o
'..eiras
REVISTA DO PROGRAMA
DE. PÓS-GRADUAÇÃO E.M LETRAS
y
Universidade Federal de Santa Maria
CAPA
SOBRE
ACESSO
CADASTRO
PESQUISA
AT UAL
PP6L UFSM
ANTER IORES
CHAMADAS
Capa > Edições anteriores > n . 18/19
n. 18/ 19
(Jan./ Dez. 1999) - Edição Especial- Quinto Centenário
Sumário
PDF
2-4
EXPEDIENTE
Apresentação
PDF
9-27
APRESENTAÇÃO
Theodore Robert Young, Santiago Juan- Na
PDF
7-8
NOTA PRÉVI A
Pedro Brum Santos
PDF
29-44
COI SAS E RETRATOS DO BRASIL
Alamir Aquino Corrêa
NOVA S CONQUI STAS E OUTROS GALEÕES : BREVE HISTÓRI A DE NAVEGAÇÕES e セQ@
Paulo Motta Oliveira
MARES DE PAPEL
PDF
45-71
PDF
73- 100
A SOLIDÃO COMO RI QUEZA E COMO POBREZA
Lucia Helena
MEMÓRIA CULTURAL E CONSTRUÇÃO DO CÂNONE LITERÁRI O BRASILEIRO
Luiz Roberto Cairo
PDF
101- 119
A VI OLÊNCIA CONSTITUTIVA: NOTAS SOBRE AUTORITARI SMO E LITERATURA NO BRASIL
Jaim e Ginzburg
PDF
121- 144
FICÇÃO E FUTEBOL: CULTURAS EM セQP
Pedro Brum Santos
PDF
145- 165
v i m en
t o@
ANTROPOFAGI A, TROPI CALISMO, E COMO ERA GOSTOSO MEU FRANCÊS
Theodore Robert Young
PDF
167- 188
TRES VISIONES DE AMERICA
Eduardo Subirats
PDF
189-200
LOS セQ t os@
CULTURALES DE LA OTREDAD: REVI SI ONES CONTEMPORÁNEAS DE LOS NAUFRAGIOS DE CABEZA DE VACA
Santiago Juan- Navarro
PDF
201-224
LA MARI NA DE "CEREMON IAS DEL ALBA" : UNA
セQuj
e r@
FRENTE AL ESPEJO DE SU TIEMPO
Gladys M. Ilarregui
PDF
225-245
DAIMÓN Y EL EROTISMO DE LA CONQU ISTA
Terry Seymour
PDF
247-267
LA PENETRACIÓN DEL TEXTO : SEUDOCRÓNI CA TESTIMON IAL EN lA NOCHE OSCURA DEL NINO AVILÉS DE EDGARDO RODRÍ GUEZ JULIÁ VISTA DESDE INFORTUNIOS
DE ALONSO RAMÍREZ DE SIGÜENZA Y GÓNGORA
Erik Camayd-Freixas
PDF
269-302
LA HISTORIA COMO BUFONADA: PARODI A, RISA E HISTORIA DEL d e s c ubr
Magdalena Perkowska-Áivarez
PDF
303-336
I SSN Letras: 1519-3985
I SSN Letras on- line: 2176- 1485
Endereço eletrônico: www.ufsm .br/ periodicoletras
i セQ
e n t o@
EN MALUCO DE NAPOLEÓN BACCINO PONCE DE LEÓN
Pedro Brum Santos, Santiago Juan-Navarro
Theodore Robert Young
(Orgs.)
LETRAS
Nos 18 e 19
Edição Especial
Quinto Centenário
REITOR
Paulo José Sarkis
DIRETOR DO CENTRO
Robson Pereira Gonçalves
COORDENADOR DO CURSO DE MESTRADO EM LETRAS
Pedro Brum Santos
COMITÊ CIENTÍFICO
ESTUDOS LINGÜÍSTICOS
Eni Pulcinelli Orlandi
José Luis Fiorin
Luiz Paulo Moita Lopes
Maria José Rodrigues Coracini
ESTUDOS LITERÁRIOS
Fábio Lucas
Lúcia Helena
Maria Luíza Ritzel Remédios
Regina Zilberman
COMISSÃO EDITORIAL
Amando Eloina Scherer
Désirée Motta Roth
Jaime Ginzburg
Miriam Rose Brum de Paula
Pedro Brum Santos
REVISÃO DOS TEXTOS
Pedro Brum Santos
EDITORAÇÃO
Simone de Mello de Oliveira
PROJETO GRÁFICO DA REVISTA
Luiz Vida! Negreiro Gomes
Rodrigo Silveira
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS) .
3
PERIODICIDADE
Semestral
ENDEREÇO
Universidade Federal de Santa Maria
Curso de Pós-Graduação em Letras
Centro de Educação
Compus - Camobi
97119-900 - Santa Maria, RS. Brasil
Fone/fax: Oxx 55 220 8025
E-mail: mletras@cal.ufsm.br
http:WW'N.ufsm.br/mletras
LETRAS I Universidade Federal de Santa Maria, Centro de Artes e
Letras, Curso de Mestrado em Letras- Nos 18 e 19 (Jan./Dez. 1999]
Santa Maria: UFSM/CAL. 1999
Semestral
CDD:405
CDU: 8(06]
Esta é uma obra que conta com o apoio institucional da
CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior
4
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS) .
NOTA PRÉVIA
Esta edição especial de Letras, correspondente aos números l 8 e
19, reúne abordagens a respeito das tradições culturais e literárias das
Américas portuguesa e hispânica. Publicamente, convencionamos que a
oportunidade da edição é o quinto centenário do Brasil português,
transcorrido no ano 2000. Particularmente, sabemos que a iniciativa
nasceu do contato que estabelecemos com o professor Theodore Robert
Young, da Florida internationai üniversity, a partir de sua vinda a Santa
Maria em l 999 para participar do Seminário promovido por nosso grupo
de pesquisa, Literatura e História.
Depois disso, tocamos o projeto. Vencemos as distâncias físicas
através do uso constante do correio eletrônico e tivemos sempre
próximos de nós vários colegas - tanto daqui como de lá - peças
fundamentais para que o quadro fosse composto com a abrangência .e
com a qualidade que imaginamos para a empreitada.
A revista, enfim, foi de fato organizada por Theodore e por seu
colega Santiago Juan-Navarro, os quais se responsabilizaram pelos
articulistas de fora, fizeram as traduções necessárias do inglês para o
espanhol, definiram a ordem dos textos e assinam a apresentação
propriamente dos conteúdos. Por aqui, o colega Jaime Ginzburg, da
üFSM, foi responsável pelos convites e contatos com os professores
brasileiros, cabendo a nós a revisão final do material. De sorte que eu e
Jaime garantimos a retaguarda brasileira para a organização do
Theodore e do Santiago, nesta experiência tão apropriadamente
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
7
americana, seja pela natureza da proposta seja pela execução do
trabalho.
Pedro Brum Santos
Professor do Curso de Mestrado em Letras - UFSM
8
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
APRESENTAÇÃO
Theodore Robert YOUNG
Santiago JUAN-NAVARRO
Sobre as Águas e Sobre as Terras: O Encontro Descoberto
As navegações européias, e sobretudo o Encontro entre os povos
da Europa e das Américas, transformaram o mundo de uma forma única
na história humana.
Os empreendimentos ultramarinos dos europeus
constituíram um deslocamento de seres humanos e de culturas numa
escala nunca vista antes ou depois. O ano 2000 marca os 500 anos da
chegada oficial dos portugueses nos terras agora conhecidas pelo nome
"Brasil".
Portanto, comemora-se· o grande aventura expansionista e
mercantilista dos portugueses que resultou no criação desta noção. Ao
mesmo tempo, lamento-se o invasão de europeus em territórios dos
povos indígenas, especificamente neste coso dos tribos tupi-guaronis.
'
Também questiona-se o identidade nacional que resultou deste
Encontro, deste choque de culturas, semelhante às questões de
identidade em todo o hemisfério.
Poro e,scritores e pensadores dos
culturas de base européia nos dois lodos do oceano Atlântico, o
chamado descobrimento dos Américas é também um ato de autodescobrimento, evocando topos da consciência profundo européia
como o paraíso perdido, o locus amoenus, o eldorado.
As conseqüências deste Encontro são variadas e complexas, e
incluem pessoas de todos os continentes. De fato, pode-se dizer que o
LETRAS Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
9
Encontro continua, especialmente nas Américas mas também no mundo
inteiro, evidente no tão comentado processo de "globalização" e mais
sutilmente nas misturas de raças e de culturas registradas no Brasil nas
suas expressões culinárias (como o espaguete italiano de origem
chinesa), sociais (como o futebol britânico mundialmente ligado ao único
país tetra-campeão) e lingüísticas (como os topônimos "lguaçu",
"Rondônia" e "Novo Hamburgo") que, tomadas em conjunto, formam
esta imprecisa noção de identidade nacional.
O período entre 1992 e 2000 deu
à luz uma quantidade incontável
de produção cultural, entre literatura, cinema, estudos, congressos, etc.
É quase impossível calcular o volume de material bibliográfico produzido
como resultado desta reflexão em massa dos 500 anos da chegada de
Colombo e de Cabral nas Américas, apesar dos imensos esforços de
James Axtell e David Block no primeiro caso. Não obstante este oceano
de papel, um conceito percorre todos os debates da época:
revisionismo.
Em comparação com as comemorações acríticas
anteriores, as considerações atuais questionam os clichês e estereótipos
propagados sobre os eventos históricos ocorridos no mar e na terra. O
próprio termo utilizado para designar o evento tem passado por uma
ótica mais crítica: do "descobrimento" aplaudido (que por sua parte era
o
"achamento"
colonização/
de
CaminhaL
conquista/
ao
dominação/
encontro,
invasão,
subjugação/
choque/
transculturaçãol
contaminação/ extermínio/ genocida, ethnocidal ecoc)da (Oiivier 92). O
papel dos povos indígenas/ por exemplo/ tem mudado de objeto a
sujeito do debate/ gerando uma mudança de perspectiva e ênfase (vide
Barreiro/ Griml Bamonte e Della Marina/ Gentry e Grinde). As últimas duas
décadas viram o surgimento da crítica pós-colonial, dos estudos culturais,
LETRAS Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
e do Novo Histericismo, o que permite uma reconsideração do assunto
desde o ponto de vista do sujeito colonizado em vez da metrópole
colonizadora. Presenciamos a desmitificação das histórias e dos valores
que formavam a base da visão eurocêntrica do fenômeno do Encontro.
Os ensaios aqui reunidos tratam de vários aspectos da produção
literária referente ao Encontro. Formam dois grupos: os das letras
lusófonas e outros das letras hispanófonas, refletindo a heterogeneidade
ibero-americana.
Por enfocarem a América Latina, estão tanto em
português quanto em espanhoL e a temática vai do cânone literário
brasileiro até ao futebol, passando pela conquista do México e as falsas
crônicas caribenhas, entre outras perambulações.
Esta diversidade
reflete a grande produção acadêmica provocada pelos 500 anos de
Colombo e de CabraL que por sua parte foi acompanhada por uma
proliferação semelhante de narrativa histórica ao nível popular.
Romances, contos, poemas, e filmes sobre o Encontro invadiram o
mercado cultural inter-americano. Em casos como o do Novo Romance
Latino-Americano, alguns críticos têm sugerido que a narrativa histórica
tor:nou um lugar de destaque justamente como conseqüência do Quinto
Centenário (Menton).
Escritores e cineastas nos dois lados do Atlântico
estão tentando repensar a maneira de retratar o Encontro, um ímpeto
refletido também nas pesquisas .acadêmicas.
O estilo jornalístico e a
recepção popular da trilogia de Eduardo Bueno
A Viagem do
Descobrimento: A_ Verdadeira História da Expedição de Cabral;
Náufragos, Traficantes e Degredados: As Primeiras Expedições ao Brasil; e
Capitães do Brasil: A Saga dos Primeiros Colonizadores - confirmam esta
tendência, como também o aparecimento de edições de textos
históricos como Os Três Únicos Testemunhos do Descobrimento do Brasil,
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
organizado por Paulo Roberto Pereira. É também o caso no cinema, seja
a paródia Carlota Joaquina. Princesa do Brasil de Caria Camurati, seja o
nouveau-noir Terra Estrangeira de Walter Salles Jr. e Daniela Thomas.
Os primeiros ensaios destacam o Brasil e a colonização
portuguesa. Alamir Aquino Corrêa, em "Coisas e retratos do Brasil", faz
um "pequeno passeio pela literatura brasileira" enfocando como a
apresentação do ambiente sócio-físico funciona como uma qualidade
nacionalizante. Trata-se de um breve resumo do cânone de obras que
retratam o Brasil. Parte de Pera Vaz de Caminha e destaca a herança
estudo passa por José de Anchieta, Manuel da Nóbrega e o período
colonial; pelo barroco e os louvores da terra; pela postura neoclássica de
defesa consciente da terra; pelo romantismo que busca no povo o
"substrato fundamental para a criação artística"; por Machado de Assis e
os realistas, enfocando a emergente sociedade burguesa; e pelo
modernismo de 1922, que o autor considera "politicamente nacionalista".
Em "Novas conquistas e outros galeões: breve história de
navegações em mares de papel", Paulo Motta Oliveira enfoca o tema
das navegações entre os saudosistas do período "fin-de-siécle".
O
estudo demonstra a importância do empreendimento ultramarino na
consciência nacional portuguesa até a virada do século XX, seja para
um Alexandre Herculano, que considera as navegações produto de uma
monarquia corrompida, seja para um Teixeira de Pascoaes, o poeta do
"navio Portugal" que vai "atingir conquistas muito superiores às já
realizadas".
O autor analisa as perspectivas contrastantes de todo um
grupo de escritores e pensadores portugueses, que no entanto
consideram que as navegações constituíam a identidade nacional
12
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
portuguesa. As "conquistas" ultramarinas servem como paradigma quase
que permanente para a orientação política e cultural de Portugal, de
forma paralela e inversa à situação no Brasil. Oliveira destaca uma
declaração de Camilo Pessanha, para quem o significado das grandes
navegações ainda não se completou. Este processo de redefinição é o
enfoque da presente coletânea.
Um dos momentos mais estratégicos na tentativa de definir a
identidade nacional brasileira foi o período romântico. Ao se declarar
independente de Portugal, o Brasil teve que buscar uma base para
distingir o brasileiro de hoje do português que ele era ontem.
Em "A
solidão como riqueza e como pobreza", Lúcia Helena enfoca a obra de
José de Alencar e a construção da cidadania, especificamente a
''vontade-de-ser-nação" das elites da época. A autora afirma que até
então a nacionalidade brasileira era "uma hipótese encravada na
nacionalidade portuguesa transplantada [... ] para terras tropicais".
Segundo ela, as origens desta diferenciação vêm do começo do século
XIX quando de súbito o país se transforma em corte e reedita ao nível de
um discurso nacional a experiência ficcional de Robinson Crusoe, criada
pelo inglês Daniel Defoe em 1719: "o mito do indivíduo que necessita
criar do nada a civilização".
Informado pelo Crusoe de Defoe e pelo
"homem natural" do francês Rousseau, Alencar cria personagens que de uma forma óbvia (em O Guarani e Iracema) ou de uma forma mais
sutil (em A Víuvínha e Senhora) - manifestam as dúvidas do novo país
diante das incertezas do futuro: "a procura de desprender-se do
complexo colonial de que fizera parte vincula-se aos destinos dos
personagens". A invenção da comunidade imaginária brasileira toma
lugar neste período, produto do culto da independência individual
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (RS).
13
mantido pelos românticos: o espírito da liberdade do ser humanc
funciona como modelo para a auto-identificação do caráter naciona
brasileiro independente de Portugal.
É interessante notar que os
portugueses na mesma época lidavam com questões semelhantes,
como indica Paulo Motta Oliveira,
A questão da identidade também é abordada por Luiz
Roberto Cairo. Em "Memória cultural e construção do cânone literário
brasileiro", o autor focaliza o tema sob a perspectiva da formação da
história da literatura. Observa que o cânone nacional encontra suas
primeiras sistematizações nos românticos da primeira metade do século
XIX, Esses, contrariando exemplos de outras literaturas 13mergentes,
valorizaram a diferença em detrimento da semelhança em relação à
tradição clássica do colonizador. A prática encontra respaldo em uma
relação tensa entre colonos e reinóis, cujos registras literários já se acham
no seiscentista Gregório de Matos. O reforço da diferença, no entanto, foi
sugerido
pelos
próprios
europeus
que aconselhavam
os
jovens
românticos da nação recém fundada sobre as bases que deveriam
nortear a nacionalidade da literatura. Cairo lembra que sob esse ideário
romântico surgiram os primeiros bosquejos de história literária nacional,
aos quais se somaram os trabalhos de historiadores e críticos estrangeiros,
salientando a
importância que teve o periódico como veículo
preferencial de divulgação. Em seguida, o autor apresenta uma suma
das principais publicações que veicularam a referida história em meados
do século XIX. Destaca que, assim, críticos românticos arquitetaram uma
História da Literatura Brasileira que veio a ser construída pelos críticos
realistas brasileiros. Conclui o artigo com a releitura de pontos pinçados
14
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
do discurso da aludida crítica realista, em particular das idéias de Araripe
Jr., Sílvio Romero e José Veríssimo.
Em "A violência constitutiva: notas sobre autoritarismo e literatura no
Brasil", Jaime Ginzburg estuda a desumanização do ser humano oprimido
pelo autoritarismo. evidente na literatura brasileira.
Ele afirma que os
escritores fundamentais do cânone literário brasileiro acentuam o caráter
problemático e agônico da condição humana: "a condição da
subjetividade é atingindo pela opressão sistemática da estrutura social,
de formação autoritária". Ginzburg refere-se a Paulo Sérgio Pinheiro que
identifica como raiz a falta de ruptura entre o absolutismo colonial e o
absolutismo das elites posterior à independência e à proclamação da
República. Ginzburg vê a história do país como um trauma e declara que
a representação literária desta experiência implica uma "renúncia aos
modos convencionais da representação" no texto. Ele cita a noção de
Theodor Adorno segundo a qual antagonismos da realidade se
expressam como antagonismos formais, dando como exemplo as obras
de Machado de Assis, Guimarães Rosa. Clarice Lispector. Carlos
Drummond de Andrade e Graciliano Ramos, entre outros. Portanto,
elementos históricos como a inquisição, o escravismo exploratório, a
iepiessão política e outiOS acontecirnentos rnotivam a fiagíT,entação
literária moderna.
Em "Ficção e futebol: culturas em movimento", Pedro Brum Santos
・セエイ@
o esporte e a literatura em termos de identidade
nacional brasileira.
Há muitos estudos sobre o futebol e a sociedade,
estuda a relação
principalmente tratando da violência no futebol europeu (por exemplo
Giulianotti, Bonney, e Hepworth) mas também alguns enfocando as
ligações entre o esporte e o caráter nacional, como o estudo
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS].
15
psicoanalítico do futebol argentino de Suárez-Orozco, e no caso do Brasil
a coletânea organizada por Roberto DaMatta, Universo do futebol:
esporte e sociedade brasilera, além do estudo monográfico de Janet
Lever, Soccer Madness. Aqui Santos examina um elemento a mais: o
vínculo entre a identificação cultural e o seu tratamento na literatura
Ele destaca a resistência inicial ao_ fenômeno estrangeiro,
nacional.
como os ataques literários ao futebol por ser "estranho às origens
brasileiras" por parte de Lima Barreto e outros na década de 1920, e a
profissionalização do esporte sob o regime de Vargas na década de
1930, apesar do clima anti-futebolista no interior na mesma época
retratado por Graciliano Ramos.
Santos traça a evolução do esporte
bretão ao esporte brasileiro por excelência passando pela influência dos
imigrantes italianos em São Paulo, vista na obra de Alcântara Machado,
e a eventual incorporação desses e de outros imigrantes à identidade
cultural brasileira. Ele enfatiza o papel da popularização decorrente em
grande
medida
da
"paulatina
apropriação
pelos
veículos
da
comunicação em massa". No entanto, Santos reconhece o verdadeiro
aspecto de cultura popular do futebol no Brasil, indicando que é por isso
que funciona como base para a reprodução de dramas humanos no
meio literário.
O estudo de Theodore Robert Young, "Antropofagia, tropicalismo, e
Como era gostoso meu francês", trata da construção do Outro no
período colonial representada no filme de Nélson Pereira dos Santos.
Young analisa como o cineasta utiliza a estética artística do tropicalismo
da década de 1960 para questionar tanto o período colonial histórico
quanto
o
período
contemporâneo.
O
autor
argumenta
que
essencialmente Pereira dos Santos "canibaliza" a estilística tropicalista de
16
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
Caetano Veloso e outros de modo parecido com a proposta do
"Manifesto Antropológico" de Oswatd de Andrade, da década de 1920.
O artigo enfoca a justaposição da história "oficial" com uma reinvenção
irreverente do passado colonial desenvolvida por Pereira dos Santos. Em
última análise, Young tem como objetivo revelar as implicações políticas
do tropicatismo como reação ao regime militar autoritário das décadas
de 1960 e 1970.
O primeiro ensaio do segundo grupo, "Tres visiones de América" de
Eduardo Subirats visa a contextualizar interpretações contemporâneas do
Encontro dentro de tendências recentes da história intelectuaL do pósmodernismo literário. e do revisionismo histórico. O artigo examina várias
visões do mundo que têm influenciado percepções modernas das
Américas desde o século 16: o desenho providencial histórico da
Espanha cristã imperial; o discurso anti-escotástico, tecno-científico e
económico da colonização americana dos filósofos empíricos; e a visão
reflexiva, marginal, e híbrida baseada na restauração hermenêutica de
línguas e culturas indígenas históricas representadas pelo Inca Garcitaso
de ta Vega.
Subirats argumenta que estas três visões do mundo
aparecem em proporções desiguais ao longo da história da conciência
espanhola e da identidade nacional, e continuam a manter sua
importância no mundo contemporâneo.
Santiago Juan-Navarro, em "Los mitos cutturates de ta otredad:
revisiones contemp9ráneas de tos Naufragios de Cabeza de Vaca",
também trata do Outro colonial como uma construção cultural. O autor
examina, através das bases literárias e historiográficas, o processo
histórico da glorificação de Cabeza de Vaca que leva a sua
transformação final em herói cultural. Dois exemplos recentes das
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS].
17
reinvenções fílmicas e dramáticas do Encontro são discutidas pela ótica
das conseqüências políticas do Quinto Centenário: o filme Cabeza de
Vaca (1990) de Nico/ás Echevarría, e o drama Naufragios de Alvor Núnez
o la herida de/ Otro (1992) de José Sanchis Sinisterra. Estas duas obras,
que enfocam a figura mítica do conquistador espanhol, são marcadas
pelas atitudes ideológicas que prevaleciam no_ mundo hispânico na
primeira parte da década de 1990. O ensaio de Juan-Navarro examina
como textos dramáticos e cinematográficos refletem estas atitudes, e
como transmitem uma interpretação revisionista da conquista que tenta
legitimar agendas culturais e políticas dessemelhantes.
Dentro deste
contexto, saber como Cabeza de Vaca foi transformado em um herói
cultural por agências institucionais tanto quanto contra-institucionais é
essencial ao entendimento de alguns dos paradoxos mais patentes da
literatura e do cinema históricos contemporâneos, sobretudo o paradoxo
de assumir uma atitude simultaneamente de oposição e revisionista em
uma conjuntura em que o revisionismo deixou de ser oposicional e, pelo
contrário, faz parte da ortodoxia literária e historiográfica.
"La Marina de Ceremonias dei Alba: una mujer frente ai espejo de
su tiempo" de Gladys M. llarregui compara e contrasta duas grandes
obras mexicanas: o Códice Florentino. Libra XII ("Libro de la Conquista")
registrado pelo frade Bernardino de Sahagún na primeira metade do
período pós-contato; e, quatro séculos depois, a obra criativa de Carlos
Fuentes, Ceremonias. A intenção da autora é de revelar Marina como
retratada
nas
duas
obras,
e
encontrar
nesta
busca
colonial/contemporânea uma voz e uma nova identidade para esta
mulher subjugada a uma grande variedade de interpretações (Baudot,
Glantz, Gonzalvo, Cypress).
18
llarregui indica que, apesar desta atenção
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
crítica, poucos têm percebido Marina desde
o
ponto de vista do seu
posicionamento dentro da escritura de cronistas e intérpretes masculinos.
Entre a Marina sem voz (a intérprete cujas palavras não são próprias) e a
Marina que fala, discute e interpreta história, llarregui propões uma Marina
alternativa através de uma apropriação feminista de seu papel e seu
status como mulher em dois momentos específicos e particulares do
tempo e do espaço.
De acordo com o escritor argentino Abel Posse, a conquista
espanhola foi motivada tanto pelo erotismo quanto pela busca de
riquezas.
Em "Daímón
y el erotismo de la conquista", Terrv Seymour
propõe resolver as seguintes perguntas: como o tratamento do erotismo
difere entre a obra de Posse e as crónicas de viagem? Em que medida
a ficcional vida sexual do conquistador Lope de Aguirre ajuda a entender
a história moderna da América Latina (sobretudo a repressão política e os
movimentos de guerrilha das décadas de 1960 e 1970)? E finalmente,
por que Posse introduz uma problemática sexual ao discurso histórico
pelo uso de tipos estabelecidos (conquistador, rainha das Amazonas,
freira mística, etc.)?
Até que ponto o autor adota esta presença de
sexualidade dos textos históricos e de outros romances históricos
anteriores, e até que ponto ele rompe com estes modelos? Seymour
conclui com o argumento de que. em Daímón, Posse apresenta o desejo
sexual como um desafio a todas as manifestações de ordem, uma força
subversiva em luta eterna com a repressão política e sexual.
"La penetración dei texto: seudocrónica testimonial en Lo noche
oscura dei Nino Av/lés de Edgardo Rodríguez Juliá vista desde lnfortuníos
de Afonso Ramírez de Sigüenza y Gôngora" enfoca o reinvenção do
passado através de crónicas apócrifos.
O autor, Erik Camayd-Freixas,
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS].
examina o processo de construção da autoridade textual como inscrita
da reapropriação ficcional de crónicas testemunhais.
A pretensão à
veracidade histórica sugerida pela imitação de formas discursivas nãoficcionais, só parcialmente levada a sério dentro do propósito de
plausibilidade lúdica, já estava presente no relato protomoderno de
Sigüenza (1690) que conta as desventuras do indlgente Alonso Ramírez à
toa pelo mundo. O lnfortunios reconta ficcionalmente as crónicas das
Índias, do ponto de vista de um jovem nascido em Porto Rico, uma
espécie de Magalhães acidental. Camayd-Freixas argumenta que
trezentos anos depois outro cronista porto-riquenho, Edgardo Rodríguez
Juliá, recapta o aperto de mãos entre autor e personagem na sua busca
pelo corpo deformado e sem mãos do Menino Avilés, fundador de Nova
Veneza em 1797. Camayd-Freixas compara os dois textos, e demonstra
como reconversões crio/las (nascidas nas Américas) - pseudo-crónicas
testemunhais do discurso europeu imperial - sempre produzem novas
versões de história e inversões de ideologia. O autor analisa como
Sigüenza transforma os conquistadores heróicos em indigentes humildes
e tímidos, e o Menino Avilés de Juliá vira um Colombo degredado.
O último ensaio desta coletânea trata de um dos elementos mais
características da nova ficção histórica latino-americana: o uso de
intertextualidade, paródia e carnavalização para apresentar uma visão
alternativa da história.
Em "La historia como bufonada: parodia, riso e
Historia dei descubrimiento en Maluco de Napoleón Baccino Ponce de
León", Magdalena Perkowska-Áivarez examina o papel do humor - riso,
paródia e ironia - em desafiar versões historicamente aceitas do
"Descobrimento", e em reavaliar os relatos anónimos e ficcionais do
período.
20
Seu estudo concentra-se em um dos romances mais
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
representativos desta tendência, Maluco (1988) do uruguaio Napoleón
Baccino Ponce de León. A análise deste romance fecha o círculo da
temática aqui apresentada: apesar de escrito em espanhol, a narrativa
conta a história da viagem de circunavegação do português Fernão de
Magalhães, só que do ponto de vista do bobo da armada. Perkowska
argumenta que a ótica irreverente do narrador - socialmente deslocado
mas também se deslocando entre várias esferas da expedição redefine a história tradicional. O riso e a ironia do bobo reorganizam os
relatos aceitos da viagem de Magalhães de acordo com um princípio
dialógico que dissolve a dicotomia entre o grandioso e o mesquinho, o
positivo e o negativo, o público e o particular, o centro e a pereferia, que
determinava e re-enfatizava a escritura da história. Esta ironia destaca-se
no título, uma fusão dos nomes de umas ilhas "descobertas" por
Magalhães (as ilhas Malacca ou Molucca), mas também um eco claro
da língua portuguesa. Nesta situação, quem é mais maluco: o capitão
que comanda uma expedição de cinco navios e 270 homens, dos quais
somente um navio e 17 dos marinheiros originais voltam vivos, ou o
"bobo" que vê e comenta a desgraça que acontece, inclusive a morte
do próprio capitão?
Em 1871, ao contemplar as "Causas da decadência dos povos
peninsulares nos últimos três séculos", Antero de Quental declarou que "os
livros, as tradições e a memória dos homens andam cheios dessa
epopéia guerreira, _que os povos peninsulares, atravessando oceanos
desconhecidos, deixaram escrita por todas as partes do mundo" (285-6).
As navegações deram ímpeto à colonização portuguesa do Brasil, e em
todo momento tiveram um papel fundamental na definição da
identidade brasileira, seja da ótica colonial, seja da pós-colonial.
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
Este
21
processo repete-se no resto do continente americano, e de certa forma
em todas as regiões colonizadas. Os ensaios aqui reunidos refletem a
herança desses encontros e choques da colonização no hemisfério.
Enfocam as tentativas de construir uma identidade culturaL ao mesmo
tempo em que questionam a validade de tais construções.
Tomado
como um todo, este número da Revista Letras oscila entre assuntos
coloniais e contemporâneos, rompendo as barreiras entre períodos
literários e culturais tradicionalmente estudados separadamente, em si
uma reflexão do campo dos estudos pós-coloniais como indicado por
Rolena Adorno. Esta representa uma nova tendência dentro do campo
da crítica literária colonial que visa a unir leituras pós-estruturalistas do
passado colonial e análises dos textos fundamentais da literatura latinoamericana tomando em consideração os contextos históricos de suas
produções.
O revisionismo histórico que emerge dos artigos incluídos nesta
revista faz parte de um ímpeto contemporâneo maior.
De relevância
especial para o tema do presente projeto é a tendência crescente
dentro do campo da filosofia da história a questionar as pretenções
básicas do historicismo tanto em relação a seus fins quanto a suas
metodologias. Keith Jenkins indica que "[b]oth philosophy and literature,
for example, have engaged very seriously with the question of what is the
nature of their own nature"[l ). Este relativismo altamente acentuado na
teoria crítica contemporânea exerce um impacto forte nas práticas
epistemológicas dos novos historiadores, para quem a antiga busca da
verdade constitui cada vez mais uma utopia inatingível. Hoje em dia é
essencialmente impossível falar de um discurso histórico exclusivo ou
definitivo; no seu lugar aparecem somente posições, perspectivas,
22
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
modelos e ângulos que oscilam de acordo com vários paradigmas. O
oensador pós-moderno reúne múltiplas formas discursivas enquanto
smultaneamente reflete sobre o uso de tais formas e suas limitações
oossíveis.
Como conseqüência de suas tendências auto-reflexivas e
desconstrucionistas, a nova teoria histórica e suas aplicações ao campo
da literatura desestabiliza visões tradicionais do historiador e do
empreendimento historiográfico. O conceito do historiador como
testemunha, proposto pela historiografia clássica e explorado pelos
historiadores do período colonial, deixou de ter validade, segundo Jorge
セッコョN@
Este conceito, baseado na necessidade de contato imediato
entre o autor de história e o evento narrado, não é mais sustentável
dentro dos novos paradigmas de pesquisa.
Segundo as orientações
teóricas contemporâneas, não existem fatos inteiramente evidentes. Os
que
percebemos
(inclusive
os
aparentemente
empíricos)
são
inevitavelmente percebidos numa maneira particular e portanto são
teóricos. Ao revelar a mediação inerente na escritura da história, junto
com seu componente ideológico, a historiografia pós-moderna debilita a
noção positivista das leis naturais que se manifestarão pela análise
científica aplicada à condição humana. Estas tendências teóricas
permitem-nos entender algumas das características observadas nas
reconstruções contemporâneas do Encontro entre o "Mundo Velho" e o
"Mundo Movo". Entre as novas práticas histórico-narrativas da América
Latina, Fernando Aínsa identifica dez: 1} a releitura da história baseada
em histericismo crítico; 2) a rejeição da legitimidade das versões "oficiais"
do passado; 3) a multiplicidade de perspectivas que propõem expressar
múltiplas verdades históricas; 4) a abolição do distancionamento épico;
LETRAS- Revisto do Curso de Mestrodo em Letras do UFSM (RS).
5) a re-escritura parodística e irreverente da história; 6) a superimposição
fantástica e anacrônica de períodos históricos variados; 7) o uso de
historicidade textual ou a invenção totalmente mimético de crônicas e
relações de viagem; 8) a adoção de crônicas falsas disfarçadas como
historicismo ou a glosa de textos autênticos em contextos grotescos ou
exagerados; 9) a leitura distanciada, onírica ou onacrônica da história,
através de escritura carnavalesca; e lO) a preocupação lingüística
manifesta no uso massivo de arcaísmos, pastiches, paródias e humor
agudo.
O coróter oposicionol destas coracterfstlcas aflrrna-se núo
somente nos textos literários e fílmicos analisados nesta coletânea, como
também nos discursos críticos utilizados. De ambos podemos
、・オセゥイ@
um
novo e abrangente conceito historiográfico. As novas formas discursivas
que reclamam um valor tanto criativo quanto epistemológico unem-se
ao impulso arqueológico da historiografia acadêmica tradicional.
Isto
favorece um encontro entre a historiografia em si, e outras formas de
reflexão histórica que podem incluir o romance, o teatro e o cinema. Em
contraste com a subalternidade tradicional do discurso criativo ficcional
(que desde o Renascimento leva o estigma de "histórias falsas"), nas
últimas décadas a ficção tem conquistado um
status como suplemento
à história. No campo literário ibérico e ibero-americano, este novo papel
manifesta-se em um revisionismo histórico sem precedentes.
Na
temática destas novas modalidades da ficção histórica, o Encontro - ou
confronto - entre o "Mundo Velho" e o "Mundo Novo" ocupa um lugar
preferencial.
Enquanto houver uma reflexão sobre as origens da
identidade latino-americana, o período do "descobrimento" e da
conquista estimulará a imaginação dos que constroem o conceito iberoamericano.
24
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
Obras Citadas
Adorno, Rolena.
1990. "New Perspectives in Colonial Spanish American
Literary Studies." Journal of the Southwest 32 (Summer): 173-191.
Aínsa, Fernando. "La nueva novela histórica latinoamericana." Plural 241
(Sept. 199.1 ): 82-85.
Axtell, James.
"Columbian Encounters: Beyond 1992". The William and
Mary Quarterly 49 (1992): 335-60.
Beyond 1492: Encounters in Colonial Nortlf America.
f\Jew York:
Oxford University Press, 1992 .
. "Columbian Encounters: 1992-95". The William and Mary Quarterly 52
(1995): 649-696.
Bamonte, Gerardo, e Della Marina, Guilia, eds. La "Festa" deg/i índios: 11
quinto centenar/o visto dagli indigeni deii'America Latina.
Chieti
Scalo: Vecchio Faggio Editore, 1992.
Barreiro, José, ed. View from the Shore: American lndian Perspectives on
the Quincentenary. Special lssue of Northeastern lndian Quarterly
7.3 (1990).
Block, David.
:'Quiencentenial Publishing: An Ocean of Prinf'. Latin
American Research Review 29.3 (1994): 101-28.
Bueno, Eduardo. A Viagem do Descobrimento: A Verdadeira História da
Expedição de Cabral. Rio de Janeir.--,: Objetivo, 1998.
Náufragos, Tr._aficantes e Degredados: As Primeiras Expedições ao
Brasil. Rio de Janeiro: Objetivo, 1998.
Capitães do Brasil: A Saga dos Primeiros Colonizadores.
Rio de
Janeiro: Objetivo, 1998.
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
25
Camurati, Cario. Carlota Joaquina: Pricesa do Brasil. Altmar Produç6es
Artísticas, 1994.
DaMatta, Roberto, et ai. Universo do futebol: esporte e sociedade
brasí/era. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982.
Gentry, Carole M., e Grinde, Donald A. Jr., eds.
The Unheard Voíces:
American lndian Responses to the Columbian Quincentenary
1492-1992. Los Angeles: American lndian Studies Center 1 University
of California, 1994.
Giulianotti, Richard, Norman Bonney, and Mike Hepworth, eds. Footba/1,
víolence and social identity. London; New York: Routledge, 1994.
Grim, John A., ed.
Shaman and Preachers, Calor Symbolism and the
Commercial Evangelísm: Reflections of Early Mid-Atlantic Relígious
Encounter ín Ught of the Columbian Quincentennia/. Special lssue
of American lndian Quarter/y 16.4 (1992).
Jenkins, Keith. Re-thinkíng History. New York: Routledge, 1991.
Lever, Janet.
Soccer Madness.
Chicago: University of Chicago Press,
1983.
Lozano, Jorge. E/ discurso histórico. Madrid: Alianza EditoriaL 1987.
Menton, Seymour. Latin America's New Historica/ Nove/. Austin: University
of Texas Press, 1993.
Olivier, Alfredo Matus.
"Espana vista desde América en la lengua y la
cultura (lntroducción a una semántica dei Quinto Centenário)".
Signos 25 (1992): 91-109.
Pereira,
Paulo
Roberto,
org.
Os
Três
Únicos
Testemunhos
do
Descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999.
Pinheiro, Paulo Sérgio. "Autoritarismo e Transição." Revista USP n°9 (1991 ):
52-3.
26
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
Quental,
Antero
de.
Prosas
Sócio-Políticas.
Lisboa:
Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, 1982.
Salles Jr., Walter e Thomas, Daniela. Terra Estrangeira. Sagres I Vídeo e
Filmes Animatógrafo, 1995.
Suárez-Orozco, Marcelo M. "A psychoanalytic study of Argentine soccer."
ln Psychoanalysis and cu/fure at the millennium.
Eds. Nancy
Ginsburg and Roy Ginsburg. New Haven: Vale University Press, 1999.
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
27
COISAS E RETRATOS DO BRASIL
Alamir Aquino CORRÊA
UE L-PR
A literatura portuguesa distinguiu-se das literaturas castelhana e
galega, e a brasileira o fez em relação à portuguesa, refletindo ou até
antecipando os processos de diferenciação política. Talvez não seja
mais necessário discutir o caráter específico da qualidade nacional da
literatura brasileira, a não ser as variantes análises do período colonial,
como é o caso do recente ensaio de Flávio Kothe 1, A literatura brasileiro
não só é independente da literatura portuguesa, como já se tornou foco
irradiador de idéias. De acordo com porte da crítico literária lusobrasileira, o romance nordestino de 30 teria influenciado o ficção neorealista portuguesa; o concretismo já se difundiu por vários países; os
novelas de televisão, aqui encarados como texto ficcional, são
exportadas paro países diversos como Cuba, Chino, Roménia e,
principalmente, Portugal.
Como afirmo King (1980, 47), há momentos de menor ou maior
presença do preocupação nacionalista em uma literatura. Realmente,
houve momentos em que a afirmação do brosilidode deixou de ser
importante, coso do Simbolismo; tal distanciamento também ocorreu no
poesia intimista e no ficção introspectivo modernistas. É potente o fato
de que hó obras que não se valem do tradição social e de termos
regionais brasileiros. Entretanto, o boa, talvez o maior, parte do cânone
·O
Cânone Colonial, Brasília: Unb, 1997,
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS].
29
literário brasileiro contém reflexos de um ambiente sócio-físico como
qualidade nacionalizante. Neste sentido, procura-se aqui fazer um
pequeno passeio pela literatura brasileira, evidenciando as diversas
manifestações dessa qualidade.
É comum nas histórias literárias brasileiras situar em Pero Vaz de
Caminha o início da literatura brasileira, com_ as ressalvas canônicas de
que o primeiro século seria composto apenas de obras de informação.
Não obstante isso, essa literatura de retratos do Brasil interessa aos
brasileiros e deve ser reconhecida como parte da herança nacional, visto
que o europeu em cantata com o Novo Mundo distancia-se daquele
que permaneceu em terras conhecidas,
legando uma. tradição
diferenciada. Além de caracterizar e descrever o sistema sócio-geofísico
do Brasil Colonial, tais obras servem de fundo para o mito do índio,
temática romântica, modernista e até mesmo contemporânea. 2
O espírito mercantilista encontrável em Caminha inaugura a
observação simpática dos costumes e das coisas brasileiras. A atitude
sua e a dos prosadores pósteros é a da louvação da potencialidade da
riqueza, motivando e conclamando os reinóis à imigração. Em Pero de
Magalhães Gândavo, principalmente com o seu Tratado da Terra do
Brasil, chega a haver uma visão do "paraíso," como apontou Holanda
(1959). Os costumes indígenas e os de hierarquia social entre os colonos
e escravos, as descrições das plantas, frutas e mantimentos, com símiles
quase risíveis, e a preocupação com as riquezas minerais tornam
2
Aqui, resta firme o entendimento de que há valor literário nas obras de informação. O
estilo do ensaio [carta, relação, relato) prima pelo detalhe e pela escolha vocabular
caracterizadora do símile, sendo ainda que interessa mormente aos estudos literários os
gêneros diálogo, carta e auto, que desusados ou sem continuidade não atraem, pela
pecha de áridos, a atenção de boa parte dos pesquisadores hodiernos.
30
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
Gândavo
uma
fonte
imprescindível
para
a
compreensão
da
colonização brasileira. Essas grandezas e os costumes, principalmente
aqueles de conversão dos índios e transgressão pelos reinóis dos
dogmas da religião católica, estão nas obras de Gabriel Soares de
Sousa, Manuel da Nóbrega, Fernão Cardim e Frei Vicente do Salvador.
Há de se observar que a atitude de Ambrósio Fernandes Brandão é a da
defesa da Colônia, com a descrição de grandezas e de maneiras de
adaptação do reinai ao Novo Mundo, como é o caso da caça e
degustação de animais silvestres. Igualmente classificado dentro do
grupo denominado literatura de informação,
a obra Cultura e
Opulência do Brasil (171 1), de André João Antonil, reflete, juntamente
com Brandão e seus Diálogos das Grandezas do Brasil, o orgulho da
terra até no próprio título, pois há "grandezas" e "opulência" do Brasil. A
obra de Antonil destaca-se pelo registro de léxico técnico do ciclo da
cana-de-açúcar, levantado como "Vocabulário e Índices Antroponímico
e de Assuntos" por LeonardoArroyo (Antonil1982, 207-39).
No período inicial, merece atenção especial a obra teatral de
José de Anchieta. Filiado à tradição medieval do metro breve, Anchieta
inova não pelo polilingüismo, embora use o tupi para compor suas
obras, mas sim por adaptar os autos de moralidade à conversão e
edificação do gentio, e neste últjmo caso também dos colonos, com
cenas de correção dos costumes, e por adaptar coreografias indígenas
a cerimônias イ・ャゥァッセ。ウL@
como se vê em O Auto de São Lourenço.
O próximo momento, o Barroco, tem como marco inicial a obra
Prosopopéia de Bento Teixeira publicada em 1601, que já se ufana pela
terra, na "Descrição do Recife de Paranambuco." Em Manuel Botelho de
Oliveira, os primores da terra são mormente louvados, em especial o
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS}.
31
clima, os animais e as frutas no poema "À Ilha da Maré" com particular
menção dos vegetais aipim, ananás, araçá, banana, caju, corá, coco,
mamão, mandioca, mangaba, maracujá, pimenta, pitanga, pitomba.
É de se anotar que alguns desses elementos locais já haviam sido
usados por Gândavo e Soares de Sousa; em Botelho de Oliveira a
atitude é a do orgulho do contato e da priroazia da Colônia sobre a
Metrópole e o resto da Europa. Outro poeta ufanista, dentro da mesma
linha de Botelho de Oliveira, é Frei Manuel de Santa Maria ltaparica e seu
poema Descrição da Cidade da Ilha de ltaparica, quase réplica do
poema de Botelho, com a enumeração similar de frutos, fontes,
legumes, áNores, igrejas e capelas, sendo-lhe distintiva a sua descrição
da pesca da baleia.
Gregório de Matos é a sátira social, evidenciando não só a
formação étnica brasileira como os costumes e tradições da cidade da
Bahia, como é o caso da promiscuidade da célebre procissão de cinza
em Pernambuco ou o descalabro resultante, segundo o poeta, da
passagem do cometa em
16803 . Suas palavras são a prova
documental do vocabulário fescenino, principalmente no poema "A
Cidade da Bahia." Sua crítica à falsa fidalguia, aos pecados seculares e
aos membros da Igreja mantêm, mutatis mutandis, a sua atualidade. É
também importante o registro de termos indígenas em "Aos Caramurus
da Bahia" e "Aos Mesmos Caramurus." Na parenética barroca, além da
defesa que faz da Colônia contra o parasitismo político e econômico,
que sugava todas as riquezas da terra, indo contra a escravidão dos
indígenas e negros, o padre Antônio Vieira menciona a ema, o
papagaio, a baleia, elementos americanos e locais. Nas cartas, a sua
3
O eclipse de ll de agosto de 1999 também dele se disse catástrofe.
32
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
atitude é de êxtase diante da natureza brasílica, com o registro da
toponímia indígena: "Com esta frota partimos pelo rio Tocantins, ... à
meia-noite fizemos paboca, que é frase com que cá se chama o partir,
corrompendo palavra da terra, e nos dias seguintes possamos às praias
da viração." (1948, 153).
Entre os autores de prosa alegórica no Brasil coloniaL só Nuno
Marques Pereira, com seu Compêndio Narrativo do Peregrino da
América, contempla o Novo Mundo. J. Leite de Vasconcelos aponta-o
como "valiosa fonte de investigação etnográfica e histórica: caracteres,
formas de habitação, móveis, objetos de uso, alimentação, trajos,
música, poesia popular, danças, provérbios, teatro, festas e festejos,
costumes religiosos, superstições" (Gomes 1968, 1: 281 ). Um ponto
específico é a ornitologia presente na obra de Marques Pereira: a
aracuã, a araponga, o beija-flor, o canário, a juriti, a lavandeira, o papaarroz, o papagaio, o periquito, o pica-pau, o sabiá, o sanhoço, e o
tucano (Gomes 1968, 1: 283), que dão o toque local.
As academias do século XVIII prenunciam a postura neoclássica
de defesa consciente da terra. Dignas de nota pela particularização
geográfico em seus títulos são a Academia Brasílica dos Esquecidos
(1724-25) e a Academia Brasílica dos Acadêmicos Renascidos (1759);
há de se listar também, embora. sejam já do século XIX, a Academia
Parnambucana (1808) e a Sociedade Bahiense dos Homens de Letras
(181 0), pois que 。セョエ・イゥッウ@
à Independência. As obras acadêmicas
concentram a sua atenção nas coisas brasileiras, como o comprovam
a título de exemplo as Memórias acerca dos Pássaros da Colônia Luso-
americana de Caetano de Brito Figueiredo, a Dissertação sobre a
História Eclesiástica do Brasil, de Gonçalo Soares de França, os
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
Exercícios de Marte, Nova Escola de Belona, Guerra Brasílica ou
Dissertações Críticas Históricas do Descobrimento e Origens dos Povos e
Regiões dAmérica, Povoações, Conquistas, Guerras, e Vitórias com que
a Nação Portuguesa Conseguiu o Domínio das Catorze Capitanias que
Formam a Nova Lusitânia ou Brasil, de Inácio Barbosa Machado, os
Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco,_ de Domingos de Loreto
Couto, o Novo Orbe Seráfico Brasílico e Catálogo Genealógico, de
Antônio de Santa Maria Jaboatão, e a História Militar do Brasil, de José
Mirales (Castello 1968, 1: 296-312).
Os escritores neoclássicos brasileiros em sua maior parte são
considerados como pertencentes à literatura nacional pela sua
participação
na
Inconfidência
Mineira
(pelo
menos
porque
encarcerados). Por professarem as idéias literárias de então, muitos se
caracterizam pelo retrato da natureza bucólica clássica, repleta de
campos e gado, distante da brasílica, especialmente a mineira de
montes e vales na visão de um Cláudio Manuel da Costa (Candido
1975, 1: 88-89). Muitas de suas descrições, entretanto, se atêm aos fatos
locais. Há uma "determinação de elementos que podem parecer
· exóticos a olhos estrangeiros mas que são comuns aos que participam
da civilização que produz esta literatura e que, por sua estranheza,
servirão para conglutinar e solidificar, por força de sua vivência
ambientaL todos os brasileiros" (Martins 1982, 159).
Já há uma cultura nacionaL uma identidade presente em quase
todo o país: "podemos encontrar autores que comungam das mesmas
idéias em quase toda a extensão do território nacional: de Santos a
Belém do Pará, de Recife ao interior de Goiás" (Martins 1982, 18). Citemse, a exemplo, o indianismo de um Basílio da Gama e de um Santa Rita
34
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
Durão, ainda que só como motivo, a poesia laudatória de teor ilustrado,
reclamando providências para com a Colônia, de um Tomás António
Gonzaga, de um Alvarenga Peixoto e de um Basílio da Gama, a poesia
folclórica
de
um
Caldas
Barbosa
e
sua Viola de
Lereno,
e
principalmente a poesia herói-cómica de um Silva Alvarenga e de um
Melo Franco. Estes dois escritores com seus, pela ordem, O Desertor e O
Reino da Estupidez, constituem-se numa sólida resposta brasileira ao
predomínio intelectual metropolitano; há de se estudar nestes, como
também noutros obras do gênero produzidos por brasileiros, o qualidade
da sátira menos afeita a pessoas e muito mais dirigida a instituições,
resultando
numa
consciência
liberal
progressista
dos
brasileiros,
obviamente ligados a Pombal, oposta a retrógrada e conservadora
posição da maior parte dos intelectuais portugueses do mesmo período
em obras do gênero.
A genérica percepção dos escritores neoclássicos, aventada
acima, necessita como ponto de equilíbrio de uma singularização no
que se refere aos traços distintivos aqui propostos. As condições sociais
do Brasil Colonial estão nas Cartas Chilenas, com a menção dos
desmandos em Vila Rica e com o registro da presença de elementos
africanos como o lundum, o batuque e a mulata, e na Marília de Dirceu
de Tomás António Gonzaga, com a queimada, o fumo e o açúcar; em
O Uraguai, com o louvação da indústria naval brasileira por meio da
nau Serpente e a citaçS)o da queimada, e em Quitúbia, ambos de José
Basílio da Goma, com o reconhecimento do negro como herói; em
Caramuru de Santa Rita de Durão, com a antropofagia e os ornamentos
corpóreos indígenas, na consciência da formação étnica brasileira nas
"Oitavas" de Alvarenga Peixoto: "Estes homens de vários acidentes I
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
35
Pardos, e pretos, tintos, e tostados, I São os escravos duros, e valentes I
Aos penosos trabalhos costumados" (Martins 1982, 81 ). Num misto de
tradições sociais e léxico diferenciado, há de se observar nas obras
neoclássicas a presença de animais como o acarapepe, a anta, a
baleia, o galo de campina, o jacaré, a onça, a preguiça, o xexéu; de
frutos, legumes e plantas como aipim, ananás, anil, araçá, araticum,
ata, bacupari, banana, cajueiro, cambucá, cambuci, corá, caruru,
coqueiro, fruta de conde, gabiroba, goiaba, grumixama, inhame,
jabuticaba, jaco, jambo, jasmineiro, jatobá, jenipapo, joá, mamão,
mandioca, mangaba, mangueira, maracujá, murici, palmito, pitanga,
sapucaia; e de vocábulos melodiosos como dengue, iaiá, jambé,
moenga, moleque, nhanhá, nhonhó, quindim, quingobó, xarapim, que
atraíram a atenção de Caldas Barbosa, Joaquim José Lisboa,
Natividade Saldanha, Frei Francisco de São Carlos e Bartolomeu Antônio
Cordovil.
O romantismo no Brasil buscou no povo o substrato fundamental
para a criação artística. Enfatizados a pátria, a natureza, o povo e o
passado histórico-mítico, enquanto caracteres gerais, afirmou-se uma
estrutura calcada numa negação do padrão clássico e universal a favor
da singularização da tradição social e política. Paradoxalmente, a
nacionalização
da temática
e
a
intencional
popularização da
linguagem, ou em outros termos a focalização local, foram frutos da
influência estrangeira. A originalidade decorreu, pois, da essência
brasileira então tornada literária.
As obras centradas no passado
colonial, como O Guarani e As Minas de Prata de Alencar, As Mulheres
de Mantilha de Macedo, Maurício e O Bandido do Rio das Mortes de
Bernardo Guimarães, exploram o passado histórico para a construção
36
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
de mitos, com especial atenção aos códigos morais do honra, lealdade
e cavaleirismo.
A formação étnica brasileira Já evidenciada em obras do Brasil
colonial mantém-se presente durante o romantismo. O índio, talvez o
maior motivo romântico, está presente enquanto lenda (em tracemo e
Ubirajara de Alencar, no lenda de Aiotin e Aín em A Moreninha de
Macedo, e em Os Três Dias de um Noivado de Teixeira e Sousa) e
enquanto mito (em O Guarani de Alencar). A poesia romântica exalta a
contribuição indígena, dotando-a de valores como o coragem, o amor,
a dedicação, a lealdade, a bravura e a honradez. Há de se mencionar
a desventurado Confederação dos Tamoíos de Gonçalves de
Magalhães; "1-Juco Pirama" de Gonçalves Dias; "O Hino à Cabocla," de
Junqueira Freire; "Americanas," de Joaquim Norberto; "Colombo," de
Araújo
Porto-Alegre;
"lmprecação
do
Índio,"
do
Barão
de
Paranapiocaba; "A Maldição do Piaga," de Macedo Soares; Harpejas
Poéticos de Santa Helena Mogno, e Anchieta ou O Evangelho nas Selvas
de Varela. O negro também é motivo literário, ainda quase sempre
retratado de formo negativo, como ocorre em As Vítimas-A/gozes de
Macedo. Infelizmente, A Escrava Isaura de Bernardo Guimarães, e Mãe
de Alencar
não enfrentam com vigor o drama do negro, como
tampouco o foz de forma efetiva Castro Alves, o poeto de "Navio
Negreiro" e Os Escravos. Menção positivo e valorosa neste caso se
aplica à Medltaçãg de Gonçalves Dias, e às Trovas Burlescas de Luís
Gama, este no esteiro de Caldas Barbosa.
A coragem e a paisagem rurais são encontráveis tonto na poesia
quanto na proso de ficção. A descrição da roça e do ermo está
presente na pastoral dos Cantos do Ermo e da Cidade, de Fagundes
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
37
Varela, no lirismo de tom popular de Casimiro de Abreu (como se
percebe no poema "Moreninha," das "Brasilianas"), e até mesmo no
poema "Cantiga do Sertanejo" do universalista Álvares de Azevedo. Os
romances do "contador de casos" Bernardo Guimarães reproduzem
"usos e costumes, paisagens e tradições da vida rural mineira ou goiana"
e "estão cheios de particularidades sintáticas.. e vocabulares de certa
área do nosso sertão, e podem, por isso, constituir documento
importante para estudos de dialetologia brasileira" (Alencar 1969, 2: 26162). Em Távora, há "literatura do norte," como única expressão rea! da
literatura brasileira, que nega a existência de uma literatura regional no
centro e no sul do Brasil, tal como se dividiam as regiões na época. A
sua preocupação com a verossimilhança, que lembra a personagem
Macário de Álvares de Azevedo ao apontar a realidade dos mosquitos e
sezões do Amazonas e do Orinoco, Heron de Alencar considera falha
ficcional; a obra de Távora seria apenas relatório histórico-geográficosocial. Entretanto, o mesmo crítico reconhece-o como o primeiro a
chamar a atenção para "os recursos temáticos que o Norte" poderia
oferecer à literatura (1969, 2: 267). Taunay, por sua vez, registra em
Inocência a vida sertaneja, com seus códigos de honra e convivência
próprios do ermo, e a natureza viva e pujante, sob a ótica extasiada de
um naturalista alemão. Romance rural por excelência, a obra de Taunay
fixou um modus vivendi preciso e particular, encontrável também na
ficção de Guimarães Rosa e Bernardo É/is. Citem-se, ainda, pela
intenção em retratar regiões específicas do país, com os respectivos
costumes, O Sertanejo e O Gaúcho de Alencar.
O romance urbano prima pelo retrato de costumes, com críticas
severas à vileza do comportamento da gente das cidades. Pela sua
38
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
singularidade temático-estilístico-cronológica, citem-se separadamente
as Memórias de um Sargento de Milícias de Manuel Antônio de
Almeida, que faz a listagem de modas, costumes e tipos do ''tempo do
rei" D. João VI, caricaturando a figura histórica do Major Vidigal. Com
traços pícaros, malandro típico como o vê o professor Antonio Candido
em "Dialética da Malandragem" (1970), Leonardo, o próprio povo, com
todos os seus usos. Em Macedo, predominam "aspectos da vida
pequeno-burguesa dos meados do século XIX, os namoros , de
estudante, os saraus familiares, as festas, as cónversas de comadre, os
hábitos, os costumes e as tradições da sociedade de seu tempo"
(Alencar 1969, 2: 234-35). No Alencar de Cinco Minutos, A Viuvinha,
Lucíola, Diva e Senhora, os costumes da corte fluminense assumem
laivos de requinte a par da também descrita grosseria dos novos-ricos,
com o registro da moda, das danças, das recepções, da galantaria e
das regras do bom gosto (Cascudo 1951, 4: 14).
Não menos importante é a obra teatral de Martins Pena. Ela se
destaca pela descrição das diferenças entre a província e a capital, o
sertanejo e o metropolitano, o brasileiro e o estrangeiro, fazendo sátira
dos costumes nacionais, em especial as relações políticas e religiosas,
com pequenos toques cômicos no que se refere a profissões e a tipos.
Algo também interessante é a sua filiação à corrente indianista, embora
com laivos shakesperianos (Magaldi 1976, 55).
Por último, como prova da filiação romântica à tradição social
brasileira há de se lembrar os traços comuns a toda a gente, como a
presença do sabiá, do coqueiro,
das laranjeiras, dos cajueiros,
encontráveis freqüentemente, em especial na poesia de Gonçalves
Dias, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela e até mesmo em Álvares de
LETRAS- Revisto do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (RS).
39
Azevedo, o louvação poética dos heróis nacionais e o pesquiso do lira
popular.
