços de administração da justiça e as organizações de apoio a vítimas permite, nos países referidos, uma abordagem proativa do sistema assistencial, isto é, mediante informação das autoridades judiciais, os técnicos destas organizações podem abordar as vítimas de forma a tomarem conhecimento das suas necessidades, alargando assim o raio de ação da função protetora da justiça. Em todos os níveis de funcionamento da justiça parece existir a preocupação de minimizar os efeitos negativos na vítima causados pelas exigências processuais, ou seja, aquilo que em vitimologia se designa por vitimação secundária ou vitimação institucional. Por conseguinte, observamos que, num número crescente de países europeus, as reformas legislativas e procedimentais visam também modificar as técnicas de investigação e inquirição utilizadas quer pela polícia quer pelos magistrados e advogados em sede de julgamento, de modo a minimizar os danos provocados na vítima. Desta forma, torna-se preocupação dos sistemas jurídicos dotar os agentes judiciais de competências que os habilitem a realizar os seus deveres processuais sem contribuir para um reforço do efeito traumático que tem para a vítima este contacto com a justiça. Nesse sentido, vemos alguns países implementar nos currículos das escolas de polícia matérias que visam o treino do relacionamento com as vítimas de crime. A este nível são de realçar os programas existentes na Irlanda, Holanda, Luxemburgo, Noruega e Dinamarca que contemplam cursos de acompanhamento sobre temas específicos como a violência doméstica ou a violência sexual. Aliás, na Dinamarca existem cursos regulares de atualização o que demonstra a importância atribuída pelas forças policiais dinamarquesas as estas questões. Em Portugal, o Projeto Inovar foi o primeiro grande passo nesse sentido. Relativamente às técnicas de interrogatório, existe uma preocupação em atender às caraterísticas específicas do interrogado, como, por exemplo, das crianças, das pessoas com distúrbios psicopatológicos, ou mesmo da generalidade das vítimas de crime. Portanto, assistimos à adoção de procedimentos que visam minimizar o impacto do relato de uma situação traumática, assim como otimizar a obtenção do testemunho: presença de uma pessoa de confiança durante o interrogatório; salas de interrogatório próprias para crianças (na Islândia existe uma instituição pertencente aos serviços de justiça que se encarrega dos interrogatórios de crianças e da sua preparação para testemunharem em Tribunal, prestando apoio psicológico e social sempre que necessário); interrogatório por videoconferência; gravações em registo vídeo de “depoimentos para memória futura”; unidades de atendimento policial específico, por exemplo, em casos de violência doméstica e ofensas sexuais. Temos que referir, no entanto, que na maioria dos países europeus o interrogatório das vítimas é ainda realizado por apenas um inquiridor e utilizando técnicas como o questionamento repetitivo, não tendo muitas vezes atenção às consequências da implementação de tais métodos. As medidas de proteção das vítimas de crime implementadas pelos sistemas jurídicos europeus não têm como alvo somente os seus agentes, mas também outros atores que intervêm na justiça, como é o caso da comunicação social e os ofensores. Relativamente aos meios de comunicação social começam a surgir medidas que têm como objetivo evitar uma sobre-exposição da vítima: obrigação de manutenção do segredo de justiça, leis específicas que regulam a publicitação de informações processuais, chegando mesmo a ser proibido revelar o nome e morada da vítima sem o seu consentimento (Inglaterra e Gales, assim como na Suíça, em casos de violação ou crimes violentos); legislação que obriga à ocultação da face da vítima e também do agressor quando filmadas (Holanda), sendo que em alguns países a própria presença deste tipo de equipamento é por si só proibida. A proteção das vítimas de crime contra possíveis retaliações e ameaças dos ofensores ou de outras pessoas com interesses no processo é algo que os sistemas jurídicos têm em conta nas reformas que estão a ser realizadas um pouco por toda a Europa. É de salientar medidas como o fornecimento de equipamento de autoproteção às vítimas, como, por exemplo, alarmes pessoais na Noruega, Espanha, Inglaterra e Holanda, ou como na Suécia onde a polícia, em alguns casos, pode fornecer sprays, telemóveis, gravadores áudio, ou ainda cães de guarda. O realojamento, a existência de salas separadas para as vítimas, e o testemunho pré julgamento são já medidas implementadas na maioria dos países. Outro instrumento judicial já também implementado em muitos países europeus é o estabelecimento de medidas de coação e de afastamento relativamente ao ofensor. Infelizmente, nem todas as possibilidades consignadas na Lei conseguem ter efetiva tradução na prática quotidiana dos agentes policiais e judiciais, quando confrontados com situações de violência doméstica ou conjugal. MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR - 49 - Violê nc ia Domé s t ic a - - CAR ATER IZAÇÃO DO F ENÓMENO E R ESP O STA S A P TA S À SUA ER R ADICAÇÃO - CIG imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 50 - 7.3. A Convenção de Istambul no ordenamento jurídico português12 Enquanto organização para a proteção dos direitos humanos na Europa, o Conselho da Europa tem implementado, desde 1990, uma série de iniciativas destinadas a promover a proteção das mulheres contra a violência. De salientar, em particular, a adoção, em 2002, da Recomendação do Comité de Ministros do Conselho da Europa Rec (2002) 5 aos Estados-Membros relativa à proteção das mulheres contra a violência e, entre 2006 e 2008, a campanha europeia para combater a violência contra as mulheres, incluindo a violência doméstica. A Assembleia Parlamentar também tomou uma posição política firme contra todas as formas de violência contra as mulheres. Adotou uma série de resoluções e recomendações, apelando à adoção de padrões legalmente vinculativos na prevenção, proteção e repressão das mais graves formas de violência de género. Relatórios, estudos e pesquisas realizados a nível nacional revelaram a dimensão do problema na Europa.13 A campanha, em particular, mostrou como são diferentes as respostas nacionais no combate a este fenómeno. Impõe-se, portanto, a harmonização das normas jurídicas para que as vítimas possam beneficiar do mesmo nível de proteção em toda a Europa. A vontade política para agir surgiu da vontade dos/das Ministros/as da Justiça dos Estados-membros do Conselho da Europa, dando início ao debate em torno da necessidade de reforçar a proteção contra a violência doméstica, em particular em contextos de relações de intimidade. Assumindo o seu papel de liderança na proteção dos direitos humanos, o Conselho da Europa decidiu estabelecer normas gerais para prevenir e combater a violência contra as mulheres e a violência doméstica. Em dezembro de 2008, o Comité de Ministros criou um grupo de peritos/as para preparar um projeto de Convenção sobre a questão, o CAHVIO (Comité ad-hoc para prevenir e combater a violência contra as mulheres e a violência doméstica). Este grupo preparou o projeto de texto, tendo-o finalizado em dezembro de 2010. A Convenção sobre a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, ou Convenção de Istambul, foi adotada pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa em 7 de abril de 2011, e aberta para assinatura em 11 de maio de 2011, por ocasião da 121.ª Sessão do Comité de Ministros, que se realizou em Istambul. A Convenção de Istambul entrou em vigor no dia 1 de agosto de 2014, tendo reunido o número de ratificações necessárias para o efeito. Em Portugal, a Convenção foi aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 4/2013, de 14 de dezembro de 2012, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 13/2013, ambos publicados no Diário da República, I série, nº 14, de 21 de janeiro de 2013. 12 13 Publicado no Notícias nº 90 – Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género. A Agência para os Direitos Fundamentais (FRA) da EU divulgou, em 5 de março deste ano, os resultados de um inquérito, realizado nos 28 EM, sobre violência contra as mulheres: 8% tinham sido vítimas de violência física e/ou sexual, nos 12 meses anteriores à entrevista do inquérito, e uma (1) em cada três (3) tinha sido vítima de algum tipo de agressão física ou sexual, desde a idade dos 15 anos - Violence against women: an EU-wide survey. Results at a glance. (Luxembourg), FRA, pág. 9 [Em linha], 2014, disponível na internet em: <URL www.cig.gov.ptNotícias >) . MANUAL PLURIDISCIPLINAR A Convenção de Istambul constitui, de forma inequívoca, um tratado-normativo e multilateral e o seu confronto com o direito ordinário nacional implica, essencialmente, que se pondere se a aprovação daquela exige alterações da legislação portuguesa, por força do princípio do primado do Direito Internacional Convencional. Esta Convenção cria um quadro jurídico a nível pan-europeu, que visa proteger as mulheres contra todas as formas de violência e evitar, criminalizar e eliminar a violência contra as mulheres e a violência doméstica. No direito interno, a matéria da violência contra as mulheres não dispõe de diploma específico, o mesmo não sucedendo com a violência doméstica, a qual não só se encontra tipificada como crime autónomo, nos termos do artigo 152º, do Código Penal, como, por via da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, se estabelece um regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas.14 A par disto, os Planos Nacionais contra a violência doméstica têm sido instrumentos atuantes na mudança de mentalidades, tentando transpor o desfasamento entre a lei e a vida quotidiana. Naturalmente que o Código Penal, em algumas das suas secções, já enquadra muitos dos comportamentos abrangidos pela Convenção de Istambul, como são exemplos os crimes de ofensa à integridade física simples (art. 143º), ofensa à integridade física grave (art. 144º), violência doméstica (art.152º), maus tratos (art. 152º-A), coação sexual (art. 163º) ou violação (art. 164º), já para não falar nos crimes de homicídio (art. 131º) ou homicídio qualificado [alíneas a) e principalmente b) do nº 2 do art. 132º]. Porém, outros comportamentos existem que, de acordo com os objetivos da Convenção de Istambul, ainda não se encontram tipificados, de forma plena, no nosso ordenamento jurídico português, como são o caso do previsto no artigo 34º (Perseguição) ou no artigo 38º (Mutilação Genital Feminina), ambos da Convenção de Istambul. Efetivamente, até ao presente momento, e no que concerne à “Perseguição”, a criminalização dos comportamentos de quem intencionalmente ameaça repetidamente outra pessoa, levando-a a temer pela sua segurança, têm sido integrados, por alguma jurisprudência nacional, no âmbito do crime previsto e punido no artigo 153º (Ameaça) em conjugação, em alguns casos, com outros crimes previstos no Código Penal, designadamente crimes contra a reserva da vida privada, como são o caso do artigo 190º (Violação de domicílio ou perturbação da vida privada) e do artigo 192º (Devassa da vida privada) ou, ainda, crimes contra outros bens jurídicos pessoais, como é o caso do artigo 199º (Gravações e fotografias ilícitas). Todavia, e de acordo com a teleologia do artigo 34º, da Convenção de Istambul, afigura-se que o que se pretende é uma criminalização autónoma, com desnecessidade de recurso a um concurso de normas incriminatórias, cuja conjugação pode não beneficiar do mesmo entendimento em todo o aparelho judiciário, havendo, por conseguinte, 14 Outros diplomas complementam a sede geral de prevenção da violência doméstica e de proteção e assistência das suas vítimas, que a Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, constitui, referindo-se aqui, sem pretensões de exaustão, a Lei nº 104/2009, de 14 de setembro, que institui o regime de concessão de indemnização às vítimas de crimes violentos, e o Decreto Regulamentar nº 1/2006, de 25 de janeiro, que regula as condições de organização, funcionamento e fiscalização das casas de abrigo previstas na Lei nº 107/99, de 3 de agosto, e no Decreto-Lei nº 323/2000, de 19 de dezembro, e que integram a rede pública de casas de apoio a mulheres vítimas de violência. MANUAL PLURIDISCIPLINAR - 51 - Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 52 - vantagens na opção por uma tipificação autónoma, e cuja clareza e uniformidade redundará em benefício da segurança jurídica da aplicação da norma em situações futuras15. Efetivamente, o que se pretende prever e criminalizar é uma forma particular de violência relacional, a qual pode ser definida como um padrão de comportamento de assédio persistente, que se traduz em formas diversas de comunicação, contacto, vigilância e monitorização de uma pessoa alvo. Estes comportamentos podem consistir em ações rotineiras e aparentemente inofensivas ou em ações inequivocamente intimidatórias, que, pela sua persistência e contexto de ocorrência, se constituem como uma verdadeira campanha de assédio que, muitas vezes, afeta significativamente o bem-estar da vítima. É, precisamente, por esta razão que a transposição do previsto no artigo 34º, da Convenção de Istambul para o ordenamento jurídico português se deve consolidar com a autonomização de um novo tipo legal de crime com a designação de crime de “Perseguição”, sendo “Stalking” um termo estrangeiro que, enquanto tal, e mesmo beneficiando de consolidação em termos concetuais, não será de aplicar num diploma legal interno. De igual modo, até ao presente momento, e no que concerne às práticas de Mutilação Genital Feminina, a criminalização de tais comportamentos tem sido enquadrada no tipo legal de crime previsto e punido no artigo 144º, do Código Penal, com a epígrafe “Ofensa à integridade física grave”. Porém, tal enquadramento, num plano teórico, fica aquém do que se pretende proteger com a criminalização destas práticas. A previsão deste tipo de atos ou comportamentos como portadores de uma ilicitude a ser penalizada autonomamente decorre, designadamente do previsto no artigo 38º da Convenção de Istambul. Aspetos importantes deverão ser considerados na autonomização deste tipo legal de crime, tais como a respetiva sistematização e moldura penal, determinação dos seus autores e meios utilizados, (des) necessidade do consentimento da vítima e natureza do crime. 7.4. Os profissionais de apoio à vítima face à vítima de violência doméstica/conjugal As instituições de atendimento e apoio a vítimas de violência/crime são uma das mais importantes conquistas dos anos 70-80, na sequência do esforço dos movimentos feministas, das lutas pelos Direitos e pela Igualdade das Mulheres, da crescente consciencialização social para o problema da VD/VC e do próprio desenvolvimento do conhecimento científico sobre o fenómeno e consequente desenvolvimento de estratégias de intervenção específicas. Nestas instituições é fundamental o trabalho em equipa multidisciplinar, de forma a dar-se resposta às necessidades da vítima aos mais variados níveis: legal/judicial, social, médico, psicológico. É crucial, no entanto, promover uma efetiva intervenção em rede, com partilha de informação, para que a vítima não seja obrigada a repetir narrativas e procedimentos, isto é, para que se evite a vitimização secundária (intra e inter-) institucional. 15 Veja-se, neste sentido o Explanatory Report do Conselho da Europa (nº 182), relativamente ao artigo 34º, da Convenção de Istambul. MANUAL PLURIDISCIPLINAR CAR ATER IZAÇÃO DO F ENÓMENO E R ESP O STA S A P TA S À SUA ER R ADICAÇÃO - CIG Quando as vítimas de VD/VC procuram a ajuda de instituições especializadas de atendimento e apoio a vítimas, não se coloca, habitualmente, o problema da revelação, embora possa ser difícil, num primeiro momento, obter informação suficientemente pormenorizada para a definição das estratégias mais adequadas àquele caso. Outra dificuldade com que os técnicos se confrontam é a questão da denúncia ou queixa-crime (por força das consequências deste ser, em Portugal, um “crime público”) quando a vítima revelou a situação mas não quer avançar com um processo judicial. Encontrar um equilíbrio (sempre precário) entre a proteção da vítima e a garantia da sua segurança, entre o sigilo profissional e as obrigações legais-profissionais, entre o dever de servir a vítima e a instituição em que trabalha ou, de forma mais geral, a sociedade em que se insere, nem sempre é fácil. Os três tipos fundamentais de intervenção junto de vítimas de violência doméstica são: (1) a intervenção em crise (2) a definição e implementação de planos de segurança (3) o acompanhamento continuado, por vezes, acompanhamento psicológico ou psicoterapia * Intervenção em crise Um estado de crise emerge quando a situação vivenciada pela pessoa parece pôr em causa a sua integridade física e/ou psicológica e ultrapassa as capacidades que tem no momento para a superar ou para lidar com as circunstâncias adversas. ■ A severidade e duração de uma crise dependem: 9 Do grau de violência envolvida 9 Das capacidades ou competências da vítima para enfrentar o problema 9 Da intervenção ou apoio que recebe Muitas vítimas de VD/VC procuram ajuda em situação de crise. A intervenção em crise é direcionada para a resolução imediata do problema, focalizando-se nos acontecimentos ou situações precipitantes e procurando potenciar as capacidades da vítima para se confrontar e lidar com o problema e suas consequências. * O modelo de intervenção em crise A intervenção em crise pode ser usada como modelo específico de ajuda ou surgir integrado num sistema de intervenção mais amplo. Procura a gestão do período de crise, encarado como momento transitório, de reorganização do Eu e/ou da vida, no qual o indivíduo está temporariamente sem recursos suficientes para a resolução de uma situação problemática e irá ser ajudado por técnicos a alcançar uma resolução positiva para essa crise. Ela é: • Direcionada para a resolução da crise • De curta duração • Focalizada nos acontecimentos precipitantes • Fomenta estratégias de coping e de resolução de problemas • Releva a importância dos significados atribuídos à situação pela vítima MANUAL PLURIDISCIPLINAR - 53 - Violê nc ia Domé s t ic a - - CAR ATER IZAÇÃO DO F ENÓMENO E R ESP O STA S A P TA S À SUA ER R ADICAÇÃO - CIG imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 54 - • Procura promover o empowerment: ■ ajudar a mulher a potencializar ou otimizar os seus recursos e capacidades ■ validar os direitos e decisões da vítima ■ dar apoio às suas decisões ■ otimizar os recursos disponíveis para a apoiar ■ estabelecer programas de segurança com a vítima * A crise não é um estado patológico, é uma reação normal de adaptação a circunstâncias anormais, e associa-se a outros mecanismos de sobrevivência psicológica e emocional das vítimas de violência continuada. Contudo, se este estado se perpetuar no tempo pode acabar por dar origem a problemas e a psicopatologias de vária ordem, desde os distúrbios cognitivos, de atenção e memória, até às perturbações emocionais, à depressão, desordens de ansiedade e de pânico, fobias e, em casos extremos, ideação e tentativas de suicídio. É fundamental, por isso, que a crise seja resolvida construtivamente, para que a vítima possa superar as vivências traumáticas e integrar essas experiências de forma adaptativa na sua história de vida. Dado que o desencadeamento, dimensão e evolução da crise dependem do significado que a vítima atribui aos acontecimentos e vivências por que passou, bem como dos recursos – sobretudo pessoais, mas também da sua rede de apoio social/familiar e da rede de apoio institucional – de que dispõe para confrontar e superar as dificuldades vividas, apoiá-la na reconstrução de significados e na elaboração de projetos de vida alternativos - nos quais sinta restaurada a sua capacidade de autoria e de controlo sobre a sua vida revela-se uma tarefa fundamental dos profissionais de ajuda a vítimas. Essa ajuda deve ser orientada para o empowerment, para a otimização dos recursos e potencialidades da mulher vítima. Esta é, e deve ser encarada como tal pelo profissional, o ator principal, a protagonista da resolução dos problemas resultantes da violência de que foi vítima. Assim, o técnico de atendimento deve ter como tarefas fundamentais da intervenção inicial com vítimas16: • A noção de crime e o facto da VD/VC ser crime • Normalizar as suas reações face aos acontecimentos • Informar sobre os seus direitos e validá-los • Analisar a segurança da mulher e seus filhos, prevenir a revitimação e restabelecer o seu sentimento de controlo • Ajudar a mulher a (re)descobrir e potenciar as suas capacidades e recursos • Traçar objetivos a curto prazo • Aumentar as alternativas para a prossecução do seu plano de vida • Validar as suas decisões e escolhas • Compreender a opressão experienciada, com elevado sentimento de vulnerabilidade, insegurança e medo 16 A partir de Matos (2002). MANUAL PLURIDISCIPLINAR • • • • • Reduzir os efeitos dos maus tratos Diminuir a tolerância ao uso da força física na relação interpessoal Reduzir a dependência face ao agressor Desmistificar os papéis sexuais tradicionais Combater a tendência para a auto-culpabilização e/ou para a racionalização do abuso • Aprender a usar o sistema judicial Como já atrás referimos, a mulher vítima que procura ajuda junto das instituições de atendimento/apoio a vítimas pode desejar romper com a situação violenta e avançar com uma queixa-crime, mas também pode fazê-lo com o objetivo de ver alterado o comportamento violento do agressor, de parar com a violência sem abandonar o companheiro, ou até de receber apoio emocional e psicológico, sem que, pelo menos na fase inicial do processo, revele qualquer outro pedido/motivo. O profissional de atendimento/ajuda tem o dever de a apoiar, seja qual for a sua decisão. Deve, no entanto, informá-la dos seus direitos e das diferentes opções que pode tomar, dos procedimentos associados a cada uma e das implicações e consequência que cada uma delas pode acarretar. Paralelamente, deve avaliar o risco em que a vítima (e filhos, se os houver) se encontra, garantindo-lhe os diferentes tipos de apoio de que necessita e elaborando, se necessário, planos de segurança. No caso de a vítima avançar com uma queixa-crime, deve o profissional alertá-la para o perigo de represálias ou para um eventual aumento da violência por parte do agressor no momento em que seja notificado no âmbito do inquérito criminal, se se mantiver a coabitar com ele. Pode também fornecer-lhe informação sobre serviços/programas de intervenção em agressores, ajudando-a a ponderar se e como deve transmitir essa informação ao companheiro. Quando a vítima não deseja ou não pode regressar a casa, e não existe suporte familiar ou de amigos, o profissional poderá sugerir um alojamento temporário ou um Centro de Acolhimento/uma Casa Abrigo. Se a vítima pretender a separação e/ou avançar com uma queixa-crime, deve ser apoiada e informada dos procedimentos legais e das suas implicações, estar preparada para lidar com as diferentes etapas, instâncias e situações envolvidas no processo judiciário e ter consciência de que estes processos abarcam desde as questões relacionadas com os filhos menores e a família ao processo-crime contra o agressor. Se a mulher necessitar de cuidados médicos deve ser encaminhada para os serviços de saúde competentes e os técnicos devem funcionar como elos de ligação, facilitando o contacto e a deslocação às instituições, acompanhando, sempre que necessário, a vítima a esses serviços e fornecendo aos restantes profissionais o máximo de informação possível para que a mulher não seja obrigada a repetir várias vezes o seu relato/testemunho e se possa reduzir, assim, o risco de vitimização secundária ou institucional. Se a vítima desejar regressar a sua casa, convém avaliar com ela os riscos envolvidos nesse regresso ao domicílio e, se necessário, estabelecer um plano de segurança. É fundamental que o técnico de apoio à vítima a auxilie na avaliação do risco, através de um MANUAL PLURIDISCIPLINAR - 55 - Violê nc ia Domé s t ic a - 56 - exaustivo levantamento/caraterização da situação, estudo da história de vitimação e da evolução das formas e gravidade da violência ao longo do tempo, exame dos processos e dinâmicas envolvidos, das caraterísticas da vítima, do agressor, das dinâmicas abusivas e dos contextos de ocorrência, existência de filhos menores e/ou outros familiares. Devido ao facto de serem expostas a agressões repetidas ou a ameaças constantes e da sua integridade física e psicológica estar constantemente ameaçada, as vítimas desenvolvem níveis muito elevados de tolerância à violência e à dor, pelo que algumas vítimas, ao fim de algum tempo, não se apercebem das manifestações mais quotidianas de violência ou das lesões menos graves por elas produzidas. Por isso, nem sempre se apercebem da existência de um perigo real para a sua integridade e nem sempre são capazes de avaliar a gravidade da situação, devendo ser ajudadas pelo técnico da instituição. Como já atrás referimos, a VD/VC resulta de e assenta num complexo conjunto de dinâmicas e processos que sustentam o controlo do agressor sobre a vítima e a manutenção desta na relação abusiva. O objetivo central é sempre o mesmo: deter poder e controlo sobre a vítima, implementando o agressor todo um conjunto de comportamentos interrelacionados para garantir o seu exercício. A “roda do poder”, construída no âmbito do Projeto Duluth, nos EUA, é hoje um instrumento amplamente utilizado em diferentes países e que nos permite de forma clara e bem sintetizada dar conta desses processos e dessas estratégias (cfr. Figura 1). A roda do poder é uma metáfora gráfica bem conseguida, através da qual a vítima facilmente poderá perceber como funcionam as estratégias de poder e controlo do agressor, a forma como o abuso físico constitui uma espécie de “cinta” que enquadra, sustenta e reforça cada um dos restantes tipos de abusos/violência. FIGURA 1 – A RODA DO PODER CAL ABU PHYSI SE Isolation Emotional Abuse Economic Abuse Intimidation POWER AND CONTROL Using Male Privilege Sexual Abuse Threats Using Children SICAL ABUSE PHY - CAR ATER IZAÇÃO DO F ENÓMENO E R ESP O STA S A P TA S À SUA ER R ADICAÇÃO - CIG imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o Por contraponto, “a roda da igualdade” (figura 2) permite trabalhar com a vítima papéis e representações sociais, perspetivar novas visões sobre o relacionamento homem-mulher e ajudar a vítima a projetar outras posições existenciais e relacionais para o futuro. FIGURA 2 – Roda da Igualdade Fairness NonThreatening Behavior Economic Partnership Respect EQUALITY Trust & Support Shared Responsibility Responsible Parenting Honesty Fonte: Domestic Abuse Intervention Project/Duluth Os profissionais de atendimento a vítimas devem conhecer os procedimentos judiciais de base a encetar pela vítima e promover o apoio judicial para esta. A maioria das vítimas beneficiará de um apoio continuado, nos planos jurídico, social, médico e psicológico, de forma a mais completamente superar os períodos de crise, a lidar com os processos judiciais em curso e contactos repetidos com as instâncias e agentes judiciais, a elaborar as experiências traumáticas, a integrar adaptativamente as vivências negativas e a superar os impacto e os efeitos negativos da vitimação. Deve, assim, ser encaminhada para apoio especializada a estes diferentes níveis, no quadro da intervenção multidisciplinar da instituição de apoio a vítimas de VD/VC. Deve, sempre que se revelar necessário e produtivo para a evolução da vítima, ser acompanhada por um psicoterapeuta (psicólogo ou psiquiatra). Este apoio revela-se fundamental para que a vítima consolide as transformações pessoais entretanto iniciadas e possa concretizar plenamente os seus novos projetos de vida. Mesmo que o período de crise tenha sido já ultrapassado e a vítima se tenha autonomizado e reconquistado poder sobre si e sobre a sua vida, as consequências traumáticas da VD/VC continuada, emocionais e psicológicas, tendem a emergir de forma mais visível ao fim de algum tempo e a superação da experiência traumática só será possível com um apoio continuado e regular. Não só as dimensões cognitivas, emocionais, relacionais, sexuais, têm de ser trabalhadas com a vítima, como, estando em curso processos judiciais, é importante garantir apoio à vítima, nas fases mais complexas e perturbadoras deste percurso: Fonte: Domestic Abuse Intervention Project/Duluth MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR - 57 - Violê nc ia Domé s t ic a - - CAR ATER IZAÇÃO DO F ENÓMENO E R ESP O STA S A P TA S À SUA ER R ADICAÇÃO - CIG imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 58 - - declarações à polícia, exames periciais, audiências de julgamento, confronto direto com o agressor; - a morosidade dos processos-crime, dos processos de divórcio e dos processos de regulação do exercício das responsabilidades parentais, a falta de articulação entre eles (que obriga a vítima à repetição de procedimentos, testemunhos, audiências); - e o facto de, muitas vezes, o resultado final não ser o esperado/desejado pela vítima (a não condenação do agressor, ou condenação a pena muito leve, atrasos na obtenção do divórcio ou na definição e regulação do exercício das responsabilidades parentais), levam a que o sofrimento e as condições geradoras de desorganização biopsicossocial na vítima se prolonguem por meses, quando não por anos a fio. Em todo esse moroso e complexo processo, a vítima deve ter direito a apoio continuado especializado. Em situações de VD/VC grave e continuada, a mulher pode ver afetadas as suas competências maternais, a capacidade de “tomar conta” das crianças. Devem os profissionais estar atentos e fazer uma avaliação cuidadosa da situação de forma garantir a segurança e bem-estar das crianças e, se necessário, intervir junto da mãe ao nível das suas atitudes, comportamentos e padrões educativos. O apoio continuado pode ser desenvolvido ao nível individual, de grupo ou comunitário, seguindo diferentes modelos e estratégias de intervenção. Os grupos podem ser de autoajuda ou terapêuticos, abertos ou fechados, de duração limitada ou não. Podem implementar-se também programas de treino de competências para pais e mães maltratantes. Crianças que tenham sido vítimas de maus tratos ou de violência indireta devem beneficiar também de apoio psicoterapêutico. Uma das consequências da VD/VC poderá ser o desenvolvimento de uma Perturbação ou desordem de stresse pós-traumático (PTSD). A sua avaliação exige uma compreensão profunda da história de vida da pessoa, no sentido de identificar experiências anteriores que possam ter criado uma vulnerabilidade especial ao trauma, tal como distinguir o verdadeiro trauma do falseado, exagerado, mal atribuído ou incorretamente diagnosticado. Considera-se que uma pessoa foi exposta a uma situação/evento traumático quando duas condições estão reunidas: • experienciou, testemunhou ou foi confrontada com um evento que envolveu morte ou ameaça de morte ou danos graves; ou com uma ameaça à integridade física, pessoal ou de terceiros; • a resposta da pessoa envolve intenso medo, desamparo ou impotência para lidar com a situação ou, mesmo, horror. Também quando, durante ou após a experiência traumática, o indivíduo apresenta três ou mais destes sintomas dissociativos: 9 atordoamento/redução da consciência do que o rodeia 9 desrealização 9 despersonalização MANUAL PLURIDISCIPLINAR 9 amnésia dissociativa (incapacidade de evocar aspetos importantes da situação traumática) O evento traumático é persistentemente reexperienciado em, pelo menos uma destas formas: 9 lembranças, memórias recorrentes e intrusivas desconfortáveis/ perturbadoras, incluindo imagens, pensamentos ou perceções (nas crianças pequenas pode ocorrer jogo/brincadeiras repetitivas nas quais temas ou aspetos do trauma são expressos); 9 sonhos recorrentes e perturbantes com o evento (nas crianças podem ocorrer pesadelos sem conteúdo reconhecível); 9 agir ou sentir como se o acontecimento se estivesse a repetir (sensação de rever a situação/experiência, ilusões, alucinações ou episódios de flashback dissociativos, incluindo os que ocorrem quando acordado ou intoxicado); 9 intensa perturbação/sofrimento psicológico quando exposto a sinais internos ou externos que simbolizam ou se assemelham a aspetos do evento. Dinâmica da perturbação de stresse pós-traumático Re-experienciação Modo cognitivo Modo afetivo Modo comportamental Modo fisiológico Evitamento • Pensamentos intrusivos e • Experiências dissociativas imagens relacionadas com o (e.g., despersonalização e evento traumático desrealização) • Sonhos recorrentes com evento traumático • Aumento dos níveis de medo e • “Anulação” emocional ansiedade • Hiperatividade e comporta• Evitamento de pistas situamentos agressivos cionais ou interpessoais • “Anulação” de sensações • Analgesia Respostas secundárias e associadas: • Depressão • Agressão (auto e heterodirigida) • Diminuição da autoestima • Alterações no desenvolvimento da identidade • Dificuldades no relacionamento interpessoal • Culpa e vergonha • (…) * MANUAL PLURIDISCIPLINAR - 59 - Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 60 - Os espaços físicos onde a vítima é acolhida e atendida são de extrema importância. Devem ser espaços acolhedores, com boa luminosidade, confortáveis, personalizados, tranquilos, com um bom isolamento de som e garantias de privacidade. Sempre que possível deve existir um espaço acolhedor onde as crianças possam estar a brincar, supervisionadas, com conforto e segurança, ocupados com materiais lúdicos, livros, papel, lápis e canetas, para que as mães possam participar nas consultas com tranquilidade e confiança. * O risco de burnout e o apoio à equipa de profissionais Segundo demonstram diferentes estudos, o contacto repetido/continuado com situações de violência, crime, o contacto direto com vítimas de crimes é uma das mais específicas, exigentes e perturbadoras experiências que técnicos de diferentes formações e com diferentes funções podem vivenciar. Por essa razão, polícias, médicos (ou outros profissionais de saúde), assistentes sociais, psicólogos e, genericamente, profissionais de ajuda que realizem atendimento a vítimas de violência, estão entre as profissões com maior desgaste emocional e, consequentemente, com as mais elevadas taxas de burnout estudadas. Para prevenir a emergência de perturbações emocionais, psicológicas e comportamentais ou, mesmo, de burnout profissional, é necessário que as instituições invistam, entre outros aspetos, na mais atualizada e adequada formação dos seus profissionais, na melhoria das condições de trabalho, criando, por exemplo, condições para alguma rotatividade nas tarefas, evitando uma carga laboral ou horária excessiva, garantindo segurança contratual aos seus funcionários e uma adequada remuneração, fomentando a comunicação horizontal e vertical na instituição e um clima de abertura e relacionamento positivo no local de trabalho. Para além disso será benéfica a existência de um grupo ou, pelo menos, momentos de supervisão, quer técnica quer emocional-experiencial. Esta última constitui-se como um “espaço-tempo”, individual ou grupal, para a escuta, para a partilha e para a resolução positiva das emoções e cognições negativas que se desenvolve em resultado do contacto continuado com vítimas de violência doméstica/conjugal. Em termos muito gerais, os objetivos desse apoio são: • Permitir aos interventores lidar de forma mais positiva e adaptativa com situações eventualmente traumáticas • Facilitar a sua reorganização emocional • Apoiar a manutenção ou a (re)atualização dos sentimentos de controlo e segurança • Criar um espaço de abertura/expressão individual ou em grupo • Fazer a prevenção da disfuncionalidade psico-emocional e cognitiva resultante do contacto repetido com situações traumáticas • Garantir as condições para um acompanhamento psicológico e/ou psicoterapêutico continuado, se tal for necessário e solicitado por um dado profissional Trata-se, no fundo, de prestar um serviço especializado que visa potenciar as capacidades dos interventores e reforçar as suas competências pessoais para lidar com eventos traumáticos, protegendo-se do desgaste físico e emocional que esta atividade provoca. MANUAL PLURIDISCIPLINAR CAR ATER IZAÇÃO DO F ENÓMENO E R ESP O STA S A P TA S À SUA ER R ADICAÇÃO - CIG 7.5. Competências e estilos de comunicação - Entrevista e atitudes comunicacionais Repete-se – os espaços físicos onde decorre a entrevista são de extrema importância. A existência de uma sala onde a vítima possa ser atendida com privacidade é um dos mais importantes. Se existirem condições para acolher e manter distraídas as crianças, melhor ainda. No contacto com a vítima de VD/VC devem ser evitados espaços onde se encontrem ou circulem outras pessoas, pois estes não garantem nem a tranquilidade nem a confidencialidade que deve enformar essa relação. A vítima não deverá também permanecer muito tempo numa sala de espera ou em locais públicos, pois poderá sentir-se desconfortável ou constrangida face ao olhar de terceiros, se apresentar sinais evidentes de ter sido maltratada. As vítimas de crime procuram ajuda, quase sempre, em situação de crise e, mesmo que não estejam em crise, passaram por situações traumáticas que deixaram marcas ao nível psicológico-emocional. Encontram-se fragilizadas, são, quase sempre hipervigilantes e muito sensíveis a todos os pormenores do comportamento dos outros, designadamente ao nível da comunicação não-verbal. Os profissionais de atendimento devem ter formação específica, possuir adequadas competências de comunicação e atendimento e estar preparados para implementar estilos de comunicação adequados a casa tipo de situação. Perante a necessidade de colocar questões, o profissional de atendimento a vítimas deve fazê-lo de forma sensível e direta, preservando sempre o clima de escuta ativa, neutralidade e confidencialidade, evitando produzir juízos de valor. Deve seguir, na entrevista à vítima, o conjunto de regras definido para a comunicação com vítimas: começar por se apresentar, indicando o seu nome e função, tratando-a também de forma personalizada, usando o nome da vítima e clarificando, desde logo, os objetivos e procedimentos do atendimento. Ser empático e respeitar os sentimentos e comportamentos e as decisões da vítima; estar atento aos sinais verbais e não verbais da vítima, bem como aos que ele próprio transmite (posição em que fala, postura corporal, forma como coloca os braços, expressões faciais, tom de voz, etc); concentrar-se totalmente no que a vítima está a dizer e dar-lhe sinal disso; ter disponibilidade para a ouvir e apoiar; saber lidar com os silêncios, com a desorganização emocional, ataques de choro, hesitações; recorrer a estratégias de facilitação da comunicação; usar adequadas estratégias de entrevista/questionamento, balanceando as perguntas abertas e as fechadas, as mais gerais e as mais específicas; as mais concretas e as mais abstratas. - Princípios de conduta e atitudes que deve manter no contacto com a vítima de VD/VC 9 Escutar ativa e empaticamente 9 Acreditar na experiência de maus-tratos que é relatada pela vítima 9 Assegurar a confidencialidade e a privacidade e reconhecer os perigos que poderão advir se isto não for eficazmente garantido MANUAL PLURIDISCIPLINAR - 61 - Violê nc ia Domé s t ic a - - CAR ATER IZAÇÃO DO F ENÓMENO E R ESP O STA S A P TA S À SUA ER R ADICAÇÃO - CIG imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 62 - 9 Criar uma relação de empatia e confiança 9 Enfatizar que a violência nunca é justificável, que nenhum comportamento deve merecer a sujeição a maus-tratos (físicos, emocionais ou sexuais) e que este tipo de conflito extravasa largamente o âmbito privado/familiar/do casal, devendo ser objeto de preocupação e combate por todos 9 Defender e afirmar o direito a uma vida sem receio de violência 9 Assegurar à vítima que não está só e que não tem culpa dos acontecimentos 9 Apoiar e assistir todas as decisões da vítima 9 Ajudar a mulher a tomar decisões informadas mas não tomar decisões por ela 9 Ter consciência de que não há um perfil de maltratante e que não deve avaliar o grau de risco de existência de VD/VC pelo “ar”, nível socioeconómico ou comportamento aparente da vítima ou do seu companheiro 9 Não dar conselhos pessoais, não fazer julgamentos nem emitir juízos de valor É fundamental ainda: 9 Ter consciência de que “é impossível não comunicar” 9 Estar consciente das e ter atenção às dimensões verbais e não verbais e ter cuidado com a sua comunicação não verbal: gestos, postura, expressões faciais, olhar, silêncios (...) 9 Reconhecer que “comportamento gera comportamento” e que a reação da vítima às propostas e ajudas que lhe são oferecidas vai depender do impacto do primeiro contacto com as instâncias e atores que aos diferentes níveis (policial, médico, social, psicológico,...) a atendem 9 Saber ouvir, saber transmitir informação e saber dar feedback 9 Conhecer os diferentes estilos de comunicação (assertivo, agressivo, passivo, manipulador,...) e seus efeitos e utilizar um estilo assertivo, o mais adequado neste tipo de situação 9 Conhecer as consequências dos vários tipos e estilos de comunicação 9 Saber ouvir, saber transmitir informação e saber dar feedback 9 Ter cuidado com a sua comunicação não verbal: gestos, postura, expressões faciais, olhar, silêncios (...) 9 Saber utilizar adequadamente os elementos fundamentais na comunicação verbal: ™ A voz □ A intensidade ou volume (forte/fraca; alto/baixo) □ O ritmo ou cadência das palavras (monótono ou variado) □ A velocidade de elocução (rápida/lenta) □ As pausas □ A acentuação (palavras chave, sílabas acentuadas) □ A entoação □ O timbre (agudo ou grave) ™ O olhar ™ Os gestos, a expressão facial e a postura ™ Os silêncios MANUAL PLURIDISCIPLINAR 9 Perceber a influência do contexto/espaço onde a vítima é atendida 9 Eliminar as barreiras (pessoais, institucionais, de linguagem, do contexto...) à comunicação Importância fundamental de manter uma escuta ativa, empática e saber atender a vítima, quer em situação de face a face, quer por via telefónica. ESCUTA ATIVA 9 Deixar falar 9 Ouvir o que está a ser dito e tentar perceber o ponto de vista do outro 9 Avaliar a forma como está a ser dito – sentimentos, conteúdo, intenção 9 Mostrar empatia 9 Centrar-se no que é dito; mostrar interesse, por exemplo, fazendo perguntas sobre o que a vítima acaba de dizer, ou através da postura corporal (inclinar-se um pouco, olhar nos olhos) 9 Evitar fazer juízos imediatos sobre a pessoa, não emitir juízos de valor 9 Reformular (ex: “fui claro?” “o que eu disse era compreensível?”; em vez de “Compreendeu?” ou “Não percebeu?”) 9 Manter o contacto visual com o emissor 9 Permanecer em silêncio enquanto o emissor fala, apenas emitindo interjeições de encorajamento (ex: “hum-hum”, sim, compreendo, …) e, quando necessário, interromper cordialmente 9 Responder, dar feedback 9 Não deixar transparecer as emoções pessoais 9 Observar as reações - fazer perguntas de controlo para verificar se está a ser compreendido e a compreender adequadamente EMPATIA 9 Conseguir colocar-se no lugar do outro 9 Adaptar o discurso ao discurso da vítima 9 Olhar para cada utente como se fosse único 9 Mostrar interesse pelas suas necessidades ESPECIFICIDADES NO ATENDIMENTO FACE A FACE 9 Pronunciar as palavras clara e corretamente 9 Não falar muito alto nem muito baixo 9 Não falar nem muito depressa nem muito devagar 9 Concentrar-se na mensagem e levar o outro a fazê-lo 9 Usar palavras simples 9 Mostrar-se interessado 9 Tratar corretamente o interlocutor MANUAL PLURIDISCIPLINAR - 63 - Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 64 - 9 Certificar-se de que aquilo que é dito é compreendido pelo interlocutor 9 Acompanhar as palavras com gestos adequados 9 Adaptar a mensagem ao interlocutor 9 Evitar gírias e “bengalas” de linguagem (e.g., “pronto”, “é assim”) 9 Adotar um estilo de comunicação assertivo 7.6. Guia de Recursos online CAR ATER IZAÇÃO DO F ENÓMENO E R ESP O STA S A P TA S À SUA ER R ADICAÇÃO - CIG • Atenuar níveis de ansiedade, aumentando e reforçando o sentimento de proteção e de segurança das vítimas, proporcionando apoio e garantindo a comunicação 24 horas por dia com o Centro de Atendimento; • Aumentar a autoestima e a qualidade de vida das vítimas, estimulando a criação e/ou reforço de uma rede social de apoio; • Minimizar a situação de vulnerabilidade em que as vítimas se encontram, contribuindo para o aumento da sua autonomia e a sua (re) inserção na sociedade. O V Plano Nacional de Prevenção e Combate à Violência Doméstica e de Género – V PNPCVDG (2014/2017) aponta para a consolidação de políticas de prevenção e combate à violência doméstica e de género, mediante ações concertadas com as autoridades públicas e organizações não-governamentais, combinando novas metodologias e abordagens ao fenómeno, designadamente, ponderando procedimentos de resposta em situação de emergência. A medida 22 do V PNPCVDG preconiza a consolidação, em todo o território nacional, do sistema de proteção por Teleassistência. A consagração nos nos 4 e 5 do artigo 20º, da Lei nº 112/2009 de 16 de setembro, bem como a entrada em vigor da Portaria nº 220-A/2010 de 16 de abril, alterada pela Portaria nº 63/2011, de 3 de fevereiro, estabeleceram as condições normativas necessárias à utilização inicial dos meios técnicos de Teleassistência, que assegurem à vítima de violência doméstica uma forma específica de proteção, organizada em torno de um sistema tecnológico que integra um leque de respostas/intervenções que vão do apoio psicossocial à proteção policial, por um período não superior a 6 meses. A Teleassistência a vítimas de Violência doméstica surgiu da necessidade de garantir proteção e segurança às vítimas e diminuir o seu risco de revitimização. A Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) é o organismo da administração pública com competência para instalar, assegurar e manter em funcionamento os sistemas técnicos de teleassistência, podendo recorrer, para o efeito, à celebração de parcerias (designadamente, para aquisição dos equipamentos e disponibilização de um Centro de Atendimento Telefónico a funcionar 24H/dia, 365 dia/ano). A Teleassistência a vítimas de violência doméstica (TVD) tem como objetivo fundamental aumentar a proteção e segurança da vítima, garantindo, 24 horas por dia e de forma gratuita, uma resposta adequada quer a situações de emergência, quer em situações de crise. A TVD preconiza os seguintes objetivos específicos: • Garantir uma intervenção imediata e adequada em situações de emergência, através de uma equipa especializada e da mobilização de recursos técnicos (policiais, ou outros) proporcionais ao tipo de emergência e de situação apresentada; Quem é o público-alvo beneficiário do serviço? Tem acesso à TVD a vítima de violência doméstica a quem, o juiz ou, durante a fase de inquérito, o Ministério Público, tenha determinado a sua proteção por Teleassistência, em razão dos riscos de revitimização e das necessidades específicas de segurança identificadas. A decisão só pode ser tomada após a vítima prestar o seu consentimento livre e esclarecido. O apoio psicossocial e proteção por Teleassistência ser-lhe-ão assegurados, por um período de tempo não superior a seis meses, salvo se circunstâncias excecionais impuserem a sua prorrogação. Sem prejuízo da independência dos Tribunais e da autonomia do Ministério Público, considera-se que a TVD se adequa especialmente às seguintes situações: • Risco de revitimização: os/as magistrados/as podem solicitar às Forças de Segurança (FS) ou às estruturas de apoio à vítima, informação fundamentada sob a ponderação dos fatores de risco presentes em cada situação das/os futuras/os utentes. No que concerne às FS, importa ter em conta os fatores constantes da Ficha RVD - Avaliação de Risco em situações de Violência Doméstica. Importa, para o efeito, efetuar uma análise compreensiva do nível de risco, tendo em conta, para além do nível de risco proposto, o padrão de respostas (e se estão assinalados itens mais “críticos”), bem como a presença de outros fatores de risco. Para mais informações consultar o Manual da RVD; • Baixo suporte social da vítima: os casos de isolamento social e de ausência ou insuficiência de um qualquer suporte social (ex.: de familiares, amigos/as, colegas…) deverão ser equacionados para eventual integração na TVD, tendo em conta a vulnerabilidade que estas situações comportam; • Não coabitação com o agressor: considera-se contraproducente a inserção no sistema quando a vítima coabita com o/a agressor/a (a manutenção da relação comprometerá a eficácia ou a exequibilidade da medida, na medida em que poderá conduzir a uma utilização inadequada do equipamento e do serviço); • Ausência de sintomas de doença grave do foro psiquiátrico (por parte da vítima): é necessário ter em conta que sintomas depressivos e de ansiedade são normais em vítimas de violência doméstica, uma vez que podem decorrer da situação de vitimação, pelo que este tipo de situações não devem ser excluídas, a menos que se percecione que a sua intensidade seja de tal modo grave que possa conduzir a uma utilização inadequada do equipamento e do serviço. Já no caso da existência de psicopatologia que comprometa a correta utilização do serviço MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR Ver: http://www.igualdade.gov.pt/guiaderecursosvd/ 7.7. A teleassistência a vítimas de violência doméstica - 65 - Violê nc ia Domé s t ic a - - CAR ATER IZAÇÃO DO F ENÓMENO E R ESP O STA S A P TA S À SUA ER R ADICAÇÃO - CIG imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 66 - na sua totalidade – designadamente nos quadros psiquiátricos sem medicação adequada ou doença mental incapacitante – deverão ser equacionadas outras respostas de proteção e de segurança, que não a TVD; • Ausência de sinais de dependência de álcool ou de drogas (por parte da vítima): situações de dependência de substâncias como o álcool ou drogas podem conduzir a uma utilização inadequada do equipamento e do serviço; • Aplicação prévia ou em simultâneo de medida de coação de proibição de contactos: a aplicação de uma medida de proteção à vítima em simultâneo com a aplicação de uma medida de coação ao/à agressor/a (ex.: proibição de contactos, afastamento da residência…), poderá assegurar uma maior garantia de eficácia e de sucesso para ambas as medidas, convergindo para uma maior proteção à vítima; • Outras situações: os/as magistrados/as deverão ponderar a pertinência da aplicação da TVD, noutras situações (por ex. vítimas com deficiências e/ou incapacidades que possam comprometer a eficácia ou a exequibilidade da medida; vítimas que não falem português, entre outras). * Descrevamos o serviço. A TVD recorre a tecnologia adequada, garantindo às vítimas um apoio à distância que assegura uma resposta rápida, 24 horas por dia, 365 dias por ano, às seguintes necessidades da vítima: informação, apoio emocional e de proteção policial, quando se justifique. Para além do atendimento telefónico, o sistema tecnológico de suporte da TVD possibilita a localização georreferenciada da vítima, fulcral em situações de crise/emergência. A TVD utiliza equipamentos de comunicação da rede voz móvel que estão conectados diretamente ao Centro de Atendimento, que integra técnicos/as especificamente preparados/as para dar uma resposta adequada a cada situação. A entidade contratada, por via web, acede à plataforma de localização para obtenção dos mapas com o local de posicionamento da vítima. * Como é feita a avaliação da elegibilidade para TVD? A sinalização das vítimas elegíveis para beneficiarem do serviço pode ser feita, junto do Tribunal competente, pelas entidades que diretamente intervêm na problemática da violência doméstica, nomeadamente: 9 Forças de Segurança 9 Entidades previstas na rede nacional de apoio às vítimas de violência doméstica - artigo 53°, da Lei n° 112/2009, de 16/9 9 Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, quando já se encontra formalizada denúncia pelo crime de violência doméstica e sempre que tal se mostre imprescindível à proteção da vítima. O recurso à Teleassistência cessa por decisão judiciária, nos termos da legislação em vigor. A CIG e as Forças de Segurança podem propor ao Tribunal competente o cancelamento da TVD, designadamente, nas seguintes situações: MANUAL PLURIDISCIPLINAR • A vítima iniciar/reatar o contacto/convivência com o agressor, excetuando em situações previamente definidas e justificadas; • Haja incumprimento reiterado das obrigações e deveres da vítima de forma a impedir ou dificultar a prestação do serviço; • Quando diminuir significativamente o risco de revitimização; • Quando ao agressor tenha sido aplicada medida de coação de proibição de contactos, com recurso a Vigilância Eletrónica; • Quando se verifique uma utilização abusiva/inadequada do serviço. O Serviço de Teleassistência a Vítimas de Violência Doméstica, nos termos do art. 20°, da Lei n° 112/2009, de 16 de setembro, é gratuito. 8. O tratamento do agressor doméstico (PAVD) Ver: https://www.oa.pt/upl/%7Bbbe0cbaa-5794-4f2f-8a49-adf014f72d39%7D.PDF. (CIG) MANUAL PLURIDISCIPLINAR - 67 - II. Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 70 - - 1. BREVE REFERÊNCIA AOS PRINCIPAIS INSTRUMENTOS JURÍDICOS INTERNACIONAIS Os compromissos internacionais do Estado Português em matéria de Violência Doméstica/ Violência de Género são estes: Nações Unidas II A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA Enquadramento legal MANUAL PLURIDISCIPLINAR • Resolução da Assembleia Geral “Transformando Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, adotada a 25 de setembro de 2015, (A/ RES/70/1), na qual, entre outros, os Estados-membros se comprometem a “eliminar todas as formas de violência contra todas as mulheres e meninas nas esferas públicas e privadas, incluindo o tráfico e exploração sexual e de outros tipos”. • Conclusões Acordadas da 57ª sessão da Comissão sobre o Estatuto da Mulher, que decorreu de 4 a 15 de março de 2013, sobre “Eliminação e prevenção de todas as formas de violência contra mulheres e raparigas”. • Resoluções da Assembleia Geral sobre a intensificação dos esforços para eliminar todas as formas de violência contra as mulheres - 2006, 2007, 2008, 2009, 2010 e 2012. • Resoluções Violência contra mulheres trabalhadoras migrantes, da Assembleia Geral de 2001, 2003, 2005, 2007, 2009, 2011, 2013 e 2015. • Resoluções 1325 (2000), 1820 (2008), 1888 (2009), 1889 (2009), 1960 (2010), 2106 (2013), 2122 (2013) e 2242 (2015), do Conselho de Segurança da ONU sobre mulheres, a paz e a segurança. • Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 18 de dezembro, sobre Eliminação da Violação e outras formas de violência sexual em todas as suas manifestações, incluindo em conflito e situações relacionadas (A/RES/62/134). • Resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas de 12 de dezembro de 1997 sobre a prevenção do crime e as medidas de justiça penal para eliminar a violência contra as mulheres (A/RES/52/86), de 18 de dezembro de 2002 sobre a eliminação dos crimes contra as mulheres cometidos em nome da honra MANUAL PLURIDISCIPLINAR 71 - Violê nc ia Domé s t ic a - - ENQ UA DR A M E NTO L E G A L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 72 - - • • • • • • • • • (A/RES/57/179) e de 22 de dezembro de 2003 sobre a eliminação da violência doméstica contra as mulheres (A/RES) 58/147). Nesta última Resolução, a Assembleia Geral reconhece que a violência doméstica é uma questão de direitos humanos, com implicações imediatas e a longo prazo, condenando fortemente todas as formas de violência doméstica contra mulheres e meninas e apelando a uma eliminação da violência em contexto familiar. Declaração do Milénio das Nações Unidas, aprovada pela Resolução A/55/L.2 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 18 de setembro de 2000. ODM 3 – Promover a Igualdade de Género e Capacitar as Mulheres, que está ligado com as desvantagens estruturais das mulheres nas sociedades, incluindo a violência contra as mulheres e raparigas. No Protocolo Opcional relativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulheres, aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas a 6 de outubro de 1999, estabelece-se o direito das mulheres a pedirem reparação pela violação dos seus direitos humanos, incluindo em casos de violência com base no sexo. Estratégias e Medidas Práticas Modelo para a Eliminação da Violência contra as Mulheres no Domínio da Prevenção do Crime e da Justiça Penal, aprovadas pela Assembleia Geral, em 1997. Resolução da Assembleia Geral da ONU: O Papel do Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas pela Mulher na Eliminação da Violência contra as Mulheres, 22 de dezembro de 1995 (A/RES/50/166). Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres, de 20 de dezembro de 1993 (A/RES/48/104), aprovada pela Assembleia Geral, sob proposta inicial da Comissão sobre o Estatuto da Mulher. Relatórios dos Relatores Especiais do Alto-comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos sobre a violência contra as mulheres. A Comissão de Direitos Humanos, reunida em Genebra em 1993, decide estabelecer um Relator Especial sobre violência contra as Mulheres, incluindo as suas causas e consequências (Resolução 1994/45). Declaração para a Eliminação da violência contra as Mulheres (dezembro de 1993). Recomendação Geral nº 19 aprovada pelo Comité para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres, sobre Violência contra as Mulheres, no quadro da aplicação da Convenção CEDAW de 1979 (11.ª sessão, 1992). Recomendação Geral nº 14 sobre Mutilação Genital Feminina pela qual o Comité condenou claramente a prática da MGF (9.ª sessão, 1990). Resolução 40/36 sobre violência doméstica (1985) – a primeira resolução específica da Assembleia Geral –, em que se apelava para que se fizesse investigação, no âmbito da criminologia, sobre o desenvolvimento de estratégias para lidar com este problema. Apelava-se aqui para que os Estados-membros implementassem medidas específicas e o Secretário-geral elaborasse um relatório acerca da violência doméstica, a ser apresentado no 8º Congresso sobre Prevenção MANUAL PLURIDISCIPLINAR • • • • • • • • Criminal e Tratamento de Agressores que aprova, em setembro de 1990, uma Resolução sobre a Violência Doméstica. Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, de 18 de dezembro de 1979, entrada em vigor a 3 de setembro de 1981. Documentos programáticos aprovados quer nas conferências dedicadas especificamente às mulheres e à igualdade, quer em outras conferências em que as questões das mulheres têm sido incluídas como questões prioritárias: A Plataforma para a Ação de Pequim aprovada na 4ª Conferência Mundial sobre as Mulheres (1995) identificou a violência contra as mulheres como uma das 12 áreas criticas que exigem uma atenção especial e a adoção de medidas por parte dos governos, da comunidade internacional e da sociedade civil. Declaração e Programa de Ação aprovados na Cimeira para o Desenvolvimento Social (Compromisso V) (Copenhaga, 1995). Programa de Ação aprovado na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (Cairo, 1994), cujo capítulo 4º se centra na igualdade para as mulheres e para os homens e na promoção do estatuto das mulheres. Conferência das Nações Unidas sobre Direitos Humanos (Viena, 1993) reconheceu formalmente a violência contra as mulheres como uma violação dos direitos humanos. Programa Estratégias para o progresso das Mulheres até ao ano 2000 (Nairobi, 1985). Declaração sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres (1967). Conselho da Europa • Convenção para combater a violência sobre as mulheres e a violência doméstica – Convenção de Istambul: no dia 11 de maio de 2011, na reunião do Comité de Ministros do Conselho da Europa, Portugal assinou a Convenção, cujo processo de ratificação terminou, ao nível nacional, no dia 5 de fevereiro de 2013. Portugal tornou-se, assim, no terceiro Estado-Membro do Conselho da Europa e no primeiro da União Europeia a ratificar aquele que constitui o primeiro instrumento internacional juridicamente vinculativo a cobrir praticamente todas as formas de violência contra as mulheres. A Convenção de Istambul entrou em vigor no dia 1 de agosto de 2014. • Recomendação Rec (2002)5 sobre proteção das mulheres contra a violência (30 abril 2002). Na sequência desta Recomendação foi levada a cabo a Campanha para combater a violência contra as mulheres, incluindo a violência doméstica, lançada pelo Conselho da Europa, de 2006-2008 e que em Portugal teve como objetivo intensificar a luta contra este tipo de violência e salientar o papel da Comissão para a Igualdade do Género na promoção dos Direitos Humanos, apresentando as MANUAL PLURIDISCIPLINAR 73 - Violê nc ia Domé s t ic a - - ENQ UA DR A M E NTO L E G A L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 74 - - ações realizadas que visavam chamar a atenção para este problema na sociedade, e promover iniciativas de sensibilização nacional para o tema. • Recomendação R(90)2 sobre medidas sociais relativas a violência na família (15 janeiro 1990). • Recomendação R(85)4 sobre violência na família (26 março 1985). • Convenção Europeia dos Direitos Humanos (Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais), (modificada nos termos das disposições dos Protocolos nº 11 e 14), adotada em Roma, a 4 de novembro de 1950 e entrada em vigor na ordem internacional a 3 de setembro de 1953. União Europeia • • • • Resolução do Parlamento Europeu, que contém recomendações à Comissão sobre o combate à violência contra as mulheres, de 25 de fevereiro de 2014 [2013/2004(INL)]. • Diretiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2012, que estabelece normas mínimas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade e que substitui a Decisão-Quadro 2001/220/ JAI do Conselho. • Resolução do Parlamento Europeu sobre prioridades e definição de um novo quadro político comunitário em matéria de combate à violência contra as mulheres, de 5 de abril de 2011 [2010/2209(INI)]. • Pacto Europeu para a Igualdade entre Mulheres e Homens 2011-2020, adotado no Conselho EPSCO de 7 de março de 2011, onde os Estados reafirmam o seu empenho em combater todas as formas de violência contra as mulheres. • Diretrizes da UE relativas à violência contra as mulheres e à luta contra todas as formas de discriminação de que são alvo que visam a erradicação de todas as formas de violência sobre as mulheres no espaço da União Europeia. Pretende-se que sejam reforçados até 2015, em todos os Estados-Membros, os sistemas de prevenção, de proteção das vítimas e de penalização efetiva dos perpetradores. • Estratégia da Comissão para a igualdade entre homens e mulheres 20102015, apresentada em 21 de setembro. Enumera os compromissos da Comissão Europeia nesta matéria e centra-se nas cinco prioridades definidas na Carta das Mulheres, entre as quais se reforça, a dignidade, integridade e o fim da violência de género através de um quadro de ação específico. • Empenhamento reforçado na Igualdade entre Mulheres e Homens - Uma Carta das Mulheres - Declaração da Comissão Europeia por ocasião da celebração do Dia Internacional da Mulher 2010, em comemoração do 15º aniversário da MANUAL PLURIDISCIPLINAR • • • • • adoção de uma Declaração e Plataforma de Ação na Conferência Mundial sobre a Mulher da ONU, em Pequim, e do 30º aniversário da Convenção da ONU sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres. A Comissão comprometeu-se em intensificar os esforços para erradicar todas as formas de violência e prestar apoio a todas as pessoas por ela afetadas, a reforçar as ações para erradicar a mutilação genital feminina e outros atos de violência, incluindo por meio do direito penal, no âmbito dos poderes que lhe foram conferidos. Conclusões do Conselho EPSCO, de 8 de março de 2010, sobre a erradicação da violência contra as mulheres; e de 6 de março de 2012, sobre “Combater a violência contra as mulheres e disponibilizar serviços de apoio às vítimas da violência doméstica”. Resolução do Parlamento Europeu sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres, 26 de novembro de 2009. Declaração escrita de 21 de abril de 2009 sobre a campanha “Diga NÃO à violência contra as mulheres”. Resoluções do Parlamento Europeu sobre o combate à mutilação genital feminina na UE [2008/2071(INI)], 24 de março de 2009 e [2001/2035(INI)], 20 de setembro de 2001 . Resolução do Parlamento Europeu sobre a situação de direitos fundamentais na União Europeia 2004-2008 [2007/2145(INI)], 14 de janeiro de 2009, que sublinha que a violência de que as mulheres são alvo em razão do sexo, em especial a violência doméstica, deve ser reconhecida e combatida, a nível europeu e nacional, na medida em que se trata de uma violação frequente dos direitos das mulheres. O parecer do Comité Económico e Social Europeu sobre violência doméstica contra mulheres, de 2006, recomenda a adoção de uma estratégia europeia no combate à violência doméstica. Resolução do Parlamento Europeu sobre a atual situação e ações futuras no combate da violência contra as mulheres [2004/2220(INI)], 2 de fevereiro de 2006. Desde 1999, o Conselho da União Europeia aprova – todos os anos – conclusões sobre os indicadores e critérios de referência da Plataforma de Ação de Pequim, assegurando deste modo um acompanhamento anual mais focalizado e estruturado. Foi elaborada em 2002 uma série de indicadores quantitativos e qualitativos sobre a violência contra as mulheres. Na análise, foi solicitado aos governos que tomassem as medidas adequadas para eliminar a violência e a discriminação contra as mulheres por parte de qualquer pessoa, organização ou empresa, e que tratassem todas as formas de violência contra as mulheres e as raparigas como infrações penais. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 75 - Violê nc ia Domé s t ic a - - ENQ UA DR A M E NTO L E G A L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 76 - - OSCE Organização para a Segurança e Cooperação na Europa • Decisão 7/14 sobre Prevenção e combate à violência contra as mulheres, adotada no Conselho Ministerial, Basel, 2014. • Decisão 15/05 sobre Prevenção e combate à violência contra as mulheres, adotada no Conselho Ministerial, Liubliana, 2005. • Decisão 14/04 que adota o Plano de Ação para a promoção da Igualdade de Género, no parágrafo 44 alínea c), no Conselho Ministerial, Sofia, 2004. Ibero-americana • Declaração adotada na “III Conferência Ibero-americana de género: Género, transformação do Estado e Desenvolvimento”, que decorreu em Assunção Paraguai, nos dias 8 e 9 de junho de 2011. • O “Consenso de Brasília”, apresentado no final da XI Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e Caraíbas da CEPAL, estabelece compromissos de ação em diversas áreas, incluindo no combate a todas as formas de violência contra a mulher (2010). • Declaração do I Fórum Internacional Juventude e Violência de Género (2009) (Ibero-americana e CPLP). • Campanha Maltrato Zero – surgiu a partir da Cimeira Ibero-americana de El Salvador de 2008 onde se propôs à Secretaria-Geral Ibero-americana e à Organização Ibero-americana da Juventude desenvolver uma Campanha onde os/as jovens pudessem expressar a sua oposição à violência entre homens e mulheres. • Declaração de Luanda, aprovada na Reunião Extraordinária de Ministros/as Responsáveis pela Igualdade de Género da CPLP, que se realizou nos dias 10 e 11 de maio de 2011, sobre “Género, Saúde e Violência”, onde os/as Ministros/as reconheceram a violência contra as mulheres e a violência doméstica como uma grave violação dos Direitos Humanos e um problema de saúde pública. • Plano de Ação da CPLP para a Igualdade de Género e o Empoderamento das Mulheres (2011) e Plano Estratégico de Cooperação para a Igualdade de Género e o Empoderamento das Mulheres (2010) - Eixo 13 - Violência contra as Mulheres. • Resolução de Lisboa, aprovada na II Reunião de Ministros/as Responsáveis pela Igualdade de Género da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) Lisboa, 3 e 4 de maio de 2010, sobre “Género, Saúde e Violência” que reconhece que a violência contra as mulheres sob todas as suas formas constitui uma grave violação dos direitos humanos e das liberdades fundamentais das mulheres e um obstáculo à realização da Igualdade de Género e do empoderamento das mulheres. • Memorando de Entendimento para a promoção da igualdade de género entre Portugal e Cabo Verde, assinado a 9 de junho de 2010, durante a I Cimeira LusoCabo-verdiana, que decorreu em Oeiras, onde, entre outros, os dois Estados se comprometem em dar prioridade à eliminação da violência contra as mulheres, enquanto objetivo de longo prazo. • Memorando de Entendimento para a promoção da igualdade de género entre Portugal e Brasil, assinado na X Cimeira Portugal-Brasil, que decorreu em Lisboa a 19 de maio de 2010, onde, entre outros, os dois Estados se comprometem em dar prioridade à eliminação da violência contra as mulheres, enquanto objetivo de longo prazo. • Declaração de Lisboa, adotada na VII Conferência de Chefes de Estado e de Governo da CPLP, Lisboa, 25 de julho de 2008. Parágrafo 17: “Reiteraram a importância de ser promovida a igualdade de género na CPLP, dimensão que deve ser integrada em todas as políticas, estratégias, projetos e programas de cooperação levados a cabo pela Comunidade, permitindo, assim, […] (iv) promover a prevenção e o combate à violência de género”. (CIG) CPLP Comunidade dos Países de Língua Portuguesa • Declaração de Maputo, aprovada na III Reunião de Ministros/as Responsáveis pela Igualdade de Género da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), que se realizou no dia 14 de fevereiro de 2014, sobre “Os Desafios na Prevenção e Eliminação da Violência Baseada no Género”. MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 77 - Violê nc ia Domé s t ic a - - ENQ UA DR A M E NTO L E G A L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 78 - - 2. OS PLANOS NACIONAIS CONTRA A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA Nos últimos quase 40 anos, as agendas políticas internacional e nacional têm, paulatinamente, colocado a tónica na não discriminação de género e apelado à inclusão social das mulheres. A igualdade de direitos e de oportunidades está ressalvada no texto constitucional desde 1976 e a tarefa fundamental do Estado de promover a igualdade entre homens e mulheres, desde 1997. Desde os anos 90 do século XX, com o início da problematização da violência doméstica, nomeadamente da violência contra a mulher, reflexo das prioridades emergentes em instituições internacionais e regionais que apontavam para a necessária introdução da perspetiva de género na orientação das medidas políticas, Portugal tem assumido um conjunto de compromissos internacionais que enformam o combate à violência e que se espelham em medidas internas ao nível da violência — contra a mulher, doméstica e de género — da proteção dos direitos das vítimas e da responsabilização do agente agressor. Em 1991, a Lei nº 61/91, de 13 de agosto, visou reforçar os mecanismos de proteção legal devida às mulheres vítimas de crimes de violência, através da implementação de uma estrutura de prevenção e de apoio com, designadamente, centros de atendimento e acolhimento apoiados pelo Estado e a garantia do adiantamento da indemnização às vítimas de crime. Previa igualmente a criação de uma rede de apoio a mulheres vítimas de violência doméstica, e as três primeiras casas de abrigo abrem portas entre 1995 e 1999. O quadro geral da rede pública de casas de apoio a mulheres vítimas de violência, legislado em 1999, e a sua regulamentação no ano seguinte, firmam a opção do Governo de rentabilizar os “equipamentos sociais existentes e disponíveis” até à implementação da cobertura inicialmente prevista: “pelo menos uma casa de apoio em cada distrito do Continente e em cada uma das regiões autónomas” e, no mínimo, duas casas de apoio nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. Na sua génese, a rede pública de casas de apoio referia-se ao conjunto de casas de abrigo e centros de atendimento, definindo-se a gratuitidade dos serviços prestados pela rede pública. Atualmente e no âmbito Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, republicada pela Lei nº 129/2015, de 3 de setembro, que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas, a rede nacional de apoio a vítimas de violência doméstica compreende a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (a CIG), o Instituto de Segurança Social, as casas de abrigo, as estruturas de atendimento, as respostas de acolhimento de emergência e ainda as respostas específicas de organismos da administração pública. Cabe à CIG, entre outras, fazer a supervisão técnica da rede nacional de apoio às vítimas, bem como certificar as entidades cuja atividade releve para a sua integração naquela rede nacional de apoio. O diploma, que surge ainda durante a vigência do III PNCVD, considera a vítima como a pessoa que sofreu um dano no âmbito do crime de violência doméstica previsto no artigo 152º, do Código Penal. Para além disso, o diploma especifica a “vítima especialmente vulnerável” como o caso cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou “do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização ter resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social”. As mulheres admitidas nas casas de abrigo são, portanto, as vítimas do crime previsto no artigo 152º, do Código Penal. Em Portugal, nos últimos anos, assistiu-se a um aumento e a uma consolidação do apoio institucional prestado às vítimas de violência doméstica, não só por via do alargamento do número de respostas de acolhimento (neste momento, o território nacional, incluindo ambas as regiões autónomas, conta com 37 Casas de Abrigo, às quais correspondem 639 vagas de acolhimento prolongado – até seis meses, passíveis de prorrogação, conforme preconiza o Decreto Regulamentar nº 1/2006, de 25 de janeiro, e com 130 vagas para acolhimento de emergência, distribuídas pela rede nacional de casas de abrigo e por estruturas específicas criadas para o efeito), mas também pelo surgimento, em todo o território nacional, de estruturas de atendimento especializado (atualmente, ascendendo a mais de 100 respostas, embora sem uma distribuição homogénea por todo o território nacional). A consolidação destas respostas institucionais – essencialmente, geridas por organizações não-governamentais mas, na totalidade, subvencionadas pelo Estado Português (por via dos acordos estabelecidos com entidades da administração pública e/ou por via dos financiamentos comunitários) – surge num quadro mais amplo de produção legislativa em matéria de violência doméstica e assente nas prioridades definidas nos sucessivos Planos Nacionais Contra a Violência Doméstica que, desde 1999, delineiam a estratégia e política governamentais na prevenção e combate à violência doméstica e agora também de género. Desde então, verificou-se o reforço e a implementação de medidas, e, nos últimos anos, tem-se destacado a importância do apoio no acesso à educação, formação, emprego e habitação, elementos fulcrais para o processo de autonomização e de inclusão social das vítimas de violência doméstica, nomeadamente as acolhidas em casa de abrigo. Presentemente, Portugal executa o V PNPCVDG 2014-2017. Este Plano, em execução desde janeiro de 2014, vai ao encontro dos pressupostos da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica (Convenção de Istambul), entretanto ratificada pelo Estado Português, e aprofunda a intervenção nestas matérias. O V PNPCVDG estrutura-se em cinco áreas estratégicas 1) Prevenir, Sensibilizar e Educar; 2) Proteger as Vítimas e Promover a sua Integração; MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 79 - Violê nc ia Domé s t ic a - - ENQ UA DR A M E NTO L E G A L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 80 - - 3) Intervir junto de Agressores/as; 4) Formar e Qualificar Profissionais; 5) Investigar e Monitorizar, num total de 55 medidas. Os sucessivos planos nacionais têm colocado a tónica na necessária coordenação de atividades entre as instituições envolvidas no combate à violência doméstica e na proteção das vítimas de violência doméstica. É no sentido de resposta integrada que vale a pena analisar as áreas substanciais no apoio ao processo de inclusão social das vítimas de violência doméstica, nomeadamente as de grupos sociais mais desfavorecidos. (CIG) 3. EVOLUÇÃO DO CONCEITO NA ORDEM JURÍDICA NACIONAL Na ordem jurídica nacional, foi Eduardo Correia quem, pela primeira vez, propôs a autonomização do crime de maus tratos, nos artigos 166º e 167º do seu Projeto do Código Penal de 1966. A redação proposta era a seguinte (Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Especial, Lisboa, AAFDL, 1979, p. 78): “Artigo 166º Maus tratos a crianças O pai, mãe ou tutor de menor de 16 anos ou todo aquele que o tenha a seu cuidado, guarda ou a quem caiba a responsabilidade da sua direcção ou educação, e que, devido a malvadez, o trate cruelmente ou lhe inflija maus tratos físicos, não lhe preste os cuidados ou assistência à saúde que os deveres decorrentes das suas funções lhe impõem, e bem assim o empregue em profissões perigosas, proibidas ou desumanas, ou o sobrecarregue física ou intelectualmente, de forma a ofender a sua saúde, ou o seu desenvolvimento intelectual ou a expô-lo a grave perigo, será punido com prisão de 6 meses a 3 anos. Artigo 167º Sobrecarga de menores e de subordinados Quem, por malvadez ou egoísmo, empregar em profissões perigosas, proibidas ou desumanas ou sobrecarregue física ou intelectualmente, com trabalhos excessivos ou inadequados, menor de 21 anos, mulher grávida ou pessoa fraca de saúde ou de espírito, que lhe esteja subordinada por relação de trabalho, de maneira a ofender a sua saúde ou a expô-la a grave perigo, será punido com prisão de 3 meses e multa de 10 a 30 dias.” Este Projeto deve ser historicamente enquadrado, pois, à época, o marido tinha ainda o estatuto de chefe de família e era o titular do poder marital e paternal. Nesse contexto, o Autor do Projeto entendia que, apesar da sua natureza pública, esta incriminação se deveria dirigir apenas aos “casos mais chocantes de maus tratos a crianças e de sobrecarga de menores e subordinados”. Só com a Constituição da República Portuguesa se desencadeou uma profunda alteração no nosso direito da família e das crianças e jovens, com a consagração da igualdade entre os cônjuges e da direção conjunta da família, através da reforma do Código Civil levada a cabo pelo Decreto-Lei nº 496/77, de 15 de novembro. Certamente que esta nova visão sobre a família e os direitos dos seus membros não será alheia à redação definitivamente cunhada para o crime de maus tratos ou sobrecarga de menores e de subordinados ou cônjuges, consagrada no artigo 153º, do Código Penal de 1982. Artigo 153º (Maus tratos ou sobrecarga de menores e de subordinados ou entre cônjuges) 1 - O pai, mãe ou tutor de menor de 16 anos ou todo aquele que o tenha a seu cuidado ou à sua guarda ou a quem caiba a responsabilidade da sua direcção ou educação será punido com prisão de 6 meses a 3 anos e multa até 100 dias quando, devido a malvadez ou egoísmo: MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 81 - Violê nc ia Domé s t ic a - - ENQ UA DR A M E NTO L E G A L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 82 - - a) Lhe infligir maus tratos físicos, o tratar cruelmente ou não lhe prestar os cuidados ou assistência à saúde que os deveres decorrentes das suas funções lhe impõem; ou b) O empregar em actividades perigosas, proibidas ou desumanas, ou sobrecarregar, física ou intelectualmente, com trabalhos excessivos ou inadequados de forma a ofender a sua saúde, ou o seu desenvolvimento intelectual, ou a expô-lo a grave perigo. 2 - Da mesma forma será punido quem tiver como seu subordinado, por relação de trabalho, mulher grávida, pessoa fraca de saúde ou menor, se se verificarem os restantes pressupostos do nº 1. 3 - Da mesma forma será ainda punido quem infligir ao seu cônjuge o tratamento descrito na alínea a) do nº 1 deste artigo.” * Este normativo correspondia aos artigos 166º e 167º, do Projeto, mas com o importante alargamento dos sujeitos passivos e o agravamento das sanções no caso de sobrecarga na relação laboral. Assim, o artigo 153º, nº 1, previa a punição do pai, mãe, tutor ou todo aquele que tivesse a seu cuidado ou à sua guarda ou a quem coubesse a responsabilidade da direção ou educação de menor de 16 anos, que lhe infligisse maus tratos físicos, tratamentos cruéis, ou omissões nos cuidados ou assistência à saúde ou o empregasse em atividades perigosas, proibidas ou desumanas, ou sobrecarregasse, física ou intelectualmente, com trabalhos excessivos ou inadequados de forma a ofender a sua saúde, ou o seu desenvolvimento intelectual, ou a expô-lo a grave perigo, na pena de 6 meses a 3 anos e multa até 100 dias. O artigo 153º, nº 2, alargava a punição prevista no seu nº 1 a quem praticasse tais condutas relativamente a mulher grávida, pessoa fraca de saúde ou menor, seu subordinado, por relação de trabalho. Indo além do Projeto de Eduardo Correia, o nº 3 do citado normativo previa a punição do cônjuge que infligisse ao outro cônjuge maus tratos físicos, que o tratasse cruelmente ou não lhe prestasse os cuidados ou a assistência à saúde que os deveres decorrentes das suas funções lhe impunham. A doutrina e a jurisprudência dominantes exigiam a reiteração ou continuidade das condutas para que se mostrasse preenchido o elemento objetivo. Na verdade, o sentido literal da expressão “maus tratos” inculcava essa ideia. Porém, como notava Teresa Pizarro Beleza, “o sentido comum das palavras também abrange actos esporádicos” (Maus Tratos Conjugais: o art. 153º, 3 do Código Penal, Estudos Monográficos: 2, Lisboa: AAFDL, 1989). Quanto ao elemento subjetivo, a doutrina e jurisprudência maioritárias exigiam que, em todos os casos (nº 1, nº 2 e nº 3), o agente atuasse, além de dolosamente, com “malvadez ou egoísmo”. Divergia Teresa Pizarro Beleza deste entendimento (obra citada), pois entendia que este elemento subjetivo especial (malvadez ou egoísmo) era aplicável apenas nos casos dos nº 1 e nº 2, em que se pressupunha um predomínio do agressor sobre a vítima, e não aos casos previstos no nº 3, de maus tratos entre cônjuges. “Nos números 1 e 2 referem-se situações de subordinação (legal) em que pode haver abusos por parte de quem está investido de autoridade sobre o seu dependente. No nº 3, estatui-se sobre uma relação que é legalmente (ainda que não realmente) de paridade, de igualdade: por isso a previsão será necessariamente diferente”. MANUAL PLURIDISCIPLINAR A reforma penal de 1995 (Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de março) introduziu algumas importantes alterações. Foi eliminada a referência à malvadez ou egoísmo, foi estendida a proteção a pessoas idosas ou doentes, foram previstos ao lado dos maus tratos físicos os maus tratos psíquicos e as penas foram substancialmente agravadas. No que toca ao cônjuge, depois de se ter discutido se a sua proteção ainda corresponderia ao nosso quadro sociológico, foi decidida a manutenção da proteção ao cônjuge e a pessoa que convivesse com o agente em condições análogas à do cônjuge, com dependência de queixa, em vez da natureza pública anterior (artigo 152º, nº 2). O nº 2, do artigo 152º, sofreu alterações posteriores, pelas Leis nº 65/98, de 2 de setembro, e Lei nº 7/2000, de 27 de maio, no que tange à procedibilidade. A Lei nº 65/98 manteve a natureza semi-pública do crime, consagrando a possibilidade de o Ministério Público dar início ao procedimento se o interesse da vítima o impusesse e não houvesse oposição do ofendido antes de ser deduzida a acusação. Por sua vez, a Lei nº 7/2000 restaurou a natureza pública do crime e estendeu o âmbito de proteção aos progenitores de descendente comum em primeiro grau. Entretanto, a Lei nº 59/2007, de 4 de setembro, veio introduzir novas e profundas alterações no crime de maus tratos. Procedeu-se à separação entre a violência doméstica (artigo 152º), os maus-tratos (artigo 152º-A) e a violação de regras de segurança (artigo 152º-B). Também na descrição do facto típico houve evolução, deixando de ser necessária a reiteração e podendo os maus tratos consistir em castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais, assim como na definição de vítima, que passou a incluir a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges ainda que sem coabitação. Foram ainda introduzidas alterações nas circunstâncias agravantes e nas sanções acessórias e elevado o limite mínimo da pena de um para dois anos. A última alteração a esta incriminação resultou da Lei nº 19/2013, de 21 de fevereiro: estão agora abrangidas as relações de namoro, na alínea b), do nº 1; o conceito de pessoa particularmente indefesa foi alargado, sendo agora a referência à idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica meramente exemplificativas; a pena acessória de proibição de contacto com a vítima passou obrigatoriamente a incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância. Este percurso legislativo, nitidamente no sentido de priorizar a prevenção e a repressão deste flagelo, integra-se numa progressiva consciencialização ético-social da gravidade da violência doméstica e das suas devastadoras consequências na família e em cada um dos seus membros, com repercussões em toda a sociedade, que atravessa gerações e conduz, demasiadas vezes, à morte ou à incapacitação das vítimas, agressores e terceiros. (Catarina Fernandes) MANUAL PLURIDISCIPLINAR 83 - Violê nc ia Domé s t ic a - - ENQ UA DR A M E NTO L E G A L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 84 - - 4. O CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA O crime de violência doméstica tem atualmente a seguinte redação: Artigo 152º (Violência doméstica) 1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; c) A progenitor de descendente comum em 1º grau; ou d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos. 3 - Se dos factos previstos no nº 1 resultar: a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos; b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos. 4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica. 5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância. 6 - Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela por um período de um a dez anos. A - Bem jurídico Não existe, na doutrina e jurisprudência portuguesas, unanimidade quanto ao bem jurídico protegido por esta incriminação. Faremos, por isso, um breve levantamento sobre as posições mais representativas. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 1) Saúde A posição dominante tem sido e continua ainda a ser a sufragada por Américo Taipa de Carvalho, na sua anotação ao artigo 152º, do Código Penal (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, artigos 131º a 201º, 2ª Edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 511 e 512): “O art. 152º está, sistematicamente, integrado no Título I, dedicado aos “crimes contra as pessoas”, e, dentro deste, no Capítulo III, epigrafado de “crimes contra a integridade física”. A ratio do tipo não está, pois, na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional ou laboral, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana”. (…) Portanto, deve entender-se que o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde - bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental; e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade da criança ou do adolescente, agravem as deficiências destes, afectem a dignidade pessoal do cônjuge (ex-cônjuge, ou pessoa com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges), ou prejudiquem o possível bem-estar dos idosos ou doentes que, mesmo que não sejam familiares do agente, com este coabitem”. Na Doutrina, a posição de Américo Taipa de Carvalho conta com a concordância, entre outros, de: - Catarina Sá Gomes (O Crime de maus tratos físicos e psíquicos infligidos ao cônjuge ou ao convivente em condições análogas às dos cônjuges, 1ª reimpressão, Lisboa: Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2004, p. 59); - Maria Elisabete Ferreira (Da intervenção do Estado na Questão da Violência Conjugal em Portugal, Coimbra: Almedina, 2005, p. 102); - Maria Manuela Valadão e Silveira (Sobre o crime de maus tratos conjugais, in Do crime de Maus Tratos, Cadernos Hipátia - nº 1, Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres CIDM, Lisboa, 2001, p 19 e 20); - Jorge dos Reis Bravo (A actuação do Ministério Público no âmbito da Violência doméstica, Revista do Ministério Público, nº 102 - abril/junho 2005, p. 45 a 77, p. 66); - Ricardo Jorge Bragança de Matos (Dos maus tratos a cônjuge à violência doméstica: um passo à frente na tutela da vítima?, Revista do Ministério Público, nº 107 - julho/setembro 2006, p. 89 a 120, p. 96); - Plácido Conde Fernandes (Violência Doméstica, Revista do CEJ, nº 8, 1º semestre 2008 - Número Especial (Textos das Jornadas Sobre a Revisão do Código Penal); - Carlos Casimiro e Maria Raquel Mota (O crime de violência doméstica: a al. b) do nº 1 do art. 152° do Código Penal, Revista do Ministério Público, nº 122 - abril/ junho 2010, p.133-175); - M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio (Código Penal - Parte geral e especial - com notas e comentários, Coimbra: Almedina, 2014, p. 615-623); e - Nuno Brandão (A Tutela penal especial reforçada da violência doméstica, Julgar, nº 12 – especial –, 2010, p. 9-24). MANUAL PLURIDISCIPLINAR 85 - Violê nc ia Domé s t ic a - - ENQ UA DR A M E NTO L E G A L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 86 - - Na Jurisprudência vejam-se, a título de exemplo, os seguintes arestos: • Ac TRP de 05/11/2003 (processo 0342343, relatora Isabel Pais Martins): “Pode, pois, dizer-se que o bem jurídico protegido é a saúde, enquanto bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental que pode ser afectado por toda uma multiplicidade de comportamentos que atinjam a dignidade pessoal do cônjuge ou equiparado”; • Ac. TRP de 06/02/2013 (Processo 2167/10.0PAVNG.P1, relator Coelho Vieira): “O bem jurídico protegido por este tipo legal de crime é a saúde, entendida esta enquanto saúde física, psíquica e mental e, por conseguinte, podendo ser afectada por uma diversidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal desenvolvimento de uma pessoa e/ou afectem a dignidade pessoal e individual do cônjuge”; • Ac TRP de 30/01/2008 (Processo 0712512, relatora Maria Leonor Esteves): “O bem jurídico protegido pela norma “é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos” nomeadamente os que “afectem a dignidade pessoal do cônjuge”; • AC TRP de 22/09/2010 (processo 1885/07.5PAVNG.P1, relator José Carreto): “Infligir maus tratos físicos e/ou psíquicos, significa na economia do artigo 152º/2 CP, pôr em causa a saúde do ofendido nas suas diversas vertentes: física (ofensa à integridade física), psíquica (humilhações, provocações, ameaças, coação ou moléstias), desenvolvimento e expressão da personalidade e dignidade pessoal (castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais, etc.) - que constituem o complexo bem jurídico protegido pela norma incriminadora (…)”; • Ac TRC 28/04/2010 (Proc. 13/07.1GACTB.C1, relator Alberto Mira). No mesmo sentido, cfr. os seguintes arestos, relatados pelo mesmo Desembargador: Ac TRC 22/09/2010, Proc. 179/09.6TAMLD.C1, e Ac TRC 15/12/2010, Proc. 512/09.0PBAVR.C1): “O artigo acabado de citar tutela a protecção da saúde, bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, o qual pode ser ofendido por toda a multiplicidade de comportamentos que afectam a dignidade pessoal do cônjuge. Assim, não é suficiente qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para o preenchimento do tipo legal. «O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à degradação pelos maus-tratos”. 2) Dignidade da pessoa humana Encontram-se na Doutrina e na Jurisprudência algumas posições que, alargando amplamente o objeto de tutela do crime de violência doméstica, o reconduzem à dignidade da pessoa humana. Neste sentido, Augusto Silva Dias defende que este crime visa proteger a integridade corporal, a saúde física e psíquica e dignidade da pessoa humana (Materiais para o estudo da Parte Especial do Direito Penal, Crimes contra a vida e a MANUAL PLURIDISCIPLINAR integridade física, 2.ª edição, Lisboa: AAFDL, 2007, p. 110). Também Sandra Inês Feitor defende esta tese (Análise crítica do crime de violência doméstica [Em linha], 2012, disponível na Internet em: <URL http://www.fd.unl.pt/Anexos/5951.pdf >). Na Jurisprudência, são exemplo os seguintes acórdãos: • Ac. TRC de 29/01/2014 (Proc. 1290/12.1PBAVR.C1, relator Jorge Dias): “1.- No crime de violência doméstica, tutela-se a dignidade humana da vítima. 2.- Neste crime não se demanda a prática habitual dos atos ou a repetitividade das condutas, o normativo prevê tanto situações repetitivas ou plúrimas como situações de natureza una. 3.- O crime de violência doméstica apenas exige que alguém, de modo reiterado ou não inflija maus tratos físicos ou psíquicos no âmbito de um relacionamento conjugal, ou análogo, e determinada por força desse relacionamento e que, por força das lesões verificadas, se entenda que tenha ofendido a dignidade da vítima”. • Ac TRC de 20-01-2016 (processo 835/13.4GCLRA.C1, relatora Alice Santos): “I No crime de violência doméstica, o bem jurídico protegido pela incriminação e, como vem referido no ac. do STJ de 30/10/2003, proferido no Proc. nº 3252/035ª, in CJSTJ, 2003, III, pg 208 e segs., é, em geral, o da dignidade humana, e, em particular, o da saúde, que abrange o bem estar físico, psíquico e mental, podendo este bem jurídico ser lesado, por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade pessoal do cônjuge e, nessa medida, seja susceptível de pôr em causa o supra referido bem estar. II - Para a realização do crime torna-se necessário que o agente reitere o comportamento ofensivo, em determinado período de tempo, admitindo-se, porém, que um singular comportamento bastará para integrar o crime quando assuma uma intensa crueldade, insensibilidade, desprezo pela consideração do outro como pessoa, isto é, quando o comportamento singular só por si é claramente ofensivo da dignidade pessoal do cônjuge”. 3) Integridade pessoal José Francisco Moreira das Neves (Violência Doméstica - Bem jurídico e boas práticas, Revista do CEJ, XIII, 2010, p. 43-62), recordando que o tipo objetivo do ilícito de violência doméstica inclui condutas que se consubstanciam em violência ou agressividade física, psicológica, verbal e sexual, conclui que o bem jurídico é a integridade pessoal, uma vez que a tutela da saúde, abrangendo a saúde física, psíquica e mental, “ficará aquém da dimensão que a Constituição dá aos direitos que este tipo de ilícito visa tutelar”. 4) Integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra Também Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2008, p. 404) discorda da posição maioritária na doutrina e jurisprudência nacionais, entendendo que “os bens jurídicos protegidos pela incriminação MANUAL PLURIDISCIPLINAR 87 - Violê nc ia Domé s t ic a - - ENQ UA DR A M E NTO L E G A L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 88 - - são a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e até a honra”. Na jurisprudência, em sentido similar, veja-se o Ac. do TRE de 08-01-2013 (processo 113/10.0TAVVC.E11, relator João Gomes de Sousa): “(…) 2 - O bem jurídico tutelado pelo tipo é complexo, incluindo a saúde física, psíquica e emocional, a liberdade de determinação pessoal e sexual da vítima de atos violentos e a sua dignidade quando inserida numa relação ou por causa dela. 3 - A expressão “maus tratos”, fazendo apelo à “imagem global do facto”, pressupõe, no pólo objetivo, uma agressão ou ofensa que revele um mínimo de violência sobre a pessoa inserida em relação; subjectivamente uma motivação para a agressão, ofensa, achincalhamento, menosprezo; o reflexo negativo e sensível na dignidade da vítima, por via de uma ofensa na sua saúde física, psíquica ou emocional, ou na sua liberdade de autodeterminação pessoal ou sexual. 4 - A “micro violência continuada” é punível pelo artigo 152º do Código Penal”. 5) Integridade pessoal e livre desenvolvimento da personalidade André Lamas Leite tem um posicionamento diferente do tradicional e dominantes [A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o direito e a criminologia, Julgar, nº 12 (especial), 2010, p. 25-66, e Penas Acessórias, questões de género, de violência doméstica e o tratamento jurídico-criminal dos “shoplifters”, in As alterações de 2013 aos Código Penal e de Processo Penal: uma reforma “cirúrgica?”, Organização André Lamas Leite, Coimbra Editora, Coimbra, 2014]. Para este autor, o bem jurídico protegido por esta incriminação é, por natureza, multímodo, reconduzindo-se à integridade pessoal e o livre desenvolvimento da personalidade: “o fundamento último das acções e omissões abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo. (…) O bem jurídico que identificámos é uma concretização do direito fundamental da integridade pessoal (art. 25º, da Constituição), mas também do direito ao livre desenvolvimento da personalidade (art. 26º, nº 1, da Constituição), nas dimensões não recobertas pelo art. 25º, da lei fundamental, ambos emanações directas do princípio da dignidade da pessoa humana. E encarnando ambos os dispositivos constitucionais não somente em uma perspectiva negativa abstencionista erga omnes, mas, outrossim, de índole positiva prestacionista face ao Estado. (…) Outra virtualidade que identificamos no bem jurídico preconizado consiste em assinalar, ab initio, na hermenêutica do tipo, a especial relação que intercede entre o agente e o ofendido, a qual é sempre de proximidade, se não física, ao menos existencial, ou seja, de partilha (atual ou anterior) de afectos e de confiança em um comportamento não apenas de respeito e abstenção de lesão da esfera jurídica da vítima, mas até de atitude pró-activa, porquanto em várias das hipóteses do art. 152º são divisáveis deveres laterais de garante. (…) Dito de modo breve, é da adição entre essa especial relação de confiança que deve existir entre quem partilha vivências próximas e que torna mais reprovável a conduta do art. 152 quando comparada com outras constelações típicas similares e a degradação da dignidade da pessoa em que consistem as MANUAL PLURIDISCIPLINAR factualidades abrangidas no tipo que resulta o núcleo fundamentador do delito, justificador do recorte do interesse juridicamente tutelado”. B-Tipo objetivo O agente da infração Relativamente ao seu agente, o crime de violência doméstica tem subjacente a existência duma especial relação entre o agente e a vítima, de natureza familiar ou para-familiar. Trata-se por isso mesmo de um crime específico, porque nele o agente só pode ser uma pessoa humana que tenha uma especial relação com a vítima, decorrendo dessa relação especiais deveres para aquele: • cônjuge ou ex-cônjuge [alínea a)] • pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação [alínea b)] • progenitor de descendente comum em 1º grau [alínea c)] • ou pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão de idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que coabite com o autor [alínea d)]. Para Américo Taipa de Carvalho (obra citada), pode tratar-se de um crime específico próprio ou impróprio, consoante a especial relação entre o agente e a vítima fundamente a ilicitude e, consequentemente, a responsabilidade penal, ou apenas as agrave. Paulo Pinto de Albuquerque (obra citada, p. 405) qualifica este crime como específico impróprio, considerando que a “ilicitude é agravada em virtude da relação familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima”. Na jurisprudência, em sentido similar, veja-se o Ac. do TRE de 08-01-013 (processo 113/10.0TAVVC.E11, relator João Gomes de Sousa): “I - O crime de violência doméstica crime específico impróprio ou impuro e de perigo abstrato – pode criar uma relação de concurso aparente de normas com outros tipos penais, designadamente as ofensas corporais simples (artigo 143º, nº 1, do Código Penal), as injúrias (artigo 181º), a difamação (artigo 180º, nº 1), a coação (artigo 154º), o sequestro simples (artigo 158º, nº 1), a devassa da vida privada [artigo 192º, nº 1. al. b)], as gravações e fotografias ilícitas [artigo 199º, nº 2, al b)]”. Relação entre agente e vítima Relação de intimidade Caraterística essencial desta incriminação é a relação especial entre a vítima e o agente, embora esta possa assumir uma multiplicidade de formas. Assim, agente e vítima podem ser parceiros íntimos, ligados entre si pelo casamento, por uma relação análoga à dos cônjuges, ou por uma relação de namoro. Essencial, como aponta André Lamas Leite [A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o direito e a criminologia, Julgar, nº 12 (especial), 2010, p. 25-66, p. 52], é a existência de “uma certa estabilidade em tal relação interpessoal, que se não presume apenas e tão-só do vínculo formal do casamento (…), mas da existência de uma proximidade existencial efectiva”. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 89 - Violê nc ia Domé s t ic a - - ENQ UA DR A M E NTO L E G A L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 90 - - A conjugalidade reporta-se a contextos relacionais de intimidade entre adultos, o mesmo sucedendo com a união de facto, embora neste último caso o casal não seja legitimado pelo casamento, mas pela opção de viver em conjunto (Chiara Saraceno e Manuela Naldini, Sociologia da Família, 2ª Edição Atualizada, Lisboa: Editorial Estampa, 2003, p. 59 ss). No casamento e na união de facto, a proximidade existencial afetiva traduz-se normalmente numa comunhão de vida (implicando comunhão de cama, mesa e habitação, tendencialmente duradoura e estável) e num projeto de vida comum (nomeadamente a existência de filhos em comum). Todavia, cada vez mais apresentam cambiantes muito diversos, sendo possível encontrar situações de comunhão de vida sem que haja coabitação, ou em que os projetos em comum sejam poucos ou inexistentes. O conceito de namoro é normalmente associado às relações de intimidade entre jovens [Sónia Caridade e Carla Machado, Violência nas relações juvenis de intimidade: uma revisão da teoria, da investigação e da prática, Psicologia, Vol. XXVII (1), 2013, Lisboa: Edições Colibri, pp. 91-113 e Sónia Caridade e Carla Machado, Violência na intimidade juvenil: Da vitimação à perpetração, Análise Psicológica (2006), 4 (XXIV), p. 485-493], em que não há uma comunhão de vida, mas pode haver projetos em comum. Sobre a relação de namoro, veja-se, na jurisprudência: • Ac. TRP de 15/01/2014 (relator José Carreto): “I- Uma relação de namoro não constitui uma “relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação”, expressa no art. 152º nº 1, al. b), do Cód. Penal. II- Para que tal aconteça, a relação amorosa tem de ser estável e constituir o desenvolvimento de um projeto comum de vida do casal, exigindo-se uma relação próxima do ambiente familiar com sentimentos de afetividade, convivência, confiança, conhecimento mútuo, atos de intimidade, partilha da vida em comum e cooperação mútua”. • Ac. TRC de 24-04-2012 (processo 632/10.9PBAVR.C1, relator Orlando Gomes): “1.- O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica, agora autonomizado do crime de maus tratos a que alude o art.152-A, do Código Penal, continua a ser plural, complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física e psíquica e a dignidade da pessoa humana, em contexto de relação conjugal ou análoga e, atualmente, mesmo após cessar essa relação; 2.- Com a Revisão de 2007, deixou de ser necessária a coabitação e, consequentemente, de se exigir a ideia de comunhão de cama e habitação, mas não pode deixar de se exigir, no tipo objetivo, um caráter mais ou menos estável de relacionamento amoroso, aproximado ao da relação conjugal de cama e habitação; 3.- Inexistindo na factualidade provada quaisquer factos descrevendo o relacionamento entre arguido e ofendida, durante os breves meses que durou o namoro, que permitam concluir que os mesmos mantinham uma relação estável análoga à dos cônjuges, que tenha permitido criar uma ligação afetiva de domínio do arguido sobre a ofendida e de sujeição desta àquele, não integra o círculo das vítimas de violência doméstica a que alude a al. b), nº 1, do art. 152º, do C.P., isto é, de pessoa de outro sexo com quem o agente tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação”. • Ac TRP de 30-09-2015 (pro. 3299/14.1TAMTS.P1, relator Horácio Correia Pinto): “Sendo elemento do crime de violência doméstica o namoro tal como a relação análoga à dos cônjuges deve ser caraterizada por sólidos e indesmentíveis elementos fácticos que a comprovem”. Questiona André Lamas Leite (Penas Acessórias, questões de género, de violência doméstica e o tratamento jurídico-criminal dos “shoplifters”, in As alterações de 2013 aos Código Penal e de Processo Penal: uma reforma “cirúrgica?”, Organização André Lamas Leite, Coimbra: Coimbra Editora, 2014, p. 54 e 55), “Que requisitos se exigirão para se configurar uma factualidade como de ‘namoro’? Haverá um tempo mínimo desta relação? E poderá o Direito, ademais penal, imiscuir-se no conteúdo, na profundidade, na seriedade desses sentimentos?”, acabando por concluir que “o alargamento do tipo objetivo do art. 152º a praticamente todos os modos de estabelecimento de relacionamento íntimo entre pessoas torna muito complexa a tarefa de desenhar as fronteiras entre cada um deles”. As dificuldades probatórias são ainda maiores sempre que tais relacionamentos já terminaram, o que motiva aquele Autor a sugerir a inclusão de uma “baliza temporal” quanto ao momento a partir do qual as condutas praticadas contra anterior parceiro íntimo deixam de ter relevância, fixando-a em dois ou três anos. A propósito de relações findas, vejam-se, por ex.: • Ac. TRC de 27/02/2013 (relator Abílio Ramalho, proc. 288/12.4GBILH.C1): “Não obstante os factos se reportem a época subsequente ao termo da efetiva coabitação em união de facto do arguido com a ofendida, é inequívoco que sequencia o padrão de assumpta supremacia e/ou poder de sujeição sobre a sua ex-companheira, associado a arrebatado sentimento de referente ascendência de autoridade de género, sexual, física e psicológico-emocional, potencialmente condicionante e/ou compressor da correspetiva dignidade, integridade e liberdade e com tal contexto convivencial ainda manifestamente correlacionado, e como tal integradores do crime de violência doméstica”. • Ac TRP de 17-06-2014 (processo 286/12.8PBMTS.P1, relator Neto de Moura): “I - Na revisão do Código Penal operada pela Lei n° 59/2007, de 4 de setembro, o legislador não se limitou a autonomizar o crime de Violência doméstica mas também alargou o âmbito das condutas tipicamente relevantes, passou a punir mais severamente algumas dessas condutas (com relevo para os casos em que o facto é praticado contra menor ou na presença de menor) e aumentou o número de sanções acessórias. II - A reiteração de atos de agressão física e psíquica que desprezam a vontade da ofendida querendo forçá-la a reatar uma relação através do uso de ameaças graves que violam a sua liberdade de determinação, tranquilidade e segurança atinge, intoleravelmente, o núcleo essencial do bem jurídico protegido pelo crime de Violência doméstica”. Concordamos com André Lamas Leite, quando se pronuncia no sentido de que não basta que agressor e vítima tenham tido, no passado, um qualquer relacionamento íntimo. Porém, em vez de um critério formal, que atenda ao tempo decorrido desde o fim do relacionamento, propomos um critério material, que independentemente do tempo MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 91 - Violê nc ia Domé s t ic a - - ENQ UA DR A M E NTO L E G A L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 92 - - decorrido deste então, atenda à manutenção ou não de laços afetivos entre os ex-cônjuges, ex-companheiros ou ex-namorados, ou à vontade do agressor de manter a ligação à vítima, seja com o intuito de retomar o relacionamento, seja com o intuito de sobre ela continuar a exercer domínio e controlo ou, simplesmente, de a penalizar. Este critério atende aos casos, muito frequentes, em que o agressor continua a perseguir e a importunar a vítima, indiferente ao desejo desta de terminar o relacionamento. É esse o caso subjacente ao Ac. TRP de 11-03-2015 (processo 91/14.7PCMTS.P1, relator Pedro Vaz Patto): “(…) II - Pode enquadrar-se no crime de Violência doméstica a conduta que se reveste das notas caraterísticas do chamado stalking, isto é, uma perseguição prolongada no tempo, insistente e obsessiva, causadora de angústia e temor, com frequência motivada pela recusa em aceitar o fim de um relacionamento”. O relacionamento íntimo (casamento, união de facto ou namoro) não tem de ser exclusivo, como sucede, cfr. no caso subjacente ao Ac. TRC de 27/02/2013 (relator Belmiro Andrade, Proc 83/12.0GCGRD.C1: “O arguido, casado com outra mulher, com quem vive, mas que mantém, há mais de dez anos, paralelamente, um relacionamento amoroso com a ofendida, ainda que sem coabitação, consubstancia com esta uma relação análoga à dos cônjuges e por essa razão susceptível de integrar o núcleo das vítimas de violência doméstica”. Em suma, todas estas formas de relacionamento podem ser atuais ou não, exclusivas ou não, com coabitação ou não, e independentemente do género e orientação sexual das pessoas envolvidas. Importa, em todos os casos, que haja uma proximidade existencial afetiva, que se materializa em vínculos afetivos e numa certa duração e estabilidade, pelo menos, de alguns meses de duração. No caso de relações pretéritas, mais do que estabelecer um prazo máximo de validade, é necessário que entre os anteriores parceiros íntimos se mantenham laços afetivos ou que, pelo menos da parte do agressor, se evidencie a vontade de manter a ligação à vítima. Relação entre vítima e agente quando ambos são progenitores de descendente comum em primeiro grau Como é sabido, a violência doméstica não se cinge à violência nas relações de intimidade, havendo muitas outras formas, dentre as quais se destacam, pela sua frequência e gravidade, a violência contra crianças e a violência contra idosos e adultos dependentes. Atenta a esta realidade, a norma incriminadora [alínea c), do nº 1, do citado artigo 152º] protege também as relações entre a vítima e o agressor quando ambos são progenitores de descendente comum em primeiro grau. Pretende-se aqui alargar o âmbito de tutela às relações de parentalidade, decorrentes de relacionamentos íntimos ocasionais e fortuitos, em que não existe nem nunca existiu uma verdadeira vinculação afetiva, de que resultaram filhos em comum. A existência de filhos em comum cria obrigatoriamente laços entre os progenitores, suscetíveis de desencadear conflitos e violência. MANUAL PLURIDISCIPLINAR Outras relações familiares ou para-familiares, desde que a vítima coabite com o agente e seja particularmente indefesa A alínea d), do nº 1, do citado artigo 152º, alarga o âmbito de proteção a outras relações familiares ou para-familiares, desde que a vítima coabite com o agressor e seja pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica. Como certeiramente nota André Lamas Leite (Penas Acessórias, questões de género, de violência doméstica e o tratamento jurídico-criminal dos “shoplifters”, in As alterações de 2013 aos Código Penal e de Processo Penal: uma reforma “cirúrgica?”, Organização André Lamas Leite, Coimbra: Coimbra Editora, 2014, p. 58), para a apreciação em concreto da eventual posição de dependência ou de inferioridade real da vítima, “especial sensibilidade às condicionantes sociais, culturais, de mundividência e, quando existam, até de convicções religiosas, se exige, aqui, ao magistrado judicial”. A circunstância de a vítima ser particularmente indefesa deve ser apreciada em concreto. Pode resultar, desde logo, das suas caraterísticas pessoais, relacionadas com a sua diminuta ou adiantada idade, de estar grávida, ser portadora de doença ou afetação grave da sua funcionalidade, de pertencer a minoria etnicocultural ou estar numa situação de pobreza, exclusão social, ou dependência económica. O modo como agressor e vítima se relacionam entre si é igualmente suscetível de deixar esta última particularmente indefesa. Na verdade, a comunidade de vida e eventuais vínculos de dependência unilateral ou recíproca podem criar na vítima a convicção de que é merecedora dos maus tratos ou de que os tem de suportar. Atente-se, por exemplo, nos casos em que o agressor é um jovem adulto ou adulto que vive em casa dos pais (não necessariamente idosos ou portadores de doença ou afetação grave da sua funcionalidade) e é por eles sustentado. Ou nos casos em que o agressor é um adulto ou idoso portador de doença ou afetação grave da sua funcionalidade, que maltrata o seu cuidador, que com ele reside. Nestes casos, eventuais remorsos relativamente ao tratamento prestado ao agressor na sua infância e juventude, o cumprimento de deveres de solidariedade, ou o receio de ser abandonada ou institucionalizada, podem deixar a vítima especialmente exposta e desprotegida. Condutas A conduta típica consiste em infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, de modo reiterado ou não. Os maus tratos físicos são os mais simples de reconhecer, embora não sejam os mais frequentes. Podem traduzir-se em ações muito diversas, incluindo bofetadas, murros, pontapés, beliscões, empurrões, abanões, puxões de cabelo, mordeduras, compressões de partes do corpo com as mãos ou objetos, traumatismos com objetos, queimaduras, intoxicações, ingestão ou inalação forçadas, derramamento de líquidos, imersão da vítima ou de partes do seu corpo. Podem também decorrer da omissão de cuidados indispensáveis à vida, saúde e bem-estar da vítima (relativamente a vítimas dependentes ou indefesas, nomeadamente em razão da idade ou do estado de saúde) (Teresa Magalhães, Violência e MANUAL PLURIDISCIPLINAR 93 - Violê nc ia Domé s t ic a - - ENQ UA DR A M E NTO L E G A L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 94 - - Abuso – Respostas Simples para Questões Complexas, Estado da Arte, Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010). Os maus tratos psíquicos são mais difíceis de caraterizar, porque se podem traduzir numa multiplicidade de comportamentos ativos e omissivos, verbais e não verbais, dirigidos direta ou indiretamente à vítima, que atingem e prejudicam o seu bem-estar psicológico, nomeadamente ameaçar, insultar, humilhar, vexar, desvalorizar, culpabilizar, atemorizar, intimidar, criticar, desprezar, rejeitar, ignorar, discriminar, manipular e exercer chantagem emocional sobre a vítima (Teresa Magalhães, Violência e Abuso…, cit.). A modalidade mais grave de violência doméstica, que alguns autores designam por “intimate terrorism” (Michael P. Johnson, A typology of domestic violence - intimate terrorism, violent resistance, and situational couple violence, Boston, Northeastern University Press, 2008) e outros por “coercive control” (Evan Stark, How men entrap women in personal life, Oxford, Oxford University Press, 2007), tem como particularidade a circunstância de o objetivo do agressor ser alcançar um total controlo e poder sobre a vítima. Nestes casos, a conduta do agressor, geralmente do sexo masculino, é delineada a médio/longo prazo e, começando muitas vezes de forma insidiosa, com comportamento aparentemente movidos por romantismo, dependência afetiva e/ou ciúme, vai-se progressivamente convertendo numa estratégia global em que, através de diferentes formas de intimidação, isolamento, vigilância e perseguição da vítima, o agressor intenta que aquela fique completamente na sua dependência e à sua mercê. Esta modalidade não se distingue pela frequência ou severidade dos maus tratos físicos, porque, embora tendencialmente se verifique uma escalada da violência, casos há em que são pouco frequentes e causadores de nenhumas ou de leves lesões. De realçar é o facto de não se traduzir num comportamento isolado nem sequer num conjunto de comportamentos isolados, mas configurar verdadeiramente um padrão de comportamento do agressor, que perpassa todo o relacionamento com a vítima, o qual, quando instalado, tendencialmente permanece no tempo e tem efeitos cumulativos. Note-se que dos maus tratos podem ou não resultar consequências, sendo as consequências mais comuns as lesões, isto é, marcas ou vestígios da agressão sofrida. Contudo, a magnitude das consequências depende não só dos próprios maus tratos, mas de muitos outros fatores, nomeadamente ligados à vítima, à relação entre ela e o agressor e ao contexto familiar e social. Pela aturada resenha jurisprudencial de diversas formas de conduta, merece uma especial referência o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08-01-2013 (Proc. 113/10.0TAVVC.E1, Relator Desembargador João Gomes de Sousa), no qual se refere o seguinte: “Assim, da práxis resulta claro que têm sido considerados como maus tratos físicos, murros, bofetadas, pontapés e pancadas com objetos ou armas (mesmo que se não comprove uma efectiva lesão da integridade corporal da pessoa visada); também empurrões, arrastões, puxões e apertões de braços ou puxões de cabelos; como maus tratos psíquicos os insultos, críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, a sujeição a situações de humilhação, as ameaças, as privações injustificadas de comida, de medicamentos ou de bens e serviços de primeira necessidade, as restrições arbitrárias à entrada e saída da habitação ou de partes da habitação comum; as privações da liberdade; as perseguições, as esperas inopinadas e não consentidas, os telefonemas a desoras, etc. (...); O “agarrar pelos cabelos, puxando e arrastando para pôr água fria a correr em cima da cabeça” - Ac. do TRP de 30-01-2008 (Proc. 0712512, Maria Leonor Esteves); Agressões físicas, ameaça de morte e proibição de acesso à garagem, à caixa de correio e de utilização do veículo automóvel - Ac. do TRL de 26-10-2004 (Proc. 3988/2004-5, rel. Marques Leitão); Injúrias proferidas em voz alta ao longo de meses, a ameaça e o repetido bater com força a porta do frigorífico e as loiças, a provocar «estados de nervos constantes, angústia, privação de sono, excitação e irritabilidade permanentes e sentimentos de sujeição...». Os maus-tratos psíquicos compreendem, a par das estratégias e condutas de controlo, o abuso verbal e emocional - Acórdão do TRL de 27-02-2008 (Proc. 1702/2008-3, rel. Carlos Almeida); Injúrias, ameaças de morte (a mulher e filhos), empurrões, bofetadas, pontapés e pauladas com uma colher de pau, ameaças de suicídio, ameaças com faca, espingarda e lata de gasolina, agressão com um tacho - Acórdão TRC de 07-10- 2009 (Proc. 317/05.8GBPBL.C2, rel. Mouraz Lopes); Injúrias, bofetadas, empurrões contra objetos - Acórdão do TRE de 03-07-2012 (Proc. 53/10.3GDFTR.E1, rel. Sérgio Corvacho); Após separação, por três vezes apertar pescoço da ofendida, numa das vezes arrastando-a pelo corredor, na presença do filho de ambos; noutra ocasião elevando-a e encostando-a às paredes do elevador enquanto encostava o seu corpo ao corpo da ofendida e lhe dizia em tom alto e com foros de seriedade: “tu comigo não gozas”, continuando a apertar o pescoço até aquela desfalecer e cair, sem sentidos - Acórdão do TRE de 18-09-2012 (Proc. 127/09.3PBSTB.E2, rel. Carlos Berguete Coelho). E, por fim, há que referir como abrangidos pelo tipo penal os casos de “micro violência continuada”, que Nuno Brandão refere como caracterizando-se pela “opressão... exercida e assegurada normalmente através de repetidos atos de violência psíquica que apesar do sua baixa intensidade quando considerados avulsamente são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de comportamento no âmbito da relação”. Vejam-se ainda, a título meramente exemplificativo, os seguintes acórdãos: • Ac. TRG de 04-03-2013 (processo 746/11.8PBGMR.G1, relatora Ana Teixeira e Silva): “II – Para a prática do crime de violência doméstica, não são inócuos os factos que, globalmente considerados, são reveladores de um comportamento de perseguição agressiva, de um constante importunar, de uma vontade conseguida de amedrontar através da inesperada abordagem pessoal e da ameaça velada.” • Ac. TRP de 11-03-2015 (processo 91/14.7PCMTS.P1, relator Pedro Vaz Pato): “I - O crime de Violência doméstica é um crime de perigo abstrato, que traduz uma tutela antecipada do bem jurídico protegido. Não é, pois, necessário, para que se verifique o crime em questão, que se tenham produzido efetivos danos na saúde psíquica ou emocional da vítima; basta que se pratiquem atos em abstrato sucetíveis de provocar tais danos. II - Pode enquadrar-se no crime de Violência doméstica a conduta que se reveste das notas caraterísticas do chamado stalking, isto é, uma perseguição prolongada no tempo, insistente e obsessiva, causadora MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 95 - Violê nc ia Domé s t ic a - - ENQ UA DR A M E NTO L E G A L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 96 - - Conduta reiterada ou não Até à revisão de 2007 do Código Penal, discutiu-se na jurisprudência e na doutrina se o então designado crime de maus tratos exigia ou não a reiteração das condutas. O legislador, procurando ultrapassar tal controvérsia, determinou que o crime de violência doméstica pode ser cometido por dois modos alternativos: através de uma conduta reiterada ou de uma única conduta. Sem nos alongarmos a esse respeito é, contudo, de sublinhar que já havia alguma doutrina e jurisprudência, em particular desde a reforma de 1995 (minoritária, mas crescente), que admitia a hipótese de que uma única conduta, particularmente gravosa, poderia, a título excecional, preencher o tipo legal. Nesse sentido, cfr. Maria Elisabete Ferreira (obra citada, p. 104), Catarina Sá Gomes (obra citada, p. 59) e, na jurisprudência, v.g., Ac STJ 0604-2006 (Proc. 06P1167, relator Simas Santos), Ac STJ 05-04-2006 (Proc. 06P468, relator João Bernardo), Ac TRP 30-01-2008 (Proc. 0712512, relatora Maria Leonor Esteves), Ac. TRC 27-06-2007 (Proc. 256/05.2GCAVR.C1, Gabriel Catarino). Assim, o crime de violência doméstica admite, hoje, dois modos alternativos de cometimento. Um, pressupõe a repetição ou reiteração dos comportamentos, os quais, se apreciados isoladamente, podem não assumir relevância criminal, ou podem ser suscetíveis de configurar outros tipos de crime menos graves do que a violência doméstica, nomeadamente crimes de ofensa à integridade física simples (artigo 143º), ofensa à integridade física qualificada (apenas a modalidade do artigo 145º/1a), ameaça, simples e agravada (artigos 153º e 155º/1), coação (artigo 154º), perseguição (artigo 154º-A), sequestro (apenas a modalidade do artigo 158º/1), coação sexual (apenas a modalidade do artigo 163º/2), lenocínio (apenas a modalidade do artigo 169º/1), violação (apenas a modalidade do artigo 164º/2), fraude sexual (artigo 167º), lenocínio (artigo 169º), importunação sexual (artigo 170º), abuso sexual de crianças (apenas a modalidade do artigo 172º/3), abuso sexual de menores dependentes (apenas a modalidade do artigo 172º/2 e 3), atos sexuais com adolescentes (artigo 173º), recurso à prostituição de menores (artigo 174º), aliciamento de menores para fins sexuais (artigo 176º-A), difamação (artigo 180º), injúria (artigo 181º), violação de domicílio ou perturbação da vida privada (artigo 190º), introdução em lugar vedado ao público (artigo 191º), devassa da vida privada (artigo 192º), violação de correspondência ou de telecomunicações (artigo 194º), gravações e fotografias ilícitas (artigo 199º). Dos muitos exemplos que se podem retirar da jurisprudência, veja-se: • Ac. TRE de 22-01-2013 (processo 704/09.2GDSTB.E1, relator Proença da Costa): “I - A conduta típica da violência doméstica tanto se pode revestir de maus-tratos físicos, onde se incluem as ofensas corporais, como de maus tratos psíquicos, designadamente humilhações, provocações, molestações, ameaças ou outros maus tratos, como sejam as ofensas sexuais e as privações da liberdade. II - Entre todas as acções que podem ser tidas como maus tratos físicos temos de aí incluir os comportamentos agressivos contra o corpo e que preencham a factualidade típica da ofensa á integridade física; mesmo que se não comprove uma efectiva lesão da integridade corporal da pessoa visada. III - No que respeita aos maus tratos psíquicos, aí podemos incluir todos os comportamentos que passem pelos insultos, as críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, as ameaças, as privações de liberdade, as perseguições... IV - Para se assumirem como atos típicos de maus tratos, estes comportamentos não têm de possuir relevância específica no seio de outros tipos legais de crime. Seja no sentido de que nem remotamente poderiam ser integrados em qualquer outra previsão típica, seja no de que a conduta seria de molde a preencher um específico tipo-de-ilícito, mas fica aquém do necessário para esse efeito, como se costuma enfatizar em relação às ameaças”. Havendo reiteração, os comportamentos isolados integram-se numa mesma unidade contextual, que assenta na especial relação existente entre agressor e vítima, se prolonga no tempo e constitui o padrão de comportamento do agressor no seu relacionamento com a vítima. Podemos encontrar muitos exemplos na jurisprudência: • Ac. TRG de 10-07-2014 (processo 591/11.0PBGMR-G1, relatora Ana Teixeira), já aqui citado. • Ac STJ 06-04-2006 (Proc. 06P1167, relator Simas Santos): “Comete esse crime aquele que, desde o início da relação de união de facto com a ofendida, discutia com a companheira, atacando-a verbalmente com expressões que ofendiam a sua dignidade e lhe batia, provocando-lhe pânico; que numa ocasião lhe desferiu MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR de angústia e temor, com frequência motivada pela recusa em aceitar o fim de um relacionamento”. • Ac. TRL de 23-04-2015 (processo 469/13.3PBAMD.L1-9, relator João Abrunhosa de Carvalho): “I - Dirigir, com frequência não apurada, as expressões “porca de merda”e “atrasada mental” à pessoa com quem se vive em união de facto, assim a rebaixando, é, na normalidade dos casos, suficientemente grave para ofender a saúde psíquica e emocional da vítima, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana, assim representando um aviltamento e humilhação da vítima que, claramente, não são suficientemente protegidos pelo tipo de crime de injúria, pelo que integram o conceito de maus tratos psíquicos e, portanto, preenchem os elementos do tipo da violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º/ 1-b) do CP”. • Ac TRG de 10-07.2014 (processo 591/11.0PBGMR-G1, relatora Ana Teixeira): “I – A ação típica do crime de violência doméstica tanto se pode revestir de maus tratos físicos como psíquicos. No conceito de maus tratos físicos cabem as ofensas à integridade física; nos maus tratos psíquicos abrangem-se as humilhações, provocações, molestações e ameaças. Essencial é que os comportamentos assumam uma gravidade tal que justifique a sua autonomização relativamente aos ilícitos que as condutas individualmente consideradas possam integrar. II – Integra a previsão do crime de violência doméstica o comportamento do arguido que, reiteradamente, dirigindo-se à sua mulher, algumas vezes na presença de terceiros, lhe chamou “puta”, “vaca”, “cabra”, “vadia”, lhe disse “tens amantes” e que se ela o deixasse lhe tirava as filhas e que a matava”. 