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set 2019
vol. especial, nº 1
Ventilando Acervos
Florianópolis
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AS MORADAS DOS MILAGRES: PERCURSOS E DESTINOS DE EX-VOTOS
Lilian Alves Gomes
Doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional – UFRJ
Resumo: No presente artigo, abordo percursos e destinos de ex-votos, objetos
ofertados por devotos aos santos católicos e expostos em diversos locais de devoção. As feições dos objetos votivos são muito variadas e também podem ser
vistas em coleções, museus e exposições de arte. Com vistas a entender as transformações que levam esse objeto de devoção a ser visto como obra de arte, inicialmente exploro como os encontros com os ex-votos são decisivos para que
tais peças, já investidas de funcionalidade estética e expositiva em seu loci rituais,
sejam atreladas a outros sujeitos e contextos criativos. Dedico-me, em seguida, à
reflexão sobre trajetórias de ex-votos específicos, buscando aprofundar a análise
da dimensão de coleta que antecede a entrada de objetos no âmbito da coleção.
Palavras-chave:
Ex-votos.
ção. Arte popular. Culto aos
Objetos
de
santos. Estudos de
devomuseus.
Resumen: “En el presente artículo, abordo los itinerarios y destinos de exvotos, objetos
ofrecidos por devotos a los santos católicos y expuestos en diversos lugares de devoción. Los
rasgos de los objetos votivos son muy variados y también se pueden ver en colecciones, museos
y exposiciones de arte. Con vistas a entender las transformaciones que llevan ese objeto de devoción a ser visto como obra de arte, inicialmente exploro como los encuentros con los exvotos
son decisivos para que tales piezas, ya investidas de funcionalidad estética y expositiva en su
loci rituales, sean vinculadas a otros sujetos y contextos creativos. A continuación, me dedico
a la reflexión sobre trayectorias de exvotos específicos, buscando profundizar el análisis de
la dimensión de recogida que antecede a la entrada de objetos en el ámbito de la colección.
Palabras-clave:
ón. Arte popular.
Ex-votos.
Culto a
los
Objetos
de
santos. Estudios
de
devocimuseos.
EXPOSIÇÃO PRELIMINAR
Na entrada de uma sala que integra a Igreja de Nossa Senhora do Carmo
em São Cristóvão-SE, muito buscada por devotos do Senhor dos Passos, há uma
estrutura que outrora foi utilizada como porta de confessionário. A peça recepciona os visitantes do Museu do Ex-voto. Um dos papéis afixados nessa estrutura contém a seguinte definição de ex-voto: “Em Latim, “Ex-voto suscepto”
significa – de acordo com o desejo, de acordo com aquilo que foi preferido”.
As definições mais conhecidas de ex-voto, entretanto, não remetem ao
desejo. Elas nos informam sobre a existência do objeto como pagamento endereçado aos santos em troca de favores. Tal leitura instrumental desconsidera
que tecer um voto com um santo é diferente de estabelecer compromissos de
curto prazo (como as promessas) e que são passíveis de “quitação”. Como
demonstrei anteriormente1, a oferta de ex-votos não pode ser reduzida a uma
prática de desobriga. Dar uma coisa ao santo também é se doar, se vincular
mais a ele. Por meio de objetos, devotos agradecem por “graças” e milagres
recebidos independentemente da realização de um pedido ou promessa; pela
existência do próprio voto, ou seja, do vínculo santo-devoto; e também pedem.
A reflexão sobre o trânsito desses objetos de devoção para o âmbito
de coleções e museus de arte é oportuna para ampliar ainda mais a concepção de ex-voto. Nesse contexto, pensar os ex-votos “de acordo com aquilo que foi preferido”, como é sugerido na entrada da exposição que abre a
presente reflexão, exige colocar em perspectiva não só os desejos de devotos, como também das pessoas que cuidam dos locais onde há afluência de
ex-votos, daquelas que os estimam como obra de arte etc. Por meio de revisão de literatura acerca das distintas formas de encontrar, pensar e expor
o milagre2, inicialmente tematizo os “acasos” que levam à formação de coleções, buscando lançar luz sobre as distintas formas de apropriação dos objetos nos locais nos quais o fenômeno votivo irrompe. Em seguida, reflito
sobre a autoria dos ex-votos de modo a destacar como os encontros de pesquisadores, artistas e colecionadores com tais objetos são decisivos para que
eles, já investidos de funcionalidade estética e expositiva em seu loci rituais,
sejam atrelados a outros sujeitos e contextos criativos. Por fim, valendo-me
da “biografia cultural”3 de ex-votos específicos, problematizo os gestos de coleta4 que levam à formação da coleção de milagres, valendo-me especialmente
das situações em que os objetos mudam de mão. A presente análise deriva
de minha pesquisa de doutorado5, calcada em visitas a dezenas de espaços
expositivos; observação participante junto a um colecionador de arte e pesquisas em catálogos e outros materiais pertinentes aos objetos analisados.
OS ENCONTROS COM OS MILAGRES
Como nos conta James Clifford6, no início do século XX o manancial de
120
As Moradas dos Milagres: Percursos e
Destinos de Ex-Votos
_________________________
1
GOMES, L. A. O êxtase dos
objetos: ex-votos e relações de
devoção. Interseções, Rio de Janeiro, v. 15 n. 1, p. 172-193, 2013.
2
No decorrer deste texto, as palavras em itálico indicam termos significativos do universo pesquisado
e, como de praxe, vocábulos estrangeiros ou títulos de trabalhos. O negrito será utilizado como marcador
de ênfase. As aspas simples serão
utilizadas para assinalar minhas próprias categorias ou a relativização
de algum termo ou expressão. Aspas duplas serão empregadas como
forma de marcar citações e categorias que não as minhas – sejam ‘nativas’ ou de outros pesquisadores.
3
KOPYTOFF, I. A Biografia Cultural das Coisas: A mercantilização
como processo. In: APPADURAI,
A. A Vida Social das Coisas. Niterói: EdUFF, 2008. p. 89-121.
4
BONDAZ, J. Entrer en collection: Pour une ethnographie
des gestes et des techniques
de collecte. Cahiers de l’École
du Louvre, n. 4, p. 24 a 32, 2014.
5
GOMES, L. A. A peregrinação
das coisas - trajetórias de imagens de santos, ex-votos e outros objetos de devoção. Rio de
Janeiro: Tese de Doutorado em
Antropologia Social, MN/UFRJ,
2017. As primeiras elaborações
das reflexões articuladas neste artigo estão presentes, sobretudo, no
quinto e no sexto capítulos da tese.
6
CLIFFORD,
J.
Colecionando arte e cultura. Revista do Patrimônio, n. 23, 1994.
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MALRAUX, A. La Tête d’Obsidienne. Paris: Gallimard, 1974
7
Essa fixação tem como marco inicial a realização da Exposição de
Cerâmica Popular Pernambucana,
organizada por Augusto Rodrigues
e apresentada por Joaquim Cardoso em 1947, no Rio de Janeiro
8
novas formas e valores foi visto pelos europeus na África, na Oceania e na América. O acentuado interesse pelo outro uniu artistas, amantes das artes e etnólogos
a ponto da pesquisa de campo desses pesquisadores ser financiada por mecenas
interessados na ampliação das coleções francesas. A produção de artefatos dos
chamados povos primitivos passa então a incrementar não só os depósitos dos
locais de guarda e exposição de material de estudo, mas também a nutrir o anseio dos artistas - principalmente os surrealistas - por inspirações alheias aos
dogmas e à censura. A vanguarda buscou romper com as convenções ocidentais
explorando elementos inversos à lógica - o sonho, a loucura, a alucinação, a
embriaguez, o transe - tidos como formas de acesso privilegiado à realidade profunda do ser humano. Pablo Picasso, em depoimento a André Malraux7, contou
que as máscaras africanas que tanto o impressionaram no Museu do Trocadero,
em Paris, eram diferentes das outras esculturas, pois eram mágicas, agiam sobre as pessoas e, como ele, estavam contra tudo, contra espíritos ameaçadores...
Já no Brasil, a procura por outras formas de expressão plástica foi colocada – principalmente pelos modernistas – como uma forma de descobrir nós
mesmos. O Nordeste e sua religiosidade avultaram-se nesse cenário como um
reservatório de formas abstratas e figurativas simbólicas. O interesse de intelectuais e artistas pela escultura popular nordestina fixou nomes como o de Mestre
Vitalino no circuito oficial de arte8. Santeiros também passaram à condição de
“artistas populares”, aos quais foram encomendados representações escultóricas
de “tipos nordestinos”: os retirantes, a rendeira, os cangaceiros etc. A produção dos santeiros anteriormente à “descoberta” abarcava imagens de santos, ou
seja, estátuas de entidades do panteão católico e ex-votos, esculturas ofertadas
por devotos em locais de culto e que muito frequentemente ganham a forma
de partes do corpo humano, tais como pés, mãos, braços, coração, cabeça etc.