Os ambientes físico e social participam da literatura do período
realisto quase como personagens, enriquecidas pelo pesquiso dos
falares regionais, do folclore e dos contrastes 'entre o urbe e o ermo. Por
convir
aos
escritores
do
período
o
moi§
estrito
e
plausível
verossimilhança, cria-se um inusitado culto do palavra precisa e exata. A
poesia realista urbana de Carvalho Júnior, Teófilo Dias, Afonso Celso e
Celso Magalhães prima pela descrição de atitudes, modas e mobiliário,
enquanto a poesia rural de Bernardino do Costa Lopes preocupo-se
com a vida nas fazendas brasileiras. Os poetas parnasianos concentram
a sua atenção no ambiente físico, caso da presença tropical no obra
de Luís Guimarães, dos acidentes geográficos e cidades em Alberto de
Oliveira, e da vivência do mar subtropical em Vicente de Carvalho. Os
escritores considerados naturalistas enfatizam os costumes relativos a
convivência, em geral, promíscua dos variados tipos sociais, como
ocorre nas obras de Aluísio Azevedo, Inglês de Sousa e Adolfo Caminha.
Os escritores considerados realistas servem-se tanto do ermo,
caso de Coelho Neto e Euclides da Cunha, quanto da cidade, caso de
Machado de Assis, Raul Pompéia e Lima Barreto, com as respectivas
descrições dos usos e costumes correspondentes. Em Machado, há
uma preocupação
mais forte
com
principalmente porque representam
a moral e os costumes,
tais
axiomas e dogmas o
arcabouço da emergente sociedade burguesa, concentrando a sua
ótica na gangorra social. com fina ironia acerca do adultério, do
escravismo e da esporádica alforria, dos costumes esotéricos, da
maldade metropolitana
contra a inocência provinciana.
LETRAS- Revisto do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
Menos
preocupado com a sociedade em si, como ocorre em Senhora de
Alencar, Machado identifica-se mais com a psicologia dos pecados,
como o ciúme, a luxúria, a inveja, a cobiça e a hipocrisia, sem deixar
entretanto de se ater aos usos e costumes da família brasileira do
Segundo Reinado e dos seus percalços (percebidos, por exemplo, em
Esaú e Jacó). Raul Pompéia, em O Ateneu, descreve a vida escolar,
'
com as nuances próprias dos momentos de dúvida, com as diferenças
entre fortes e fracos, e com o moto da burguesia, o dinheiro. Para este
trabalho importa sobretudo a consciência da cultura brasileira expressa
pelo personagem Dr. Cláudio. Mais concreto em relação a Machado
de Assis, pois que se preocupa mais com as relações sócio-econômicas
ao invés das psicológicas, Lima Barreto externa a vida menor e
suburbana de pessoas comuns: "carteiros, funcionários da Guerra,
empregados no comércio, seresteiros e poetas de arrebatado sestro"
(Gomes 1969, 3: 205). A época, com suas paisagens e tipos, com sua
maneira onipotente de discriminar os índios, negros e mulatos, é
retratada com fidedignidade pela pena jornalística de Lima Barreto,
com especial atenção às serenatas, festas, jogos de cartas e namoricos
do subúrbio.
O ermo realista retrata o choque do homem com a terra,
tornando-se evidente o contraste com a urbe, caso de Euclides da
Cunha, e a série de mistérios e encantamentos a assombrar o homem
perdido na solidão, como ocorre em Coelho Neto. Há, pois, uma
-
crescente documentação das reações e usos do homem em face do
agreste meio ambiente. Em cada uma das regiões brasileiras, retratadas
literariamente, salta aos olhos uma determinada característica. No Norte,
o homem aparece ao lado de bichos, doenças, mitos e sombras,
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
41
eternamente deslocado, pretenso agressor e regulador, mas vítima da
panfagia aventada por Ronald de Carvalho, como comenta Peregrino
Júnior (Coutinho 1969, 3: 225). A seca e suas personagens fundamentais,
o sertanejo e o cangaceiro, no Nordeste, denotam a força bruta da
natureza, empurrando o homem para longe, a viver o dilema de ''ter de
ir e querer ficar," ao lado de danças típicas, f?stas religiosas e lendas ou
histórias heróicas. A região da Bahia prima pela presença de negros e
dos costumes afro-brasileiros. em especial o sincretismo religioso. A
região central tem, como personagem, o homem integrado ao meio,
conhecedor de fatos, feitos, coisas e "causos." A vivência é de tom
pastoril. com sistemas de honra que lembram o cavaleirismo medieval.
Aparentado desse é o sertanejo ou caboclo paulista, desanimado,
pobre e doente, cheio de receitas medicinais e -crendices. O Sul
caracteriza-se por uma vida campeira, com um linguajar todo
particular, próprio do contato com a criação de gado vacum e eqüino,
além da influência dos vizinhos argentino e uruguaio.
O modernismo de 22 é politicamente nacionalista, havendo
buscado, pelo menos como intenção, realizar uma obra fundamentada
nas tradições populares, como é o caso do aproveitamento de figuras
sem nobreza clássica visto em Juca Mulato de Menotti dei Picchia, e em
Macunaíma de Mário de Andrade. O índio e as figuras históricas
mantêm-se como personagens importantes e tradicionais. A estes,
vieram se juntar os imigrantes e o homem urbano comum, pobre,
covarde e impotente.
Em vários instantes dos inúmeros estilos de época na literatura
brasileira, percebe-se haver um traço nacionalizante, como se a
brasilidade pudesse resultar (ou talvez resulte) da demonstração do
42
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
outramento, da diferença, da peculiaridade, de um exotismo, todos
para uma literatura outra, da qual partiu a literatura brasileira. Sinal de
que se buscou conquistar pelo retrato e reconhecimento de um mundo
diverso a consciência de uma nacionalização, processo intelectual e
emotivo, quem sabe um estatuto da brasilidade nas coisas e retratos do
Brasil.
Obras Citadas
ALENCAR. Heron de. 1969. "José de Alencar e a Ficção Romântica." Coutinho,
A Literatura no Brasil 2: 217-300.
CANDIDO, Antonio. 1970. "Dialética da Malandragem." Revista do Instituto de
Estudos Brasileiros [São Paulo) 8: 67-89.
_. 1975. Formação da Literatura Brasileira. 2 vols. Belo Horizonte: ltatiaia.
CASCUDO, Luís da Câmara. 1951. "O folclore na obra de José de Alencar."
Obras de Ficção. Por José de Alencar. 16 vols. Rio de Janeiro: José
Olympio.
CASTELLO. Jose Aderaldo. 1968. "O Movimento Academicista." Coutinho. A
Literatura no Brasil 1: 296-31 2.
COUTINHO. Afrânio, org. 1968-71. A Literatura no Brasil. 2 ed. 6 vols. Rio de
Janeiro: Sul Americana.
COUTINHO. Afrânio. et ai. 1969. "O Regionalismo na Ficção." Coutinho, A
Literatura no Brasil 3: 209-89.
GOMES. Eugênio. 1968. "Botelho de Oliveira. Nuno Marques Pereira." Coutinho,
A Literatura no Brasil 1: 255-84 .
. 1969. 'lima Barreto." Coutinho, A Literatura no Brasil 3: 203-09.
HOlANDA S,rgio Buarque de. 1959. Visão do Paraíso. Os Motivos Edênicos no
Descobrimento e Colonização do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio.
LETRAS· Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
43
KING, Bruce. 1980. The New English Uteratures; Cultural Nationalism in a
Changing World. London: Macmillan.
MAGALDL Sábato. 1976. Panorama do Teatro Brasileiro. Rio de Janeiro: Funarte.
MARTINS, Heitor, org. 1982. Neoclassicismo: uma Visão Temática. Brasília:
Academia Brasiliense de Letras.
VIEIRA Padre António. 1948. Cartas. Clássicos Jackson 14. Rio de Janeiro: W. M.
Jackson.
44
LETRAS- Revista da Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
NOVAS CONQUISTAS E OUTROS GALEÕES:
BREVE HISTÓRIA DE NAVEGAÇÕES EM MARES DE PAPEL
Paulo Motta OLIVEIRA
UFMG
Lá onde escoa o Tejo, os Escultores
De entre a água erguerão altos
heróis,
Poetas, Santos e Navegadores
(" ')
Eu confio em ti, reza d'Heróis
E confiar em ti, não é vaidade
Vossos nomes de bronze são faróis
Que luz darão, à nossa tempestade.
António Nobre'
Durante nove meses, Teixeira de Pascoaes e António Sérgio se
digladiaram em uma das mais famosas polêmicas portuguesas do
primeiro quartel do século XX. O confronto ocorreu nas páginas da
segunda série de A águia, tendo tido início no n. 0 22 dessa revista, de
outubro de 1913, e só terminando no n. 0 31, de junho de 1914. Se já em
outro momento estudamos de forma detida essa controvérsia, neste
artigo pretendemos analisar outros aspectos do confronto entre o autor
dos Ensaios e os saudosistas. Articulando algumas idéias apresentadas
parcialmente em textos que publicamos, centraremos aqui nossa
atenção em um aspecto fundamental para as propostas saudosistas - o
papel das navegações - buscando fazer uma breve história desse tema
1
Nobre, 1945, p. ll 2.
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
45
ao longo do século XIX, para, a seguir, analisar como ele é incorporado
pelos saudosistas e questionado em dois poemas de Sérgio 2 •
1- O tempo das navegações
Pensar nas formas díspares como António Sérgio e os saudosistas
analisaram as navegações é . debruçar-se sobre uma questão mais
ampla, que percorre todo o século XIX e o início do XX em Portugal: o da
situação presente do país e do papel que as navegações e descobertas,
ocorridas nos séculos lN e /NI, poderiam ter nesse presente. De fato, a
questão nacional percorre o segmento mais significativo das produções
literárias, históricas e ensaísticas produzidas em PortugaL no período que
vai do vintismo ao Estado Novo. Existe, em vários textos desse período,
uma esperança no futuro do país que se concilia com uma visão
negativa do presente. Essa união, expressa de forma matricial no
Bosquejo do história do poesia e língua portuguesa de Almeida Garrett,
acaba por atravessar textos tão díspares como as Cartas da história de
Portugal de Alexandre Herculano, o Cousas da decadência dos povos
peninsulares nos últimos três séculos de Antero de Quental, a História do
civilização ibérico de Oliveira Martins e o "San Gabriel" de Camilo
Pessanha, aos quais voltaremos a nos referir, e também pode ser
encontrada na expectativa demasiadamente otimista, quase milagroso,
que é depositada no advento do República, no final do século XIX e no
2
Estudamos a polémica entre António Sérgio e Teixeira de Pascoaes em Oliveira,
1995, p. 217-364. As idéias, jó parcialmente apresentadas, e aqui retomadas
encontram-se em Oliveira, 1996; Oliveira, 1997 e Oliveira, 1998.
LETRAS llevista da Cursa de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
início do XX. Existe uma esperança que é sempre um pouco desmedida,
para além daquilo que, racionalmente, poder-se-io esperar que
ocorresse, que se articula com a idéia de decadência, também ela
recorrente, para a qual são formuladas múltiplas e variadas propostas de
superação.
É no interior dessa problemática mais ampla que situam-se os
vários olhares que as navegações receberam nesse período. De início,
duas visadas sobre esse tema são fundamentais, as de Alexandre
Herculano e o de Antero de Quental, pois ambos tenderam, por motivos
apenas em parte diversos, a ter uma visão bastante negativa desse
fenômeno.
Alexandre Herculano, na quinta das Cortas sobre a história de
Portugal, publicada em 1842 na Revista universal lisbonense, tendeu a
ver nas descobertas e navegações o efeito das atividades de um
princípio monárquico já vitorioso, e,
(Herculano s.d.
(b),
por isto, socialmente estéril
p. 154-5). Nessa epístola, opondo-se ao que
considerou efeito de "estudo superficial e irrefletido" - a visão do "século
décimo-sexto como a verdadeira era da grandeza nacional" (Herculano,
s.d. (b), p. 129) - aponta que a real era de grandeza ocorreu em outro
período: "a virilidade moral da nação portuguesa completou-se nos fins
do século XV, e a sua velhice, devia começar imediatamente"
(Herculano, s.d. (b), p. 131 ). Nessa perspectiva, o esplendor do século XVI
se deve a uma geração que "foi educada pelo século anterior", e, em
vista disso, "O século décimo-sexto nada mais fez que aproveitar a
herança da Idade Média" (Herculano, s.d. (b), p. 134).
Para Herculano a história de Portugal, e de toda a Europa, durante
o período medieval, pode ser considerada como "o largo e custoso lavor
LETRAS- Revisto do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
47
(... ) para transformar a unidade do império romano na individualidade
dos povos modernos. (... ) O restabelecimento da variedade sobre as
ruínas da unidade absoluta é o grande princípio que a meu ver a Idade
Média representa" (Herculano, s.d. (b), p.l42-l43). Foi justamente a
variedade e a independência, fundamentais no caráter dos homens da
Idade Média, que desapareceu com a consolidação da monarquia
absoluta. Se durante o período medieval o elemento monárquico ainda
tem uma ação "enérgica, civilizadora, progressiva", "Obtido o triunfo,
assemelha-se a todos os vencedores: degenera e corrompe-se nos ócios
da vitória" (Herculano, s.d. (b), p. i 54). É essa monarquia corrompida que
promove as navegações, usando as energias da última geração ainda
educada no período anterior. O poderio, por mais que grandioso, é
apenas aparente, e a monarquia, por suas características intrínsecas,
acabará por perdê-lo: "no lugar da ordem põe a servidão; em vez do
repouso da paz produz a quietação do temor; à moralidade substitui a
corrupção dos costumes. Pervertida a índole nacionaL enfraquecida a
energia interior do povo, o poderio exterior começa a desmoronar-se
logo" (Herculano, s.d. (b), p. 155).
Todo esse discurso não é, como poderia parecer, apenas uma
reflexão sobre o passado. Como notou Eduardo Lourenço, o passado
interessa para Herculano como uma forma de entender e atuar sobre o
seu tempo (Cf. Lourenço, 1982). Também aqui é, de fato, o presente que
norteia suas reflexões. Para o autor de Eurico o seu tempo, em PortugaL
caracteriza-se por uma retomada de certas características do período
medieval, já que voltavam a ocorrer as lutas pela independência que
haviam então existido:
48
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
O renascimento (... ) foi a restauração completa da unidade
como princípio dominador e exclusivo, salva a distinção das
nacionalidades, que ficou subsistindo. (... ) O que são as
revoluções políticas do nosso tempo? São um protesto contra o
renascimento; uma rejeição da unidade absoluta; uma
renovação da tentativa para organizar a variedade"
(Herculano, s.d. (b), p.3-4).
Podemos, a partir do acima apontado, perceber os motivos que
'evam Herculano a ver as navegações como fruto de um espírito
-rJonárquico já estéril. Na sua concepção da história de Portugal não
existiria nenhuma relação entre o período das navegações e o seu
oresente. Este seria muito mais próximo da Idade Média, e, por isso, as
navegações são, para ele, apenas um acontecimento que não mais
teve prosseguimento na história do país. No raciocínio histórico de
Herculano, o estudo do período das navegações é inútil, o que viria a ser
confirmado na sua História de Portugal, em que, por sinal, será analisado
apenas o período que vai "Desde o começo da monarquia até o fim do
reinado de Afonso III" [Herculano, s.d. [a), p.3).
Quando, quase trinta anos depois, Antero de Quental proferir, em
27 de maio de 1871, a Causas da decadência dos povos peninsulares
nos últimos três séculos, desdobrará, levando às últimas conseqüências,
alguns aspectos já presentes nos raciocínios de Herculano. Como
sabemos, nessa conferência, o· autor dos Sonetos considera que a
decadência da península, a partir do século XVII, só pode ser explicada
se buscarmos as
SIJOS
causas no século XVI. Esse raciocínio mostra que
Antero é tributário das Carta que atrás analisamos.
Mas existem
diferenças importantes entre os raciocínios desses dois escritores. De inicio
é importante assinalar que se duas das três causas da decadência já
haviam sido apontadas pelo autor de Eurico, o absolutismo e as
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
49
navegações, o mesmo não ocorre com a terceira, o Concílio de Trento.
Além disso, a segunda - as navegações -, que particularmente aqui nos
interessa, aparece, no texto de Herculano, muito mais como uma
conseqüência do absolutismo, do que propriamente como uma causa
que ajudara à decadência. Sobre a transformação das navegações em
uma causa da decadência, devemos notar gue o próprio Antero mostra,
em sua conferência, como é delicado o assunto:
Há dois séculos que os livros, os tradições e o memória dos
homens, andam cheios dessa epopeia guerreiro, que os
povos peninsulares, atravessando oceanos desconhecidos,
deixaram escrita por todas as partes do mundo. Embalaramnos com essas histórias: atacá-las é quase um StílCrilégio. E
todavia esse brilhante poema em acção foi uma das maiores
causas da nossa decadência. É necessário dizê-lo, em que
pese aos nossos sentimentos mais caros de patriotismo
tradicional. Tanto mais que um erro económico não é
necessariamente uma vergonha nacional. No ponto de visto
heróico, quem poderá negá-lo? foi esse movimento das
conquistas espanholas e portuguesas um relâmpago brilhante,
e por certos lados sublime, da alma intrépida peninsular. A
moralidade subjetiva desse movimento é indiscutível perante a
história: são do domínio da poesia, sê-lo-ão sempre,
acontecimentos que puderam inspirar a grande alma de
Camões. A desgraça é que esse espírito guerreiro estava
deslocado nos tempos modernos: os nações modernas estão
condenadas o não fazerem poesia, mas ciência. (Quental,
1982, p.285-6)
Termos como brilhante poema de acção, um relâmpago
brilhante, e por certos lados sublime mostram bem com que cuidado
Antero tenta fazer o que ele mesmo qualifica como quase um sacrilégio.
Existe, inegavelmente, uma grande distância entre mostrar a inutilidade
das conquistas e apontá-las como uma das causas da decadência.
Para, porém, perceber o significado profundo dessa postura, é
50
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
:,portante relacionar esse trecho com um outro, já quase no fim da
:onferência: "Que é pois necessário para readquirirmos o nosso lugar na
:.rvilização? para entrarmos outra vez na comunhão da Europa culta? É
セ・」ウ£イゥッ@
um esforço viril, um esforço supremo: quebrar resolutamente
:om o passado." (Quental, 1982, p.294). Esse trecho mostra que, para
-Vltero, a única forma de Portugal recuperar o seu lugar na civilização
seria quebrando resolutamente com o passado, ou seja, renegando
oquelas características que, por mais que fossem fruto das causas
opontadas, eram também o que constituía a identidade nacional. Negar
os descobertas e, junto com elas, as características tradicionais do país,
era considerar que Portugal só teria saída se conseguisse se inventar
outro, se alterasse radicalmente o que era e o que antes havia sido,
refazendo-se à imagem e semelhança da Europa culta, da qual, então,
passaria a fazer parte.
Existe, nessa conferência, como podemos notar, não apenas uma
interpretação nova da história de Portugal, o que, em certo medida,
Herculano já havia feito, mas uma tentativa de alterar radicalmente a
face do país, um desejo de transformá-lo no que de mais moderno, em
termos económicos e sociais, existia então na Europa 3 • Mas, apesar
3
Pelo que acima dissemos. não podemos concordar com Joel Serrão, que afirmou: "As
inovações anterianas cingem-se na essência, por um lado, à generalização à Península
Ibérica da problemática da decadência, e, por outro, à ideia-força que por então o
movia e comovia e empolgava, a saber 'o novo mundo industrial do socialismo, a
quem pertence o ヲオエイッセB@
[Serrão, 1982, p.21). Como vimos, não é apenas a adesão ao
socialismo e a generalização para a Península Ibérica que diferenciam a conferência
de Antero do que havia sido formulado por Herculano.
Além disso, se pensarmos nesse desejo de rasurar de forma radical a face do país,
podemos entender por que António Quadros se refere à geração de 70 como "um
grupo de jovens intelectuais insatisfeitos, europeístas e estrangeirados" (Quadros, 1989,
p.57), ou por que Lourenço afirma: "Nas famigeradas Conferências do Casino e no que
delas se seguirá, não é apenas a mera realidade histórico-política de Portugal que vai
ser questionada ou quem questiono os actores das Conferências: é a totalidade do seu
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
dessas diferenças, o confronto dos raciocínios de Antero e Herculano
mostra-nos que os dois partilham de uma mesma concepção, a de que
o tempo das navegações não pode trazer nenhum aspecto positivo para
o seu presente. O Portugal que Herculano enxerga, e o que Antero
deseja, é um Portugal imerso em um tempo distinto do das navegações:
para o primeiro um tempo que, em certo sentjdo, retoma as lutas que
existiam na Idade Média; para o segundo, um tempo europeu, para o
qual o espectro das navegações é um estorvo. Inúteis para o primeiro,
prejudiciais para o segundo, as navegações são negadas não pelo que
foram, mas pelo que ainda são ou pelo que não podem vir a ser.
Será justamente esse aspecto que será visto de uma nova forma
por um companheiro de geração de Antero, Oliveira Martins. Em 1879
este autor publicará a História da civilização ibérica e a História de
Portugal. Será no início da última dessas obras que Martins explicitará a
diferença existente entre elas:
No História da civilização ibérica tratamos de estudar o sistema
de instituições e de idéias da sociedade peninsular, poro expor
o suo vida coletiva orgânico e moral. Tomamos aí a
sociedade como um indivíduo, e procuramos retratá-lo física e
moralmente. Agora o nosso propósito é diverso.[ ... )
Metade da história portuguesa está [ ... ) escrita na História da
civilização ibérica: a metade que trata da vida do sociedade
como um ser orgânico.[ ... )
Resta fazer a segundo metade: resta caracterizar o que há de
particular na história portuguesa; resta fazer viver os seus
homens e representar de um modo real o cena em que se
agitam: tal é o programo deste livro. [Martins, s.d .. , /, p.l4).
ser histórico-cultural. O sentido do nosso aventura passado aparece aos olhos de alguns
jovens impressionados com os ecos tardios da revolução técnica e ideológica da
Europa, como problemático." (Lourenço, 1982, p. 95-96)
52
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
No fim da História do civilização ibérico - ao falar do possível
セMjイッ@
desse ser orgânico que, um dia, havia construído uma cultura
::;ropria, e
que em
seu presente passava
por um processo de
:>eeomposição - existe um trecho importante para a questão que aqui
es;amos tratando:
Nós acreditamos firme e diremos até piamente [... ) na futura
organização das nações da Europa; cremos portanto em uma
vindoura Espanha mais nobre e mais ilustre ainda do que foi a
do século XVI. Acreditamos também que já hoje navegamos
na viagem para este porto, embora os nevoeiros conturbem as
vistas dos nautas agora que apenas acabamos de largar as
costas do velho mundo. Que papel destina o futuro à
Península, e qual será a fisionomia dessas idades vindouras? A
história não é profecia; mas o estudo das idades passadas
deixa entrever muitas vezes as probabilidades futuras; e,
quando, através de todas as crises, no meio dos ambientes
mais sistematicamente adversos, observamos que o heroísmo
peninsular soube vencer tudo com a sua indomável energia,
somos levados a crer que o papel dos apóstolos das futuras
ideias está reservado aos que foram os apóstolos da antiga
idéia católica. A independência dos caracteres individuais e a
nobreza do carácter coletivo deram e hão-de dar à Espanha,
quando os seus áureos tempos voltarem, esse aspecto
monumental e soberano que a distingue no mundo.[ ... )
Daqui por séculos, alguém, ao declinar do sol dessa futura
idade (... ) fará para a vindoura Espanha o que nós acabamos
de fazer com amor, para a Espanha do passado. [Marlins,
1973, p.338-339) 4
' Esse trecho responde. de forma indireta. a cerras perguntas, com que se fecha o
-!.'stória de Portugal. qu&abaixo reproduzimos:
'Continua ainda a decomposição nacional. apenas interrompida de um modo
:Jparente pelas ideias revolucionárias e pela restauração das forças económicas
セZクョ・エ。、ウ@
pelo utilitarismo universal? Ou presenciamos um fenômeno de obscura
·econstituição, e sob a nossa indecisa fisionomia nacional, sob a nossa nudez patriótica.
sob a desesperança que por toda a parte ri ou geme. crepitará latente e ignota a
::homo de um pensamento indefinido ainda?"( Martins, s.d.,/1, p.211 .).
:::omo podemos notar. esse pensamento indefinido estava sendo gerado, se não
especificamente em Portugal. ao menos em toda a Ibéria.
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
53
Ao mostrar a trajetória da antiga Espanha católica para a nova
sociedade que ainda está se formando como uma navegação, que
partindo do velho mundo busca por entre nevoeiros o novo porto, ou
seja, a futura idéia-síntese que irá congregar a sociedade, Martins acaba
por criar um topos que será recorrentemente utilizado a partir de então. O
destino da península, ou, de forma mais restiita, o de Portugal, será,
nessa perspectiva, o de reconquistar um poderio semelhante ao antigo,
através de novas navegações, .desta feita não mais terrenas e sim
espirituais. Assim, não só é recuperada a importância das navegações
passadas, mas também elas se transformam em paradigma de um
futuro o ser atingido. O tempo presente, separado das navegações por
Herculano e Antero, de novo a elas se liga, na visão de Martins.
Essa idéia básica ganhará outros desdobramentos no final do
século com "San Gabriel", de Camilo Pessanha, publicado inicialmente
no Jornal Único de Macau em 25 de Maio de 1898, justamente para
comemorar o quarto centenário da chegada de Vasco da Gama nas
Índias. Nesse poema, em que Portugal é visto como uma nau presa em
uma calmaria, o eu lírico, após afirmar: "Que cilada os ventos nos
armaram!", pergunta: "A que foi que tão longe nos trouxeram?"
(Pessanha, 1973, p.40). Esta questão, em que se pede um sentido ao já
realizado, indica que o significado das grandes navegações ainda não
se completou, perspectiva que fica ainda mais patente quando o eu
lírico pede a San Gabriel para que este de novo qbençoe o mar e guie
os portugueses à conquista final:
Vem guiar-nos, Arcanjo, à nebulosa
Que do além vapora, luminosa,
E à noite lactescendo, onde, quietas,
54
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
Fulgem as velhas almas namoradas ...
Almas tristes, severas, resignadas,
De guerreiros, de santos, de poetas.
(Pessanha, 1973, p.4l)
Apenas chegando a essa nebulosa, em uma viagem claramente
espiritual e não mais terrena, é que os portugueses, com a ajuda do
arcanjo Gabriel, poderão atingir um novo estado em que o já feito
ganhará seu verdadeiro significado, em que a navegação, iniciada e
interrompida no passado, será finalmente completada. O que em Martins
era uma analogia entre a missão passada e o destino futuro aqui se
converte em uma construção mais intrincada: não apenas existe essa
analogia entre os dois tempos, mas o passado não possui um significado
em si, já que é apenas o início de algo que só em um futuro poderá se
consumar.
Como pudemos notar, se existia uma semelhança entre os
raciocínios de Antero e Herculano, ele também pode ser encontrado
entre os de Martins e Pessanha. Para estes, em confronto com os dois
primeiros, a experiência das navegações possui relação com o presente
de Portugal, pois nelas se criou um certo aprendizado que possibilitará ao
país, ou a toda a península ibérica, estar preparado para outras formas
de navegar, que, em ambos os casos, não mais serão feitas em mares
concretos, mas em um outro tipo de oceano, de carácter espiritual.
11 - O novo navegar
Será essa diferença básica, entre as posturas dos dois grupos que
aqui assinalamos, que estará presente nas perspectivas dos saudosistas,
mais próximos de Martins e Pessanha, e na de Sérgio, mais próximo de
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
55
Antero e Herculano. Para entendermos as posturas dos primeiros, e os
motivos que levaram o segundo a entrar com elas em confronto, é
necessário que analisemos o contexto em que o topos das navegações
aparecerá nos primeiros volumes da segunda série de A águia. Esse
topos estará presente em textos não apenas poéticos, mas também de
análise social e inteNenção na vida política, escritos pelos intelectuais
que, em 1912, constituíam o grupo saudosistas.
No primeiro volume aparecem os contornos iniciais desta visão,
em parte dispersos em vários textos de Pascoaes e, de forma mais
explícita, em dois poemas: o "Regendo a sinfonia da tarde" de Jaime
Cortesão e o "O poeta e a nau" de Augusto Casimiro. No primeiro, o eu
lírico conclama os portugueses a embarcar "Para as Índias sem fim",
pedindo para si, por ser poeta, "a mais alta gávea" (Cortesão, jun. 1912,
p. l 77). O segundo, que sintetiza alguns aspectos importantes do topos
da navegação em A águia, é abaixo reproduzido:
Vai errante, no Mar, uma nau sem governo ...
O oceano é chão, o céu azul fundindo em aço ...
As velas mortas ... Nem sequer vento galerno
As vem inchar para dormir no seu regaço! ...
Sobre o antigo convés pesa um velho cansaço,
E ou destino fatal ou maldiçoo do inferno,
O mastro grande em vão aponta para o espaço ...
-Sobre as ondas a nau é um cárcere eterno!
Dominando em redor, lá na gávea mais alta,
Um marujo, a cantar, fala do Além, e exalta
Um passado esplendor sobre a nau sepulcral ...
5
Este grupo possuía como seus principais membros Teixeira de Poscmes, Jaime
Cortesão, Augusto Casimiro, Fernando Pessoa e Leonardo Coimbra. Uma análise
sistemática deste período do Saudosismo pode ser encontrada em OLIVEIRA. 1995, p.
79-218.
56
LETRAS- Revisto do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
"Porque o vento há-de vir aninhar-se nas velas!
"Porque a nau voará,- tocará as estrelas! ... "
-O marujo é Poeta- e a nau ... Portugal!
(Casimiro, abr. 1912, p. 129)
Podemos perceber que existem grandes semelhanças entre o
texto acima e "San Gabriel" de Pessanha. Apesar desse poema de
Pessanha haver sido publicado apenas em Macau, sendo, portanto, em
1912, ainda inédito em Portugal (Cf. Osório, p. 149), devemos notar que
vários dos poemas do autor de C/epsídra eram conhecidos em
diferentes círculos de intelectuais 6 , e
que, além disso, entre os
colaboradores de A águia - revista em que foi publicado um poema
desse autor, o "Voz débil que passas" - ao menos Jaime Cortesão, sogro
de Augusto Casimiro, conhecia nessa época algumas das obras de
Pessanhd. Todo esse contexto só vem o confirmar a possibilidade de
' Como afirmou Barbara Spaggiari: "Ele [Pessanha] gostava de recitar os seus versos
também aos estranhos e era pródigo em dar autógrafos, por vezes até inéditos, a quem
lhos pedisse" (Cf. Spaggiari, 1982, p. 19.).
Esse conhecimento dos poemas de Pessanha é confirmado, entre outros textos, por
duas cartas. Em uma delas, datado de dezembro de 1912, de Sá'Corneiro para
Pessoa, temos o seguinte trecho: "Rogava-lhe encarecidamente que me enviasse, para
mostrar ao Santa-Rito, os violoncelos de Pessonho e o soneto sobre a mãe- e mesmo
mais algum se para isso estivesse. Era um favor que muito lhe agradeceria. Tem
apanhado mais versos dele?" (Sá-Carneiro, 1978, p.37). Na outra, enviado por Pessoa o
Camilo Pessanha, provavelmente de 1915, ou seja, pouco depois deste período. o
poeto de Orpheu afirma que "Há anos que os poemas de V. Ex. 0 são muito conhecidos,
e invariavelmente admirados, por todo a Lisboa." [2essoa, 1973, p.337)
' Esse conhecimento pode ser comprovado pelo trecho abaixo de uma carta de Sá'
Carneiro. enviada a Fernando Pessoa em 1O de maio de 1913:
"Muito interessante e significativo o que me narra do Jaime Cortesão.
O caso contado por ele acerca do Dr. Fernando Lopes é simplesmente lamentóve.
Não sei como um poeta, em todo o caso um poeta, pode achar estranho que se goste
do Camilo Pessanha! ... Se não conhecesse versos do Cortesão, e me viessem contar
isso, eu ficaria fazendo a pior das ideias de semelhante poeta" (Sá'Carneiro, 1978,
p. 131 ).
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM IRS).
57
Augusto Casimiro ter tido acesso a "San Gabriel", com o qual o poema
acima possui visíveis semelhanças. Em ambos Portugal é um navio
parado no meio do mar, imerso em uma calmaria, já que os ventos
pararam de soprar. Nos dois existe uma espécie de castigo e/ou
maldição, que pesa sobre o navio, expresso por "Que cilada os ventos
nos armaram I A que foi que tão longe nos trouxeram?" (Pessanha, 1973,
p.40) e pela imagem do mastro grande apontando em vão para o
espaço, o que é interpretado como marca de um destino fatal ou de
uma maldição do interno. É esse navio inerte que Pessanha pede que
seja levado à conquisto final por San Gabriel, numa viagem através das
estrelas: O que no poema de Clepsidro é uma súplica, no de Casimiro se
transforma na fala de um marujo-poeta que está na gávea mais alto posição que, devemos assinalar, o eu lírico do poema de Cortesão, que
citamos, solicitava para si, já que era poeta. É dessa gávea que o
marujo-poeta afirma, para o navio morto, que o vento de novo inflará as
velas, e fará com que a nau voe e toque as estrelas.
Se poderíamos supor, pelas relações que aqui traçamos, que o
poema de Casimiro é uma homenagem a Pessanha, afinal ele havia
sido o poeta que afirmara a possibilidade dessa navegação espiritual,
devemos notar que, no interior da revista em que esse texto foi
publicado, uma outra leitura é possível. Em A águia é Teixeira de
Pascoaes a figura central, considerado pelos saudosistas não só o poeto,
mas também como o profeta por excelência. São principalmente as
suas profecias que afirmam a possibilidade do navio Portugal não
simplesmente voltar a se mover, mas de fato atingir conquistas muito
superiores às já realizadas. Para esse autor, como deixa expresso em textos publicados no primeiro volume, o país se encontra em um momento
58
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
genes1co em que o Saudade, para ele síntese entre Cristianismo e
Paganismo e centro da alma portuguesa, finalmente revelada através da
nova poesia, poderá gerar uma nova religião, dando, assim, o resposta
necessária a um mundo carente de religiosidade (Cf. Pascoaes, jan.
1912, fev. 1912, mar. 1912). Ou seja, em certo sentido, Portugal poderá
tocar as estrelas. Por tudo isso, o poeta que aparece no poema de
Casimiro pode ser ao mesmo tempo Pascoaes e Pessanha, ou, se
preferirmos, a voz que, tendo ecoado pela primeira vez nos versos de
Pessanha, agora encarna na figura de Pascoaes.
Pelo que dissemos podemos notar que a relação de Pascoaes
com as navegações se faz, na segunda série de A águia, não apenas
pelos textos que escreve - em que, devemos assinalar, as referências às
navegações não são muito freqüentes - mas também, e principalmente,
pelo papel que ocupa na revista, de uma espécie de capitão desse
novo navegar que se constrói através da nova poesia portuguesa.
Se no segundo volume de A águia encontraremos textos
importantes para alguns aspectos dessas novas navegações, eles
acabarão por apresentar uma postura muito próxima a das obras que já
analisamos. Gostaríamos apenas de apontar que, se pensarmos nos dois
primeiros volumes em conjunto, Jaime Cortesão, Fernando Pessoa,
Teixeira de Pascoaes e Augusto Gasimiro constroem, em seus textos, um
vasto painel em que algumas verdades são insistentemente repetidas8 •
Portugal encontra-se em um momento genésico, de elaboração de uma
nova síntese religiosa, momento este que é considerado como herdeiro
8
Os textos fundamentais dessa construção são os de Teixeira de Pasccoes, Jaime
Cortesão, Augusto Casimiro e Fernando Pessoa, publicados na Segunda série de A
águia, que estão citados na bibliografia.
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
59
de uma série de características, sejam especificamente portuguesas,
sejam mundiais, que estão há muito sendo geradas. Dessa forma
podemos entender como o fazer poético pode ser elevado, por estes
autores, à categoria de novas descobertas. Se os navegadores, graças
ao esforço de se lançar a espaços ainda não conhecidos e, portanto,
ainda não anexados à cultura européia, conseguitam em seu tempo dar
à Europa o que ela necessitava, estes poetas-navegantes partiam em
uma aventura semelhante, a de construir uma nova síntese religiosa,
navegando por territórios ainda inexplorados, que a Europa precisava, na
sua nova ânsia religiosa, de forma análoga à necessidade que tinha tido,
no passddo, das regiões descobertas pelos portugueses.
Como podemos notar, o que nos textos de Oliveira Martins e
Camilo Pessanha era um desejo, se transforma em realidade presente. As
navegações, para os saudosistas, já estão ocorrendo e são, como foram
as do passado, um esforço coletivo: vários poetas estão realizando, neste
novo mar em que se converteu o espaço poético, uma síntese religiosa
que terá dois resultados fundamentais: por um lado, fará com que o
deserto em que se converteu Portugal, esse país em que os portugueses
estão afastados da alma nacional "pelas más influências literárias,
políticas e religiosas vindas do estrangeiro" (Pascoaes, fev. 1912, p. 34),
possa de novo se transformar em um espaço fértil; por outro, essa nova
navegação completará superiormente a missão portuguesa interrompida
no passado:
Sim: a alma lusíada tem de completar a sua obra iniciada
com as Descobertas. O espírito da aventura, que é a Tentação
do Mistério, levou-a por entre o negrume lampejante dos
temporais, através dos mares desconhecidos, por mores
nunca de outrem navegados; e, no seu regresso à pátria terra,
60
LETRAS -Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
trazia nas mãos o globo descoberto. Eis a nossa dádiva ao
género humano. Mas. só por si, o mundo físico é um esboço
apenas, é corpo sem espírito.
A alma lusíada precisa completar a sua obra, dando ao
mundo material que descobrtu, uma nova expressão espiritual,
um novo sentido religioso que o torne presente aos olhos de
Deus, mais uma vez. Ela precisa, enfim, de concluir
espiritualmente o que materialmente iniciou, porque a vida
corpórea é o meio, mas a vida espiritual é o fim. (Pascoaes,
1988, p.l73.)
Existe assim, na concepção desses escritores, uma evidente relação
entre o navegar e o presente do país. As novas navegações, realizadas
pela poesia, estariam completando aquilo que, nas navegações do
passado, teria ficado incompleta e por se cumprir.
III- Acordai marinheiros
Será justamente essa visão de um novo navegar que será discutida
e questionada por António Sérgio. Se isso ocorrerá, de forma lateral, na
polémica que travou com Pascoaes, terá um papel preponderante em
outros textos, em especial em dois poemas que, por serem pouco
conhecidos, gostaríamos de aqui privilegiar.
No terceiro número da segunda série de A águia, António Sérgio
publicará o seu "Apostilha aos Navegadores", em que aparecem muitas
das críticas
」・ョエイ。ゥセ@
que faz ao Saudosismo e à visão que os escritores
desse movimento tinham das navegações:
Ar de névoas ... Nem luz, nem sombras ... Nevoeiros ...
Mar de névoas também ... Reflexos turvos ... Lago
De chumbo, o mar, e o céu ... O Ser-Não-Ser ... O vago
LETRAS· Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
61
E o silêncio, a ilusão, o torpor ... - Marinheiros! ...
Névoas ... Névoas ... Nem luz, nem sombras ... - Marinheiros,
Marinheiros! ... Um ar d'espectros .. .Triste afago
Do sonho, a sombra-luz e o seu silêncio mago ...
E a incerteza, a ilusão, o torpor ... - Marinheiros!
-À escola! Ao leme! Andai! Desperta a claridade!
Fugi, prestígios vãos, e sombras da Saudade!
Tudo que foi, além, p'la popa, o mar esconde ...
O Passado, esse é morto -e jaz em paz no escuro!
Novos Navegadores, naveguem ... Para onde?
Naveguem NO PRESENTE ao rumo do futuro!
[Sérgio, abr. 1913, p.133)
O soneto é bastante explícito. Partindo do tópico da navegação,
presente em muitos dos textos saudosistas publicados em A águia, Sérgio
o altera de forma radicaL propondo um outro navegar, não voltado para
o passado, forma como interpreta este navegar saudosista, mas no
presente e em direção ao futurd. Qualquer leitor da polêmica entre
Sérgio e Pascoaes poderá notar que algumas das críticas que aquele
nela fará a este e aos saudosistas já estão aqui indicadas, assim como a
visão básica que o autor dos Ensaios possui da história.
Por esse soneto podemos concluir que para Sérgio o navegar
saudosista é feito de características totalmente inconsistentes, uma
repetição de termos sem sentido. Isto é indicado não só através da
9
Sérgio parece cair aqui no mesmo equívoco que, segLndo Lourenço, a crítica teve
em relação à obra de Pascoaes, o de supor que a Saudade é o "reflexo de um pendor
passeísta, forma insuperável de recusar através dela não apenas o presente como o
futuro". Como afirmou Lourenço em relação ao autor de Marânus, e consideramos
válido para o Saudosismo como um todo, é em termos de uma futuridade "como
horizonte cada vez mais revelador do percurso havido e da verdade nele contida que
Pascoaes mitificou a pátria e não como mero acontecer-passado a regozar em êxtases
de duvidosa plenitude" (Lourenço, 1982, p.1 09).
62
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
insistente repetição de palavras e expressões que remetem para o
campo semântico do que é vago e inconsistente, como névoas, nem
luz, nem sombras, torpor, ilusão, mas também pela própria estrutura dos
quartetos, formados por uma sucessão de pequenas expressões,
cercadas de reticências, e onde não está presente nenhum verbo. Este
discurso sonambúlico só é interrompido pelo chamamento "Marinheiros!",
três vezes repetido, como que a querer acordá-los deste sono ilusório.
Os tercetos opõem a este primeiro discurso um tom afirmativo,
repleto de verbos e exclamações. O primeiro verso contrapõe aos
anteriores não só um agir evocado por uma sucessão de imperativos,
mas também pela claridade, que destrói a sombra da Saudade e seus
prestígios vãos - e devemos aqui lembrar que um dos significados
possíveis para prestígio é "ilusão dos sentidos produzida pela magia"
(Bastos, 1928, p.ll 08), ilusão que, para Sérgio, certamente não pode
resistir à claridade. Os quatro versos finais deixam bem explícita a forma
através da qual Sérgio analisa o tempo: o passado, para ele, é morto,
nenhuma serventia tendo para o presente. Apenas este, em constante
evolução para um futuro, é que importa 10 • É essa, para ele, a única
navegação possível.
Como
podemos
ver,
existe
nesse
soneto
uma
total
desqualificação das propostas e do próprio discurso saudosista. Este
movimento, para Sérgio, está em erro, por não navegar para o futuro, e
ficar preso não só ao passpdo, mas a tudo aquilo que, por ser vago e
falso, de nada pode servir ao país. Usando a claridade de sua razão
" Um dos temas que será discutido em vários dos artigos da polémica SérgioPascoaes
será o de se o passado pode ou não fornecer energias para o presente. Para Sérgio é o
presente que fornece energias ao passado, sendo este portanto, como ele expressa no
poema que estamos analisando, morto, e totalmente inútil.
LETRAS- Revisto do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
63
Sérgio vê nas propostas do Saudosismo uma sucessão de fantasmas e
espectros que é preciso exorcizar para que o país possa navegar na
correta direção.
Essas idéias de Sérgio serão retomadas, algum tempo depois, em
outro poema, "Pela grei", publicado no quinto volume da revista, que
abaixo reproduzimos:
PELA GREI
Os que sonham
a Augusto Casimiro,
em resposta à sua carta.
Uma nação que não está a par do seu tempo é
forçosamente uma nação miserável. .. O gênero humano, que
sempre caminha avante, deixará acaso após si esta porção
de seus membros, chamada nação portuguesa?
ALEXANDRE HERCULANO
Sonhais, amigos meus: sonhais, vagando
No saudoso jardim das ilusões;
Entre um povo de Espectros e Visões
Teceis um sonho etéreo, ingénuo e brando ...
A Sombra dos avós-nevoento bandoNum nimbo vos cercou de cerrações:
A chama, o ardor da vida, os seus clarões,
Ela os muda em sol-pôr, crepusculando ...
Ah! meus amigos, como é bela a vida
E a mente clara se arroja à lida,
E à acção, e à idéia, vai chamando os povos.
Revolve a terra, cruza o mar profundo,
- Olhos na busca de horizontes novos,
- Pulso na faina directriz do mundo!
(Sérgio, maio 1914, p.147.)
64
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
A dedicatória do poema a Augusto Casimiro 11 , o poeta saudosista
com produção mais sistemática nos três primeiros volumes, já deixa claro
quais são os interlocutores que pretende atingir com o soneto. A epígrafe
de Herculano também tem objetivos para além do que vem nela escrito:
referenda a postura recorrente de Sérgio de se considerar um discípulo e
continuador das idéias do solitário de Vai dos Lobos. Emoldurado pela
dedicatória e pela epígrafe, encontramos no soneto uma postura muito
próxima à que existia no "Apostilha aos navegadores". Nele se opõem
duas posturas distintas, a dos que sonham - que, por todo o contexto,
são
os
saudosistas,
com
suas
infundadas
esperanças
reerguimento gerado por um passado que não mais existe -
de
um
e a dos
que, agindo com mente clara, modificam o mundo 12 . Esta oposiÇão
entre os dois campos mostra bem, mais uma vez, que a conciliação
entre as duas posturas, para Sérgio, é impossível. Ou se sonha fixado em
um passado que não mais existe, e fica-se fora do fluxo sempre para
adiante que caracteriza a humanidade, como afirma Herculano na
epígrafe, ou se entra em compasso com o tempo presente, e se abre ao
sol da vida, marchando resolutamente para a frente como então ocorria,
na visão de Sérgio, com os principais povos europeus, e em especial
11
Esta dedicatória e o início da segunda participação de Sérgio na polêmica- em que
é dito "E à sua frente, gládio em punho, pusemos o Pascoaes. - Isto me escrevia há dois
meses e meio, anunciando-me o seu artigo que recebi ontem, o nosso Augusto
Casimiro" [Sérgio, jan. 1914, p. 1.) - parecem indicar que era relativamente freqüente a
troca de correspondência entre o autor dos Ensaios e o escritor de "O poeta e a nau",
apesar de estarem em campos opostos.
12
Devemos notar que ambos os sonetos de Sérgio possuem uma visível semelhança
com o "A um poeta" de Antero de QuentaL poema em que também existe uma
oposição entre o dormir e despertar e a presença do sol que "Afugentou as larvas
tumulares ... " [Quental, 1968, p.52). Certamente as semelhanças, facilmente
perceptíveis, servem como uma espécie de reforço para as idéias de Sérgio, que se
considerava como herdeiro das concepções do autor dos Sonetos.
LETRAS- Revisto do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (RS).
65
com a Grã-Bretanha. Assim, temos neste soneto a reelaboração, em
forma poética, do que Sérgio vinho recorrentemente afirmou em todas
as suas participações na segunda série de A águia desde o referido
poema publicado no terceiro volume, ou seja, a necessidade de romper·
com o passado e entrar em contato com o mundo moderno, única
maneira de reerguer um país atolado em recordações de um passado
que não tem mais existência concreta.
Certamente, como estes sonetos nos mostram, nem os saudosistas
poderiam aceitar a postura de Sérgio, nem este a dos membros desse
movimento. Pascoaes e Sérgio, ao longo de sua polêmica, acabarão
por construir um discurso de surdos 13 •
Nas posturas de Sérgio e Pascoaes podemos notar, como
tentamos mostrar neste artigo, um confronto entre duas tradições
diversas. Se Sérgio, considerando-se um herdeiro de Herculano e Antero 14 ,
13
Sérgio lndlcaró. em sua terceira participação na polémica, que não pretendia
dialogar com os saudosistas. No Inicio desse texto, afirma: "A tudo. querido amigo, se
pode responder, e são todas as discussões por sua natureza eternizóveis; da minha
parte, porém, estó dito o lndispensóvel, que era mostrar a outra estrada aos jovens
leitores da Águia e da Vida Portuguesa: a estrada não-saudosista, não-Isoladora, ou
não-purificadora. Que cada um deles decida agora. (Sérgio, abr. 1914 ,p, 109)."
Em outro trecho, diz:
"Não pretendi convencer saudosistas-natos, porque os sentimentos se não movem pelas
alavancas que eu emprego, mas pela Música e pela Facúndia; e porque o Isolamento,
se é incombustível como me diz, é comburente como todos os diabos, o que ficou
provado na nossa história de três séculos. Falo e falarei para os neutros, os materialões,
ou para os que ftverem degenerado do temperamento fantasista, Impulsivo,
inconsistente- por uns classificado de Idealista e por outros de retórico,- que nos formou
a velha sina de conquistadores e aventureiros, retardatários da cavalaria. "(Sérgio, abr.
1914,p.l12).
14
Essa filiação, sempre apontada por Sérgio, pode ser notada, entre outros, no
seguinte trecho: "Como a historia se repete na nossa terra desgraçada! Pois que
significa esta palestra, senão um minlmo episódio (mínimo, decerto, porque eu não sou
ninguém) na grande luta portuguesa entre o Isolamento e a Cultura, entre a Inquisição e
o Humanismo, entre os Jesuítas e Verney, entre Pina Marques e os pedreiros livres, entre
66
LETRAS - Revisto do Curso de Mestrado em Letras do UFSM [RS).
afirma que mais nenhum papel cabe às navegações no presente de
Portugal, Pascoaes, e os demais saudosistas, tentarão mostrar que o
navegar ainda não está completo, e que é através de um mar de
poesias que o futuro do país poderá ser construído.
Se, certamente, no sentido prático, Sérgio tem uma visão muito
mais realista do país, e se digladia com seres que, como ele mesmo virá
a afirmar ironicamente, constroem um "mundo fantástico e seráfico onde
as montanhas são de mel, e os rios são de leite, e os pássaros dão flor, e
das ginjeiras brotam homens, como das nossas brotam ginjas ... " (Sérgio,
jan. 1914, p.4), será justamente o outro grupo, chefiado por Pascoaes,
que, atualizando uma tradição que como vimos se inicia em Martins, virá
a formular algumas das intuições básicas que estarão presentes no
Mensagem de Fernando Pessoa. A visão das navegações como parte
de uma missão ainda por se completar, que aparece entre outros no
poema "O Infante"; a importância que o eu poético assume em poemas
como "A última nau"; e até mesmo a visão de uma nova eucaristia em
que se dará a consumação dos tempos, presente em "O quinto império",
todas estas construções podem ser vistas como releituras, feitas por
Pessoa, de alguns tópicos que já estavam presentes nas reflexões
saudosistas.
Assim, se Sérgio reelaborou uma tradição que via as navegações
como características de um tempo passado, que nenhuma relação
possuía com o presente do país, serão os saudosistas, com a sua criação
de um novo navegar, que fornecerão algumas das vigas mestras que,
os rigoristas e os franceses, entre os Ouriquistas e Herculano. entre o grupo de Castilho e
Antero de Quental?" (Sérgio. jan. 1914, p.5)
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
67
anos mais tarde, serão utilizadas na obra do principal poeta português do
século XX.
Bibliografia
BASTOS, J. T. da Silva. Dicionário etimológico, prosódico e ortográfico da língua
portuguesa. Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 1928, 2. ed.
CASIMIRO, Augusto. A primeira nau. A águia, 2° série, Porto, v.2, n. 1O, p. 125-133,
out. 1912.
CASIMIRO, Augusto. O poeta e a nau. A águia, 2° série, Porto, v. 1, n.4, p. 129,
abr. 1912.
CASIMIRO, Augusto. Versos de aleluia. A águia, 2° série, Porto. v.2, n.6, p. 1O, jul.
1912.
CORTESÃO, Jaime. A Renascença Portuguesa e o ensino da história pátria. A
águia, 2° série, Porto, v.2, n.9, p.73-80, set. 1912.
CORTESÃO, Jaime. Da Renascença Portuguesa e seus intuitos. A águia, 2° série,
Porto, v.2, n. 1O, p. 118-124, out. 1912.
CORTESÃO, Jaime. Regendo a sinfonia da tarde. A águia, 2° série, Porto, v. 1,
n.6, p. 175-180, jun. 1912.
HERCUlANO, Alexandre. História de Portugal. Lisboa: Livraria Bertrand, s.d (a).
HERCUlANO, Alexandre. Opúsculos Tomo V. 5. ed. Lisboa: Livraria Bertrand, s.d
(b).
LOURENÇO, Eduardo. O labirinto da saudade. 2.ed. Lisboa: Dom Quixote, 1982.
MARTINS, Oliveira. História da civilização ibérica. 1O.ed. Lisboa: Guimarães, 1973.
MARTINS, Oliveira. História de Portugal. Lisboa: Europa-América, s.d. (2 vol.).
NOBRE, António. Despedidas. 4.ed. Porto: Imprensa Moderna, 1945 .
68
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS].
OLIVEIRA, Paulo Motta. Em naus que são construídas daquilo de que os sonhos
são feitos: a poesia como um novo navegar. lN: CORRÊA, Alamir Aquino
(org.). Navegantes dos mares às letras. Londrina: Ed. UEL 1997. p.190-199.
OLIVEIRA, Paulo Motta. Esperança e decadência: as imagens de Portugal na
segunda série de A águia. Campinas: Instituto de Estudos da Linguagem da
UNICAMP, 1995. (Tese, Doutorado em Teoria da Literatura).
OLIVEIRA, Paulo Motta. Esperança e decadência: as imagens de Por1ugal na
segunda série de A águia. Sínteses, Campinas, Instituto de Estudos da
Linguagem da UNICAMP, n.1, p.284-301, 1996.
OLNEIRA, Paulo Motta. Fernando Pessoa e o Saudosismo: a nova poesia
portuguesa em A águia.
Anais do 5° Congresso da Associação
Internacional de Lusitanistas. Oxford-Coimbra: Associação Internacional de
Lusitanistas, 1998. p.1157-1167.
OSÓRIO, João de Castro. Sonetos X e XI . Algumas variantes a considerar. lN:
PESSANHA, Camilo. Clepsidra e outros poemas. 6. ed, Lisboa, Ática, 1973.
p. 148-151.
PASCOAES, Teixeira de. A era lusíada. A Saudade e o Saudosismo. Lisboa: Assírio
& Alvim, 1988. p.155-173.
PASCOAES, Teixeira de. Mais palavras ao homem da espada de pau. A águia,
2° série, Porto, v.6, n.31, p.1-5, jul. 1914.
PASCOAES, Teixeira de. Os meus comentários às duas cartas de António Sérgio.
A águia, 2° série, Porto, v.4, n., p.1 04-109, out. 1913.
PASCOAES, Teixeira de. Renascença (o espírito da nossa raça). A águia, 2° série,
Porto, v.1, n.2, p.33-34, fev. 1912.
PASCOAES, Teixeira de. Renascença. A águia, 2° série, Porto, v.1, n.1, p.1-3, fev.
1912.
PASCOAES, Teixeira de. Resposta a António Sérgio. A águia, 2° série, Porto, v.5,
n.26, p.33-38, fev. 1914.
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
69
PASCOAES, Teixeira de. Ultima carta? A águia. 2° série, Porto, v.5, n.29, p. 129137, maio 1914.
PESSANHA. Camilo. Voz débil que passas. A águia, 2° série, Porto, v.9, n.50, p.46,
fev. 1916.
PESSANHA, Camilo. Clepsídra e outros poemas. 6. ed, Lisboa: Ática, 1973.
PESSOA. Fernando. A nova poesia portuguesa no seu aspecto psicológico. A
águia, 2° série, Porto, v.2, n.9 p.86-94, set. 1912; n.11, p.153-157, nov.
1912; n. 12 p. 188-192, dez. 1912.
PESSOA. Fernando. A nova poesia portuguesa sociologicamente considerada. A
águia, 2° série, Porto, v. 1, n.4. p. 101-107, abr. 1912.
PESSOA. Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1983.
PESSOA. Fernando. Obras em Prosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1986.
PESSOA. Fernando. Reincidindo. A águia, 2° série, Porto, v. 1, n.5, p. 137-144,
maio 1912.
QUADROS, António. A Ideia de Portugal na 1/teratura portuguesa dos últimos cem
anos. Lisboa: Fundação Lusíada, 1989.
QUENTAL, Antero de. Prosas sócio-políticas. Lisboa: Imprensa Nacional- Casa da
Moeda, 1982.
QUENTAL. Antero de. Sonetos. 2.ed. Lisboa: Sá da Costa, 1968.
SÁ-CARNEIRO, Mário de. Cartas a Fernando Pessoa I. Lisboa: Edições Ática,
1978.
SÉRGIO, António. Pela Grey Os que sonham. A águia, 2° série, Porto, v.5, n.29,
p. 147, maio 1914.
SÉRGIO, António. Apostilha aos navegadores. A águia, 2° série, Porto, v.3, n. 16,
p, 133, abr. 1913.
SÉRGIO, António. Despedida de Julieta. A águia, 2° série, Porto, v.5, n.28, p. 109112, abr. 1914.
SÉRGIO, António. Epístolas aos saudosistas. A águia, 2° série, Porto, v.4, n.22 ,
p.97-1 03, out. 1913.
70
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
SÉRGIO, António. Explicações necessárias do homem da espada de pau ao
arcanjo da espada dum relâmpago. A águia, 2° série, Porto, v.5, n.30,
p. 170- 175, jun. 1914.
SÉRGIO, António. Regeneração e tradição, moral e economia. A águia, 2° série,
Porto, v.5, n.25, p. 1-9, jan. 1914.
SERRÃO, Joel. Gênese e estrutura do pensamento sócio-político de Antero de
Quental. lN: QUENTAL Antero. Prosas sócio-políticas. Lisboa: Imprensa
Nacional- Casa da Moeda, 1982. p. 9-95.
SPAGGIARL Barbara. O simbolismo na obra de Camilo Pessanha. Lisboa: Instituto
de Cultura e Língua Portuguesa, 1982.
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
71
A SOLIDÃO COMO RIQUEZA E COMO POBREZA
Lucia HELENA
UFRJ-UFF
Tematizar a articulação da vida selvagem com a história da
colonização européia nas Américas e, a partir dela, representar o Brasil foi
o desafio que José de Alencar tomou a seu cargo.
Por vezes a questão alcança uma evidência explícita, noutras fazse co-lateral. Nos chamados romances urbanos,
a narrativa se torna
uma forma de representar o país nascente, construindo a "memória"
citadina de um homem que ocupasse o lugar das mitologias da origem.
Lido de forma um tanto preconceituosa ou de maneira ufana por sua
fortuna crítica, o texto de Alencar surpreende pela qualidade de
perspicácia. Ressalta o tratamento dos impasses com que se defrontava
a sociedade daquele momento para construir uma imagem que a
habilitasse ao exercício da cidadania, sonho acalentado na vontade-deser-nação das elites da época.
Quero examinar alguns aspectos da questão, numa reflexão que
articule o trabalho de Alencar e seu imaginário ao universo que lhe é
contemporâneo. Duas chaves deste instn'lte - duas revoluções - estão,
em nossa hipótese, na Inglaterra e na França. A primeira. a revolução
industrial, era decisiva para os destinos do capitalismo. A França, por
outro lado, promoveu a revolução de seu tempo, não mais uma
revolução com minúscula, mas um marco para todos os países. Suas
repercussões.
ao
contrário
daquelas
da
revolução
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
americana,
73
ocasionaram levantes que conduziram à libertação da América Latina
depois de 1808.'
Daniel Defoe ilustra o exemplo inglês, pela importância de seu
Robinson Crusoe, hoje visto como a obra que contribuiu para implantar
um dos mais fortes mitos do individualismo ocidentaL
Da França, vem Rousseau, pela forma como trata os dilemas da
relação entre a razão iluminista e o mergulho precursor no ''território da
intimidade". E pela maneira como enlaça, numa tensão perpétua, o
homem social e o homem naturaL A alusão por ele feita ao Robinson
Crusoe figura no contraste entre o eu social (o cidadão do novo contrato)
e o eu individual (a dimensão na qual se debatem ·forças que
impulsionam a subjetividade).