97 - Violê nc ia Domé s t ic a - - ENQ UA DR A M E NTO L E G A L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 98 - - • • • • várias bofetadas e socos fazendo com que esta, com a violência do impacto, caísse ao chão, e sofresse de um hematoma num olho; que meses depois numa discussão que iniciou disse à companheira que a havia de matar e que no dia seguinte iniciou uma nova discussão com a ofendida desferindo-lhe encontrões e dizendo-lhe que a matava, tendo esta, em pânico, conseguido fugir, saltando por uma janela e dirigindo-se aos gritos à estrada onde entrou num veículo, conduzido por uma amiga que procurou afastá-la do local e que lhe moveu perseguição, conduzindo um veiculo automóvel seguiu atrás daquele outro automóvel visando ultrapassá-lo e obrigá-lo a parar, embatendo por diversas vezes na traseira deste, fazendo com que a condutora tivesse que acelerar e conduzir com velocidade para evitar ser abalroada, perseguição que se prolongou ao longo de cerca de 2 kms, até que o veículo conduzido pelo arguido ficou com o pára-choques da parte dianteira da viatura preso no pára-choques traseiro do outro, o que fez com que entrasse em despiste, só a intervenção da G.N.R. pondo termo à situação”. Ac TRC 16-01-2013 (in www.pgdl.pt): “Tendo o arguido privado a sua esposa do acesso à água, gás, electricidade, telefone e correio, na casa onde ambos habitavam, deve interpretar-se tal conduta, segundo as regras da experiência comum, como a privação dos bens essenciais no espaço da residência que será o reduto de maior tranquilidade de qualquer pessoa, constituindo uma forte humilhação e privação do que de mais essencial se espera desse espaço privado, atentatória da dignidade humana e quem assim actua não pode desconhecer esse facto (basta que se coloque mentalmente na mesma situação)”. Ac TRP 10-07-2013 (in www.pgdl.pt): “O tipo objectivo de ilícito, no caso em apreço, preenche-se com a ação de infligir «Maus-tratos físicos» (que se traduzem em ofensas à integridade física, incluindo simples) ou «Maus-tratos psíquicos» (que podem consistir, como diz Taipa de Carvalho, em «humilhações, provocações, molestações, ameaças, mesmo que não configuradoras em si do crime de ameaça») ao ex-cônjuge do agente. (...) Todos os episódios e atos, praticados dolosamente pelo arguido contra a sua ex-mulher (que consistiram em lhe infligir maus-tratos psíquicos, através de repetidas injúrias e ameaças, algumas presenciadas por terceiros, idóneas a afectar o seu bem estar psicológico), eram humilhantes e rebaixavam quem fosse vítima deles, ofendendo a dignidade de qualquer pessoa, como sucedeu neste caso igualmente com a assistente, integrando o crime de violência doméstica que lhe foi imputado”. Ac TRG 10-07-2014 (in www.pgdl.pt), já aqui citado: “Integra a previsão do crime de violência doméstica o comportamento do arguido que, reiteradamente, dirigindo-se à sua mulher, algumas vezes na presença de terceiros, lhe chamou «puta», «vaca», «cabra», «vadia», lhe disse «tens amantes» e que se ela o deixasse lhe tirava as filhas e que a matava”. Ac TRL 23-04-2015 (in www.pgdl.pt), já aqui citado: “Dirigir, com frequência não apurada, as expressões «porca de merda» e «atrasada mental» à pessoa com quem se vive em união de facto, assim a rebaixando, é, na normalidade dos casos, MANUAL PLURIDISCIPLINAR suficientemente grave para ofender a saúde psíquica e emocional da vítima, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana, assim representando um aviltamento e humilhação da vítima que, claramente, não são suficientemente protegidos pelo tipo de crime de injúria, pelo que integram o conceito de maus tratos psíquicos e, portanto, preenchem os elementos do tipo da violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º/1-b) do CP”. • Ac. TRL de 8-11-2011, CJ, 2011, V, p. 319: “I. O crime de violência doméstica previsto no art.152º do CP é muito mais que a soma dos diversos ilícitos que o podem preencher, não sendo as condutas que integram o tipo consideradas autonomamente, mas antes valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido revelador daquele crime. II. Na avaliação desse comportamento, a ponderação de um facto objeto de processo autónomo, arquivado por falta de queixa da ofendida, não configura violação do princípio ne bis in idem. III. O crime de violência doméstica é um crime único, ainda que de execução reiterada, ocorrendo a sua consumação com a prática do último ato de execução”. Nesta hipótese, o crime de violência doméstica configura um crime duradouro (também designado na doutrina e jurisprudência nacionais como permanente ou de execução permanente), no qual a consumação ocorre logo que o comportamento doloso preenche a totalidade dos elementos do tipo objetivo de ilícito (consumação típica ou formal), mas se prolonga no tempo, por vontade do agente, até à consumação material ou terminação (também designada como conclusão ou exaurimento), ou seja, até à “verificação do resultado que interessa ainda à valoração do ilícito por directamente atinente aos bens jurídicos tutelados e à função de protecção da norma” (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal - Parte Geral - Questões fundamentais - A doutrina geral do crime, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 314 e 686/687). Em nosso entender, o crime de violência doméstica não configura um crime habitual, pois neste a realização do tipo incriminador exige que o autor pratique a conduta de forma reiterada, até ao ponto de ela poder dizer-se habitual, existindo assim uma exigência adicional do tipo quanto às caraterísticas do comportamento do agente que naquele não se verifica, como certeiramente nota Helena Moniz (Agravação pelo resultado? Contributo para uma autonomização dogmática do crime agravado pelo resultado, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 423). O outro modo de cometimento prescinde da reiteração e basta-se com um único ato ou omissão, desde que o mesmo configure um verdadeiro maltrato físico ou psíquico, devendo esta apreciação ter em conta a imagem global do facto, nomeadamente o modo de execução da conduta e a natureza das lesões e sequelas sofridas pela vítima. Nesta modalidade, o crime de violência doméstica é um crime instantâneo, pois a sua consumação traduz-se na realização de um único ato ou na produção de um evento cuja duração é instantânea, que se esgota num único momento. A este propósito, vejam-se, por exemplo: • Ac TRE de 20-01-2015 (processo 228/13.3TASTR.E1, relator Clemente Lima): “O segmento normativo de modo reiterado ou não, introduzido no corpo do nº 1 do artigo 152º do Código Penal pela Reforma Penal de 2007 (Lei nº 59/2007, de MANUAL PLURIDISCIPLINAR 99 - Violê nc ia Domé s t ic a - - ENQ UA DR A M E NTO L E G A L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 100 - - 04 de Setembro), é unívoco no sentido de que pode bastar um só comportamento para a condenação”. • Ac TRC de 29-01-2014 (processo 1290/12.1PBAVR.C1, relator Jorge Dias): “1.- No crime de violência doméstica, tutela-se a dignidade humana da vítima. 2.- Neste crime não se demanda a prática habitual dos atos ou a repetitividade das condutas, o normativo prevê tanto situações repetitivas ou plúrimas como situações de natureza una. 3.- O crime de violência doméstica apenas exige que alguém, de modo reiterado ou não inflija maus tratos físicos ou psíquicos no âmbito de um relacionamento conjugal, ou análogo, e determinada por força desse relacionamento e que, por força das lesões verificadas, se entenda que tenha ofendido a dignidade da vítima”. • Ac. TRP de 22-01-2014, CJ, 2014, T1, pág. 326: “I. Para a perfeição do crime de violência doméstica, não se exige que a inflicção de maus tratos seja reiterada. II. Quando, porém, se trate de uma só ofensa, esta só consubstancia mau trato se revelar uma intensidade tal que seja apta e bastante para lesar o bem jurídico protegido (saúde física, psíquica ou emocional), em termos de pôr em causa a dignidade da pessoa ofendida. III. É o que acontece no caso em que o marido, exercendo grave coação sobre a mulher, a escorraça do lar, obrigando-a a refugiar-se em caso do pai, não mais ali voltando”. Assim, no crime de violência doméstica, a conduta típica tanto pode consistir num único ato, como numa pluralidade de atos ligados por uma unidade contextual, embora em ambas as situações se verifique uma unidade de ação. Atentas as múltiplas possíveis condutas típicas, a violência doméstica pode consubstanciar: - um crime de resultado (estando em causa, v.g., maus tratos físicos) - um crime de mera atividade (estando em causa, v.g., provocações e ameaças) - um crime de dano (estando em causa, v.g., privações de liberdade) - um crime de perigo (estando em causa, v.g., ameaças e humilhações). e ao facto de se poderem subsumir ao tipo legal condutas que em si mesmas podem não ter gravidade suficiente para serem consideradas infração criminal (sempre que a especial relação entre o agente e a vítima fundamente a própria ilicitude e configura um crime específico próprio). Assim, para este Autor, “em princípio, só pode responder pelo crime de violência doméstica o agente (...) que esteja para com a vítima numa das relações previstas e determinantes da criação deste tipo legal de crime”. Ou seja, só pode ser autor ou cúmplice do crime de violência doméstica quem tenha para com a vítima uma das relações especialmente previstas. Excecionalmente, pode haver comunicabilidade nos casos de autoria mediata, em que o autor mediato é um extraneus e o autor imediato um intraneus, desde que o autor mediato instrumentalize o autor imediato, detentor de uma especial relação com a vítima, e conhecendo o autor mediato essa relação. Diferentemente, Augusto Silva Dias (obra citada, p. 112-113) e Paulo Pinto de Albuquerque (obra citada, p. 406) entendem que se comunicam as relações especiais previstas nesta incriminação, sendo portanto aplicável a regra estabelecida no aludido artigo 28º, nº 1. Debruçando-se sobre esta problemática, Susana Aires de Sousa (A autoria dos crimes específicos: algumas considerações sobre o artigo 28º do Código Penal, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, nº 15, ano 2005, p. 343-368), nas situações de comparticipação em crimes específicos, defende o alargamento do círculo da autoria aos extranei, desde que também eles tenham o domínio do facto e a norma incriminado a tal não se oponha. Ora, estamos em crer que, no crime de violência doméstica, nada obsta à aplicação da regra da comunicabilidade. Assim, seguindo o ensinamento daquela Autora, por aplicação das normas conjugadas dos artigo 26º e 28º, do Código Penal, verifica-se co-autoria no crime de violência doméstica, mesmo que algum ou alguns dos agentes não tenham uma especial relação com a vítima, sempre que extranei e intranei decidam e executem conjuntamente o facto ilícito, detendo, ambos, o domínio do facto. Autoria e comparticipação As regras gerais em matéria de autoria e de cumplicidade são aplicáveis ao crime de violência doméstica. Todavia, a comparticipação suscita algumas dificuldades, sempre que algum ou alguns dos potenciais autores não mantenham com a vítima uma das relações especiais taxativamente elencadas. Dispõe o nº 1, do artigo 28º, do Código Penal, que “se a ilicitude ou o grau de ilicitude do facto dependerem de certas qualidades ou relações especiais do agente, basta, para tornar aplicável a todos os comparticipantes a pena respetiva, que essas qualidades ou relações se verifiquem em qualquer deles, excepto se outra for a intenção da norma incriminadora”. A regra é, assim, a comunicabilidade das circunstâncias relativas ao ilícito, nomeadamente posições, qualidades, relações ou deveres especiais impostos ao agente. Tal só não sucederá se outra for a intenção da norma incriminadora, decorrente da interpretação dessa mesma norma e das que a completem ou integrem. Entende Américo Taipa de Carvalho (obra citada, p. 524) que, no crime de violência doméstica, se impõe o funcionamento da aludida exceção, atendendo à gravidade da pena Ação ou omissão O crime de violência doméstica tanto pode ser cometido através da prática de uma ação proibida, como através da omissão de um comportamento juridicamente exigido. Neste sentido, veja-se, na doutrina, Taipa de Carvalho (obra citada, p. 517) e Plácido Conde Fernandes (obra citada, p. 306). Na jurisprudência, num caso similar, para este efeito (trata-se de um crime de maus tratos por omissão), cfr. Ac TRP 26-06-2008 (Proc. 0842772, relatora Ana Paula Lobo): “I- O poder paternal é um poder-dever, não é um meio de recuperação de toxicodependentes, nem é adequado achar que as crianças estão bem com uns pais que não garantem o seu sustento, por que não trabalham com regularidade, que não garantem a sua estabilidade emocional, porque não dispõem dela, que a levam para casa desta avó ou daquela e que tanto a irão buscar como a deixarão pelo tempo que lhes convier. II – Maltratar uma criança não é só espancá-la ou dar-lhe fome. Maltratar uma criança é também não a preservar do frio, do abandono e da falta de presença do pai e da mãe, ou não trabalhar, ou ser condenado por tráfico ou consumo de estupefacientes, ou ser toxicodependente, ou mentir dizendo que faz parte do seu agregado familiar para obter o rendimento social MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 101 - Violê nc ia Domé s t ic a - - ENQ UA DR A M E NTO L E G A L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 102 - - de inserção quando a avó materna é que a cuida, ou simplesmente não estar à sua beira à noite quando vai dormir, ou para a levar ao infantário”. Concurso Muitos comportamentos subsumíveis ao crime de violência doméstica são suscetíveis de ser também subsumíveis a outras incriminações, umas mais e outras menos gravemente puníveis. Importa apreciar, por isso, a questão do concurso de crimes, o qual tanto pode configurar um concurso legal, aparente, impuro ou impróprio (“em que, no comportamento global, se verifica uma absoluta dominância ou prevalência de um sentido de ilícito sobre outro ou outros sentidos de ilícito concorrentes, mas assim dominados, subordinados dependentes ou acessórios”, existindo uma unidade de norma ou de lei), como um concurso efetivo, puro ou próprio (“em que se verifica uma pluralidade de sentidos de ilícito do comportamento global”) (Sobre esta temática, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal - Parte Geral - Questões fundamentais - A doutrina geral do crime, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 977 ss; Eduardo Correia, Unidade e Pluralidade de Infracções, 1945 e Direito Criminal, II, reimpressão, Coimbra: Almedina, 1971, p. 204 ss; e Duarte de Almeida, O concurso de Normas em Direito Penal, 2004). Concurso legal Quando a conduta reiterada do agressor se desdobra em comportamentos isolados, esses comportamentos, ou parte deles, são suscetíveis de configurarem, entre outros, os crimes de ofensa à integridade física simples (artigo 143º), ofensa à integridade física qualificada (apenas a modalidade do artigo 145º/1a), ameaça, simples e agravada (artigos 153º e 155º/1), coação (artigo 154º), perseguição (artigo 154º-A), sequestro (apenas a modalidade do artigo 158º/1), coação sexual (apenas a modalidade do artigo 163º/2), lenocínio (apenas a modalidade do artigo 169º/1), violação (apenas a modalidade do artigo 164º/2), fraude sexual (artigo 167º), lenocínio (artigo 169º), importunação sexual (artigo 170º), abuso sexual de crianças (apenas a modalidade do artigo 172º/3), abuso sexual de menores dependentes (apenas a modalidade do artigo 172º/2 e 3), atos sexuais com adolescentes (artigo 173º), recurso à prostituição de menores (artigo 174º), aliciamento de menores para fins sexuais (artigo 176º-A), difamação (artigo 180º), injúria (artigo 181º), violação de domicílio ou perturbação da vida privada (artigo 190º), introdução em lugar vedado ao público (artigo 191º), devassa da vida privada (artigo 192º), violação de correspondência ou de telecomunicações (artigo 194º), gravações e fotografias ilícitas (artigo 199º). A relação que se estabelece entre o crime de violência doméstica e estes outros tipos de crime menos graves suscita a problemática da unidade de norma ou de lei. Aqui, só aparentemente existe um concurso de normas, porque apesar de a conduta do agente ser subsumível a diversas incriminações, só será concretamente aplicável a norma prevalecente, que é a violência doméstica. Quer se classifique essa relação entre normas como consunção ou especialidade, “importa, antes de tudo, determinar se as normas abstractamente aplicáveis se não encontram MANUAL PLURIDISCIPLINAR numa relação lógico-jurídica tal, numa relação, poderia dizer-se de “lógica hierárquica” que, em verdade, apenas uma delas ou algumas delas são aplicáveis, excluindo a aplicação desta ou destas normas (prevalecentes) a aplicação da ou das restantes normas (preteridas); pela razão de que à luz da(s) normas prevalecente(s) se pode já avaliar de forma esgotante o conteúdo de ilícito (e de culpa) do comportamento global” (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal - Parte Geral - Questões fundamentais - A doutrina geral do crime, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 992). A problemática do concurso coloca-se igualmente quando a conduta do agente integra, simultaneamente, o crime de violência doméstica e outro crime mais severamente punido, como sejam os crimes de ofensa à integridade física grave (artigo 144º), ofensa à integridade física qualificada (apenas a modalidade do artigo 145º/1b), sequestro qualificado (158º/2), escravidão (artigo 159º), rapto (artigo 161º), coação sexual (apenas a modalidade do artigo 163º/1), violação (apenas a modalidade do artigo 164º/1), abuso sexual de pessoa incapaz de resistência (artigo 165º), lenocínio agravado (apenas a modalidade do artigo 169º/2), abuso sexual de crianças (apenas a modalidade do artigo 171º/1), abuso sexual de menores dependentes (apenas a modalidade do artigo 172º/1), lenocínio de menores (artigo 175º), pornografia de menores (artigo 176º). Nesta situação, importa, desde logo, destacar a hipótese de a conduta típica consistir num único comportamento. Aqui, o tipo legal aplicável será aquele que tiver a punição mais severa, pois é a própria incriminação da violência doméstica que, fazendo apelo a uma cláusula de subsidiariedade expressa geral, restringe a sua aplicação à inexistência de outra que comine pena mais grave. Apesar desta cláusula de subsidiariedade expressa geral se configurar como “uma espécie de norma de garantia da correcção do processo hermenêutico, porquanto estabelece uma reserva de sanção mínima” [nas palavras de André Lamas Leite, A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o direito e a criminologia, Julgar, nº 12 (especial), 2010, p. 48], ela acaba por ter efeitos perversos, que têm sido assinalados por diversos autores. Desde logo, a “perda simbólica preventiva proclamada para a nova incriminação” (como nota Plácido Conde Fernandes, obra citada, p. 313). Mas, sobretudo porque, como bem nota Américo Taipa de Carvalho (obra citada), se olvidou a ratio da criação desta incriminação, fundada na especial relação entre agressor e vítima, que poderia ter sido acautelada, na medida em que “o legislador devia ter estabelecido uma agravação (nos limites mínimo e máximo, ou pelo menos no limite máximo ou no limite mínimo) da pena aplicável ao crime em que se materializou a violência doméstica”. Acresce que o funcionamento desta cláusula afasta a aplicabilidade das penas acessórias especialmente previstas para o crime de violência doméstica (Américo Taipa de Carvalho, na obra citada, entende que, apesar do lapso do legislador, é possível a aplicação das penas acessórias, seja por interpretação teológica extensiva, não violadora do princípio constitucional da legalidade nem proibida pelo artigo 3º, nº 1, do Código Penal, seja invocando o nº 6, do artigo 152º, por maioria de razão) e não permite à vítima beneficiar do estatuto de vítima de crime de violência doméstica e da panóplia de direitos que lhe estão associados, consagrados na Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, que estabeleceu o MANUAL PLURIDISCIPLINAR 103 - Violê nc ia Domé s t ic a - - ENQ UA DR A M E NTO L E G A L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 104 - - regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas. Concurso efetivo Ana Maria Barata de Brito17 veio recentemente suscitar uma questão deveras relevante, relacionada com o concurso efetivo de infracções na violência doméstica, notando que a desconsideração a que tem sido votada pela prática judiciária “tem conduzido ao efeito perverso de transformar um tipo protetor ou especialmente protetor da vítima, num tipo que, na aplicação que dele fazemos, acaba por beneficiar o infrator”. A possibilidade de concurso efetivo coloca-se em todas as situações em que a conduta do agente se desdobra numa pluralidade de comportamentos, sempre que todos ou parte deles sejam suscetíveis de ser autonomizados e, em si mesmos, sejam suscetíveis de configurar mais do que um crime de violência doméstica (caso em que pode haver concurso homogéneo), e/ou outro crime mais severamente punido (caso em que se trata de concurso efetivo heterogéneo). Temos por assente que, para que se verifique o cometimento do crime de violência doméstica, basta um único ato ou omissão, desde que, pela sua gravidade ou intensidade, configure um verdadeiro maltrato físico ou psíquico. Mas, se assim é, então deve imputar-se ao agente um crime de violência doméstica por cada comportamento isolado, sempre que esse comportamento revista, por si só, suficiente gravidade ou intensidade, ainda que se integre numa unidade contextual que se prolonga no tempo e constituiu o padrão de comportamento do agressor no seu relacionamento com a vítima. Em vez de um único crime de violência doméstica duradouro, teremos diversos crimes de violência doméstica, instantâneos e em concurso efetivo homogéneo. Este raciocínio vale também para os casos em que cada conduta isolada ou alguma das condutas isoladas sejam por si só suscetíveis de ser qualificadas como violência doméstica e como outro crime mais severamente punido - como sejam os crimes de ofensa à integridade física grave (artigo 144º), ofensa à integridade física qualificada (apenas a modalidade do artigo 145º/1b), sequestro qualificado (158º/2), escravidão (artigo 159º), rapto (artigo 161º), coação sexual (apenas a modalidade do artigo 163º/1), violação (apenas a modalidade do artigo 164º/1), abuso sexual de pessoa incapaz de resistência (artigo 165º), lenocínio agravado (apenas a modalidade do artigo 169º/2), abuso sexual de crianças (apenas a modalidade do artigo 171º/1), abuso sexual de menores dependentes (apenas a modalidade do artigo 172º/1), lenocínio de menores (artigo 175º), pornografia de menores (artigo 176º). Aqui, poderemos ter um crime de violência doméstica, duradouro, ou diversos crimes de violência doméstica, instantâneos, e outro ou outros crimes mais severamente punidos, todos em concurso efetivo heterogéneo. É esta a situação subjacente ao Ac TRE 1-10-2013 (processo 258/11.0GAOLH.E1, relator Martinho Cardoso): “I. – São maus tratos psíquicos, para os efeitos do disposto no art. 152º, nº 1, do Código Penal (violência doméstica) o envio pelo arguido à ofendida de SMS de 17 O crime de violência doméstica: notas sobre a prática judiciária, comunicação efetuada no colóquio “Crime de Violência Doméstica: Percursos Investigatórios”, PGR 01/12/2014 [Em linha], disponível na Internet em <URL http:// www.tre.mj.pt/docs/ESTUDOS%20-%20MAT%20CRIMINAL/Violencia%20Domestica_2014-12-01.pdf> MANUAL PLURIDISCIPLINAR teor manifestamente injurioso. II. – O crime de violência doméstica não consome quaisquer outros crimes praticados pelo arguido contra o resto da família da ofendida, ainda que praticados no contexto espácio-temporal em que decorreu a violência doméstica. III. – Mesmo tendo em conta que a vida é bem mais diversificada do que a previsão do legislador – não se vislumbra que numa relação de namoro ou entre cônjuges, na qual sem dúvida podem ocorrer situações de coação sexual, p. e p. pelo art. 163º, nº 1, e de violação, p. e p. pelo art. 164º, nº 1, possa ocorrer o crime do assédio sexual, quer na versão da coação p. e p. pelo art. 163º, nº 2, quer na da violação p. e p. pelo art. 164º, nº 2. IV. – Por força do disposto no nº 1 do art. 152º do Código Penal, em que se prescreve que quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais (…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal,os factos caraterizadores do crime de violação que tenha ocorrido no contexto espácio-temporal em que decorreu a violência doméstica separam-se e dão origem à verificação do crime de violação. Se após esta separação, restarem mais factos ou outros factos relativos à violência doméstica, eles continuarão a integrar e a dar corpo a esse crime de violência doméstica e à sua respetiva punição, em concurso real com a da violação”. Outro entendimento, como argutamente aponta Ana Maria Barata de Brito (obra citada), subverteria a ratio desta incriminação, descurando a proteção dos bens jurídicos e trazendo um benefício absolutamente injustificado para o agressor: “Creio que a identificação e o tratamento jurídico adequado do concurso homogéneo na violência doméstica acautelará o efeito perverso e contra legem do benefício do infrator, garantindo a razão de ser da incriminação, que é o aumento de proteção da vítima e a tutela reforçada do bem jurídico”. A imputação ao agente de um só crime de violência doméstica, unificando e congregando todos os seus comportamentos parcelares num único crime, independentemente da sua gravidade e da sua duração, fixaria um teto para a pena máxima abstratamente aplicável que seria certamente bastante inferior ao que poderia caber à moldura resultante do concurso dos diversos crimes em abstrato aplicáveis a cada uma das condutas parcelares. Consideramos que existe concurso efetivo heterogéneo entre o crime de violência doméstica e outros crimes, ainda que menos severamente punidos, sempre que, da análise do comportamento global e dos concretos sentidos de ilícito que neles se exprimem, resulte a necessidade da sua autonomização, porque, de outro modo, ficariam desprotegidos relevantes bens jurídicos que não são tutelados na violência doméstica. Tal sucede, nomeadamente, com os crimes de furto (artigo 203º), abuso de confiança (artigo 205º) e dano (artigo 212º), cujo bem jurídico protegido é o património. O nº 3, do artigo 152º prevê duas agravações pelo resultado lesão grave da integridade física (punível com pena de dois a oito anos de prisão) e pelo resultado morte (punível com pena de três a dez anos de prisão), sendo que, nestes casos, a questão da possibilidade de consunção ou concurso efetivo com os crimes de ofensa à integridade física grave ou de homicídio deverá ser resolvida nos termos gerais da doutrina geral do crime18. 18 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal - Parte Geral - Questões fundamentais - A doutrina geral do crime, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 316 ss. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 105 - Violê nc ia Domé s t ic a - - ENQ UA DR A M E NTO L E G A L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 106 - - C- Tipo subjetivo O elemento subjetivo é o dolo, enquanto conhecimento e vontade de realização do tipo legal de crime, em qualquer das suas formas (dolo direto, necessário ou eventual), pois não está expressamente prevista a punição a título de negligência (artigos 13º e 152º, do Código Penal), sendo irrelevante a motivação do agente. O dolo é o conhecimento (elemento intelectual do dolo) e a vontade (elemento volitivo do dolo) de realização do facto ilícito-típico, reveladores de uma atitude contrária ou indiferente à violação do bem jurídico protegido (elemento emocional do dolo, relevante ao nível do tipo de culpa) – cfr. artigo 14º, do Código Penal. Nesta incriminação, é necessário o conhecimento da especial relação entre agente e vítima e o conhecimento e vontade das condutas e do resultado (sempre que as condutas se consubstanciem em crime de resultado). Na vigência do originário artigo 153º, do CP de 1982, exigia-se ainda um elemento subjetivo especial (ou dolo do tipo, na terminologia utilizada por alguma jurisprudência), que consistia na actuação com “malvadez ou egoísmo” (nº 1, in fine). Perante esta redação, a maioria da doutrina e jurisprudência entendia ser necessária a verificação deste elemento subjetivo especial em todas as situações previstas no artigo 153º – ou seja, “pai, mãe ou tutor de menor de 16 anos ou todo aquele que o tenha a seu cuidado ou à sua guarda ou a quem caiba a responsabilidade da sua direcção ou educação”, como previa o nº 1, “quem tiver como seu subordinado, por relação de trabalho, mulher grávida, pessoa fraca de saúde ou menor”, como previa o nº 2; e o “cônjuge”, como previa o nº 3). Diferentemente, Teresa Pizarro Beleza considerava que este elemento subjetivo especial apenas era exigido nos dois primeiros casos: “Nos números 1 e 2 referem-se situações de subordinação (legal) em que pode haver abusos por parte de quem está investido de autoridade sobre o seu dependente. No nº 3, estatui-se sobre uma relação que é legalmente (ainda que não realmente) de paridade, de igualdade: por isso a previsão será necessariamente diferente” (obra citada). Com a reforma de 1995 (operada pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de março), foi eliminada a referência à “malvadez ou egoísmo”. (Catarina Fernandes) MANUAL PLURIDISCIPLINAR 5. BREVE RESENHA DE JURISPRUDÊNCIA NACIONAL Encontra-se identificada infra a jurisprudência emanada pelos nossos Tribunais Superiores, cujo objeto, em diversas abordagens temáticas, incide sobre o crime de violência doméstica. Naturalmente que esta jurisprudência deverá ser concatenada com as alterações legislativas a que foi sendo sujeito este tipo de ilícito penal. Da reiteração ou singularidade da conduta típica Uma delas, presente nos arestos recolhidos no ano de 2007, centra-se na reiteração ou singularidade da conduta do agressor. Nesta matéria, a controvérsia versa sobre a imposição de uma conduta reiterada, por contraposição à admissibilidade de uma só conduta, desde que tenha uma carga suficientemente demonstradora da humilhação, provocação e ou ameaças de molestar o cônjuge ou equiparado, ilustrando-se ambos os entendimentos com os Acórdãos: • do Supremo Tribunal de Justiça de 30-10-2003 (relator Pereira Madeira), de 05-04-2006 (relator João Bernardo), de 06-04-2006 (relator Simas Santos), de 2-07-2008 (relator Raúl Borges), de 12-03-2009 (relator Fernando Fróis); • do Tribunal da Relação de Lisboa de 2-03-2011 (relatora Conceição Gonçalves), de 30-10-2012 (relator Neto de Moura), de 15-01-2013 (relator Neto de Moura); • do Tribunal da Relação do Porto de 28-02-2007 (relatora Élia São Pedro), de 30-01-2008 (relatora Maria Leonor Esteves), de 27-02-2008 (relatora Maria do Carmo Silva Dias), de 19-09-2012 (relatora Maria Dolores Silva e Sousa), de 1909-2012 (relator Ernesto Nascimento), de 10-09-2014 (relatora Elsa Paixão); • do Tribunal da Relação de Coimbra de 13-06-2007 (relatora Elisa Sales); de 2706-2007 (relator Gabriel Catarino), de 25-3-2009 (relator Ribeiro Martins), de 30-09-2009 (relator Jorge Dias), de 28-04-2010 (relator Alberto Mira), de 2901-2014 (relator Jorge Dias); • do Tribunal da Relação de Évora de 29-11-2005 (relator Pires da Graça), de 2503-2010 (relator Correia Pinto), de 28-06-2011 (relator Pedro Vaz Pato), de 2806-2011 (relatora Maria Filomena Soares); • do Tribunal da Relação de Guimarães de 15-01-2007 (relator Fernando Monterroso), de 29-09-2008 (relator Filipe Melo), de 09-05-2011 (relatora Maria José Nogueira), de 06-02-2012 (relator Fernando Chaves), de 15-10-2012 (relator Fernando Monterroso), de 01-07-2013 (relator Tomé Branco) e de 0909-2013 (relatora Teresa Baltazar). MANUAL PLURIDISCIPLINAR 107 - Violê nc ia Domé s t ic a - - ENQ UA DR A M E NTO L E G A L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 108 - - A jurisprudência trilhou de forma maioritária este último caminho no sentido de que a verificação do tipo se basta com uma conduta singular, sendo certo que a questão, hoje em dia, se encontra praticamente ultrapassada. Do bem jurídico protegido e dos elementos do tipo A jurisprudência veio considerando que o bem jurídico protegido é a saúde, no seu sentido amplo, que engloba quer a saúde física, quer a psíquica e mental, as quais podem ser afetadas por uma multiplicidade de comportamentos que impedem ou dificultam o normal e saudável desenvolvimento da personalidade. Nesta matéria, e quanto a tipo de condutas subsumíveis ao conceito, vejam-se os Acórdãos: • do STJ de 02-07-2008 (relator Raúl Borges), de 05-11-2008 (relator Maia Costa), de 12-03-2009 (relator Fernando Fróis); • do TRL de 15-11-2007 (relatora Maria da Luz Baptista), de 27-02-2008 (relator Carlos Almeida), de 17-06-2009 (relator Telo Lucas), de 07-12-2010 (relator Paulo Barreto), de 15-05-2012 (relatora Dina Monteiro), de 15-01-2013 (relator Neto Moura), de 17-04-2013 (relatora Maria da Graça dos Santos Silva), de 2304-2015 (relator João Abrunhosa de Carvalho); • do TRP de 30-01-2008 (relatora Maria Leonor Esteves), de 06-10-2010 (relator David Pinto Monteiro), de 28-09-2011 (relator Artur Oliveira), de 29-022012 (relator Joaquim Gomes), de 19-09-2012 (relator Ernesto Nascimento), de 26-09-2012 (relatora Airisa Caldinho), de 09-01-2013 (relatora Maria Manuela Paupério), de 06-02-2013 (relator Coelho Vieira), de 10-07-2013 (Maria do Carmo Silva Dias), de 27-11-2013 (Raul Esteves), TRP de 10-09-2014 (relatora Elsa Paixão), TRP de 8-10-2014 (relator Moreira Ramos), de 11-03-2015 (relator Pedro Vaz Pato), de 23-06-2015 (relatora Fátima Furtado), de 08-07-2015 (relator José Carreto); • do TRC de 19-11-2008 (relator Ribeiro Martins), de 21-10-2009 (relator Paulo Guerra), de 12-05-2010 (relator Orlando Gonçalves), de 16-01-2013 (relatora Maria Pilar de Oliveira), de 29-01-2014 (relator Jorge Dias); • do TRE de 14-02-2012 (relator Martinho Cardoso), de 03-07-2012 (relator Sérgio Corvacho), de 20-12-2012 (relatora Ana Barata de Brito), de 08-01-2013 (relator João Gomes de Sousa), de 22-01-2013 (Proença da Costa), de 25-06-2013 (relator Renato Barroso), de 02-07-2013 (relatora Ana Barata de Brito), de 15-102013 (relator Proença da Costa), de 19-12-2013 (relatora Maria Isabel Duarte), de 14-01-2014 (relatora Ana Barata de Brito); • do TRG de 03-05-2011 (relator Paulo Fernandes da Silva), de 18-03-2013 (relatora Maria Luísa Arantes) e de 10-07-2014 (relatora Ana Teixeira). Incidindo sobre a importância que a conduta deve ter para ser subsumível ao conceito de maus tratos, designadamente quanto à violação dos direitos de personalidade da ofendida, veja-se o Ac. TRE de 18-05-2010 (relator José Lúcio). Consubstancia o crime de maus tratos a conduta da arguida que, lidando com crianças de um/dois anos de idade, as obriga a engolir a comida à força, batendo-lhes ou dando MANUAL PLURIDISCIPLINAR palmadas na boca, mantendo-lhes a boca aberta com a colher da comida, as obriga a comer o que sai fora da boca, ainda que caia no chão, lhes cause vómitos, chorem convulsivamente e a comida lhes saia pelo nariz, o que lhe deu causa a perturbações do comportamento, com alterações, pondo-lhes em causa o desenvolvimento físico e psíquico harmonioso – Ac. TRC de 28-01-2009 (relator Jorge Raposo). Integra a prática de um crime de ofensa à integridade física simples e não um crime de violência doméstica a agressão com duas bofetadas na cara, presenciada por uma testemunha que ia a passar, não se evidenciando que o arguido tivesse procurado agredir perante terceiros, de forma a sujeitar a ofendida a vexame e humilhação pública, não sendo comportamento reiterado, e não revelando uma intensidade, ao nível do desvalor, da ação e do resultado, que seja suficiente para lesar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana – Ac. TRC de 17-11-2010 (relatora Elisa Sales). O comportamento do agressor deve ser subsumido ao crime de homicídio qualificado verificada que seja nele uma especial censurabilidade, como seja a agressão com várias machadadas no crânio da ofendida, que foram causa direta e necessária da sua morte – Ac. STJ de 21-01-2009 (relator Raúl Borges). Já a utilização de uma espingarda de caça como instrumento da prática do crime não configura, por si só, uma circunstância agravante – Ac. TRE de 20-12-2011 (relator Carlos Berguete Coelho). Condenando também por homicídio qualificado, mas por premeditação e frieza de ânimo, considerou-se que a agressão com um martelo de pedreiro, objecto duro, pesado e pontiagudo, na face e cabeça da ofendida, enquanto esta dormia, por várias vezes, violentamente, não configura a utilização de um meio de tortura ou ato de crueldade idóneo à submissão da conduta ao conceito de especial censurabilidade: “No caso em apreço, apesar de o arguido ter usado como instrumento de agressão um martelo de pedreiro, um objecto duro, pesado e pontiagudo que os pedreiros usam para abrir roços no tijolo ou no cimento, apesar também de o ter desferido na cara da vítima e por várias vezes, atingindo-a, designadamente, na testa e nos olhos, não há sinais de tortura ou de crueldade, pois não resulta dos factos provados que o arguido tenha querido aumentar o sofrimento da vítima para além do que já é próprio de qualquer acto homicida”- Ac. STJ de 25-02-2010 (relator Raúl Borges). Em sentido diverso, considerou o Ac. TRC de 10-03-2010 (relator Brízida Martins) que preenche o conceito de especial censurabilidade ou perversidade a conduta do arguido que, surpreendendo a sua esposa, a dormir, num outro quarto, às escuras, já munido de uma faca, a crava na vítima, repetindo várias vezes a agressão, com o verbalizado objetivo de a matar, após cerca de 13 anos de duração do seu casamento, e de a haver frequentemente agredido a murros e pontapés. No que tange à relação entre agressor e vítima e à caraterização do conceito de “relação de namoro”, vejam-se os Ac. TRC de 27-02-2013 (relator Belmiro Andrade) e de 27-022013 (relator Abílio Ramalho), bem como TRP de 15-01-2014 (relator José Carreto) e TRP de 30-09-2015 (relator Horácio Correia Pinto). MANUAL PLURIDISCIPLINAR 109 - Violê nc ia Domé s t ic a - - ENQ UA DR A M E NTO L E G A L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 110 - - Trata-se de um tipo em que o elemento subjetivo é doloso, estendendo-se esse dolo ao próprio resultado danoso da integridade física que se não basta com um dolo de perigo de afetação da saúde e do normal desenvolvimento da personalidade e da dignidade humana – Ac. TRE de 28-06-2011 (relatora Maria Filomena Soares). Do concurso O crime de violência doméstica é muito mais do que uma soma de ofensas corporais, não sendo as condutas que integram o tipo consideradas autonomamente, mas antes valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido revelador daquele crime – Ac. TRL de 8-11-2011 (relator Luís Gominho). Existe concurso aparente entre o crime de violência doméstica e os dois crimes de ofensas à integridade física qualificada imputados ao arguido, relativamente às agressões de que foi vítima a ofendida. E porque daquelas ofensas físicas praticadas pelo arguido contra a ofendida resultou perigo para a vida desta, a conduta do arguido subsume-se à previsão do art. 152º, nº 3, al. a), do CP vigente – Ac. STJ de 28-04-2010 (relator Fernando Fróis). Se as condutas apuradas integram os crimes de ofensa à integridade física simples e de ameaça mas não satisfazem o tipo da violência doméstica por não revelarem o especial desvalor da ação, ou a particular danosidade social do facto que fundamentam a especificidade deste crime, apenas há que aplicar as normas gerais – Ac. TRG de 17-05-2010 (relator Cruz Bucho). Outro Ac. com relevo sobre esta matéria do concurso de crimes em contexto de violência doméstica é o do TRC de 21-10-2009 (relator Paulo Guerra). Da observância do art. 358º e 359º, do CPP A alteração da qualificação jurídica de um crime de violência doméstica para o de ofensas à integridade física não tem de ser notificada ao arguido em virtude de não implicar necessidade de nova defesa – Ac. TRC de 14-05-2014 (relator Luís Coimbra), TRE de 5-03-2013 (relator Sénio Alves) e Ac. TRG de 21-01-2013 (relator Cruz Bucho). Em sentido dessa necessidade de notificação sob pena de nulidade da sentença, veja-se o Ac. TRE de 19-02-2013 (relator Proença da Costa). Caso a acusação e ou a pronúncia impute ao arguido um crime de violência e se constate que os factos assentes apenas permitem a subsunção ao tipo de integridade física, inexiste alteração substancial dos factos quanto à condenação por este último crime - Ac. TRP de 28-03-2007 (relatora Élia São Pedro), Ac. TRG de 21-10-2013 (relator Filipe Melo). Entendeu-se no Ac. TRC de 21-01-2015 (relatora Maria José Nogueira) que se em sede de sentença o julgador afastar o elemento subjetivo do crime de violência doméstica, dando-o como não provado e aditar factos integradores do crime de perturbação da vida privada, p. e p. pelo art. 190º, nº 2, do CPP, condenando pela prática deste crime, cujo bem jurídico protegido difere dos acautelados pelo crime do art. 152º, do CP, ocorre uma alteração substancial dos factos que obriga ao cumprimento do art. 359º, do CPP. Veja-se sobre esta matéria também o Ac. TRG de 02-11-2015 (relatora Manuela Paupério) no qual se perfilhou o entendimento de que como o arguido já teve a possibilidade de se defender dos factos que lhe foram imputados e que integram o crime de ameaça MANUAL PLURIDISCIPLINAR agravada, configurando tal fatualidade um minus em relação ao ilícito do art. 152º que constava da acusação, é possível alterar a qualificação jurídica em instância de recurso por não postergar as garantias de defesa. Da natureza urgente do processo e do segredo de justiça O TC decidiu não julgar inconstitucionais as normas do art. 28º, nº 1 e 2, da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, interpretadas no sentido de que os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos, não se suspendendo no período de férias judiciais o prazo para interposição de recurso de decisões neles proferidas – Ac. de 11-05-2012 (Proc. 158/2012, relator Vítor Gomes). Mantém a natureza urgente o processo em que, acusado e absolvido o arguido da prática de um crime de violência doméstica, em concurso com dois crimes de ofensa à integridade física, o MP, posto que conformado com a absolvição relativa àquele crime, pugna pela condenação relativamente aos crimes de ofensa à integridade física. É que enquanto toda a decisão absolutória não transitar em julgado, fazem parte do objeto do processo todos os crimes constantes da acusação e sobre os quais a sentença se pronunciou – Ac. TRP, de 7-06-2010 (relatora Élia São Pedro). A natureza urgente implica que os processos de violência doméstica corram durante os fins-de-semana, feriados e férias judiciais, sem necessidade de ser proferido, a respeito, qualquer despacho – Acs. do TRP de 19-01-2011 (relatora Eduarda Lobo), de 16-03-2011 (relator Artur Oliveira), de 10-03-2014 (relatado por António Gama), do TRC de 01-062011 (relator Abílio Ramalho), do TRE de 28-06-2011 (relator José Maria Martins Simão) e do TRC de 18-04-2012 (relator Paulo Guerra). No que tange à aplicação do segredo de justiça em fase de inquérito, a jurisprudência não foi unânime: enquanto no Ac. TRP de 19-11-2008 (relatora Élia São Pedro) se considerou haver fundamento bastante para essa aplicação, nos termos do art. 86º, nº 3, do CPP, nos casos em que crime em investigação é o de violência doméstica, a ofendida reside com o arguido e existe receio de que este exerça pressão sobre eventuais testemunhas a arrolar, no Ac. do mesmo TRP de 28-05-2008 (relatora Maria Elisa Marques), entendeu-se que, para o juiz validar o despacho do MP que determina, na fase de inquérito, a aplicação do segredo de justiça ao processo, não basta que nesse despacho se diga que, estando em causa um crime previsto no art. 152º, do CP, punível com pena de prisão até 5 anos, a publicidade seria lesiva para os interesses da investigação e do ofendido. Das medidas de coação Reporta-se ainda a adequação e proporcionalidade na aplicação da medida de coação de afastamento da residência plasmada no Ac. TRC de 02-6-2009 (relator Fernando Ventura): a imposição de afastamento da habitação constitui uma medida bastante gravosa, pois posterga um direito fundamental – direito à habitação – e pode afetar profundamente a socialização do arguido, designadamente quando não tenha meios económicos que lhe permitam acolher-se noutro local ou familiares/ amigos que o recebam. Ainda assim, os direitos fundamentais da vítima comportam igual valor pelo que o MANUAL PLURIDISCIPLINAR 111 - Violê nc ia Domé s t ic a - - ENQ UA DR A M E NTO L E G A L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 112 - - princípio da concordância prática pode tornar indispensável a compressão de direitos do arguido, o qual, no limite, poderá recorrer à assistência social pública. Existe perigo de continuidade da atividade criminosa que só pode ser acautelado pela medida de coação de prisão preventiva, quando o agente, condenado em 1ª instância, se bem que por decisão não transitada em julgado, pela prática de um crime de violência doméstica, em pena de prisão efetiva, não respeitando anteriores medidas de coação, continua a perseguir, injuriar e ameaçar a ofendida, sua ex-namorada – Ac. TRC de 2710-2010 (relator Esteves Marques). Outros Ac. relativos à aplicação de medidas de coacção: Ac. TRL de 17-02-2015 (relator Agostinho Soares Torres), e do TRE de 03-03-2015 (Ana Barata de Brito) e de 22-09-2015 (relatora Maria Isabel Duarte). Do momento da consumação A prescrição deste tipo de ilícito começa a contar-se a partir do último ato, no caso de “crime habitual” – Ac. TRC de 19-11-2008 (Ribeiro Martins). Tratando-se de um crime único, embora de execução reiterada, a consumação do crime de maus tratos/violência doméstica ocorre com a prática do último ato de execução – Ac. TRC de 22-09-2010 (relator Alberto Mira), 15-12-2010 (relator Alberto Mira) e TRE de 12-09-2011 (relator José Maria Martins Simão). E exatamente porque se trata de um crime cuja prática, habitualmente, não se confina a um único ato, mas a um comportamento reiterado, balizando a acusação o período em que tal comportamento persistiu, com indicação do início e do fim do mesmo, mostra-se cumprida a exigência daquela norma quanto à indicação do “tempo” – Ac. TRG de 23-092013 (relator Fernando Monterroso). Por fim refiram-se dois Ac. interessantes sobre o caso julgado e o princípio do non bis in idem: Ac. do TRP de 27-02-2008 (relatora Maria do Carmo Silva Dias), de onde se retira que se um dado facto, embora novo, se integra no mesmo pedaço de vida do arguido e da vítima subsumível ao crime de violência doméstica já definitivamente julgado, ele encontra-se abrangido pelo caso julgado e a sua consideração autónoma viola o princípio do non bis in idem; e o Ac. TRP de 9-12-2015 (relator Jorge Langweg), que entendeu inexistir violação deste princípio se posteriormente vierem a constar da acusação como integrando um crime de violência doméstica, por esta nova realidade jurídica não estar abrangida pelo caso julgado emergente do despacho de arquivamento em que houve desistência de queixa. Da prova Sobre a importância da prova indireta nos crimes de violência doméstica vejam-se os Ac. TRL de 16-11-2010 Relatora Alda Tomé Casimiro), 23-11-2010 (relator Neto Moura) e TRC de 06-1-2010 (relator Orlando Gonçalves). Sobre a relevância probatória do depoimento da vítima, em declarações para memória futura e em audiência de julgamento, vejam-se os Ac. TRL de 11-01-2012 (relator Carlos Almeida), TRP de 22-10-2014 (relatora Maria Manuela Paupério) e TRE de 30-06-2015 (relatora Ana Barata de Brito) . MANUAL PLURIDISCIPLINAR Das penas e do quantum indemnizatur Ac. STJ de 07-02-2007 (relator Soreto de Barros): Homicídio tentado – 6 anos e 6 meses de prisão; indemnização 35 000€. Ac. STJ de 12-03-2009 (relator Fernando Fróis): ofensas físicas e psicológicas e humilhações, indemnização 5 000 € (vítima filha menor do arguido, sofreu agressões físicas e psicológicas gravíssimas, com sequelas de enorme gravidade quer ao nível da saúde física, quer psicológica, quer ao nível da auto-estima, vítima silenciosa ao longo de vários anos, de abusos sexuais praticados pelo pai, que lhe provocaram pesadelos, que a tornaram numa pessoa triste, revoltada e desconfiada, com receio de sair de casa e encontrar o pai – indemnização 20 000 €). Ac. STJ de 25-02-2010 (relator Raúl Borges): homicídio qualificado, tendo sido empregue pelo arguido para matar a vítima um martelo de pedreiro, objecto duro, pesado e pontiagudo, com o qual agrediu a face e cabeça da ofendida, enquanto esta dormia, por várias vezes, violentamente – 20 anos de prisão. Ac. STJ de 03-10-2013 (relatora Isabel São Marcos): o arguido, já após 1º interrogatório e de lhe ter sido imposta a medida de coação proibitiva de contactos com a vítima, ameaçou-a com um bastão, para que retirasse a queixa e agrediu-a com o referido bastão de forma brutal, atingindo-a repetidamente na cabeça, na mão esquerda e nas pernas, ocasionando-lhe gravíssimas lesões. A vítima fora sua cônjuge por mais de 20 anos e com ela tivera duas filhas e o arguido não se conformara com a separação ocorrida há cerca de 1 ano: crime de homicídio qualificado na forma tentada – 8 anos de prisão. Ac. TRL de 02-03-2011 (relatora Conceição Gonçalves): modo de atuação do arguido revelador de elevado grau de ilicitude perdurando as agressões ao longo de cerca de 10 anos, evidenciando indiferença face às consequências nefastas do crime para a saúde da ofendida, dolo direto, e atendendo às necessidades de prevenção geral e especial evidenciada pelo arguido, marcada pela ausência de autocrítica, de arrependimento ou interiorização do mal do crime, com relevantes antecedentes criminais – 2 anos e 6 meses de prisão. Ac. TRC de 15-09-2010 (relator Orlando Gonçalves): deve ser suspensa a execução da pena de 3 anos e 6 meses de prisão aplicada pela prática de crime de violência doméstica a arguido inserido sem antecedentes criminais, inserido na família e que deixou de viver com a ofendida. Ac. TRE de 09-10-2012 (relator Carlos Berguete Coelho): lesões e dores, humilhação e vergonha, com perda de amor-próprio e alterações comportamentais que levaram a vítima a ser uma pessoa nervosa, insegura, receosa, desmotivada, descrente na vida, sendo que a lesada é pessoa pública na cidade em que vive e que a conduta do agressor, que a levou a sair de casa, foi do conhecimento público – 8 500 €. AC TRG de 12-09-2011 (relator Fernando Monterroso): ofensas físicas e insultos ao longo de todo o tempo de convivência conjugal – 5 000 €. Das questões controvertidas na jurisprudência Resulta do exposto que a jurisprudência não tem sido unânime entre a necessidade do cumprimento do disposto no art. 358º do CPP em caso de se entender, em sede de decisão MANUAL PLURIDISCIPLINAR 113 - Violê nc ia Domé s t ic a - - ENQ UA DR A M E NTO L E G A L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 114 - - final, que os factos são subsumíveis não ao tipo de violência doméstica, mas tão-só ao de ofensas à integridade física; e bem assim, no caso de, nessa mesma fase processual de Julgamento, se proceder a uma alteração da qualificação jurídica daquele para este tipo de ilícito. Também a qualificação da conduta, designadamente em casos de autonomização do tipo de homicídio, não se apresenta jurisprudencialmente homogénea, como ressalta dos exemplos que acima se transcreveram. Outra questão que tem gerado divergências no seio da jurisprudência é a da motivação do despacho do juiz que valida o segredo de justiça, designadamente o que constitui fundamento de facto bastante para escorar a excecionalidade deste instituto. 6. A JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS HUMANOS A atividade jurisprudencial do TEDH, marcada pela prossecução de uma maior efetividade do sistema de proteção de direitos humanos da CEDH, tem vindo a incidir com crescente frequência sobre o fenómeno da violência doméstica (Eugenia López-Jacoiste Díaz, Violencia doméstica y malos tratos en el Tribunal Europeo de Derechos Humanos, Anuario Español de derecho internacional, ISSN 0212-0747, Nº 25, 2009, páginas 383411), que enquadra, em particular, no âmbito dos direitos à vida (cfr. artigo 2º, da CEDH), à proibição da tortura (cfr. artigo 3º, da CEDH), ao respeito pela vida privada e familiar (cfr. artigo 8º, da CEDH) e à proibição de discriminação (cfr. artigo 14º, da CEDH): (Helena Susano) Artigo 2º (Direito à vida) 1 - O direito de qualquer pessoa à vida é protegido pela lei. Ninguém poderá ser intencionalmente privado da vida, salvo em execução de uma sentença capital pronunciada por um tribunal, no caso de o crime ser punido com esta pena pela lei. Artigo 3º (Proibição da tortura) Ninguém pode ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes. Artigo 8º (Direito ao respeito pela vida privada e familiar) 1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência. 2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem - estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros. Artigo 14º (Proibição de discriminação) O gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção deve ser assegurado sem quaisquer distinções, tais como as fundadas no sexo, raça, cor, língua, religião, opiniões MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 115 - Violê nc ia Domé s t ic a - - ENQ UA DR A M E NTO L E G A L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 116 - - políticas ou outras, a origem nacional ou social, a pertença a uma minoria nacional, a riqueza, o nascimento ou qualquer outra situação. Para o TEDH, a violência doméstica, além de poder violar ou fazer perigar o direito à vida, consagrado no artigo 2º, da CEDH, é suscetível de consubstanciar uma tortura ou um tratamento degradante e desumano e ser, assim, merecedora da tutela do artigo 3º, da Convenção. Para beneficiarem de tutela, os maus-tratos deverão assumir um mínimo de gravidade, a qual deverá ser aferida atendendo à imagem global dos factos. Assim, há que atender a todas as circunstâncias do caso concreto, tais como a natureza, contexto, duração e efeitos das condutas, assim como o sexo, idade e estado de saúde da vítima. Também o artigo 8º, da CEDH, tem dado origem a uma profícua atividade jurisprudencial por parte do TEDH na esfera da violência doméstica. Note-se que, para este Tribunal, o conceito de respeito pela vida privada e familiar inclui a defesa da integridade física e psíquica dos indivíduos. Como refere Susana Almeida: “O art. 8º (…) concede assento convencional ao direito ao respeito pela vida privada e familiar e apresenta como objectivo essencial impedir a ingerência arbitrária das autoridades públicas na esfera pessoal e familiar do indivíduo” [O respeito pela vida (privada e) familiar na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem: a tutela das novas formas de família, p. 63/64]. “Mas o Tribunal, apoiado no vocábulo “respeito”, tem reafirmado continuamente que, para garantir o exercício do direito ao respeito pela vida privada e familiar, este preceito faz impender sobre o Estado não apenas as tradicionais obrigações negativas, que se consubstanciam num dever de abstenção de ingerência activa na vida privada e familiar, mas também obrigações positivas, que se traduzem num dever de adopção de medidas tendentes a assegurar o exercício efectivo do direito em análise, em homenagem ao referido princípio da efectividade. De facto, uma vez que é necessário assegurar a efectividade do direito ao respeito pela vida privada e familiar, a obrigação positiva afigura-se aos órgãos de Estrasburgo como “inerente” ao direito a garantir” (Susana Almeida, obra citada). O TEDH tem vindo a entender que, desde logo, o artigo 8º, confere proteção às pessoas contra ingerências arbitrárias das autoridades públicas na sua vida privada e familiar, prevendo tal normativo, igualmente, obrigações positivas para assegurar o efetivo respeito pela vida privada e familiar. Tais obrigações poderão implicar, por parte dos Estados-membros, a adoção de medidas tendentes a assegurar a proteção efetiva, em particular das pessoas vulneráveis, como o são as vítimas de violência doméstica. Por seu turno, a respeito do artigo 14º, da CEDH, o TEDH, tem reiteradamente afirmado que a discriminação consiste em tratar de maneira diferente pessoas em situação semelhante, sem justificação objetiva e razoável. Com efeito, medidas aparentemente neutras poderão ter efeitos prejudiciais e desproporcionados sobre determinados grupos de pessoas e, por essa via, consubstanciarem fatores de discriminação, exceto se, no caso concreto, visarem fins legítimos e os meios utilizados forem adequados, necessários e proporcionais. Todavia, o TEDH admite discriminações positivas, em que a diferença de tratamento se destina a corrigir desigualdades, nomeadamente, desigualdades de género. MANUAL PLURIDISCIPLINAR Seguidamente, iremos apreciar a atuação do TEDH no âmbito da violência doméstica com um pouco mais de detalhe, tendo em conta os normativos mais frequentemente convocados. Direito à vida - artigo 2º, da CEDH O direito à vida, consagrado no artigo 2º, da CEDH, é um dos valores fundamentais do Conselho da Europa e dos seus Estados-membros19, impondo-se tanto aos Estadosmembros, como aos particulares. Deste artigo da CEDH decorre igualmente, para os Estados-membros, uma obrigação positiva, ou seja, implica o dever de estes tomarem as medidas necessárias à defesa e proteção da vida e de investigarem e punirem qualquer atentado contra a vida. Neste campo, da análise da jurisprudência do TEDH decorre que este Tribunal exerce um controlo estrito dos motivos invocados para excecionar a incriminação ou perseguição criminal de quaisquer atentados à vida humana. Neste sentido, cfr., v.g., Mac Cann e outros contra o Reino Unido, de 27-09-1995, Req. n/ 18984/91, Pretty contra o Reino Unido, de 29-04-2002, Req. n/ 2346/02. O TEDH não veio, ainda, definir “vida”, nem relativamente ao momento e às condições em que tem início (nomeadamente, escusando-se a pronunciar-se sobre a existência de um direito ao aborto ou de um direito à vida intra-uterina, e, desse modo, reconhecendo aos Estados-membros uma larga margem de apreciação – cfr., a este respeito, Open door e Dublin Well Woman contra Irlanda, de 29-10-1992, Req. n/ 14234/88), nem no que concerne à proteção do final da vida, embora não reconheça um direito a morrer ou ao suicídio assistido (cfr. Pretty contra Reino Unido, de 29-04-2002, Req. n/ 2346/02). Como arestos mais recentes em que os direitos consagrados por este normativo são convocados em situações de violência doméstica, destacam-se os seguintes (sumários oficiais em língua inglesa): a) Kontrovà c. Eslováquia (31 maio 2007) On 2 November 2002 the applicant filed a criminal complaint against her husband for assaulting her and beating her with an electric cable. Accompanied by her husband, she later tried to withdraw her criminal complaint. She consequently modified the complaint such that her husband’s alleged actions were treated as a minor offence which called for no further action. On 31 December 2002 her husband shot dead their daughter and son, born in 1997 and 2001. Before the European Court of Human Rights, the applicant alleged that the police, aware of her husband’s abusive and threatening behaviour, had failed to take appropriate action to protect her children’s lives. She further complained that it had not been possible for her to obtain compensation. The European Court of Human Rights held that there had been a violation of Article 2 (right to life) of the European Convention on Human Rights, concerning the authorities’ failure to protect the applicant’s children’s lives. It observed that the situation in the applicant’s family had been known to the local police given the criminal complaint of November 2002 and the emergency phone calls of December 2002. In response, under 19 Ireneu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem anotada, 3ª Edição Revista e Atualizada, Coimbra: Coimbra Editora, 2005. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 117 - Violê nc ia Domé s t ic a - - ENQ UA DR A M E NTO L E G A L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 118 - - the applicable law, the police had been obliged to: register the applicant’s criminal complaint; launch a criminal investigation and criminal proceedings against the applicant’s husband immediately; keep a proper record of the emergency calls and advise the next shift of the situation; and, take action concerning the allegation that the applicant’s husband had a shotgun and had threatened to use it. However, one of the officers involved had even assisted the applicant and her husband in modifying her criminal complaint of November 2002 so that it could be treated as a minor offence calling for no further action. In conclusion, as the domestic courts had established and the Slovakian Government had acknowledged, the police had failed in its obligations and the direct consequence of those failures had been the death of the applicant’s children. The Court further held that there had been a violation of Article 13 (right to an effective remedy) of the Convention, as the applicant should have been able to apply for compensation for non-pecuniary damage, but no such remedy had been available to her. b) Branko Tomašić e outros c. Croácia (15 janeiro 2009) The applicants were the relatives of a baby and his mother whose husband/father had killed both them and himself one month after being released from prison, where he had been held for making those same death threats. He was originally ordered to undergo compulsory psychiatric treatment while in prison and after his release, as necessary, but the appeal court ordered that his treatment be stopped on his release. The applicants complained, in particular that the Croatian State had failed to take adequate measures to protect the child and his mother and had not conducted an effective investigation into the possible responsibility of the State for their deaths. The Court held that there had been a violation of Article 2 (right to life) of the Convention, on account of the Croatian authorities’ lack of appropriate steps to prevent the deaths of the child and his mother. It observed in particular that the findings of the domestic courts and the conclusions of the psychiatric examination undoubtedly showed that the authorities had been aware that the threats made against the lives of the mother and the child were serious and that all reasonable steps should have been taken to protect them. The Court further noted several shortcomings in the authorities’ conduct: although the psychiatric report drawn up for the purposes of the criminal proceedings had stressed the need for the husband’s continued psychiatric treatment, the Croatian Government had failed to prove that such treatment had atually and properly been administered; the documents submitted showed that the husband’s treatment in prison had consisted of conversational sessions with prison staff, none of whom was a psychiatrist; neither the relevant regulations nor the court’s judgment ordering compulsory psychiatric treatment had provided sufficient details on how the treatment was to be administered; and, lastly, the husband had not been examined prior to his release from prison in order to assess whether he still posed a risk to the child and his mother. The Court therefore concluded that the relevant domestic authorities had failed to take adequate measures to protect their lives. c) Opuz c. Turquia (9 Junho 2009) The applicant and her mother were assaulted and threatened over many years by the applicant’s husband, at various points leaving both women with life-threatening injuries. With only one exception, no prosecution was brought against him on the grounds that both women had withdrawn their complaints, despite their explanations that the husband had harassed them into doing so, threatening to kill them. He subsequently stabbed his wife seven times and was given a fine equivalent to about 385 euros, payable in instalments. The two women filed numerous complaints, claiming their lives were in danger. The husband was questioned and released. Finally, when the two women were trying to move away, the husband shot dead his mother-in-law, arguing that his honour had been at stake. He was convicted for murder and sentenced to life imprisonment but released pending his appeal, whereupon his wife claimed he continued to threaten her. The Court held that there had been a violation of Article 2 (right to life) of the Convention concerning the murder of the husband’s mother-in-law and a violation of Article 3 (prohibition of inhuman or degrading treatment) of the Convention concerning the State’s failure to protect his wife. It found that Turkey had failed to set up and implement a system for punishing domestic violence and protecting victims. The authorities had not even used the protective measures available and had discontinued proceedings as a “family matter” ignoring why the complaints had been withdrawn. There should have been a legal framework allowing criminal proceedings to be brought irrespective of whether the complaints had been withdrawn. The Court also held – for the first time in a domestic violence case – that there had been a violation of Article 14 (prohibition of discrimination), in conjunction with Articles 2 and 3 of the Convention: it observed that domestic violence affected mainly women, while the general and discriminatory judicial passivity in Turkey created a climate that was conducive to it. The violence suffered by the applicant and her mother could therefore be regarded as having been gender-based and discriminatory against women. Despite the reforms carried out by the Turkish Government in recent years, the overall unresponsiveness of the judicial system and the impunity enjoyed by aggressors, as in the applicant’s case, indicated an insufficient commitment on the part of the authorities to take appropriate action to address domestic violence. d) Kılıç c. Turquia (proc. 63034/11– aguarda decisão final) Application communicated to the Turkish Government on 24 September 2013 The applicant claims that the domestic authorities failed to safeguard the right to life of her daughter, who had been shot and killed by her husband. She alleges in particular that, despite several requests to be provided with protection, the authorities had rejected her daughter’s requests and had not admitted her to a women’s shelter because she had seven children. She further submits that, following the death of her daughter, no effective investigation was carried out. She also complains that her daughter was discriminated against on account of her gender. The Court communicated the application to the Turkish Government and put questions to the parties under Articles 2 (right to life), 13 (right to an effective remedy), 14 (prohibition of discrimination) and 35 (admissibility criteria) of the Convention. MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR Proibição da tortura - 3º, da CEDH Por seu turno, o artigo 3º, da CEDH, contém uma proibição e uma garantia absoluta contra a tortura e as penas e tratamentos desumanos ou degradantes. Tal como o direito à 119 - Violê nc ia Domé s t ic a - - ENQ UA DR A M E NTO L E G A L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 120 - - vida, esta interdição não pode ser objeto de nenhuma limitação ou derrogação por parte dos Estados-membros (cfr. Soering contra Reino Unido, 07-07-1089, Req. n/14038/88). O TEDH tem procurado distinguir os conceitos de tortura, penas e tratamentos desumanos, e penas e tratamentos degradantes. Assim, a tortura tem vindo a ser definida por este Tribunal como “tratamentos desumanos deliberados e que causam um sofrimento muito sério e cruel” [Irlanda contra Reino Unido (pleno), de 18-01-1978, Req. n/ 5310/71, §167], distinguindo-se pela intenção deliberada, o objetivo determinado e o sofrimento intenso. O mau tratamento deverá, para este Tribunal, ter um mínimo de gravidade para justificar a aplicação do normativo em causa. O tratamento desumano consiste, para o TEDH, em provocar, de forma voluntária, um sofrimento físico ou psíquico de particular intensidade, enquanto os tratamentos degradantes são definidos, por este Tribunal, como aqueles que humilham o indivíduo de forma grosseira, ou o obrigam a agir contra a sua consciência e vontade (cfr. Tyrer contra Reino Unido, de 25-04-1978, Req. n/ 5856/72). Este artigo impõe aos Estados-membros que levem a cabo inquéritos oficiais efetivos e aprofundados aos casos de tortura. Para o TEDH, a violação deste artigo da CEDH por um Estado-membro tanto poderá ser material, enquanto violação da proibição propriamente dita, como formal, nos casos de falta de promoção processual. Neste âmbito, há que salientar que os indivíduos especialmente vulneráveis têm direito a que o Estado tome as medidas necessárias à prevenção de tais atos e à proteção daqueles.20 Como mais relevantes produções jurisprudenciais neste âmbito, cfr. o referido aresto Tyrer contra Reino Unido; Tomasi contra França, de 27-09-1992, Req. n/12850/87; e Selmouni contra França, de 28-07-1999, Req. n/ 25803/94. No que concerne aos direitos ínsitos no artigo 3º, da CEDH, no âmbito da violência doméstica/violência de género, cfr. as seguintes decisões do TEDH (sumários oficiais, em língua inglesa): a) E.S. e outros c. Eslováquia (15-09-2009) In 2001 the first applicant left her husband and lodged a criminal complaint against him for ill- treating her and her children (born in 1986, 1988 and 1989) and sexually abusing one of their daughters. He was convicted of violence and sexual abuse two years later. Her request for her husband to be ordered to leave their home was dismissed, however; the court finding that it did not have the power to restrict her husband’s access to the property (she could only end the tenancy when divorced). The first applicant and her children were therefore forced to move away from their friends and family and two of the children had to change schools. They complained that the authorities had failed to protect them adequately from domestic violence. The Court held that Slovakia had failed to provide the first applicant and her children with the immediate protection required against her husband’s violence, in violation of Article 3 (prohibition of inhuman or degrading treatment) and Article 8 (right to private and family life) of the Convention. It observed that, given the nature and severity of the allegations, the first applicant and the children had required protection immediately, not one or two years later. The first applicant had further been unable to apply to sever 20 Ireneu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem anotada, 3ª Edição Revista e Atualizada,Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 72. MANUAL PLURIDISCIPLINAR the tenancy until her divorce was finalised in May 2002, or to apply for an order excluding her former husband from the matrimonial home until after the law was amended in January 2003. She had therefore been without effective protection for herself and the children during the interim. b) Munteanu c. República da Moldávia (Proc. 34168/11 – aguarda decisão final) The applicants are a mother and her son. Shortly after the first applicant’s husband lost his job, he started drinking heavily, became violent towards the applicants and sold items from the house in order to purchase alcohol. In 2007 he severely beat the first applicant, following which she was treated in hospital for three weeks. The violence, both verbal and physical, continued thereafter. The second applicant was also regularly beaten and insulted and would often go to his friends’ houses to prepare for school or simply rest from the scandals at home and avoid further violence towards him. The applicants complain in particular that the authorities tolerated the abuse on the part of the first applicant’s husband and, by failing to enforce the protection order, encouraged his feeling of impunity. They further complain of discrimination against women on the part of the authorities. The Court communicated the application to the Moldovan Government and put questions to the parties under Articles 3 (prohibition of inhuman or degrading treatment), 8 (right to respect for private and family life), 13 (right to an effective remedy) and 14 (prohibition of discrimination) of the Convention. c) Cămărăşescu c. Roménia (Proc. 49645/09, aguarda decisão final) The applicant married in 1979 and the couple had four children. Throughout their marriage, the applicant’s husband was violent towards the applicant and their children on numerous occasions. In 2007, when her husband became involved in an extramarital relationship and filed for divorce, the assaults against the applicant intensified. Their divorce was finalised in December 2008. The applicant complains in particular that the authorities constantly dismissed her complaints and failed to take any effective measures o protect her from the ill-treatment she had suffered at the hands of her violent husband. The Court communicated the application to the Romanian Government and put questions to the parties under Articles 1 (obligation to respect human rights), 3 (prohibition of inhuman or degrading treatment) and 8 (right to respect for private and family life) of the Convention. d) E.M. c. Roménia (30 Outubro 2012) The applicant alleged in particular that the investigation into her criminal complaint of domestic violence committed in the presence of her daughter, aged one and a half, had not been effective. The Romanian courts had dismissed the applicant’s complaints on the ground that her allegations that she had been subjected to violence by her husband had not been proven. The Court held that there had been a violation of Article 3 (prohibition of inhuman or degrading treatment) of the Convention under its procedural limb, finding that the manner in which the investigation had been conducted had not afforded the applicant the effective protection required by Article 3. It observed in particular that, when making the first of her complaints, the applicant had requested assistance and protection from MANUAL PLURIDISCIPLINAR 121 - Violê nc ia Domé s t ic a - - ENQ UA DR A M E NTO L E G A L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 122 - - the authorities for herself and her daughter against her husband’s aggressive conduct. Despite the fact that the statutory framework provided for cooperation between the various authorities and for non-judicial measures to identify and ensure action was taken in respect of domestic violence, and although the medical certificate provided prima facie evidence of the applicant’s allegations, it did not appear from the case file that any steps had been taken to that end. e) Valiulienė c. Lituânia (26 Março 2013) This case concerned the complaint by a woman who was a victim of domestic violence about the authorities’ failure to investigate her allegations of ill-treatment and to bring her partner to account. The Court held that there had been a violation of Article 3 (prohibition of inhuman or degrading treatment) of the Convention, finding that the practices at issue in the instant case and the manner in which the criminal-law mechanisms had been implemented had not provided the applicant adequate protection against acts of domestic violence. In particular, there had been delays in the criminal investigation and the public prosecutor had decided to discontinue the investigation. f) D.P. c. Lituânia (22 Outubro 2013) The applicant married in 1989 and the couple divorced in 2001. They had four children (born in 1988, 1990, 1992 and 2000 respectively). The applicant complained in particular that the criminal proceedings in respect of her former husband for intentional and systematic beatings inflicted on her and their three older children had been protracted and the case had not been examined within a reasonable time. As a result, she submitted, the prosecution had become time-barred and her former husband had not received appropriate punishment by a court. After the failure of attempts to reach a friendly settlement, the Lithuanian Government informed the Court in September 2012 that they proposed to make a unilateral declaration with a view to resolving the issue of the State’s accountability for failure to prevent domestic violence, raised by the application. In the light of the Court’s case-law and the circumstances of the present case, the Government notably acknowledged that the manner in which the criminal-law mechanisms had been implemented in the instant case was defective as far as the proceedings were concerned, to the point of constituting a violation of the State’s positive obligations under Article 3 (prohibition of inhuman or degrading treatment) of the Convention. Taking note of the terms of the Government’s declaration and of the modalities for ensuring compliance with the undertakings referred to therein, the Court decided to strike the application out of its list of cases in accordance with Article 37 (striking out applications) of the Convention. g) D.M.D. c. Roménia (Proc. 23022/13 – aguarda decisão final) The applicants’ parents got married in 1992 and divorced in September 2004. Soon after the applicant’s birth in 2001 the relations between the parents started deteriorating as the father could not stand the baby’s cries and did not want to support the additional costs required for the upbringing of the new-born. About six month after the applicant’s birth, the father became abusive towards his son. As the mother tried to reason him or intervene to protect the child, the couple got into violent fights. In April 2004, during an episode of aggressiveness towards the applicant, the mother fled home with the child and took shelter with a relative. A medical certificate later established that the applicant suffered from reactive attachment disorder. The psychiatrist recommended that the child be protected from any traumatising situations and that he receive psychotherapy. The applicant complains in particular that the authorities (police, prosecutor and courts) failed to investigate promptly the allegations of ill-treatment inflicted on him, despite the evidence brought to them. He further complains about the length of the criminal proceedings against his father and about the failure of the courts to award him damages. The Court communicated the application to the Romanian Government and put questions to the parties under Articles 3 (prohibition of inhuman or degrading treatment), 6 § 1 (right to a fair trial) and 35 (inadmissibility criteria) of the Convention. h) Opuz c. Turquia (9 Junho 2009) – também referido a respeito dos artigos 2º e 14º, da CEDH The applicant and her mother were assaulted and threatened over many years by the applicant’s husband, at various points leaving both women with life-threatening injuries. With only one exception, no prosecution was brought against him on the grounds that both women had withdrawn their complaints, despite their explanations that the husband had harassed them into doing so, threatening to kill them. He subsequently stabbed his wife seven times and was given a fine equivalent to about 385 euros, payable in instalments. The two women filed numerous complaints, claiming their lives were in danger. The husband was questioned and released. Finally, when the two women were trying to move away, the husband shot dead his mother-in-law, arguing that his honour had been at stake. He was convicted for murder and sentenced to life imprisonment but released pending his appeal, whereupon his wife claimed he continued to threaten her. The Court held that there had been a violation of Article 2 (right to life) of the Convention concerning the murder of the husband’s mother-in-law and a violation of Article 3 (prohibition of inhuman or degrading treatment) of the Convention concerning the State’s failure to protect his wife. It found that Turkey had failed to set up and implement a system for punishing domestic violence and protecting victims. The authorities had not even used the protective measures available and had discontinued proceedings as a “family matter” ignoring why the complaints had been withdrawn. There should have been a legal framework allowing criminal proceedings to be brought irrespective of whether the complaints had been withdrawn. The Court also held – for the first time in a domestic violence case – that there had been a violation of Article 14 (prohibition of discrimination), in conjunction with Articles 2 and 3 of the Convention: it observed that domestic violence affected mainly women, while the general and discriminatory judicial passivity in Turkey created a climate that was conducive to it. The violence suffered by the applicant and her mother could therefore be regarded as having been gender-based and discriminatory against women. Despite the reforms carried out by the Turkish Government in recent years, the overall unresponsiveness of the judicial system and the impunity enjoyed by aggressors, as in the applicant’s case, indicated an insufficient commitment on the part of the authorities to take appropriate action to address domestic violence. MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 123 - Violê nc ia Domé s t ic a - - ENQ UA DR A M E NTO L E G A L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 124 - - i) Eremia e outros c. República da Moldávia (28 Maio 2013) The first applicant and her two daughters complained about the Moldovan authorities’ failure to protect them from the violent and abusive behaviour of their husband and father, a police officer. The Court held that there had been a violation of Article 3 (prohibition of inhuman and degrading treatment) of the Convention in respect of the first applicant in that, despite their knowledge of the abuse, the authorities had failed to take effective measures against her husband and to protect her from further domestic violence. It further held that there had been a violation of Article 8 (right to respect for private and family life) of the Convention in respect of the daughters, considering that, despite the detrimental psychological effects of them witnessing their father’s violence against their mother in the family home, little or no action had been taken to prevent the recurrence of such behaviour. Lastly, the Court held that there had been a violation of Article 14 (prohibition of discrimination) read in conjunction with Article 3 of the Convention in respect of the first applicant, finding that the authorities’ actions had not been a simple failure or delay in dealing with violence against her, but had amounted to repeatedly condoning such violence and reflected a discriminatory attitude towards the first applicant as a woman. In this respect, the Court observed that the findings of the United Nations Special Rapporteur on violence against women, its causes and consequences only went to support the impression that the authorities did not fully appreciate the seriousness and extent of the problem of domestic violence in the Republic of Moldova and its discriminatory effect on women. j) Rumor c. Itália (27 maio 2014) - também referido a respeito do artigo 8º, da CEDH The applicant complained that the authorities had failed to support her following the serious incident of domestic violence against her in November 2008 or to protect her from further violence. She alleged in particular that her former partner had not been obliged to have psychological treatment and continued to represent a threat to both her and her children. She further claimed that the reception centre chosen for his house arrest, situated just 15km from her home, had been inadequate, submitting that she had been intimidated twice by employees of the reception centre which was in breach of a court order prohibiting any form of contact with her former partner. Lastly, she alleged that these failings had been the result of the inadequacy of the legislative framework in Italy in the field of the fight against domestic violence, and that this discriminated against her as a woman. The Court held that there had been no violation of Article 3 (prohibition of inhuman and degrading treatment) alone and in conjunction with Article 14 (prohibition of discrimination) of the Convention. It found that the Italian authorities had put in place a legislative framework allowing them to take measures against persons accused of domestic violence and that that framework had been effective in punishing the perpetrator of the crime of which the applicant was victim and preventing the recurrence of violent attacks against her physical integrity. l) S. H. H. c. Turquia (Proc. 22930/08 – aguarda decisão final) - também referido a respeito do artigo 8º, da CEDH MANUAL PLURIDISCIPLINAR The applicant, who was sexually assaulted by her father at the age of eight, subjected to sexual abuse by him over a three-year period and raped by him at the age of twelve, complains in particular that the sentence imposed on her father was insufficient and that he was not charged with rape because the investigation carried out by the domestic authorities was inadequate. The Court communicated the application to the Turkish Government and put questions to the parties under Articles 3 (prohibition of inhuman or degrading treatment), 8 (right to respect for private and family life) and 13 (right to an effective remedy) of the Convention. Direito ao respeito pela vida privada e familiar - artigo 8º, da CEDH Quanto ao artigo 8º, da CEDH, o mesmo consagra o direito ao respeito pela vida privada e familiar. Esta norma tem como principal finalidade a proteção dos particulares contra as ingerências arbitrárias dos poderes públicos na sua vida privada e familiar (cfr. Niemietz contra Alemanha, de 16-12-1992, Req. n/ 13710/88), no seu domicílio (cfr. Gillow contra Reino Unido, de 24-11-1986, Req. n/ 9063/80) e na sua correspondência (cfr. Dudgeon contra Reino Unido, de 22-10-1981, Req. n/ 7525/76, e Malone contra Reino Unido, de 02-09-1984, Req. n/ 8691/79). Desde logo, a proteção da vida familiar pressupõe a existência de uma família. A este respeito, destacam-se os seguintes arestos do TEDH, os quais vieram conformar o entendimento deste Tribunal a respeito de tal proteção: - Dudgeon contra Reino Unido, de 22-10-1981, Req. n/ 7525/76; - Malone contra Reino Unido, de 02-09-1984, Req. n/ 8691/79; - Ignaccolo-Zenide contra Roménia, de 25-01-2000, Req. n/ 31679/96; - Niemietz contra Alemanha, de 16-12-1992, Req. n/ 13710/88; - Marckx contra Bélgica, de 13-06-1979, Req. n/ 6833/74; - Johnston e outros contra Irlanda, de 18-12-1986, Req. n/ 9697/82. No que especificamente concerne ao artigo 8º, da CEDH, e à problemática da violência doméstica/violência de género, destacam-se, de entre a mais recente produção jurisprudencial do TEDH, os seguintes arestos, cujos sumários oficiais se elencam (sumários oficiais em língua inglesa): a) Bevacqua e S. c. Bulgária (12-06-2008) The first applicant, who claimed she was regularly battered by her husband, left him and filed for divorce, taking their three-year-old son (the second applicant) with her. However, she maintained that her husband continued to beat her. She spent four days in a shelter for abused women with her son but was allegedly warned that she could face prosecution for abducting the boy, leading to a court order for shared custody, which, she stated, her husband did not respect. Pressing charges against her husband for assault allegedly provoked further violence. Her requests for interim custody measures were not treated as priority and she finally obtained custody only when her divorce was pronounced more than a year later. The following year she was again battered by her ex-husband and her requests for a criminal prosecution were rejected on the ground that it was a “private matter” requiring a private prosecution. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 125 - Violê nc ia Domé s t ic a - - ENQ UA DR A M E NTO L E G A L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 126 - - The Court held that there had been a violation of Article 8 (right to respect for family life) of the Convention, given the cumulative effects of the domestic courts’ failure to adopt interim custody measures without delay in a situation which had affected adversely the applicants and, above all, the well-being of the second applicant and the lack of sufficient measures by the authorities during the same period in reaction to the behaviour of the first applicant’s former husband. In the Court’s view, this amounted to a failure to assist the applicants contrary to the State positive obligations under Article 8 of the Convention to secure respect for their private and family life. The Court stressed in particular that considering the dispute to be a “private matter” was incompatible with the authorities’ obligation to protect the applicants’ family life. b) E.S. e outros c. Eslováquia (15-09-2009) – já referido a respeito do artigo 3º, da CEDH c) Munteanu c. República da Moldávia (Proc. 34168/11 – aguarda decisão final) – já referido a respeito do artigo 3º, da CEDH d) A. c. Croácia (14-10-2010) The applicant’s now ex-husband (suffering from post-traumatic stress disorder, paranoia, anxiety and epilepsy) allegedly subjected her to repeated physical violence causing bodily injury and death threats over many years and also regularly abused her in front of their young daughter. After going into hiding, the applicant requested a court order preventing her ex-husband from stalking or harassing her. It was refused on the ground that she had not shown an immediate risk to her life. The Court held that there had been a violation of Article 8 (right to respect for private and family life) of the Convention in that the Croatian authorities had failed to implement many of the measures ordered by the courts to protect the applicant or deal with her ex- husband’s psychiatric problems, which appeared to be at the root of his violent behaviour. It was also unclear whether he had undergone any psychiatric treatment. e) Hajduovà c. Eslováquia (30 Novembro 2010) The applicant complained in particular that the domestic authorities had failed to comply with their statutory obligation to order that her former husband be detained in an institution for psychiatric treatment, following his criminal conviction for having abused and threatened her. The Court held that the lack of sufficient measures in response to the applicant’s former husband’s behaviour, and in particular the domestic courts’ failure to order his detention for psychiatric treatment following his conviction, had amounted to a breach of the State’s positive obligations under Article 8 (right to respect for private and family life) of the Convention. It observed in particular that, even though her former husband’s repeated threats had never materialised, they were enough to affect the applicant’s psychological integrity and well-being, so as to give rise to the State’s positive obligations under Article 8. f) Kalucza c. Hungria (24 Abril 2012) The applicant unwillingly shared her apartment with her violent common-law husband pending numerous civil disputes concerning the ownership of the flat. She alleged in particular that the Hungarian authorities had failed to protect her from constant physical and psychological abuse in her home. The Court concluded that the Hungarian authorities had failed to fulfil their positive obligations, in violation of Article 8 (right to respect for private and family life) of the Convention. It found in particular that, even though the applicant had lodged criminal complaints against her partner for assault, had repeatedly requested restraining orders to be brought against him and had brought civil proceedings to order his eviction from the flat, the authorities had not taken sufficient measures for her effective protection. g) Kowal c. Polónia (18 Setembro 2012) The applicant complained under Article 8 (right to respect for private and family life) of the Convention that Poland had failed to fulfil its positive obligation to protect him, his younger brother and their mother from domestic violence by failing to take any steps in order to enforce the judicial decision ordering his father to leave the family apartment. The applicant further alleged that, as a result, he and his family had remained exposed to the father’s violent behaviour despite the judicial injunction ordering him to leave the apartment. The Court declared the application inadmissible (manifestly ill-founded), pursuant to Article 35 (admissibility criteria) of the Convention. Having regard to the circumstances of the case seen as whole, it considered that it could not be said that the authorities’ response to the conduct of the applicant’s father had been manifestly inadequate with respect to the gravity of the offences in question. Nor could it be said that the decisions given in the case had not been capable of having a preventive or deterrent effect on the perpetrator’s conduct. Similarly, it had not been found that the authorities had failed to view the applicant’s situation and the domestic violence caused by his father as a whole and to respond adequately to the situation seen in its entirety, by, for instance, conducting numerous sets of proceedings dealing with separate instances of domestic violence. h) Cămărăşescu c. Roménia (Proc. 49645/09, aguarda decisão final) – já referido a respeito do artigo 3º, da CEDH i) Y.C. c. Reino Unido (13 Março 2012) The applicant and her partner of several years had a son in 2001. In 2003 the family came to the attention of social services as a result of an “alcohol fuelled” incident between the parents. There were subsequent incidents of domestic violence and alcohol abuse which escalated from the end of 2007 with the police being called to the family home on numerous occasions. In June 2008 the local authority obtained an emergency protection order after the boy was injured during a further violent altercation between the parents. Childcare proceedings resulted in an order authorising the child to be placed for adoption. The applicant complained that the courts’ refusal to order an assessment of her as a sole carer for her son and their failure to have regard to all relevant considerations when making the placement order had violated her rights under Article 8 (right to respect for private and family life) of the Convention. The Court held that there had been no violation of Article 8 (right to respect for private and family life) of the Convention, finding that the reasons for the decision to make a placement order had been relevant and sufficient, and that the applicant had been given every opportunity to present her case and had been fully involved in the decision-making process. The Court found in particular that, in the light of the history MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 127 - Violê nc ia Domé s t ic a - - ENQ UA DR A M E NTO L E G A L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 128 - - of the case and the reports, the County Court judge’s view that a resumption of the applicant’s relationship with the father was likely and entailed a risk to the child’s well- being did not appear unreasonable. Accordingly, while it was in a child’s best interests that his or her family ties be maintained where possible, it was clear that in the instant case this consideration had been outweighed by the need to ensure the child’s development in a safe and secure environment. In this regard the Court observed in particular that attempts had been made to rebuild the family through the provision of support for alcohol abuse and opportunities for parenting assistance. When the applicant indicated that she had separated from the child’s father, she had further been given details of domestic violence support that she could access. It appeared, however, that she had not accessed such support and had ultimately reconciled with the child’s father. j) Irene Wilson c. Reino Unido (23 Outubro 2012) This case concerned the complaint by a victim of domestic violence about the authorities’ handling of the criminal proceedings against her husband for grievous bodily harm and her allegation that the suspended sentence given to him was too lenient. The Court declared the application inadmissible (manifestly ill-founded), finding that the Northern Irish authorities had not failed in their duty to protect the applicant’s rights under Article 8 (right to respect for private and family life) of the Convention. It observed in particular that the applicant only brought one complaint to the attention of the authorities: that incident was then promptly investigated, her husband arrested and charged and the ensuing criminal proceedings conducted with due expedition. The applicant had not made any other specific allegations of violence to the Court. l) Eremia e outros c. República da Moldávia (28 Maio 2013) – também referido a respeito dos artigos 3º e 14º, da CEDH The first applicant and her two daughters complained about the Moldovan authorities’ failure to protect them from the violent and abusive behaviour of their husband and father, a police officer. The Court held that there had been a violation of Article 3 (prohibition of inhuman and degrading treatment) of the Convention in respect of the first applicant in that, despite their knowledge of the abuse, the authorities had failed to take effective measures against her husband and to protect her from further domestic violence. It further held that there had been a violation of Article 8 (right to respect for private and family life) of the Convention in respect of the daughters, considering that, despite the detrimental psychological effects of them witnessing their father’s violence against their mother in the family home, little or no action had been taken to prevent the recurrence of such behaviour. Lastly, the Court held that there had been a violation of Article 14 (prohibition of discrimination) read in conjunction with Article 3 of the Convention in respect of the first applicant, finding that the authorities’ actions had not been a simple failure or delay in dealing with violence against her, but had amounted to repeatedly condoning such violence and reflected a discriminatory attitude towards the first applicant as a woman. In this respect, the Court observed that the findings of the United Nations Special Rapporteur on violence against women, its causes and consequences only went to support the impression that the authorities did not fully appreciate the seriousness and extent of the problem of domestic violence in the Republic of Moldova and its discriminatory effect on women. m) Rumor c. Itália (27 maio 2014) - também referido a respeito do artigo 3º, da CEDH The applicant complained that the authorities had failed to support her following the serious incident of domestic violence against her in November 2008 or to protect her from further violence. She alleged in particular that her former partner had not been obliged to have psychological treatment and continued to represent a threat to both her and her children. She further claimed that the reception centre chosen for his house arrest, situated just 15km from her home, had been inadequate, submitting that she had been intimidated twice by employees of the reception centre which was in breach of a court order prohibiting any form of contact with her former partner. Lastly, she alleged that these failings had been the result of the inadequacy of the legislative framework in Italy in the field of the fight against domestic violence, and that this discriminated against her as a woman. The Court held that there had been no violation of Article 3 (prohibition of inhuman and degrading treatment) alone and in conjunction with Article 14 (prohibition of discrimination) of the Convention. It found that the Italian authorities had put in place a legislative framework allowing them to take measures against persons accused of domestic violence and that that framework had been effective in punishing the perpetrator of the crime of which the applicant was victim and preventing the recurrence of violent attacks against her physical integrity. n) S. H. H. c. Turquia (Proc. 22930/08 – aguarda decisão final) The applicant, who was sexually assaulted by her father at the age of eight, subjected to sexual abuse by him over a three-year period and raped by him at the age of twelve, complains in particular that the sentence imposed on her father was insufficient and that he was not charged with rape because the investigation carried out by the domestic authorities was inadequate. The Court communicated the application to the Turkish Government and put questions to the parties under Articles 3 (prohibition of inhuman or degrading treatment), 8 (right to respect for private and family life) and 13 (right to an effective remedy) of the Convention. MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR Proibição de discriminação - artigo 14º, da CEDH Finalmente, o artigo 14º, da CEDH, proíbe a discriminação, e consagra e reconhece o direito à igualdade. Este direito não tem uma existência independente, embora seja dotado de autonomia, pelo que deverá ser apreciado conjuntamente com outros direitos consagrados na Convenção, embora possa ser constatada a sua violação sem que se verifique a violação dos direitos a que fora associada. Para o TEDH, a igualdade deverá ser assegurada sem quaisquer distinções, mas isso não impede as discriminações positivas, tendentes a corrigir desigualdade de facto. 129 - Violê nc ia Domé s t ic a - - ENQ UA DR A M E NTO L E G A L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 130 - - Depois de o TEDH ter emitido decisão final no caso Thlimmenos contra Grécia, este Tribunal passou a entender que a norma constante do artigo 14º, da CEDH, permite a condenação de um Estado-membro que não aplique um tratamento diferente às pessoas colocadas em situações sensivelmente diferentes. A este respeito, cfr. as seguintes decisões emblemáticas do TEDH: • Bélgica contra Bélgica, de 23-07-1968, Req. n/ 1474/62; • Thlimmenos contra Grécia, de 06-04-2000, Req. n/ 34369/97; • Sidarbras e Dziautas contra Lituânia, de 27-07-2004, Req. n/ 55480/00 e Req. 59330/00. Mais recentemente, vejam-se os seguintes arestos (sumários oficiais em língua inglesa), respeitantes a casos colocados perante o TEDH em que a violação do direito consagrado no 14º, da CEDH, se relacionou com a problemática da violência doméstica: a) A. c. Croácia (14-10-2010) – já referido a respeito do artigo 8º, da CEDH The applicant’s now ex-husband (suffering from post-traumatic stress disorder, paranoia, anxiety and epilepsy) allegedly subjected her to repeated physical violence causing bodily injury and death threats over many years and also regularly abused her in front of their young daughter. After going into hiding, the applicant requested a court order preventing her ex-husband from stalking or harassing her. It was refused on the ground that she had not shown an immediate risk to her life.