As exposições desses objetos, também chamados de milagres ou promessas, confluíram perfeitamente para a empreitada que o surrealismo havia colocado em voga: perturbar a imagem privilegiada de ordem consubstanciada
por um organismo íntegro. Em vista disso e da receptividade que obras populares ganharam enquanto manifestações culturais significativas e de caráter
estético, os ex-votos começaram a encontrar lugar não só em espaços de culto, tais como santuários, igrejas e cruzeiros, mas também em coleções de arte.
Foi com esta participação afetiva que veio surgindo a compreensão dos “milagres” com fenômeno de outra ordem. Reparei que
o ex-voto conseguia “neutralizar” qualquer objeto de uso ornamental ao seu redor. Acompanhado a potes balangandãs cerâmicas
vitalinos entalhes muranos pratarias carajás - ou a qualquer outra
peça do arsenal decorativo “à la mode” - logo os relegava àquela
função pela qual a presença vale apenas por ocupar um lugar, encher um espaço. Enquanto isso, o “milagre” dava provas tamanhas
de vida outra, que me obrigava a mudá-lo de lugar, a isolá-lo numa
parece, num pedestal... E lá do alto, continuava a ditar certa lei,
a querer uma séria organização do espaço em volta. Percebi que
saía de si mesmo. Como as obras de grande escultura - que não
precisam necessariamente ser grandes no tamanho para parecer
esculturas - um palmo de madeira marcado pela mão do santeiro
conseguia as vezes preencher dimensões de monumento, “pesava”
absurdamente em qualquer plano. […] Era uma experiência fascinante, e catei ex-votos toda vez que quis repeti-la do começo. […]
Das paredes desta exposição, quatrocentas esculturas nos condenam.9
As palavras acima foram retiradas do catálogo da exposição Ex-votos do Nordeste – Coleção Giuseppe Baccaro, realizada em 1965 no Museu de
Arte Moderna do Rio de Janeiro. Trata-se da primeira mostra exclusivamente dedicada aos milagres em um museu de arte. Como se depreende, os ex-votos foram vistos como coisas que excedem a si mesmas, que agem sobre
quem as vê. Nessa direção, podem ser pensados como nossos equivalentes
plásticos das máscaras que tanto impactaram Picasso e outros espectadores.
Na exposição em pauta, as peças foram expostas sob a rubrica de quem os “catou” e ofereceu para exposição pública, um colecionador. As esculturas não são tratadas como “balangandãs” de mero
efeito ornamental e tampouco como vitalinos, que, descritos como tal, apontam para uma autoria determinada. São um fenômeno de outra ordem.
O referido catálogo também conta com um texto de Luis Saia,
que já havia atrelado seu nome aos ex-votos ao realizar a primeira menção
aos milagres de madeira na literatura sobre arte popular. Seu trabalho deriva de incursão realizada no âmbito da “Missão de Pesquisas Folclóricas”, organizada em 1938 por Mário de Andrade, então responsável pelo Departamento de Cultura do Município de São Paulo. O objetivo da empreitada era
recolher documentos, textos, indumentárias, filmes e fotografias que pudessem esclarecer sobre o folclore musical, inicialmente nas regiões Nordeste e Norte do Brasil. Na publicação monográfica Escultura popular brasileira10
encontramos o relato de Saia acerca de seu encontro com o objeto votivo:
A vontade de achar coisas me levou, como sempre, às procuras mais indiscretas: remate dos muros de construção, caixas
cheias não sei de que, atrás do altar... Precisamente atrás do altar desta capela [situada em Meirim, sertão pernambucano]
encontrei uma cabeça de madeira que no primeiro momento
julguei tratar-se de uma parte de santo de roca. Mas, segundo
informou o cicerone improvisado, era um milagre. Recolhi-o.11
Cerca de vinte anos após a publicação do estudo sobre os ex-votos coletados na Missão, Saia versou sobre os desdobramentos de sua descoberta:
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As Moradas dos Milagres: Percursos e
Destinos de Ex-Votos
_________________________
EX-VOTOS DO NORDESTE:
Coleção Giuseppe Baccaro. Museu
de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Exposição comemorativa do IV
centenário. 22.7 a 8.8.1965. Textos
de Luis Saia e Guiseppe Baccaro.
9
10
SAIA, L. Escultura Popular
Brasileira.
São
Paulo:
Edições
Gaveta,
1944.
11
Ibid., p. 9, grifo original.
12
Idem., 1965, s/p, grifo nosso.
E não é sem uma ponta de orgulho, de colecionador frustrado e
pesquisador por vocação que verifico o acerto do meu faro; a prova
disto é esta exposição. O reconhecimento enorme e definitivo da
validade desta tradição de escultura popular e das obras primas que
frequentemente o povo é capaz de produzir, é a melhor recompensa para um pesquisador bem aquinhoado pela sorte.12
É curioso que Saia se qualifique como “colecionador frustrado”, uma
vez que além de coordenar a coleta dos objetos e registros da Missão, contribuiu
largamente para o enriquecimento do acervo pessoal de Mario Andrade13. Ao dar
continuidade aos estudos sobre a escultura em madeira, Saia inscreveu seu nome
do campo da criação popular como autor da descoberta do milagre sertão nordestino. Desse, modo, não é o “colecionador frustrado” que passou a ser acionado nas mostras que expuseram os ex-votos e sim o pesquisador-descobridor,
uma vez que os objetos em questão vieram a público por causa de seu “faro”.
A referência constante aos milagres no trabalho de artistas transformou os
13
BATISTA, M. R. (org). Coleção
Mário de Andrade: religião e magia, música e dança, cotidiano.
São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004.
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Termo cunhado na década de
1950 pelo artista francês Jean Dubuffet para designar suas composições criadas a partir de objetos que depreciavam métodos
e materiais da arte tradicional.
14
15
COSAC, C. Farnese: objetos. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
16
De acordo com Mariana Renou
(2011): “As oferendas devem ter um
destino específico, na própria “natureza”. O ideal é que “oferenda” e
“natureza” se fundem harmonicamente e conservem o equilíbrio e o
estado das forças de ambas. […] Se o
ritual já passou e as divindades já receberam, ainda assim temos elementos que vieram da própria “natureza”
compondo a oferenda, que foram
preparadas ritualmente transformando-se em outras coisas, compostas
de outras forças e possibilidades.” (p.
166) RENOU, M. Oferenda e Lixo
Religioso: como um grupo de sacerdotes do candomblé angola de Nova
Iguaçu “faz o social”. 2011. Dissertação (Mestrado em Antropologia
Social)- PPGAS/MN, UFRJ, 2011.
17
CHILVERS, I. Dicionário Oxford de Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 383.
18
Ibid., p. 438.
19
SAIA, op. cit., 1944.
20
CASTRO, M. M. Ex-votos mineiros: as tábuas votivas do ciclo
do ouro. Rio de Janeiro: Expressão
e Cultura, 1994, p. 9, grifo nosso.
ex-votos em índices de suas respectivas obras, como se passa, por exemplo,
com as assemblages14 de Farnese de Andrade. O artista comprava as imagens de santos e ex-votos de madeira em antiquários, já que em 1960, quando começou a utilizar esses objetos em suas obras, eles estavam em moda
como decoração e estava difícil encontrá-los “ao acaso”15. As imagens de
gesso, por sua vez, eram recolhidas de despachos e oferendas que Farnese
encontrava ao longo da orla carioca na qual fazia constantes caminhadas.
As oferendas são objetos ou arranjos de objetos destinados a entidades das religiões afro-brasileiras. O termo despacho designa oferendas
propiciatórias realizadas no espaço público, bem como o que deve voltar para a natureza após utilização ritual nos terreiros e em rituais privados16. O gesto de despachar pode significar, portanto, ofertar para
uma entidade ou lidar de maneira adequada com o que já foi ofertado.
Por lidar com coisas oriundas dessas práticas religiosas, há muitas referências a Farnese como “bruxo”. Suas obras também são lidas em associação
com as ideias de objet trouvé e ready made. A primeira diz respeito ao reconhecimento, por parte do alguém, de qualidades estéticas em coisas encontradas
fora dos circuitos artísticos. A “descoberta” é exposta e submetida à apreciação
como obra de arte após sofrer pouca ou nenhuma alteração17. Já as coisas ready
made são artigos em massa selecionadas ao acaso e sem o exercício do gosto,
como salientou Marcel Duchamp18. Note-se que tais ideias também são potentes para pensarmos o trânsito de objetos rituais para o âmbito das coleções.
As imagens recolhidas por Farnese já haviam passado pelo processo
recomendado de ‘descarte’: o despacho. Já os ex-votos eram oriundos de uma
zona de mercantilização para o qual esses objetos são atraídos por serem esteticamente significativos, movimento que os desvia de sua utilização ritual enquanto parte da exposição dos feitos de um santo. Tal exposição em locais de culto
não é permanente e também envolve debates sobre a destinação ideal. Na próxima sessão do texto analiso mais detidamente as formas de encaminhamento
dos ex-votos após a deposição e a exposição nos lugares onde são ofertados.