Meu objetivo é lançar alguns pressupostos que construam novas
bases intelectuais para uma releitura do projeto cultural que a narrativa
de Alencar esboça.
O ponto de partida para essa tentativa consiste em examinar, a
partir do tema da solidão e da relação entre o social e o natural, a
construção pedagógica de uma imagem de comunidade e de
cidadania.
Preside esta empresa a intenção de compreender o que nos
dizem os personagens de Alencar acerca da pergunta: o que é ser
brasileiro no século XIX? Num país periférico e contraditório, o patriarca
da independência estudara em Coimbra e pertencera à geração lusobrasileira de 1790, tendo ocupado, em Portugal, cargo jamais oferecido
a quem não fosse português.
1
Eric Hobsbawm. O mundo na década de 1780, in·. ---.A era das revoluções. Europa
1789-1848, 5°. ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1986. p. 73.
74
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
A viuvinha, de l 85 7, apresenta um narrador que se desdobra
noutro tipo de patriarca: o que interroga o sistema social engenhoso e
procura despertar "os bons instintos pelo isolamento e pelo silêncio". Mas
estar em solidão não é algo de monta apenas em O guarani e em A
viuvinha. Iracema também apresenta a questão de forma estrutural. A
solidão, nesses textos, vem acompanhada da crise, do anúncio de uma
transformação.
Alencar tem por escrever a história de uma nação. Dar-lhe forma e
origem. Atribuir-lhe valores.
Há que considerar seus preceitos e
preconceitos. E formular versões possíveis, verossímeis ao século e aos
leitores. São muitos os percalços.
Peri/Ceci, Iracema/Martim, Jorge/Carolina são alguns dos pares à
deriva de uma relação em que presente e passado desenham um
conflito: há um mundo anterior que não se coaduna com o presente. E
este vem marcado pela iminência do perigo. Apaixonado por Carolina,
na véspera do casamento, Jorge se encontra com o Sr. Almeida, velho
amigo de seu pai, e seu tutor. Este o avisa:"-- O senhor está pobre!"
, Casar sem lastro o presente com o passado. Em Senhora,
também o presente de Seixos e Aurélia tem contas a ajustar com a falta
de lastro. Com o pouco de que dispõem, os heróis de Alencar têm que
propiciar a origem do Brasil (Iracema e Peri) e liquidar as dívidas (Seixos e
Jorge). Defrontam-se permanentemente com a solidão e a contradição
entre puros sentimentos e a engenhosidade social, que deles demanda
um equilíbrio instável entre o ser e o parecer.
A escolha do tema da solidão tem uma razão quase óbvia: os
impulsos de mudança traziam a necessidade de figurar a idéia de um
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
75
reinício, sob a forma da alegorização da origem de uma coisa e de uma
causa novas.
O tema solidão, focalizado por diversos ângulos, cai como uma
luva na mão de Alencar. "Tudo passa sobre a terra", frase final de
Iracema, pode ser um mote no percurso narrativo de Alencar, que do
nada tem que rastrear, lembrando e esquecendo, rasurando e
escrevendo sobre o já escrito de uma cultura que, começando a saber
de si no século XVI, leva três séculos à procura de si mesma. Ilha de Vera
Cruz, Terra de Santa Cruz e, finalmente, Brasil são os três nomes desse
continente solitário visitado por europeus, habitado por índios e
colonizado por portugueses. De súbito, no século XIX, ainda convivendo
com a institu'ição colonial, o país se transforma em corte. Despreparado,
reedita-se nos oitocentos brasileiros o mito do indivíduo que necessita
criar do nada a civilização, que Defoe grafara na Europa dos setecentos.
Em 1719, Daniel Defoe reservara a Robinson Crusoé uma ilha
deserta. Quarenta e três anos depois, observando uma discordância
entre as palavras e os atos dos homens, Rousseau pressupõe que a
cultura estabelecida nega a natureza e que a civilização, longe de
iluminar os homens, obscurece valores. Diante disso, decide que o
personagem Robinson, vivendo em solidão, representa para os leitores a
oportunidade de experimentar o mundo a partir de valores autênticos.
Assim, nas páginas do Émite, publicado em 1762, considera que
"[e]ste livro será o primeiro que irá ler o meu Emílio; sozinho irá compor,
durante longo tempo, toda a sua biblioteca e .nela sempre terá um lugar
de destaque." 2
2
Jean-Jacques Rousseau, Émi/e ou de l'éducatlon, Paris, Garnier-Fiammarion, 1966, p.
239. As demais citações da obra serão feitas no corpo do texto.
76
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
A situação natural, como que pré-reflexiva, do personagem, que
mantém com a natureza um contato direto regido apenas pela
necessidade, parece levar Rousseau a uma leitura apoteótica da obra
de Defoe.
Provavelmente o leu na tradução de 1720, ou na adaptação de
Saint Hyacinthe e Justus van Effen, feito na medida do gosto literário da
França daquela época
3
.
Nas duas hipóteses, a versão que teria
chegado a Rousseau, segundo lan Watt, redunda numa apologia da
natureza. Um exemplo disso é que, a certa altura, quando o personagem
vê o milho pela primeira vez, a edição francesa faz com que ele
exclame: "Ó Natureza!" (Watt, 1997, 181 ). O valor que Rousseau atribui ao
texto, no Émile, e as numerosas referências ao estado de solidão num
lugar isolado, mas fértil e acolhedor,
encontradas nos Devaneios do
caminhante solitárlo4 , no qual é aludido algumas vezes,
revelam a
grande admiração de Rousseau pelo romance (ou, melhor dizendo, por
sua maneira de interpretar o romance de Defoe).
Nascido em 1712, Rousseau teria em torno de oito anos quando
da tradução da obra para o francês, sendo impossível que Robinson
Crusoe constasse entre os romances que herdara da mãe. Não tinha
sido, portanto, a partir do personagem de Defoe que o menino Rousseau
plasmara sua alma, já que de acordo com o que diz n' As confissões, por
volta dos seis anos começara a ler com o pai, depois do jantar, os
3
lan Watt, Mitos do individualismo moderno. Fausto, Dom Quixote, Dom Juan, Robinson
Crusoe, trad. Mário Pontes, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997, p. 178.
4
Jean-Jacques Rousseau, Os devaneios do caminhante solitário, trad. Fúlvia Maria Luiza
Moretto, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 3°. ed., 1995.
romances deixados por sua mãe, morta quando ele nascera. Dessa
prática, afirma, datava a "consciência de si mesmo" 5 :
Ignoro o que fiz até os cinco ou seis anos. Não sei como
aprendi a ler; lembro-me somente das minhas primeiras leituras
e do efeito que me produziram: é o tempo de onde começo
a contar sem interrupção a consciência de mim mesmo.
Minha mãe tinha deixado romances; pusemo-nos a lê-los,
depois da ceia, meu pai e eu. [... ] Essas emocões confusas
que experimentei seguidamente não alteraram o raciocínio
que ainda não tinha: porém formaram-me de uma outra
têmpera e me deram nocões bizarras e romanescas sobre a
vida humana. nocões das quais nem a experiência nem a
reflexão conseguiram jamais curar-me perfeitamente. Os
romances terminaram com o verão de 1719. O inverno que se
seguiu foi diferente. Esgotada a biblioteca de minha mãe,
recorreu-se à de meu avô. que nos tinha caído nas mãos.(grifo
meu) 6
Esse trecho d' As confissões, especialmente o que sublinhamos,
deixa entrever um dos motivos de Rousseau querer, ao tematizar o
preceptor de Emílio, que o aluno aprenda da vida e não dos livros. É o
julgamento do moralista que o leva a esta conclusão. Emílio, aos
quatorze anos, não deverá ler senão o Robinson Crusoe a partir da
crença de que o estado de natureza seria capaz de fazer com que o
homem vivesse em equilíbrio, não o opondo ao mundo, nem a si
próprio.(Starobinski, 1991, 37).
Os desejos, a linguagem, tudo o que os livros podem despertar e
desencadear as emoções bizarras a que ele se refere devem ser
5
Jean Starobinski, Jean-Jacques-Rousseau. A transparência e o obstáculo. Seguido de
sete ensaios sobre Rousseau. trad. Maria Lúcia Machado, São Paulo, Companhia das
Letras. 1991, p. 346.
6
Jean-Jacques Rousseau. As confissões, pref. e trad. de Wilson Lousada. Rio de Janeiro,
Ediouro, [s.d], p. 15.
78
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
contidos e adiados.
Desta forma,
o
homem experimentaria um
"( ... ]contato límpido com as coisas, que ainda não é turvado pelo erro.
(... ] A esse estado em que se supõe que o homem viva aquém da
distinção do verdadeiro e do falso, Rousseau concede o privilégio da
posse imediata da verdade" (Starobinski, 1991, 37-38).
Nas páginas do Émí/e, assim se justifica a razão da escolha desse
livro-ideal:
Robinson Crusoe em sua ilha. sozinho, sem contar com a quda
de companheiros nem de instrumentos necessários às diversas
artes, consegue assegurar a própria sobrevivência, a própria
segurança, chegando mesmo a alcançar um certo bem-estar,
assunto que certamente interessa a todas as idades, e que
podemos de mil maneiras tornar agradável às crianças. O que
primeiro tentei com as minhas comparações, foi fazer de
modo que a ilha deserta se tornasse real. A situação que lá
existe, devo concordar, não é a do homem social; e portanto
não é a do Emílio: mas é justamentente por esse estado que
devemos avaliar todos os outros. O melhor meio de nos
livrarmos dos preconceitos, e de organizar nosso pensamento
em sua verdadeira relação com as coisas, é nos vermos como
se estivéssemos na situação de um homem isolado, e julgar
tudo da maneira como ele poderia julgar, ou seja, conforme a
utilidade das coisas para ele. (Rousseau, 1966, 239)
O homem solitário numa ilha deserta, gozando de "sentidos puros,
isentos de ilusões", coisa que Rousseau identifica como "a plenitude",
seria para ele o eloqüente juiz da utilidade das coisas. O compromisso do
Émíle parece ser o de definir estratégias para que o futuro cidadão
venha a ser capaz de extrair uma utilidade para a vida prática, da qual
verdadeiros valores pudessem derivar:
É pela relação sensível com a utilidade. a segurança. a
conservação e o bem-estar que Emílio deve apreciar os
corpos da natureza e os trabalhos dos homens. Assim, em sua
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
79
visão, o ferro deve ter um preço mais alto do que o ouro e o
vidro valer mais do que o diamante; (... ]. (Rousseau, 1966, 242)
Leitor da República, por ele considerado o mais belo tratado de
educação já produzido, Rousseau estava então convencido de que o
homem mais vivido não é o mais velho, mas o que mais tivesse
experimentado a vida (Rousseau, 1966, 40). É desse modo que o
Robinson lhe surge como o modelo por excelência para o homem
abstrato, representado no Emílio como aquele que deve saber tudo o
que lhe seja útil "e não saber senão isto" (Rousseau, 1966, 241 ).
Para aproximar-se do natural e afastar-se da opinião, segundo ele
arbitrária e contaminada pelo preconceito, Rousseau buscava àncorar a
educação (daquele aluno só em aparência particular, pois em tudo
representando o homem universal sonhado no Contrato social que
publica no mesmo ano do Émile) em princípios que relacionavam as
atividades às necessidades. Desse modo. lia o personagem de Defoe
como um ser capaz de sensibilizar-se com o valor-real das coisas, que
lhe seria dado pela vivência.
Rousseau adota o livro como leitura para a "idade feliz". Seu
personagem é uma figura com a qual
Emílio deve identificar-se.
Finalmente. a solidão é para ele o requisito fundamental da obra.
Podemos pensar se esta interpretação de Rousseau realmente dá conta
do perfil de Robinson, no ecaminhamento que a narrativa de Defoe
desenha para seu personagem.
Na primavera-verão de
1777,
Rousseau escreve a sétima
caminhada de seus Os devaneios do caminhante solitário. Com mais de
sessenta e cinco anos e meditando sobre as disposições de sua alma
diante das situações da vida, alude ao Robinson Crusoe, quando se
80
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
refugia na recordação de uma antiga viagem através da cadeia de
montanhas do Jura, entre a França e a Suíça. Lembra-se de que se havia
posto a
[... ] devanear mais à vontade, pensando estar num refúgio
ignorado por todo o universo, onde os perseguidores não me
descobririam. Um movimento de orgulho misturou-se em breve
a esse devaneio. Comparava-me a esses grandes viajantes
que descobrem uma ilha deserta, e dizia a mim mesmo com
complascência: sem dúvida, sou o primeiro mortal a penetrar
aqui; considerava-me quase como um outro Colombo.
(Rousseau, 1995, l 001
A ilha deserta aqui se metamorfoseia na suposição da descoberta
de um recanto ignorado do universo, em completa solidão (no mesmo
texto Rousseau vê que se equivocara, pois perto dali havia uma fábrica
de meias). Tanto no primeiro sentido atribuído, no Émi/e, à ilha deserta,
vista como espaço de aprendizagem dos valores da natureza, a
educarem o homem social para uma vida baseada em valores-reais,
vinculados à necessidade; até um segundo sentido, encontrável em Os
devaneios, de recolhimento em si mesmo, em busca de paz, a
interpretação de Rousseau, parece se desligar do que nos diz a narrativa
do viagem do náufrago Robinson e de seus vinte e oito anos de duro
faina na ilha em que se encontrava após ter-se decidido a abandonar o
casa paterna em razão de buscar o sucesso económico para além da
mediania de uma vida confortável.
Para o Rousseau d' Os devaneios, a ilha é o lugar isolado onde o
eu se enlaça em si mesmo (Rousseau, 1995, 72). Na quinta caminhada,
em que fala de sua estada na Ilha de Saint-Pierre, no centro do lago de
Bienne, a ilha se metamorfoseia no /ocus omoenus que interessa aos
solitários, aos inebriados que gostam de perder-se na sua própria
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
interioridade, seres movidos, pelos encantos da natureza, ao mergulho
interior cada vez mais profundo (Rousseau, 1995, 71 ). Diz ele:
Quando a noite se aproximava, descia dos cumes da ilha e ia
de bom grado sentar-me à beira do lago, sobre a praia, em
algum refúgio escondido; lá, o ruído das vagas e a agitação
da água fixando meus sentidos e expulsando de minha alma
qualquer outra agitação, a mergulhavam num devaneio
delicioso. em que a noite me surpreendia sem que o tivesse
percebido. O fluxo e refluxo dessà água, seu ruído contínuo
mas crescente por inteNalos, atingindo sem repouso meus
ouvidos e meus olhos, supriam os movimentos internos que o
devaneio extinguia em mim e bastavam para me fazer sentir o
prazer da existência sem ter o trabalho de pensar. De tempos
em tempos nascia alguma fraca e curta reflexão sobre a
instabilidade das coisas deste mundo do qual a superfície das
águas me oferecia a imagem: mas, em brev\3. essas
impressões leves se Dpagavam na uniformidade do
movimento contínuo que me embalava, e que, sem nenhuma
ajuda ativa de minha alma, não deixava de me fixar, a tal
ponto que, chamado pela hora e pelo sinal combinado, não
podia arrancar-me de lá sem esforço. (Rousseau, 19995, 75.
Grifo meu.)
Ainda que esta obra se distancie, tanto na construção como no
propósito,
do
Émiie,
o
fragmento
destacado
acentua
marca
fundamental do pensamento de Rousseau: "[c]om a reflexão termina o
homem da natureza e começa 'o homem do homem"'(Starobinski, 1991,
39). Ou seja, o estado reflexivo é contra a natureza, e o problematizar, o
pensar, conduzirá Rousseau a um mundo inquietante e contraditório, no
qual a transparência, que ele tanto busca e nomeia como verdade, se
põe diante da opacidade, do obstáculo, da melancolia.
O devaneio desejante, diz Starobinski, não pode, por assim dizer,
fugir ao seu próprio poder de ímpeto e de excesso. Por mais que
Rousseau queira sugerir que o recurso ao devaneio o remete
82
LETRAS -Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
à
tranqüilidade, pois suspende a agitação do pensar, não é bem isto o
que ocorre:
[c]om o recuo dos anos, a imagem da vida estável e limitada
torna-se atraente por sua própria impossibilidade. O retorno ao
país natal converte-se, desse modo, em uma direção nova da
fantasia romanesca. Assim, surge um horizonte de nostalgia
maravilhada [ e aqui eu interrompo para lembrar dos
romances indianistas de Alencar, onde isso também ocorre],
que oferece a imagem da felicidade em uma vida que não
foi vivida. A perspectiva da nostalgia, com os anos, acentuarse-à cada vez mais. O sonho se reportará ao tempo perdido,
às possibilidades desaparecidas, aos rostos do passado. A
memória tende a suplantar a esperança. (Starobinski, 1991,
349)
A busca da comunicação total e da confiança -- o que o levara a
teorizar sobre a moral, no Émile, e a abrir publicamente os seus segredos
n' As confissões -- faz com que a obra de Rousseau tematize, do início ao
fim, o fio de um paradoxo: de um lado, almeja realizar o mito da
transparência, ou seja: o paraíso perdido das consciências em recíproca
e plena interação; de outro, a consciência de que o próprio mundo
muda incessantemente de aspecto, tece véus que encobrem, entre
outras coisas, a confiança, a inocência, a simplicidade, o valor-em-si da
verdade.
Com Rousseau, a linguagem tornou-se o lugar de uma experiência
e de uma meditação, pois ele
[... ]inventou a atitude nova que se tornará a da literatura
moderna (para além do romantismo sentimental pelo qual se
tornou Jean-Jacques responsável): pode-se dizer que ele foi o
primeiro a viver de maneira exemplar o perigoso pacto do eu
com a linguagem: a nova aliança na qual o homem se faz
verbo.(Starobinski, 1991, 207)
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
83
Quando Rousseau recomenda a leitura do Robinson Crusoe, na
obra de 1762, e quando o retoma, na de 1776-78, publicada
postumamente, este mundo conflituoso se abre para o sentido da
solidão, que nele alcança patamares inusitados de significação e
riqueza. Mas esta riqueza está em Rousseau e na sua obra. Ele a
empresta ao Robinson de Defoe que, comQ já foi lido por outros, pode
ser visto não como Jean-Jacques o compreende, mas como a metáfora
do homo economicus, a abrir as portas do individualismo na versão que
dele conhece a economia do capitalismo.
Filho
de
um
bem-sucedido
comerciante
alemão
que
se
estabeleceu na Inglaterra, Robinson se sente, desde muito cedo, atraído
pelo mar. Seu pai suspeita que esta vocação irá conduzí-lo ao desastre.
Aos 19 anos, no dia 1o de setembro de 1651 , o filho parte do porto de
Hull, em companhia de um amigo. Ao referir-se a esta parte da trama,
lan Watt a compara com o entrelaçamento de duas célebres passagens
do cristianismo: o pecado original e o arrependimento e volta do filho
pródigo ao lar paterno. Mas, no caso de Robinson, o que se dá é a
inversão. Nem ele volta, apesar do naufrágio, nem se arrepende.
Surgido em abril de 1719, o longuíssimo título da obra de Defoe dá
uma espécie de resumo das peripécias do personagem:
A vida e as surpreendentes aventuras de Robinson Crusoe,
marinheiro de York; que viveu vinte e oito anos completamente
só em uma ilha desabitada na costa da América, perto da foz
do grande rio Orinoco: atirado na praia por um naufrágio no
qual morrem todos. exceto ele, .com um relato de como foi
afinal curiosamente libertado por piratas. Escrito por ele
mesmo. (Watt, 1997, 151)
Robinson sofre um primeiro naufrágio do qual todos se
salvam. Durante a tempestade, temendo morrer, planeja voltar à casa
84
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
do pai e reconhecer seu erro. Quando a tempestade amaina, o "filho
arrependido" cede lugar ao aventureiro ambicioso e, assim que chega a
Londres, embarca novamente, dirigindo-se à África. A aventura se revela
lucrativa, e ele resolve continuar, sendo então capturado por um pirata
turco. Preso durante dois anos, escapa junto com um adolescente
mouro, Xuri, de quem se torna amigo, embora vá adiante vendê-lo, sem
qualquer escrúpulo. Recolhido por um navio português, vem parar no
Brasil, onde cultiva tabaco e açúcar. Trabalha duramente quatro anos e
prospera. Querendo conseguir ainda mais, toma outro navio para a
África e novamente naufraga. Único sobrevivente, é levado pelas ondas
para uma ilha próxima. Consegue, num rasgo de sorte, voltar ao que
ainda restara da embarcação e, antes que afunde, dela retira provisões,
caixas de ferramentas e armas de fogo.
Com inquebrantável ânimo e humor, Robinson enfrenta
toda a sorte de infortúnios, dentre eles um terremoto e febres tropicais,
dos quais sempre se recobra. Trabalhador incansável, consegue construir
uma cerca protetora, uma cabana, mantém um diário e chegará a ter
uma casa de campo, erguida noutra parte da ilha. No décimo-quinto
ano, ainda solitário, mas dono de plantações e bem instalado por sua
MキNAセZ@
fJIUfJIIU
:..-.:..-..:-+:, ,_
IIIIL,;IUIIVU 1
LNjセM@
,...
UV\>I..,..UUIV U
".....-.,... .......,..,......
I I IUI\.. .A.J
.......1,-..
'\...IV
Q@
, Lセ@
r...A h o lr'Y'\r'lnr"'. n,-, イGャセゥLM
UI II jVV I I U I I I U I I V 11'-'4 """''411'-'IU
a
'-'
encontra restos de ossos, crânios, mãos, pés, enfim, diversas partes do
corpo humano. Vê canibais e consegue deles escapar, encontrando
Sexta-Feira, indígena que, salvo por ele, torna-se seu escravo. Planeja,
ajudado pelo servo, construir uma embarcação para escapar. Antes que
isto ocorra, invasores apartam na ilha e, numa verdadeira operação
militar, feita apenas por ele e seu servo, consegue vencer quase todos,
exceto um espanhol e um outro indígena, que descobre ser o pai de
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
85
Sexta-Feira.
Juntos,
continuam
o
plano
de
fuga,
adiado
para
conseguirem maior quantidade de suprimentos. Deus ex-machína, surge
um grande navio europeu. Estimulando um motim, Robinson consegue,
através de complicadas negociações, embarcar com Sexta-Feira para a
Inglaterra, levando consigo os bens acumulados. Chega a Londres em
11 de junho de 1687, após quase trinta e seis anos de ausência.
A Rousseau parece ter interessado apenas o Robinson na
ilha, solitário, lutando operosamente pela vida, identificando-se com o
homem natural. Todavia, este apelo à solidão, por parte do herói de
Defoe, consistirá em transformar a ilha e a própria solidão no espaço em
que o· outro acaba sendo transformado em mercadoria. A "ilha- é para
ele a utopia de um homem de negócios"(Watt, 1997, 170); e o encontro
de Crusoe consigo mesmo, na ilha, resulta essencialmente de seu desejo
de enriquecimento (Watt, 1997, 171):
A posição intelectual de Defoe remonta à dos empiristas
ingleses do século XVII. especialmente Locke e Hobbes, e expressa
diversos elementos do individualismo de um modo mais completo do
que
fora feito, segundo Watt, por qualquer outro escritor inglês antes
dele. A primazia do motivo econômico orienta a narrativa, que faz parte
do novo modo de olhar as antigas relações sociais não-escritas, opostas
às que as substituem e a elas se opõem: as relações contratuais escritas,
em que a tradição e a idéia de coletividade se perdem. Além de
sempre apoiadas no motivo econômico, há ainda nas relações
contratuais uma reverência ao contábil e ao advento do individualismo.
Neste sentido, o desejo que o Robinson Crusoe representa, visto por este
ângulo, nada tem com o que nele antevia Rousseau:
86
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS].
[... ] o herói tem um lar e uma família e os deixa pela clássica
razão do homo economicus -- é necessário para melhorar sua
condição financeira. 'Algo fatal naquela propensão da
natureza' chama-o ao mar e à aventura e o impede de
'dedicar-se aos negócios' na posição em que ele nasceu -- 'a
posição superior da vida humilde'; e isso apesar do panegírico
que seu pai faz de tal condição. Depois ele considera que é
seu 'pecado original' essa falta de 'desejos limitados', essa
insatisfação com 'o estado em que Deus e a natureza o
colocaram'. Na época, porém, a discussão entre ele e o pai
gira em torno não do dever filial ou da religião, e sim do que
poderia resultar em maiores vantagens materiais: partir ou ficar.
Os dois lados aceitam como básico o argumento econôrrico.
E naturalmente Crusoe lucra com seu 'pecado original' e
enriquece mais que o pai. Na verdade, esse 'pecado original'
é a própria tendência dinâmica do capitalismo, que tem por
objetivo não apenas manter o status quo, mas transformá-lo
sem cessar. Partir, melhorar de situação constitui uma
característica fundamental do estilo de vida individualista. [... ]
'nada mais havendo, descobri que viajar e negociar com lucro
tão grande e, posso dizer, certo proporcionava maior prazer e
satisfação ao espírito que ficar parado -- isso, sobretudo para
mim, era a pior coisa da vida' [dizia Robinson]. 7
Leitura bem diferente da de Rousseau apresenta o crítico inglês lan
Watt. Diante do mesmo homem em estado de natureza, mas focalizado
por outro ângulo, Robinson é agora caracterizado como um dos mitos do
individualismo moderno.
Defoe afirma, confiante, que a solidão pode se tornar o prelúdio
do realização mais plena das potencialidades de cada indivíduo; e os
leitores solitários de dois séculos de individualismo só podem aplaudir um
exemplo tão convincente da transformação da necessidade em virtude,
uma visão tão colorida e estimulante dessa imagem universal da
experiência individualista: a solidão.
7
lan Watt, A ascensão do romance, estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding, trad.
Hildegard Feist, São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 60.
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
87
Não resta dúvida de que a solidão é universal - a palavra está
sempre inscrita no reverso da medalha do individualismo.
Embora Defoe fosse. um otimista porta-voz da nova ordem
sócio-económica, a irrefletida veracidade de sua visão como
romancista levou-o, como vimos, a relatar muitos dos
fenômenos menos empolgantes relacionados com o
individualismo económico que tendiam a isolar o homem da
família e da pátria. (Watt, 1990, 80)
Se, como propôs lan Watt, em A ascensão do romance, caberia
ao personagem de Defoe representar o homem empreendedor que
mimetizaria o capitalismo, ao Émíle de Rousseau restava mostrar a
existência de uma fratura no corpo do novo contrato: de um lado, criava
cidadãos abertos à empiria e ao conhecimento objetivo; de outro,
fechados à leitura de Buffon e de Aristóteles. Nos limites e dilemas desta
fronteira se esboçavam as bases de uma nova forma de concepção e
de inserção do individual no social.
Tornando a questão ainda mais rica, se em 1762 Rousseau
lançara em dois textos a utopia do contrato burguês, a partir de 1764
descerraria o véu das confissões pessoais, liberando para o espaço
público camadas ignoradas de si mesmo, prática antes reservada à
confissão religiosa.
Rejeitado o projeto social que elaborara, e frustrada a tentativa de
se fazer aceitar e amar através do desnudamento, exila-se, a partir de
1776, na escrita d' Os devaneios de um caminhante solítárío, obra em
que se anuncia que o eu social e o eu individual se deblateram numa
complexa elaboração da identidade. Apresentava cindidos o "eu social"
(o je) e o "eu interior" (o moí) que tentara, nas duas obras anteriores,
articular numa unidade indissolúvel, mediada pela educação e pelo
contrato social.
88
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
Segundo belíssima leitura que disso faz Starobinski, é preciso pensar
a questão das relações entre a textualização e a construção de
identidades, na dialética entre a transparência e o obstáculo, problema
impossível de ser elucidado por leituras biográficas, deterministas ou
rasamente psicalíticas.
Rousseau ia além de si mesmo, tornando-se o personagemnarrador do narrador Jean-Jacques, do mesmo modo que o conflito
entre o eu social e o eu interior não é mais a indicação das adversidades
de um homem real. mas a revelação do dilaceramento do pactário de
uma nova concepção de linguagem, que a obra do pensador tanto
anunciara quanto problematizava, antecipando questões que ainda hoje
merecem relevo e debate.
Não é, portanto, de estranhar que a primeira caminhada d' Os
devaneios de Jean-Jacques se inicie por uma dramática declaração de
exílio e solidão:
Eis-me, portanto, sozinho na terra, tendo apenas a mim
mesmo como irmão, próximo, amigo, companhia. O mais
sociável e o mais afetuoso dos humanos dela foi proscrito por
um acordo unânime. Procuram nos refinamentos de seu ódio
que tormento poderia ser mais cruel para a minha alma
sensível e quebraram violentamente todos os elos que me
ligavam a eles. Teria amado os homens a despeito deles
próprios. Cessando de sê-lo, não puderam senão furtar-se ao
meu afeto. Ei-los, portanto, estranhos, desconhecidos,
inexistentes enfim para mirr visto que o quiseram. Mas eu,
afastado deles e de tudo, que sou eu mesmo? Eis o que me
faltà procurar. Infelizmente, essa procura deve ser precedida
por um exame da minha situação. É uma idéia por que devo
necessariamente passar para chegar deles a mim. (Rousseau,
1995, 23).
A busca de um estado de plenitude punha em marcha o refluxo
de um vôo do personagem, que se dirige da consciência à memória e
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
89
da sociedade para a natureza, numa negação ao mundo antes
homenageado na utopia social do Émíle. Na procura de escapar da
dor, ocorre o afastamento do sujeito para regiões inconscientes, que se
vão pouco a pouco tematizando no devaneio do caminhante solitário.
Isto fazia da caminhada em direção à natureza algo de certo modo
equivalente ao mergulho do ser em direção a si mesmo.
Deste modo, a escrita de Rousseau não é apenas autobiográfica,
abrindo-se em direção a uma espécie de fantasia retrospectiva em que
o passado, a natureza e o aprofundamento da escavação interior se
interllgavarn, produzindo não só a textuallzação do desencontro consigo
próprio e com o outro, mas também a busca de ultrapassar a biobrafia
pela reflexão. Ao retirar-se do domínio do ser em sociedade, o
personagem dos devaneios se recolhe nos abismos secretos do "eu",
atingindo a cena da fantasmagoria da escrita (nem mentira, nem
verdade) do proscrito.
No contraste entre o personagem eufórico que acredita no
homem natural na transparência da sinceridade e o caminhante soturno
e melancólico que mergulha nos "estados d'alma", o imaginário de uma
época traçava o contraponto entre a sociabilidade e a solidão, entre o
Duas ilhas de solidão, portanto, se fundiram (e confundiram) na
colisão de projetos e de paradoxos do século XVIII se articulamos o
Robinson de Defoe ao Robinson de Rousseau.
A primeira, aponta para a concepção de individualismo como
aliado da tecnologia e do desenvolvimento, coincidindo com a
metáfora do Robinson Crusoé, - o individualista que se outorga criar, das
90
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
ruínas da civilização, o novo pacto; e com a metonímia das relações de
servidão que este mantém com o indígena Sexta-Feira.
A outra, insulada na melancolia, rediscute a utopia do progresso e
do Estado contratuaL ameaçada pelos obstáculos que nele antevê o
outro eu de Rousseau. Em compasso com o naturaL o homem social
habitara com eloqüência e vaticínios auspiciosos as páginas do Émile e
sua articulação com o Robinson Crusoe. Pouco a pouco, na tessitura d'
Os devaneios, vai-se transmudando no homem desesperançado, que
quer retornar a um estado primevo de quietude e harmonia entre o ser e
o parecer.
Acirrados os limites da subjetividade, o estado de natureza tornavase incompatível com a cultura estabelecida e a obra pretendida
passava a necessitar de conversão para um mundo interior menos solar,
mais errante e escorregadio. E, se aqueles que se refugiavam na Igreja
podiam manter o silêncio e a solidão, o caminhante solitário passa a
entrever que o que pensa só tem justificação em si mesmo, o que o
obriga a retomar incessantemente a palavra, e a derrarmar-se para
dentro dos limites de seu próprio eu, o que vai cada vez mais tornando
opacas as relações entre a solidão e a palavra. (Estas considerações
serão retomadas adiante, quando tratarmos de Iracema e de O guarani
que, lidos a partir destas coordenadas, revelam que a reflexão de
Alencar vai muito além do que nele tem visto a crítica).
O que é dramático em tudo isso é que o personagemcaminhante (de) Rousseau não quer apenas singularizar-se e mostrar a
sua diferença em relação aos "detratores". A tensão trágica resulta da
necessidade de fazer coincidir a todo momento sua solidão com o bem
e com a verdade, tais como os reconhece em seu foro íntimo, mas
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS].
91
ambicionando que assim também estes possam ser reconhecíveis por
todos. "Rousseau se estabelece na solidão a fim de poder falar
legitimamente em nome do universal" (Starobinski, 1991. 52).
E aí ele muito se distingue dos Iluministas, que cancelam a
diferença, o particular, em nome do universal e da semelhança. Ao
elevar a razão ao
status de autoridade. o Iluminismo, para libertar os
homens dos preconceitos do passado, produz, na visão de Hanna
Arendt8 , teorias de emancipação que predizem e evocam a experiência,
o mundo, as pessoas e a sociedade, dando a isto uma coloração de
realidade. Isso cria um problema, pois a experiência pressuposta pode
cair na invenção desta, ou seja, na dificuldade. ao se pensar o geral, de
incluir a categoria da particularidade.
Rousseau, no Émíle, se distingue dessa prática. Mesmo procurando
valores gerais e convencido da necessidade de pressupor um homem
universal, detecta que a discussão sobre o geral necessariamente tem
que dialogar com a contingência histórica, com particularidade. ou seja,
com a singularidade dos indivíduos e da vida prática. Sua obra se
marcará dessa preocupação,
daí surgindo os matizes de uma
impressionante "caminhada" (é sintomático que a expressão integre o
título de seu livro sobre os devaneios) rumo à interioridade do eu, que irá
repercutir no Romantismo.
Por outro lado, o pensar que ricocheteia sobre si mesmo e se faz
pela incessante escavação da intimidade singular, pode desencadear
um outro risco: o de, por outra razão que ,não a que ameaça a
8
Hanna Arendt, Rohel. Rahel Varnhagen, a vida de uma judia alerrã na época do
Romantismo. Trad. Antonio Trânsioto e Gernot Kludash, Rio de Janeiro, Relume Dumará,
1994, p, 20
92
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
abstração generalizante do Iluminismo, provocar o isolamento do mundo
exterior, fazendo que o sujeito se entrincheire "diante do único objeto
'interessante': o próprio interior' (Arendt, 1994, 21 ).
Em Alencar, por exemplo, esse duplo movimento, e a dificuldade
de lidar com esta questão, pode ser sentido, gerando muitas vezes um
efeito de estranhamento. Pensemos em Senhora.
A narrativa matiza o jogo do interesse econômico que obscurece
o valor-em-si de Seixos e de Aurélia, cuja individualidade fica submetida
ao valor-de-mercadoria que rege o pacto social vigente. Quando se
volta para o particular, no entanto, a caminhada em direção ao interior
das personagens, que permitiria considerar os valores intrínsecos de cada
um e estabelecer uma discussão mais profunda do problema, esbarra
na alienação dessas questões pelo mergulho numa pincelada romântica
de diluição, na qual a personagem feminina se entrega ao amor numa
inversão das relações de vassalagem. De senhora dos dinheiros a serva
do amor, o final do romance talvez conceda ao leitor a suspensão do
projeto reflexivo, mais denso, que poderia ter-se adensado mais. Fica
naquele ''final feliz" a tensão entre modelos gerais de eficiência social e o
que rege a interioridade dos personagens, que merece ser examinada
de forma mais pormenorizada em análise posterior.
A questão, em Rousseau, encarna também uma relação com a
polêmica que surge de suas obras no ambiente francês conservador e
que acarreta uma experiência autobiográfica que ele textualiza de forma
surpreendente.
Mas não se deve tomar esse movimento para dentro de si como
um gesto romântico de Rousseau, pois apenas muito remotamente o
escritor prefigura o Romantismo. Se assim é, como interpretar a imagem
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
93
do homem que foge de asilo em asilo, de retiro em retiro, na periferia de
uma sociedade que velou os valores?
O banido e proscrito, o ser sem-morada, que corta todos os laços
com o social, visto n' Os devaneios tematiza o mundo nostálgico de tudo
o que resta em latência nas trevas, como forças opacas, faces
mascarados,
vivendo
das
sombras
inquietantes
do
inveja,
do
persegu·1ção e do recusa. Desse modo, "a solidão de Rousseau
é [a
busca de] um retorno à transparência" (Starobinski, 1991, p. 52)
A consciência descobre que escapa ao mundo hostil desde que
deixe de ocupar-se dele. A lição que o Romantismo, todavia, recebe de
Rousseau, é o de que o recolhimento no "território da intimidade" irá dor
vazão a uma solidão intencionalmente construída.
Dos termos em
conflito -- o mundo e o eu -- o devaneio melancólico cede lugar a um
movimento que visa restaurar a integridade ameaçado da existência
pessoal.
Fechar-se para o mundo e abrir-se para o extrema intimidade do
eu é uma forma, retomada pelos românticos, de contornar o peso
insuportável que passa a custar a vida em sociedade.
Voltar-se poro dentro de si mesmo passa o ser não um meio, mas
um fim. E o escrita será, a partir de Rousseau, aquilo que fixa o devaneio,
o suporte desse encontro do mesmo consigo mesmo e com o outro.
Fixa-se nela um vezo de mise-en-abyme, de consciência moderna
da escritura, e do "ser de linguagem" de todos os processos de
rememoração. Mergulhar nos profundezas do eu passa a equivaler à
busca de se anular a diferença entre o natural externo ao homem e a
natureza interno do subjetividade. Focalizada nesta rede, a linguagem
de Rousseau não tem mais nada em comum com o discurso clássico.
LETRAS Revisto do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
'infinitamente mais imperiosa, é também mais precária." (Starobinski,
i 991, 206)
Nesta linha de reflexão - a linguagem como carência e plenitude,
simultaneamente - a
linguagem é tudo o de que dispõe o eu que
confessa, mas ela mesma não é o bastante para redimi-lo da perda das
ilusões. Haverá sempre uma fratura entre a linguagem e o vivido. Do
mesmo modo, a linguagem com que se rememora a experiência do
que não pode mais ser, não é o suficiente para o caminhante solitário,
ainda que, sem ela, ele não possa existir.
É, portanto, a linguagem como exercício de escrita do limiar da
subjetividade o veio que se abre, com Rousseau, para a literatura
moderna. Com ele e a partir dele é que se tematiza para a
modernidade o perigoso pacto do eu com a linguagem e desta com a
realidade, no qual a "obra literária já não pede o assentimento do escritor
sobre uma verdade interposta como "terceira pessoa" entre o escritor e
seu público." (Starobinski, 1991, 206)
Sem querer fazer de Rousseau um romântico, é preciso pensar o
Romantismo a partir do que sugere sua obra. Mais do que isso: convém
relembrar a articulação de seu pensamento com o conceito de literatura
que emana do famoso fragmento 206 do Athenaeum, atribuído a
Friedrich SchlegeL leitor declarado de Rousseau: "É preciso que um
fragmento seja como uma pequena obra de arte, inteiramente isolado
do mundo circundante e completo em si mesmo, como um ouriço.'' 9
Sob o impulso e o impacto da solidão, a escrita fragmentária d' Os
devaneios de Rousseau abre novas considerações teóricas, nas quais se
9
Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia e outros fragmentos, trad., pref. e notas
Victor-Pierre Stirnimann, São Paulo, Iluminuras. 1994, p. l 03. (Biblioteca Pólen)
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
95
antevêem múltiplas e suplementares concepções de identidade e se faz
surgir um novo tipo de texto -- o fragmento, não mais apenas confissão,
porque forma singular de escritura, que viria a repercutir na obra dos
jovens idealistas alemães de Jena.
Na
batalha
textual
que
travou,
Rousseau
ofereceria
ao
Romantismo formidável vertente de inquietaçqes políticas, filosóficas e
literárias, desdobradas a partir da tematização da solidão, e através da
qual a sociedade dos oitocentos constituiria e ampliaria a paisagem de
suas indagações.
Nos estudos que tenho feito sobre a obra de Alencar tem-me
chocado a dificuldade da crítica de lê-lo fora da relação quase
mecânica entre o possível conservadorismo político do autor e sua
produção literária. Na tentativa de lê-lo em outra pauta, quero evocar
que o tratamento que em seus textos é dado à questão da solidão abre
para a crítica literária um importante desafio: o de se relerem os impasses
melancólicos que seus personagens enfrentam. E, a partir daí, reler-se a
própria fortuna crítica de seus textos na cultura brasileira e as concepções
de identidade que emergem de nosso Romantismo.
A solidão é quase sempre evocada em sua obra de maneira
dúplice. De um lado, é forma de expressão das dúvidas e isolamento do
novo país diante da incerteza de rumos. A procura de desprender-se do
complexo colonial de que fizera parte vincula-se ao destino dos
personagens. Indígenas cheios de virtudes, eles problematizam os
dilemas vividos pelo eu rousseauniano, cindido entre a cidadania e os
desejos individuais. No novo pacto brasileiro, dramatizam a procura de
um novo código e dos tropeços para defini-lo, implantá-lo e administrá-lo
a partir de modelos ao mesmo tempo autóctones e importados.
96
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
Há uma nostalgia recalcada na forma romanesca alencariana. A
nostalgia de que fala Novalis e que o viajante, o exilado e o deslocado
conhecem e carregam: a saudade de uma aspiração que não se
atinge, a de estar em toda a parte como em sua casa, como na carta
ao Dr. Jaguaribe, apensa ao final de Iracema, em que o narrador aspira
à modorra da rede e ao à vontade nordestino perdido.
O romance, na visão de Lukács, nos conduz de volta à matriz das
solidões. Ele é o sintoma de uma laceração entre o interior e o exterior,
significativa de uma diferença essencial entre o eu e o mundo, de uma
inadequação entre os soni10S dos l1omens, sua alma, e a ação que i11es
permite a máquina do mundo. Ou, ainda, a saudade e solidão que
atingem, por razões distintas, Iracema e Martin.
Alienada de seu povo, ao partir com Martim, Iracema abandona,
de certo modo, o estado de natureza. Sem os "seus", segue o guerreiro
branco. Mas este também vai deixá-la, ao partir com Poti em
campanha. O estado de natureza com que a heroína agora se defronta
é o da total solidão de um eu cujo destino se revela interrompido. Não
pode voltar atrás, nem ir mais adiante.
No segundo momento do romance, Iracema tem diante de si a
hipótese regressiva e mortal de retorno ao estado mais primitivo do
primitivo: o de identificar-se com o indiferenciado, até que a morte
definitivamente a faça refluir para a dimensão de terra-mãe, que a
enterra.
Martim, em solidão, à beira do penhasco, lembra da noiva
distante, da sociedade de que precisou abdicar na aventura da
colonização. Penetra no mundo natural, mas dele não participa, senão
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
97
como ameaça: leva o desconcerto à tribo de Iracema e, no concerto
das nações indígenas, implanta a mairi dos cristãos.
Seus personagens, como a da casa de D. Antonio de Mariz, estão
sempre na iminência do abismo. Peri, assemelhado às águas do rio que
não deságua no marnão se abre ao comércio das nações, nem ao da
urbanidade. Pelo conluio obscuro da vida natural com a razão social, Peri
é impedido de localizar a si mesmo num espaço que não o da natureza
selvagem, no qual é condenado a ficar retido, pelo código de um
processo civilizatório que confere apenas a Ceci o poder de dupla
mobilidade. Estabelecer moradia na selva e na cidade, ou nos espaços
internos e externos ao mundo citadino é prerrogativa vedada,ao homem
natural.
Na filosofia que o embasa, e na arte com que encarna sua forma,
o romance de Alencar põe em circulação a luta desigual, jamais
vitoriosa, do homem natural com a potência de forças que ele não
domina, no confronto de seus desejos, suas perdas e o horror da morte.
Em suas páginas se encena o drama da construção identitária de uma
comunidade imaginada. Fragmentos da trajetória de uma identidade
em crise ecoam nas diversas narrativas de Alencar.
Se "Tudo passa pela terra" (Alencar, 1975, 57), o mito se transmuda
em história, na confluência do corpo morto da mãe, a virgem de Tupã,
com o silêncio reservado ao filho, ícone de uma pesada ausência: o
brasileiro Moacir vive ao custo do corpo morto de Iracema. enterrada
sob a força de uma outra fecundação, a da mairi dos cristãos:
Muitos guerreiros de sua raça acompanharam o chefe branco,
para fundar com ele a mairi dos cristãos. [... ]A mairi que Martim erguera
à margem do rio, nas praias do Ceará, medrou. Germinou a palavra do
98
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
:::eus verdadeiro na terra selvagem e o bronze sagrado ressoou nos vales
:;nde rugia o maracá. (José de Alencar, 1975, p. 57)
Locus nada ameno de uma 'autoctonia fraturada, o corpo de
iracema recua à condição de sombra melancólica, e percorre, sustenta
e corrói, subterraneamente, o tom
de outra forma eufórico de uma
narrativa urdida sob o signo das identidades em solidão.
Reserva-se, aos dois personagens maiores da galeria históricoindianista de Alencar, o trágico movimento para dentro de si mesmos,
até se confundirem com a natureza que, se os concebeu, irá retê-los e,
num certo sentido, engolfá-los em seus domínios e mortal solidão.
Não é de pouca monta o que Alencar realiza ao tematizar a
solidão como lugar da origem da nacionalidade. Ao fazer Isto, ele
recupera, provavelmente sem saber que Rousseau também o fizera, o
questionamento da transformação, em mercadoria, da moeda cultural
por excelência, o homem pactário do contrato social.
Alencar trazia à luz a discussão de um tópico extremamente
problemático e não o representava exatamente como mais um
intelectual envolvido com a elite vinculada, diretamente, ao Império e ao
Instituto Histórico e Geográfico, instituição que, de modo oficial,
implantava uma visão de brasilidade.
De certo modo incompatibilizado com as elites nacionais, e sem
contar com "o povo", até hoje uma categoria à margem de qualquer
direito entre nós, o terreno em que se movia sua preocupação com a
"hipótese Brasil" e as dores da nacionalidade era singular.
Se na França"'[o] povo' identificado com 'a nação' era um
conceito revolucionário, mais revolucionário do que o programa liberalburguês que pretendia expressá-lo" (Hobsbawm, 1986, 78); Alencar, no
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
99
Brasil, dispunha apenas do programa, contraditório, da incipiente
burguesia nacional, cujo florescimento, no início do século, se marcava
por uma face extremamente tênue, em que a nacionalidade 'brasileira'
era
uma
hipótese'
encravada
na
nacionalidade
portuguesa
transplantada, por motivos político-econômico europeus, para
terras
tropicais.
Tematiza-se e problematiza-se, portanto, nas narrativas de Alencar,
a diferença que importa ao pacto social do Estado-nação recémformado: a sutil distinção entre os que podem ocupar os domínios e
fundar cultura e civilização - os que atribuem o valor de mercado, sem
serem mercadorias,
e aqueles que,
pertencendo à
terra,
são
condenados ao silêncio, à morte, à solidão. Diferentemente de como
tem sido lido, o romance de Alencar narra, com mestria, os vazios e
fraturas sob os quais se engendram as marcas e estigmas de nossa
identidade.
100
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
MEMÓRIA CULTURAL E CONSTRUÇÃO DO CÂNONE LITERÁRIO BRASILEIRO 1
Luiz Roberto CAIRO
UNESP/CNPq
A poesia brasileira não é uma indígena civilizada; é uma
Grega vestida à francesa e à portuguesa, e climatizada no
Brasil; (... ) Enfeitiçados por esse nume sedutor, por essa bela
estrangeira, os poetas brasileiros se deixaram levar por seus
cânticos, e olvidaram as simples imagens que uma natureza
virgem com tanta profusão lhes oferecia.
[MAGALHÃES, Domingos José Gonçalves de.
Discurso sobre a História da Literatura do Brasil.
Niterói, Revista Brasiliense. Paris, 1836.)
Na primeira metade do século XIX, os críticos brasileiros criaram o
cânone da história da literatura brasileira, influenciados pelas idéias da
crítica romântica européia que contribuíram para a construção da
identidade nacional desta literatura.
Este cânone permanece vivo, apesar das diferentes leituras e
releituras, às vezes, a ele opostas, que os críticos contemporâneos vêm
propondo. Isto se explica pelo fato de que, em se tratando de cânone
literário, cada período busca redefini-lo em função da tradição que
melhor se adeqüe ao horizonte de perspectivas de quem, no presente, o
seleciona.
1
Texto apresentado, inicialmente, no Rio de Janeiro, numa mesa-redonda do Colóquio
Internacional Cultura Nacional. Teoria Internacional: A contextualização das discursos
sobre a literatura, realizado na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. de 9 a ll de junho de l 999.
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
1OI
Num momento em que os estudiosos de Literatura
cッュー。イセZ@
cada vez mais centram seu interesse na questão dos emprés ti'""'•;)õ
culturais, enfatizando principalmente a diferença entre colonizador
colonizado, João Alexandre Barbosa, um dos mais importantes
セ@
」イ■エゥセ@
brasileiros contemporâneos, publica "A Biblioteca Imaginária" (BARBos.:..
1996, p. 13-58), ensaio fundamental para a discussão sempre oportur.::
da formação do cânone da história da literatura brasileira.
Neste ensaio, ele vai justamente marcar como uma
、・セ@
peculiaridades do caso brasileiro o fato de que:
[. ..] a formação do cânone literário seguiu, de bem perto, c
próprio desenvolvimento de nossas relações de dependência e d€
autonomia com vistas às fontes metropolitanas. (1996, p. 23)
Ou seja, na formação do cânone da História da Literatura Brasileira
[. .. ) contribuíram sobretudo os esforços no sentido de estabelecer urr:
corpus de autores e obras Identificados como brasileiros e diferenciados
das origens européias, em que se destacavam, como não podia deixar
de ser, as portuguesas. (1996, 23)
Ao contrário, portanto, das literaturas européias e norte -americana
em que:
(... ) a fixação de cãnones literários resultou assim do
aparecimento de grandes ensaios de interpretação da
herança cultural do Ocidente, quase sempre movidos por um
forte apelo classicizante, dando como resultado uma rígida
hierarquização de gêneros, raças e modelos culturais, que
somente será abalada pelos movimentos multiculturais de
anos recentes( ... ) (1996, p. 23).
As considerações de João Alexandre Barbosa me levam a dizer
que os críticos brasileiros fundadores do cânone se anteciparam à crítica
contemporânea, ao inventarem um paradigma para a História da
102
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
Literatura Brasileira centrado multo mais na diferença do que na
semelhança em relação à tradição clássica do colonizador. Talvez esta
seja a causa da permanência deste cânone, que acabou cunhando
como clássica uma tradição identificada pela construção da diferença,
ou seja, pela marca da nacionalidade, ao invés de se pautar nos
princípios esteticizantes da tradição literária clássica do Ocidente.
Na verdade, isto foi possível graças à relação tensa que, desde o
Início da colonização, se estabeleceu no Brasil entre colonos e イ・ャョゥウセ@
de
certa forma representada em vários textos literários como, por exemplo,
em alguns poemas de Gregório de Matos, verdadeiras crônicas de
costumes da sociedade baiana dos tempos coloniais.
O poema satírico de Gregório de Matos intitulado Descreve o que
era realmente naquele tempo a cidade da Bahia ilustra bem o que
estou afirmando:
A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar a cabana, e vinha,
Não sabem governar sua cozinha,
Epodem governar o mundo inteiro.
Em cada porta um freqüentado olheiro,
Que a vida do vizinho, e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha,
Para levar à Praça, e ao Terreiro.
Muitos mulatos desavergonhados,
Trazidos pelos pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia.
Estupendas usuras nos mercados,
Todos, os que não furtam, muito pobres,
Eeis aqui a cidade da Bahia.
(BARBOSA, 1997, p. 24-25)
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
103
No século XIX, após as lutas da independência, esta tensão se
agravou e se tornou o centro das discussões dos nossos escritores, no
empenho de construirem a nacionalidade da literatura brasileira.
A variedade de interpretações possíveis sobre o momento de
fundação da literatura brasileira propriamente dita é fruto desta tensão.
Com o surgimento do Brasil Nação, pressionados pelos escritores
da antiga metrópole, que não admitiam a existência de uma literatura
brasileira, pelo fato dos textos aqui produzidos não expressarem de
maneira explícita a brasilidade e serem escritos em língua portuguesa,
considerado propriedade deles, os escritores brasileiros tiveram que, de
alguma forma, idealizar um modelo que viesse a marcar a sua
nacionalidade.
Isto se tornou viável através das idéias românticas de Augusto
Frederico Schlegel e Madame de Stael advindas principalmente dos
conselhos que o francês Ferdinand Denis e o português Almeida Garrett
deram aos jovens brasileiros Domingos José Gonçalves de Magalhães,
Manuel de Araújo Porto Alegre e Francisco de Soles Torres-Homem que,
estando em Paris, por volta de 1836, criaram a Níteróí-Revísta Brasílíense,
considerada o marco inicial das discussões em torno da nacionalidade
da literatura brasileira.
As idéias românticas européias favoreceram a
difusão do
sentimento nacional e conseqüentemente a criação do conceito de
literatura nacional como expressão maior da evolução espiritual de uma
nação, vindo ao encontro dos interesses prioritários dos jovens brasileiros,
que passaram então a identificar o modelo da literatura clássica com o
Brasil Colônia e buscar na nova proposta romântica, outros modelos que
pudessem sinalizar para a nação que surgia.
104
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
No discurso dos críticos românticos, começam a se esboçar as
idéias que, além de fundamentarem as interpretações dos futuros críticos
realistas, aqueles que efetivamente inventaram a História da Literatura
Brasileira, irão permanecer como centro das discussões de uma eventual
teoria da literatura brasileira.
A História da Literatura Brasileira veio construindo-se, portanto,
através das tentativas dos críticos
românticos,
que,
inicialmente,
buscaram coletar um corpus que justificasse a própria existência de uma
literatura que se pudesse chamar de brasileira. Nesta fase, marcada por
um critério meramente quantitativo, estes críticos, conforme Antonio
Candido (CANDIDO, 1971, 2, p. 349), empenharam-se tanto em escrever
os "bosquejos", panoramas gerais, onde se traçava rapidamente o
passado literário, quanto em organizar os "florilégios" ou "parnasos",
antologias dos poucos textos disponíveis. Somente a partir daí, puderam
concentrar-se isoladamente nos autores, antes referidos ligeiramente nos
"bosquejos", produzindo então as biografias literárias, que, reunidas,
formaram as "galerias" e os "panteóns".
Além desta tarefa árdua, os críticos românticos tomaram a si a
preparação de edições e reedições dos textos já coletados, seguidos de
notas biográficas e explicativas.
Estas etapas foram da maior importância para o processo de
construção da História da Literatura Brasileir:J propriamente dita, conforme
se depreende do texto de Antonio Candido:
Na primeira etapa, são os esboços de Magalhães, Norberto,
Pereira da Silva; as antologias de Januário, Pereira da Silva,
Norberto-Adet. Varnhagen. Na segunda etapa, as biografias
em série ou isoladas, de Pereira da Silva, Antonio Joaquim de
Melo, Antonio Henriques Leal, Norberto; são as edições de
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS].
105
Varnhagen, Norberto, Fernandes Pinheiro, Henriques Leal etc.
Na terceira, os "cursos" de Fernandes Pinheiro e Sotero dos Reis,
os fragmentos da história que Norberto não chegou a escrever.
[1971' 2, p. 349)
Ao lado desse trabalho dos críticos românticos brasileiros, não se
podem esquecer os textos dos historiadores e críticos estrangeiros do
Romantismo que escreveram sobre o Brasil. Neste sentido, vale ressaltar a
importância do livro do crítico e historiador gaúcho Guilhermino César
(CÉSAR, 1978) que seleciona os textos mais significativos de Friedrich
Bouterwek, Sismonde de Sismondi, Ferdinand Denis, Almeida Garrett, C.
Schlichthorst, José da Gama e Castro, Alexandre Herculano e Ferdinand
Wolf.
No entanto, para o estabelecimento do cânone, foi essencial o
trabalho de compilação empreendido pelos escritores e críticos que
escreveram
os
"florilégios"
e
"parnasos".
As
antologias
foram,
efetivamente, responsáveis pela recuperação do acervo literário disperso
ao longo dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX.
Analisando as antologias, Maria Eunice Moreira, num importante
trabalho intitulado Nacionalismo literário e crítica romântica, chamou a
atenção para seus objetivos variados: divulgar a produção poética,
preservar obras, reabilitar textos mais antigos, fornecer dados sobre
autores, estimular as novas gerações. (MOREIRA, 1991, p. 93)
O Parnaso Brasileiro ou coleçõo das melhores poesias dos poetas
do Brasil, tanto inéditas, como já impressas (BARBOSA, 1829), do Cônego
Januário da Cunha Barbosa, datado de 1829, segue o modelo do
Parnaso Lusitano ou poesias seletas dos autores portugueses antigos e
modernos, ilustrado com notas. Precedido de uma história da língua e
poesia portuguesa (GARRETI, 1826), de Almeida Garrett, publicado em
106
LETRAS -Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
1826. O Parnaso Brasileiro tinha por finalidade tornar ainda mais
conhecido do mundo literário o Gênio daqueles brasileiros, que, ou
podem servir de modelos, ou de estímulo à nossa briosa mocidade, que
já começa a trilhar a estrada das Belas Letras, quase abandonada nos
últimos vinte anos dos nossos acontecimentos políticos. (1829, I, p. 3)
Além disso, buscou reunir numa só coleção as poesias estimáveis
dos autores do Brasil e concentrar o maior número possível de dados
relativos a todos os poetas do Brasil. desconhecidos ou não.
Vale ressaltar que, dada a abrangência da tarefa, o autor solicitou
aos eventuais leitores que colaborassem com ele, encaminhando -lhe
informações com porte pago para sua residência, onde se dará recibo
para a entrega do original, depois de copiado. (18 29, p. 4)
A segunda edição é de 1831 e saiu com acréscimos.
Joaquim Norberto de Sousa e Silva e Emílio Adet, em 1842,
publicaram Mosaico Poético, poesias brasileiras antigas e modernas,
raras e inéditas, acompanhadas de notas, notícias biográficas e críticas,
e de uma introdução sobre a literatura nacional. (SILVA & .A.DET, 1842)
Em 1843, foi lançado o Parnaso Brasileiro ou seleção de poesias
dos melhores poetas brasileiros desde o descobrimento do Brasil
procedido de urna introdução histórica
e biográfica sobre a literatura
brasileira (SILVA I. 1843), de J. M. Pereira da Silva que buscou completar
a antologia do Cônego Januário da Cunha Barbosa. Neste senti do,
recolheu não só autores de poesia, como de outros gêneros, tendo
também coletado autores anteriores ao século XVIII. O critério de seleção
que presidiu esta antologia é o do nacionalismo, desenvolvido em torno
da idéia de compromisso patriótico.
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em letras da UFSM (RS).