(…) The Court further declared the applicant’s complaint under Article 14 (prohibition of discrimination) of the Convention inadmissible, on the ground, in particular, that she had not given sufficient evidence (such as reports or statistics) to prove that the measures or practices adopted in Croatia against domestic violence, or the effects of such measures or practices, were discriminatory. b) Munteanu c. República da Moldávia (Proc. 34168/11 – aguarda decisão final) – já referido a respeito dos artigos 3º e 8º, da CEDH c) Opuz c. Turquia (9 Junho 2009) – também referido a respeito do artigo 2º, da CEDH The applicant and her mother were assaulted and threatened over many years by the applicant’s husband, at various points leaving both women with life-threatening injuries. With only one exception, no prosecution was brought against him on the grounds that both women had withdrawn their complaints, despite their explanations that the husband had harassed them into doing so, threatening to kill them. He subsequently stabbed his wife seven times and was given a fine equivalent to about 385 euros, payable in instalments. The two women filed numerous complaints, claiming their lives were in danger. The husband was questioned and released. Finally, when the two women were trying to move away, the husband shot dead his mother-in-law, arguing that his honour had been at stake. He was convicted for murder and sentenced to life imprisonment but released pending his appeal, whereupon his wife claimed he continued to threaten her. The Court held that there had been a violation of Article 2 (right to life) of the Convention concerning the murder of the husband’s mother-in-law and a violation of Article 3 (prohibition of inhuman or degrading treatment) of the Convention concerning the State’s failure to protect his wife. It found that Turkey had failed to set up and implement a system for punishing domestic violence and protecting victims. The authorities had not even used the protective measures available and had discontinued proceedings as a “family matter” ignoring why the complaints had been withdrawn. There should have been a legal framework allowing criminal proceedings to be brought irrespective of whether the complaints had been withdrawn. The Court also held – for the first time in a domestic violence case – that there had been a violation of Article 14 (prohibition of discrimination), in conjunction with Articles 2 and 3 of the Convention: it observed that domestic violence affected mainly women, while the general and discriminatory judicial passivity in Turkey created a climate that was conducive to it. The violence suffered by the applicant and her mother could therefore be regarded as having been gender-based and discriminatory against women. Despite the reforms carried out by the Turkish Government in recent years, the overall unresponsiveness of the judicial system and the impunity enjoyed by aggressors, as in the applicant’s case, indicated an insufficient commitment on the part of the authorities to take appropriate action to address domestic violence. d) Eremia e outros c. República da Moldávia (28 Maio 2013) – também referido a respeito dos artigos 3º e 8º, da CEDH The first applicant and her two daughters complained about the Moldovan authorities’ failure to protect them from the violent and abusive behaviour of their husband and father, a police officer. The Court held that there had been a violation of Article 3 (prohibition of inhuman and degrading treatment) of the Convention in respect of the first applicant in that, despite their knowledge of the abuse, the authorities had failed to take effective measures against her husband and to protect her from further domestic violence. It further held that there had been a violation of Article 8 (right to respect for private and family life) of the Convention in respect of the daughters, considering that, despite the detrimental psychological effects of them witnessing their father’s violence against their mother in the family home, little or no action had been taken to prevent the recurrence of such behaviour. Lastly, the Court held that there had been a violation of Article 14 (prohibition of discrimination) read in conjunction with Article 3 of the Convention in respect of the first applicant, finding that the authorities’ actions had not been a simple failure or delay in dealing with violence against her, but had amounted to repeatedly condoning such violence and reflected a discriminatory attitude towards the first applicant as a woman. In this respect, the Court observed that the findings of the United Nations Special Rapporteur on violence against women, its causes and consequences only went to support the impression that the authorities did not fully appreciate the seriousness and extent of the problem of domestic violence in the Republic of Moldova and its discriminatory effect on women. e) Rumor c. Itália (27 maio 2014) - também referido a respeito dos artigos 3º e 6º, da CEDH The applicant complained that the authorities had failed to support her following the serious incident of domestic violence against her in November 2008 or to protect her from further violence. She alleged in particular that her former partner had not been obliged MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 131 - Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 132 - to have psychological treatment and continued to represent a threat to both her and her children. She further claimed that the reception centre chosen for his house arrest, situated just 15km from her home, had been inadequate, submitting that she had been intimidated twice by employees of the reception centre which was in breach of a court order prohibiting any form of contact with her former partner. Lastly, she alleged that these failings had been the result of the inadequacy of the legislative framework in Italy in the field of the fight against domestic violence, and that this discriminated against her as a woman. The Court held that there had been no violation of Article 3 (prohibition of inhuman and degrading treatment) alone and in conjunction with Article 14 (prohibition of discrimination) of the Convention. It found that the Italian authorities had put in place a legislative framework allowing them to take measures against persons accused of domestic violence and that that framework had been effective in punishing the perpetrator of the crime of which the applicant was victim and preventing the recurrence of violent attacks against her physical integrity. (Catarina Fernandes) MANUAL PLURIDISCIPLINAR III. Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 134 - - 1. A DENÚNCIA DO CRIME E A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL 1.1. A denúncia Considerando a natureza pública do crime de violência doméstica, restaurada pela Lei nº 7/2000, de 27.5 e vigente desde então, é suficiente, para que o Ministério Público detenha legitimidade para instaurar e prosseguir o procedimento criminal, o conhecimento, por qualquer via e modo, de factos que noticiem a prática do crime. Atentando ao escopo do presente manual e por razões de sistematização analisaremos o tópico da denúncia de modo bipartido: quem pode denunciar, onde e como o pode fazer. Quem pode denunciar III A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA O processo penal A vítima pode denunciar os factos por si, ou através de mandatário, sendo assegurado, com natureza urgente, quando a situação económica o justifique, a concessão de apoio judiciário, (cfr. artigo 25º, nº 1, da Lei nº 112/2009, de 16.9, Lei nº 34/2004, de 29.7, e Portaria nº 10/2008, de 03.01).21 Para além da vítima, a denúncia de factos integrantes do crime de violência doméstica pode (denúncia facultativa) ser efetuada por qualquer cidadão (artigo 244º, do Código de Processo Penal) e deve (denúncia obrigatória), ainda que o agente do crime não seja conhecido, ser efetuada por todos os funcionários, como tal definidos para efeitos penais (cfr. disposições conjugadas dos artigos 242º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal, e 386º, do Código Penal), que deles tomem conhecimento no exercício das suas funções ou por causa delas, dever este, condicionado, porém, ao segredo profissional a que se encontrem vinculados.22 No contexto da denúncia obrigatória importa, sinteticamente, anotar, pela potencial regularidade de conhecimento no exercício de funções de factos integradores do crime em análise, a concretização e conciliação do dever de denúncia pelos médicos - em particular, considerando o aludido conceito de funcionário para efeitos penais, quando em exercício de funções, independentemente da natureza do vínculo, em estabelecimentos públicos de prestação de cuidados de saúde, inseridos no Serviço Nacional de Saúde - e o dever de sigilo médico estabelecido em diferentes fontes normativas (artigo 26º, da Constituição da República Portuguesa, artigo 139º, do Estatuto da Ordem dos Médicos, 21 22 MANUAL PLURIDISCIPLINAR O artigo 25º, nº 1, da Lei nº 112/2009, de 16.9, prevê, igualmente, em matéria de acesso ao direito, a garantia à vítima de, com prontidão, obter consulta jurídica a efetuar por advogado. Não referenciamos, nesta sede, o segredo de Estado, por entendermos não ser relevante na denúncia que tem por objeto factos integrantes do crime de violência doméstica. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 135 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 136 - - na versão aprovada pela Lei nº 117/2015, de 31.08, artigo 195º, do Código Penal e artigos 135º, 177º, nº 2 e 180º, do Código de Processo Penal). A este propósito convocamos a análise efetuada no parecer do departamento jurídico da Ordem dos Médicos, de 28.10.201523, sobre as questões ético-jurídicas no contexto da violência doméstica, relação médico-doente e segredo médico nesse mesmo enquadramento, que conclui, na parte que agora importa considerar, do seguinte modo: 1. O segredo médico é o pilar da relação de confiança que tem de existir entre o médico e o doente; 2. A preservação do sigilo deve ser o princípio a manter, sempre que a vítima não der consentimento para a revelação dos factos; 3. A obrigação de revelação junto das autoridades policiais ou instâncias sociais competentes existe sempre que se verifique que uma criança, um idoso, um deficiente ou um incapaz são vítimas de sevícias ou maus tratos; 4. Em todas as outras situações em que a intensidade ou a reiteração da conduta do agressor são evidentes e põem em causa, de forma grave, a saúde, a integridade física ou a própria vida da vítima, poderá o médico, ponderando a situação à luz dos princípios éticos da justiça e da benevolência, desvincular-se do segredo e efetuar a denúncia. Refira-se, por fim, neste concreto, que não se vislumbram motivos para a não aplicação das conclusões firmadas neste parecer a todos os restantes profissionais de saúde enquadráveis no conceito de funcionário para efeitos penais e, bem assim, o acolhimento do juízo de proporcionalidade que subjaz à solução preconizada a todas as situações de conflito funcional entre o dever de denúncia e o dever de sigilo profissional. A denúncia ao Ministério Público é, ainda, obrigatória, mesmo que contra agente desconhecido, para as entidades policiais24 [cfr. artigo 242º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal]. A notícia do crime poderá advir de conhecimento próprio pelo Ministério Público (cfr. artigo 241º, do Código de Processo Penal) seja por perceção sensorial, seja por informação obtida através da comunicação social, de informação reservada ou de rumores públicos, desde que, nestes últimos casos, os factos revelem suficiente concretização que habilitem à formulação de um juízo de suspeita minimamente fundamentado da possibilidade de perpretação de crime. A notícia de factos integrantes de crime de violência doméstica pode, igualmente, provir de pessoa não identificada, através de denúncia anónima, prevista e regulada nos nos 6 a 8, do art. 246º, do Código de Processo Penal. Nos termos da assinalada regulação, a denúncia anónima só pode determinar a abertura de inquérito se dela se retirarem indícios da prática de crime, ou se ela própria constituir crime. Caso contrário, deverá ser destruída pela autoridade judiciária competente. 23 24 [Em linha] Disponível na internet em: <URL http://issuu.com/revistaordemdosmedicos/docs/165 >. Por entidade policial em sentido estrito deve entender-se as forças policiais com funções de segurança pública cujas competências, definidas estatutariamente, não são enquadráveis no contexto das competências previstas no artigo 1º, alínea c), do Código de Processo Penal, ou seja, que não sejam órgãos de polícia criminal, como por exemplo ocorre com a polícia municipal (cfr. Lei nº 19/2004, de 20.05). Em sentido amplo o conceito abrange os órgãos de polícia criminal e as entidades policiais em sentido estrito. Neste sentido (amplo) alude o Código de Processo Penal a órgão de polícia criminal ou outra entidade policial – cfr. artigo 243º (sublinhado nosso). MANUAL PLURIDISCIPLINAR A denúncia anónima de factos que consubstanciam a notícia de crime de violência doméstica não revela especificidades a assinalar. Onde e como denunciar A denúncia realizada pela vítima, por particular ou por funcionário não integrante de entidade policial ou órgão de policia criminal, pode ser efetuada, por escrito ou verbalmente, presencialmente: a) nos serviços do Ministério Público; b) junto de qualquer órgão de polícia criminal; c) nas delegações e gabinetes do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, IP (cfr. artigo 4º, da Lei 45/2004, de 19.08).25 A denúncia pode, ainda, ser efetuada eletronicamente através: a) do sistema de queixa eletrónica do Ministério da Administração Interna, com campo dedicado à denúncia do crime de violência doméstica - https://queixaselectronicas.mai.gov.pt/sqe.aspx?l=PT; b) do sistema de queixa online da Polícia Judiciária - https://www.policiajudiciaria. pt/PortalWeb/page/{5BFC28DE-D200-4BCC-9422-F495EE8EE82A}; e, c) de mensagem de correio eletrónico a remeter para o endereço eletrónico do serviço do Ministério Público competente - http://www.tribunaisnet.mj.pt/ endjus/default.aspx.26 A denúncia pode, finalmente, ser apresentada por escrito remetido por correio postal a qualquer uma das entidades com competência para a receber. Note-se que, independentemente da competência territorial ou material do Ministério Público ou dos OPC para a direção ou realização do inquérito, a dilucidar e solucionar de acordo com as regras legais estabelecidas nesta sede, como brevemente referiremos em III.1.3.1, impende sobre estes o dever de receber as denúncias e de praticar os atos cautelares urgentes que se mostrem necessários27 e, naturalmente, a sua posterior transmissão para órgão territorial ou materialmente competente. O reporte de factos integrantes do crime de violência doméstica denunciados por escrito ou verbalmente às entidades competentes deve ser formalizado em auto de denúncia. Se efetuado verbalmente deve ser reduzido a escrito e assinado pela entidade que a receber e pelo denunciante, devidamente identificado (artigo 246º, nº 2, do Código de Processo Penal).28 25 26 27 28 Competência extensível ao perito médico da delegação ou gabinete médico-legal do Instituto cuja intervenção seja solicitada no âmbito do serviço de escala para a realização de perícias médico-legais urgentes (cfr. nº 3, do referido artigo). A apresentação de denúncia por esta via, quando não certificada com assinatura digital, não dispensa a posterior comparência do denunciante no serviço competente. Cfr., entre outros, artigo 264º, nº 4, do Código de Processo Penal e artigo 5º, nº 1, da Lei 49/2008, de 27.8 (Lei de Organização da Investigação Criminal). “No caso de qualquer das pessoas cuja assinatura for obrigatória não puder ou se recusar a prestá-la, a autoridade ou funcionário presentes declaram no auto essa impossibilidade ou recusa e os motivos que para elas tenham sido dados” (artigo 95º, nº 3, aplicável por remissão expressa do artigo 246º, nº 2, ambos do Código de Processo Penal). MANUAL PLURIDISCIPLINAR 137 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 138 - - Caso o denunciante não conheça ou domine a língua portuguesa, a denúncia deve ser feita numa língua que aquele compreenda (artigo 246º, nº 5, do Código de Processo Penal), nomeando-se para o efeito, sem encargo para o mesmo, intérprete idóneo (artigo 92º, do Código de Processo Penal). Do mesmo modo, apesar de não se encontrar expressamente consagrada a hipótese, entendemos, que caso o denunciante seja surdo, deficiente auditivo ou mudo, deve proceder-se conforme estabelecido no artigo 93º, do Código de Processo Penal. O auto de denúncia deve mencionar na medida possível os elementos que de seguida enunciamos para o auto de notícia (art. 243º, nº 1, ex vi art. 246º, nº 3, ambos do Código de Processo Penal). Quando os factos integrantes do crime de violência doméstica forem presenciados29 pelo Ministério Público ou por qualquer outra autoridade judiciária, por órgão de polícia criminal ou por entidade policial, a formalização reveste a forma de auto de notícia30 (artigo 243º, do Código de Processo Penal), que deve ser assinado pela entidade que o assinou e pela que o mandou levantar31. Devem ser mencionados no auto de notícia (art. 243º, nº 1, do Código de Processo Penal): - os factos que constituem o crime; - o dia, a hora, o local; - as circunstâncias em que o crime foi cometido; - tudo o que se puder averiguar acerca da identificação dos agentes e dos ofendidos; e, - os meios de prova conhecidos, nomeadamente as testemunhas que puderem depor sobre os factos. De assinalar, neste contexto, que na prática os órgãos de polícia criminal, em particular a Polícia de Segurança Pública e a Guarda Nacional Republicana, já dispõem e utilizam autos de notícia e denúncia padronizados para o segmento criminal da violência doméstica, conforme aliás impõe o disposto no artigo 29º, nº 1, da Lei nº 112/2009, de 16.9. Quando a notícia de crime de violência doméstica não tiver por fonte o conhecimento próprio do Ministério Público, deve a este, no mais curto prazo possível, ser transmitida, conforme analisaremos em III.1.3.3, considerando tratar-se da primeira medida cautelar e de polícia, como tal expressamente tipificada no capítulo II, Título I, Livro VI, Parte II, do Código de Processo Penal. 29 30 31 Na interpretação do segmento normativo presenciarem aderimos às considerações do Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 02-11-2005 (Proc. R 2842/05), onde se pode ler: o termo presenciar, do art. 243.°, nº 1, do CPP, deve ser interpretado de forma a nele se incluir toda a comprovação pessoal e direta, se bem que não imediata, podendo nele incluir-se o imediatamente anterior como integrando o momento da prática dos factos (consultável em http://www. dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/e61e9711d624de2c802570b50059c0a3?OpenDocument). O auto de notícia tem o valor probatório de documento autêntico e, por isso, faz prova dos factos materiais dele constantes enquanto a sua autenticidade ou veracidade de conteúdo não forem fundadamente postos em causa (cfr. art. 169º, do Código de Processo Penal). O auto de notícia faz prova, assim, dos atos que a autoridade realizou e/ ou dos factos que percecionou, não prescindindo, ou substituindo, naturalmente, a prova dos factos integrantes do crime. A falta de assinatura do auto de notícia pela entidade autuante é geradora de mera irregularidade, a ser arguida nos termos e prazo previsto no art. 123º, do Código de Processo Penal. Neste sentido, cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 30-04-2013 (Proc. 118/12.7PTSTR.E1), consultável em http://www.dgsi.pt/jtre. nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/2fb81e68602a5d3280257de10056fb92?OpenDocument. MANUAL PLURIDISCIPLINAR Para acautelar a hipótese da verificação de episódios plúrimos, com origem em fontes autónomas, mas referenciadas a factualidade integrante no contexto do mesmo episódio de violência doméstica, aquando do registo inicial, nos OPC ou nos serviços do Ministério Público e antes da distribuição autónoma dos autos de notícia ou de denúncia, deverá, entendemos, ser oficiosamente pesquisada a (in)existência de antecedentes. A junção de autos de notícia ou denúncia, o mais precocemente possível, e o seu tratamento num único inquérito, permite o conhecimento apropriado e global do caso, uma melhor garantia de proteção da vítima e potencia uma resposta das entidades policiais e judiciárias mais adequada e eficaz. Apresentada a denúncia de crime de violência doméstica devem ser praticados os procedimentos e atos cautelares urgentes que se revelem adequados, proporcionais e necessários (cfr. III. 1.3 e III. 1.4 deste manual). Do mesmo modo, devem ser efetuadas as comunicações previstas no artigo 247º, nos 1 a 4, do Código de Processo Penal, atribuído o estatuto de vítima e prestadas as informações referentes à atribuição desse estatuto (cfr. III.1.5 deste manual) e, bem assim, prestadas as informações enunciadas no artigo 15º, nº 1, da Lei nº 111/2009, de 16.09. Devem, igualmente, sendo o caso, ser efetuadas as pertinentes comunicações com vista à articulação com a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens e a secção de Família e Menores (cfr. ponto IV. 4 do presente manual). Sendo a denúncia apresentada pela vítima, deve ser assegurada a entrega imediata, independentemente de requerimento, em língua que aquela compreenda, do certificado do registo de denúncia, que deverá conter a descrição dos factos essenciais do crime em causa (cfr. artigo 246º, nº 7, do Código de Processo Penal). Atendendo aos diferentes âmbitos de aplicação, entendemos que esta determinação não substitui, nem dispensa, a entrega de cópia do auto de notícia ou de denúncia aquando da atribuição do estatuto de vítima (artigo 14º, nº 3, da Lei nº 112/2009, de 16.09). Em todo o caso, tratando-se ou não da vítima, pelo denunciante pode, a todo o tempo, ser requerido ao Ministério Público certificado do registo da denúncia (artigo 246º, nº 6, do Código de Processo Penal). (Sérgio Pena) A intervenção médico-legal e forense No caso de terem ocorrido agressões físicas que tenham deixado marcas corporais, deve a pessoa ofendida dirigir-se à urgência hospitalar mais próxima e, logo que possível, ser sujeita a um exame médico-legal pelos peritos forenses do Gabinete Médico-Legal do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses da respetiva zona territorial. Esses exames médico-legais a uma vítima de crime são perícias médicas integrantes do sistema judicial, que procedem à verificação de marcas no corpo da vítima que tenham sido provocadas pela violência sofrida, tais como arranhões, rubores, hematomas, feridas ou outras lesões, e a pesquisa de vestígios, biológicos ou não, no seu corpo e/ou nas suas roupas e objetos que tenham sido deixados ou eventualmente utilizados pelo/a autor/a do crime, como sangue, esperma, fluídos vaginais, pele, cabelos, fibras, etc. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 139 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 140 - - A realização de exames médico-legais a uma vítima de crime torna-se imprescindível, pois podem constituir meios de prova relevantes no processo criminal. Para além da sua utilidade no domínio judicial, pela recolha de indícios da violência praticada, os exames médico-legais podem também ter um papel relevante na recuperação da própria vítima, constituindo um momento tranquilizador e reparador perante a violência experimentada no corpo e no espírito. A atividade pericial de apoio técnico à administração da justiça é a atividade fundamental e estruturante do INML, IP, conforme se pode diretamente retirar, quer do preâmbulo do Decreto-Lei nº 131/2007, de 27 de abril, quer das competências e atribuições deste Instituto previstas nos artigos 1º, nº 2, 3º, nos 1 e 2 [especialmente a alínea b], 6º, nº 2, 15º e 17º, todos daquele diploma, bem como das várias disposições relativas à organização interna do INML, IP, constantes dos respetivos Estatutos, aprovados pela Portaria nº 522/2007, de 30 de abril. Veja-se, contudo, o DL nº 166/2012, de 31 de julho, que aprova a LEI ORGÂNICA DO INSTITUTO NACIONAL DE MEDICINA LEGAL E CIÊNCIAS FORENSES, I. P., que revogou o diploma de 2007. Os serviços médico-legais são, pois, os serviços oficiais de apoio técnico pericial aos Tribunais e ao Ministério Público, na área da Medicina Legal e de outras Ciências Forenses, encontrando-se o regime jurídico da realização das perícias médico-legais e forenses estabelecido na Lei nº 45/2004, de 19 de agosto, cujas normas relativas à intervenção no processo são normas de direito processual (no âmbito civil, laboral, ou penal, consoante a situação a que se subsumam) e são em si mesmo imediatamente exequíveis. Adicionais dados sobre a organização médico-legal em Portugal estão disponíveis no sítio do INMLCF, IP. (Paulo Guerra) 1.3. A intervenção dos órgãos de polícia criminal e do Ministério Público 1.3.1. Brevíssima nota sobre o inquérito e a competência do Ministério Público e dos órgãos de polícia criminal Na configuração padrão do processo comum32, que utilizaremos por referência, a aquisição da notícia de crime de violência doméstica dá sempre lugar à abertura do inquérito, o qual compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles, e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação (art. 262º, do Código de Processo Penal). 32 Apesar de pouco expressiva na prática judiciária a sua utilização, no contexto do crime de violência doméstica, nada impede que reunidos os respetivos pressupostos, o processo seja tramitado sob a forma de processo especial sumário (artigos 381º e seguintes, do Código de Processo Penal), abreviado (artigos 391º-A e seguintes, do Código de Processo Penal) ou sumaríssimo (artigos 392º e seguintes, do Código de Processo Penal). – Cfr., contudo, III. 3-3.4. MANUAL PLURIDISCIPLINAR A direção do inquérito cabe ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal (art. 263º, do Código de Processo Penal). O Ministério Público pode conferir a órgãos de polícia criminal o encargo de procederem a quaisquer diligências e investigações relativas ao inquérito (art. 270º, do Código de Processo Penal), com exceção dos atos de competência reservada das autoridades judiciárias (artigos 270º, nº 1, 268º e 269º, todos do Código de Processo Penal). Regra geral é competente para a realização do inquérito o Ministério Público que exercer funções no local em que o crime tiver sido cometido (art. 264º, nº 1, do Código de Processo Penal e artigo 7º, do Código Penal). Quando tenham sido intraorganicamente criadas, essa competência caberá às secções especializadas na investigação do crime de violência doméstica33. Delegada pelo Ministério Público, no quadro da direção funcional do inquérito, genérica ou especificamente, a prática de atos de investigação nos órgãos de polícia criminal, a competência dos mesmos encontra-se definida, em primeira linha, na Lei nº 49/2008, de 27.8 (Lei de Organização da Investigação Criminal, doravante designada abreviadamente por LOIC). No que concretamente respeita ao crime de violência doméstica, a competência pertence, via de regra, à Guarda Nacional Republicana ou à Polícia de Segurança Pública (artigo 6º, da LOIC). A repartição de competências entre a Guarda Nacional Republicana e a Polícia de Segurança Pública, é firmada, nesta matéria, fundamentalmente em razão da sua implementação no território nacional. Deste modo, a investigação do segmento criminal em análise far-se-á pelas equipas de investigação criminal dos referidos órgãos de polícia criminal que têm competência na área onde o crime se verificou e, preferencialmente, por unidades especializadas e dedicadas à sua investigação. A Polícia Judiciária detém, igualmente, competência reservada, nos casos em que o crime em investigação tenha sido doloso ou agravado pelo resultado quando for elemento do tipo a morte de uma pessoa, ou quando na sua execução tenha sido utilizada arma de fogo34 [artigo 7º, nº 2, alíneas a) e h), da LOIC] e, bem assim, no âmbito de deferimento de competência previsto no artigo 8º, da LOIC. Na economia do presente manual, e porque a matéria atinente à intervenção dos órgãos de polícia criminal e do Ministério Público se apresenta transversal às diversas temáticas a abordar neste capítulo III, analisaremos de seguida, sem intenção de esgotar a matéria, mas por entendermos que são as que, excluindo as abordadas nos restantes pontos, merecem destaque, pela sua especificidade e relevo, as temáticas relacionadas com a avaliação do risco e com as medidas cautelares e de polícia. 33 34 Ou magistrados específicos, mediante distribuição concentrada (cfr. Instrução nº 1/2014, de 15.10.2014, de S. Exa. a Conselheira Procuradora-Geral da República, [Em linha], disponível na internet em http://www.ministeriopublico. pt/iframe/instrucoes-0). E, ainda, no caso de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual [artigo 3º, al. a), da LOIC] que aqui expressamente mencionamos em razão da regra contida na parte final do artigo 152º, nº 1, do Código Penal e a problemática da relação de concurso entre o crime de violência doméstica e alguns tipos criminais inseridos nos segmentos indicados. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 141 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 142 - - Estes temas, conjuntamente com os procedimentos cautelares urgentes (ponto 1.4), com a intervenção médico legal e forense (ponto 1.2) e com o primeiro contacto da vítima com o sistema formal de justiça (ponto 1.5), apresentam-se, cremos, como os pontos nevrálgicos de intervenção na fase inicial do processo crime. Finalizaremos, depois, com uma menção conclusiva à atividade do Ministério Público no decurso do inquérito, essencialmente, referenciada à Diretiva nº 2/2015, de 24 de novembro de 2015, da Procuradora-Geral da República. 1.3.2. A avaliação do risco É pacificamente aceite que, no contexto do crime de violência doméstica, a probabilidade de repetição e de aumento da escalada da violência é significativa. Por esse motivo, impõe-se, como essencial, a utilização de meios que permitam a correta avaliação do risco, por forma a prevenir a designada revitimização. Deste modo, sempre que exista notícia de crime de violência doméstica, devem os órgãos de polícia criminal proceder à avaliação do risco, revelando-se, ainda, imperioso que o reavaliem periodicamente e sempre que exista uma alteração nas circunstâncias que o justifique. Efetivamente, como referem Helena Moniz, Teresa Magalhães e Catarina Fernandes,35 é “hoje consensual a necessidade de o sistema formal de justiça fazer sistematicamente uma avaliação do risco em todos os casos de VD, com o objectivo de, caso a caso, analisar as probabilidades de repetição e de agravamento dos níveis de violência (e, no limite, o risco/ perigo de morte), para, em função dessa avaliação, optar pelo tipo de intervenção mais adequado a prevenir a violência, proteger as vítimas e ressocializar os agressores. Essa necessidade é ainda mais premente se se atender ao facto de que os recursos disponíveis são escassos e onerosos”. Acompanhando, ainda, as autoras, afirmam estas que “O controlo do risco deve ser realizado de forma proactiva e dinâmica” (sempre no pressuposto de que o risco pode não estar completamente anulado) e perspectivado a curto, médio e longo prazo, compreendendo três etapas: a primeira, tendo como finalidade assegurar a segurança e protecção da vítima; a segunda, tendo como objectivo prevenir a violência, removendo, evitando e reduzindo os riscos existentes; a terceira, visando a punição e, sempre que possível, a ressocialização do agressor, com o objectivo de restabelecer a paz social”.36 A avaliação do risco é hoje um imperativo e constitui um contributo indispensável para a tomada de decisões relevantes pelas instâncias formais de controle. Na sequência do IV Plano Nacional contra a Violência Doméstica (2011-2013) que estabelecia o propósito de desenvolver e implementar um instrumento de avaliação do risco de violência doméstica, está atualmente a ser utilizado pela Polícia de Segurança Pública 35 36 “Avaliação e Controlo do Risco na Violência Doméstica”, Revista do Centro de Estudos Judiciários, 2013, 1, pág. 272 ; também publicado in VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – AVALIAÇÃO E CONTROLO DE RISCOS [Em linha], Lisboa: Centro de Estudos Judiciários, 2013. Disponível na internet: <URL http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/penal/Violencia_ domestica_avaliacao_controlo_riscos.pdf?id=9&username=guest Idem, pág. 306. MANUAL PLURIDISCIPLINAR e pela Guarda Nacional Republicana um instrumento de avaliação do risco vocacionado para a realidade portuguesa. Esse instrumento, concebido pela Direção-Geral da Administração Interna em articulação com a Guarda Nacional Republicana e a Polícia de Segurança Pública (PSP) e com o apoio do Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho, da ProcuradoriaGeral Distrital de Lisboa, da Procuradoria-Geral Distrital do Porto e da ProcuradoriaGeral da República, permitiu a criação de uma ferramenta simples e consistente, do ponto de vista científico, de avaliação do risco quer na primeira linha de atendimento, quer na fase da investigação criminal. O instrumento de avaliação de risco auxilia na identificação do “nível atual de risco de revitimização que uma determinada vítima de violência doméstica incorre no momento em que denúncia (ou noutro momento posterior de contacto) a um órgão de polícia criminal os maus tratos que lhe foram infligidos por um/uma alegado/a agressor/a. A ficha RVD é uma ferramenta prática e consistente para profissionais das FS, que pretende apoiar, especificamente, a avaliação do nível atual de risco de homicídio e de ofensas graves à integridade física da vítima, bem como auxiliar, numa análise longitudinal, a dinâmica deste fenómeno. Esta ficha destina-se a ser utilizada pelos elementos das FS, que no decorrer da sua ação (atendimento no posto/esquadra, patrulha, investigação ou de policiamento de proximidade), contactam com situações de violência doméstica. Trata-se de um instrumento aplicável a qualquer vítima de violência doméstica, seja ela do sexo feminino ou masculino, de idade adulta ou menor de idade, que coabite ou não com o/a agressor/a...; ou seja: todas as situações previstas no artigo 152º do Código Penal (violência entre parceiros ou ex-parceiros de uma relação de intimidade, namorados, violência sobre outras pessoas, particularmente indefesas, que coabitem com o/a agressor/a, nomeadamente ascendentes, descendentes e outros)”.37 O instrumento assim concebido para todas as situações de violência doméstica contém fórmulas cientificamente validadas e baseia-se na experiência portuguesa sobre os mais significativos fatores de risco de continuação e escalada da violência (são 20 os fatores de risco selecionados, relativos à caraterização da violência e à perceção da vítima, ao contexto e comportamento do agente e aos fatores de vulnerabilidade da vítima), acarretando a recolha de toda a informação pertinente disponível. Esta ferramenta deverá ser utilizada por profissionais, devidamente habilitados, das forças de segurança, podendo sê-lo pelo magistrado do Ministério Público titular do inquérito, particularmente, nos casos previstos na Instrução nº 2/2014, da Procuradoria-Geral da República. Determina esta Instrução que38: a) A partir do dia 1 de novembro de 2014, os inquéritos por crime de violência doméstica serão instruídos com uma ficha de avaliação de risco para as vítimas (RVD-1L), aplicada pela Guarda Nacional Republicana ou pela Polícia de Segurança Pública aquando da elaboração de auto ou de aditamento a auto por factos integradores daquele tipo criminal. 37 38 RUI ABRUNHOSA GONÇALVES (supervisão científica), et. al., RVD - Manual de Aplicação da Ficha de Avaliação de Risco, Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna, outubro de 2004, pág. 11. Disponível em: http://www.ministeriopublico.pt/destaque/instrucao-no-22014-da-procuradora-geral-da-republica. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 143 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 144 - - b) Os referidos inquéritos serão também instruídos com uma outra ficha (RVD2L), aplicada pelas mesmas Forças de Segurança, aquando da reavaliação do nível de risco para as vítimas, no âmbito do policiamento de proximidade ou da investigação criminal. c) Nos casos de reclassificação, pelo Ministério Público, do enquadramento jurídico-penal por crime diverso do de violência doméstica, deverá tal alteração ser comunicada ao órgão de polícia criminal que tiver aplicado o instrumento de avaliação de risco, com vista à cessação do procedimento de reavaliação. d) Nos inquéritos instruídos com o instrumento de avaliação de risco deverá ser comunicado ao órgão de polícia criminal o encerramento dessa fase processual, com vista à cessação do procedimento de reavaliação. e) Quando os órgãos de polícia criminal hajam aplicado a ficha de avaliação de risco RVD-1L realizarão, sempre, reavaliações periódicas. f) O órgão de polícia criminal que tenha aplicado a ficha de avaliação de risco RVD-1L e não disponha de competência investigatória, procederá a uma única reavaliação, remetendo-a ao magistrado titular do inquérito. Neste caso, o magistrado titular poderá solicitar expressamente outras reavaliações. g) Quando o auto por crime de violência doméstica for elaborado no Ministério Público ou a denúncia aí der entrada, pode o magistrado do Ministério Público aplicar a ficha de avaliação de risco RVD-1L. h) Se no contexto referido no ponto anterior (7) vier a ser delegada competência investigatória em órgão de polícia criminal, deverá ser-lhe remetida a ficha de avaliação de risco (RVD-1L) aplicada, por forma a permitir o procedimento de reavaliação. Integram a Instrução os modelos das fichas de avaliação de risco denominadas RVD-1L e RVD-2L, que constam anexas à mesma, e disponíveis na hiperligação assinalada. Uma cuidada e especial atenção na elaboração e análise dos dados contidos nas fichas permitirá aproveitar todas as suas potencialidades no controlo dos riscos e, designadamente, a elaboração de planos de segurança para a vítima e a tomada de decisões no processo penal, adequadas e pertinentes ao caso concreto. 1.3.3. As medidas cautelares e de polícia As medidas cautelares e de polícia traduzem materialmente os atos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova, praticados pelos órgãos de polícia criminal, mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária competente para procederem a investigações e de ser instaurado um inquérito (art. 249º, nº 1, do Código de Processo Penal). Ou seja, tais medidas procuram evitar (em casos de urgência e de perigo de demora da intervenção normal das autoridades competentes) que os meios e elementos probatórios desapareçam irremediavelmente. Mesmo após a intervenção da autoridade judiciária, cabe aos órgãos de polícia criminal assegurar novos meios de prova de que tiverem conhecimento, sem prejuízo de deverem dar dela notícia imediata àquela autoridade (art. 249º, nº 3, do Código de Processo Penal). MANUAL PLURIDISCIPLINAR Trata-se de uma competência cautelar preordenada aos fins do processo penal devendo, consequentemente, obedecer aos princípios gerais que o regem. Trata-se de atos que dependem de uma convalidação por parte da autoridade judiciária, para a sua incorporação válida no processo, via de regra, após a comunicação do relatório referido no art. 253º, do Código de Processo Penal. Esta competência cautelar processual penal, não se confunde com a competência cautelar preventiva (atividade de prevenção policial), prevista na Lei de Segurança Interna e em diplomas específicos que prevejam medidas de prevenção criminal. A Constituição da República Portuguesa particulariza no seu artigo 272º, nº 2, as medidas de polícia prevenindo dois importantes princípios materiais: o princípio da tipicidade legal e o princípio da proibição do excesso. Ao nível infraconstitucional, o artigo 55º, nº 2, do Código de Processo Penal, sob a epígrafe competência dos órgãos de polícia criminal, dispõe que compete em especial a estes, mesmo por iniciativa própria, colher notícia dos crimes e impedir quanto possível as suas consequências, descobrir os seus agentes e levar a cabo os atos necessários e urgentes destinados a assegurar os meios de prova. Concatenando as medidas cautelares e de polícia constantes do capítulo expressamente dedicado às mesmas - artigos 248º a 252º-A, do Código de Processo Penal – com as previstas noutras disposições do mesmo diploma, obtemos um conjunto alargado que sintetizaremos de seguida, seguindo de perto o esforço de catalogação efetuado por Paulo Pinto de Albuquerque.39 Destacar-se-ão as medidas cautelares e de polícia que só podem ser praticadas por autoridade de polícia criminal, como tal definidas no artigo 1º, alínea d), do Código de Processo Penal, em conjugação com os estatutos das diferentes forças de segurança, daquelas que podem ser praticadas pela generalidade dos membros que compõem os órgãos de polícia criminal (artigo 1º, alínea c), do Código de Processo Penal). Compete, assim, aos órgãos de polícia criminal nesta sede: I. Comunicar a notícia do crime (artigo 248º); II. Identificar o suspeito, sempre que haja “fundadas suspeitas da prática de crimes, da pendência de processo de extradição ou expulsão, de que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou de haver contra si mandado de detenção” (artigo 250°, n° 1); III. Compelir o suspeito a permanecer no posto policial até identificação do mesmo pelo período máximo de seis horas; IV. Pedir ao suspeito “informações relativas a um crime e, nomeadamente à descoberta e à conservação de meios de prova que poderiam perder-se antes da intervenção da autoridade judiciária” (artigo 250°, n° 8); V. Deter o suspeito em flagrante delito e mantê-lo detido durante 48 horas; VI. Constituir o suspeito como arguido e interrogá-lo; VII. Recolher informações de “pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime” [artigo 249°, n° 2, al. b)]; 39 Cfr. Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2007, págs. 651 e ss. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 145 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 146 - - VIII. Recolher documentos que lhe sejam voluntariamente entregues pelas “pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime”, pelo suspeito ou pelo arguido; IX. Proceder a exame das pessoas, dos lugares e das coisas, com o consentimento do visado ou titular do lugar ou da coisa e desde que não ofenda o pudor das pessoas. X. Proibir a entrada ou trânsito de pessoas estranhas no local do crime ou quaisquer outros atos que possam prejudicar a descoberta da verdade; XI. Ordenar que uma pessoa não se afaste do local do exame e mantê-la no local, se necessário com auxílio da força; XII. Proceder a apreensões, quando haja urgência ou perigo na demora [artigo 249º, n.° 1, al. c)]; XIII. Proceder a revistas e a buscas não domiciliárias, nos termos do artigo 174°, nº 5; XIV. Proceder a apreensões, nas revistas e buscas não domiciliárias realizadas ao abrigo do artigo 174°, nº 5; XV. Proceder a revista do suspeito em caso de fuga iminente ou de detenção e a buscas no lugar em que se encontrar, com exceção da busca domiciliária, sempre que tiverem “fundada razão para crer” que neles se ocultam objetos relacionados com crime, suscetíveis de servirem a prova e que de outra forma poderiam perder-se [artigo 251°, n° 1, al. a)]; XVI. Proceder a busca domiciliária entre as 7 e as 21 horas, nos seguintes casos: i. “Fundados indícios” da prática iminente de crime que ponha gravemente em risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa no âmbito de terrorismo, de criminalidade violenta ou altamente organizada; ii. Consentimento documentado do visado; iii. Detenção em flagrante por crime punível com pena de prisão; XVII. Proceder a busca domiciliária entre as 21 e as 7 horas, nos seguintes casos: i. Consentimento documentado do visado; ii. Flagrante delito pela prática de crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a três anos; XVIII. Proceder a apreensões nas buscas domiciliárias diurnas e noturnas atrás referidas [artigo 249°, n° 1, al. c)]; XIX. Proceder a revista de pessoas que tenham de participar ou pretendam assistir a qualquer ato processual ou que, na qualidade de suspeitos, devam ser conduzidos a posto policial, sempre que houver “razões para crer” que ocultam armas ou outros objetos com os quais possam praticar atos de violência (artigo 251°, n° 1, al. b)]; XX. Ordenar a suspensão da remessa de qualquer correspondência nas estações de correios e de telecomunicações, se tiverem “fundadas razões para crer” que eles podem conter informações úteis à investigação do crime e que podem perder-se em caso de demora (artigo 252°, nº 3); XXI. Informar o titular do direito de queixa ou participação da existência da denúncia anónima (artigo 246°, n° 6). As autoridades de polícia criminal [artigo 1º, alínea d), do Código de Processo Penal] e só estas, têm, ainda, em caso de urgência ou de perigo na demora, os seguintes poderes cautelares: I. Deter uma pessoa fora de flagrante delito e mantê-la detida por 48 horas (artigo 257°, n° 2); II. Colher o compromisso de intérprete ou de perito (artigo 91°, n.° 3); III. Nomear intérprete (artigo 92°, n° 7); IV. Por delegação, ordenar a perícia, exceto autópsia médico-legal, prestação de esclarecimentos complementares e nova perícia (artigo 270°, n° 3); V. Emitir mandado de comparência (artigo 273°, nº 1); VI. Requerer diretamente ao juiz de instrução a prática dos atos processuais previstos no artigo 268°, n° 1 e no artigo 269°, nº 1; VII. Obter dados sobre a localização celular quando eles forem necessários para afastar perigo para a vida ou de ofensa à integridade física grave (artigo 252°-A). Concretamente no que respeita à prática de providências cautelares quanto aos meios de prova, o elenco enunciado não é taxativo, como resulta expresso do nº 1, do artigo 249º, do Código de Processo Penal e da locução nomeadamente, constante do nº 2, do mesmo dispositivo legal. No sentido da definição e delimitação dos atos cautelares e de polícia que, não estando expressamente previstos, podem ser praticados pelos órgãos de polícia criminal, convocamos, na parte que agora interessa convocar (designadamente as conclusões 5.ª e 6.ª), o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República de 4.1.2013 (relator: Paulo Dá Mesquita) que sinaliza: 40 “A prática de atos relativos aos fins do inquérito por iniciativa própria do órgão de polícia criminal depende sempre da verificação dos pressupostos de necessidade e urgência. As autoridades e os órgãos de polícia criminal da PSP e da GNR, por iniciativa própria que vise a prossecução de fins do processo penal, podem: MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 40 Consultável em: http://www.dgsi.pt/pgrp.nsf/7fc0bd52c6f5cd5a802568c0003fb410/ a734913d16b0f89480257af00043b68a?OpenDocument. O Parecer debruçou-se sobre questões relativas ao acesso e visionamento por elementos das forças de segurança dependentes do Ministério da Administração Interna de imagens colhidas por jornalistas e outros funcionários ou colaboradores de órgãos de comunicação social que estejam na posse deste. Para além das vertidas no texto principal, transcrevemos parcialmente as conclusões 7ª a 13.ª, por revelarem interesse, no contexto da análise das medidas cautelares e de polícia, considerando a crescente omnipresença dos media no viver social: “7.ª (…) por força do disposto no nº 1 do artigo 182º do CPP conjugado com o artigo 135º, nº 1, do CPP e o artigo 11º, nº 5, do Estatuto do Jornalista: 8.ª A solicitação de imagens captadas e na posse de órgãos de comunicação social para os fins do processo penal é, assim, matéria da competência reservada das autoridades judiciárias independentemente de as imagens estarem protegidas por sigilo profissional do jornalista ou não. 9.ª O sistema legal não compreende qualquer norma especial que preveja a derrogação da reserva judiciária no caso de medidas cautelares e de polícia determinadas pela urgência e perigo na demora relativa ao acesso a conteúdos de documentos, em qualquer suporte, na posse de destinatários que podem deter informação protegida pelo sigilo jornalístico. 11.ª (…) 12.ª Se uma autoridade ou um órgão de polícia criminal da PSP ou da GNR entender que se afigura necessário à descoberta da verdade em processo penal obter imagens recolhidas e na posse de órgão de comunicação social (em suporte digital ou material) em relação às quais haja receio de que possam perder-se, alterar-se ou deixar de estar disponíveis, existindo urgência ou perigo na demora e não sendo possível contactar tempestivamente magistrado do Ministério Público, pode ordenar a quem tenha disponibilidade ou controlo desses dados que os preserve [ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 55º, nº 2 e 249º, nº 1, do CPP e dos artigos 11º, nº 1, alínea c), e 12º, nº 2, da Lei do Cibercrime]. 13.ª Sendo emitida a injunção referida na conclusão anterior, deve ser dada notícia imediata do facto à autoridade judiciária que dirige o processo e transmitido o relatório previsto no artigo 253º do Código de Processo Penal.” 147 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 148 - - a) Quanto a matérias que não integrem a reserva judiciária legal, praticar todos os atos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova que não atinjam direitos protegidos por lei (artigo 249º, nº 1, do CPP); b) Relativamente a matérias previstas nas reservas de competência das autoridades judiciárias, realizar os atos permitidos por previsão legal especial dentro dos estritos pressupostos jurídico-normativos estabelecidos pela lei”. No contexto da investigação do crime de violência doméstica podem e devem, sempre que necessárias, adequadas e proporcionais, ser desencadeadas todas as medidas cautelares e de polícia referidas, não patenteando a respetiva aplicação, com exceção da detenção (merecedora de tratamento autónomo no presente manual, ponto 1.6), assinaláveis especificidades interpretativas, relativamente à generalidade das investigações. A urgência da intervenção neste segmento criminal impõe, contudo, que destaquemos três notas. A primeira relativa à comunicação da notícia do crime. A regra geral nesta matéria consta do artigo 248º, do Código de Processo Penal, que dispõe que os órgãos de polícia criminal que obtiverem a notícia do crime, por conhecimento próprio ou mediante denúncia, transmitem-na ao Ministério Público no mais curto prazo, que não pode exceder 10 dias (cfr., no mesmo sentido, artigos 243º, nº 3, do Código de Processo Penal, e artigo 2º, nº 3, da LOIC). A Lei nº 112/2009, de 16.09, estabelece, contudo, no artigo 29º, nº 3, que a denúncia é de imediato elaborada pela entidade que a receber e, quando feita a entidade diversa do Ministério Público, é a este imediatamente transmitida, acompanhada de avaliação de risco da vítima efetuada pelos órgãos de polícia criminal. A conjugação desta norma com a consagração da natureza urgente do processo crime por violência doméstica determina a leitura de que foi pretensão do legislador que a transmissão da notícia do crime opere em prazo manifestamente inferior ao referido na regra geral (10 dias). Na ausência de norma imperativa diríamos que a sobredita comunicação nunca deverá exceder, pelo menos, metade do prazo previsto e, em circunstâncias em que a avaliação do risco imponha uma intervenção urgente, não deverá exceder as 48 horas seguintes à elaboração da denúncia. A segunda nota é relativa a questões práticas referentes a medidas cautelares e de polícia que suscitaram reflexão no âmbito da 1.ª reunião de magistrados da Rede de Violência Doméstica, de 01.03.2013, realizada sob a égide da Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa, e cujo documento síntese se apresenta como documento de referência, no Relatório de Violência Doméstica daquela entidade, de julho de 2015.41 Seguindo de perto os termos do documento síntese, as questões suscitadas, neste particular, foram agrupadas em dois núcleos: 41 Cfr. pág. 5. O documento encontra-se disponível para consulta em: https://www.google.pt/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&ved=0ahUKEwiqhPbz2NTKAhVGuhoKHXadDJYQFggdMAA&url=http%3A%2F%2Fwww.pgdlisboa.pt%2Fdocpgd%2Ffiles%2F1438356001_2015_RELAT_VD.docx&usg=AFQjCNE_9jHuFiPuh-bDvTBGQ0mjyq73iQ&sig2=fUdooC3yneELGi2CtILamQ&bvm=bv.113034660,d.ZWU MANUAL PLURIDISCIPLINAR A) Sempre que o menor é vítima de violência doméstica pelo(s) progenitor(es) e possui marcas de agressão, os órgãos de polícia criminal podem efetuar reportagem fotográfica, sem o consentimento daquele(s)? E podem levar o menor a hospital e/ou ao Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, sem consentimento do(s) progenitor(es)? Quanto a esta questão, foram consensualizadas como soluções e vertidas em conclusões que, na dúvida, os órgãos de polícia criminal devem captar e registar em fotografia as lesões do menor que estejam visíveis. Devem, do mesmo modo, levar o menor ao hospital e/ou ao Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses. A conduta do órgão de polícia criminal está, primeiramente, justificada no quadro das medidas cautelares e de polícia ou em razão da verificação de causa de exclusão de ilicitude. Essa intervenção do órgão de polícia criminal deve ser concomitante à comunicação ao Ministério Público para que a possa validar e promover, se necessário, a sujeição a exame (artigos 154º e 172º, do Código de Processo Penal) e/ou requerer a tomada de declarações para memória futura (artigos 271º, do Código de Processo Penal e 33º, da Lei nº 112/2009, de 16.09). Do mesmo modo, concomitantemente, a situação deve ser comunicada, pelo órgão de polícia criminal, à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens. Afirma-se, a este propósito, no citado documento síntese: “Deve ter-se presente: i) os direitos do menor, e as ii) as boas práticas na matéria. i) De uma parte, releva o art. 12 da Convenção dos Direitos das Crianças (em vigor na ordem jurídica portuguesa desde 1990) que consagra o direito do menor a expressar a sua opinião e a ver esta ser levada em conta, princípio acolhido na ordem portuguesa (...). ii) As boas práticas quanto a revelação de indícios e obtenção de prova em matéria de crimes contra menores estão descritas, designadamente, no estudo de Teresa Magalhães e outros, in Acta Médica 2011, nº 2 – “Procedimentos forenses no âmbito da recolha de informação exame físico e recolha de vestígios em crianças e jovens vítimas de abuso físico e ou sexual” - e são dirigidas a evitar a vitimização secundária que resulta da sujeição da vítima a uma segunda intervenção traumática por força do processo que afinal a deve proteger. Neste contexto, seria uma boa prática - com ou sem consentimento do progenitor -, a condução do menor pelo OPC ao INMLCF/Gabinete Médico-Legal, ou ao Hospital se razões terapêuticas se sobrepuserem às de recolha de vestígios, para que num único momento se proceda, com saber pericial, ao conjunto da intervenção preliminar, no que se inclui a eventual fotografia de lesões. Parece fulcral, na obtenção da colaboração e adesão do menor à inquirição, e à correcta formulação das questões, a intervenção do perito médico-forense. A latere, recordar-se-á em matéria de cuidados de saúde, o disposto na Convenção da Biomedicina, arts 6 a 8, e também o Código Deontológico dos Médicos, designadamente arts 45 a 54. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 149 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 150 - - Uma intervenção, se necessário, ao abrigo do art. 91 da Lei 147/99 pode ser considerada, pelo decretamento imediato e a título provisório da medida de acolhimento institucional de curta duração, confiando-se o menor a Hospital ou outra entidade, para remoção de situação de perigo em que o menor se encontre.” B) O segundo núcleo comportou as seguintes questões: Se a vítima (maior de idade) apresentar marcas de agressões (ex: nos braços, cara...) e se recusar a ser fotografada, pode o órgão de polícia criminal fotografar essas marcas, de modo a preservar a prova? Quando o órgão de polícia criminal se desloca ao local da ocorrência no âmbito de uma situação de violência doméstica, e entra no domicílio, pode fotografar o local (onde existam evidentes indícios de eventuais agressões, como objetos partidos ou móveis caídos), sem consentimento do proprietário da casa ou de quem nela habita? Quando o órgão de polícia criminal se desloca ao local da ocorrência no âmbito de uma situação de violência doméstica, e entra no domicílio, e se depara com marcas visíveis de possível agressão (p. ex: nos braços, cara...) de um idoso/a ali residente, pode fotografar essas marcas, mesmo sem o consentimento do idoso/a ou do seu representante legal? Quanto a estas questões foram consensualizadas como soluções e vertidas em conclusões que: Se a vítima maior de 16 anos se opuser, o órgão de polícia criminal não pode obter as fotografias. A fotografia é um documento, é um meio de prova. “Um exame é um meio de obtenção de prova. Ser compelido a um exame não é o mesmo que ser compelido a ser fotografado. Embora o art. 167 nº 2 do CPP remeta para o art. 171º e segs. do mesmo Código (regime de exames) pode haver exame sem fotografia e fotografia sem exame. É possível, no caso do exame, assinalar graficamente a observação em elementos pré-desenhados relativos à anatomia humana. A fotografia tem um valor autónomo, impactante mas perpetuador de uma situação nefasta, e apesar de poder não ser ilícita, não deverá ser obtida quando equivaler a uma vitimização secundária”. No que respeita à segunda questão analisada neste núcleo concluiu-se que os órgãos de polícia criminal devem captar e registar fotografias do local e dos objetos que revelem violência, independentemente do consentimento de qualquer pessoa, agindo no cumprimento de um dever e no quadro das medidas cautelares e de polícia. E relativamente à terceira questão integrada neste núcleo, acertou-se que o idoso é um adulto, razão pela qual vale em regra a resposta supra enunciada para os maiores de 16 anos. O adulto não tem representante legal pelo facto de ser idoso, salvo se tiver sido sujeito a interdição, hipótese em que o tutor é o representante legal. Os filhos não são representantes legais dos pais. Se o idoso não tiver capacidade de compreensão (v.g. por demência), na dúvida, o órgão de polícia criminal deve captar e registar MANUAL PLURIDISCIPLINAR em fotografia as lesões que estejam visíveis, agindo no quadro das medidas cautelares e de polícia. Será apropriada a concomitância de comunicação da prática de tais atos ao Ministério Público. Finalmente, em sede de análise das medidas cautelares e de polícia, a terceira nota servirá para assinalar que as delegações e os gabinetes médico-legais do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, bem como o perito médico da delegação ou do gabinete médico-legal do Instituto, podem, sempre que tal se mostre necessário para a boa execução das perícias médico-legais, praticar os atos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova, procedendo, nomeadamente, ao exame, colheita e preservação dos vestígios, sem prejuízo das competências legais da autoridade policial à qual competir a investigação (artigo 4º, da Lei nº 45/2004, de 19.08). 1.3.4. A intervenção do Ministério Público no decurso do inquérito – a Diretiva nº 2/2015, de 24 de novembro de 2015 Numa perspetiva funcional, o inquérito, como específica fase do processo penal, adquire dinâmica por via da sucessão de três momentos essenciais teleologicamente vinculados: a notícia do crime, a investigação do crime e a decisão sobre o exercício da ação penal. As principais questões suscitadas a propósito da notícia do crime já foram e serão analisadas no decurso do ponto 1, capítulo III, do presente Manual. A decisão sobre o exercício da ação penal será analisada no ponto 2, capítulo III. Importa agora sumariamente tecer algumas considerações sobre a investigação do crime de violência doméstica. A recolha de prova nos casos de violência doméstica reveste-se, num significativo número de casos, de particulares dificuldades, porquanto, frequentemente, para além da vítima, não existem testemunhas diretas das agressões. Sopesando o facto da jurisprudência dos nossos tribunais estar progressivamente a superar o paradigma do aniquilamento probatório do depoimento da vítima quando apenas este existe como fonte probatória e em oposição às declarações do arguido42, a verdade é que a específica relação afetiva entre vítima e agressor (consequência de medos, sentimentos de culpa, enorme pressão causada por nelas recair a prova, etc.) conduz, com frequência, a que estas vítimas empreguem a faculdade de recusa de prestação de depoimento, em particular, em sede de audiência de julgamento (cfr. artigo 134º, do Código de Processo Penal). 42 Paradigmaticamente, pode ler-se, a este propósito, no Ac. Tribunal da Relação de Évora de 30-06-2015, Processo nº 1340/14.7TAPTM.E1 (relatora: Ana Barata Brito), que: num sistema de prova livre, nada obsta a que os factos da acusação resultem demonstrados exclusivamente das declarações da vítima, mesmo quando desacompanhadas de outros meios de prova e opostas à negação do arguido. Perante provas de sinal contrário declarações do arguido versus declarações da vítima deve, porém, o tribunal justificar especialmente na sentença a maior credibilidade que estas tenham em concreto merecido. (disponível em: http://www.dgsi.pt/jtre. nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/163947adc3347c3580257e7d0030ffef?OpenDocument). MANUAL PLURIDISCIPLINAR 151 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 152 - - Perante tais anunciadas dificuldades, competirá ao Ministério Público acautelar, sempre que tal se revele possível, a recolha de acervo probatório complementar ao depoimento da vítima, nomeadamente, com o recurso à prova indireta ou indiciária. Por seu turno, a volatilidade da prova aconselha, concomitantemente com a necessidade de prevenir o perigo de revitimização, a recolha e fixação da mesma, com precedência relativamente a outros processos criminais e precocemente no concreto processo crime. Neste contexto, nos termos do artigo 3º, da Lei nº 72/2015, de 20 de junho, que definiu os objetivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2015-2017, em cumprimento da Lei nº 17/2006, de 23 de maio (Lei-Quadro da Política Criminal - LQPC), o crime de violência doméstica é considerado crime de investigação prioritária. Em conformidade, com o disposto no nº 1, do artigo 13º, da Lei-Quadro da Política Criminal, a Procuradora-Geral da República, emitiu, por via da Diretiva 2/2015, de 24 de novembro de 201543, orientações com vista a concretizar os objetivos, prioridades e orientações de política criminal, aplicando-se às áreas da direção do inquérito e de exercício da ação penal, da intervenção em julgamento e nas instâncias superiores. De acordo com o ponto I.1.iii, da referida Diretiva é considerado prioritário o crime de violência doméstica (previsto no artigo 152º, do Código Penal) nomeadamente se praticado contra pessoas particularmente indefesas ou praticado contra ou presenciado por menores. Em conformidade, nos termos do ponto 2 e 3, alínea b), do mesmo instrumento de conformação hierárquica, os magistrados do Ministério Público deverão adotar um conjunto de procedimentos, na tramitação dos inquéritos inseridos neste segmento criminal, de que destacamos: - Priorizar a respetiva tramitação processual de modo a reduzir o tempo de duração do inquérito. - Remeter de imediato o processo, caso existam, às secções especializadas competentes para a investigação e exercício da ação penal do crime em causa, no DIAP Distrital ou na comarca, sem prejuízo da realização das diligências urgentes. - Reforçar a direção efetiva do inquérito determinando expressamente, desde o início, o seu objeto e delineando um plano de investigação, se for o caso, em coordenação com o Órgão de Polícia Criminal (OPC) a quem será delegada a competência para a investigação criminal. - Criar canais específicos de comunicação com os OPC, rápidos e desburocratizados, nomeadamente para realização das diligências de investigação e transmissão física do processo. - Realizar pessoalmente as diligências mais relevantes, nomeadamente o interrogatório dos arguidos e a inquirição das vítimas especialmente vulneráveis. - Sendo vítimas, diretas ou indiretas, crianças ou jovens, comunicar e articular com os magistrados do Ministério Público de outras jurisdições, em especial das secções de família e menores, a intervenção que se entenda necessária. - Promover com entidades de apoio local procedimentos para deteção e denúncia de crimes, em especial com instituições educativas, de saúde e de solidariedade social. - Utilizar todos os mecanismos legais com vista a proteger as vítimas e evitar fenómenos de revitimização, como sejam a inquirição em local próprio e reservado (nº 1, do artigo 17º, do 43 Disponível em: http://www.ministeriopublico.pt/iframe/diretivas. MANUAL PLURIDISCIPLINAR Estatuto da Vítima), o recurso precoce a declarações para memória futura, à teleassistência, à rede nacional de apoio, à restrição à publicidade das audiências, ao afastamento do arguido da sala de audiência durante a prestação de declarações, à dedução de pedido de indemnização civil (artigo 21º, da Lei 112/2009, de 16 de setembro, artigo 82º-A, do Código Penal e artigo 16º, do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei nº 130/2015, de 04 de setembro), à aplicação de medidas de coação urgentes. - Assegurar o preenchimento e análise cuidada das fichas de avaliação de risco e efetuar uma pesquisa de processos criminais antecedentes, para assegurar uma avaliação global do caso. As diretivas e instruções fixadas no instrumento hierárquico vindo de analisar vinculam, igualmente, os órgãos de polícia criminal, nos termos do artigo 11º, da Lei nº 17/2006, de 23 de maio. Ainda, conformando a constatação pelo legislador da necessidade de intervenção prioritária neste segmento criminal, o artigo 28º, nos 1 e 2, da Lei 112/2009, consagrou um regime que, apresentando-se como especial, estabelece a natureza urgente dos processos-crime em que esteja em causa a prática de crime de violência doméstica, e determina a aplicação do disposto no artigo 103º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo não havendo arguidos presos. Convocado a pronunciar-se sobre a (in)constitucionalidade de tal norma, por violação do Princípio da Igualdade, consagrado no artigo 13º, da Constituição da República Portuguesa, o Tribunal Constitucional já decidiu não julgar inconstitucionais as normas do artigo 28º, nos 1 e 2, da Lei 112/2009, interpretadas no sentido de que os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos, não se suspendendo no período de férias judiciais o prazo para interposição de recurso de decisões nelas proferidas, considerando que a consagração legal da natureza urgente não se baseia em motivos subjetivos ou arbitrários, nem é materialmente infundada (Ac. do Tribunal Constitucional nº 158/2012, de 11/05). 44 Em jeito conclusivo, referiremos que as especificidades da investigação do crime de violência doméstica decorrem da referenciada Diretiva 2/2015 e que, em especial, no que tange aos meios de prova indica, inequivocamente, para uma intervenção precoce e urgente na recolha da prova testemunhal, a que acresce, acrescentamos nós, a atempada recolha de prova documental e pericial (essencialmente, médico-legal), por se revelarem os meios de prova com maior expressividade, na generalidade das investigações deste segmento criminal. Por seu turno, ao nível dos meios de obtenção de prova, atendendo à moldura penal do crime em análise, é possível o recurso a todos os meios previstos e regulados no Código de Processo Penal e demais legislação extravagante aplicável, de que destacamos pela sua importância, nesta sede, a Lei do Cibercrime (Lei nº 109/2009, de 15 de setembro) e o artigo 107 nº 1, alínea b) e nº 2, da Lei das Armas (Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro). (Sérgio Pena) 44 DR, 2.ª Série, nº 92, de 11-05-2012, disponível em: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20120158.html MANUAL PLURIDISCIPLINAR 153 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 154 - - 1.4. A defesa dos interesses da vítima – procedimentos urgentes 1.4.1. Afastamento da vítima da residência habitual Recebida a denúncia de uma situação de violência doméstica, os órgãos de polícia criminal devem, de imediato, proceder à retirada da vítima da residência e encaminhá-la para as estruturas de apoio. Pode não se seguir um acolhimento em casa de abrigo, mas esta retirada e encaminhamento tem como objetivo primário o estudo da situação e a elaboração de um plano de segurança. Este plano deve ser elaborado pelas autoridades policiais e, subsidiariamente, pelas estruturas locais de apoio à vítima (art. 29º, nº 2). A atuação dos órgãos de polícia criminal e das estruturas locais de apoio não impedem que o M.P. possa e deva, sempre que o entender, determinar a tomada de outras medidas de proteção, como se encontra expressamente consagrado no art. 29º, nº 1. 1.4.2. Serviços de informação Determina o art. 11º, da Lei 112/2009, de 16/09, introduzido pela Lei 129/2015, de 30/09, que “O Estado assegura à vítima a prestação de informação adequada à tutela dos seus direitos, designadamente sobre os serviços de apoio e as medidas legais disponíveis, garantindo que a mesma é prestada em tempo útil e em língua que a vítima compreenda”. O direito à informação encontra-se clarificado e densificado no art. 15º e pode ser exercido através do Serviço de Informação às vítimas de violência doméstica da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG – v. https://www.cig.gov.pt/servicos/). Este serviço de informação compreende: i) duas linhas telefónicas45 (a linha 800 202 148 – sistema de informação a vítimas de violência doméstica e a linha 144 – Linha Nacional de Emergência Social); ii) os centros de Atendimento; iii) os gabinetes de atendimento e informação à vítima, criados e a funcionar nos postos das autoridades policiais (órgãos de polícia criminal46 cfr. - art. 27º, da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro). O Serviço de Informação responde e informa por escrito as vítimas que dessa forma procurem informação e apoio, caso não facultem outro meio de contacto mais expedito (V. https://www.cig.gov.pt/servicos/). Muito importante para a implementação inicial deste projeto, seu desenvolvimento e êxito foi a ação da APAV, no quadro do Protocolo 17/2000, de 22 de maio, celebrado entre o Ministro da Justiça, a Ministra para a Igualdade e a Associação de Apoio à Vítima (APAV), relativa ao serviço de atendimento telefónico permanente às vítimas de violência doméstica, DR II, de 22 de maio de 2000, in http://www.dre.pt/pdf 2s/2000/05/118000000/0873908740.pdf. 45 46 A linha telefónica está prevista no art. 53º, nº 3, que determina a existência de tal serviço, a título permanente, gratuito e com cobertura nacional. V. Resolução do Conselho de Ministros nº 6/99, de 8/2, in DR I-B, in http://www.dre.pt/pdf1s/1999/02/032B00/07020703.pdf MANUAL PLURIDISCIPLINAR 1.4.3. Linha Nacional de Emergência Social - 14447 A Linha Nacional de Emergência Social (LNES-144) é um serviço público de âmbito nacional, que funciona 24 horas por dia, para proteção de todas as pessoas que se encontrem em situação de emergência social. A linha 144 foi criada em 2001 e começou a funcionar em 30 de detembro desse ano. Trata dois tipos de situações: a) Crise – situações de grande vulnerabilidade e desproteção, resultantes de não se encontrarem asseguradas as condições mínimas de sobrevivência, exigindo uma intervenção urgente e o encaminhamento para os Serviços Locais de Ação Social (SLAS). b) Emergência - situações igualmente de grande vulnerabilidade e desproteção, mas que resultam da não verificação de condições mínimas de sobrevivência e constituem um perigo real, atual ou iminente, para a integridade física, psíquica ou emocional do indivíduo ou da sua família, exigindo intervenção imediata. A Linha 144 – LNES – atende qualquer pessoa que se encontre em situação de emergência social, beneficiando de prioridade as situações de violência doméstica, abandono, desalojamento e sem abrigo. 1.4.4. Estruturas de Atendimento As Estruturas de Atendimento (art. 61º, na redação da Lei 129/2015, de 30/09, correspondentes aos anteriores Centros de Atendimento) foram criadas com o objetivo de prestar apoio e encaminhamento às vítimas de violência doméstica, independentemente do seu género. Dispõem de uma ou mais equipas técnicas pluridisciplinares, que asseguram o atendimento, apoio e reencaminhamento das vítimas, com vista à sua proteção. Constituem tarefas da equipa o diagnóstico imediato da situação, o atendimento imediato das vítimas, a prestação de apoio jurídico, psicológico e social (imediato ou continuado), o encaminhamento subsequente mais adequado e, sempre que necessário, o acolhimento de emergência (art. 61º-A). Qualquer pessoa vítima de violência doméstica pode recorrer às estruturas de atendimento, a qualquer momento. Esta resposta pode ser solicitada pessoalmente em qualquer balcão da Segurança Social, Lojas do Cidadão, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, qualquer posto da Guarda Nacional Republicana, qualquer posto da Polícia de Segurança Publica, serviços sociais da Câmara Municipal da área da residência, Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género e Estruturas de Atendimento de Vítimas de Violência Doméstica ou, por telefone, para as linhas 144 ou 800 202 148 (sistema de informação a vítimas de violência doméstica) e demais organismos da Administração pública, designadamente o Serviço Nacional de Saúde, forças de segurança, Instituto do Emprego e Formação Profissional, serviços de apoio ao imigrante (arts 61º e 62º). 47 http://www.seg-social.pt/documents/10152/14961/lnes/652c361e-4460-419f-97fd-3dde5ddab962/652c361e-4460-419f-97fd-3dde5ddab962 MANUAL PLURIDISCIPLINAR 155 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 156 - - O serviço de atendimento é gratuito e não exige a apresentação de qualquer documentação. 1.4.5. Acolhimento de Emergência Esta nova resposta legal, decorrente do art. 61º-A, introduzido pela Lei nº 129/2015, de 30/09, vem consagrar uma proteção já anteriormente disponibilizada pelos serviços de atendimento, tendo por objetivo acolher, de forma urgente, vítimas de violência doméstica, acompanhadas ou não de filhos menores, pelo tempo necessário à avaliação da situação, reencaminhamento familiar ou outro acompanhamento e assegurando a proteção da integridade física e psicológica da vítima. As unidades deste serviço prestam um acolhimento diferente do oferecido pelas Casas de Abrigo, pois destinam-se ao acolhimento de curta duração, enquanto se define e estuda a situação para definição da resposta adequada a essa mesma problemática. Essa resposta pode passar, nomeadamente, por um acolhimento em Casa de Abrigo, por uma integração familiar ou pelo arrendamento de habitação com prestação de apoio (art. 45º). 1.4.6. Casas de Abrigo As Casas de Abrigo são unidades residenciais destinadas a proporcionar acolhimento temporário a mulheres vítimas de violência, acompanhadas ou não de filhos menores, que, por razões de segurança, não podem permanecer na sua residência. As casas de abrigo destinam-se ainda, sempre que tal se revele necessário, à promoção e desenvolvimento das aptidões pessoais, profissionais e sociais das utentes, com vista a uma efetiva (re)inserção social e ao afastamento da exclusão social. As casas de abrigo dispõem de uma equipa técnica pluridisciplinar, integrando as valências de direito, psicologia e serviço social, que procede ao diagnóstico da vítima acolhida e fornece apoio na definição e execução do seu projeto de promoção e proteção. As vítimas de violência doméstica acolhidas nas casas de abrigo beneficiam da colaboração dos serviços de saúde da área da “Casa”, que providenciam toda a assistência necessária à utente e seus filhos, mediante apresentação de uma declaração emitida pela Casa. Sempre que as mulheres sejam acolhidas na companhia de filhos menores, é garantida a transferência escolar para um estabelecimento mais próximo da casa de abrigo, mediante a apresentação da declaração do centro de atendimento de admissão da vítima. As casas de abrigo são organizadas de forma a favorecer uma relação afetiva do tipo familiar, uma vida diária personalizada e a integração na comunidade. Regem-se pelos arts 53º, 59º, 63º e ss. da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, pelo respetivo regulamento interno e pelas normas aplicáveis às entidades que revistam a mesma natureza jurídica, com acordos de cooperação celebrados. O Regulamento Interno deve ser dado a conhecer às utentes imediatamente, aquando da sua admissão, e deve ser subscrito por estas, correspondendo à sua aceitação. Um MANUAL PLURIDISCIPLINAR dos fundamentos da cessação imediata do acolhimento é o incumprimento das regras de funcionamento da casa de abrigo [art. 69º, al. c), da Lei 112/2009, de 16 de setembro]. (Maria Perquilhas) 1.4.7. Retirada da residência de bens de uso pessoal e exclusivo da vítima Nos termos do disposto no artigo 21º, nº 4, da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, independentemente do andamento do processo, a vítima tem o direito a retirar da residência todos os seus bens de uso pessoal e exclusivo e ainda, sempre que possível, os seus bens móveis próprios, bem como os bens pertencentes a filhos de menor idade e a pessoas maiores de idade diretamente dependentes da vítima em razão de afetação grave, permanente e incapacitante no plano físico ou psíquico. Este direito não está condicionado à circunstância de a vítima ser proprietária, arrendatária ou titular de qualquer outro direito real ou pessoal de gozo relativamente ao local que servia de residência. Não é necessário que o arguido dê o seu consentimento à entrada da vítima para retirar os bens: basta que a vítima dê conhecimento ao processo penal de que pretende exercer este direito, juntando lista dos bens a retirar. Se necessário, a vítima pode requerer que a autoridade policial a acompanhe, devendo o titular do processo deferir o requerido e comunicar tal deferimento à vítima e à autoridade policial, para que se desloquem à residência e procedam à retirada dos bens constantes da lista, com a máxima brevidade. Se se revelar de todo impossível a entrada na habitação, poderá ser necessária a realização de busca domiciliária. Sobre esta questão, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23/01/2013 (relator Melo Lima: “II – O art. 4º da Lei 112/2009, de 16 de setembro, reconhece à vítima de violência doméstica o direito de retirar da residência de família todos os seus bens de uso pessoal e exclusivo e ainda, sempre que possível, os seus bens móveis próprios, bem como os dos filhos ou adotados menores de idade. III – Se o arguido retém e sonega bens à ofendida, sobre a qual mantinha uma prática de violência psicológica, que é objeto do processo, deve ser ordenada a busca para efeitos de apreensão desses bens. IV – A medida tem de ser considerada como meio necessário, adequado e proporcional à salvaguarda dos direitos da vítima”. (Catarina Fernandes) 1.5. A vítima enquanto interveniente no processo penal “A criminalidade representa um dano para a sociedade, bem como uma violação dos direitos individuais das vítimas. Como tal, as vítimas da criminalidade deverão ser reconhecidas e tratadas com respeito, tato e profissionalismo, sem discriminações em razão, MANUAL PLURIDISCIPLINAR 157 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 158 - - • Garantia de que a vítima seja informada - Desde o primeiro contacto com as instâncias de intervenção em matéria de violência doméstica, as vítimas têm direito a ser informadas, nomeadamente sobre os serviços e organizações a que podem dirigir-se para obter apoio e sobre todos os meios de proteção e de assistência disponíveis. No que concerne ao procedimento criminal, as vítimas devem ser informadas sobre a forma de apresentar denúncia (sem prejuízo de o crime de violência doméstica ter natureza pública), sobre os procedimentos subsequentes à denúncia e qual a sua intervenção nos mesmos, as condições em que podem ter acesso a aconselhamento jurídico e apoio judiciário, as condições em que podem beneficiar de medidas de proteção e as condições em que podem ser indemnizadas. Caso o solicitem, sem prejuízo do regime de segredo de justiça, as vítimas devem ainda ser informadas sobre o seguimento dado à sua denúncia, nomeadamente a situação processual do arguido e a decisão proferida. As vítimas devem ainda ser informadas sobre a libertação do arguido detido, preso preventivamente ou condenado e, desde que tal não perturbe o normal andamento do processo, o nome do agente responsável pela investigação e os seus contactos. As vítimas têm o direito de optar por não receber tais informações, salvo quando se tratem de comunicações obrigatórias. Se as vítimas não dominarem a língua portuguesa, deve ser nomeado intérprete e fornecida a documentação pertinente devidamente traduzida. Se as vítimas forem pessoas residentes noutro Estado devem ser informadas dos mecanismos especiais de defesa ao seu dispor. Esta informação deve ser atualizada para garantir que as vítimas conheçam e possam exercer os seus direitos (artigo 15º). • Garantia de que a vítima seja atendida por serviços e profissionais especializados - É essencial que todas as instâncias de intervenção disponham de serviços e profissionais especializados e estabeleçam protocolos de atuação e de cooperação. Todas as instâncias de intervenção devem atuar de forma oportuna, eficiente, coordenada e padronizada, evitando atrasos desnecessários e atuações desajustadas, incoerentes, parcelares ou que de algum modo provoquem vitimização secundária. Todos os profissionais devem ser dotados de especial sensibilidade e estar devidamente habilitados com formação específica e, preferencialmente, integrados em equipas multidisciplinares. designadamente, da raça, da cor, da origem étnica ou social, das caraterísticas genéticas, da língua, da religião ou das convicções, das opiniões políticas ou outras, da pertença a uma minoria nacional, da riqueza, do nascimento, da deficiência, da idade, do género, da expressão de género, da identidade de género, da orientação sexual, do estatuto de residente ou da saúde. Em todos os contactos estabelecidos com as autoridades competentes no contexto do processo penal, e com quaisquer serviços que entrem em contacto com as vítimas, nomeadamente o serviço de apoio às vítimas e o serviço de justiça restaurativa, devem ter-se em conta a situação pessoal e as necessidades imediatas, a idade, o género, qualquer eventual deficiência e a maturidade das vítimas, no pleno respeito da sua integridade física, mental e moral. As vítimas da criminalidade devem ser protegidas contra a vitimização secundária e repetida, contra a intimidação e a retaliação, e devem beneficiar de apoio adequado para facilitar a sua recuperação e de acesso suficiente à justiça” (preâmbulo da Diretiva 2012/29/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2012, que estabelece normas mínimas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade, e que substituiu a Decisão-Quadro 2001/220/JAI do Conselho). O reconhecimento da vítima de crime é sem dúvida uma importante (re)conquista civilizacional. Desde logo, esse reconhecimento implica a atribuição de direitos a proteção, a apoio e assistência e a reparação. Mas, essencial é também a garantia de que a vítima possa intervir ativamente no processo penal, na defesa dos seus interesses e não apenas como uma simples testemunha à mercê dos interesses punitivos do Estado, a quem nem sequer são acautelados os riscos de novas vitimizações. Para tanto, a intervenção judiciária e não judiciária deve atender às seguintes regras básicas: • Reconhecimento e respeito pela vítima - Desde o primeiro contacto, é essencial que a vítima seja reconhecida nessa qualidade e receba tratamento digno, respeitoso, individualizado e sem discriminação. Devem ainda ser tidas em atenção as suas particulares caraterísticas e necessidades, de forma a que possam receber adequada proteção, apoio e assistência, nomeadamente jurídica, médica, social, psicológica, económica, habitacional, educacional e profissional, em conformidade com o previsto nos artigos 5º e 6º, do citado regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas. • Proteção da intimidade da vítima - Esse respeito pela vítima implica que seja sempre garantido o direito à proteção da intimidade, em particular quando esteja em causa a sua proteção e segurança, evitando a difusão de informações que facilitem a sua identificação e/ou localização (artigo 8º). • Garantia de que a vítima entenda e seja entendida - Os profissionais de todas as instâncias de intervenção em matéria de violência doméstica devem comunicar com a vítima em linguagem clara, concisa, precisa e adequada às suas caraterísticas pessoais, assegurando-se de que esta entende efetivamente as comunicações orais e escritas que lhe são dirigidas e se fazem entender. Cuidados especiais se exigem se a vítima não domina a língua portuguesa ou tem dificuldades de compreensão e/ou de expressão (artigo 17º). A forma como a vítima é recebida pelo sistema formal de justiça revela-se determinante, tanto para o êxito da intervenção penal, como para a própria vítima. Normalmente, o primeiro contacto da vítima com o sistema formal de justiça ocorre perante os órgãos de polícia criminal, por diversos meios: presencialmente, nas esquadras e postos, em patrulhas na sequência da participação de ocorrência e em ações de policiamento de proximidade, ou, por contacto telefónico, correio eletrónico ou correio normal. Inovação muito relevante na forma como a vítima é recebida pelo sistema formal de justiça consiste na instalação de gabinetes de atendimento e informação às vítimas nos órgãos MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 1.5.1. Importância do primeiro contacto da vítima com o sistema formal de justiça 159 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 160 - - de polícia criminal e nos departamentos de investigação e ação penal, previsto no artigo 27º, do regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas, estabelecido pela Lei nº 112/2009, de 16 de setembro (diploma a que se reportam todos os normativos a seguir referidos sem menção da sua inserção). Nos crimes de violência doméstica a denúncia deve ser feita em formulários próprios, nomeadamente autos de notícia padrão, devendo tais formulários estar acessíveis por internet, em sítio de acesso público que disponha de informações específicas sobre violência doméstica (artigo 29º). O serviço telefónico permanente assegurado pela rede nacional de apoio às vítimas de violência doméstica tem a virtualidade de facilitar o acesso à justiça por parte das vítimas (artigo 53º, nº 3). Sem prejuízo, não se pode desvalorizar a intervenção de outros profissionais que, no âmbito das suas funções, prestam assistência direta às vítimas, como são os peritos do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses. Para além de eventuais deveres de denúncia obrigatória, estes profissionais estão em posição privilegiada para recolher informações relevantes, nomeadamente sobre os riscos de repetição e de escalada da violência, que devem comunicar aos órgãos de polícia criminal ou às autoridades judiciárias. A propósito da intervenção das Forças de Segurança na prevenção e combate à violência doméstica, tem grande interesse o “Manual de Policiamento da Violência Doméstica (Um guia para profissionais das Forças de Segurança)”, elaborado pela Direção-Geral de Administração Interna, Guarda Nacional Republicana e Polícia de Segurança Pública, em colaboração com a Procuradoria-Geral da República e o Centro de Estudos para a Intervenção Social, Ministério da Administração Interna - Direção-Geral de Administração Interna, 2013. Trata-se de um manual dirigido à prática policial, mas que tem potencialidades para se revelar muito útil na prática judiciária. Procura uniformizar os procedimentos e assegurar mínimos de qualidade, apostando na prevenção e proatividade. Centra-se na intervenção de primeira linha (o contacto inicial com os intervenientes em situações de violência doméstica) e de segunda linha (a investigação criminal, com ênfase na recolha da prova, sendo de realçar os cuidados colocados na prevenção da vitimização secundária e repetida). Sobre as especificidades da denúncia e da intervenção médico-legal e forense e dos órgãos de polícia criminal e do Ministério Público no crime de violência doméstica cfr. III. 1.1, 1.2 e 1.3 deste Manual. é infundada. Note-se que só tem direito a este estatuto a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou mental, um dano moral, ou uma perda material, diretamente causada por ação ou omissão, no âmbito do crime de violência doméstica previsto no artigo 152º, do Código Penal (cfr. artigo 2º, nº 1). Este estatuto é atribuído pelas autoridades judiciárias, pelos órgãos de polícia criminal ou, em situações excecionais e devidamente fundamentadas, pelo organismo da Administração Pública responsável pela área da cidadania e da igualdade de género (artigo 14º, nº 1 e nº 3). À vítima deve ser entregue documento comprovativo deste estatuto, com menção dos seus direitos e deveres e cópia do respetivo auto de notícia ou de denúncia (artigo 14º, nº 2). Os Modelos de Documentos Comprovativos da Atribuição do Estatuto de Vítima foram definidos pela Portaria nº 229-A/2010, de 23 de abril - Os Modelos de Documentos Comprovativos da Atribuição do Estatuto de Vítima - Portaria nº 229-A/2010, de 23 de abril estão acessíveis no site http://www.pgdlisboa.pt/pgdl/leis/lei_mostra_articulado. php?nid=1253&tabela=leis&ficha=1&pagina=1. Os direitos consagrados no estatuto visam a salvaguarda integral e efetiva da vítima, incluindo medidas de proteção e apoio, bem como de assistência médico-social, habitacional, económica, laboral, educacional e na inserção no mercado de trabalho. Não são estritamente processuais, pois podem-se iniciar com o primeiro contacto da vítima com as instâncias formais de controlo e perdurar depois de o processo penal findar. Quanto à cessação do estatuto de vítima, determina o artigo 24º que cessa por vontade expressa da vítima ou por verificação da existência de fortes indícios de denúncia infundada. Cessa também com o arquivamento do inquérito, com a não pronúncia ou após o trânsito em julgado da decisão que ponha termo à causa, salvo se a sua manutenção for necessária para proteção da vítima, desde que esta o requeira ao Ministério Público ou ao tribunal competente, consoante os casos. A cessação do estatuto da vítima não prejudica a continuação das modalidades de apoio social que tenham sido estabelecidas, sempre que as circunstâncias do caso forem consideradas justificadas pelos correspondentes serviços. Finalmente, a cessação do estatuto da vítima, quando ocorra, em nenhum caso prejudica as regras aplicáveis do processo penal. 1.5.3. Intervenção inicial Aquando do recebimento da notícia do crime, os órgãos de polícia criminal devem proceder à avaliação do risco e, se necessário, tomar as adequadas medidas de emergência destinadas a controlá-lo, designadamente, garantindo a proteção e segurança das vítimas e procedendo à detenção em flagrante delito dos agressores. A atribuição do estatuto de vítima deve ocorrer aquando da apresentação da denúncia da prática do crime de violência doméstica, não existindo fortes indícios de que a mesma Esta intervenção inicial, normalmente a cargo dos OPC, deve ter como primeiro objetivo garantir a segurança e proteção de todos os intervenientes, incluindo das próprias forças de segurança. A identificação de todas as vítimas e agressores é sempre o primeiro passo, nem sempre fácil. Pode haver mais do que uma vítima e/ou mais do que um agressor, sendo certo que a mesma pessoa pode intervir das duas maneiras. É prioritária a inquirição da vítima, para recolha de informações relativas aos factos denunciados e à avaliação do risco, tendo em vista o seu controlo. Sempre que se verifique existir séria probabilidade de ocorrerem novos episódios de violência que possam colocar em risco a integridade física ou mesmo a vida da vítima, a sua MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 1.5.2. O estatuto de vítima 161 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 162 - - proteção e segurança são prioritárias. Com esse intuito, devem ser, de imediato, tomadas medidas de proteção adequadas, designadamente, assegurar o acompanhamento e proteção policial da vítima, encaminhá-la para as estruturas locais de apoio, providenciar pelo seu afastamento da residência habitual e/ou providenciar pelo seu encaminhamento para local seguro. Se necessário, deve ser acionada a Linha de Emergência Social (144) ou os serviços especializados integrados na rede nacional de apoio às vítimas de violência doméstica. Os OPC devem ainda proceder à avaliação do risco, prestar orientações de autoproteção e elaborar os pertinentes planos de segurança, caso não encaminhem as vítimas para as estruturas locais de apoio para esse efeito (artigo 29º-A). A propósito da avaliação do risco, importa ter presente a homologação pelo Ministério da Administração Interna das fichas RVD-1L (avaliação de risco para situações de violência doméstica) e RVD-2L (reavaliação do risco), as quais devem ser utilizadas pelas Forças de Segurança nos termos preconizados pelo respetivo Manual de Aplicação da Ficha de Avaliação de Risco. Trata-se de um instrumento de avaliação do risco de violência doméstica, para ser usado pela Guarda Nacional Republicana e pela Polícia de Segurança Pública, cuja criação resultou da interação entre estas Forças de Segurança e as Procuradorias-Gerais Distritais de Lisboa (PGDL) e Porto (PGDP), e numa fase posterior a Procuradoria-Geral da República (PGR), enquadrados pela gestão de projeto a cargo da DGAI e o apoio do Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho (UM). A já referida e descrita Instrução nº 2/2014, da PGR, determinou que, a partir do dia 1 de novembro de 2014, os inquéritos por crime de violência doméstica fossem instruídos com tais fichas. “INSTRUÇÃO 2/2014 Inquéritos por crime de violência doméstica. Ficha de avaliação de risco de violência doméstica para uso pelas Forças de Segurança. (…) Em face do exposto, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 2 do art. 12º do Estatuto do Ministério Público, os Senhores Magistrados e Agentes do Ministério Público determino: 1 - A partir do dia 1 de Novembro de 2014, os inquéritos por crime de violência doméstica serão instruídos com uma ficha de avaliação de risco para as vítimas (RVD- 1L), aplicada pela Guarda Nacional Republicana ou pela Polícia de Segurança Pública aquando da elaboração de auto ou de aditamento a auto por factos integradores daquele tipo criminal. 2 – Os referidos inquéritos serão também instruídos com uma outra ficha (RVD-2L), aplicada pelas mesmas Forças de Segurança, aquando da reavaliação do nível de risco para as vítimas, no âmbito do policiamento de proximidade ou da investigação criminal. 3 – Nos casos de reclassificação, pelo Ministério Público, do enquadramento jurídico- penal por crime diverso do de violência doméstica, deverá tal alteração ser comunicada ao órgão de polícia criminal que tiver aplicado o instrumento de avaliação de risco, com vista à cessação do procedimento de reavaliação. 4 - Nos inquéritos instruídos com o instrumento de avaliação de risco deverá ser comunicado ao órgão de polícia criminal o encerramento dessa fase processual, com vista à cessação do procedimento de reavaliação. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 5 – Quando os órgãos de polícia criminal hajam aplicado a ficha de avaliação de risco RVD1L realizarão, sempre, reavaliações periódicas. 6 – O órgão de polícia criminal que tenha aplicado a ficha de avaliação de risco RVD-1L e não disponha de competência investigatória, procederá a uma única reavaliação, remetendo-a ao magistrado titular do inquérito. Neste caso, o magistrado titular poderá solicitar expressamente outras reavaliações. 7 - Quando o auto por crime de violência doméstica for elaborado no Ministério Público ou a denúncia aí der entrada, pode o magistrado do Ministério Público aplicar a ficha de avaliação de risco RVD-1L. 8 – Se no contexto referido no ponto anterior (7) vier a ser delegada competência investigatória em órgão de polícia criminal, deverá ser-lhe remetida a ficha de avaliação de risco (RVD-1L) aplicada, por forma a permitir o procedimento de reavaliação. Integram a presente Instrução os modelos das fichas de avaliação de risco denominadas RVD-1L e RVD-2L, que constam anexas. Comunique, via SIMP, aos Exmos. Senhores Procuradores Gerais Distritais. Divulgue-se no SIMP e insira-se no módulo “Documentos Hierárquicos”, subespécie “Instruções”. Lisboa, 30-10-2014 A Procuradora-Geral da República (Joana Marques Vidal)” Cabe igualmente aos OPC tomar as pertinentes medidas cautelares e de polícia (artigo 27º-A), pelo que devem transmitir imediatamente o auto de notícia ou de denúncia ao Ministério Público e adotar as providências cautelares necessárias para a recolha e preservação da prova, incluindo buscas, revistas e apreensões, bem como identificação de suspeitos. Sempre que se verifiquem os respetivos pressupostos, deve proceder-se à detenção do suspeito, em flagrante delito ou fora de flagrante delito. Havendo marcas de agressão, deve fazer-se registo fotodocumental, mediante prévio consentimento escrito da vítima (note-se que este registo, por norma, também é realizado nos exames e perícias do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses). Pode ser necessária a prestação de socorro ou de cuidados de saúde à vítima, a qual, nestes casos, deve ser encaminhada para os serviços de saúde e, com vista à recolha e preservação de prova, para o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses. Quando pertinente, deve proceder-se à transcrição de mensagens escritas e/ou de correio eletrónico recebidas pela vítima, bem como de listas de chamadas recebidas, em auto de transcrição, mediante prévio consentimento escrito daquela. A vítima pode ter na sua posse outros registos de voz e/ou imagem, os quais são suscetíveis de suscitar questões relativamente à sua validade e enquadramento processual penal. Também se deve indagar sobre a existência de eventuais testemunhas ou de outros meios de prova. Igualmente importante é averiguar da existência de outros inquéritos conexos. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 163 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 164 - - Especiais cuidados se exigem caso se verifique a utilização ou o perigo de utilização de armas, podendo ser pertinente a realização de buscas ou revistas com vista à sua apreensão. Sobre estas questões, cfr. III. 1.3 e 1.5 deste manual. Logo que tenha conhecimento da denúncia, sem prejuízo das medidas cautelas e de polícia adotadas e da possibilidade de evocar o inquérito, o Ministério Público deve diligenciar pela realização das pertinentes e urgentes diligências de investigação, com vista a aferir da necessidade de aplicação de medidas de proteção à vítima e/ou de medidas de coação ao arguido, no mais curto período de tempo possível, sem exceder as 72 horas (artigo 29º-A). Não obstante, todos os organismos e serviços com intervenção nesta área, no âmbito das suas competências, devem providenciar pela tomada das necessárias medidas de proteção. Quando existam vítimas de menor idade ou maiores sem capacidade para regerem as suas pessoas, é essencial haver articulação entre as intervenções realizadas no âmbito das jurisdições de família e crianças, civil e penal. Sobre estas questões, cfr. IV. 4 deste Manual. - Se possível, a vítima deve ser ouvida apenas uma vez, na fase de inquérito, em depoimento para memória futura; - A inquirição deve ser realizada por uma única pessoa, especialmente habilitada para tanto; - Sendo indispensáveis, as inquirições subsequentes devem ser feitas pela mesma pessoa; - A inquirição deve ser gravada ou filmada; - A vítima pode ser acompanhada por um técnico especialmente habilitado, da sua confiança e designado pelo tribunal; - A inquirição deve-se realizar em ambiente informal, reservado e seguro; - A inquirição deve-se reportar aos factos, abrangendo a perceção da vítima sobre o contexto, causas e consequências da vitimização e possibilidade dos maus tratos prosseguirem e eventualmente escalarem; - A inquirição deve ser feita de forma isenta, objetiva e neutra, evitando-se a formulação de quaisquer juízos de valor; - Não devem ser formuladas questões relativas à privacidade da vítima que não tenham relevância direta para os factos. 1.5.4. Inquirição da vítima 1.5.5. Declarações para memória futura A vítima não tem apenas o dever de prestar depoimento como testemunha e, dessa forma, colaborar com a justiça penal. Ela goza de um direito de audição, ou seja, tem direito a ser ouvida, em ambiente informal e reservado, devendo ser criadas as adequadas condições para prevenir a vitimização secundária e para evitar que sofra pressões (artigos 16º e 22º, nº 1). Bem sabemos que o volume de serviço a cargo dos magistrados do Ministério Público torna muito difícil procederem à inquirição de todas as vítimas de crimes de violência doméstica, previamente ou em alternativa à tomada de declarações para memória futura. Ainda assim, consideramos que, pelo menos nos casos mais graves e quando se coloque a possibilidade de aplicação de suspensão provisória do processo, a inquirição deve ser realizada pelo magistrado. Em conformidade com os mais relevantes instrumentos de direito internacional, designadamente a Diretiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2012, que estabelece normas mínimas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade, vêm sendo preconizadas algumas regras para a audição da vítima, sobretudo tratando-se de vítima especialmente vulnerável, de forma a evitar a (re)vitimização e garantir a máxima genuinidade dos depoimentos [sobre esta temática ver Rui do Carmo, Declarações para memória futura - Crianças vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, Revista do Ministério Público, 2013, 134, p. 117147 e ainda o Manual de Policiamento da Violência Doméstica (Um guia para profissionais das Forças de Segurança, já citado)]: - A inquirição deve-se realizar o mais cedo possível, sem atrasos injustificados; MANUAL PLURIDISCIPLINAR As declarações para memória futura permitem que o depoimento de uma testemunha (ou assistente, parte civil, perito ou consultor técnico), prestado no decurso das fases de inquérito ou de instrução, possa ser posteriormente valorado em audiência de julgamento [artigos 6º, 1 e 3, alínea c), da CEDH, 271º, 294º e 356º, nº 2, alínea a), e nº 8, do Código de Processo Penal]. Esta medida configura uma produção antecipada de prova e uma antecipação parcial do próprio julgamento, constituindo, por isso, uma exceção à regra consagrada no nº 1, do artigo 355º, do CPP, de que só valem em julgamento, nomeadamente para a formação da convicção do tribunal, as provas produzidas ou examinadas em audiência de julgamento. Pode ter duas finalidades. Uma, consiste em acautelar o risco de perda da prova, em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro que previsivelmente impeça a pessoa de ser ouvida em julgamento (artigo 271º, nº 1, do CPP). Aqui, é uma concreta urgência que justifica a necessidade da antecipação da produção de prova. Outra finalidade consiste na proteção das testemunhas, pois, como é sabido, a intervenção no processo penal, sobretudo de vítimas especialmente vulneráveis, pode originar vitimização secundária, nomeadamente devido às condições e ao número de vezes que aquela presta depoimento e é sujeita a outras diligências probatórias. A este propósito, o artigo 271º, nº 1, do CPP, prevê a inquirição para memória futura, no decurso do inquérito, das vítimas de crimes de catálogo, que se cingem exclusivamente aos crimes de tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, a título facultativo. Sempre que se trate de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor e a vítima ainda não for maior, a inquirição para memória futura é obrigatória. O artigo 28º, da Lei nº 93/99, de 14 de julho, que regula a aplicação de MANUAL PLURIDISCIPLINAR 165 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 166 - - medidas de proteção de testemunhas em processo penal, alargou o âmbito de aplicação das declarações para memória futura às testemunhas especialmente vulneráveis, independentemente do tipo de crime, podendo essa condição resultar, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência (artigo 26º, nº 2, do citada diploma). Por sua vez, o artigo 33º, da aludida Lei nº 112/2009 veio permitir que as vítimas de crime de violência doméstica possam ser inquiridas para memória futura no decurso do inquérito. Ao estabelecer este regime especial, o legislador mostrou-se sensível ao facto de a violência doméstica ser uma forma de criminalidade particularmente suscetível de causar graves e duradouras consequências para as suas vítimas (cfr. ainda os artigos 16º e 20º). Assim, nos termos do regime especial relativo às declarações para memória futura das vítimas de crime de violência doméstica previsto no aludido artigo 33º, tais vítimas podem ser inquiridas, no decurso do inquérito, a fim de que o seu depoimento possa ser tomado em conta no julgamento, se necessário. Nestes casos, a inquirição para memória futura não está condicionada à eventual existência de impedimento da vítima de comparecer em audiência de julgamento. Embora a tomada de declarações para memória futura não seja obrigatória, importa notar que este regime especial consagra, entre outros, os direitos de audição e de proteção das vítimas de crimes violência doméstica no processo penal, no intuito de evitar a sua vitimização secundária e repetida e quaisquer formas de intimidação e de retaliação. Assim, a pertinência desta medida deve ser apreciada em concreto, sendo que, na ponderação dos interesses em confronto, deve ser dada particular atenção à natureza e gravidade do crime e às circunstâncias em que foi cometido e às caraterísticas da vítima, sobretudo se se tratar de vítima especialmente vulnerável. Sobre os critérios para a admissão ou rejeição das declarações para memória futura da vítima no âmbito do crime de violência doméstica, vejam-se, entre outros, os seguintes: • Ac. TRL 06-02-2014, in CJ, 2014, T1, p. 144, consultado em www.pgdl.pt): “I. O regime especial das declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica visa reforçar a tutela judicial destas, consagrando uma proteção célere e eficaz, bem como prevenindo a vitimização secundária e a sujeição a pressões desnecessárias. II. A decisão relativa à tomada de declarações para memória futura da vítima de violência doméstica deve decorrer de uma ponderação entre o interesse da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça” • Ac. TRL de 11-01-2012, processo nº 689/11.5PBPDL–3 (relator Carlos Almeida): “(…) X – A Lei nº 112/2009, de 16/09, veio, por sua vez, no seu art. 33º, prever um regime formalmente autónomo para a prestação de declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica, se bem que esse regime diste pouco do hoje constante do art. 271º do CPP. XI – Admitindo o art. 33º, da Lei nº 112/2009, de 16/09, que a vítima de violência doméstica possa prestar declarações para memória futura e não se estabelecendo a obrigatoriedade da prática desse acto, importa procurar na lei um critério que permita determinar os casos em que ele deve ter lugar. XII – Esse critério há-de resultar de uma ponderação entre o interesse da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça. XIII – A decisão sobre a tomada de declarações para memória futura não pode ser vista como um meio de evitar ou de propiciar que a vítima exerça o direito que o Código lhe atribui de se recusar a depor. Ela tem esse direito em qualquer momento em que deva depor”. É controvertido saber se o regime das declarações para memória futura pode ser aplicado, além das acareações, a reconhecimentos e reconstituições do facto. Pela negativa pronunciou-se Cruz Bucho (Declarações para memória futura, elementos de estudo), [Em linha] 02-04-2012, disponível na internet em: <URL http://www.trg.pt/ficheiros/estudos/declaracoes_para_memoria_futura.pdf >, p. 21). Todavia, na senda de Paulo Pinto de Albuquerque (obra citada, p. 727), Alberto Medina de Seiça [Legalidade da prova e reconhecimentos atípicos em processo penal: notas à margem de jurisprudência (quase) constante, p. 1398/1399] e Maia Costa (CPP anotado dos Conselheiros do STJ, p. 964), entendemos que devem ser consideradas abrangidas. Na verdade, ainda que o regime legal das declarações para memória futura tenha caráter excecional, naqueles outros atos processuais a participação da testemunha sempre se reconduz à prestação de um depoimento, pelo que se está, ainda assim, no âmbito de declarações. As declarações para memória futura podem ter lugar ainda que o(s) suspeito(s) não tenham sido constituídos arguidos ou não seja conhecida a identidades dos suspeitos. Nestes casos, o direito fundamental ao contraditório e o direito à assistência efetiva de defensor são assegurados mediante a presença de defensor [35º, nº 1 e nº 2, da CRP, 6º, 3, alínea c), da CEDH, 33º, do regime jurídico e 271º, nº 3 e nº 5, do CPP]. Esta questão, que foi muito controvertida, parece ser pacífica, atualmente. A este propósito e neste sentido se pronunciaram na doutrina, entre muitos outros, Cruz Bucho (obra citada, p. 137), Paulo Pinto de Albuquerque (obra citada, p. 728), António Gama (Reforma do CPP: prova testemunhal, declarações para memória futura e reconhecimento, p. 728), Maia Costa (CPP anotado pelos Conselheiros do STJ, p. 965) e, na jurisprudência, entre muitos outros, vejam-se: • Ac. STJ de 25-03-2009, processo 09P0486 (relator Fernando Fróis), sumário: “XI - A leitura em audiência de julgamento de declarações prestadas para memória futura não é absolutamente indispensável para que possam ser consideradas válidas e valoradas pelo Tribunal, designadamente para fundamentar a convicção relativamente à matéria de facto, desde que aquelas sejam prestadas com respeito pela estrutura acusatória do processo e seja assegurado um processo equitativo, com igualdade de armas, e respeito pelos princípios do contraditório e da imediação da prova (arguido e seu defensor presentes, com possibilidade de intervirem e formularem) – arts. 355º, nº 2, e 356º, do Código de Processo Penal. XII - O art. 271º, do CPP, ao regulamentar as declarações para memória MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 167 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 168 - - futura e interpretado em conformidade com o art. 32º, da CRP, não exige, para que aquelas (declarações) sejam admissíveis, que se encontre constituído arguido no processo. XIII - Numa situação em que:- à data em que foram prestadas as declarações para memória futura o arguido ainda não havia sido constituído como tal no processo;- o defensor do arguido foi notificado do despacho que declarou aberta a instrução;- o arguido tomou contacto com o processo, formal e substancialmente, quando foi sujeito a primeiro interrogatório judicial;- as testemunhas não foram inquiridas em audiência de julgamento; podemos concluir que foram salvaguardados e respeitados os direitos de defesa do arguido, designadamente o contraditório – enquanto expressão do direito a um processo equitativo –, e que não estamos perante prova proibida ou que não pudesse ser atendida e valorada pelo tribunal a quo, não tendo sido violados quaisquer preceitos constitucionais, nomeadamente os arts. 32º, nos 1 e 5, e 20º, nº 4, da CRP. XIV - Com efeito, o arguido teve oportunidade de contraditar a credibilidade e os depoimentos daquelas testemunhas quer na instrução (onde esteve presente e representado por advogado) quer em sede de audiência de julgamento, apresentando os meios de prova que entendesse necessários (designadamente testemunhas) – cfr., neste sentido, Ac. do STJ de 16-06-2004, in www.dgsi.pt, sendo certo que o contraditório não exige, em termos absolutos, o interrogatório directo em cross examination”. Sempre que não houver arguido constituído ou se este ainda não tiver constituído advogado, compete ao juiz nomear um defensor oficioso. A tomada de declarações para memória futura pode ser requerida pela própria vítima (ainda que se não tenha constituído assistente ou parte civil) ou pelo Ministério Público (artigo 33º, nº 1). Cabe ao Juiz de Instrução admitir a produção de declarações para memória futura e, em conformidade, designar dia, hora e local para a prestação do depoimento, sendo notificados para que possam estar presentes o Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados do assistente e das partes civis (artigo 33º, nº 1). Em conformidade, é obrigatória a presença do Ministério Público e do defensor do arguido, sob pena de nulidade insanável [artigos 33º, nº 2 e 271º, nº 3, e 119º, alíneas b) e c), do CPP]. Já a presença do arguido, do assistente, das partes civis e dos advogados do assistente e das partes civis é meramente facultativa. A inquirição deve feita pelo juiz, podendo, em seguida, o Ministério Público, os advogados do assistente e das partes civis e o defensor formular perguntas adicionais (artigo 33º, nº 4). São aplicáveis às declarações para memória futura as normas respeitantes ao afastamento do arguido durante a prestação das declarações (artigo 352º, do CPP), à leitura permitida de autos e de declarações (artigo 356º, do CPP), à documentação das declarações orais (artigo 363º, do CPP) e à forma da documentação (artigo 364º, do CPP). Este ato processual deve ser documentado, sendo obrigatoriamente reduzido a auto (artigo 275º, nº 2, do CPP). Em conformidade com o disposto no artigo 32º, os depoimentos e declarações das vítimas, quando impliquem a presença do arguido, são prestados através de videoconferência ou de teleconferência, se o tribunal, designadamente a requerimento da vítima ou do Ministério Público, o entender como necessário para garantir a prestação de declarações ou de depoimento sem constrangimentos, podendo, para o efeito, solicitar parecer aos profissionais de saúde, aos técnicos de apoio à vítima ou a outros profissionais que acompanhem a evolução da situação. A tomada de declarações deve ser realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo a vítima ser assistida no decurso do ato processual pelo técnico de apoio à vítima ou por outro profissional que lhe tenha vindo a prestar apoio psicológico ou psiquiátrico, previamente autorizados pelo tribunal (artigo 33º, nº 3). A vítima é acompanhada, sempre que o solicitar, na prestação das declarações ou do depoimento, pelo técnico de apoio à vítima ou por outro profissional que lhe tenha vindo a prestar apoio psicológico ou psiquiátrico (artigo 32º, nº 2). Na realização deste ato processual pode e deve ainda ser determinada a utilização de outras medidas de proteção de testemunhas especialmente vulneráveis previstas na Lei de Proteção de testemunhas, nomeadamente: o afastamento do arguido ou de outros intervenientes processuais e a visita prévia (artigos 29º e 30º, da Lei nº 93/99, de 14 de julho, 22º, nº 1, da Lei 112/2009, de 16 de setembro, artigos 271º, nº 4, do CPP e Acórdão do Tribunal de Justiça de 16/06/2005 – P/C-105/03 – o paradigmático Caso Maria Pupino). A tomada de declarações para memória futura não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar (artigo 33º, nº 7). Claro que a repetição do depoimento só deve ter lugar a título excecional, caso seja imprescindível para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa e não prejudique de forma inadmissível os interesses da vítima (António Miguel Veiga, obra citada, p. 130/131 e CPP Anotado Conselheiros do STJ, p. 964). Note-se que o regime especial de declarações para memória futura no âmbito do crime de violência doméstica reporta-se à inquirição da vítima no decurso do inquérito. Assim, como refere o Ac. do TRC de 15-12-2010, processo nº 343/09.0GBSVV-A.C1 (relator Ribeiro Cardoso), “Encerrado o inquérito com a dedução da acusação e não tendo sido requerida a abertura de instrução, não pode o Ministério Público requerer ao Juiz de Instrução a tomada de declarações para memória futura de menor ofendido na prática de um crime de actos sexuais com adolescente p. e p. pelo art. 173º, nº 1, do Código Penal”. Entende Cruz Bucho que, “para o efeito de as declarações para memória futura poderem ser tomadas em conta em julgamento se revela absolutamente necessário que em audiência de julgamento se efective a leitura integral de tais declarações cujo conteúdo poderá, depois, ser confrontado com as demais declarações dos intervenientes em julgamento, que as podem contraditar” (obra citada). Esta posição, defendida na doutrina também por Sandra Oliveira e Silva (A protecção de testemunhas no processo penal, Coimbra: Coimbra Editora, 2007) e Damião da Cunha (O regime processual de leitura de declarações na audiência de julgamento”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 7, 1997, p.403 ss), entre outros, e por parte significativa da jurisprudência, parece estar atualmente a ser ultrapassada pelo entendimento de que essa leitura não é obrigatória. Neste último sentido, vejam-se: MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 169 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 170 - - • Ac. Tribunal Constitucional nº 367/2014; DR. II Série de 27-11-2014: Não julga inconstitucional o artigo 271º, nº 8, do Código de Processo Penal, no segmento segundo o qual não é obrigatória, em audiência de discussão e julgamento, a leitura das declarações para memória futura. • Ac. STJ de 07-11-2007, processo 07P3630 (relator Henriques Gaspar): “(…)III - As declarações para memória futura, verificados os pressupostos em que a produção é processualmente admitida (art. 271º, nº 1, do CPP), constituem um modo de produção de prova pessoal, submetido a regras específicas para acautelar o respeito por princípios estruturantes do processo, nomeadamente o respeito pelo princípio do contraditório. IV - O princípio do contraditório – com assento constitucional no art. 32º, nº 5, da CRP – impõe que seja dada oportunidade a todo o participante processual de ser ouvido e de expressar as suas razões antes de ser tomada qualquer decisão que o afecte, designadamente que seja dada ao acusado a efectiva possibilidade de contrariar e contestar as posições da acusação. V - A construção da verdadeira autonomia substancial do princípio do contraditório leva a que seja concebido e integrado como princípio ou direito de audiência, dando «oportunidade a todo o participante processual de influir através da sua audição pelo tribunal no decurso do processo» (cfr. idem, pág. 153). VI - A densificação do princípio deve, igualmente, relevante contributo à jurisprudência do TEDH, que tem considerado o contraditório um elemento integrante do princípio do processo equitativo, inscrito como direito fundamental no art. 6º, § 1º da CEDH. VII - Na construção convencional, o contraditório, colocado como integrante e central nos direitos do acusado (apreciação contraditória de uma acusação dirigida contra um indivíduo), tem sido interpretado como exigência de equidade, no sentido em que ao acusado deve ser proporcionada a possibilidade de expor a sua posição e de apresentar e produzir as provas em condições que lhe não coloquem dificuldades ou desvantagens em relação à acusação. VIII - No que respeita especificamente à produção das provas, o princípio exige que toda a prova deva ser, por regra, produzida em audiência pública e segundo um procedimento adversarial; as excepções a esta regra não poderão, no entanto, afectar os direitos de defesa, exigindo o art. 6º, § 3º, al. b), da Convenção que seja dada ao acusado uma efectiva possibilidade de confrontar e questionar directamente as testemunhas de acusação, quando estas prestem declarações em audiência ou em momento anterior do processo (cfr., v.g., entre muitas referências, o acórdão Vissier c. Países Baixos, de 14-02-2002). IX - Os elementos de prova devem, pois, em princípio, ser produzidos perante o arguido em audiência pública, em vista de um debate contraditório. Todavia, este princípio, comportando excepções, aceita-as sob reserva da protecção dos direitos de defesa, que impõem que ao arguido seja concedida uma oportunidade adequada e suficiente para contraditar uma testemunha de acusação posteriormente ao depoimento; nesta perspectiva, os direitos da defesa mostram-se limitados de maneira incompatível com o respeito do princípio sempre que uma condenação se baseie, unicamente ou de maneira determinante, nas declarações de uma MANUAL PLURIDISCIPLINAR pessoa que o arguido não teve oportunidade de interrogar ou fazer interrogar, seja na fase anterior, seja durante a audiência. São estes os princípios elaborados pela jurisprudência do TEDH a respeito do art. 6º, §§ 1 e 2, al. d), da CEDH (cfr., v.g., acórdãos Craxi c. Itália, de 05-12-2002, e S. N. c. Suécia, de 02-07-2002). X - Em certas circunstâncias pode ser necessário que as autoridades judiciárias recorram a declarações prestadas na fase do inquérito ou da instrução, nomeadamente quando a impossibilidade de reiterar as declarações é devida a factos objetivos, como sejam a ausência ou a morte, ou a circunstâncias específicas de vulnerabilidade da pessoa (crimes sexuais); se o arguido tiver oportunidade, adequada e suficiente, de contraditar tais declarações posteriormente, a sua utilização não afecta, apenas por si mesma, o contraditório, cujo respeito não exige, em termos absolutos, o interrogatório directo em cross-examination. XI - O princípio do contraditório tem, assim, uma vocação instrumental da realização do direito de defesa e do princípio da igualdade de armas: numa perspectiva processual, significa que não pode ser tomada qualquer decisão que afecte o arguido sem que lhe seja dada a oportunidade para se pronunciar; no plano da igualdade de armas na administração das provas, significa que qualquer um dos sujeitos processuais interessados, nomeadamente o arguido, deve ter a possibilidade de convocar e interrogar as testemunhas nas mesmas condições que os outros sujeitos processuais (a “parte” adversa). XII - O modo de prestação de declarações para memória futura respeita os elementos essenciais do contraditório, dadas as garantias que o nº 2 do art. 271º do CPP estabelece: o arguido pode estar presente na produção, e assegura-se a possibilidade de confrontação em medida substancialmente adequada ao exercício do contraditório (art. 271º, nº s 2 e 3, do CPP). XIII - Para salvaguarda do exercício do contraditório também não é necessária a leitura das declarações em audiência, nem dela depende a validade da prova para memória futura. XIV - No caso das declarações para memória futura, o princípio da imediação mostra-se respeitado sempre que a prova é apreciada pelo conjunto e não elemento a elemento, pressupondo a conjugação sistémica com todos os elementos de prova processualmente admissíveis e produzidos nas condições da lei”. • Ac. TRP de 25-02-2015, processo nº 1582/12.0JAPRT.P1 (relator Ernesto Nascimento): “(…) III - Não é obrigatória a leitura em audiência das declarações prestadas para memória futura, nem tal falta viola o direito de defesa e o princípio do contraditório”. Relativamente ao valor probatório das declarações para memória futura parece-nos que não subsistem dúvidas de que o seu valor é idêntico ao das provas produzidas ou realizadas em audiência de julgamento, estando sujeitas ao princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 126º, do Código de Processo Penal (Cruz Bucho, obra citada, p. 181). No que tange a estas declarações prestadas pelas crianças em processo-crime, dispõe o art. 5º, nº 7, alínea d) do RGPTC (Regime Geral do Processo Tutelar Cível) que as mesmas devem ser valoradas como meio de prova na providência tutelar cível. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 171 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 172 - - the victim, provided that such measures can be reconciled with the adequate and effective exercise of the rights of the defence. In securing the rights of the defence, the judicial authorities may be required to take measures which counterbalance the handicaps under which the defence labours” (cfr. Aigner c. Austria, § 37; D. c. Finland, § 43; F. e M. c.Finland, §58; Accardi e outros c..Italy; S.N. c.Sweden, §47; Vronchenko c. Estónia, § 56). • “Even where a hearsay statement is the sole or decisive evidence against a defendant, its admission as evidence will not automatically result in a breach of Article 6 § 1. However, the fact that a conviction is based solely or to a decisive extent on the statement of an absent witness would constitute a very important factor to weigh in the scales and one which would require sufficient counterbalancing factors, including the existence of strong procedural safeguards. The question in each case is whether there are sufficient counterbalancing factors in place, including measures that permit a fair and proper assessment of the reliability of that evidence to take place. This would permit a conviction to be based on such evidence only if it is sufficiently reliable given its importance in the case” (cfr., o caso paradigmático Al-Khawaja e Tahery c. Reino Unido, de 1512-2011, processos 26766/05 e 22228/06, § 147. Essa prova, como toda aquela que foi produzida no âmbito do processo tutelar cível, está sujeita ao contraditório (art. 25º do RGPTC). Não obstante, muitas questões têm sido suscitadas, relacionadas com a suficiência ou não das declarações para memória futura, enquanto único fundamento para a formação da convicção de uma decisão condenatória e da valoração de tais declarações. Na jurisprudência do TEDH admite-se que possam ser utilizados depoimentos prestados sem a presença do arguido nas fases preliminares do processo e que o contraditório em audiência de julgamento seja limitado ou suprimido, desde que existam motivos atendíveis, nomeadamente a proteção de testemunhas, e sejam salvaguardados os direitos de defesa. Inicialmente, o TEDH seguia a “sole or decisive rule” ou seja, a regra da prova única ou decisiva, considerando que a convicção do tribunal não se podia fundar exclusivamente no depoimento de uma testemunha que o arguido não tivesse podido confrontar, durante a investigação ou em julgamento. Na sua senda, também no nosso ordenamento jurídico parte importante da doutrina (por ex. Sandra Oliveira e Silva, obra citada) e da jurisprudência seguiam este entendimento. Esta regra encontrou consagração legal, entre nós, no artigo 19º, da Lei nº 93/99, de 14 de julho, mas apenas quando se trate de testemunhas anónimas. Porém, mostrando-se cada vez mais sensível aos interesses das vítimas, o TEDH passou a entender que aquela regra não é absoluta, mesmo no caso de testemunhas anónimas. A este propósito, vejam-se alguns excertos de decisões TEDH: • “Article 6 § 3(d) enshrines the principle that, before an accused can be convicted, all evidence against him must normally be produced in his presence at a public hearing with a view to adversarial argument. Exceptions to this principle are possible but must not infringe the rights of the defence, which, as a rule, require that the accused should be given an adequate and proper opportunity to challenge and question a witness against him, either when that witness makes his statement or at a later stage of proceedings” (caso Hümmer c. Alemanha, § 38; caso Lucà c. Italy, § 39; caso Solakov c. antiga República da Macedónia, § 57). • “There are two requirements which follow from the above general principle. First, there must be a good reason for the non-attendance of a witness. Second, when a conviction is based solely or to a decisive degree on depositions that have been made by a person whom the accused has had no opportunity to examine or to have examined, whether during the investigation or at the trial, the rights of the defence may be restricted to an extent that is incompatible with the guarantees provided by Article 6 (the so-called “sole or decisive rule”)” (o paradigmático caso Al-Khawaja e Tahery c. Reino Unido, § 119). • “Criminal proceedings concerning sexual offences are often conceived of as an ordeal by the victim, in particular when the latter is unwillingly confronted with the defendant. These features are even more prominent in a case involving a minor. In the assessment of the question whether or not in such proceedings an accused received a fair trial, the right to respect for the private life of the alleged victim must be taken into account. Therefore, in criminal proceedings concerning sexual abuse, certain measures may be taken for the purpose of protecting O novo artigo 29º-A, do regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas, estabelecido pela Lei nº 112/2009, de 16 de setembro (diploma a que se reportam todos os normativos a seguir referidos sem menção da sua inserção) veio consagrar expressamente o direito da vítima a medidas de proteção. Com vista à sua concretização, cabe ao Ministério Público, logo que tenha conhecimento da denúncia e sem prejuízo de diligenciar pela realização das pertinentes e urgentes diligências de investigação, para aferir da necessidade de aplicação de medidas de proteção à vítima (e/ou de medidas de coação ao arguido), no mais curto período de tempo possível, sem exceder as 72 horas. No que se reporta às concretas medidas para proteção de testemunhas, é necessário conjugar a Lei nº 93/99, de 14 de julho, que regula a aplicação de medidas para proteção de testemunhas em processo penal e o Decreto-lei nº 190/2003, de 22 de agosto, que regulamenta a Lei nº 93/99, de 14 de julho, os quais consagram uma panóplia de medidas, dentre as quais se destacam as dirigidas às testemunhas especialmente vulneráveis, devido, nomeadamente, à sua diminuta ou avançada idade, ao seu estado de saúde ou ao facto de terem de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que estejam inseridas numa condição de subordinação ou dependência. Tais medidas visam, simultaneamente, proteger a testemunha e garantir a obtenção, nas melhores condições possíveis, de depoimentos ou declarações espontâneas e sinceras, ainda que a vida, integridade física ou psíquica, liberdade ou bens patrimoniais de valor consideravelmente elevado não sejam postos em perigo por causa do contributo da testemunha para a prova dos factos que constituem objeto do processo. MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 1.5.6. Outras medidas de proteção da vítima no processo penal 173 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 174 - - Por sua vez, o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas, densifica aquele regime geral, prevendo algumas medidas de proteção especialmente adaptadas às vítimas de crimes de violência doméstica. Considerando que a salvaguarda da vida, segurança e privacidade da vítima e dos seus familiares são questões prioritárias e que devem ser previamente acauteladas (cfr. III. 1.4 deste Manual), iremos aqui apreciar as medidas de proteção disponíveis diretamente ligadas à participação da vítima no processo penal. Tais medidas de proteção são, em síntese, as seguintes: • A vítima tem direito a ser ouvida em ambiente informal, reservado e seguro, devendo ser criadas as adequadas condições para prevenir a vitimização secundária e para evitar que sofra pressões (artigo 22º, nº 1); • Depoimento por videoconferência ou teleconferência: o depoimento da vítima, quando implique a presença do arguido, pode ser prestado através de videoconferência ou de teleconferência, se o Tribunal, designadamente a requerimento da vítima ou do Ministério Público, o entender como necessário para garantir a prestação de declarações ou de depoimento sem constrangimentos, podendo, para o efeito, solicitar parecer aos profissionais de saúde, aos técnicos de apoio à vítima ou a outros profissionais que acompanhem a evolução da situação [artigo 32º, nº 1 e ainda artigo 29º, alínea b), da Lei nº 93/99]; • Na prestação do depoimento, a vítima tem direito a um acompanhante, que deverá ser um profissional especialmente habilitado, designadamente o técnico de apoio à vítima ou outro profissional que lhe preste apoio psicológico ou psiquiátrico (artigo 32º, nº 2, e ainda artigo 27º, da Lei nº 93/99); • Declarações para memória futura (remissão para o capítulo anterior); • Sempre que se mostre necessária a presença do arguido e da vítima em diligências conjuntas, designadamente na tomada de declarações para memória futura ou em julgamento, a vítima tem direito a evitar quaisquer contactos com aquele, antes, durante e após a diligência, nomeadamente mediante a delimitação dos espaços (acessos e salas de espera distintas) [artigos 20º, nº 1 e nº 2 e 29º, alínea a), da Lei nº 93/99]; • Sempre que se mostre necessária a inquirição da vítima testemunha especialmente vulnerável em ato processual público ou sujeito a contraditório, a inquirição deve ser realizada pelo juiz, podendo, depois disso, os outros juízes, jurados, Ministério Público, defensor e advogados do assistente e das partes cíveis pedir a formulação de questões adicionais [artigo 29º, alínea c), da Lei nº 93/99]; • Às vítimas especialmente vulneráveis deve ser assegurado o direito a beneficiarem, por decisão judicial, de condições de depoimento, por qualquer meio compatível, que as protejam dos efeitos do depoimento prestado em audiência pública (artigo 20º, nº 3) • Sempre que se mostre necessária a presença da vítima em ato processual público ou sujeito a contraditório, a vítima, com o seu acompanhante, pode realizar uma visita prévia, para fins exclusivos de apresentação e para que lhe sejam previamente mostradas as instalações onde decorrerá o ato em que deva participar (artigo 30º, da Lei nº 93/99); • Estando a vítima impossibilitada de comparecer na audiência, por fundadas razões, pode ser determinada a sua inquirição noutro local (artigo 34º); • Em qualquer fase do processo, o tribunal pode determinar, a requerimento do Ministério Público, que a vítima seja temporariamente afastada da família ou do grupo social fechado em que se encontra inserida (artigos 31º, da Lei nº 93/99 e 19º, do Decreto-Lei nº 190/2003). • Surgiram recentemente no nosso ordenamento jurídico dois instrumentos de grande relevância no que se reporta à proteção da vítima: a decisão europeia de proteção, que se encontra prevista na Diretiva 2011/99/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, a qual deveria ter sido transposta para a ordem jurídica interna até 11 de janeiro de 2015, mas apenas o foi através da Lei nº 71/2015, de 20 de julho, tendo entrado em vigor 30 dias após a sua publicação; o reconhecimento mútuo de medidas de proteção em matéria civil, que foi estabelecido pelo Regulamento (UE) 606/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de junho de 2013, sendo aplicável desde 11 de janeiro de 2015. Estes dois instrumentos possibilitam que os Estados Membros da União Europeia reconheçam mutuamente decisões sobre medidas de proteção decretadas em matéria criminal ou civil. Conferem, por isso, uma maior robustez à proteção da vítima, reforçando os seus direitos e garantindo a sua proteção em toda a União Europeia, independentemente do Estado onde foram praticados os factos ou de onde aquelas são originárias. Note-se que, para garantir que as vítimas conheçam e possam exercer estes seus direitos, a autoridade judiciária tem o dever de informar a pessoa protegida da possibilidade de obter uma decisão europeia de proteção, assim como das condições para tanto, aconselhando-a a apresentar o pedido antes de se ausentar do território nacional (artigo 8º, nº 2, da aludida Lei). (Catarina Fernandes) 1.6. A detenção A detenção consiste numa privação da liberdade, provisória e precária, porquanto só poderá existir mediante determinados fundamentos, por prazos muito curtos e em vista de determinadas finalidades processuais48. Enquanto privação da liberdade traduzir-se-á sempre numa restrição a um direito fundamental constitucionalmente consagrado, mais precisamente no art. 27º da Constituição da República Portuguesa (CRP)49 48 49 MANUAL PLURIDISCIPLINAR Distinguindo-se da prisão preventiva nomeadamente por esta se traduzir numa medida de coação, necessariamente determinada por decisão judicial, tendo em vista a satisfação de necessidades cautelares estabelecidas no art. 204º, podendo ter apenas como destinatário o arguido, que poderá ter a duração de meses e anos e segue um regime diverso de habeas corpus – arts 220º e 222º. O art. 27º, nº 1, integrado na categoria dos direitos, liberdades e garantias, estabelece que todos têm direito à MANUAL PLURIDISCIPLINAR 175 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 176 - - e como tal a sua determinação e execução dependerão do que a Constituição estabelece em matéria de restrição de direitos fundamentais, sem prejuízo da salvaguarda do conteúdo essencial do respetivo direito. Ou seja, a detenção estará dependente da verificação de determinados pressupostos materiais: previsão constitucional expressa, ainda que se remeta para a lei a respetiva concretização (reserva de lei)50; justificação da restrição pela salvaguarda de um outro direito ou interesse constitucionalmente protegido51; e respeito pelo princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, o qual se desdobra em três outros princípios – princípio da adequação (a restrição deve revelar-se um meio adequado a atingir o fim visado com a restrição), o princípio da necessidade ou da indispensabilidade (a restrição deve ser necessária ou imprescindível para a satisfação dos fins visados com tal restrição, na medida em que tais fins não poderiam ser atingidos através de outros meios menos onerosos para o direito atingido (mais do que um dever ser é um ter de ser, um não poder deixar de ser); e o princípio da proporcionalidade em sentido estrito (no sentido de que os meios restritivos usados devem situar-se na justa medida, não podendo ser excessivos em relação aos fins que se visa alcançar – cfr. art. 18º, nº 2, da CRP). E é esse princípio de necessidade da detenção que constitucionalmente a poderá justificar, do mesmo modo que o seu desaparecimento determinará a imediata libertação do detido, como aliás resulta do art. 261º, nº 1, do CPP. É na ponderação entre a tutela do direito constitucionalmente consagrado e os valores ou interesses, também constitucionalmente consagrados, que deverá ser vista, em concreto, a possibilidade de recurso à detenção de qualquer pessoa. Pelo exposto, poderemos referir o caráter precário, provisório e condicionado da detenção como as notas fundamentais que definem a sua natureza. A CRP fala em privação total ou parcial da liberdade (por exemplo a prisão, com vários níveis de confinamento) e privação parcial (proibição de entrada em determinados locais, etc.). Assim também a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, art. 5º e art. 2º, do Protocolo nº 4 e a Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, doravante TEDH52. Tal diferença tem sentido à luz da sua justificação perante o princípio da proporcionalidade – Constituição Anotada, Gomes Canotilho (27º). 1.6.1. Finalidades da detenção 50 51 52 liberdade e à segurança. Isto é, todos têm direito à liberdade física, de locomoção, de se movimentar ou não, implicando isso que, à partida, por força de tal direito, ninguém pode ser impedido de se movimentar, ser detido, preso ou confinado a um determinado espaço fechado. O direito à liberdade como direito fundamental, tem ainda consagração expressa nos artigos 3º, 9º e 10º, da DUDH, 9º, do PIDCP e 5º, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH). Restrições essas previstas nos nos 2 e 3, do art. 27º - princípio da tipicidade das medidas privativas ou restritivas da liberdade. A exigência de lei, em harmonia com o respetivo art. 5º, decorre ainda da CEDH. Aqui entrarão em linha de conta os fins visados com a detenção, os quais, no confronto com o direito que se visa restringir, conferem legitimação constitucional à restrição visada pela norma e pela decisão que, concretamente, a prevê e aplica. Medvedyev and Others v. France; A. and Others v. the United Kingdom; Enhorn v. Sweden; T.W. v. Malta; Aquilina v. Malta; Al-Jedda v. the United Kingdom, [Em linha], disponível da internet em: <URLhttp://hudoc.echr.coe.int/ eng#{“documentcollectionid2”:[“GRANDCHAMBER”,”CHAMBER”]}>) MANUAL PLURIDISCIPLINAR A legitimação constitucional da detenção, por se tratar de um ataque aos direitos fundamentais, passa antes de mais pela necessidade de verificação prévia das finalidades que com a mesma se visa atingir. Porque a restrição do direito à liberdade só estará constitucionalmente justificada quando se mostrar necessária à salvaguarda de outros interesses ou valores constitucionalmente protegidos – 18º, nº 2, da CRP - importa então apurar que finalidades poderão ser essas. a) Para o detido ser apresentado a julgamento sob a forma sumária (art. 254º, nº 1, al. a), primeira parte, do CPP) A apresentação do detido para julgamento sob a forma sumária, nos termos do nº 1, do art. 381º, do CPP, pressupõe que o mesmo tenha praticado um facto ilícito típico em flagrante delito, isto é, tenha sido intercetado quando estava cometendo um determinado crime ou quando haja acabado de o cometer ou que, logo após o crime, tenha sido perseguido por qualquer pessoa ou sido encontrado com objetos ou sinais que mostrem claramente que acabou de o cometer ou de nele participar (artigo 256º, do CPP). Sendo que, nestes casos, se a detenção tiver sido levada a cabo por qualquer pessoa que não seja uma autoridade judiciária ou entidade policial, o detido terá de ser entregue a estas últimas no prazo máximo de duas horas. A detenção com esta finalidade cabe na previsão do art. 27º, nº 3, al. a), da CRP. b) Para o detido ser presente ao juiz competente para primeiro interrogatório judicial ou para aplicação ou execução de uma medida de coação (artigo 254º, nº 1, alínea a), segunda parte, do CPP). Nesta hipótese a detenção, que poderá advir ou não de um flagrante delito, no caso de flagrante delito, deveria visar também, em via de regra, e diríamos mesmo que numa perspetiva constitucional teria de visar, a aplicação ou execução de uma medida de coação, pois esta finalidade, porque arvorada em alguma das necessidades cautelares previstas no art. 204º, poderia justificar uma tal restrição a um direito fundamental. Ora, a detenção para mera apresentação do detido ao juiz para primeiro interrogatório judicial poderá, por si só, não ser suficiente para justificar a detenção, se no caso nada justificar que tal detenção seja feita, ademais porque na atuação que possa existir em relação ao arguido ou em relação ao suspeito, deverá ser tido em conta o princípio fundamental da presunção de inocência, à luz do qual a detenção não poderá ser vista como uma espécie de antecipação de qualquer sanção ou ver encontrada a sua justificação pelo mero cometimento do crime e como uma mera reação a este. O que nos leva a considerar, em bom rigor, que a apresentação do detido a primeiro interrogatório judicial só deverá justificar-se nos casos em que se considere dever ser aplicada ou executada uma determinada medida de coação. Não conseguimos ver na mera apresentação do arguido ao juiz para primeiro interrogatório judicial, em si, uma finalidade justificante da detenção, tando mais que o primeiro interrogatório judicial é um ato de garantia de defesa do arguido face à detenção, imposto pelo art. 28º, nº 1, da CRP, ao estabelecer que a detenção seja submetida a apreciação MANUAL PLURIDISCIPLINAR 177 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 178 - - judicial para restituição à liberdade ou para aplicação de medida de coação. E não concebemos, por paradoxal, que alguém possa ser detido com a mera finalidade de ser restituído à liberdade por um juiz. Não respeitaria o art. 18º, nº 2, da CRP. E no cotejo entre os requisitos da detenção em flagrante delito e os relativos à detenção fora de flagrante delito, podemos ver uma diferença assinalável, pelo facto de o flagrante delito, em abstrato, poder por si só justificar uma detenção, que assumirá um caráter puramente reativo ao delito criminal, nos casos em que a mesma se não justifique dum ponto de vista material, à luz dos princípios supra referidos e mais precisamente ao estabelecido no art. 18º, nº 2, da CRP, solução que nos suscita por isso dúvidas do ponto de vista constitucional. c) Para assegurar a presença imediata ou no mais curto prazo possível, sem nunca exceder as 24 horas, do detido perante a autoridade judiciária em ato processual (art. 254º, nº 1, al. b), do CPP). Esta norma tem cobertura constitucional na al. f), do nº 3, do art. 27º e com ela visa-se tornar efetivo o dever de colaboração com a administração da justiça, podendo a detenção ter como destinatários o arguido, o ofendido ou qualquer sujeito ou interveniente processual, à exceção do Ministério Público e do Advogado constituído ou nomeado no processo. Sendo de assinalar a necessária articulação entre este normativo e o estabelecido nos arts 116º e 117º, do CPP – falta injustificada de pessoa regularmente notificada para comparecimento a ato processual. Embora resulte da al. b), em relação à al. a), um maior cuidado na exigência da apresentação do detido perante a autoridade judiciária, ao falar-se numa apresentação imediata ou no mais curto prazo possível, enquanto na al. a) se refere apenas a apresentação num prazo máximo, a verdade é que por imposição constitucional do art. 18º e do art. 5º, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, a apresentação do detido deve ser feita sempre o mais rapidamente possível, no sentido de que a apresentação do detido mesmo no termo das 48 horas referidas na al. a), do nº 1, do art. 254º, do CPP e 28º, nº 1, da CRP, só pode acontecer, não por decisão deixada à livre determinação da entidade que procedeu à detenção, mas porque tal apresentação no limite do prazo se mostrou concretamente necessária e justificada, e que não permitiu que a apresentação fosse levada a cabo em momento mais próximo daquele em que foi realizada a detenção. d) Detenção de suspeitos para efeitos de identificação - 250º, nº 6 e 7, do CPP e 27º, nº 3, al. g), da CRP. Nos casos em que se verifique a impossibilidade de identificação nos termos dos nos 3, 4 e 5, do art. 250º, do CPP, podem os órgãos de polícia criminal conduzir o suspeito ao posto policial mais próximo e compeli-lo a permanecer ali pelo tempo estritamente indispensável à identificação, em caso algum superior a seis horas, realizando, em caso de necessidade provas datiloscópicas, fotográficas ou de natureza análoga e convidando o identificado a indicar residência onde possa ser encontrado e receber comunicações. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 1.6.2. Pressupostos da detenção 1.6.2.1. Detenção em flagrante delito53 Em caso de flagrante delito, basta que o crime seja punível com pena de prisão para que possa haver detenção. O que acontece com o crime de violência doméstica. Mas tratando-se de crime cujo procedimento dependa de queixa, a detenção só se mantém quando, em ato a ela seguido, o titular do direito respetivo o exercer. Tratando-se de crime particular, isto é cujo procedimento dependa de acusação particular, diz o art. 255º, nº 2, que não há lugar a detenção em flagrante delito, mas apenas à identificação do infrator. Porém, sempre será de colocar a questão de saber se o mero flagrante delito, por si só, e numa perspetiva constitucional de índole material, legitima uma qualquer detenção, tanto por ação de caráter privado, por qualquer pessoa, ou por qualquer autoridade policial ou judiciária. A questão prende-se obviamente com a norma do art. 18º, nº 2, da CRP, ao impor, tanto ao legislador como ao aplicador do direito um princípio de necessidade estrito para qualquer restrição aos direitos fundamentais, a ser demonstrada concretamente, caso a caso. É certo que uma leitura linear do art. 27º, nº 1, al. a), da CRP parece legitimar, de um ponto de vista constitucional formal a detenção baseada em flagrante delito. Não estabelecendo sequer, limitações a quem a pode ou não levar a cabo. Mas se a regra é que ninguém pode ser detido a não ser em resultado de decisão condenatória transitada em julgado, aqui estando em causa o princípio da presunção de inocência do arguido, então qualquer limitação à liberdade fora deste quadro, além de excecional, deverá ser concretamente justificada à luz do citado art. 18º. Na verdade, uma detenção que opere apenas como mera reação à prática de uma ilícito típico, atendendo-se como único requisito o facto de o mesmo ser punível com pena de prisão, na ausência de qualquer outra necessidade de caráter cautelar, como seja, a título de mero exemplo, o perigo de fuga ou a dificuldade na posterior identificação do suspeito, levaria a supor que essa detenção surgiria como uma mera reação ao indiciado facto típico, traduzindo-se assim numa coerção da liberdade que, nestas circunstâncias, só teria justificação após um processo equitativo, do qual resultasse afastada a presunção de inocência e o arguido justamente condenado na pena que ao caso coubesse. Mas mesmo aqui, a sanção justa poderia, tendo em conta o tipo de crime e os critérios de escolha e determinação da medida da pena, tornar insuportável uma pena de caráter detentivo. E dissemos antes que mais insuportável seria uma ação detentiva por parte de qualquer pessoa, baseada apenas no flagrante delito, sabendo nós que a atuação penal é monopólio do chamado Estado moderno e só a título excecional é que o sistema jurídico admite a atuação dos particulares. 53 A noção de flagrante delito, em sentido estrito, é-nos dada pelo art. 256º: é flagrante delito todo o crime que se está cometendo ou se acabou de cometer. Ou seja, sempre que o agente é surpreendido por qualquer pessoa a cometer o crime, no sentido de que a ação típica constitutiva do mesmo se prolonga no tempo em que a observação do seu cometimento é feita por essa ou por várias pessoas. Sendo ainda flagrante delito, nos termos do número 2, do mesmo artigo, também o chamado quase flagrante delito, nos casos em que o agente for, logo após o cometimento do crime, perseguido por qualquer pessoa ou encontrado com objetos ou sinais que mostrem claramente que acabou de cometer o crime ou nele participar. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 179 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 180 - - Situação ou problemática que poderá ser perspetivada em analogia com a legítima defesa como causa de exclusão da ilicitude no domínio do direito penal substantivo. Em abono desta tese, diga-se que o Código de Processo Penal alemão prevê no seu art. 127º, sob a epígrafe “detenção provisória”, que se alguém for apanhado em flagrante delito ou se a seguir à prática do facto haja sido perseguido, qualquer pessoa estará autorizada a detê-lo provisoriamente, mesmo sem mandado judicial, se houver razões para suspeitar de uma fuga ou a sua identidade não puder ser imediatamente estabelecida. Acrescentando-se no nº 2, do mesmo artigo, que, em caso de perigo de demora, o Ministério Público e as autoridades policiais poderão proceder à detenção se se verificarem os requisitos para a emissão de mandados de detenção ou de internamento. 1.6.2.2. Detenção fora de flagrante delito – art. 257º, do CPP Fora de flagrante delito os pressupostos para a sua determinação variam consoante a entidade que a ordena. Sendo o juiz a ordenar a detenção, ela é admissível desde que o crime seja punível com pena de prisão. Sendo o Ministério Público a ordenar a detenção, esta só será legalmente possível se for admissível a prisão preventiva. Mas para que o juiz ou o Ministério Público possam emitir mandados de detenção fora de flagrante delito é necessário ainda: • Haver fundadas razões para considerar que o visado se não apresentaria espontaneamente perante autoridade judiciária no prazo que lhe fosse fixado; • Ou verificar-se, em concreto, algumas das situações previstas no art. 204º, que apenas a detenção permita acautelar; • Ou se tal se mostrar imprescindível para a proteção da vítima. Sendo a autoridade de polícia criminal54, por iniciativa própria, a ordenar a detenção, esta só é legalmente possível: - Se no caso for admissível prisão preventiva – cfr. art. 202º, do CPP; - Se existirem elementos que tornem fundado o receio de fuga ou de continuação da atividade criminosa; - E não for possível, dada a situação de urgência e de perigo na demora, esperar pela intervenção da autoridade judiciária. 54 Nos termos do art. 1º, al. d), do CPP, autoridade de polícia criminal são os diretores, oficiais, inspetores e subinspetores de polícia e todos os funcionários policiais a quem as leis respetivas reconhecerem aquela qualificação. Neste particular importa ter em conta o estabelecido nas disposições normativas dos seguintes diplomas: - Relativamente à Polícia Judiciária, art. 11º, da Lei nº 37/2008, de 06/08; Relativamente à Polícia de Segurança Pública, arts 11º, nº 1, al. a) e 10º, nº 1, da Lei nº 53/2007, de 31/08; Relativamente à Guarda Nacional Republicana, art. 12º, nº 1, al. a), 13º, nº 1, e 11º, nº 1, da Lei nº 63/2007, de 06/11. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 1.6.2.2.1. Detenção fora de flagrante delito - necessidade de emissão de mandados – art. 258º, do CPP Fora de flagrante delito, a detenção, quer seja ordenado pelo juiz, pelo Ministério Público ou pela autoridade de polícia criminal, só pode ser efetuada mediante a emissão de mandados. Os mandados devem ser emitidos em triplicado e contêm, sob pena de nulidade: • A data da emissão e a assinatura da autoridade judiciária ou de polícia criminal competentes; • A identificação da pessoa a deter; e • A indicação do facto que motivou a detenção e das circunstâncias que legalmente a fundamentam. Em caso de urgência e de perigo na demora é admissível a requisição da detenção por qualquer meio de telecomunicação, seguindo-se-lhe imediatamente confirmação por mandado, nos termos supra referidos – art. 258º, nº 2, do CPP. O mandado de detenção deve ser exibido ao detido, devendo ser-lhe ainda entregue uma das cópias. Mas tendo a detenção, no caso de urgência e de perigo na demora, sido requisitada por qualquer meio de telecomunicação, ao detido será ainda exibida a ordem de detenção donde conste a requisição, a indicação da autoridade judiciária ou de polícia criminal que a fez e os demais requisitos acima referidos – art. 258º, nº 3, do CPP. Sobre a necessidade de emissão prévia de mandados de detenção no caso de detenção fora de flagrante delito, sob pena de ilegalidade da mesma, pronunciou-se o Ac. do STJ, de 07/07/201055: nas situações de detenção fora de flagrante delito para aplicação ou execução da medida de prisão preventiva, o detido é sempre apresentado ao juiz, sendo correspondentemente aplicável o art. 141º, do CPP – realização do primeiro interrogatório judicial. 1.6.2.3. Detenção para assegurar a presença do detido perante autoridade judiciária em ato processual56 Nesta hipótese, a detenção anda normalmente associada à falta de comparecimento injustificada de pessoa regularmente convocada ou notificada, nos termos do art. 116º, do CPP. E será na conjugação dos dois preceitos que deverá ser interpretada. Em tais casos, o juiz pode ordenar, oficiosamente ou a requerimento, a detenção pelo tempo indispensável à realização da diligência. Pressupondo, tal decisão, a possibilidade efetiva de a pessoa comparecer voluntariamente ao ato para que foi convocada, porquanto a sua notificação havia sido regularmente efetuada e não justificou a falta, nos termos do art. 117º, do CPP. Refira-se que a simples falta injustificada a diligência ou a ato processual para o qual a pessoa foi regularmente convocada pode, por si só, não ser suficiente para sustentar a detenção. 55 56 Ac. do STJ, de 07/07/2010, http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/153b66823a68271f80 257785004b6033?OpenDocument&Highlight=0,deten%C3%A7%C3%A3o,fora,flagrante,delito%20. Autoridade judiciária é, nos termos do art. 1º, al. b), do CPP, o juiz, o juiz de instrução e o Ministério Público. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 181 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 182 - - Basta que a finalidade que se tinha em vista com a convocação tenha entretanto deixado de subsistir, por exemplo se entretanto deu entrada um pedido de desistência de queixa em processo por crime semipúblico ou particular ou se em sede de julgamento a prova produzida, tratando-se de testemunha, é de tal modo concludente que não se vê relevância na prestação do depoimento da testemunha faltosa – o princípio da necessidade previsto no art. 18º, nº 2, do CPP, a ter de ser verificado em concreto, caso a caso, não permitirá, à luz da constituição, uma tal detenção. Devendo, em nosso entender, persistir apenas a condenação na multa aplicada, nos termos do art. 116º, nº 1, do CPP. 1.6.2.3.1 Necessidade de emissão de mandados de detenção para assegurar a presença do detido perante autoridade judiciária em ato processual Nestes casos de detenção é exigível a emissão e entrega dos mandados de detenção nos mesmos termos supra referidos em 1.6.2.2.1. 1.6.2.4. Detenção de suspeitos para efeitos de identificação - 250º, n 6 e 7, do CPP e 27º, nº 3, al. g), da CRP Na impossibilidade de determinada pessoa se identificar, nos termos do art. 250º, nos 3, 4 e 5, do CPP57, encontrando-se essa pessoa em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial, e desde que sobre ela recaiam fundadas suspeitas da prática de crimes, da pendência de processo de extradição ou de expulsão, de que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou de haver contra si mandado de detenção, os órgãos de polícia criminal poderão conduzir o suspeito ao posto policial mais próximo e compeli-lo a permanecer ali pelo tempo estritamente indispensável à identificação, em caso algum superior a seis horas, realizando, em caso de necessidade, provas dactiloscópicas, fotográficas ou de natureza análoga e convidando o identificando a indicar residência onde possa ser encontrado e receber comunicações. * Vejamos as situações em que a detenção não pode ser determinada e as situações em que, depois de executada, deverá proceder-se à libertação imediata do detido: Nos termos do art. 192º, nº 2, ex vi do art. 260º, do CPP, a detenção não deve ser ordenada, nem mantida, se houver fundados motivos para crer na existência de causas de isenção da responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal (artigo 192º, nº 2, do CPP, ex vi do artigo 260º, do CPP). Por outro lado, qualquer entidade que tiver ordenado a detenção ou a quem o detido for presente deverá proceder à imediata libertação do detido logo que se tornar manifesto os 57 Isto é, mediante a apresentação de bilhete de identidade ou de passaporte, no caso de ser cidadão português; de título de residência, bilhete de identidade, passaporte ou documento que substitua o passaporte, no caso de ser cidadão estrangeiro. Não sendo possível a apresentação de qualquer daqueles documentos, o suspeito poderá identificar-se mediante a apresentação de documento original ou cópia autenticada que contenha o seu nome completo, a sua assinatura e a sua fotografia. E se não for portador de nenhum documento de identificação, poderá ainda identificar-se: através de comunicação com uma pessoa que apresente os seus documentos de identificação; através de deslocação, acompanhado pelos órgãos de polícia criminal, ao lugar onde se encontram os seus documentos de identificação; reconhecimento da sua identidade por uma pessoa identificada com os documentos supra referidos, e que garanta a veracidade dos dados pessoais indicados pelo identificado – art. 250º, nos 3, 4 e 5. MANUAL PLURIDISCIPLINAR que a detenção foi efetuada por erro sobre a pessoa ou fora dos casos em que era legalmente admissível ou que a medida se tornou desnecessária. 1.6.3. Quem deve ou pode determinar ou levar a cabo a detenção 1.6.3.1. Detenção em flagrante delito Em caso de flagrante delito, diz o art. 255º, nº 1, al. a), do CPP, qualquer autoridade judiciária ou entidade policial procede à detenção E qualquer pessoa pode proceder à detenção, se uma das entidades acima referidas não estiver presente nem puder ser chamada em tempo útil. 1.6.3.2. Detenção fora de flagrante delito Fora de flagrante delito, a detenção só pode ser determinada: - Pelo juiz 1 - Se ao crime couber pena de prisão. 2 - Quando se verifique, em concreto, alternativamente: a) Fundadas razões para considerar que o visado se não apresentaria espontaneamente perante autoridade judiciária no prazo que lhe fosse fixado; b) Alguma das situações previstas no artigo 204º, que apenas a detenção permita acautelar [isto é: a) Fuga ou perigo de fuga;b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas] ou c) Se a detenção se mostrar imprescindível para a proteção da vítima. - Pelo Ministério Público 1- Se no caso for admissível prisão preventiva; 2- Quando se verifique, em concreto, alternativamente: a) Fundadas razões para considerar que o visado se não apresentaria espontaneamente perante autoridade judiciária no prazo que lhe fosse fixado; b) Alguma das situações previstas no artigo 204º, que apenas a detenção permita acautelar [isto é: a) Fuga ou perigo de fuga;b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas]; c) Se tal se mostrar imprescindível para a proteção da vítima. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 183 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 184 - - Aqui o único requisito que distingue a determinação da detenção por parte do Ministério Público, doravante MP, da detenção ordenada pelo juiz é a necessidade de verificação dos pressupostos da prisão preventiva, e já que sendo a mesma decretada pelo juiz basta que o crime seja punível com pena de prisão. Isto significa que o MP numa situação de necessidade de detenção num crime que não admita prisão preventiva, mas que, sendo punível como pena de prisão, reclame alguma das necessidades acima referidas, deverá requerer a detenção ao juiz. - Pela autoridade de polícia criminal: 1- Desde que, cumulativamente, se verifiquem os seguintes requisitos: a) - Se no caso for admissível prisão preventiva – cfr. art. 202º, do CPP; b) - Se existirem elementos que tornem fundado o receio de fuga ou de continuação da atividade criminosa; c) - E não for possível, dada a situação de urgência e de perigo na demora, esperar pela intervenção da autoridade judiciária58. 1.6.3.2.1. Especificidades da detenção no âmbito da cooperação judiciária internacional em matéria penal Sem prejuízo das convenções, tratados e acordos internacionais que vinculem o Estado Português, na sua falta ou insuficiência, a cooperação judiciária internacional em matéria penal é regulada pela Lei nº 144/99, de 31/08 – Lei da Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal -, sendo subsidiariamente aplicáveis as normas do Código de Processo Penal, nos termos do art. 3º, nº 2, da referida Lei. No âmbito de aplicação da Lei nº 144/99, de 31 de agosto, importa considerar o art. 38º sobre a detenção provisória. Sobre a detenção não diretamente solicitada, por factos que notoriamente justifiquem a detenção, segundo informações oficiais, releva o art. 39º, do mesmo diploma. Quanto aos prazos de apresentação do detido às autoridades judiciárias e de duração da detenção do extraditando, cfr. arts. 38º, 52º, 53º, 62º, 63º, 64º, 77º, da Lei nº 144/99.59 De notar que, em qualquer caso, não deverá ser ordenada ou realizada a detenção, ao abrigo de um pedido de cooperação judiciária internacional sempre que se verifique alguma das situações referidas nos arts 6º, 7º, 8º ou 32º, que legitimem a recusa de cooperação internacional. Assim como nas hipóteses em que tal cooperação poderá ser recusada com fundamento na reduzida importância da infração – art. 10º. Com a devida atenção ainda ao disposto no art. 12º, nº 2 e arts. 18º (face à possibilidade de litispendência ou de grave consequência para a pessoa visada, em razão da idade, estado de saúde ou de outros motivos de caráter pessoal) e 19º (non bis in idem). Nos termos do art. 44º, ao pedido de extradição devem ser juntos, entre outros elementos, o mandado de detenção da pessoa reclamada, emitido pela autoridade competente; certidão ou cópia autenticada da decisão que ordenou a expedição do mandado de detenção, no caso de extradição para procedimento penal; certidão ou cópia autenticada da decisão condenatória, no caso de extradição para cumprimento da pena, bem como documento comprovativo da pena a cumprir, se esta não corresponder à duração da pena imposta na decisão condenatória. Quanto à competência para a emissão do mandado de detenção, apresentação do extraditando e audição deste, ver arts. 49º a 57º. Quanto às especificidades, no que toca à detenção antecipada, ver arts 38º, 62º, 71º. Quanto à detenção posterior à fuga do extraditado para reentrega, ver arts 66º a 68º. A detenção e entrega de nacionais a um outro Estado Membro da UE para efeitos de procedimento criminal, cumprimento de pena ou medida de segurança privativa de liberdade, por factos praticados a partir de 01/01/2004, está regulada pela Lei nº 65/2003, de 23/08 e Decisão-Quadro nº 2002/584/JAI, do Conselho, de 13/06 – que aprova o regime do Mandado de Detenção Europeu. Por factos praticados anteriormente àquela data, rege a Convenção Europeia de Extradição (CEE), e, subsidiariamente a Lei nº 144/99, de 31/08 e pelo CPP – art. 3º, nº 2, da Lei nº 144/99 e 229º, do CPP. Possibilidade de detenção por parte de entidade policial (no âmbito da extradição passiva) com base nas indicações introduzidas no Sistema de Informação de Schengen (SIS) – arts 77º e 95º, nº 2, da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen. A introdução de tais dados de identificação de determinado cidadão no Sistema de Informação Schengen (SIS), nos termos do art. 95º, da Convenção de Aplicação do Acordo Schengen, produz os mesmosefeitos de um mandado de detenção europeu, se acompanhado das informações referidas no art. 3º, nº 1, ex vi art. 4º, nos 2 e 4, da Lei 65/03, de 23-08, e desde que as informações colocadas sejam suficientes para que se possa decidir da entrega, atento o disposto no art. 22º, nº 2.60 No âmbito da aplicação da Convenção Europeia de Extradição, o processo corre termos segundo a lei do Estado requerido, nos termos do art. 22º da Convenção61, e terá os requisitos e prazos de duração previstos no art. 16º. A título meramente informativo, sobre a detenção de cidadão estrangeiro que entre ou permaneça ilegalmente em território nacional, têm interesse os arts 146º, 146º-A, 161º, 171º, da Lei nº 23/2007, de 04 de julho – Entrada, Permanência, Saída e Afastamento de Estrangeiros do Território Nacional. 1.6.3.2.2. Especificidades relativamente ao crime de violência doméstica Nos termos do art. 30º, nº 2, da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro (estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas 58 59 Cfr. AC. TRP, de 25/06/2014 Sobre a heterogeneidade da detenção provisória para extradição e prisão preventiva, no tocante aos seus diferentes prazos e à possibilidade da não inclusão do tempo de detenção para efeitos de limite máximo de prisão preventiva, bem como relativamente à diferença de regimes entre os respetivos processos, ver Ac. do TC, nº 462/2004, de 23/07. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 60 61 Cfr. Ac. do STJ, de 11/08/2006, pº 06P3073 - http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/ 8c81dcb84eff7e8d8025723c00555b0b?OpenDocument. Resolução da Assembleia da República nº 23/89. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 185 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 186 - - vítimas), para além das situações previstas no nº 1, do art. 257º, do CPP, a detenção fora de flagrante delito pelo crime de violência doméstica pode ser efetuada por mandado do juiz ou do Ministério Público, se houver perigo de continuação da atividade criminosa ou se tal se mostrar imprescindível à proteção da vítima. Sendo que, relativamente às autoridades policiais estas também podem ordenar a detenção fora de flagrante delito, pelo crime de violência doméstica, por iniciativa própria, quando, em concreto: a) Haja perigo de continuidade da atividade criminosa ou a detenção se mostre imprescindível à proteção da vítima62; e b) Não for possível, dada a situação de urgência e de perigo na demora, esperar pela intervenção da autoridade judiciária. Ou seja, a especificidade de tal disposição normativa, quando confrontada com o art. 257º, nos 1 e 2, do CPP, e uma vez que o crime de violência doméstica admite prisão preventiva, por força das disposições conjugadas dos arts 152º, do CP, 202º, nº 1, al. b) e 1º, nº 1, al j), e 2, al. b), do CPP, só tinha razão de ser na vigência da redação dada ao art. 257º, nº 2, pela Lei nº 48/2007, de 29/08, pois aí apenas se previa a possibilidade de detenção fora de flagrante delito nos casos em que, além da necessidade de se tratar de caso que admitisse a prisão preventiva e da impossibilidade, dada a situação de urgência e de perigo na demora, esperar pela intervenção a autoridade judiciária, houvesse fundado receio de fuga. Acontece que a Lei nº 26/2010, de 30/08, veio alterar o nº 1, do art. 257º, acrescentando, tal como a Lei nº 112/2009 já previa no seu art. 30º, nº 2, o perigo de continuação de atividade criminosa ou o facto de a detenção se mostrar imprescindível para a proteção da vítima, para além da verificação das demais necessidades cautelares previstas no art. 204º, alargando assim, em termos gerais, e contemplando também o crime de violência doméstica, o âmbito de aplicação do regime de detenção fora de flagrante delito, quando a respetiva detenção seja ordenada pela autoridade judiciária, fazendo com que a Lei nº 112/2009, neste particular, deixasse de ter relevância normativa específica. De ressalvar será apenas a especificidade resultante do nº 3, do art. 30º, da Lei 112/2009, porquanto ao remeter para o seu nº 2 cobre uma situação que fundamenta a possibilidade de detenção fora de flagrante delito que não tem cobertura no nº 2, do art. 257º, do CPP, precisamente quando tal detenção se mostre imprescindível à proteção da vítima. Aqui, verificados cumulativamente os demais pressupostos (tratar-se de crime de violência doméstica, e não ser possível, dada a situação de urgência e de perigo na demora, esperar pela intervenção da autoridade judiciária), poderá a autoridade policial determinar a detenção fora de flagrante delito, por iniciativa própria. 1.6.3.3. Detenção para assegurar a presença do detido perante autoridade judiciária em ato processual Nestes casos, a detenção só poderá ser ordenada pelo juiz competente. 62 Sendo considerada vítima, à luz do art. 2º, al. a), do mesmo diploma, a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou mental, um dano moral, ou uma perda material, diretamente causada por ação ou omissão, no âmbito do crime de violência doméstica previsto no artigo 152º, do Código Penal. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 1.6.3.4. Detenção de suspeitos para efeitos de identificação A detenção poderá ser levada a cabo pelos órgãos de polícia criminal. 1.6.4. Quem pode ser alvo de detenção – sujeito passivo da detenção 1.6.4.1. Em caso de flagrante delito, a pessoa em relação à qual haja suspeita fundada da prática de um crime punível com pena de prisão, nos termos supra referidos. 1.6.4.2. Fora de flagrante delito, também apenas alguém em relação a quem haja suspeita fundada da prática de crimes, nos termos supra referidos, tenha ou não já sido constituído arguido no processo. 1.6.4.3. Detenção para assegurar a presença do detido perante autoridade judiciária em ato processual Nestes casos, verificados os respetivos pressupostos, pode ser detida qualquer pessoa, seja arguido, suspeito, ofendido, assistente, parte civil, testemunha, perito ou qualquer interveniente processual. Mas não poderão ser detidos os Magistrados do Ministério Público e os advogados constituídos no processo. 1.6.4.4. Detenção de suspeitos para efeitos de identificação Qualquer pessoa em relação à qual haja fundadas suspeitas da prática de crimes, da pendência de processo de extradição ou de expulsão, de que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou de haver contra si mandado de detenção, desde que verificados os demais pressupostos supra referidos em 1.6.2.4. 1.6.5. Imunidades ou medidas especiais de proteção, de caráter pessoal, fundadas na Constituição da República Portuguesa e na lei ordinária Presidente da República O Presidente da República, por crimes praticados no exercício das suas funções, só responde diretamente perante o Supremo Tribunal de Justiça, cabendo a iniciativa do processo à Assembleia da República, mediante proposta de um quinto e deliberação aprovada por maioria de dois terços dos Deputados em efetividade de funções – art. 130º, nos 1 e 2, da CRP. Por crimes estranhos ao exercício das suas funções, o Presidente da República responde depois de findo o mandato perante os tribunais comuns – art. 130º, nº 4, da CRP. Deputados Os Deputados não podem ser detidos ou presos sem autorização da Assembleia da República, salvo por crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos e em flagrante delito. Além disso, não respondem civil, criminal ou disciplinarmente pelos votos e opiniões que emitirem no exercício das suas funções MANUAL PLURIDISCIPLINAR 187 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 188 - - e não podem ser ouvidos como declarantes, nem como arguidos, sem autorização da Assembleia da República, sendo obrigatória a autorização quando houver fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos – art. 157º, da CRP e 11º, nº 3, da Lei nº 7/93, de 01/03 – Estatuto dos Deputados - e art. 34º, nº 1, da Lei nº 34/87, de 16/0763. Candidatos a deputado Nenhum candidato a deputado à Assembleia da República pode ser sujeito a prisão preventiva, a não ser em caso de flagrante delito, por crime punível com pena de prisão maior. Os delegados das listas e os delegados nomeados para fiscalizar as operações de voto antecipado não podem ser detidos durante o funcionamento da assembleia de voto, a não ser por crime punível com pena de prisão superior a três anos e em flagrante delito – arts 10º, 50º-A e 79º-A, nº 7, da Lei Eleitoral da Assembleia da República - Lei nº 14/79, de 26/05. Membros do Governo Nenhum membro do Governo pode ser detido ou preso sem a autorização da Assembleia da República, salvo por crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos e em flagrante delito – art. 196º, da CRP. Membros do Conselho de Estado Nenhum membro do Conselho de Estado pode ser detido ou preso sem autorização do Conselho, salvo por crime punível com pena maior e em flagrante delito. Além disso, não respondem civil, criminal ou disciplinarmente pelos votos e opiniões que emitirem no exercício das suas funções – arts 14º, nº 1, e 13º, da Lei nº 31/84. São membros do Conselho de Estado o Presidente da Assembleia da República, o Primeiro-Ministro, o Presidente do Tribunal Constitucional, o Provedor de Justiça, os Presidentes dos Governos Regionais, os antigos Presidentes da República eleitos na vigência da Constituição que não hajam sido destituídos do cargo, cinco cidadãos designados pelo Presidente da República pelo tempo correspondente à duração do seu mandato e cinco cidadãos eleitos pela Assembleia da República, de harmonia com o princípio da representação proporcional, pelo período correspondente à duração da legislatura – art. 196º, da CRP. Magistrados Judiciais e do Ministério Público Os magistrados judiciais e os magistrados do Ministério Público não podem ser presos ou detidos antes de ser proferido despacho que designe dia para julgamento relativamente a acusação contra si deduzida, salvo em flagrante delito por crime punível com pena de prisão superior a três anos. E em caso de detenção ou prisão, o magistrado é imediatamente apresentado à autoridade judiciária competente - arts 16º, do Estatuto dos Magistrados Judiciais (Lei nº 21/85, de 30/07) e 91º, do Estatuto do Ministério Público (Lei nº 47/86, de 15/10). Juízes Militares Só podem ser responsabilizados civil, criminal ou disciplinarmente pelas suas decisões, nos casos especialmente previstos na lei. E a responsabilidade por crimes comuns ou 63 estritamente militares efetiva-se em termos semelhantes aos dos demais juízes do tribunal em que os juízes militares exerçam funções – art. 5º, da Lei nº 101/2003, de 15/11. Jurados Não podem, durante o exercício da respetiva função, ser privados da liberdade sem culpa formada, salvo no caso de detenção em flagrante delito por crime punível com prisão superior a três anos – art. 15º, nº 1, DL nº 387-A/87, de 29/12 (Regime de Júri em Processo Penal). Provedor de Justiça O Provedor de Justiça não pode ser detido ou preso sem autorização da Assembleia da República, salvo por crime punível com a pena de prisão superior a 3 anos e em flagrante delito, e não responde civil ou criminalmente pelas recomendações, reparos ou opiniões que emita ou pelos atos que pratique no exercício das suas funções – art. 8º, da Lei nº 9/91, de 09/04. Deputados das Assembleias Legislativas Regionais e Membros dos Governos Regionais Nenhum deputado da Assembleia Legislativa Regional e nenhum membro do Governo Regional pode ser detido ou preso sem autorização da Assembleia Legislativa Regional, salvo por crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos e em flagrante delito, e os deputados não respondem civil, criminal ou disciplinarmente pelos votos e opiniões que emitirem no exercício das suas funções – art. 23º, nos 1 e 2, e 64º, nº 3, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira (Lei nº 13/91, de 05/06, na versão dada pela Lei nº 130/99, de 21/8) e 97º e 104º, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (Lei nº 39/80, de 05/08, na versão dada pela Lei nº 2/2009, de 12/01) e Lei nº 34/87, de 16/07. Candidatos aos órgãos das autarquias locais Nenhum candidato aos órgãos das autarquias locais pode ser sujeito a prisão preventiva, a não ser em caso de flagrante delito, por crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a 3 anos.E os delegados das candidaturas concorrentes não podem ser detidos durante o funcionamento da assembleia de voto, a não ser por crime punível com pena de prisão superior a 3 anos e em flagrante delito – arts 9º, nº 1, e 89º, nº 1, da Lei Orgânica nº 1/2001, de 14/08 – Eleição dos Titulares dos Órgãos das Autarquias Locais. Corpo Diplomático A pessoa dos agentes diplomáticos, tais como chefes de missão (Embaixadores ou núncios acreditados perante Chefes de Estado e outros chefes de missão de categoria equivalente; Enviados, ministros ou internúncios acreditados perante Chefes de Estado; e Encarregados de negócios acreditados perante Ministros dos Negócios Estrangeiros), e dos membros do pessoal da missão que tiverem a qualidade de diplomata, é inviolável e não poderá ser objeto de qualquer forma de detenção ou prisão – arts 29º, 1º, a), d) e e), e 14º, da Convenção sobre Relações Diplomáticas, celebrada em Viena em 18 de abril de 1961 - Decreto-Lei nº 48295, de 27/03/1968. Corpo Consular Os funcionários consulares não poderão ser presos ou detidos, exceto em casos de crime grave ou em virtude de decisão de autoridade judicial competente – art. 41º, nº 1, da Cfr. Ac. do TC nº 418/2003, de 24/09/2003. MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 189 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 190 - - Convenção de Viena sobre Relações Consulares, concluída em Viena em 24 de abril de 1963 – DL nº 183/72, de 30/03. Pessoa presente a autoridade nacional, no âmbito do cumprimento de ato de cooperação judiciária internacional para intervir em processo penal como suspeito, arguido ou condenado – não pode ser detida ou sujeita a qualquer outra restrição da liberdade por facto anterior à sua presença em território nacional, diferente do que origina o pedido de cooperação formulado por autoridade portuguesa – art. 16º, da Lei de Cooperação Judiciária Internacional -, regra que tem, no entanto, as possibilidades de derrogação ou de não aplicação previstas no nº 4, do mesmo artigo e no art. 17º (salvo conduto para a pessoa notificada para comparência, ou detido ou preso sujeito a entrega temporária ou a transferência temporária para efeitos de investigação, nos termos dos arts. 154º a 156º - art. 157º, da mesma Lei). 1.6.6. Duração da detenção – prazos máximos Dependendo da finalidade da detenção os prazos máximos da mesma variam entre 24 e 48 horas. Sendo a detenção destinada a apresentar o detido a julgamento sob forma sumária ou ao juiz competente para primeiro interrogatório judicial ou para a aplicação ou execução de uma medida de coação, o limite máximo da detenção (isto é, o período máximo de detenção contado desde o momento em que se dá a detenção até aquele em que o detido é entregue à autoridade judicial) não deve exceder as quarenta e oito horas – art. 254º, nº 1, al. a), do CPP. Se a detenção for destinada a assegurar a presença do detido perante a autoridade judiciária competente em ato processual, a regra é a apresentação imediata do detido a essa mesma autoridade e só se a mesma não for possível é que o mesmo poderá ser apresentado no mais curto prazo, sem exceder as vinte e quatro horas – art. 254º, nº 1 al. b), do CPP. A determinação exata do período de detenção tem relevância ainda no âmbito do cumprimento da pena que venha a ser aplicada no processo ao arguido 64. E, nos termos do art. 13º, nº 1, da Lei nº 144/99, de 31/08, também a detenção decretada no estrangeiro em consequência de uma das formas de cooperação previstas neste diploma é levada em conta no âmbito do processo português ou imputada na pena, nos termos do Código Penal, como se a privação da liberdade tivesse ocorrido em Portugal. O mesmo resulta do art. 10º, da Lei nº 65/2003 – MDE. 64 De notar que, nos termos do art. 80º, do CP, a detenção sofrida pelo arguido será descontada por inteiro no cumprimento de pena de prisão e se for aplicada pena de multa a detenção será descontada à razão de 1 dia de privação de privação da liberdade por, pelo menos, 1 dia de multa. Sendo também descontada, nos mesmos termos referidos na nota anterior, qualquer medida processual ou pena que o agente tenha sofrido, pelo mesmo ou pelos mesmos factos, no estrangeiro. Coincidente com este último segmento normativo é o que resulta do art. 13º, nº 1, da Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal – Lei nº 144/99, de 31/08. Mas sobre o desconto da detenção na pena, no âmbito da entrega temporária ao abrigo da Lei nº 144/99, ver arts. 36º, nº 3, e 155º, nº 4, deste diploma. E ainda o mesmo resulta do art. 10º, da Lei nº 65/2003 – MDE. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 1.6.6.1. Momento em que se pode considerar que ocorreu a detenção e se dá o início da contagem do prazo da mesma - Desde logo quando é dada ordem da qual resulte inequivocamente que o arguido tem de acompanhar a autoridade policial sem que a tal se possa recusar (não se trata de um mero convite) – Ac. do TC nº 565/2003, de 19 de Novembro de 2003; - O STJ fez equivaler a ato de detenção o ato de desligamento do arguido do processo pelo qual cumpria pena e passou a ficar à ordem de outro processo; - Quando a pessoa visada é de qualquer modo impedida de se locomover livremente, fincando confinada a um determinado espaço, por força ou determinação de alguém. 1.6.6.2. Momento em que deve considerar finda a detenção - Quando se dá a libertação do detido e este recupera a sua capacidade de se movimentar ou locomover livremente; - Em termos administrativos, isto é, de detenção administrativa, especialmente a policial, quando o detido é presente ao juiz ou à autoridade judiciária – o que terá de acontecer no prazo máximo de 48 horas, ou 24 horas, consoante os casos previstos nos arts 254º, nº 1, do CPP e 28º, nº 1, da CRP. Conferir ainda o art. 5º, § 1º, al. c), e § 3º, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos65. 1.6.6.3. Prazo de detenção e validação da detenção Nos termos do art. 28º, nº 1, da CRP, a detenção será submetida, no prazo máximo de quarenta e oito horas, a apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de coação adequada, devendo o juiz conhecer das causas que a determinaram e comunicá-las ao detido, interrogá-lo e dar-lhe oportunidade de defesa. A apresentação do detido ao juiz traduz o momento da cessação da detenção administrativa. Assim sendo, a partir daí, qualquer ato ou omissão que ofenda os direitos fundamentais do detido, qualquer atraso ou retardamento na apreciação da situação daquele passará a ser de responsabilidade judicial e não dos órgãos de polícia criminal ou da autoridade que apresentou o detido – cfr. Ac. do TC nº 565/2003. Sendo que a demora, maior ou menor, na apreciação judicial da detenção, deverá poder ser concretamente justificada, caso a caso, e à luz de um princípio de necessidade constitucionalmente suportável. 65 A alínea c), do §1, admite a privação de liberdade, sem condenação, a fim de o detido comparecer perante a autoridade judicial competente. Por seu turno o §3 estabelece o seguinte: “qualquer pessoa presa ou detida nas condições previstas no parágrafo 1º, alínea c), do presente artigo, deve ser apresentada imediatamente a um juiz ou outro magistrado habilitado pela lei para exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada num prazo razoável ou posta em liberdade durante o processo. A colocação em liberdade pode estar condicionada a uma garantia que assegure a comparência do interessado em juízo.” MANUAL PLURIDISCIPLINAR 191 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 192 - - 1.6.6.4. Especificidades relativamente ao crime de violência doméstica. Nos termos do art. 30º, nº 1, da Lei nº 112/2009, de 16/09, em caso de flagrante delito por crime de violência doméstica, a detenção efetuada mantém-se até o detido ser apresentado a audiência de julgamento sob a forma sumária ou a primeiro interrogatório judicial para eventual aplicação de medida de coação ou de garantia patrimonial, sem prejuízo do disposto no nº 3, do artigo 143º, no nº 1, do artigo 261º, no nº 4, do artigo 382º e no nº 3. do artigo 385º, do CPP. Ou seja, o detido poderá vir a ser imediatamente libertado, se se verificarem os pressupostos do art. 261º, ou ser ouvido pelo MP, em interrogatório não judicial de arguido detido, que poderá decidir pela sua libertação ou providenciar que o mesmo seja apresentado ao juiz de instrução para primeiro interrogatório judicial de arguido detido. E se o MP tiver razões para crer que a audiência de julgamento não se pode iniciar nos prazos previstos no nº 1 e na alínea a), do nº 2, do artigo 387º, designadamente por considerar necessárias diligências de prova essenciais à descoberta da verdade, profere despacho a ordenar de imediato a realização das diligências em falta, devendo neste caso, se não o tiver feito, ouvi-lo para efeitos de validação da detenção e libertação do arguido, sujeitando-o, se for caso disso, a termo de identidade e residência, ou apresentando-o ao juiz de instrução para efeitos de aplicação de medida de coação ou de garantia patrimonial, sem prejuízo da aplicação do processo sumário. Em qualquer caso, sempre que a autoridade de polícia criminal tiver fundadas razões para crer que o arguido não poderá ser apresentado no prazo a que alude o nº 1, do artigo 382º, procede à imediata libertação do arguido, sujeitando-o a termo de identidade e residência e fazendo relatório fundamentado da ocorrência, o qual transmite, de imediato e conjuntamente com o auto, ao Ministério Público – art. 385º, nº 3, ex vi do art. 30º, nº 1, da Lei nº 112/2009. 16.7. Atos subsequentes à detenção • Informação imediata e de forma compreensível das razões da detenção e dos seus direitos - art. 27º, nº 4, da CRP; • Nos interrogatórios de arguido detido é obrigatória a assistência de defensor – art. 64º, nº 1, al. a), do CPP; • Quando a detenção é efetuada em flagrante delito por qualquer pessoa, que não pela autoridade judiciária ou entidade policial, a pessoa que a tiver efetuado deverá proceder à entrega imediata do detido a qualquer autoridade judiciária ou entidade policial – arts 255º, nº 2 e nº 1, al. b) e a), do CPP. A autoridade judiciária ou a entidade policial a quem foi entregue o detido deverá comunicar de imediato a detenção ao Ministério Público e redigir um auto sumário da entrega do detido, que deverá obedecer aos requisitos previstos nos arts 94º, 99º e 246º, nº 2, e 95º e 243º, nº 1 – art. 259º, nº 3, al. b), ex vi do art. 255º, nº 2, do CPP; • Tendo sido a entidade policial a receber o detido, a mesma deverá ainda, por sua vez, proceder à entrega do detido à autoridade judiciária no mais curto prazo MANUAL PLURIDISCIPLINAR possível, sem prejuízo da comunicação supra referida, a qual deverá ser sempre imediata. Tal comunicação só não se justificará se a entrega do detido for efetuada imediatamente a seguir à detenção66. E o imediatamente a seguir significa isso mesmo: não houve qualquer tempo de espera, além do tempo necessário para levar o detido à presença da autoridade judiciária, logo a seguir à detenção. No caso de detenção efetuada por autoridade judiciária ou por entidade policial, em flagrante delito, aquelas deverão mandar levantar ou levantar um auto de notícia e de detenção – arts 243º e 94º, 99º e 243º, do CPP67. Tendo sido a entidade policial a efetuar a detenção, a mesma deverá entregar o detido à autoridade judiciária no mais curto prazo possível, sem prejuízo da comunicação imediata ao Ministério Público da detenção efetuada. A comunicação supra referida só não se justificará se a entrega do detido for efetuada imediatamente a seguir à detenção68. A comunicação à autoridade judiciária, referida no art. 259º, do CPP, visa possibilitar a esta o controle da legalidade da detenção e determinar a imediata libertação do detido caso verifique que a mesma é ilegal. Daí a comunicação dever revestir-se sempre de caráter urgente, devendo ser feita pelo meio mais expedito à disposição.69 No caso de detenção fora de flagrante delito, a autoridade que procedeu à detenção deverá elaborar certidão comprovativa da detenção, mencionando o dia, a hora e o local da detenção, a identidade da entidade que a efetuou, a identidade do detido, menção da entrega ao detido de exemplar do mandado e da cópia do despacho que ordenou a detenção e ainda da comunicação ao detido dos seus direitos, devendo ainda fazer-se menção de quaisquer incidentes e nomeadamente quaisquer lesões físicas do detido ou queixas relacionadas.70 Deve ainda entregar o detido à autoridade judiciária e comunicar a detenção ao MP, exceto se se tratar de detenção para comparência em ato processual, pois nestes casos a comunicação deve ser feita ao juiz do qual dimanou o mandado de detenção (sendo bom de ver que a lei distingue a entrega do detido da comunicação da detenção). Também se a detenção visa a aplicação e execução de medida de coação, como vimos supra, o detido deverá ser sempre apresentado ao juiz, aplicando-se o disposto no art. 141º - art. 254º, nº 2, do CPP. Tal detenção deverá ser comunicada ao MP, nos termos do art. 259º, al. b). Defendendo o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque que a comunicação, além de dever ser feita ao Ministério Público deverá também ser feita, por maioria de razão, ao juiz71. No entanto, tal comunicação não se justificará se o detido for de imediato apresentado ao juiz – ver supra. 66 67 68 69 70 71 Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4ª Edição, Lisboa: Universidade Católica Editora, p. 710, nota 3. De harmonia com o disposto no art. 389º, nº 2, do CPP o MP pode substituir a apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que tiver presidido à detenção. Neste caso, o MP aguardará o início da audiência para aí substituir a apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia, leitura que ficará documentada em ata – nº 3, do mesmo artigo. Paulo Pinto de Albuquerque, idem, p. 710, nota 3. Juiz Conselheiro Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, p. 949. Paulo Pinto de Albuquerque, idem, p. 710. Paulo Pinto de Albuquerque, ibidem. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 193 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 194 - - Aliás a comunicação à entidade a quem for apresentado o detido só se justificará se essa apresentação não for imediata. 1.6.7.1. Possibilidade de libertação imediata do detido ao abrigo do art. 261º No caso de ser determinada a libertação imediata do detido, por parte de entidade que não seja autoridade judiciária, aquela deverá fazer relatório sumário da ocorrência e transmiti-lo de imediato ao MP. É com base nesse relatório que irá ser feito o controlo da legalidade da detenção - art. 261º, nº 1 (ver supra). Se for a autoridade judiciária a determinar a libertação, esta será precedida de despacho, devidamente fundamentado, do qual constarão os fundamentos da libertação imediata e da não validação ou controlo da detenção efetuada – art. 261º, nº 2 (ver supra). Sempre que qualquer entidade policial proceder a uma detenção fora de flagrante delito, tendo por base um mandado do juiz, deverá comunicá-la de imediato ao juiz. * Quando a detenção teve por finalidade a identificação do suspeito, nos termos do art. 250º, do CPP, todos os atos de identificação levados a cabo, referidos no nº 6, designadamente as provas dactiloscópicas, fotográficas ou de natureza análoga, a indicação de residência onde o identificando possa ser encontrado e receber comunicações, deverão ser reduzidos a auto e as provas de identificação dele constantes deverão ser destruídas na presença do identificando, a seu pedido, se a suspeita não se confirmar – nº 7, do art. 250º. Os órgãos de polícia criminal devem ainda realizar as providências cautelares quanto aos meios de prova, se for o caso, nos termos dos arts 250º, nº 8 e 249º, do CPP. (Francisco Mota Ribeiro) 1.7. A intervenção do juiz de instrução criminal no inquérito 1.7.1. Estrutura acusatória do processo penal e competência do Ministério Público para a realização do inquérito A estrutura acusatória do nosso processo penal72 traz na sua essência, por imposição constitucional – art. 219º, nº 1, da CRP -, a atribuição ao Ministério Público da competência para a direção do inquérito, no exercício da qual determinará a realização dos atos que tenham por fim investigar a existência de um crime, determinar os respetivos 72 A estrutura acusatória do processo, imposta pelo art. 32º, nº 5, primeira parte, da CRP, é a materialização do chamado princípio do acusatório, nos termos do qual a imparcialidade, a objetividade e a independência de quem julga só resultam asseguradas se uma tal atividade se desenvolver a partir e dentro dos limites de uma investigação e de uma acusação (ou de uma pronúncia) previamente levadas a cabo por uma entidade ou órgão distinto do julgador o Ministério Público ou, em certos casos, o juiz de instrução – cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Edição, 1974, Reimpressão, p. 136 e 137. MANUAL PLURIDISCIPLINAR agentes e a sua responsabilidade, descobrir e recolher as provas em ordem à decisão sobre o mérito da ação penal, isto é se há ou não fundamento para a dedução de acusação. Na condução do inquérito, que “compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação” – arts. 262º, 263º, 267º e 53º, do Código de Processo Penal, doravante CPP - o Ministério Público é assistido pelos órgãos de polícia criminal. Porém, e sendo certo que é ao Ministério Público que cabe determinar a abertura do inquérito, e a quem unicamente pertence dirigir os seus ulteriores termos, com obediência aos princípios constitucionais que enformam o processo penal, uma tal competência (em prol da qual se diz que o Ministério Público é o dominus do inquérito) tem limites funcionais, legalmente estabelecidos. Limites esses que estão fundamentalmente definidos nos arts. 268º a 271º, do CPP. Sendo especificamente os arts. 268º, 269º e 271º, no que ao tema a tratar nos interessa, isto é, à determinação por imposição legal da intervenção do juiz de instrução no inquérito, enquanto delimitação negativa da competência do Ministério Público nesta fase processual, que irão merecer de seguida a nossa atenção. 1.7.2. Limites funcionais à competência do Ministério Público no inquérito – imposição constitucional da intervenção de juiz no inquérito Quem dirige o inquérito é exclusivamente o Ministério Público. A intervenção do juiz de instrução no inquérito, como já deixámos referido, dada a estrutura acusatória do processo penal, apenas ocorre no âmbito dos limites funcionais legalmente estabelecidos à competência do Ministério Público, e dada a natureza dos atos a praticar, por contenderem com direitos fundamentais ou por se tratar de atos de caráter jurisdicional. E isso mesmo resulta do art. 267º, do CPP, ao dizer que “o Ministério Público pratica os atos e assegura os meios de prova necessários à realização das finalidades referidas no art. 262º, nº 1, nos termos e com as restrições dos artigos seguintes”. 1.7.2.1. Atos da exclusiva competência do juiz de instrução criminal O art. 268º enumera os atos que são da exclusiva competência do juiz de instrução, no sentido de que só ele os pode praticar: a) Proceder ao primeiro interrogatório de arguido detido – art. 141º. Como resulta do art. 141º, nº 1, do CPP, o arguido detido que não deva ser de imediato julgado é interrogado pelo juiz de instrução, no prazo máximo de 48 horas após a detenção. Sendo que tal interrogatório é feito exclusivamente pelo juiz, e salvo se for necessária a presença de qualquer outra pessoa por motivos de segurança, a ele apenas poderão assistir o Ministério Público, o defensor e o funcionário de justiça. b) Proceder à aplicação de uma medida de coação ou de garantia patrimonial, à exceção da prevista no art. 196º - cfr. art. 194º, nº 1, do CPP -, ou seja, à exceção MANUAL PLURIDISCIPLINAR 195 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 196 - - do termo de identidade e residência. As restantes, designadamente a caução, a obrigação de apresentação periódica, a suspensão do exercício de profissão, de função, de atividade e direitos, a proibição e imposição de contactos, a obrigação de permanência na habitação, com ou sem meios de controlo à distância, e a prisão preventiva, apenas podem ser decretadas por um juiz, sendo no inquérito pelo juiz de instrução criminal – arts 197º, 198º, 199º, 200º, 201º e 202º, do CPP. * Estando nós no âmbito do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art. 152º, do CP, nos termos do art. 31º, da Lei nº 112/2009, de 16/09, as medidas de coação assumem caráter urgente, devendo ser aplicadas, para além de alguma das supra referidas, e no prazo máximo de 48 horas a seguir à constituição de arguido, verificados que estejam os pressupostos gerais e específicos previstos para a sua aplicação, alguma ou algumas das seguintes medidas: • Não adquirir, não usar ou entregar, de forma imediata, armas ou outros objetos e utensílios que detiver, capazes de facilitar a continuação da atividade criminosa; • Sujeitar, mediante consentimento prévio, a frequência de programa para arguidos em crimes no contexto da violência doméstica; • Não permanecer na residência onde o crime tenha sido cometido ou onde habite a vítima; • Não contactar com a vítima, com determinadas pessoas ou frequentar certos lugares ou certos meios. * Note-se que: • estas medidas são cumuláveis com qualquer outra prevista no Código de Processo Penal – nº 3, do art. 31º, do diploma citado; • cabe referir ainda o disposto no art. 16º, da Lei nº 61/91, de 13/08, ao estabelecer que sempre que não seja imposta a medida de prisão preventiva, deverá ser aplicada ao arguido a medida de coação de afastamento da residência, que pode ser cumulada com a obrigação de prestar caução, no caso de aquele ser pessoa com quem a vítima resida em economia comum, quando houver perigo de continuação da atividade criminosa. Medidas que são também da competência do juiz de instrução; • ao ser proferida a decisão sobre aplicação de qualquer medida de coação deverá ser tido em conta o direito à informação da vítima, consagrado no art. 11º, nº 9, do Estatuto da Vítima - aprovado pela Lei nº 130/2015, de 04/09. c) Proceder a buscas e apreensões em escritório de advogado, consultório médico ou estabelecimento bancário, nos termos do nº 5, do art. 177º, nº 1, do art. 180º e do art. 181º. Nestes casos as buscas e apreensões têm de ser presididas pelo próprio juiz, sob pena de nulidade – art. 177º, nº 5, do CPP. MANUAL PLURIDISCIPLINAR d) Tomar conhecimento, em primeiro lugar, do conteúdo da correspondência apreendida, nos termos do nº 3, do art. 179º. Sendo de ter em conta que esta reserva de juiz se aplica apenas à correspondência fechada, pois à já aberta pelo destinatário será aplicável o art. 178º, do CPP, podendo a apreensão ser autorizada, ordenada ou validada por despacho da autoridade judiciária ou efetuada pelos órgãos de polícia criminal no decurso de revistas ou de buscas ou quando haja urgência ou perigo na demora, nos termos previstos na al. c), do nº 2, do art. 249º - art. 178º, nos 3, 4 e 5, do CPP. e) Declarar a perda, a favor do Estado, de bens apreendidos, quando o Ministério Público proceder ao arquivamento do inquérito nos termos dos arts 277º, 280º e 282º. A perda a favor do Estado de bens apreendidos traduz uma ofensa ao direito fundamental de propriedade do respetivo titular, seja o arguido ou terceiro – art. 62º, nº 1, da CRP. Daí que, além de tal perda ter de ser fundamentada, nomeadamente ao abrigo dos arts 109º e 110º, do CP, o seu decretamento é da competência de um juiz - no inquérito, do juiz de instrução – com prévia audição do interessado, para tal efeito. Mas se a apreensão respeitar a coisas em valor, perecíveis, perigosas ou deterioráveis, já terá o Ministério Público, na fase de inquérito, competência para determinar a sua venda ou afetação a finalidade pública ou socialmente útil, as medidas de conservação ou manutenção necessárias ou a sua destruição imediata – art. 185º, do CPP. f) Praticar quaisquer outros atos que a lei expressamente reservar ao Juiz de Instrução – como sejam, por exemplo: • Admitir a constituição de assistente no processo - art. 68º, nº 4, do CPP; • Determinar a revogação, alteração e extinção das medidas de coação – art. 212º, do CPP; • Determinar a aplicação das medidas de coação urgentes, previstas no art. 31º, da Lei nº 112/2009 - estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas; • Declarar o caráter de excecional complexidade do processo – art. 215º, nº 4, do CPP; • Condenar o faltoso em soma pecuniária entre 2 UC e 10 UC; emitir contra o mesmo mandados de detenção no caso de falta injustificada de comparecimento a diligência, bem como a sua eventual condenação no pagamento das despesas ocasionadas pela não comparência – art. 116º e 273º, nº 4, do CPP; • Tomada de declarações para memória futura – arts 271º e 294º, do CPP; • Tomada de declarações de vítima especialmente vulnerável para memória futura – art. 24º, do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei nº 130/2015, de 04/09; • Tomada de declarações para memória futura à vítima de violência doméstica 33º, da Lei nº 112/2009, de 16/09; MANUAL PLURIDISCIPLINAR 197 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 198 - - b) Buscas domiciliárias, nos termos e com os limites do art. 177º • Nos termos do art. 177º, nº 1, do CPP, a busca em casa habitada ou numa dependência fechada só pode ser ordenada ou autorizada pelo juiz e efetuada entre as 7 e as 21 horas, sob pena de nulidade. Podendo ainda ser efetuadas, desde que ordenadas ou autorizadas pelo juiz, entre as 21 e as 7 horas, nos casos de: terrorismo ou criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada; com o consentimento do visado, documentado por qualquer forma; ou em caso flagrante delito pela prática de crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos74 – art. 177º, nº 2, als a) a c). • Mas se as buscas respeitarem a casos de terrorismo, criminalidade violenta75 ou altamente organizada, em que haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa, ou em que os visados consintam, ficando o consentimento prestado, por qualquer forma documentado, ou havendo detenção em flagrante delito por crime a que corresponda pena de prisão, e se as buscas ocorrerem entre as 7 e as 21 horas, as mesmas poderão ser ordenadas pelo Ministério Público ou ser efetuadas pelos órgãos de policia criminal. E também o Ministério Público e os órgãos de polícia criminal podem ordenar e efetuar buscas entre as 21 e as 7 horas, se estiver em causa flagrante delito pela prática de crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos76, ou se for dado o consentimento do lesado, documentado por qualquer forma. No inquérito, portanto, a regra é que as buscas domiciliárias sejam autorizadas pelo Juiz de Instrução, sob pena de nulidade, salvo as exceções supra referidas – cfr. ainda arts 34º e 32º, nº 8, da CRP. • Recurso à videoconferência ou à teleconferência, no caso de tomada de declarações à vítima de violência doméstica – art. 32º, da Lei nº 112/2009, de 16/09; • Decisão de concordância com Ministério Público sobre a suspensão provisória do processo – 281º, nº 1, do CPP; • Decisão de concordância com a decisão do Ministério Público sobre o arquivamento do inquérito em caso de dispensa de pena – 280º, nº 1, do CPP; • Determinação da separação de processos – art. 30º, do CPP; • Nomeação, fixação de remuneração, substituição e condenação do perito no caso da sua substituição e de grosseira violação dos deveres que lhe incumbiam no exercício das suas funções – art. 153º e 162º, do CPP; • Recebimento ou recusa do requerimento de habeas corpus e eventual condenação do requerente em soma pecuniária no caso do requerimento ser manifestamente infundado – art. 221º, do CPP. 1.7.2.2. Atos a ordenar ou a autorizar pelo juiz de instrução O art. 269º, do CPP, enumera os atos que, durante o inquérito, só podem ser realizados pelo Ministério Público ou pelos órgãos de polícia criminal depois de autorizados pelo juiz de instrução. São eles: a) A efetivação das perícias ou de exames sobre as caraterísticas físicas ou psíquicas de pessoa que não haja prestado consentimento – art. 154º, nº 3, 172º, nº 2, e 156º, nos 6 e 7 Na falta de consentimento da pessoa visada, só a autoridade judiciária pode determinar a realização da perícia ou do exame, isto é, durante o inquérito, será em regra o Ministério Público a determinar a realização coerciva do exame ou da perícia, se necessário. Porém, tratando-se de exame ou de perícia sobre as caraterísticas físicas ou psíquicas da pessoa que não haja prestado consentimento, dado o caráter intrusivo de tal exame ou perícia, a respetiva decisão será da exclusiva competência do juiz de instrução, que deverá ponderar a necessidade da sua realização, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado. Este equilíbrio que se procura salvaguardar, resulta do facto de tais meios de prova e de obtenção de prova contenderem diretamente com direitos fundamentais constitucionalmente protegidos, designadamente a integridade física, a liberdade, a reserva da vida privada e o direito à autodeterminação informacional73, os quais implicam o respeito pelos princípios da necessidade e da proporcionalidade. Sendo que os exames suscetíveis de ofender o pudor das pessoas devem respeitar a dignidade e, na medida do possível, o pudor de quem a eles se submeter – nº 3, do art. 172º, do CPP. c) Apreensões de correspondência, nos termos do nº 1, do art. 179º • Estabelece o art. 179º, nº 1, do CPP, que, sob pena de nulidade, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão, mesmo nas estações de correios e de telecomunicações, de cartas, encomendas, valores, telegramas ou qualquer outra correspondência, quando tiver fundadas razões para crer que: 9 A correspondência foi expedida pelo suspeito ou lhe é dirigida, mesmo que sob nome diverso ou através de pessoa diversa; 9 Está em causa crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos; 9 A diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova. • Sendo proibida, sob pena de nulidade, a apreensão e qualquer outra forma de controle da correspondência entre o arguido e o seu defensor, salvo se o juiz tiver razões para crer que aquela constitui objeto ou elemento de um crime – nº 2, do art. 179º. 74 75 73 Como acontece, por exemplo, com a recolha de material biológico humano, como saliva, sangue, urina, cabelo, etc., para exame, assim como com a perícia psiquiátrica (art. 159º, nº 6) ou a perícia sobre a personalidade (art. 160º). MANUAL PLURIDISCIPLINAR 76 Como acontece com o crime de violência doméstica – art. 152º, do CP. Onde se inclui o crime de violência doméstica, nos termos das disposições conjugadas dos arts 152º, do CP, e 1º, al. j), do CPP. Como, por exemplo, o flagrante delito por crime de violência doméstica – art. 152º, do CP. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 199 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 200 - - • Autorizada a apreensão pelo juiz, a correspondência deve ser-lhe entregue, devendo ser ele a primeira pessoa a tomar conhecimento do seu conteúdo. Se a considerar relevante para a prova, fá-la-á juntar ao processo; caso contrário, restitui-la-á a quem de direito, não podendo ela ser utilizada como meio de prova, ficando o juiz ligado por dever de segredo relativamente àquilo de que tiver tomado conhecimento e não tiver interesse para a prova – nº 3, do mesmo artigo. • Os preceitos citados são expressão da amplitude da tutela constitucional da inviolabilidade da correspondência, prevista no art. 34º, da CRP, no sentido de que a proteção constitucional e legal, com imposição da reserva de juiz, abrange não só o sigilo em si, como resulta expresso ademais no nº 3, do art. 179º, do CPP, mas também qualquer ingerência no tráfego ou circulação da correspondência. d) Interceção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas, conhecimento e determinação da transcrição do seu conteúdo – art. 187º, nº 1 e 189º • A autorização da interceção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas é da exclusiva competência do juiz de instrução criminal e só pode ser dada durante o inquérito, por despacho fundamentado, mediante requerimento do Ministério Público, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, e se respeitar aos crimes descritos nas als a) a g), do nº 1, do art. 187º.77 Conferir ainda os arts. 34º, nº 4, e 32º, nº 8, da CRP, nos quais se consagra a proibição de toda a ingerência das autoridades policiais nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria penal, bem como a nulidade de todas as provas obtidas mediante abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações. • O controlo sobre as formalidades das operações de interceção e gravação efetuadas nos termos autorizados pelo juiz de instrução, é por este efetuado, de harmonia com o disposto no art. 188º. • Por outro lado, “o disposto nos arts 187º e 188º é correspondentemente aplicável às conversações transmitidas por qualquer meio técnico diferente de telefone, designadamente correio eletrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital, e à interceção das comunicações entre presentes”. Sendo que, “a obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas, em 77 a) Puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos; b) Relativos ao tráfico de estupefacientes; c) De detenção de arma proibida e de tráfico de armas;d) De contrabando;e) De injúria, de ameaça, de coação, de devassa da vida privada e perturbação da paz e do sossego, quando cometidos através de telefone;f) De ameaça com prática de crime ou de abuso e simulação de sinais de perigo; ou g) De evasão, quando o arguido haja sido condenado por algum dos crimes previstos nas alíneas anteriores. O crime de violência doméstica estará desde logo abrangido na al. a), do nº 1, do art. 187º, dado ser punível com pena de prisão superior a 3 anos – art. 152º, do CP. MANUAL PLURIDISCIPLINAR qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto a crimes previstos no nº 1, do art. 187º, e em relação às pessoas referidas no nº 4 do mesmo artigo” – art. 189º, do CPP. e) A prática de quaisquer outros atos que a lei expressamente fizer depender de ordem ou autorização do juiz de instrução – art. 269º, nº 1, al. f), do CPP - tais como, por exemplo: • Decisão sobre a possibilidade de consulta dos atos, bem como de obtenção de certidão e informação pelos sujeitos processuais, quanto tal haja sido recusado pelo Ministério Público – art. 89º, nº 2; • Detenção do faltoso pelo tempo indispensável à realização da diligência – art. 116º, nº 2; • Detenção fora de flagrante delito, por crime a que seja aplicável pena de prisão, nos termos do art. 257º, nº 1; • Averiguação da legitimidade da escusa de depoimento com fundamento na invocação de segredo profissional e determinação da prestação de depoimento – art. 135º, nos 2 e 3; • Prática de ato fora de prazo – art. 107º, nº 6; • Realização da instrução – 287º; • Condenação em soma entre 6 UC e 20 UC do peticionante de aceleração processual, cujo pedido haja sido manifestamente infundado – arts 110º e 108º, nº 2, al. a); • Declaração de nulidades e irregularidades – art. 122º, nº 3, e 123º, do CPP; • Determinação da reserva do conhecimento da identidade da testemunha – art. 139º, nº 2, do CPP, e art. 17º, nº 2, da Lei nº 93/99, de 14/07 – Lei de Proteção de Testemunhas; • Validação ou recusa de uma ação encoberta – art. 3º, nº 3, da Lei nº 101/2001, de 25/08; • Determinação da junção aos autos de dados ou documentos informáticos cujo conteúdo seja suscetível de revelar dados pessoais ou íntimos – art. 16º, nº 2, da Lei do Cibercrime – Lei nº 109/2009, de 15/09. • Autorização da apreensão de mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante – art. 17º, da Lei do Cibercrime; • Interceção e registo de transmissões de dados informáticos – art. 18º, nº 2, e 26º, da Lei do Cibercrime. 1.7.2.3. Outros atos que também podem caber na competência do juiz de instrução criminal Por exemplo: • Defensor - nomeação, quando necessária, e substituição – arts. 62º, 64º, 66º e 67º, do CPP; MANUAL PLURIDISCIPLINAR 201 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 202 - - • Libertação imediata de detido logo que se tornar manifesto que a detenção foi efetuada por erro sobre a pessoa ou fora dos casos em que era legalmente admissível ou que a medida ser tornou desnecessária – art. 261º; • Nomeação, substituição e fixação da remuneração de intérprete – arts. 92º, 153º e 162º. (Francisco Mota Ribeiro) 1.8. As medidas de coação Com exceção do termo de identidade e residência, a aplicação de medidas de coação é sempre da exclusiva competência do juiz de instrução, em cumprimento do princípio da jurisdicionalização nesta matéria. Em fase de inquérito, o juiz aplica a medida na sequência de requerimento apresentado pelo Ministério Público. Em fase posterior, pode fazê-lo oficiosamente, ouvido o Ministério Público, conforme dispõe o art. 194º, nº 1, do CPP78. A aplicação das medidas de coação deve nortear-se pelo princípio da proporcionalidade, na sua vertente da proibição do excesso, ou seja, deve ser proporcional à gravidade do crime e à previsibilidade da sanção que, em conformidade, venha a ser aplicada (veja-se, v.g., o Ac. do TRP de 27.10.2010). Convocam-se, ainda, em sede de aplicação de medidas de coação, os princípios da necessidade, adequação e subsidiariedade, devendo a medida escolhida ser estritamente necessária, e por isso mesmo a adequada, para acautelar os perigos verificados, numa seleção que privilegia, em percurso subsidiário, a menos gravosa em detrimento da mais gravosa. O princípio da precariedade, ínsito nos arts. 28º, nº 2 da C.R.P. e 212º, nº 1 e 3, impõe que a alteração das circunstâncias de facto que determinaram a aplicação de uma determinada medida de coação conduza à respetiva reavaliação e aplicação de uma outra medida, ou nenhuma, para além do TIR (termo de identidade e residência). Existem, a montante da aplicação das medidas de coação, requisitos a observar que importa ter em conta. O primeiro deles, de natureza formal mas com decorrências materiais, designadamente ao nível dos direitos e garantias constitucional e processualmente consagradas, é o da constituição de arguido (arts. 192º, 58º, 60º e 61º). Seguidamente, no que tange à análise do complexo fáctico indiciário, há que verificar a inexistência de causas de exclusão da responsabilidade criminal e de extinção do procedimento criminal (art. 192º, nº 2). Como acima já se referiu, em fase de inquérito vigora o princípio do pedido, ou seja, as medidas de coação não podem ser aplicadas oficiosamente, mas deverão sê-lo na sequência do pedido formulado pelo Ministério Público. Se o forem, estamos perante uma nulidade sanável, a arguir nos termos do art. 120º, nº 2, al. d). 78 No entanto, podem ser aplicadas medidas diferentes das pedidas pelo Ministério Público, menos ou mais gravosas, estas últimas desde que fundadas nas alíneas a) e c), do art. 204º, mas não na alínea b). Se for aplicada medida mais gravosa do que a pedida pelo Ministério Público, fora dos casos legalmente admissíveis, a decisão encontra-se ferida de nulidade que carece de ser invocada nos termos do disposto no art. 120º, nº 2, al. d). O arguido deve ser ouvido previamente sobre a aplicação da medida, salvo impossibilidade fundamentada, designadamente, se o seu paradeiro não for conhecido, se existir impossibilidade de notificação para comparecer ou para se pronunciar ou se houver impossibilidade de cumprimento de mandados de detenção. A omissão da audiência prévia do arguido conduz a uma mera irregularidade – neste sentido vejam-se os Ac. do TRL de 3.03.2011 ou do TRP de 29.1.2014. Perfilhando o entendimento de que não se trata de uma irregularidade, mas de nulidade sanável, veja-se o Código de Processo Penal Anotado, Henriques Gaspar et alii, comentário de Maia Costa. As medidas de coação taxativamente previstas nos arts. 196º a 202º, do CPP, são: • TIR – art. 196º • caução – art. 197º • obrigação de apresentação periódica – art. 198º • suspensão do exercício de profissão, função, atividade e direitos – art. 199º • proibição de imposição de condutas – art. 200º • obrigação de permanência na habitação – art. 201º • prisão preventiva – art. 202º Elas são, por regra, cumuláveis nos termos do quadro síntese que segue: --- 197º 198º 199º 200º 201º 202º 197º --- S S S N N 198º S --- S S N N 199º S S ---- S S S 200º S S S --- S S 201º N N S S, 1/ d) --- N 202º N N S S, 1/d) N --- Em particular, a Lei 112/2009, de 16/9, no âmbito da proteção policial e tutela judicial da vítima, consagra no art. 31º medidas de coação de aplicação urgente, a saber: a) não adquirir, não usar ou entregar, de forma imediata, armas ou outros objetos e utensílios que detiver, capazes de facilitar a continuação da atividade criminosa; Pertencerão ao Código de Processo Penal todas as normas doravante enunciadas sem menção de origem. MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 203 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 204 - - b) sujeitar, mediante consentimento prévio, a frequência de programa para arguidos em crimes no contexto da violência doméstica; c) não permanecer na residência onde o crime tenha sido cometido ou onde habite a vítima; d) não contactar com a vítima, com determinadas pessoas ou frequentar certos lugares ou certos meios. Estas medidas são cumuláveis com as demais medidas acima referidas, consagradas no CPP, e com respeito pelos requisitos gerais e específicos legalmente consignados nesse diploma processual penal79. Ou seja, são cumuláveis, de acordo com a ratio das normas que regem a respetiva aplicação. Numa primeira análise, as medidas constantes das al. c), d) e a), do art. 31º, da Lei 112/2009 são sobreponíveis, respetivamente, às previstas no art. 200º, al. a) – (não permanecer na residência onde o crime foi cometido ou habite a vítima], d) – (não contactar por qualquer meio com determinadas pessoas ou frequentar certos lugares ou meios) e e) – (não adquirir, não usar ou, no prazo que lhe for fixado, entregar armas ou outros objetos e utensílios que detiver, capazes de facilitar a prática de outro crime), ainda que estas últimas se configurem de forma mais ampla. Porém, às primeiras, consignadas no regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, acresce a previsão do nº 2 do mencionado artigo, do qual decorre que as medidas mantêm a sua relevância mesmo nos casos em que a vítima tenha abandonado a residência em razão da prática ou de ameaça séria do cometimento do crime de violência doméstica. Esta circunstância, não prevista na lei processual penal, arredaria a aplicação, v.g., da medida prevista na al. a), do art. 200º deste diploma, porquanto, não se encontrando a vítima na residência habitual, faleceria a verificação, nesse local, do perigo constante da al. c), do art. 204º (perigo de continuação da atividade criminosa) que, em regra, sustentaria a respetiva aplicação. Isto é, com o regime especial do art. 31º da referida Lei visa-se consagrar condições de aplicação das medidas de coação que potenciem a respetiva eficácia, na perspetiva das necessidades cautelares centradas na vítima80, visando a normalidade possível da sua vida, designadamente com o regresso a casa e afastamento do agressor, sendo certo que as medidas de coação previstas nos arts. 197º a 202º estão concebidas numa perspetiva cautelar, mas focada na pessoa do arguido. Acresce a exigência constante do nº 1, do art. 31º, da Lei 112/2009, que se reputa de primordial importância em sede de aplicação das medidas de coação particularmente previstas para acautelar a prática deste tipo de crime: elas devem ser aplicadas no prazo máximo de 48 horas a contar da data de constituição de arguido, o que impõe uma celeridade intensa quanto à diligência de audição do arguido e aplicação de uma medida. Veja-se, a este título, a redação da al. a), do art. 31º - “entregar de forma imediata”, por contraponto à al. e), do art. 200º - entregar no prazo que lhe for fixado. 79 80 Apesar deste pressuposto já decorrer, no nosso entender, da versão anterior da Lei, a nova redação que lhe foi dada pela Lei 129/2015, de 3/9, veio expressamente impor o respeito pelos pressupostos gerais e específicos de aplicação das medidas de coação previstas no CPP. Bastará para assim concluir a verificação que as mesmas se inserem, do ponto de vista sistémico, no capítulo da proteção polícial e tutela judicial da vítima. MANUAL PLURIDISCIPLINAR A aplicação de uma medida de coação deve ainda observar determinados requisitos específicos. Com efeito, para além das molduras penais abstratamente previstas para a aplicação de cada uma delas81, importa considerar também a consistência dos indícios que emergem dos meios de prova já carreados para o processo. O juiz, na apreciação global a fazer em sede de aplicação de medida de coação, deve avaliar a existência de indícios fortes, porquanto eles constituem requisitos específicos de aplicação das mais gravosas (arts. 200º a 202º). Fortes indícios da prática de um crime são aqueles que, com alguma segurança, permitem antever que o arguido possa vir a ser condenado com base neles (cfr. Ac. TRE de 27.07.2011). Para além dos já mencionados requisitos para a aplicação de uma medida de coação, há que avaliar também a existência de perigos a acautelar, que a impõem e justificam, e que são aplicáveis a todas elas (com exceção do TIR). Estes perigos emergem de factualidade delituosa carreada para o processo, conjugada com outra atinente a circunstâncias de vida ou da personalidade do arguido, que deve ser perspetivada pelo juiz à luz das regras comuns de experiência de vida. Estes perigos encontram-se taxativamente enumerados nas al. a) a c), do art. 204º: a) fuga ou perigo de fuga; b) perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; c) perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime, ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas. Estamos perante perigos alternativos, mas que podem ser cumulados. Todos eles têm de se extrair de factos concretos, evidenciados no processo (cfr. Ac. TRP de 09.10.2013). A fuga ou o perigo de fuga devem ser concretos, ou seja, não podem decorrer de uma mera expectativa de que, face aos factos imputados e para se eximir à ação da justiça, o arguido decida fugir (cfr. Ac. TRP de 12.5.2010 – A moldura penal do crime indiciado, só por si, não pode ser fator a partir do qual se possa presumir o perigo de fuga – a lei não prevê essa presunção). Porém, o julgador não deve ser alheio à circunstância da existência de uma indiciação criminal grave, porventura a conjugar com outros fatores, como circunstância que exerce sobre o arguido uma pressão psicológica incentivadora da fuga (neste sentido, cfr. o Ac. TRP de 19.9.2012). Em suma, a verificação deste perigo deve basear-se na pessoa concreta, na sua personalidade, nas circunstâncias conhecidas da sua vida para, a partir daí, cotejando essa 81 Mera pena de prisão para a caução; pena de prisão de máximo superior a seis meses para a obrigação de apresentação periódica; pena de prisão de máximo superior a dois anos para a suspensão de exercício de profissão, de função, de atividade e de direitos; pena de prisão de máximo superior a três anos para a proibição e imposição de condutas e obrigação de permanência na habitação; pena de prisão de máximo superior a cinco anos para a prisão preventiva; quanto a esta última medida estão previstos outros requisitos que não se prendem exclusivamente com a moldura penal, mas também com o tipo de criminalidade – criminalidade violenta, terrorismo, criminalidade altamente organizada punível com pena de prisão superior a três anos, ofensa à integridade física qualificada, furto qualificado, dano qualificado, burla informática e nas comunicações, receptação, falsificação ou contrafação de documento, atentado à segurança de transporte rodoviário, puníveis com pena de máximo superior a três anos de prisão, e ainda se se tratar de pessoa que tiver penetrado ou permaneça irregularmente em território nacional, ou contra a qual estiver em curso processo de extradição ou de expulsão (cfr. art. 202º, nº 1). MANUAL PLURIDISCIPLINAR 205 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 206 - - factualidade com a experiência comum e a indiciação apurada, averiguar da probabilidade de fuga (cfr. TRP de 16.11.2011 e 11.5.2011) O perigo da perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova é aquele que se consubstancia em atos perpetrados pelo arguido com vista a obstar que seja carreada para o processo prova tendente a confirmar os atos delituosos que lhe são imputados, podendo ser concretizada através da ameaça, intimidação ou manipulação de testemunhas, do impedimento de aquisição ou junção de prova documental ou do seu fabrico desconforme com a realidade. É, pois, todo o ato que visa impedir ou perturbar a eficaz instrução probatória do processo. Por fim, o perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas encontra-se relacionado com o direito à liberdade e segurança, consagrado no art. 5º, da CEDH, não apenas na perspetiva do arguido, mas também na dos cidadãos potenciais vítimas da conduta criminosa indiciada (neste sentido, cfr. o Ac. TRP de 01.7.2009). Ora, os perigos mais frequentes em contexto de crime de violência doméstica são o de continuação da atividade criminosa, muitas vezes um risco de escalada de violência, e o de perturbação do decurso do inquérito, nos casos em que o arguido possa manipular a vítima e outras testemunhas, e condicionar a sua intervenção perante as autoridades policiais e judiciárias. Em conformidade, as medidas de coação mais adequadas são as previstas na Lei 112/2009, e bem assim a obrigação de permanência na habitação [quando a residência não é ou já não é comum, ou deixa de o ser por força de precedente aplicação da medida prevista na al. c), do art. 31º, da Lei 112/2009] e a prisão preventiva. Para que dúvidas não restassem, a Lei 112/2009, na redação que lhe foi dada pela Lei 129/2015, de 3/9, aditou o nº 3, ao art. 31º, em que estipulou expressamente que as medidas previstas no referido artigo são sempre cumuláveis com qualquer outra medida de coação prevista no CPP. Nos termos do disposto no art. 35º, da mencionada Lei 112/2009, o Tribunal, sempre que tal se mostre imprescindível para a proteção da vítima, deve82 determinar que o cumprimento das medidas de coação seja fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância. A prisão preventiva está excluída, naturalmente, desse controlo por vigilância eletrónica. Impõe-se uma palavra a propósito do consentimento a recolher. Não obstante esse consentimento seja a regra, com a redação da Lei 19/2013, de 21.02, que aditou o nº 7, ao art. 36º, a concordância do arguido a fiscalizar pode ser arredada sempre que o juiz, de forma fundamentada, determine que a utilização de meios técnicos de controlo à distância é imprescindível para a proteção dos direitos da vítima. Em caso de anomalia psíquica do agressor, o art. 202º, nº 2, prevê que o juiz possa impor, ouvido o defensor e, sempre que possível, um familiar, que, enquanto a anomalia persistir, em vez da prisão preventiva tenha lugar internamento preventivo em hospital 82 A redação da Lei 19/2013, de 21.02, veio alterar o vocábulo pode para deve, o que é demonstrativo da preocupação do legislador em acautelar os perigos que impendem sobre a vítima. MANUAL PLURIDISCIPLINAR psiquiátrico ou outro estabelecimento análogo adequado, adotando as cautelas necessárias para prevenir os perigos de fuga e de cometimento de novos crimes. O despacho que aplicar uma medida de coação deve ser devidamente fundamentado – art. 194º, nº 6, dele devendo constar: a) a descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo; b) a enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime; c) a qualificação jurídica dos factos imputados; d) a referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida, incluindo os previstos nos arts. 193º e 194º. Destarte, ao arguido deve ser comunicada toda a informação a que se refere o art. 141º, nº 4, designadamente os factos concretos que lhe são imputados, com indicação de tempo, lugar e modo, e bem assim os elementos de prova existentes nos autos que sustentam essa imputação, desde que não prejudiquem o devir da investigação ou da descoberta da verdade, ou ponham em crise a segurança física ou psíquica de terceiros. E só estes factos que o arguido tem conhecimento, nos termos da al. b), do nº 6, do art. 194º, podem fundamentar o despacho de aplicação da medida de coação. Para além do complexo fáctico indiciário (factos relativos aos delitos e aos perigos verificados), elementos de prova já recolhidos e respetiva análise crítica, o despacho deve também conter a competente qualificação jurídica do crime e demais normativos legais aplicáveis para a aplicação da concreta medida de coação. Sobre a falta de fundamentação, eis o entendimento trilhado pela doutrina e jurisprudência: O incumprimento do dever de fundamentação, isto é, a falta ou a insuficiência de fundamentação, constitui nulidade sanável, de acordo com Maia Costa, in CPP Comentado, A. Henriques Gaspar et alii. No mesmo sentido, cfr. os Ac. TRP de 9.2.2011, de 20.10.2010, de 12.5.2010, e de 3.6.2009, Ac. TRG de 10.3.2011 e Ac. TRL de 22.12.2009: “A falta de referência de factos concretos que preencham os pressupostos de aplicação da medida implicam a nulidade do despacho”. Porém, já quanto à omissão de comunicação dos factos ou elementos de prova não comunicados ao arguido, os quais, não obstante essa omissão, integram a fundamentação do despacho de aplicação, considera-se, no citado Ac. TRP de 9.2.2001, consubstanciar uma mera irregularidade. Não podem ser considerados para fundamentar a aplicação de qualquer medida de coação factos ou elementos não comunicados ou que não constem como tendo sido comunicados (Ac. TRG de 12.1.2009). Se, no decurso da sujeição do arguido a uma medida de coação, este a violar, o juiz, tendo em conta a gravidade do crime imputado e os motivos da violação, pode impor outra MANUAL PLURIDISCIPLINAR 207 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 208 - - ou outras medidas de coação previstas quer no CPP, quer na referida Lei 112/2009, nos termos do disposto no art. 203º, nº 1, daquele diploma processual penal. Em particular, no que tange à prisão preventiva, e sem prejuízo do cumprimento dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade expressos no art. 193º, nº 2 e 3,83 o juiz pode impor a prisão preventiva, desde que ao crime caiba pena de prisão de máximo superior a três anos, por força dessa violação, ou se houver fortes indícios de que, após a aplicação de medida de coação, o arguido cometeu crime doloso da mesma natureza, punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos (art. 203º, nº 2, als a) e b). Por força dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade os fundamentos que determinaram a aplicação de uma medida de coação são reexaminados nos termos legalmente previstos – art. 213º. Há momentos processuais determinados em que essa reavaliação tem necessariamente lugar: i) três meses após a aplicação ou último reexame; ii) prolação do despacho de acusação; iii) prolação do despacho de pronúncia; e iv) declaração que conheça, a final, do objeto do processo e não determine a extinção da medida aplicada. A falta do mencionado reexame constitui uma mera irregularidade – não é enquadrável no art. 119º e segue o regime do art. 123º. Por isso, não é fundamento de habeas corpus. A audição do Ministério Público e da Defesa só ocorre quando for necessária, mas deverá constituir a regra. O regime de revogação das medidas de coação encontra-se previsto no art. 212º. Consagra este normativo legal que elas são imediatamente revogadas, por despacho do juiz, sempre que se verificar: a) terem sido aplicadas fora das hipóteses ou das condições previstas na lei; ou b) terem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação. Uma medida revogada pode ser de novo aplicada, caso sobrevenham circunstâncias que impliquem essa aplicação, sem prejuízo da unidade dos prazos legalmente previstos, constantes do art. 215º - cfr. art. 212º, nº 2. Destarte, o juiz deve revogar imediatamente a medida aplicada se constatar que a sua aplicação se afigura, no momento da apreciação, ilegal, por alteração das circunstâncias de facto ou de Direito que a fundamentaram. Deve, de igual jaez, substituí-la, se constatar a atenuação das exigências cautelares que estiveram subjacentes à respetiva aplicação, se tiver existido incumprimento injustificado da anteriormente imposta ou se verificar a existência de fortes indícios do cometimento de novo ilícito punido com pena de prisão superior a três anos. Importa ainda referir, nesta matéria, que a revogação ou substituição das medidas de coação têm lugar oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público ou do arguido, devendo estes ser ouvidos, salvo nos casos de impossibilidade devidamente fundamentada. 