Ao invés de esculpido, o milagre também pode ser pintado sobre
a madeira. Luis Saia relatou ter “topado” com ex-votos desse tipo no litoral da Paraíba e da Bahia19. Os ex-votos pictóricos presentes na literatura dizem respeito a uma prática difundida por portugueses, que teria encontrado condições de difusão sobretudo em Minas Gerais e na Bahia.
Por isso, os quadrinhos são tradicionalmente tomados como registros
históricos visuais de uma prática votiva herdada da Metrópole. A colecionadora Márcia de Moura e Castro relata seu encontro com as peças:
Quando iniciei minhas andanças pelo interior de Minas Gerais encontrei, por acaso, na sacristia de uma capela antiga, uns pitorescos quadrinhos que desde logo despertaram meu interesse, tanto
pelos temas como pela espontaneidade do traço. […] Pelas datas
assinaladas verifiquei que alguns deles estariam ali esquecidos há
mais de dois séculos. Desde então tenho-me dedicado a procurar e
estudar esses ex-votos sob diferentes ângulos: como expressão da
arte popular, como fato histórico e como fenômeno religioso.”20
Os exemplares brasileiros de ex-votos pictóricos eram feitos seguindo uma configuração arcaica que teria sido abandonada desde o século XV
pelos pintores europeus. É justamente esse caráter arcaico que interessa Clarival do Prado Valladares, pesquisador de manifestações genuínas do comportamento arcaico brasileiro, cujo fenômeno “epígono” seria o estilismo praticado por
nomes como Alfredo Volpi, Rubem Valentim e Antônio Maia, artistas que
tinham como clientela colecionadores interessados em estilos individuais.
Os ex-votos pictóricos, diferentemente disso, eram obras genuínas feitas para o atendimento de propósitos devocionais. Em seu estudo
sobre os ex-votos da sala dos milagres da Igreja do Senhor do Bonfim na
Bahia21, o autor coloca em evidência as peças que mais o “impressionaram,
por uma qualidade artística ou por alguma razão de ordem científica”22. As
obras foram observadas em duas oportunidades: 1939/1940 e 1960/1961.
Valladares descreve alguns dos quadrinhos com desenho ou pintura oferecidos pelos devotos aos santos a partir da transcrição do texto original contido no objeto e de um verdadeiro diagnóstico da imagem:
1) Quadro a óleo assinado por J. G Tour° Sª.
Homem branco, cabelos castanhos partidos do lado direito, bigode e cavanhaque, olhos azuis, conformação facial pentagonal, nariz fino e pouco adunco. Constituição de mínimo desenvolvimento muscular. [...]23
Importante indicar que um dos elementos do diagnóstico é a assinatura do riscador de milagre. O olho que buscou tirar o artista do anonimato é,
literalmente, clínico24. Clarival Valladares nasceu na Bahia e formou-se como
médico no Recife, onde atuou também como auxiliar de pesquisa de campo de
Gilberto Freyre. Pesquisadores oriundos da área da saúde observaram exposições de ex-votos como representativas das patologias locais mais incidentes25.
Valladares, entretanto, ao encontrar um baixo número de milagres de madeira
em forma de cabeça, apontou que a presença pouco expressiva se devia à menor frequência das ofertas tridimensionais na capital em relação ao interior;
afirmação que reforçou os ex-votos esculpidos enquanto milagres do sertão.
O médico-crítico de arte também mencionou a “cobiça” gerada pelo
valor escultórico dessas peças. Àquela altura, os ex-votos em questão já eram
“mais facilmente vistos nas prateleiras dos colecionadores do que aos pés do
santo.”26 Na década de 1960 os milagres estavam migrando das salas dos milagres
para as salas das casas das pessoas, como já foi abordado. Os dizeres do autor
confirmam o trânsito em pauta e acrescentam que o movimento transformava os
objetos de devoção não apenas em itens de decoração, mas também de coleção.
Apesar do caráter de genuinidade atrelado aos ex-votos pictóricos, na
opinião de Valladares o comportamento arcaico brasileiro ganhou corpo, sobretudo, nos “protótipos barrocos importados da imaginária católica”27. Para
o autor, portanto, santos e ex-votos teriam a mesma origem. Os ex-votos,
entretanto, teriam um caráter diferenciador conformado pelo “hieratismo”
contido na expressividade das peças. Por isso, “ninguém confunde uma cabeça
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Destinos de Ex-Votos
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21
VALLADARES, C. P. Riscadores de Milagres: um estudo
sobre arte genuína. Rio de Janeiro: Superintendência de Difusão
Cultural da Secretaria de Educação do Estado da Bahia, 1967.
22
Ibid., p. 15.
23
Ibid., p. 45, grifo nosso.
Na trilha de Ginzburg (1989),
sabemos que o treinamento em semiótica médica é um recurso que
qualifica pessoas como connaisseurs de arte. GINZBURG, C.
Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p.143-179.
24
25
Ver, por exemplo, MONSEMPES, Jean-Luc. Les “Salles de
Miracles” au Brésil: Contribution à l’étude des exvoto: aspects
sociaux, religieux et médical. 1977.
Tese (Doutorado em Medicina) Université René Descartes, 1977.
26
27
Ibid., p. 15.
VALLADARES, C. P. Sobre o
comportamento arcaico brasileiro nas artes populares. BRASIL. Ministério da Educação e
Cultura. 7 brasileiros e seu universo - artes, ofícios, origens, permanência: catálogo. Brasília: Programa
de Ação Cultural do Departamento de Assuntos Culturais da Educação e da Cultura, 1974. p. 64.
125
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28
VALLADARES, op. cit., 1974, p. 66.
de santo com uma de ex-voto, nem esta com a de um manequim”28.
A constatação de Valladares depõe contra o relato do encontro de Saia,
que ao deparar-se pela primeira vez com um milagre de madeira em forma de
cabeça, julgou tratar-se parte de um santo de roca. Entretanto, a opinião de
ambos conflui na exclusão do trabalho dos santeiros na feitura dos objetos votivos. Valladares inferiu que em algumas situações o próprio devoto improvisava
uma peça tosca e também aludiu a carpinteiros e marceneiros especializados,
contudo não ofereceu outras informações sobre esses produtores de ex-votos.
A constatação de Valladares depõe contra o relato do encontro de Saia,
que ao deparar-se pela primeira vez com um milagre de madeira em forma de
cabeça, julgou tratar-se parte de um santo de roca. Entretanto, a opinião de
ambos conflui na exclusão do trabalho dos santeiros na feitura dos objetos votivos. Valladares inferiu que em algumas situações o próprio devoto improvisava
uma peça tosca e também aludiu a carpinteiros e marceneiros especializados,
contudo não ofereceu outras informações sobre esses produtores de ex-votos.
QUEM É O AUTOR DO MILAGRE?
Sua formação advém de um bacharelado em Artes e de um mestrado
em Ciências da Religião e Sociologia
da Cultura pela Universidade de Louvain, Bélgica, para onde foi na condição de seminarista. Contudo, quando
voltou ao Brasil não atuou como padre e ingressou na UFRN, onde foi
professor de Antropologia Cultural,
além de ter coordenado o Mestrado
em Antropologia Social, bem como
o Departamento de Artes, no qual se
aposentou. Entre meados de 2012 e
o início de 2013, a partir de Natal,
acompanhei suas viagens ao interior
do Rio Grande do Norte e estados
próximos em busca de objetos em
santuários, antiquários e fazendas;
participei de reuniões com a Secretaria de Cultura do estado com vistas
à organização de um museu; atuei na
organização de uma exposição de
presépios; visitamos ateliês de artistas, espaços de colecionamento e feiras de arte e de artesanato. As visitas a
feiras, museus e exposições também
ocorreram no Rio de Janeiro, em
anos subseqüentes à pesquisa no RN.
29
30
Teatro similar ao de mamulengo
e típico do Rio Grande do Norte.
O reconhecimento de qualidades estéticas nos milagres realizado por Saia
pode ser visto como o início de uma cadeia que torna estudiosos inventores dos
ex-votos enquanto obras que encerram soluções plásticas negras e mestiças. Os
cânones da estética sertaneja encontrada nos objetos votivos e que passam a ser
evidenciados nas exposições são principalmente o “corte africano” - que ecoa a
partir do texto do pesquisador da Missão de Pesquisas Folclóricas - e o “hieratismo
da figura” - tematizado por Clarival Valladares. No Museu Afro Brasil, localizado
em SP e inaugurado em 2004, por exemplo, o texto do painel que acompanha
a exposição permanente da coleção de ex-votos é praticamente uma transposição de trechos da obra inaugural de Saia sobre os milagres, publicada em 1944.
O colecionador que foi meu principal interlocutor do trabalho de campo
do doutorado discorda dessa não atualização da argumentação de Saia e também
de alguns aspectos propostos por Valladares. Segundo Antônio Marques, os milagres não são de origem afro-negra e o caráter hierático não diz respeito a todos os
ex-votos. Retomando o conteúdo de muitas das aulas que lecionou quando atuava como docente da UFRN, o professor aposentado me ensinou bastante sobre
seu trato com imagens de santos, ex-votos e outros objetos de arte popular29.