107
Quando Francisco Adolfo Varnhagen, em 1850, publicou o
Florilégio da Poesia Brasileira ou coleção das mais notáveis composições
dos poetas brasileiros falecidos, contendo as biografias de muitos deles,
tudo precedido de um ensaio histórico sobre as letras no Brasil
(VARNHAGEN, 1987), o critério da nacionalidade já estava quase firmado
·como parâmetro estético para a seleção das poesias.
O Florilégio teve dois tomos publicados em Lisboa e o terceiro em
Madri e foi apresentado como uma antologia do que de mais
americano tivemos (1987, L p.14). Rejeitando a denominação de
pornoso, Vornhogen se justificou dizendo estarmos um pouco em briga
com a mitologia, com o propósito de distingui-la de outra anterior que
leva aquele título (1987, p. 14), querendo referir-se assim ao Parnaso
Lusitano, de Almeida Garrett.
Com esta referência,
deu a sua
contribuição para a discussão do tema da separação entre a literatura
portuguesa e a brasileira, negada pela via lingüística.
Varnhagen estabeleceu duas condições para que as obras fossem
incluídas no Florilégio: obras com temas brasileiros e obras de autores
nascidos no Brasil. Deste modo, consolidou como critério de identificação
da literatura brasileira o nacional que
se consagrou como elemento
organizador do património literário. Estava assim constituído o cânone do
Romantismo que viria a ser o paradigma tanto para os panteóns e
galerias, quanto para a história da literatura.
Paralelo a essas publicações, os críticos românticos brasileiros
elegeram, como veículo de escoamento de sua
produção, os
periódicos. Estes tiveram um importante papel na construção da
identidade literária nacionaL na medida em que divulgaram textos
108
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
manifestos, alimentaram polêmicas e geraram, conseqüentemente,
novos textos que mantiveram viva a chama da nacionalidade.
Dentre os principais periódicos brasileiros do momento romântico,
destacaria:
. a Revista da Sociedade Filomática, publicada em São Paulo, em
1833.Teve seis números. Nela encontram-se principalmente textos de
Justiniano José da Rocha e José Salomé Queiroga;
. a NiteróL Revista Brasiliense de Ciências, Letras e Artes, publicada
em 1836, em Paris, é considerada, juntamente com a publicação de
Suspiros Poéticos e Saudades,
de Domingos José Gonçalves de
Magalhães, o marco do Romantismo brasileiro. Teve apenas dois
números. Além do citado Domingos José Gonçalves de Magalhães,
atuaram, na Niterói, Manuel de Araújo Porto Alegre e Francisco Soles
Torres-Homem, dentre outros.
. a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro foi criada
em 1839 como veículo de divulgação das idéias nacionalistas do projeto
imperial
do
Instituto,
fundado
no
ano
anterior,
por
iniciativa
principalmente de um militar, Raimundo José da Cunha Matos e do
escritor Januário da Cunha Barbosa. O projeto oficial, desenvolvido com
o apoio do Imperador Dom Pedro !L tinha por objetivo a pesquisa da
história brasileira e a construção paralela de uma literatura nacional.
Nesta
revista,
foi
publicado,
principalmente
no
período
compreendido entre os anos de 1839 e 1869, um vasto materi ai literário,
composto de biografias de poetas e escritores brasileiros, estudos de
obras poéticas e instituições literárias, poesias e composições poéticas
de teor laudatório, de autores como Gonçalves Dias, Joaquim Manuel de
"Aacedo, Januário da Cunha Barbosa, Santiago Nunes Ribeiro, João
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
109
Manuel Pereira da Silva, Francisco Adolfo Varnhagen, Pero de Magalhães,
Joaquim Norberto de Sousa e Silva e Fernandes Pinheiro (PILlAR, 1996).
. o MineNa Brasiliense, Jornal de Ciências, Letras e Artes foi
publicado por uma associação de escritores e circulou no Rio de Janeiro,
no período compreendido entre 1843 e 1845. Tratava de uma enorme
variedade de assuntos: astronomia, medicina, botânica, zoologia,
química,
física,
geografia,
história e
literatura.
Nele colaboraram
Francisco de Soles Torres-Homem, seu primeiro redator-chefe, Santiago
Nunes Ribeiro, que assumiu o cargo de redator-chefe, após o primeiro
ano, e os escritores Antonio Gonçalves Teixeira e Sousa, Antonio Francisco
Dutra e Melo, Luís Antonio Burgain, Joaquim Norberto de Sousa e Silva e
Joaquim Manuel de Macedo, dentre outros .
. a Guanabara foi uma revista mensal artística, científica e literária,
redigida por uma associação de literatos e dirigida por Manuel Araújo
Porto-Alegre, Antonio Gonçalves Dias e Joaquim Manuel de Macedo.
Circulou no período compreendido entre 1849 e 1856 e teve publicados
36 números, distribuídos em três tomos de 12 números. Além dos di retores
citados escreveram, neste periódico, Domingos José Gonçalves de
Magalhães, Joaquim Norberto de Sousa e Silva, J. C. Fernandes Pinheiro,
dentre outros .
. a Revista Popular teve dezesseis números que circularam entre
1859 e 1862. Foi considerada o centro dinâmico na renovaçâo das
idéias literárias (1991, p. 77). A redação da Revista Popular esteve
entregue a Joaquim Norberto de Sousa e Silva, Luís de Castro, José da
Rocha Leão, Duarte Paranhos Schutel, Joaquim Manuel de Macedo,
Joaquim
Caetano
Fernandes
Pinheiro,
e
outros;
e
teve
como
colaboradores: Lino de Almeida, Casimiro de Abreu, Luís Antonio Burgain,
110
LETRAS- Revisto do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (RS).
Luís Delfina, Maciel Monteiro, Macedo Júnior, Juvenal Galeno, Teixeira de
Melo,
Faustino Xavier de Novais,
Domingos José Gonçalves de
Magalhães, Bruno Seabra, Augusto Fausto de Sousa, Augusto Emílio
Zaluar, dentre outros. Editada, no Rio de Janeiro, por B.L.Garnier, a revista
foi substituída em 1863, pelo Jornal das Famílias, do mesmo editor.
Um dos focos de maior interesse desta revista prende -se ao fato de
nela terem sido publicados os capítulos daquela que teria sido, caso se
concretizasse, a primeira História da Literatura Brasileira, a de Joaquim
Norberto de Sousa e Silva. Os famosos capítulos da eventual História
davam continuidade às idéias, anteriormente, veiculadas por ele, no
Minerva Brasiliense, ou seja, abordavam a tendência dos selvagens para
a poesia, a questão da nacionalidade e da originalidade da literatura
brasileira e a história literária. (1991, p. 77)
Aspecto curioso desta História é o fato de ser uma História da
Literatura sem literatura, uma vez que não há capítulos onde figurem os
autores brasileiros e suas obras.
Outros periódicos circularam no Rio de Janeiro, no momento
romântico: Íris (1848-1849), Anais da Academia Filosófica (1858), O
Espelho (1859-1860), Jornal das Famílias (1863-1878), Revista Brasileira
(la. fase, 1857-1860, 2a. fase, 1869-1881, 3a. fase, 1895-1899), Revista
Mensal de Ensaios Literários (1863-1865, 1872-1874), e vários outros de
interesse literário ou eclético.
Através dos bosquejos, antologias e biografias literárias publicadas
sob forma de livros ou veiculadas em periódicos, os críticos românticos
arquitetaram uma História da Literatura Brasileira que veio a ser
posteriormente construída pelos criticos realistas brasileiros que, na
verdade, viam a sua elaboração como o ápice do exercício crítico.
LETRAS- Revisto do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (RS].
Ao lado destas considerações feitas sobre a crítica romântica
brasileira, gostaria de acrescentar uma breve releitura de três possíveis
interpretações recorrentes na crítica brasileira contemporânea, pinçadas
no discurso dos críticos realistas, aqueles que efetiva mente publicaram,
sob forma de livro, a História da Literatura Brasileira.
A primeira interpretação a que recorro seria a mesológica, que
fundamenta a teoria da obnubilação brasílica de Araripe Júnior.
Por obnubilação brasílica, ele entendia a transformação por que
passavam os europeus ao atravessarem o oceano Atlântico e a sua
conseqüente adaptação ao meio físico e ao ambiente primitivo. Esta
transformação ocorria também a nível das idéias que, ao serem
transplantadas, adaptavam-se ao meio ambiente, adquirindo uma certa
originalidade, que se traduziu no que ele chamou de estilo tropical.
Partindo do pressuposto de que os europeus, ao chegarem no
Brasil, perdiam a sua identidade, adquirindo uma outra, por força do
fenômeno da obnubilação, os textos por eles produzidos apresentariam,
conseqüentemente, marcas de um novo estilo, o
estilo tropical,
característica definidora do gênero brasílico, sendo, portanto, textos de
literatura brasileira.
Desta forma, Araripe Júnior considerava relevante a inclusão dos
textos dos cronistas da época colonial na História da Literatura Brasileira,
por constituírem, sem sombra de dúvida, textos de autores brasileiros:
Portugueses, franceses, espanhóis, apenas saltavam no Brasil e
internavam-se, perdendo de vista as suas pinaças e caravelas,
esqueciam as origens respetivas. Dominados pela rudez do
meio, entontecidos pela natureza tropical, abraçados com a
terra, todos eles se transformavam quase em selvagens; e se
um núcleo forte de colonos, renovado para contínuas viagens,
não os sustinha na luto, raro era que não acabassem pintando
112
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
o corpo de jenipapo e urucu e adotando idéias, costumes e
até as brutalidades dos indígenas. (ARARIPE JÚNIOR, 1960, p.
407)
Sob o ótico da obnubilaçõo brosílica, a leitura que Araripe Júnior
faz da obra de José de Anchieta chamo o atenção pelo diluição do
misticismo do jesuíta em um curioso naturalismo e o transformação da
teologia em fetichismo. Diz ele:
(... ) a sua vida entre os selvagens e o seu prestígio contra os
sacerdotes índios atestam que este podre, se não por
imposição do meio ao menos por arte refinado, se fez um
legítimo pajé. A missão do toumoturgo brasileiro, como o
chamavam, nos florestas do Sul. não se pode explicar senão
pelos feitiçarias, aceitos ou habilmente copiados, dos piogos,
e com que ele catequizou os seus caboclos. (1960, p. 408)
Curiosamente esta interpretação de Araripe Júnior vai fornecer
subsídios não só para uma leitura antropológica da literatura brasileira,
mos também para a crença numa tradição afortunada advindo do
processo de descolonização literária como foi pensado por Afrânio
Coutinho, o mais refinado leitor do crítico cearense (COUTINHO, 1959).
Ao tentar definir a literatura brasileira, num dos inúmeros textos que
escreveu sobre o assunto. Afrânio Coutinho diz que:
Ela é um processo longo, coerente. persistente de afastar -se
do européia, na busca de um coráter nacional. em procura
da identidade nacional, brasileira. Desde a primeira hora que
esse esforço diferenciador se desenvolve, consciente ou
inconscientemente, pela pena dos poetas, oradores e
ficcion';stos, pela mão barroca dos jesuítas. O barroco fo'; o
instrumento, nos dois primeiros séculos, mediante o qual a
mente brasileiro tomou consciência de sua missão civilizatória,
de suo originalidade criadora. (1983, p, 36)
A busca do caráter brasileiro na literatura, segundo ele:
LETRAS Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS].
Esse esforço pertinaz inicia-se mesmo nos albores de nossa
vida de colônia lusitana. Se a nossa civilização pode ser
caracterizada por um espírito sincrético, esse sincretismo tem
começo com o Padre José de Anchieta, nosso primeiro criador
de literatura no lirismo e no teatro. (... ) Anchieta foi o iniciador
da literatura brasileira e sua obra literária é o símbolo do
sincretismo lingüístico e cultural brasileiro. (1983, p.19)
Por conta disso, vale dizer que o maneirismo da obra de Anchieta
deve ser entendido como um pré-barroquismo.
A segunda interpretação, a etnológica tem, em Sílvio Romero, seu
principal representante que vai pensar a literatura brasileira a partir do
conceito de mestiçagem. Para ele:
A literatura brasileira, como todas as literatura do mundo, deve
ser a expressão positiva do estado emocional e intelectual, das
e dos sentimentos de um povo. Ora, nosso povo não é o índio,
não é o negro, não é o português; é antes a soma de todas
estas parcelas atiradas ao cadinho do Novo Mundo. (ROMERO,
1980, 2, p. 371)
Uma literatura tem uma base, tem elementos e tem órgãos. A
base da nossa é o sentimento do brasileiro, como nação à
parte, como produto étnico determinado; os elementos são as
tradições das três raças sem predomínio de uma sobre as
outras; os órgãos são os nossos mais notáveis talentos, todos
aqueles que sentiram como brasileiros. (1980, 2. p. 373)
Sílvio Romero não reconhece José de Anchieta como o fundador
da literatura brasileira. No máximo pode ser considerado um precursor.
De acordo com o seu ponto de vista:
Uma literatura, além de tudo, nunca tem um fundador; tem
órgãos de manifestação, mais ou menos aperfeiçoados, e não passa
disto. Uma escola é que pode ter um chefe, um criador. (1980, 2, p.
373)
114
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
Apesar dos índices exageradamente cientificistas, no discurso
crítico de Sílvio Romero, já está presente a idéia de formação que deve
ter subsidiado o conceito de formação do sistema literário brasileiro,
como foi pensado por Antonio Candido, que não fala em processo de
descolonização, no sentido como Afrânio Coutinho o coloca. A literatura
dos tempos coloniais, de acordo com Antonio Candido, não passa de
manifestações esparsas de literatura brasileira.
Isto porque, o conceito de literatura pressupõe a existência de
um sistema vivo de obras, agindo uma sobre as outras e sobre
os leitores: e só vive na medida em que estes a vivem,
decifrando-a, aceitando-a, deformando-a. A obra não é um
produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem este é
passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito.
São dois termos interatuantes a que se junta o autor, termo
inicial desse processo de circulação literária, para configurar a
realidade da literatura, atuando no tempo. (CANDIDO, 1973, p.
74)
Como nos primeiros séculos de Brasil, é impossível pensar em
autores, obras e leitores, os três elementos definidores do sistema, fica
difícil imaginar a existência, nesta época, de uma literatura brasileiro
propriamente dita.
A terceiro interpretação, o estético, fundamento -se na existência
de um instinto nacional, expresso muito mais numa linguagem brasileiro
do que num referencial temático do brosilidade. Esta tendência já se
delineia no discurso do crítico romântico Santiago Nunes Ribeiro,
concretiza-se na poética de Machado de Assis, sendo talvez a causa da
perplexidade de José Veríssimo em relação às teorias cientificistas do
século XIX e à construção do conceito de literatura brasileira, da forma
como aparece na Introdução de sua História da Literatura Brasileira.
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
Ao contrário de Sílv'lo Romero que admitia, à maneira dos
alemães, um conceito amplo, para o termo literatura, José Veríssimo,
apoiando-se nos franceses, vai afunilá-lo na medida em que utiliza-o
apenas para os textos com preocupação estética.
Literatura, diz ele, é arte literária. (VERÍSSIMO, 1969, p. lO)
Além disso, vale ressaltar que mesmo não havendo grandes
divergências em relação aos autores e obras selecionados na História de
Sílvio Romero, ele percebe um estranhamento no cânone literário
proposto e aconselha uma revisão constante do mesmo por parte dos
histoiiadoieS do futuío.
Com bastante pertinência, observa que:
A literatura brasileira (como aliás sua mãe, a portuguesa) é
uma literatura de livros na máxima parte mortos, e sobretudo
de nomes, nomes em penca, insignificantes, sem alguma
relação positiva com as obras. Estas, raríssimas são, até entre
os letrados, os que ainda as versam. Não pode haver maior
argumento da sua desvalia.
Por um mau patriotismo, sentimento funesto a toda a história
que necessariamente vicia, e também por vaidade de
erudição, presumiram os nossos historiadores literários avultar e
valorizar o seu assunto, ou o seu próprio conhecimento dele,
com fartos róis de autores e obras, acompanhados de elogios
desmarcados e impertinentes qualificativos. Não obstante o
pregão patriótico, tais nomes e obras continuaram
desconhecidos eles e elas nao lidas. Nao quero cair no
mesmo engano de supor que a crítica ou a história literária têm
faculdades para dar vida e mérito ao que de si não tem.
Igualmente não desejo continuar a fazer da história da nossa
literatura um cemitério, enchendo-a de autores de todo
mortos, alguns ao nascer. (1969, p. 12)
É impressionante como em 1912, ele já tivesse percebido o que
quase na mesma direção, o critico Haroldo de Campos, constata, em
1976:
116
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS].
O estatuto do historiador literário brasileiro é, por assim dizer, um
estatuto dilacerado e dilacerante. Confrontado com um
panorama diacrônico onde são raros os momentos de
altitude, este historiador oscila entre a melancolia do
profissional que não encontra um objeto satisfatório para o
exercício de seu métier e a indulgência do fideicomissário que
procura valorizar os bens sob sua custódia. (CAMPOS, 1976,
p, 13)
Contra este estado de coisas, Haroldo de Campos vai pensar na
possibilidade
de
uma
História
Sincrónica
da
Literatura
Brasileira,
infelizmente não concretizada, em oposição ao velho paradigma do
historiador diacrónico.
Antes de finalizar este texto, no verdade, uma síntese de algumas
dos possíveis interpretações sobre o momento de fundação da literatura
brasileiro, fragmento de uma pesquisa que venho desenvolvendo sobre a
construção do cânone na História da Literatura Brasileira, convém dizer
que a publicação, nos anos 50, de A literatura no Brasil (1955), de Afrânio
Coutinho, e de Formação do Literatura Brasileiro (Momentos decisivos)
(1959), de Antonio Candido, bem como a publicação, nos anos 60, dos
três pequenos textos de Haroldo de Campos, intitulados "Por uma poética
sincrónica" (1960, p. 203-223), constituem uma verdadeira divisão de
águas na tradição crítica brasileira que, além de afortunada (COUTINHO,
1968), tem sido, certamente, como bem definiu João Alexandre Barbosa
uma verdadeira tradição do impasse (BARBOSA 197 4).
Referências Bibliográficas
ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. Obra Crítica de Ararípe Júnior. (Dir. Afrânio
Coutinho) Vol. 11. Rio de Janeiro:MEC-Cosa de Rui Barbosa, 1960.
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
BARBOSA. Frederico (Sei. e org.) Clássicos da poesia brasileira. São Paulo: Klick
Editora, 1997.
BARBOSA. Januário da Cunha (Côn.) Parnaso Brasileiro. Rio de Janeiro: Tipografia
Imperial e Nacional. 1829-1832, 2 tomos.
BARBOSA, João Alexandre. A Biblioteca Imaginária. São Paulo: Ateliê Editorial,
1996.
__ . A Tradição do Impasse. São Paulo: Ática, 197 4.
CAMPOS, Haroldo de. A Arte no Horizonte do Provável. São Paulo: Perspectiva,
1969.
__ .A operação do texto. São Paulo: Perspectiva, 1976.
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura no Brasil (Momentos Decisivos). São
Paulo: Martins, 1971, 2 v .
. Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1973.
CÉSAR, Guilhermino. Historiadores e Críticos do Romantismo. 1. A Contribuição
Européia: Crítica e História Literária. São Paulo: EDUSP; Rio de Janeiro: Livros
Técnicos e Científicos, 1978.
COUTINHO, Afrânio (Dir.). A Literatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio;
Niterói: EDUFF, 3a. ed. rev. e atualizada, 1986, 6 v.
__ . A tradição afortunada ( O espírito de nacionalidade na crítica brasileira).
Rio de Janeiro: José Olympio; São Paulo: EDUSP, 1968.
__ . Euclides, Capistrano e Araripe. Rio de Janeiro: MES, 1959 .
. O processo da descolonização literária. Rio de janeiro: Civi!ização
Brasileira, 1983.
GARRETI, Almeida. Parnaso Lusitano. Paris: J. P. Aillaud, 1826.
MOREIRA. Maria Eunice. Nacionalismo Literário e Crítica Romântica. Porto
Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1991 ,
PILLAR, Thanira Chayb de. A literatura na Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro de 1839 a 1869. Letras de Hoje. V.31, no. 4. Porto
Alegre: EDIPUCRS, dez./1996, p, 37-40.
118
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio;
Brasília: INL-MEC, 7a. ed .. 1980, 5v.
SILVA J. M. Pereira da. Parnaso Brasileiro. Rio de Janeiro: Laemmert, 1843, 2
tomos.
SILVA Joaquim Norberto de Sousa & ADET. Emílio. Mosaico Poético. Rio de
Janeiro: s.ed., 1842.
VARNHAGEN, Francisco Adolfo. Florilégio da Poesia Brasileira. Rio de Janeiro:
Academia Brasileira de Letras, 198 7, 3 tomos.
VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio,
1969.
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
119
A VIOLÊNCIA CONSTITUTIVA:
NOTAS SOBRE AUTORITARISMO E LITERATURA NO BRASIL
Jaime GINZBURG
UFSM
Dedicado a Celso Pedro Luft
Forma e história
Existe uma relação direta entre a fragmentação formal em obras
literárias na modernidade e uma série de processos histórico -sociais que
atingiram profundamente as relações entre os seres humanos e
abalaram a concepção clássica de sujeito. Dessa relação, discutida de
diferentes modos por Theodor Adorno, Erich Auerbach e George Steiner,
entre outros. tentaremos examinar aqui um aspecto em particular - a
desumanização.
Karl Erik Schollhammer propõe que no Brasil "a violência aparece
como constitutiva da cultura nacional, como elemento 'fundador'"
(SCHOLLHAMMER: 2000, p.236-7). Dedic-'ldo a entender a literatura
brasileira contemporânea. o autor propõe a representação da violência
como eixo para entendimento de sua caracterização formal e temática.
A compreensão sistemática das representações da violência na literatura
brasileira mereceu estudos de elevada relevância.
Entre os mais
recentes, cabe destacar o belo estudo de Francisco Foot Hardman
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
121
"Visões da guerra: o Brasil na crise da civilização" (HARDMAN: 1998), em
que o autor mostra a recorrência do tema, resgatando de modo
oportuno o trabalho do escritor Alberto Rangei. O estudo de Hardman,
articulando textos e contextos, motiva a reflexão e ajuda a medir a
necessidade de estudar as relações entre violência e literatura no Brasil.
Alguns escritores fundamentais da literatura brasi !eira moderna
elaboraram suas representações da condição humana acentuando seu
caráter problemático e agônico, em acordo com o fato de que, no
contexto histórico brasileiro, a constituição da subjetividade é atingida
pela opressão sistemática da estrutura social, de formação autoritária.
Sendo abalada a noção de sujeito, em razão do impacto violento dessa
opressão, é abalada também a concepção de representação. Esta se
fragmenta, exigindo do leitor a perplexidade diante das dificuldades de
constituição de sentido, tanto no campo da forma estética, como no
campo da experiência social. As representações da História, nesses
escritores, resistem à acomodação em lógicas lineares causais, ou a
esquemas positivistas, incorporando contradições e indeterminações, e
se aproximando do que Benjamin propunha como uma representação
da História como sucessão de catástrofes, como ruína. Esses autores, ao
lado de outros (rTlOS diíerentemente âe outros), estiveram atentos ao
quanto há de violência, injustiça e agonia na sociedade brasileira, e
trouxeram a problematização âo externo para o interno, atingindo assim
a forma de suas criações [CANDIDO: 1980, 7). Não temos condições de
demonstrar adequadamente, no espaço deste artigo, como podemos
perceber as profundas marcas do autoritarismo e da violência do país
em textos desses escritores, optando por formular a hipótese em linhas
gerais, para um desenvolvimento posterior.
122
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
A violência brasileira
Paulo Sérgio Pinheiro, José Antonio Segatto, Oscar Vilhena Vieira,
Emílio Dellasoppa, José Vicente Tavares dos Santos e Cláudia Tirelli
elaboraram estudos sobre a formação social brasileira em que ressaltam
a presença constante de elementos de autoritarismo. Nesta parte do
artigo, é feita a transcrição de alguns trechos fundamentais de suas
reflexões, procurando encontrar entre eles uma articulação. A leitura
desses trabalhos leva à percepção de que as práticas autoritárias,
associadas à violência e ao reforço das desigualdades sociais, são
matéria básica de nossa constituição social:
É necessário definir aqui o conceito de autoritarismo. Entendemos
o conceito,
para efeito deste trabalho,
do seguinte modo. O
autoritarismo é uma caracterização de um regime político em que existe
um controle da sociedade por parte do Estado, que manipula as formas
de participação política e restringe a possibilidade de mobilização social.
Nesse quadro, existe interesse político na cooptação dos intelectuais; a
administração pública é apresentada como um bem em si mesmo, ao
servir ao interesse do Estado; o setor militar desempenha um papel
decisivo na manutenção da ordem. Em formas extremas, como o
totalitarismo, o regime autoritário institui um partido único e reprime com
rigor manifestações de contrariedade (SCHWARTZMAN: 1988; LAMOUNIER:
1981 ).
A modernização no Brasil trouxe mudanças próprias do sistema
capitalista, promoveu o desenvolvimento das cidades e alterou as
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
123
estratégias de obtenção de renda. No entanto, ela ocorreu dentro de
uma política de elites, dotada de lógica de dominação, constituída na
política oligárquica, e herdeira da exploração colonial. A reificação
crescente das classes de baixa renda, no mundo do mercado, foi
acompanhada de uma desumanização no plano dos conflitos entre
indivíduo e Estado, estando o indivíduo em posição de fragilidade diante
das práticas autoritárias do aparelho estatal. Entre a violência da
criminalidade,
associada
à
desigualdade
social,
e
a
violência
institucional, exercitada pelo poder público, a população brasileira
acompanhou o processo de modernização do país com incerteza e
ansiedade,
sendo
submetida
a
várias
formas
de
manipulação
ideológica, em nome do bem da ordem social.
De acordo com Paulo Sérgio Pinheiro,
Um dos traços da especificidade do caso brasileiro é a
extraordinária longevidade da cultura e das práticas
autoritárias, independentemente, como já dissemos, da
transformação do regime político ou da complexidade
crescente do passado. [... ) Gerard Lebrun mostrou que nunca
houve aqui uma ruptura com o antigo regime: o absolutismo
colonial se transformou simplesmente no absolutismo das elites.
E sobreviveu à abolição da escravatura uma total assimetria
entre dominador e dominado: 'A ordem civil se transforma,
'patrão' conseNa muito de 'senhor em sua condição de
cidadão, e o trabalhador [livre ou semi-livre ... ) é um cidadão
de categoria tão ínfima que possui algo de 'escravo' em
potencial e muito pouco de cidadão' [... ) O caso do Brasil
mostra que o autoritarismo e o arbítrio podem persistir apesar
da abertura democrática, das eleições e da reforma
constitucional. A tortura sistematicamente administrada persiste
nas delegacias de polícia em todo o país[ ... ) [PINHEIRO: 1991,
52-3)
124
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS].
As práticas autoritárias teriam origem no passado colonial e
imperial, havendo continuidade no período republicano, em que ocorre
a modernização capitalista. Nesse sentido, cabe lembrar Oscar Vilhena
Vieira:
A modernização económica, diferentemente do que se
esperava, não foi capaz de alterar essa situação e produzir um
Estado de modelo liberal, protetor de direitos (Faoro, 1989).
Como nota Florestan Fernandes, em A revolução burguesa no
Brasil, o padrão de dominação de cada um dos períodos da
história brasileira não foi suprimido quando do florescimento de
uma nova ordem económica dominante. Pelo contrário, os
padrões de dominação dos períodos anteriores foram sempre
absorvidos pela elite insurgente que em hipótese alguma
eliminou a precedente; havendo o que se poderia denominar
uma conciliação entre a velha e a nova elite, para que fosse
possível a convivência de dois modelos económicos sem a
necessidade de destruição do antigo padrão de dominação.
Esse caráter conciliatório das elites brasileiras, descrito por
Michel Debrun (Debrun, 1983), aponta um importante caminho
na compreensão da manutenção do enorme hiato existente
entre as classes, na esfera económica ou política, e
conseqüentemente entre direito e realidade material do poder.
Sob esse signo da conciliação e do patrimonialismo, perdura
um Estado que mantém relações ambíguas com a
sociedade: autoritário e violento para com a grande maioria
da população; dócil e transigente aos interesses das elites"
(VIEIRA: 1991, 90)
Em reflexão afim à de Pinheiro, Vieira propõe a continuidade das
práticas políticas de elites no Brasil em termos de uma dinâmica de
alianças. Os processos de transformação social, nesse sentido, são
epidérmicos e acabam conservando estruturas. A lógica de exercício de
práticas autoritárias no país permanece, estando presente mesmo em
contextos
considerados
democráticos.
Para
compreender
a
permanência dessas práticas, é preciso considerar a vida social em
LETRAS. Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
125
perspectiva cotidiana, em que encontramos os "microdespotismos",
práticas autoritárias exercidas em relações sociais públicas e privadas.
Tudo indica que os governos autoritários foram tão bem
sucedidos, por um período tão largo, ao simplesmente
exacerbarem, com sustentação sociaL certos elementos
autoritários presentes na cultura política do Brasil (... ) Para se
compreender os percursos através dos quais o autoritarismo
socialmente implantado é engendrado - desde aquelas
longínquas origens históricas - e se reproduz, é essencial
reconstituir a rede de microdespotismos nos mais variados
contextos sociais: violência familiar, discriminação raciaL
violência contra a mulher e a criança, justiceiros, linchamentos
[PiNHEiRO: 1991, 55-6)
Como Pinheiro, Segatto traça uma linha de continuidade que
contempla o conjunto de nossa formação, incluindo a experiência
colonial, o império escravista e o período republicano. Essa continuidade
é sustentada pela presença firme do exercício do autoritarismo, em
variadas formas, na vida política.
Esse exercício é articulado, segundo Segatto, pela aliança entre o
Estado e a classe dominante. Durante o período colonial, o governo de
Portugal desenvolveu a política exploratória responsável pela dizimação
de tribos nativas. A escravidão representou um exercício sistemático e
calculado de coerção pela violência, sendo o governo brasileiro
sustentado,
durante
o
império,
por
essa
coerção.
No
período
republicano, tivemos no Estado Novo e na ditadura militar recente
períodos de intensa intervenção da política autoritária na vida social.
Para dizer de maneira breve, de modo geral, de acordo com Segatto, a
política de orientação autoritária tem um papel importante na definição
de nossas relações sociais.
126
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS].
Há um certo consenso na historiografia segundo o qual o
processo histórico brasileiro caracterizou-se por ter sido
marcadamente excludente e autoritário. (... )O Estado no Brasil,
independentemente das formas e composições que assumiu
nos diferentes momentos e períodos (Monarquia e República;
impertal. oligárquico, corporativo, ditatorial. etc) tem ao longo
da história uma característica essencial comum: de se impor
autaritariamente sobre a sociedade civil. (... ) Um processo
histórico marcado pela ausência de mudanças bruscas e
radicais nas formas de dominação política e de acumulação
de capital. ou melhor, pela ausência de transformações
revolucionárias que envolvessem o conjunto da sociedade
nacional. mas é, ao contrário, assinalado pela conciliação
entre frações ou grupos da classe dominante, por meio de
reformas "pelo alto", excluindo das decisões políticas a grande
massa da população. (... ) a classe dominante sempre
procurou rearticular e reorganizar as formas de dominação
política e acumulação de capital para fazer frente aos
crescentes antagonismos e contradições sociais que se
acumulavam. como. também. para impedir que as classes
subalternas subvertessem a ordem vigente e, ainda, para
truncar sua participação no processo político. (SEGADO: 1999,
p.201-2 e 214)
É imprescindível referir neste ponto ao ensaio de Antonio Candido,
de 1979, intitulado "Censura-violência". Nele, Candido mostra sua forte
preocupação com a violência social, seu respeito pelo levantamento
feifo pelo historiador Edgard Carone da "sucessão ininterrupta de
ferocidade.
numa
cadeia
de
chacinas.
conflitos
sanguinolentos.
inteNenções armadas cheias de selvageria" que encontramos em nossa
formação social (CANDIDO, p.205), e que nos afasta da imagem de "um
Brasil pacífico por natureza, cordato e generoso" (idem, p.204).
Emilio E. Dellasoppa elabora uma articulação entre autoritarismo e
violência no Brasil, a partir de estudos de Guillermo O· Donnell. O autor
relaciona a persistência do autoritarismo no país e a ampla difusão da
violência no corpo social.
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS].
127
A magnitude do autoritarismo socialmente implantado no Brasil
assume características tais que para O' Donnell de alguma
maneira impermeabiliza o estado autoritário contra os
embates dos [pequenos) grupos que o enfrentavam desde o
projeto da revolução ou da simples contestação [... ) para
O' Donnell a violência aparece no tecido da sociedade
brasileira com características protopolíticas, expressão
multifacetada de uma ordem imposta na;; favelas, na
pobreza, no desemprego, no inexistência ou descumprimento
dos direitos trabalhistas [... ) [DELLASOPPA: 1991, 81)
Uma contribuição importante em sentido semelhante é dada por
José Vicente Tavares dos Santos e
Cláudia Tirelli,
que articulam
autoritarismo e violência ao problema da cidadania no país:
A explicação histórica para a impossibilidade de se
estabelecer no sociedade brasileiro o cidadania plena pode
ser buscada na herança social, marcada pelo extrema
hierarquização social e por um forte autoritarismo de Estado,
elementos ainda hoje influentes na desincompatibilização
entre o poder político e a participação social. Como
conseqüência,
persistiria no Brasil uma organização
hierárquico da sociedade, tolhendo a igualdade de
tratamento dos indivíduos no plano legal e reinvindicotório, e
um autoritarismo, que reprime os manifestações das classes
subalternos por vê-los como um risco para a ordem pública.
Essa situação indico que estão em vigor mecanismos os mais
de
hierarquização,
sem
que
haja
discriminatórios
reciprocidade. A violência entraria como o recurso eficaz paro
assegurar a hierarquização presente no sociedade brasileira,
na falto de uma outra base consensual. [SANTOS & TIRELLI:
1999, 115)
Rosani Ketzer Umbach nos alerta para o fato de que, no século XX,
encontramos experiências de autoritarismo em regimes militares em
diversos países na América Latina, assim como na Europa. Segundo a
autora, é comum aos regimes autoritários a constituição de estruturas de
governo que monopolizam armas, economia, imprensa, e procuram
128
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
controlar ideologicamente as ações individuais. Faz parte do exercício do
autoritarismo a realização de ações de repressão violenta, dentro dos
interesses do Estado.
As opiniões de Pinheiro e Segatto, somadas às idéias de Regina
Célia Pedroso (PEDROSO: 1999), nos levam a crer que, para além dos
períodos
explicitamente
caracterizados
por
políticas
autoritárias,
encontramos um processo histórico, em seu conjunto, marcado pelo
autoritarismo. Isso significa que, ao examinarmos um período tido como
mais democrático - os anos 50, ou a atualidade, por exemplo -
cuja consolidação ocorreu em regimes autoritários, ou à custa de
repressão.
O tema foi desenvolvido de maneira brilhante por Paulo Sérgio
Pinheiro, em "Autoritarismo e transição". Examinando as conseqüências
dos regimes autoritários no Brasil no século XX, Pinheiro explica que, após
seu término,
o governo autoritário deixa com o legado "resíduos
autoritários( ... ) no nível ideológico e no nível das práticas( ... ) podemos ter
mudanças no quadro político institucional sem que a cultura política, por
exemplo, seja afetada. No âmbito da cultura e da ideologia o
movimento de reprodução dos elementos do legado limita as
possibilidades de transformação" (PINHEIRO: 1991, 47)
É importante, para compreender especificamente a atualidade, a
observação de que "os 15 anos da ditadura Vargas foram decisivos para
a consolidação de um padrão autoritário de interação entre o Estado e a
sociedade que persiste de certa forma ainda hoje" (REIS: 1998, 194). Em
um sentido mais abrangente, nosso passado colonial, escravista,
patriarcal, calcado em ações de repressão e violência - cobiça, para
LETRAS- Revisto do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (RS).
129
usar o termo cunhado por Paulo Prado nos anos 20 (PRADO: 1962) - é o
solo sanguinolento em que construímos nossa glória.
A história como trauma
Com base nas reflexões conceituais sobre História da Escola de
Frankfurt, em oposição aos modelos positivistas comuns no país, cabe
procurar caminhos de interpretação da formação social brasileira que
consigam ultrapassar as distorções criadas pelos idealismos ufanistas, e
pelas linearidades ideologicamente construídas com fins conseNadores.
Como estabelecemos a literatura brasileira moderna como horizonte,
destacando a fragmentação formal e apontando a conexão desta com
a interiorização de conflitos existentes na realidade externa, se faz
necessária a definição de parâmetros de análise para mediar essa
conexão. A fragmentação se tornaria adequada para a representação
na realidade, na medida em que as seguintes condições fossem
satisfeitas: o entendimento do processo histórico é problematizado, pela
sua complexidade e por seu impacto, de modo que a consciência
humana, em condições convencionais, não tem como dar conta de sua
profundidade, exigindo novo modo de pensar e representar: o sujeito
(narrador ou sujeito lírico) que enuncia a representação, por estar em um
contexto de autoritarismo e opressão, tem sua individualidade atingida,
sua integridade dilacerada, e sua expressão deixa marcas das fraturas
provocadas pelo contexto.
O abandono das estruturas tradicionais - a narrativa com tempo
linear, enredo articulado logicamente, personagens planos ou coesos, o
130
LETRAS - Revista da Cursa de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
poema com metro regular, esquema de rimas, sintaxe culta - em favor
de uma concepção fragmentária, com a subversão das referências de
tempo e espaço, a adoção de verso livre, a representação de uma
subjetividade
frágiL
inconstante
e
freqüentemente
paradoxal,
corresponde a uma mudança, por parte de escritores dedicados à
atitude crítica, no modo de perceber o sentido da História. Perde -se a
noção de totalidade, abandona -se a idéia de progresso.
Em seu excelente ensaio "A história como trauma", centrado na
reflexão sobre a literatura que tematiza o Holocausto, Márcio Seligmann Silva desenvolve uma apurada discussão conceituai. Gostaria de
recuperar e comentar alguns tópicos examinados pelo autor.
Seligmann obseNa, no campo das formas literárias, a tendência
moderna à consolidação de gêneros híbridos, em lugar dos tradicionais
gêneros
puros.
De
modo
correlato,
no
campo
reflexivo,
o
desenvolvimento de um questionamento a respeito da própria noção de
verdade. Em ambos os casos, a noção de representação da realidade é
abalada em seus fundamentos. Os moldes tradicionais de entendimento
da linguagem são postos em questão. Para Seligmann, esse processo de
problematização da noção de representação está associado à
presença do choque na vida moderna.
O problema toma dimensões abrangentes, e mesmo extremas,
quando encaramos, no século XX, a realidade como marcada pela
experiência da catástrofe. Esse assunto foi ricamente explorado por Eric
Hobsbawm, que levantou um enorme repertório de experiências
dolorosas em sua avaliação do século XX, e explicou com rigor o que foi
"a era da guerra total". As novas tecnologias foram apropriadas pela
barbárie - "Uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso
LETRAS -Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
131
desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem" (BENJAMIN:
1985, 115). A utilização do conceito de catástrofe por Hobsbawm e por
Seligmann é da maior importância. É uma perspectiva colocada para o
interpretação do passado histórico do ocidente, quando centramos o
olhar no fato de o Holocausto ter sido possível e efetivamente
acontecido. A forma radical de extermínio foi de um impacto tão
intensamente violento que, quem tentasse representá -lo em moldes
tradicionais, estaria reduzindo-o a um objeto de representação com
estatuto de experiência assimilável. O problema reside em que, de fato,
não há como assimilar uma experiência como essa sem sofrer seu
impacto, e ter abaladas as bases de nosso pensamento, tão dedicado à
acomodação das coisas em lógicas lineares. É precisamente o espanto
com o singularidade do Holocausto, o preservação da perplexidade,
que nos impede de banaliza-lo e torná-lo cotidiano. Se é verdade,
considerando George Steiner, que há nas inter -relações humanas uma
irrefreável pulsão à guerra, o uma afirmação de si pela destruição do
outro, o esforço em pensar a violência sem banalizar, sem recair na
reprodução de modelos autoritários ou preconceituosos, é imprescindível
paro
a
preservação
de
valores
civilizatórios.
A
perplexidade,
freqüentemente melancólica, nos assegura a possibilidade de pensar
um mundo em que a subjetividade está abalada e oprimida em uma
perspectiva que formule a possibilidade da transformação da realidade,
e não da consolidação da opressão.
Para expressar com a devida intensidade essa perplexidade, é
necessário manter a perspectiva de que no Holocausto há um excesso,
uma desmedido, cujos parâmetros não podemos calcular ou padronizar,
que estão paro além de qualquer medida tolerável de dor, e de
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS].
qualquer escala racionalizável de desumanização. Representar a
experiência da catástrofe em proporções tais como as que a História nos
mostrou no século XX implica, necessariamente, uma renúncia aos
modos convencionais de representação, pois estes seriam incapazes de
preservar a singularidade da experiência e a perplexidade que deve
acompanhá-la. O questionamento dirigido ao estatuto da linguagem,
dos modos de representação e das formas artísticas tradicionais está
ligado a uma busca de renovação da expressão.
Seligmann observa que a "incapacidade de recepção de um
evento que vai além dos limites da nossa percepção e torna-se, para
nós, algo sem-forma" constitui o trauma, de acordo com a psicanálise
(SELIGMANN: 1998/9, p. 116-7). Em um mundo marcado pela experiência
radical de destruição, o trauma se torna um elemento constitutivo da
formação social. Por ultrapassar nossos mecanismos de absorção e
atribuição de legibilidade aos eventos, o trauma ultrapassa nossas
referências de concepção de forma. O problema psicanalítico se torna,
na reflexão do autor, um problema estético.
Com o trauma, perdemos a "capacidade de discernimento entre
o real e o irreal" (p. 122), vendo nossa consciência posta em crise de
sustentação. Decorrência natural disso é a condição melancólica, que
resulta da experiência dolorosa de perda, cujos limites, no campo
coletivo, são inexatos e indeterminados. Na Europa, assinala Márcio, a
poética de Paul Celan formula esse dilema. A perda humana do
Holocausto, jamais superáveL leva escritores a romper com as estruturas
convencionais de representação, a suspender as referências de
delimitação da realidade, e a refletir melancolicamente.
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
133
A motivação histórica da fragmentação
Na medida em que compreendemos o papel preponderante do
autoritarismo e da violência na formação histórica brasileira, somos
levados a questionar a sua importância para as concepções estéticas e
literárias surgidas em nossa cultura. Trazendo para o campo brasileiro
alguns dos pontos levantados por Márcio Seligmann -Silva, podemos
propor o seguinte. A experiência crua do passado violento e autoritário,
incluindo os massacres da inquisição, o escravismo exploratório, a
repressão patriarcaL
constitui uma série de traumas, no sentido social
discutido por Seligmann. Sua constância e complexidade nos coloca,
com certeza, diante da perspectiva da realidade como catástrofe, de
história como ruína. A argumentação de Renato Janine Ribeiro sustenta a
interpretação da história do Brasil com ênfase em seu componente
traumático.
O Brasil. já o comentei em outro lugar, pode ser dito um país
traumatizado. Ele jamais ajustou contas com duas dores
terríveis, obscenas, a da colonização e a da escravatura. A
condição colonial significou viver na mais franca heteronomia,
sem o autogoverno que nas partes inglesas do continente
então se praticava, e na mais decidida ignorância, sem o
ensino universitário, que nas regiões hispânicas da América se
ministrava, e tudo isso como uma terra destinada ao
esgotamento de sua natureza mineral: sofreu. pois a predação
do invasor português. Já a escravatura desdobrou ou
completou a obra da colonização: o fisicídio, se assim
podemos chamar o assassinato da natureza, e a heteronomia
colonial exigiram também que o trabalho fosse praticado sob
o modo do esgotamento e da destituição, no caso, do negro
africano. Ora, nosso problema não é apenas que cenas
primitivas como estas se tenham produzido, e reiterado, ao
longo de nossa história; é que elas nunca tenham sido
134
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
realmente elaboradas e extirpadas de nosso caráter. Daí que
se repitam, compulsivamente, até hoje. (RIBEIRO: 1999, 11)
Seguindo Theodor Adorno,
sabemos
que
antagonismos
da
realidade se apresentam em obras de arte como antagonismos formais.
Elementos como hibridismo de gêneros, relativização da verdade,
problematização ·da linguagem, perplexidade diante do objeto tratado
serão fundamentais para indicar, no interior das formas literárias, a
percepção dificultada e melancólica da realidade violenta e traumática.
Para a pesquisa literária, é necessário o desafio de verificar como,
nas
formas
contradições,
literárias,
encontramos
lapsos,
subversões de convenções,
descontinuidades,
rupturas
com
gêneros
tradicionais, questionamentos a respeito da capacidade comunicativa e
expressiva da literatura. Devemos redobrar a atenção sobre esses
elementos quando interessam não com fim em si mesmos, como
experimentos formais, mas quando associados a temas que, direta ou
indiretamente, digam respeito ao impacto brutal da violência social.
Alguns dos maiores escritores brasileiros se dedicaram a lidar com
temas referentes a experiências de autoritarismo, violência e opressão. E
alguns dentre eles abdicaram da perspectiva realista, que faz supor,
conforme lan Watt, uma capacidade de compreensão do objeto
representado, em parâmetros documentais e/ou racionais. Em vez dela,
procuraram tensionar o limite entre realidade e imaginação, subverter
parâmetros tradicionais, apontar ambivalências da linguagem, pautar a
representação em contradições, romper, enfim, com os padrões
tradicionais de entendimento da consciência e da linguagem.
Em Machado de Assis, por exemplo, a narrativa de ficção vai se
constituir em meio a uma problematização do ato de narrar, em
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
135
consonância com a problematização do sujeito em um contexto
desumano. Como explica claramente Antonio Sanseverino, seguindo as
reflexões de Walter Benjamin, "o mundo administrado e estandardizado
acaba com a unidade, com a experiência individual. O que rege é a
abstração da mercadoria, da falsa universalidade. Assim, no romance
contemporâneo, (... ) a ilusão é quebrada pela variação de posturas do
narrador, que introduz o leitor na construção do discurso ficcional". A
representação deixa de lado a "aparência de totalidade sem fissuras" e
o conduz à expressão da cisão das relações entre o sujeito e o mundo
empírico (SANSEVERINO: 1999, 131 -2). Caem as máscaras do realismo de
fachada, caem as acomodações, e são expostas as descontinuidades
da subjetividade cuja constituição foi atingida, em seu cerne, pela
opressão da História.
Como mostra João Alexandre Barbosa (BARBOSA: 1982), as
conquistas de Machado de Assis serão retomadas e transformad as por
vários de nossos maiores ficcionistas. Assim, alguns elementos da
narração de Memórias póstumas de Brás Cubas, como a incerteza sobre
o sentido do que se conta, a subversão da linearidade temporal, a
heterogeneidade
de
tons
e
a
atenção
ao
interlocutor,
serão
fundamentais em Grande sertão: veredas. A problematização da
capacidade da memória surge em Drummond e em Graciliano Ramos.
A quebra da ilusão tradicional da representação vai se tornar um
elemento estratégico, no século XX, em termos brechtianos (PASTA: 1986),
para a
ação da consciência
crítica,
desvelando aparências e
mascaramentos ideológicos.
O
processo
de
abalo
das
concepções
tradicionais
de
representação da modernidade é amplo. A fragmentação das formas
136
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
literárias tradicionais é constante, no mínimo, desde o Romantismo, isso
sem mencionar antecedentes importantes. Sem pretender contemplar
todas as dimensões desse processo, cabe apontar, em linha proposta
por Theodor Adorno, uma motivação histórica que contribui como um
fator de aumento de sua difusão e complexidade. Isso importa sobretudo
nos casos, dentro da literatura brasileira, em que as explicações que se
baseiam em adoção de influências se esgotaram, mostrando sua
insuficiência. Machado de Assis leu Sterne, Guimarães Rosa conheceu
Goethe, mas suas formulações estéticas de modo algum se reduzem a
reproduções passivas de modelos, pois são desenvolvidas em contextos
específicos, e se vinculam a problemas histórico -sociais que não
equivalem aos conhecidos pelos escritores europeus. Podem existir
escritores que adotaram a fragmentação formal apenas por idolatria de
um escritor estrangeiro, ou por uma atitude de vanguarda, como puro
experimento formal. Não são esses escritores que interessam aqui.
Interessam aqueles capazes de refletir, dentro da produção literária,
problemas que constituem prioridades no âmbito social.
A motivação histórica a que nos referimos consiste na experiência
da formação social calcada em autoritarismo e opressão, que contribui
sistematicamente para a desumanização. A violência teve um papel
fundamental na formação social norte-americana, assim como na
alemã, na indiana. No entanto, é necessnrio, para os fins desta reflexão,
lidar com o caso brasileiro sem generalizar - vincular o modo particular
como ela se desenvolve no Brasil, e articular com os modos particulares
como
repercute
na
criação
literária.
Cabe
ressaltar,
mesmo
considerando uma dimensão ocidental do fenômeno, a especificidade
da desumanização no país. A crise do sujeito, no Brasil, não se dá nas
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
137
mesmas condições nem pelas mesmas razões que se dá em países
europeus. A constituição do sujeito, contextualizada na formação social
brasileira, é abalada desde suas bases pelo solo violento e destrutivo em
que se desenvolve.
Questão aberta
A desconfiança com relação à linguagem, a suspeita resultante
do
reconhecimento
de
"desarticulações
entre
representação
e
realidàde", é consolidada no Brasil a partir de Machado de Assis, cuja
ficção fragmentária, que inclui paradoxos e descontinuidades internas,
foi indispensável para "almejar uma configuração mais complexa da
realidade psicológica, social e histórica que o autor conseNa em seu
horizonte" (BARBOSA: 1982, 25).
A fragmentação da forma narrativa, em livros como Grande
sertão: veredas, se vincula com a problematização, por parte do
narrador, da possibilidade de entender uma experiência, pelo seu grau
de violência. Como afirma Riobaldo, as coisas se mexem dos lugares: a
experiência, por sua complexidade e impacto, não tem seu sentido
dominado pelo protagonista.
No Humanitismo de Quincas Borba, a luta é o principal atributo da
condição humana. Em seus relatos de infância, Graciliano Ramos insiste
na exposição à violência e ao medo como dados formadores. Quando
Drummond nos joga constantemente para perto do medo, Rosa nos
aponta o inferno como nossa origem, Dyonélio toca no limiar da loucura,
isso é feito de um modo que se apresentem marcas de um contexto
138
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
social opressor e difícil, em que as possibilidades de emancipação e
liberdade individual são limitadas e questiona das. Não é casual que
escritores como esses, que contribuíram de maneira decisiva para a
consolidação de formas literárias modernas, tenham feito referências
decisivas a opressão, violência, preconceito. A fragmentação neles surge
como meio de ruptura com a linguagem reificada, com a ilusão de
conhecimento objetivo total da realidade,
com as convenções
conservadoras de representação do processo histórico. Nesse sentido, os
procedimentos formais são necessários para a
possibilidade de
encaminhar, a partir da leitura, reflexões de interpretação do Brasil. que
se afastem dos maniqueísmos e das idealizações. e dêem visibilidade à
reificação, à opressão e às práticas autoritárias.
Na medida em que percebemos como a História é violenta, como
o autoritarismo nos marca profundamente, como os antagonismos
sociais são radicalmente difíceis, como nossa experiência não é passível
de fácil entendimento, é acentuada nossa perplexidade. Ficamos
perplexos porque a História pesa sobre nós como um trauma, difícil de
aqsimilar, de compreender. Por isso, representa -la, considerando sua
complexidade, exige uma atitude de renovação, perante as limitações
dos recursos de linguagem convencionais.
Encarar o processo histórico a partir do conceito de "trauma" da
psicanálise nos leva, necessariamente, a avaliar nossa capacidade de
compreender e representar o passado. Conhecemos traumas coletivos,
sociais. Para o entendimento das relações entre Literatura e História, é
fundamental considerar a importância dos traumas históricos como
motivação para mudanças nos modos de representação literária, tanto
na Europa como no Brasil.
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
139
O papel preponderante de políticas e estruturas autoritárias ganha
nitidez quando observamos a presença impressionante da violência,
sobretudo da violência a serviço do Estado, em nossa formação
histórica; isso torna necessário perceber o processo histórico em termos
de uma dinâmica múltipla, marcada por conflitos e antagonismos, por
repressão e resistência. Lembrando Wander Melo Miranda, é apenas
com o esquecimento da violência do processo da formação social que
seria possível definir a constituição da nação como unidade ideal
(MIRANDA: 1997, 417).
Em escritores como Drummond e Graciliano, a
representação do Brasii não se dó de maneira idealizada, mas
permeada por "identidades e alteridades que se entrecruzam e se
superpõem gerando afiliações/resistências múltiplas e não -lineares"
(SCHMIDT: 1997, 7). Suas obras propõem uma forma "essencialmente
adversa a qualquer movimento político que se empenha numa direção"
próxima à do fascismo, sendo a "desarmonia na arte" elemento formal
necessário para a compreensão da dimensão conflitiva do sujeito
(ROSENFELD: 1993, 191-2).
Os esforços de Machado, Dyonélio, Graciliano e Rosa, entre outros,
vão abrir caminho para que a crítica e a historiografia sejam capazes de
reconhecer. mais recentemente, o valor dos recursos da ficção moderna
para a elaboração contemporânea, nos últimos trinta anos. Vários
escritores, a partir dos anos 60, como lgnácio de Loyola Brandão e Ivan
Ângelo, de acordo com Lígia Chiappini. vão encontrar formas renovadas
de trazer a violência para o universo ficcional (CHIAPPINI: 1998).
O distanciamento entre a experiência e as condições necessárias
para seu entendimento, como foi mencionado anteriormente, é um
elemento constante na produção dos autores mencionados. É também
140
LETRAS- Revisto do Curso de Mestrado em Letras do UFSM [RS).
um aspecto muito importante, quando se descreve o processamento de
um trauma. Aproximemos esses dois aspectos. Os modos como esses
escritores representam experiências humanas, quando incidem em
aproximações temáticas do autoritarismo e da violência,
estão
freqüentemente marcados pela fragmentação e descontinuidade
formal.
Esses elementos são importantes para desfazer qualquer
impressão de "normalidade" que aos componentes de catástrofe da
História
se
pudesse
atribuir.
Para
a
catástrofe,
guardemos
a
perplexidade, a inquietação, jamais a linearidade ou a banalização.
セッエ。@
do aütor:
Este trabalho é
üma versão ampliada e
reelaborada do artigo Autoritarismo e literatura: a história como trauma,
publicado na revista Vidya (Santa Maria: Centro Universitário Franciscano,
2000. n.33). Agradeço à Profa. Dra. Zília Mora Pastorello Scarpari pela
oportunidade e pela atenção generosa.
Este artigo foi discutido por e-mail, antes de sua publicação, com
os colegas Cláudia Maria Perrone,
Márcia Lopes Duarte, Márcio
Seligmann-Silva e Rosani Ketzer Umbach, que trabalham comigo no
Grupo de Pesquisa Literatura e Autoritarismo. Agradeço a eles pelas
excelentes contribuições. E sou muito grato também ao meu colega
Pedro Brum Santos, por ter me convidado para participar deste número
da Revista Letras.
Referências Bibliográficas
ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. ln:
BENJAMIN, Walter e outros. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
LETRAS - Revista da Cursa de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
141
ADORNO, Theodor. Teoria estética. Lisboa: Martins Fontes, 1988.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Nova reunião. Rio de Janeiro: Record, 1987.
2v.
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubos. São Paulo: Ático, 1984.
AUERBACH, Erich. A meio marrom. ln:_. Mimesis. São Paulo: Perspectivo, 1976.
AVElAR, ldelber. The untimely present. London: Duke Universi1y Press, 1999.
BARBOSA João Alexandre. A modernidade no romance. ln: PROENÇA FILHO,
Domício, org. O Livro do Seminário Nestlé de Literatura Brasileira. São Paulo:
LR Editores, 1982.
BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. ln:
Magia e técnica, arte e
política. São Paulo: Brasiliense, 1985.
BERND, Zilá. Literatura e identidade nacional. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1992.
CANDIDO, Antonio. Censura-violência. ln: _. Recortes. São Paulo: Companhia
das Letras, 1993.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: Companhia Editora
NacionaL 1980.
CHIAPPINI, Lígia. Ficção, cidade e violência no Brasil pós-64: aspectos da história
recente narrada pela ficção. . ln: LEENHARDT, Jacques & PESAVENTO,
Sandra, orgs. Discurso histórico e narrativa literária. Campinas: Unicamp,
1998.
DA MATIA, Roberto et alii. Violência brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1982.
DELlASOPPA Emílio. Reflexões sobre a violência, autoridade e autoritarismo.
Revista USP. São Paulo: USP, 1991. n.9.
FOSTER, David William. Violence in argentine literature. Cultural responses to
tyranny. Columbia: Missouri Press, 1995.
HARDMAN, Francisco Foot. Visões da guerra: o Brasil na crise da civilização. ln:
LEENHARDT, Jacques & PESAVENTO, Sandra, orgs. Discurso histórico e
narrativa literária. Campinas: Unicamp, 1998.
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
142
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM )RS].
LAMOUNIER, Bolívar. Introdução. ln: AMARAL, Azevedo. O Estado Autoritário e a
realidade nacional. Brasília: Unb, 1981.
MACHADO, Dyonélio. O Louco do Cati. São Paulo: Ática, 1990.
MIRANDA Wander Melo. As fronteiras internas da nação. Cânones Contextos. 5°
Congresso ABRAUC. Anais. Rio de Janeiro: Abralic, 1997. V.1 .
PASTA JR., José Antonio. Trabalho de Brecht. São Paulo: Ática, 1986.
PEDROSO, Regina Célia. Violência e cidadania no Brasil. 500 anos de exclusão.
São Paulo: Ática, 1999.
PETERSON, Michel. Estética e política do romance contemporâneo. Porto Alegre:
UFRGS, 1995.
PINHEIRO, Paulo Sérgio. Autoritarismo e transição. Revista USP. São Paulo: USP,
1991. n.9.
PRADO, Paulo. Retrato do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962.
RAMOS, Graciliano. Infância. Rio de Janeiro: Record, 1984.
REIS, Elisa P.
o
Estado Nacional como ideologia: o caso brasileiro. Estudos
Históricos. São Paulo: APDH, 1988. n.198812.
RIBEIRO, Renato Janine. A dor e a injustiça. ln: COSTA, Jurandir Freire. Razões
públicas, emoções privadas. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978.
ROSENFELD, Anato!. Arte e fascismo. ln:
Texto I contexto 11. São Paulo:
Perspectiva I Edusp I Ed Unicamp, 1993.
SANSEVERINO, Antonio. A poética do irrealizável, ou o princípio da corrosão.
Nanada. Porto Alegre: Ritter dos Reis, 1999. n.2.
SANTOS, José Vicente & TIRE LU, Cláudia. A ordem pública e o ofício da polícia: a
impunidade na sociedade brasileira. ln: SOUSA, Edson Luiz, org. Psicanálise
e colonização. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999.
SCHMIDT, Rita. Prefácio. ln: _ , org. Nações 1 narrações. Porto Alegre: ABEA.
1997.