83 A prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coação; e, quando ao caso couber medida de coação privativa da liberdade, deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares. MANUAL PLURIDISCIPLINAR A Lei 130/2005, que alterou a redação do art. 212º, veio impor também a audição da vítima, mesmo que não se tenha constituído assistente. Os prazos de duração máxima das medidas de coação encontram-se previstos nos artigos 215º e 218º No que tange à prisão preventiva, previsto no art. 215º, pode sintetizar-se da seguinte forma: 1. regra 5. 2. 5. 3. 5. a) sem acusação 4M 6M 1A b) sem decisão instrutória 8M 10M 1A 4M c) sem condenação em 1ª instância 1A 2M 1A 8M 1A 6M 2A 2A 6M 3A d) sem condenação transitada 1A 6M 2A 2A 2A 6M 3A 4M 3A 10M 6. com decisão condenatória confirmada acresce metade da pena aplicada na decisão condenatória, se tal operação for superior à que resulta da aplicação dos outros números do artigo Legenda: 2) terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, crime punido com pena superior a 8 anos de prisão ou crimes descritos nas als. a) a g), do artigo 215º, nº 2; 3) crimes referidos nº 2 e o processo for considerado de especial complexidade; 5) com recurso para o TC ou suspensão - questão prejudicial em outro Tribunal. Estes prazos podem ficar sujeitos a suspensão, nos termos do art. 211º, no caso de: 9 doença grave do arguido 9 gravidez ou puerpério da arguida 9 sem prazo, exceto puerpério – por três meses, 9 vigorando o princípio da unidade da contagem do prazo - art. 215º, nº 7 e 8. * Por fim, deve referir-se que as medidas de coação se extinguem com: 9 arquivamento do inquérito 9 despacho de não pronúncia 9 despacho que rejeitar a acusação, nos termos do art. 311º, nº 2, al. a) 9 sentença absolutória, ainda que não transitada 9 trânsito em julgado da sentença condenatória (exceção do TIR – só com a extinção da pena) MANUAL PLURIDISCIPLINAR 209 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 210 - - 9 sentença condenatória que aplique pena inferior ao tempo já cumprido de privação de liberdade, ainda que não transitada 9 a caução só se extingue com o início da execução da pena Uma última referência nesta matéria se impõe para sublinhar que, por via da Lei nº 71/2015 de 20 de julho, se transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva nº 2011/99/ EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13/12/2011, relativa à decisão europeia de proteção estabelecendo o regime jurídico da emissão e transmissão entre Portugal e os outros Estados membros da União Europeia de decisões que apliquem medidas de proteção, adotada com o objetivo de proteger uma pessoa contra um ato criminoso de outra pessoa que possa colocar em perigo a sua vida, integridade física ou psicológica, dignidade, liberdade pessoal ou integridade sexual. A ratio das medidas de coação, em sede do crime de violência doméstica, encontra-se naturalmente em conexão, quanto ao escopo que norteia a respetiva aplicação, com a necessidade de proteção da vítima. Remete-se, pois, no que tange ao regime da executoriedade das medidas de coação entre Estados membros da União Europeia, designadamente quanto à descrição dos procedimentos, para a matéria supra relativa à proteção da vítima. (Helena Susano) 1.9. A suspensão provisória do processo Cabe ao Ministério Público, enquanto titular da acção penal, investigar a “existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação” (artigo 262º, nº 1, do Código de Processo Penal - diploma a que se reportam todos os normativos a seguir referidos sem menção da sua inserção). No termo do Inquérito, havendo indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, estando em causa crime de natureza pública ou semi-pública, deve decidir-se pela dedução de acusação (artigo 283º, nº 1), ou, caso se verifiquem os respetivos pressupostos, pela suspensão provisória do processo (artigos 281º e seguintes). Para tanto, deve determinar qual a melhor forma de exercer a ação penal, centrando-se, não apenas no presente e nos efeitos imediatos das suas decisões, mas em todo o contexto subjacente e nos efeitos diretos e indiretos das suas decisões [Rui do Carmo Moreira Fernando, “O Ministério Público face à pequena e média criminalidade (em particular, a suspensão provisória do processo e o processo sumaríssimo)”, RMP, 2000, 21(81), p. 129 e ss]. A suspensão provisória do processo constitui uma forma de tratamento diferenciado da criminalidade, dirigida à pequena e média criminalidade (punível com penas de prisão até cinco anos). Constitui uma forma de desjudiciarização ou de diversão com intervenção (pois depende da imposição ao arguido de obrigações que este deve cumprir). MANUAL PLURIDISCIPLINAR Privilegia consensos e procura ultrapassar problemas da ineficiência e da morosidade do sistema judicial. Baseia-se, para tanto, no princípio da legalidade (não meramente formal mas vinculado às finalidades do sistema penal), mais concretamente, num princípio da legalidade aberta (Manuel da Costa Andrade, in Consenso e Oportunidade - reflexões a propósito da suspensão provisória do processo e do processo sumaríssimo, in Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal, Coimbra: Almedina, 1995), ou de oportunidade regulada (Fernando José dos Santos Pinto Torrão, A Relevância político-criminal da suspensão provisória do processo, Coimbra: Almedina, 2000, p.189). Tem como maiores virtualidades a potencialidade para reduzir o congestionamento e conferir maior rapidez ao sistema judicial, favorecer a socialização ou a não dessocialização dos delinquentes e atender aos interesses das vítimas. Na opção por este instituto, o Ministério Público está vinculado a critérios de legalidade. Como esclarece Manuel da Costa Andrade, “não deverá falar-se em discricionariedade, conhecidos, por um lado, os apertados pressupostos materiais e formais de que a lei faz depender o recurso à suspensão provisória do processo” (obra citada, p. 355). A intervenção do juiz de instrução, que tem de manifestar a sua concordância, garante o controlo jurisdicional da decisão e confere uma proteção acrescida ao princípio do acusatório (como refere Fernando José dos Santos Pinto Torrão, A Relevância…, cit., p.191). Para a aplicação deste instituto exige-se que, em concreto, estejam cumpridos todos os seguintes pressupostos cumulativos: • Concordância do arguido e do assistente; • Ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza; • Ausência de aplicação anterior de suspensão provisória do processo por crime da mesma natureza; • Ausência de possibilidade de aplicação de medida de segurança de internamento (note-se, contudo, que a suspensão provisória pode ser utilizada, fora destas situações, relativamente a arguidos inimputáveis ou imputáveis portadores de anomalia psíquica, pois o que se pretende aqui é afastar deste instituto arguidos relativamente aos quais são se perspetiva a possibilidade de serem sensíveis às finalidades da suspensão provisória do processo); • Ausência de um grau de culpa elevado; • Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir [Rui do Carmo, “A suspensão provisória do processo no Código de Processo Penal revisto - alterações e clarificações”, Revista do CEJ, 2008, 9(1) - número especial (textos das Jornadas sobre a Revisão do Código de Processo Penal), p. 321-336]. As injunções e regras de conduta previstas são apenas exemplificativas, podendo ser cumuladas entre si, o que torna esta medida especialmente apta a satisfazer as necessidades de cada concreta situação. Centram-se na ressocialização do arguido (efetuar prestação de serviço de interesse público; frequentar certos programas ou atividades; não frequentar certos meios ou lugares; não residir em certos lugares ou regiões; não acompanhar, alojar ou receber certas pessoas; não frequentar certas associações ou participar em determinadas reuniões; não ter em seu poder determinados objetos capazes MANUAL PLURIDISCIPLINAR 211 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 212 - - de facilitar a prática de outro crime), sem descurar os interesses da vítima e do Estado (obrigação de indemnizar o lesado, dar ao lesado uma satisfação moral adequada, entregar ao Estado ou a instituições privadas de solidariedade social certa quantia, não exercer determinadas profissões). Não são, em caso algum, sanções penais nem sequer para-penais, embora sejam um mal aplicado ao arguido em consequência da sua conduta. Para Manuel da Costa Andrade, trata-se de “equivalentes funcionais” de uma sanção penal, cuja aplicação não está ligada à censura ético-jurídica da pena nem pressupõe a culpabilidade do arguido, uma vez que a sua aplicação é feita ainda na fase de inquérito, estando o arguido protegido pelo princípio da presunção de inocência (obra citada, p. 354). As injunções e regras de conduta não são unilateralmente impostas ao arguido, mas dependem da sua voluntária aceitação e execução e, por isso mesmo, não podem ter subjacentes finalidades retributivas. A suspensão do processo tem, em regra, a duração máxima de dois anos (artigo 281º, nº 1). Ao longo dos anos, o âmbito de aplicação desta medida foi-se alargando: inicialmente era aplicável a crimes puníveis com pena de prisão até três anos e agora é aplicável a crimes puníveis com pena de prisão até cinco anos; inicialmente o arguido tinha de ser primário e agora pode ter antecedentes, desde que por crimes de natureza diferente. A suspensão provisória do processo tem um regime específico para o crime de violência doméstica não agravado pelo resultado. Assim, ao abrigo do disposto no nº 7, do citado artigo 281º, o Ministério Público determina a suspensão provisória do processo, mediante requerimento livre e esclarecido da vítima, desde que, independentemente da verificação dos demais pressupostos gerais, se conclua pela ausência de condenação anterior, ou de aplicação de suspensão provisória de processo por crime da mesma natureza [os pressupostos elencados nas alíneas b) e c), do nº 1, do mesmo artigo], e haja concordância do juiz de instrução e do arguido. Neste regime específico, a suspensão provisória do processo pode ter a duração máxima de cinco anos, alargando-se o seu prazo até ao limite máximo da moldura penal aplicável aos crime de violência doméstica (artigo 282º, nº 5). Quanto a nós sem razão, entende Paulo Pinto de Albuquerque, que os “requisitos da culpa não elevada e da adequação das injunções e regras de conduta não podem deixar de ser aplicáveis também neste caso, embora o legislador os tenha omitido” (Comentário do Código de Processo Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem - 2ª edição atualizada, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2008). Nesta matéria, deve atender-se às Diretivas nº 1/2015, de 30/04/2015, da PGR, e nº 1/2014, de 15/01/2014, da PGR, que foi atualizada e republicada pela anteriormente indicada. inicialmente para a pequena criminalidade e estreitando margens de discricionariedade na sua aplicação, tudo com o desiderato expressamente assumido de ampliar a sua utilização. Assim, ao incrementar a resolução dos factos criminais pelo consenso sempre que se verifiquem os pressupostos vertidos na lei, o Ministério Público dá curso ao imperativo constitucional de participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania. Do mesmo passo, mais pragmaticamente, contribui de forma importante para uma mais racional utilização dos meios disponíveis no sistema de justiça penal, permitindo uma maior disponibilidade para o tratamento dos factos criminais que pela sua gravidade imponham, no dizer do preâmbulo do Código de Processo Penal, o reconhecimento e clarificação do conflito. Tendo-se verificado recentemente, depois de muitos anos de inexpressiva aplicação do instituto, um aumento exponencial da suspensão provisória do processo, a presente Diretiva visa apoiar e incrementar a sua utilização e promover uma atuação mais eficaz e homogénea do Ministério Público. As orientações constantes da secção I (Orientações Gerais) abarcam matérias relativas à tramitação processual, aos pressupostos de admissibilidade e ao conteúdo substancial do despacho que a determina, aplicáveis a todas as situações de suspensão provisória do processo. As orientações constantes da Secção II (Orientações Específicas) abordam aspetos respeitantes ao regime de aplicação do instituto a determinados tipos legais de crime, selecionados em função da conjugação da sua importância prática com a constatação de relevantes discrepâncias de entendimento. Nos casos em que se entendeu que a divergência aplicativa constatada na prática o justificava, a Diretiva versa sobre matéria de estrita interpretação jurídica, assim se fixando entendimento uniforme para o Ministério Público. Não é colocada em causa a plasticidade e a criatividade que a lei manifestamente quis conferir ao instituto. Será sempre o caso concreto, na riqueza das suas circunstâncias, nas exigências de prevenção que suscitar, como resultado de um esforço de diálogo e consenso com os sujeitos processuais sobre as injunções, regras de conduta e prazo da suspensão provisória, a ditar a conformação do despacho que a determine em cada situação, respeitadas que sejam as orientações aqui transmitidas. Proceder-se-á à monitorização e avaliação da aplicação da Diretiva, em termos a definir por despacho autónomo. Em face do exposto, ao abrigo do disposto na alínea b) do no 2 do art. 12º do Estatuto do Ministério Público, os Senhores Magistrados e Agentes do Ministério Público deverão observar as seguintes determinações: (…) “Diretiva nº 1/2014 Com o Código de Processo Penal de 1987, o legislador nacional manifestou de modo inequívoco a intenção político-criminal de que no tratamento da pequena criminalidade se privilegiassem soluções de consenso. Esta intenção foi sucessivamente reiterada nas alterações introduzidas ao código, alargando à média criminalidade o âmbito de institutos apenas previstos Seccão I Orientações Gerais Capítulo I Âmbito de aplicacão da suspensão provisória do processo 1) Os magistrados do Ministério Público devem optar, no tratamento da pequena e média criminalidade, pelas soluções de consenso previstas na lei, entre as quais assume particular relevo a suspensão provisória do processo. MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 213 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 214 - - 2) A suspensão provisória do processo é aplicável aos casos em que foram obtidos indícios suficientes da prática de crime punivel com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão. 3) É também aplicável aos casos em que se indicia suficientemente um concurso de crimes punível com pena de prisão superior a 5 anos mas em que a pena de cada um deles não excede esta medida. 4) Não é aplicável aos crimes puníveis com pena de prisão de duração superior, salvo nos casos expressamente previstos na lei, mesmo que o magistrado entenda que, no caso concreto, a pena não deveria exceder os 5 anos de prisão. Capítulo II A tramitação do inquérito 1) Sempre que seja registado um inquérito com suspeito identificado e cujo objeto da investigação integre crime a que seja aplicável a suspensão provisória do processo, deverá ser apurado de imediato, através da consulta do Registo Criminal e da Base de Dados da Suspensão Provisória do Processo, se aquele tem condenação anterior ou se lhe foi aplicada suspensão provisória por crime da mesma natureza. 2) O inquérito por crime a que seja aplicável a suspensão provisória do processo e em que se verifiquem os pressupostos estabelecidos nas alíneas b) e c) do nº 1 do art. 281º CPP, deve ser orientado, por regra, no sentido da possível aplicação deste instituto, pelo que o Ministério Público deve transmitir orientações aos órgãos de polícia criminal no sentido de as diligências de investigação e recolha da prova incidirem não só sobre a existência de crime, a determinação dos seus agentes e respetiva responsabilidade, mas também sobre as motivações e consequências do crime, valor dos prejuízos provocados, situação socioeconómica dos arguidos e pretensões de ressarcimento patrimonial e/ou moral das vítimas. 3) Quando, analisados os elementos probatórios e a informação recolhidos no decurso do inquérito, se concluir pela viabilidade da aplicação da suspensão provisória do processo ao caso concreto, as diligências que visem a definição das condições da suspensão provisória e a obtenção das necessárias declarações de concordância, serão, em regra, realizadas pelo Magistrado do Ministério Público. A concordância do arguido e a concordância do assistente serão reduzidas a escrito e por eles assinadas, com expressa referência às injunções e regras de conduta a que o arguido fica obrigado e à duração da suspensão. 4) A decisão de suspender provisoriamente o processo não depende da concordância do ofendido que não se constituiu assistente, com exceção do crime de violência doméstica, mas deve atender às exigências de reparação patrimonial e moral, conforme o disposto no nº 5 do Capítulo III. 5) Quando houver assistente constituído e sempre que a suspensão provisória depender da sua concordância, deve este, por regra, ser auscultado sobre a aplicação do instituto ao caso concreto antes de ser apresentada a proposta ao arguido. 6) Nos casos em que, tendo-se obtido indícios suficientes da prática do crime e dos seus autores, não foi possível reunir as condições para a aplicação da suspensão provisória do processo, deve ponderar-se a dedução de acusação em processo sumaríssimo. MANUAL PLURIDISCIPLINAR Capítulo III As injunções e regras de conduta 1) As injunções, regras de conduta e a duração da suspensão provisória do processo deverão ser: - Adequadas à natureza dos factos em questão, às circunstâncias e consequências da sua prática, bem como à conduta anterior e posterior e à situação socioprofissional do arguido (o que determinará a sua espécie); - Proporcionais à intensidade da concreta conduta criminosa e aos seus efeitos, tendo em conta a gravidade da pena com que seria punido o respetivo crime (o que determinará o limite do grau de gravidade das imposições e das restrições ao exercício de direitos que podem vir a ser exigidas ao arguido); - Suficientes em face das exigências de prevenção do caso concreto (o que determinará a sua concretização e fixação da respetiva duração). 2) Atendendo à natureza, à legitimidade para a iniciativa e aos fins visados com este instituto, o Ministério Público deve procurar consensualizar as condições da suspensão provisória do processo com o arguido e o assistente, aceitando as propostas por estes formuladas que não sejam claramente insuficientes à satisfação das exigências de prevenção no caso concreto. 3) As injunções e regras de conduta devem ter a concretização bastante para constituírem obrigações precisas para o arguido e possibilitarem a efetiva verificação do seu cumprimento. 4) Quando existirem programas estruturados da DGRSP especialmente orientados para responder a determinado comportamento criminal (consultar anexo a esta Diretiva), ponderar- se-á, sempre que, no caso concreto, se verificarem especiais exigências de prevenção, a sua aplicação, única ou cumulada com outras obrigações. Nestes casos, a fixação da duração do período da suspensão deve tomar em consideração o tempo necessário à execução daqueles. 5) Nos crimes com vítima, as obrigações impostas ao arguido deverão, salvo justificação em contrário, contemplar a reparação dos danos patrimoniais e/ou morais por ela sofridos com a prática do crime, assim como, quando se mostrar pertinente, a prestação de satisfação moral adequada. Em regra, a definição da injunção será precedida de audição da vítima. 6) Quando se apurar ter o arguido obtido vantagem patrimonial, será sempre ponderada a obrigação da sua reposição a título de injunção cujo beneficiário será o Estado. 7) Não existe qualquer impedimento legal a que, se se mostrar adequado no caso concreto, sejam impostas ao mesmo arguido, no mesmo inquérito, a injunção de entrega de certa quantia ao Estado ou a instituição privada de solidariedade social e a de prestação de serviço de interesse público. 8) As entidades beneficiárias da contribuição monetária ou da prestação de serviço serão selecionadas, preferencialmente, de entre as que desenvolvam atividade relacionada com o tipo de factos praticados pelo arguido, com as suas consequências ou com o apoio às vítimas de crimes. 9) Nos casos de entrega de certa quantia, o arguido será obrigado a apresentar no processo o original do recibo da entidade beneficiária, do qual conste que não se trata de “donativo” mas sim de “injunção aplicada em processo criminal”. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 215 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 216 - - 10) A prestação de serviço de interesse público será fixada em horas de trabalho. Na sua execução tomar-se-á em consideração o disposto no nº 4 do art. 58º do Código Penal. Mesmo nos casos em que seja o Ministério Público a indicar a entidade beneficiária, terá de ser suscitada a intervenção da DGRSP. 11) Antes de ser proferido o despacho que determina a suspensão provisória do processo, devem ser garantidas as condições necessárias para que o cumprimento das injunções possa ocorrer no período de duração fixado para a suspensão. Capítulo IV O despacho de aplicação da suspensão provisória do processo 1) No caso de crime cujo procedimento criminal depende de acusação particular, se o Ministério Público, findo o inquérito, entender que foram recolhidos indícios suficientes e que se mostra adequada a aplicação da suspensão provisória do processo, diligenciará pela obtenção da concordância do arguido e do assistente, só dando cumprimento ao disposto no nº 1 do art. 285º CPP se a suspensão provisória do processo se vier a mostrar inviável. Também o arguido e o assistente poderão requerer a aplicação da suspensão provisória sem que tenha sido deduzida acusação particular 2) A concordância do assistente é dispensada quando estiver em causa a prática de um crime de furto (art. 203º CP) cujo procedimento criminal dependa de acusação particular e se enquadre na previsão do nº 9 do art. 281º CPP (cfr. nº 2 do art. 207º CP). 3) O despacho que decide a aplicação da suspensão provisória, a apresentar ao Juiz de Instrução nos termos do nº 1 do art. 281º CPP, deverá conter uma síntese dos factos suficientemente indiciados, a sua qualificação jurídico-penal, a justificação sumária da verificação dos pressupostos da suspensão provisória do processo, incluindo os motivos pelos quais se entende que no caso se mostram suficientemente satisfeitas as finalidades de prevenção e de proteção de bens jurídicos, terminando com a fixação das injunções e regras de conduta impostas ao arguido e do período de duração da suspensão. Capítulo V O cumprimento das condições da suspensão provisória e o arquivamento do processo 1) No decurso do período da suspensão provisória do processo, em caso de alteração de circunstâncias ou de não cumprimento pelo arguido que se considere não por em causa os objetivos do instituto no caso concreto, o Ministério Público pode readaptar o plano de conduta imposto para que seja garantida a sua execução. 2) Se essa readaptação implicar alteração da natureza ou do conteúdo essencial das injunções e regras de conduta fixadas, assim como o prolongamento da duração da suspensão, terá de ser obtida a concordância do juiz de instrução. 3) O processo em que foi aplicada a suspensão provisória do processo deve aguardar o desfecho de procedimento criminal que se encontre pendente e possa vir a determinar o prosseguimento daquele nos termos da alínea b) do nº 4 do art. 282º 3.1. Conhecida a decisão final, será proferido despacho de arquivamento ou determinado o prosseguimento do processo em que teve lugar a suspensão provisória. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 3.2. A prescrição do procedimento criminal só não corre “no decurso do prazo de suspensão do processo” fixado na decisão que a aplicou, nos termos do disposto no nº 2 do art. 282º CPP. (…) Capítulo VII Base de Dados da PGR sobre a suspensão provisória 1) O magistrado do Ministério Público titular do inquérito ou de processo sumário na fase preliminar em que for proferido despacho de suspensão provisória do processo procede ou determina que se proceda à sua inserção na Base de Dados da PGR. 2) O magistrado que representa o Ministério Público em instrução, quando se suscitar a aplicação da suspensão provisória do processo, junta aos autos o resultado da consulta à Base de Dados da PGR e, se for decretada, assegura a sua inserção nesta. 3) O magistrado do Ministério Público, em qualquer das situações, zelará por que o respetivo registo se mantenha atualizado. Secção II Orientações Específicas (…) Capítulo X Crime de Violência Doméstica 1) No crime de violência doméstica, a aplicação da suspensão provisória do processo depende de requerimento livre e esclarecido da vítima. 2) O Ministério Público, quando, em face da prova recolhida nos autos, entender que se mostra adequada ao caso concreto a suspensão provisória do processo e a vítima não a tenha requerido, deve tomar a iniciativa de a informar pessoalmente de que pode formular aquele requerimento, de a esclarecer sobre este instituto, os seus objetivos, as medidas que podem ser impostas ao arguido e sobre as consequências da sua aplicação. 3) Recebido o requerimento da vítima, o magistrado titular do inquérito certificar-se-á de que aquele foi por ela apresentado de forma livre e esclarecida, não prescindindo do contacto pessoal com a vítima. 4) O Ministério Público, na adequação das injunções e regras de conduta às caraterísticas do caso concreto, deve atender às motivações da vítima ao requerer a suspensão provisória do processo, por forma a que se satisfaçam as exigências de prevenção no respeito pela sua autonomia de vida. 5) Quando se mostre adequado o afastamento do arguido em relação à vítima, o recurso à vigilância eletrónica pode ser determinado se se concluir ser imprescindível para a proteção da vítima, nos termos do nº 1 do art. 35º da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro. O Ministério Público solicitará à DGRSP informação nos termos do art. 26º da Lei nº 33/2010, de 2 de setembro, e a sua aplicabilidade depende não só da concordância do arguido e da vítima mas também do consentimento das pessoas a que se referem o nº 2 do art. 36º da Lei nº 112/2009 e o nº 4 do art. 4º da Lei nº 33/2010. 6) Nos casos em que corram termos procedimentos judiciais ou outros no âmbito do direito da família e das crianças por factos relacionados com os que estão a ser investigados no inquérito, a definição das injunções e regras de conduta será precedida da obtenção de informação sobre as decisões e medidas tomadas naqueles, tendo em vista a harmonização de MANUAL PLURIDISCIPLINAR 217 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 218 - - umas e outras. Com este objetivo, devem o magistrado titular do inquérito e o magistrado que representa o Ministério Público naqueles outros procedimentos estabelecer contacto pessoal tendo em vista a troca de informações e a coerência das intervenções. 7) O Ministério Público deve promover, a nível de Distrito Judicial, DIAP, círculo judicial ou comarca, o desenvolvimento de parcerias, formas de articulação e canais de comunicação com os serviços da Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, do Instituto da Segurança Social e do Sistema Nacional de Saúde, com a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, com as instituições de ensino e os centros de investigação científica e as instituições de solidariedade social cuja atividade incida sobre agressores ou vítimas ou sobre qualquer vertente relevante para a compreensão e intervenção nas situações de violência doméstica, tendo em vista o apoio à definição e à execução das injunções e regras de conduta. (…) Capítulo XII Revoga-se a Circular 6/2012, de 20.03.2012. Publique-se no Diário da República. Divulgue-se no SIMP (módulos Documentos hierárquicos e Destaques) e no site da PGR” Em anexo a esta Diretiva, constam os Programas e atividades estruturadas da Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), onde é divulgado o “Programa para Agressores de Violência Doméstica (PAVD)”, o qual é “dirigido ao fenómeno da violência doméstica, e cuja aplicação se mostra também adequada no domínio da suspensão provisória do processo” – é destinado a agressores de violência doméstica, sem qualquer custo para o arguido, sendo uma intervenção com a duração de 18 meses. “Contempla a aplicação de um conjunto de sessões de grupo, de conteúdo psico-educacional que visa a aquisição de competências e a mudança de atitudes e de comportamentos. Para a integração no PAVD é necessária avaliação prévia pela DGRSP, feita em sede de Relatório Social, com a aplicação de um instrumento de avaliação do risco de violência conjugal – SARA (Spousal Assault Risk Assessment). Na medida em que depende da constituição de um grupo, a colocação pode implicar tempo de espera”. No que concerne à utilização deste instituto na esfera do crime de violência doméstica, é sabido que muitos duvidam da sua eficácia e receiam que a violência doméstica, enquanto fenómeno social, perca visibilidade e deixe de merecer a atenção das instâncias formais e informais de controlo. Ainda assim, não podemos deixar de assinalar algumas das suas potencialidades: Permite ao agressor reconhecer que o sofrimento que infligiu à vítima foi injusto e imerecido; - Permite ao agressor alterar os seus comportamentos; - Permite ultrapassar a desconfiança que o sistema formal de justiça inspira a muitas vítimas de crimes de violência doméstica e que está na base das elevadas cifras negras que continuam a existir neste tipo de criminalidade; MANUAL PLURIDISCIPLINAR - Quando a vítima e o agressor mantém a relação, pode contribuir para melhorar esse relacionamento e controlar ou ultrapassar os focos geradores de conflito e violência, sobretudo nos casos de violência nas relações de intimidade, contra idosos ou dependentes, ou quando ambos pertençam a uma minoria etnicocultural (Kathleen Daly e Julie Stubs, Feminist Theory, feminist and anti Racist Politics, and Restorative Justice, in Handbook of Restorative Justice, Edited by Gerry Johnstone e Daniel W. Van Ness, Willan Publishing, Devon, UK, 2009, p. 149-170). Convém não esquecer, todavia, qua a suspensão provisória do processo não é adequada a todos os casos e que a sua aplicação se deve revestir, sempre, de especiais cuidados. A pertinência da sua aplicação deve ser sempre apreciada em concreto. Parece ser especialmente adequada para os casos menos graves de violência nas relações de intimidade, sobretudo se se tiver iniciado recentemente, os episódios forem espaçados no tempo, as condutas isoladas forem de pequena ou mediana gravidade, não houver um padrão de controlo coercivo e a vítima, adulta, quiser manter a relação com o agressor. Outros campos privilegiados de aplicação são os agressores e/ou vítimas idosos e dependentes, ou pertencentes a grupos etnicoculturais minoritários. Tais pessoas sofrem, muitas vezes, de uma inferioridade sistémica, que agrava ainda mais qualquer outra forma de vitimização e as afasta do sistema formal de controlo. Por isso mesmo, a intervenção da jurisdição penal pode ser mais efetiva se se recorrer à suspensão provisória do processo. Porém, existe o risco de que essa opção possa reforçar a tolerância cultural relativamente a práticas violentas no seio da família, e, em vez que contribuir para o empoderamento da vítima, pode fragilizá-la ainda mais. Em princípio, esta medida não deve ser utilizada nos casos mais graves de violência nas relações de intimidade, conhecidos como intimate terrorism ou coercive control. Existe um sério risco de que o agressor utilize ou pretenda utilizar a suspensão provisória como um meio para continuar a importunar a vítima. Acresce que, atentas as caraterísticas deste tipo de agressor, são praticamente nulas as possibilidades de ressocialização. É perigoso pressupor que todas as vítimas de violência doméstica têm capacidade para reconhecer a situação de perigo em que se encontram e se saibam tomar as decisões mais adequadas à salvaguarda dos seus interesses. “Who Pays if We Get it Wrong” é o sugestivo título de um artigo que alerta para os riscos subjacentes à utilização de soluções de consenso e oportunidade na violência doméstica e recorda os trágicos resultados que podem sobrevir caso a segurança das vítimas não seja devidamente acautelada (Ruth Busch, Domestic violence and restorative justice initiatives: Who pays if we get it wrong?, in Restorative Justice and family Violence, edited by Heather Strang and John Braithwaite, Cambridge, UK, Cambridge University Press, 2002). Daí a importância de a vítima ser sempre inquirida pelo magistrado do Ministério Público (ou, caso isso se revele de todo impossível, por órgão de polícia criminal especialmente habilitado para tanto). Para além de ser inquirida sobre os factos, a vítima deve ser questionada sobre as suas necessidades de apoio e proteção e sobre a possibilidade de sofrer vitimização secundária e MANUAL PLURIDISCIPLINAR 219 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 220 - - repetida ou qualquer forma de intimidação e retaliação. Devem, ainda, ser prestadas à vítima todas as informações pertinentes sobre a prossecução do inquérito, nomeadamente, sobre a possibilidade de ser aplicada a suspensão provisória do processo (objetivos, pressupostos, injunções e regras de conduta aplicáveis, prazo de duração e consequências da sua aplicação). É importante que a vítima não crie falsas expectativas relativamente à virtualidade deste instituto e às possibilidades de (re)socializar o agressor, que a possam colocar em posição de ser revitimizada. É essencial verificar se a vítima tem capacidade para se autodeterminar e, na positiva, caso ela requeira de forma livre e esclarecida a suspensão provisória do processo, deve-se atender aos seus interesses e motivações na fixação das injunções e regras de conduta e prazo. Igualmente importantes se revelam os procedimentos de avaliação do risco e a elaboração de inquérito social e relatório pela DGRSP ou outras entidades com intervenção na área da violência doméstica. A triagem das situações que podem ser encaminhadas para suspensão provisória do processo, a escolha das injunções e regras de conduta mais adequadas e o subsequente acompanhamento da sua execução devem ser efetuadas por profissionais especialmente habilitados, conhecedores das dinâmicas da violência doméstica e com experiência em lidar com as suas vítimas e agressores. Paralelamente, devem ser resolvidos problemas relacionados com as jurisdições de família e crianças e/ou civil, nomeadamente, relativos à regulação do exercício das responsabilidades parentais, atribuição de casa de morada de família e fixação de pensão de alimentos. Não temos dúvidas em afirmar que, antes e durante a suspensão provisória do processo, a segurança física e emocional da vítima são prioritárias e devem ser sempre acauteladas, se necessário com recurso a medidas de proteção. Não se trata de paternalismo ou de qualquer desvalorização da vítima. Trata-se, isso sim, de prestar o necessário apoio e proteção a quem, em virtude dos graves abusos sofridos, pode ter a sua liberdade de decisão e de ação condicionada e, por esse motivo, pode ser incapaz de tomar decisões verdadeiramente livres. Quanto à definição das injunções e regras de conduta e do prazo da suspensão, deve atender-se ao caso concreto. Sempre que exista perigo de repetição das condutas criminosas, poderão ser indicadas regras de conduta e injunções destinadas a proteger a vítima, que limitem a liberdade do arguido e o impeçam de aceder e de contactar a vítima, como por exemplo: proibição de entrar em certas localidades ou lugares ou em zonas definidas em que vítima resida, trabalhe ou se desloque; proibição ou restrição do contacto, sob qualquer forma, direta ou indiretamente, com a vítima, inclusive por telefone, correio eletrónico ou normal, fax ou quaisquer outros meios; proibição ou regulação da aproximação à vítima a menos de uma distância prescrita [alíneas d), g), h), i) e m)]. Estas regras de conduta e injunções podem proteger também outras pessoas relacionadas com a vítima e o seu cumprimento pode ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância (artigo 35º, da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro). Caso o arguido tenha utilizado armas, ameaçado utilizá-las ou a elas tenha um acesso facilitado, deve ser-lhe exigido que não tenha tais objetos em seu poder, o mesmo sucedendo com quaisquer outros objetos capazes de facilitar a prática de outro crime (alínea l). Os programas para agressores têm-se revelado muito importantes para a sua ressocialização. Note-se, contudo, que as situações de violência doméstica são muito diversas, tendo um largo espectro de causas e consequências e podendo ser mais ou menos graves, pelo que estes programas devem ser adaptados às caraterísticas e às necessidades de cada arguido. Caso existam problemas de alcoolismo ou de toxicodependência associados à violência doméstica, poderão ser indicados outros programas ou atividades, em complemento. As injunções destinadas a reparar o mal causado, quer mediante o pagamento de uma indemnização ao lesado (alínea a), ou da prestação de uma satisfação moral adequada (alínea b), quer mediante a entrega de certa quantia ao Estado ou a instituição privada de solidariedade social ou da prestação de serviço de interesse público (alínea c), podem ser aplicadas cumulativa ou separadamente com as anteriores. Permitem reforçar no arguido e na comunidade a ideia de que a violência doméstica é um crime grave e contribuir para uma efetiva evolução nas mentalidades. A violência doméstica é sem dúvida um problema social muito complexo, onde as respostas da máquina judiciária se devem necessariamente cruzar com outros níveis de intervenção, sobretudo médico-social. MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 1.9.1. Encontro restaurativo O regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas, estabelecido pela Lei nº 112/2009, de 16 de setembro previa, na sua versão original, no artigo 39º, o direito da vítima a participar num encontro restaurativo com o arguido, durante a suspensão provisória do processo ou durante o cumprimento da pena, desde que se verificassem os seguintes requisitos cumulativos: consentimento expresso da vítima; consentimento expresso do arguido; o encontro restaurativo atender aos legítimos interesses da vítima; estarem garantidas condições de segurança; estar assegurada a presença de um mediador penal. Não há notícia de que este mecanismo de justiça restaurativa tenha sido efetivamente utilizado, devido à falta de concretização legal e às muitas reservas que suscitou a sua utilização. A supressão deste encontro restaurativo foi certamente motivada pela Convenção de Istambul, que estabelece a proibição de processos alternativos de resolução de conflitos, no seu artigo 48º. Ainda assim, entendemos que a justiça restaurativa pode ser uma boa alternativa no âmbito da violência doméstica, desde que rodeada de especiais cautelas, nomeadamente nos casos menos graves e em que há continuidade da relação entre o agressor e a vítima [Sobre a mediação penal veja-se, entre outros, Cláudia Santos “Um crime, dois conflitos (e a questão, revisitada, do “roubo do conflito” pelo Estado)”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Coimbra, A.17, nº 3 ( jul.-set. 2007), p. 459-474 e André Lamas Leite, “A mediação penal de adultos: um novo “paradigma” de justiça?: análise crítica da Lei nº 21/2007, de 12 de junho”, Coimbra: Coimbra Editora, 2008]. (Catarina Fernandes) 221 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 222 - - 2. A ACUSAÇÃO, A INSTRUÇÃO E O JULGAMENTO 2.1. Dedução da acusação Nos termos do disposto no art. 276º, nº 1, do Código de Processo Penal, o Ministério Público encerra o inquérito, arquivando-o ou deduzindo acusação. Deve deduzir acusação quando, durante o inquérito, forem recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente. Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança (art. 283º, nos 1 e 2, do Código de Processo Penal). Os indícios versam, assim, sobre os factos e sobre o seu agente ou sobre a maneira como ele (facto) se realizou.84 Em sentido técnico indícios são uma circunstância certa, um dado objetivo, um traço sensível que, apesar de não representado diretamente no thema probandi, consente que se chegue a ele por via inferêncial.85 Os indícios podem provir de prova direta e/ou indireta (ou indiciária). Aquilatar da suficiência ou insuficiência é problema que só se pode aferir perante cada caso concreto, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção (art. 127°, do Código de Processo Penal). Não compreendendo o escopo do presente manual a problematização desta temática, diremos apenas com Figueiredo Dias que a suficiência indiciária ou probatória existirá quando, já em face dos indícios recolhidos em sede de inquérito, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.86 Considerada a existência de indícios suficientes, tendo por referência o processo comum, e salvaguardadas as soluções de consenso ou diversão, o Ministério Público deve deduzir, por escrito, a acusação no prazo de 10 dias (artigo 283º, nº 1, do Código de Processo Penal). O princípio da autossuficiência da acusação impõe a sua completude, ou seja, ela deverá bastar-se a si própria na sua configuração-referência para objeto do processo e o predominante relevo que assume na respetiva fixação. O artigo 283º, nº 3, do Código de Processo Penal, enuncia os elementos que a acusação deve conter, sob pena de nulidade. Na economia do presente manual destacaremos apenas alguns breves apontamentos, sinalizados como relevantes87, atinentes à dedução de acusação, pelo Ministério Público, no segmento criminal da violência doméstica88. O primeiro apontamento servirá para referenciar que, em situações de violência doméstica presenciadas por crianças, o despacho de encerramento de inquérito não pode prescindir da pronúncia sobre os eventuais malefícios emocionais e psíquicos advenientes da exposição destas ao(s) episódio(s) violência. Em consequência, dever-se-á, nos casos de indiciação suficiente, descrever na acusação esses factos típicos e imputar a correspondente pluralidade de crimes, em concurso efetivo, verdadeiro ou puro. O segundo, ainda no contexto da acusação por concurso de crimes, mas agora vertente da subsunção da conduta típica descrita no libelo acusatório ao artigo 152º, do Código Penal, em concurso aparente, com outras normas penais, nas modalidades de consunção ou de subsidiariedade.89 Neste concreto, e dispensando a tomada de posição sobre as múltiplas situações-facto que, na relação com o tipo incriminador do artigo 152º, do Código Penal, podem convocar a problemática da unidade e pluralidade de infrações, a dilucidar perante os concretos contornos da fattie specie e ancorados pela teoria geral do concurso de crimes90 91, pretendemos apenas sublinhar que, nas situações de imputação em concurso aparente, legal ou impuro, é aconselhável que na acusação sejam descritos todos os factos típicos – objetivos e subjetivos - que previnam a subsunção autónoma às diversas normas em concurso. 87 88 89 90 91 84 85 86 Neste sentido, C.J.A. MITTERMAIER, Tratado de Prueba en Materia Criminal, 10.ª ed. adicionado y puesta al dia por Pedro Aragoneses Alonso, Reus, 1979. ANDREA A. DÁLIA e MARIZIA FARRAIOLI, Manuale de Diritto Processuale Penale, CEDAM, 2003, pág. 121. Direito Processual Penal, I Vol., Coimbra, 1981, p. 133. MANUAL PLURIDISCIPLINAR A seleção das questões que iremos sinalizar teve por base o Relatório sobre Violência Doméstica, da Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa, de julho de 2015, [Em linha], disponível na Internet em: <URL https://www.google.pt/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&ved=0ahUKEwiqhPbz2NTKAhVGuhoKHXadDJYQFggdMAA&url=http%3A%2F%2Fwww.pgdlisboa.pt%2Fdocpgd%2Ffiles%2F1438356001_2015_RELAT_VD.docx&usg=AFQjCNE_9jHuFiPuh-bDvTBGQ0mjyq73iQ&sig2=fUdooC3yneELGi2CtILamQ&bvm=bv.113034660,d.ZWU>. As considerações a tecer são igualmente aplicáveis à acusação do assistente, quer nas situações de acusação subordinada (como ocorre relativamente ao crime de violência doméstica, atenta a sua natureza de crime público - artigo 284º, nº 2, do Código de Processo Penal), quer nas situações de acusação particular (cfr. artigo 285º, nº 3, do Código de Processo Penal). Utilizamos como referência a terminologia utilizada por Figueiredo Dias, Direito Penal: Parte Geral I. Questões Fundamentais: a Doutrina Geral do Crime, 2ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2007, págs. 977 e segs.tora, 2007, a:. 977 e ss nadovoca e infraçestre em Direito Criminal, ar que nestas situaç Especificamente sobre a temática do concurso de crimes, por referência ao crime de violência doméstica, vd. com interesse: Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2012, anotação ao artigo 152º; Nuno Brandão, “A tutela especial reforçada da violência doméstica”, Revista Julgar, nº 12, 2010, págs. 9 a 22; André Lamas Leite, “A violência relacional íntima”, Revista Julgar, nº 12, 2010, págs. 23-66; Cristina Augusta Teixeira Cardoso, A Violência Doméstica e as Penas Acessórias, Dissertação do 2º Ciclo de Estudos conducente ao Grau de Mestre em Direito Criminal, Universidade Católica do Porto, maio de 2012, págs. 22 a 25, [Em linha], Porto, 2012, disponível na internet em: <URL http://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/9686/1/Tese%20mestrado%20-%20 A%20Violência%20doméstica%20e%20as%20penas%20acessórias.pdf >, e Ana Maria Barata de Brito, O Crime de Violência Doméstica: Notas Sobre a Prática Judiciária, Conferência proferida na Procuradoria-Geral da República a 1.12.2014, [Em linha], Lisboa, 2014, disponível na internet em: <URL http://www.tre.mj.pt/docs/ESTUDOS%20-%20 MAT%20CRIMINAL/Violencia%20Domestica_2014-12-01.pdf >. De destacar, pela atualidade e pertinência da análise, o último dos assinalados estudos que convida à reflexão profunda sobre a ponderação do concurso homogéneo (pluralidade de violação do mesmo tipo legal) nos processos-crime por violência doméstica. Reflexão que se impõe sob pena de verificação do efeito perverso de transformar um tipo protetor ou especialmente protetor da vítima, num tipo que, na aplicação que dele fazemos, acaba por beneficiar o infrator (ob. cit., pág. 4). MANUAL PLURIDISCIPLINAR 223 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 224 - - Efetivamente, se é certo que a acusação deve apontar inequivocamente para um determinado tipo legal de crime, sem ambiguidades, deverá, entendemos, mais que não seja por cautela, o magistrado do Ministério Público nela descrever a factualidade típica subsumível aos crimes em concurso aparente com o ilícito referência ou prevalente, salvaguardando, deste modo, potenciais convolações, em sede de julgamento, sem recurso às apertadas regras prescritas, em particular, para a alteração substancial de factos (artigo 359º do Código de Processo Penal). A ausência dessa descrição típica, de que nos permitimos destacar concretamente os elementos subjetivos do crime (recordando a este propósito o Ac. de Uniformização de Jurisprudência do STJ nº 1/2015, DR. 1.ª Série, nº 18, de 27.1.201592), poderá acarretar, quando não se julgue provado o tipo referência ou prevalente, a inviabilidade de punição naquele processo (ou mesmo fatalmente), dos crimes em relação de concurso aparente. Como exemplo-tipo deste enunciado socorremo-nos do Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 21-1-2015, Processo nº 60/13.4PCLRA.C1 (Relatora: Maria José Nogueira), assim sumariado93: “I - Se, em sede de sentença, o julgador afastou o elemento subjectivo do crime de violência doméstica imputado ao arguido na acusação, dando-o como não provado, aditando, não obstante, ao acervo dado como provado, factos integradores do tipo subjectivo do crime de perturbação da vida privada p. e p. no artigo 190º, nº 2, do CP, e emitindo decisão condenatória pela ocorrência deste ilícito penal, ocorre uma alteração substancial de factos (e não, como entendimento do tribunal de 1.ª instância, uma mera alteração não substancial ou de qualificação jurídica), já que a condenação está ancorada em novos factos integradores de tipo de crime diverso, ou seja, cujo bem jurídico protegido difere dos acautelados pelo crime previsto no artigo 152º do CP. II - No contexto descrito, o instituto jurídico-processual a desencadear é o do artigo 359º do CPP (e não o do artigo 358º, utilizado pelo tribunal recorrido), com a consequente comunicação nos termos e para os efeitos previstos naquele normativo, conduzindo a sua inobservância à nulidade do artigo 379º, nº 1, al. b), do mesmo diploma”. O terceiro apontamento é referente às penas acessórias, designadamente, às expressamente previstas no tipo criminal em análise: a pena acessória de proibição de contactos e de proibição de uso e porte de arma (artigo 152º, nos 4 e 5, do Código Penal) e a inibição do exercício das responsabilidades parentais, da tutela ou curatela (artigo 152º, nº 6, do Código Penal). Quando estas devam ser aplicadas, a acusação deve refletir os factos que motivam a sua aplicação e o respetivo fundamento de direito, sob pena das mesmas não poderem ser decretadas, sem recurso ao regime da alteração dos factos.94 95 De sinalizar, ainda, no quadro das penas acessórias, que, mesmo na previsibilidade da aplicação de pena de prisão efetiva, deverá ser ponderado, na acusação, o pedido de aplicação de pena acessória de proibição de contactos, considerando que aquela não acautela todas as condutas do arguido que possibilitam o contacto com a vítima, v.g. telefonemas, encontros no contexto de visitas ou saídas precárias, entre outros. Um último apontamento servirá apenas para recordar que a Lei das Armas contempla uma agravativa geral - nº 3, do art. 86º, da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro, que, considerando os dados empíricos sobre as situações tipo de violência doméstica, deverá ser convocada em numerosos casos de imputação do crime previsto no artigo 152º, do Código Penal. 2.1.1. As comunicações previstas no artigo 37º, da Lei nº 112/09, de 16.09 O despacho de acusação por crime de violência doméstica deve ser comunicado, nos termos gerais estabelecidos no Código de Processo Penal (art. 277º, nº 3, aplicável ex vi art. 283º, nº 5): ao arguido, ao assistente, ao denunciante com faculdade de se constituir assistente, às partes civis e aos respetivos defensores e advogados. A forma dessas comunicações encontra-se consagrada no art. 283º, nº 6, do Código de Processo Penal, devendo ter-se em consideração, na parte aplicável, as regras sobre notificações, em especial, as consagradas nos artigos 113º e 114º, do mesmo diploma. Especificamente, em processos por prática de crime de violência doméstica, a Lei nº 112/09, de 16/09, determina, a comunicação da acusação (e restantes despachos finais proferidos em inquéritos e decisões finais transitadas em julgado, bem como, da atribuição do estatuto de vítima) à Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna, para efeitos de registo e tratamento de dados (artigo 37º, nº 1). Essa comunicação é efetuada, sem dados nominativos, com exceção do número único identificador de processo-crime (artigo 37º, nº 2). A Circular da Procuradoria Geral da República, nº 7/2012, uniformizou o modo dessa comunicação96. Pela sua expressão prática, neste segmento criminal, anotamos, finalmente, em matéria de comunicações, que em eventos em que a vítima tenha recebido cuidados médicos em hospitais ou outras entidades públicas de prestação de cuidados médicos, inseridos 94 92 93 Que uniformizou a jurisprudência no seguinte sentido: “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da fatualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358º do Código de Processo Penal.” (bold nosso). Disponível em https://dre.pt/application/file/a/66348117. Consultável em: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/ f4bc1b8f2af937aa80257ddc003c1664?OpenDocument MANUAL PLURIDISCIPLINAR 95 96 Não vislumbramos razões processualmente válidas para a não aplicação, às penas acessórias referidas, da Jurisprudência Uniformizada pelo Acórdão do STJ nº 7/2008 (DR 146 SÉRIE I, de 2008-07-30): «Em processo por crime de condução perigosa de veículo ou por crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, não constando da acusação ou da pronúncia a indicação, entre as disposições legais aplicáveis, do nº 1 do artigo 69º do Código Penal, não pode ser aplicada a pena acessória de proibição de conduzir ali prevista, sem que ao arguido seja comunicada, nos termos dos nos 1 e 3 do artigo 358º do Código de Processo Penal, a alteração da qualificação jurídica dos factos daí resultante, sob pena de a sentença incorrer na nulidade prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 379º deste último diploma legal.» (sublinhado nosso), disponível em: https://dre.pt/application/dir/pdf1sdip/2008/07/14600/0513805145.pdf. Problematizando sobre a matéria, Cristina Augusta Teixeira Cardoso, A Violência Doméstica e as Penas Acessórias (ob. citada, nota 31). Com nota de atualização e disponível em http://www.ministeriopublico.pt/iframe/circulares. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 225 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 226 - - no Serviço Nacional de Saúde, o Ministério Público deve, com a acusação, notificar essas mesmas entidades para dedução de pedido de pagamento das respetivas despesas (art. 6º, do Dec. Lei nº 218/99, de 15/06)97. (Sérgio Pena) 2.2. A fase da instrução Da finalidade A instrução é uma fase processual facultativa, que tem lugar no final do inquérito e que visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art. 286º, nº 1). Pode ser requerida pelo arguido ou pelo assistente. Quando requerida pelo arguido tem como finalidade o controlo judicial: i) da acusação do MP e/ou ii) da acusação particular deduzida pelo assistente; e, iii) se requerida pelo assistente, do despacho de arquivamento do MP, em caso de crimes públicos e semipúblicos. Como justamente ensina Maia Costa in Código de Processo Penal - Anotado, cit., comentário ao art. 286º, a “comprovação consiste no controlo jurisdicional sobre tal decisão por parte de um juiz diverso do juiz de julgamento”. Importa sublinhar que a instrução não tem por escopo ampliar a investigação, repeti-la ou tão-só completá-la: ela visa apenas, sublinha-se, que a decisão anteriormente tomada seja sindicada por um juiz. Obviamente que há, em bom rigor, uma margem de possibilidade de carrear para o processo alguma prova tendente a esclarecer ou a infirmar a conclusão decisória da fase de investigação. Porém, esse aporte probatório está circunscrito ao objeto da acusação ou, no caso de arquivamento, à matéria objeto da investigação, a que a seguir se aludirá. O Tribunal Constitucional já há muito se pronunciou sobre a omissão de uma investigação aprofundada nesta fase, tirando o Ac. nº 31/87 “a Constituição não estabelece qualquer direito dos cidadãos a não serem submetidos a julgamento sem que previamente tenha havido uma completa e exaustiva verificação de existência de razões que indiciem a sua presumível condenação”. Este aresto foi posteriormente secundado pelos Acs. nº 338/92 e 242/2005, que reiteraram essa posição. Do prazo Findo o inquérito com a dedução do despacho de acusação ou com o arquivamento, nos termos do disposto nos art. 283º ou 277º, o arguido e o assistente são notificados de que dispõem do prazo de 20 dias para, querendo, requererem a abertura da instrução. 97 Assim como, apesar de não se tratar de comunicação, em caso de evento que tenha determinado incapacidade para o exercício da atividade profissional ou morte da vítima, o Ministério Público deverá consignar, na acusação, o número de beneficiário daquela (arts 2º e 3º, do Dec. Lei nº 59/98, de 22/02), com vista a acautelar o ressarcimento dos montantes eventualmente pagos pela Segurança Social ou pela Caixa Geral de Aposentações. MANUAL PLURIDISCIPLINAR A questão que nesta sede se tem vindo a colocar é a da coexistência da reclamação hierárquica prevista no art. 278º com a apresentação do requerimento de abertura de instrução, designadamente quanto aos prazos das respetivas apresentações e se aquela faz precludir o direito a apresentar este último. Com efeito, a reclamação hierárquica, nos termos do nº 2, a requerimento do assistente ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, deve ser apresentada no prazo de 20 dias a contar do despacho de arquivamento, sendo certo que é também esse o prazo para apresentação do requerimento de abertura de instrução. O Ac. 501/2005 do TC não julgou inconstitucional «a norma do nº 1 do artigo 287º do CPP, quando interpretada no sentido de que o prazo de 20 dias para o assistente requerer a abertura da instrução se conta da notificação do despacho de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público e não da notificação do despacho que, em intervenção hierárquica, o confirme», tendo concluído que tal interpretação normativa não viola o nº 7, do art. 32º, nem o nº 4, do art. 20º, da Constituição. Também o Ac. nº 539/05 do mesmo Tribunal decidiu em sentido idêntico, e bem assim o Ac. 713/14, que consagrou “Não julgar inconstitucional a norma contida conjugadamente nos artigos 278º, nº 2, e 287º, nº 1, al. b), do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, optando por suscitar a intervenção hierárquica, o assistente ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente, vê, sempre e irremediavelmente, precludido o direito de requerer a abertura de instrução ou renuncia a uma apreciação judicial do despacho de arquivamento do titular do inquérito”. Não obstante este juízo de não inconstitucionalidade, Maia Costa e Paulo Pinto de Albuquerque, op. cit., entendem que, havendo reclamação hierárquica e sendo confirmado o arquivamento, o prazo para a apresentação do requerimento de abertura de instrução deve contar-se a partir da notificação deste despacho do Ministério Público, que é o final. Para efeitos de cômputo de prazo, releva o disposto no art. 113º, nº 13 – havendo vários arguidos ou assistentes, quando o prazo para a prática de atos subsequentes à notificação termine em dias diferentes, o ato pode ser praticado por todos ou por cada um deles até ao termo do prazo que começou a correr em último lugar. Do requerimento de abertura de instrução Extrai-se do art. 287º, nº 2, que o requerimento de abertura da instrução não se encontra sujeito a formalidades especiais, devendo conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou arquivamento. Deve ainda conter, sempre que seja caso disso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que sejam levados a cabo e os meios de prova que não foram considerados no inquérito. Finalmente, deve também conter a descrição dos factos que, através de uns e outros, se espera provar. Sendo o requerimento apresentado pelo assistente, ele deve conter a narração dos factos, ainda que sintética, que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, sempre que possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e todas as circunstâncias MANUAL PLURIDISCIPLINAR 227 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 228 - - (ex vi art. 291º, nº 4). E bem se entende que assim seja, atentas as finalidades da Instrução que em nada se prendem com a aplicação de uma medida concreta de pena ou de segurança, matéria para a qual é convocada a personalidade do arguido. É devida taxa de justiça pelo assistente aquando da apresentação do requerimento de abertura de instrução, nos termos do art. 8º, do Regulamento das Custas Processuais, sem prejuízo do pedido de apoio judiciário formulado junto dos competentes serviços, formalidade que constitui um dos requisitos da sua admissibilidade. Por fim, dir-se-á que o requerimento deve ser apresentado ao juiz de instrução criminal do tribunal que tiver a competência nos termos legais – art. 288º, nº 2 – e que é ele que tem o poder de direção da instrução, isto é, o poder de investigar, de presidir ao debate instrutório e de proferir a decisão instrutória. Para levar a bom termo essa investigação autónoma, pode o juiz ser coadjuvado pelos órgãos de polícia criminal, nos termos consignados no art. 290º, nº 2, com a ressalva de que não podem ser delegados pelo juiz o interrogatório ao arguido, a inquirição de testemunhas e os atos que, por força do disposto no art. 268º, nº 1 e 270º, nº 2, são da sua exclusiva competência. O poder de direção prende-se, outrossim, com a ponderação e avaliação dos atos de instrução a deferir e a indeferir, afastando os meramente dilatórios os repetitivos, bem como a possibilidade de levar a cabo, ex officio, os que o juiz entender necessários e úteis à descoberta da verdade material. relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, bem como as disposições legais aplicáveis, conforme mandam as als. b) e c), do nº 3, do art. 283º. Na verdade, importa sublinhar que deve ser formulada expressamente uma descrição articulada dos factos que o assistente pretende ver imputados ao arguido, em termos cronológicos, se possível com data e local em que os mesmos ocorreram, com menção dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito. O Ac. do S.T.J. de Fixação de Jurisprudência nº 7/2005 veio resolver a questão que vinha sendo decidida de modo desigual nos tribunais superiores, sobre se deveria o juiz convidar o assistente a colmatar o seu requerimento de instrução sempre que enfermasse de deficiente narração fatual e de direito, fixando jurisprudência no seguinte sentido: «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, nº 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.» Este aresto, que se seguirá de perto, citando jurisprudência do Tribunal Constitucional, traz à colação o Ac. 358/2004 : “A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objeto do processo seja fixado com rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução. Com efeito, como justamente escreveu Souto Moura, in “Inquérito e Instrução”, Jornadas de Direito Processual Penal, p. 119, sendo requerida a instrução, e o assistente não delimitando o campo fatual de incidência, o juiz fica sem saber sobre que factos o assistente desejaria ver acusado o arguido. E acrescenta: “A instrução é endereçada à resolução de um diferendo de indiciação fatual, donde a importância na sua indicação, cuja falta leva à respetiva inexequibilidade; um requerimento sem factos libertaria o juiz da sua obrigação de sujeição à vinculação temática, é aquele o vício que lhe assinala”, op. cit., nota à p. 120. Ora, o requerimento de abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução. Porém, sendo aplicável ao requerimento do assistente o preceituado no art. 283º, nº 3, alíneas b) e c), por força dos arts. 287º, nº 2, e 308º, nº 2, estará ajustado, objetar-se-á, vistos os termos da lei, consequenciar o vício da nulidade do requerimento instrutório. Neste enfoque se defende que a omissão da narrativa dos factos no requerimento de instrução, além de configurar a nulidade prevista nos citados preceitos, traduz um caso de inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do nº 3, do art. 287º, como se decidiu no Acórdão da Relação do Porto, de 23 de maio de 2001, in Colectânea de Jurisprudência, ano XXVI (2001), t. III, p. 239: “uma instrução que peque por défice enunciativo de factos susceptíveis de conduzir à pronúncia do arguido titularia um ato inútil, que a lei não poderia admitir, pois que a inclusão desses factos na Pronúncia constituiria uma alteração substancial dos factos ao arrepio das normas legais aplicáveis ao instituto”. Deve ainda referir-se que está limitado a 20 o número de testemunhas que podem ser indicadas para inquirir, sendo que nenhuma delas o deve ser nos termos do art. 128º, nº 2 Do objeto da instrução Como já se deixou expresso, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de acusar ou arquivar. Uma das questões que se podem colocar é a de saber se a instrução pode ser requerida pelo arguido, quanto à acusação do Ministério Público ou quanto à acusação particular do assistente, visando tão-só uma alteração da qualificação jurídica dos factos. Maia Costa, op. cit., entende que não porquanto a instrução se destina unicamente a comprovar factos, nos termos do nº 1, do art. 287º. Admite, porém, que a instrução possa ser requerida com o fundamento da não punibilidade dos factos da acusação. Todavia, não é líquida solução quanto ao primeiro caso e ela não é seguida em uníssono pela jurisprudência. Entendeu-se no Ac. do TRL, de 10.3.2011, CJ, T. II, p. 144, que “o arguido pode requerer a abertura da instrução tendo em vista tão-somente a alteração da qualificação jurídica dos factos, em determinadas situações, como seja o caso de, com a alteração da qualificação jurídica, se pretender a imputação de crime menos grave, o que poderá ter reflexos na medida de coação aplicada, ou na natureza do crime, que poderá passar de público a semipúblico, admitindo, dessa forma, desistência de queixa e a consequente não submissão do arguido a julgamento”. Também no que tange à abertura de instrução para a apreciação de suspensão provisória do processo, o Ac. do TRC de 28.3.2012 decidiu que o requerimento “não pode ser rejeitado, visto que não viola a regra sobre a finalidade da instrução, porque a comprovação judicial a que se reporta o nº 1 do art. 286º do CPP, não se restringe ao domínio do facto naturalístico, antes compreende também, a dimensão normativa do mesmo e por conseguinte, a sua susceptibilidade de levar (ou não) a causa a julgamento”. MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 229 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 230 - - No que tange à circunscrição dos factos a integrar o acervo dos vertidos no requerimento de abertura de instrução, impõe-se fazer a distinção entre a factualidade investigada e a que o não foi. Quanto a esta última, dúvidas inexistem que não podem constituir objeto da instrução. Caso o tenha sido, se constituírem uma mera alteração não substancial, a solução adequada é a dedução de acusação subordinada, não se vislumbrando base legal para o assistente requerer a abertura da instrução visando esse desiderato, por inobservância da finalidade que a determina – comprovar a decisão de levar ou não a causa a julgamento. Porém, já assim não será se o assistente pretender que ao arguido sejam imputados factos investigados mas desconsiderados pelo Ministério Público, os quais constituem uma alteração substancial – basta pensar-se em factos atinentes a circunstâncias qualificativas ou subsumíveis a um outro tipo de crime, a acrescer. Em suma: O objeto da instrução tem de ser conformado pela factualidade investigada no inquérito que a antecedeu. Quando requerida pelo arguido, ela pode incidir sobre a acusação pública e ou sobre a acusação particular, quer para reapreciar factos, quer para alterar a sua qualificação jurídica (o que não é pacífico), quer para que opere a suspensão provisória do processo. Se for requerida pelo assistente, ela deve ter como escopo a imputação ao arguido de factos, designadamente os que foram desatendidos em inquérito, seja para pronunciar por novo crime, seja para agravar o crime pelo qual o arguido foi acusado. Se se tratar de uma mera alteração não substancial dos factos, ou seja, factualidade atinente a circunstâncias da prática delituosa que o assistente entende serem importantes para a aplicação de uma pena ou medida de segurança, mas não importam a imputação de um novo crime ou a agravação do já imputado, a solução adequada é a do assistente apresentar a acusação a que alude o disposto no art. 284º, nº 1. Dos atos de instrução O art. 119º, al. d) consagra a nulidade absoluta no que tange à falta de instrução quando a mesma é obrigatória, ou seja, nos casos em que for requerida tempestivamente e for legalmente admissível por quem tem legitimidade para o efeito. Já a omissão do debate instrutório ou da tomada de declarações ao arguido, quando este a requeira, dá lugar a uma nulidade dependente de arguição, sendo estes dois os únicos atos legalmente obrigatórios. Os atos de instrução encontram-se sujeitos ao contraditório, conforme deflui do disposto no art. 289º, nº 2. Desta feita, impõe-se a notificação dos sujeitos processuais, Ministério Público, arguido e seu defensor, assistente e seu advogado, para todos os atos de instrução, sob pena de nulidade sanável. Têm, pois, o direito a estar presentes e a intervir em todas as diligências. Nesta fase vigora a publicidade externa do processo, plasmada no art. 86º, e os autos não se encontram sujeitos ao segredo de justiça. Por força do nº 6 do referido artigo, que regula essa publicidade externa, a assistência do público é restrita ao debate instrutório. Qualquer pessoa detentora de interesse legítimo tem acesso ao Processo, podendo consultá-lo ou obter certidões. Como já acima se aludiu, o único ato de instrução obrigatório, para além do debate instrutório, é o interrogatório do arguido quando este o requerer, configurando a omissão uma nulidade que carece de ser invocada. Tal não significa que o arguido seja ouvido tantas vezes quantas desejar, designadamente se o teor das suas declarações for manifestamente repetitivo, mas que tem de ser ouvido pelo menos uma vez. Os atos levados a cabo são norteados por razões de necessidade e pertinência para o apuramento da verdade, em obediência ao princípio da proibição da realização de atos inúteis e da descoberta da verdade material. Devem, pois, ser indeferidas as diligências cujo escopo é dilatório ou repetitivo – art. 291º, nº 1 e 3 – sendo certo que o despacho que indefira atos requeridos é irrecorrível e apenas admite reclamação. Sobre a constitucionalidade desta irrecorribilidade pronunciou-se, entre outros, o Ac. do TC 340/2007. São admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei – art. 292º, nº 1. Para a concretização das diligências, o juiz emite o competente mandado de comparência com pelo menos três dias de antecedência, salvo caso de manifesta urgência, devidamente fundamentada, em que pode ser concedido tão-só o tempo necessário à comparência – art. 293º. Nas possíveis diligências instrutórias incluem-se as declarações para memória futura de testemunhas, assistentes, partes civis, peritos ou consultores, que podem ser despoletadas por requerimento ou oficiosamente, o que colhe abrigo no art. 294º. As diligências de prova são documentadas mediante gravação ou redução a auto – art. 296º. O debate instrutório deve ser marcado nos cinco dias posteriores à prática do último ato de produção de prova, havendo-os, ou logo aquando do despacho que declarar aberta a instrução, se inexistir lugar à prática de demais atos instrutórios. E deverá ser notificado com, pelo menos, cinco dias de antecedência relativamente à data designada para o efeito, ao Ministério Público, arguidos requerentes, coarguidos e assistentes. A final do debate instrutório, o juiz profere a decisão instrutória na qual decide se o arguido é pronunciado e vai ser submetido a julgamento ou se não é pronunciado quanto aos factos objeto da instrução, devendo neste caso ser arquivada a matéria reapreciada. Com efeito, preceitua o art. 308º, nº 1 que, se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia. Dispõe o art. 283º, nº 2, aplicável à fase de instrução ex vi o nº 2, do art. 308º, que se consideram suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, uma pena ou uma medida de segurança. O conceito de indícios suficientes funda-se na possibilidade razoável de condenação ou de aplicação de uma pena ou medida de segurança. Desta feita, deve considerar-se existirem indícios suficientes para efeitos de prolação do despacho de pronúncia (tal qual para a acusação), quando: MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 231 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 232 - - - os elementos de prova, relacionados e conjugados entre si, fizerem pressentir da culpabilidade do agente e produzirem a convicção pessoal de condenação posterior, e - se conclua, com probabilidade razoável, que esses elementos se manterão em julgamento; ou - quando se pressinta que da ampla discussão em plena audiência de julgamento, para além dos elementos disponíveis, outros advirão no sentido da condenação futura. Esta decisão de pronúncia ou não pronúncia pode ser logo ditada para a ata, podendo ser fundamentada por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura de instrução, conforme dispõe o art. 307º, nº 1. Inicia, nos termos do art. 308º, nº 3, por decidir das nulidades e questões prévias ou incidentais que possa conhecer e que tenham sido invocadas ou que, não o tendo sido, se prendam com o objeto da instrução e sejam de conhecimento oficioso. Caso a complexidade da causa assim o imponha, o juiz encerra o debate instrutório ordenando que os autos lhe sejam conclusos, a fim de proferir decisão, no prazo máximo de dez dias – nº 3, do art. 307º. Sendo a instrução requerida por um arguido, a respetiva decisão instrutória abrange, se os houver, os demais coarguidos, conforme se extrai do nº 4 do mesmo normativo legal. A decisão instrutória enfermará de nulidade na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente, ou no requerimento de abertura de instrução, nulidade essa que deve ser arguida no prazo de oito dias a contar da notificação da decisão – art. 309º, nº 1 e 2. Esta norma convoca o conceito de alteração substancial de factos plasmada no art. 1º, al. f): aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. Não é admissível recurso da decisão instrutória que pronunciar o arguido por factos constantes da acusação pública formulada nos termos do art. 283º ou de acusação que o Ministério Público apresentou ao abrigo do disposto no art. 285º, nº 4 – art. 310º, nº 1. Essa irrecorribilidade estende-se mesmo à parte em que a decisão apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para realizar o julgamento. Porém, já o despacho que indeferir a invocação da nulidade da decisão instrutória por pronúncia por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente no requerimento de abertura de instrução é suscetível de recurso, nos termos conjugados dos arts. 310º, nº 3 e 309º. Uma vez requerida a instrução, não há lugar à desistência, por não se encontrar prevista na lei (neste sentido Pinto de Albuquerque, op. cit.). (Helena Susano) MANUAL PLURIDISCIPLINAR 2.3. A fase de julgamento – a produção e valoração da prova 2.3.1. Fase preliminar: o despacho proferido nos termos do art. 311º Remetido o processo para o Tribunal competente para realizar o julgamento, é o mesmo apresentado ao respetivo juiz que deverá dar cumprimento ao disposto no art. 311º. Nos termos do referido dipositivo legal, o juiz deve pronunciar-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer. Está em causa o conhecimento de nulidades, como v.g. a da acusação particular ou da pública, nos casos em que se encontrarem viciadas, por falta de inquérito, imputando factos que não foram investigados – art. 119º, al. d); ou quando a acusação subordinada, nos termos do art. 284º, contenha uma alteração substancial dos factos descritos na acusação pública. Conhece de questões prévias ou incidentais como por exemplo a competência do Tribunal, em razão da hierarquia, da matéria ou do território; ou da prescrição do procedimento criminal. Numa palavra, o juiz deve desde logo conhecer a existência de qualquer invalidade processual, exceção dilatória ou perentória. Porém, se o não fizer, não fica impedido de posteriormente o fazer – Ac. do STJ de Fixação de Jurisprudência nº 2/95 “A decisão judicial genérica transitada em julgado e proferida ao abrigo do artigo 311º, nº 1, do Código de Processo Penal, sobre a legitimidade do Ministério Público, não tem valor de caso julgado formal, podendo até à decisão final ser dela tomado conhecimento”. Neste despacho a que alude o art. 311º, para além do saneamento que se impõe ao juiz levar a cabo nos termos acima referidos, deve este ainda pronunciar-se sobre o recebimento da acusação pública e, se a houver, da particular, bem como sobre o eventual pedido de indemnização apresentado, conferindo os respetivos requisitos e pressupostos, por referência ao teor das als. dos nº 2 e 3, do referido art. – note-se que o preceito do nº 3, se encontra redigido de forma tendencialmente taxativa, sendo que essa enunciação só poderá ser ultrapassada em casos de idêntica ou mais grave natureza não previstos pelo legislador (cfr. neste sentido o Ac. TRE de 08.07.2010) E, neste caso, proferindo despacho de rejeição da acusação, e tendo este transitado, um despacho posterior que, reapreciando a questão, receba a acusação e designe dia para julgamento, enferma do vício de inexistência. Caso tenha havido instrução, ao juiz do julgamento não cumpre fazer qualquer sindicância à Pronúncia. No despacho em apreço, cumpre ainda designar data para a realização do julgamento. O Juiz deve fazê-lo, nos termos do disposto no art. 312º, nº 1, para a data mais próxima possível, de modo que entre ela e o dia em que os autos foram recebidos não decorram mais de dois meses. Nesse despacho é desde logo designada data para a realização da audiência em caso de adiamento, nos termos do nº 1, do art. 333º, ou para a audição do arguido a requerimento do seu advogado ou defensor nomeado ao abrigo do nº 3, do art. 333º (nº 2). MANUAL PLURIDISCIPLINAR 233 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 234 - - No caso de o arguido se encontrar sujeito à medida de coação de prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação, a data da audiência é fixada com precedência sobre qualquer outro julgamento, mas sempre com observância do prazo de 30 dias mencionado no art. 313º, nº 2. A marcação da diligência deve observar a desejável compatibilidade de agendas, de modo a evitar a sobreposição com outros atos judiciais a que os advogados ou defensores tenham a obrigação de comparecer, aplicando-se o disposto no art. 151º, do CPC – ex vi art. 312º, nº 4. A violação dos mencionados prazos configura, no entendimento de Oliveira Mendes, in Código de Processo Penal Anotado, Henriques Gaspar et alii, em anotação ao art. 312º, uma mera irregularidade que segue o regime previsto no art. 123º, a conjugar com o art. 118º, nº 1 e 2. Deve ainda sublinhar-se que o despacho que designa o dia para a realização da audiência de julgamento deve conter, sob pena de nulidade: • a indicação dos factos e disposições legais aplicáveis, o que pode ser feito por remissão para a acusação ou para a pronúncia, se a houver; • a indicação do lugar, do dia e hora da comparência; • a nomeação de defensor ao arguido, se ainda não estiver constituído no processo; e • a data e assinatura do presidente (art. 313º, nº 1). Por força da alteração da Lei 112/2009, de 16 de setembro, introduzida pela Lei 129/2015, de 3 de setembro, que aditou o art. 34º-A, no despacho que designa dia para a audiência de julgamento, o tribunal deve também solicitar avaliação de risco atualizada da vítima. A notificação do despacho previsto no art. 311º é feita aos intervenientes processuais (arguido e seu defensor, assistente, partes civis e aos seus representantes). No que tange em particular à notificação do arguido e do assistente, ela deve ser feita nos termos das alíneas a) e b), do art. 113º (contacto pessoal com o notificando e no lugar em que for encontrado; por via postal registada, por meio de carta ou aviso registados). Excetuam-se os casos em que estes sujeitos tiverem indicado a sua residência ou domicílio profissional à autoridade policial ou judiciária que elaborar o auto de notícia ou que os ouvir no inquérito ou na instrução e nunca tiverem comunicado a alteração da mesma através de carta registada, caso em que a notificação é feita mediante via postal simples, nos termos da al. c), do nº 1, do art. 113º - Ac. STJ de 10.10.2010: ”Tendo a arguida sido notificada da data de audiência de julgamento por via postal simples, para a residência que indicou no TIR que prestou nos autos, é de considerar aquela notificação suficiente e válida, nos termos do art. 313º, nº 3, e 113º, nº 1, al. c), do CPP”. O despacho prolatado nos termos do art. 311º é irrecorrível, na parte em que o juiz se limita a indicar os factos e disposições legais aplicáveis constantes da acusação ou da pronúncia. Havendo alteração de factos ou da qualificação jurídica, é recorrível. O arguido dispõe, então, do prazo de 20 dias a contar do referido despacho para contestar, apresentando também o rol de testemunhas, indicação de peritos e consultores técnicos. Este número pode ser ultrapassado, desde que tal se afigure necessário para a descoberta da verdade material, designadamente, no caso e para o que ora releva, por o processo se revelar de excecional complexidade. O rol contém o número máximo de vinte testemunhas, com a respetiva identificação, discriminando-se as que devam depor sobre a personalidade do arguido ao abrigo do art. 128º, nº 2, as quais não poderão exceder o número de cinco – art. 315º. O rol pode ser adicionado ou alterado, nos termos do disposto no art. 316º, por parte do arguido, do assistente e da parte civil, desde que tal desiderato possa ser comunicado aos outros intervenientes até três dias antes da data fixada para a audiência. Tal direito importa que o rol haja sido apresentado e admitido. MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 2.3.2. A inquirição da vítima A ordem de produção da prova em julgamento segue a regra consignada no art. 341º, a conjugar com os arts. 346º e 347º: primeiro tomam-se declarações ao arguido; de seguida, tomam-se declarações ao assistente e após às partes civis; inquirem-se as testemunhas arroladas pelo MP, pelo assistente e pelo lesado; e, por fim, inquirem-se as testemunhas indicadas pelo arguido e depois as do responsável civil. Esta ordem pode ser alterada por decisão do juiz presidente, de acordo com o disposto nos arts. 323º, al. a), 331º, nº 2 e 333º, nº 2. Todo o cidadão, desde que esteja no pleno uso das suas faculdades mentais, tem o dever de colaborar com a justiça para a descoberta da verdade material caso venha a ser arrolado como testemunha, prestando um depoimento verdadeiro perante o tribunal, sob pena de incorrer em responsabilidade criminal (cfr. art. 131º, nº 1). Porém, atentas as relações de proximidade e de familiaridade entre o arguido e uma determinada testemunha, a lei prevê que esta, em função dessa relação, se possa recusar a depor, uma vez que, fazendo-o, fica obrigada a falar com verdade e essa circunstância tanto pode beneficiar como prejudicar o arguido. Destarte, nos termos do art. 134º, nº 1, podem recusar-se a depor como testemunhas os descendentes, ascendentes, irmãos, os afins até ao 2º grau, adotantes, os adotados e o cônjuge do arguido [al. a)]. Pode ainda recusar-se a depor quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem, sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação [al. b]. Pode, pois, a vítima do crime de violência doméstica recursar-se a depor nos termos gerais da lei processual penal. Para tanto, a entidade que receber o depoimento tem de a advertir – em fase de julgamento, é o tribunal a fazê-lo - da faculdade que lhe assiste de recusar o depoimento, sob pena de o mesmo ficar ferido do vício de nulidade (nº 2). Fá-lo após lhe ter tomado a identificação, nos termos consignados no art. 348º, nº 3, e após inquirir sobre as suas relações de parentesco e de interesse com o arguido, o ofendido, o assistente e as partes civis, bem como sobre quaisquer circunstâncias relevantes para avaliação da credibilidade do depoimento. Querendo depor, se se tiver constituído assistente (qualidade que pode requerer até 5 dias antes da audiência de julgamento – art. 68º, nº 3, al. a) ou for demandante civil, 235 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 236 - - é inquirida pelo Juiz (art. 346º, nº 1) e não se encontra obrigada a prestar juramento (art. 145º, nº 4), permanecendo, no entanto, sujeita ao dever de verdade, e incorrendo em responsabilidade penal pela sua violação (art. 145º, nº 2). Possuindo apenas a qualidade de testemunha e sendo obrigada a juramento, é inquirida por quem a arrolou e depois será sujeita a contrainterrogatório (art. 348º, nº 4). A vítima testemunha tem, no termos do art. 22º, nº 1, da Lei 112/2009, direito a ser ouvida em ambiente informal e reservado, devendo ser criadas as adequadas condições para prevenir a vitimização secundária e evitar que sofra pressões98. Tem ainda direito, ao abrigo do nº 2 do mesmo normativo legal, sempre que possível, e de forma imediata, a dispor de adequado atendimento psicológico e psiquiátrico por parte de equipas multidisciplinares habilitadas à despistagem e terapia dos efeitos associados ao crime de violência doméstica. Revela ainda, nesta sede, a reiteração desta matéria consignada no disposto no art. 33º, nº 2. É acompanhada, sempre que o solicitar, na prestação das declarações ou do depoimento pelo técnico de apoio à vítima ou por outro profissional que lhe tenha vindo a prestar apoio psicológico ou psiquiátrico – art. 32º, nº 2, da Lei 112/2009. Tem, ainda, a prerrogativa de prestar o seu depoimento através de videoconferência ou teleconferência, uma vez que, em fase de julgamento, o arguido tem o direito a estar presencialmente na audiência. Para tanto, quer a própria vítima quer o MP99 podem apresentar o respetivo requerimento ao Tribunal, ou pode este assim decidir oficiosamente. Porém, este direito da vítima, como de resto qualquer outro, não é absoluto. Assim, no caso de o tribunal decidir tomar depoimento presencial à vítima, o arguido pode ser afastado da sala de audiência ao abrigo do disposto no art. 352º, nº 1, al. a) – havendo razões para crer que a presença do arguido inibiria o declarante de dizer a verdade; b) sendo o declarante menor de 16 anos e houver razões para crer que a presença do arguido poderia prejudicá-lo gravemente. Em suma: a vítima tem o direito a não ser inquirida na presença física do arguido; e ou o Tribunal entende que é útil que o arguido oiça essas declarações e a inquirição tem lugar através de videoconferência ou teleconferência, ou entende que, numa concretização plena do princípio da imediação, deve inquirir presencialmente a vítima e, nesse caso, deverá mandar ausentar o arguido da sala e tomar todas as providências logísticas para que não haja encontro entre ambos, mesmo que fugaz e distanciado. Voltando o arguido à sala de audiência é o mesmo, sob pena de nulidade, resumidamente instruído pelo presidente sobre o que se tiver passado na sua ausência – art. 332º, nº 7. Ainda que a vítima de violência doméstica não resida em Portugal, possui de igual forma prerrogativas processuais. Com efeito, beneficia das medidas adequadas ao afastamento das dificuldades que surjam em razão da sua residência, especialmente no que se refere ao andamento do processo penal. Ademais, beneficia também da possibilidade de prestar declarações para memória futura imediatamente após ter sido cometida a infração, 98 99 A redação do art. levada a cabo pela Lei 129/2015 suprimiu o adjetivo “desnecessárias”, e a nosso ver corretamente, porquanto configuraria um absurdo, a contrario, e em tese, a eventual existência de pressões necessárias. O MP, por força da alteração levada a cabo pela Lei 129/2015, de 3 de setembro. MANUAL PLURIDISCIPLINAR bem como a audição através de videoconferência e de teleconferência. Por fim, é-lhe ainda assegurada a possibilidade de apresentar denúncia junto das autoridades nacionais, sempre que não tenha tido a possibilidade de o fazer no Estado onde foi cometido o crime, caso em que as autoridades nacionais devem transmiti-la prontamente às autoridades competentes do território onde foi cometido o crime. Determina o art. 19º, da Lei 112/2009, que à vítima que intervenha na qualidade de sujeito no processo penal, deve ser proporcionada a possibilidade de ser reembolsada das despesas efetuadas em resultado da sua legítima participação no processo penal, nos termos estabelecidos na lei. 2.3.3. Reprodução ou leitura permitida de declarações do assistente, testemunha ou parte cível na audiência de discussão e julgamento A disciplina da leitura de declarações do assistente, testemunha ou parte civil encontra-se regulada nos arts. 355º e 356º. Esquematicamente: Regra – art. 355º: a prova produz-se em audiência de julgamento Constituem exceções, conforme o art. 355º, nº 2: 1) art. 356º nº 1, al. a) - prevendo circunstâncias especiais quanto ao local de residência, saúde e urgência relativas às testemunhas, assistentes e partes civis - inquirição a residentes fora da comarca (art. 318º) - inquirição no domicílio (art. 319º) - inquirição em atos urgentes (art. 320º) 2) art. 356º, nº 1, al. b) – autos ou reproduções que não contenham declarações das testemunhas, assistentes e partes civis Também já em sede de exceção há uma outra exceção - se contiverem declarações de testemunhas, assistentes ou partes civis, aplica-se o regime excecional do art. 356º, nº 2, a), b) e c), 3, 4 e 5. Assim, será permitida a leitura ou reprodução dessas declarações se tiverem sido prestadas perante o juiz - art. 356º, nº 2 e - tiverem sido prestadas para memória futura – 356º, nº 2, al. a), 271º e 294º - houver acordo entre MP, Defesa e Assistente - 356º, nº 2, al. b) - forem declarações obtidas mediante rogatórias ou precatórias – 356º, nº 2, al. c). E será permitida a leitura ou reprodução dessas declarações, se tiverem sido prestadas perante autoridade judiciária - art. 356º, nº 3, 4 e 5 MANUAL PLURIDISCIPLINAR 237 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 238 - - - com a finalidade de avivar a memória de quem declarar não recordar certos factos – art. 356º, nº 3, al. a) - havendo discrepâncias ou contradições entre as anteriormente feitas e as da audiência – art. 356º, nº 3, al. b) - havendo impossibilidade de comparência decorrente de anomalia psíquica superveniente, falecimento, impossibilidade duradoura (esgotadas as diligências para notificação) – art. 356º, nº 4 Porém, havendo acordo entre o MP, Defesa e Assistente as declarações podem ser lidas ou reproduzidas ainda que tenham tido lugar perante órgão de polícia criminal – art. 356º, nº 5. Nos termos do art. 356º, nº 6, é proibida, em qualquer caso, a leitura do depoimento prestado em inquérito ou instrução por testemunha que, em audiência, se tenha validamente recusado a depor, sendo certo que a visualização ou a audição de gravações ou atos processuais só é permitida quando o for a leitura do respetivo auto, nos termos já expostos – nº 8. A permissão de uma leitura, visualização ou audição e a sua justificação legal ficam a constar da ata, sob pena de nulidade – nº 9. (Helena Susano) 3. A SENTENÇA CONDENATÓRIA E A SUA EXECUÇÃO 3.1. A execução da pena principal 3.1.1. Após a realização da audiência de julgamento100, sairá o veredicto do tribunal singular (em tom de sentença assinada por um juiz) ou do tribunal coletivo (em forma de acórdão assinado por 3 juízes), elaborada com o formalismo constante do artigo 374º, do Código de Processo Penal, e sempre com leitura pública (cfr., a propósito da composição do tribunal, em termos de competência material e funcional, os artigos 14º e 16º, do Código de Processo Penal). Interessa-nos aqui abordar a decisão condenatória e já não a absolutória, como é bem de ver. O tipo legal em apreço (Violência Doméstica101) reza assim, na atual redação da lei: Artigo 152º - Violência doméstica 1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; Note-se que está prevista na lei a possibilidade de reabertura da audiência de julgamento para determinação da sanção, nos termos expostos no artigo 371º, do Código de Processo Penal, podendo até solicitar a realização de um relatório social ou de informações da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, documentos previstos no artigo 370º, do mesmo diploma. 101 O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica é complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física e psíquica e dignidade da pessoa humana e respeito por ela, em contexto de coabitação conjugal ou análoga, mesmo após cessar essa coabitação, distinguindo-se, assim, do crime de mera ofensa à integridade física. Para estes efeitos – cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, de 27 de junho de 2007 (Proc. Nº 256/05.2GCAVR. C1, relator: Gabriel Catarino in www.dgsi.pt) -, os maus tratos ínsitos no conceito de violência doméstica poderão ser as ações, condutas ou comportamentos agressivos que, através de distintas formas de expressão, produzem dano ou menoscabam determinados bens jurídicos das pessoas agredidas (vida, integridade física ou psíquica, liberdade, honra, integridade moral, etc.). Dever-se-á distinguir entre maus tratos físicos, quer dizer, qualquer agressão ou ato de acometimento físico que provoque lesão ou doença (hematomas, feridas, fraturas, queimaduras, etc.); abuso sexual, quer dizer, qualquer contacto sexual realizado a partir de uma posição de poder ou autoridade relativamente à vítima; maus tratos psíquicos, ou o que é o mesmo, qualquer ato ou conduta intencionais que produzam desvalorização, sofrimento ou agressão psicológica (insultos, vexações, crueldade mental, etc.), o que situa a vítima num clima de angústia que destrói o seu equilíbrio emocional. Assim, o terror psíquico persiste sob a forma de ameaça, espionagem e de interrogatórios. Este tipo de violência baseia-se no abuso emocional, com o denominador comum da vexação, exigências de obediência por parte do agressor, desprezo, burlas verbais (insultos e gestos), intimidação, humilhações em público, manipulações, abandono físico e económico, sexualidade vexatória, etc. Por violência física há-de entender-se toda e qualquer manifestação agressiva ou de maltrato (golpes, contusões, empurrões bruscos, bofetadas, pontapés, etc.) qualquer que seja a sua gravidade - deverá tratar-se sempre de um ataque, ainda que dissimulado, e independentemente das marcas ou sinais físicos que esse ataque possa deixar. A mesma similitude é exigida para a violência psíquica, ou seja, toda a violência exercida sobre a vivência psicológica de uma pessoa e que “de maneira mais ou menos relevante, incida sobre a psico do afectado, colocando diretamente em perigo a sua saúde mental”. Sobre esta temática, cfr. neste manual o ponto II. 4. 100 MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 239 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 240 - - 3.1.2. O artigo 71º, nº 1, do Código Penal estabelece o critério geral segundo o qual a medida da pena deve fazer-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. O nº 2 desse normativo estatui que, na determinação da pena, há que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido. A medida concreta da pena há-de ser, assim, o quantum que é encontrado, de forma intelectual pelo julgador, através do racional e ponderado funcionamento dos conceitos de «culpa» e «prevenção, sendo a culpa o limite inultrapassável da punição concreta e casuística. Dentro dos limites da moldura penal, há-de ser a culpa que fixa o limite máximo da pena que no caso será aplicada – a finalidade de prevenção geral de integração ou positiva orienta a determinação concreta da pena abaixo do limite máximo indicado pela culpa, aparentando-se mais com a prevenção especial de socialização, sendo esta a determinar, em última instância, a medida final da pena. Quando se fala em prevenção geral neste domínio, somos facilmente remetidos para as considerações de que este delito pretende obviar a uma das formas mais graves de violência, em que alguém é subjugado a uma vida de humilhações, forçado a aceitar as opiniões e as ofensas de outrem que se mostra fisicamente mais forte, num ciclo cada vez mais frequente, em termos estatísticos, e numa prática que deverá ser decisivamente afastada dos hábitos da nossa comunidade, num reforço da consciência jurídica comunitária, na qual o valor da igualdade entre cônjuges já se impõe há décadas, em termos de direito escrito. Também são elevadas as necessidades de prevenção geral no que tange ao sentimento comunitário de insegurança, face à constante violação da norma. A determinação da pena dentro dos limites da moldura penal é um ato de discricionariedade judicial, mas não uma discricionariedade livre como a da autoridade administrativa quando esta tem de eleger, de acordo com critérios de utilidade, entre várias decisões juridicamente equivalentes, mas antes de uma discricionariedade juridicamente vinculada. O exercício dessa discricionariedade pelo juiz na individualização da pena depende de princípios individualizadores em parte não escritos, que se inferem dos fins das penas em relação com os dados da individualização - trata-se da aplicação do Direito e, como acontece com qualquer outra operação nesse domínio, e na feliz fórmula de Simas Santos, «mesclam-se a discricionariedade e vinculação, com recurso a regras de direito escritas e não escritas, elementos descritivos e normativos, atos cognitivos e puras valorações». Neste domínio, o julgador tem de traduzir numa certa quantidade (exata) de pena os critérios jurídicos de determinação dessa mesma pena. De facto, a determinação da pena envolve diversos tipos de operações: a)- determinação da medida abstrata da pena (olhando para o tipo legal de crime em causa); b)- escolha, no caso de molduras compósitas alternativas de prisão ou multa, da pena principal, nos termos do artigo 70º, do Código Penal; c)- fixação do quantum da pena principal dentro da moldura respetiva, com base nos critérios do artigo 71º, do Código Penal; d)- ponderação da aplicação de uma pena de substituição; e)- fixação, finalmente, desta pena (sua medida concreta). MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR c) A progenitor de descendente comum em 1º grau; ou d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos. 3 - Se dos factos previstos no nº 1 resultar: a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos; b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos. 4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica. 5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância. 6 - Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício do poder paternal (leia-se hoje «RESPONSABILIDADES PARENTAIS»), da tutela ou da curatela por um período de um a dez anos. Os nos 1 a 3 preveem as molduras penas abstratas, com formas agravativas do tipo descritas nos nos 2 e 3, e os nos 4, 5 e 6, aludem às penas acessórias, suscetíveis de ser aplicadas nestas situações. Ou seja, quanto à pena principal está consagrada a aplicação de pena de prisão: - de um a cinco anos para o crime simples, - de dois a cinco anos para o crime qualificado (ato praticado contra menor, ato praticado diante de menor, ato praticado no domicílio comum/local da coabitação e ato praticado no domicílio de ex-cônjuge ou pessoa com quem tenha mantido relação análoga à dos cônjuges), - de dois a oito anos e de três a dez anos para os crimes agravados pelo resultado «lesão grave da integridade física» ou «morte», respetivamente. Perante a perfectibilização do tipo legal em causa, nos seus elementos objetivos e subjetivos (cfr., a este propósito, o artigo 14º, do Código Penal e a dimensão necessariamente dolosa do comportamento do agente, assente que, in casu, a negligência não é punível), há que passar à operação da determinação da MEDIDA da pena a aplicar ao agente do crime ( já não se coloca a questão da ESCOLHA da pena pois a lei só prevê, a título principal, a aplicação de pena de prisão). 241 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 242 - - Já vimos que a fase da escolha da pena é aqui inexistente pois o tipo só prevê prisão a título principal. Determinada a concreta medida da pena principal e, tendo esta de ser sempre uma pena de prisão, impõe-se verificar se ela pode ser objeto de substituição, em sentido próprio ou impróprio, e determinar a sua medida, havendo aqui que contar com penas de substituição detentivas (ou formas especiais de cumprimento da pena de prisão) como o regime de permanência na habitação, a prisão por dias livres e a prisão em regime de semidetenção, estas duas últimas vocacionadas para obstar aos efeitos nefastos da prisão contínua. Tais penas de substituição “podendo substituir qualquer uma das penas principais concretamente determinadas (…) se não são, em sentido estrito, penas principais (porque o legislador não as previu expressamente nos tipos de crime) …[são] penas que são aplicadas e executadas em vez de uma pena principal (penas de substituição)” - Jorge Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte geral II, As consequências jurídicas do crime, p. 91. Assim: a) se a pena principal aplicada for a de um ano de prisão [apenas se cogita a hipótese de se poder aplicar uma pena inferior a um ano em caso de atenuação especial da pena, à luz dos artigos 72º e 73º, do Código Penal102, na medida em que o limite mínimo – o mais baixo igual a um ano – é reduzido ao mínimo legal, ou seja, um mês, conforme aplicação combinada dos artigos 73º, nº 1, alínea b) e 41º, nº 1, do Código Penal], a prisão pode vir a ser substituída por: • multa (artigo 43º, nº 1, do Código Penal), hoje suscetível de ser, por sua vez, substituída por dias de trabalho, por força do estipulado e decidido pelo AFJ nº 7/2016 do STJ, datado de 21/3/2016. • regime de permanência na habitação (artigo 44º, nº 1, do Código Penal103); 102 103 Nomeadamente, em caso de tentativa (artigos 22º e 23º, do Código Penal). A vigilância eletrónica é o meio técnico de controlo à distância para fiscalização do cumprimento da medida de coação de obrigação de permanência na habitação, como tal permitido no País a partir da introdução do nº 2, do artigo 201º, do CPP, pela Lei nº 59/98, de 25 de agosto – é regulado pela Lei nº 122/99, de 20 de agosto (medida de coação que não se confunde, como é bem de ver, com o regime do artigo 44º, do CP). A Lei nº 59/2007 de 4.9 prevê que o disposto no nº 1, do artigo 1º, no artigo 2º, nos nos 2 a 5, do art. 3º, nos artigos 4º a 6º, nas alíneas b) e c), do nº 1, do art. 8º e no art. 9º, da Lei nº 122/99, de 20.8, que regula a vigilância eletrónica prevista no artigo 201º, do Código de Processo Penal, é correspondentemente aplicável ao regime de permanência na habitação previsto nos artigos 44º e 62º, do Código Penal. Isso mesmo agora também resulta do texto do artigo 2º, do Código da Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade, aprovada pela Lei nº 115/2009 de 12 de Outubro. A filosofia do preceito assenta numa evidente reação contra os consabidos inconvenientes das penas curtas de prisão (apoiando-se em razões de cariz humanitário na letra do seu nº 2), situando-se a meio caminho entre a suspensão da execução da pena de prisão e a reclusão efectiva do delinquente, a qual se pretende evitar, pela rutura com o ambiente familiar, social e profissional que representaria, verificados que sejam os seus pressupostos, mas sem deixar de prevenir-se a adequação desta pena substitutiva às finalidades das penas em geral. Mais do que um modo pelo qual pode ser executada a pena de prisão (na palavra aparentemente expressa do artigo 44º, nº 1, do CP), entendemos que estamos perante uma pena substitutiva da prisão (pelo menos em sentido impróprio), na linha aliás do expressamente declarado na Proposta de Lei nº 98/X, que esteve na base da revisão de 2007 do CP. Note-se que é o próprio Código da Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade, aprovado pela Lei nº 115/2009 de 12 de outubro, a não regular no âmbito do seu texto (246 artigos) a pena prevista no artigo 44º, do CP, apenas a ela se referindo no artigo 2º, da Lei (e não do Código por ela aprovada) – para fazer as correspondências entre esta pena e o regime da vigilância eletrónica da Lei nº 122/99, de 20/8 -, no artigo 120º/1, b) do seu texto (ao falar da possibilidade de modificação da execução da pena de prisão, transformando-a no regime de permanência de habitação e no artigo 188º (adaptação à liberdade condicional, que se refere ao já previsto no artigo 62º, do CP). O novo Código é claro – fala apenas da execução das penas privativas de liberdade e das medidas de segurança privativas MANUAL PLURIDISCIPLINAR • • • • prisão por dias livres (artigo 45º, nº 1, do Código Penal104); regime de semidetenção (artigo 46º, nº 1, do Código Penal) suspensão da execução da pena de prisão (artigo 50º, do Código Penal) prestação de trabalho a favor da comunidade (artigo 58º, do Código Penal). b) se a pena principal aplicada for superior a um ano até dois anos – inclusive - de prisão, a prisão pode vir a ser substituída por: • regime de permanência na habitação (artigo 44º, nº 2, do Código Penal); • suspensão da execução da pena de prisão (artigo 50º, do Código Penal) • prestação de trabalho a favor da comunidade (artigo 58º, do Código Penal). c) se a pena principal aplicada for superior a dois anos e até cinco anos – inclusive - de prisão, a prisão pode vir a ser substituída por: • suspensão da execução da pena de prisão (artigo 50º, do Código Penal). d) se a pena principal aplicada for superior a 5 anos, não há qualquer forma de a substituir. Note-se que, tendo em conta a natureza e os pressupostos de cada uma das diferentes penas substitutivas, damos a nossa concordância à seguinte ordem de ponderação: Substituição da pena de prisão por: 1º - multa (artigo 43º); 2º - suspensão da execução da pena (artigo 50º); 3º - prestação de trabalho a favor da comunidade (artigo 58º); 4º- regime de permanência na habitação (artigo 44º); 5º - prisão por dias livres (artigo 45º); 6º - regime de semidetenção (artigo 46º). 3.1.3. Catarina Fernandes, Helena Moniz e Teresa Magalhães, em artigo publicado na Revista do CEJ 2013-I («Avaliação e controlo do risco na violência doméstica»), opinam de liberdade em estabelecimentos prisionais ou em estabelecimentos destinados ao internamento de inimputáveis. Fala sempre em recluso, o que não é a situação do condenado em regime de permanência na habitação que, fora de qualquer dúvida, tem alguma liberdade – exatamente aquela que não tem o recluso que foi condenado em prisão efectiva. Como tal, estamos perante uma pena de substituição, claramente não privativa da liberdade (sob o ponto de vista jurídico-criminal) – na medida em que o arguido «já regressou a casa», na feliz expressão do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ de 21/10/2009 - no sentido que a distingue da efetiva reclusão em meio prisional. Veja-se ainda alguma firmada corrente jurisprudencial no sentido de não se aplicar a este regime de cumprimento da pena de prisão o instituto da liberdade condicional. Diga-se, assim, que tem sido entendido que o regime de permanência na habitação é uma pena autónoma, com natureza de pena substitutiva e que, por isso, só pode ser aplicada na sentença condenatória ou no recurso que vier a conhecer dessa mesma sentença. Ou seja, se o momento para decidir da aplicação do regime de permanência na habitação é o da sentença condenatória, não permite o artigo 44º, do C. Penal, que, tendo sido suspensa a execução da pena de prisão, possa ser perspetivada a aplicação daquele regime, em caso de posterior revogação da referida suspensão. 104 Note-se que a prisão por dias livres constituiu-se como uma pena de substituição detentiva (em sentido impróprio), enquadrando-se, a par do regime da semidetenção (artigo 46º, do CP), no quadro integrado dos esforços empreendidos para substituir as penas curtas de prisão (contínua) por medidas político-criminais mais aceitáveis. Tal pena só pode ter lugar quando anteriormente o tribunal tenha considerado, nos termos da parte final do artigo 43º, nº 1, que a execução da prisão é exigida pela necessidade de prevenir futuros crimes. Por isso, ou se aplica a prisão por dias livres, ou se suspende a execução da pena de prisão, não sendo possível a suspensão de uma pena de prisão por dias livres. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 243 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 244 - - que «embora o crime de violência doméstica seja punível com pena de prisão até 5 anos, os nossos tribunais raramente aplicam penas de prisão efetiva, a qual parece estar reservadas para os arguidos reincidentes, ou para situações especialmente graves. Pode dizer-se que, muitas vezes, as penas aplicadas pecam pela sua brandura pondo em dúvida que correspondam às exigências de prevenção consagradas no Código Penal – o que é patente quando se compara este tipo de criminalidade com os crimes contra o património ou os crimes contra as pessoas, em que nenhuma vinculação existe entre agressor e vítima». No fundo, dever-se-á cada vez mais pensar que uma pena criminal só cumpre a sua finalidade, se efetivamente for sentida pelo condenado, sob pena de se poder traduzir em “absolvição encapotada”, e não surtir o efeito pretendido pela lei – como bem se opina no Acórdão da Relação de Coimbra datado de 19/10/2011 (Proc. nº 58/08.4GATBU.C1, relator: Jorge Dias, in www.dgsi.pt), «só assim se entende a designação de penas, de outro modo não o seriam, nem constituiriam dissuasor necessário para prevenir as infrações, se não fossem sentidas como tal, quer pelo agente, quer pela comunidade em geral». Diga-se ainda que a sentença imposta num caso de violência doméstica se deverá mais determinar pela seriedade e gravidade da ofensa do que pela vontade expressa da vítima, partindo sempre da ideia de que estas ofensas cometidas em ambiente doméstico não são menos sérias do que as praticadas em contexto mais público. artigos 492º a 495º, do Código de Processo Penal 6º- prestação de trabalho a favor da comunidade: artigos 58º e 59º, do Código Penal artigos 496º e 498º, do Código de Processo Penal 7º- prisão: artigos 41º e 42º, do Código Penal artigos 477º, 478º e 479º, do Código de Processo Penal Código da Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade, aprovada pela Lei nº 115/2009, de 12 de outubro. 8º- Regras gerais – artigos 467º a 475º, do Código de Processo Penal. 3.1.4. Aplicada a pena, seja ela privativa ou não privativa da liberdade, uma vez transitada em julgado a decisão judicial onde a mesma está vertida, por não ter havido recurso da mesma, há que a executar, o que seguirá os trâmites previstos na lei (cfr. Código Penal, Código de Processo Penal e Código da Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade, aprovada pela Lei nº 115/2009, de 12 de outubro). Vejamos, agora, em esquema as normas que preveem o regime de execução de tais penas: 1º- Multa substitutiva de prisão: artigos 43º, 47º e 49º, nº 3, do Código Penal artigo 489º, do Código de Processo Penal 2º- regime de permanência na habitação: artigo 44º, do Código Penal artigo 487º, do Código de Processo Penal 3º- prisão por dias livres: artigo 45º, do Código Penal artigo 487º, do Código de Processo Penal artigo 125º, do Código da Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade, aprovada pela Lei nº 115/2009, de 12 de outubro 4º- regime da semidetenção: artigo 46º, do Código Penal artigo 487º, do Código de Processo Penal artigo 125º, do Código da Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade, aprovada pela Lei nº 115/2009, de 12 de outubro 5º- suspensão da execução da prisão: artigos 50º a 57º, do Código Penal 3.1.5. Uma palavra para o previsto «encontro restaurativo» constante da letra original da Lei nº 112/2009, de 16/9. Previa a Lei nº 112/2009 a mediação penal em matéria de violência doméstica, mas a operar apenas depois da decisão de suspensão provisória do processo ou em fase pós-sentencial, em linha com a delimitação restritiva feita na própria lei da mediação penal (Lei nº 21/2007, de 12 de junho, alterada num artigo pela Lei nº 29/2013, de 19 de abril), que reserva a sua aplicação para os crimes semipúblicos e particulares. Nem por isso, no entanto, e como bem opina Moreira das Neves, no artigo «Violência Doméstica – sobre a lei de prevenção, protecção e assistência às vítimas» (Agosto de 2010 - edição verbojurídico.net), deixa aquele «encontro restaurativo» de ser mediação penal. De facto, no seu artigo 39º, previa-se que durante a suspensão provisória do processo ou durante o cumprimento da pena pode ser promovido, nos termos a regulamentar, um encontro entre o agente do crime e a vítima, obtido o consentimento expresso de ambos, com vista a restaurar a paz social, tendo em conta os legítimos interesses da vítima, garantidas que estejam as condições de segurança necessárias e a presença de um mediador penal credenciado para o efeito. Pretendeu-se introduzir neste campo a possibilidade e a conveniência da denominada “mediação penal de adultos” no âmbito da violência doméstica entre cônjuges, ex-cônjuges ou entre o agente e pessoa com quem aquele mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, optando o legislador português por não admitir, nestes casos, a mediação penal como mecanismo de diversão processual, vindo antes a reconhecer a possibilidade de um “encontro restaurativo” entre o agente do crime de violência doméstica e a sua vítima – verificada a vontade de ambos –, em momento posterior à suspensão provisória do processo ou à condenação [vide, a este propósito o interessante estudo de Cláudia Cruz Santos sobre «Violência doméstica e mediação penal», publicado na Revista Julgar nº 12 (set/dez 2010)]. No fundo, este conceito de Justiça Restaurativa assenta no reconhecimento de que o processo judicial normalmente negligencia a dimensão relacional do crime, entendendo-se que esta dimensão só pode ser trabalhada no âmbito de interações controladas e reparativas entre as vítimas, os agressores e os membros da comunidade. Ora, a mudança das formas de tratar os conflitos e de responder às necessidades das partes envolvidas permite, sem dúvida, a criação de uma sociedade que abre um dinâmico MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 245 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 246 - - Traduzindo-se na não execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos (outrora era de 3 anos), tem-se entendido, com o apoio da melhor doutrina e jurisprudência, que a suspensão constitui uma verdadeira pena autónoma. Já assim se devia entender face à versão originária do Código Penal de 1982, como se infere das discussões no seio da Comissão Revisora do Código Penal, em que a suspensão da execução da pena, sob a designação de sentença condicional ou condenação condicional (que no projeto podia assumir a modalidade de suspensão da determinação concreta da duração da prisão ou de suspensão da execução total da pena concretamente fixada), figurava como uma verdadeira pena, ao lado da prisão, da multa e do regime de prova, no art. 47,º do Projeto de 1963, que continha o elenco das penas principais. No seio da Comissão, Eduardo Correia, autor do Projeto do Código Penal, teve a oportunidade de sustentar o caráter autónomo, de verdadeiras penas, da sentença condicional e do regime de prova, contrariando o entendimento de que seriam institutos especiais de execução da pena de prisão (Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Geral, Separata do B.M.J.). Figueiredo Dias, a propósito do Projeto de 1963 e do Código Penal de 1982, recorrendo a algumas expressões que haviam sido utilizadas na discussão travada na Comissão Revisora, assinalou: «(…) as “novas” penas, diferentes da de prisão e da de multa, são “verdadeiras penas” – dotadas, como tal, de um conteúdo autónomo de censura, medido à luz dos critérios gerais de determinação da pena (art. 72º) -, que não meros “institutos especiais de execução da pena de prisão” ou, ainda menos, “medidas de pura terapêutica social”. E, deste ponto de vista, não pode deixar de dar-se razão à conceção vazada no CP, aliás continuadora da tradição doutrinal portuguesa segundo a qual substituir a execução de uma pena de prisão traduz-se sempre em aplicar, na vez desta, uma outra pena» (Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Lisboa: Aequitas-Editorial Notícias, 1993, p. 90). O mesmo autor, definindo a suspensão da execução da pena de prisão como “a mais importante das penas de substituição” (e estas são, genericamente, as que podem substituir qualquer das penas principais concretamente determinadas), chama a atenção para o facto de, segundo o entendimento dominante na doutrina portuguesa, as penas de substituição constituírem verdadeiras penas autónomas (cfr. ob. cit., p. 91 e p. 329). Nas suas palavras, «a suspensão da execução da prisão não representa um simples incidente, ou mesmo só uma modificação da execução da pena, mas uma pena autónoma e, portanto, na sua aceção mais estrita e exigente, uma pena de substituição» (cfr. ob. cit., p. 339). A revisão do Código Penal, introduzida pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de março, reforçou o princípio da última ratio da pena de prisão, valorizou o papel da multa como pena principal e alargou o âmbito de aplicação das penas de substituição, muito embora não contemple, como classificações legais, as designações de «pena principal» e de «pena de substituição». A classificação das penas como principais, acessórias e de substituição continua a ser válida e operativa, ainda que a lei não utilize expressamente estas designações, a não ser no tocante às penas acessórias. Deste modo, sob o prisma dogmático, penas principais são as que constam das normas incriminadoras e podem ser aplicadas independentemente de quaisquer outras. Já as penas acessórias são as que só podem ser aplicadas conjuntamente com uma pena principal. Por seu lado, as penas de substituição são as penas aplicadas na sentença condenatória em substituição da execução de penas principais concretamente determinadas, como atrás já se viu. MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR espaço para a diversidade, liberdade, individualidade e igualdade entre as pessoas, vistas como portadoras de capacidades e de necessidades positivas. A supressão deste encontro restaurativo pela Lei nº 129/2015, de 3/9, foi certamente motivada pela Convenção de Istambul, que estabelece a proibição de processos alternativos de resolução de conflitos, no seu artigo 48º. Remete-se neste ponto para o que ficou escrito neste Manual, no seu ponto III 1.9.1. 