As lições do professor eram sempre acompanhadas de algumas peças selecionadas de seu acervo. Antônio buscava evidenciar o ‘parentesco’
entre elas, muitas vezes dado a ver por meio das similaridades formais que
levavam a uma autoria específica. Em uma dessas ocasiões, me mostrou bonecos de João Redondo30 e ex-votos feitos pela artista Dadi. Ao apresentar
ex-votos particulares que são muito próximos de bonecos utilizados em teatros cômicos, questionou a generalidade dos aspectos hieráticos dos milagres.
A ‘continuidade’ entre ex-votos e outras obras era enfatizada por Antônio principalmente em relação às imagens de santo. Tais peças passaram a ser
assinadas quando alguns santeiros, que também eram chamados de imaginários, foram alçados a condição de artistas populares (como foi o caso de Xico
Santeiro no RN e Mestre Noza no Ceará). Contudo, o mesmo não se passou com os milagres feitos por eles. O relacionamento entre ex-voto e santo
como obra de um mesmo artista, por conseguinte, coloca alguns problemas.
As razões para a ausência de autoria auto-declarada nos ex-votos não
são objeto de consenso. Para pensarmos a respeito, é interessante direcionar o foco para a exposição Liturgias Contemporâneas - Farnese de Andrade e os
ex-votos, realizada em 2012 no Museu Casa do Pontal, no Rio de Janeiro. A
proposta curatorial foi promover o diálogo entre arte popular - carro chefe da
instituição - e a arte contemporânea de Farnese de Andrade - que se conectava com o acervo da Casa do Pontal por meio da participação de ex-votos.
Em função de artifícios expositivos, alguns módulos da mostra provocavam uma intencional dificuldade de reconhecimento de autoria. As montagens de Farnese foram exibidas lado a lado com peças do acervo da instituição. O campo da arte, nos dizeres da antropóloga e curadora da exposição
Ângela Mascelani31 é, “instaurador, por excelência, de sacralidades contemporâneas”. Sendo assim, a dessacralização do objeto decorrente de sua retirada de um contexto ritual não deixa de ser uma forma de transfigurá-lo
para sacralizá-lo de outra maneira. É pertinente explorar como essa sacralização compreende os acasos que levam à formação de coleções de ex-votos.
De acordo com Mascelani, a aquisição da coleção da Casa do Pontal - formada pelo colecionador francês Jacques van de Beuque - se deu de
maneira “fortuita”32. Peças dessa coleção, como foi dito acima, foram conjugadas com as obras de Farnese. Os objetos coletados pelo artista na orla
são aludidos em um dos módulos da exposição no qual a imagem do mar
em movimento é projetada sobre um painel côncavo. A frente desse painel
foram dispostos dois módulos, e sobre cada um deles um ex-voto de corpo
inteiro em madeira, que pareciam ser banhados pelas ondas que iam e vinham.
A imagem do mar quebrando na praia, tanto cobrindo quanto desvelando, é significativa para a reflexão sobre os colecionadores e seus
achados, pois a ideia de que os objetos vão até eles é muito reiterada nesse universo. As intenções, esforços e ‘redes de pesca’ utilizadas para retirar
as coisas de seus fluxos tendem a ser ocultadas, ao passo que os encontros
inesperados são ressaltados. Antes de se identificarem como buscadores,
portanto, os colecionadores tendem a se autorreferir como afortunados.
Ao tematizar as buscas de objetos para a atividade dos surrealistas, Eliane Robert Moraes33 explora o “acaso objetivo” como um dos pilares da atividade desses artistas:
O acaso passava a ser produtor de um sentido, posto que surpreendido por um desejo anterior ao próprio encontro que, por fim,
viria a objetivá-lo. […] O acaso objetivo obedeceria, assim, às
mesmas leis que presidem à organização dos sonhos, colocando
igualmente o sujeito em comunicação misteriosa com o mundo.
126
As Moradas dos Milagres: Percursos e
Destinos de Ex-Votos
_________________________
31
MASCELANI, Â. Liturgias contemporâneas: Farnese de Andrade e os ex-votos do Museu Casa
do Pontal. Rio de Janeiro: Museu Casa do Pontal, 2012, p. 91.
32
Em sua tese de doutorado (MASCELANI, 2001, p. 131), a autora
menciona que o colecionador de
arte popular e criador do Museu do
Pontal recebeu autorização do arcebispo de Canindé para formar o que
seria sua primeira coleção expressiva. MASCELANI, Â. Coleções,
colecionadores e o mundo da
arte popular brasileira. 2001. Tese
(Doutorado em Ciências Sociais)PPGSA-IFCS-UFRJ, 2001, p. 8-9.
33
MORAES, E. R. O corpo impossível – a decomposição da
figura humana: de Lautréamont
a Bataille. São Paulo: FAPESP/
Iluminuras,
2002,
p.
42-43.
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Florianópolis
________________________
34
EWBANK, T. Vida no Brasil: diário de uma visita à terra do cacaueiro e da palmeira. Belo Horizonte:
Ed. Itatiaia; São Paulo: Edusp,1976.
35
36
MASCELANI, op. cit., 2012 , p. 8-9.
MASCELANI, Â. O Mundo da Arte Popular Brasileira: catálogo. Rio de Janeiro:
Museu Casa do Pontal/ Mauad
Editora, 2002, p. 109, grifo meu.
No tocante aos ex-votos, os “acasos objetivos” se fazem presentes quando não nas exposições em museus de arte, nos materiais gráficos relativos a elas.
As narrações em torno dos encontros com os objetos votivos em textos anteriores
ao impacto das ideias surrealistas no mundo artístico e intelectual não envolvem a
produção de um vínculo traçado de antemão pelo destino. Thomas Ewbank34, por
exemplo, esteve em diversas igrejas por ocasião de sua visita ao Rio de Janeiro em
1846 e escreveu, com a minúcia peculiar a certos viajantes, a respeito da constante presença dos ex-votos nas igrejas. Ewbank declara abertamente que estava em
busca dos objetos e pedia para ver sacristias, pois haviam lhe dito que em toda igreja
podiam-se ver em maior ou menor número ofertas votivas por curas milagrosas.
Para além dos encontros fortuitos, outra reiteração observada concerne
ao anonimato da produção votiva. Por conseguinte, os nomes inscritos nesses
eventos artísticos - e, consequentemente, nos catálogos que os registram - são os
dos colecionadores que reúnem as peças, dos estudiosos que refletem sobre elas
ou dos artistas que as utilizam em suas criações (atuações face aos ex-votos que
podem se sobrepor). A condição de produção contemporânea é relacionada às coleções, análises e composições realizadas por tais sujeitos. Já o popular é situado fora
do continuum da história da arte, mesmo que os objetos em questão tenham sido
produzidos na mesma temporalidade das obras tomadas como contemporâneas.
Segundo Mascelani, “os ex-votos guardam o anonimato característico
deste tipo de produção, na qual o artista/escultor popular se retrai a favor do suplicante que encomendou a obra”35. De fato, é preciso ter em conta que a assinatura pode confundir quem olha o ex-voto, pois existe o risco do nome do artista
ser lido como se fosse o da pessoa que ofertou o objeto. Nessa direção, é comum
que o devoto acrescente à peça um bilhete com seu nome, uma fotografia do tipo
3x4 ou ainda da cena associada à intervenção divina que quer ressaltar, como um
acidente de carro ou uma cerimônia de formatura. Esses ‘acréscimos’ reiteram os
ex-votos como objetos compósitos, produtos de atos criativos que envolvem não
só um autor, e sim fatores diversos que participam de sua conformação: o evento
motivador da oferta, preferências do devoto, do fabricante (e/ou artista) e do santo.
Se podemos falar dos fazedores de santos como santeiros é complicado tratar os fabricantes de milagres como milagreiros, afinal, no contexto devocional, milagreiro é o santo. Inclusive, em muitos objetos (em especial nos
ex-votos pictóricos) isso é expresso textualmente na fórmula “Milagre que
fez [Santo tal]...”. Nessa perspectiva, o autor do milagre é o santo e os demais agentes apenas lhe conferem uma forma material mais permanente.
A curadora do Museu Casa do Pontal também aciona a noção de tabu para explicar o anonimato das peças:
A motivação para construir e oferecer um ex-voto é sempre de ordem religiosa. Sua circulação em outros circuitos é cercada de
tabu. Muitos escultores em madeira e artistas da cerâmica preferem
não fazê-los, e quando os fazem, resguardam-se no anonimato.36
Para o colecionador que foi meu principal interlocutor, abordar a questão em
termos de tabu é mistificá-la. Segundo Antônio Marques, quem conhece a produção
de ex-votos desde a saída dos mesmos das mãos de quem os confecciona sabe que os objetos não são assinados porque essa produção é entendida como “menor” em relação à escultura de santos.