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
143
SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Os cenários urbanos da violência na literatura
brasileira. ln: PEREIRA, Carlos Alberto et alii. Linguagens da violência. Rio de
Janeiro: Rocco, 2000.
SCHWARTZMAN, Simon. Bases do autoritarismo brasíleiro.
Rio de Janeiro:
Compus, 1988.
SEGADO, Jose Antonio. Cidadania e ficção. ln: VÁRIOS. Sociedade e literatura
no Brasíl. São Paulo: UNESP, 1999.
SELIGMANN-SILVA,
Márcio. A história como trauma.
Pulsional. Revista de
Psicanálise. São Paulo: Escuta, dezJjan 1998/99. n.ll6/117. Republicado
em: SELIGMANN-SILVA, Márcio & NESTROVSKI, Arthur, org. Catástrofe e
representação. São Paulo: Escuta, 2000.
STEINER, George. No Castelo de Barba Azul. São Paulo: Companhia das Letras,
1991'
SULEIMAN, Susan R. Authoritarian fictions. New Jersey: Princeton, 1983.
UMBACH, Rosani Ketzer. Literatura e autoritarismo. A personagem do escritor
frente à repressão em duas obras da literatura alemã contemporânea.
Letras. Santa Maria: Mestrado em Letras da UFSM, 2000. n. 16.
VELHO, Gilberto. Violência, reciprocidade e desigualdade: uma perspectiva
antropológica. ln: セ@
& ALVITO, Marcos, orgs. Cidadania e violência. Rio de
Janeiro: Ed. UFRJ, 1996.
VIEIRA, Oscar Vilhena. Sociedade x Estado. Revista USP. São Paulo: USP, 1991.
n.9.
WATI, lan. A ascensão do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
ZALUAR, Alba. Para não dizer que não falei de samba: os enigmas da violência
no Brasil. ln: SCHWARCZ, Lilia, org. História da vida privada no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998. v.4.
ZILBERMAN, Regina. A terra em que nasceste. Imagens do Brasil na literatura.
Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1994.
144
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
FICÇÃO E FUTEBOL: CULTURAS EM MOVIMENTO
Pedro Brum SANTOS
UFSM
O futebol, de acordo com sua posição de esporte mais popular do
Brasil, é tema freqüente no dia-a-dia do povo. A grande mídia,
aproveitando-se de interesse tão avassalador, tem buscado enquadrá -lo
aos domínios padronizados da cultura de massa, algo que, naturalmente,
resulta em perdas para o esporte no que diz respeito a seu caráter
espontâneo de manifestação popular. Os padrões da massificação, no
entanto, não são suficientes para eliminar a riqueza cultural que envolve a
circulação e a prática da futebolística nacional.
Considerado como manifestação de natureza plural, detentora de
uma história própria, que resulta, em grande parte, de suas forças
internas, e que é tanto anterior como superior à padronização imposta
pela cultura de massa, o futebol incorpora um rico universo como
matéria de representação literária. Em contrapartida, a possibilidade de
leitura desse universo pelo viés da ficção, possibilita recuperar passagens
importantes relativas a aspectos culturais e históricos que envolvem esse
esporte.
1 O futebol descobre o Brasil
O futebol, na versão que chegou ao Brasil, na virada do século XIX
para o XX, é resultado de longo trajeto, que passou por diversas formas
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
145
de disputas, cujo ponto comum é ter como instrumento preferencial
objetos esféricos. Os jogos de bola já tinham registros no antigo Egito em
2500 a. C. Mil anos depois, na Grécia e, mais tarde, em Roma,
desenvolveu-se o
harpastum, uma disputa coletiva que ocupava um
campo de aproximadamente cem metros de comprimento com postes
sinalizadores nas extremidades.
Durante a Idade Média, modalidade semelhante era disputada
com bola de couro, cheia de farelo e de feno, tendo ganhado adeptos
na Bretanha e Normandia. Tratavam -se de jogos que reproduziam
enfrentamentos bárbaros e que foram, em função disso, reiteradamente
proibidos pelas autoridades do tempo. Somente na primeira metade do
século XIX é que a
Inglaterra regulamentou tais embates.
Na
oportunidade, criou-se a distinção entre o rugby (que denominamos de
futebol americano) e o association footba/1 ( o nosso futebol). Depois
disso, essas modalidades começaram a ser inseridas nos ensinamentos
universitários.
No Brasil, o futebol ingressou pelo litoral introduzido por marinheiros
europeus na segunda metade dos oitocentos, até que Charles Müller, na
década de 90, retornando de viagem de estudos à Inglaterra, trouxe
bolas e divulgou o jogo em bases organizadas tendo por local a capital
paulista. O mesmo Müller promoveu disputas entre empregados de
companhias inglesas por volta de l 895 e, mais tarde, entre servidores da
Viação Paulista. Surgiram, em seguida, os primeiros teams e, junto com
eles, afirmaram-se clubes já existentes ou fundados a propósito,
espalhando-se a organização futebolística por São Paulo, Rio de Janeiro,
146
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
Rio Grande do Sul e, em seguida, por outras capitais e cidades
brasileiras 1,
O incremento do futebol ocorre na época da implantação da
república, do incentivo à política imigratório no Sul e Sudeste e da
modernização dos traçados e dos hábitos urbanos. O início do século XX,
a propósito, trouxe consigo uma onda de renovação que atingiu as
maiores cidades brasileiras. Em São Paulo, abandonavam -se as ruas
estreitas e de chão batido, enquanto no Rio de Janeiro os novos traçados
rapidamente eram tomados por dezenas de automóveis, aos quais se
puxados a burro.
Com o incentivo inicial das classes dominantes, o futebol logo
alcança
crescente
aceitação.
Afinal,
trazia
consigo
princípios
organizados de disputa em moldes de fácil assimilação, era coletivo,
proporcionando o envolvimento de mais gente direta e indiretamente
em cada confronto, e, além disso, seus adereços de cores, símbolos e
fardamentos consistiam, desde logo, em irresistível e fascinante apelo
junto ao povo. A tradição de morro e de maloca, caudatária dos ritos e
dos molejos afros e indígenas, encontraram no novo esporte campo fértil
de desenvolvimento ..A. corrida a pé, o salto, a rasteira, bem como os
atabaques e agogôs, todos convergiam para o futebol, visto tanto de
dentro do campo, nas piruetas praticadas pelos atletas, como de fora,
em forma de manifestações dos torcedores. Ademais, desenvolvidos em
locais abertos, tendo em vista as dimensões da área de embate, os
jogos eram franqueados à assistência em geral, bem como po diam se
1
Cf. ENCICLOPÉDIA BRITIANICA. s.d. São Paulo: Brittanica. v. 8.
LETRAS· Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
147
adaptar para enfrentamentos que exigiam poucos requisitos prévios da
concha.
Nas áreas baldias das cidades e no campo-fora dos interiores, nos
pátios das fábricas, nas praças e logradouros, de modo particular entre
os anos de 1920 e 1930, sob a espontaneidade do amadorismo, o
futebol ultrapassa o controle clubístico e elitista que marcara sua
implantação e exponde-se como manifestação popular, fazendo
parelho com o carnaval na condição de tópico do identidade brasileiro 2 •
Novos e antigos clubes organizam-se em torno do esporte que,
cultivando legiões crescentes de torcedores, logo busca definir regimes e
relações próprios de trabalho. Surge, assim, no esteira modernizante do
estado getulisto do década de 30, a profissionalização do prática
futebolística nacional.
Nesse percurso, que vai da afirmação ao profissionalismo e seus
estágios subseqüentes, o futebol, à medida que ganho adeptos, suscita
formos de tratamento e enquadramento interessadas em interpretar,
representar ou simplesmente reforçar suo dimensão e seu alcance no
nível social dos relações e dos trocos simbólicas 3 . A literatura e o
imprenso, nesse particular, manifestam -se como portadoras de espécies
de textos fundadores, cuja verificação, hoje, resulta em indicações sobre
os desdobramentos desse esporte entre o culto popular e a cultura de
massa.
' Há reflexões sobre o tema em AGUIAR. Flávio. Notas sobre o íutebol como situação
dramática. lN: BOSI, Alfredo (org.). 1987. Cultura brasileira. Temas e situações. São Paulo:
Ática.
3
Ver, a propósito de trocas simbólicas. Reprodução cultural e reprodução social. ln:
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas.
148
LETRAS Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
2 Jornal, literatura e televisão
À época da passagem do amadorismo para o profissionalismo,
quando acirraram-se os campeonatos e os clássicos regionais, a crónica
jornalística alcançou o tom que contribuiria decisivamente para a
expansão popular do futebol. Nos anos 30, a otuação de Mário Filho no
jornalismo carioca criou os bases de um estilo que, mais tarde, seria
atualizodo de acordo com interesses mercadológicos que, com o
tempo, tornaram-se cada vez mais imperativos para o comunicação de
massa. A descrição que Ruy Castro foz do produção de Mário Filho, o
irmão mais velho de Nelson Rodrigues, relativamente ao Fio -Fiu, é
ilustrativa:
Mário Filho apenas não inventou a siglo. Tudo o mais no Fla-Fiu
moderno foi inventado por ele. Folclorizou torcedores ilustres de
cada time e transformou o passado do jogo Flamengo e
Fluminense numa saga. Quando escrevia sobre 'o Flo-Fiu de
1919', era como se estivesse contando um capítulo da história
mundial. E, quando parecia que o interesse pelo jogo
começava decair, algo acontecia que reativava seu mistério
(CASTRO, 1992, p, 132).
Entre os anos 30 e 60, junto com o jornal, o rádio contribuiu
decisivamente como divulgador do entusiasmo despertado pelos clubes
e pelas disputas. Esse é um período em que o profissionalismo do futebol
brasileiro apresenta muitos resquícios de amadorismo. Os jogadores,
mesmo os mais consagrados, vivem modestamente e dedicam -se, por
toda o profissão, a um único clube. Assim, durante uma época que
ainda não havia acordado para as potencialidades do futebol como
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM
mercadoria, o jornal e o rádio divulgam -no da forma que melhor sabem
fazer tudo o que se propõem a divulgar, isto é, ao sabor do improviso.
Após a Copa do Mundo de 1970, com o incremento capitalista
verificado em nações emergentes, o Brasil, tricampeão no México,
molda-se aos imperativos que transformaram o futebol em poderoso
instrumento de morketíng, destinando aos craques dos grandes clubes os
brilhos e riscos que são comuns aos astros do show business. Como outras
práticas populares, diante das leis de mercado, o futebol perde a
espontaneidade própria de suas fases iniciais. A televisão, como o mais
acabado veículo de manipulação dos interesses mercadológicos, passa
a funcionar como uma espécie de agente ao qual são submetidos os
jogos e, por conseqüência, o público. As grandes redes pagam aos
clubes e ligas para poderem decidir inclusive sobre locais, datas e
horários das partidas.
Alimentada pelo discurso grandiloqüente da mídia, já que as
práticas que têm na televisão uma espécie de carro -chefe, também se
reproduzem nos veículos tradicionais, como o rádio e o jornal - a maioria,
hoje, submetida aos interesses económicos e financeiros que orientam a
comunicação de massa - cada torcida de grande clube paga mais na
proporção em que o time ganha mais, e ganhar mais significa mais
espaço na mídia e mais jogos, já que a boa classificação em um
campeonato leva necessariamente à disputa de um outro, num ciclo
que se renova e se reforça a cada vez, monopolizando os calendários
futebolísticos em torno dos grandes.
A relação do torcedor com os jogos também fica alterada num
outro ponto em função das manobras operadas pela cultura de massa.
Trata-se da domesticação promovida pelas transmissões ao vivo da 1V. A
!50
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
começar, que essa é uma prática que afasta torcedores dos estádios,
algo que funciona não apenas em relação ao que está sendo
transmitido, mas também a jogos que estejam acontecendo nos locais
onde o sinal é captado. Boa parte da torcida se acomoda, perde o
gosto de sair, deixa-se ficar em casa e colabora para substituir o calor e
a discussão. próprios das disputas, por um embate acético, próximo ao
do vídeo-game. A transmissão televisiva reduz a riqueza de um jogo a
truques de imagens computadorizadas e a um verdadeiro xadrez de
estatísticas. Os planos táticos, a cultura das torcidas, a história, os lances
duvidosos, as riquezas de detalhes dos antecedentes e, em especiaL dos
conseqüentes do jogo, tudo isso cede aos imperativos do padrão
televisivo, que se esforça para transformar os embates em uma série de
seqüências previstas como se fossem partes um programa de auditório.
Malgrado o triunfo de aspectos que têm retirado do futebol brasileiro
muito do caráter espontâneo que, no passado, contribuiu para fixar sua
popularidade,
é necessário destacar que, por outro lado, o jornal. nos
moldes propagados por Mário Filho e pelo irmão Nelson, consagrou uma
forma especial de focalizar esse esporte, a qual não se esgota nos
modelos da massificação. Trata-se da feição literária que ambos
ernprestorarn
à crónica esportiva, algo que, desde então, cooperou para
afirmar a temática do futebol entre escritores de ofício como Paulo
Mendes Campos, Femando Sabino, Luiz Vilela e Sérgio Sanf Anna,
seguindo, assim, o exemplo do desbravador Antonio de Alcântara
Machado, ficcionista do modernismo que já havia dado trato literário à
matéria.
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
!51
3 Recortes da ficção
Antes que o jornal consagrasse um estilo próprio para se referir ao
futebol, e que a própria literatura por ele se interessasse como matéria de
representação ficcional, foram autores literários que chamaram atenção
para a disputa, vendo-a com reservas. A primeira restrição que a prática
futebolística sofreu, após sua implantação no final do século XIX,
manifestou-se através de escritores que o acusaram de ser estranho às
origens brasileiras, fonte de alienação para a juventude e opoltunidade
para brigas e discórdias. Essa última é a principal preocupação expressa
por Lima Barreto na década de 1920, ironizando aqueles que defendem
o novo espolte pelo desenvolvimento da saúde física que proporciona
aos jovens.
Barreto, cuja ficção costuma gracejar do feitio excludente
afiançado pelo modelo de desenvolvimento brasileiro, utiliza -se de
expressão questionadora ao reproduzir, num estilo de crónica jornalística,
flagrantes de disputas futebolísticas: "No Rio, não há domingo em que
esse extraordinário jogo, tão zoologicamente executado com os pés,
não mereça a consagração de barulhos, rixas e conflitos, em todos os
campos da cidade" (BARRETO, apud RAMOS, 1990, p. ll ).
No fecho da crónica, mantendo o tom irónico, o escritor reproduz
final de conferência pronunciada pelo hipotético Doutor Francoso Hell
Jacuencanga, no salão nobre da Liga Metropolitana dos Troncos e
Pontapés (referência jocosa à Liga Metropolitana de Footba/1, fundada no
Rio de Janeiro em 1905), em defesa da prosperidade e das vantagens
oriundas do futebol e com a
セウー・イ。ョ@
de que "os players se façam
também políticos, a exemplo do que fi zerom os sportmen de jogos
152
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
antigos de ligeireza e golpes singulares" (Idem, p. 15). Tudo isso, no
transcrito pronunciamento do conferencista, para que "o
footbo/1
preencha plenamente o seu destino superior' (Idem, p. 15). O narrador,
após as transcrições e de acordo com as intenções irânicas do texto,
arremata: "houve uma prolongado salva de palmas e um começo de
rolo. Alguns footba/lers quiseram agredir um cronista esportivo: mas ficou
só em ameaça. Ainda bem". (Idem, p. 15).
As ironias de Lima Barreto podem ser vistas, não exatamente como
uma manifestação genuína do escritor contra o advento do futebol,
mas, algo que é típico em suas posições e produções, como uma
reação a uma prática que tinha a simpatia de moços de elite, entre eles
alguns classificados como intelectuais e até escritores praticantes 4 .
A contrariedade que se manifesta em Graciliano Ramos,
à altura
dos anos 30, alcança, de outra parte, um fundamento que explicita uma
profunda compreensão preservacionista dos valores regionais, no sentido
de que não sejam tragados pela voragem empreendida pela
denominada civilização. O ficcionista alagoano observa, em crônica a
respeito do assunto, que nas grandes cidades geram -se ambientes que
permitem a absorção do alienígena como matéria de esnobismo ou de
hedonismo: "nas cidades os viciados elegantes absorvem o ópio, a
cocaína, a morfina. [... ] ... assiste-se, cochilando,
à representação de
peças que poucos entendem, mas que todos aplaudem ao sinal da
claque" (RAMOS, apud RAMOS, 1990, p. 27 -29). Para Graciliano Ramos, o
que não se justifica é a entrada do futebol nos interiores do Brasil, cuja
' No Rio de Janeiro, notadamente escritores pertencentes ao grupo Dinamista, de
inspiração Modernista, muitos deles oriundos de uma tradição beletrlsta do neoslmbolismo dos anos 10, eram ligados às diretorias dos recém-fundados clubes de
LETRAS- Revista do Cursa de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
cultura é genuína e assim deve ser preservada. Daí sua exortação aos
jovens no sentido de que desenvolvam os músculos com práticas que
conhecem e que recebem dos antepassados, sem procurar esquisitices
que "têm nomes que vocês nem sabem pronunciar" (idem, p.29):
Reabilitem os esportes regionais, que aí estão abandonados: o
porrete, o cachação, a queda-de-braço, a corrida a pé, tão
útil a um cidadão que se dedica ao arriscado ofício de furtar
galinhas, a pega de bois, o salto, a cavalhada e, melhor que
tudo, o cambapé, a rasteira (Idem, p. 29).
As posições expressas por Lima Barreto e Graciliano Ramos
encaram o futebol como algo vindo de fora e que se transfomara em
modismo sob o patrocínio da ascendente burguesia nos maiores centros
urbanos brasileiros entre as décadas de 1910 e 1920. Ramos chega
mesmo a vaticinar: "com exceção, talvez, de um ou outro tísico,
completamente impossibilitado de aplicar o mais insignificante pontapé
a uma bola de borracha, vai haver por aí uma excitação, um furor dos
demônios, um entusiasmo de fogo de palha capaz de durar bem um
mês" (Idem, p. 24). Enganava-se o autor de Vidas secas, subestimando a
força catalisadora do futebol.
Lima Barreto e Graciliano Ramos, ao expressarem pontos de vista
que desqualificam o futeboL taxando-o de modismo, acabam, sem o
desejar, indicando uma forma adequada de emprestar trato ficcional à
matéria. Tal como se verifica nas considerações desses primeiros
cronistas ilustres, o vezo, o olhar oblíquo, atravessado, vão se constituir, ao
futebol. Cf. MOREYRA. Alvaro. 1989. As amargas não ... Porto Alegre: IEL e lN MEMORIAM
DE FELIPPE D'OLIVEIRA. 1933. Rio de Janeiro: Soe. Felippe O' Oliveira.
!54
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS].
longo do tempo, nos modos consagrados para imprimir foro de ficção
ao tema.
Pressentindo os riscos da matéria, que, por si, todos os dias,
experimenta diversos meios de circulação, além de protagonizar
peripécias que se desenrolam naturalmente em ricos enredos tramados
pela exploração da mídia e ampliados pela fruição duas ruas, a ficção
brasileira, em verdade, tem sido econômica no que se refere ao futebol.
Quando o elege como matéria de representação, de modo particular
na constituição do conto, narrativa em geral breve e de efeito
contundente, busca tirar proveito das desmedidas trágicas e cômicas
que são próprias das paixões populares, como o futebol, e que, em
geral, escapam à percepção do senso comum.
Antonio de Alcântara Machado, modernista dos anos 20, e Sérgio
Sanf Anna, situado como expressão da literatura brasileira do final dos
novecentos, são produtores de contos que expressam justamente o
aludido antagonismo entre o trágico e o cômico. Mais do que isso,
separadas no tempo por mais de cinqüenta anos, as produções desses
autores transplantam, para o nível da ficção, situações típicas de
diferentes fases
das disputas
futebolísticas.
Assim,
o
entusiasmo
espontâneo do amadorismo, encontrado nos textos de Alcântara
Machado, é substituído pela tortura do atleta submetido à técnica da
comunicação de massa, na produção de Sanf Anna.
4 Futebol: matéria de ficção e de cultura
Antônio de Alcântara Machado inscreve -se como renovador da
prosa brasileira, compondo textos eivados de falas e práticas do
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
!55
cotidiano, numa linguagem próxima a do jornalismo, empregada antes
dele por Lima Barreto em seus romances e sátiras cariocas. Machado
mostra-se mestre no discurso direto, em entrechos povoados de tipos e
espaços de uma São Paulo que passa por sérias transformações a partir
da incorporação dos imigrantes em sua paisagem, notadamente os
barulhentos italianos.
Em Brás, Bexiga e Barra Funda, de 1927, o futebol merece dois
registras. O primeiro encontra-se logo no conto de abertura, Gaetaninho.
O outro registro verifica-se na narrativa Coríntíans (2) vs. Palestra (1).
Gaetaninho é o norne do personagem principal, urn rT1enino, filho
de imigrantes italianos. Sabe-se, desde logo, do seu alheamento em
relação aos obstáculos perigosos da cidade, tais como carros, carroças
e
bondes.
O
futebol
é
referido
nos
primeiros
parágrafos,
no
entrecruzamento entre o discurso telegráfico do narrador e as falas soltas
das personagens. Gaetaninho perdeu a hora de vir para casa e a fuga
que empreende para escapar da zelosa mãe é comparada a de um
futebolista:
Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo
beicinho. Estudando o terreno. Diante da mãe e do chinelo
parou. Balançou o corpo. Recurso de campeão de futebol.
Fingiu tomar a direita. Mas deu meia volta instantânea e varou
pela esquerda porta adentro. Eta salame de mestre!
(MACHADO, 1988, p.80).
Tal como na passagem transcrita, o futebol em Alcântara
Machado é visto como movimento, lance de esperteza, barulho
entusiasta, demonstração de mestria. Gaetaninho, a personagem, no
entanto, sonha com enterros e é disperso em relação à realidade mais
próxima. Por isso, sua corrida atrás da bola acaba sendo uma corrida
!56
LETRAS · Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS].
para a morte. O conto, pois, quando alude novamente ao futebol,
depois de rápidos flagrantes sobre a família de Gaetaninho, o faz paro
desencadear o desfecho trágico:
O Nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem
perto. Com o tronco arqueado, as pernas dobradas, os braços
estendidos, as mãos abertas, Gaetaninho ficou pronto para a
defesa.
-Passa pro Beppino!
Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo
o muque. Ela cobriu o guardião sardento e foi parar no meio
da rua.
- Vá dar tiro no inferno!
- Cala a boca, palestrino!
-Traga a bola!
Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um
bonde o pegou. Pegou e matou (Idem, p. 81, 82).
o futebol
não é apenas pano de fundo para o desfecho trágico
do conto, nas duas cenas em que aparece. Ele funciona, também,
como justificativa poro a agilidade das cenas e poro o recorte dos
planos, além de ser uma espécie de costura entre o nível mais superficial
da narrativa - as descrições, os movimentos, os caracteres das
personagens típicas, e o nível profundo da significação, que resgata um
jeito tipicamente itaiiano de cultivar enterros. de espetacuiarizar a
desgraça, de dor crédito às superstições.
A tragédia - morte de
Gaetaninho - fica amenizada em meio a tais perspectivas da mesma
forma que a dor da derrota no futebol é capaz de encontrar lenitivo no
simples fato de que perder faz parte do jogar. Ao menos nessa hora,
compreende-se que o mais importante é competir e dor espetáculo.
Essa pode não ser a compreensão da família de Gaetaninho, no conto,
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
!57
mas certamente é algo próximo da reação do leitor diante da morte
bizarra da personagem.
Em Coríntians [2) vs. Palestra [1), diverso de Gaetaninho, o futebol
ocupo praticamente toda a cena do conto. Ambientado aí pelos anos
20, trato-se mesmo da descrição de um confronto entre os dois clubes
paulistas realizado no Porque Antártica (estádio do Palmeiras, clube que,
na época, denominava-se Palestra Itália). A narrativa propõe um
contraponto entre os lances e os acontecimentos da disputo, ocorridos
dentro
do
campo
e
os
reoções
da
torcida,
particularmente
concentradas em uma torcedora: Miquelina, ex-namorado de Biagio,
meia-direita do Coríntians. Miquelina o trocara por Rocco, do Palestra,
justificando-se, assim,
como novo torcedora
polestrina,
em cuja
condição comparecia ao jogo.
Os
lances
de
campo
confundem-se
com
lances
do
arquibancada. O clima do Estádio é reproduzido nas imprecoções, nas
palavras de ordem, no apito do juiz, no pregão do vendedor, na
descrição do andamento do jogo. O Coríntions foz um a zero:
Camisas verdes e calções negros corriam, pulavam,
chocavam-se, embaralhavam-se, caíam, contorcionavam-se,
esfalvavam-se, brigavam. Por causa da bola de couro
amarelo que não parava um minuto, um segundo. Não
parava.
- Neco! Neco!
Parecia um louco. Driblou. Escorregou. Driblou. Correu.
Parou. Chutou.
- Gooool! Gooool! [Idem, p. l 03)
À descrição do gol corintiono, segue-se a desolação de Miquelino
na arquibancada. O Palestra, no entanto, marca antes do inteNalo. A
!58
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
cena do gol de empate é descrito pelo ponto de vista da torced ora
enamorada:
Miquelino ergueu-se na ponta dos pés. Ergueu os braços.
Ergueu a voz:
- Centra, Matias! Centro, Matias!
Matias centrou. A assistência silenciou. lmparato
emendou. A assistênca berrou.
- Palestra! Palestra! Aleguá - guá! Palestra! Aleguá! Aleguá!
(Idem, p. l 04).
A cena da vitória do Coríntians culmina o entrecruzamento que o
conto propõe entre a disputa do campo e a definição do triângulo
amoroso:
Biagio alcançou a bola. Aí, Biagio! Foi levando, foi levando.
Assim, Biagio! Driblou um. Isso! Fugiu de outro. Isso! Avançava
para a vitória. Salame nele, Biagio! Arremeteu. Chute agora!
Parou. Disparou. Parou. Aí! Reparou. Hesitou. Biagio! Biagio!
Calculou. Agora! Preparou-se. Olha o Rocco! É agora. Aí! Olha
o Rocco! Caiu (Idem, p. l 05).
A
descrição
do
lance,
feita
de
frases
curtas,
insistentes
exclamações, sentenças imperativas e recursos do modo narrativo
indireto livre, exemplifica a forma como a linguagem ficcional de
Alcântara Machado incorpora ao texto cenas próprias do futebol,
recuperando-lhes tonto a plasticidade como a emoção. O resultado da
cena é o confronto, em campo, entre Biagio e Rocco, a dupla que
mexe com o coração de Miquelina. A vantagem é do primeiro que,
além de sofrer o pênalti, como se depreende da passagem transcrita,
encarrega-se logo após de cobrá-lo, marcando o gol da vitória
corintiana. Decidido o jogo, o conto logo se decide: Miquelina resolve ir à
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS].
159
reunião dançante do noite em local que deixara de freqüentar desde
que iniciara romance com Rocco. O enredo sugere que a volto significo
o possibilidade de reencontrar Bioggio, que como o narrativo informara
antes, é freqüentodor assíduo de tais reuniões.
Tal como se verificou em Gaetaninho, em Coríntians (2) vs. Palestra
(1J
constato-se o preponderância de uma perspectivo relativista,
colocado em circulação o partir dos referências ao futebol enquanto
disputo que afloro paixões que alternam vários sentimentos. Miquelina
transito entre o alegria e o tristeza, entre o namoro e a dor -de-cotovelo e,
por fim, entre um namorado e outro. Se em Gaetanínho o impacto do
morte, poro o leitor, é atenuado pelo bizarrice de um jogo de garotos,
nesse segundo conto, o antigo temo do triângulo amoroso vê substituído
o tradição do desfecho trágico pelo lance que define a partida em
disputo. Nos dois casos, para usar uma expressão aristotélico, o futebol é
apresentado como produtor de um efeito catártico 5, classificação que
parece de acordo com o sentimento que desperto ao tempo em que
Alcântara Machado produz seus textos - década de 20. O advento do
indústria cultural, particularmente da mídio televisivo, altera a relação e
permite que a ficção, sessenta anos mais tarde, modifique o enfoque.
Contista e novelista mineiro, Sérgio Sanr Anno incorporou -se à
literatura brasileiro nos anos de 1970. Possui um estilo caracterizado pelo
misturo entre diferentes gêneros, cujo resultado aparece em textos que se
classificam entre o narrativo, o poesia e o teatro, com abordagens de
espaços, tempos e personagens marcados por troços difusos, tal como
nos sonhos. Com Luís Vilela, Roberto Drummond e outros conterrâneos
160
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS].
compôs o denominado grupo dos novos, ficcionistas de vanguarda que
se afirmaram entre os anos 70 e 80.
O futebol, no conto No último minuto, de Sérgio Sanr Anna, é
situado na era dos recursos televisivos. A narrativa prefere uma
abordagem que contradiz a lógica ufanista repetitiva da televisão. Para
isso, elege o ponto de vista do goleiro que falha no último minuto,
possibilitando o gol da vitória e do campeonato do time adversário. O
conto, em verdade, descreve o martírio do goleiro que assiste a insistente
repetição do lance na N. A linguagem é densa, em primeira pessoa. As
frases são curtas, os parágrafos longos. O goleiro assiste as repetições,
perfeitamente marcadas no texto por tópicos que idenficam as
diferentes estações: Canal 5, Canal 3, Canal 8. Cada uma delas é
composta pelo lance normal e pela reedição, também subdivida no
texto, sob o título de Câmara lenta. Enquanto revê o lance, vai
recompondo as ações tais como foram protagonizados dentro do
campo:
O nosso zagueiro direito ficou muito pra trás e o Canhotinho
vem na maior correria. É nessa hora que eu grito para o Lula:
"Vai nele, vai nele". Mas o grito não se escuta na
arquibancada nem na N. E o Lula é o zagueiro central da
seleção e. entre mim e ele, eles preferem me queimar. "Vai
nele, vai nele", eu estou gritando. por precaução. Porque
ninguém pode acreditar numa jogada dessas (SANT'ANNA,
1997, p, 72 ).
O goleiro que revê o lance na televisão expresso a certeza de que
a jogada era fácil e de que o gol sofrido foi obro do imponderável, isso
Para Aristóteles. a catarsis era a função do gênero trágico e correspondia à purificação
das paixões do temor e da piedade. Cf. ARISTÓTELES. 1992. Poética. São Paulo: Ars
Poetica.
5
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
161
porque além da vantagem do zagueiro, havia sua própria vantagem. É
disso que tenta se convencer cada vez que revê a seqüência:
Eu fechei o ângulo direitinho e caio na bola. Eu sinto a bola nos
meus braços e no peito. E sei que a torcida vai gritar e
aplaudir, desabafando o nervosismo, naquele último ataque
do jogo. Eu tenho a bola segura com f'1rmeza contra o peito e,
de repente, sinto aquele vazio no corpo. Eu estou agarrando o
ar (Idem, p. 72-73 ).
O lance transmitido repetidos vezes com as diferentes velocidades
da imagem e com o monótono lamento do goleiro -narrador, dá ao
conto de SanfAnna um tom obsessivo. O futebol, aí, diferente da leveza
e da graça alcançadas nas narrativas de Alcântara Machado, torna -se
pesado e algo monótono. O jogador de SanfAnna é presa da televisão.
Os jogadores de Machado são produtos das ruas e dos saraus
dominicais.
Os dois momentos representados ficcionalmente pelos escritores
em pauta reiteram, por um lado, uma dicotomia entre aspectos do
amadorismo e do profissionalismo futebolístico e, por outro lado, a
possibilidade de se considerar um esporte popular como esse a partir de
uma perspectiva cultural pluralista. Os textos lidos, confrontados com a
história da evolução do futebol no Brasil e com sua paulatina apropriação
pelos veículos da comunicação de massa, podem ser tomados como
expressões literárias que permitem cruzar, no mesmo espaço de leitura,
reflexões que servem para iluminar o tema em seus aspectos sincrônicos e
diacrônicos, ou seja, a partir da mobilidade cultural e da projeção
temporal que lhe dizem respeito. A consideração sobre a riqueza cultural
envolvida nas práticas futebolísticas é, de resto, a percepção que já está
LETRAS Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
na crônica de jornal, quando esta dedica um trato literário à matéria.
A propósito de cultura, Alfredo Bosi observo que são diversos os
níveis em que ocorre e precária a separação entre eles, devido aos
constantes intercâmbios que experimentam entre si. A cultura de massa,
a propósito, que se. mostra sintonizada com fenômenos atuais, utiliza -se
de recursos produtores de sentidos que são da ordem da mitologia
primitiva. A cultura como fenômeno arraigado na tradição dos povos, por
seu turno, freqüentemente debate-se com o perspectiva de atuolizar-se
bem como de utilizar-se dos meios de divulgação de massa. Bosi registra
que esses cruzamentos produzem a necessidade de se olhar os
fenômenos culturais como fenômenos caracterizados pela pluralidade:
"a cultura das classes populares, por exemplo, encontra-se em certas
situações, com a cultura de massa; esta, com a cultura erudita; e vice
versa" (BOSI, 1989, p. 8).
A respeito do futebol brasileiro, é necessário reconhecer que se
trata de uma manifestação que, para além da lógica mass !ficada da
sociedade de consumo, está garantido na simbologia das relações
sociais pela incorporação que tem experimentado através dos tempos
de aspectos plurais de cultura. Sua trajetória, de fato, apresenta história
interna específica, ritmo próprio e modo peculiar de existir nos tempos
histórico e subjetivo - atributos que Alfredo Bosi (op. clt.) confere às
culturas popular e erudita. Logo, as práticas da massificação, orientadas
pelas leis do consumo e que resultam no direcionamento da paixão,
manipulam mas não anulam atributos de outros níveis culturais
encontrados no referido esporte. Caso não fosse assim, ficaria difícil a sua
sustentação em determinados meios, inclusive como tema literário
LETRAS. Revista da Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
163
capaz de reproduzir dramas humanos nos moldes verificados em textos
como os de Alcântara Machado e Sérgio Sant' Anna.
Bibliografia
BOSI, Alfredo. 1987. Cultura brasileira. Temas e situações. São Paulo:
Ática.
[Org.). 1992. Dia/ética da colonização. São Paulo: Companhia das
Letras .
. 1980. História concisa da literatura Brasileira. Sóo Paulo: Cultrix.
BOURDIEU. Pierre. 1992. Economia das trocas simbólicas. São Paulo:
Perspectiva.
CALLIGARIS, Contardo. 1996. Helio Brasil! Notas de um psicanalista
europeu viajando ao Brasil. São Paulo: Escuta.
CANDIDO, Antonio. Dialética do malandragem. Caracterização de
Memórias de um sargento de milícias. lN: DASCAL, Marcelo [Org.).
Conhecimento. ideologia, linguagem. 1989. São Paulo: Perspectiva.
CASTRO, Ruy. 1992. O anjo pornográfico. A vida de Nelson Rodrigues. São
Paulo: Companhia das Letras.
DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Para uma sociologia
do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.
ENCICLOPÉDIA BRITTANICA s.d. São Paulo: Brittanica. v. 8
lN MEMORIAM DE FELIPPE D'OLIVEIRA. 1933. Rio de Janeiro: Soe. Felippe
O' Oliveira.
MACHADO, Antônio Alcântara. 1988. Novelas paulistanas. São Paulo:
EDUSP; Belo Horizonte: ltatiaia.
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS].
MOREYRA, Alvaro. 1989. As amargas não ... Porto Alegre: IEL
RAMOS, Ricardo (Org.). 1990. A palavra é futebol. São Paulo: Scipione.
SANT'ANNA, Sérgio. 1996. Notas de Manfredo Rangei, o repórter. ln: _.
Contos e novelas reunidos. São Paulo: Companhia das Letras.
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
165
ANTROPOFAGIA, TROPICALISMO, E COMO ERA GOSTOSO MEU FRANCÊS
Theodore Robert YOUNG
Florido lnternotionol University
"Contra Anchieto cantando as onze mil
virgens do céu, na terra de Iracema,
- o patriarca João Ramalho fundador
de São Paulo."
Oswald de Andrade, "Manifest Antropófago"
Em 1971, durante o auge do repressão político no Brasil, enquanto
o
íntelligentsía
do
esquerdo
procurou
mobilizar trabalhadores e
estudantes através de arte "revolucionário e consciente" (Dunn 16), o
cineasta Nélson Pereira dos Santos dirigiu um filme histórico inspirado num
relato de cativeiro entre os tupinombás em 155 7. O filme de Pereira dos
Santos, Como era gostoso meu francês, pode parecer anacrónico à
primeiro visto, dado o turbulento e engajado clima artístico do época.
No entonto, o filme no realidade incorporo o estético tropicalista do
década de 1960 ao idioma cinematográfico.
Essencialmente, o
cineastü "canibaliza" a estilística müsica1 do tropicalismo, ao modo do
"Manifesto Antropófago" modernista, enquanto justapõe o história "oficial"
com uma reinvenção irreverente do período colonial brasileiro. Em último
análise, esta técnico revisionista propositadamente subverte o autorepresentação autoritário do regime militar depois do Ato Institucional V
de 1968.
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
167
Em 1556, o aventureiro alemão Hans Staden publicou um livro de
suas viagens no Brasil feitas de 1547 a 1548 e também de 1549 a 1555. 1
Estas crônicas incluem os nove meses que ele passou como prisioneiro
dos tupinambás durante a segunda viagem. 2 A questão da antropofagia
ritualística do Brasil é essencial para a compreensão da história de
Staden, do sistema totêmico indígena, e das tentativas posteriores de
criar uma identidade cultural brasileira. De fato, o frontispício da edição
de Marburgo (1557) declara: "Descripção verdadeira de um paiz de
selvagens nús, ferozes e cannibaes" (Staden 13). De acordo com seu
relato, Staden foi prisioneiro dos tupinambás enquanto esperava ser
devorado por seus captores.
Semelhante aos caribes precolumbinos
cujas práticas limitavam -se ao consumo ocasional de prisioneiros de
guerra (Boucher 6), vários povos da cultura tupi freqüenteme nte comiam
inimigos capturados em batalhas, literalmente incorporando parte da
identidade do indivíduo ingerido e ao mesmo tempo adquirindo um
novo nome (Staden 68). 3 Mudar de nome depois de ingerir um Outro faz
parte do sistema de crenças dos habitantes do Brasil pré-cabralino. Os
1
Uma primeira, porém provavelmente não definitiva, edição parece ter-se publicado
em Frankfurt am Main por Weygandt Han em 1556. Não há data no livro, mas o
prefácio é daquele ano. Segundo J. C. Rodrigues. na sua Bibliotheca Brasiliense (Rio:
1907, 590), Staden provavelmente optou por uma editora de Marburgo em 1557, com
a intenção de melhorar a precisão histórica das gravuras que ilustram o livro, apesar da
queda em qualidade artística (Staden 9, note 1).
2
No prefácio da edição de Marburgo, Staden indica nove meses (16), enquanto o
Sumário indica dez meses e meio (25).
3
Esta forma de exocannibalismo - o consumo de forasteiros ou estrangeiros - há-de ser
distinguido de autocannibalismo (o consumo de si mesmo) e especialmente de
endocannibalismo, o consumo de membros do seu próprio grupo social (Shipman 70).
O último é amplamente documentado como canibalismo de sobrevivência (aviões
caídos nos Andes, etc.), e também aparece em certos casos de preservação ritualística
de antepassados por ingestão (Boucher 7, and Lévi-Strauss, Tristes Tropiques 387).
168
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS].
nomes de pessoas refletiam seu totem, um espírito da Natureza que
expressava a identidade do indivíduo ou do clã.
Em The E/ementary
Structures of Kinship, Claude Lévi-Strauss indica que "the religious life of
these [primitive] societies is dominated by beliefs affirming an identity of
substance between the clan and the eponymous totem" (20).
Ele
continua, "We know that this belief poses no obstacle to the eating of the
totem, but merely confers some ceremonial significance upo n this eating"
(21 ).
Ao devorar um corpo estranho as características daquele Outro
incorporam-se ao devorador.
Em Tristes Tropiques, sem se referir
explicitamente ao exocannibalismo, Lévi -Strauss confirma a obseNação
de Staden a respeito da mudança de nomes depois de matar um
prisioneiro, indicando que os tupis também "acquire nomes on passing
from childhood into adolescence, and then ogain when they reach
adulthood" (353).
De acordo com o antropólogo inglês Edmund Leach, a questão
daquilo que uma pessoa come relaciona-se intimamente com quem
uma pessoa pode manter relações sexuais em muitas sociedades rurais
e pré-industriais (Shipman 71, 72). Os fatores determinantes são mais ou
menos proximidade ao Eu, e alteridode familiar. Num tratamento da
separação básico de imediação (o Eu e seus irmãos) de olteridode
(primos ou outros parentes), Leach indica o oposição lógico entre união
através de incorporação e união através rle aliança (Rethinking 19). Ele
desenvolve o hipótese geral da distinção entre as re loções de substância
compartida (corpo, sangue) e as de metafísico (alianças):
in any system o! kinship and marriage, there is a fundamental
ideological oppostion between the relations which endow th_e
individual with membership o! a "we group" o! some kind
(relations o! incorporation), and those other relations which link
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
169
"our group" to other groups of like kind [relations of alliance),
and that, in this dichotomy, relations of incorporation are
distinguished symbolically as relations of common substance,
while relations of alliance are viewed as metaphysical [as
opposed to physical] influence. [Rethinking 21)
Como conseqüência desta perspectiva de relações, irmãos não se
casam,
primos podem em algumas sociedades, 4 e vizinhos ou
habitantes da mesma comunidade (Outro conhecido) são ideais,
enquanto estranhos não são imediatamente selecionados até que seu
caráter seja revelado. De modo semelhante, a maior parte dos seres
hümanos caínfvoías consomem animais domesticados explicitarr1ente
para alimentação. Em contraste, animais de estimação, como cães e
gatos nas sociedades européias e euro -americanas, não são comidos
pelas pessoas, já que estas os percebem mais como Eu (humano) do
que Outro (animal). Animais selvagens também são consumidos, porém
em grau menor; no entanto, espécies estranhas e desconhecidas não
são comidos imediatamente, algo que evita a possibilidade de
intoxicação ou outro perigo. 5 Shipman retrata-o da seguinte maneira:
4
Basta conferir a família real portuguesa, entre outras, para ver a aceitação do
casamento entre primos irmãos: João III de Portugal casou-se com Catarina dos
Hapsburgos, irmã de Carlos V rei da Espanha; a irmã de João, Isabel, casou-se com
Carlos V. O filho do primeiro casal casou-se por sua parte com a filha do segundo, e a
filha do primeiro casou-se com o filho do segundo. Portanto, os casais João e Juana, e
Felipe e Maria, eram todos primos-irmãos pelos pais e pelas mães.
5
Pergunta-se quem foi a primeira pessoa a comer uma lagosta.
170
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS),
()·
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
171
Shipman utiliza a Figura 1 para representar tanto as expressões de
parentesco e alteridade para casamento desenvolvidas por Leach,
quanto a avaliação de tabus para consumo dele. No primeiro caso:
A=Eu;
B=lrmã/irmão: casamento impossível;
C=Primos: casamento possível;
D=Vizinho: casamento desejado;
E=Pessoas remotos: casamento impossível.
No segundo caso:
A=Eu [seres humanos];
B=Bichos de estimação: não-comida;
C=Animois domesticados, criados para consumo: comida;
D=Animais selvagens: comida, sujeita a regras;
E=Animais selvagens remotos: não-comida. (72)
As tendências alimentícias e sexuais variam de cultura a cultura.
Alguns povos comem cães, gatos e macacos, e algumas comunidades
permitem o casamento entre primos.
Muitas sociedades enfatizam a
distinção entre primos-irmãos e outros parentes mais distantes.
A
codificação destas tendências constitui os tabus sociais, as maiores
proibições sendo contra o incesto e o canibalismo.
Ambas práticas
transgridem as regras de distâncias aceitáveis pela sociedade, e a
paleontóloga Pat Shipman:
Because both connibalism and incest violate rules of accepted
distances, the two ore often believed to be practiced together.
Thus to accuse a group of both cannibalism and incest is
tantamount to denying their humonity. (72) 6
6
No capítulo li de The Elementary Structures of Kinship, Lévi-Strauss analisa o problema
de incesto. com referência às semelhanças entre os totens e tabus de copular e de
comer: "Marriage and, in very many societies. the sexual act itself have a ceremonial
172
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
Em
1979, no seu livro The Man-Eatíng Myth: Anthropology and
Anthropophagy, William Arens ataca a própria noção de canibalismo,
chamando-a de "a myth generated to enslave or otherwise oppress a
hostile 'other"' (Boucher 6).
Shipman observa que acusações de
canibalismo servem para distanciar o acusador (Eu) do acusado (Outro),
e podem funcionar para contrastar o "estado civilizado" de uma cultura
da barbárie animalesca da outra.
Tais acusações podem servir até
como justificativa para uma guerra. 7 Negar a humanidade de um povo
alheio parece justificar atrocidades normalmente inadmissíveis como a
escravidão, genocídio, e a apropriação de terras. Principiando com o
Diário de Bordo de Colombo (1492) e o Carta do Achamento de
Caminho (1500), muitos descrições dos indígenas das Américas de
algum modo animalizam os chamados "selvagens", multo à maneira do
relato de Staden. Estes tratamentos do "Outro" vis-à-vis o "Eu" europeu
mais freqüentemente refletiam percepções européias do que as
realidades das culturas indígenas, quase sempre favorável aos interesses
do empreendimento colonializador.
Em Savagísm and Cívilization, Roy
Harvey Pearce
dos
discute
a
visão
indígenas
norte -americanos
conceituada pelos colonizadores ingleses: "The lndian become important
for the English mind, not for what he was in ond of himself, but rother for
what he showed civilized men they were not ond must not be" (5). Leoch
explica: "Nearly ali the earliest printed illustrotions of Americon lndians
and ritualistic significance in no way incompatible wlth lhe claim that they represent a
form of totemic communion" [21 ).
7
Neste sentido bosta lembrar a propaganda dos Aliados na Segunda Guerra Mundial
que retratava os alemães como lobos famintos e os japoneses como ratos traiçoeiros.
LETRAS - Revista de Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS].
concentrated obsessively on the gol)l details of their supposed
cannibalism ... The illustrations, though mostly absurd, were based on later
and more authentic accounts of cannibalism among the coastal peoples
of Brazil" (Social 65).
O próprio Colombo encorajou os Reis Católicos,
Fernando e lsabela, a escravizar "these cannibals, a people vel)l savage
and suitable for the purpose" (Boucher 16, Greenblatt 71 ), uma medida
que aumentaria o valor capital dos novos territórios sob o comando de
Colombo. Não obstante a declaração do navegador, Leach duvida da
informação apresentado por Colombo: "ln actual foct it is doubtful
whether any of the lndians with whom Columbus had direct contact ever
ate human flesh" (Socia/65). 8
Independente dos motivos, a herança do canibalismo deixou um
marco no iconografia do Brasil colonial, e conseqüentemente no noção
que se desenvolveu.
Em 1928, o modernista Oswald de Andrade
publicou seu "Manifesto Antropófago", uma declaração de brasilidade
através do canibalismo cultural. Andrade admite o ocorrência histórico
' Em Marvelous Possessions, Stephen Greenblatt indica que o Diario da primeira viagem
de Colombo descreve a população indígena como pacífica e ordeira: "[Columbus]
recognizes olmost at once that even here, on these small lslands with thelr naked
inhabitants living in tiny hamlets and appearing to share everything, there is a politicai
and social arder of some kind. lndeed in the log-book Columbus describes communltles
characterized not by savage confusion but by an admlrable orderliness" (65). Somente
mais tarde Colombo expressa suas suspeitas de canibalismo nas outras ilhas que ele
não visitou: "ln the letter to SantangeL Columbus mentions an island he calls 'Quaris,'
which is inhabited 'by a people who are regarded in ali the islands as very fierce and who
eat human flesh' (i. 14)" (Greenblatt 171, n.45). Sobre como Colombo percebeu o
canibalismo no Caribe, veja o livro de Peter Hulme, Colonial Encounters: Europe and lhe
Native Carlbbeon. 1492-1797 (London: Methuen, 1986); e Michael Palencia-Roth,
'Connibolism and the New Man of Latin America in the 15"'- and 16th·century European
lmaginotion', in Comparativo Clvlllzations Review 12 (1985): 1-27.
174
LETRAS -Revista do Curso de Mestrodo em Letros da UFSM (RS],
de antropofagia não como um estigma, porém com orgulho.
Ao se
referir ao rito indígena de devorar os inimigos cativos, Andrade escreve:
Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência
Antropofagia.
A transformação
codificação da Magia.
permanente do Tabu em totem. (15)
No sentido social e cultural, Andrade percebe a identidade da ex -colónia
como um conjunto de elementos diversos incorporados [literalmente
introduzidos ao corpo) de outras culturas.
Uma sociedade cria seu
próprio corpo ao ingerir e internar elementos de culturas alheias, da
mesma maneira que um corpo humano produz sua proteína dos
enzimas das plantas e dos animais consumidos.
Andrade apoia o consumo de outras culturas: "Só me interessa o
que não é meu.
Lei do homem.
Lei do antropófago"
[13).
Ele
completa: "Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte
do eu.
Subsistência.
Conhecimento.
Antropofagia" [15).
Haroldo de
Campos classifica o "Manifesto Antropófago" como:
caminhando para uma visão brasileira do mundo sob a
espécie da devoração, para uma assimilação crítica da
experiência estrangeira e sua reelaboração em termos e
circunstâncias nacionais e alegorizando nesse sentido o
can1balísmo de nossos selvagens. (Perrone 65)
A noção de devorar e de assimilar influências estrangeiras à cultura
brasileira resurgiu 40 anos depois do Manifesto.
Em 1968, os músicos
Caetano Veloso e Gilberto Gil lançaram seu disco Tropicália que
simultaneamente criticava o status
quo sócio-político brasileiro e
misturava estilos musicais de todo o mundo, formando uma nova e
brasileira expressão artística [Perrone 65). O próprio Caetano explica:
LETRAS- Revista da Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
175
We took the example of cultural cannibalism, created [... ] by
the Modernists, especially Oswald de Andrade, who had
invented this idea that you devour everything that comes from
anywhere in the world and digest it however vou like in arder to
produce something new. (Dunn 17)
O título completo do álbum, Tropicália, ou Panis et Circensis, combina a
noção do Brasil como um país tropical com panem et circenses, o
conceito clássico romano da pacificação do descontentamento das
massas através da comida e do entretenimento, elaborado por Juvenal
no seu ataque satírico à corrupção e decadência do império romano. A
obra de Caetano e Gil é um comentário crítico da situação brasileira sob
o regime militar do final da década de 1960. - Os músicos também
contestavam a extrema censura do governo do presidente Arthur da
Costa e Silva, que decretou o quinto Ato Institucional no dia 13 de
dezembro de 1968.
"justaposição
de
A estética tropicalista que resultou foi uma
elementos
contraditórios,
metrificação
irregular,
incorporação de ruídos da cidade industrializada etc." (Franchetti 138).
Ainda mais, os tropicalistas rebelaram-se contra toda forma de limitação
musical, tomando da MPB, o samba tradicional, Bossa Nova, boião, e
estilos caribenhos, entre outras influências (Perrone 65). Ao misturar vários
estilos
de
diversos
lugares
e
períodos,
e
ao
desconsiderar
propositadamente as considerações políticas da música eletrônica
(derivada do "Primeiro Mundo") vis-à-vis expressões tradicionais (do
"Terceiro Mundo"), os tropicalistas desenvolveram anacronismos que
suvertiam o imperialismo cultural da soei edade modernizada euroamericana ao romper a separação entre culturas "desenvolvidas" e as
176
LETRAS- Revisto do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
"em desenvolvimento". 9
De acordo com Roberto Schwarz, estes
anacronismos resultam em uma alegoria do Brasil (74) na medida em
que a justaposição do velho e do novo, o 'Terceiro Mundo" antiquado e
do "Primeiro Mundo" moderno, formam um absurdo social e político (76).
Ele elabora:
[N]ós, os otuolizados, os articulados com o circuito do capital,
folhado a tentativa de modernização social feito de cimo,
reconhecemos que o absurdo é o olmo do país e o nosso. (77)
Antônio Carlos de Brito, no artigo "Tropicalismo: suo estético, suo história,"
extrapolo do texto de Schwarz:
À primeiro visto esta combinação do moderno e do antigo
indico apenas o coexistência de manifestações ligados o
fases diferentes do mesmo sistema. Mos o importante no
sistematização dessa coexistência é seu sentido, que pode
variar ... [É] esta discordância interno que constitui o brilho
próprio, o marco de fábrica do imagem tropicalista ... [N]o
contraposição do imagem tropicalista figura um abismo
histórico real, o conjugação de etapas diferentes do
desenvolvimento capitalista. (697)
Schwarz conclui que
o efeito básico do tropicolismo está justamente no submissão
de anacronismos desse tipo, grotescos à primeiro visto,
inevitáveis à segundo, à luz bronca do ultra-moderno,
transformando-se o resultado em alegoria do Brasil. A reservo
de imagens e emoções próprios ao país patriarcal, rural e
urbano, é exposto à formo ou técnica mais avançado ou no
modo mundial. . . O resultado do combinação é estridente
9
Como indico Christopher Dunn, o sompling aberto de tão amplo variedade de músico
por porte dos tropicalistas alienou o esquerdo radical: "lronicolly, their most virulent critics
were left-wing students, ortists ond critics who rejected ony real or perceived copitulotion
to cultural imports. Following the militory coup of 1964, the jozzy sounds of bossa novo,
pioneered ... in the lote 1950s, fel I out of favor with the politicolly engoged urbon youth
who preferred ocoustic protest music" (14-16).
LETRAS - Revisto do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (RS).
177
como um segredo familiar trazido à rua, como uma traição de
classe. (74)
Os
elementos
essenciais
do
tropicalismo
-
fragmentação,
anacronismo e reciclagem, pastiche - correspondem à estética pósmoderna, segundo definições correntes [Yúdice 6).
George Yúdice
distingue definições euro-cêntricas típicas do pós-modernismo das
expressões não-européias da estética, sobretudo na América Latina. Ao
contrário de Lyotard e Jameson que identificam o pós -modernismo
como algo que substituiu a modernidade com um novo "dominante
cultural", Yúdice postula a pós-modernidade como uma série de
condições que abrangem diversas formações sociais e múltiplas
respostas à modernização [7):
lt is nota matter, then, of a different order of things following or
replacing modernity, as it has been suggested from Weber to
Habermas. lf postmodernity has any specificity it is in the
rethinking of how modernity has been represented, how
alternative sciences, morais, and aesthetics, as well as different
sociocultural formations, have ali contributed to the constitution
of modern life. (7)
Ele mantém que o pós-moderno não procura necessariamente inovar,
como o moderno, senão rearticular tradições alternativas para desalienar
a vida contemporânea [15).
No Brasil, apesar de que muito do que formalmente constitui
tropicalismo derive-se
do modernismo,
o que fundamentalmente
diferencia os dois, além da cronologia, é o conceito de identidade
cultural manifesta das duas estéticas. Os modernistas procuravam ingerir
elementos de culturas estrangeiras, ou admitir a de fato apropriação de
artefatos culturais na formação de uma identidade brasileira, distinta de
simplesmente uma neo-portuguesa.
178
George Yúdice declara: "Brazilian
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
avant-gardes ... were not so much a break with the [indigenous, AfroBrazilian and Luso-colonial) past as a rearticulation of it in their attempts to
establish a national culture" [21 ).
O conceito vanguardista da ruptura
com o passado proclamada pelo movimento modernista foi mais
exatamente uma continuação da construção de cultura do Brasil: no seu
"Manifesto da Poesia Pau-Brasil" [1924)- um dos documentos canônicos
do movimento -
Oswald de Andrade refere-se à "coincidência da
primeira construção brasileira no movimento de reconstrução geral" [7).
Mais de seis décadas depois, Renato Ortiz concorre:
The ruptura never occurred as it did in European countries
becouse the idea that dominated our imaginary wos always
connected to the need to construct a modern Brazilion nation.
(209)
No seu artigo "Permanência do discurso da tradição no modernismo,"
Silviano Santiago também reconhece que ao incorporar a estética
vanguardista brasileira à expressão cultural pós -moderna da apropriação,
a ênfase do papel da ruptura deve ceder a um enfoque no pastiche que
aceita o passado não com reverência, senão como presumido no
presente [ l 36).
Com influências tonto do noção modernista de canibalismo
elaborada por Oswald de Andrade, quanto da destruição pós -moderna
da história dos tropicalistas, Nélson Pereira dos Santos recriou os conflitos
culturais exemplificados no relato de cativeiro de Staden.
10
O pano-de-
10
Numa entrevista com José Agustín Mahieu na revista Cuadernos Hispanoamericanos
(Madrid), Pereira dos Santos reconhece o papel de "canibalismo cultural" no filme: "La
concepción de esta historia [Como era gostoso o meu francês] se basa en esa
recuperación de la cultura brasilefía, colonizada desde hace siglos, a través de una
tronsferencia de las virtudes dei enemigo ... Es una teoria de la osimilación de la cultura
extranjera por el hombre brasilefío ... Cuando se formula esa teoria, esta idea coincide
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
179
fundo para Como era gostoso meu francês são as guerras entre os
portugueses e os franceses na região da Baía de Guanabara e São
Vicente. Ambos os países europeus estabeleceram alianças com tribos
indígenas rivais, entre eles os tupiniquins e os tupinambás. A personagem
titular, transformada do alemão Staden num francês sem nome, é um
prisioneiro de uns portugueses quando estes são atacados pelos
tupinambás que o prendem, tomando-o erroneamente por um inimigo
português. Ele convive com a tribo por um ano até ser comido por eles.
Desde a primeira cena, Pereira dos Santos justapõe a história oficial
com questionamento revisionista, uma expressão daquilo identificado por
George Yúdice como dúvida pós-moderna.
A primeira seqüência de
imagens mostra as autoridades franceses supostamente no ato de punir
uns soldados rebeldes.
A narração verbal não diegética consiste em
uma carta do comandante francês para o rei, a qual descreve a versão
oficial dos eventos, em contraste perturbador com os imagens visuais. A
cena termina com a narração de um gesto fútil de clemência por parte
das autoridades: "[Nós] libertamos um deles de suas correntes a fim de
que pudesse melhor defender sua causa. Mos ao ver-se livre, deitou-se a
correr e jogou-se ao mar, afogando-se." Ao mesmo tempo, a audiência
vê no tela o prisioneiro ainda acorrentado jogado ao mar pelos soldados
depois de um rápido sinal-da-cruz feito pelo padre.
Ao longo do filme, Pereira dos Santos provoca a audiência com
um choque de normas culturais. Depois da primeira cena, quase todo o
filme é na língua tupi, com legendas em português para a audiência
brasileira.
Dado que a grande maioria do cinema visto no Brasil tem
con el momento en que el país intenta descolonizarse, tras una colonlzación
permanente. de lo cual no consigue salir" (421 ).
180
LETRAS Revista da Curso de Mestrado om Letras da UFSM (RS).
origem ou nos Estados Unidos ou na Europa, a platéia brasileira estará
acostumada à leitura de legendas.
Não obstante, em Como era
gostoso meu francês o cineasta polemiza o distancionamento inerente
no uso de legendas, texto escrito que forçosamente traduz só uma
fração do diálogo falado, criando uma distância entre o espectador e a
audibilidade da experiência cinematográfica.