3.2. Suspensão da execução da pena de prisão Uma das penas de substituição passível de aplicação a casos de condenação pela prática do crime de violência doméstica é a suspensão da execução da pena de prisão. Mercê da frequência com que é aplicada, há que lhe dar aqui um realce especial. 3.2.1. O regime jurídico da pena em causa está previsto nos artigos 50º a 57º do Código Penal e nos artigos 492º a 495º, do Código de Processo Penal. O artigo 50º, nº 1, do Código Penal – revisto em 2007 - dispõe: SECÇÃO II Suspensão da execução da pena de prisão Artigo 50º Pressupostos e duração 1) O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. 2) O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova. 3) Os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente. 4) A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições. 5) O período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão. 247 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 248 - - Se assim é, ou seja, se a pena de suspensão de execução da prisão é uma pena de substituição em sentido próprio (em contraste com as penas de substituição detentivas ou em sentido impróprio), temos como pressuposto material da sua aplicação que o tribunal, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, conclua pela formulação de um juízo de prognose favorável ao agente que se traduza na seguinte proposição: a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Note-se que o período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão. 3.2.2. Esta pena assim aplicada pode revestir: • a modalidade simples (artigo 50º, do Código de Processo Penal), • a forma de subordinação ao cumprimento de deveres e/ou regras de conduta (artigos 51º e 52º, do Código de Processo Penal), • o acompanhamento de um regime de prova (artigos 53º e 54º, do Código Penal). No segundo caso, a imposição de deveres e regras de conduta105 visa a reparação do mal do crime e a ressocialização do condenado, evitando que cometa novos crimes. Está sujeita a uma dupla limitação, na medida em que não pode violar os direitos fundamentais do condenado e deve ser adequada e proporcional às finalidades visadas. Em qualquer situação, torna-se imperiosa uma rigorosa seleção de deveres ou regras de conduta, devida e ajustadamente exequíveis, cuja aplicação deve ter em conta a imagem global dos factos e deve adaptar-se às exigências de prevenção geral e especial exigidas pelo caso. Continuam Catarina Fernandes/Helena Moniz/Teresa Magalhães, no artigo já aqui identificado: «Nas situações menos graves, pode ser suficiente a imposição de deveres destinadas a reparar o mal do crime, quer mediante o pagamento de uma indemnização, ou da prestação de uma satisfação moral adequada — um e outro tendentes a reparar os danos causados diretamente à vítima —, quer mediante a entrega de certa quantia ao Estado ou a instituições públicas ou privadas de solidariedade social. Sempre que exista perigo de repetição das condutas criminosas, poderá ser adequado impor ao condenado (cumulativa ou separadamente) entre outras regras de conduta, a obrigação de não permanência na residência onde o crime tiver sido cometido, ou onde habite a vítima, a obrigação de não contactar com a vítima ou outras pessoas, ou a obrigação de não frequentar certos lugares e meios, não residir ou residir em certos locais, devendo ser usados meios técnicos de controlo à distância para garantir o seu efetivo cumprimento (nos termos previstos no artigo 35º, da citada Lei nº 112/2009 e na Lei nº 33/2011, de 2 de setembro). 105 Sendo muito normal a aplicação da pena suspensa na sua execução na condição de o condenado se sujeitar a consultas médicas, à vigilância da DGRSP e à frequência de ações ou cursos sobre violência doméstica. Uma nota ainda para a possibilidade de aplicação de programas como o PAVD (Programa para agressores de violência doméstica) – coordenado, em parceria, pela DGRSP e pela CIG –, com uma duração mínima de 18 meses, e que tem como objetivo a promoção, nos agressores conjugais, da consciência e assunção da responsabilidade pelo seu comportamento criminal, bem como a aprendizagem de estratégias alternativas ao comportamento violento, com vista à diminuição da reincidência, ou o CONTIGO que agrega a implementação articulada de ações, quer sobre a realidade da vítima, quer sobre a realidade do agressor, partindo de um modelo de intervenção cognitivo-comportamental. MANUAL PLURIDISCIPLINAR Caso o arguido tenha utilizado armas, ameaçado utilizá-las, ou a elas tenha um acesso facilitado, deverá ser-lhe exigido que não adquira, não use, ou entregue, tais objetos, o mesmo sucedendo com quaisquer outros objetos capazes de facilitar a prática de outro crime, nomeadamente, produtos tóxicos. Se a vítima e o condenado mantêm o relacionamento, se este tem problemas de consumo abusivo de substâncias, ou algum tipo de perturbação psicológica ou psiquiátrica, ou ainda quando exista um padrão relacional disfuncional, poderá ser muito pertinente a submissão do condenado a programas de tratamento ou, eventualmente, a prestação de serviço de interesse público, cumulativa ou separadamente». No que tange à quantia cujo pagamento à ofendida foi imposto ao condenado como condição da suspensão da execução da pena, urge dizer que tal constitui a imposição de um dever que reforça o sancionamento penal, e como tal não está na disponibilidade da ofendida renunciar ao seu recebimento. No terceiro caso, esse regime de prova é obrigatório quando o condenado tiver menos de 21 anos de idade no momento da prática dos factos, ou quando a pena de prisão concretamente aplicada seja superior a três anos. Tal regime assenta num plano de reinserção social, cuja elaboração compete aos serviços de reinserção social e é aprovado pelo tribunal, casando deveres e regras de conduta adequados ao aperfeiçoamento do sentimento de responsabilidade social do condenado. Cabe aos serviços de reinserção social – DGRSP - acompanhar o condenado e fiscalizar o cumprimento desse plano, bem como dos deveres e regras de conduta. 3.2.3. Nos termos legais, caso o condenado não cumpra culposamente os deveres e regras de conduta impostos, ou o plano de reinserção social, o tribunal pode: • fazer-lhe uma solene advertência [artigo 55º, alínea a), do CP], • exigir garantias de cumprimento das obrigações que condicionam a suspensão [artigo 55º, alínea b)], • impor novos deveres ou regras de conduta, ou introduzir exigências acrescidas no plano de reinserção [artigo 55º, alínea c)], • e prorrogar o período de suspensão [artigo 55º, alínea d)]. Pode ainda o Tribunal, como última medida, e após um contraditório eficaz106, determinar a revogação da pena de substituição da execução da pena de prisão, sempre que o condenado, no seu decurso, infringir, de forma grosseira ou repetida [culpa esta que não se pode presumir, antes tendo de resultar de factos ou elementos concretos], os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social [artigo 56º, nº 1, alínea a) do CP] ou cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar, por isso, que as 106 Tem havido muita produção jurisprudencial no sentido de considerar obrigatória a audição, presencial, do condenado, aquando da tomada de posição quanto à sorte da suspensão decretada – tem-se entendido que a aludida falta constitui nulidade insanável, cominada pelo artigo 119º, al. c), do CPP. Contudo, esta obrigação de audição presencial do arguido, imposta pelo artigo 495º, nº 2, do CPP, restringe-se à falta de cumprimento das condições de suspensão da execução da pena de prisão, sendo, por isso, inaplicável aos casos em que o agente cometeu, no decurso da suspensão, novo crime, pelo qual foi condenado. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 249 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 250 - - finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas [artigo 56º, nº 1, alínea b)]107. A escolha da medida a tomar não deve depender da culpa no incumprimento, mas dum juízo de prognose relativo à probabilidade de serem alcançadas as finalidades que fundamentaram a suspensão. Esta violação grosseira dos deveres ou regras de conduta impostos, de que se fala na alínea a), do nº 1, do artigo 56º, do Código Penal, há-de constituir uma indesculpável atuação, em que o comum dos cidadãos não incorra e que não mereça ser tolerada nem desculpada; só a inconciliabilidade do incumprimento com a teleologia da suspensão da pena é que deve conduzir à respetiva revogação. Importa, contudo, salientar que a infração grosseira dos deveres que são impostos ao arguido não exige nem pressupõe necessariamente um comportamento doloso, bastando a infração que seja o resultado de um comportamento censurável de descuido ou leviandade. A revogação implica, assim, que o condenado tenha de cumprir a pena de prisão fixada na sentença ou no acórdão, sem que o condenado possa exigir a restituição de prestações que haja efetuado. Decorrido o prazo de suspensão, não havendo motivos que conduzam à revogação, a pena é declarada extinta. Se, findo o período da suspensão, se encontrar pendente processo por crime que possa determinar a sua revogação ou incidente por falta de cumprimento dos deveres, das regras de conduta ou do plano de reinserção, a pena só é declarada extinta quando o processo ou o incidente findarem e não houver lugar à revogação ou à prorrogação do período da suspensão. 3.2.4. Na dissertação do 2º ciclo de Estudos conducentes ao grau de Mestre em Direito Criminal (Universidade Católica do Porto), «A violência doméstica e as penas acessórias», da autoria de Cristina Cardoso, deixa-se escrito o seguinte: «Entendemos ainda ser relevante afirmar que, na prática – e tal resulta como já referimos da nossa experiência profissional – a pena de prisão aplicada é na esmagadora maioria das situações suspensa na sua execução, muitas vezes com regime de prova, mas sobretudo com imposição de regras de conduta, algumas com sujeição a deveres, das quais se destacam, entre as que têm conteúdo positivo, a frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica que está a ser dinamizado pela Direcção-Geral de Reinserção Social e a sujeição a tratamento de desintoxicação de álcool ou de drogas, e entre as que têm conteúdo negativo, a proibição de contactar por qualquer forma com ela ou de se aproximar da vítima e a proibição de residir na casa desta». 107 Tem-se entendido que a condenação pela prática de um crime cometido no decurso do período de suspensão da execução de uma pena de prisão, não determina automaticamente a revogação da suspensão, só tal determinando quando dela resulte que as finalidades que presidiram à suspensão se tornaram inalcançáveis. Por isso, se na última condenação foi de novo feito um juízo de prognose favorável e, por via disso, voltou a suspender-se a execução pena de prisão, é contraindicado proceder-se à revogação daquela suspensão. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 3.3. As penas acessórias Sempre que haja condenação pela prática de crime de violência doméstica, podem ser aplicadas penas acessórias, previstas nos nº 4, 5 e 6, do artigo 152º, do Código Penal108: 1) Proibição de contacto com a vítima, que deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância109, pelo período de seis meses a cinco anos; 2) Proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos; 3) Obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da Violência Doméstica110; 4) Inibição do exercício das responsabilidades parentais111, da tutela ou curatela, por um período de 1 a 10 anos (neste caso, há que atentar ainda no teor do nº 5, do artigo 499º, do Código de Processo Penal). Estas penas acessórias farão muito mais sentido nos casos de condenação em pena efetiva, pois, nos casos de suspensão da execução da pena de prisão, os mesmos objetivos podem ser melhor alcançados com a imposição de deveres e regras de conduta ou com o regime de prova. A aplicação de penas acessórias implica que os preceitos que as consagram constem da acusação ou da pronúncia - não constando de tais peças processuais a referência às mesmas, a sua pretendida aplicação obrigará o julgador a fazer uma comunicação da alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação/pronúncia, sob pena de nulidade da sentença, por violação do direito de defesa do arguido (cfr. o lugar paralelo do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 7/2008, do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 25/06/2008 e publicado no DR, Iª série, nº 146, de 30/07/2008, pp. 5138-5145)112. Na realidade, em conformidade com o disposto no artigo 65º, nº 1, do Código Penal, «nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de direitos civis, profissionais ou políticos», pelo que a aplicação das penas acessórias que o nº 2, do mesmo preceito admite, não pode ocorrer de forma automática, por mero efeito da condenação numa 108 As penas acessórias não deixam de ser consideradas como consequências jurídicas do crime, razão pela qual só podem ser pronunciadas na sentença ou no acórdão condenatório juntamente com uma pena principal, apesar de a sua aplicação visar finalidades específicas, de prevenção geral e defesa contra a perigosidade individual, e depender de pressupostos autónomos ligados aos factos praticados e da valoração dos critérios gerais de determinação da pena, incluindo a culpa. Defende-se, pois, que estas penas acessórias devem ser dotadas de uma moldura penal específica, que permita, em cada caso, a tarefa judicial de determinação da sua medida concreta. 109 Devendo, a final, ser remetida cópia da decisão à DGRSP com a finalidade de se dar cumprimento à pena acessória decretada, através da implementação de meios técnicos de controlo à distância. 110 Pode esta norma ser considerada inconstitucional pelo facto de não estar fixada a moldura da pena desta sanção acessória (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2008, p. 407). Esta pena inculca a ideia de que o legislador não se preocupou só com a vítima mas também demonstrou uma vontade de intervir junto do agressor de forma educacional e ressocializadora. Desta forma, se procura o equilíbrio entre a punição e o tratamento, entre a proteção da vítima e a intervenção sobre o agressor, considerando que, quer a vítima quer o agressor, são duas faces distintas do mesmo problema complexo, que é a violência doméstica, e que o acompanhamento do agressor pode até ser a melhor forma de proteger esta e outras vítimas, evitando-se a indesejada reincidência. 111 Onde se lê na norma «poder paternal», dever-se-á hoje ler «Responsabilidades Parentais», após a entrada em vigor da Lei nº 61/2008, de 31/10, que veio rever muitas das normas do Código Civil. 112 Cfr. ainda Acórdão da Relação do Porto de 1/2/2012 (Proc. nº 170/10.0PBLMG.P1, relatora: Eduarda Lobo, in www.dgsi.pt) MANUAL PLURIDISCIPLINAR 251 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 252 - - pena principal, sem que previamente se tenha dado oportunidade ao arguido de, sobre ela, se pronunciar. A inobservância das penas acessórias pode fazer o agente incorrer na prática do crime de violação de proibições ou interdições p. e p. pelo artigo 353º, do Código Penal. É fácil de concluir que muitas das regras de conduta que são condição da suspensão da execução de uma pena de prisão têm um conteúdo idêntico ao de algumas penas acessórias, constatando-se que muitos tribunais aplicam estas obrigações/proibições enquanto condições de suspensão da execução da pena principal e já não como penas acessórias. Na realidade, torna-se claro que a suspensão da execução da pena, subordinada à condição de proibição de contactar com a vítima, incluindo ou não o afastamento da residência e do local de trabalho desta, ou de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de violência doméstica, tem um maior grau de garantia de cumprimento pelo condenado pois, em caso de inobservância de tal dever/obrigação, poderá ver revogada tal suspensão e ter de cumprir a pena de prisão. 3.4. Formas especiais de processo penal 3.4.1. O arguido pode ser submetido a julgamento, consoante as circunstâncias, em processo sumário, abreviado, sumaríssimo ou comum (singular ou coletivo). O processo comum é a normal forma de processo utilizada, sempre que não seja aplicável uma das formas especiais previstas na lei. 3.4.2. Vejamos agora as formas especiais de processo, suscetíveis de ver julgados, sob a sua égide e formalismo, crimes de violência doméstica. 3.4.2.1. Comecemos pelo processo sumário (artigos 381º a 391º, do CPP). a)- Dispunha assim o artigo 381º, do CPP (revisto pelaLei nº 20/2013, de 21/02): Artigo 381º Quando tem lugar 1) São julgados em processo sumário os detidos em flagrante delito, nos termos dos artigos 255º e 256º: a) Quando à detenção tiver procedido qualquer autoridade judiciária ou entidade policial; ou b) Quando a detenção tiver sido efetuada por outra pessoa e, num prazo que não exceda duas horas, o detido tenha sido entregue a uma autoridade judiciária ou entidade policial, tendo esta redigido auto sumário da entrega. 2) O disposto no número anterior não se aplica aos detidos em flagrante delito por crime a que corresponda a alínea m) do artigo 1º ou por crime previsto no título iii e no capítulo i do título v do livro ii do Código Penal e na Lei Penal Relativa às Violações do Direito Internacional Humanitário. MANUAL PLURIDISCIPLINAR Como se vê, deixou de se fazer menção da exigência de se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo não seja superior a 5 anos, mesmo em caso de concurso de infrações. Tratava-se de uma forma especial de processo penal, simplificada, destinada a julgar pessoas que tinham sido detidas em flagrante delito e caso se tratasse de crimes a que, em regra, não fosse aplicável pena superior a 5 anos de prisão – a ideia era e ainda é realizar-se o julgamento num prazo relativamente curto após a detenção. Não queremos aqui discutir a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da norma em causa (havendo já vários arestos do Tribunal Constitucional e das Relações a tal considerar inconstitucional) mas apenas descrever os trâmites processuais penais previstos na lei que esteve em vigor até há muito pouco tempo, assente que, com o figurino legal anterior ao atual, era possível, em abstrato, julgar, sob a forma de processo penal, um crime de violência doméstica, seja qual fosse a sua configuração. Convém dizer que foi entretanto aprovada em janeiro de 2016, em bloco, em votação final global, a eliminação da possibilidade de julgamentos em processo sumário aplicável a crimes puníveis com pena de prisão superior a cinco anos. O texto final saído da Comissão de Assuntos Constitucionais - agregando diplomas do PS, Bloco de Esquerda e PCP aprovados na generalidade a 11 de dezembro passado - teve a oposição do PSD e do CDS-PP, mas passou com o apoio das bancadas socialista, bloquista, comunista, de “os Verdes” e do deputado do PAN. Durante a fase de discussão na generalidade, tendo em vista a revogação da lei aprovada pelo anterior executivo PSD/CDS-PP, o PS alegou que o Tribunal Constitucional considerou inconstitucional a alteração legislativa de 2013 que permitiu a realização de julgamento imediato, em processo sumário (ou seja em processo simplificado) de factos puníveis com pena superior a cinco anos, sempre que existisse flagrante delito. Declarada a inconstitucionalidade da norma aprovada pela então maioria parlamentar PSD/CDS-PP, o PS concluiu assim que se impunha a “necessidade de, tão rapidamente, quanto possível, se proceder à reposição da coerência sistemática relativa à competência entre o tribunal singular (um único juiz a julgar) e o tribunal coletivo (três juízes) e, em particular, expurgar do Código de Processo Penal (CPP) a inconstitucionalidade material que afeta e se repercute no regime jurídico desta forma especial de processo”. Temos hoje, assim, nova lei – a nova redacção do artigo 381º do Código de Processo Penal reza, agora, assim, após a revisão da Lei nº 1/2016, de 25/2: 1) São julgados em processo sumário os detidos em flagrante delito, nos termos dos artigos 255.º e 256.º, por crime punível com pena de prisão cujo limite máximo não seja superior a 5 anos, mesmo em caso de concurso de infrações: a) Quando à detenção tiver procedido qualquer autoridade judiciária ou entidade policial; ou b) Quando a detenção tiver sido efetuada por outra pessoa e, num prazo que não exceda duas horas, o detido tenha sido entregue a uma autoridade judiciária ou entidade policial, tendo esta redigido auto sumário da entrega. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 253 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 254 - - 2) São ainda julgados em processo sumário, nos termos do número anterior, os detidos em flagrante delito por crime punível com pena de prisão de limite máximo superior a 5 anos, mesmo em caso de concurso de infrações, quando o Ministério Público, na acusação, entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a 5 anos. b)- A autoridade judiciária, se não for o Ministério Público, ou a entidade policial que tiverem procedido à detenção ou a quem tenha sido efetuada a entrega do detido apresentam-no imediatamente, ou no mais curto prazo possível, sem exceder as 48 horas, ao Ministério Público junto do tribunal competente para julgamento, que assegura a nomeação de defensor ao arguido. Se o arguido não exercer o direito ao prazo para preparação da sua defesa, o Ministério Público, depois de, se o julgar conveniente, o interrogar sumariamente, apresenta-o imediatamente, ou no mais curto prazo possível, ao tribunal competente para julgamento, exceto nos casos previstos no nº 4 e nos casos previstos nos nos 1 e 2, do artigo 384º. Se o arguido tiver exercido o direito ao prazo para a preparação da sua defesa, o Ministério Público pode interrogá-lo nos termos do artigo 143º, para efeitos de validação da detenção e libertação do arguido, sujeitando-o, se for caso disso, a termo de identidade e residência, ou apresenta-o ao juiz de instrução para efeitos de aplicação de medida de coação ou de garantia patrimonial, sem prejuízo da aplicação do processo sumário. Se tiver razões para crer que a audiência de julgamento não se pode iniciar nos prazos previstos no nº 1 e na alínea a), do nº 2, do artigo 387º, designadamente por considerar necessárias diligências de prova essenciais à descoberta da verdade, o Ministério Público profere despacho em que ordena de imediato a realização das diligências em falta, sendo correspondentemente aplicável o disposto no número anterior. Nos casos previstos nos nos 3 e 4, do artigo 382º, o Ministério Público notifica o arguido e as testemunhas para comparecerem, decorrido o prazo solicitado pelo arguido para a preparação da sua defesa, ou o prazo necessário às diligências de prova essenciais à descoberta da verdade, em data compreendida até ao limite máximo de 20 dias após a detenção, para apresentação a julgamento em processo sumário. Note-se que o arguido que não se encontre sujeito a prisão preventiva é notificado com a advertência de que o julgamento se realizará mesmo que não compareça, sendo representado por defensor para todos os efeitos legais. c)- Pode o Ministério Público, nos casos em que se verifiquem os pressupostos a que aludem os artigos 280º e 281º, do CPP, oficiosamente ou mediante requerimento do arguido ou do assistente, determinar, com a concordância do juiz de instrução, respetivamente, o arquivamento ou a suspensão provisória do processo. Para os efeitos do disposto no nº 1, do artigo 384º, o Ministério Público pode interrogar o arguido nos termos do artigo 143º, para efeitos de validação da detenção e libertação do arguido, sujeitando-o, se for caso disso, a termo de identidade e residência, devendo MANUAL PLURIDISCIPLINAR o juiz de instrução pronunciar-se no prazo máximo de 48 horas sobre a proposta de arquivamento ou suspensão. Se não for obtida a concordância do juiz de instrução, é correspondentemente aplicável o disposto nos nos 5 e 6 do artigo 382º, salvo se o arguido não tiver exercido o direito a prazo para apresentação da sua defesa, caso em que será notificado para comparecer no prazo máximo de 15 dias após a detenção. Nos casos previstos no nº 4, do artigo 282º, o Ministério Público deduz acusação para julgamento em processo abreviado no prazo de 90 dias a contar da verificação do incumprimento ou da condenação (a nosso ver, a data da “verificação do incumprimento” será a data do despacho que a “verificou”113). d)- Decidida a realização de julgamento em processo sumário, eis o seu processamento (cfr. os artigos 387º e 389º, do CPP). O Ministério Público pode substituir a apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que tiver procedido à detenção, exceto em caso de crime punível com pena de prisão cujo limite máximo seja superior a 5 anos, ou em caso de concurso de infrações cujo limite máximo seja superior a 5 anos de prisão, situação em que deverá apresentar acusação. Caso seja insuficiente, a factualidade constante do auto de notícia pode ser completada por despacho do Ministério Público proferido antes da apresentação a julgamento, sendo tal despacho igualmente lido em audiência. Nos casos em que tiver considerado necessária a realização de diligências, o Ministério Público, se não apresentar acusação, deve juntar requerimento donde conste, consoante o caso, a indicação das testemunhas a apresentar, ou a descrição de qualquer outra prova que junte, ou protesta juntar, neste último caso com indicação da entidade encarregue do exame, ou perícia, ou a quem foi requisitado o documento. A acusação, a contestação, o pedido de indemnização e a sua contestação, quando verbalmente apresentados, são documentados na ata, nos termos dos artigos 363º e 364º. Note-se que a apresentação da acusação e da contestação substituem as exposições introdutórias referidas no artigo 339º. Finda a produção de prova, a palavra é concedida por uma só vez, ao Ministério Público, aos representantes dos assistentes e das partes civis e ao defensor pelo prazo máximo de 30 minutos. 113 E isto por estas duas ordens de razões: 1º- A tempestividade da utilização do processo abreviado, no nº 2, do artigo 391º-B (os mesmos 90 dias), também não é estabelecida por referência à ocorrência de factos, mas à aquisição da notícia do crime ou à apresentação de queixa (logo, neste caso, 6 meses+90 dias após os factos, no limite); 2º- Não são, pois, razões de pura frescura da prova (um dos fundamentos do sumário) que fundamentam desde 2007 a possibilidade da acusação em abreviado, o que é claro também na outra razão de utilização do abreviado após suspensão incumprida – a condenação por factos da mesma natureza ocorridos no período da suspensão, cuja distância temporal está dependente das vicissitudes deste segundo processo. O que nos leva a dizer que o prazo de 90 dias para deduzir acusação é um prazo perentório para o MP, mas contado da verificação judiciária do fundamento da revogação. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 255 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 256 - - e)- A sentença é logo proferida oralmente e contém, nos termos do artigo 389º-A do CPP: • a indicação sumária dos factos provados e não provados, que pode ser feita por remissão para a acusação e contestação, com indicação e exame crítico sucintos das provas; • a exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão; • em caso de condenação, os fundamentos sucintos que presidiram à escolha e medida da sanção aplicada; • o dispositivo, nos termos previstos nas alíneas a) a d), do nº 3, do artigo 374º. O dispositivo é sempre ditado para a ata. A sentença é, sob pena de nulidade, documentada nos termos dos artigos 363º e 364º, sendo sempre entregue cópia da gravação ao arguido, ao assistente e ao Ministério Público no prazo de 48 horas, salvo se aqueles expressamente declararem prescindir da entrega, sem prejuízo de qualquer sujeito processual a poder requerer nos termos do nº 4, do artigo 101º. Se for aplicada pena privativa da liberdade (logo, não abrangendo uma pena suspensa na sua execução) ou, excecionalmente, se as circunstâncias do caso o tornarem necessário, o juiz, logo após a discussão, elabora a sentença por escrito e procede à sua leitura. f)- O tribunal só remete os autos ao Ministério Público para tramitação sob outra forma processual quando (cfr. artigo 390º, do CPP): • se verificar a inadmissibilidade legal do processo sumário; • relativamente aos crimes previstos nos nos 1 e 2, do artigo 13º, o arguido ou o Ministério Público, nos casos em que usaram da faculdade prevista nos nos 3 e 4, do artigo 382º, ou o assistente, no início da audiência, requererem a intervenção do tribunal de júri; • não tenha sido possível, por razões devidamente justificadas, a realização das diligências de prova necessárias à descoberta da verdade nos prazos a que aludem os nos 9 e 10, do artigo 387º. Se, depois de recebidos os autos, o Ministério Público deduzir acusação em processo comum com intervenção do tribunal singular, em processo abreviado, ou requerer a aplicação de pena ou medida de segurança não privativas da liberdade em processo sumaríssimo, a competência para o respetivo conhecimento mantém-se no tribunal competente para o julgamento sob a forma sumária. notícia ou após realizar inquérito sumário, deduz acusação para julgamento em processo abreviado. 2 - São ainda julgados em processo abreviado, nos termos do número anterior, os crimes puníveis com pena de prisão de limite máximo superior a 5 anos, mesmo em caso de concurso de infrações, quando o Ministério Público, na acusação, entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a 5 anos». Para efeitos do disposto no nº 1, considera-se que há provas simples e evidentes quando: • o agente tenha sido detido em flagrante delito e o julgamento não puder efetuar-se sob a forma de processo sumário; • a prova for essencialmente documental e possa ser recolhida no prazo previsto para a dedução da acusação; ou • a prova assentar em testemunhas presenciais com versão uniforme dos factos. A acusação do Ministério Público deve conter os elementos a que se refere o nº 3, do artigo 283º, podendo a identificação do arguido e a narração dos factos ser efetuadas, no todo ou em parte, por remissão para o auto de notícia ou para a denúncia. Sem prejuízo do disposto no nº 4, do artigo 384º, a acusação é deduzida no prazo de 90 dias a contar da: • aquisição da notícia do crime, nos termos do disposto no artigo 241º, tratando-se de crime público; ou • apresentação de queixa, nos restantes casos. Note-se que se o procedimento depender de acusação particular, a acusação do Ministério Público tem lugar depois de deduzida acusação nos termos do artigo 285º, e que é correspondentemente aplicável em processo abreviado o disposto nos artigos 280º a 282º, do CPP. Estipula o artigo 391º-E, do CPP, que o julgamento é regulado pelas disposições relativas ao julgamento em processo comum, com as alterações previstas nesse artigo, adiantando o artigo seguinte que é correspondentemente aplicável à sentença o preceituado no artigo 389º-A, do CPP. 3.4.2.3. O processo sumaríssimo é a outra forma especial de processo penal, e que se carateriza pela redução de prazos e pela supressão de certas fases processuais (normatizada nos termos dos artigos 392º a 398º, do CPP). 1) Em caso de crime punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou só com pena de multa, o Ministério Público, por iniciativa do arguido ou depois de o ter ouvido e quando entender que ao caso deve ser concretamente aplicada pena ou medida de segurança não privativas da liberdade, requer ao tribunal que a aplicação tenha lugar em processo sumaríssimo. 2) Se o procedimento depender de acusação particular, o requerimento previsto no número anterior depende da concordância do assistente. 3.4.2.2. Já o processo abreviado é outra forma especial de processo penal, a aplicar em casos mais restritos (cfr. artigos 391º-A a 391º-G, do CPP), mas mesmo assim passíveis de se reconduzirem a um processo por violência doméstica (cfr. artigo 152º, nº 1, do CP). Isso mesmo dispõe o artigo 391º-A, do CPP: «1 - Em caso de crime punível com pena de multa ou com pena de prisão não superior a 5 anos, havendo provas simples e evidentes de que resultem indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, em face do auto de O requerimento do Ministério Público é escrito e contém as indicações tendentes à identificação do arguido, a descrição dos factos imputados e a menção das disposições legais MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 257 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 258 - - violadas, a prova existente e o enunciado sumário das razões pelas quais entende que ao caso não deve concretamente ser aplicada pena de prisão, terminando com a indicação precisa: • das sanções concretamente propostas; • da quantia exata a atribuir a título de reparação, nos termos do disposto no artigo 82º-A, quando este deva ser aplicado. O juiz rejeita o requerimento e reenvia o processo para outra forma que lhe caiba: • quando for legalmente inadmissível o procedimento; • quando o requerimento for manifestamente infundado, nos termos do disposto no nº 3, do artigo 311º; • quando entender que a sanção proposta é manifestamente insuscetível de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (neste caso, o juiz pode, em alternativa ao reenvio do processo para outra forma, fixar sanção diferente, na sua espécie ou medida, da proposta pelo Ministério Público, com a concordância deste e do arguido). Se o juiz reenviar o processo para outra forma, o requerimento do Ministério Público equivale, em todos os casos, à acusação. O juiz, se não rejeitar o requerimento nos termos do artigo anterior: • nomeia defensor ao arguido que não tenha advogado constituído ou defensor nomeado; e • ordena a notificação ao arguido do requerimento do Ministério Público e, sendo caso disso, do despacho a que se refere o nº 2, do artigo anterior, para, querendo, se opor – nomeadamente, por simples declaração - no prazo de 15 dias [feita por contacto pessoal, nos termos da alínea a), do nº 1, do artigo 113º, devendo conter obrigatoriamente a informação do direito de o arguido se opor à sanção e da forma de o fazer, a indicação do prazo para a oposição e do seu termo final, o esclarecimento dos efeitos da oposição e da não oposição a que se refere o artigo 397º, do CPP]. Quando o arguido não se opuser ao requerimento, o juiz, por despacho, procede à aplicação da sanção e à condenação no pagamento de taxa de justiça, tal valendo como sentença condenatória, não recorrível. Se o arguido deduzir oposição, o juiz ordena o reenvio do processo para outra forma que lhe caiba, equivalendo à acusação, em todos os casos, o requerimento do Ministério Público formulado nos termos do artigo 394º. Ordenado o reenvio, o arguido é notificado da acusação, bem como para requerer, no caso de o processo seguir a forma comum, a abertura de instrução. 3.4.2.4. Como bem se compreende, vendo a sua célere tramitação, os processos especiais não estão ontologicamente vocacionados para julgar agentes do crime de violência doméstica, aplicando-se apenas de forma acentuadamente residual, na medida em que o delito em causa é, muitas vezes, complexo e hiperfáctico, havendo que proceder a uma mais morosa investigação criminal com vista à descoberta do universo de ofensas de que padeceu – ou padece ainda -, às mãos do agente, a vítima de violência doméstica. MANUAL PLURIDISCIPLINAR A doutrina também se pronuncia sobre este assunto, dissertando sobre a inconveniência da adoção destas formas de processo nestas situações de violência doméstica. João Conde Correia, em «Os processos sumários e o caráter simbólico de uma justiça dita imediata», incluído na obra «As alterações de 2013 aos Códigos Penal e de Processo Penal: uma reforma cirúrgica?», com coordenação de André Lamas Leite, Coimbra Editora, 2013, opina o seguinte: «Julgar, precipitadamente, pequenas parcelas daquela conduta global [v.g. pedaços do crime de violência doméstica (…)], poderá, assim, prejudicar a economia processual (gerando repetições inúteis), desencadear contradições inconciliáveis [artigo 449º/1, c), do CPP], perturbar a avaliação conjunta dos factos e da personalidade do agente (artigo 77º/1, do CP) e mesmo violar o ne bis in idem. Numa tese mais ortodoxa, poderá, por isso mesmo, até impedir a apreciação futura das restantes parcelas daquela conduta, eventualmente muito mais graves». * E, aqui chegados, os dados estatísticos não nos deixam faltar à verdade! Oriundos do último relatório «Violência Doméstica – 2014 - Relatório anual de monitorização», oriundo do MAI, e publicado em agosto de 2015, temos estes dados: Com base nas decisões proferidas em processos-crime por Violência Doméstica, comunicadas pelos tribunais (temos de contar que há tribunais que não fazem ainda, e infelizmente, tal comunicação) à ex-DGAI/SGMAI, entre 1/1/2012 e 30/6/2015, através do mapa excel definido para o efeito, de um total de 2954 sentenças transitadas em julgado entre 2012 e 2014, cerca de 58% resultou em condenação e cerca de 42% em absolvição. Para 1649 casos de condenação, a pena encontrava-se especificada, sendo que, em 59% dos casos, correspondia a pena de prisão entre 2 anos e 3 anos (exclusive). Em 21,5% das condenações a pena foi de 3 a 4 anos (exclusive), em 9,5% foi inferior a 2 anos, em 3,5% foi de 4 a 5 anos (exclusive) e em 1,3% foi igual ou superior a 5 anos. Nos restantes casos comunicados (5,6%) surgiu a indicação de pena de prisão substituída por multa ou por trabalho a favor da comunidade, medidas de internamento (situações de inimputabilidade) ou a simples aplicação de multa. Veja-se ainda que, na maioria das condenações, a pena de prisão foi suspensa na sua execução (96%), geralmente por igual período de tempo. Verifica-se ainda que na maioria (59%) das condenações comunicadas encontra-se assinalada que a pena é suspensa, mas sujeita a regime de prova e/ou a indicação da existência de pena(s) acessória(s). No regime de prova, surge invariavelmente a referência a um plano individual de readaptação social, executado com vigilância e apoio da Direção-Geral de Reinserção Social e Serviços Prisionais (DGRSP), em pagar indemnização à vítima ou entregar quantia a instituição de apoio a vítimas/outras instituição de cariz humanitário/social, na submissão a tratamento psiquiátrico, obrigação de frequentar consultas de alcoologia, tratamento de toxicodependência, comparecer no programa de combate à violência doméstica, frequentar programa para agressores da DGRS ou dever de prestar x horas de trabalho a favor da comunidade. As penas acessórias mencionadas são diversas, como por exemplo a proibição de contactos com a vítima, afastamento do local de residência e de trabalho da mesma, proibição MANUAL PLURIDISCIPLINAR 259 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 260 - - de uso e porte de arma, obrigação de frequentar consultas de alcoologia, com fiscalização pela DGRSP, frequência de um programa de prevenção de violência doméstica, inibição do exercício das responsabilidades parentais e inibição de condução. Em duas situações consta a indicação expressa de que a proibição de contactos será fiscalizada por meios eletrónicos. O relatório é omisso quanto a saber qual a forma de processo aplicável ao caso. (Paulo Guerra) 3.5. A indemnização em processo penal 3.5.1. O pedido de indemnização civil Nos termos do art. 129º, do Código Penal (CP), a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil. Isto quer dizer que, pese embora o pedido indemnizatório deduzido em processo penal, por força do disposto no art. 71º, do CPP, haja de ter como fundamento a prática de um crime, a verdade é que os pressupostos da condenação na obrigação de indemnizar se hão de basear, não na responsabilidade penal, mas na responsabilidade civil por factos ilícitos, ao ponto de a respetiva sentença poder ser absolutória relativamente ao crime de que o arguido vinha acusado, mas mesmo assim ser este condenado em indemnização cível, desde que o pedido respetivo se venha a revelar fundado – art. 377º, nº 1, do Código de Processo Penal (CPP). Daí que tal responsabilidade, quanto à determinação dos seus pressupostos e à determinação do objeto da obrigação de indemnizar, se tenha de aquilatar fundamentalmente à luz dos arts 483º e segs. e 562º e sgs., do Código Civil (CC). Ficando assim excluídos da possibilidade de serem reclamados em sede de processo penal, por não terem como fonte um facto ilícito típico, e também constitutivo de responsabilidade civil por factos ilícitos, mas antes um contrato ou a prática de um facto lícito, os danos advenientes de responsabilidade civil contratual ou por factos lícitos114. Assim sendo, é na verificação dos pressupostos do art. 483º, do CC, que se poderá verificar ou não, no âmbito do processo penal, a existência da obrigação de indemnizar decorrente da prática de um determinado facto ilícito típico (de um determinado crime). Dispõe o artigo 483º, do CC, que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”. Em face deste preceito são requisitos do direito à indemnização, em síntese, o facto resultante de uma qualquer forma de conduta humana, a ilicitude desse facto, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. 114 Assim se decidiu no assento nº 7/99, de 17/06/99: “Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377º, nº 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual”. MANUAL PLURIDISCIPLINAR A ilicitude tanto pode traduzir a violação de um direito de outrem como consistir na violação de disposições legais que têm por fim proteger interesses alheios. Sendo que o ato ilícito daí resultante se traduzirá sempre na violação de um “dever jurídico” e, dentro desta violação, apenas só poderá implicar responsabilidade civil a violação que seja suscetível de gerar “prejuízos”115. Assim sendo, para que o lesado tenha direito a ser indemnizado, terá que alegar e provar que a conduta ilícita do agente lhe causou prejuízos – arts 483º e 564º, nº 1, do CC. A violação ilícita do direito de outrem traduz-se na violação de direitos subjetivos, que são fundamentalmente os direitos absolutos, designadamente os direitos sobres as coisas ou direitos reais e os direitos de personalidade. Sendo certo que, no caso de violação de um direito real (v.g. direito de propriedade), por se tratar de um direito de caráter patrimonial, dúvidas não existem de que em regra a sua lesão gera responsabilidade civil e, consequentemente, o dever de indemnizar116. No que respeita aos direitos de personalidade, diz-nos o art. 70º, nº 1, do CC, ao falar sobre a tutela geral da personalidade, que a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral, acrescentando-se no seu nº 2 que, independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa117. E apesar do modo genérico com que se prevê na norma o caráter ilícito das ofensas ou das ameaças à personalidade física ou moral da pessoa humana, sempre se poderá a partir dela inferir uma série de direitos mais palpável como o direito à vida, à integridade física, à liberdade, à honra, ao bom nome, à saúde, ao repouso, etc.118. Direitos que normalmente são postos em causa, e por vezes mesmo grosseiramente violados, no crime de violência doméstica, com o qual, para além das concretas lesões perpetradas se acaba por atingir a saúde física, psicológica e mental da respetiva vítima. Sendo que a proteção do direito à vida, à integridade moral e física (com menção especial à proibição dos maus tratos, tratamentos degradantes ou desumanos), o direito ao desenvolvimento da personalidade, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar, o direito à liberdade e à segurança, têm assento nos arts 24º a 26º, da Constituição da República Portuguesa, precisamente por se traduzirem em bens jurídicos fundamentais com relevância constitucional. Podendo a sua violação fazer incorrer o respetivo agente, não só em responsabilidade civil com Assim, Prof. Fernando Pessoa Jorge, in “Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, 1995, pág. 282. Idem, p. 301. 117 Neste caso, e no campo estritamente civil, a pessoa ameaçada ou ofendida pode recorrer ao processo especial da tutela da personalidade previsto e regulado nos arts 878º a 880º, do CPC, apresentando ao tribunal um requerimento com o oferecimento das provas, e se não houver motivo para o seu indeferimento liminar, o tribunal designa imediatamente dia e hora para a audiência, a realizar num dos 20 dias subsequentes, sendo a contestação apresentada na própria audiência, na qual, se tal se mostrar compatível com o objeto do litígio, o tribunal procurará conciliar as partes. O que releva este procedimento é o seu caráter urgente, como resulta, sobretudo do disposto no nº 5, do art. 878º, onde se prevê a possibilidade de prolação de uma decisão provisória, irrecorrível, embora sujeita a posterior alteração ou confirmação no próprio processo. 118 Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª Edição Revista e atualizada, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p. 104 e 105. 115 116 MANUAL PLURIDISCIPLINAR 261 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 262 - - a consequente obrigação de indemnizar o lesado, como também em responsabilidade penal. Por seu lado, a culpa traduz a censura ético-jurídica sobre o comportamento do agente, comportamento este que pode revestir a forma de dolo, se há consciência e vontade de realização do facto que traduz a violação do direito ou da norma que tutela os interesses alheios, e a consciência da ilicitude desse facto, ou revestir a forma de negligência ou mera culpa, se o agente, representando a possibilidade de realização do facto lesivo, mesmo assim atua sem se conformar com essa realização, ou então nem sequer representa tal possibilidade, sendo que tanto num caso como no outro lhe era exigível que procedesse com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigado e de que era capaz. Sendo a culpa apreciada pela diligência que usaria um bom pai de família em face das circunstâncias do caso concreto – art. 487º, nº 2, do CC. Por sua vez os danos podem ser de natureza patrimonial ou não patrimonial, conforme digam ou não respeito a interesses materiais, podendo os primeiros dividir-se em danos emergentes e lucros cessantes, sendo que estes últimos se traduzem na perda de ganho e dos benefícios que o lesado deixou de obter em consequência do facto danoso. Só os danos resultantes direta e necessariamente da conduta do agente podem ser objeto de reparação. Danos esses, portanto, que terão de existir num nexo de causalidade adequada a partir do facto praticado, com base num juízo de probabilidade, no sentido de que não teria havido tais danos ou prejuízos se não fosse o facto ilícito praticado. Isso mesmo resulta do art. 563º, do CC, ao dizer que a obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão. Devendo tal preceito ser entendido “no sentido de que não basta que o evento tenha produzido (naturalística ou mecanicamente) certo efeito para que este, do ponto de vista jurídico, se possa considerar causado ou provocado por ele; para tanto, é necessário ainda que o evento danoso seja uma causa provável, como quem diz adequada desse efeito”119. Relativamente à fixação do montante da indemnização o critério a seguir é o dos arts 562º e 564º, do CC, através da medida da diferença entre a situação atual do lesado e a que ocorreria se não tivesse havido lesão. Isto, quanto aos danos patrimoniais. No que respeita aos danos não patrimoniais, nos termos do art. 496º, do CC, deverão os mesmos ser indemnizados quando, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. Atendendose na fixação do seu montante a princípios de equidade e ainda ao preceituado no art. 494º, do CC, tendo-se em conta o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso. 3.5.2. Princípio da adesão, princípio do pedido e legitimidade Nos termos do art. 71º, do CPP, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é obrigatoriamente deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal cível, nos casos previstos na lei. Esses casos são os elencados no art. 72º, ou seja, quando: 119 Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª Edição Revista e atualizada, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p. 579. MANUAL PLURIDISCIPLINAR a) O processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de oito meses a contar da notícia do crime, ou estiver sem andamento durante esse lapso de tempo; b) O processo penal tiver sido arquivado ou suspenso provisoriamente, ou o procedimento se tiver extinguido antes do julgamento; c) O procedimento depender de queixa ou de acusação particular; d) Não houver ainda danos ao tempo da acusação, estes não forem conhecidos ou não forem conhecidos em toda a sua extensão; e) A sentença penal não se tiver pronunciado sobre o pedido de indemnização civil, nos termos do nº 3, do artigo 82º; f) For deduzido contra o arguido e outras pessoas com responsabilidade meramente civil, ou somente contra estas haja sido provocada, nessa ação, a intervenção principal do arguido; g) O valor do pedido permitir a intervenção civil do tribunal coletivo, devendo o processo penal correr perante tribunal singular; h) O processo penal correr sob a forma sumária ou sumaríssima; i) O lesado não tiver sido informado da possibilidade de deduzir o pedido civil no processo penal ou notificado para o fazer, nos termos do nº 1, do artigo 75º e do nº 2, do artigo 77º, do CPP. Acrescentando-se, no nº 2, do mesmo artigo, que, no caso de o procedimento depender de queixa ou de acusação particular, a prévia dedução do pedido perante o tribunal civil pelas pessoas com direito de queixa ou a faculdade de deduzir acusação particular vale como renúncia a este direito. O regime acima descrito consagra o chamado princípio da adesão, segundo o qual o pedido de indemnização fundado na prática de um crime deve ser deduzido na ação penal respetiva. Quer dizer, na ação penal pela qual se visa investigar, julgar e punir a prática de um determinado crime, resultará enxertada uma pretensão cível, tendo em vista o ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais causados por esse mesmo crime. Entre as duas pretensões, a criminal e a cível, existirá uma estreita conexão, dado terem como fundamento comum a prática de um dado crime, simultaneamente geradora de ilicitude penal e cível, com reflexos na tramitação processual marcadamente unitária, na qual as regras aplicáveis, tanto à ação penal como à ação cível nela enxertada, são as previstas no CPP e só por via da remissão feita pelo próprio Código, como acontece, por exemplo, com o art. 76º, nº 1, relativamente à necessidade de representação do lesado por advogado, ou por via do art. 4º, do CPP, se poderá recorrer às normas do processo civil, nomeadamente nos casos omissos, e quando as normas do CPP não puderem aplicar-se por analogia. Podendo assim concluir-se que se na determinação da responsabilidade civil resultante da prática de um crime, os respetivos pressupostos e a obrigação de indemnizar são regulados pela lei civil, como se deixou referido supra, já a tramitação processual com vista à determinação dessa responsabilidade é, na sua essência, regulada pelo CPP. Sendo de sublinhar que, apesar da conexão existente entre as ações relativas às duas pretensões, cível e penal, pode dar-se o caso de o processo culminar com uma absolvição relativamente ao crime mas na sentença poder condenar-se o responsável em indemnização cível se o respetivo pedido MANUAL PLURIDISCIPLINAR 263 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 264 - - se vier a revelar legalmente fundado, sem prejuízo de o tribunal poder oficiosamente ou a requerimento remeter as partes para os tribunais civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem suscetíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal – arts 377º, nº 1, e 82º, nº 3, do CPP. A conexão das ações ou este sistema de interdependência que carateriza o princípio da adesão da ação civil à ação penal tem a vantagem de permitir uma maior celeridade na fixação da indemnização devida à vítima do crime, que o processo civil nem sempre concede, ao mesmo tempo que favorece a uniformidade dos julgados. Sendo neste particular de referir ainda a solução específica de caso julgado adotada no art. 84º, do CPP, ao estabelecer que a decisão penal, ainda que absolutória, que conhecer do pedido cível constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças cíveis. Sendo, portanto, de aplicar, neste caso, as normas de direito civil e processual civil. De notar que nos termos do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 3/2002, de 17/01, “extinto o procedimento criminal, por prescrição, depois de proferido o despacho a que se refere o artigo 311º do Código de Processo Penal mas antes de realizado o julgamento, o processo em que tiver sido deduzido pedido de indemnização civil prossegue para conhecimento deste.” Ou seja, a extinção do procedimento criminal por prescrição não arrasta consigo a extinção do procedimento relativamente à pretensão cível aí deduzida, e porque no âmbito substantivo do reconhecimento do direito à indemnização se aplicam as regras do direito civil, não sendo a prescrição desse direito do conhecimento oficioso do tribunal – art. 303º do CC -, ao contrário do que acontece com a prescrição penal. Ao deduzir o pedido cível em processo penal, o ofendido investe-se na qualidade de parte civil. Enquanto sujeito processual, a parte civil distingue-se do arguido e do assistente, por assumir no processo a qualidade de lesado, e nessa medida ser dotado de legitimidade para deduzir o pedido de indemnização contra o arguido ou outro responsável civil. Porém, a sua intervenção restringe-se à sustentação e à prova do pedido de indemnização civil. Competindo-lhe, correspondentemente, os direitos que a lei confere aos assistentes – art. 74º, do CPP. Mas além da vítima ou do ofendido, também poderão deduzir pedido cível na ação penal outros lesados pelo crime cometido. Entendendo-se como lesado, nos termos do art. 74º, nº 1, do CPP, a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que se não tenha constituído assistente ou não possa constituir-se assistente, podendo dizer-se que terá legitimidade para deduzir pedido cível em processo penal todo aquele que do ponto de vista processual civil tivesse legitimidade para formular pedido de indemnização pelos danos causados com o crime120. 120 No Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 1/2013, de 15/11, foi perfilhado o entendimento de que “em processo penal decorrente de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. no art. 107º, nº 1, do R.G.I.T., é admissível, de harmonia com o art. 71º, do CPP, a dedução de pedido de indemnização civil tendo por objeto o montante das contribuições legalmente devidas por trabalhadores e membros dos órgãos sociais das entidades empregadoras, que por estas tenha sido deduzido do valor das remunerações, e não tenha sido entregue, total ou parcialmente, às instituições de segurança social.” Não extravasando por isso tal pedido o princípio de adesão consagrado no art. 71º, do CP, tendo o tribunal criminal competência em razão da matéria para julgar a ação cível MANUAL PLURIDISCIPLINAR Enquanto, do lado passivo, terão legitimidade ad causam para ser demandados, além do arguido, quaisquer outras pessoas com responsabilidade meramente civil, como acontece, por exemplo, nos processos-crime por acidente de viação, em que normalmente quem responde pelos danos causados com o crime cometido na condução automóvel é a respetiva seguradora do veículo que deu causa ao acidente. A posição que poderão adotar no processo será idêntica à do arguido, embora circunscrita às questões suscitadas no âmbito do pedido cível deduzido. 3.5.3. Dever de informação dos eventuais interessados lesados O dever de informar estabelecido no art. 75º, do CPP, é corolário do princípio da adesão, na medida em que à obrigação de dedução do pedido cível na ação penal imposta ao lesado pelo crime, deve corresponder o dever da autoridade judiciária e da polícia criminal de o informar dos direitos que lhes assistem e da possibilidade de deduzir no processo penal o pedido de indemnização cível, bem como de todas as formalidades que para o efeito deverá observar. E isso logo que pelo inquérito tenham conhecimento da existência de lesados. Não sendo cumprido o dever de informação, e dado a lei não estabelecer a cominação de qualquer nulidade, a consequência será a de tal omissão integrar uma mera irregularidade sujeita ao regime previsto no art. 123º, do CPP – art. 118º, nº 2. Razão por que, não sendo arguida pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes, a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado, a mesma ficará sanada – nº 1, do art. 123º, do CPP121. Por outro lado, a falta de tal informação constitui fundamento para a dedução do pedido cível em separado, nos termos do art. 72º, nº 1, al. i), do CPP. 3.5.3.1. Direito à informação sobre os requisitos que regem o direito à indemnização nos casos de violência doméstica A vítima de violência doméstica goza de um regime especial de direito à informação, na medida em que lhe deve ser assegurada, desde o seu primeiro contacto com as autoridades competentes para a aplicação da lei, a informação sobre os requisitos que regem o seu direito à indemnização – arts 11º e 15º, nº 1, al. g), da Lei nº 112/2009, de 16/09, lei que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas. Devendo tal informação abranger as formalidades a observar na dedução do pedido cível em processo penal, de um modo mais precoce e exigente para as autoridades responsáveis, do que o previsto, em termos gerais, no art. 75º, nº 1, do CPP, pois tal dever de informação deve ser prestado logo que haja um primeiro contacto com a vítima. 121 interposta pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social no processo penal. Assim, Ac. do TRE de 30/10/2007, in www.dgsi.pt/jtre. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 265 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 266 - - Este regime não pode deixar de ser visto também à luz dos arts 8º, 11º e 12º, do Estatuto da Vítima, nomeadamente o art. 11º, nº 1, al. g), onde se estabelece o dever de informar a vítima sobre quais os requisitos que regem o seu direito a indemnização. Resultando do nº 2 do mesmo artigo que a extensão e o grau de detalhe das informações a serem dadas podem variar consoante as necessidades específicas e as circunstâncias pessoais da vítima, bem como a natureza do crime. Devendo a comunicação com a vítima ser efetuada numa linguagem simples e acessível, atendendo às caraterísticas pessoais da vítima, designadamente a sua maturidade e alfabetismo, bem como qualquer limitação ou alteração das funções físicas ou mentais que possa afetar a sua capacidade de compreender ou ser compreendida – art. 12º, nº 2, do Estatuto da Vítima. Enquanto vítima, na aceção dada pelo art. 67º-A, do CPP122, e sem prejuízo do disposto no art. 82º-A, sempre terá direito a ser informada pelo Ministério Público sobre o regime e serviços responsáveis pela instrução de pedidos de indemnização a vítimas de crimes violentos, formulados ao abrigo do regime previsto na Lei nº 104/2009, de 14 de setembro, e sobre os pedidos de adiantamento às vítimas de violência doméstica, bem como da existência de instituições públicas, associativas ou particulares, que desenvolvam atividades de apoio às vítimas de crimes - art. 247º, nº 3, do CPP. 3.5.4.1. A dedução de pedido indemnizatório em representação da vítima por parte de associações de mulheres que prossigam fins de defesa e proteção das mulheres vítimas de crimes Nos termos do art. 12º, nº 2, da Lei nº 61/91, além de poderem constituir-se assistentes em representação da vítima no processo penal123, podem ainda, também em representação da vítima, deduzir o pedido indemnizatório e requerer o adiantamento pelo Estado da indemnização, nos termos previstos na legislação aplicável, podendo ainda requerer a fixação de quaisquer pensões provisórias a pagar pelo arguido até à fixação definitiva da indemnização. Nestes casos, porém, tal como para a constituição de assistente, será necessário que a vítima tenha dado o seu consentimento, aliás em consonância com o disposto nos arts 5º e 7º, do Estatuto da Vítima – Lei 130/2015, de 4/09 –, que consagram os princípios da autonomia da vontade e do consentimento da vítima. Estabelecendo o art. 7º, nos 1 e 2, que, sem prejuízo do disposto no Código de Processo Penal, qualquer intervenção de apoio à vítima deve ser efetuada após esta prestar o seu consentimento livre e esclarecido.Consentimento esse que a vítima poderá revogar livremente a qualquer momento. 3.5.4. Princípio da representação do lesado por advogado Nos termos do art. 76º, do CPP, o lesado pode fazer-se representar por advogado, sendo obrigatória a representação, sempre que, em razão do valor do pedido, se deduzido em separado, fosse obrigatória a constituição de advogado nos termos da lei processual civil. Ora, o art. 40º, nº 1, al. a), do Código de Processo Civil (CPC) estabelece que é obrigatória a constituição de advogado nas causas de competência de tribunais com alçada, em que seja admissível recurso ordinário. De harmonia com o disposto no art. 44º, nº 1, da LOSJ, a alçada dos tribunais da Relação é de € 30.000,00 e a dos tribunais de 1ª instância é de € 5.000,00. O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre, nos termos do art. 629º, nº 1, do CPC. Assim sendo, será obrigatória a constituição de advogado nos casos em que seja deduzido um pedido de indemnização superior a € 5.000,00. Se o pedido for igual ou inferior a € 5.000,00, poderá o lesado requerer ele mesmo que lhe seja arbitrada a indemnização cível, sem necessidade de recorrer a advogado. Neste caso, o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, podendo consistir em declaração em auto, com indicação do prejuízo sofrido e das provas – art. 77º, nº 4, do CPP. 122 Nos termos da al. a), do nº 1, é considerada vítima, não só a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou um dano patrimonial, diretamente causado por ação ou omissão, no âmbito da prática de um crime, mas também, pela ordem de prevalência estabelecida no nº 2, os familiares de uma pessoa cuja morte tenha sido diretamente causada por um crime e que tenham sofrido um dano em consequência dessa morte. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 3.5.5. A formulação do pedido: termos em que o mesmo pode ser deduzido e natureza do respetivo prazo – art. 77º Tanto o lesado que tenha sido informado, nos termos do art. 75º, do CPP, do direito de deduzir pedido de indemnização, como o que não o haja sido, pode manifestar até ao fim do inquérito a intenção de deduzir o pedido de indemnização cível no processo penal. A manifestação de tal intenção tem como efeito o dever de notificação a tal lesado da acusação ou do despacho de pronúncia para, querendo, deduzir o pedido, em requerimento articulado no prazo de 20 dias – art. 77º, nº 2, do CPP. Sendo certo que se não tiver manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização ou se não tiver sido notificado da acusação ou da pronúncia, nos termos supra referidos, sempre poderá deduzir o pedido de indemnização até 20 dias depois de ao arguido ser notificado o despacho de acusação ou, se não o houver, o despacho de pronúncia – art. 77º, nº 3, do CPP. Note-se que o regime referido só é aplicável ao lesado que não se haja constituído assistente, pois se se tiver constituído assistente no processo ou se for apresentado pelo Ministério Público o pedido terá de ser deduzido na acusação ou, em requerimento articulado, no prazo em que esta deve ser formulada - art. 77º, nº 1, 283º, nº 1, 284º, nº 1 e 285º, nº 1, do CPP. Se o pedido cível não for deduzido nos prazos supra referidos, a consequência, numa certa perspetiva, é a caducidade do direito de exercer a ação cível conjuntamente com a ação penal, por ser essa a regra para a propositura de ações, tendo em vista o exercício de um direito num determinado prazo – art. 298º, nº 2, do CC. Num entendimento mais 123 Mediante a apresentação de declaração subscrita pela vítima nesse sentido, e quando se trate dos crimes previstos na parte final do nº 2, do artigo 1º - quando a motivação do crime resulte de atitude discriminatória relativamente à mulher, estando nomeadamente abrangidos os casos de crimes sexuais e de maus tratos a cônjuge, bem como de rapto, sequestro ou ofensas corporais. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 267 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 268 - - dirigido ao caráter processual do ato a praticar, no âmbito de um processo já em curso, o decurso de tais prazos, considerada a sua natureza perentória, tem como consequência a extinção do direito de praticar o ato – art. 139º, nos 1 e 3, do CPC.124 Quanto aos termos em que o pedido deverá ser deduzido, os mesmos deverão corresponder às exigências de forma previstas no art. 552º, do CPC, para a petição inicial, devendo ainda revestir a forma articulada, isto é, a exposição dos factos e das razões de facto e de direito que fundamentam o pedido de indemnização deverá ser feita por artigos, nos mesmos termos previstos para a petição inicial no processo civil – art. 77º, nº, 1 e 2, do CPP. Só assim não será quando o valor do pedido indemnizatório for igual ou inferior a € 5.000,00, pois nestes casos, não sendo obrigatória a constituição de advogado, como acima se deixou já referido, o requerimento não está sujeito a formalidades especiais e pode consistir em declaração em auto, com indicação do prejuízo sofrido e das provas – art. 77º, nº 4, do CPP. E ao contrário dos restantes casos não é exigível a apresentação de duplicados - nº 5, do art. 77º - reforçando-se assim o caráter informal e simples de tal pedido. Devendo os factos que servem de fundamento ao pedido ser articulados, não o tendo sido, estaremos perante uma mera irregularidade, sujeita ao regime do art. 123º - art. 118º, nº 2, do CPP. Especial enfoque merece também a dedução do pedido cível no processo especial sumário. Nos termos do art. 388º, do CPP, em processo sumário, as pessoas com legitimidade para tal podem intervir como partes civis se assim o solicitarem, mesmo que só verbalmente. O carater célere, expedito e com prazos muito curtos, desta forma de processo, faz com que a dedução do pedido cível possa ter algumas dificuldades, pois todo o ritual processual está concebido para ser bastante simplificado. Por isso mesmo, o facto de o processo correr sob a forma sumária, constitui uma das exceções ao princípio da adesão, sendo um dos casos em que o pedido cível pode ser deduzido em separado – art. 72º, nº 1, al. h), do CPP. De qualquer modo, as limitações daí advenientes, que poderão ter consequências na boa decisão da causa, sempre poderão ser colmatadas, por parte do tribunal, pela fixação de uma indemnização provisória, por conta da indemnização a fixar posteriormente e conferir-lhe o efeito previsto no art. 82º-A, ou então remeter os interessados para os tribunais civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem suscetíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal – art. 82º, nos 2 e 3, do CPP. Norma que, essencialmente prevista para o processo comum, muito maior acutilância poderá assumir a sua aplicação no âmbito o processo sumário. Já no que toca ao processo sumaríssimo, o qual também constitui fundamento para a dedução do pedido em separado da ação penal, nos termos da al. h), do nº 1, do art. 72º, do CPP, não são admitidas partes civis. Facultando-se apenas ao lesado a possibilidade de manifestar a intenção de obter a reparação dos danos sofridos até ao momento em 124 Neste sentido, Ac. do STJ, de 05/07/2003, in CJSTJ, Ano XI, T. 2, p. 211. MANUAL PLURIDISCIPLINAR que o Ministério Público requerer a aplicação da pena ou medida de segurança em processo sumaríssimo. Caso em que passará a constar desse mesmo requerimento a pretensão indemnizatória manifestada pelo lesado com a indicação da quantia exata a atribuir a título de reparação – arts 393º e 394º, nº 2, al. b), do CPP. 3.5.6. A contestação: termos da sua dedução e o respetivo prazo e representação obrigatória por advogado A primeira nota a registar é que a falta de contestação, no âmbito da ação cível enxertada no processo penal, não tem qualquer efeito cominatório, ao contrário do que sucede no processo civil, por força do disposto no art. 567º, nº 1, do CPC. Nem se aplica o ónus da impugnação, em termos de se considerarem admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, de harmonia com o disposto no art. 574º, do CPC. O art. 78º, nº 3, do CPP ao determinar que a falta de contestação não implica a confissão dos factos e a circunstância de estes estarem também diretamente relacionados com a determinação da responsabilidade penal, faz com que não sejam aplicáveis no processo penal os efeitos decorrentes da falta de contestação e de impugnação previstos para o processo civil. Por outro lado, a confissão produzida nos articulados pelas partes civis não terá qualquer efeito relativamente ao arguido, sendo certo que a confissão deste só poderá considerar-se relevante se obtida nos termos do art. 344º, do CPP, perante o Tribunal, depois de, e sob pena de nulidade, lhe ser perguntado pelo presidente se as declarações confessórias que pretende realizar são feitas de livre vontade e fora de qualquer coação, bem como se se propõe fazer uma confissão integral e sem reservas. Relativamente ao prazo para contestar, o mesmo é de 20 dias, a contar da notificação do pedido deduzido pelo lesado – art. 78º, nº 2, do CPP. Prazo este que é perentório, e cujo decurso, por isso, faz extinguir o direito de praticar o respetivo ato, sem prejuízo de aplicação das regras relativas ao justo impedimento e à prática do ato dentro dos três dias úteis seguintes ao termo do prazo – arts 107º, nº 2, 107º-A, do CPP e 145º, do CPC. Podendo, nos casos de especial complexidade, ser prorrogado o prazo de contestação, com fundamento no art. 107º, nº 6, do CPP, até ao limite máximo de 30 dias. A contestação deve ser deduzida por artigos – art. 78º, nº 2, do CPP. Não o sendo tratar-se-á de mera irregularidade, a que é aplicável o regime do art. 123º, do CPP – art. 118º, nº 2, do CPP. A contestação poderá assumir as modalidades de contestação-defesa por impugnação (direta ou indireta) ou por exceção, neste caso quando for alegado qualquer facto impeditivo modificativo ou extintivo do direito invocado pelo lesado como fundamento do pedido cível deduzido. Mas não é admissível a contestação-reconvenção125, que só no processo civil poderá ter lugar, verificados que estejam os pressupostos da identidade subjetiva das partes e algum dos requisitos de admissibilidade da reconvenção, previstos no nº 2, do art. 266º, do CPC. 125 Ac. do TRL, de 21/12/2000, in CJ, Ano XXV, Tomo 5, p. 153. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 269 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 270 - - Por outro lado, o art. 76º, nº 2, do CPP, impõe aos demandados e aos intervenientes a obrigatoriedade de se fazerem representar por advogado. 3.5.7. As provas relativas ao pedido cível e a presença do lesado, dos demandados e dos intervenientes na audiência de julgamento As provas são requeridas com os articulados, isto é com o pedido cível e com a contestação – art. 79º, do CPP. Se o valor do pedido deduzido exceder € 30.000,00 (valor da alçada da relação em matéria cível, nos termos do art. 44º, nº 1, da LOSJ), será de dez o limite máximo de testemunhas que cada requerente, demandado ou interveniente poderá arrolar. Se aquele valor for igual ou inferior a € 30.000,00, o limite será de cinco testemunhas. Quanto à presença na audiência de julgamento do lesado, dos demandados e dos intervenientes a mesma só será obrigatória quando tiverem de prestar declarações a que não puderem recusar-se. E isso acontecerá sempre que o arguido ou o Ministério Público requeiram a prestação de tais declarações ou quando o tribunal as determine, por as considerar convenientes – arts 80º e 145º, nº 1, do CPP. Fora esses casos, aqueles serão representados em julgamento pelo seu advogado, exceto se, tratando-se do lesado, este o não tiver constituído e a representação por advogado não for obrigatória – art. 76º, nos 1 e 2, do CPP. 3.5.8. O princípio da livre disponibilidade do pedido cível: renúncia e desistência do pedido Nos termos do art. 81º, al. a), do CPP, o lesado pode, em qualquer altura do processo, renunciar ao direito de indemnização cível e desistir do pedido formulado. Mais uma vez vem ao de cima a natureza civil e a autonomia da pretensão de indemnização deduzida no processo penal em relação à própria ação penal. A renúncia ao exercício do direito à indemnização é livremente exercida no processo e, depois de formulado o pedido, pode este ser objeto de desistência, à qual se aplicará o disposto no art. 290º, do CPC, devendo ser proferida sentença de homologação da desistência, absolvendo-se nos seus precisos termos, com condenação do lesado nas custas respetivas – arts. 523º, do CPP e 537º, nº 1, do CPC. 3.5.9. A determinação do objeto da prestação indemnizatória e a possibilidade da sua conversão alternativa A al. b), do artigo 81º, do CPP, prevê ainda a possibilidade de o lesado requerer que o objeto da prestação indemnizatória seja convertido em diferente atribuição patrimonial, desde que prevista na lei. A hipótese da norma parte do princípio de que a indemnização é, em regra, fixada em dinheiro, nos termos do art. 566º, do CC. Mas acrescenta que não tem de ser assim. Em verdade, pode, antes de mais, ser requerida a reconstituição da situação anterior à lesão, MANUAL PLURIDISCIPLINAR se a mesma for possível, dando-se assim lugar à reconstituição natural ou restitutio in integrum. É o que acontece quando em vez do pagamento do custo da reparação da coisa se procede à sua reparação ou se entrega ao lesado uma outra da mesma natureza e qualidade, em substituição da danificada. Cumprindo-se desse modo o princípio ínsito ao art. 562º, do CC. Mas pode o lesado também requerer uma indemnização, no todo ou em parte, em forma de renda, nos termos do art. 567º, do CC, desde que se verifique a natureza continuada dos danos, nomeadamente devido a diminuição permanente ou temporária das possibilidades de trabalho ou aumento também permanente ou temporário das necessidades em consequência da lesão, podendo, consoante os casos, ser a renda permanente ou temporária.126 3.5.10. A liquidação “em execução de sentença”, o reenvio para os tribunais civis e a possibilidade de o tribunal estabelecer uma indemnização provisória, a requerimento ou oficiosamente Se não dispuser de elementos bastantes para fixar a indemnização, o tribunal deverá condenar no que se liquidar em execução de sentença. Correndo neste caso a execução perante o tribunal civil, servindo a sentença penal de título executivo – art. 82º, nº 1, do CPP. Acrescentando-se no nº 2, do mesmo artigo, que o Tribunal, oficiosamente ou a requerimento, pode estabelecer uma indemnização provisória por conta da indemnização a fixar posteriormente, se dispuser de elementos bastantes, e conferir-lhe o efeito previsto no art. 82º-A. Isto é, a indemnização provisória deverá ser tida em conta na liquidação em execução de sentença que posteriormente vier a ser realizada. As normas citadas têm uma direta simetria com as dos arts 564º, nº 2, parte final, 565º e 566º, nº 2, do CC. Sendo que a relegação para execução de sentença só se justificará se os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito tiver ficado demonstrada no processo, ficando a faltar apenas a determinação do montante correspondente aos danos sofridos pelo lesado, por o tribunal não dispor de elementos para o poder fazer, elementos esses que, no entanto, poderão ser obtidos em sede de execução de sentença. Mas poderá dar-se o caso de não ser possível averiguar o valor exato dos danos, situação de dificuldade que persistiria em sede de execução de sentença. Ora, nestes casos deverá ter aplicação o disposto no art. 566º, nº 3, do CC, julgando neste caso o tribunal equitativamente dentro dos limites que tiver por provados. O nº 3, do art. 82º, prevê a possibilidade de remeter as partes para os tribunais cíveis. Tal poderá acontecer oficiosamente ou a requerimento, mas apenas quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem suscetíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal. Nestes casos o tribunal abster-se-á de conhecer da pretensão cível deduzida no processo com fundamento na complexidade da causa cível, quer do ponto vista do respetivo mérito, por a complexidade das questões suscitadas não permitirem uma decisão rigorosa, ademais face aos meios técnicos ou processuais disponíveis, dada a especifica 126 Pires de Lima e Antunes Varela, idem, p. 585. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 271 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 272 - - tramitação do processo, posta essencialmente ao serviço da causa penal, quer do ponto de vista estritamente processual, por os incidentes suscitados ou suscitáveis poderem implicar um excessivo retardamento do processo. 3.5.11. Arbitramento oficioso de reparação à vítima pelos prejuízos sofridos, independentemente da dedução de pedido cível no processo penal Em caso de condenação do arguido pela prática do crime de que vinha acusado, poderá o tribunal arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos pela vítima, quando esta não haja deduzido pedido de indemnização no processo penal ou em separado, e desde que as particulares exigências de proteção da vítima o imponham – art. 82º-A, do CPP. Ou seja, considerando as específicas necessidades da vítima, reveladoras no caso concreto de particulares exigências de proteção, poderá o tribunal arbitrar uma quantia, a título de reparação pelos prejuízos sofridos. Certo é que os pressupostos de tal arbitramento se mostrem meridianamente demonstrados no processo, nomeadamente as condições precárias da vítima e os factos concretos que revelem as necessidades de proteção, para ela advenientes da prática do crime. Nestes casos, que deverão ser considerados de estrita necessidade, não poderá o tribunal arbitrar tal reparação sem que primeiro assegure o princípio do contraditório, ouvindo previamente o arguido. Sendo que a quantia arbitrada será depois tida em conta na ação que vier a conhecer de pedido cível de indemnização. 3.5.12. Arbitramento oficioso de reparação à vítima de crime de violência doméstica - nulidade da sentença por omissão de pronúncia Regime especial, porém, tem o arbitramento de reparação oficiosa nos casos de violência doméstica. De facto, o art. 21º, nº 2, da Lei nº 112/2009, de 16/09, que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à proteção e assistência das suas vítimas, sob a epígrafe “Direito a indemnização e a restituição de bens”, além de dispor no seu nº 1 que à vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável, consagra no nº 2 que, para efeitos dessa mesma lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82º-A, do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser. Ou seja, havendo condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art. 152º, do CP, haverá também sempre lugar a condenação do mesmo arguido no pagamento de uma reparação indemnizatória à vítima, quer esta haja formulado o respetivo pedido ou não, pois sempre o tribunal terá de arbitrar oficiosamente uma reparação dos prejuízos sofridos com o crime, nos termos das disposições conjugadas dos arts 21º, da Lei nº 112/2009, de 16/09 e 82º-A, do CPP, MANUAL PLURIDISCIPLINAR presumindo-se iure et iure a existência de particulares exigências de proteção da vítima para tal efeito. Só assim não será se a vítima a tal expressamente se opuser. E dada a imposição de arbitramento assim estabelecida, se na sentença condenatória penal o tribunal não se pronunciar sobre a mesma, a sentença ficará ferida de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do art. 379º, nº 1, al. c), do CPP.127 Sendo de notar que regime idêntico se aplica às vítimas especialmente vulneráveis, por força do disposto no art. 16º, nº 2, da Lei nº 130/2015, de 04/09. 3.5.13. Reparação da vítima em casos especiais, nomeadamente às vítimas de crimes violentos e de violência doméstica O art. 130º, do CP, começa por prescrever no seu nº 1 que legislação especial fixa as condições em que o Estado poderá assegurar a indemnização devida em consequência da prática de atos criminalmente tipificados, sempre que não puder ser satisfeita pelo agente. Para além do regime especial de reparação previsto nas disposições conjugadas dos arts 21º, nº 2, da Lei nº 112/2009 e 82º-A, do CPP, dirigido ao arguido, já acima referido, importa agora considerar o disposto no art. 14º, da Lei nº 61/91, de 13/08 – Lei de proteção às mulheres vítimas de violência – que remete para lei especial a regulamentação do adiantamento pelo Estado da indemnização devida às mulheres vítimas de crimes de violência, suas condições e pressupostos, em conformidade com a Resolução nº 31/77, e as Recomendações nos 2/80 e 15/84, do Conselho da Europa. Ora a Lei 104/2009, de 14/09, veio precisamente estabelecer o regime de concessão de indemnização às vítimas de crimes violentos e de violência doméstica, considerando crimes violentos, para efeitos da sua aplicação, os crimes que se enquadram nas definições legais de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta previstas nas alíneas j) e l), do artigo 1º, do CPP, e violência doméstica o crime a que se refere o artigo 152º, do CP – art. 1º. Nos termos do art. 2º, nº 1, do mesmo diploma as vítimas que tenham sofrido danos graves para a respetiva saúde física ou mental diretamente resultantes de atos de violência, praticados em território português ou a bordo de navios ou aeronaves portuguesas, têm direito à concessão de um adiantamento da indemnização pelo Estado, ainda que não se tenham constituído ou não possam constituir-se assistentes no processo penal, quando se encontrem preenchidos, cumulativamente, os seguintes requisitos: a) A lesão tenha provocado uma incapacidade permanente, uma incapacidade temporária e absoluta para o trabalho de pelo menos 30 dias ou a morte; b) O facto tenha provocado uma perturbação considerável no nível e qualidade de vida da vítima ou, no caso de morte, do requerente; c) Não tenha sido obtida efetiva reparação do dano em execução de sentença condenatória relativa a pedido deduzido nos termos dos artigos 71º a 84º, do CPP, ou, se for razoavelmente de prever que o delinquente e responsáveis civis não venham a reparar o dano, sem que seja possível obter de outra fonte uma reparação efetiva e suficiente. 127 Ac. do TRC, de 02/07/2014, in www.dgsi.pt/jtrc, tp://www.dgsi.pt/jtrc. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 273 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O P RO CE SSO P E NA L imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 274 - - Sendo que, nos termos do nº 2 do mesmo artigo, o direito a obter o adiantamento previsto no número anterior abrange, no caso de morte, as pessoas a quem, nos termos do nº 1, do artigo 2009º, do Código Civil, é concedido um direito a alimentos e as que, nos termos da Lei nº 7/2001, de 11 de maio, vivam em união de facto com a vítima. Já relativamente às vítimas do crime de violência doméstica, prescreve o art. 5º, nº 1, do mesmo diploma que aquelas têm direito à concessão de um adiantamento da indemnização pelo Estado quando se encontrem preenchidos cumulativamente os seguintes requisitos: a) Esteja em causa o crime de violência doméstica, previsto no nº 1, do artigo 152º, do CP, praticado em território português; b) A vítima incorra em situação de grave carência económica em consequência do crime mencionado na alínea anterior. Tanto no caso dos crimes violentos como nos de violência doméstica, a concessão de adiantamento de indemnização por parte do Estado depende de requerimento apresentado à Comissão de Proteção às Vítimas de Crimes, pelas pessoas referidas nos artigos 2º e 5º, sendo os montantes respetivos fixados segundo juízos de equidade, e, no caso de violência doméstica, dependerá da séria probabilidade de verificação dos pressupostos da indemnização – arts 4º e 6º, do diploma citado. Nos casos não cobertos pela legislação a que se refere o número 1, do art. 5º, o Tribunal pode atribuir ao lesado, a requerimento deste e até ao limite do dano causado, os objetos declarados perdidos ou o produto da sua venda, ou o preço ou o valor correspondentes a vantagens provenientes do crime, pagos ao Estado ou transferidos a seu favor por força dos artigos 109º e 110º, do CP. Fora dos casos previstos na legislação supra referida, isto é para as restantes situações não abrangidas por lei especial, se o dano provocado pelo crime for de tal modo grave que o lesado fique privado de meios de subsistência, e se for de prever que o agente o não reparará, o Tribunal atribui ao mesmo lesado, a requerimento seu, no todo ou em parte e até ao limite do dano, o montante da multa – art. 130º, nº 3, do CP. Nos casos em que o Estado assegure ou adiante a indemnização devida, o mesmo ficará sub-rogado no direito do lesado à indemnização até ao montante que tiver satisfeito – arts 130º, nº 4, do CP e 15º da Lei nº 104/2009. Assistindo ainda ao Estado, através da Comissão de Proteção às Vítimas de Crimes, o direito a exigir da vítima o reembolso total ou parcial das importâncias recebidas, se aquela, posteriormente ao pagamento da provisão ou da indemnização, obtiver, a qualquer título, uma reparação ou uma indemnização efetiva do dano sofrido – art. 16º, da Lei nº 104/2009. 3.6. Restituição de bens apreendidos no processo penal Sobre a apreensão de objetos em processo penal regem os arts 178º a 186º, do CPP. Sendo apreendidos em regra os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova – nº 1, do art. 178º. Os titulares de bens ou direitos objeto de apreensão podem requerer ao juiz de instrução a modificação ou revogação da medida, sendo neste caso correspondentemente aplicável o disposto no art. 68º, nº 5, isto é o incidente poderá correr em separado, com junção dos elementos necessários à decisão. Nos termos do art. 186º, nº 1, do CPP, logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, os objetos apreendidos são restituídos a quem de direito. Ou seja, a manutenção da apreensão, em respeito ao direito de propriedade, constitucionalmente consagrado, sobre os bens apreendidos, terá de obedecer a um princípio de estrita necessidade. Na fase de inquérito quem tem competência para determinar a restituição é o Ministério Público. Em termos gerais, as pessoas a quem devam ser restituídos os objetos são notificadas para procederem ao seu levantamento, no prazo máximo de 90 dias, findo o qual passam a suportar os custos resultantes do seu depósito. 3.6.1. Restituição de bens em processo penal pertencentes à vítima Prevê o art. 83º, do CPP que, a requerimento do lesado, o Tribunal possa declarar a condenação em indemnização cível, no todo ou em parte, provisoriamente executiva, nomeadamente sob a forma de pensão. Esta norma visa afastar o efeito suspensivo imposto pelo recurso da decisão condenatória, previsto no art. 408º, nº 2, al. a), do CPP, permitindo aos lesados mais necessitados obter de uma forma mais expedita a reparação ou compensação pelos danos sofridos. O nº 3, do art. 16º, do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei nº 130/2015, de 04/09, consagra de forma especial o direito à restituição de bens pertencentes à vítima que sejam apreendidos no processo penal, determinando que os mesmos devem ser de imediato examinados e restituídos, salvo quando assumam relevância probatória ou sejam suscetíveis de ser declarados perdidos a favor do Estado. Ou seja, prevê a lei um procedimento de caráter urgente, no sentido de determinar o mais cedo possível o destino a dar aos bens apreendidos da vítima, sem esperar, portanto, pelo decurso do processo ou por qualquer iniciativa da parte daquela. Sendo que o conceito de vítima, para efeitos de aplicação do preceito citado, tem a amplitude que lhe é dada pelo art. 67º-A, do CPP, isto é a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou um dano patrimonial, diretamente causado por ação ou omissão, no âmbito da prática de um crime, bem como os familiares de uma pessoa cuja morte tenha sido diretamente causada por um crime e que tenham sofrido um dano em consequência dessa morte, designadamente o seu cônjuge ou a pessoa que convivesse com a vítima em condições análogas às dos cônjuges, os seus parentes em linha reta, os irmãos e as pessoas economicamente dependentes da vítima. Estando por isso aqui abrangido o crime de violência doméstica. Além desta disposição normativa, uma outra, agora no âmbito específico do regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 3.5.14. Exequibilidade provisória da condenação em indemnização cível 275 - Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 276 - vítimas, constante do art. 21º, nº 3, consagra igual estatuição ao dizer que, “salvo necessidade imposta pelo processo penal, os objetos restituíveis pertencentes à vítima e apreendidos no processo penal são imediatamente examinados e devolvidos”. Especial destaque merece ainda o nº 4 do mesmo artigo ao estabelecer que, independentemente do andamento do processo, à vítima do crime de violência doméstica, nos termos em que resulta definida no art. 2º, é reconhecido o direito a retirar da residência todos os seus bens de uso pessoal e, ainda, sempre que possível, os seus bens móveis próprios, bem como os bens pertencentes a filhos menores e a pessoa maior de idade que se encontre na direta dependência da vítima em razão de afetação grave, permanente e incapacitante no plano psíquico ou físico, devendo os bens constar de lista disponibilizada no âmbito do processo e sendo a vítima acompanhada, quando necessário, por autoridade policial. Segundo o regime exposto, assiste à vítima de violência doméstica um autêntico direito potestativo de recuperar os bens de uso pessoal e os bens móveis próprios ou das pessoas supra mencionadas, retirando-os da respetiva residência, sem quaisquer formalidades, necessitando apenas para o efeito, e quando necessário, de se fazer acompanhar da autoridade policial, devendo posteriormente apresentar a lista dos bens recuperados ao Ministério Público titular o inquérito, de preferência com os documentos ou outros elementos que permitam atestar a titularidade do direito sobre os bens. 3.6.2. Reembolso das despesas resultantes da participação em processo penal No direito à informação consagrado no art. 11º, do Estatuto da Vítima, resulta na al. k), do nº 1, o direito a ser informada de como e em que condições podem ser reembolsadas as despesas que suportou devido à sua participação no processo penal. Acrescentando-se no art. 14º que à vítima que intervenha no processo penal, deve ser proporcionada a possibilidade de ser reembolsada das despesas efetuadas em resultado dessa intervenção, nos termos estabelecidos na lei, em função da posição processual que ocupe no caso concreto. Idêntica disposição normativa resulta do art. 19º, da Lei nº 112/2009, de 16/09, ao estabelecer que à vítima de violência doméstica que intervenha na qualidade de sujeito no processo penal, deve ser proporcionada a possibilidade de ser reembolsada das despesas efetuadas em resultado da sua legítima participação no processo penal, nos termos estabelecidos na lei. Ora, um dos casos em que tal poderá acontecer será no âmbito responsabilidade por custas relativas ao pedido cível. O art. 523º, do CPP, determina a aplicação das normas do processo civil em tal matéria. Porém, nos termos do art. 377º, nº 3, do CPP, na hipótese de condenação no pedido de indemnização cível, o demandado é responsável pelo pagamento das custas suportadas pelo demandante nesta qualidade e, caso cumule, na qualidade de assistente. (Francisco Mota Ribeiro) MANUAL PLURIDISCIPLINAR 1.3. A intervenção dos órgãos de polícia criminal e do Ministério Público 1.3.1. Brevíssima nota sobre o inquérito e a competência do Ministério Público e dos órgãos de polícia criminal IV. Na configuração padrão do processo comum , que utilizaremos por referência, a aquisição da notícia de crime de violência doméstica dá sempre lugar à abertura do inquérito, o Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 278 - - 1. DIVÓRCIO E RESPONSABILIDADES PARENTAIS IV. A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA O Direito da Família e das Crianças 1.1. As situações de violência doméstica assumem (devem assumir) particular relevo no domínio do direito da família, quer diretamente, no âmbito do processo de divórcio, quer no âmbito das demais questões com ele conexas – atribuição da casa de morada de família, regulação do exercício das responsabilidades parentais, tratadas no próprio processo de divórcio ou em processos autónomos – e, ainda, de algumas providências tutelares cíveis de limitação e inibição desse exercício. Isto porque “ a violência doméstica é a violência que ocorre na esfera privada, geralmente entre pessoas que têm relações familiares ou de intimidade” (Resolução nº 58/174, da Assembleia Geral da ONU). O Conselho da Europa, na Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e à Violência Doméstica, 2011, concretiza que a violência doméstica compreende “todos os atos de violência que ocorrem na família ou no agregado doméstico como aqueles que ocorrem entre ex-parceiros ou entre atual parceiros independentemente da vítima e do agressor partilharem a mesma casa” (Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e à Violência Doméstica, 2011). O IV Plano Nacional contra a Violência Doméstica - 2011-2013 - foi delineado e executado nesta perspetiva, considerando a violência doméstica como “todos os atos de violência física, psicológica e sexual perpetrados contra pessoas, independentemente do sexo e da idade [e.g., cônjuge, companheiro/a, filho/a, pai, mãe, avô, avó], cuja vitimação ocorra em consonância com o conteúdo do artigo 152º do Código Penal. (…) Este conceito foi alargado a ex-cônjuges e a pessoas de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação” (não deve confundir-se violência doméstica com violência de género, noção mais ampla que aquela). O V Plano Nacional contra a Violência Doméstica – 2014-2017 – funda-se na Convenção de Istambul e na consciencialização de que a violência de género e, no caso, a violência doméstica constituem uma grave e intolerável violação dos direitos humanos fundamentais. É no mais íntimo da socialização humana que estas situações se verificam. São relações de afeto, de confiança e de intimidade, sejam de conjugalidade ou não, as que se incluem no conceito de Violência Doméstica e, por conseguinte, são objeto de tratamento pelo Direito da Família e das Crianças, beneficiando da sua tutela. 1.2. Divórcio A Lei nº 61/2008, de 31 de outubro, alterou profundamente o paradigma dos fundamentos da ação de divórcio, objetivando os fundamentos do pedido e eliminando o conceito de culpa. A alteração começou pela própria denominação: divórcio sem consentimento do outro cônjuge, ao invés de divórcio litigioso (art. 1773º CC). MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 279 - Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o O DIR EITO DA FAMÍL I A E DA S CR I A NÇA S 280 - - Quanto às causas (fundamento) do divórcio são puramente objetivas (art. 1781º, do CC), independentes de culpa e não dependendo da violação de quaisquer deveres conjugais, apesar de a violação de qualquer dos deveres conjugais consubstanciar uma causa de divórcio objetiva, se significarem rutura definitiva da relação matrimonial. Ao invés do regime vigente até 30 de novembro de 2008, em que apenas (nas situações de divórcio litigioso com fundamento em causas subjetivas, já que também se encontravam previstas causas objetivas fundamentadoras do pedido) o cônjuge inocente podia pedir o divórcio com fundamento na violação dos deveres conjugais por parte do outro, agora qualquer dos cônjuges pode pedir o divórcio sem consentimento com fundamento em causa que demonstre a rutura definitiva da relação matrimonial, seja ela imputável ou não a qualquer dos cônjuges. Significa, assim, sumariamente, que apenas constituem fundamento de divórcio as causas objetivas enunciadas no art. 1781º, do CC, não havendo necessidade de averiguar a “violação culposa dos deveres conjugais” que, pela sua gravidade e reiteração, comprometam definitivamente a relação matrimonial (art. 1779º, do CC, na redação anterior à Lei 61/2008, de 31/10). Contudo, o facto de, por princípio, não ser necessária a verificação da violação dos deveres conjugais para que a ação de divórcio seja procedente e o divórcio decretado, não significa que a violação de tais deveres seja irrelevante para o decretamento do divórcio. Dispõe o art. 1781º (na redação que lhe foi dada pela Lei nº 61/2008, de 31 de outubro), integrado na Subsecção III, da Secção I, do Capítulo XII (“Divórcio e separação judicial de pessoas e bens”), sob a epígrafe “Rutura do casamento: São fundamentos do divórcio sem consentimento do outro cônjuge: a) A separação de facto por um ano consecutivo; b) A alteração das faculdades mentais do outro cônjuge, quando dure há mais de um ano e, pela sua gravidade, comprometa a possibilidade de vida em comum; c) A ausência, sem que do ausente haja notícias, por tempo não inferior a um ano; d) Quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do casamento.” As situações abrangidas pela previsão das al. a), b) e c) não revelam qualquer dificuldade nem relevam neste tema concreto da Violência Doméstica. Mas já a cláusula geral consagrada na al. d), merece a nossa atenção, aqui se incluindo a violação dos deveres conjugais, mesmo que sobre eles se não elabore um juízo de culpa, que impliquem a rutura definitiva do casamento128. 128 No regime anterior não bastava a violação culposa dos deveres conjugais; era necessário: a) uma conduta ilícita e culposa, dolosa ou negligente, do cônjuge infrator violadora dos deveres conjugais (a culpa decorria de um juízo de censurabilidade sobre a conduta do cônjuge, i.e., do reconhecimento de que o cônjuge, nas circunstâncias concretas em que atuou, poderia ter conformado a sua conduta de molde a assegurar a satisfação do dever conjugal cujo cumprimento lhe era exigível nessas mesmas condições); b) como a violação de um dever conjugal não representava uma causa absoluta ou perentória de divórcio, era necessário que se concluísse que essa violação comprometia a possibilidade da vida conjugal: a violação compromete a possibilidade da vida conjugal quando dela resulta uma ofensa grave de qualquer dever conjugal, de modo que o comportamento do cônjuge se mostra especialmente lesivo da convivência conjugal e a continuação da vida conjugal representa um sacrifício desrazoável para o cônjuge ofendido. MANUAL PLURIDISCIPLINAR Como se verifica da exposição de motivos do Projeto de Lei nº 509/X, que deu origem à Lei 61/2008, de 31 de outubro, as situações de violência doméstica encontram-se, sem qualquer margem para dúvidas, abrangidas pela previsão da al. d). Isto mesmo é afirmado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10-02-2011, Rel. Ezaguy Martins, in www.dgsi.pt/jtrl : “Como se assinala no ponto nº 3 da exposição de motivos constante de projeto de lei apresentado à Assembleia da República, de que veio a resultar a lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, «(…) Se o sistema do “divórcio ruptura” pretende reconhecer os casos em que os vínculos matrimoniais se perderam independentemente da causa desse fracasso, não há razão para não admitir a relevância de outros indicadores fidedignos da falência do casamento. Por isso, acrescenta-se uma cláusula geral que atribui relevo a outros factos que mostram claramente a ruptura manifesta do casamento, independentemente da culpa dos cônjuges e do decurso de qualquer prazo. O exemplo típico, nos sistemas jurídicos europeus, é o da violência doméstica – que pode mostrar imediatamente a inexistência da comunhão de vida própria de um casamento (…)”. Qualquer situação de facto que consubstancie violência doméstica constitui violação do dever de respeito, dever esse a que os cônjuges se encontram co-obrigados um para com o outro, preenchendo a previsão da al. d), do art. 1781º, do CC, sendo, por isso, causa objetiva de dissolução do casamento por divórcio. 1.2.1. Regimes Provisórios na pendência da Ação de Divórcio As situações de violência doméstica são também especialmente relevantes para a decisão de algumas questões conexas com o divórcio, cuja decisão, ainda que provisória, pode ser tomada no âmbito do próprio processo. A saber: a regulação do exercício das responsabilidades parentais – especialmente no que respeita ao exercício conjunto das responsabilidades parentais, residência partilhada e regime de convívios do progenitor não residente com os filhos -, atribuição da casa de morada de família e atribuição de alimentos aos cônjuges. Com efeito, determina o art. 931º, nº 7, do Código de Processo Civil: “Em qualquer altura do processo, o juiz, por iniciativa própria ou a requerimento de alguma das partes, e se o considerar conveniente, pode fixar um regime provisório quanto a alimentos, quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais dos filhos e quanto à utilização da casa de morada da família; para tanto, o juiz pode, previamente, ordenar a realização das diligências que considerar necessárias”. Analisemos cada uma destas providências: 1.2.2. A Regulação Provisória do Exercício das Responsabilidades Parentais Tramitação processual A regulação provisória do exercício das responsabilidades parentais no âmbito e durante a pendência do processo de divórcio encontra-se prevista no art. 931º, nº 7, do Código de Processo Civil. Contudo, este normativo não fixa qualquer tramitação a observar para se obter tal desiderato, constituindo particularidade assinalável a circunstância de tal regulação provisória poder partir da iniciativa do julgador. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 281 - Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o O DIR EITO DA FAMÍL I A E DA S CR I A NÇA S 282 - - É estruturante do nosso sistema jurídico a observância do princípio do contraditório e da paridade de armas. Assim, se uma das partes no processo de divórcio requerer a fixação de um regime provisório, deve ser ouvida a parte contrária, em prazo a fixar. O mesmo se deve observar se a fixação do regime provisório partir da iniciativa do tribunal, devendo neste caso ser concedido prazo a ambas as partes antes de ser realizada qualquer diligência probatória e ser tomada a decisão, a não ser que razões de urgência ditadas pelo superior interesse da criança exijam um exercício do contraditório pós sentencial (à semelhança do que acontece com as providências cautelares, previstas nos artigos 362º e ss., do CPC, e no regime provisório previsto e regulado no art. 28º, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, doravante RGPTC, aprovado pela Lei nº 141/2015, de 8 de setembro). Como a lei processual não fixa um ritualismo a observar, verificam-se algumas dificuldades, principalmente a nível da instrução destes procedimentos. De facto, na maioria das vezes, os tribunais seguem o regime processual previsto para o processo especial de regulação do exercício das responsabilidades parentais como se ele fosse igualmente o caminho processual adequado à tramitação destes regimes provisórios (que não é). Este modo de processar impede a tomada de decisões céleres, como aquelas que se querem e se preveem nesta sede. Em nosso entender, estes regimes provisórios só se justificam em situações de urgência, cautelarmente. Assim, na falta de um caminho processual imposto pelo legislador, o julgador deve socorrer-se de institutos semelhantes e recorrer à interpretação e aplicação analógica. Classificando estes procedimentos como cautelares (como fez o art. 28º, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível - RGPTC), nada impede que sejam aplicadas as regras que regulam o procedimento cautelar comum, regulado no art. 362º e ss., do CPC (regime que foi seguido na regulamentação da providência provisória e cautelar, prevista no citado art. 28º, do RGPTC), antes pelo contrário, pois a isso nos leva o art. 549º, nº 1, do CPC, obtendo-se desta forma segurança jurídica a nível processual. Nas providências cautelares reguladas nos arts 362 e ss., do CPC (tal como na providência específica do art. 28º, do RGPTC), o princípio geral é o da audição prévia das partes, exceto se a audiência colocar em risco sério o fim ou a eficácia da providência (art. 366º, do CPC). Deste modo, na fixação deste regime, quer seja da iniciativa do tribunal, quer tenha sido pedido por algum dos progenitores, há que ouvir a(s) parte(s), realizar os atos probatórios requeridos e/ou considerados indispensáveis pelo tribunal e após proferir decisão129. Regime substantivo As responsabilidades parentais devem ser reguladas sempre que a filiação se encontre estabelecida quanto a ambos os progenitores e exista uma situação de dissociação 129 E poderá ser requerida a inversão do contencioso? Esta é uma questão controvertida. Mas cuja resposta entendemos dever ser negativa, tendo em conta os interesses em causa – o superior interesse da criança. Quer-nos parecer que uma decisão definitiva (resultante de uma inversão do contencioso) com base em provas sumárias poderia ser prejudicial para a criança. MANUAL PLURIDISCIPLINAR familiar, em virtude de separação de facto, divórcio ou inexistência de vida em comum (arts 1906º, 1911º, 1912º). A regulação do exercício destas responsabilidades parentais, de conteúdo jurídico e fatual complexo e subjetivo, implica necessariamente definir o exercício das responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância, à residência da criança, ao regime de convívios da criança com o progenitor eventualmente não residente, em situações de residência única, a repartição dos tempos livres da criança em situações de residência partilhada e a fixação da prestação alimentar (arts 1878º, 1905º e 1906º CC). É a situação específica de cada família e o ser individual e insubstituível de cada criança que define o conteúdo do exercício das responsabilidades parentais, a que os seus pais estão obrigados, relativamente a si. Exercício das responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância Cuidar implica sempre e em cada momento tomar decisões. Essas decisões podem respeitar a atos da vida corrente - o que vestir, o que comer, horário de deitar, levantar, etc. -, ou a questões importantes da vida da criança, como a escolha da religião, a realização de uma cirurgia, a mudança da residência da criança para o estrangeiro, viagem para países em conflito armado, escolha de ensino particular ou oficial para a escolaridade do filho, decisões de administração de bens do filho que envolvam oneração, participação em programas de televisão que possam ter consequências negativas para o filho, autorização parental para o filho contrair casamento, propositura de ação – ou queixa - em representação processual do filho menor, entre outras. Como bem se compreende, os atos da vida corrente são decididos pelo progenitor com quem a criança se encontre no momento em que surja a necessidade de decidir. Já quanto às decisões de particular importância, elas podem ser tomadas apenas por um dos progenitores ou por ambos, consoante o regime fixado judicialmente seja o do exercício unilateral/singular ou conjunto das responsabilidades parentais. A nossa lei civil consagra a regra do exercício conjunto das responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância da vida do filho (art. 1906º, nº 1, do CC), podendo tal regime ser afastado sempre que o exercício em comum das responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho seja julgado contrário aos interesses deste (nº 2 do mesmo artigo), cabendo nesta última situação ao progenitor que não exerça as responsabilidades parentais (o «non resident parent») o poder de vigiar a educação e as condições de vida do filho (artigo 1906º, nº 6, CC). Podem fundamentar o exercício unilateral ou singular das responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho a prática de atos de violência doméstica, a conceção da criança na sequência de um crime de violação, total ausência de diálogo e absoluta incapacidade de os progenitores se relacionarem entre si, desinteresse absoluto do outro progenitor pelo filho, o grande afastamento geográfico entre um dos progenitores e o filho e a ausência em parte incerta de algum dos progenitores. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 283 - Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o O DIR EITO DA FAMÍL I A E DA S CR I A NÇA S 284 - - O Novo Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei nº 141/2015, de 8 de setembro, veio prestar um grande contributo, ao determinar no art. 40º, nº 9, que “presume-se contrário ao superior interesse da criança o exercício em comum das responsabilidades parentais quando seja decretada medida de coação ou aplicada pena acessória de proibição de contacto entre os progenitores”. Esta presunção não obsta a: i) que o juiz fixe o regime do exercício conjunto das responsabilidades parentais130; ou ii) que o juiz fixe o exercício unilateral ou singular das responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho, ainda que não tenha sido decretada medida de coação ou aplicada pena acessória de proibição de contacto entre os progenitores131. Apurada que seja uma situação de violência doméstica, decretada medida de coação ou aplicada pena acessória de proibição de contacto entre os progenitores, e não sendo afastada a presunção referida, deve o juiz decidir o exercício singular/unilateral das responsabilidades parentais. A determinação da residência da criança O melhor regime de residência é aquele que faça feliz a criança, que lhe proporcione bem-estar e segurança, mediante a satisfação de todas as suas necessidades. A criança é a destinatária principal da decisão, seja ela tomada por acordo ou pelo tribunal. O interesse orientador a proteger e, afinal, a alcançar é o da criança e, por esta via, o dos seus pais. Num mundo ideal e dos princípios, a residência partilhada é aquela que parecerá como a melhor para a criança. Mas nem sempre é assim. Na verdade, para que o Tribunal fixe o regime da residência partilhada devem verificar-se de forma clara, nomeadamente quanto aos pais: • terem capacidade de cooperar e dialogar um com o outro; • terem uma relação afetiva sólida e a situação de rutura bem resolvida, sabendo colocar em segundo plano os diferendos pessoais; • revelarem capacidade para avaliar os interesses do filho e de os priorizar; • respeitarem-se um ao outro como pessoa e como pais; • partilharem identidade de vida e de valores que lhes permita delinear um único caminho no que respeita à educação, saúde, ensino e religião do filho, proximidade de residências, flexibilidade emocional e de horários. 