Por isso, na linha de raciocínio do colecionador, a celebração do potencial
estético da arte popular deve ser acompanhada de pesquisa que possibilite a promoção dos produtores de expressões votivas como artistas. Mas nem sempre os
escultores estão interessados. Antônio relatou que um artista negou ter fabricado
um ex-voto que inegavelmente tinha sido feito por ele. Segundo o colecionador,
o artista não se lembrava de ter esculpido aquela peça porque produziu muitas ao
longo da vida, tidas como banais e nada dignas de nota, como colheres de pau.
Mas seriam ambos os objetos - produzidos sem pretensão artística no sentido
convencional - igualmente valorados? Cabe investigar porque o artista hesita.
Antes de serem artistas, santeiros são, via de regra, devotos37. Se consideramos que os santeiros devotos também são fabricantes de milagres, e
que estes objetos são frequentemente aproximados pelas autoridades eclesiásticas da superstição e da feitiçaria, podemos entender a não assinatura
não como um gesto de altruísmo, mas sim como uma ação de cautela. Desse modo, os produtores de ex-votos se preservam das críticas de quem enxerga esses objetos como suspeitos e ameaçadores da hierarquia oficial católica.
David Freedberg38 nos lembra o quanto o “mito do aniconismo” – a
crença de que, quanto mais espiritualmente desenvolvida a religião, menor a
necessidade de objetos materiais para servir de canal de comunicação com a
divindade – é compartilhado por diversas culturas. A desconfiança dos sacerdotes em relação aos ex-votos pode nos auxiliar a entender tantos relatos de
acervos devocionais “abandonados” atrás de altares ou em sacristias, encontrados “ao acaso” por colecionadores. E também lança luz sobre as diversas
biografias de escultores de milagres que são incentivados por padres e outros
agentes da igreja a esculpir imagens de santos. Os artistas deixam de dar forma
a partes do corpo de devotos para se dedicarem à escultura de corpos santos.
Além do fato do artista não querer se associar a algo que não é visto
com bons olhos pela Igreja, é preciso ainda considerar a reiteração, por parte
dos pesquisadores, do relacionamento da produção votiva com o universo das
religiões afro-brasileiras39. Posto que cabeças, outras partes e ainda representações do corpo inteiro também são ofertadas a entidades das religiões afro-brasileiras, para alguns escultores populares é delicado assumir a criação de objetos
potencialmente utilizados em oferendas40. Como afirmam Mauss e Hubert41,
“para o catolicismo, a idéia de magia envolve a idéia de falsa religião”. O que
isso coloca em questão no tabu em pauta é a utilização de ex-votos para a suposta realização de “trabalhos” com vistas a causar efeitos nefastos a outrem.
A definição do estatuto, do significado e das funções da imagem sempre
mobilizou a Igreja Católica. A possibilidade de representação, especialmente a
tridimensional, encontra-se no cerne de problemáticas do cristianismo e sua relação com outras religiões42. A escultura, ao mimetizar a realidade corpórea nas três
128
As Moradas dos Milagres: Percursos e
Destinos de Ex-Votos
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37
Para discussão a respeito,
ver GOMES, 2017, p. 145-183.
38
FREEDBERG, David The
power of images. Chicago: University of Chicago Press, 1989.
39
Cumpre observar que não há menção à possibilidade de variedade de
estilos da produção artística africana
- fala-se em “escultura afro-negra”
como se África e negros fossem
noções contíguas e homogêneas.
40
Dos muitos locais de exposição
de ex-votos católicos que já visitei,
o único onde a oferta de objetos é
explicitamente atrelada aos praticantes de religiões afro-brasileiras
localiza-se no conjunto do Carmo,
em Cachoeira, na Bahia. No segundo pavimento há uma pequena sala
com alguns poucos ex-votos pendurados no teto. Os responsáveis pela
instituição informaram que os objetos são levados por membros recém
saídos de ritos de iniciação do candomblé. A partir de mapeamento da
prática votiva católica no Nordeste,
Bonfim (2007) observou que o convívio entre tradições católicas e afro-brasileiras nos santuários baianos é
de fato singular em comparação com
o que se passa nos demais estados
nordestinos. BONFIM, L. A. S. O
Signo Votivo Católico no Nordeste Oriental do Brasil: mapeamento
e atualidade. 2007. Tese (Doutorado
em Ciências Sociais) – Programa de
Pós-graduação em Ciências Sociais,
Universidade Federal da Bahia, 2007.
41
MAUSS, M.; HUBERT, H. “Esboço de uma teoria geral da
magia”. In: MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p. 47-181, p. 67.
Há uma extensa bibliografia sobre
imagem e presença no cristianismo.
O trabalho de Belting (2010) é um
exemplo de abordagem que problematiza o debate em questão e sua
relação com a consolidação da atual acepção de “arte”. BELTING, H.
Semelhança e Presença: A história da imagem antes da Era da
Arte. Rio de Janeiro: Ars Urbe, 2010.
42
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dimensões “reais” do corpo, é mais frequentemente alvo de desconfiança
do que a pintura, que precisa simular uma terceira dimensão. Em vista disso,
é compreensível que a assinatura de um produtor de ex-votos tenha primeiramente sido identificada em uma tabuleta e não em um ex-voto anatômico.
O testemunho visual dos ex-votos pictóricos continha, na maioria das
vezes, relatos por escrito que tornam a interpretação das obras menos indeterminada. Além disso, o riscador de milagres registrava visualmente o feito
de um santo específico e incluía o ofertante na figuração. Em contraposição
a essas obras com textos e imagens explicativas que desvendam o milagreiro
e o agraciado, a produção dos escultores é olhada de soslaio. As placas contendo agradecimentos textuais - que podemos tomar como correlatos modernos dos antigos e hoje escassos ex-votos bidimensionais pintados - continuam a povoar o interior ou espaços contíguos às igrejas, ao passo que as
ofertas tridimensionais são geralmente alocadas em espaços exteriores.
OUTRAS MORADAS DOS MILAGRES
43
A saber: Santuário do Lima, localizado na cidade de Patu; Monte
do Galo, em Carnaúba dos Dantas; Monte das Graças e da Santa
Menina, em Florânia e santuário
de Santa Rita, em Santa Cruz.
Neste ponto da reflexão, recorro a biografias de ex-votos específicos.
A análise da trajetória percorrida por eles possibilita aprofundar aspectos mencionados nos tópicos anteriores e precisar a dimensão de coleta que antecede a
entrada de objetos nas coleções. Os milagres em questão pertencem ao colecionador Antônio Marques e estiveram expostos entre 2013 e 2017, por ocasião da
organização da exposição “Casa dos Milagres – Santos e Ex-votos na Coleção
de Antônio Marques”, realizada na antiga capela do Centro de Turismo de Natal – RN. A iniciativa do colecionador foi apoiada pela Fundação José Augusto – FJA (também chamada de Secretaria Extraordinária de Cultura do RN).
A exposição foi pensada como núcleo principal de um futuro museu
homônimo e teve como eixo curatorial a “estilização” dos principais santuários do território potiguar43. Na nave central da antiga capela que abrigou a
exposição, entretanto, foi disposta uma vitrine com ex-votos que não remetiam a nenhum santo ou local de devoção específico. O interior da estrutura
expositiva em questão continha esculturas em madeira escurecida - em formato de cabeças, braços, pernas e outras partes do corpo - com aparência visivelmente desgastada. Sobre a vitrine havia três caixas de acrílico e no dentro
de cada uma delas uma cabeça, que adiante passarei a tratar por C1, C2 e C3.
C1 e C3 são cabeças femininas esculpidas em madeira e pintadas com
tinta a óleo. Ambas possuem algumas avarias, porém seus respectivos estados de
conservação são visivelmente melhores em relação à peça do centro. Trata-se de
C2, uma cabeça masculina cujo aspecto degradado se assemelha à quase ruína
dos ex-votos do interior do móvel. Qual seria o sentido de justapô-las assim?
130
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Destinos de Ex-Votos
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Figuras 1, 2 e 3
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As cabeças femininas expostas não foram encontradas pelo colecionador em algum local de devoção, como poderia ser presumido em se tratando
de ex-votos. No final dos anos 1990, Antônio Marques foi procurado pela viúva de um advogado que buscava se desfazer dos objetos que o marido deixara. Ela procurou o colecionador, que também atua como comerciante de arte,
para vender peças de artistas como Vitalino e Xico Santeiro e ainda para lhe
ofertar alguns itens gratuitamente, pois não seriam dotados de valor monetário. O colecionador aceitou os presentes e solicitou à viúva um preço para o
“lote” que formou através da reunião de outras coisas que lhe interessaram.
Quando Antônio se deparou com o par de esculturas de cabeças, logo
suspeitou que um dia elas foram ex-votos, apesar de serem plasticamente mais delicadas e realistas em relação ao recorrente aspecto estilizado dos milagres nordestinos. O fato de C1 conter uma grande ferida era um sinal claro de sua condição
enquanto milagre. O realce das agruras pelas quais podem passar o corpo do devoto é elemento recorrente nos objetos votivos anatômicos. Assim, nos locais de
exposição de ex-votos são freqüentes as esculturas de partes do corpo nas quais
se destaca um machucado, uma cicatriz, um curativo ou a marca de uma cirurgia.