Obviamente, as antigas
fitas sem som dependiam do texto escrito para transmitir algum diálogo,
mas o idioma fílmico era correspondentemente distinto: os diretores da
era dos "mudos" criaram filmes como imagens em movimento,
enquanto os cineastas das películas "faladas" desenvolveram seu
produto-arte com a experiência auditiva incluído no meio de for ma
orgânica.
Pereira dos Santos acentua a perda de informação constante
sofrida por audiências ''terceiro-mundistas" ao obrigar espectadores
brasileiros a assistirem um f;lme brasileiro sobre um povo indígena
brasileiro enfrentando o filtro das legendas. Em contraste, a maior parte
dos filmes situados num ambiente lingüístico distinto daquele da
audiência putativa apresentam o diálogo no língua local.
Quando
aparecem apenas umas poucas personagens estrangeiras como
minoria entre o elenco todo, podem fala r normalmente na língua da
audiência, com sotaque estrangeiro na língua da audiência, numa
língua
estrangeira
com
legendas,
ou
numa
língua
estrangeira
parcialmente legendada ou sem legenda alguma. Através destas
opções, o diretor fornece ao espectador mais ou menos informação,
enfatizando o papel da comunicação verbal.
Em Como era gostoso
meu francês, há apenas poucas falas em português, a grande maioria
dos diálogos sendo em tupi, com algumas falas em francês. Além de
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
181
evocar o abismo informativo entre o "Primeiro Mundo" e o "Terceiro
Mundo", Pereira dos Santos também reitera a problemática do "Velho
Mundo"contra o "Novo Mundo" manifesta pela imposição das línguas
européias na paisagem cultural das Américas. Ao fazer com que o tupi
seja a língua dominante no filme, o diretor destaca a questão da língua
portuguesa, e não a tupi, ser a língua dominante no Brasil atual.
Pereira dos Santos também apresenta o choque de culturas em
termos do uso de roupa, do tratamento de cativos, do sexo, e
evidentemente da antropofagia.
Tanto o francês titular do enredo,
quanto a audiência euro-americana, encontram dificuldades em
entender o comportamento dos tupinambás do filme.
Uma das
primeiras diferenças culturais mais óbvias é a nudez das personagens
indígenas, e posteriormente do francês. 11
De fato, ao longo do filme
somente uns poucos europeus aparecem vestidos. O diretor imediata e
constantemente confronta a platéia com um elenco completamente nu,
chamando atenção às normas sociais do vestuário, sobretudo em climas
tropicais.
Mais perturbador ainda para a mentalidade euro -americana é o
tratamento dos tupinambás para com seu cativo. Os captores dão ao
prisioneiro uma esposa, a jovem viúva de um guerreiro morto pelos
portugueses, e o permitem andar solto não somente pela taba, mas
também pelas terras adjacentes.
Na medida em que o francês
transforma suas próprias aparências conforme o estilo tupi, ele também
vira parceiro de caça do cacique, até na matança de dois portugueses.
11
James lto-Adler, um antropólogo que participou como figurante no papel de um dos
soldados franceses na primeira cena do filme. indicou a dificuldade do cineasta em
recrutar atrizes em Parati para fazer os papéis das indígenas nuas.
182
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
Apesar de nunca deixar de esperar uma volta a território francês, o cativo
começa a considerar-se como integrado na sociedade tupinambá. Ele
chega a insistir em que a esposa indígena refira -se a ele como marido.
Sutilmente,
Pereira
dos
Santos
demonstra
a
diferença
entre as
percepções das duas personagens quando a mulher tupinambá chama
seu falecido marido pela palavra indígena para esposo enquanto adota
a palavra francesa marí para seu parceiro europeu. Quando surge uma
oportunidade para ele escapar, o francês perde a chance de conseguir
a liberdade: o navio embarca enquanto ele tenta convencer a esposa
indígena a acompanhá-lo.
Pouco depois o cacique anuncia que o
francês será devorado logo e que a mulher comerá o pescoço. Quando
ela ensina-lhe o ritual de morte, o francês obviamente não acredita
fundo na realidade da situação, escolhendo ter relações sexuais mais
uma vez a fugir. O diretor erotisa esta cena, numa fusão do ato sexual e
o ato de comer.' 2 O próprio título do filme, .Como era gostoso meu
francês, manifesta um sentido duplo: "gostoso" como "saboroso" mas
também no sentido popular de sexualmente atraente.
A ironia final é
que enquanto no uso vulgar o homem "come" a mulher quando a
penetra, no filme é a mulher quem literalmente come o homem.
Ao contrário da experiência de Staden, na conclusão de Como
era gostoso meu francês os tupinambás de fato matam o cativo, e
comem-no.
Desta
maneira,
Pereira
dos
Santos
mostra
o
desentendimento cultural: o francês entendia sua interação com o
cacique e especialmente com a esposa indígena como re loções
12
Como indica Pat Shipman, "Sex and eating are. of course. closely associated in many
societies. including our own [American]" [71 ). A importância sócio-lingüística do uso de
"come(' na língua portuguesa para a penetração sexual é largamente documentada.
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
183
interpessoais, um vínculo emocional, enquanto aos olhos dos seus
captores em nenhum momento ele passava de algo a comer. Tanto
que o apelido que a esposa lhe dera era "meu pescoço": ele era um
substituto do marido morto enquanto aguardava a morte.
O assassinato e devoração do francês perturba audiências euroamericanas. É bárbaro por definição, segundo os critérios de Shipman,
Leach e outros. Mas Pereira dos Santos procura algo além de um retrato
dos costumes históricos: ele demonstra o fundo antropófago indígena da
cultura brasileira, enquanto simultaneamente subverte a suposta nobreza
da sociedade européia nas Américas.
Parecido com a mixagem de
elementos contrastantes - às vezes dissonantes - da música tropicalista
de Caetano Veloso, Como era gostoso meu francês apresenta à
audiência uma série de oposições internas: a voz narrativa e as imagens
visuais; a resolução esperada baseada na intimidade do protagonista
com seus captores, e a violência da verdadeira conclusão: e o
comportamento incoerente dos europeus. Numa cena estratégica, um
comerciante francês vem negociar com seus aliados tupinambás.
O
francês cativo implora ao outro para identificá -lo como compatriota e
portanto não sujeitável ao exocanibalismo, já que foi confundido com
um português quando foi preso. O comerciante, no entanto, perpetua o
engano de identificação propositadamente, dizendo: "Ele é português.
Podem comê-lo." O motivo da decepção é para que o comerciante
possa explorar um trabalhador de confiança dentro do conjunto
indígena. Ele calcula poder lucrar muito mais desta maneira.
A
audiência tem que decidir qual é mais bárbaro: uma sociedade que
adere a um sistema totémico antropófago correntemente aceito por
todos os elementos envolvidos, amigos e inimigos: ou um indivíd uo que
184
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
conscientemente infringe o ético de suo propno sociedade e no
processo sacrifico um inocente o uma provável morte bárbaro pelo
possibilidade de algum lucro material.
Pereira dos Santos enfatizo a
barbárie dos europeus supostamente civilizados quando numa outra
cena o protagonista mato o comerciante com uma pá à cabeça não
numa disputa sobre sua traição senão sobre um ouro e umas jóias
encontrados pelo cativo.
Ainda mais, o francês cativo descobre o
tesouro ao assaltar a tumba do falecido marido do suo otual "esposa"
indígena. O comportamento imoral (pelos critérios dos próprios europeus)
dos dois franceses, movido à ganância, subverte ainda mais a versão
oficial e européia da luta entre "civilização" e "barbárie."
Nélson Pereira dos Santos fez Como era gostoso meu francês
numa época de extremo controle governamental sobre a iconografia
estatal e sobre os meios de comunicação.
Ao contrastar culturas
indígenas e européias, o cineasta pôde questionar a orientação
tradicional e "primeiro-mundista" das imagens da sociedade brasileira, ao
mesmo tempo em que driblava a censura. Ele conseguiu fazê -lo do um
modo que seguiu o estilo composicional do movimento tropicalista.
Como indica Charles Perrone: "Tais composições justapõem o antigo
(primitivo, nativo, selvagem, subdesenvolvido) e o novo (moderno,
industrializado, desenvolvido) para ridicularizarem valores sociais e para
criticarem o estatuto dos assuntos brasileiros" (Perrone 72). Em Como era
gostoso meu francês, Nélson Pereira dos Santos canibaliza esta estética
tropicalista, digerindo-a para produzir uma nova expressão fílmica dos
seus ataques, sérios e satíricos, à opressão e ao
status quo.
LETRAS · Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
Works Cited
Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias:
Andrade, Oswald de.
Manifestos, teses de concursos e ensaios. Obras Completas. Vol. VI.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970-.
Arens, William. The Man-Eating Myth: Anthropology and Anthropophagy.
Oxford: Oxford University Press, 1979.
Boucher, Philip P.
1492-1763.
Cannibal Encounters: Europeans and lsland Caribs,
Baltimore and London: Johns Hopkins University Press,
1992.
Brito, Antônio Carlos de. "Tropicalismo: sua estética, sua história."
Vozes
66.9 (1972): 693-702.
Campos, Haroldo. Prefácio. Trechos Escolhidos. De Oswald de Andrade.
2a ed. Rio de Janeiro: Agir, 197 7.
Dunn, Christopher.
"lt's Forbidden to Forbid."
Americas 45.5 (Sept.-Oct.
1993): 14-21'
Franchetti, Paulo e Alcyr Pécora.
Caetano Veloso.
2a ed.
São Paulo:
Nova Cultural, 1988.
Greenblatt, Stephen.
Marvelous Possessions: The Wonder of the New
Vv'oríd. Chicago: ünfverstty oí Cf-llcago Press, 1991 .
Leach, E[dmund] R. Rethinking Anthropology. 1961. London: The Athlone
Press, University of London, 1971.
Social Anthropology.
New York and Oxford: Oxford University Press,
1982.
Lévi-Strauss, Claude. The Elementary Structures of Kinship. 1949. Boston:
Beacon Press, 1969.
186
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
Tristes Tropiques.
1955. Trans. John and Doreen Weightman. New
York: Penguin Books, 1992.
Mahieu, José Agustín.
Cuadernos
"Nelson Pereira dos Santos."
Hispanoamericanos 395 (Mayo 1998): 414-425.
Ortiz, Renato. A Moderna Tradição Brasileira. Cultura Brasileira e Indústria
Cultural. São Paulo: Brasiliense, 1988.
Pearce, Roy Harvey. Savagism and Civilization: A Study of the lndian and
the American Mind. Rev. ed. of: The Savages of America.
1953.
Berkeley: U of Califonia P, 1988.
Pereira dos Santos, Nelson, dir.
Como era gostoso meu francês. [How
Tasty was my Little Frenchman]. Condor Films, 1971.
Perrone. Charles A
Letras e Letras da Música Popular Brasileira. Trad.
José Luiz Paulo Machado. Rio de Janeiro: Elo Editora, 1988.
Santiago,
Silviano.
"Permanência
do
discurso
da
tradição
modernismo." Cultura Brasileira: Tradição/Contradição.
no
eds. Gerd
Bornheim et ai. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/Funarte, 1987.
Shipman, Pat.
"The Myths and Perturbing Realities of Cannibalism."
Discover8.3 (March 1987): 70-76.
Staden, Hans.
Viagem ao Brasil.
Theodoro Sampaio.
Trad. Alberto Lbfgren.
Rev. e notas
Rio de Janeiro: Officina Industria! G raphico.
1930.
Schwarz, Roberto.
"Cultura e política, 1964 -1969." O Pai de Família e
Outros Estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
Veloso, Caetano and Gilberto Gil. Tropicália ou Panis et Circensis. Rio de
Janeiro, CBD Phonogram, 1968.
Yúdice, George.
"Postmodernity and Transnational Capitalism in Latin
America." On the Edge: The Crisis of Contemporary Latin American
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
187
Culture.
eds.
George
Yúdice,
Juan
Flores,
Jean
Minneapolis: U of Minnesota P, 1992.
188
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
Franco.
TRES VISIONES DE AMÉRICA
Eduardo SUBIRATS
Princeton Universi1y
-1Quiero describir en breves trazos tres concepciones dei mundo que
han definido de manera elemento! otras tantas miradas modernas sobre
y de América, desde el siglo XVI hasta el día de hoy. Tres cosmovisiones
que atraviesan de una manera desigual la historia de la conciencia
esponola y de su identidad nacional. Y tres filosofias que siguen
manteniendo inquebrantoblemente su vigencio tombién en el mundo
contemporâneo.
La primero de ellas está ligado de uno manero muy profunda o lo
Espano imperial y cristiana. Alentó los valores éticos formados a lo largo
de la cruzada hispânica contra el lslam, atravesó agriamente el acoso y
expulsión de las comunidades judías de la península ibérica, e instaurá el
Estado nacional católico espano!. Es el ideario de la conquista, tal como
lo formularon los primeros cronistas de América, pero sobre todo, como lo
expresó la lglesia romana através de sus bulas y sus estrategias de
propaganda de la fe.
El centro de esta comprensión de la realidad americana lo
constituye la idea de un plan providencial de la historia, en cuyo centro
se · hallaba precisamente la corona espanola. EI Estado católico
desempenaba el papel de pueblo elegido de la Cristiandad para
LETRAS - Revisto do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
imponer por lo fuerzo su sistema de valores sobre el orbe entero. Yo en lo
bulo de Alejondro VI, lntercoetero, de 1493, se aludia o esta dimensión
históricoteológico que los Reyes Católicos hobíon hecho suyo. Su sentido
último era lo posesión territorial dei Nuevo Mundo y lo explotoción de sus
inmensas riquezas, pero sólo como instrumento de lo conversión forzodo
de la pobloción americano, y lo construcción político dei orbe cristiono,
lo primera utopía moderna de un orden internacional y global.
Este vínculo providencial de Espana con Américo cristalizó como
sistema de domínio colonial, en lo político, y como lazo de subordinoción
teologicolingüística en lo espiritual. América se defínía, de acuerdo con
este principio, como vasalla. El verbo que la bula de Alejandro VI
empleaba para esclarecer este nexo era, precisamente, "deprimire", es
decir: rebajar, reprimir o suprimir, o las tres cosas ai mismo tiempo. Por lo
demás, esta sujecíón dei americano o la corona espanola, ai princípio
cristiano de vasollaje y a la racionalidad occidental fue elevada a
principio de salvación.
Ginés de Sepúlveda formuló esta redención cristiana dei índio
através de su esclovízocíón como líberacíón de los potencias ínfernales
que lo dominaban, esto es, la destrucción de su memoria y su civilización
material. Este era tombién uno de los motivos que esgrimía la letra de los
requerimientos que la soldadesca espanola leío rutinariomente a los
pueblos americanos ínmedíatomente antes de su soqueo, extermínio o
sujeción.
Bojo
estos
términos
precisamente
se
legitimaba
eclesiásticamente la colonización americana como Guerra Justa contra
lndios.
El significado espiritual de esta dependencio colonial se expresaba
en el predomínio lingüístico dei costellano sobre las lenguas históricos de
190
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS].
América. Semejante predomínio, que Nebrija formulá funcional o
gramaticalmente, no se fundaba solamente en una relación táctica de
dominación, ni como el resultado simple de la prohibición y destrucción
de las lenguas originarias dei continente ai dío siguiente de la conquista.
Más bien se fundá o pretendió fundarse en un axioma metafísico. Joseph
de Acosto lo formulaba drásticamente en su tratado de propaganda De
Procurando lndorum Solute: los lenguas americanas, en tonto que
lenguas gentiles, no eran capaces por si mismas de expresar los
categorias metafísicas de los dogmas fundamentales de la teologia
cristiana. Solamente la lenguo de Castilla era capaz de expresor el
concepto de un Dios único y trino, creador, causo de sí mismo y ser
absoluto ...
Este vínculo unidireccional entre el amo cristiana, virtuoso y heroico,
y, ai otro lado, el índio como estado de naturaleza y pecado, y por
consiguiente,
pasible
de
esclovización
como
única
vía
de
emancipación, se rompe, en determinado momento histórico de la
conquista, como reacción y como reformismo provocado por sus propia
brutolidad genocida. O en otras palabras: ante el absurdo teológico de
definir lo emancipación de los índios como un proceso de destrucción
de sus lenguas y memorias, y de una racionalización militar de la
producción esclava que ai mismo tiempo suponía su extermínio étnico,
lo teologia cristiana de lo colonización se convirtió en teologia de la
liberación. El artífice politicoteológico de esta conversión dialéctica de la
conquista fue Los Casas.
De acuerdo con su revisión de la conquista, el vasa Ilo americano
no solamente se sometía ai cristiana espano!, y lo reconocía como su
expresión universal o como su verdad absoluta, en un sentido teológico y
LETRAS Revista do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (RS).
político. Además, lo deseaba, aspiraba a ser y sentirse como su senor. El
indio queria ser cristiana y espano!, porque, aun sin saberlo, lo había sido
siempre, según su concepto. Tal fue la posición teológica y política de
Las Casas. Era un punto de vista anticipado a su tiempo, y sin duda
alguna revolucionaria; un principio estrictamente moderno porque
suponía una estrategia de seducción propagandística en el lugar de la
guerra santa de extermínio y las prácticas de conversión compulsiva
ligadas a ella. La revisión dialéctica de la servidumbre americana por Las
Casas era moderna porque llevaba implícito el ideal de una subjetividad
abstracta, vacía e infinita.
La relación de Espana con las Américas ha estado senalada
predominantemente por este principio teologicopolítico de hegemonia
espiritual. Quiero subrayar asimismo que semejante principio teológico no
ha sufrido sustanciales modificaciones a lo largo de la historia moderna.
En particular me parece importante senalar que el derrumbe final dei
imperio colonial espano!, en 1898, supuso la conciencia de un desastre a
la vez político y moral, y toda una crisis y hasta un trauma de la identidad
imperial espanola, pero de ningún modo la revisión de aquellas
categorias metafísicas, heroicas y trascendentes bojo las que se había
comprendido la realidad americana. En el contexto poscolonial, aquel
principio de hegemonia teologicopolítica tan sólo abandoná sus
significados administrativos, para conservar el sentido de una hegemonia
puramente espiritual.
"Si no hemos sabido decir "sí" a la vida, sepamos decírselo a la
muerte, haciéndola gloriosa, digna de Espana" - había escrito Maeztu la
manana siguiente de la destrucción de la flota espanola frente a
Santiago de Cuba. Esta reivindicación de la muerte, profundamente
192
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
arraigada en el concepto cristiana de heroísmo, ponía de manifiesto lo
que estaba llamado a convertirse en el punto de partida de todo uno
filosofia y uno literatura de lo identidad esponola. Bojo los condiciones de
la bancarrota política y militar de 1898, y de lo crisis de los valores
históricos que habían definido la mítica grandeza de la Espana cristiana,
intelectuales como Ganivet, Unamuno, Azorín y Maeztu elevaron uno
identidad nacional capaz de superar el conflicto con las excolonias en
nombre de uno espiritualidad trascendente, de un nihilismo heroico, dei
mito quijotista. Bojo su postulado, la perdida grandeza colonial espanola
se reformulaba en términos trógicoexistencialistas.
El novelista Valera, embajador de Espana en Washington en el
período final de las guerras de Cuba, horto significativamente, se
consolaba dei desastre con el siguiente espíritu: se ha perdido el poderio
imperial, pero la raza espanola es la más numerosa dei siglo. Menéndez
Pelayo estilizaba los valores mós o menos quiméricos de lo lenguo
espanola como principio de cohesión político dei vasto territorio
excoloniol. ni más ni menos que en los planes un día dirigidos a Isabel la
Católica. Su autoridod, otrora confundida con el poder providencial dei
lmperio, se sublimaba ahora en algo mós discretos "princípios dei buen
gusto", en cuyo nombre, sin embargo, el erudito espano! pretendia nada
menos que asentar los jerarquias estéticos dei mundo americano.
Un coso si no importante, ai menos sintomático y curioso de esta
redefinición espiritual de la hegemonia imperial espanola lo debemos a
lo novela de Angel Ganivet, La conquista de/ reino de maya. En esta
novela el fracasado imperialismo espano! se proyectabo épicamente en
los cielos de delirantes conquistas en ignotos territorios africanos por mor
de lo gloria y lo virtud, que despreciabon heroicamente cuolquier
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
objetivo pragmático o productivo dei colonialismo inglês y francês dei
siglo XIX. El nuevo sentido de un imperio espano! se elevaba éticamente
através de sacrifícios virtuosos en aras a la fidelidad conyugal, o bien, se
celebraba estéticamente bojo la pura belleza de las gestas sublimes, el
espíritu de conquista como guerra y destrucción regeneradoras, y un
tedioso etcétera.
El héroe, la horda y la destrucción, el sacrifício, la muerte y la
gloria, estas mitos exaltados por Ganivet no hacían más que antici par
literariamente
la
utopía
nacionalcatólica
espanola
de
1936.
Su
descripción se cerraba, en la mencionada novela, precisamente con el
programa de "otra civilización más perfecta", basada en la "superioridad
de la sangre" y el "mejoramiento de la raza por el sistema más
recomendado de los antropólogos", según sus propias palabras.
La glorificación nacional católica de un heroico posado espiritual,
ai mismo tiempo universalista y nacionalista, coronaba, unas décadas
más tarde, este renacimiento dei pensam iento espano! en el extenso
ensayo Defensa de la Hispanidad, de Ramiro de Maeztu. Allí se trazaba
con mano segura la solución: restaurar los valores dei universalismo
cristiano de la Contra-reforma como punto de partida de la redefinición
espiritual de ia patrio reger1erodo, o seo, ei ideorio de ia Hisponidad.
-2-
La segunda visión colonial y poscolonial sobre América no es
teológica, ni metafísica, sino antiescolástica, empiricista, racionalista y
tecnocientífica. Una representación de esta nueva concep ción la
194
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
ilustraba el pintor flamenco Jan van der Straet que, en 1576, publicó una
serie de grabados en torno ai descubrimiento de América bojo el
elocuente título de Nova Reperta. Uno de estos grabados muestra
didácticamente una interesante colección de ob jetos diversos: la
imprenta, una brújula, medicinas, el canón ... y, en el centro, rodeado de
tan preciosas "invenciones", el Continente americano.
La nueva representación de América ya no era heroica, ni
apelaba a un
principio teológico o
metafísico:
era
empírica y
democrática, equiparaba el continente a cualquier otra invención de las
ciencias pragmáticas, y se basaba en un concepto productivo dei
conocimiento y el poder. La construcción conceptual moderna de este
nuevo discurso tecnológico y económico de la colonización americana
fue formulada por el filósofo Francis Bacon, en su tratado Novum
Organum de 1620.
El frontispicio de esta obra muestra, en un primer plano, las
Columnas de Hércules. Es el símbolo de un ultrapasado límite mitológico,
y, con éL de un distanciamiento de la concepción clásica dei universo.
Pero también es el símbolo de virtudes y potencias heroicas, ligadas a los
antiguos "trabajos" fundacionales de la civilización clásica. Tras aquellos
límites míticos dos carabelas navegan a mar abierta con sus velámenes
henchidos. Es una escena odiseica que rememora la voluptuosidad de la
aventura, y el afán de nuevas experiencias y riquezas. Una de las naves
ya rompe con su proa las aguas que separan el límite simbólico entre el
Viejo Mundo y el océano infinito. AI pie dei grabado una leyenda reza:
"Multi pertransibunt & augebitur scientia". Es una cita dellibro de Daniel en
el Antiguo Testamento. "Muchos pasarán, y la ciencia avanzará ... " La
sabiduría o la ciencia dei Libro, a la que aludía la profecía de Daniel, es
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS].
195
sustituida ahora, sin embargo, por la empresa colonizadora de los
descubrimientos.
De acuerdo con Francis Bacon existia un vínculo interior v una
solución de continuidad entre la exploración intercontinental v la "luz" dei
conocimiento inductivo como principio de dominación v producción
globales. En la Antigüedad - escribía el filósofo-, cuando la filosofia
solamente era capaz de acceder a un conocimiento deductivo, se
conocía muv poco dei globo terráqueo. Las navegaciones apenas
alcanzoban los limites de un mundo doméstico v cotidiano. No había,
por consiguiente, la posibilidad real de un conocimiento basado en la
experiencia, es decir, en la confrontación con lo nuevo v desconocido.
La moderna inducción tiene, en cambio, según las palabras de la
citada obra, "un alcance universal". Su "método de interpretación ... dirige
ai espíritu de tal manera que por doquier pueda penetrar la esencia de
las cosas". El método científico se convierte en el principio de la nueva
universalidad de las empresas de conquista tecnocientífica. Una
universalidad que, a su vez, reformulaba, en sus categorias de progreso
de la dominación humana, aquel mismo principio salvacionista que
habia distinguido el ideal Cristiano de un universo integralmente
convertido.
Todo ello se coronobo, en el Novum Organum, con un significativo
comenta rio sobre los indios de Américo. Su naturaleza, una vez más, era
definida negativamente. Pero la inferioridad dei sujeto colonizado no se
desprendia va de sus pecados nefandos, ni de su gentilidad, a diferencia
de lo teologia de Sepúlveda v de Acosta. Lo que los condenaba a lo
seNidumbre era la imperfección de su conocimiento ligado a los "ídolos".
Y era,
asimismo,
el
resultado
dei
carácter
subsecuentemente
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
"suburbanas" o locales de sus formas de conocimiento, o sea, su
carácter no críticoempiricista.
Ciertamente no ha sido este paradigma científico e ilustrado el
que la Espana moderna de los Habsburgo, ni de los Borbones esgrimió
para hacer prevalecer sus intereses hegemónicos sobre América. Incluso
escritores que en la cultura espanola han merecido el nombre de
ilustrados, como el padre Feijoa, mantuvieron una rigurosa restricción dei
escepticismo gnoseológico v el empirismo de la filosofía científica
moderna sobre las últimas verdades reseiVadas a la jurisdicción política
de la lnquisición o la jurisdicción metafísica de la escolástica. El momento
antimetafísico de la epistemologia científica moderna ha sido sentido por
la conciencia espanola más bien como una amenaza a su principio
espiritual
de dominación
por lo
menos
hasta
Unamuno v el
nacionalcatolicismo.
Por otra parte, la persistencia dei tradicionalismo espano!, desde
Ginés de Sepúlveda hasta Maeztu, en aquella visión metafísica v ética
dei mundo, contra la moderna concepción empíricoracionalista ha
distinguido históricamente el atraso espano! en un sentido tanto
tecnoeconómico
como
filosófico
v
social.
Y lo
ha
distinguido
precisamente como una categoría que comprende primero la llamada
"levenda negra", es decir, el relato
protestante y liberal sobre el
despotismo y la crueldad de la monarquia católica espanola, y, más
tarde, el discurso de la civilización industrial y moderna sobre el
subdesarrollo de las culturas hispânicas en general.
Tan sólo en el contexto de los eventos mediáticos agrupados en
torno ai Quinto Centenario de 1992, el progresismo espano! llegó a
romper la continuidad histórica dei tradicionalismo nacionalcatólico a
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
197
este respecto. Sólo en este contexto se llevó o cabo lo sustitución de los
categoríos heroicas y teológicas de la conquista y la colonización
cristianas de América por lo representoción _posmoderna de una
modernidad tecnocientífica y espectacular. Y sólo en este contexto lo
ejemploridod y el predominio espanoles con relacion a América suplantá
sus anacrónicos emblemas castizos por los modernos signos de . un
indefinido
descubrimiento,
homologable
y homologado
con
los
descubrimientos tecnocientíficos de la era de los descubrimientos.
-3-
Existe una tercera mirada: mirada de América. Mirada de la
América histórica. Elia es reflexiva. Se basa en una restauración
hermeneútica de las lenguas y culturas históricas, destruidos en nombre
dei universalismo moderno. Mirada singular, sin dudo. Y visión marginal
también. Es la perspectiva intelectual de un filósofo, descendiente de la
aristocracia Inca, que conoció tempranamente la obra filosófica de un
tratadista hispanojudío, expulsado a ltalia, y a través de ello, lo tradición
dei humanismo latino. Es la obro que traza, a partir de esta tradición
crítica dei humanismo europeo y de la antigua espiritualidad inca, una
compleja utopía centrada en el diálogo entre culturas y religiones
plurales, bojo el principio panteísta de lo unidad dei "mundo todo y uno".
Me refiero ai Inca Garcilaso.
En su crónica, los Comentarias rea/es, Garcilaso comenta una
curioso situoción dialógica y lingüística. El asunto en cuestión luce un título
pomposamente filosófico: "Deducción dei nombre de Perú''. El cronista
198
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS].
cuenta cómo llegaron por vez primera los barbudos a las costas dei
antiguo reino de Tawantinsuyo, "Las cuatro partes dei universo" de
acuerdo con el significado etimológico de esta palabra. Los aventureros,
según narra el Inca, encontraron a un humilde pescador junto a la orilla
de un río. Le dieron voces. El pescador, temeroso, pronunciá primero su
nombre propio: Berú. Los espanoles volvieron a inquirir. El pescador profirió
entonces el nombre dei río en el que estaba pescando: Pelú. Los
descubridores hicieron el resto. Sumando Berú a Pelú, dedujeron que Perú
era el nombre verdadero de aquella inmensa extensión cuya población,
lengua, historia y civilización ignoraban. Como dice Garcilaso a renglón
seguido de su "Deducción": "Los cristianos entendieron conforme a su
deseo".
La violencia y la arbitrariedad de este nombre c ompulsorio, que no
es más que la metáfora dei nombre impuesto por el bautismo a quienes
sólo elípticamente reconocemos bojo el nombre de "indios", inaugura
precisamente el falso dilema de la identidad americana. Frente a la
irrealidad de esta "deducción" a rbitroria dei nombre, y de esta identidad
violentamente impuesta, Garcilaso propone la restauración hermeneútica
de la comunidad destruido a través de la recuperación de los nombres
propios y de ios norTrbres de ios dioses, y con eiios ia reconstrucción de i o
memoria.
La narración garcilasiana cumple esta exigencia a través de una
articulación original de lo épico, lo mítico, la crónica y la poesía en sus
Comentarias rea/es. Es esta obra, según sus propias palabras, "noticia" y
"fábula", y relato de las "historias" de la civilización inca. Su narradores por
ello, ai mismo tiempo, un Yo intelectual y la voz colectiva que se
configura como memoria histórica a lo largo de la crónica narrativa.
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
199
Es esta, a su vez, una memoria dei "corazón" y una memoria dei
"parentesco", según las propias palabras de Garcilaso. Es la recuperación
de una voz remota y profunda. Su significado escapa a la lógica de la
dominación formulada bojo el principio teológico de la conversión
universaL o bojo el principio empíricoinductivo de las ciencias productivas
que históricamente le sucedió. Fue y es una voz poética. Tiene que ver
con el valor evocativo de esta palabra y su relación secreta con una
experiencia ai mismo tiempo íntima y comunitaria. Como dice Garcilaso,
una voz "oída y guardada en el corazón" (1: 47).
Obras Citadas
Acosta, José de.
1984-87.
De Procurando lndorum Salute.
Madrid:
Consejo Superior de lnvestigaciones Científicas.
Bacon, Francis. 1980. Novum Organum. lndianapolis: The Bobbs Merrill
Co.
Gavinet, Angel. 1988. La conquista dei reino de Maya. Los trabajos dei
infatigable creador Pio Cid. Barcelona: Editorial Planeta.
Maeztu, Ramiro de. 1998. Defensa de la Hispanidad. Madrid: Rialp.
Vega, Garcilaso de la (the Inca).
1976.
Comentarias reates. 2 vols.
Caracas: Ayacucho, 197 6.
200
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
LOS MITOS CULTURALES DE LA OTREDAD:
REVISIONES CONTEMPORÂNEAS DE LOS NAUFRAGIOS DE CABEZA DE VACA
Santiago JUAN-NAVARRO
Florida lnternational Universlty
Desde la publicación de sus dos primeras ediciones en 1542 y
1555, los Naufraglos de Cabeza de Vaca no han cesado de suscitar el
interés de lectores y críticos por muy diversos motivos. La concesión que
Carlos V hizo a su autor de la gobernación dei Río de la Plata sería una
primera muestra de las visiones que Cabeza de Vaca supo conjurar en la
imaginación dei emperador. El proceso de magnificación que pronto se
desplegó en torno a las supuestas curaciones milagrosas sería asimismo
prueba de otro tipo de interés, asociado en este caso a una visión
providencialista de la conquista y evangelización dei Nuevo Mundo.
Algunos historiadores escrupulosos dei siglo XVI como Las Casas vieron en
los Naufragios un doble valor: científico, por cuanto otrecía una
inestimable información acerca de los grupos indígenas que vivían en las
costas dei Mar dei Norte, y moraL por su propuesta de posibles
evangelizaciones pacíficas en el Nuevo Mundo. A partir dei siglo XIX, tras
la anexión de todo el territorio de México r:! norte dei Río Bravo. el público
norteamericano empezó a interesarse en la obra y su autor ai
considerarias como claves de la historia y lo cultura de los estados
meridionales.
Este mismo carácter fundacional de Naufraglos se ha
extendido osimismo ai ámbito de lo literatura y cultura chiconas, hasta el
punto de que críticos como Juan Bruce-Novoo hon querido ver en lo
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS].
relación de Cabeza de Vaca un precedente de la literatura chicana
contemporánea. Más recientemente, los Noufrogios han acaparado por
igual la atención de directores de cine y dramaturgos, quienes se han
valido de la obra de Álvar Núnez para legitimar sus proyectos 」オャエイセ・ウ@
políticos.
El
presente
ensayo
explora
algunas
y
reinvenciones
contemporáneas de esta figura mítica en la crítica !iteraria, el cine y el
teatro hispánicos.
I. Cabeza de Vaca en la crítica !iteraria cantemporánea
Desde un punto de vista formal, el rasgo más discutido de la
relación de Cabeza de Vaca es, sin duda, la hibridez que caracteriza ai
texto. Tal hibridez tiene varias manifestaciones. Bruce-Novoa habla, por
ejemplo, de un amalgamamiento de sistemas semióticos, géneros y
códigos semánticos (14). Pero el aspecto más destacado por la crítica en
conexión con la naturaleza híbrida dei texto es la interacción entre los
discursos de la ficción y de la historia. 1 Un ensayo pionero en este sentido
es el de David Lagmanovich (1978), quien centra su análisis en la
"calidad narrativa" dei texto. 2
Para Lagmanovich los Noufragios se
organizan en torno a una red de "conflictos y tensiones" que se
1
Algunos de los ensavos que tratan con mavor detenimiento la relación entre discurso
histórico v fictivo dentro de los Naufragios son: Lagmanovich (1978), Merrim (1981 ), Lewis
(1982). Pastor (1983). Carreno (1987), Moura (1987) v Pupo-Walker (1982, 1987, 1989,
1990)
2
Como reconoce el propio Lagmanovich (27), su lectura tiene, sin embargo, algunos
precedentes. Entre ellos destaca el de Angel Rosenblat, quien una década antes había
utilizado una aproximación !iteraria similar en su obra acerca dei Inca Garcilaso.
202
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS),
manifestaria a distintos niveles. Por lo que se refiere ai modo discursivo ai
que se adscribe, el texto de Cabeza de Vaca, según Lagmanovich,
proyecta
una tensión
evidente entre el elemento histórico y el
propiamente literario. A nivel estructural, el conflicto se produce entre una
linealidad cronológica y una subjetividad que adopta formas episódicas
(35). Ambos elementos estarían estrechamente イ・ャ。」セッョ、ウ@
con la
tradición !iteraria. La ilarración lie1eal, se acómoda ai modelo literario de
las narrativas de viajes, y se articula en torno a los recursos igualmente
literarios dei presagio y el reconocimiento (30). El aspecto episódico se
revela en la forma de cuentos ·Interpolados en los que coexisten lo real
maravilloso, lo extrano, lo fantástico y lo testimonial, enmarcados todos
ellos por un episodio final que contiene y rige a todos los demás: la
profecia de la mora de Hornachos (35).
Por su anticipación de rasgos y técnicas característicos de formas
novelescas posteriores, Lagmanovich termina confiriendo un carácter
inaugural a Naufragios. AI modelo de la crónica o relación (Lagmanovich
no establece una distinción entre ambos), Naufragios superpone rasgos
propios de un "realismo moderno" precursor de la picaresca, un discurso
moral sobre el indio que anticipa las ideas lascasianas y una presencia
de lo maravilloso que anuncia la narrativa latinoamericana dei siglo XX
(36).
El valor principal dei trabajo de Lagmanovich consiste en llenar un
vacío en los estudios sobre Cabeza de Vaca: el análisis dei aspecto
fictivo de los Naufragios y el uso de determinadas técnicas consideradas
como características de la prosa de ficción.
Su ensayo, sin embargo,
presenta ai menos tres insuficiencias. En primer lugar, la tajante división
que establece entre discurso histórico y construcción narrativa es una
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
203
idea que ha sido desmantelada por la historiografia moderna. Como ha
demostrado la filosofia de la historia contemporánea, todo discurso
histórico se organiza sobre una base narrativa que comparte muchos de
los elementos retóricos de la llamada "literatura de creación". 3 Desde este
punto de vista, cualquier obra histórica podría someterse a un aná/isis de
perspectiva /iteraria, sin que por e/lo debamos /legar a la conclusión de
que se trata una obra novelesca y no histórica. Por otra parte, la decisión
de tratar los Naufragíos desde el punto de vista literario se toma sobre la
base de que su valor historiográfico ya ha sido abundante y
convenientemente elucidado por numerosos ensayos, entre los cua/es
Lagmanovich cita los libros de Hal/enbeck y Covey (36). De nuevo,
tenemos aquí una confusión evidente en re/ación con el concepto de
obra "histórica". Lagmanovich parece referirse a aquellos trabajos que
discuten el itinerario de Cabeza de Vaca desde la península de la Florida
hasta la Nueva Galicia. Ahora bien, la mayor parte de estas obras dejan
de lado e/ aspecto formal de la historiografía dei siglo XVI, es decir, l.en
qué sentido e/ texto de Cabeza de Vaca es o no es lo que pretende ser:
una relación de seNicios que sigue los dictados dei discurso histórico de
la época?. Incluso los detal/es relativos ai itinerario son muy controvertidos
y nunca podemos !legar a concluir, ta! y como sugiere Lagmanovich,
que la materia ha sido agotada.
Un poso adelante en e/ análisis de la dicotomia historia vs. ficción
lo ofrecen los ensayos de Robert E. Lewis (1982), Antonio Carreno (1987) y
Enrique Pupo-Walker (1982, 1987, 1989, 1990a, 1990b).
3
Todos e/los
La obra reciente de Havden White, Dominick LaCapra, Paul Vevne, Michel de Certeau v
Louis O. Mink, entre otros, explora la relación entre discurso histórico v literorio,
subravando el aspecto narrativo de ambos v volviendo problemáticas las nociones
heredadas de la historiografia tradicional.
204
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
enriquecen el estudio de esta aparente oposición a la luz de la
multiplicidad de modelos y propósitos que enfrenta el estudio de la obra
de Cabeza de Vaca.
Lewis centra su análisis en el "prohemio" de los
Nautragios como metatexto historiográfico que nos informa dei origen y
propósito de la obra. En este segmento inicial se superponen tres
problemas intencionales que coexisten en tensión a lo largo de la obra:
la "narración personal autobiográfica", la "relación de servicios" y la
"noticia verdadera" (686}. El primero de estos aspectos se manifiesta,
según Lewis, en el problema de organizar de modo artísticamente
coherente los recuerdos caóticos acumulados durante diez anos de
experiencias en el Nuevo Mundo. El segundo de los problemas alude ai
intento de presentar una imagen dei autor que testimonie su servicio fiel a
la carona. La "noticia verdadera", por último, se refiere ai problema de
presentar como verosímiles acontecimientos que se situaban en las
fronteras de lo increíble. Según Lewis, el tratamiento apropiado de estos
tres
problemas
no
podía
circunscribirse
ai
ámbito
puramente
historiográfico, y habría obligado a Cabeza de Vaca a introducir dentro
de su discurso elementos propios de la tradición !iteraria. De entre estos
elementos, Lewis subraya la creación dei autor como protagonista de
talla heroica en el que se fusionan el explorador intrépido, el conquistador
humano, el personaje quijotesco o el santo milagrero (693}. La tesis
pragmáticas de Lewis apuntan hacia el uso de la retórica novelesca para
hacer más persuasivo el mensaje de su autor. 4 Desde este punto de vista,
el éxito final de Cabeza de Vaca vendría dado por el impacto que tuvo
en la audiencia. Su destinatario inmediato, Carlos V, concedió a su autor
4
Sobre el valor persuasivo de los Nautragios y su relación con la crónica periodística
moderna, véase también Soren Triff (1990).
LETRAS- Revista da Curso de Mestrado em Letras da UrSM (RS).
205
la gobernación de La Plata y sus lectores últimos a lo largo de los siglos
han aceptado como ciertos los hechos más inverosímiles, !legando a
magnificar la figura de Cabeza de Vaca hasta extremos inconcebibles.
AI igual que Lewis, Antonio Carreno busca una explicación a esta
tensión entre la retórica de la historia y la de la novela que caracteriza a
los Noufrogios.
Carreno ve en dicha tensión uno de los elementos
fundacionales dei género novelesco. Las vacilaciones entre "realidad
vivida" [historia) y "tabulada" (literatura) convertirían a las primeras crónicas
en un adelanto de la retórica propia dei género picaresco, en la cual, a
su vez, se encuentran las bases de la novela moderna (515). 5 AI igual
que la picaresca es una antinovela, por cuanto viola las normas épicas ai
uso. La transgresión de la épica de la conquista, que lleva a cabo
Cabeza de Vaca, convierte a los Noufrogios en una anticrónica [514). 6
Según Carreno, la inversión de los patrones establecidos por la crónica,
mediante el énfasis en la sumisión, hambre y cautiverio de Cabeza de
Vaca y sus companeros, convierte a éstos en antihéroes de las crónicas
(509). Tanto los Noufrogios como las novelas picarescas se presentan
como documento fidedigno por lo que ambos se oponen a los relatos
novelescos en su concepción renacentista (fábulas). La metáfora dei
viaje se corresponde asimismo a la desarrollada por la novela picaresca.
Como en este género, los Noufrogios presentan el relato de una
iniciación y conversión materializado a través de un proceso de
5
Esta conexión entre el lenguaje jurídico y burocrático de la relación y la retórica de la
novela picaresca ha sido desarrollada con gran amplitud por González Echevarría en
Myth and Archive. Para González Echevarría, la picaresca, y por extensión, la novela
moderna, surge con la intención de desenmascarar el proceso de legitimación
impuesto por la retórica notarial que saturaba la organización dei imperio espano! (57).
6
Sobre la transgresión dei modelo épico en los Noufrogios, véase Pastor 216-44.
206
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
ojustomientos, en el que lo imposturo [hacerse posar por lo que no se es)
odquiere un papel dominante. Tonto la picaresco como los Nautragios
responden o un determinismo que es, sin embargo, de distinta índole [ai
determinismo sobrenatural representado por lo profecío de lo moro de
Hornachos se opondrío el socioculturol de la picaresco) [515). Por último,
ai igual que en los relatos picarescos, el narrador es también protogonis to
[objeto de lo narrado y sujeto de lo narroción), lo que permite su
evolución paralelo en respuesto a los ocontecimientos vividos [515).
Como expreso el título mismo de uno de sus ensayos (La vocación
/iteraria dei pensamiento histórico en América), lo obro de Pupo-Wolker
vo igualmente encominodo o discutir el componente imaginativo que
subyoce o los grandes crónicos de Américo. Desde el siglo XVI se produjo
en los crónicas y relaciones de lndias lo que Pupo-Walker colifico de una
feliz intersección entre proyección autobiográfica, documento forense y
reflexiones filológicas dei humanismo renacentista. En el caso de los
Naufragios se produce una "orticuloción conflictiva de mecanismos
retóricos" ["Pesquisas" 537). Tales mecanismos tienen su base en diferentes
modelos intertextuales, según las diferentes etapas narrativas que revela
el esquema narrativo de los Naufragios. Los primeros siete capítulos, por
ejemplo, se presentan como constatociones forenses que siguen los
preceptos retóricos de los relaciones de servicios. Los capítulos VIII ai XX,
sin embargo, derivan hocio uno reloción de signo autobiográfico en lo
que dominon los formas testimoniales característicos dei diario.
En su
parte final. los Noufragios se convierten en uno crónico de las
peregrinociones, curociones y evangelización llevodos o cabo por
Cobeza de Vaca y sus componeros. En esta última etapa el modelo
intertextuol
vendrío
dado,
según
Pupo-Walker,
por
la
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
trodición
207
hogiográfico dei medioevo que glorifico los hozonos milagrosos de
santos errantes ("Pesquisas" 535).
En esta fase culminante dei texto es
donde se do osimismo uno moyor incidencio de los relatos fantásticos,
como el de Mola Coso y lo profecío de lo moro de Hornochos.
Según Pupo-Wolker hoy dos factores que podríon explicar esta
ocumuloción de "estratos narrativos disímiles": el proceso de composición
de lo obro, que fue el resultado de sucesivos reescrituros y redocciones
desiguales realizados o lo largo de unos veinticinco anos, osí como lo
búsquedo de un impacto retórico en el destinotorio mediante un sólido
aparato de intensificoción expresivo. Los modelos literorios ton diversos
que se don cito en los Noufragios (los crónicos medievoles, los textos de
lo Antigüedod, lo Biblio, los epístolas, lo hogiogrofío medieval, los libro s de
viajes, osí como los novelos de cobolleríos, picarescos y postoriles)
serviríon, desde el punto de visto de Pupo-Wolker, propósitos pragmáticos:
hocer su reloción lo más convincente posible de modo que su autor
pudiero olconzor lo dirección de uno nuevo empresa conquistadora en
lo Florido ("Pesquisas" 536), Esta interacción de modelos diversos se
troduce en el uso de mecanismos retóricos en conflicto, de donde surge
lo ombigüedod, pero tombién la riqueza de los Noufragios.
Todas los tesis piesentadas tienden a privilegiar de forma clara el
ámbito imaginativo de lo ficción sobre el ámbito de los hechos que se
osocion con lo historio, Según Lewis y Pupo-Wolker, olgunos de las
crónicos y relaciones de lo conquisto, y en concreto los Noufrogios de
Cobezo de Vaca, recurren o lo ficción poro ser convincentes, poro elevar
su potencial persuasivo, lo cuol los emporentorío con lo trodición
novelístico que empezobo o desorrollorse en el siglo XVI. Según Correno,
"lo soturoción constante dei yo" que se produce en Naufragios olejo ai
208
LETRAS - Revisto do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS),
relato de "la objetividad que caracteriza a la historia" (507). AI privilegiar la
prosa de ficción con la exclusividad dei impacto retórico, se tiende a
recaer en la caduca distinción entre objetivismo histórico y subjetivismo
literario.
Pero la explicación a esta obsesiva búsqueda de modelos literarios
en los Naufragios habría que buscaria no tanto en la lógica dei discurso
mismo como en las características intrínsecas de la historia !iteraria
hispanoamericana. Rolena Adorno ha senalado como desde Alfonso
Reyes y Pedro Hernríquez Urena los críticos hispanoamericanos, han
asignado una "vocación iiteraria" a ios escritos historiográficos sobre ia
conquista, los cuales se convertirían para muchos en el fundamento de
la literatura hispanoamericana ("New Perspectives"l 75). Entre las razones
que explicarían esta actitud, Adorno ("New Perspectives"l75) y Mignolo
(157) sugieren la búsqueda de un espacio cultural autóctono en el que
los escritos coloniales, originalmente considerados como imitacion es
deficientes de la cultura metropolitana, han sido recuperados e
incorporados ai canon literario.
Hasta aquí he venido comentando el tratamiento que la crítica ha
hecho de los aspectos formales de los Nautragios. Por lo que se refiere ai
aspecto temático e ideológico, de entre los numerosos temas tratados
en relación con la obra de Cabeza de Vaca, tres de ellos están
intimamente relacionados y han ofrecido valiosas interpretaciones de la
obra: la construcción de la identidad sobre la base dei diálogo con el
otro, el intercambio de los espanoles con las culturas ameríndias y el
papel de las curaciones milagrosas como expresión dei mestizaje cultural
y religioso. En mi breve repaso dei tratamiento recibido por estos tres
temas me centraré en los ensayos de Silvia Molloy (1987), Rolena Adorno
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS].
209
(1991) y Jacques Lafaye (1984 ), en donde se ofrece el tratamiento más
exhaustivo de los mismos.
Según Molloy, la construcción dei yo narrador y actor en los
Naufragios se Ileva a cabo mediante un proceso de diferenciació n,
despojamiento y traslado
(428).
La
diferenciación
se
manifiesta
formalmente en el uso fluctuante de los pronombres. El uso dei "nosotros"
inicial alterna pronto con el de la primera persona. El yo incipiente de esta
fase inicial intentaría establecer u n terreno propio frente a Pánfilo de
Narváez, figura que ostenta la autoridad ai comienzo de la relación. Las
tensiones y enfíentamientos con el jefe de lü expediclón culrninarian cün
el relevo dei mando, simbolizado por la "toma de leme".
Este acto
supone, según Molloy, una doble liberación: ai nivel de los hechos (el dei
Cabeza de Vaca-autor), el subalterno se emancipa y asume el mando
de la expedición;
vaca-narrador),
la
ai
nível de la escritura (el dei Cabeza de
instancia
narrativa
principal gana autoridad y
protagonismo (431 ). La inversión de los planes originales de la expedición
!leva a los expedicionarios a enfrentarse con una cultura aborigen
radicalmente diferente, sobre la cual apenas saben nada. Su desnudez
física emblematiza en estas primeros instantes la necesidad de renunciar
a lo propio para sobrevivir en un espacio dominado por códigos
culturales ajenos (432-33). AI despojamiento sucede, en la progresión
descrita por Molloy, el aprendizaje dei otro. En este proceso, las
vacilaciones entre un yo partícipe y un yo testigo revelan la extrema
dificultad de tal aprendizaje (434).
La tercera etapa o nível en la construcción dei yo, "el traslado",
acapara la mayor parte dei ensayo de Molloy. El desplazamiento
espaciaL que constituye el eje estru cturador de los Naufragios,
210
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
se
manifiesta de múltiples maneras: desplazamiento de un destino a otro,
de una cultura a otra, de un yo a otro yo. En tales desplazamientos el yo
deviene vínculo de unión entre polos opuestos. Las profesiones que
Cabeza de Vaca ejerce en la segunda etapa de su viaje (buhonero y
chamán ambulante) simbolizarían esta posición mediadora (437).
Es de particular interés la descripción que Molloy hace dei proceso
de ritualización dei viaje curativo en los Naufragíos (441 ). Lo que en una
etapa inicial consiste en .curas ocasionales, adquiere rápidamente un
valor sagrado, se amplía su alcance (la misma presencia de los físicos se
convierte en una garantía contra el mal), se alteran las relaciones entre
los grupos ameríndios, el viaje transformado en rito posa a convertirse en
empresa lucrativa para los grupos nativos que acompanan a los
espanoles, el cobro de las curas degenera en saqueo y, finalmente, a la
cura y la prevención de los males se anade la consagración. Para Molloy
esta progresiva ritualización dei viaje culmina en la visión evangélica final,
momento en el que tanto el yo de la acción como el de la narración
alcanzan su máxima autoridad (441 -43). El yo despojado y servil de la
primera parte recobra parte de su legado cultural originaria, lo utiliza para
marcar distancias frente ai ameríndio, y prepara así su reintegración en el
mundo dei que procede. El texto, por su parte, se institucionaliza
finalmente ai inscribirse dentro dei programa de conquista espiritual que
asumen las crónicas (444).
El tema dei proceso de adaptación cultural descrito en los
Naufragíos ha sido tratado también por Rolena Adorno desde la
perspectiva de las estrategias de intercambio entre europeos y
ameríndios. Adorno se centra en el uso dei miedo como arma en los
contactos interétnicos descritos en
los
Naufragíos.
La
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
llamada
211
"negociación dei miedo" se manifiesta, según Adorno, de tres formas: el
dominio dei miedo que los aborígenes inspiraban en los espanoles, el
miedo que estos últimos, a su vez, despertaron entre los amerindios y el
apaciguamiento dei miedo indígena que Cabeza de Vaca y sus
companeros llevaron a cabo en la última etapa de su viaje ("Negotiation"
167).
En un primer momento, el miedo se manifiesta en el terror que el
grupo de Cabeza de Vaca tiene que experimentar a manos de sus
duenos en la isla dei Malhado. 7
Su aprendizaje de las técnicas de
producción y control dei miedo en esos momentos habría de ser crucial
en acontecimientos posteriores. El ciclo de las curaciones muestra, sin
embargo, una inversión en la agencia dei miedo. Ahora se trata de la
presencia espanola la que desata el temor entre la población india. El
origen mismo de las prácticas curativas, sugiere Adorno, podría estar en
este temor generalizado ("Negotiation" l 69) . AI igual que Molloy, Adorno
recurre a Lévi-Strauss para justificar esta hipótesis. Según Lévi -Strauss el
complejo chamánico se compone de tres agentes (chamán, enfermo y
grupo consensual). Para que la curación sea efectiva deben darse tres
condiciones: el chamán debe confiar en sus técnicas; el enfermo debe
creer en el podeí dei chomán; y la opfnión colectiva debe mostrar su
consenso. Pero, como sugieren Molloy y Adorno, en los Naufragíos se
produce una inversión de la secuencia: las exigencias de la comu nidad
llevon ai enfermo a confiar en el chamán; tal confianza provoca, a su
vez, la convicción dei chamán, quien ai principio rechaza la práctica
7
Adorno seiiala el impacto de la relación de Cabeza de Vaca en un lector espanol
familiarizado con las crónicas de cautivos, que enfrentabon la figura terrorífica dei
dueiio moro de esclavos y la dei hidalgo cristiana dispuesto a enfrentar el martírio con
una dignidad y coraje caballerescos ("Negotiation" 167).
212
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
como ridícula, pero luego recurre a ella repetidamente. El problema
consiste en encontrar una razón a esta exigencia que la comunidad
impone sobre Cabeza de Vaca y su grupo: 6por qué precisamente
tienen que ejercer ellos como chamanes? Molloy aventura la hipótesis de
que su naturaleza "diferente" lleva o los indígenas a ubicar o los esponoles
en el extremo dei privilegio o dei sometimiento (439-40). Adorno ve en lo
decisión de los comunidades omerindias un intento de compensación
frente o lo potencial omenozo que implicabo lo presencia dei hombre
blonco en su territorio ("Negotiation" 173). En apoyo de esta posibilidad,
Adorno conecto sugestivamente los curaciones con la leyendo de "Mala
Coso".
Esta
leyenda,
cuyos
rasgos
argumentoles
coinciden
sorprendentemente con tradiciones mesoomericanas, podría muy bien
ser uno materializoción fantástico dei miedo indígena ante los esponoles.
Los analogíos entre esta representoción diabólico (ser barbado ai que se
le ofrece comido que no consume) y las actividades de los espanoles
como destructores (Nuno de Guzmán) y curadores (Cobezo de Vaca),
hocen de Mola Coso una expresión de lo presencio espanola en la
región ("Negotiotion" 174).
En los episodios de los curaciones es donde lo negociación dei
su peregrinoción o pilloje ritual los espanoles eran precedidos de
indígenas que otemorizabon a oquellos grupos que no los conocíon, con
el propósito de que les ofrecieron todos sus bienes. El miedo es aquí
creado por lo fuerzo y sujeto o lo manipuloción de los grupos
familiarizados con los esponoles ("Negotiotion" 178-83).
La tercero etapa mencionado en esta negocioción dei miedo
hoce de Cobeza de Vaca un agente útil ai imperio. Se le pide que
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
213
contribuya a la pacificación y repoblación de las tierras que los índios
habían abandonado. Los grupos nativos de la Nueva Galici a habían
huido a los montes aterrorizados por las acciones vandálicas de Nuno de
Guzmón. Cabeza de Vaca recibe el encargo de apaciguar los temores
de los nativos y hocerles regresar a sus tierras. En su ejecución de esta
tarea, Cabeza de Vaca presenta, según Adorno, una alternativa pacífica
a la conquista y evangelización violentas que se venían practicando
("Negotiation" 186). En la opinión de Adorno, el éxito de esta acción
representaba un triunfo de la negociación y el intercambio sobre la
hostilidad dominante entre los conquistadores ("Negotiation" 191 ).
Las lecturas de Molloy y Adorno representan dos oportaciones
críticos a la interpretación de los Naufragios. Las actividades de Cabeza
de Vaca en la Florida y la Nuevo Espana han sido objeto, sin embargo,
de una idealización desmedida a lo largo de los siglas. En un magnífico
ensoyo Jacques Lofaye hace un breve repaso dei tratamiento que las
curas milagrosas han merecido a lo largo de los siglos. Para Lofoye lo
leyenda de un Cabeza de Vaca milogrero tien e su origen no en los
Naufragios propiamente, sino en la Historia General de López de
Gómara. Gómaro fue el primero en usar la palabra "milagro" para
referirse a las curaciones realizadas por Cabezo de Vaca, creando así las
bases de una leyendo que se enriquecerá con las aportaciones de
historiadores posteriores. El método de análisis de Lafaye consiste en un
sistemático rastreo de las fuentes existentes sobre el tema, desde la
Epístola proemial de Motolinía (1541 ), donde ni siquiero se mencionan los
milagros, hasta la Histoire du Paraguay dei jesuíta francés padre
Charlevoix (1756), que presenta el grado de evolución extremo de la
leyenda. Entre estos dos polos asistimos a la mitogénesis de una leyenda
LETRAS Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
en la que cada nuevo historiador habría de amplificar I a figura de
Cabeza de Vaca como autor de milagros.
En su estudio inicial de los Naufragios, Lafaye deduce que no
existen evidencias de que el propio Cabeza de Vaca se creyera dotado
de un poder sobrenatural. AI contrario, en muchos casos el yo -narrador
califica la curación de enfermos y la expresión "hijos dei sol" como
"mentiras mayores". Lo que sí se consideraba el conquistador espano! era
un mediador o instrumento privilegiado de la gracia divina (70). Esto es
algo que se corresponde con el espíritu providencialista que animaba a
ios conquisiadores v evangelizadores de rTrediados dei siglo XVI, quienes
se veían a sí mismos como agentes de un desígnio divino: la
propagación de la fe más aliá dei horizonte conocido. Una atenta lectura
de los pasajes más conflictivos - por ejemplo, aquél en que se cuenta la
aparente resurrección de un muerto
- revela un alto grado de
ambigüedad. Los milagros podrían deberse a la activa propaganda de
los indígenas que acompanaban a Cabeza de Vaca y que se
beneficiaban de las curaciones.
Pero si los términos en que Cabeza de Vaca describe estos sucesos
pueden parecer ambiguos,
aquellos en que se pronuncian los
historiadores posteriores !o son cada vez menos, hasta convertirse en
auténticas certidumbres. Gómara, como ha sido indicado, se refiere a
tales hechos como milagros, aunque ai mencionar la presunto
resurrección anade un ambiguo "según ellos dijeron" (76).