130 131 A consagração desta presunção apenas faz recair sobre a pessoa do progenitor, arguido no processo-crime, o ónus de provar que o exercício conjunto das responsabilidades parentais não é contrário aos interesses do filho - estamos perante uma inversão do ónus da prova. Se não existir ainda processo-crime, ou se apesar de ter havido já denúncia ainda não tiver sido aplicada medida de coação, se no processo de RERP se se apurar a existência de uma situação de violência doméstica deve ser ponderada a não fixação do regime do exercício comum das responsabilidades parentais. MANUAL PLURIDISCIPLINAR Quando os pais não partilham os mesmos valores e princípios de vida, com reflexos na educação, saúde, educação e religião do filho, é certo que não conseguem exercer as responsabilidades parentais no que respeita às questões de particular importância, quanto mais partilhar a residência do filho… Como é óbvio, a residência partilhada implica que os pais não residam a grande distância um do outro, sob pena de a criança não ter estabilidade no ensino e ficar sujeita a grandes viagens, o que, para a organização dos tempos e das rotinas da criança, não é favorável. Quando a realidade familiar se encontra marcada por situações de violência doméstica é - em princípio - desaconselhável o regime da residência partilhada. De facto, neste tipo de situações existem muitas feridas a curar, feridas que dificilmente não se alastram a todo o universo familiar, afetando a capacidade de diálogo e a capacidade de colocar os interesses do filho em primeiro lugar. Sempre que a vítima se encontre acolhida em Casa de Abrigo conjuntamente com os filhos menores e o agressor julgado e condenado, não deve ser fixada residência partilhada (devendo, inclusivamente, o regime de contactos/convívios ser devidamente pensado e, em determinadas situações, mesmo suspenso). Este entendimento tem sido alvo de crítica, alegando-se a existência de falsas denúncias de violência doméstica para se obter o afastamento de um dos progenitores dos filhos. Esta crítica não tem razão de ser sempre que a vítima e respetivos filhos se encontrem em Casa de Abrigo, já que este acolhimento está sujeito a uma avaliação cuidada da pessoa da vítima e respetiva situação, realizada por técnicos especializados na avaliação do risco e do nível de proteção necessário à situação concreta. Mas mesmo que a vítima não se encontre acolhida, entendemos que a residência partilhada não se compadece com realidades familiares marcadas por situações de violência doméstica. Não só a agressividade passa, passa também o medo e a dor. Este regime de exercício das responsabilidades parentais implica um constante diálogo e contactos frequentes, difíceis (quase impossíveis) de estabelecer neste tipo de relações. As crianças precisam de relações que lhes proporcionem estados emocionais e vivências seguras e reconfortantes. Mesmo o estabelecimento de convívios entre a criança e o agressor (a) pode ser desaconselhado. Como em qualquer regulação do exercício das responsabilidades parentais, há que estudar a pessoa da criança, perceber e apurar as suas necessidades específicas (decorrentes da sua idade, de alguma particularidade determinada pelo estado de saúde, físico ou emocional ou outra), analisar as capacidades parentais de cada um dos progenitores e decidir, antes de tudo, a fixação de uma guarda ou residência partilhada ou, concluindo-se pela inadequação da mesma para a pessoa da criança, pela residência única. Chegado a este momento de fixação da residência com um dos progenitores, o julgador tem que ter em consideração, na escolha do progenitor residente, que este tem que ser aquele que é capaz, ou mais capaz, de satisfazer as necessidades gerais e específicas da criança, de manter e dar continuidade às relações afetivas da criança, aqui se incluindo os avós (a não ser, obviamente, que tal implique algum risco para a criança ou seus pais), a estabilidade do ambiente que cada um pode facultar ao filho e (muito importante) a MANUAL PLURIDISCIPLINAR 285 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O DIR EITO DA FAMÍL I A E DA S CR I A NÇA S imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 286 - - vontade de promover relações habituais do filho com o outro (sempre que estas se mostrem benéficas para a criança). Os alimentos a prestar pelos obrigados devem ser os adequados à satisfação de todas as necessidades do alimentando, limitados, porém, pelas possibilidades do obrigado (arts 2004º, nº 1, do CC)133. Organização dos tempos da criança (visitas e férias) Fixação de Alimentos provisórios a favor de um dos cônjuges pelo outro Quer seja fixado um regime de residência partilhada ou residência única, é necessário determinar como se organizarão os tempos livres de criança, ou seja, fins de semana e férias.132 Para além dos factos específicos a ponderar para a fixação de um regime adequado à manutenção ou recuperação de relações afetivas entre a criança e o(s) progenitores(s), sempre que a família se encontre afetada por uma situação de violência doméstica, os cuidados são redobrados e o juízo de benefício para a criança mais difícil e exigente. Mas, também quanto a este aspeto, o RGPTC veio consagrar em letra de lei uma prática já existente, mas que assim fica reforçada, no art. 40, nº 2, ao prever que o Tribunal pode determinar que os contactos/convívios sejam supervisionados pela equipa multidisciplinar de assessoria técnica ao tribunal sempre que tal se justifique. Apesar de o legislador não enumerar taxativamente as situações em que os convívios devem ser supervisionados, sempre que, no âmbito de processo crime, seja decretada medida de coação ou aplicada pena acessória de proibição de contacto entre os progenitores (por exemplo em situações de violência doméstica), o regime de visitas pode ser condicionado, executado através da mediação de profissionais especializados ou até suspenso (art. 40º, nº 10, do RGPTC, arts 14º, nº 2 e 37º-B, nº 1, da Lei nº 112/2009, de 16.09, redação da Lei nº 129/2015, de 3.09 e art. 31º, nos 1 e 2, da Convenção de Istambul). Para esta tomada de decisão, há que averiguar, com profundidade e exatidão, o tipo de violência exercida, sobre quem, que efeitos teve, e tem, sobre a pessoa da criança, que risco importa para a pessoa da criança e do progenitor que com ela reside, a execução de um qualquer regime de convívios, ainda que acompanhados, e só então concluir pela fixação de convívios ou pela sua suspensão. O regime a alcançar e a fixar deverá ser o que, respeitando a criança, se mostre adequado a proteger e promover os seus direitos. Prestação de Alimentos a favor da criança Na regulação provisória das responsabilidades parentais não pode ser olvidada a satisfação das necessidades da criança através da prestação alimentar. Prestar alimentos aos filhos constitui uma das obrigações parentais e onde se manifestam, por vezes, outras necessidades, como a de educação ou de cuidados médicos, cuja satisfação importa quantificar e, além da autonomia que necessariamente têm, são igualmente ponderadas para a fixação do quantum da prestação alimentar. 132 Os critérios a tomar em conta para a fixação do regime de convívios podem ser estudados em: Helena Bolieiro e Paulo Guerra, A Criança e a Família: Uma Questão de Direito(s) – Visão Prática dos Principais Institutos do Direito da Família e das Crianças e Jovens (2ª Edição), Coimbra 2014, e em Divórcio e Responsabilidades Parentais-Guia Prático [Em linha], 2ª Edição, Lisboa: Centro de Estudos Judiciários, disponível na internet em: http://www.cej.mj.pt/cej/ recursos/ebooks/familia/guia_pratico_divorcio_responsabilidades_parentais.pdf. MANUAL PLURIDISCIPLINAR Pode ser fixada pensão de alimentos a um dos cônjuges pelo outro, como previsto no artigo 931º, nº 7, do Código de Processo Civil. Para a fixação deste regime, o juiz pode (deve) convidar as partes a alegar factos (se não tiverem sido alegados) e a juntar prova documental e testemunhal que o habilite a decidir, se considerar que os autos não contêm elementos necessários para o efeito. Em primeiro lugar, salienta-se que esta providência para fixação do regime provisório tem natureza cautelar134 e, por conseguinte, não deve ser realizada com os formalismos da ação principal, sob pena de a decisão não ter ou não poder ter efeito útil. Há, em nosso entender, que aplicar o regime consagrado no art. 384º e ss., do Cód. Proc. Civil, aplicável ex vi art. 549º, nº 1, do CPC. Esta providência deve ser analisada e decidida com especial cautela, já que os alimentos provisórios recebidos não são restituídos (cfr. art. 2007º, nº 2, do Cód. Civil). A fixação e observância de regras processuais claras e inequívocas para todos constitui um elemento imprescindível para se alcançar, em plenitude, a segurança jurídica essencial num Estado de Direito Democrático. Sempre que os autos não contenham elementos que habilitem o juiz a decidir, este deve convidar as partes a juntar prova, fixando um prazo ( judicial) curto – por ex., 10 dias -, socorrendo-se, supletivamente, das regras processuais previstas para a providência cautelar de alimentos provisórios, fazendo referência, no despacho judicial, ao regime que se decide aplicar para que as partes saibam o ritualismo que devem observar (art. 384º, do CPC, ex vi art. 549º, nº 1, do mesmo diploma legal). No que respeita às questões substantivas, há que ter presente o seguinte: na pendência da ação de divórcio, os deveres conjugais estão em vigor. Só com a dissolução do casamento (neste caso com o divórcio) tais deveres deixam de vincular os cônjuges; aliás, o comando do art. 2015º, do Código Civil, não deixa margem para outra interpretação, ao determinar que “na vigência da sociedade conjugal (como é o caso dos alimentos fixados nos termos do art. 931º, nº 7, do CPC), os cônjuges estão reciprocamente obrigados à prestação de alimentos nos termos do art. 1675º do mesmo código”, o qual, por sua vez, consagra que este direito/dever de assistência se mantém durante a separação de facto (o preceito ainda mantém a referência à imputabilidade/culpa da separação, como estava previsto e delineado antes das alterações da Lei 61/2008, de 31/10). Atualmente, a lei não fixa qualquer critério específico para fixação de alimentos provisórios, seja nestas situações de pendência de pedido de divórcio seja na providência cautelar de alimentos provisórios, regulada no atual art. 384º e ss., do Cód. Proc. Civil, A fixação da prestação alimentar não assume particularidades nestas situações de violência doméstica, pelo que para cabal compreensão da questão remete-se para Helena Bolieiro e Paulo Guerra, ob. cit, e para o E-book do CEJ já identificado. 134 À semelhança do que se escreveu a propósito da fixação provisória do exercício das responsabilidades parentais. 133 MANUAL PLURIDISCIPLINAR 287 - Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o O DIR EITO DA FAMÍL I A E DA S CR I A NÇA S 288 - - ao contrário do que sucedida no art. 399º, nº 2, do anterior Código Processo Civil, em vigor até ao passado dia 31/08/2013, onde se determinava expressamente: “a prestação alimentícia provisória é fixada em função do estritamente necessário para o sustento, habitação e vestuário do requerente”. Eliminado o correspondente ao nº 2, do art. 399º anterior, o critério é definido no art. 2003º, nº 1, do CC, no que respeita ao conteúdo do direito alimentar, e o estabelecido nos arts 2004º e 2007º, do CC, no que respeita à medida dos mesmos. Assim, é essencial que o obrigado a alimentos os possa prestar e quem os receba os deva receber, no sentido de não possuir meios que lhe permitam prover à sua subsistência, na exata medida das possibilidades do primeiro e das necessidades do segundo. Os alimentos compreendem o indispensável para o sustento, habitação e vestuário, mas também deverão salvaguardar o padrão de vida do alimentando cônjuge, isto é, tudo aquilo que integre o nível de vida correspondente ao estatuto ou condição económico-social da respetiva família, uma vez que nos encontramos no domínio do dever de assistência durante a vigência da sociedade conjugal. Todavia, na determinação ou fixação da prestação alimentícia (como acima se referiu), haverá que tomar em conta, além das necessidades de um, as possibilidades do outro (rendimentos do trabalho, juros de capitais ou rendas de imóveis, etc), nisto se traduzindo, afinal, o preceituado no art. 2004º, do Código Civil. Cumpre, ainda, referir que se entende irrelevante o facto de o alimentando ter outras pessoas, familiares, dos quais possa obter ajudas financeiras, uma vez que a obrigação alimentar do cônjuge prevalece sobre essas pessoas - art. 2009º, do Cód. Civil135. Assim ele a possa prestar. prisão preventiva pela da permanência na habitação [contra o disposto no art. 31º, nº 1, al. c)] ou de apresentações periódicas e TIR. Há que ponderar, no entanto, que esta providência nem sempre se mostra adequada à situação concreta das vítimas, nomeadamente por razões emocionais e sociais. Existem, assim, situações reais em que a tomada de decisão provisória, como a apontada, de forma articulada com o processo-crime quando exista, pode revelar-se suficiente e adequada à situação, com a menor intervenção possível na intimidade das pessoas a proteger. Sempre que o Tribunal, a requerimento ou oficiosamente, decretar esta providência, deve fixar o valor da contrapartida a pagar pelo cônjuge que ficar a usufruir da casa que foi de morada de família, como resulta do disposto no art. 1793º, nº 1 (“Pode o tribunal dar de arrendamento…”) e nº 2, do CC (“O arrendamento previsto no número anterior fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, mas o tribunal pode definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges…”). Para este efeito, sempre que o imóvel pertença ao outro cônjuge, o Tribunal pode realizar uma avaliação do valor locativo do imóvel, a fim de, com base em tal valor, fixar a renda que se mostre mais adequada à situação concreta, que não se rege, como está bem de ver, pelas regras do mercado imobiliário, vigorando também aqui critérios de equidade imanentes à natureza de jurisdição voluntária desta providência (art. 1793º, nº 3, do CC e 987º, do CPC). Qual o iter processual a seguir? Tal como defendemos a propósito da regulação provisória do exercício das responsabilidades parentais e dos alimentos entre cônjuges, entendemos que devem ser observadas as regras das providências cautelares (procedimento cautelar comum), consagradas nos arts 362º e ss., do CPC, o que deve constar expressamente no despacho judicial. Atribuição da Casa de Morada de Família 1.3. Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais O art. 1793º prevê a possibilidade de o tribunal dar de arrendamento a um dos cônjuges a casa de morada de família, ainda que seja bem próprio do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal. Em situações de violência doméstica demonstradas no processo, o juiz pode, diria deve, decidir atribuir a casa de morada de família, provisoria e oficiosamente, ao cônjuge vítima, sempre que tal solução se mostre adequada e não coloque a vítima em maior risco. Esta decisão evita uma das principais consequências da saída das vítimas e seus filhos da casa de morada de família e sua integração em casas de abrigo: o desenraizamento social e escolar das crianças, numa fase tão dolorosa das suas vidas. A atribuição da casa de morada de família deve ser decidida oficiosamente no processo de divórcio sempre que o arguido/a se encontre em prisão preventiva, assegurando-se à vítima e eventuais filhos menores a legitima fruição do espaço habitacional. Nestes casos, o foro de Família deve informar o processo criminal, independentemente da fase em que se encontre, a fim de se evitarem situações de substituição da medida de coação da 135 Os restantes obrigados podem contudo ser chamados a prestar alimentos se o cônjuge obrigado a alimentos não puder, por insuficiência de possibilidades económico-financeiras satisfazer todas as necessidades do cônjuge alimentando. MANUAL PLURIDISCIPLINAR A Ação Especial de Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais encontra-se regulada no RGPTC, aprovado pela Lei nº 141/2015, de 8 de setembro, o qual introduziu significativas alterações processuais, com reflexo, algumas delas, a nível substantivo (v.g. o que se consagrou no art. 40º sobre a decisão). O processo inicia-se, como qualquer outro, através do impulso processual das pessoas com legitimidade para o efeito (Ministério Público, doravante MP), progenitores, criança maior de 12 anos, avós, irmãos e representante legal da criança, cfr. art. 17os do RGPTC), mediante a apresentação do competente requerimento inicial. Recebido o requerimento inicial, o juiz marca a conferência de pais, convocando os pais, a criança (art. 35º) podendo, se entender conveniente, convocar os avós, outros familiares e pessoas de especial referência afetiva para a criança (35º, nº 1 e 2, do RGPTC). Na conferência, estando presentes todos os convocados, o juiz, com a participação obrigatória do MP (art. 17º, nº 3), procurará conciliar as partes e regular o exercício das responsabilidades parentais por acordo, o qual será homologado por sentença se salvaguardar os interesses da criança (art. 37º, nos 1 e 2). MANUAL PLURIDISCIPLINAR 289 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O DIR EITO DA FAMÍL I A E DA S CR I A NÇA S imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 290 - - Faltando um ou ambos os pais (citados pessoalmente), o juiz toma uma de duas decisões: adia a conferência, designando nova data, ou ouve as pessoas presentes (art. 37º, nos 4 e 3). Se decidir ouvir os presentes, nos termos do nº 3, do art. 37º, faz exarar em auto as declarações e determina a realização das diligências instrutórias necessárias (art. 21º, do RGPTC)136. Realizadas as diligências ordenadas, as mesmas são notificadas às partes, em obediência ao disposto no art. 25º. Decorrido o prazo de pronúncia, ou estando prestados os esclarecimentos eventualmente requeridos, é o processo continuado com vista ao MP para emissão de parecer, igualmente notificado às partes, seguindo-se então a decisão. As decisões proferidas nestas situações baseiam-se, na grande maioria dos casos, quase em exclusivo nos elementos probatórios recolhidos para o processo, através dos técnicos que compõem as equipas de assessoria técnica de apoio ao Tribunal, assumindo assim uma capital relevância e responsabilidade. Faltando um ou ambos os pais citados por éditos para a conferência (art. 36º), é solicitado ao respetivo Conselho Regional da Ordem dos Advogados a nomeação de defensor oficioso ao ausente (art. 21º, nº 2, do CPC), procedendo-se, depois da nomeação, nos termos fixados no art. 37º, nº 3 e 21º, do RGPTC. Realizadas as diligências instrutórias determinadas137, é o seu resultado notificado às partes nos termos e para os efeitos do art. 25º, do RGPTC, após o que o MP emite o competente parecer (igualmente notificado às partes – art. 25º, do RGPTC), seguindo-se a decisão judicial, nos mesmos termos referidos no parágrafo anterior. A maior parte das situações necessitadas de regulação do exercício das responsabilidades parentais resolve-se por acordo em conferência de pais, acordo esse homologado por sentença, nos termos já referidos. Não obstante, nas situações marcadas por maior conflito causado por situações tão diversas como, por exemplo, a violência doméstica, porque é desta situação que tratamos, o acordo mostra-se irrealizável ou contrário aos interesses da criança. Nestas situações, estando ambos os progenitores presentes (ou representados nos termos do nº 4, do art. 35º) e não sendo alcançado acordo ou, sendo este alcançado, não seja homologado por não satisfazer os interesses da criança, segue-se a tramitação fixada no art. 38º: i) o juiz decide provisoriamente138 sobre o pedido, em função dos elementos já obtidos139 ; ii) suspende a conferência e remete as partes obrigatoriamente para: • mediação, verificados os pressupostos do art. 24º, por um período máximo de 3 meses, ou; • audição técnica especializada, nos termos previstos no art. 23º, por um período máximo de 2 meses. Finda a Audição Técnica Especializada, decorrido o respetivo prazo ou mostrando-se esta inoperante, o Tribunal é informado do resultado e notifica as partes para a continuação da conferência, que se realiza nos cinco dias imediatos. Na continuação da conferência, pode ser alcançado acordo. Se tal acontecer, o mesmo deve ser homologado se satisfizer os interesses da criança. Se não for alcançado acordo, são as partes notificadas para alegar, juntar e requerer a produção dos meios de prova (art. 39º, nos 1, 2 e 3). Finda a Mediação, decorrido o prazo fixado ou mostrando-se a mesma inviável, o Tribunal é informado e marca a continuação da conferência (em 5 dias). Nesta, verificando-se acordo que satisfaça os interesses da criança, é o mesmo homologado por sentença. Não sendo possível alcançar acordo, são as partes igualmente notificadas para em 15 dias alegar e juntar/requerer meios de prova (art. 39º, nos 1, 2 e 3). Nestes processos, cuja natureza é de jurisdição voluntária, o juiz não está limitado nem à alegação das partes, nem aos meios de prova requeridos. Nos processos desta natureza, o juiz tem o poder/dever de determinar a realização de todas as diligências que entender necessárias, devendo, de igual modo, indeferir a realização das que, sendo requeridas, se manifestem desnecessárias ou dilatórias [art. 986º, nº 2, do CPC e 39º, nº 5, do RGPTC, aqui limitadas, dada a fase processual em que o processo se encontra, às previstas nas als. a), c), d) e e), do art. 21º]. Juntas alegações ou apresentada prova, realiza-se a audiência de discussão e julgamento, no prazo máximo de 30 dias, com observância do disposto nos arts 39º, nº 7 e 29º, do RGPTC e 604º, do CPC.140 A Audiência decorrerá nos termos previstos nos arts. 29º a 31º, com recurso ainda ao art. 604º, do CPC141 (atento o disposto no art. 33º, nº 1, do RGPTC, uma vez que as regras a que deve obedecer a audiência não se encontram integralmente previstas no RGPTC). Realizada a audiência, deve ser proferida sentença no prazo de 15 dias (art. 986º, nº 3, CPC). A sentença obedece ao formalismo legal fixado no art. 607º e ss., CPC (identificação das partes, objeto do litígio, indicação das questões a solucionar, discriminação dos Que diligências instrutórias são estas? Estão previstas no art. 21º, ex vi 37º, nº 3 (na falta de um ou de ambos os pais): i) depoimentos das partes, outros familiares e pessoas com relevância afetiva para a criança; ii) Audição técnica especializada e ou mediação das partes (se o entender conveniente); iii) Toma declarações aos técnicos das equipas multidisciplinares de assessoria técnica; iv) Solicita informações às equipas multidisciplinares de assessoria técnica ou entidades externas; v) Solicita a elaboração de Relatório por parte da equipa multidisciplinar de assessoria técnica (o relatório apenas tem lugar nos casos expressamente previstos na lei e quando for realmente indispensável a sua realização, nos termos previstos no nº 5, do art. 21º). 137 Vide nota anterior. 138 Não possuindo elementos suficientes para fixar provisoriamente observa o disposto no art. 28º, do RGPTC. A tramitação apresenta uma aproximação ao regime processual das providências cautelares cíveis (art. 366º, do CPC), sendo o princípio geral o da audição prévia das partes, exceto se a audiência colocar em risco sério o fim ou a eficácia da providência. 139 A fixação do regime provisório (abrange os pedidos de alteração do nº 2, do art. 28º, do RGPTC) pode ser requerido por qualquer das partes, ou não o sendo deve ser oficiosamente fixado nos termos do normativo referido – art. 38º. Para a tomada de decisão, que envolve as questões que devem ser decidias na sentença final, o Tribunal pode/deve ordenar as diligências que se tornem indispensáveis à execução efetiva da decisão. O art. 39º, nº 8, determina que as testemunhas são apresentadas pelas partes no dia do julgamento (art. 39º, nº 8); Contudo, este normativo não pode ser interpretado desacompanhado dos arts 500º, 502, nº 2 e 507º, nº 2, do CPC, sob pena de se coartar a possibilidade de as testemunhas serem ouvidas por videoconferência e se limitar de forma intolerável o direito fundamental de acesso ao direito e do direito a um processo equitativo, o que redundaria numa grosseira violação do art. 6º, da CEDH. 141 Aberta a audiência o juiz procura conciliar as partes, tomando declarações às que estejam presentes; se não conseguir a conciliação passa-se à produção de prova, observando-se a ordem seguinte: ◦ Tomada de declarações às partes [art. 29º, nº 1, al. a), do RGPTC]; ◦ Audição da criança se não tiver sido ouvida, e caso o tenha sido, se for necessário ouvi-la novamente (art. 5º, nº 6, RGPTC); ◦ Declarações aos técnicos [conjugação do art. 20, nº 4 e o 29º, nº1, als b) e c), do RGPTC]; ◦ Esclarecimentos aos peritos [art. 604º, nº 3, al. c), do CPC, uma vez que o art. 29º, não prevê todos os atos da audiência pelo que temos que nos socorrer do CPC atento o disposto no art. 33º, nº 1, do RGPTC]; ◦ Depoimento às testemunhas [art. 604º, nº 3, al. d), do CPC]; ◦ Alegações orais por tempo não superior a 30 minutos exceto em casos de grande complexidade, autorizado pelo juiz [art. 29º, nº 1, al. c), do RGPTC]. MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 136 140 291 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O DIR EITO DA FAMÍL I A E DA S CR I A NÇA S imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 292 - - factos provados e respetiva motivação, analisando criticamente as provas e indicando as ilações e presunções de que se socorreu, seguindo-se o a subsunção dos factos ao direito). Para além deste formalismo, o juiz observa o que dispõem os arts. 40º e 1905º, 1906º e ss., do CC, pelo que a sentença tem que: i) Regular o exercício das responsabilidades parentais, de harmonia com o superior interesse da criança, entregando-se a residência da criança: - a ambos ou a um dos progenitores; - a outro familiar; - a terceira pessoa; ou - a instituição de acolhimento. ii) Decidir o exercício conjunto ou unilateral das responsabilidades parentais, respeitantes às questões de particular importância da vida da criança; iii) Fixar o regime de convívios ou organização do tempo da criança, podendo o tribunal determinar que os contactos/convívios sejam supervisionados pela equipa multidisciplinar de assessoria técnica, ou suspensos quando o superior interesse da criança o exija; iv) Determinar que a administração dos bens do filho seja realizada apenas pelo progenitor a quem a criança não foi confiada, sempre que tal se afigure necessário à proteção dos interesses da criança; v) Se a criança for confiada a terceira pessoa ou a instituição de acolhimento, o tribunal tem que decidir a qual dos progenitores (ou ambos) compete o exercício das responsabilidades parentais, na parte não abrangida pelos poderes e deveres que àqueles devem ser atribuídos para o adequado desempenho das suas funções; vi) Quando julgue que existe risco de incumprimento da decisão, o juiz pode determinar o acompanhamento da execução do regime pelos serviços de assessoria técnica por determinado período de tempo (nº 6)142. O Regime Geral do Processo Tutelar Cível veio consagrar, no nº 9, do art. 40º, uma presunção de contrariedade ao superior interesse da criança, relativamente ao exercício em comum das responsabilidades parentais, quando seja decretada a medida de coação ou aplicada a pena acessória de proibição de contacto entre os progenitores (nº 9). Igualmente, o nº 10, do mesmo dispositivo legal, prevê que, quando seja decretada a medida de coação ou aplicada a pena acessória de proibição de contacto entre os progenitores, o regime de visitas pode ser condicionado, sujeito a mediação de profissionais ou suspenso (nº 10 e 3, do art. 40º).143 1.3.1. Decisões provisórias e cautelares no âmbito do processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais. O art. 28º, nº 1, do RGPTC, sob a epígrafe “Decisões provisórias e cautelares”, estabelece que “em qualquer estado da causa e sempre que o entenda conveniente, a requerimento ou oficiosamente, o tribunal pode decidir provisoriamente questões que devam ser apreciadas a final, bem como ordenar as diligências que se tornem indispensáveis para assegurar a execução efetiva da decisão”. Ao contrário do que sucedia no âmbito da O.T.M. (art. 157º144), é agora consagrado um ritual processual (ainda que não exaustivo e completo) a cumprir. Na verdade, sendo peticionada a regulação provisória das responsabilidades parentais por uma das partes, ou se esta partir da iniciativa do juiz, em observância ao disposto no art. 38º, por exemplo, o tribunal deve ouvir a (s) parte (s) (nº 4, do art. 28º), podendo, no entanto, não cumprir o princípio do contraditório se a audiência da outra ou ambas as partes (se a iniciativa pertencer ao tribunal ou ao MP) colocar em risco sério o fim ou a eficácia da providência. O art. 28º não fixa o prazo de que as partes dispõem para se pronunciar, considerando-se, por isso, o prazo supletivo geral de 10 dias consagrado no art. 149º, do CPC, ex vi art. 33º, do RGPTC. Sempre que a providência for decretada sem audição das partes ou de uma delas, estas podem: • recorrer, nos termos gerais (arts 32º, do RGPTC), se entender que não deveria ter sido decretada, ou • deduzir oposição (no prazo de 10 dias, art. 149º, nº 1, do CPC, ex vi art. 33º, do RGPTC), quando pretenda alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo Tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinem a sua redução. Quando as partes forem ouvidas (no prazo já referido de 10 dias, art. 149º, nº 1, do CPC, ex vi art. 33º, do RGPTC) antes do decretamento da providência, apenas podem recorrer nos termos gerais (arts 32º, do RGPTC). Como já antes se previa no art. 157º, da OTM, podem ser provisoriamente alteradas as decisões já tomadas a título definitivo (nº 2, do art. 28º) e o Tribunal, como é apanágio dos processos desta natureza, procede às averiguações sumárias que tiver por convenientes. 1.3.2. Regime substantivo das responsabilidades parentais Nos casos de divórcio, separação judicial de pessoas e bens, declaração de nulidade ou anulação do casamento, e em qualquer outra situação de ausência de vida em comum dos pais, é necessário regular o exercício das responsabilidades parentais relativamente ao filho menor de idade e não emancipado. De harmonia com o art. 1906º, nº 1, do Cód. Civil, «as responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho são exercidas em comum por ambos os progenitores nos termos que vigoravam na constância do matrimónio, 144 O art. 157º da OTM tinha a seguinte redação: Nesta situação os serviços de assessoria técnica informam o tribunal sobre a forma como decorre a execução da decisão, com a periodicidade fixada ou antes sempre que ocorra incumprimento reiterado ou gravoso do regime fixado (nº 7). 143 Estas particularidades já foram abordadas a propósito da regulação provisória das responsabilidades parentais no processo de divórcio. “(Decisões provisórias e cautelares) 1 - Em qualquer estado da causa e sempre que o entenda conveniente, o tribunal pode decidir, a título provisório, relativamente a matérias que devam ser apreciadas a final, bem como ordenar as diligências que se tornem indispensáveis para assegurar a execução efectiva da decisão. 2 - Podem também ser provisoriamente alteradas as decisões já tomadas a título definitivo. 3 - Para o efeito do disposto no presente artigo, o tribunal procederá às averiguações sumárias que tenha por convenientes” MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 142 293 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O DIR EITO DA FAMÍL I A E DA S CR I A NÇA S imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 294 - - salvo nos casos de urgência manifesta, em que qualquer dos progenitores pode agir sozinho, devendo prestar informações ao outro logo que possível». Não obstante esta ser a regra geral do exercício das responsabilidades parentais, o nº 2 do mesmo preceito legal prevê que «quando o exercício em comum das responsabilidades parentais relativas às questões de particular para a vida do filho for julgado contrário aos interesses deste, deve o tribunal, através de decisão fundamentada, determinar que essas responsabilidades sejam exercidas por um dos progenitores». Do dispositivo legal citado, bem como ainda dos arts 1878º, 1905º e 1906º, todos do Cód. Civil, resulta claramente que decidir quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais implica, necessariamente, resolver quatro questões fundamentais: • exercício das responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho; • a quem confiar a residência da criança (residência partilhada ou residência única); • regime de convívios a estabelecer entre o filho e o progenitor ou progenitores que os não tenham à sua guarda/residência; e • como e com quanto deve contribuir cada um dos progenitores para os respetivos alimentos devidos ao filho. Tudo isto será equacionado e decidido na perspetiva da salvaguarda dos interesses da criança, socorrendo-nos para tanto, não de uma legalidade estrita, mas dos critérios de oportunidade e conveniência, que são, afinal, apanágio da natureza destes processos, nos termos dos arts. 12º, do RGPTC e 986º e ss, do C.P.C. Os preceitos legais supra citados são aplicáveis às situações de união de facto e de inexistência total de vivência em comum entre os progenitores, atento o disposto nos arts 1911º e 1912º, do Cód. Civil.145 No que respeita especificamente à regulação do exercício das responsabilidades parentais da criança envolvida, direta ou indiretamente, em situações de violência doméstica, remete-se para o que se escreveu sobre a regulação provisória do exercício das responsabilidades parentais no âmbito do processo de divórcio (ponto 1.2., deste Capítulo IV). (Maria Perquilhas) «1 - Quando a filiação se encontre estabelecida relativamente a ambos os progenitores e estes não vivam em condições análogas às dos cônjuges, aplica-se ao exercício das responsabilidades parentais o disposto nos artigos 1904º a 1908º. 2 - No âmbito do exercício em comum das responsabilidades parentais, aplicam-se as disposições dos artigos 1901º e 1903º». 145 MANUAL PLURIDISCIPLINAR 2. PROMOÇÃO E PROTEÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS EM PERIGO 2.1. A violência doméstica gera muitas vítimas. Algumas com estatuto de menoridade civil. Nesta exposição, seguiremos de muito perto o esquema que a Juíza Helena Bolieiro (à data Docente do CEJ), gizou num completo artigo publicado na Revista da ASJP, JULGAR, nº 12 (setembro-dezembro 2010), subordinado ao tema «A criança vítima: necessidades de proteção e articulação entre intervenções». Na verdade, abordar hoje a intervenção estatal na proteção das crianças vítimas ou testemunhas de crimes integrantes da noção de «violência doméstica», é encarar, de frente e em primeira linha, o sistema de proteção de crianças e jovens em perigo, instituído por legislação que conta já com quinze anos de vigência: a Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, doravante LPCJP, aprovada pela Lei nº 147/99, de 1 de setembro, em vigor desde o dia 1 de janeiro de 2001 (alterada pela Lei nº 31/2003, de 22 de agosto e revista também pela Lei nº 142/2015, de 8/9). A LPCJP inseriu-se num processo de reforma profunda do sistema de proteção da criança em Portugal e resultou do debate entre o chamado modelo de «justiça», em que se privilegia a defesa da sociedade e o respeito dos direitos, liberdades e garantias das crianças, e o modelo de «proteção», em que se privilegia a intervenção do Estado na defesa do interesse da criança sem que formalmente lhe esteja reconhecido o direito ao contraditório. Esta intervenção, que tem por objeto a promoção dos direitos e a proteção das crianças e jovens – cada vez mais visualizados como autênticos sujeitos de direitos e cidadãos de pleno direito - em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral, tem lugar quando: • os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento da criança ou do jovem; • esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros, a que os pais, o representante legal ou quem tenham a guarda de facto da criança ou do jovem se não oponham de modo adequado a removê-lo; • esse perigo resulte de ação ou omissão da própria criança ou do jovem a que a que os pais, o representante legal ou quem tenham a sua guarda de facto se não oponham de modo adequado a removê-lo (artigo 3º, nº 1). Considera-se que a criança ou o jovem146 está em perigo quando se encontra numa das seguintes situações (indicadas no artigo 3º, nº 2, a título meramente exemplificativo): 146 Para efeitos da LPCJP, considera-se «jovem» a pessoa com mais de 18 anos e com menos de 21 que tenha solicitado MANUAL PLURIDISCIPLINAR 295 - Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o O DIR EITO DA FAMÍL I A E DA S CR I A NÇA S 296 - - • está abandonada ou vive entregue a si própria; • sofre maus tratos físicos ou psíquicos ou é vítima de abusos sexuais; • Está aos cuidados de terceiros, durante período de tempo em que se observou o estabelecimento com estes de forte relação de vinculação e em simultâneo com o não exercício pelos pais das suas funções parentais; • não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal; • é obrigada a atividades ou trabalhos excessivos ou inadequados à sua idade, dignidade e situação pessoal ou prejudiciais à sua formação ou desenvolvimento; • está sujeita, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional; • assume comportamentos ou entrega-se a atividades ou consumos que afetem gravemente a sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento sem que os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto se lhes oponham de modo adequado e remover essa situação. Como podemos ver, os maus tratos físicos e psíquicos – integrantes do amplo conceito de «violência doméstica» - estão expressamente elencados no quadro das situações de perigo a que se destina a proteção assegurada pela lei. O mesmo sucede com os casos em que a criança é vítima dessa mesma violência doméstica intra-familiar, por esta ser cometida na sua presença147, integrando-se nas situações em que a criança está sujeita, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afetam gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional148. A chamada violência doméstica vicariante (em que a criança assiste, não sendo, contudo, tocada fisicamente) é fonte de perigo, disso não tenhamos dúvidas! 2.2. Obedecendo ao princípio orientador da subsidiariedade [artigo 4º, alínea k)] – partidária da ideia motriz de que teremos de nos concentrar naquilo que mais ninguém vai fazer por nós -, a estrutura que carateriza o sistema de promoção e proteção assume uma configuração semelhante à de uma pirâmide: • na base, estão as entidades com competência em matéria de infância e juventude149, cuja atuação depende do consenso dos pais, dos representantes legais ou de quem tenha a sua guarda de facto, e da não oposição da criança e do jovem com idade igual ou superior a 12 anos (podendo a oposição da criança com menos de 12 anos ser considerada relevante de acordo com a sua capacidade a continuação da intervenção iniciada antes de atingir os 18 – cfr. artigo 5º, alínea a). O desvalor de tais situações tem expressão direta na lei penal: cfr. artigo 152º, nº 2, in fine, do Código Penal. 148 É um dado assente que as crianças que são expostas a cenas crónicas de violência entre os pais revelam perturbações muito semelhantes àquelas que foram vítimas de abuso. Assim, cfr. Madalena Alarcão, (des)Equilíbrios Familiares, Coimbra: Quarteto, 2000, pág. 301. Como assinala Ana Isabel Sani, a exposição à violência conjugal pode ser encarada como uma forma de abuso psicológico, entendido como «um ataque concreto por um adulto ao desenvolvimento do “self” e competência social da criança, uma amostra de um comportamento fisicamente destrutivo». Cfr. Ana Isabel Sani, «Crianças expostas à violência interparental», in Violência e Vítimas de Crimes, Vol. 2 – Crianças, Coimbra: Quarteto, 2002, p. 98. 149 Para efeitos da LPCJP, consideram-se entidades com competência em matéria de infância e juventude as pessoas singulares ou coletivas, públicas, cooperativas, sociais ou privadas que, por desenvolverem atividades nas áreas da infância e juventude, têm legitimidade para intervir na promoção dos direitos e na proteção da criança e do jovem em perigo – cfr. artigo 5º, alínea d). 147 MANUAL PLURIDISCIPLINAR para compreender o sentido da intervenção); contudo, estas entidades não têm competência para aplicar medidas de promoção e proteção, limitando-se a assegurar, sempre numa base consensual e dentro do âmbito exclusivo das suas atribuições, a proteção que as circunstâncias do caso exigem (artigos 7º, 10º, 38º e 65º, nº 1); • no plano seguinte, as comissões de proteção de crianças e jovens (CPCJ), quando não for possível às entidades atuar de forma adequada e suficiente a remover o perigo; a intervenção das comissões depende do consentimento expresso dos pais, do representante legal ou da pessoa que tenha a guarda de facto, consoante o caso, e da não oposição da criança e do jovem com idade igual ou superior a 12 anos (sem prejuízo de a oposição da criança com menos de 12 anos ser considerada relevante, de acordo com a sua capacidade para compreender o sentido da intervenção); para além disso, não possuem competência para aplicar a medida de confiança a pessoa selecionada para a adoção, a família de acolhimento ou a instituição com vista a futura adoção, a qual está reservada à intervenção judicial (artigos 8º, 9º, 10º e 38º); • encontramos, finalmente, no topo as secções de família e menores – secções de competência especializada – nas instâncias centrais das 20 comarcas que as possuem (só Bragança, Guarda e Portalegre não as têm, bem como municípios não abrangidos pelas áreas de jurisdição das Secções de Família e Menores das Instâncias Centrais nas comarcas de Açores, Beja, Évora, Madeira, Viana do Castelo e Vila Real), às quais compete a instrução e o julgamento do processo judicial de promoção e proteção (artigos 73º e 101º). A intervenção judiciária e não judiciária neste campo da infância em perigo deve respeitar a intimidade e a imagem da criança, deve ter lugar logo que sinalizado o perigo, só pode ser desenvolvida por entidades legitimadas, deve ser adequada e não pode exceder o necessário, deve ter uma vertente pedagógica quanto à atitude dos pais, sempre que possível, deve dar prevalência a medidas integradoras da criança numa família e deve ser precedida da audição da criança e de quem tenha a sua guarda. 2.3. Quanto às Comissões de Proteção de Crianças e Jovens, importa referir que são instituições oficiais não judiciárias com autonomia funcional, com uma composição de cariz claramente pluridisciplinar e pluri-institucional, às quais cabe deliberar com imparcialidade e independência. Reúnem, na sua modalidade alargada, em plenário, mensalmente e, na sua modalidade restrita (núcleo executivo), quinzenalmente. Para o que agora nos importa, ou seja, no contexto do processo de promoção e proteção, a cargo da comissão restrita, a sua intervenção depende do consentimento expresso e escrito dos pais, do representante legal ou da pessoa que tenha a guarda de facto, consoante o caso (artigo 9º da LPCJP). O artigo 5º, alínea b), dá-nos a noção de guarda de facto, a qual consiste na relação que se estabelece entre a criança ou o jovem e a pessoa que com ela vem assumindo, continuadamente, as funções essenciais próprias que de quem tem responsabilidades parentais. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 297 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O DIR EITO DA FAMÍL I A E DA S CR I A NÇA S imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 298 - - A consistência temporal, que deve continuar a verificar-se no momento da intervenção, aliada à essencialidade das funções desempenhadas, são as notas caraterizadoras da noção de guarda de facto, a qual não se confunde com a guarda ocasional prevista no artigo 96º da LPCJP. No que respeita ao consentimento dos pais, afigura-se-nos que a intervenção da comissão só fica legitimada se ambos o prestarem, mesmo que no caso apenas um dele exerça (de facto ou de direito) as responsabilidades parentais. O consentimento que a lei exige como condição legitimadora da intervenção assenta na titularidade das responsabilidades parentais, assim responsabilizando e envolvendo ambos os pais numa atuação que, por regra, conduz a restrições a direitos fundamentais destes. Com efeito, temos, antes de mais, a matriz constitucional que emerge do preceituado no artigo 36º, nº 6, da nossa lei fundamental (Constituição da República Portuguesa), da qual resulta que as decisões que constituam restrições aos poderes-deveres fundamentais dos pais relativamente aos filhos são da competência exclusiva dos tribunais, salvo se aqueles consentirem na intervenção de uma entidade não judicial e sempre nas situações e dentro dos condicionalismos previstos na lei. Por outro lado, quando se refere ao consentimento dos pais ou a atos com ele conexos, como é o caso da sua audição, a LPCJP alude sempre aos «titulares» ou «detentores» das responsabilidades parentais, e não a quem as exerce. Este sentido é, aliás, o mais consentâneo com o princípio da responsabilidade parental que deve orientar a intervenção de proteção e que, ao se referir aos deveres dos progenitores, tem certamente por base a titularidade de tais responsabilidades e não apenas o seu exercício. Mostra-se, pois, bem clara a opção tomada pelo legislador no sentido de que o consentimento legitimador da intervenção das comissões é o de ambos os pais, enquanto titulares das responsabilidades parentais. Contudo, a lei revista tem agora um artigo 9º com uma redação mais explícita e que vem resolver muitas dúvidas anteriores: «1 - A intervenção das comissões de proteção das crianças e jovens depende, nos termos da presente lei, do consentimento expresso e prestado por escrito dos pais, do representante legal ou da pessoa que tenha a guarda de facto, consoante o caso. 2 - A intervenção das comissões de proteção das crianças e jovens depende do consentimento de ambos os progenitores, ainda que o exercício das responsabilidades parentais tenha sido confiado exclusivamente a um deles, desde que estes não estejam inibidos do exercício das responsabilidades parentais. 3 - Quando o progenitor que deva prestar consentimento, nos termos do número anterior, estiver ausente ou, de qualquer modo, incontactável, é suficiente o consentimento do progenitor presente ou contactável, sem prejuízo do dever de a comissão de proteção diligenciar, comprovadamente e por todos os meios ao seu alcance, pelo conhecimento do paradeiro daquele, com vista à prestação do respetivo consentimento. 4 - Quando tenha sido instituída a tutela, o consentimento é prestado pelo tutor ou, na sua falta, pelo protutor. 5 - Se a criança ou o jovem estiver confiado à guarda de terceira pessoa, nos termos dos artigos 1907º e 1918º do Código Civil, ou se encontrar a viver com uma pessoa que tenha apenas a sua guarda de facto, o consentimento é prestado por quem tem a sua guarda, ainda que de facto, e pelos pais, sendo suficiente o consentimento daquela para o início da intervenção. 6 - Se, no caso do número anterior, não for possível contactar os pais apesar da realização das diligências adequadas para os encontrar, aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto no nº 3. 7 - A intervenção das comissões de proteção das crianças e jovens depende ainda do consentimento expresso e prestado por escrito daqueles que hajam apadrinhado civilmente a criança ou jovem, enquanto subsistir tal vínculo. 8 - Nos casos previstos nos nos 3 e 5, cessa a legitimidade da comissão de proteção para a intervenção a todo o momento, caso o progenitor não inibido do exercício das responsabilidades parentais se oponha à intervenção». As instalações e o apoio necessário ao regular funcionamento destas instituições são asseguradas pelo município da sede da comissão, sendo, pois, entidades que funcionam ao nível do Concelho e que recebem as denúncias de casos de crianças e/ou jovens em perigo. Após as denúncias, segue-se o encaminhamento e orientação do caso, averiguando da verdade dos factos, em articulação e parceria com outros organismos. Recolhida toda a informação essencial, proceder-se-á à avaliação do grau de perigo da criança. Nos casos de sinalização por parte das entidades com competência em matéria de infância e juventude (doravante, ECMIJ), o processo de avaliação incluirá o estudo e análise do(s) relatório(s) e documentos rececionados, incidindo a análise sobre os dados relativos aos fatores de risco e protetores ou compensatórios, à probabilidade de recidiva, e ao potencial de mudança da situação familiar, bem como ao prognóstico da situação. A CPCJ poderá, caso haja necessidade, solicitar, ainda, outros relatórios técnicos psicológicos, sociais, de saúde ou pedagógicos para o seu conhecimento cabal das circunstâncias da vida da criança e das capacidades da sua família para proteger e cuidar das suas necessidades. Desta forma, estar-se-á em condições de elaborar uma hipótese justificativa da situação de maus tratos avaliada e de resolver várias questões, nomeadamente: • É necessário separar, ou não, a criança do seu núcleo de convivência? Se sim, em que condições? (e.g. família alargada? pessoa idónea? família de acolhimento? Instituição?) E em que espaço temporal (e.g. a curto prazo? A médio ou longo prazo)? É possível a reintegração na sua família? • A criança encontra-se numa situação de elevado perigo? Ou de médio ou baixo perigo? Numa situação de prognóstico favorável? Ou desfavorável?150 O serviço a prestar pelos membros da Comissão de Proteção tem caráter prioritário em relação ao que desenvolver nos respetivos serviços, sendo as suas deliberações vinculativas e de execução obrigatória para os serviços e entidades nela representados, salvo oposição devidamente fundamentada. MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 150 Vide http://www.fenacerci.pt/web/publicacoes/outras/Guia_Educacao_nov11.pdf. 299 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O DIR EITO DA FAMÍL I A E DA S CR I A NÇA S imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 300 - - A outrora Comissão Nacional de Proteção de Crianças e Jovens em Risco (CNPCJR), hoje Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens, após a entrada em vigor, em 10/10/2015, do DL nº 159/2015, de 10 de agosto, e que veio revogar o anterior DL nº 98/98, de 18 de abril, tem como objetivo melhorar a atuação dos diferentes profissionais envolvidos, quer ao nível das ECMIJ, quer no segundo nível de intervenção, ou seja, nas CPCJ. Esta Comissão Nacional publicou Guias de Orientações para profissionais de vários setores na abordagem de situações de maus tratos ou outras situações de perigo, disponíveis em www.cnpcjr.pt - Direitos das Crianças - Guias para Profissionais. 2.4. Ora, uma vez detetada a situação de perigo resultante de violência doméstica, qual o procedimento a adotar? • Se for detetada por entidade policial ou por autoridade judiciária (Juiz, Ministério Público), no exercício das suas funções, estas deverão comunicar a situação de perigo à comissão de proteção de crianças e jovens (artigo 64º). • Por seu turno, as comissões de proteção quando no exercício das suas funções tiverem conhecimento de situações de perigo tomam a iniciativa de intervir [artigo 93º, alínea b)]. • As entidades com competência em matéria de infância e juventude comunicam às comissões de proteção as situações de perigo sempre que não possam, no âmbito exclusivo da sua competência, assegurar em tempo a proteção suficiente que as circunstâncias do caso exigem, salvo nos casos em que a comissão de proteção não esteja instalada (o que vai acontecendo cada vez menos, dado o crescente número de comissões151), ou quando esta não tenha competência para aplicar a medida adequada [como sucede com a medida prevista no artigo 35º, nº 1, alínea g), situações em que a comunicação deve ser feita diretamente ao Ministério Público – artigo 65º, nº 2]. • As instituições de acolhimento devem comunicar ao Ministério Público todas as situações de crianças e jovens que acolham sem prévia decisão da comissão de proteção ou judicial (artigo 65º, nº 3). • Qualquer pessoa que tenha conhecimento de uma situação de perigo pode comunicá-la às entidades com competência em matéria de infância e juventude, às entidades policiais, às comissões de proteção ou às autoridades judiciárias, tornando-se obrigatória a comunicação quando se trate de situações que ponham em risco a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade da criança ou do jovem (artigo 66º, n.os 1 e 2). • Se a comunicação for dirigida às entidades com competência em matéria de infância e juventude, estas procedem ao estudo sumário da situação e proporcionam a proteção compatível com as suas atribuições, sendo como é uma intervenção necessariamente consensual - darão conhecimento da situação à 151 O atual panorama geográfico das CPCJ instaladas no nosso país, assim como o contacto de cada comissão, pode ser consultado na Internet em: <URL http://www.cnpcjr.pt/search.asp > [Consult. 10 de novembro de 2015]. MANUAL PLURIDISCIPLINAR comissão de proteção sempre que entendam que a sua intervenção não é adequada ou suficiente (artigo 66º, nº 3). • Note-se ainda que, sem prejuízo das comunicações atrás referidas, quando os factos que tenham determinado a situação de perigo constituam crime – e, neste segmento, importa assinalar os crimes de violência doméstica, maus-tratos a menores e contra a liberdade e autodeterminação sexual152 - as entidades com competência em matéria de infância e juventude e as comissões de proteção devem comunicá-los ao Ministério Público ou às entidades policiais (artigo 70º). • Essas situações devem também, ser comunicadas pela CPCJ ao magistrado do Ministério Publico interlocutor. Note-se que o Estatuto do Aluno (Lei nº 30/2002, de 20 de dezembro, com as alterações introduzidas pela Lei nº 3/2008, de 18 de janeiro e Lei nº 39/2010, de 2 de setembro) – abrangendo os alunos da rede pública, privada e cooperativa, dos ensinos básico e secundário da educação escolar, incluindo as suas modalidades especiais - previa as comunicações às CPCJ que devem ter lugar no contexto das situações de perigo, fazendo referência ao tipo de situações a considerar, aos requisitos que devem estar preenchidos e ao abrigo de que disposições se deve avaliar a necessidade de efetuar as diversas comunicações (vide, nomeadamente atinente com a matéria da violência doméstica, artigo 10º, do diploma). Tal diploma está hoje revogado pela Lei nº 51/2012, de 5 de setembro, que veio aprovar o Estatuto do Aluno e Ética Escolar, estabelecendo os direitos e os deveres do aluno dos ensinos básico e secundário e o compromisso dos pais ou encarregados de educação e dos restantes membros da comunidade educativa na sua educação e formação (cfr. artigo 47º, do novo diploma, atinente a esta matéria que aqui se versa). 2.5. Uma palavra sobre as medidas de proteção aplicadas no âmbito do processo de promoção e proteção. As medidas de promoção dos direitos e de proteção consistem nas providências que visam afastar o perigo em que a criança ou o jovem se encontra, proporcionar-lhe as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação educação, bem-estar e desenvolvimento integral e garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso (artigo 34º). Encontram-se taxativamente previstas na LPCJP (artigo 35º, nº 1): • Apoio junto dos pais; • Apoio junto de outro familiar; • Confiança a pessoa idónea; • Apoio para autonomia de vida; • Acolhimento familiar; • Acolhimento residencial; e • Confiança a pessoa selecionada para a adoção, a família de acolhimento ou a instituição com vista a futura adoção. 152 Cfr. artigo 152º, do Código Penal. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 301 - Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o O DIR EITO DA FAMÍL I A E DA S CR I A NÇA S 302 - - da criança impõe a manutenção da medida cautelar, sob pena de se voltar a colocá-la na situação de perigo que desencadeou o processo, a prorrogação da execução da medida deve ser admitida, proferindo-se para tanto despacho devidamente fundamentado. Já na comissão de proteção, dada a natureza consensual da sua intervenção, enquanto entidade não-judiciária, as medidas são sempre aplicadas através de um acordo em que intervêm os pais e a criança com idade igual ou superior a 12 anos. Convém lembrar que, no caso de violência doméstica em que também seja vítima passiva ou presencial uma criança ou jovem, poder-se-á aplicar a medida de apoio junto de mãe ou de pai, retirando da titularidade do progenitor agressor o direito de residência do seu filho, em termos de promoção e proteção. No processo judicial de promoção e proteção, as medidas são aplicadas por acordo de promoção e proteção ou por decisão proferida na sequência de debate judicial. Por outro lado, no decurso do processo, e mesmo na sua fase inicial, é possível aplicar uma medida provisória (hoje chamada cautelar), com a duração máxima de 6 meses, quando a emergência do caso assim o justifique ou enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente (artigo 37º) – cautelarmente, só se podem aplicar as medidas do artigo 35º, nº 1, a) a f), com exclusão da g), da LPCJP. De notar que a «situação de emergência» aí contemplada não se confunde com a «situação de urgência» que constitui pressuposto dos procedimentos urgentes a que se referem os artigos 91º e 92º, sendo mais ampla. Será de emergência toda a situação que requer uma intervenção imediata, ainda que a título precário e provisório, de modo a remover tempestivamente o perigo detetado. As medidas cautelares têm como duração máxima 6 meses e são obrigatoriamente revistas em 3 meses (artigo 37º). Ora, este prazo limitado tem levantado algumas dificuldades na prática judiciária, uma vez que nem sempre é possível imprimir uma marcha processual que permita a aplicação de uma medida definitiva dentro de tal moldura temporal. Deparamo-nos, assim, com diversas situações em que se atinge o referido prazo de seis meses e em que a medida cautelar continua a justificar-se plenamente, na impossibilidade de aplicação imediata de uma medida definitiva, colocando-se então a questão: que fazer, perante este cenário? A jurisprudência dos tribunais superiores já teve a oportunidade de se pronunciar sobre a matéria, sendo que a Relação de Évora, em Acórdão de 1/7/2004 (Processo nº 1663/04-2, relator Almeida Simões in www.dgsi.pt), entendeu que a medida provisória, in casu, acolhimento em instituição, «não pode em situação alguma exceder o prazo de 6 meses, cessando ipso lege, quando não tenha, entretanto, sido fixada uma medida com caráter definitivo». Por seu turno, a Relação de Lisboa, em Acórdão de 5/7/2007 (Processo nº 4346/2007-6, relator Manuel Gonçalves in www.dgsi.pt) sustentou que a cessação automática da medida não se coaduna com a natureza do processo de promoção e proteção nem com o interesse superior da criança e do jovem e ele subjacente. Acresce que a lei, antes da revisão de 2015, ao estabelecer no nº 6, do artigo 62º, que as medidas provisórias deviam ser necessariamente revistas no prazo máximo de 6 meses e que, segundo o nº 3 do mesmo preceito, a decisão de revisão podia determinar a cessação, continuação, prorrogação ou substituição da medida por outra mais adequada, parecia apontar para a possibilidade de se estender a sua duração para além daquele prazo. Assim sendo, esgotado o prazo da sua duração, havendo razões ponderosas para que seja prorrogada, e apenas nestes casos, a medida não cessará, devendo a decisão de prorrogação ser devidamente fundamentada. Sufragamos esta última posição. Com efeito, atendendo à natureza e finalidades da intervenção de proteção, bem como aos seus princípios orientadores, afigura-se-nos que nos casos em que a efetiva proteção 2.6. Existem situações cuja gravidade e urgência impõem uma atuação imediata das entidades não judiciais, em ordem à efetiva proteção da criança, ainda que haja oposição dos detentores das responsabilidades parentais ou de quem tenha a guarda de facto. Nesses casos, a ponderação dos interesses em confronto — respeito pelos direitos fundamentais dos pais e necessidade de consentimento para a intervenção de uma entidade não judiciária versus tutela de direitos fundamentais da criança, centrados nos valores essenciais da vida e da integridade física — justifica a imediata atuação protetora comunitária ou administrativa, sujeita a subsequente apreciação judicial. Referimo-nos aqui aos chamados «procedimentos urgentes na ausência do consentimento», previstos no artigo 91º, da LPCJP, que devem ser seguidos de um «procedimento judicial urgente», com a tramitação estabelecida pelo artigo 92º, do mesmo diploma – falo dos procedimentos de urgência em situações de emergência. Assim, quando exista perigo atual ou iminente para a vida ou de grave comprometimento da integridade física ou psíquica da criança ou do jovem [cfr. noção de «emergência» do artigo 5º, alínea c), 1ª parte] e, na ausência de consentimento dos detentores das responsabilidades parentais ou de quem tenha a guarda de facto, as ECMIJ e as CPCJ tomam as medidas adequadas para a sua protecção imediata e solicitam a intervenção do tribunal ou das entidades policiais, como seja o caso da retirada da família, e solicitam a intervenção do Tribunal ou das entidades policiais. A solicitação para que o tribunal intervenha, comunicando-se para o efeito, pela via mais célere, ao Ministério Público, terá lugar nos casos em que se logrou obter a efetiva proteção imediata da criança ou do jovem, sem que para tanto fosse necessária a atuação das autoridades policiais. Nos outros casos, a intervenção a solicitar deverá ser as das entidades policiais, as quais darão conhecimento imediato da situação ao Ministério Público ou, quando tal não for possível, logo que cesse a causa da impossibilidade. Aí, enquanto não for possível a intervenção do Tribunal, as autoridades policiais retiram a criança ou o jovem do perigo em que se encontra e asseguram a sua proteção de emergência em casa de acolhimento, nas instalações das entidades com competência em matéria de infância e juventude ou em outro local adequado. Em todo o caso, a intervenção das autoridades policiais deve ser assumida como o exercício da função de garante da exequibilidade e segurança dos procedimentos, na ausência MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 303 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O DIR EITO DA FAMÍL I A E DA S CR I A NÇA S imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 304 - - e impossibilidade, naquela fase, de uma ordem judicial, não dispensando, por isso, uma estreita articulação com a entidade ou a comissão que compita atuar. Logo que recebida a comunicação das situações atrás referidas, efetuada pelas entidades, pelas comissões ou pelas autoridades policiais, o Ministério Público requer imediatamente ao Tribunal competente procedimento judicial urgente, nos termos do artigo 92º. O Tribunal, por seu turno, ante o requerimento do Ministério Público, profere decisão provisória no prazo de 48 horas, confirmando as providências tomadas para a imediata proteção da criança ou do jovem, aplicando uma das medidas previstas no artigo 35º, a título cautelar, nos moldes preconizados pelo artigo 37º, ou determinando o que tiver por conveniente relativamente ao destino da criança ou do jovem. Tendo em vista a prolação dessa decisão provisória, o Tribunal pode proceder a averiguações sumárias e indispensáveis, sempre com respeito pelo referido prazo de 48 horas. Ademais, para assegurar a execução das suas decisões, o Tribunal pode igualmente recorrer às entidades policiais e permitir às pessoas a quem incumba do cumprimento das mesmas a entrada, durante o dia, em qualquer casa (artigo 92º, nº 2). De referir ainda que, quando as exigências de tempestividade e celeridade assim o impuserem, a intervenção judicial urgente, nos moldes supra referidos, pode e deve ser levada a cabo pelo Tribunal em que a criança ou o jovem for encontrado, conforme a exceção consagrada no artigo 79º, nº 3, da LPCJP, incumbindo àquele realizar as diligências consideradas urgentes e tomar as medidas necessárias à proteção imediata da criança ou do jovem. Finalmente, uma vez proferida a decisão provisória, nos termos preconizados pelo artigo 92º, nº 1, o processo prossegue sempre e em quaisquer circunstâncias como processo judicial de promoção e proteção, perante o Tribunal competente. 2.7. Com este pano de fundo quanto ao enquadramento do sistema de proteção de crianças e jovens em perigo, cumpre agora dizer que, estando em causa crimes que vitimam a criança, em particular os perpetrados pelos pais ou por outros familiares cuidadores, importa, a par de uma eficaz intervenção penal, garantir que a proteção da vítima não a coloque numa situação de nova vitimização, devendo, ao invés, serem proporcionadas as condições adequadas a promover a sua recuperação e o seu bem-estar e desenvolvimento integral. Nesta dimensão, é importante recolherem-se dados que permitam avaliar o tipo de relação conjugal existente entre os progenitores de uma criança, por exemplo, se é conflituosa e os progenitores estão tão concentrados na sua relação que não podem atender, adequadamente, às necessidades dos filhos ou se, pelo contrário, a relação é uma fonte de apoio para o exercício de uma parentalidade positiva. A existência de conflito entre os pais pode ser uma das experiências mais destrutivas para o bem-estar da criança - o conflito entre os pais coloca a criança, simultaneamente, na posição de testemunha e de uma das partes envolvidas na desintegração da relação de duas pessoas a que se encontra estreitamente vinculada, causando-lhe sentimentos confusos e ambivalentes (há quem fale também, nesta sede, da necessidade de avaliação das situações de monoparentalidade gerada pela violência doméstica e subsequente MANUAL PLURIDISCIPLINAR rutura do laço conjugal, bem como do modo como esta pode afetar o adulto no seu cuidado com a criança). A intervenção protetora, centrada na criança, só será capaz de levar a cabo os seus objetivos de forma plena quando funcionar em estreita articulação com a intervenção penal, sem atropelos recíprocos e respeitando as competências e âmbito de atuação de cada uma.153 Impõe-se igualmente uma estreita articulação com as providências tutelares cíveis, como a regulação do exercício das responsabilidades parentais, a inibição e a limitação do exercício destas mesmas responsabilidades. Neste campo, poder-se-á dizer que a necessidade de articulação se reconduz a três momentos essenciais: 1º- A notícia do crime que desencadeia a ação penal, por um lado, e a comunicação para a intervenção de proteção, por outro; 2º- A recolha de prova; 3º- A aplicação de respostas protetoras da criança-vítima. O desenrolar de cada uma destas etapas deve orientar-se por um princípio de não-revitimização, o qual constitui uma exigência elementar de qualquer processo de intervenção com vítimas e que, no caso particular das crianças, assume contornos reforçados.154 2.8. Abordemos cada um desses momentos, começando pelo primeiro. Tal como já referido, a intervenção de proteção contém um sistema de comunicações que, a ser cumprido, permite que, sempre e logo que seja detetada uma situação de perigo cujos factos constituam igualmente crime, o respetivo procedimento criminal seja efetivamente desencadeado. Estamos a pensar na articulação que se pode e deve levar a cabo no âmbito do sistema – penal e de proteção – já instituído. Contudo, há quem, entre nós, propugna uma reformulação da abordagem que o sistema de justiça faz das situações que consubstanciam ofensas à auto-determinação e à liberdade de menores de idade, mediante a criação de um modelo de intervenção baseado na compreensão multidisciplinar dos factos e que assegure as garantias de defesa do agressor e o interesse superior da criança. Esse modelo assentaria no trabalho de uma equipa multidisciplinar, sob a direção funcional do Ministério Público, em que participariam elementos da Polícia Judiciária, do INML e da Segurança Social, cuja intervenção asseguraria a triagem dos casos de acordo com protocolos pré-definidos, a imediata proteção da vítima e a recolha e conservação de prova para efeitos de procedimento criminal, de processo de promoção e proteção e, sendo caso disso, de providência tutelar cível, para além das ações destinadas a evitar a revitimização e a vitimização secundária. Assim, cfr. Rui do Carmo, «Para recomendar a leitura de A Criança na Justiça, Trajectórias e significados do processo judicial de crianças vítimas de abuso sexual intrafamiliar, de Catarina Ribeiro», in Revista do Ministério Público, nº 120, out/dez 2009, pp. 279-281, e «A justiça e o abuso de crianças e jovens. Um caminho em constante construção», in AA.VV., Abuso de Crianças e Jovens, Da suspeita ao diagnóstico, Lisboa: Lidel, 2010, pp. 202-203. 154 O desiderato de prevenção da vitimização secundária encontra-se, aliás, expressamente consagrado na Lei nº 112/2009, de 16-9, que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas. Com efeito, o artigo 22º deste diploma estabelece que a vítima tem direito a ser ouvida em ambiente informal e reservado, devendo ser criadas as adequadas condições para prevenir a vitimização secundária e para evitar que sofra pressões. Por outro lado, reconhece-lhe ainda direito, sempre que possível, e de forma imediata, a dispor de adequado atendimento psicológico e psiquiátrico por parte de equipas multidisciplinares de profissionais habilitadas à despistagem e terapia dos efeitos associados ao crime de violência doméstica. Note-se que este diploma foi alterado pela Lei nº 129/2015, de 3 de setembro, já tendo sido anteriormente alterado pelas Leis nos 19/2013, de 21 de fevereiro, e 82-B/2014, de 31 de dezembro. 153 MANUAL PLURIDISCIPLINAR 305 - Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o O DIR EITO DA FAMÍL I A E DA S CR I A NÇA S 306 - - Isto para não falar da obrigação de denúncia que recai sobre as pessoas referidas no artigo 242º, do Código de Processo Penal, ou seja, as entidades policiais e os funcionários, na aceção do artigo 386º, do Código Penal. Deste modo, a par da proteção da criança vítima, impõe-se que a responsabilização criminal do agressor se inicie sem atrasos inúteis. No que tange ao segundo momento, relativo à recolha de prova, mormente a tomada de declarações da vítima ou a realização de perícias sobre a mesma, tais diligências devem guiar-se por um princípio de aproveitamento ou de não repetição, de modo a que não se sujeite a criança a ações de revitimização, consubstanciadas na circunstância de, em cada processo, se levar a cabo idêntica diligência àquela que foi já produzida numa primeira intervenção. Na situação do depoimento da criança vítima, para além de a sujeitar à penosa situação de contar várias vezes a sua história traumática, revivendo assim a sua experiência de vitimização155, a própria qualidade do depoimento acaba também por ser afetada, comprometendo assim a eficácia da investigação. É que, como se diz, o primeiro depoimento é, na maioria das vezes, o mais completo e verdadeiro.156 Contudo, tal não significa que nas declarações subsequentes a criança passe a faltar à verdade, produzindo depoimentos mais ou menos fantasiosos – o que se pode passar é que a própria experiência dos sucessivos relatos, muitas das vezes perante um entrevistador menos preparado tecnicamente para a tarefa, pode potenciar alterações do conteúdo do depoimento, ou mesmo a ocultação de factos157, podendo igualmente fomentar a adoção de um «relato-tipo», pobre em detalhes (sobretudo os que são mais dolorosos de recordar para a vítima), produzido num registo quase automatizado, com o intuito de a criança se proteger cognitiva e emocionalmente. Em resumo, é fundamental promover o aproveitamento de atos já praticados noutros processos, dentro dos circunstancialismos impostos pela lei. Quanto ao terceiro momento, a preocupação central deve ser a de adotar respostas que removam a criança do perigo em que se encontra, sem a colocar em novo perigo, o que claramente sucede quando é ela a ser retirada da família, em vez de se proceder ao afastamento do agressor. Como podemos ver, para que os sistemas – penal e de proteção – funcionem de forma efetivamente protetora, imperioso se torna que se observem procedimentos de interação articulada que, embora respeitando os fins específicos da cada intervenção, sejam adequados a tutelar de forma integrada o interesse da vítima, in casu, a criança vítima. Não se tratando de uma simples testemunha, nestes casos, para a criança vítima, «relatar a situação de vitimização pode significar reexperienciar, de forma intensa e desgastante uma experiência traumática». Assim, cfr. Catarina Ribeiro, A Criança na Justiça, Trajectórias e significados do processo judicial de crianças vítimas de abuso sexual intrafamiliar, Coimbra: Almedina, 2009, p. 117. 156 Assim, Laure Razon, cit. por Rui do Carmo, Isabel Alberto e Paulo Guerra, O Abuso Sexual de Menores, Uma Conversa Sobre Justiça, Entre o Direito e a Psicologia, Coimbra: Almedina, 2002, p. 79. 157 «Sabe-se que a repetição de perguntas acerca do mesmo assunto, ou perguntas indevidamente colocadas, podem alterar a percepção do facto vivido ou potenciar o fenómeno da ocultação (…)». Cfr. Teresa Magalhães, Catarina Ribeiro, Patrícia Jardim, Carlos Peixoto, Ricardo Jorge Dinis Oliveira, Cândida Abreu, Maria de Fátima Pinheiro, Conceição Cerdeira Guerra, «Da investigação inicial ao diagnóstico de abuso», in AA.VV., Abuso de Crianças e Jovens, Da suspeita ao diagnóstico, Lisboa: Lidel, 2010, p. 163. 155 MANUAL PLURIDISCIPLINAR Neste contexto, impõe-se referir dois documentos que respeitam diretamente à atuação do Ministério Público, destinados a fomentar as boas práticas e que constituem exemplos paradigmáticos a seguir. Em primeiro lugar, o Protocolo celebrado em 23-6-2009, entre a Procuradoria-Geral da República e a então denominada Comissão Nacional de Proteção de Crianças e Jovens em Risco, que instituiu a Diretiva Conjunta para uniformização de procedimentos funcionais entre o MP e as CPCJ. Esta Diretiva determina que, nas situações de maus-tratos, negligência grave e abusos sexuais, as comissões devem efetuar a correspondente participação criminal, nos termos do artigo 70º, da LPCJP, ao Ministério Público competente para o inquérito-crime, devendo também comunicar ao magistrado interlocutor a instauração do processo de promoção e proteção, prestando informação sobre os elementos já recolhidos. No mesmo contexto, o magistrado do Ministério Público interlocutor deve interagir com o magistrado titular do inquérito-crime, de modo a garantir a rápida articulação entre a intervenção de proteção e a penal. Tal, aliás, já resultava da Circular da PGR nº 3/2006, de 20 de março, em que se salientava o dever do Magistrado interlocutor da CPCJ interagir com o Magistrado titular do inquérito, tendo em vista avaliar a adequação das medidas de proteção à luz da situação processual do arguido. Recentemente, o Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) do Porto, a Procuradoria da República junto do Tribunal de Família e Menores (TFM) do Porto, a Procuradoria da República junto do Tribunal de Instrução Criminal (TIC) do Porto, as Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) do Porto - Central, Oriental e Ocidental e a Delegação do Norte do Instituto Nacional de Medicina Legal I.P. (INML), celebraram um Compromisso de Boas Práticas entre estas entidades, nos casos de suspeita dos crimes de violência doméstica, maus tratos (envolvendo menores de idade) e contra a liberdade e autodeterminação sexual de crianças e jovens. O compromisso versa sobre os três momentos a que acima se aludiu, tratando, em primeiro lugar, as obrigações de denúncia quando a notícia do crime é adquirida pelas CPCJ ou pelo Ministério Público junto do (então) Tribunal de Família e Menores e das comunicações obrigatórias, quando é o DIAP ou a Delegação do INML a tomar conhecimento da situação de perigo. Estabelecem-se, para tais situações, canais de comunicação céleres e pontos de contacto ou interlocutores nas diferentes instituições. Quanto ao segundo ponto, o da articulação das medidas de coação com as medidas de proteção, assinala-se que o DIAP deve ponderar, logo após a notícia do crime e averiguação suficiente dos factos, sobre a adequação de aplicabilidade, em sede de inquérito, de medida de coação de afastamento e de proibição de contactos ao arguido, nos termos do artigo 200º, nº 1, alíneas a) e d), do Código de Processo Penal, a fim de evitar a vitimização secundária da criança, decorrente da retirada da residência/da família ou a institucionalização. Isto implica a articulação, também prevista no documento, com o Ministério Público junto do TIC do Porto, concretizada através da intervenção do ponto de contacto neste Tribunal, para a transmissão de todos os elementos necessários à mais célere realização MANUAL PLURIDISCIPLINAR 307 - Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o O DIR EITO DA FAMÍL I A E DA S CR I A NÇA S 308 - - 2.9. Se isto é assim (ou deverá ser) no plano da atividade desenvolvida pelo Ministério Público, no que respeita à judicatura há também um conjunto de boas práticas que importa incrementar, de modo a que o mesmo espírito de articulação anime a atuação do juiz penal (instrução e julgamento), por um lado, e o juiz de família e menores, por outro. Helena Bolieiro, em artigo publicado na Revista da ASJP, JULGAR nº 12 (setembro-dezembro 2010), deixa alguns desafios: «No que toca às medidas de coacção aplicadas no processo-crime, é fundamental que no processo de promoção e protecção (e também no âmbito de algumas providências tutelares cíveis) se saiba da aplicação da prisão preventiva ao agressor, bem como da sua sujeição à obrigação de não permanência na habitação da criança ofendida e da proibição de contactos com a mesma. Podem, contudo, surgir dificuldades na pronta e efectiva articulação quando o processo-crime se encontra sujeito a segredo de justiça e aquela informação não é fornecida ao processo de promoção e protecção ou à providência tutelar cível. Ora, tais dificuldades podem afectar e muito os processos de intervenção relativos à criança, uma vez que o destino cautelar do arguido influencia decisivamente o tipo de medidas de protecção a aplicar ou as providências cíveis a adoptar, importante para o efeito que o mesmo seja conhecido nesses autos. O afastamento do agressor permite a protecção da criança vítima sem ter de a sujeitar a um processo de vitimização secundária resultante da sua retirada do agregado de origem e de uma colocação familiar alternativa ou, pior ainda, como acaba por suceder em muitos casos, de uma institucionalização. É que, tal como salienta Catarina Ribeiro, o afastamento da família em consequência da revelação, pode constituir fonte de angústia e reforçar sentimentos de ambivalência face ao agressor, podendo igualmente provocar um profundo sentimento de arrependimento pela descoberta. Para além da criança poder interpretar a institucionalização como uma punição dirigida a si, acrescida de uma potencial demissão da responsabilidade parental que reforça os sentimentos de abandono e de isolamento por parte daquela, é comum registar-se nesses casos resultados mais elevados nas escalas de psicopatologia e recuos na revelação, passando a criança a não colaborar com a justiça. Impõe-se, pois, evitar ao máximo o afastamento da criança do seu agregado de origem, reservando-o apenas para aqueles casos em que o mesmo é o único meio adequado a uma efectiva protecção da mesma. Do mesmo passo, sempre que houver proibição de contactos com a criança vítima, como medida de coacção no processo-crime, a falta de comunicação de tal decisão ao processo de promoção e protecção ou ao processo tutelar cível pode dar azo a que nestes casos se tomem decisões que entrem em colisão com aquela proibição. A sensibilidade para estas realidades que se entrecruzam e a noção de que o fornecimento recíproco de informação é essencial constituem, pois, aspectos decisivos para uma melhor articulação. Isto para além de o processo decisório dever tomar sempre em linha de conta a exigência de não-revitimização da criança. Outro desafio: sempre que possível, a recolha de prova no processo de promoção e protecção deve aproveitar os elementos probatórios já obtidos no processo-crime. Tal assume particular relevo no caso das perícias efectuadas à criança, em que tudo se deverá fazer para evitar a sua sujeição repetida a diligências que a podem afectar profundamente. Deste modo, tratando-se de processo-crime, na fase de inquérito, que não esteja sujeito a segredo de justiça, logo que solicitados, os relatórios periciais devem ser remetidos ao processo de promoção e protecção. Aliás, dada a natureza da intervenção, assente no interesse público de protecção da criança vítima, não seria de adoptar, como boa prática procedimental, a remessa oficiosa de tais elementos periciais ao processo de promoção e protecção relativo àquela? Por outro lado, nos casos em que o inquérito se encontre sujeito a segredo de justiça, não seria também de estender o âmbito do nº 11 do artigo 86º do Código de Processo Penal ao processo de promoção e protecção, de modo a permitir a utilização em tais autos do resultado das perícias efectuadas no processo-crime? MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR do interrogatório judicial e fundamentação da aplicação da medida de coação que se afigure necessária, bem como para a obtenção, de modo mais pronto, de informação sobre a medida de coação efetivamente aplicada. Por fim, se aplicada a medida de coação, deverá comunicar imediatamente ao Ministério Público junto do TFM do Porto ou à CPCJ competente, via fax, para que seja tomada em conta em sede de processo de promoção e proteção – bem como para instauração ou alteração de eventuais providências tutelares cíveis pertinentes. Em terceiro lugar, quanto à articulação para obtenção da prova em ambas as áreas de intervenção, prevê-se um encaminhamento célere e eficaz no sentido de ser realizado exame médico-legal na Delegação do INML (ou, fora do horário normal de expediente dos serviços médico-legais, garantir a realização do exame, o mais rapidamente possível, mediante a presença da criança em Hospital da área da Comarca respetiva e por comparência de perito que nesse dia integre a escala de perícias urgentes). Uma vez realizado o exame, prevêem-se formas rápidas de obtenção de cópia de relatório pericial entretanto junto ao inquérito-crime, quer pela CPCJ, quer pelo Ministério Público junto do TFM do Porto, sem prejuízo da existência de declaração de segredo de justiça, que deve ser averiguada previamente à remessa da referida cópia (a qual, sendo caso disso, será postergada para fase processual posterior). A figura do ponto de contacto, existente em cada uma das instituições envolvidas, facilita a articulação e uma resposta mais pronta. Também aqui se assinala a necessidade de o titular do inquérito do DIAP se articular com o TIC do Porto, através do magistrado do Ministério Público que serve de ponto de contacto neste Tribunal, para a transmissão de todos os elementos necessários à mais célere realização, fundamentação e acompanhamento técnico adequado da diligência de inquirição de vítima criança em declarações para memória futura, nos casos previstos no artigo 271º, do Código de Processo Penal. Este compromisso tem poucos meses de vigência e, para já, sem prejuízo de algumas alterações de pormenor que importa levar a cabo para o aperfeiçoar, tem logrado obter resultados positivos. Esta questão premente e essencial da articulação das várias intervenções nesta sede será abordada em ponto distinto deste manual, para cujo texto se remete. 309 - Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o O DIR EITO DA FAMÍL I A E DA S CR I A NÇA S 310 - - Na verdade, haverá razões para não conferir ao processo de promoção e protecção relevância idêntica à que o referido normativo atribui aos processos de natureza criminal, aos processos disciplinares de natureza pública ou ao pedido de indemnização civil? Neste contexto, justifica-se, pois, em futura reforma legislativa uma alteração da referida disposição legal, de modo a nela integrar também os processos de promoção e protecção. - Finalmente, será inusitado defender a presença do juiz de família e menores, ou seja, do processo judicial de promoção e protecção, na diligência de tomada de declarações da criança vítima para memória futura158? Na verdade, não havendo fundamentos juridicamente relevantes que obstem a uma tal presença159 que, quanto a nós, traz claras vantagens para a intervenção de protecção da criança160, sem colidir com os fins e natureza da intervenção em que se inscreve a diligência161, parece-nos ser um procedimento a incluir no inventário de boas práticas judiciais a adotar, de modo a promover a eficácia das respostas e a assegurar o interesse superior da criança162». 2.10. A duração das medidas de promoção e proteção constitui um reflexo bem evidente da dinâmica que deve caraterizar o sistema de promoção e proteção, no qual se impõe uma actuação célere, ou seja, ao ritmo do tempo da criança e do jovem, embora ponderada, tendo sempre em consideração que esta intervenção não constitui um fim em si, mas tão-somente um meio a que muitas vezes deve estar associado um encaminhamento tendencialmente duradouro que, em princípio, será concretizado através de uma providência tutelar cível, em princípio, subsequente. Ou seja, em muitos casos, a proteção devida à criança ou ao jovem só se consegue na sua plenitude com a aplicação de uma providência tutelar cível. A medida de promoção e proteção será apenas uma etapa de um percurso que só atinge a sua meta com a aplicação da providência cível adequada ao caso concreto. As declarações para memória futura são obrigatórias no caso de processo por crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor (artigo 271º, nº 2, do Código de Processo Penal). Nos demais casos, sendo a criança vítima considerada testemunha especialmente vulnerável, deverá ser evitada a repetição da sua audição e diligenciar-se no sentido da tomada de declarações para memória futura, tal como determina a Lei de Protecção de Testemunhas (artigos 26º e 28º, da Lei nº 93/99, de 14 de julho, alterada pela Lei nº 29/2008, de 4 de julho). 159 Ainda que se trate de matéria não isenta de controvérsia, damos aqui por assente que a tomada de declarações para memória futura assenta no pressuposto que existe já arguido constituído, podendo este estar presente na diligência e sendo a comparência do defensor obrigatória, pelo que não se corre o risco de levar ao processo de promoção e protecção, que é aberto à participação dos pais e sujeito ao contraditório (cfr. artigos 85º, 88º, nº 3, e 104º), elementos que não sejam ainda do conhecimento do progenitor agressor. Doutra forma poderia desencadear-se uma situação altamente comprometedora das finalidades da investigação criminal. 160 Essa presença promove o desejado quadro de familiaridade e proximidade e permite um melhor conhecimento da criança e da situação que desencadeou a intervenção de protecção e que constitui também o núcleo essencial do processo criminal, o que facilitará sobremaneira a condução das diligências probatórias no processo de promoção e protecção. 161 Estamos a falar numa presença que respeita as regras processuais penais que regem a tomada de declarações para memória futura e em que o juiz de família e menores, de forma reservada e essencialmente observadora, assume um papel protetor e de reforço do bem-estar da criança, de modo a que o ambiente da diligência a que alude o nº 4, do artigo 271º, do Código de Processo Penal, garanta a espontaneidade e a sinceridade das respostas, como se preconiza neste normativo, relativo aos processos por crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor. 162 Conforme dispõe o artigo 3º, nº 1, da Convenção Sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Estado Português, «todas as decisões relativas a crianças, adotadas por instituições públicas ou privadas de proteção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança». 158 MANUAL PLURIDISCIPLINAR Contudo, muitas situações existem em que o processo de promoção e proteção é despoletado durante a pendência de uma providência tutelar cível, tal como pode suceder quando se conclui que existe perigo para uma criança, cujos progenitores lutam em tribunal no âmbito de um processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, onde até pode haver notícia da referida violência doméstica entre eles e na presença do filho menor de idade. E aí o processo de promoção e proteção vem a nascer – na CPCJ ou no tribunal, conforme o caso, ponderadas aqui as hipóteses de apensação propugnadas pela lei – de uma providência tutelar cível já instaurada e a decorrer os seus trâmites legais, devendo correr em simultâneo o correspondente processo criminal contra o suspeito da autoria de atos consubstanciadores de violência doméstica. 2.11. A Procuradoria-Geral da República, as Procuradorias-Gerais Distritais e os DIAPs instalados têm produzido vários documentos sobre Boas Práticas em matéria de violência doméstica e sobre a articulação entre a área criminal e a área de família e menores, trabalhando com entidades governamentais e outras não-governamentais, com o objetivo de dar uma resposta adequada a este grave problema da violência contra as mulheres, mas também contra as crianças, pessoas com deficiência e idosos. Em resumo, a desejável articulação entre intervenções com diferentes sujeitos – a criminal quer sancionar o agente agressor e a protetiva quer proteger a criança vítima - pode melhorar, dentro do quadro legal instituído, cujas potencialidades se encontram ainda longe se de considerar plenamente implementadas, sem que para tanto seja necessário aguardar por um novo paradigma de intervenção e reformas de regime jurídico. Nos casos em que tenha havido retirada da criança da família nuclear, o que lamentavelmente sucede com frequência, por não funcionarem os mecanismos de afastamento do agressor (sejam as respostas jurídico-criminais, sejam as de natureza civil), a implementação da medida pressupõe não só a sua execução propriamente dita, traduzida, por exemplo, na integração da criança na família alargada (avós ou outros familiares), na Casa de acolhimento, na família de acolhimento ou no agregado da pessoa idónea, como também a realização de um trabalho multidisciplinar e interinstitucional com os pais, contemplando áreas como as da saúde, educação, ação social e habitação. Trata-se de um trabalho terapêutico/ressocializador, no caso do progenitor maltratante, e de apoio ao progenitor vítima, orientado no sentido da criação de condições para que este proceda à reorganização familiar fora da relação abusiva. Nalgumas situações, esse trabalho poderá ser de natureza essencialmente reparadora, em ordem à reconstituição do agregado de origem em condições de estabilidade, segurança e bem-estar para as vítimas e tendo em vista a viabilização da reunificação familiar, em tempo útil para a criança. Por outro lado, impõe-se que em cada caso, a par da execução da medida e da efetiva realização de um trabalho com a família, se proceda atempadamente a um estudo de natureza multidisciplinar e se trace uma estratégia de intervenção subsequente em que o Ministério Público assume um papel de grande relevo. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 311 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O DIR EITO DA FAMÍL I A E DA S CR I A NÇA S imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 312 - - A ele cabe, no interesse e em representação da criança, requerer as providências tutelares cíveis adequadas, algumas das quais já atrás aludidas - regulação do exercício das responsabilidades parentais, limitação e inibição do exercício de tais responsabilidades -, concretizando assim a articulação entre a medida de proteção implementada e a definição da situação jurídica da criança em moldes mais estáveis e duradouros. E daí que nas situações em que o suspeito agressor coabite ou conviva frequentemente com a vítima ou tenha com ela uma relação familiar próxima, o Ministério Público deverá providenciar pela instauração de processo judicial de promoção e proteção, sem prejuízo dos procedimentos de urgência que as entidades de proteção devam desencadear. O magistrado que seja responsável pelo inquérito criminal deve verificar se já foi instaurado processo de promoção e proteção, assim como o magistrado responsável pelo processo de promoção e proteção deve verificar se já foi, quando pertinente, instaurado inquérito criminal. E ambos devem zelar para que esses processos entrem em comunicação. Parafraseando o Despacho nº 3/2012 da PGD-Coimbra, os magistrados titulares desses processos zelarão, «nomeadamente, para que: a) se aproveitem em ambos as diligências realizadas em cada um deles, evitando repetições inúteis; b) haja uma avaliação conjunta de cada caso, para acordo sobre as medidas de promoção e de proteção, as medidas de coação e outras decisões interlocutórias ou finais que cada magistrado haja de promover, defender ou tomar no respectivo processo, com vista ao conseguimento da maior coerência e eficácia na defesa do superior interesse da criança; c) se observem estes procedimentos e se cumpram estes objectivos ainda que o inquérito criminal esteja a ser executado por órgão de polícia criminal». Aqui chegados, não podemos deixar de assinalar que os mecanismos legais atrás referidos só produzirão efeito útil no combate ao flagelo que é a violência na família se houver uma plena consciencialização coletiva de que a violência intra-familiar continua a existir em largas proporções e que as suas consequências são graves e muitas vezes irreversíveis, demandando, por isso, de todos os setores da sociedade uma postura ativa de recusa total ou de “tolerância zero”. Trabalhar em rede é essencial nesta matéria para que não haja buracos negros na proteção das vítimas indefesas da violência doméstica. Para entendermos como funciona essa articulação em rede, demos a voz a L. Sanicola (As dinâmicas de rede e o trabalho social. São Paulo: Veras, 2008), que defende que as redes sociais devem ser pensadas como formas de relações sociais. Desta forma, a dita autora concetualiza o termo «rede»: «pertence à linguagem comum, assumindo diferentes aceções, as quais, dependendo da concretude dos objetos, entram no mundo simbólico dos sujeitos, contribuindo para a construção de representações da realidade, ora pertencentes ao mundo das alegorias, ora bastante práticas. Por conseguinte, a ideia de rede, para alguns associa-se ao trapézio e, para outros, pontos mediante ligações entre eles que, cruzando-se, são amarradas e formam malhas de maior ou menor densidade. No ponto de ligação, ou seja, no nó e por meio do nó, acontecem trocas sinérgicas» (SANICOLA, 2008, p. 13). Que o sistema de proteção e os tribunais não falhem nesta tarefa de defender a criança envolvida no fenómeno complexo da violência doméstica, sancionando devidamente o autor do ato ilícito e culposo, sem vitimizar ainda mais o sujeito de direito alvo dessas vis agressões. MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR (Paulo Guerra) 313 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O DIR EITO DA FAMÍL I A E DA S CR I A NÇA S imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 314 - - 3. INTERVENÇÃO TUTELAR EDUCATIVA A ocorrência de fenómenos de natureza violenta, no quadro familiar ou parafamiliar, tendo como protagonistas jovens, tem vindo a aumentar ou, pelo menos, tem vindo a assistir-se ao aumento da sua visibilidade, crescentemente noticiada nos media ou divulgada através dos novos meios de comunicação e redes sociais. Falamos, verbi gratia, da violência nas relações de namoro – a qual, de acordo com os dados mais recentes, estará em fase de crescente expressão – ou de agressões praticadas por jovens em ascendentes, por vezes de avançada idade e expressiva vulnerabilidade, em função de fragilidades de ordem física e/ou mental. No que se refere à primeira – a violência no namoro entre jovens –, cabe referir que passou a assumir, nas duas ou três últimas décadas, contornos de importante problema social163, tendo o primeiro trabalho de investigação nesse domínio164 sido realizado nos Estados Unidos da América, em 1981, por James Michael Makepeace, professor universitário de sociologia no College of Saint Benedict - Saint John’s University, ficando, por essa via, alertada a comunidade científica para a problemática, ao concluir que um em cada cinco estudantes universitários eram por ela afetados, na qualidade de vítimas ou protagonistas de atos de violência. Um crescente interesse veio subsequentemente a ser dispensado ao tema, sucedendo-se os estudos, quer nos EUA165, quer na Europa, surgindo também em Portugal, nos últimos anos, diversos trabalhos166 que bem ilustram a importância de que o fenómeno se reveste, não só pela sua expressão – assinalando os estudos mais recentes que, em contexto universitário, 30% a 60% dos jovens já experimentaram, pelo menos uma vez, violência física nas suas relações amorosas167 -, mas também pela natureza preditora associada168 e pela essencialidade da utilização do conhecimento disponível como ferramenta para uma abordagem preventiva.169 Cabe enfatizar, a este propósito, resultar do RASI (Relatório Anual de Segurança Interna) relativo a 2014170 que, no que se reporta a casos de violência doméstica, em “38% das situações a ocorrência foi presenciada por menores”, dado cuja expressividade não deixará seguramente de ter repercussão, ao nível desenvolvimental e comportamental daquelas crianças, sem olvidar o caráter preditor de condutas violentas que lhe está associado, quer na infância, quer na idade adulta. Por seu turno, no que se refere a agressões perpetradas contra idosos, cabe assinalar que, na linha de múltiplas chamadas de atenção para a dimensão que o fenómeno vem assumindo171, também um estudo, realizado em 2010, no Nacional Centre for the Protection of Older People da Universidade de Dublin – “Abuse and Health among elderly in Europe”, [Em linha] disponível na internet em: <URL http://www.ncpop.ie/userfiles/ file/International%20Reports/ABUEL.pdf > - aponta no sentido de que, ainda que os/as esposos/as-companheiros/as surjam como os agressores mais prevalentes (com índices da ordem dos 33%/34%, aqui se compreendendo os comportamentos ofensivos de cariz psicológico e físico), os descendentes (filhos e netos) surgem em expressivo número de casos – 18,1% e 13,5%, respetivamente, no domínio da violência psicológica e física. Em Portugal, estudos realizados a nível universitário vêm igualmente fazendo eco da preocupação com que o fenómeno é hoje encarado – cfr., por mais recente, o projeto de graduação da autoria de C. M. Ferreira de Sousa, “Violência na terceira idade: a realidade Straus, Murray A., “Prevalence of violence against dating partners by males and female university students worldwide”, Violence Against Women, Vol. 10, nº 7, 790-811, [Em linha], 2004, disponível na internet em: <URL http://pubpages. unh.edu/~mas2/ID16.pdf >. 164 “Courtship Violence Among College Students”, Family Relations, vol. 30, nº 1, Jan. 1981, pp. 97-102. 165 Cfr., a título exemplificativo, Colleen R. Baker, “A Study of Factors Predicting Dating Violence Perpetration Among Male and Female College Students”, [Em linha], 2007 disponível na internet em: <URL http://scholar.lib.vt.edu/theses/ available/etd-02012007-160430/unrestricted/FinalThesis.pdf > e “Gender symmetry in partner violence: evidence and implications for prevention and treatment”, In D. J. Whitaker & J. R. Lutzer (Eds), Preventing partner violence – research and evidence-based intervention strategies, 2009 (pp. 141-168), Washington DC: American Psychological Association, Straus, M. 166 Cfr., entre outros, M. J. Silva, & M. Matos (2001), “Percepções da violência entre estudantes do ensino secundário”, texto policopiado, Braga: Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho, C. Machado, M. Matos & A. I. Moreira, (2003), “Violência nas relações amorosas: comportamentos e atitudes na população universitária”, Psychologica, 33, 69-83 e S. Caridade & C. Machado, (2006), “Violência na intimidade juvenil: Da vitimização à perpretação”, Análise Psicológica, v. 24, nº 4, Lisboa, Out. 2006, “A Intergeracionalidade da Violência nas Relações de Namoro”, Madalena Sofia Oliveira, Ana Isabel Sani, Revista da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Porto: Edições Universidade Fernando Pessoa, 162-170, [Em linha], 2009, disponível na internet em: <URL http://bdigital. ufp.pt/bitstream/10284/1325/1/162-170_FCHS06-6.pdf >. S. Caridade, C. Machado & F. Vaz, (2007), “Violência no namoro: Estudo exploratório com jovens estudantes”, Psycologica, 46, 197-214. 168 Cfr., entre outros, L. M. G. da Silva Machado, “Crenças e Representações Sociais dos Adolescentes sobre a Violência Interpessoal”, [Em linha], 2010, disponível na internet em: <URL http://bdigital.ufp.pt/bitstream/10284/1567/1/ dm_luciamachado.pdf >; C. M. Cristóvão, “Quanto Mais me Bates mais Gosto de ti: um Estudo Exploratório sobre a Violência no Namoro”, [Em linha], 2012, disponível na internet em: <URL http://repositorio.ispa.pt/bitstream/10400.12/2161/1/15268.pdf >; G. Alves Moura, “Violência no namoro e estilos parentais na adolescência”, [Em linha], 2012, disponível na internet em: <URL http://repositorio.ispa.pt/bitstream/10400.12/2280/1/14879.pdf >; A. M. da Silva Vieira, “Representações Sociais da Violência entre Parceiros Íntimos numa amostra de estudantes do ensino superior: o género fará a diferença?”, [Em linha], 2013, disponível na internet em: <URL https://estudogeral.sib.uc.pt/ jspui/bitstream/10316/25315/1/Tese%20de%20Ana%20Margarida%20S.%20Vieira.pdf >; e H. I. da Silva Araújo, “Violência nas relações de namoro: das motivações inerentes ao comportamento abusivo”, [Em linha], 2013, disponível na internet em: <URL http://www.scielo.oces.mctes.pt/scielo.php?pid=S0870-82312006000400004&script=sci_arttext >) e pela essencialidade da utilização do conhecimento disponível como ferramenta para uma abordagem preventiva (S. Caridade & C. Machado, “Violência sexual no namoro: relevância da prevenção”, Psicologia, Vol. XXII (1), 77-104, [Em linha], 2008, disponível na internet em: <URL http://www.scielo.oces.mctes.pt/pdf/psi/v22n1/ v22n1a04.pdf > e R. M. Melim Saavedra,“Prevenir antes de Remediar: Prevenção da Violência nos Relacionamentos Íntimos Juvenis”, [Em linha], 2010, disponível na internet em: <URL http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/14248/1/Rosa%20Maria%20Melim%20Saavedra.pdf >). 169 S. Caridade & C. Machado, “Violência sexual no namoro: relevância da prevenção”, Psicologia, Vol.XXII (1), 77-104, [Em linha], 2008, disponível na internet em: <URL http://www.scielo.oces.mctes.pt/pdf/psi/v22n1/v22n1a04.pdf >; e R. M. Melim Saavedra, “Prevenir antes de Remediar: Prevenção da Violência nos Relacionamentos Íntimos Juvenis”, [Em linha], 2010, disponível na internet em: <URL http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/14248/1/Rosa%20 Maria%20Melim%20Saavedra.pdf >). 170 Disponível na internet em: <URL http://www.parlamento.pt/Documents/XIILEG/Abril_2015/relatorioseginterna2014.pdf >. 171 E que explica o surgimento, nos últimos anos, em vários municípios, de várias Comissões de apoio e acompanhamento e, inclusive, de proteção a idosos. MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 163 167 315 - Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o O DIR EITO DA FAMÍL I A E DA S CR I A NÇA S 316 - - no concelho de Paredes”, [Em linha], 2012, disponível na internet em: <URL http://bdigital. ufp.pt/bitstream/10284/3612/1/PG_CristinaSousa%2026-12-2012.pdf >. Estes e outros estudos remetem-nos para a repetida ocorrência do fenómeno no seio da família, com um grau de protagonismo por parte de filhos e outros descendentes que não deve ser desprezado e que aponta incontornavelmente para a prática de factos qualificados na lei penal como crimes, praticados por jovens, designadamente de idade inferior a 16 anos. Na verdade, ainda que, de acordo com o último relatório da APAV, reportado a 2014,172 seja apontada uma expressão numérica meramente residual dos casos de violência doméstica protagonizados por jovens criminalmente inimputáveis, sendo inferior a 1% aqueles que foram cometidos por indivíduos de idades compreendidas entre os 11 e os 17 anos (1%, em 2013), o certo é que esse mesmo relatório dá conta da existência de 7,9% de casos em que as vítimas foram o pai ou a mãe do agressor, 0,5% em que foram o avô ou a avó, 0,2% o padrasto ou a madrasta e 0,6% o sogro ou a sogra173 – o que tudo perfaz um total de 9,2% (9,3%, em 2013) – sendo que, do universo global de pessoas que, no citado ano, recorreram à APAV, 9,58% tinham mais de 65 anos (8,9%, em 2013). Acresce referir que o mencionado Relatório Anual da APAV (2014) aponta, tomando por referência o do ano anterior, para um aumento de 10,1% de casos de violência doméstica com vítimas pessoas idosas, de cerca de 2% tendo por vítimas crianças e jovens e, bem assim, para um aumento percentual global do fenómeno, tendo como vítimas homens e mulheres. Já do mencionado Relatório Anual de Segurança Interna, reportado a 2014, se extrai manter-se estável, há vários anos, a percentagem de ilícitos dessa tipologia cometidos por jovens de idade inferior a 16 anos (0,2% em 2009, 0,1% em 2010, 0,2% em 2011, 0,1% em 2012, 0,1% em 2013 e 0,1% em 2014), dele resultando também que, em mais de 13,5% dos casos, os denunciados eram filhos/as ou enteados/as das vítimas e que, nos últimos anos, se vem registando uma tendência de estabilização na percentagem representada por tais situações (13,2% em 2011, 13,6% em 2012, 13,8% em 2013 e 13,6% em 2014). Aqui chegados, é tempo de abordarmos o tratamento jurídico dispensado ao fenómeno, na vertente considerada, com referência aos aspetos mais marcantes da intervenção tutelar educativa, em situação de cometimento por jovem de idade inferior a 16 anos de factos qualificados como crime de violência doméstica. A Lei Tutelar Educativa, aprovada pela Lei nº 166/99, de 14 de setembro e revista pela Lei nº 4/2015, de 15 de janeiro (doravante designada tão somente por LTE), reflete uma conceção que encara a educação para o direito dos jovens como uma obrigação social e comunitária. Com efeito, nela se contempla a imposição ao Estado da incumbência de proporcionar às crianças e jovens que hajam cometido facto(s) qualificado(s) na lei penal como crime(s) [Em linha], disponível na internet em: <URL http://www.apav.pt/apav_v3/images/pdf/Estatisticas_APAV_Relatorio_ Anual_2014.pdf>. 173 Em 2013, tais situações tiveram uma expressão muito equivalente com 7,9% os casos em que as vítimas foram o pai ou a mãe do agressor, 0,6% em que foram o avô ou a avó, 0,3% o padrasto ou a madrasta e 0,5 % o sogro ou a sogra, conforme resulta do Relatório da APAV, [Em linha], disponível na internet em: <URL http://apav.pt/apav_v2/images/ pdf/Estatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2013.pdf >. 172 MANUAL PLURIDISCIPLINAR – num momento em que, tendo completado doze, não hajam ainda perfeito dezasseis anos de idade – a oportunidade de colmatarem as necessidades educativas porventura evidenciadas e manifestadas na prática desse(s) mesmo(s) facto(s), por via da aplicação de medida(s) tutelar(es) educativa(s). Na arquitetura do sistema, diversamente, a criança de idade inferior a 12 anos que pratica facto(s) qualificado(s) na lei penal como crime(s) poderá estar em perigo. É o que sucederá, caso esses comportamentos ou atividades afetem gravemente a sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento sem que os pais, o representante legal ou quem tenha a sua guarda de facto se lhes oponham de modo adequado a remover essa situação – cfr. artigo 3º, nº 2, alínea f), da Lei de Promoção e Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada pela Lei nº 147/99, de 1 de setembro e revista pela Lei nº 142/2015, de 8 de setembro (LPCJP) –, devendo consequentemente a sua situação ser avaliada no quadro da referida Lei. Como decorrência do que acaba de referir-se, distinto será necessariamente o tratamento dispensado às situações de crianças que hajam protagonizado facto(s) integrador(es) de ilícito(s) de natureza criminal, em idade inferior a 12 anos ou em idade igual ou superior a 12 anos, sendo as primeiras alvo de avaliação em sede de promoção e proteção – sendo-lhes, eventualmente, aplicada medida dessa natureza, apta a remover o perigo detetado [cfr. artigo 3º, nos 1 e 2, alínea f), da LPCJP] –, ao passo que as segundas serão alvo de aplicação de medida(s) tutelar(es), desde que se registem necessidades educativas que, mediante tal aplicação, se visarão superar e, através dela(s), alcançar a sua inserção, de forma digna e responsável, na vida em comunidade (cfr. artigo 2º, nº 1, da LTE). Sendo, consequentemente, configurável a prática por criança ou jovem de facto(s) criminalmente relevante(s) e integrador(es) de crime de violência doméstica, tipificado no artigo 152º, do Código Penal, a sua apreciação à luz da Lei Tutelar Educativa apenas terá lugar, caso, cumulativamente: • à data de tal prática, a referida criança ou jovem haja já completado 12 anos de idade e • em tal data, tenha, no entanto, menos de 16 anos de idade. Para além disso, para que possa ter lugar a imposição ( judicial) de medida tutelar educativa, exige-se que tal jovem: • não tenha completado 18 anos, antes da data da decisão em 1ª instância [cfr. artigo 28º, nº 2, alínea b), da LTE], • nem lhe tenha sido aplicada pena de prisão efetiva, em processo penal, por crime que haja praticado entre os 16 e os 18 anos de idade [cfr. artigo 28º, nº 2, alínea a), LTE], • sendo que, em qualquer destas duas últimas situações, cessa a competência do tribunal de família e menores, não sendo instaurado processo tutelar educativo ou, se o tiver sido, sendo o mesmo arquivado. Nas demais situações, importará aquilatar da conformação da personalidade do menor com o dever ser jurídico, não obstante a prática do facto qualificado na lei como crime, ou, pelo contrário, da verificação de necessidades educativas que, por via da aplicação de medida tutelar, urja colmatar. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 317 - Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o O DIR EITO DA FAMÍL I A E DA S CR I A NÇA S 318 - - Para o efeito, e após a aquisição da notícia do facto pelo Ministério Público (artigos 72º e 73º, da LTE), será instaurado um processo tutelar educativo que comporta necessariamente uma fase inicial de inquérito, por aquele dirigida (artigos 74º, 75º e 86º, da LTE). Cabe referir que a aquisição da notícia do facto pelo Ministério Público terá lugar através da denúncia por qualquer pessoa relativamente a todas as tipologias de crimes (públicos, semipúblicos e particulares)174, atento o estabelecido no nº 1, do artigo 72º, da LTE, sendo a denúncia obrigatória para os órgãos de polícia criminal, quanto a factos de que tomem conhecimento e para os funcionários, quanto a factos de que tomem conhecimento no exercício das suas funções e por causa delas [cfr. artigo 73º, nº 1, alíneas a) e b), da LTE]. No que se refere aos órgãos de polícia criminal, é de enfatizar que a denúncia ou a transmissão da denúncia deve, sempre que possível, ser acompanhada de informação que puder ser obtida sobre a conduta anterior do menor e a sua situação familiar, educativa e social, sendo que, nos casos em que tal informação não puder acompanhar a denúncia, deverá a mesma ser apresentada no prazo máximo de oito dias (cfr. artigo 73º, nº 2, da LTE). A revisão operada neste específico segmento legislativo (artigo 72º, da LTE), terminou com a celeuma gerada pela anterior consagração da necessidade de denúncia por parte dos ofendidos quando estivessem em causa factos qualificados na lei penal como crimes de natureza semipública e particular, não só por inviabilizar, no silêncio daqueles, a intervenção tutelar educativa relativamente a jovens com comportamentos sistematicamente integradores de ilícitos dessa natureza e carecidos de “educação para o direito”, mas também por terem surgido duas correntes de sinal contrário, relativamente à (ir) relevância de eventual declaração do ofendido no sentido do não prosseguimento do procedimento tutelar educativo já iniciado. Argumentavam uns que a imposição legal de denúncia do ofendido configurava tão somente uma condição de procedibilidade e que, desencadeado o procedimento, ele não poderia cessar por iniciativa daquele175; contrapunham outros que, ainda que discutível, a opção do legislador de colocar nas mãos do ofendido a suscetibilidade de instauração do processo e de intervenção tutelar educativa não poderia ser encarada distintamente, apenas por estar em causa momento processual ulterior, inexistindo segmento legal que legitimasse uma tal conclusão, sustentando que seria de aceitar, sem qualquer constrangimento, a possibilidade de o ofendido por termo ao processo, tanto mais que, nalguns casos, seria configurável a existência de interesses seus dignos de consideração, por relacionados com a sua esfera íntima (nos factos protagonizados pelo menor e qualificados na lei penal como crimes sexuais) ou familiar (nos factos protagonizados pelo menor em que tivessem a qualidade de ofendidos elementos da família daquele). Regime que vigora desde a revisão da Lei Tutelar Educativa (aprovada pela Lei nº 166/99, de 14 de setembro), operada pela Lei nº 4/2015, de 15 de janeiro. Com efeito, a versão inicial do diploma previa, no nº 2, do citado artigo 72º (segmento normativo entretanto revogado pela mencionada Lei nº4/2015) que, em caso de facto qualificado como crime cujo procedimento dependesse de queixa ou acusação particular, a legitimidade para a denúncia cabia ao ofendido, em razão do que, nesses casos, constituía pressuposto de procedibilidade a existência da citada denúncia, o que vale por dizer que carecia então o Ministério Público de legitimidade processual para o procedimento tutelar educativo, se desacompanhado de manifestação de vontade do ofendido nesse sentido. 175 Anabela Miranda Rodrigues e António Carlos Duarte-Fonseca, “Comentário da Lei Tutelar Educativa”, 2000, Coimbra: Coimbra Editora, pág.183. 