Ao continuar a examinar as peças, o colecionador encontrou os seguintes dizeres na base de C1: “Cruz da Prêta - Parelhas”. Essa inscrição confirmou
sua suspeita de que ao menos aquela obra já teria sido um ex-voto antes de
ter ido parar na prateleira da biblioteca de um advogado em Natal. Os milagres podem conter inscrições por diversas razões. O nome do devoto pode ser
acrescentado à peça, bem como uma narrativa sobre a motivação para a oferta
do objeto ou ainda informações a respeito do momento e do local de deposição do objeto. “Cruz da Prêta - Parelhas” se encaixa nessa última possibilidade.
A inscrição poderia ter sido feita por quem produziu a peça, por
quem a ofertou ou mesmo pelo advogado que a utilizava como item de decoração, que antes de expô-la, teria se preocupado em registrar sua proveniência; uma forma de indexação, portanto. O que importa é que se tratava de
uma informação objetiva sobre o local da devoção no qual foi ofertado aquele ex-voto. O colecionador deveria se dirigir para lá caso almejasse encontrar outros exemplares tão singulares quanto aqueles que lhe foram doados.
Parelhas é o nome de uma cidade do interior potiguar onde provavelmente estaria a cruz onde foram deixados aqueles milagres. A inscrição passou
então a atuar como uma espécie de coordenada, um elemento que diz sobre
a posição de obras no espaço geográfico, particularmente quando é cruzada com o conhecimento da prática votiva. Ela não seria decodificada por alguém que desconhecesse que cruzes são locais de deposição de ex-votos.
Algumas linhas se fazem necessárias a esse respeito, considerando que
até então abordei os ex-votos sobretudo enquanto objetos concebidos para
exposição em salas dos milagres e espaços correlatos. Luis Saia cita o interior
dos estados nordestinos como a localização do “manancial” de milagres e foi
justamente nos “cruzeiros de acontecido” das imediações de cidades e vilas -
“Tacaratú, Itabaiana, Patos, Areias, Alagoa Grande...”44 - que ele recolheu a maior
parte da centena de ex-votos remetida a São Paulo para compor o acervo de pesquisas folclóricas da Missão de Pesquisas Folclóricas idealizada por Mário de Andrade. A narração sobre o primeiro encontro com os milagres nesse tipo de lugar
aborda o estado de conservação variado das peças e menciona, sem maiores desenvolvimentos, o critério de escolha: o interesse que elas despertaram em Saia.
Na cidade de Tacaratú, onde ficamos aboletados, visitando
um cruzeiro** ao ar livre, no alto de um morro próximo, achei
uma regular quantidade de peças, umas já completamente desfeitas pelas intempéries, outras meio queimadas e outras visivelmente novas. Colhi as que me pareceram mais interessantes.45
O grifo no trecho é do próprio autor, que esclarece em nota: “** Cruzeiro é o nome nordestino das cruzes que marcam o lugar onde alguém foi
assassinado ou morreu num acidente.”46 Contudo, alguns cruzeiros - erguidos em pontos altos das cidades, em montes e em morros - podem marcar a
ocorrência de outros tipos de eventos, como a celebração do aniversário das
localidades. Mas, de fato, os cruzeiros qualificados como “de acontecido” ativam a memória de eventos dramáticos. São cruzes localizadas em sua maioria
nas bordas de estradas para lembrar as mortes que ali ocorreram, sejam elas
relativas a acidentes automobilísticos, homicídios, suicídios ou outras causas.
As cruzes e os cruzeiros em questão são, portanto, monumentos fúnebres, formas de recordar os sujeitos envolvidos em “acontecidos”, os fatos cujo desenrolar escapa ao controle humano. Se logo após o episódio
trágico a comunidade improvisar uma cruz, quer seja com a madeira tosca que tiver ao seu alcance, de modo provável posteriormente ela será substituída por um exemplar confeccionado de pedra e cal e o local ainda poderá ser incrementado de modo a se tornar uma pequena capela votiva,
principalmente diante da ocorrência de feitos milagrosos atribuídos ao falecido.
Certas práticas realizadas nos cruzeiros de acontecido são corriqueiras
nos cemitérios, tais como o acendimento de velas, a oferta de flores e a realização
de orações nas proximidades de túmulos. No entanto, essas ações direcionadas
aos mortos comuns, visitados por sua família e por seus amigos, quando voltadas aos “mortos milagrosos” dizem respeito a um culto público, sendo acrescidas de prestações rituais específicas, dentre as quais se destaca a realização de
pedidos e o pagamento de promessas47. Nesse contexto, os ex-votos emergem
como objetos diacríticos que não só são importantíssimos no sistema de trocas entre devoto e santo, como também sinalizam para o observador externo a
presença de devoção em relação a um morto específico no ambiente cemiterial.
Podemos estender essa consideração relativa aos santos de cemitérios para os cruzeiros de acontecido. Nem todos estes últimos referem-se a fatalidades que culminaram em mortos especiais santificados, mas
em alguns há práticas coletivas de culto a partir das quais se pode inferir que naquele local houve algum evento ‘detonador’ de uma devoção.
A deposição de um milagre em uma cruz implica em deterioração mais
132
As Moradas dos Milagres: Percursos e
Destinos de Ex-Votos
_________________________
44
SAIA, op. cit., p. 10.
45
Ibid., p. 9.
46
Ibid, p. 9.
47
FREITAS, E. T. M. Memória,
Ritos Funerários e Canonizações Populares em Cemitérios
do Rio Grande do Norte. 2006.
Tese (Doutorado em Antropologia Social) - IFCS/UFRJ, 2006.
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48
FJA. (Natal, RN). Arte Popular na coleção de Antônio
Marques: catálogo. Natal, 2012.
(Col. Cultura Potiguar, n. 27).
rápida de sua materialidade, dada a exposição direta às condições ambientais.
Desse modo, esses ex-votos podem se mostrar menos atrativos do que aqueles
deixados nas salas dos milagres. A referência a um local como “Cruz alguma
coisa” pode, na verdade, ser relativa não apenas a uma cruz, mas a uma capela que foi erguida sobre ela ou em suas proximidades. Em decorrência disso,
nem toda cruz ou cruzeiro fica ao ar livre. Isso nos explica porque um ex-voto
coletado em uma cruz poderia estar bem conservado, para além da hipótese
dele ter sido retirado do local em questão muito rapidamente após a oferta.
Para explorar esta hipótese a contento é importante enfocar não só a
deposição de ex-votos, mas continuar prestando atenção aos momentos e gestos de retirada dos locais onde foram ofertados. Em uma praça localizada em
Natal-RN, a constante presença de ex-votos, flores e velas aos pés e na base
de uma estátua indica a presença de uma personalidade que incita práticas de
devoção. Trata-se de Padre João Maria, conhecido como o “santo dos natalenses”. A praça abriga ainda barracas diversas de comercialização de objetos. Uma
senhora que vende ex-votos de pano fabricados por ela, além de velas, também
recolhe imagens e milagres de madeira que são deixados na estátua. Em uma das
situações em que conversei com essa senhora, eu estava acompanhada por um
colecionador, que lhe pediu para guardar peças de madeira que poderiam lhe
interessar. Ela foi incisiva: “eu não tenho como esperar você passar de novo,
vendo o quanto antes o que pego aqui”. A observação no local de deposição
urbano e a céu aberto mostrou que, assim como se passa nas salas dos milagres, a
existência de pessoas que cuidam dos locais onde são deixados os ex-votos claramente influi na exposição dos mesmos, bem como na circulação posterior deles.
Diante do exposto, é possível elencar algumas variáveis para pensar a
formação de uma coleção de milagres. Há o fator “golpe de sorte”, por exemplo,
quando se visita um espaço sagrado num dia em que tenha sido ofertado um objeto interessante. É importante coletá-lo antes que outro colecionador ou curioso
se apoderem dele e ainda se antecipar a um possível descarte realizado para dar
espaço a novas ofertas dos devotos. Mas para que as circunstâncias conduzam a
um “achado”, é importante conhecer a dinâmica dos espaços de devoção: saber
quem os administra; quais são as políticas de descarte; os momentos de maior
afluxo de objetos (como as romarias e as festas do dia do santo); a tônica da oferta em cada local. A senhora da praça na capital do Rio Grande do Norte ou um
zelador de uma sala dos milagres de um santuário longínquo podem ser figuras
fundamentais para capturar ex-votos significativos e encaminhá-los às pessoas
interessadas nesse tipo de obra. As redes de relações, portanto, são fundamentais.
O fato de Antônio Marques ter sido seminarista em sua juventude lhe rendeu
muitos amigos padres, que vez ou outra lhe orientam sobre a existência de ex-votos
significativos. No catálogo da Casa dos Milagres48 há agradecimentos a vários religiosos. Quando o colecionador nota resistência de um pároco em fornecer peças,
pode recorrer ao seu círculo de amizades que compreende pessoas próximas
a autoridades eclesiásticas e solicitar cartas com textos que recomendem a
colaboração com sua empreitada. Foi apresentando esse tipo de credencial nos santuários que Antônio começou a coletar milagres no Ceará49. Atualmente a chancela oficial é permanente no caso do Santuário do Lima, em Patu. A retirada de ex-votos é autorizada a título de
colaboração com o trabalho de pesquisa permanente do colecionador.