El Inca
Garcilaso elimina, a su vez, las expresiones de ambigüedad de Gómara,
reemplazando la condición de "hijos dei sol" que los indígenas atribuían a
los espanoles con la de dioses (77). Esta misma dinámica se repite en las
versiones posteriores de Antonio de Herrera, el marqués de Sorito, Andrés
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
215
Pérez Ribas, el padre Nichole du Toit y el mencionado padre Charlevoix.
Ciento veinte anos después las formas de la leyenda llegan a adoptar
formas disparatadas que nada tienen que ver con el modelo original.
Como senala Lafaye, "ya no es Álvar Núnez el que ha hecho los milagros,
son los milagros los que han hecho a Álvar Núnez" (80).
Las reflexiones finales de Lafaye contribuyen a explicar la confusión
existente en los estudios sobre Cabeza de Vaca y servirían para orientar
futuras aproximaciones a los Naufragios. Lafaye insiste en entender a
Cabeza de Vaca dentro dei contexto de la historiografia dei siglo XVI, una
disciplina preocupada más por la creación de modelos edificantes, y por
glorificar personajes o exaltar valores espirituales de trascendencia
nacional y política, que por la objetividad propiamente dicha.
Esto
explicaría el proceso de amplificación dei mito, así como la actitud de
muchos críticos contemporáneos obsesionados por encontrar en
modelos literarios lo que era característico de las prácticas historiográficas
dei momento.
11. Cabeza de Vaca en el teatro y el cine hispánicos
La película de Nicolás Echevarría [Cabeza de Vaca, l 990)
responde ai impulso revisionista dominante en los anos inmediatamente
anteriores ai Quinto Centenario. El filme, que tardó lO anos
en
completarse fue coproducido por México y Espana, en colaboración con
el Canal 4 de la televisión británica y PBS, siendo programado en los
EE.UU. como parte de la serie American Playhouse Theater. Parte de la
financiación corrió a cargo de la comisión oficial dei Quinto Centenario y
216
LETRAS - Revisto do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (RS).
muestra, por tanto, algunas de las ventajas y limítacíones de este tipo de
proyectos respaldados institucionalmente. El filme aspira ai rigor histórico y
antropológico y se benefício de un despliegue de medios inusual en el
marco cinematográfico hispáníco. Sin embargo, lo supuesta fidelldad ai
original se viene abajo tras un detenido anólisis de la relación dei Álvar
Núnez.
Aunque ofrece una vísión revisionista dei conquistador como
sujeto aculturado, continúa presentando a Cabeza de Vaca como el
mistificado héroe cultural, resultado de cinco siglas de magnificación
seudohistórica.
De entre los numerosos temas que han dado fama a los
Naufragios,
me
gustaría
concentrarme
en
la
transposición
cinematográfica y dramática de dos de ellos: la construcción de la
identidad sobre la base dei diálogo con el Otro y el papel de las
curaciones milagrosas como expresión dei sincretismo cultural y religioso
durante el período de la conquista.
El filme de Echevarría confirma desde el comienzo la visión
outomitificadora que Cabeza de Vaca ofrece en su relación (una visiónrecordemos - destinada a justificar su desacuerdo con Narváez y el
fracaso de su expedición). Álvares así presentado como el conquistador
honesto y juicioso, crítico desde el principio de los atropellos de otros
conquistadores menos escrupulosos. Su largo período de esclavítud en la
lsla dei Malhado supone una inícíación "'n el mundo indígena que le
prepara para un nuevo relevo en el poder. Si anteriormente había
suplantado a Narváez en el liderazgo de la expedición, a hora releva ai
chomán que le había esclavizado en las prácticas curativas de los
indígenas, iniciándose así su correra de Mesíos milagrero. Todos los
acontecimientos posteriores parecen estar controlados por el poder
LEmAS r1evísta do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (fiS).
sobrenatural dei chamán. No es posible entrar aquí a comentar las
numerosas elipsis e inexactitudes de la adaptación de Echevarría. La idea
de un chamán controlando los pasos dei conquistador, aunque carente
de toda base histórica, no parece inadecuada dentro dei marco de la
ficción cinematográfica. Puede, de hecho, interpretarse como un intento
de conceder protagonismo ai colonizado, así como de invertir la
tradicional dicotomía entre civilización y barbarie 8 • Lo que resulta
cuestionable es la mistificación de la figura de Cabeza de Vaca. Una
mistificación que tiene su origen en las manipulaciones dei propio autor
de los Nautragios, pero que fue magnificada aún mucho más por
historiadores posteriores, !legando a alcanzar, como hemos visto,
dimensiones anacrónicas en el momento presente. Para muc hos,
Cabeza de Vaca es hoy día un abanderado dei multiculturalismo; un
precursor dei movimiento chicano; un conquistador humanitario y
altruista; y un avanzado de la etnología con un interés genuinamente
científico en conocer ai "otro" indígena. Algo bastante alejado de la
realidad histórica y en abierta contradicción con los datos a nuestro
alcance. Esta tendencia a buscar en el posado héroes culturales que
apacigüen
nuestras
propias
ansiedades
ideológicas
olvidaría,
sin
embargo, un aspecto fundamental en la génesis dei texto: que la
8
Gustavo Verdesio desarrolla esta visión dei filme de Echevarria como parodia dei
discurso dominante de la conquista. El énfasis en la condición de sometimiento de los
espanoles en la película iria destinada a subravar "la inversión de la distribución de
valores v poder en el encuentro cultural. Lo espanol aparece dominado. controlado por
la naturaleza dei lugar v por sus habitantes" (Verdesio 198). Si bien es obvio el carácter
desmitificador tanto de la relación de Cabeza de Vaca como dei filme de Echevarria
en relación con el discurso oficial de la conquista, no es menos cierto que ambos
tienden a "remitologizar" la figura de Cabeza de Vaca desde perspectivas ideológicas
dispares. En los Naufragios, Cabeza de Vaca se presenta como conquistador leal v
evangelizador eficiente v el filme de Echevarria convierte ai personaje histórico en un
abanderado dei multiculturalismo de nuestros dias.
218
LETRAS . Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
imagen que se desprende de la
obra es el resultado de la
automitificación que Cabeza de Vaca lleva a cabo meticulosamente a
lo largo de su relación. La presentación de sí mismo como leal
conquistador y evangelizador pacífico, con dotes de líder político y
religioso, conocimiento geográfico y etnológico dei territorio, así como
capacidad retórica para encender la imaginación de sus lectores, tiene
un objetivo que no es principalmente ético, científico ni literario, sino
político y militar: justificar obedientemente sus acciones en la Florida y la
Nueva Galicia y solicitar nuevas "mercedes" dei emperador (su
nombramiento como capitán o Adelantado de una nueva expedición).
Como ocurre a menudo en el cine histórico, la película de
Echevarría explota el mito de Cabeza de Vaca como héroe cultural.
Pero, aunque presenta ai protagonista como un abanderado dei
multiculturalismo
y
la
coexistencia
interétnica
(en
lugar
de
un
conquistador parcialmente aculturado), el filme degenera en una vi sión
"orientalista" y mistificadora dei personaje, perdiendo de vista por
completo la finalidad principal de la relación: obtener mercedes dei
monarca (la dirección de una nueva aventura colonizadora dentro de la
empresa imperial espanola).
ldeológicamente,
la
adaptación
llevada
a
cabo
por
el
dramaturgo espanol Sanchis Sinisterra se aparta sustancialmente de los
dos modelos anteriores. Si la crónica de Álvar Núnez expresa de modo
inconsciente,
pero recurrente,
la dificultad dei protagonista para
establecer un espacio de identidad propio en relación con nativos y
conquistadores, la obra de Sanchis Sinisterra le da a este progresivo
"descubrimiento" dei Otro indígena un valor trascendental.
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
219
La obra teatral de Sanchis Sinisterra presenta literalmente una representación de los hechos narrados por Álvar Núnez desde una
perspectiva ideológica que cuestiona tanto la relación de los hechos
escrita por su protagonista como la mistificación de los mismos !levada a
cabo a lo largo de los siglos y, muy especialmente, en el momento
presente. El primero de los dos actos de la obra se abre con un Álvar
integrado en la vida burguesa de la sociedad dei siglo XX, pero que
escucha con inquietud las quejas de Shila, su apócrifo mujer indígena,
que le recrimina el olvido de que ha sido objeto en su relación.
Los
protagonistas de la expedición, tnsatisfechos taíí'1bién ante la veíslón
dada por Álvar, fuerzan a éste a representar su papel, a revivir una vez
más los acontecimientos descritos en la crónica. Es importante senalar
que son las voces más marginadas en la relación aquellas que
monopolizan progresivamente la obra dei dramaturgo espano!: las de las
mujeres que obviamente debieron existir en la vida de los conquistadores
y la dei negro magrebí Esteban (o Estebanico) que en la pieza dramática
es presentado como un vagabundo alcoholizado. Progresivamente se
van poniendo en escena algunos de los episodios más significativos de la
relación: la torpeza y testarudez de Narváez, los padecimientos sufridos
por los expedicionarios, !o esc!ovitud de Á!vor, su cuestionob!e pape! de
chamán
(que también habían compartido sus companeros),
las
profecías dei desastre hechas por la llamada Mora de Hornachos, y un
largo etcétera. En las descripciones de tales episodios se repiten
literalmente las palabras de Álvar en su relación. Pero tales descripciones
son cuestionadas por los personajes de forma sistemática. Así, se le
acusa a Álvar de monopolizar su papel milagrero, de ignorar los
padecimientos de sus companeros, de repudiar a su esposa indígena, y
220
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
de omitir en sumo todos oquellos ocontecimientos que no hubieron
contribuído o magnificar su imogen. En último instoncio, lo obro se revelo
como el ensueno de Shilo, quien lo concluye con estas palobros:
No sé de qué me hablas. Esas palabras ... "final ... "historia" ... no
están en mi lengua. (Indica ai tondo de la escena.} Allí no hay
nada. (Miro a su olrededor). Bueno ... No hay nada en ninguna
parte ... (Pausa). Todo esto ... todo lo que ha ocurrido ... lo estoy
sanando yo. (238)
Lo obro teatral de Sonchis Sinisterro se presenta así como reacción
frente ol fenómeno de la conquisto, pero también frente ol revisionismo
"oficial" dei período. Pone ai personaie en su lugar histórico e idealiza en
cambio un personoje apócrifo [Shila). Paradójicamente, resulta más
verosímil que el filme de Echevorrío, yo que el discurso ontihegemónico
no es puesto en boca dei conquistador, sino de un personaje imaginario,
que por su condición de indígena y mujer es doblemente marginal. AI
emplozor la occión dramática en nuestros días, el mensoje ideológico,
de signo igualmente multicultural, se hace así más creíble y efectivo.
Como en la mejor tradición dei teatro épico brechtiano, el espectador es
convocado a juzgor de forma crítica la versión de los hechos transmitida
en el registro histórico.
A
diferencio
dei
discurso
monológico
de
Álvar
Núnez,
aparentemente dirigido ai Rey en busca de reconocimiento, Sanchis
Sinisterra hace hoblar ai Otro a través de un personoje ausente en la
relación: Shila, la mujer indígena que el conquistador hobría dejodo atrás
en su desastroso periplo. A diferencia de la relación y de su adaptación
cinematográfica, Sanchis Sinisterra nos ofrece la posibilidad de escuchar
el discurso no sobre sino dei Otro. El Otro deviene así no objeto
LETRAS Revista de Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
subalterno, sino sujeto creador, no sólo observado, sino también
observador. La inversión final que generan las últimas palabras de Shila se
corresponde con una de los técnicas de apropiación y resistencio
características dei discurso genuinamente anticolonial. De tales palabras
se desprende que todo lo acontecido ha sido (sigue siendo) parte de su
propio sueno. Lo historia de la Conquisto se manifíesta de ese modo,
como la fabuloción de una mujer indígena. El poder se desploza así de
la metrópoli a la colonia, dei centro a la periferia.
AI evidente fracaso de la empresa conquistadora de Cabeza de
Vaca, Sanchis Sinisterra opone un triunfo apenas esbozado por Álvar
Núnez y Esteban Echevarría: el nacimiento de un tercer tipo de olteridad
o, como ha expresado el propio autor, "el acceso o una identidad
mestiza, fronteriza, un no ser de ninguna porte y por tanto de todas"
(Antón 7).
Obras citadas
Adorno, Rolena. "New Perspectives ín Colonial Spanísh American Literary Studies."
Joumal of the Southwest 32.2 (1990): 173·191.
"The Negotiation of Fear in Cabeza de Vaco's Naufragfos." Representatfons
33(1991 ):163-199.
Antón, Jacinto. "Brecht en Mocondo." E/ país/Babefia, 16 de noviembre de 1991,
7.
Barrera, Trinidad. "lntroducción." Naufragios, Madrid: Alianzo, 1985. 7-55.
Bruce-Novoa, Juan. "Noufragios en los mares de la significoción: De lo relación
de Cabeza de Vaca a la literatura chicana." P/ura/221 (1990):12-21.
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da
Carreno, Antonio. "Naufragios de Álvar Núnez Cabeza de Vaca: Una retórica de
la crónica colonial." Revista lberoamericana 53.140 (1987): 499-516.
Covey, Cyclone. Cabeza de Vaca's Adventures in the Unknown Interior of
America. New York: Collier Books, 1961 .
González Echevarría, Roberto. Myth and Archive. Cambridge: Cambridge UP,
1990.
Echevarría, Nicolás, dir. Cabeza de Vaca. Producciones Iguana, 1990.
Hallenbeck, C leve. Álvar Núiíez Cabeza de Vaca: The Journey and Route of the
First European to cross the Continent of North America, 1534-1536.
Glendale: The Arthur Clark Co., 1940.
Jenkins, Keith. Re-thinking History. London and New York: Routledge, 1991.
LaCapra, Dominick. History and Criticism. lthaca and London: Cornell University
Press, 1985.
Lafaye, Jacques. Mesías,
sociedades ibéricas.
cruzadas, utopias: E/ judeo-cristianismo en las
Trad. Juan José Utrilla. México: Fondo de Cultura
Económica, 1984.
Lagmanovich, David. "Los Naufragios de Álvar Núnez como construcción
narrativa" Kentucky Romance Quarterly 25.1 (1978):27-37.
Lévi-Strauss, Claude. Structural Anthropology. Trad. Claire Jacobson and Brooke
Grundfest Schoepf. New York: Basic, 1963.
Lewis, Robert E. "Los Naufragios de Álvar Núnez: Historia y ficción."Revista
lberoamericana 48.120-21 (1982):681-694.
Mignolo, Walter. "Cartas, crónicas y relaciones dei descubrimiento y la
conquista." Historia de la literatura hispanoamericana: Época colonial,
Vol. 1. Ed. Ínigo Madrigal. Madrid: Cátedra, 1982. 57-116.
Molloy, Silvia. "Aiteridad y reconocimiento en los Naufragios de Álvar Núnez
Cabeza de Vaca." Nueva Revista de Filologia Hispânica 35.2 (1987):425449.
Núnez Cabeza de Vaca, Álvar. Naufragios. Madrid: Alianza, 1985.
LETRAS -Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
223
Pastor, Beatriz. Discursos narrativos de lo conquisto: mitificoción y emergencio.
Hanover: Ediciones dei Norte, 1988.
Pupo-Walker, Enrique. Lo vococión !iteraria de! pensomiento histórico en
Américo. Desorrollo de lo proso de lo proso de ficción: Siglas XVI, XVII, XVII y XIX.
Madrid: Gredos, 1982.
. "Pesquisas para una nueva lectura de los Noufrogios de Álvar Núnez
Cabeza de Vaca."
Revisto /beroamericono 53.140 (1987): 517-39.
_. "Los Noufrogios de Álvar Núnez Cabezo de Vaca y lo narrativa de viajes:
Ecos de la codificación !iteraria." Los hollozgos de lo lectura: Estudio
dedicado o Miguel Enguidonos, 63-83. Madrid: Porrúa, 1989.
'Notas para una caracierización de un texto seminal: Los Nautrogios de
Álvar Núnez Cabeza de Vaca." Nuevo Revisto de Filologío Hispánico 38.1
(1990): 163-96 .
. "Versiones equívocas de lo láctico: los Naufragios de Álvar Núnez Cabeza
de Vaca." ldeos '92 6 (1990):77-84.
"EI libro de viajes, la ficción y sus legados en los Naufragios." Annoli
ditalionistico 14 (l 996): 131-44.
Sanchis Sinisterra, José. Tri!ogío americano. Madrid: El Público, 1992.
Verdesio, Gustavo. "Cobezo de Vaca: Una visión paródica de la épica colonial."
Nuevo Texto Crítico 1O. 19-20 (1997): 195-204.
White, Hayden. Metohistory: The Historica/ lmoginotion in Nineteenth-Century
Europe. Baitimoíe: Johns Hopkins Univeisity P, 1973.
Tropics of Discourse: Essays in Cultural Criticism. Baltimore: Johns Hopkins
Universi1y P, 1978.
The Content of the Form: Norrative Discourse ond Historico/ Representation.
Baltimore: Johns Hopkins Universi1y P, 1987.
224
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (RS).
lA MARINA DE "CEREMONIAS DEL ALBA":
UNA MUJER FRENTE AL ESPEJO DE SU TIEMPO
Gladys M. llARREGUI
Trinity College
Marina
Todos han querido deshacerse de mí. Mis padres primero,
ahora los caciques. Es que nací bojo el signo de la mala
fortuna, la revuelta, la rina y la impaciencia. Mi nombre es
Malitzin, que significa todo esta. Mis padres eran príncipes. Pera
no me querían. Ceremonias dei Alba. [p. 79)
La fundación de Nueva Espana debe considerarse como algo
más que la apropiación territorial de Mesoamérico, a pesar de tratarse de
la colonizoción de un mosaico de pueblos indígenas sometidos por el
invasor europeo. Se trotó sobre todo de uno fundoción textual que puso
en movimiento la creación activa de textos doctrinorio -antropológicos
que abrieron el mundo nativo para lectores transatlânticos. Esta empresa
llevada a cabo especialmente por las órdenes religiosas, promovió una
investigoción pragmático dentro de lo vida religiosa y local dei México
prehispónico. Los froiles cronistas pusieron en funcionamiento algunas de
las investigaciones más
prodigiosos sobre una cultura
exótica y
dominada, desarrollando activos programas de cooperoción indianoreligioso paro recoger y re-estructurar los datos históricos de la nueva
colonia 1 . EI fenómeno textual produjo dos movimientos alternativos en lo
Fernando Ainso desorrollo en su ensayo: "Los signos imaginarias dei encuentro y lo
invención de lo utopia", Anna Houzková and Martin Procházka Ed. Utopias ot the New
World. (Praga: lnstitute for Czech and World Literature, 1992) un análisis de los
1
LETRAS- Revista
do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
225
primera mitad dei siglo XVL por un lado, los textos europeos inva dían el
mundo de los glifos mesoamericanos con el fin de instruir sobre una moral
mediterránea,
ai
mismo tiempo
que
el
emigrado
europeo
se
preocupaba - dentro de los círculos religiosos y humanistas- por
comprender esa fase de la cultura subyugada, sus pró cticas, historia, y su
cosmologia.
En este clima de creación textual se encuentra la recolección
prodigiosa de Fray Bernardino de Sahagún.
Sus informes etnográficos
producidos por reportaje directo a los sobrevivientes de Tlatelolco,
recuentan los diferentes aspectos dei mundo cuyas costumbres los
misioneros trataban de convertir. En particular el "Libro de la Conquista"
(Libro XII) de su prodigioso Códice Florentind articula el enfrentamiento
de dos modelos culturales, en donde el relato ameríndio proy ecta la
frustración creciente ante la incomprensión de un nuevo simbolismo
político-religioso importado por los europeos. El discurso que se articula
procedimientos pragmáticos que tomó la utopia en América a través dei discurso social
y antropológico generado por las ordenes religiosas. A través de la crítica ai modelo
histórico vigente en Espana, los misioneros proyectan el modelo de cristianismo primitivo
en el mundo nativo, de ahí su necesidad de estructurar el conocimiento dei México
local. AI mismo tiempo que esto ocurría, para los escritores seculares la producción de
una literatura etnográfica no tenía mayor importancia, y sus objetivos estaban
relaCionados con el registro de las hazanas espanolas en tierras nuevas. Para ellos. el
mundo textual era también el mundo dei reclamo social. La letra concedió un prestigo
preeminente a soldados rasos que habían partido de las costas espanolas hacia ya
varias anos.
2
El trabajo de Sahagún se denomina normalmente La historia general de /os cosas de
la Nueva Espana. Este errar se debe a que la página con la versión más detallado con
el nombre de Códice Florentino se perdió. Sin embargo, otras versiones de Sahagún no
omiten este título. Para un rectificación de este errar consultar la obra de Jesús Gorda
Bustamante: Fray Bernardino de Sahagún: Una revisión crítica de los manuscritos y su
proceso de composición. (México: UNAM, 1990).
226
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
:Jor parte dei recolector, sus nahuatlatos 3, y los nativos informantes
propone una lectura ambigua de la posición de los nahuas enmarcados
dentro de una situación colonizadora. Narrando la derrota final, derrota
que elimina la diversidad cultural desde la cultura material: alimentos,
rapas y armamentos hasta la configuración dei espacio histórico, por lo
tanto espacio simbólico, ritual y grupal de los indígenas, el texto invita a
una lectura compleja de los protagonistas: el escritor/ el sobreviviente. El
lenguaje- tema crucial para Sahagún interesado en las curiosidades
lingüísticas- posa a ser el espacio de la invasión por excelencia, en la
m,......,...,lj,-,1,....
,....., ,......._
I IIVUIUU
\....jUV
J,.....,..
IUV
,.............,-..+,.!,f,.....,.,..,.,..
I I IVIUIVIU,) 1
,.., ,,...
.JU.;)
,.........,....., ,; .......... ;....... .-.+,.....,...
I IIVVII IIIV'I I IV,)
,..,J,-..
UV'
,.,f.-.+,...... ... ;,.. ',
,)JliiV'o)l.)
y
,....j
VI
.....,,......,....,.......,+,...._
UI--JUIUJV
jeroglífico indumentaria de la cultura oral, se reduce dentro de la
traducción colonizadora, produciendo un texto ya editado a nivel verbal,
descontextualizado de la identidad dei grupo local mexicano.
Este es el momento que elige Carlos Fuentes para trasladarse a los
antepasados de su raza, en "Ceremonias dei Alba" (primera versión 1968,
segunda 1991) pieza teatral que nos enfrentará a esos últimos días de la
historia de la Conquista, tomando cosi literalmente los pasajes dei
Códice sahaguntino 4 • Lo impactante de la pieza es su fidelidad a un
3
Los nahuattatos o interpretes, reconciliaron la parte prohibida de su posado con la
realidad colonial inevitable. Las función que cumplieron fue fundamental si se considera
las múltiples formas que tuvieron que adaptar a nuevos conocimientos y técnicas
extranieros. AI decir de Gruzinski: "There were a multiplicity of expressive media: glyphs
rubbed shoulders with the alfabet and musical notation: the painted picture met the
engraving; oral transmission oscillated between prehispanic or Christianized forms; plain
chant, poliphony followed upon ancestral dances. Multiplicity also of languages: Latin
and Spanish were added to the lndian languages, dominated by Nahuatl, which served
everywhere as língua franca. Multiplicity of calendar in the Annals, which recorded the
lndian and the Christian year at the some time." (p.62)
The Conquest of Mexico. The lncorporation of lndian Societies into lhe Western World,
16th-18th Centuries. ( UK: Polity Press, 1993).
' Carlos Fuentes desarrolla un paralelismo histórico de formidable fidelidad ai Códice
sahaguntino. Como en otros trabajos suyos tales como Terra Nostra o Cristobal Nonato,
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
227
documento producido en el siglo XVI en nóhuatl clósico y espano!
renacentista y todavia capaz de procurar - como en otras producciones
narrativas de Fuentes- una reflexión sobre el posado, reflexión que
realmente marca la presencia dei texto en el presente mexicano, por
cuanto los personajes históricos tienen ya una noción dei destino que les
esperará cumplir. Dentro de ese dialogismo de tiempos - y a la manera
dei documento etnográfico franciscano- dos edades dialogan: el
presente y el posado, la Malinche y Marina, el mudo dei conquistador
conquistado, la fuerza dei caos que sobreviene después de la caída dei
imperio azteca. El protagonismo de Marina en la obra de Fuentes ofrece
una lectura contemporónea. puesto que en el Códice, Malinche es
solamente una alusión aunque se trata de una protagonista clave para la
historia de conquista. Su presencia dentro de los textos novohispanos y en
la correspondencia dei Corpus Cortesianum (l 51 9- l 526) no ocupa mós
que unas breves líneas ai rey. AI decir de Baudot en México y los albores
dei discurso colonial:
Lo único que concede el conquistador es una alusión pasajera
a la situación de intermediaria obligado que cumplía Malitzin
cuando las conversaciones políticas con las poblaciones o con
las autoridades ameríndias, y esto con ei caiiíicativo anodino
de "nuestra lengua" o de " la lengua". Escrita por una pluma
tan racional y tan preocupada por el nivel de proximidad dei
relator con respecto ai relato y a su voluntaria y supuesta
objetividad, este mensaje dei conquistador dentro de su
estrategia verbal es ya profundamente significativo. En el
el posado establece su tejido de relaciones y lo historia deviene el texto primigenio poro
lo búsquedo de uno identidod mexicano y lotinoomericono. En el cruce de los posiones
- a muchos niveles- que desorrolla la historia de conquista, como escr'rtor encuentra el
júbilo y la tragedia de una región vencida y que ai mismo tiempo está por nocer, tal
como lo expresa Bernardo Ezequiel Koremblit en " Trogedia y humor dei Nuevo Mundo: la
narrativo de Carlos Fuentes" Buenos Aires: La Prensa. 20 de Morzo de 1988.
228
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
proceso de ficcionalización que va a plasmar su
representación de la conquista, el papel atribuido (sin
insistencias) a la palabra de Malintzin es, sin embargo, el de la
crucial distribución dei discurso, el dei reparto político y verbal
que implica una situación central. Aunque la intención de
Cortés, a nivel inmediato, no fuera ésta debido a la carga
táctica que anda inserto en Las Cartas de Re/ación. A todos
nosotros, y también a nivel inmediato, nos parece poco,
incluso muy poco, tratándose de una mujer que le ofrecía las
llaves de un imperio. ( 288)
Carlos Fuentes hace ingresar a Marina en escena como la
verdadera "traductora" de esta historia de dos mundos. No ve en ella la
depositaria de los adjetivos hostiles y de las postergaciones de sus
coetáneos, sino que la identifica como la mujer dei gran enigma de la
identidad mexicana, dei nepantla. término náhuatl para denominar la
situación de intermedio.
Marina viste el huipil bordado de su cultura y
aparece en la oscuridad total dei escenario mientras un rumor de
escoba que barre se escucha en el fondo. Cuando ella se dirige a la
audiencia lo hace llena de preguntas que nos introducen ai conflicto de
su identidad pero de una identidad que como la cultura grupal
prehispánica representa mucho más que un "yo", y se extiende a los
conflictos territoriales y políticos de México. Malitzin, el nombre recibido
por sus padres que la abandonaran, y Marina, nombre que recuerda el
océano, ruta de tránsito desde donde llegaron los espanoles para
desarticular el poder de los nativos se relacionan complejamente juntos.
Con esos dos nombres, dos hombres están también enclavados en su
propia identidad: Moctezuma Xocoyotzin, gran tlatoani de México y
Fernando Cortês, capitán y pequeno hidalgo de Espana. Cuyos datos
biográficos procurados sucintamente en la pieza son, a pesar de lo
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
229
breves, suficientemente orientadores para ver el nino que crece con una
geografia en plena exponsión:
Hernán Cortés. Natural de Medellín, en Extremadura, hijo de
molineros que reunieron escasos recursos para mandarme a
Salamanca, donde fui gorrón y caballero de la tuna,
decepcionando a mis padres. Algunos !atines, sí. unas cuantas
leyes, pero sobre todo, libras de caballería que ensenan las
normas dei arrojo y el honor, y relaciones dei nuevo mundo
que ensenan a sonar con las ciudades de oro y las belicosas
amazonas ... Te das cuenta?, tenía siete anos cuando Colón
descubrió el Nuevo Mundo. (60)
A la hora de llegar o Mesomamérica, Dona Cotolina, primero
esposa de Cortés se hobío quedado en Cuba,
v el
matrimonio no se
reuniría va para una existencia feliz en Nuevo Espano, sino paro la
sospecha
v la muerte.
Moctezuma Xocovotzin, el otro hombre clave de
Marina, es en cambio un mandataria llenos de poderes, poderes que
sobrepasan a cualquier hombre, de él dice Marina: " Nadie puede
miraria a la cara, tal es su fulgor. Moctezuma es el sol en lo tierro. Le
sirven en su palacio más de tres mil criados
v cuenta con treinta mujeres
para holgarse" (64).
Marina negocia uno nueva concepción de sí misma, enfrentado o
una guerra en donde traducir es facilitar el conocimiento dei Otro,
través
dei
contraste entre
hombres
de dos mundos
va
simbólicos
comprende que su propia identidad está también abriéndose a nuevos e
inesperados eventos que responden o las autoridades invisibles pero
presentes en la figura de Cortés: un rey
v un dios
cristiana
v europeo.
Cortés siendo la figura de negociaciones por excelencia, dispuesto ai
pan amargo
v mohoso de esas expediciones interminables con el fin de
recoger el botín dei oro, reflexiona en la obra que:" No se puede regresar
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
a un hogar miserable. El futuro está aquí ... No podemos regresar con las
manos vacías". (74). La ambición cortesina instala a Malinche dentro un
juego propio, juego destinado a la fortuna personal, es la de una mujer
que, en cierto momento, asume el estado de sumisión frente ai caudillo
de una expedición ambiciosa y violenta 5
,
pues en una de las
anotaciones para la pieza Fuentes apunta que: " Marina ayuda a Cortés
a desvestirse, quitándole la armadura. Hay un paralelismo con I os gestos
de las doncellas vistiendo a Moctezuma" (90). Este gesto podría leerse
también como un gesto anticipatorio dei traspaso de poderes que
tendría lugar en Tenochtitlán, en gran parte por la ayuda lingüística y
valeroso de Marina.
Como vemos en el "Libro de la Conquista" esos objetos únicos, los
envía Moctezuma a Cortés, como senal de bienvenida, son los hombres,
no las mujeres las que aparecen preocupados por apariencias en el
recuento de la Conquista, y son ellos los que se preocupan de que el
cuerpo como sitio de autoridad, asuma una presencia ideal.
En el
Capítulo IV se describen los artículos lujosos enviados ai conquistador
espanol, entre ellos:
5
Cortés después de la conquista va negociando progresivamente sus ventajas
económicas y sus títulos. En una carta de Carlos V fechada el 1ero de abril de 1529,
amplía el título de Cortés de "Capitón general" a "Capitón general de toda la Nueva
Espana y províncias y costa dei Mar dei Sur". La Reina el 5 de abril de 1529 ordena que
se concedan honores a Hernando Cortés, marquês dei Valle, durante su viaje de regreso
a Nueva Espana. El 16 de abril de 1529, el Papa Clemente VIl legitima los Ires hijos
naturales de Cortés: Martín Cortés (hijo con Malitzin), Luis de Altamirano (hijo con Antonio
o Elvira Hermosillo) y Catarina Pizarro (hija con Leonor Pizarro, acaso pariente de Cortés).
En otra cédula real ese mismo afio Carlos V y la Reina Juana le otorgan veintitres mil
vasallos. Este poderío creciente no inicia mós que otra batalla en la vida de Cortês,
entre la iglesia y los ex-compafieros de armas, numerosas peripecias lo acompanarían
durante el resto de su vida en México, como lo atestiguan los Documentos Cartesianos
(1528-1532) (México: UNAM, 1991 ).
LETRAS - Revista da Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS(.
231
... Lievaban también unas orejeras de oro: llevaban colgados
unos cascabelitos de oro, y sartales de caracolitos marinas
blancos y hermosos. De estas sartales colgaba cuero que era
como peto, y llevábanle cenido de manera que cubría todo el
pecho hasta la cintura: !leva este peto, muchos caracoles
sembrados y colgados por todo é!; llevaban también un
corselete de tela blanca pintado, la orilla de abajo de este
corselete iba bordada con plumas blancas en tres listas por
todo e! rededor: llevaban una manta rica, la tela era de un
azul claro y toda !obrada encima de muchas labores de azul
muy fino, (726)
Los artículos entregados van desde mantas hasta máscaras,
sombreros, y plurnojes preciosos engorzodos en piedros como e! jade o
la obsidiana, favoritas dei emperador azteca. Berna! Díaz, que aparece
en la pieza teatral de Fuentes como un cronista en gestaci ón, el hombre
que posteriormente replantearía y recontaría la Conquista, otorgándole a
Marina el lugar de una traductora excepcionalmente valiente, le
recuerda a Cortés la importancia de las ropas, cuando abriendo un baúl
comienza a sacar las ropas de cabo llero elegante que Cortés utilizara ai
ser nombrado jefe de la expedición de Cuba. Marina ai ver estas ropas
las celebra - aunque nunca vemos a Marina embellecerse- coloca a
Cortés penachos, medallas y cadenas de oro, junto a las prendas de
terciopelo que recuerdan el mundo dei esplendor ibérico.
En estos signos culturales advertimos que la presencia femenina de
Marina es una presencia fundamental dentro de la dualidad ideológica y
política que plantea el enfrentamiento de estos dos mundos. Aunque hay
que recordar que el enfrentamiento está orientado sobre todo, por parte
de los europeos a la dominación de la cultura material 6 y la abundancia
6
No podrá ser suficientemente enfatizada la diferencia de la cultura material espafíola.
La dominación de ciertos metales como el acero dió a los espafíoles desde el principio
ese halo psicológico de dioses, brillando con sus cuerpos. José Lameiras Olvera,
232
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RSJ.
azteca, que eventualmente, como fuero explicado, revertiría el problema
de identidad dei mismo Cortés afirmándolo frente a la Espana que
dejaba atrás y a la que quería conquistar por medio de su gloria
económica. Marina como traductora de los signos materiales aparece
en un segundo plano durante este recuento de Cortés para reaparecer
cuando el conquistador duerme.
Este sueno - que nunca vemos en el
"Libro de la Conquista"- da tregua a las ambiciones cortesinas, mientras
Marina reflexiona sobre México, el México que de olguna manera
comienza a desgajarse. En estos pensamientos Marina dice en voz alta a
Cortés mientras duerme abrazado a ella:" Sé, en verdad, la Serpiente
Emplumada; devuelve, en verdad, la unión y la felicidad a este pueblo
disgregado y sometido ... No desvastes este jardín." (1 06).
Este pensamiento protector hacia la ciudad esplendorosa que ha
llegado a ver por primera vez, sugiere que Marina quería creer como los
mexicas, que Cortés era ese dios, el teúl que daría una oportunidad de
reconciliación entre pueblos fatigados de impuestos y de sacrifícios
humanos requeridos por Moctezuma.
Pero las alianzas mismas que
Cortés va estableciendo relatadas en el "Libro de la Conquista" y en la
que Tlaxcala cumple un papel fundamental en el Capítulo XXVII, nos dan
encuentra otra diferencia entre el hombre renacentista y el mesoamericano, que reside
en la cultura material comprendida dentro de un ciclo simbólico en el que celebrar y
guerrear eran parte dei calendario indígena. Ader-.ás de la conformación sacio-política
mesoamericana que se sustentaba en la guerra. ·• El caso de los mexica, tepaneca,
acolhua, colhua, chalca, huejotzinca, xochimilca, coyuaque, tlaxcalteca, y oiros grupos
dei Altiplano Central; /os mixtecos y zapotecos, mayas y huastecos, totonacos, chontales
y demás etnias surenas y orientales constituían sociedades estratificadas con la nobleza
a la cabeza. Lo guerra ejercida por y entre ellas a lo largo de once siglos iría !levando a
estratos superiores a los militares." (p.86)
La llegada de nuevos armamentos,
desacralizodos y llenos de novedad, fueron el gron impacto de Cortés en su derroto final
de Moctezumo. E/ encuentro de la piedra y e/ acero: la Mesoamérica militarista dei
Siglo XVI que se opuso a la irrupción europea. (México: EI Colegio de Michoacán, 1994).
LETRAS -Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
233
una pauta dei territorio dividido que permite el ingreso y la derrota de
Tenochtitlán. Incluso como lo sugiere Ryszard Tomicki 7 , en este momento
dei siglo XVI en Mesoamérica, no es extra no que circularan profecías antiMoctezuma e incluso antitenochcas, a partir de la subyugación de estos
pueblos frente ai gran imperio dei Valle de México. De Moctezuma se
dice:
El bienaventurado Moctezuma no le dirige la palabra a nadie:
a los mortales, por indignos; a los dioses, porque ya conocen
su pensamiento. Sobran las razones. (112)
Marina, criada entre los magos y los adivinos, en una concepción
religiosa circular y por tanto repetitiva, debe contraponer la expectativa
de ese universo prehispánico basado en la interpretación divina y en las
senales supersticiosas, ai mundo expansivo y táctico de los hombres con
los que comparte este avance territorial. En ellos, los signos encantados y
los calendarios son fabricaciones que pueden ser conquistadas no a
partir de la sugestión sino a partir de la razón y la acción guerrera. El
desplazamiento que toma lugar entre la historicidad de la memoria
mexica, y el implantamiento de nuevas condiciones simbólicas, se da el
hecho mismo de nombrar, siendo "la lengua", la Marina de Fuentes
7
Tomicki cuestiona la información de los records dei siglo XVI, argumentando que los
hechos históricos reales han sido encubiertos por una serie de levendas políticas
posteriores. En el Códice Florentino, la debilidad de Moctezuma puede haber sido
recreada posteriormente. los hombres son tratados como mujeres que sienten miedo
ante lo desconocido. Pero la anti-popularidad de Moctezuma es evidente antes dei
ingreso espano! ai territorio mesoamericano. v frente a las aspiraciones absolutistas que
el emperador sentia por otros pueblos subvugados dei complejo de Mexico. Con
Moctezuma Xocovotzin, el domínio de los mexica-colhua-tenochca estaba asegurado,
pero su autoridad militar. religiosa v política tomo características absolutas. tal como
describe Diego Durán en Historia de las lndias de Nueva Espafía, 2 vols. (México: Edina,
1967).
234
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
reflexiona en torno a las condiciones dei lenguaje, cuando êste es
tambiên una trampa y produce una fuerza desarticuladora dei espacio y
el tiempo, por el mismo nombrar que se modifica entre el náhuatl y el
espano!, ella dice:
Cómo se llamó antes esta montano?. Cómo se llamará ahora
este río?. Recuerdas el antiguo nombre de este pájaro?. Qué
nombre le pondremos a esta nueva ciudad? ... Cómo te
!lamas? Cómo hablas? Quién habla por tí?. Cuáles son tus
pala bras?. (119)
En otro momento de ternura - de los muchos que la obra muestra
entre el joven conquistador y Marina - Marina le pregunta: " Quieres
conocer lo que dice tu lengua?" y Cortês la besa apasionadamente,
mientras ella lo separa y le dice: "Tu lengua dice que las lenguas de esta
tierra te nombran como a un Dios" (127).
Es indudable que Marina
rearticula estos dos mundos desconocidos el uno para el otro, un
problema por otra parte más importante si se considera que Cortês no
puede comunicarse con
ninguno de los dos emperadores más
importantes de su tiempo, con Moctezuma ai no poder intercambiar con
él una sola palabra en náhuatl, y con Carlos V, porque el emperador no
püede hablaí espaflol:
No, por mi fe, mi joven rey don Carlos ha !levado plácida vida
fuera de Espana: hijo de Flandes, ni siquiera sabe hablar
espano!, hijo de Juana, la reina loca, ha vivido tanto recluído
como su madre, entre preceptores, médicos y cortesanos ... De
ahora te lo apuesto mujer: jamás pondrá un rey de Espana las
plantas sobre estas tierras ganadas por nosotros para su linaje.
Yo, en cambio ... yo, desde nino, he vivido con los ojos llenos
de la visión dei nuevo mundo. (128)
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
235
No existió en Mesoamérica la posibilidad de biculturalidad que
darían las doctrinas ilustradas a los nativos a punto de convertirse. Esos
textos persistentes que florecen a partir de una ideología cristiana,
contienen la posibilidad de reordenar el mundo caótico dei lenguaje,
mundo en cuya riqueza y asombro perpetuo se mueve Marina.
La
destrucción de Mesomérica aparece para ella como la destrucción de
esas construcciones fabulosas, construcciones ficcionales y ricas en
imaginación como las de los libras de caballería.
El lenguaje que
representa Marina está en un proceso de crisis por cuanto la misma
iglesia que promovería lingüistas brillantes y dedicados, enmarcarían la
cultura indígena dentro de los parámetros de una ideología diabólica.
Esas pala bras y textos glíficos, pinturas y memorias que Sahagún se
empena en recoger en el Códice,
pasan a tener el status de textos
prohibidos, textos que la inquisición perseguirá en la segunda mitad dei
siglo. Lo que Marina viene a pronunciar y traducir, no borra el status de
nepantla puesto que Olmedo, como representante de la iglesia rígida,
enfrenta a Marina y a Cortés en "Ceremonias" anticipando el papel
posterior de los clérigos en asuntos de legislación de la moral y los usos
cristianos, en un momento en que Marina exalta a Cortés en las virtud es
de su sueno expansionista, dice Olmedo:
Calla ya, mujer diabólica, que aunque has recibido de mis
manos el agua dei bautizo y la senal de la cruz, sigues
perteneciendo tu alma pagana a estos inmundos ídolos de
piedra, que en nuestro camino vamos destruyendo. (129)
A Cortés, Olmedo lo increpa prometiendo una venganza futura, en
la medida que la Conquista no es solamente para el rey sino también
para la iglesia. Esta iglesia planeará una apropiación de los mexicanos a
236
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
través
de
la
conquista
espiritual,
retórica,
obsesiva,
sobre esas
manifestaciones "idolátricas y paganas" que el mismo Sahagún describe
en su prólogo allector. Las recolecciones nativas- producidas a partir dei
esfuerzo genuino de estas órdenes- son los manifiestos más claras de un
guerra textual entre el texto oral vencido y apropiado por la escritura que
fractura ese mundo y lo devuelve intacto. Olmedo anticipa en la obra,
esa manipulación de la historia "pagana", pre-cristiana, politeísta.
La derrota
Moctezuma
Llegamos a esta tierra con un solo dios, Huitzilopochtli. deidad
de la guerra. Pero para legitimarnos tuvimos que apropiarnos
de un segundo dios, Quetzalcóatl, deidad de la moral. A
quién debo honrar ahora?. (p.l39)
En esta pieza que no está dividida en escenos, identifico una
segunda parte que se produce a través de la derrota sangrienta sobre el
pueblo mexica. Tros la invasión ai polocio de Moctezuma, con lo muerte
violento de los mexicanos, lo que era entonces el jordín entre lagos que
Marina deseaba preservar, se ha convertido a merced de los espanoles y
la pestilencia. en un campo de batalla cruento donde Malinche
reconoce en voz alta la nueva tiranía, la de Cortês ... AI escuchar estas
palabras, Cortês tira ai suelo a Marina, moltratándola físicamente por
primera vez, las palabras que le dieron un imperio se convierten en
palabras que le pesan:
LETRAS Revista do Curso de Mestrado em Letras do UFSM [RS).
237
Cuida tus palabras, bruja; no sea que te devuelva a la
esclavitud de la que te saqué; no sea que te entregue ai más
bojo de mis soldados. (158)
Marina entonces intensifica el discurso de protección hacia el
pueblo mexicano, tal vez porque comprende que su propia identidad
está realmente fragmentada en este mercado de esclavos y muertos en
el que se ve forzada a permanecer trás las acciones cortesinas.
Su
discurso invita a la reflexión después de la acción fulminante que deja en
ruínas a Tenochtitlán. Marina se pregunta y le pregunta a su companero:
Qué habríamos encontrado nosotros en tu casa si esta historia
sucede ai revés?. Qué maL qué horror, qué sacrificios, qué
tiranías, senor, en tu propia casa?. Trata de entendernos.
Danos una oportunidad. No mates el bien de mi pueblo
tratando de matar sus males. No destruyas nuestra frágil
identidad. Toma lo que está construido aquí y construye algo
ai lado de nosotros. No asesines a mi patria. No nos quites
nuestra historia, pues también gracias a ella eres quien eres.
Alguien, alguien, nunca más nadie. (159)
El diálogo apasionante entre los dos protagonistas principales de
esta historia, hace comprender que Cortés, joven, poderoso, rico,
encuentra en la Conquista finalmente el hilo conductor hasta su propia
seguridad social y personal. Mesoamérica es el territorio que le devuelve
una
imagen
distinta,
ahora
puede
reconocerse.
Pero
Marina
intuitivamente describe a Cortés sus mie dos:
Te amo y no temo tu muerte sino tu destino, pues el destino es
siempre más breve que la vida, y la muerte es seguir viviendo
cuando el destino ya se cumplió. (161)
Esta anticipación a manera de presagio, signará en la realidad las
vidas de Cortés y Marina después de la Conquista. Sus roles se
238
LETRAS -Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
desvanecerán en una nuevo red de relaciones políticas en las que el
destino cumplido quedará subyugado ante las pautas de un primer
virreinato y en medio de la metodología didáctica y evangélica de la
iglesia. Ni siquiera el hijo que Marina pare con un largo monólogo en la
piezo, puede creor la seguridad de un espacio común paro los dos. Este
hijo nace después de lo derroto indígena y o este hijo Marina le advierte
que no podrá gozar dei privilegio de los hijos nocidos entre espanoles,
porque es un hijo blonco y moreno, un hijo dei mestizoje, ocupando el
espacio de nepontlo que es su propio espacio desde el momento en
que fuera bautizada por los hombres de Cortés. A ese hijo le auguro uno
infelicidad que ella misma experimenta, una orfandad que le es
conocida y resentida, y una astucia que Marina ha sabido ganor a través
dei lenguaje, de los trompas de lo lengua y de sus mutociones. Ahora le
pide o su hijo que se convierta en lo Serpiente Emplumada, la que
regresa:
... mi hijito de la chingada, tú deberás ser la serpiente
emplumada, la tlerra con alas, el ave de barro, el cabrón y
encabronado hijo de México y Espana: tú eres mi única
herencia, la herencia de Malitzin, la diosa, de Marina, la puta,
de Malinche, la madre .. (178)
AI repetir su nombre en la diferentes etapas de reinterpretación que
éste tuviera, encontramos que la fragmentación ha tomado lugar,
porque ella no puede parir uno unidod, como no puede parirse dentro
de este espacio como una mujer nuevo. El posado está latente, y ese
posado la fractura frente a los vencidos. AI mismo tiempo, como madre,
asume una actitud de revancha ante esa fragmentación que la
LETRAS ·Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM IRS].
condena en la cultura mexicana.
Judy Mclnnis en su artículo "La
Malinche as Symbol of lllegitimacy and Betrayal" ejemplifica esta lucha de
ideologías frente a Malinche/Marina/ Malitzin como un ícono mexicano:
As Sandra Cypess points out in her book La Ma/inche ín
Mexícan uterature. Paz denied Malinche the" sacredness ... as
mother of the Mexican people" that his grandfather lreneo Paz
has developed in the novel Dona Marina. While lreneo
developed her as embodiment of the Virgin Mary archetype
possessing beauty. courage, valor, a good heart and
compassion, Octavio assimilated her to Eve. the woman who
betrays and brings the downfall' of her people. Octavio Paz's
identification of Malinche with "la chingada" and "la llorona"
reduced her to an example of female passiv'lty yet more abject
than Eve. (53)
Dentro dei complejo de la historiografía mistificadora. no cabe
duda que Marina fue una participante eficaz para los propósitos
cortesinos y espanoles. a lo que agrega Georges Baudot:
Cabe anadir que su intimidad física con Cortés le ha facilitado
e incluso permitido este papel central en donde se elabora el
proceso decisivo de la conquista. Podemos así notar, en
efecto. que Malitzin sólo fue la amante dei conquistador
durante el período determinante de la empresa, es decir,
desde la llegada a Tlaxcala hasta la caída de México [más o
menos durante dos anos), que el hijo de sus amores, Martin
Cortés. nació en la primavera de 1522. lo que sitúa el
momento de su concepción en la fase final de la Conquista,
en el sitio de México. cuando el destino parecia por fin volcarse
definitivamente.
Habrá que subrayar también que estas
amores se distanciaron. a veces se enturbiaron, después de la
victoria final, como si el proyecto que los regia ya no existiera. (
297)
Hacia el final de la obra se perfila la historia de Bernal Díaz como la
futura crónica que en la vejez el soldado de Cortés podrá brindar una
240
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
visión
fresca
de
estos
momentos
culminantes
para
la
vida
mesomericana. Con su pluma ejercerá un poder único: el de examinar
su propia historia y la historia de los personajes de ese tiempo bojo una
mirada benevolente para Malinche, y en general para la cultura mexica.
Sus páginas renegarán nada menos que de todo lo escrito con
anterioridad, anticipando a los lectores un despliegue único de esos
momentos culminantes en la vida de los dos imperios.
Si la identidad de Cortês es un problema durante toda la obra, la
identidad de Marina es una búsqueda incesante, agigantada por la
proximidad dei derrumbe de un imaginaria social e ideológico que ve
anticiparse a sus veinticinco anos. Los interrogantes que se plantean los
personajes ai final, son interrogantes que los colocan como protagonistas
y espectadores ai mismo tiempo: dónde está ahora el nombre de las
cosas?, a quién servirán estos nuevos sujetos, estas realidades locales, de
qué forma se articularán, articulándolos?. Por tanto, el espejo dei fondo,
espejo que a dominado toda la pieza y en el cual pasan reflejados estos
distintos momentos de Marina/Malinche se rompe, y coe hecho pedazos.
Esta es posiblemente la metáfora de una ruptura definitiva dei
protagonismo de Marina ai terminar el encuentro bélico, y ante la rápida
apropiación territorial que las órdenes religiosas hicieron, construyendo
conventos en los antiguos templos, quemando o prohibiendo las pinturas
sagradas, traduciendo para someter el mundo de los rit uales ameríndios.
La nueva Malinche de Carlos Fuentes tiene una voz y una
conciencia para el espectador como no la pudo tener el lector dei siglo
XVI. Elia es parte de un nuevo modelo cultural dentro de la búsqueda
historiográfica contemporánea.
Cuando la pieza fue escrita en 1968,
Fuentes la produjo como un protesta pública contundente hacia los
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
241
problemas de la identidad mexicana, el eterno nepantla, la tradición de
una derrota. Desde ese mismo ángulo, la mujer traductora funciona en
la pieza teatral, como el verdadero nudo de las cuestiones que todavia
afectan la historia mexicana.
Como cronista contemporáneo Fuentes
inicia la búsqueda de esa sensibilidad femenina,
la misma que
paralelamente busca en archivos e investigaciones Baudot, quien piensa
que:
Aquel largo viaje de reencuentro con ella mlsma parece así
que duró cerca de veinticinco anos, un cuarto de siglo de
soledad en Nueva Espana, después de un primer cuarto de
siglo de helada rebelión en el México de los aztecas. Una vida
que dos vertientes reparten por espacios cosi iguales, pero
ambos marginados, fuera de todo trayecto previsible, más aliá
de los Otros. Sorprende el silencio que Malitzin impuso a la
última mitad de su existencia, probablemente por entero
dedicada a su marido Juan Jaramillo y a sus dos hijos Martín
Cortés y María Jaramillo rechazando honores y toda clase de
éxitos sociales. Acaso la perseguían los recuerdos?. Acaso huía
de la mirada de un pueblo destrozado, de aquellos índios que
en Tlatelolco o en Texcoco la veían en suenos quemándose en
lo más hondos de los infiernos, como lo recuerda Bernal Díaz:
".... cerca de Tlatelolco ... vió en el patio que ardían en vivas
llamas el ánima de Cortés y
Dona Marina ... " o aún:
"... andaban en los patios de Texcoco unas cosas malas y que
decían los índios que era el ánima de Dona Marina y la de
Este artículo sin duda no concluye esa indagación en torno a la
persona de Malinche ficcionalizada siempre entre los siglas XVI y XX 8 .
8
En mi artículo " ltoca Malitzin/Dona Marina: Biografia de una mujer indígena", exploro
desde un enfoque etnográfico contemporâneo las diferentes versiones sobre el nombre
y la figura de Malitzin antes y después de la conquista. Esa revisión posa por la
documentación de archivos después de 1521 y continúa el proceso de indagación en
torno a la figura de una mujer mítica a partir de nuevas concepciones históricas postestructuralistas. Consultar: Beyond lndigenous Voices. Ed. by Mary Preuss (Pennsylvania
State University: Labyrinthos, 1996).
242
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
Quiero pensar que más bien ingresa ai corpus de construcciones
especulativas en torno a esa mujer que con valor excepcional resistió y
soportó ai mismo tiempo, la batalla, el embarazo y el colonialismo
ideológico.
No es posible creo, identificar a Malinche desde una
perspectiva eurocéntrica, únicamente, puesto que una cultura circular,
una cultura ritual la vió nacer y le otorgó un sentido a su vida. EI espejo de
Fuentes ofrece una versión alternativa bojo una premisa particular: el
ingreso de la mujer como sujeto de autobiografía, indagación, y análisis 9
. En un trabajo de elementos de síntesis cultural, "Ceremonias dei Alba" y
el Códice ,c/orentino se semejan y se distancian en la e!aboración de de!
mismo tópico. En el primero es ya un escritor mexicano enfrentando su
propio posado
1y
acaso su propia búsqueda cultural) mientras que el
documento sahaguntino se inserto dentro de las complejidades
ideológicas dei siglo XVI. Según Fuentes, en su prólogo escrito para la
segunda versión de la obra:
Mientras México no liquide el colonialismo, tanto el extranjero
como el que algunos mexicanos ejercen sobre y contra
millones de mexicanos, la conquista seguirá siendo nuestro
trauma y pesadilla históricos; la sena de una fatalidad
insuperable y de una voluntad frustrada. El clamor de la
9
En el capítulo: "Toward intimacy: The Fourteenth and Fifteenth Centuries" Philippe Aries
and Georges Duby, comentan sobre el fenómeno de la auto-conciencia y el
nacimiento progresivo de diarios, cartas, crónicas privadas que comienzan a nacer en
este período. La emergencia progresiva de la narrativa autobiográfica es algo que ya
conocen los europeos cuando ingresan a Mesomérica. Pera los sentimientos privados
son desconocidos en los códices pre-hispánicos, excepto por áreas de dolor. fracaso,
alegria, dolores comunes ai grupo en cuestión. Desde luego, las mujeres tuvieron un
acceso limitadísimo a este proceso de individualización y proyección personal. Marina
habla por Fuentes, que intuitivamente la refleja desde una sociedad en busca de una
historia femenina. Para ampliar el tema de las subjetividad en la escritura, consultar el
libra de Arles y Duby: A History of Pr/vote Life. Reve/ations of the Medieval World. (England:
The Belknap Press of HaNard U.P., 1988).
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
243
Malinche es la advertencia dei nuevo sacrificio humano v dei
nueva necesidad humana dei México nacido en la
conquista.(12)
Entra las páginas guerreras de un encuentro único, Malinche en la
ficción
v en la etnografía permanece aún como esa
Uenzo de Tfaxcald 0
,
mujer que ocupa el
la que habló durante anos en su persistente
curiosidad y osadía, rica en palabras, poderosa en las intepretaciones
lingüísticas de dos culturas, pero muda desde la iéonografía en la cual la
reencontramos como la joven mujer mexicana que todavía nos
asombra. La extraordinaria fuerza de su mito todavía nos revela, el
espacio académico fresco de la mujer en la historiografía, y la necesidad
de entrar en los juegos subjetivos de los textos antiguos y doctrinarios tanto
como Fuentes lo hace en esta obra de teatro contemporâneo.
Obras citadas
Baudot, Georges. Lo pugno franciscano por México. México: Alianza Editorial
México, 1996.
_ _ . México y los o/bares dei discurso colonial. México: Editorial Patria, 1996.
10
AI decir de Serge Gruzinski "The Lienzo of Tlaxcala was probably painted to arder for the
viceroy don Luis de Velazco between 1550 and 1564. lt is thus a commissioned work, 7
by 2.5 meters, which reconstructs the Tlaxcaltec version of events in 87 pictures. For these
lndians it was also a politicai manifesto that did not hesitate to disguise events when they
might refute the irreductible attachment of the lndtans of Tloxcolo to the cause of the
conquistadores .... Although colonial in content, the Lienzo still in many respects belongs
to the native tradition. Nomes of places and protagonists and dates were indicated
according to custam by glyphs. The lndians were represented in profile with the attributes
of their functions, the signs of their power - the ícpallí seat- the clothes of their rank, the
hairdos of their tribes." (p.21 ). The Conquest of Mexíco. The lncorporation of !ndían
Socíetíes ínto the Western World, 16th-18th Centuríes. (UK:Polity Press, 1993).
244
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
Cypess, Sandra Messinger.
La Ma/inche in Mexican Literature: From History to
Myth. Austin: U. of Texas P., 1991.
Fuentes, Carlos. Ceremonias dei Alba. México: Siglo XXI Editores, 1991.
Gruzinski, Serge.
"Le passeur suceptible. Approches ethnohistoriques de la
Conquete spirituelle du Mexique", Mélanges de la Casa de Velázquez,
XII, pp. 195-217, 1976.
. The Conquest of Mex1co.
The lncorporation of lndian Societies into the
Western World, 16th- 18th centuries. UK: Polity Press, 1993.
Karttunen, Frances and James Lockhart. Nahuatl in the Middle Years: Language
Contact Phenomena in the Texts of the Colonial Period, Publications in
Linguistics: 85. Berkeley: U. of California P., 1976.
Mclnnis, Judy. "La Malinche as Symbol of lllegitimacy and Betrayal".
MACLAS:
Latin American Essays. Volume VIII, 51-56, 1995.
Ortega, Julio.
" La literatura mexicana y la experiencia comunitaria" en E/
discurso de la abundancia . Venezuela: Monte Avila Editores, 1992.
Prado Oropesa, Renato. "Constitución y configuración dei sujeto en el discursotestimonio".
Habana: Casa de las Américas, Vol.30. No. 180, 29-44,
1990.
Sahagún, Bernardino de. Historia general de las cosas de la Nueva Espana. 2
vols. Eds. A López Austin y J. García Quinta na. Madrid: Alianza, 1988.
Saldívar, Samuel G. "Marina in the Old World and the New". Papers on Romance
Uterature Relations: From the 0/d World to the New World. Ed. Jean S.
Chittenden. San Antonio: Dept of Foreign Languages, Trinity University,
1985.
Tomicki, Ryszard. "Augurios de la Conquista Espanola entre los Aztecas: el
problema de la credibilidad de las fuentes históricas". Etno/ogía Polona,
vol.12, pp: 51-78, 1986.
Zabala, Silvio. Filosofía política en la Conquista de América. México: Fondo de
Cultura Económica, 1984.
LETRAS- Revista do Curso de.Mestrado em Letras da UFSM (RS).