174 MANUAL PLURIDISCIPLINAR Atualmente, portanto, mostra-se apto a desencadear a abertura de inquérito tutelar educativo qualquer facto qualificado na lei penal como crime que haja sido praticado por menor que, tendo já completado 12 anos, não haja ainda perfeito 16 anos de idade. Porém, nos termos do artigo 87º, nº 2, da LTE, tratando-se de facto qualificado pela lei como crime de natureza semipública ou particular, o Ministério Público poderá determinar o arquivamento do inquérito quando “o ofendido manifeste no processo oposição ao seu prosseguimento, invocando fundamento especialmente relevante”. Por outras palavras, passou a atribuir-se ao Ministério Público o encargo de criteriosamente ponderar se o fundamento invocado pelo ofendido possui significado e energia bastantes para ser reconhecida a sua relevância e, consequentemente, a virtualidade de conduzir ao arquivamento do processo. Não esclarecendo o legislador o que deverá entender-se por “fundamento especialmente relevante”, mormente se tal relevância se deve aferir do ponto de vista do ofendido ou do menor, antevê-se que novo foco de divergência doutrinária e jurisprudencial possa previsivelmente surgir. Pela nossa parte, seguimos o entendimento de integrarem o conceito seguramente interesses do ofendido dignos de consideração, por relacionados com a sua esfera íntima (factos protagonizados pelo menor e qualificados na lei penal como crimes sexuais) ou familiar (factos protagonizados pelo menor em que figurem como ofendidos elementos da família daquele que não querem ver devassada a sua vida privada e familiar), os quais têm a suscetibilidade de proteção por via da oposição ao prosseguimento do processo fundada na sua invocação. Instaurado o processo tutelar educativo, a fase de inquérito visa averiguar a existência do facto qualificado na lei penal como crime e verificar da existência de necessidade de educação para o direito, devendo o Ministério Público ordenar a realização de todos os atos necessários a comprovar a ocorrência do facto e a necessidade de aplicação da medida sendo que, concluindo pela positiva em ambas as dimensões, deverá propor a aplicação de medida tutelar educativa (artigos 74º e 75º, nº 2, da LTE), mediante requerimento de abertura da fase jurisdicional (artigos 89º e 90º, da LTE), ou, desde que reunidos os necessários pressupostos, decidir-se pela suspensão do processo (artigo 84º, da LTE). Em contrapartida, concluindo pela negativa – ou seja, pela inexistência de necessidade de educação para o direito –, deverá o Ministério Público determinar o arquivamento dos autos – sempre que o facto for qualificado como crime punível com pena de prisão não superior a três anos (artigo 87º, da LTE) – ou propor ao juiz o arquivamento – sempre que lhe corresponda moldura penal superior [artigos 87º, nº 1, alínea c), 90º, nº 1, alínea e) e 93º, da LTE], conforme sucederá no caso de preenchimento do crime de violência doméstica (artigo 152º, do CPenal). O mesmo destino – arquivamento – terá o processo tutelar educativo, nas hipóteses em que se conclua pela inexistência do facto ou pela insuficiência de indícios da prática do facto (artigo 87º, nº 1, alíneas a) e b), da LTE). Conforme acima já aludido, o Ministério Público, caso conclua pela necessidade de medida tutelar educativa, poderá – ao invés de requerer a abertura da fase jurisdicional, nos MANUAL PLURIDISCIPLINAR 319 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O DIR EITO DA FAMÍL I A E DA S CR I A NÇA S imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 320 - - sobreditos termos – optar pela suspensão do processo, mediante a apresentação de um plano de conduta176, sem que para o efeito careça de intervenção judicial. Uma tal opção pressupõe, antes de mais, que o facto que a conduta do menor preencheu seja qualificado na lei penal como crime punível com prisão de máximo não superior a cinco anos, e ainda, cumulativamente, que o jovem não haja sido alvo de medida tutelar educativa anterior, evidencie estar disposto a evitar, no futuro, a prática de factos qualificados pela lei como crime e dê a sua concordância ao plano de conduta apresentado [artigo 84º, nº 1, alíneas a), b) e c), da LTE]. Consequentemente, tendo presentes as distintas molduras legais abstratas correspondentes às diversas modalidades do crime de violência doméstica, previstas no artigo 152º, do Código Penal, haverá a suscetibilidade de o Ministério Público, nalgumas situações, enveredar pela suspensão do processo, reunidos que se mostrem os demais necessários pressupostos, nos termos acima apontados. No decurso do inquérito existem atos de realização vinculada – a audição do menor (artigo 77º, da LTE, exceto se for caso de arquivamento liminar – artigos 77º, nº 2 e 78º, da LTE –, caso em que poderá ser dispensada), o relatório social com avaliação psicológica, quando for de aplicar medida de internamento em regime aberto ou semiaberto (artigo 71º, nº 5, da LTE) e a perícia sobre a personalidade, quando for de aplicar medida de internamento em regime fechado (artigo 69º, da LTE). Certo é que o Ministério Público deverá determinar a realização de todos os atos de inquérito que repute necessários para a prossecução das suas finalidades, cabendo-lhe fixar a ordem da sua respetiva realização, de acordo com critérios de conveniência mas sem descurar o imperativo legal de a audição do menor dever ter lugar no mais curto prazo (artigos 65º, 76º, 79º, 80º, 77º, nº 1, da LTE). Para além de ser da competência reservada do juiz a realização de um conjunto de atos no decurso do inquérito tutelar educativo – artigos 28º, nº 1, alínea a), 51º, nº 1 alíneas a), b) e c), 59º, nº 1, 68º, nº 2, da LTE e 116º, nº 2, do CPP, por força do art. 128º, da LTE –, compete-lhe presidir à fase jurisdicional – artigos 92º e seguintes da LTE -, realizando todos os correspondentes atos (aplicação de medidas tutelares educativas, sua execução e revisão e ainda declaração de extinção ou cessação das mesmas). Acresce referir que, no caso da prática de facto qualificado na lei penal como crime contra as pessoas a que corresponda pena máxima, abstratamente aplicável, de prisão superior a 3 anos (como ocorrerá no caso da prática de factos integradores de crime de 176 Na economia do preceito (artigo 84º, nº 1, da LTE), a iniciativa de apresentação do plano de conduta está hoje atribuída ao Ministério Público (contrariamente ao que sucedia antes da revisão operada pela Lei nº4/2015, de 15 de janeiro, em que tal iniciativa competia ao menor). Cremos, no entanto que, caso o menor (por si ou através do seu defensor) ou os pais, representante legal ou detentor da guarda de facto manifestem ao Ministério Público a disponibilidade ou o desejo de que o primeiro se submeta a plano de conduta e, inclusivamente, o elaborem e o apresentem à apreciação do magistrado titular do inquérito, este deverá ponderar da suscetibilidade de se decidir pela suspensão do processo. Deverá o Ministério Público, nessa hipótese, verificar se se mostram reunidos os pressupostos da suspensão e, caso conclua pela positiva, apreciar se o plano de conduta submetido à sua apreciação se revela conforme às finalidades educativas que constituem o escopo norteador da intervenção, determinando as notificações que deverem ter lugar, em cumprimento do determinado no artigo 84º, da LTE e decidindo em conformidade, acolhendo, na íntegra ou parcialmente, o plano proposto ou submetendo a eventual concordância do menor plano distinto, na hipótese de considerar que, ainda que optando pela suspensão do processo, o plano de conduta apresentado não se coaduna com as exigências tutelares educativas presentes, nas particulares circunstâncias do caso. MANUAL PLURIDISCIPLINAR violência doméstica, tendo presente o disposto no artigo 152º, do Código Penal), o menor (de idade igual ou superior a 12 e que não haja completado 16 anos de idade) que tenha sido detido em flagrante delito (artigos 51º e 52º, da LTE)177, deverá ser presente ao juiz, no prazo máximo de 48 horas, para efeito de sujeição a primeiro interrogatório judicial e eventual aplicação da medida cautelar que as circunstâncias do caso imponham – cfr. artigos 56º e seguintes da LTE. Neste âmbito, regem os princípios da tipicidade (artigo 57º, da LTE) e da adequação e proporcionalidade (artigo 56º, da LTE), sendo que a aplicação de qualquer medida cautelar tem necessariamente como pressupostos a existência de indícios do facto, a previsibilidade de aplicação de medida tutelar e a existência fundada de perigo de fuga ou de cometimento de outros factos qualificados pela lei como crimes (artigo 58º, da LTE). É de sublinhar que, por força das disposições conjugadas dos artigos 58º, nº 2 [com referência à alínea c), do nº 1, do artigo 57º] e 17º, nº 4, alínea a), todos da LTE, só poderá ter lugar a aplicação de medida cautelar de guarda em centro educativo, caso estejamos perante o cometimento de um facto qualificado como crime a que corresponda pena máxima, abstratamente aplicável, de prisão superior a cinco anos ou perante o cometimento de dois ou mais factos contra as pessoas qualificados como crimes a que corresponda pena máxima, abstratamente aplicável, de prisão superior a três anos. Consequentemente, é de concluir encontrar-se fortemente restringida a suscetibilidade de recurso a medida cautelar de internamento em centro educativo (sendo certo que, mesmo perante moldura penal habilitante, uma tal aplicação sempre estará, nos termos gerais do artigo 56º, da LTE, subordinada aos princípios de adequação e proporcionalidade, o que significa que a aplicação de qualquer medida dessa natureza pressupõe a sua adequação às exigências preventivas ou processuais que o caso requer, devendo ser proporcionada à gravidade do facto e à medida tutelar aplicável). Conforme acima mencionado, o Ministério Público, caso conclua pela existência de prova da prática do facto e de necessidades educativas que urja colmatar – e não enveredando pela suspensão do processo, mormente por não se mostrarem reunidos os legais pressupostos, nos termos acima indicados –, deverá propor a aplicação de medida tutelar educativa (artigos 74º e 75º, nº 2, da LTE), mediante requerimento de abertura da fase jurisdicional que deverá ser elaborado com obediência aos requisitos constantes do artigo 90º, da LTE. Concluindo embora pela existência de indícios suficientes da prática de factos qualificados como crime de violência doméstica por parte de menor mas entendendo inexistirem necessidades educativas que se imponha colmatar, deverá igualmente o Ministério Público elaborar requerimento de abertura da fase jurisdicional, com respeito pelos mencionados requisitos do artigo 90º, da LTE e propondo ao juiz o arquivamento dos 177 No caso de detenção em flagrante delito, dispõe o nº 2, do artigo 52º, da LTE, que a mesma só se mantém caso o ilícito que a determinou seja “facto qualificado como crime contra as pessoas, a que corresponda pena máxima, abstratamente aplicável, de prisão igual ou superior a três anos ou (…) facto qualificado como crime a que corresponda pena máxima, abstratamente aplicável, igual ou superior a cinco anos ou, ainda, (…) dois ou mais factos qualificados como crimes a que corresponda pena máxima, abstratamente aplicável, superior a três anos, cujo procedimento não dependa de queixa ou acusação particular”. Dúvidas não existem consequentemente de que a moldura penal abstrata correspondente ao crime de violência doméstica comporta, em qualquer das suas modalidades, a suscetibilidade de manutenção da detenção, na certeza de que o limite máximo previsto, em circunstância alguma, é inferior a cinco anos de prisão (artigo 152º, do Código Penal). MANUAL PLURIDISCIPLINAR 321 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O DIR EITO DA FAMÍL I A E DA S CR I A NÇA S imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 322 - - autos, atenta a circunstância de ao citado ilícito corresponder moldura penal abstrata de máximo superior a três anos [artigos 87º, nº 1, alínea c), 90º, nº 1, alínea e) e 93º, da LTE]. No que se refere à elaboração do requerimento de abertura da fase jurisdicional, é de enfatizar a primordial importância das exigências consagradas nas alíneas d) e e), do nº 1, do artigo 90º, da LTE, ao imporem, respetivamente, “a indicação de condutas anteriores, contemporâneas ou posteriores aos factos e das condições de inserção familiar, educativa e social que permitam avaliar da personalidade do menor e da necessidade da aplicação de medida tutelar” e “a indicação da medida a aplicar ou das razões por que se torna desnecessária”. Apenas uma nota final para referir que, por força da revisão operada pela Lei nº 4/2015, de 15 de janeiro178, caso venha a ser aplicada ao menor medida não institucional e este, no período da sua execução, se coloque intencionalmente em situação que inviabilize o cumprimento da medida ou viole, de modo grosseiro ou reiterado, os deveres inerentes ao cumprimento daquela [respetivamente, alíneas e) e f), do nº 1, do artigo 136º, da LTE], poderá, em sede de revisão (e para além de outras hipóteses possíveis), ser ordenado o internamento em regime semiaberto, uma vez que a prática pelo menor de facto qualificado na lei penal como crime de violência doméstica admite, em qualquer das modalidades legalmente previstas e face às respetivas molduras penais abstratas, a aplicação de medida de internamento em regime semiaberto ou fechado [alínea d), do nº 2, do artigo 138º, da LTE]. Com efeito, “a medida de internamento em regime semiaberto é aplicável quando o menor tiver cometido facto qualificado como crime contra as pessoas a que corresponda pena máxima, abstratamente aplicável, de prisão superior a três anos ou tiver cometido dois ou mais factos qualificados como crimes a que corresponda pena máxima, abstratamente aplicável, superior a três anos” (nº 3, do artigo 17º, da LTE), ao passo que “a medida de internamento em regime fechado é aplicável (…) em caso de ter o menor cometido facto qualificado como crime a que corresponda pena máxima, abstratamente aplicável, de prisão superior a cinco anos ou (…) dois ou mais factos contra as pessoas qualificados como crimes a que corresponda pena máxima, abstratamente aplicável, de prisão superior a três anos” (alínea a), do nº 4, do artigo 17º, da LTE). (Lucília Gago) 178 Tal não era antes legalmente admissível, por muito grave, grosseira e reiterada que se revelasse a conduta do menor, o que vinha sendo apontado generalizadamente como um forte constrangimento às finalidades educativas que norteiam a intervenção, as quais se revelavam, na prática, condicionadas em termos intoleráveis. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 4. ARTICULAÇÃO ENTRE AS VÁRIAS INTERVENÇÕES: O PROCESSO PENAL, O PROCESSO TUTELAR EDUCATIVO, O PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO E AS PROVIDÊNCIAS TUTELARES CÍVEIS I) Considerações gerais A temática que abordaremos de seguida relaciona-se com a necessária articulação/interligação do processo penal com outras áreas do direito que visam, em primeira linha, a defesa do superior interesse da criança ou jovem envolvidos, de forma direta ou indireta, numa situação subsumível ao crime de violência doméstica previsto e punível pelo art. 152º, do Código Penal. Os estudos conhecidos apontam para uma flagrante predominância da mulher vítima do crime e para o facto de grande percentagem dessas vítimas ter filhos menores que coabitam no agregado onde são praticados os atos que integram o comportamento ilícito em causa. Os menores, a maioria das vezes filhos comuns, são eles próprios vítimas do crime, ainda que a atuação do agressor incida sobre a companheira, mãe das crianças ou jovens. Na verdade, mesmo que apenas presencie aquela atuação, a criança ou jovem sofre, necessariamente, desequilíbrio emocional que coloca em crise o seu harmonioso desenvolvimento, vivenciando uma situação de perigo, atenta a definição contida no art. 3º, nº 2, al. f), da Lei 147/99, de 01/09, com as alterações introduzidas pela Lei 142/2015, de 08/09 (LPCJP), doravante assim designada. Relativamente às implicações da violência indireta, ou vicariante, em contexto familiar, embora constitua ainda problemática longe de conclusões definitivas, os autores têm entendido que as consequências para a criança se manifestam de imediato ou, eventualmente, mais tarde, ao longo do respetivo processo de desenvolvimento, e mesmo na idade adulta, constituindo fator de risco de psicopatologia179. Nas observações psicológicas realizadas às crianças, vítimas indiretas de violência familiar, os autores referem que têm sido detetados os seguintes sinais de desequilíbrio emocional: níveis elevados de ansiedade; grande preocupação com a integridade física e psicológica da vítima (em regra, a mãe); falta de concentração e atenção; dificuldades de separação de pessoas de referência e ansiedade social. De acordo com Ana Isabel Sani, os estudos realizados apontam para a seguinte conclusão: “As crianças expostas à violência parental têm mais problemas comportamentais, exibem afecto significativamente mais negativo, respondem menos apropriadamente às 179 De acordo com os estudos de Vostanis, Tischler, Cumella e Bellerby, de 2001, citados por Ana Isabel Sani in “Vitimação indirecta de crianças em contexto familiar”, artigo publicado na Revista Análise Social, nº 180, 3º trimestre de 2006. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 323 - Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o O DIR EITO DA FAMÍL I A E DA S CR I A NÇA S 324 - - situações, mostram-se mais agressivas com os pares (e.g., situações de bullying) e têm relacionamentos mais ambivalentes com as pessoas que delas cuidam do que as crianças de famílias não violentas”(op. cit.). E, diversas pesquisas, relacionam a exposição à violência com o subsequente uso da mesma, tanto na adolescência como na idade adulta, com imitação dos comportamentos presenciados. Como se refere no estudo elaborado pela Direção-Geral de Saúde, de dezembro de 2014, sobre Violência Interpessoal – Abordagem, Diagnóstico e Intervenção nos Serviços de Saúde: “…A investigação tem evidenciado que as crianças expostas a violência doméstica, designada por violência indireta ou vicariante, encontram-se em maior risco de serem maltratadas ou negligenciadas e a maior parte dos estudos revela que existem adultos e crianças vítimas em 30% a 60% das famílias que vivenciam violência doméstica” (pág. 33). Relativamente à transgeracionalidade, cuja definição é dada naquele estudo como a transmissão de padrões de relacionamentos familiares que se repetem de uma geração a outra, considera-se que “…A tendência natural de uma criança é responder às situações vividas de acordo com os seus modelos. A exposição à violência, de forma direta ou indireta/ vicariante, perpetrada pelas suas figuras de identificação será internalizada e justificada na sua escala de valores enquanto indivíduo, elemento de um sexo e de uma família, configurando assim as suas expectativas sociais” (pág. 42). De acordo com as conclusões do Comentário Geral nº 13 (2011), do Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas, a exposição da criança à violência doméstica constitui uma das formas de violência psicológica de que a mesma pode ser vítima – cfr. Conclusão 21, al. e), do aludido Comentário, [Em linha], disponível na internet em: <URL http://direitoshumanos.gddc.pt/2_1/IIPAG2_1_2_6_2.htm >. Estas crianças – vítimas indiretas de um contexto de violência doméstica – porque também vivenciam situação de perigo/desproteção, devem beneficiar da adequada medida de promoção e proteção, sendo afastados do meio violento em que se encontram, e deve ainda ser-lhes prestado apoio na valência de Psicologia por forma a lograrem ultrapassar a situação patológica que vivenciaram, com o menor risco possível das nefastas consequências referidas virem a ser, futuramente, um handicap para a sua inserção social. O “Manual Crianças e Jovens Vítimas de Violência: Compreender, Intervir e Prevenir”, organizado em 2011, pela APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, e disponível na internet em: <URL www.apav.pt/pdf/Manual_Criancas_Jovens_PT.pdf >, considerando que a exposição da criança ou jovem a este tipo de violência deve enquadrar uma situação de “maus tratos ativos” (sendo estes entendidos como a adoção de determinados comportamentos contrários ou conflituantes com as necessidades fundamentais das crianças ou jovens), contém a definição de exposição à violência interparental que nos parece refletir as caraterísticas próprias de uma tal situação bem como as consequências daí advenientes. Assim, os maus tratos em causa correspondem a uma forma indireta de vitimação caraterizada pelo testemunho por parte da criança ou jovem da violência e/ou conflito interparental, muitas vezes, associado ao risco aumentado de vitimação directa por parte do cônjuge agressor perante eventual tentativa da criança ou jovem em colocar um fim na situação violenta instalada. Esta forma de vitimação indireta causa mal-estar físico, psicológico, emocional, comportamental e relacional equiparável ao impacto provocado pela experiência directa do mau trato. Consequentemente, e com o objetivo de resguardar a criança do aludido risco aumentado de vitimação directa, no capítulo referente à Violência Doméstica e sob a epígrafe “Planear a sua Segurança”, a APAV aconselha a vítima, entre outras orientações, neste sentido: ensine as crianças a colocarem-se em segurança em caso de violência e de não o/a tentar salvar do/a agressor/a. A noção da vitimação indireta da criança ou jovem em casos de violência interparental, está hoje, felizmente, cada vez mais consciencializada e divulgada – contrariamente ao que sucedia até, pelo menos, à década de 90 do século XX – e constitui preocupação de todas as entidades que lidam com este problema social, designadamente as entidades policiais. Cumpre aqui fazer uma breve referência ao conteúdo - ainda que sucinto mas importante - do site da GNR-Guarda Nacional Republicana, reportado à violência doméstica, onde se pode ler: As crianças, estas são as vítimas no presente e a longo prazo da violência doméstica. A criança projeta-se no futuro e aquilo que vê na sua infância, o que sente e o que sofre, física e psicologicamente, marca-a indelevelmente para todo o sempre. Também a jurisprudência dos nossos tribunais vem considerando os ensinamentos de outras áreas e os resultados das pesquisas realizadas para subsumir factualidade integrante do crime de violência doméstica com a agravação legalmente prevista, em casos de vitimação indireta de criança ou jovem, ainda que de tenra idade. No Processo nº 1396/12.7 GBCL.G1, o Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão proferido em 03-03-2014 (Relator Lee Ferreira), disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/ 86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/9577fd5f9c32918080257ca10059c2cd?OpenDocument concluiu: “I - A agravação do crime de violência doméstica, resultante do facto ser praticado na presença de menor (art. 152º, nº 2, do Cód. Penal), espelha a intenção do legislador de estender a tutela penal a pessoas de maior vulnerabilidade, que possam tornar-se vítimas “indiretas” dos maus tratos inicialmente dirigidos a outras pessoas. II - Ocorre aquela circunstância agravante quando são perpetradas agressões físicas e dirigidos insultos à mãe de um menor de um ano e seis meses que está ao seu colo, pois, para além do risco do menor ser atingido fisicamente, nessa idade a criança já se apercebe da emoção dos adultos, vivendo a perturbação que a rodeia”. Porém, existem, de igual modo, casos concretos em que o agressor não só dirige a atuação contra a companheira, mas também contra os menores presentes, muitas vezes quando estes, em defesa da progenitora, se interpõem entre vítima e agressor numa vã tentativa de impedir o ato. Ciente da gravidade de ambos os comportamentos acima descritos, o legislador agravou a conduta do agente elevando a moldura penal aplicável ao ilícito em causa – cfr. art. 152º, nº 2, do Código Penal. Tal agravação depende, no que aqui nos interessa, do cometimento dos factos, diante ou contra quem, ainda não completou 18 anos de idade. E, por outro lado, garantiu aos menores vítimas de violência doméstica, o tratamento/ intervenção de apoio específico a que aludem os arts. 6º, nº 2 e 9º, da Lei 112/2009, de MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 325 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O DIR EITO DA FAMÍL I A E DA S CR I A NÇA S imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 326 - - 16/9, alterada pela Lei 129/2015 de 3 de setembro, atenta a definição contida no art. 2º, al. b), da citada Lei – conceito de «Vítima especialmente vulnerável» - sem olvidarmos a promoção e proteção dos direitos da criança ou jovem decorrentes da aplicação, em seu benefício, das medidas fixadas na LPCJP (art. 35º). Para que a intervenção protetiva se desencadeie, nas situações em que a violência doméstica intrafamiliar não é denunciada, mostra-se premente a deteção e correta avaliação de sinais observáveis na criança ou jovem, sejam físicos ou psicológicos, sinais esses vulgarmente designados por indicadores. A título exemplificativo, podemos citar como indicadores físicos: feridas, lesões, fraturas, atraso no desenvolvimento; e como indicadores comportamentais e emocionais: apatia, ansiedade, baixa auto-estima, reações de agressividade contra o próprio ou contra terceiro, dificuldades de aprendizagem, falta de concentração. O conhecimento e correta análise destas manifestações concretas da vivência, pela criança ou jovem, de uma situação de violência doméstica deverá, necessariamente, originar imediata intervenção protetiva a seu favor, nos moldes que vierem a ser considerados os mais adequados. Assim, a formação técnica dos profissionais que lidam com crianças, para interpretarem os diversos tipos de indicadores de risco/perigo acima mencionados a título meramente exemplificativo, compreenderá, desejavelmente, tendo em vista a melhor defesa do superior interesse da criança, estas específicas matérias. Como é do conhecimento geral, anualmente, o número de participações registadas referentes ao crime de violência doméstica tem vindo a aumentar – em 2014, constam 22965 participações na estatística da Direção-Geral da Política de Justiça, disponível em www.siej.dgpj.mj.pt (“Os números da Justiça 2014”, publicação de dezembro de 2015) – e, através dos elementos recolhidos pela Comissão Nacional de Proteção de Crianças e Jovens em Risco, constantes do seu Relatório Anual de 2014, [Em linha], publicado em maio de 2015, disponível na internet em: <URL http://www.cnpcjr.pt/preview_documentos.asp?r=5603&m=PDF >, podemos constatar o seguinte: a problemática da “Exposição a comportamentos que possam comprometer o bem-estar e desenvolvimento da criança”, onde se inserem as situações de vitimação indireta relacionada com a violência interparental, representa 26,2% das situações de perigo sinalizadas às Comissões de Proteção durante o ano de 2014, e envolvem 19603 crianças ou jovens. Acresce que, também como resulta da análise efetuada no aludido Relatório, verificou-se um aumento percentual de casos relativamente ao ano anterior – em 2013, a percentagem era de 25,4%, envolvendo 18273 crianças ou jovens – indicadores esses, por sua vez, superiores aos do ano 2012, o que reforça a conclusão sobre a tendência exponencial da vitimação indireta das crianças e jovens nos crimes de violência doméstica. Por outro lado, a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima registou estatisticamente, no ano de 2014, a ocorrência de 21541 crimes, representando o crime de violência doméstica uma percentagem de 78,4% desse universo, o que corresponde a 17786 casos – cfr. Relatório da APAV de 2014, de fevereiro de 2015, disponível na internet em: http://www.apav.pt/apav_v2/images/pdf/Estatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2014.pdf Se tivermos em consideração, ainda de acordo com os dados do Relatório citado, que 82,3% dos casos acompanhados pela APAV, em 2014, se reportavam a vítimas do sexo feminino, na faixa etária entre os 25 e os 54 anos de idade e que 39,4% dessas vítimas vivem em famílias nucleares com filhos, podemos percecionar o número de crianças e jovens que vivenciaram, de forma direta ou indireta, situação de violência doméstica intrafamiliar, contabilizando a APAV, no ano de 2014, 992 crianças e jovens vítimas (média de 2,7 por dia/ 19 por semana) – ainda que este número se reporte ao valor global, atendendo aos diferentes ilícitos considerados nas referências estatísticas em análise, face ao enorme pendor percentual do crime de violência doméstica, forçoso é concluir que grande parte destas crianças e jovens estiveram envolvidas, direta ou indiretamente, numa situação desta natureza. Importa ainda realçar que, como todos os estudos apontam e os dados estatísticos confirmam, o crime de violência doméstica é caraterizado pela vitimação continuada, tendo a APAV apurado que, relativamente ao ano de 2014, foram registados 1267 casos em que “ a duração da vitimação” se prolongou pelo período entre 2 e 6 anos, correspondendo a 19% das situações, o que permite também concluir, em nosso entender, que a exposição da criança ou jovem ao comportamento ilícito em causa perdura, tendencialmente, no tempo, agravando as consequências psicopatológicas já referidas. No estudo publicado pela Direção-Geral de Saúde, já mencionado, disponível na internet em: <URL http://www.fenacerci.pt/web/publicacoes/outras/dgs_manual_profissionais. pdf >, tendo em consideração as estatísticas nacionais sobre violência doméstica, conclui-se que, no ano de 2013, foram registadas 27318 participações de violência doméstica às Forças de Segurança, demonstrando um aumento de ocorrências 2,4% superior ao verificado no ano anterior e, mais de um terço das ocorrências (39%) foi presenciado por crianças/jovens (sublinhado nosso). O Ministério da Administração Interna, através da sua Secretaria-Geral (SGMAI), publicou em agosto de 2015, um Relatório Anual de Monitorização denominado “Violência Doméstica 2014”, disponível em http://www.sg.mai.gov.pt/Noticias/Documents/Rel%20 VD%202014_vfinal_14agosto2015.pdf donde resulta que, durante o ano de 2014, foram registadas pelas Forças de Segurança, 27317 participações de violência doméstica sendo que, em 38% dos casos, os factos foram presenciados por crianças ou jovens, representando essa percentagem o significativo número de 10380. MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR II) A articulação entre as várias jurisdições Perante denúncia apresentada relativa à ocorrência de factos suscetíveis de integrar o crime de violência doméstica, ou deteção de uma tal situação, estando envolvida criança ou jovem, impõe-se que o percurso a seguir seja gizado com celeridade e em articulação com outras áreas, para se lograr obter a cabal defesa dos seus interesses. No momento da elaboração do auto de notícia ou de denúncia por factos enquadráveis no crime de violência doméstica, a entidade policial deverá comunicar tais factos à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) territorialmente competente, atenta a área de residência da criança ou jovem. 327 - Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o O DIR EITO DA FAMÍL I A E DA S CR I A NÇA S 328 - - E, se tal comunicação não tiver sido efetuada, logo que o magistrado do Ministério Público tiver acesso ao Inquérito a que tal expediente der origem, deverá proceder de imediato à participação dos factos à referida Comissão. A tramitação do Inquérito, designadamente no que tange à aplicação de medidas de coação ao arguido – agressor da criança ou jovem, ainda que de forma indireta – interessa ao desenvolvimento do processo de promoção e proteção instaurado a favor do menor na CPCJ e à ulterior aplicação da medida adequada. De igual modo, os elementos que constam destes dois tipos de procedimento interessam à apreciação da providência tutelar cível a instaurar – ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais –, caso os progenitores da criança ou jovem se mantenham separados. A necessidade de se procurar a solução mais adequada à proteção da criança ou jovem e à promoção dos seus direitos, implica o dever de as entidades envolvidas recorrerem à recíproca colaboração e articulação da sua atuação. Mostra-se, pois, imprescindível que a CPCJ onde corre termos o processo de promoção e proteção a favor da criança ou jovem comunique ao Inquérito qual a medida aplicada no âmbito desse processo, assim como o magistrado titular do Inquérito deverá fornecer àquela entidade os elementos que sejam tidos por necessários à devida apreciação da situação em sede de comissão restrita. Por outro lado, não sendo obtidos os legais consentimentos para a intervenção da CPCJ deverá esta entidade, com a maior urgência possível, remeter o processo ao magistrado do Ministério Público junto do Tribunal de Família e Menores, nos termos do art. 95º, nº 2, da Lei 147/99, de 01/09, na redação da Lei 142/2015, de 8/9 (LPCJP) para que seja requerida a imediata intervenção judicial, como dispõe o art. 11º, al. c), da Lei citada. E, concomitantemente, devem os magistrados do Ministério Público de cada uma das áreas de jurisdição – criminal e família e menores – articular entre si, para que seja alcançada decisão adequada e harmoniosa em benefício da criança ou do jovem. Estamos, de igual modo, a assinalar a articulação que deve ser efetuada tendo também em consideração eventual providência tutelar cível a instaurar – regulação do exercício das responsabilidades parentais – nas situações em que a violência doméstica ocorreu no agregado familiar onde está inserida a criança e exista separação entre os progenitores, sendo aquela ação, oportunamente, apensada ao processo judicial de promoção e proteção – vd. art. 11º, nº 1, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei 141/2015, de 08/09. Caso o processo de promoção e proteção se mantenha na CPCJ, subsiste a necessidade de articulação entre as jurisdições e entre estas e a Comissão, reciprocamente. Importa, em suma, que a intervenção a favor da criança ou jovem surja conjugada entre si e em relação ao Inquérito instaurado contra o agressor, pois só deste modo se alcançará a sua adequação ao caso concreto. Poderá haver, em nosso entender, maior óbice à execução do que acima se expôs nos casos em que os processos, por força das regras da competência, correm termos em comarcas diferentes: o Inquérito no local da prática do crime e os processos referentes à criança/jovem no Tribunal/Comissão da área da respetiva residência. Porém, as dificuldades decorrentes da referida separação geográfica dos processos são facilmente ultrapassadas pela celeridade permitida pelas comunicações telefónicas e/ ou informáticas, o que, na prática, vem sucedendo com os regulares contactos entre os intervenientes, titulares dos processos em causa, ainda que se encontrem, entre si, a distância razoável. Aliás, no que respeita ao crime de violência doméstica e regras orientadoras relativamente à respetiva suspensão provisória do processo, determina a Exma. Sra. ProcuradoraGeral da República na sua Diretiva nº 1/14, de 15-01-2014, a obrigatoriedade da articulação a que nos temos vindo a referir por forma a que, no âmbito do Inquérito, sejam definidas as injunções e regras de conduta com o expresso objetivo de harmonizar umas e outras decisões – cfr. Capítulo X, da citada Diretiva (que revogou a Circular PGR, de 20-03-2012). Relativamente à questão da articulação entre a área criminal e a área de família e menores, o ponto 18, do Despacho nº 19/09, de 30/1, da Procuradora-Geral Distrital de Lisboa, dispõe sobre a temática em causa, fornecendo orientações específicas aos magistrados do Ministério Público do distrito judicial de Lisboa quanto à forma de tratamento, apreciação e atuação no que tange, designadamente, às situações de violência doméstica que envolva menores (sejam os menores diretamente maltratados ou expostos à violência de um progenitor sobre o outro) – cfr. ponto 18.4 – ou ainda, quando a matéria objeto de processo-crime revestir relevância em sede de promoção e proteção de criança ou jovem – cfr. ponto 18.6. Salientemos ainda a orientação ínsita no ponto 18.8 do Despacho referido que prevê a nomeação de um interlocutor na área criminal e na área de família e menores competindo a estes magistrados do Ministério Público a facilitação e a concertação das diferentes intervenções na 1ª instância e que transmitam aspetos dignos de relevo à PGDL. Tais orientações foram, posteriormente, reforçadas pela Procuradoria-Distrital de Lisboa através da Recomendação nº 4/12, de 16/5/2012, face ao que dispõem, em concreto, os seus pontos VI, VII e VIII. De igual modo, o Exmo. Senhor Procurador-Geral da República, através da Circular 3/2006, de 20/3/2006, impôs ao magistrado do Ministério Público interlocutor junto da CPCJ o especial dever de interação com o colega titular do inquérito tendo em vista avaliar a adequação das medidas de protecção, tendo em conta a situação processual do arguido – cfr. ponto 5.4, da mencionada Circular. Por sua vez, a Diretiva Conjunta de 23/06/2009 resultante do Protocolo estabelecido entre a PGR e a CNPCJR para uniformização de procedimentos funcionais entre os Magistrados do Ministério Público interlocutores e as CPCJ, reiterou expressamente aquela orientação, reforçando-a com a necessidade de interação imediata - cfr. ponto 3.4, da citada Diretiva. A preocupação pela concretização de uma verdadeira articulação entre as diversas jurisdições é patente, de igual modo, nas orientações internas existentes nas diversas Comarcas, a nível nacional, a observar por todos os magistrados do Ministério Público MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 329 - Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o O DIR EITO DA FAMÍL I A E DA S CR I A NÇA S 330 - - em exercício de funções nas áreas criminal e de família e menores, materializando as instruções superiores que têm vindo a ser difundidas sobre a matéria. A título meramente exemplificativo, assinalamos: - o “Compromisso de Boas Práticas” estabelecido entre o Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) do Porto, a Procuradoria da República junto do Tribunal de Família e Menores (TFM) do Porto e a Procuradoria da República junto do Tribunal de Instrução Criminal (TIC) do Porto, divulgado no Sistema de Informação do Ministério Público (SIMP), através da Informação nº 46/2010, de 31/05; - a Ordem de Serviço nº 6/2010, de 27/09, da Coordenação do Círculo Judicial de Loures prevendo a criação de uma Unidade de Combate à Violência Doméstica e a pertinente articulação entre os magistrados do Ministério Público da jurisdição Criminal, quer na fase de inquérito, quer na fase de julgamento, e da jurisdição de Família e Menores; - o Provimento da Direção do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa nº 2/2010, de 26/02, que autorizou a criação da Unidade contra a Violência Doméstica, Maus Tratos em Menores, Idosos e Pessoas com Deficiência (UCVD), a funcionar na 7ª secção daquele Departamento, com especial destaque para a necessidade de articulação dos magistrados do Ministério Público em exercício de funções naquela Secção, os colegas das Secções de Família e Menores e as Comissões de Proteção de Crianças e Jovens. O V Plano Nacional de Prevenção e Combate à Violência Doméstica e de Género 20142017, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros nº 102/2013, publicada no Diário da República - 1ª série, nº 253, de 31/12/2013, impõe à Procuradoria-Geral da República, como entidade parceira na execução do referido Plano e durante a sua vigência, o desenvolvimento de ações tendentes a garantir/melhorar a articulação entre as intervenções do Ministério Público nas jurisdições criminal, de família e cível, nos casos de violência doméstica, com os seguintes objetivos: - Prevenção da vitimização secundária, - Melhoria da articulação entre as respostas das diferentes jurisdições. Objetivos esses que devem ser alcançados através de Orientações genéricas dirigidas ao Ministério Público nas jurisdições criminal, de família e cível – cfr. Área Estratégica 2, do V Plano Nacional de Prevenção e Combate à Violência Doméstica e de Género 2014-2017, alínea 19. Por outro lado, no documento elaborado pela Procuradoria-Geral da República, divulgado em 15/7/2015, contendo os Objetivos Estratégicos trianuais e anuais do Ministério Público, referente ao triénio judicial 2015-2018 e ao ano judicial 2015-2016, abrangendo todos os órgãos e departamentos, bem como todos os magistrados do Ministério Público, a Procuradora-Geral da República integra a Violência Doméstica e os Direitos das crianças e jovens no capítulo que contém as áreas prioritárias de atuação do Ministério Público – cfr. pontos A.2 e A.7 – pretendendo-se, como ali se refere, criar modelos e rotinas de abordagem integrada de cada criança ou jovem, muitas vezes envolvidos em diversos processos que correm termos em diversas jurisdições – promoção e protecção, tutelar educativo, crime e cível (cfr. ponto A.7, pág. 18). E, no ponto B.3 do mesmo documento, sob a epígrafe Articulação da intervenção entre diversas jurisdições, apesar de se considerar que esta necessidade constitui um problema transversal à intervenção do Ministério Público, reconhece-se que tem maior relevância em determinados casos, designadamente, naqueles que envolvam crianças e jovens, o que fundamenta a indicação, de igual modo, como objetivo estratégico para o triénio judicial, a promoção da articulação entre jurisdições (cfr. ponto B.3, pág. 24). Finalmente, as Diretivas e Instruções Genéricas para a Execução da Lei da Política Criminal para o biénio 2015/2017 difundidas pela Procuradoria-Geral da República em 24/11/2015, incluem no elenco dos “Crimes de Investigação Prioritária”, ao abrigo do disposto no art. 3º, da Lei 72/2015, de 20 de julho, o crime de violência doméstica (previsto no art. 152º, do Código Penal) nomeadamente se praticado contra pessoas particularmente indefesas ou praticado contra ou presenciado por menores – cfr. ponto I -1. iii. – havendo expressa orientação superior no seguinte sentido: Sendo vítimas, diretas ou indiretas, crianças ou jovens, comunicar e articular com os magistrados do Ministério Público de outras jurisdições, em especial das secções de família e menores, a intervenção que se entenda necessária – cfr. ponto I – 3 b.i. – (sublinhado nosso). Conclui-se, assim, que a atuação do Ministério Público visando a necessária articulação entre as diversas jurisdições está perfeitamente delineada através de diretivas superiores as quais, posteriormente, são materializadas nas orientações internas vigentes nas comarcas e/ou departamentos logrando-se, desse modo, concretizar os objetivos pretendidos. Caberá a todos, e a cada um, dos magistrados do Ministério Público em exercício de funções nas jurisdições em causa cumprir, com rigor, o que resulta das referidas instruções hierárquicas e da lei, tendo sempre presente que, em última análise, o fim visado é a defesa do superior interesse da criança ou jovem a que respeitam os diversos processos. MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR III) A visão do legislador de 2015 sobre esta questão: o novo Regime Geral do Processo Tutelar Cível No passado dia 8 de outubro de 2015, entrou em vigor o Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC), doravante assim designado, aprovado pela Lei nº 141/2015, de 08 de setembro, que revogou o Decreto-Lei nº 314/78, de 27 de outubro (revê a Organização Tutelar de Menores) – cfr. art. 6º, al. a), da citada Lei. No que tange às questões relacionadas com a articulação que deve existir entre as diversas jurisdições, o RGPTC impõe que se mantenham as especiais cautelas quanto ao cumprimento das regras de interligação e procedimentais já definidas e aplicadas pelos magistrados do Ministério Público e, por outro lado, os atuais ditames legais que regem as providências tutelares cíveis e, em particular, o processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, determinam a concreta atuação do tribunal nas situações em que haja violência doméstica com o intuito de melhor salvaguardar os interesses da criança ou jovem. O fim visado pela regra constante do nº 1, do art. 27º, do RGPTC, é a harmonização das decisões proferidas em processos de diversa natureza relativamente à mesma criança ou jovem. Para além dos processos tutelares cíveis e de promoção e proteção expressamente referenciados, e os tutelares educativos, cuja menção está omissa, o que contraria o disposto no art. 11º, nº 1, do RGPTC e no art. 43º, nº 3, da Lei Tutelar Educativa, deverá o 331 - Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o O DIR EITO DA FAMÍL I A E DA S CR I A NÇA S 332 - - tribunal ter ainda em consideração o que dispõem os arts. 14º, nº 2 e 37º-B, nº 1, da Lei 112/2009, de 16/09, com as alterações introduzidas pela Lei 129/2015, de 03/09 (Regime Jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas): • “Sempre que existam filhos menores, o regime de visitas do agressor deve ser avaliado, podendo ser suspenso ou condicionado, nos termos da lei aplicável.” (art. 14º, nº 2, da Lei 112/09, de 16/09), • “As decisões finais transitadas em julgado que apliquem medidas de coação restritivas de contactos entre progenitores em processos por prática do crime de violência doméstica são comunicadas, para os devidos efeitos, à secção de família e menores da instância central do tribunal de comarca da residência do menor” (art. 37º-B, nº 1, da Lei 112/2009, de 16/09). Na verdade, como se refere no estudo já citado elaborado pela Direção-Geral de Saúde, a convicção de que “Uma pessoa pode ser agressora e, ao mesmo tempo, ser bom pai ou boa mãe”, trata-se de um mito, concluindo aquela entidade que “Cientificamente está provado que o facto de as crianças estarem expostas a situações de violência pode ter impacte nas mesmas, muitas vezes visível através de alterações comportamentais, emocionais e psicológicas (vitimização vicariante). A vivência num ambiente de violência, em que os protagonistas são as figuras de apego, pode desenvolver nestas a conceção de um mundo imprevisível, inseguro e assustador, com manifestação de sintomas de ansiedade, de evitamento e/ou agressividade” (pág. 50). Deste modo, tais normas impõem a desejada articulação entre os processos-crime e os que correm nas secções de família e menores (ou como tal constituídas, nos termos do art. 8º, nº 3, do RGPTC). Se, no âmbito da providência tutelar cível – regulação do exercício das responsabilidades parentais – houver conhecimento da atribuição do estatuto de vítima, nos termos do art. 14º, da Lei 112/2009, de 16/09, ou da aplicação de medida de coação que restrinja os contactos entre progenitores, aplicada em processo cujo objeto seja a prática do crime de violência doméstica, face ao disposto no art. 37º-B, nº 1, da citada Lei, deve tal circunstancialismo ser tido em consideração pelo juiz da secção de família e menores. Ainda que se trate de decisão provisória proferida, quer ao abrigo do disposto no art. 28º, do RGPTC, quer na sequência da determinação imposta no art. 38º, do mesmo diploma legal, a avaliação dos elementos constantes do processo-crime mostra-se essencial e impositiva, tendo o juiz a faculdade de alterar anterior decisão – cfr. nº 2, do art. 27º, do RGPTC. Este regime obriga o tribunal a proceder a uma especial vigilância quanto à deteção de eventual situação de violência doméstica, especialmente na tramitação dos processos relativos à regulação do exercício das responsabilidades parentais onde deverá, ainda, ter em consideração: 9 a presunção estabelecida no nº 9, do art. 40º, do RGPTC, ou seja, de que é contrário ao superior interesse da criança o exercício em comum das responsabilidades parentais, 9 a eventual fixação de um regime de visitas condicionado, ou 9 a determinação da sua suspensão, atento o disposto no art. 40º, nº 10, do RGPTC. A intervenção do Ministério Público em exercício de funções na secção de família e menores terá, necessariamente, que revelar esta preocupação quanto à recolha de todos os elementos pertinentes à prolação de uma decisão consentânea com os específicos contornos do caso concreto, por forma a evitar qualquer colisão entre as duas decisões – quando tiver sido aplicada medida de coação que restrinja os contactos entre os progenitores – ou mesmo quando existe, apenas, a atribuição do estatuto de vítima (art. 14º, nº 2, da Lei 112/09, de 16/09). Nesta situação – atribuição do estatuto de vítima – que não determina a obrigatoriedade de comunicação ao Tribunal, o acervo de elementos a ser junto ao processo tutelar cível deve ser coligido pelo magistrado do Ministério Público, o que será conseguido através da imprescindível articulação entre o magistrado titular do Inquérito-crime e aquele que exerce funções nas secções de família e menores, ou constituídas como tal. E, caso não exista processo pendente no tribunal, no âmbito da referida articulação, deve resultar esclarecida a necessidade de instauração de providência tutelar cível – regulação do exercício das responsabilidades parentais – nas situações em que exista separação entre os progenitores, com atribuição do estatuto de vítima a um deles, nos termos do art. 14º, nº 2, da Lei 112/09, de 16/09, ou aplicação da medida de coação a que alude o art. 37º-B, nº 1, da mesma Lei. No que diz respeito à conjugação das decisões proferidas nos processos tutelares cíveis e de promoção e proteção, a regra da apensação estabelecida no art. 11º, nº 1 e o pedido de informação que o juiz deve formular à CPCJ, nos termos do art. 81º, nº 3, da LPCJP, permitem atualmente uma melhor harmonização entre os dois processos uma vez que a sua tramitação estará a cargo do mesmo juiz e do mesmo magistrado do Ministério Público, após apensação. Finalmente, a norma constante do nº 3, do art. 27º, do RGPTC, assume contornos inovatórios e reconduz-se às situações em que, não havendo processo de promoção e proteção instaurado e detetando-se indícios de uma situação de perigo vivenciada pela criança, designadamente a violência doméstica interparental, caberá ao magistrado do Ministério Público instaurar a respetiva ação, por apenso à providência tutelar cível pendente. Esta norma prevê, assim, uma exceção ao princípio da subsidiariedade consignado na al. k), do art. 4º, da LPCJP, na medida em que a intervenção em benefício da criança, no âmbito da promoção e proteção, se iniciará, desde logo, no Tribunal. Todavia, esta opção do legislador mostra-se consentânea com a regra da apensação já referida, sendo inútil qualquer atuação diferente pois seguir-se-ia, respeitando a mesma regra (art. 11º, nº 1, do RGPTC), a ulterior apensação ao processo tutelar cível. Com efeito, o art. 11º, nº 1, do atual RGPTC, espelha, de sobremaneira, a preocupação do legislador relativamente à conjugação de decisões a proferir em processos de distinta espécie referentes à mesma criança ou jovem. Assim, caso sejam instaurados separadamente processo tutelar cível, de promoção e protecção ou tutelar educativo, deve o Tribunal ordenar a sua apensação àquele que tiver sido instaurado em primeiro lugar sendo competente para apreciar todas as ações o juiz deste processo. MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 333 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O DIR EITO DA FAMÍL I A E DA S CR I A NÇA S imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 334 - - Ainda que o processo de promoção e proteção esteja pendente na CPCJ deverá, de igual modo, ser apensado à providência tutelar cível e/ou ao processo tutelar educativo que estiverem a ser tramitados no tribunal, competindo ao juiz a solicitação de informação à Comissão, nos termos do art. 81º, nº 3, da LPCJP. Esta novidade legal permite, como acima já referimos, que se verifique melhor harmonização de decisões, p. ex. entre a decisão, provisória ou definitiva, proferida no processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais e a medida, provisória ou definitiva, aplicada no âmbito do processo de promoção e proteção, reportando-se ambos os processos à mesma criança ou jovem. De todo o modo, nos casos em que tenha existido violência doméstica, subjaz a necessidade de articulação com o processo-crime, como também já frisámos, o que se mostra imprescindível ao integral cumprimento dos comandos ínsitos nos arts. 14º, nº 2, e 37ºB, nº 1, da Lei 112/2009. Ainda que, relativamente à criança ou jovem, estiver pendente no tribunal apenas processo tutelar educativo e for detetada a vivência de uma situação de perigo, p. ex. relacionada com violência doméstica interparental, em qualquer fase daquele processo, podem ser tomadas medidas urgentes de protecção, a título provisório, no próprio processo tutelar educativo, atento o disposto no art. 43º, nº 2, da Lei Tutelar Educativa. Posteriormente, no prazo de um mês, deve ser instaurada a competente ação de promoção e proteção no âmbito da qual será confirmada a medida anteriormente adotada. * Em conclusão, podemos referir o seguinte: I. Quanto à previsão do art. 14º, nº 2, da Lei 112/2009: 9 sendo apresentada denúncia e atribuído o estatuto de vítima e existam filhos menores do casal, deverá ser ponderada a necessidade de se avaliar o direito de visitas às crianças por parte do progenitor agressor, nas situações em que vítima e agressor não se encontrem a viver como casal, ainda que residam na mesma casa; 9 tendo em consideração o disposto no art. 1904º-A, do Código Civil, na redação introduzida pela Lei 137/2015, de 07 de setembro, vigente desde 1 de outubro de 2015, atualmente, a questão dos convívios/visitas coloca-se ainda relativamente ao cônjuge ou unido de facto a quem tenham sido atribuídas responsabilidades parentais, não sendo este o progenitor da criança ou jovem; 9 competirá ao magistrado do Ministério Público titular do Inquérito-crime recolher os elementos pertinentes sobre a situação e, em articulação com o seu colega a exercer funções junto das secções de família e menores, transmiti-los para que este último pondere a necessidade de ser instaurada a providência tutelar cível adequada – regulação do exercício das responsabilidades parentais, sua alteração (se já tiver havido regulação anterior) ou, eventualmente, ação de inibição do exercício das responsabilidades parentais. Poderá ainda ser necessária a junção desses elementos – através de requerimento elaborado pelo magistrado do Ministério Público junto da secção de família e menores – à providência MANUAL PLURIDISCIPLINAR tutelar cível que se encontre pendente no tribunal, requerendo aquele magistrado o que tiver por conveniente tendo em vista os objetivos da norma; 9 competirá, de igual modo, ao magistrado do Ministério Público junto da secção de família e menores a apreciação da necessidade de vir a ser instaurado processo de promoção e proteção em benefício da criança ou jovem, e que será apensado à providência tutelar cível, atento o disposto no art. 11º, nº 1, do RGPTC; 9 nas situações em que a vítima – a quem foi atribuído o respetivo estatuto – e o agressor, permaneçam a viver em conjugalidade, face à existência de violência no agregado familiar onde reside a criança ou jovem, haverá necessidade de comunicação à CPCJ, se ainda não tiver sido feita pela entidade policial, para que seja avaliada a existência de perigo e aplicada a adequada medida de promoção e proteção; 9 independentemente das relações familiares que unam vítima e agressor, desde que existam crianças ou jovens no agregado familiar em causa, a situação de violência doméstica terá, necessariamente, de ser comunicada à CPCJ para avaliação da situação de perigo e eventual aplicação de medida de promoção e proteção. Caso tal comunicação não haja sido feita diretamente pela entidade policial que recebeu a denúncia, deverá o magistrado do Ministério Público titular do Inquérito-crime diligenciar nesse sentido remetendo àquela entidade os elementos pertinentes à avaliação da situação. * II. Quanto à previsão do art. 37ºB, nº 1, da Lei 112/2009: 9 caso se encontre pendente processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, esta norma deve harmonizar-se com o disposto no art. 40º, nos. 9 e 10º, do RGPTC, devendo o Tribunal onde corre termos o processo-crime proceder às necessárias comunicações à secção de família e menores; 9 os elementos em causa servirão, posteriormente, para que seja excluído pelo juiz de família e menores, na decisão a proferir, o exercício em comum das responsabilidades parentais, de acordo com a presunção estabelecida no nº 9, da norma citada, e para determinação do condicionamento das visitas ou até da sua suspensão, em conformidade com o que dispõe o nº 10, da mesma disposição legal; 9 se aquela providência tutelar cível não estiver pendente, recebida a comunicação do tribunal criminal na secção de família e menores da área de residência da criança ou jovem, caberá ao magistrado do Ministério Público, nos termos do art. 17º, nos 1 e 2, do RGPTC, instaurar a ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais no âmbito da qual terá o Tribunal de observar o disposto nos nos 9 e 10º, do art. 40º, do RGPTC; 9 em qualquer uma das situações, deverá ainda o magistrado do Ministério Público ponderar a necessidade de instauração de processo de promoção e proteção, necessariamente por apenso à providência tutelar cível, em conformidade com a regra da competência por conexão imposta pelo art. 11º, nº 1, do RGPTC. (Ana Massena) MANUAL PLURIDISCIPLINAR 335 - é afirmado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10-02-2011, Rel. Ezaguy Martins, in www.dgsi.pt/jtrl : “Como se assinala no ponto n.º 3 da exposição de motivos constante de projecto de lei apresentado à Assembleia da República, de que veio a resultar a lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, «(…) Se o sistema do “divórcio ruptura” pretende reconhecer os casos que os matrimoniais se perderam independentemente 1.3. A intervenção dosem órgãos devínculos polícia criminal e do Ministério Público da causa desse fracasso, não há razão para admitir a relevância de outros 1.3.1. Brevíssima nota sobre o inquérito e anão competência do Ministério Públicoindicae dos dores fidedignos falência do casamento. Por isso, acrescenta-se uma cláusula geral órgãos de polícia da criminal que atribui relevo a outros factos que mostram claramente a ruptura manifesta do casamento, independentemente da culpa dos cônjuges e do decurso qualqueraprazo. O Na configuração padrão do processo comum , que utilizaremos porde referência, aquisiexemplo típico,denos sistemas jurídicos europeus, o da violência que pode ção da notícia crime de violência doméstica dáésempre lugar à doméstica abertura do– inquérito, mostrar imediatamente a inexistência da comunhão de vida própria de um casamento o (…)”. V. Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 338 - - 1. A qualificação das ausências ao trabalho como faltas e o seu enquadramento legal V. A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA O Direito do Trabalho 18O Uma das muitas consequências negativas do fenómeno da violência doméstica consiste na circunstância de, em consequência da mesma, a vítima180 se ver muito frequentemente impossibilitada de exercer a sua atividade profissional, seja em consequências das lesões e sequelas físicas e psicológicas decorrentes de agressões181, seja por se ver forçada a recolher-se em casa de abrigo ou refugiar-se em local não conhecido do agressor, seja ainda porque, apesar de se manter na casa de morada de família, estando o agressor ausente da mesma em cumprimento de medida de coação de afastamento de residência, nos termos do disposto no art. 31º, nº 1, al. c), da LVD, o risco de ser agredida a impede de se ausentar de casa e por isso, de se deslocar para o seu local de trabalho. Esta impossibilidade de prestar trabalho faz com que a vítima incorra nas chamadas faltas ao trabalho, definidas no art. 248º, nº 1, do Código do Trabalho,182 como “a ausência de trabalhador do local em que devia desempenhar a atividade durante o período normal de trabalho diário”. Ora, de acordo com o disposto no art. 249º, nº 1, do CT, as faltas podem ser justificadas ou injustificadas. E nos termos do nº 2 do mesmo preceito, são justificadas as faltas subsumíveis a uma das alíneas do mesmo, sendo que o nº 3 qualifica como injustificadas todas as demais. A relevância da qualificação das faltas como justificadas ou injustificadas decorre do seu diferente regime: enquanto as primeiras não afetam qualquer direito do trabalhador (art. 255º, nº 1, do CT), embora em certas condições possam determinar a perda da retribuição (nº 2, do mesmo preceito), as segundas determinam sempre a perda da retribuição e constituem violação do dever de assiduidade [arts. 256º, nº 1, e 128º, nº 1, al. b), do CT], podendo ainda constituir infração disciplinar (que poderá ser grave, se ocorrer em dia imediatamente anterior ou posterior a dia ou meio dia de descanso ou feriado - art. 256º, nº 2, do CT) e, inclusivamente, nos casos mais graves, configurar justa causa de despedimento do trabalhador [art. 351º, nº 1, e nº 2, al. g), do CT]. Como as estatísticas bem demonstram, a violência doméstica constitui, na esmagadora maioria dos casos, um fenómeno de violência de género em que, quase sempre, o agressor é homem, e a vítima mulher. Na verdade, de acordo com dados estatísticos relativos ao ano de 2014, divulgados pelo Ministério da Administração Interna (“Violência doméstica – 2014. Relatório Anual de Monitorização”, [Em linha], disponível na internet em: <URL http:// www.sg.mai.gov.pt/Noticias/Documents/Rel%20VD%202014_vfinal_14agosto2015.pdf >, considerando o universo das situações participadas às forças policiais no ano de 2014, “a larga maioria das vítimas era do sexo feminino (84%) e os denunciados do sexo masculino (87%)”. Esta tendência é igualmente evidenciada no “Estudo avaliativo das decisões judiciais em matéria de violência doméstica”, AAVV, dez 2014 (em especial pp. 100 ss.), [Em linha], disponível na internet em: <URL https://www.cig.gov.pt/documentacao-de-referencia/doc/violencia-domestica/ >. Este último centrou-se na análise de decisões judiciais e do Ministério Público, no âmbito de processos crime, comunicadas à Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) entre 01-01-2010 e 30-06-2013. Como salienta TERESA BELEZA (“Violência doméstica”, in Revista do CEJ nº 9, 1º semestre de 2008, p. 282), “a violência exercida pelos homens contra as “suas” mulheres é correctamente tomada como paradigmática da violência doméstica”. Assim, atenta esta tendência, cremos não se justificar, neste texto, a utilização de linguagem inclusiva, pelo que optaremos por nos reportarmos ao agressor no masculino, e à vítima no feminino. Curiosamente, também a língua portuguesa parece ter assimilado tais circunstâncias, visto que a palavra “vítima” não tem, no nosso idioma, qualquer forma masculina … 181 Também elas físicas e/ou psicológicas. 182 Aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12-02, e adiante designado pela sigla “CT”. Este diploma foi já objeto de nove alterações, que nos dispensamos de enumerar, porquanto nenhuma delas tem influência no objeto do presente estudo. 180 NOTA: O presente capitulo tem por base o texto do artigo intitulado “Das ausências ao trabalho decorrentes de violência doméstica”, publicado na Revista do CEJ nº 2014- II, pp. 179 ss., aqui revisto e ampliado com referências à mudança do local e tempo de trabalho, ao teletrabalho, e à formação profissional. MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 339 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O DIR E I TO DO T R A BA L H O imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 340 - - Olhando para o elenco das faltas justificadas constantes do art. 249º, nº 1, do CT, não descortinamos no mesmo qualquer referência às faltas motivadas por situações de violência doméstica. Não obstante, estabelece o art. 43º, da LVD, que “as faltas dadas pela vítima” (de violência doméstica, obviamente) “que sejam motivadas por impossibilidade de prestar trabalho em razão da prática do crime de violência doméstica são, de acordo com o regime legal aplicável, consideradas justificadas”. Embora o citado preceito se afigure simples e claro, a verdade é que a sua aplicação prática pressupõe a prévia resolução de algumas dúvidas interpretativas. Com efeito, perfilam-se desde logo as seguintes interrogações: - Todas as ausências da vítima ao trabalho que sejam decorrentes de situações de violência doméstica devem ser qualificadas como faltas? - E todas elas devem considerar-se justificadas nos termos do citado preceito? - Para que aquelas faltas ao trabalho sejam consideradas justificadas, nos termos do mencionado preceito, é necessário que esteja pendente um processo-crime? - … e tal justificação depende de uma eventual condenação do arguido? Dito de outra forma: uma eventual absolvição do arguido “transmuta” tais faltas em faltas injustificadas? - Como deve interpretar-se o inciso “de acordo com o regime legal aplicável”? Encaremos, pois, uma a uma, as questões acima enunciadas. a) Todas as ausências da vítima de violência doméstica ao trabalho decorrentes de situações de violência doméstica devem ser qualificadas como faltas? Como já referimos, o art. 248º, nº 1, do CT, define falta como toda a ausência do trabalhador do local de trabalho durante o período normal de trabalho diário. Não obstante, o art. 296º, nº 1, do mesmo código estipula que “determina a suspensão do contrato de trabalho o impedimento temporário por facto respeitante ao trabalhador que não lhe seja imputável e se prolongue por mais de um mês, nomeadamente por doença, acidente, ou facto decorrente da aplicação da lei do serviço militar”. E acrescenta o nº 3, do mesmo preceito, que “o contrato de trabalho suspende-se antes do prazo referido no nº 1, no momento em que seja previsível que o impedimento vai ter duração superior àquele prazo”. Interpretando o primeiro preceito citado, diz Joana Vasconcelos183 que neste domínio releva “apenas a impossibilidade não imputável ao trabalhador”, pelo que se considera que apenas “será imputável ao trabalhador a impossibilidade de execução do trabalho por este voluntariamente provocada”. À luz deste entendimento afigura-se inequívoco que as situações de violência doméstica são de qualificar como facto não imputável à vítima. Por outro lado, resulta do citado nº 1, do art. 296º, mais precisamente da utilização da palavra “nomeadamente”, que a enumeração das causas de suspensão ali previstas (doença, acidente, ou cumprimento de serviço militar) é meramente exemplificativa e 183 não taxativa, o que significa que a lei admite que outros factos não imputáveis ao trabalhador possam conduzir à suspensão do contrato de trabalho. Finalmente importa ter presente o nº 2, do mesmo preceito. Com efeito, estabelece a al. a), desta disposição legal, que a trabalhadora vítima de VD pode suspender de imediato o seu contrato de trabalho quando ocorra a situação prevista no art. 195º, nº 1, do mesmo código (ou seja, quando apresente queixa-crime e saia da casa de morada de família), e a empresa empregadora não disponha de outro estabelecimento para onde possa ser transferida184. E dispõe a al. b) do mesmo preceito que tal suspensão pode igualmente ocorrer nos casos previstos no nº 2, do art. 195º, ou seja, quando a trabalhadora pretenda ser transferida para outro estabelecimento da empregadora e esta demonstre a ocorrência de exigências imperiosas ligadas ao funcionamento da mesma que impeçam a imediata concretização dessa pretensão185. Deverá então entender-se que a suspensão do contrato de trabalho da vítima de VD só poderá ocorrer nas situações previstas no nº 2, do art. 296º, do CT e não também nas mencionadas no nº 1, do mesmo preceito? Não cremos que assim seja. Na verdade, mesmo que a empresa empregadora disponha de um estabelecimento noutra localidade, para onde a vítima de VD possa ser transferida, essa transferência pode não constituir a solução mais adequada aos interesses da trabalhadora. Basta pensar nalguns exemplos hipotéticos: - O MP poderá ter promovido a prisão preventiva do agressor e a concretizar-se a mesma não haverá razão para que a vítima mude o seu local de trabalho; - Pode a trabalhadora/vítima ter razões para crer que a curto prazo será deduzida acusação contra o agressor e que a audiência de julgamento poderá ser agendada para data próxima, o que desaconselha uma mudança de local de trabalho. Por outro lado, e como vimos, se a LVD consagra expressamente como fundamento de justificação das faltas a obtenção do estatuto de vítima e a impossibilidade de prestar trabalho por causa da situação de VD tal significa que o regime de suspensão do CT não se impõe, nem prevalece sobre o regime das faltas justificadas. Se é assim, então parece ser de concluir que caberá à vítima de VD avaliar a situação e escolher entre justificar as faltas ou suspender o contrato de trabalho nos termos do nº 2, do art. 296º, do CT (isto obviamente quando ocorra uma das situações aqui previstas). Assim sendo, cremos que, mesmo nas situações em que possa ter lugar a suspensão do contrato de trabalho, nos termos do art. 296º, nº 2, do CT, poderá a vítima de VD optar pelo regime de faltas justificadas. Fazendo-o, caso as faltas justificadas atinjam os 30 dias, o contrato suspende-se, nos termos do nº 1, do mesmo preceito. In “Código do Trabalho anotado”, de Pedro Romano Martinez e outros, 9ª edição, Coimbra: Almedina, 2013, p. 651. Acompanhamos Joana Vasconcelos (“Da protecção da vítima de violência doméstica no Direito do Trabalho português”, in Revista de Direito e Estudos Sociais, jan-dez 2010, pp. 116-118) na interpretação restritiva que esta faz da al. b), no nº 2, do art. 195º, do CT, aqui na dimensão resultante da remissão do art. 296º/2, do mesmo código, e da qual resulta a conclusão de que o exercício deste direito não depende necessariamente de qualquer saída do domicílio habitual da vítima. Sobre tal interpretação nos alongaremos adiante, a propósito da transferência e do teletrabalho. 185 Caso em que a suspensão durará até que a transferência possa ter lugar. Sobre este assunto nos alongaremos adiante. MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 184 341 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O DIR E I TO DO T R A BA L H O imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 342 - - Por outro lado, também temos como certo que não dispondo a empresa de estabelecimento para onde a vítima possa ser transferida, e caso não seja viável a prestação de trabalho em regime de teletrabalho, nos termos previstos no art. 166º, nº 2, do CT186, mas seja previsível que o impedimento de prestar trabalho vai ter duração superior àquele prazo, sempre poderá a vítima de VD suspender de imediato o contrato de trabalho, mediante comunicação à entidade empregadora (nos termos dos nos 1 e 3 da mesma disposição legal). De qualquer modo, seja qual for a “modalidade” de suspensão do contrato de trabalho, quando esta ocorra, não será aplicável o regime das faltas, consagrado no art. 248º e segs. do CT e 43º, da LVD. A ser assim, como é, poderá suceder que, pelo menos num primeiro momento temporal normalmente subsequente à cessação da coabitação entre a vítima e o agressor, haja lugar à aplicação do regime das faltas, colocando-se então a questão da sua justificação. Nessa circunstância, logo que as ausências ao trabalho perfaçam 30 dias e se mantenha a impossibilidade de a vítima retomar o trabalho, aplicar-se-á o regime da suspensão do contrato. E, como já referimos, poderá não ser preciso aguardar pelo referido prazo, dado que quer nos casos previstos no nº 1, do art. 296º, do CT, quer nos casos a que se reporta o nº 2 do mesmo preceito, poderá aplicar-se ab initio o regime da suspensão do contrato de trabalho, não tendo sequer aplicação o regime das faltas. Restará apenas aferir quais os requisitos formais e procedimentais da aplicação do regime da suspensão do contrato de trabalho. A este assunto voltaremos mais tarde. b) Todas as ausências ao trabalho da vítima de VD que devam ser qualificadas como faltas devem considerar-se justificadas, nos termos do disposto no art. 43º, da LVD? Como referimos, o art. 43º, da LVD, estipula que “as faltas dadas pela vítima que sejam motivadas por impossibilidade de prestar trabalho em razão da prática do crime de violência doméstica são, de acordo com o regime legal aplicável, consideradas justificadas”. Este preceito deve entender-se em articulação com a al. j), do nº 2, do art. 249º, do CT, que estabelece que é falta justificada a que por lei seja como tal considerada187. Porém, o art. 249º, nº 2, al. d), do CT, estipula que são faltas justificadas as decorrentes de “impossibilidade de prestar trabalho devido a facto não imputável ao trabalhador, nomeadamente observância de prescrição médica no seguimento de recurso a técnica de procriação medicamente assistida, doença, acidente ou cumprimento de obrigação legal”. Como sabemos, é infelizmente frequente que, em situações de violência doméstica, as vítimas sofram lesões físicas incapacitantes, geradoras de impossibilidade temporária de prestar trabalho. Nestas circunstâncias, não sendo de aplicar, desde logo, o regime da suspensão do contrato de trabalho, as faltas ao trabalho em que incorre a vítima de VD são de qualificar como justificadas, nos termos da citada al. d), e não nos termos previstos no art. 43º, da LVD, conjugados com a al. j), do nº 2, do referido art. 249º, do CT. Com efeito, a mencionada al. d), prevê situações de impossibilidade decorrentes de doença ou lesão física ou psíquica, ao passo que o art. 43º, da LVD, se reporta a situações de impossibilidade de prestar trabalho ditadas pela necessidade de prevenir novas lesões causadas pelo agressor. A relevância da distinção entre as duas situações resulta da circunstância de as mesmas terem regimes diversos. Com efeito, sendo as faltas justificadas nos termos da al. d), do nº 2, do art. 249º, do CT, as mesmas dão lugar à perda da retribuição, se a vítima beneficiar de um regime de segurança social de proteção na doença, ou seja se a vítima tiver possibilidade de auferir subsídio de doença [art. 255º, nº 2, al. a), do CT]. Já no que toca às faltas justificadas nos termos do art. 43º, da LVD, a conclusão é a inversa. Com efeito, o elenco dos tipos de faltas justificadas que implicam perda de retribuição consta do nº 2, do art. 255º, do CT, o qual não inclui qualquer referência direta às faltas decorrentes de VD, mas contém uma referência indireta, dado que menciona as faltas “previstas na alínea j), do nº 2, do artigo 249º”, se bem que restringindo expressamente a exclusão do direito à retribuição às situações em que tais faltas excedem 30 dias188 por ano. Assim sendo, conclui-se que, quando justifique as suas faltas ao trabalho, nos termos do art. 43º, da LVD, a vítima tem direito à retribuição relativa aos dias em que faltou ao trabalho, embora com o limite de 30 dias por ano189. Mas pode dar-se o caso de, a um período de faltas justificadas nos termos do art. 249º, nº 2, al. d), do CT, se suceder um período de faltas justificadas, nos termos do art. 43º, da LVD. Nestas circunstâncias, regra geral, ao período de “baixa médica”, em que a vítima não aufere retribuição, mas recebe subsídio por doença, suceder-se-á um período em que a mesma retoma o direito a auferir retribuição, ainda que sem prestar trabalho, e apenas até que as ausências perfaçam um mês190 (momento a partir do qual, como vimos, se aplicará o regime da suspensão do contrato de trabalho, nos termos do art. 296º, nº 1, do CT). c) Para que as faltas ao trabalho sejam consideradas justificadas, nos termos do art. 43º, da LVD, é necessário que esteja pendente um processo-crime? Como já referimos, o art. 43º, da LVD, considera justificadas as faltas dadas pela vítima que sejam motivadas pela impossibilidade de prestar trabalho em razão da prática do crime de VD. Ora, nos termos do disposto no art. 14º, nº 1, da LVD, a atribuição do estatuto de vítima de VD constitui uma consequência legal da apresentação de denúncia191 da prática do crime de VD. Como resulta do nº 3, do citado art. 166º, ao contrário do que sucede no caso da suspensão do contrato de trabalho, o empregador não pode opor-se à prestação de trabalho em regime de teletrabalho. 187 No sentido exposto, vd. Diogo Vaz Marecos, “Código do Trabalho Anotado”, 2ª edição atualizada, Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 604. Em sentido aproximado, Joana Vasconcelos, ob. e lug. cits., p. 133. Trata-se, obviamente, de 30 dias úteis e interpolados, porquanto como vimos, as situações de ausência ao trabalho por mais de 30 dias seguidos determinam a suspensão do contrato de trabalho. 189 Concluindo também que as faltas justificadas por VD não determinam perda de retribuição, vd. Joana Vasconcelos, ob. e lug. cits., p. 134. 190 Para contagem deste prazo de um mês somam-se todas as faltas mencionadas, independentemente do seu regime. 191 E não “queixa-crime”, como consta da al. a), do nº 1, do art. 195º, do CT. Com efeito, o crime de VD tem natureza pública, pelo que a participação criminal se denomina “denúncia”, e não “queixa”. Esta, como é sabido, constitui a MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR 186 188 343 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O DIR E I TO DO T R A BA L H O imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 344 - - Tal estatuto é em regra atribuído pela autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal que recebe a denúncia, e formalizado pela emissão de documento comprovativo do mesmo estatuto (art. 14º, nos 1 e 3, da LVD). Não obstante, em situações excecionais e devidamente fundamentadas, o mesmo estatuto poderá ser atribuído pelo organismo da Administração Pública responsável pela área da cidadania e da igualdade de género, a saber, a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género192. Tal sucederá, por exemplo, quando a vítima seja acolhida, com caráter de urgência, em casa de abrigo, ou quando se ausente para outro local incógnito, ou ainda quando permaneça na casa de morada de família sendo o agressor dela seja afastado193, e não se mostre aconselhável a sua deslocação a posto policial, ou aos serviços do Ministério Público (nº 3 do mesmo preceito). Quando assim seja, a atribuição do referido estatuto não desencadeia processo-crime, devendo oportunamente ser apresentada a competente denúncia. Nesta conformidade, poderemos dizer que, em regra, como a atribuição do estatuto de vítima de VD é consequência da apresentação de denúncia, e esta dá lugar a processo-crime, o referido estatuto é consequência do procedimento criminal que se inicia com a mencionada denúncia194. Contudo, nos casos excecionais que igualmente mencionámos, a atribuição do mesmo estatuto pode preceder a instauração do procedimento criminal, embora não o dispense. Na verdade, em tais casos excecionais, posteriormente à atribuição do estatuto de vítima de VD, deverão os técnicos da CIG que processaram a atribuição do estatuto de vítima verificar se o crime foi efetivamente denunciado (seja pela própria vítima, seja por terceiro) visto que, tendo tal crime natureza pública e tomando aqueles técnicos conhecimento do ilícito no exercício das suas funções e por causa delas, sobre os mesmos impende o dever de denúncia [art. 242º, nº 1, al. b), do Código de Processo Penal]. Assim, concluindo os referidos técnicos que a denúncia não foi apresentada, terão os mesmos que, em cumprimento do referido dever funcional, comunicar a ocorrência do crime às autoridades policiais ou ao MP. Do mesmo modo, também os/as responsáveis pelas casas de abrigo estão legalmente obrigados a denunciar aos Serviços do Ministério Público “as situações de vítimas de que tenham conhecimento” (nos termos do art. 71º, da LVD195). Assim sendo, e em conclusão, diremos que a justificação das faltas ao trabalho da vítima de VD pressupõe sempre a existência de um processo-crime, embora o início do procedimento possa ser posterior à invocação do referido estatuto junto da entidade empregadora. modalidade de participação criminal aplicável aos crimes semipúblicos e particulares. No sentido exposto, VD., por todos, João Leal Amado, “Contrato de trabalho”, 4ª edição, 2014, pp. 61-62, e Pedro Freitas Pinto, “A protecção da vítima do crime de violência doméstica no foro laboral”, in Prontuário de Direito do Trabalho, nº 85, CEJ/Coimbra Editora, jan-abr 2010, p. 132. 192 Adiante designada pela sigla “CIG”. 193 Em consequência da aplicação da medida de coação prevista no art. 31º, nº 1, al. c), da LVD. 194 Não obstante, tal estatuto não pode ser atribuído contra vontade expressa da vítima - se esta declarar que se opõe à sua atribuição, o mesmo estatuto não é atribuído. Mas uma tal opção tem consequências: a vítima não poderá beneficiar dos regimes de justificação de faltas e/ou suspensão do contrato de trabalho, nos termos previstos nas disposições legais que vimos referindo. 195 A consagração de um tal dever funcional na LVD justifica-se plenamente, porquanto o citado preceito do CPP não lhes é aplicável a estes agentes, visto que os mesmos não detêm a qualidade de funcionário. MANUAL PLURIDISCIPLINAR O mesmo se poderá também dizer em relação à invocação do mesmo estatuto pela vítima de VD junto da entidade empregadora para efeitos de suspensão do contrato de trabalho. d) Das consequências da cessação do estatuto de vítima de VD relativamente às ausências justificadas com invocação desse estatuto De acordo com os dados estatísticos disponíveis, nos processos-crime decorrentes de denúncias de violência doméstica, as taxas de arquivamento e absolvição estão longe de ser insignificantes196, seja porque muito raramente os arguidos confessam, seja porque a vítima invoca o direito de recusar a prestação de depoimento197, seja ainda porque as eventuais testemunhas, também elas familiares do agressor, se refugiam em tal direito, e finalmente também porque quando a vítima se dispõe a falar, a prova tende a centrar-se no seu próprio depoimento, que tem como único complemento probatório, o depoimento do arguido, que nega os factos que lhe são imputados. Ora, nos casos em que o arguido é absolvido, cabe perguntar se, estando o estatuto de vítima de VD tão intimamente ligado a um processo-crime, a absolvição conduz ao “apagamento” dos efeitos jurídicos decorrentes da atribuição do estatuto de vítima e em caso afirmativo, se tal “apagamento” tem natureza retroativa, nomeadamente quanto à justificação das faltas da vítima, nos termos do art. 43º, da LVD e/ou quanto à suspensão do contrato de trabalho. Vejamos, então. O art. 24º, da LVD, dispõe que o estatuto de vítima de VD cessa: - por vontade expressa da vítima - por verificação de fortes indícios de denúncia infundada - em consequência do arquivamento do inquérito - em consequência do despacho de não pronúncia - em consequência do trânsito em julgado da decisão que ponha termo ao processo. Contudo, só em caso de prestação de falsas declarações, a LVD atribui alguma eficácia penalizadora à cessação do estatuto de vítima. Tal sucede, nomeadamente nos termos previstos no art. 52º, do mesmo diploma, onde se consagra que “sem prejuízo da responsabilidade penal, a prestação de falsas declarações no âmbito do estatuto de vítima determina a cessação das prestações económicas e sociais previstas na lei“, acrescentando o art. 51º, nº 2, da referida lei que se consideram “como indevidamente pagas as prestações económicas e sociais cuja atribuição tenha sido baseada em falsas declarações de O já citado “estudo avaliativo …” refere que no ano de 2012 a taxa de condenação em julgamento foi de 56% e em 2013, de 60,1%, o que significa que nesses anos a taxa de absolvição foi de 44% e 39,9%, respetivamente. E dá conta de que no intervalo temporal a que se reporta, foram comunicadas 300 decisões de arquivamento, 70 acusações e 100 sentenças (vd. p. 99). Já o igualmente atrás citado “Relatório anual de monitorização“, de 2014, reportando-se a dados de 2012, 2013, e 2014, refere uma percentagem global de arquivamentos de 77% (vd. p. 50) e, relativamente aos processos que terminam em julgamento, uma percentagem de absolvições de 42%, sendo por isso de 58% a percentagem de condenações (p. 54). O elevado número de arquivamentos reportado em ambos os estudos permite concluir que a grande maioria das denúncias pela prática do crime de violência doméstica nem sequer resulta em acusação. 197 Nos termos previstos no art. 134º, do CPP. 196 MANUAL PLURIDISCIPLINAR 345 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O DIR E I TO DO T R A BA L H O imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 346 - - quem haja beneficiado do estatuto de vítima ou na omissão de informações legalmente exigidas”. E nos antípodas das soluções jurídicas decorrentes dos preceitos supra citados dispõe o nº 3, do mesmo art. 24º que, sempre que as circunstâncias do caso o justificarem, poderão os serviços competentes determinar a continuação das modalidades de apoio social após a cessação do estatuto de vítima. Da análise destas disposições decorre pois que, quando a atribuição do estatuto de vítima se funde em falsas declarações da pessoa que se arroga essa qualidade, não só a deteção de tal falsidade conduz à imediata cessação do referido estatuto, como à revogação dos efeitos do mesmo, com eficácia retroativa. Porém, sempre que tal cessação decorra apenas do trânsito em julgado da decisão final do processo-crime, ou de despacho de arquivamento ou de não pronúncia, ou de sentença absolutória motivadas por situações de falta de prova indiciária suficiente para sustentar uma acusação ou uma pronúncia, ou por falta de prova para sustentar a condenação do arguido, mas em que não se faça prova da falsidade da denúncia, a cessação dos efeitos do estatuto de vítima tem mera eficácia futura198. Assim sendo, quando a vítima perde o referido estatuto, as suas ausências ao trabalho deixam de se considerar faltas justificadas, mas apenas a partir da data em que ocorrer o facto extintivo daquele estatuto. E o mesmo se dirá se ocorrer suspensão do contrato de trabalho com aquele fundamento: cessando o estatuto, cessa a suspensão do contrato de trabalho. Porém, não constituem faltas injustificadas as ausências ao trabalho verificadas até àquele facto extintivo, ainda que fundadas no estatuto de vítima de VD. Não obstante, em situações de manifesta fraude, em que se demonstre que a pessoa apresentou denúncia infundada, com base em imputações falsas, poderá o empregador mover procedimento disciplinar com vista ao despedimento da trabalhadora, nos termos do disposto no art. 351º, nº 1, e nº 2, al. f), do CT, visto que esta última disposição qualifica como suscetível de configurar justa causa de despedimento a prestação, pelo empregador, de falsas declarações relativas à justificação de faltas. E no caso de ter pago retribuição referente a dias de ausência ao trabalho que tenham sido qualificados como faltas justificadas com direito a retribuição, poderá demandar a trabalhadora, para reaver a correspondente quantia. e) Como deve interpretar-se o inciso “de acordo com o regime legal aplicável”, inserto no art. 43º, da LVD? Já atrás mencionámos que o art. 43º, da LVD, estipula que as faltas dadas pela vítima de VD que sejam motivadas por impossibilidade de prestar trabalho em razão da prática do crime de VD são “de acordo com o regime legal aplicável” consideradas justificadas. A LVD não contém qualquer outra disposição que permita determinar o exato sentido do inciso acima destacado. Cremos, contudo, que o mesmo deve ser interpretado como mera remissão para a cláusula aberta do al. j), do nº 2, do art. 249º, do CT, que qualifica como justificada a falta “que por lei seja como tal considerada”. 198 Concluindo neste sentido, vd. João Leal Amado, ob. cit., p. 262, nota 362. MANUAL PLURIDISCIPLINAR Por outro lado, não consagrando a LVD qualquer especialidade nesta matéria, tal remissão abrange igualmente todo o regime das faltas justificadas consagrado no CT, nomeadamente quanto aos seus efeitos, ao procedimento que deve ser adotado pela vítima/ trabalhadora no tocante à comunicação da ausência, à comprovação do motivo invocado (arts. 253º e 254º, do CT), e aos efeitos da falta (art. 255º, do CT). 1.1. A justificação das faltas Como já tivemos ocasião de afirmar, a justificação das faltas obedece a requisitos substantivos, mas também a requisitos procedimentais. Assim, estabelece o art. 253º, nº 1, do CT, que, caso a ausência do trabalhador seja previsível, deverá ser comunicada ao empregador com indicação do motivo justificativo, com a antecedência mínima de cinco dias. Por seu turno, o nº 2 do mesmo preceito dispõe que, sendo a falta imprevisível, aquela comunicação deve ocorrer logo que possível. Por outro lado, dispõe o art. 254º, nº 1, do CT, que o empregador poderá, no prazo de 15 dias contado da comunicação da ausência, exigir ao trabalhador que apresente prova do motivo justificativo da ausência. E acrescenta o nº 5 que, sendo aquele comprovativo exigido pelo empregador, caso o trabalhador não o apresente no mencionado prazo de 15 dias, as ausências deverão considerar-se injustificadas. Importa, contudo, salientar que a natureza e complexidade das situações de VD por vezes desaconselham que a vítima avise com antecedência a sua entidade empregadora de ausências decorrentes de VD, ainda que as mesmas sejam previsíveis. Na verdade, na maior parte das situações em que a vítima recolhe a casa de abrigo ou a outro local não acessível ao agressor, para assim se furtar ao convívio com o mesmo, evitando a perpetuação das agressões que sofre, o sigilo e a discrição constituem um fator da maior importância e uma inequívoca condição do sucesso de tal iniciativa. Donde, não se afigura curial que, em tais situações, a vítima tenha que avisar previamente o seu empregador da referida ausência, e muito menos transmitir-lhe o motivo da mesma. Tal deverá ser feito, mas apenas a posteriori, logo que a vítima se encontrar a salvo. Não obstante, cremos que a prudência aconselha que a vítima de VD não espere por eventual exigência do empregador no sentido de apresentar comprovativo da ausência, antes se afigurando preferível que, logo que possa fazê-lo, remeta ao mesmo cópia da declaração que lhe atribuiu o estatuto de vítima de VD. Nesta conformidade, o procedimento a adotar pela vítima de VD que se mostre temporariamente impossibilitada de comparecer ao trabalho em consequência de uma situação de VD deverá ser o seguinte: • Avisar o empregador da impossibilidade de comparecer no local de trabalho, devendo fazê-lo logo que possível, e com indicação do fundamento da ausência, bastando para tal sustentar que é vítima de VD e que por tal motivo necessita temporariamente de se recolher em local incógnito ou permanecer na sua habitação199; 199 Ou apenas dizendo que não pode deslocar-se a locais onde o agressor a possa encontrar, como será certamente o caso do seu local de trabalho. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 347 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O DIR E I TO DO T R A BA L H O imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 348 - - • Remeter ao empregador cópia da declaração que lhe atribuiu o referido estatuto. • Note-se que a declaração de atribuição do estatuto de vítima de VD é emitida em modelo oficial200, sendo que da mesma consta, como elemento obrigatório, a data da atribuição do referido estatuto. 2. A suspensão do contrato de trabalho Como já tivemos oportunidade de referir, o estatuto de vítima de VD e as contingências inerentes ao mesmo poderão constituir fundamento para a suspensão do contrato de trabalho, nos termos do disposto no art. 296º, do CT. E, como igualmente referimos, a suspensão do contrato poderá produzir-se de uma de duas formas: - pelo mero decurso do tempo - por comunicação escrita da vítima de VD ao empregador. Ocorrendo a suspensão por comunicação escrita, deverá a trabalhadora invocar o estatuto de vítima de VD, transmitindo ao empregador os factos que fundamentam a suspensão. Não obstante, importa salientar que, embora a descrição da situação motivadora da suspensão do contrato deva assentar em factos concretos, não tem a mesma que ser exaustiva, e sobretudo não deve a mesma prejudicar a confidencialidade necessária a muitas das situações inerentes à proteção da vítima de violência doméstica, máxime quanto ao seu paradeiro. Assim, em caso de mudança de residência, cremos que a vítima não tem que identificar a cidade ou país para onde pretende ir residir, visto que tal deslocação visa impedir a sua localização pelo agressor, o que legitima que tais dados possam ser ocultados também do empregador. Não obstante, nesses casos, aquela mudança de residência poderá ser atestada pela CIG, embora sem revelação dos dados que se pretendem manter confidenciais. Quanto aos efeitos da suspensão do contrato de trabalho, rege o disposto no art. 295º, nº 1, do CT, ao estabelecer que, durante o período de suspensão do contrato de trabalho, se mantêm os direitos, deveres e garantias das partes que não pressuponham a efetiva prestação de trabalho201. Finalmente importa salientar que, nos termos do disposto no art. 297º, do CT, a trabalhadora deve apresentar-se à sua entidade empregadora para retomar a sua atividade laboral no dia imediato à cessação do impedimento. Esta apresentação torna desnecessária qualquer comunicação da cessação do impedimento que motivou a suspensão do contrato de trabalho. Tal significa que, cessando a situação que conduziu à suspensão do contrato de trabalho e reunindo-se as necessárias condições de segurança para a vítima retomar as suas 200 201 Aprovado pela Portaria nº 229-A/2010, de 23 de abril. O que significa que durante o período da suspensão do contrato, a trabalhadora não tem direito à retribuição. Em sentido diverso, mas reportando-se apenas às situações de suspensão previstas no art. 195º, do CT, ou seja, aquelas em que a suspensão se funda no adiamento da transferência da trabalhadora vítima, vd. Pedro Madeira de Brito, “Código do Trabalho anotado”, cit., p. 474. MANUAL PLURIDISCIPLINAR rotinas habituais, ou cessando o estatuto de vítima de VD, cessa o fundamento da suspensão do contrato de trabalho, devendo a vítima voltar a apresentar-se ao trabalho202. 3. A mudança de local de trabalho Estabelece o art. 42º, nº 1, da LVD, que “Nos termos do Código do Trabalho, o trabalhador vítima de violência doméstica tem direito a ser transferido, temporária ou definitivamente, a seu pedido, para outro estabelecimento da empresa, verificadas as seguintes condições: a) Apresentação de denúncia b) Saída da casa de morada de família no momento em que se efetive a transferência”. Dando sentido útil à remissão constante da norma citada, o art. 195º, do CT, vem dispor em sentido idêntico, embora reportando-se a “queixa-crime”. A doutrina tem, de modo unânime, referido que os mesmos consagram um verdadeiro direito potestativo à mudança de local de trabalho, mas, partindo de uma interpretação declarativa destes preceitos, assente sobretudo no elemento literal da interpretação, vem igualmente sustentando que as “condições” neles mencionadas constituem requisitos cumulativos de tal direito203. A modelação da norma em apreço não deixou de suscitar algumas dúvidas na doutrina, porquanto atento o regime do segredo de justiça parece carecer de sentido que a trabalhadora faça prova perante a sua entidade empregadora da apresentação de uma denúncia, expondo assim a existência de um processo-crime em fase de inquérito. Nessa medida, como bem aponta Joana Vasconcelos204, deverá entender-se que a trabalhadora apenas deverá fazer prova junto da sua entidade empregadora da obtenção do estatuto de vítima de VD, sendo certo que, como já referimos, este pressupõe ou dá lugar à apresentação de denúncia. Já quanto ao requisito da saída da casa de morada de família, colocam-se inúmeras interrogações e dificuldades. A primeira prende-se com a circunstância de, como bem salientou Diogo Vaz Marecos, o conceito legal de “casa de morada de família” pressupor que vítima e agressor são casados um com o outro, ou vivem em união de facto há mais de dois anos205, o que leva a concluir que tal requisito não tem aplicação se o agressor não for casado nem viver em união de facto com a vítima, ainda que com ela coabite206. E de igual modo haverá que concluir pela inaplicabilidade de tal requisito quando o agressor não coabite com a vítima207. Tudo isto sem prejuízo de a cessação do referido estatuto ser postergada para momento ulterior ao mencionado na 1ª parte, do nº 2, do art. 24º, da LVD. Com efeito, a 2ª parte do nº 2 do referido preceito consagra expressamente a possibilidade da manutenção desse estatuto, se a necessidade de proteção da vítima o justificar. 203 Vd., por todos, Pedro Madeira de Brito, “Código do Trabalho anotado”, cit., p. 473-474; Maria do Rosário da Palma Ramalho, “Tratado de direito do trabalho – Parte II – Situações laborais individuais”, 5ª edição, Coimbra: Almedina, 2014, pp. 512-513; Diogo Vaz Marecos, ob. cit., pp. 473-474; Luís Menezes Leitão, “Direito do trabalho”, 4ª edição, 2014, pp. 280-281; e João Leal Amado, “Contrato de trabalho”, 4ª ed., 2014, p. 260-264. 204 Ob. e lug. cits, p. 116-117. 205 Ob. cit., p. 474. 206 O que sucederá, por ex., se for seu pai, ou seu filho… 207 O que sucederá, p. ex., se se tratar de um namorado que resida em casa diversa da vítima. 202 MANUAL PLURIDISCIPLINAR 349 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O DIR E I TO DO T R A BA L H O imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 350 - - A segunda interrogação prende-se com a circunstância de a lei parecer exigir que a saída da casa de morada de família se dê “no momento em que se efetive a transferência”, o que parece constituir um absurdo, sobretudo se pensarmos nos casos em que a vítima se vê obrigada a fugir de casa para evitar o prolongamento dos maus tratos. Na verdade, em muitas situações afigura-se absolutamente desrazoável que a vítima tenha que aguardar o momento em que se efetiva a transferência para sair da casa de morada de família, precisamente o local onde quase sempre o crime de VD se consuma... Em terceiro lugar, nem sempre a saída da casa de morada de família se articula com a lógica deste mecanismo. Com efeito, pode dar-se a situação de a casa de morada de família se localizar perto do estabelecimento da empregadora para onde a vítima pretende transferir-se e ter o tribunal decretado a medida de coação de afastamento da residência. Ou, como aponta Joana Vasconcelos208, pode suceder que a vítima e o agressor trabalhem no mesmo estabelecimento, mas a entidade empregadora tenha, na mesma cidade, um outro estabelecimento. Ou ainda que a vítima esteja transitoriamente a receber tratamento em local afastado da sua residência e local de trabalho, e só a mudança de local de trabalho permita compatibilizar o trabalho e o referido tratamento, não sendo, contudo, necessário que a vítima mude de residência209. Nestas e noutras circunstâncias, a simples mudança do local de trabalho pode ser suficiente para garantir a segurança da vítima e o ajustamento, temporário ou definitivo, dos seus planos de vida. Nesta conformidade, assiste inteira razão a Joana Vasconcelos210 quando sustenta que “a opção de fazer depender a protecção laboral conferida à vítima de violência doméstica da sua saída da casa de morada de família, retirando-lhe qualquer margem de apreciação e de decisão perante o caso concreto, é uma solução infeliz que, não raro, se mostrará desnecessária e, nessa medida, desproporcionada, quando não totalmente injustificada”. Assim sendo, cremos que o requisito da saída da casa de morada de família: - deve ser objeto de interpretação declarativa restrita, na medida em que o mesmo só se verifica quando seja aplicável o conceito técnico-jurídico de casa de morada de família211; - deve ser objeto de interpretação restritiva, por apelo ao elemento teleológico da interpretação na parte em que se exige que a saída da casa de morada de família ocorra “no momento em que se efetiva a transferência”, devendo pois considerar-se que tal momento é absolutamente irrelevante; - deve ser objeto de interpretação restritiva, por apelo ao elemento teleológico da interpretação sempre que, ponderadas as situações do caso, for de concluir que embora seja aconselhável a mudança do local de trabalho, a saída da casa de morada de família não representa qualquer vantagem significativa para a segurança da vítima ou para a reorganização da sua vida. 208 Ob. e lug. cts., p. 120. Manifestando perplexidades semelhantes, vd. Pedro Freitas Pinto, ob. e lug. cits., p. 134. 210 Ob. e lug. cits., p. 118. 211 Vd. arts. 1576º, 1577º,1673º, 1682º-A nº 2, 1682º-B e 1793º, todos do Código Civil, e 3º, al. a) e 4º, da Lei 7/2001, de 11-05, alterada pela Lei nº 23/2010, de 30-08. 209 MANUAL PLURIDISCIPLINAR Em consequência, concluímos que constituem requisitos do direito de transferência: i) que a trabalhadora tenha obtido o estatuto de vítima de VD; ii) que a entidade empregadora disponha de outro estabelecimento para o qual a vítima possa ser transferida; iii) no caso de a vítima ser casada com o agressor, ou com ele viva em união de facto, que tenha abandonado a casa de morada de família ou se disponha a fazê-lo, exceto se, vistas as circunstâncias do caso concreto, tal não se mostrar necessário para salvaguardar a sua segurança. Para exercer este direito, bastará à trabalhadora vítima de VD dirigir à sua entidade empregadora uma comunicação, declarando pretender exercer o referido direito, identificando o estabelecimento para onde pretende ser transferida, juntando cópia do documento comprovativo da atribuição do estatuto de vítima de VD, e declarando que saiu ou pretende sair da casa de morada de família, ou que tal não se justifica atentas as circunstâncias do caso. Em todo o caso, pode a trabalhadora/vítima solicitar a confidencialidade da situação que motiva a transferência (arts. 42º, nº 4, da LVD e 195º, nº 4, do CT). Por outro lado, como referem expressamente os arts. 42º, nº 1, da LVD e 195º, nº 1, do CT, a transferência poderá ter natureza temporária ou definitiva pelo que deverá igualmente a trabalhadora mencionar se pretende ser transferida a título temporário ou definitivo ou eventualmente declarar tão-só que se reserva a faculdade de optar por uma ou outra modalidade em momento ulterior212. Nos termos do nº 2, dos arts. 42º, da LVD e 195º, do CT, o empregador apenas pode adiar a transferência com fundamento em exigências imperiosas ligadas ao funcionamento da empresa ou serviço, ou até que exista posto de trabalho disponível compatível. Contudo, não prevê a lei qualquer limite temporal para tal adiamento. Não obstante, nos termos do nº 3 dos apontados preceitos, face a tal adiamento pode a trabalhadora vítima suspender o contrato de trabalho. E se tiver motivos para crer que tal adiamento é injustificado poderá intentar ação judicial contra a entidade empregadora, pedindo o reconhecimento do seu direito e a condenação desta a transferi-la, ou resolver o contrato, invocando justa causa213. Tal como poderá intentar procedimento cautelar comum, peticionando que o Tribunal decrete uma providência cautelar antecipatória consistente na sua transferência. 4. O teletrabalho Dispõe o art. 166º, nº 2, do CT, que “verificadas as condições previstas no nº 1, do art. 195º, o trabalhador tem direito a passar a exercer a atividade em regime de teletrabalho, quando este seja compatível com a atividade desempenhada”. Daqui decorre, pois, que a vítima de violência doméstica tem direito a passar a exercer a sua atividade profissional em regime de teletrabalho desde que, cumulativamente: Neste sentido v. tb. Pedro Freitas Pinto, ob. e lug. cits., p. 134. Aliás, diga-se que, por vezes, o passar do tempo poderá permitir aferir se o risco que motivou a transferência se manterá ou pelo contrário desapareceu. Basta pensar nas possibilidades de o agressor ser condenado em pesada pena de prisão efetiva, ou emigrar para país distante… 213 Neste sentido cfr. João Leal Amado, ob. cit., p. 264. 212 MANUAL PLURIDISCIPLINAR 351 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O DIR E I TO DO T R A BA L H O imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 352 - - - se verifiquem os requisitos de que depende a transferência; - a atividade desempenhada pela vítima seja compatível com o seu desempenho em regime de teletrabalho. Quanto ao que deva entender-se por teletrabalho, rege o art. 165º, que o define como “a prestação laboral realizada com subordinação jurídica, habitualmente fora da empresa e através do recurso a tecnologias de informação e de comunicação”. Também neste contexto se afigura altamente questionável o requisito da saída da casa de morada de família, tanto mais que a prestação laboral em regime de teletrabalho assume quase sempre a modalidade de trabalho no domicílio, e se afigura que tal modalidade da prestação de trabalho se adequa perfeitamente às situações em que a vítima permanece na casa de morada de família e o agressor se mostra afastado da mesma e inibido de dela se aproximar em consequência da medida de coação de afastamento da habitação, não sendo desejável que a vítima se desloque ao local de trabalho habitual, dado que o agressor o conhece. Por isso, acolhendo aqui, mais uma vez o entendimento de Joana Vasconcelos, pugnamos por uma interpretação restritiva de tal requisito, concluindo que a saída da casa de morada de família só se considerará constitutiva do direito ao teletrabalho, impedindo assim que o mesmo seja prestado no domicílio habitual da vítima, quando tal se imponha por razões de salvaguarda da sua segurança e integridade física e psíquica, ou para proporcionar a reorganização a sua vida214. Tal significa que este direito abrange qualquer uma das modalidades de teletrabalho, não se justificando a sua exclusão quando o trabalho seja prestado no domicílio habitual da vítima215. Aliás, diremos mesmo que a necessidade de preservação do sigilo quanto à localização da vítima, poderá aconselhar que a mesma se abstenha de que comunicar ao seu empregador se pretende prestar trabalho a partir do seu domicílio, ou de outro local, e muito menos identificar esse local, desde que mantenha com a entidade empregadora eficientes canais de comunicação. Tal sucederá, por exemplo, quando a vítima seja acolhida em casa de abrigo, visto que a preservação do sigilo quanto à localização das casas abrigo desaconselha em absoluto a transmissão de tal informação. Trata-se, aqui também, de um direito potestativo da trabalhadora vítima, mas neste caso com um estatuto reforçado, sobretudo se o compararmos com o regime do direito à transferência. Com efeito, e ao contrário do que sucede com a transferência, estabelece o nº 3, do mencionado art. 166º, do CT, que “o empregador não pode opor-se ao pedido do trabalhador nos termos do número anterior”. Tal não significa que o empregador não possa, em caso algum, opor-se à pretensão da trabalhadora vítima, pois sempre poderá alegar e provar que a mesma não dispõe do estatuto de vítima de VD, ou que tal estatuto já caducou, ou ainda que a atividade que 214 215 Ob. e lug. cits., p. 132. No sentido oposto, excluindo a possibilidade da prestação de trabalho a partir do domicílio da vítima, por não admitir interpretação restritiva da al. b), do nº 1, do art. 195º, do CT, vd. Guilherme Dray, in “Código do Trabalho anotado”, cit., p. 421. MANUAL PLURIDISCIPLINAR a vítima desempenha é incompatível com o seu desempenho em regime de teletrabalho (por ex., se a vítima desempenhar as funções de porteira, ou caixa de supermercado…). Mas tal preceito impede seguramente o empregador de adiar a pretensão da vítima, como sucede no caso da transferência. Assim, caso pretenda fazer-se valer desta faculdade, deverá a trabalhadora vítima dirigir à empregadora uma comunicação escrita, invocando o estatuto de vítima de VD e indicando a modalidade de teletrabalho que pretende, juntando cópia do documento comprovativo da atribuição e tal estatuto. Finalmente, importa salientar que, sempre que razões relativas à preservação da segurança integridade física e psíquica e estabilidade emocional da trabalhadora vítima o aconselharem, será de considerar inaplicável o controlo da prestação de trabalho, pelo empregador, no domicílio do trabalhador ou noutro local onde se encontre e a partir do qual preste o seu trabalho216, nos termos previstos no art. 170º, nº 2, do CT. 5. A alteração do tempo de trabalho Sob a epígrafe “cooperação das entidades empregadoras”, dispõe o art. 41º, da LVD, que “sempre que possível, e quando a dimensão e a natureza da entidade empregadora o permitam, esta deve tomar em consideração, de forma prioritária” o pedido de mudança da trabalhadora vítima de violência doméstica que trabalhe a tempo inteiro para passar a trabalhar a tempo parcial, ou vice-versa, ou ainda o pedido de aumento de tempo de trabalho por trabalhadora a tempo parcial, ainda que não atinja o tempo completo. A norma em apreço prevê, pois, a possibilidade de a trabalhadora vítima de violência doméstica requerer a alteração quantitativa do seu tempo de trabalho, seja ampliando seja reduzindo o mesmo. Mas ao contrário do que sucede nos casos da transferência e do teletrabalho, não se trata aqui de um direito potestativo da trabalhadora-vítima217, nem sequer da atribuição de um direito de preferência relativamente a outros trabalhadores que manifestem a mesma pretensão. Com efeito, os incisos “sempre que possível”, e “tomar em consideração” não parecem permitir outra leitura senão a que conduza à conclusão de que a norma em questão se limita a fazer apelo a uma certa boa-vontade da entidade empregadora, deixando-lhe a possibilidade de apreciar de forma discricionária a pretensão da trabalhadora-vítima, decidindo como lhe parecer melhor, à luz de critérios empresariais. Daí a epígrafe apelar à cooperação da entidade empregadora. Esse mesmo espírito de “apelo à cooperação das entidades empregadoras” surge igualmente no art. 44º, da LVD, que estatui que os instrumentos de regulamentação coletiva devem estabelecer para a admissão em tempo parcial (e para a mobilidade geográfica) preferências em favor dos trabalhadores que beneficiem do estatuto de vítima de VD. Também aqui o inciso “devem” poderia levar o intérprete a considerar a possibilidade de se tratar de uma norma imperativa, não fosse o mesmo ser neutralizado pela expressão “sempre que possível”. Caberá pois aos empregadores, associações representativas de empregadores e 216 217 V.g. quando a vítima se ache acolhida em casa de abrigo e seja a partir de tal local que presta trabalho. Em sentido idêntico, Pedro Freitas Pinto, ob. e lug. cits., p. 139. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 353 - Violê nc ia Domé s t ic a - - O DIR E I TO DO T R A BA L H O imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 354 - - organizações sindicais outorgantes dos instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho ponderar se tal preferência é possível, sem que tal juízo possa ser sindicado. 6. A formação profissional Proclama o art. 48º/1, da LVD, que “à vítima de violência doméstica deve ser assegurada prioridade no acesso às ofertas de emprego, à integração em programas de formação profissional ou em qualquer outra medida ativa de emprego”. E remata o nº 2 do mesmo preceito que “é igualmente assegurada à vítima prioridade no atendimento nos centros de emprego e formação profissional do Instituto do Emprego e Formação Profissional (…), que deve ser realizado em condições de privacidade”. A razão de ser deste preceito reside na circunstância de, muitas vezes, a vítima se ver obrigada a mudar radicalmente a sua vida, inclusive abdicando da atividade profissional que mantinha, e muitas vezes necessitar de obter qualificações profissionais que lhe permitam procurar outros empregos. E por maioria de razão tal necessidade se verificará também, até com mais intensidade, nas situações em que a vítima não trabalha e depende (ou dependia) financeiramente do agressor. Tudo situações em que a requalificação profissional se afirma como um passo fundamental na conquista da independência financeira da vítima, que por sua vez constitui uma condição essencial na reestruturação da sua vida. Por seu turno, o legislador revela ainda a preocupação de assegurar que o atendimento da vítima nos Centros de Emprego se faça de modo prioritário e em condições de privacidade, o que certamente visará evitar que a deslocação da mesma àquelas entidades, que são por natureza espaços públicos, a exponha ao risco de ser confrontada com o agressor. Atenta a ausência das expressões “sempre que possível” ou “tomar em consideração”, constantes dos arts. 41º e 44º da mesma lei, daqui se retira com segurança que o art. 48º, da LVD, consagra verdadeiros direitos potestativos. Porém, diversamente do que sucede no caso dos direitos potestativos à transferência e ao teletrabalho, os direitos de preferência e à privacidade que ora se analisam não vinculam a entidade empregadora mas antes o Estado, nomeadamente o Instituto do Emprego e Formação Profissional. 7. A caducidade do contrato de trabalho Não obstante a lei consagre os mecanismos das faltas justificadas, da suspensão do contrato de trabalho, da transferência e do teletrabalho como meios para evitar que a vítima de VD que denuncia o crime e procura libertar-se do agressor se veja, por isso, privada do seu trabalho, certo é que as contingências inerentes ao fenómeno da VD podem conduzir à caducidade do contrato de trabalho da vítima. Tal sucederá, desde logo nos casos previstos no art. 296º, nº 4, do CT, que estabelece que o contrato de trabalho suspenso caduca no momento em que seja certo que o impedimento de prestar trabalho que conduziu à suspensão do contrato de trabalho se torna definitivo. MANUAL PLURIDISCIPLINAR Este preceito consagra uma situação especial de caducidade do contrato de trabalho por impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de o trabalhador prestar trabalho, e que se encontra prevista no art. 343º, al. b), do mesmo CT. Como sublinha a doutrina, impossibilidade superveniente é a que ocorre em momento posterior ao início da execução do contrato de trabalho. Absoluta é a impossibilidade que inviabiliza totalmente a prestação de trabalho, não sendo por isso relevantes as situações ultrapassáveis, por exemplo, com adaptação do posto de trabalho, ou alteração não essencial das funções do trabalhador. E definitiva será a impossibilidade irreversível218. Assim, a impossibilidade absoluta e definitiva de a vítima de VD prestar trabalho poderá decorrer da mudança de residência219, ou de incapacidade para o trabalho habitual ou para todo e qualquer trabalho em consequência de lesões decorrentes de agressão num contexto de VD. É certo que a vítima sempre mantém o direito de denunciar o contrato, nos termos previstos e regulados nos arts. 400º e segs., do CT, mas este regime obriga a trabalhadora a observar um prazo de aviso prévio, sob pena de ter de se constituir na obrigação e indemnizar o empregador. Nessa medida, o regime da caducidade afigura-se mais vantajoso para a vítima de VD, uma vez que lhe permite fazer cessar de imediato o seu contrato de trabalho, sem ficar onerada com qualquer prestação indemnizatória. Para operar a caducidade do seu contrato de trabalho, deverá a vítima de VD invocar, por escrito, a situação, comprovando o estatuto de vítima de VD, e, sendo caso disso, fazendo igualmente prova da incapacidade física decorrente de lesões causadas pelo agressor (mediante atestado médico ou documento emitido pela Segurança Social). Já quando a impossibilidade de prestar trabalho ao empregador decorra de mudança definitiva de residência, e no que respeita ao grau de detalhe fatual que a comunicação da vítima à sua entidade empregadora deve conter, valem aqui as considerações expendidas a propósito do regime da suspensão do contrato de trabalho. Finalmente, sempre se dirá que também a entidade empregadora poderá invocar a caducidade do contrato de trabalho, com os mesmos fundamentos. 8. O despedimento ilícito de vítima de VD e as consequências do mesmo Poderá suceder que a vítima de VD seja despedida em consequência das suas ausências ao trabalho decorrentes daquele estatuto. Quando tal ocorra depois de a trabalhadora ter comunicado ao empregador que detém o estatuto de vítima de VD, e que as suas ausências (seja configuradas como faltas, seja no âmbito da suspensão do contrato de trabalho) decorrem das contingências inerentes ao mesmo estatuto, e se demonstre que o despedimento não teve qualquer fundamento válido para além daquelas ausências, tal despedimento é ilícito [art. 381º, al. b), e mais do que isso, abusivo [art. 331º, nº 1, al. d), do CT]. 218 219 No sentido exposto vd., por todos, Maria do Rosário Palma Ramalho, ob. e vol cits., pp. 920-922. Não se mostrando possíveis ou viáveis os mecanismos do teletrabalho ou da transferência do local de trabalho, já mencionados, ou a sua manutenção. MANUAL PLURIDISCIPLINAR 355 - Violê nc ia Domé s t ic a - - imp lica çõ es s o cio ló gica s , p s ico ló gic a s e j u r í d i c a s d o fe n ó m e n o 356 - Com efeito, nos termos do disposto no art. 328º, nº 1, al. f), do CT, o despedimento sem indemnização ou compensação constitui uma sanção disciplinar, estatuindo o art. 331º, nº 1, al. d), do mesmo código, que se considera abusiva a sanção disciplinar motivada pelo facto de o trabalhador ter exercido ou pretender exercer ou invocar os seus direitos. Aliás, nos termos da al. a), do nº 2, do último preceito citado, o caráter abusivo da sanção presume-se sempre que o despedimento tenha lugar até seis meses após a vítima ter invocado perante o empregador o seu estatuto de vítima de VD. Diremos mesmo que como o referido estatuto tem efeitos que se prolongam no tempo, deve ser considerado um facto continuado, pelo que a referida presunção só cessa quando se completarem seis meses contados da data em que o referido estatuto cessou. A consequência de tal presunção é a de que, ocorrendo o despedimento, caso a vítima intente ação judicial com vista à impugnação do mesmo despedimento, para além de ter de alegar e provar os factos que constituem a justa causa, o empregador terá igualmente que demonstrar que a motivação do despedimento nada tem que ver com o facto de a trabalhadora despedida ser vítima de VD. De qualquer modo, funcionando ou não a presunção, o certo é que caso o Tribunal declare o despedimento ilícito e abusivo220, e a trabalhadora vítima de VD opte pela indemnização substitutiva da reintegração, a indemnização a que tem direito é majorada. Assim, em vez de uma indemnização de 15 a 45 dias de retribuição de base e diuturnidades221 por cada ano completo ou fração de antiguidade contada até ao trânsito em julgado da decisão final do processo, não podendo a mesma ser inferior a 3 meses de RB+D que constitui a regra222, terá a vítima de VD direito a uma indemnização de 30 a 60 dias de RB+D, não podendo ser inferior a 6 meses de RB+D (art. 392º, nº 3, ex vi do art. 331º, nº 4, ambos do CT). releva “apenas a impossibilidade não imputável ao trabalhador”, pelo que se considera que apenas “será imputável ao trabalhador a impossibilidade de execução do trabalho por este voluntariamente provocada”. À luz deste entendimento afigura-se inequívoco que as situações de violência doméstica são de qualificar como facto não imputável à vítima. Por outro lado, resulta do citado n.º 1 do art. 296º, mais precisamente da utilização da palavra “nomeadamente”, que a enumeração das causas de suspensão ali previstas (doença, acidente, ou cumprimento de serviço militar) é meramente exemplificativa e não taxativa, o que significa que a lei admite que outros factos não imputáveis ao trabalhador possam conduzir à suspensão do contrato de trabalho. (Diogo Ravara) Cremos que só um despedimento ilícito poderá ser considerado abusivo. Caso o empregador consiga fazer prova da existência de justa causa de despedimento, fica desonerado do ónus acima mencionado. 221 Adiante mencionada pela sigla “RB+D”. 222 Art. 391º, do CT. 220 MANUAL PLURIDISCIPLINAR MANUAL PLURIDISCIPLINAR Q U A N D O J Á N à O S U P O RT O P E N S A R N A S V Í T I MA S D O S L A R E S D E S F E I T O S , C O ME Ç O A P E N S A R N A S V Í T I MA S D O S L A R E S I N TA C T O S . P. Vr i es FI CHA TÉCN I CA T ÍTULO Violência Doméstica implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno Manual P luridiscip l i na r COLE ÇÃO C aderno Especial EDITO R C entro de Estudos Judiciários PROJETO GRÁFI CO E M A Q U ETA G EM Luísa Castelo dos Reis C laudino Carvalho Instituto de Gestão Financeira e Equip amentos da Justiça, I.P. FOTOGRAFIA R ui Gouveia ABRIL 2016 ISBN 978-989-8815-28-6 FO RM ATO PDF A VE RSÃO DIGITA L DESTA O BRA ESTÁ DI SPON Í V E L E M F O R MAT O E B O O K , N O S Í T I O : HTTP://WWW.CEJ . M J . PT/ CEJ / RECU RSO S/ EBO O K _ C I V I L . P H P