Foi acionando suas redes de relações que Antônio descobriu que muitos
ex-votos da Cruz da Prêta haviam sido enterrados no passado, a mando de um
missionário que passara pelo local. Com isso, o par de esculturas ofertado pela
viúva - utilizado como pista para rastrear a existência da própria cruz - passou a
ser visto como sobrevivente da ação de sepultamento. A inscrição em uma das
cabeças obtidas em Natal foi o “detalhe revelador”50 que permitiu o aparentamento daquela peça com outras que estariam debaixo da terra em Parelhas.
A grafia de “Prêta” com acento circunflexo, como se usou até a década de 7051, indicava que aquela peça não era de fatura recente ou, no limite, teria sido esculpida por alguém que aprendeu a ler e a escrever de
acordo com uma normatização pretérita do português e que ainda a utilizava. A primeira opção era mais factível, provavelmente aqueles milagres teriam sido ofertados há algumas décadas e quem os recolheu o fez não muito após a deposição, posto que o estado de conservação das peças era bom.
Em meados dos anos 2000, de posse da informação do enterro dos
ex-votos, Antônio e um amigo - um comerciante de arte - procuraram o lugar do “sacrilégio” e se mobilizaram para que as peças fossem desenterradas. Homens foram pagos para trazer os ex-votos à superfície e encontraram
mais de cem exemplares. Mas por que a proeza da exumação foi necessária?
Acima fiz referência a descartes realizados para dar lugar a novos ex-votos. Em relação aos locais de deposição já abordados, tais como cruzes e cemitérios, certamente a questão da restrição de espaço é mais pronunciada nas salas
dos milagres, localizadas em santuários de grande afluência de devotos e, por extensão, de ex-votos. Geralmente os descartes acontecem antes das romarias, pois
é preciso liberar espaço para novos objetos. As formas de se desfazer das peças
são variadas. Elas podem ser queimadas, enterradas ou jogadas diretamente no
lixo. O fato dessa última solução não ser a opção mais frequente não é fortuito.
Como nos lembra Corbey52, é importante considerar que a destruição ou a “profanação” podem se constituir como parte essencial do ciclo
de vida de objetos rituais. Tais atos neutralizam o poder das coisas, potencialmente danoso quando elas circulam por espaços imprevistos ou caem
nas mãos erradas. Nessa chave de leitura, o ex-voto fora do local sagrado é perigoso e ameaçador de uma ordem. A destruição emerge então com
um ato de precaução, pois exclui a possibilidade de circulação indevida53.
No entanto, é importante vislumbrar outras perspectivas. No entender
de alguns, quando os santuários jogam ex-votos fora não estão preocupados em
neutralizar o poder dos objetos, mas sim em pragmaticamente dizer que eles não
são mais do que mera matéria. Por essa linha de raciocínio, não há problema algum
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As Moradas dos Milagres: Percursos e
Destinos de Ex-Votos
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49
Interessante notar que se trata do
mesmo estado onde Jacques Van de
Beuque, criador da Casa do Pontal, iniciou sua coleção de ex-votos.
A atenção aos “pormenores mais
negligenciáveis”, como propõe Ginzburg (1989), é a chave de funcionamento do “paradigma indiciário” que
informa o modo de atuação de médicos, connaiseurs de arte e detetives.
50
51
Segundo Azeredo (2008), o acento circunflexo em “prêto” foi usado no Brasil até 1971. Só nesta década foram feitas as modificações
sugeridas no Acordo Ortográfico
de 1945. AZEREDO, J. C. (Coord.). Escrevendo pela nova ortografia. São Paulo: Instituto Antônio Houaiss/Publifolha, 2008.
CORBEY, R. Destroying the graven image: religious iconoclasm on
the Christian frontier. Anthropology Today, v. 19, n. 4, p. 10-14, 2003.
52
53
Quando Luis Saia indagou ao
“guia” que lhe levou até um cruzeiro porque os ex-votos eram
depositados naquele local, ouviu
a seguinte resposta: “- Porquê o
Cruzeiro guarda o milagre, senão a doença fica por aí.” (SAIA,
op. cit, p. 15, grifo no original).
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em transformá-los em lenha, por exemplo. O fogo, tantas vezes utilizado como rito purificador, nesse caso não significa nada mais que um meio de aproveitamento de uma fonte de energia.
Por outro lado, os relatos de destruição dos ex-votos remetem ao combate
à superstição e às práticas pagãs que sempre permearam o catolicismo. Os ex-votos
da Cruz da Prêta teriam sido enterrados a mando do missionário sob a alegação que
“seriam coisa do diabo”. Na concepção de Antônio e seu amigo, entretanto, eram
obras de arte que foram literalmente sepultadas. A indignação com o ultraje levou-os
até as autoridades eclesiásticas locais, que lhes autorizaram a realizar a exumação.
A postura da Igreja não é propriamente iconoclasta. É ambivalente,
pois envolve tanto destruição quanto chancelamento da “salvação” de ex-votos. É sabido que após o Concílio Católico Vaticano II (1962-1965), a instituição passou a reforçar a hierarquia eclesiástica, buscando uma Igreja mais
cristocêntrica e evitando que templos fossem povoados de imagens, como
era muito comum no catolicismo brasileiro de herança portuguesa, acentuadamente afeito ao culto aos santos. A ‘limpeza’ decorrente das orientações
oficiais não implicou numa mesma destinação para tudo que não era mais
visto como necessário no novo modelo de Igreja mais calcado na espiritualidade. Ao serem tomados como obras de arte sacra, muitas imagens de santos encontraram abrigo dentro de museus (por vezes montados nas próprias
igrejas). Por que o mesmo não se passou com os objetos ofertados a eles?
As ambiguidades e as hesitações que permeiam a destinação dos ex-votos dizem respeito ainda à reflexão sobre a propriedade desses objetos. A quem
eles pertenceriam? Aos devotos que as ofertaram? Aos administradores dos santuários onde foram deixados? Aos santos? À igreja? Isso não é uma questão para
Antônio, posto que, segundo ele, elas teriam como destino certo a destruição,
podendo ir para diretamente para o lixo ou ainda, serem enterradas ou queimadas
quando atingirem um volume que demande a retirada para dar espaço a novas
ofertas. Entre os extremos da destruição e da conservação, observa-se a reconversão em mercadoria no próprio âmbito de alguns santuários. Os compradores
são devotos, mas também podem ser colecionadores e comerciantes de arte.
Mas voltemos à trajetória dos ex-votos desenterrados. Após receber as
peças que tinham acabado de voltar à superfície, Antônio as tratou para interromper o processo de degradação em curso. Depois disso, expôs os milagres salvos
da destruição na parede da garagem de uma de suas casas, onde outros ex-votos
já participavam da decoração. As obras exumadas foram dispostas em uma fileira no alto e o aspecto corroído delas deixava evidente que passaram por um
percurso diferenciado em relação aos demais objetos que preenchiam a parede.
A configuração da exposição privada já anunciava o apreço do colecionador por aqueles ex-votos. Enquanto muitos outros se encontravam em
caixas ou eram armazenados de outra forma na casa, os que foram desenterrados eram mostrados quase que como recepcionistas de quem chegava na
casa. Além da trajetória singular, alguns deles também se diferenciavam pela
atribuição de autoria. Ao observar as feições de uma das cabeças, o colecionador identificou características da obra de Salomão Fontes Rangel, também
conhecido como “Santeiro de Tenório”, numa referência à cidade onde viveu
no norte do estado da Paraíba, quase na divisa com o Rio Grande do Norte.
Os cabelos “escorrendo” para a testa das imagens conformam um
dos principais detalhes reveladores da presença de autoria de Salomão. “Isso
é muito Salomão”, me dizia Antônio cada vez que me mostrava as peças do
santeiro, apontando para a parte em que os cabelos desenhados com tinta alcançam as testas das faces policromadas. Além do tratamento semelhante aos cabelos, o colecionador captou ainda similitudes no tratamento facial, na solução plástica do pescoço, no entalhe das peças como um todo.
Esse ‘repertório autoral’ que veio à luz por meio da comparação entre C1, C2 e C3 também foi encontrado em imagens de santos do acervo do
colecionador. Apesar de serem mais valiosas em termos monetários, estas
foram preteridas na exposição em relação aos ex-votos que indicaram o caminho para a Cruz da Prêta. O par de cabeças esculpidas por Salomão que
Antônio “jamais imaginou que encontraria em Natal” foi exibido juntamente com um exemplar de traços semelhantes e igualmente atribuíveis ao santeiro, porém desfigurados pela ação do enterramento ocorrido em Parelhas.
Depois desta exposição, a queima ou destruição dos objetos votivos não pode mais ser tolerada. A título de ilustração do que não deve ser feito com eles, dezenas de peças
encontram-se expostas, em uma vitrine especial, na nave central da capela. São ex-votos de aparência calcinada, decorrente do fato de terem sido enterrados, há quase meio século, na
“Cruz da Prêta”, na Cidade de Parelhas – RN, segundo relato
da comunidade local. Recentemente foram exumados e, hoje,
estão presentes na exposição. Nesse mesmo conjunto encontram-se duas cabeças, em perfeito estado de conservação, pois
foram coletadas no mesmo lugar – Cruz da Prêta – bem antes
da ação iconoclástica e de desrespeito à cultura do povo54.
Como se vê, o colecionador/curador justapôs ex-votos em diferentes
estados de conservação para mostrar o “que não deve ser feito com eles”. Nesse
contexto, o foco nos milagres desenterrados ilumina não só a respeito da inflexão
na vida ritual desses objetos, mas também evidencia como eles, ao serem levados
para um ambiente museológico, tornam-se defesas incontestes de um discurso de
“salvação”. Assim, salva-se a arte que passa despercebida aos olhos de muitos e
denuncia-se o desrespeito à “cultura do povo”, ou seja, a intolerância ou, no melhor dos casos, a “reserva” da “Igreja Oficial” em relação às práticas do “catolicismo popular”, que resulta na destruição constante ou esquecimento dos ex-votos.
A passagem do cultual ao cultural não foi feita de forma abrupta, pois
não se pretendeu apagar a dimensão devocional daqueles objetos. Nesse processo, a assinatura do colecionador/pesquisador/curador lhes foi acrescentada,
de modo a lembrar que eles só estão ali porque foram selecionados, recolhidos, salvos, tratados, guardados e enfim, apropriadamente expostos. Na casa
do colecionador, de certo modo, a narrativa que se queria imprimir ao ex-voto não se completava. É na antiga capela / então exposição / futuro museu
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Destinos de Ex-Votos
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54
CARVALHO JR., A. M. A dimensão estética da religiosidade potiguar. In: FJA. Casa dos Milagres
- Santos e ex-votos na Coleção de
Antônio Marques: catálogo. Natal: FJA/Secretaria Extraordinária
de Cultura, 2013. (Col. Cultura Potiguar, n. 45), p. 21, grifos nossos.
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55
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franchissements. Les objets du culte
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l’artification: Enquêtes sur le passage à l’art. [s.l.]: Éditions d’EHESS,
2012. p. 47-62.
56
APPADURAI, A. (Org). A
vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva
cultural. Niterói: EdUFF, 2008.
que ela ganhou forma, pois ali a ambiguidade objeto votivo/obra de
arte foi reiterada e celebrada, de modo a expor tanto a exuberância material de uma prática, quanto a especialidade do olhar que a captou.
Como bem notou Notteghem55, a pesquisa sobre reutilizações de objetos de culto católicos e suas transformações ontológicas é um espaço privilegiado para verificar a pertinência da noção de “biografia do objeto” inaugurada por Appadurai56, contudo, também é ocasião de percebê-la como
indissociável das [biografias] das pessoas. Assim, convertem-se não só objetos, mas também aqueles que se engajam com as coisas e ainda as instituições onde eles se movem. A proposição da autora de que os objetos são o
lugar de mobilização dos indivíduos para redefinir sua relação com a religião
é particularmente fértil para o contexto que pesquisei, no qual um ex-seminarista torna-se colecionador, professor, marchand, curador... e, significativamente, “sacerdote das artes”, como ele vez ou outra é abordado em reportagens
sobre sua coleção. Antônio Marques tornou público seu devotamento à arte
do povo de forma a atentar os visitantes da Casa dos Milagres para seu papel
de “guardião”. Tal mostra foi uma forma de dispor uma argumentação, haja
vista que alguns itens da exposição foram mostrados como especialmente representativos das ações do colecionador para salvar obras de arte da destruição.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
57
GEARY, P. Furta Sacra: thefts of
relics in the Central Middle ages. Princeton: Princeton University, 1990.
58
VAN GENNEP, A. Os Ritos de
Passagem. Petrópolis: Vozes, 1978.
Se os milagres podem transitar por diversos espaços, de caráter sagrado
ou não, quais são os (des)caminhos que os levam a encontrar morada em uma
coleção? Procurei demonstrar como os gestos de coleta influem nas mudanças
de estatuto e nas maneiras de ver os objetos. A trajetória dos ex-votos da vitrine
especial da Casa dos Milagres pode ser vista como uma verdadeira hagiografia do
objeto. A exumação de cabeças e milagres afins nos aproxima de outras formas
de ratificação da autenticidade das coisas sagradas. Na lógica do Furta Sacra57, as
coisas difíceis de encontrar, mas que se deixam apanhar, são aquelas que de
alguma forma entraram em comunicação com os autores da façanha e não ofereceram resistência, atribui-se poder ao próprio objeto e ao modo de obtê-lo.
Obviamente desenterrar ex-votos é uma ação que causa suspeição, pois
pressupõe o contato com coisas impregnadas de forças diversas, potencialmente
maléficas. Ao menos desde Van Gennep58 os ritos de passagem foram investidos
da função de reduzir os efeitos nocivos característicos dos processos de mudança
do estado de pessoas e coisas. Em vista disso, e considerando a rentabilidade de ‘ritualizar’ os processos envolvidos nos trânsitos de objetos que já estiveram envolvidos em relações de devoção, entendo a exposição como rito de mostrar. A Casa dos
Milagres foi a oferenda instrutiva do colecionador para propalar sua visão. Afinal, a
boa magia franqueia os mistérios a todos, e a má procura simplesmente mitificar.
A exposição dos milagres de Antônio Marques era, nos seus termos, respeitosa. Afinal, ele não profanou os objetos ao modo de artistas como Farnese de
Andrade. O colecionador expôs os ex-votos de forma muito semelhante aos arranjos
encontrados nos espaços devocionais. Pouco após a inauguração da Casa dos Milagres, o então Secretário de Turismo do RN chegou a sugerir que a antiga capela, agora reconfigurada, fosse novamente consagrada pelo Bispo, assim o espaço
voltaria a ser palco de missas e rezas de terços. Alguns organizadores de excursões
de romeiros passaram a utilizar a mostra como primeira parada da jornada ritual
que iniciavam em direção a algum dos muitos santuários do RN59. Ex-votos chegaram a ser levados para deposição na Casa dos Milagres, tanto por devotos, que
ali tinham a oportunidade de renovar os vínculos com seus santos de devoção,
quanto por artistas, interessados na exposição pública de suas peças. Assim, confrontando a concepção corrente de que escultores não gostam de associar seu
nome à produção de ex-votos, o colecionador exibiu belos milagres ‘assinados’.
O surpreendente incremento do acervo a partir da exposição foi interrompido em 2014, quando a Casa dos Milagres deixou de estar diariamente
aberta ao público. A esperada transformação da mostra em Museu do Ex-voto
se tornou inviável em função da falta de apoio governamental para a continuidade das atividades. Com a mudança de direção do órgão responsável pela
cultura no RN, o suporte da FJA à iniciativa – que já era considerado exíguo
– se tornou praticamente inexistente. A permanência da capela fechada por
longos períodos culminou na descoberta de uma infestação de cupins. Parte do mobiliário reaproveitado de outros equipamentos culturais não resistiu
aos insetos. Os ex-votos e demais objetos do acervo, em sua maioria, feitos
de madeira resistente a pragas, não chegaram a ser danificados. A desintegração literal de suportes da exposição foi vista como prenúncio desanimador
do que estaria por acontecer com os santos e milagres. Em 2017, uma ameaça mais concreta das imagens, cabeças e obras afins expostas na CM se tornarem “comida de cupim” levou Antônio Marques a desmontar a exposição e
retornar com as peças para casa. A salvação da destruição é sempre provisória.
Em sua difundida definição de “Coleção”, Pomian opõe o destino incerto
dos objetos oriundos de coleções particulares ao daqueles guardados sob o cuidado das instituições museológicas: “Contrariamente à coleção particular que, na
maior parte dos casos, se dispersa depois da morte daquele que a tinha formado
e sofre as repercussões das flutuações da sua fortuna, o museu sobrevive aos seus
fundadores e tem, pelo menos em teoria, uma existência tranquila.”60 Em função
do exposto, fica nítido que não é pertinente abordar as biografias dos objetos em
termos de descontinuidade tão delineados. A propósito, a destruição do Museu
Nacional e as notícias praticamente diárias sobre museus que estão ameaçados de
encerrar suas atividades em função da falta de recursos evidenciam que a “existência
tranquila” no museu, de que fala Pomian, é praticamente uma morada imaginária.
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Destinos de Ex-Votos
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59
Os comerciantes do referido centro inclusive manifestaram seu descontentamento com a “concorrência desleal” gerada pela exposição.
Ao gastarem tempo na apreciação
da mostra, os turistas estariam deixando de comprar souvenirs e
produtos afins vendidos nas lojas.
60
POMIAN, K. A Coleção. In:
Enciclopédia Einaudi. v. 1.
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Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 1984, p. 82.
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