245
DAIMÓN Y EL EROTISMO DE LA CONQUISTA
Terry SEYMOUR
Ya/e Universtiy
Según Abel Posse, la conquista espanola de la América Latina fue
motivada más bien por el erotismo que por la búsqueda de riqueza, ya
que la desinhibición de los indíginas en cuanto ai sexo llegó a ser un
regalo de consolación a falta de encontrar las riquezas que originalmente
habían buscado los conquistadores: "EI oro y las perlas dejaron de ser la
única atracción, desde entonces en adelante los invasores encontrarían
un gran consuelo. El otro oro fueron los cuerpos." [Posse 1989, 200). Sin
embargo, Posse afirma que las crónicas acallaron la motivación erótica
para conformarse con las regias de la moral judeocristiana: "Durante
siglos la crónica oficial y académica acalló el móvil erótico con todo lo
que tenía de destape y de salvaje libertad para gente que no veía
desnuda a una mujer ni en la noche de bodas." (Posse 1989, 200).
Uno de los objetivos explícitos que tuvo Posse ai escribir Daimón y
Los perros dei Paraíso fue presentar el choque entre dos maneras de ver
el erotismo.
En Daimón, estos son las regias represivas de la moral
judeocristiana y la idílica libertad sexual dei paganismo latinoamericano
(Posse 1989,
200).
Como sugiere la cita anterior, la novela de Posse
interpreta la conquista como una búsqueda masculina dei Otro
femenino.
El conquistador Lope de Aguirre vuelve a la vida, y lleva a
cabo una serie de encuentros sexuales que son a menudo poco
satisfactorios o peNersos y que no se mencionan en las crónicas. Estos
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
247
incluyen violaciones, necrofilia, incesto, y prostitución.
Además, las
aventuras eróticas dei conquistador tienen sus paralelos en los cambios
políticos y culturales que se dan en Amércia Latina. Así, Daimón, como
otras novelas de los anos sesenta y setenta que tratan el tema de la
conquista, intenta mostrar cómo los problemas contemporáneos tienen
sus raíces en la historia de la región. La novela critica lo que Posse llama
la "eterna adolescencia" de la región (Gorda Pinto 1989, 500) ai descubrir
en su historia y su cultura un complejo edípico todavía no resuelto.
Por otra parte, la manera en que Posse trata el erotismo en Daimón
es píoblemática.
Poí media de ün píoceso de 1nveísión paíódica, el
autor asocia la represión sexual con la "barbarie", y la "civilización", con la
libertad sexual. Sin embargo, aunque parodia la idea de Freud de que la
represión erótica es un prerrequisito indispensable para la civilización,
presenta el erotismo como un impulso peligrosamente rebelde y
asociado con la voluntad ai poder. La manera de Posse de presentar a
los personajes femeninos es aún más ambígua.
Aunque invierte la
evaluación dei arquetipo de la virgen y la prostituta, presentando ai
personaje de la prostituta de manera positiva, el uso de degradación
paródica sirve para reforzar estereotipas misógenos.
Una causa de este pioblema es e! uso de la "parodio
postmoderna" (abundantes alusiones paródicas a otros textos, los cuales
muchas veces son citados en contextos radicalmente diferentes), lo cual
es una característica de las narraciones postmodernas que Linda
Hutcheon li ama metaficción historiográfica 1 • Estas novelas adoptan las
1
Aunque es verdad que el posmodernismo no existe en América Latina en el sentido de
Jameson de un producto cultural que "expresa la verdad interna dei orden social que
recientemente ha emergido dei capitalismo tardio" [Jameson 1983, 113}. ya que el
capitalismo tardio no existe allí. muchas de las descripciones de las prácticas
248
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
convenciones de la historia y la ficción realista para socavarias, incluyen
importantes figuras históricas como personajes, falsifican a propósito
detalles históricos bien conocidos, incluyen cultura popular, y se
preocupan [Hutcheon opina que están "obsesionadas") por la cuestión
de la perspectiva dei historiador ["de quién es la historia que sobrevive",
Hutcheon 1988, 49-50).
Hutcheon alega que el tono irónico de la
"parodia posmoderna" hace que la metaficción historiográfica sea
inherentemente ambigua. Posse ha hecho hincapié en la importancia
dei erotismo en la conquista, y su técnica principal para elaborar las
huellas dei erotismo en las narraciones históricas y ficticias anteriores de la
expedición de Aguirre es la parodia. Si se examina la relación entre el
erotismo y la historia en Daimón, se comprenderá mejor la ambigüedad
inherente en el uso que hace Posse de la parodia en esta novela.
Posse no pretende funcionar en un vacío !iteraria o histórico: más
bien le fascina resaltar sus modelos. Por ejemplo, hace hincapié en la
relación entre Daimón y las crónicas de las expediciones que hicieron
Orellana y Ursúa ai Amazonas.
El Escribano está escribiendo su propia
crónica que incluye citas de la Relación de la Jornada de Pedro de
potmodernos (Hutcheon, Collins, Hosson) se hon bosodo en lo literatura latinoomericana
dei Boom y el post-Boom (Rutfinelli 1990, 33). José '=>aquín Brunner ofrece la explicoción
más convincente de esto, es decir, que lo experiencio lotinoomericono de la
modernidod es de uno frogmentación que se expreso como "postiche",: "esto es, una
configuración heteróclita de elementos tomados virtualmente de cuolquier porte, pero
siempre fuero de su contexto de origen (Brunner 1988, 198). Según Brunner, o menudo
la cultura Occidental de Américo Latino tomo la formo de un "pastiche" que no es
irónico ni paródico. Sin embargo, también puede adoptar una perspectivo más
distanciada hacio los elementos que incluye. Es este tipo de obra que corresponderia o
lo que se llomo el posmodernismo.
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS].
249
Orsua a Omagua y a/ Dorado2
-
de Francisco Vázquez; otras referencias
sugieren un conocimiento o de la historia de Toribio de Ortiguera o de
una relación anónima que se cree que fue escrita por un sobreviviente
de la expedición, y la descripción dei encuentro de Aguirre con las
amazonas sugiere que Posse ha leído la crónica de la expedición de
Orellana escrita por Gaspar de Carvajal 3 •
Es verdad que estas relaciones no hacen referencias explíctas dei
papel dei erotismo en la conquista, ni presentan una motivación 4 erótica
para los conquistadores. Esto no es sorprendente, ya que fueron escritas
para cumplir con una obligación de informarle ai rey de acciones que se
llevaban acabo en su nombre en las Américas (Mignolo 1982, 71 ) o para
disculpar la participación dei autor en actos de rebelión en contra dei rey
(Pastor 1983, 412).
Sin embargo, no falta un elemento de erotismo. Las crónicas de la
expedición de Ursúa describen un episodio en donde dei orden se posa
ai desorden y termina con la aparente resstauración dei orden 5 . La causa
dei trastorno es la presencia de lnés de Atienza, la amante de Pedro de
Ursúa.
Como nota Pastor, las crónicas presentan a lnés como posible
causa de la transformación de Ursúa de un conquistador modelo a uno
que descuida sus deberes militares para mejor satisfacer sus deseos
2
Además, Posse ha dicho que hizo mucho trabajo de investigación historiográfica antes
de escribir la novela (García Pinto 1989, 500).
3
Pastor muestra la transición de la transgresión dei orden establecido a su "restauración
ficticia" en la crónica de Vázquez (41 7-424).
5
En 'Daimón, Lope de Aguirre lleva a cabo una transformación similar, dei guerrero de
la primera parte de la novela "La epopeya dei guerrero", ai amante de la segunda, "La
vida personal".
250
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
personales 6 . Los soldados que participaron en la expedición creían que o
lnés había hechizado a Ursúa, haciendo que él se olvidara de sus
deberes
v finalmente llevándolo a la muerte, o que ella era responsable
porque era una mujer "mala" o "inmorol": "uno le decio puta
v otro
le
deçio que ella abio muerto ai governador con echiços" (Crónicas, 194).
Aguirre también parece hober pensado que lo mujer sin honra era lo raíz
de todo mal.
Tonto Vázquez como Zúniga le atribuven a él este
sentimiento: "Decio este tirano[ ... ] que habia de matará todos las malas
mujeres de su cuerpo, porque estas eron cousa de grandes moles
v
escándalos en el mundo, é por una que el gobernador Orsúa habio
!levado consigo habian muerto á él vá otros muchos" (Crónicas 238; 22).
Aunque los cronistas presentan a lnés como la causa de rinas
celosas entre los soldados después de la muerte de Ursúa, a veces
parecen estar inseguros si lnés era realmente una "mola mujer'' o si en
cambio el "problema" era simplemente su gran belleza.
El grado de
comprensión que le muestran varía desde la crónica de Hernández, ai
cual claramente le da lástima la incómoda situación de lnés después de
la muerte de Ursúa (Crónicas, 194) hasta lo de Ortiguera, el cuol adopta
un tono más vindicativo, estructurando su narración explícitamente en
torno ai tema de la honra/deshonra femenina. Para él, lnés de A tienza es
un modelo de la deshonro
v lo causa de grandes maldades: "v cierto se
cree que si Pedro de Ursúa no !levara esta dona lnés, se poblara la tierra
se excusaran grandes donos, [... ]
v
en efeto fué total principio
v
v
6
Aunque ambas mujeres mueren a estocadas, Ortiguera distingue claramente entre la
muerte de lnés, la cual le parece el justo castigo por su papel como la fuente dei mal,
y la muerte de Elvira, que era cruel y no necesaria, yo que ella era inocente y podía
haber entrado en el convento.
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
251
destruicion de la jornada, y ai cabo murió cruel y tiranizadamente á
estocadas y sin confisión, porque no quedase sin castigo" (Crónicas 46).
Por otro lado, Elvira, la h'1ja de Aguirre, encarna la honra femenina.
Las crónicas la presentan, por lo general, como una joven mestiza, como
una doncella, o como inocente (Crónicas 279), ocasionalmente la
presentan como una influencia que humaniza a los soldados (Crónicas
253). Cuando Aguirre la mata, es su crueldad más perversa; es un tirano
y un demonio (Crónicas 149-150, 268).
En la versión de Ortiguera, el
demónico Aguirre le explica a su hija virgen que la va a matar para
preservarle la virtud: ["para que ningun bellaco goce de tu beldad y
hermosura" (Crónicas 149)].
La desventurada víctima coe de rodillas,
pidiendo misericordia y ofreciendo meterse de monja para rezar por él.
No obstante, el cruel tirano la mata a estocadas, ya que para él la
virginidad femenina es igual a la honra.
Por lo tanto, la presencia
deshonrosa de dona lnés en la expedición !leva finalmente ai sacrifício
de la inocente víctima, Elvira 7 • La sexualidad femenina desenfrenada y los
sentimientos eróticos que ésta evoca en los hombres de la expedición
son las raíces dei desorden y la rebelión, pero aún una virgen como Elvira
provoca cierta preocupación. El tema de la honra femenina no aparece
en la relación anónima, pero está presente en todas las otras crónicas
que he examinado.
Lo que Posse hace, finalmente, es invertir la idea de que el
erotismo femenino es la raíz de todo mal (especialmente por medio de
7
En la novela de Ramón J. Sender La aventura equinoccia/ de Lope de Aguirre, los
otros personqes desprecian a lnés por su origen racial: "Dona lnés era una cholita de
esas que encalabrinan ai mismo San Antonio y no había nacido para esposa ni madre
como las hembras de Sevillo" (267). Sin embargo, en Oaimón no hoy ninguna mención
dei origen mestizo de lnés. La vemos por media de Aguirre, el cuolla tiene idealizada.
252
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS].
su tratamiento de la prostituta la Mora). Sin embargo, comparte con los
cronistas la idea de que el erotismo es una fuente de desorden.
De
hecho, Posse se aprovecha dei tema dei erotismo que sugieren las
crónicas, y lo matiza por media de una sensibilidad postf reudiana y
postmoderna, refundiéndolo para sus propios fines paródicos.
En
Daimón, el deseo sexual es un reta a todas las formas de orden, una
fuerza subversiva ocupada eternamente en una lucha contra las fuerzas
de represión política y sexual.
Por media de un proceso de inversión y
elaboración hiperbólica, Posse parodia las narraciones históricas de la
rebelión de Aguirre y las narraciones fictícias que se basan en ellas. Por
ejemplo, el personaje Elvira se asemeja a la hija de Aguirre; es mestiza,
como el personaje histórico, y tiene aproximadamente la misma edad
que la Elvira histórica en el momento de su muerte.
En la versión de
Ortiguera, Aguirre pretende que la mata por el gran amor que le tiene
["porque cosas que yo tanto quiero no venga a ser colchon de vellacos"
(Posse 1981, 279)].
Posse finge comprender ese amor de manera literal,
interpretando la muerte de Elvira como un resultado extremoso dei deseo
incestuoso reprimido, y hace que su Aguirre sucumba a la lujuria.
Una idea similar aparece en la película de Werner Herzog "Aguirre,
la ira de Dias," pero hay diferencias importantes entre las dos obras.
Como bien senala Aleida Anselmo Rodríguez, en la película, Flora (la hija
de Aguirre), se muere,cuando una flecha indígena le atraviesa el pecho,
en una alusión a la iconografía católica dei Amor Divino. La diferencia no
estriba solamente en que Aguirre no mata a su hija, sino que también
declara que desea casarse con ella y fundar la dinastía más pura jamás
vista en la tierra.
Así que pretende tomar el lugar de Dios, quien, por
media de la Virgen, dará a luz a un hijo (Rodríguez 1989, 236). La versión
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
253
de Posse, en cambio, subraya el lado demoníaco de esta competencia
con Dios: Aguirre está bastante consciente de la falta de pureza en su
relación incestuosa.
Además, en vez de ser un representante dei
imperialismo europeo, Aguirre se convierte en una figura de rebelión
americana.
Y Elvira, la cuaL en la película de Herzog como en las
crónicas, era la inocencia en persona, es, en cambio, un ejemplo de
complicidad perversa.
Cuando Aguirre se encuentra con ella durante la lndependencia
latinoamericana, mira las heridas en su cuello que causó con las
estocadas y, en una c!ara parodia det pathos de !a novela romántico dei
siglo diecinueve, se emociona. Con gran ternura trata de disculparse por
lo posado: "Tal vez no he sido el mejor padre ... no lo niego ... ," comienza,
como un padre de familia arrepentido por no haber cumplido por
completo con su deber. Elvira lo mira intensamente de una maner a que
el narrador califica como inapropiada, y habla "con una voz tal vez
demasiado íntima y no filial" (Posse 1981, 178).
La eterna adolescencia de Elvira es aparente en su cuerpo
siempre juveniL que el narrador compara insistentemente, pero también
con humor, a las bellezas de la naturaleza. También, es clara por sus
reacciones ai mundo que la rodea. Proclama a voz en cuello su apoyo
a la igualdad racial; mientras tanto, calladamente excluye de su casa a
los indígenas, los negros y los mulatos.
Y cua ndo su esposo es
encarcelado y torturado bojo una dictadura militar dei siglo veinte,
alegremente hace las maletas para salir ai exilio a Europa, contenta de
tener la oportunidad de estudiar bel canto.
La fascinación de Elvira con la cultura europea es evidencia de su
falta de independencia, como también lo es su complicidad contínua
254
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
con el posado incestuoso que la liga con su padre. Freud opinaba que
este tipo de adoración infantil ai padre por parte de una hija adulta era
sintomático de un complejo edípico no resuelto (Freud 1989, 673). Según
Freud, culminaba en el deseo de la hija de tener un bebé con su propio
padre. En el caso de Elvira, este "deseo" se realiza, lo cual muestra de
nuevo que Elvira se queda en un estado de adolescencia perpetuo.
La
inmadurez de Elvira y su complicidad representan una crítica a los
miembros de las élites liberales y mestizas de América Latina.
Por un
lado, les hace falta madurez tanto política como cultural. Por el otro, su
admiración
por
los
modelos
europeos
no
pu ede
disfrazar
responsabilidad por los sistemas injustos que pretenden despreciar.
su
Sin
embargo, la parodia bienintencionada de la virtuosa Elvira de las
crónicas se basa en la idea de que ésta es cómplice dei incesto. No
habría humor si el narrador hiciera hincapié en el sufrimiento de Elvira,
mas la idea de que goza de la memoria de la relación incestuosa nos
!leva a la vieja mentira de que las mujeres gozan en secreto cuando se
abusa de ellas.
Posse lleva a cabo un proceso de inversión paródica si mil ar con
lnés de Atienza, la amante de Ursúa. Como ya hemos visto, lnés no es
una figura idealizada en las crónicas. Aunque la alaban repetidas veces
por su gran belleza, la presentan como una mujer de inquietante
encanto erótico o aún como de boja moral o manipuladora.
invierte esta situación.
Posse
Su Aguirre idealiza a lnés, viéndola como una
belleza fría y aristócrata 8 , pero cuando se entera de su aventura amorosa
8
Aparentemente, Posse adopta el nombre Cofíori de la novela de Sender. en la cual
un indígena avisa a los espafíoles que deben tenerles receio a las amazonas. El
narrador lo cita como sigue: "Reciquié cutían puiara" (261 ). Entonces. el narrador
explica que el nombre Cofíori se basa en un malentendido que tuvieron los espafíoles
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
255
con el vulgar dictador y torturador Carrión (su contrincante socialmente) la
degrada con fantasías de violación sadomasoquista.
En cuanto a la
crítica social, el resultado parece claro: lnés representa a los aristócratas
derechistas que apoyan las dictaduras militares, cuyos sermones, según
la novela, disimulan un amor secreto por los tiranos sádicos. Este
tratamiento de lnés se lleva a cabo por media de una padodia !iteraria
que manipula el ideal dei amor cortés, y las convenciones de la poesía
dei amor cortés, el modernismo y las novelas dei romanticismo. Posse
caracteriza la tendencia romántica en la literatura latinoamericana como
un delicado velo que cubre una degradada realidad de violación
necrofílica y sadomasoquista.
Por ejemplo, el lector descubre que
Aguirre ha assesinado a la bella lnés porque no pudo expresar su amor
por ella.
El tema de la falta de comunicación continúa cuando lnés,
después de renacer, participa en un juego "sin palabras" con Aguirre.
Como las pálidas y pasivas heroínas de la novela romántica, lo espera,
sangrando "dulcemente", con sus "marvellosos muslos" bri llando bojo la
luz de la luna y con una expresión indescifrable en la cara. Cuando la
viola Aguirre, ella acepta este "homenaje" dei enamorado torpe que por
su excesiva timidez fue incapaz de declarar su amor ["iHaber hablado a
su tiempor' (41 )].
Lo
''tenderse sobre ella".
vio!ación necroff!ico se convierte en un tierno
Mientras ella se queda en "el sereno remanso",
Aguirre lucha en vano por alcanzar "la mayor delicia", contra el calor de
su choza ardiente y "la inminente frialdad de la muerte", EI resultado final
es "Coitus interruptus in aeternis " (Posse 1981, 41 ).
dei nombre de uno de los afluentes dei Amazonas, el río Conhuris: "Y la reina de ellas se
llamaba coiiopuira (escribe ingenuamente fray Gaspar]. Su nombre verdadero era
Cuiianpu-iara" (Posse 1981. 262-63). Sin embargo, el chiste es de Sender, ya que esta
información no aparece en las crónicas.
256
LETRAS - Revista da Curso de Mestrado em letras da UFSM (RS).
El uso que hace Posse de las convenciones de la poesía dei amor
cortés [las llamas y las heridas amorosas, el homenaje, la nobleza
aristocrática) y dei romanticismo (la pasiva víctima dei amor, y el amor a
ella después de muerta; la luz de la luna) sugieren que a Posse le interesa
una tendencia más generalizada en la literatura hispana a sentimentalizar
un posado brutal ai presentaria como amor puro.
Posse devuelve el
erotismo ("el cuerpo") a los textos supuestamente castos de la literatura (y
la historia) latinoamericana en parte para burlarse de la idea de que la
violación necrofiliaca sea el amor verdadero disfrazado, el amor que no
ha podido decir su nombre. El problema de lnés y Aguirre se convierte en
un problema de comunicación.
Sin embargo, no es ella la que ha
malentendido sus intenciones, sino la literatura latinoamericana, ai tratar
de disfrazar cadáveres, presentándolos como evidencia dei amor no
declarado.
Posse pretende que el estereotipo dei aristócrata degradado
resulte divertido. Obviamente, el narrador no está presentando su propio
punto de vista sino el dei personaje; es porque Aguirre ha idealizado a
lnés que él se rinde enojado a la fantasía de violaria. Sin embargo, este
juego sirve finalmente las intenciones alegóricas de Posse.
mostrar a la aristocracia "entrepernarse" con el tirano.
Necesita
Por la misma
razón, lnés tiene que buscar ai verdugo Carrión y gozar de su propia
violación. La alegoría requiere que a los dos personajes femeninos se les
degrade por media dei uso paródico dei incesto y e! sadoerotismo. Pera
el texto no lleva a que el lector cuestione las ideas misógenas en las que
se basa la parodia, ya que si sugiriera éste que los personajes est uvieran
sufriendo o que no estuvieran de acuerdo con el tratamiento que reciben
acabaría con el efecto humorístico que busca el autor.
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
257
Aun cuando la novela trata a los personajes femeninos de manera
positiva, como en el caso de las Amazonas, asocia con ellas cualidades
que son estereotípicamente "femeninas".
Ya que las crónicas de la
expedición de Ursúa, en la cual participó Aguirre, contienen poca
información acerca de estas guerreras míticas, Posse utiliza la crónica de
Carvajal que trata de la expedición de Orellana, y la novela de Ramón
Sender La aventura equínoccia/ de Lope de Aguirre como pretextos para
incluir a las amazonas en la novela. Carvajal describe su pelea contra
unas fieras guerras amazónicas, altas mujeres blancas que "andan
desnudüs en cuerosl tapados sus vergüenzaslf (Carvajal 1542, 3ó3).
Cuando los personajes de la novela de Sender llegan ai lugar donde
Orellana y sus hombres deben haberse encontrado con las amazonas,
descubren un esqueleto, que les parece de una amazona. Esto lleva a
los personajes a criticar la reacción de los espanoles frente a las
amazonas. "Había que tener cuidado, pero no la clase de cuidado que
tuvo Orellana, sino otro muy distinto" (Sender 1962, 261 ), comenta el
narrador.
Sin embargo, mientras que en la versi ón de Sender las
posibilidades de un encuentro con las amazonas sigue siendo una ilusión,
en Daímón, el sueno de los espanoles se vuelve realidad.
Las amazonas a !as que conocen !os hombres de
セLァオャイ・@
encarnan fantasías masculinas. Andan cosi completamente desnudas,
mostrando sus pechos firmes, adoran bojo la luna llena lo que parece ser
un monumento fálico, y suenan con el embarozo. Su reina es "la reina
Cunan (que otros llamaban Conori)" (Posse 1981, 61 ); hasta su nombre la
asocia con los genitales femeninos 9 • En esta inversión de los tradicionales
9
Tampoco las fuentes históricas que usó Posse sugieren que las amazonas hayan
castrado a sus enemigos.
258
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
papeles de hombres y mujeres, las amazonas "conquistan" a los
espanoles reprimidos. La reina y sus princesas saben el "arte" dei beso y
la "ciencia" dei amor, y dejan a sus temorosas parejas espanolas gritando
de placer.(Posse 1981, 66).
Aunque ai principio los espanoles logran calmar su angustia, sufren
de un gran miedo de castración. Se dice que una vez que las amazonas
queden embarazadas, los soldados tendrán que unirse a los eunucos
esclavizados que sirven a las guerreras (otra inovación de Posse). "iUna
vez fecundadas nos devorarán!" les avisa el verdugo Llamoso (Posse
1981, óO): Glo haián con los dientes, como se decfa?)" pregunta el
narrador, socarrón (Posse 1981, 57). En el mundo de las amazonas con
sus eunucos esclavizados, la castración podría parecer un peligro, pero
no hay nada en el comportamiento de las amazonas, que de por sí es
bastante pasivo, para que la amenaza sea creíble 10 . A pesar de la
presencia de los eunucos, el narrador trata la amen azo de castración
con humor e ironía.
De hecho, según los indígenas, es el cristianismo lo que castra a los
espanoles: "su estúpido dios parecía tenerlos agarrados de los genitales"
(Posse 1981, 58-59). Como Freud en La civilización y sus descontentas,
consideran el primer poso hacia la civilización.
Aunque los soldados
logran por un tiempo suprimir su exagerado miedo a ser castrados y los
sentimientos de culpa inspirados por su religión, con el tiempo sucumben
a ellos. La falta de obstáculos los inquieta; quieren ser ellos los que inician
las relaciones y los transgresores; las mujeres deben ser algo prohibido, o
10
"La selva trastorna ai hombre, desarrollándole los instintos más inhumanos" (Lo
vorágine, 139).
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
259
por lo menos deben resistirse.
Con el tiempo la desnudez de las
amazonas deja de excitarias y disminuye sus fantasías eróticas. Aburridos
con el sexo (o temerosos de él), los soldados se dedican a pasatiempos
con los que se sienten más cómodos. los juegos de naipes y la guerra.
Por fin, aunque las amazonas se quedan pasivas frente a las agresiones
espanolas, los soldados abandonan el paraíso dei placer sexual.
mencionando su miedo de "una espantosa castración ritual" (Posse 1981 ,
75). Así Posse parodia actitudes machistas hispanas, sugiriendo que a
pesar de sus poses, los soldados prefieren la amistad masculino a las
relaciones sexuales con una mujer.
Igual como las míticas amazonas
evitan la companía masculino salvo para procrearse. estos soldados
buscan el acompanamiento femenino sólo para breves encuentros
sexuales.
De esta manera Posse presenta la cultura de las amazonas como
la inversión de la cultura patriarcal espanola, un hecho que, según Alison
Taufer, es típico de la tradición de las amazonas en la cultura Occidental.
En su análisis de las amazonas en el ciclo de Amadís, Taufer sostiene que
"el personaje de la amazona les servía a los espanoles como un modelo
para comprender y tratar con culturas extranjeras ai presentarias como el
opuesto de la civHización europea" (Taufer 1991, 36). Afirma que este
modelo fue adoptado después por los cronistas espanoles para
conceptualizar el Nuevo Mundo.
En primera instancia parece que Posse !leva el modelo a otro nivel
ai presentar la refinada cultura de las amazonas como superior a la
espanola. Sin embargo, aunque los espanoles están restringidos por su
absurdo miedo a la sexualidad femenina y su incapacidad de
experimentar placer erótico sin transgresión, la reina de las amazonas
LETRAS Revista da Cursa de Mestrado em Letras da UFSM (RS].
resulta tener un defecto fatal, su pasividad. A pesar de toda la evidencia
que ofrece el texto de la superioridad cultural de la civilización amazona,
Cunán, como todos los personajes indígenas de la novela, está asociada
con una pasividad excesiva que es, finalmente, suicida. Sin embargo, la
forma que adopta la pasividad depende dei género dei personaje.
Huamán, el amauta y gurú inca, inicia a Aguirre en una filosofía de
resistencia pasiva, mientras que Conori, de acuerdo con su nombre, sólo
le puede ensenar a hacer el amor.
La reina dominada por sus
sentimientos coe en una pasividad tal, que provoca la extinción de su
civilización. Cuando, muchos anos después, Aguirre vuelve a la laguna
de las amazonas, descubre que está completamente contaminada por
las letrinas de los obreros dei caucho, y las amazonas ya no se
encuentran en ninguna parte.
A pesar de que Posse usa a menudo la inversión paródica en
Daimón, cosi siempre vuelve a caer en el uso de estereotipas
tradicionales de los géneros.
No obstante, hay por lo menos una
excepción: la erotización dei medio ambiente. En este caso, aunque la
parodia se basa en estereotipes de los géneros, sirve para cuestionar
conocidos mitos culturales.
Pastor hace notar que en sus crónicas, los
sobrevivientes de !o expediclón de Ursúa hacen hincapié en las
dificultades causadas por la hostilidad dei medio ambiente selvático
(Pastor 1983, 391-92). Posse transforma este poder hostil en un estímulo
que adquiere un carácter obsesivo. Por ejemplo, cuando los soldados
de Aguirre llegan a El Dorado, encuentran dunas doradas que les
parecen senos ["Dunas lisas y tersas.
lnmensos tetones áureos" (Posse
1981, 128)], las cuales ellos besan (y que, como todo lo relacionado con
el erotismo, los hace sentirse culpables). Es así como los conquistadores
LETRAS- Revista do Cursa de Mestrado em Letras do UFSM (RS].
261
experimentan el Nuevo Mundo, abrumados por su belleza y aterroriza dos
por su increíble fertilidad.
Un modelo importante para la erotización dei medio ambiente
presentado como de género femenino es la famosa novela de José
Eustacio Rivera La vorágine [1924).
El precursor de Posse asociaba la
selva con la procreación y la sexualidad; Posse no solamente le hace
eco sino que se va más aliá dei modelo.
Por ejemplo, mientras que
Rivera describe "flores inmundas que se contraen con sexuales
palpitaciones y su olor pegajoso emborracha como una droga" [Rivera
1942, 182), Posse hace que el Cura y el Escribano copulen con aquellas
flores ["Las silenciosas expediciones dei Cura y dei Escriba no [ ... ] para
acoplarse a las sedosas orquídeas contráctiles que los devolverán
extenuados ai amanecer" [Posse 1981, 40)], pero en su descripción se
omite la evaluación negativa ["inmundas"] y en lugar de censurar la selva,
censura ai mojigato Aguirre.
Posse reevalúa la representación de la selva que según la novela
de Rivera es un infierno de sexo vil, sádico, impuro y hasta perverso, el
lugar que anima a los hombres a ceder a sus impulsos más
degradantes 11 •
Una
referencia,
en
particular,
muestra
como
la
perspectiva de Posse se distingue de la de su precursor. En La vorágine,
cuando los personajes se dan cuenta de que se encuentran perdidos en
la selva amazónica, ven "la visión de un abismo antropófago, la selva
11
Hay otra posible referencia; en el ensayo "De lo real maravilloso americano",
Carpentier describe lo que pasó cuando el artista francés André Masson trataba de
dibujar la selva de Martinique: "con [ ... ] la obscena promiscuidad de ciertos frutos, la
maravillosa verdad dei asunto devorá ai pintor, dejándolo poco menos que impotente
frente ai papel en blanco" (116). Esta sugiere que Posse también pretende parodiar la
idea de que los artistas europeos sufren dei miedo edípico a la castración, algo que
supuestamente no afecta ai artista americano.
262
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS),
misma, abierta ante el alma como una boca que se engulle los hombres
a quienes el hambre y el desaliento le van colocando entre las
mandíbulas" (Rivera 1942, 192) 12 . Posse sexualiza esta visión dei abismo
caníbal.
Cuando Aguirre y sus hombres gozan dei felatio con las
amazonas, el narrador de Daimón
describe su reacción como sigue:
"Cedían a la tentación de la delicia superando el abismo de miedoancestral en el hombre blanco---a la antropofagia, el miedo a la
traicionera castración de la leyenda o a la magnitud pecaminosa dei
hecho" (Posse 1981, 66). Esta descripción evoca pero ai mismo tiempo
contradice el "abismo antropófago" de Rivera. Así Posse transforma el
abismo metafórico, un bostezo que se abre ante las almas de los
hombres perdidos en la boca de una mujer que está practicando el
felatio. El miedo de ser devorado por la selva se convierte en un miedo
de castración, infundido e inducido por nociones religiosas de pecado y
tentación. Los soldados están reprimidos por la religión que considera el
placer ["delicia"] como pecado, y tienen un complejo edípico todavía no
resuelto que los ha dejado con un "miedo ancestral a la castración".
La forma en que Posse reescribe las descripcion es de la naturaleza
de La vorágine enfatiza la idea de que su precursor se ha equivocado.
La naturaleza "corrompe" a los europeos, pero ese efecto es beneficioso.
Les anima a librarse de la extremada (bárbara) represión sexual. Por lo
tanto, el problema no son las amazonas, ni la sexualidad, ni la selva, sino
las represiones religiosas de la civilización europea.
Por supuesto, esto
12
Aquí se aplica la definición que hace Hutcheon de la parodia como "imitación
caracterizada por una inversión irónica" o "repetición con distancia crítica" (Hutcheon,
8). Posse no lleva a cabo una "imitación nostálgica de modelos dei posado", sino "una
confrontación de estilos, un uso de códigos nuevos y modernos que establece la
diferencia en el corazón dela similitud" (Hutcheon, 8).
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (RS).
263
controdice el concepto que tenío Rivera de lo función positivo de lo
civilizoción ai limitar los peligrosos excesos dei cor ozón solvoje 13 •
A pesar de los comentarias que hace Posse acerca de la
importancia de la "salvaje" libertad erótica que experimentaron los
conquistadores, Doimón presenta el erotismo sin límites como una fuerza
peligroso. Esto es obvio especialmente en el último encuentro de Aguirre
con la prostituto la Moro, un personaje arquetípico que no se encuentra
en los crónicas, pero que (con su opuesto, la virginal Sor Angelo) es otro
avatar de la dicotomía de la virgen y lo prostituta. En el último capítulo
de la novela, Posse asocia a Aguirre con Che Guevara y a la Mora, con
lo guerrillera Tania (Tomara Bunke), que trabajaba con Guevara y su
guerrillo en Bolivia o finoles de los anos sesenta.
Lo que le interesa a
Posse es el mítico Guevara de la leyendo popular. La aventuro amorosa
de Aguirre con la Moro tiene paralelos con el supuesto romance entre
Guevara y Tania.
Después de que los dos murieron en 1967, hubo
muchas especulociones acerca de su relación.
Hubo abundantes
rumores de la posible complicidad de Tania en la muerte de Guevara.
Según olgunos, Tania era uno bella espía soviética que lo traicionó a
propósito;otros la considerobon la amante de Guevara que lo traicionó
sin querer por sus "indiscreciones" y su "falta de conducta profesionol"
(Welles 1968, 2).
13
Como slempre, la novela parodio lo "historia oficial", en este caso, la conoclda foto
perlodístlca dei cadáver de Che Guevara rodeado de los soldados y otros agentes que
habían participado en su captura y ejecuclón. [La foto aparece en la reclente biografia
de Guevara escrito por Jon Lee Anderson, entre otros lugares.] El narrador de Dalmón
menciona una foto supuestamente difundida por la Associated Press, que muestra ai
viejo ayudante de Agulrre. Nicéforo Méndez. junto ai cadáver de Tania en la costa de un
riacho. Otra vez, Posse ha cambiado la sltuaclón histórico de manera que el héroe
martirizado no es Aguirre-Guevora. sino lo Mora-Tania.
LETRAS Revisto do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
La cuestión de la traición es fundamental en Daimón, pero la
situación parece ser la opuesta a la histórica. En el caso de la novela, no
es la Mora-Tania que traiciona a Aguirre-Che, sino Aguirre que piensa
traicionar a la Mora. 13 Quiere utilizaria para derrotar a su rival, el místico
revolucionaria Diego de Torres cuya ideología de ascetismo (represiva y
de negación a la vida) Aguirre desprecia. AI transmitir su daimón erótico
a la Mora, quien a la vez "contaminará" a Torres, Aguirre podrá derrotar ai
rival.
En este caso, la Mora funciona como una descendiente de Eva,
corno el instiurnento dei diablo (Agüiííe) en la "cOííüpción" de TOíí6S, salvo
que ahora esta corrupción es presentada como algo que por la mayor
parte es positiva. Sin embargo, a pesar de que se disculpa a la
pecadora, el futuro es poco prometedor. Por un lado, la traición de la
Mora muestra que Aguirre no ha cambiado de manera fundamental.
Resulta que el impuslo erótico es rebelde precisamente porque nunca se
le puede satisfacer permanentemente, nunca aceptará ningún límite, ni
respeta nada. Mas se alía tan fácilmente con impulsos retrógrados con
los de Aguirre, como con el intento supuestamente revolucionaria de la
Mora (o de Posse) de renovar los códigos literarios ["renovar un juego de
claves secretos" (Posse 1981, 266)].
De la misma manera, se puede caracterizar el uso de la parodia
en Daimón como un acto de rebelión co"trn los modelos históricos y de
ficción, un intento revolucionaria de volver el cuerpo a los supuestamente
castos textos de la tradición latinoamericana.
Sin embargo, como
muestra el tratamiento de los personajes femeninos en la novela, el
erotismo literario de la parodia es tan ambiguo como el impulso dei
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
265
erotismo físico y emocional.
Aunque aparentemente Posse pretende
hacer un intento de renovación que sea liberador, la novela también
apoya sin querer los tradicionales estereotipas misógenos.
Bibliografia
Anderson, Jon Lee. Che Guevara: a revotutionary fite. Nueva York: Grove Press,
1997.
Aguirre, die Rache Gottes. Dir. Werner Herzog, 197 4.
Brunner, José Joaquín.
Un espejo trizado.
culturales. Santiago, Chile:
Carpentier, Alejo.
Ensayos sobre cultura y políticas
FLASCO, 1988.
"De lo real maravilloso americano."
Tientos y diferencias.
Montevideo: ARCA 1967. 102-120.
Carvajal, Gaspar de. Relación de! nuevo descubrimiento dei Río Grande por e/
capitán Francisco de Ore/lona. Historiadores de lndias. América de! Sur.
Comp. Angeles Masia. México: Bruguera, 1972. 321-389.
Freud, Sigmund. Civilization and lts Discontents. Trans. and ed. James Strachey.
New York: Norton, 1971 .
The Freud Reader. Ed. Peter Gay. Nueva York: Norton, 1989. Gorda Pinto,
Magdalena. "Entrevista con Abel Posse." Revista Ibero- americana 146-47
[1989): 494-506.
Hutcheon, Linda. A Poetics of Postmodernism. Nueva York: Routledge, 1988.
A Theory of Parody. The Teachings of Twentieth-Century Art Forms. Nueva
York: Methuen, 1985.
Jameson, Fredric. "Postmodernism and Consumer Society." The Anti-Aesthetic.
Essays on Postmodern Culture. Ed. Hal Foster. Seattle, WA: Bay Press, 1983.
111-125.
Leonard, Irving A. Books of the Brave. Cambridge, MA: Harvard UP, 1949.
266
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
Mampel González, Elena, and Neus Escandell Tur, eds.
Lope de Aguirre.
Crónicos 1559-1561. Barcelona: Universidad de Barcelona, Editorial 7 1/2,
1981'
Mignolo, Walter.
conquista."
"Cartas, crónicas y relaciones dei descubrimiento y la
Epoca
hispanoamericana.
colonial.
Vol.
I de Historia
Comp. Luis lnigo Madrigal.
de
la literatura
Madrid: Cátedra, 1982.
57-116.
Pastor, Beatriz.
Discurso narrativo de la conquista de América.
La
Habana:
Casa de las Américas, 1983.
Posse, Abel. Daimón. Barcelona: Argos Vergara, 1981.
"EI alucinante viaje dei doble descubrimiento." 1492-1992 A los 500 anos
de/ choque de dos mundos.
Ed.
Adolfo Colombres. Buenos Aires:
Ediciones dei Sol, 1989. 197-206.
Los bogavantes. Buenos Aires: Brújula, 1970.
Rodríguez, Aleida Anselmo. "Arqueologia de Omagua y Dorado." Disertación U
of Maryland, 1989.
Rivera, José Eustasio. La vorágine. Buenos Aires: Losada, 1942.
Ruffinelli, Jorge.
"Los 80: i-lngreso a la posmodernidad?" Nuevo Texto Crítico.
No. 6, segundo semestre de 1990. 31-41.
Sender, Ramón. La aventura equinoccial de Lope de Aguirre. 2nd ed. Madrid:
Magisterio Espanol, 1962.
Taufer, Alison.
"The Only Good Amazon is a Converted Amazon: The Woman
Warrior and Christianity in the Amadís Cyc/e." P/aying With Gender. A
Renaissance Pursuit.
Eds.
Brink, Jean R., Maryanne Horowitz y Allison P.
Coudert. Urbana, IL: U of IL P, 1991. 35-51.
Welles, Benjamin. "Woman Spy's Error Trapped Guevara." New York Times 15 de
julio de 1968: 1:2.
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS].
267
LA PENETRACIÓN DEL TEXTO: SEUDOCRÓNICA TESTIMONIAL
EN lA NOCHE OSCURA DEL NINO AV/LÉS
DE EDGARDO RODRÍGUEZ JULIÁ
VISTA DESDE INFORTUNIOS DE ALONSO RAMÍREZ
DE SIGÜENZA Y GÓNGORA
Erik CAMAYD-FREIXAS
Florida lnternationa University
La penetración dei texto
Un sesgo de autoridad textual se inscribe dentro de la ficción
latinoamericana en su apropiación
de las crónicas testimoniales
europeas. El simulacro de la verdad histórica sugerida por la mímica de
las formas discursivas no ficcionalizadas, si bien tomadas sólo medio en
serio en interés de la plausibilidad lúdica, se encontraba ya en la relación
protomoderna de Sigüenza en l 690 acerca de los afanes de un pobre
puertorriqueno en su azaroso periplo. Los lnfortunios es un recuento
anómalo de las crónicas de lndias, una épica invertida vista ahora desde
la perspectiva de un chamaco crioilo, reacio descubridor, Magallanes
boricua que circunnavega el globo en calidad de cautivo y lacayo de
piratas.
Y aunque de sucesos que sólo subsistieron en la idea de quien
los finge, se suelen deducir máximas y aforismos , .. entre lo
deleitable ... , no será esta lo que yo aquí intente sino solicitar
lágrimas que, aunque posteriores a mis trabajos, harán por lo
menos tolerable su memoria. (9; mi énfasis)
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS].
269
Esta retorcida declaración de propósitos no afirma la verdad ni
admite la falsedad. Una duplicidad de voces sugiere que la narración
autobiográfica es cierta para el personaje, si falsa para el autor. Es más
bien una penetración dei texto en un doble sentido: una entrada
discursiva de la plausibilidad lúdica en el texto y dei texto en el lector. La
seducción/rapto se consuma ai final cuando Afonso Ramirez entrega su
informe ai propio Sigüenza para que lo redacte y publique.
Trescientos anos después otro cronista puertorriqueno, Edgardo
Rodríguez Juliá, volveria a captar ese apretón de manos monieristo entre
autor y personaje (émulo de Mateo Alemán, Cervantes, Velózquez,
Sigüenza, Unamuno), en busca dei deforme cuerpo mocho dei Nino
Avilés, mítico fundador en l 797 de la fictícia ciudad de Nueva Venecia
-ese angelical y demoníaco microcosmos de San Juan- y objeto de
un retrato extranamente fascinante realizado por el Velázquez boricua,
José Campeche. La presencia dei autor en de su propio texto se realiza
ahora con un penetrante "Prólogo" a lo Borges, proyectado como ensayo
de arqueologia histórica, con notas ai calce y rigurosa crítica de
documentos fuente.
Aquella ciudad de leyendas y canales está ausente de nuestras
principales colecciones de documentos históricos. Pero su
fama fue escándalo y maravilla de aquella sociedad colonial
de hace dos siglas; a nosotros llega la imagen de un recinto ai
parecer reprimido por la memoria colectiva. Oculta por el
olvido renace ante nosotros la ciudad maldita .... La crónica
de González Campos pertenece a una colección de
documentos descubierta por el archivero Don José Pedreira
Murillo en el 1913 .... Algunos historiadores no le conceden
valor histórico alguno a los documentos de la colección
Pedreira. Se trata, según ellos, de una "historia apócrifo"
compuesta en torno a los paisajes visionarias dei genial pintor.
(ix-xi)
270
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
Como en Sigüenza, ni se afirma la verdad ni se admite la falsía;
hay sólo plausibilidad lúdica, rematada por la frase autorreflexiva sobre la
novela en sí, una "historia apócrifo" construido en torno a dos retratos de
Campeche (los dei Nino Avilés y el obispo Trespalacios) así como los
supuestos "paisajes visionarias" de Nueva Venecia salidos dei pincel de un
tal Silvestre Andino, sobrino y aprendiz de aquél. Pero antes que el
piadoso rococó de la escuelo de Campeche, estos paisajes (la novela
mismo) semejan las visiones demoníacas dei Bosco en E! jardín de las
delicias o el tremendismo barroco de los Suefíos de Quevedo.
Lo íunción dei prólogo en ias seudocrónicas testirnoniales es lo de
reclamar no tanto la verdad absoluta como lo plausibilidad histórica. En
los lnfortunios esto se consigue de inmediato con el modo autobiográfico
en boca dei propio Alonso Ramírez. No obstante, en la nota dei censor,
que aprueba la obra en virtud de su ejemplaridad pía, los esfuerzos dei
"sujeto" son igualados a las "laboriosas fatigas dei autor", y la escritura
misma, con el penoso viaje que ello relato. Semejante identificación se
intima en el prólogo de Rodríguez Juliá: "renace ante nosotros la ciudad
maldita" se refiere ai hallozgo de las crónicas cuyos retazos componen el
cuerpo de la novela. La ciudad es la novela, y la escrituro, el hallazgo. El
censor Ayerra contribuye ai crédito de la historia ai llamar a Alonso
Ramírez "mi compatriota" --aunque sólo debió conocerlo en la lectura. A
su vez, el prólogo de Juliá está firmado por un historiador que autentica
los documentos, un tal profesor Alejandro Cadalso, con fecha "9 de
octubre de 1946" -la misma dei nacimiento dei novelista, siendo el
historiador una de sus máscaras autorales.
Insistentes reclamos a la autenticidad hacen de las seudocrónicas
testimoniales textos prolijos en meta-narración. Valdría recordar aquí la
LETRAS- Revista da Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
271
distinción trazada por los formalistas rusos entre sjuzet y fábula (la historia
con todos sus pelos y senales como hubiese ocurrido en la vida real,
contra aquellos fragmentos que el autor escoge narrarnos). Lo mismo
aplica a la meta-narración, obteniéndose lo que llamo un meta-sjuzet y
una meta-fábula; esta última, los fragmentos justificadores que el autor
decide revelar, sirve para establecer la plausibilidad histórica. En cambio,
si el meta-sjuzet, si todo el meta-relato de justificación fuese contado, la
plausibilidad dei relato principal se vendría abajo. Inversamente, ai
retener parte de la evidencia meta -ficticia se crea una complicidad con
el lector, quien la acepta como a un hecho consumado. Luego el autor
amplía juguetonamente ese pacto de credibilidad como si probara sus
limites, o incluso los transgrede, parte en broma y exageración. El
resultado es lo que llamo plausibilidad lúdica.
En los lnfortuníos la meta-fábula no se completa hasta el final de la
obra, cuando Afonso regresa a México de su viaje de cautiverio para
contar su historia, sellando el pacto meta -ficticio. Los elementos de
autenticidad son: si Afonso de verdad existió, si en realidad cruzá los
mares, y si los sucesos dei viaje ocurrieron como éllos narra.
1
Finalmente,
está la cuestión de si el cronista Sigüenza corrigió, modificá o embelleció
1
La mayoría de los críticos acepta la existencia de Alonso Ramirez aunque no consta en
otro documento que la biografia novelada de Sigüenza. Es improbable que sea fictício
dada la dedicatoria ai virrey de Nueva Espana, de quien se dice que refirió el caso a
Sigüenza y tal vez encargó la relación. Mas no es ésta opinión general: el pretexto de ser
escriba por encargo de la "relación verdadera" de otro era un artilugio literario de moda
(Pérez Blanco). Algunos sucesos silos en las Filipinos son comprobobles y quizás muy
recientes para haber llegado a México por otra vío (Cummins). A lo más, esta verifica a"
Alonso hasta las Filipinas. De los piratas Donkin y Bell, sus presuntos apresadores, no ha
quedado mención; las descripciones luego de las Filipinas, hasta el regreso a Yucatán,
cuando se dan, son tan parcas que carecen de peso. Arrom, quien recalca el carácter
irónico y literario dei libra, admite que Alonso debió ser uno persona real, pero advierte
que también lo fueron Hamlet y EI Caballero de Olmedo (44-45).
272
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (RS).
el testimonio, transformando los hechos en ficción. Mientras que la
existencia de Alonso se da por sentada desde el comienzo y la sinceridad
de su relato es "protestada" a lo largo dei texto, indicias ai final senalan
posibles motivos para urdir, si no exagerar, la historia de sus tribulaciones .
. Con su narración, Alonso busca no sólo compasión de las autoridades
coloniales sino también favores materiales -táctica común a los
cronistas de lndias, notable por ejemplo en Bernal Díaz y no dei todo
.
ajena a Sigüenza 2 . Alonso incluso sostiene que visitó ai virrey Sandoval, el
cual apremiado por el relato lo envió donde Sigüenza quien "formó esta
Relación" y abogó por él. Se ordenó así que ai joven le fuera dado un
puesto naval por temporero hasta que se estableciera, y que fuera
premiado con el contenido dei barco que heroicamente rescatara de
piratas [Y que lo acusaban de robar) 3 . Un meta-sjuzet completo, sin
embargo, habría tenido que confrontar detalles como el parqué
Sigüenza [amén dei propio virrey) nunca se molestó en corroborar la
historia con los demás sobrevivientes, quienes supuestamente fueron
dispersados
por
Alonso
después
que
hicieran
declaraciones
a
autoridades locales más interesadas en incautarse el botín que en
averiguar la verdad [73). La meta-fábula sólo refiere de posada que
2 "Su Excelencio ... [m]ondóme (o por el afecto con que lo miro o quizá porque estando
enfermo divirtiere sus moles con lo noticio que yo le dorío de los muchos míos), fuese o
visitar o don Carlos de Sigüenzo y Gôngora, cosmógrafo y catedrático de matemáticos
dei Rey nuestro senor en lo Academia mexicano, y copellán moyor dei hospital Real dei
Amor de Dias de lo ciudod de México (títulos son éstos que suenon mucho y valen muy
poco ... )" (75). Poro uno perspectivo de lntortunios como reescrituro de Bernol Díoz, véose
o Ross.
3
El botín es lo moyor incongruencio dei relato. En el cop. IV, Alonso alego que los piratas
lo liberoron en uno fragata vacía. En el VI. a raíz de su noufragio en Yucatán, nos ofrece
un inventario de su reclamación: 9 coiíones, 2000 proyectiles, toneladas de plomo,
estoiío, hierro y cobre, jorras de porcelana chino, 7 colmillos de elefante, etc.
LETRAS - Revisto do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (RS).
273
Sigüenza se encontraba "enfermo" cuando le llegó la historia de Alonso
(75), excusándose así de investigar más a fondo. En cuanto ai
embellecimiento dei testimonio podemos citar la equilibrada prosa dei
erudito autor ai estilo de Gracián, inconcebible en su inculto sujeto; la
adaptación dei relato a ciertos cánones genéricos de su tiempo (''formá
esta Relación"), en particular la crónica y la picaresca; y la inversión de
esta última que convierte a Alonso de un potencial Lazarillo en un Job
bíblico, satisfaciendo el ideal de edificación moral que tanto complació
ai censor. Luego, están esos complejos rumbos de navegación que
...-..lir-!Ar-+ir-1""11 \, ,.....,..,.l"i
UIUUI....diVU
y
VUVI
i,-.,,-...+-.-.r-i.-...r-,.....,....,...,..-...-.+.-..
jU\...IUI 1\...dVVUI I lVI li V
... .-.. +.. ,....,.....,.,.....,......
VV
IIUL.Ul I
...... ,....,,.. +,...........r,....
tJVI
IUUV
,-...1
VI
n......,.,.....{+:,....,.....
íU\...IIII....U
, ,
Y
-.I
VI
Atlántico, propios de un cosmógrafo reaL matemático y cartógrafo como
convenía a la verdadera profesión de Sigüenza. En pocas pala bras, e I
autor está ampliando el pacto meta-fictício. Curiosamente, el virrey, a
quién Sigüenza dedica el libro, sólo reaparece ai final dei relato, como
"Su Excelencia" (cfr. el "Vuestra Merced" dei Lazarillo). "Su Excelencia" es
aquí el lector último, árbitro y juez dei meta-relato, la autoridad tras el
texto, a quien ha de remitirse cualquier duda de la lectura; es decir, si él
admite la historia, también ha de admitiria el lector. En su dedicatoria
Sigüenza lo elogia y le suplica que acepte el libro, como antes el relato
oral de Alonso, pero también le está rindiendo informe de su
investigación, ya que aquél había acogido la historia de Alonso por
compasión, remitiéndola a Sigüenza, ai parecer, para una verificación
experto. La peritación de Sigüenza favorece la historia de Alonso (y su
inocencia), ofreciéndole ai virrey este alegato: "confiado desde luego,
por lo que me toca, ... en la crisis altísíma que sabe hacer con espanto
mío de la hídrografía y geografía dei mundo" (4). Es decir, Sigüenza
defiende la historia basado en su mayor inverosimilitud: la ostentación
274
LETRAS -Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
técnica
v científico que debió ser de su
propia factura. El rozonamiento,
como el viaje, es perfectamente circular: lo mós increíble deviene lo
base misma de la credibilidad 4 •
El carácter judicial
v legalizonte de las crónicas coloniales v de lo
picaresca testimonial, estudiado por González Echevarría en Mito
v
archivo, opera también aquí. La narración de Sigüenza puede muv bien
leerse como acta notariaL testimonio pericial e informe sumario ai vir rev,
donde se recomienda la absolución de Ramirez. Mas en el plano de la
seudocrónica testimonial lo que realmente está en tela de juicio no son
los actos dei personaje, sino el propio meta -relato de plausibilidad
histórica. Es decir, lo que se busca no es la legitimidad judicial sino la
histórico, la obsolución dei relato (no dei personaje) por el lector (no por
un juez, ounque el lector implícito pudiera serlo. Es decir, la carga de la
prueba recae sobre la narración (meta-fábula)
v no
sobre los hechos
(s)uzet).
Esto es aun mós notable en el prólogo de Rodríguez Julió, donde el
juez no es otro que el historiador Cadalso, quien examina las pruebos
documentoles para lo outenticidad de las crónicas de Nueva Venecia ( v
de la novela). La plausibilidad histórica se establece de inmediato en los
seudocrónicas testimoniales mediante la presencia de personojes
históricos como Sandoval, el propio Sigüenza,
v otros que aparecen
en
lnfortunlos. Tales presencias deben considerarse parte dei meta -relato. Lo
mismo se consigue en Lo noche oscura
v su
prólogo, con los pintores
4
Es posible que Sigüenza remitiera a Sandoval justamente lo que éste queria leer,
máxime si fue un trabajo por encargo. El virrey era conocido por su compasión, como
"alivio de los pobres," ocostumbrado a "oir generalmente a todos en suma benignidad y
agosojo, sin dejar de consolar ai más miserable e infirmo" (Honke, Guía de tuentes
virreinales, 1: 174-6, en Cummins 302nl7). Sobre lntortunios como texto jurídico, véase a
lnvernizzi
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
José Campeche (1751-1809) y Luis Paret y Alcázar (1746-1799), el
almirante Nelson (1 758-1805), el obispo Trespalacios (m. 1799), el
gobernador Ramón de Castro (a partir de 1795), y el propio Nino Avil és
(n. 1806). Los demás personajes, sus crónicas, testimonios y bibliografía
son fictícios: el obispo Larra, los cimarrones Obatal y Mitume, el
Renegado, el cronista Gracián, las fuentes evidenciarias aducidas en el
prólogo, el archivero Pereira y el pintor leproso Andind. Sin embargo, el
lector incauto quedaría convencido por la profusa documentación,
aunque ésta apunta a fuentes ficticias 6 -un uso deliberado de apócrifos
que recuerda a Antonio de Guevara o a Jorge Luis Borges. El resultado es
la penetración de la ficción dentro dei meta-relato de legitimación. Lo
que comienza como ensayo histórico deviene pesquisa novelada; y ya
que La noche oscura está compuesta por las crónicas defendidas, la
novela toda se transforma en extensión dei prólogo, en un ampl io (Y
cada vez más extravagante) meta-relato. De hecho, la trama metafictícia dei prólogo es más compleja que la de la novela misma 7 • Luego
5
5. No he logrado comprobar la existencia de Silvestre Andino Campeche. quien sin
embargo pudo ser hijo de Domingo de Andino. cufiado y maestro de música de José
Campeche.
" "José Pedreira Murillo. Historia de un descubrimiento. Editorial Antillana. San Juan. 1915.
pág. 9" y "Tomás Castelló Pérez Morris, Historia de un embeleco. Editorial La Milagrosa,
San Juan. 1920, pág. 1" (xi-xii).
Avilés funda Nueva Venecia (1797), destruido por piratas [1799) pagados por el
gobernador Castro y comandados por un tal Samuel Wright. En 1820, los crónicas de lo
ciudod libertino son quemodas en hoguera. Se salvon pinturas de Silvestre Andino en un
archivo: un triplico parecido ai dei Basco muestro en "poisajes visionarias" las torres de
Nuevo Venecio en formo de colmenos. El archivero Pedreiro descubre algunos crónicos
en 1913: lo de cierto González Campos cito un libra apócrifo dei histórico almirante
Nelson. Great Naval Ocassions of the Middle Seas. donde Nelson cito a su supuesto
amigo Wright, quien narra su ataque a lo ciudod infernal y describe sus torres como
"portentosas colmenos". Pereira recuerda el tríptico de Andino en el archivo municipal de
San Juan y publico su hallazgo en 1915. Costelló Pérez Morris ataco su autenticidod en
1920, tildando todo ello de "embeleco engordado en los mentes calenturientos de
mosones y lit'lrepensodores. bolcheviques y socialistas de todo rumbo y monejo"[xi). En
7
276
LETRAS- Revisto do Curso de Mestrado em letras do UFSM (RS).
de tan prolija defensa de su plausibilidad histórica, la novela comienza
citando diferentes "cronistas" bojo la autoridad de sus profesiones:
"Severino Pedrosa, primer cronista dei Ayuntamiento, nos cuenta en su
Verdadera relación dei muy famoso rescate de/ Nino Avi/és ... "(ó).
Después, tales introducciones se reducen a" según las palabras de ... " o"
escuchemos la voz de ... ": y se acaba identificando a los cronistas en los
títulos de capítulo, sin más introducción. Los acontecimientos se hacen
más y más absurdos, el pacto meta-fictício es transgredido, y la
plausibilidad histórica, servido su fin como instrumento de pen etración y
seducción dei texto, deviene plausibilidad lúdica. La autoridad de los
"cronistas" no necesita ya ser afirmada porque el lector se ha hecho
cómplice en el sincero engano de la ficción.
Los primeros críticos de La noche oscura fueron historiadores que
reaccionaron ante sus anacronismos y falsificaciones, quejándose de que
ésta no era una novela histórica (González 583). De hecho, el infame
prólogo no sólo es parodia dei método histórico sino invectiva vitriólica
contra la historiografia oficial (la meto-fábula de la historia) y su represión
dei inconsciente histórico (sjuzet). Aquí la trama meta-fictícia viene a ser la
artículo de 1932, un tal Gustavo Castro defiende la colección narrando cómo Pedreira
halló los documentos en una torre colmena en ruinas entre los manglares, adonde lo
condujo un vecino conocido sólo como "Pedro el Cojo" (ver "D1ablo Cojuelo", notas 9 y
11 ); hallando luego la crónica sobre la muerte dei Avilés, dentro de las ruinosas torres
(esta vez reales) de lsla de Cabras en la boca de la bahía de San Juan, que sí fue
bombardeada durante la invasión yanqui de 1898. En carta de 1820 hallada entre los
documentos, un tal Garcia Quevedo, secretario dei archivo episcopal, explica cómo
salvá y escondió esas crónicas: "Si bien arriesgo mi salvación eterna, dulce es sostener
aquella idea ... donde el Avilés fundó, en el siglo posado, aquella magnífica visión que
fue la ciudad lacustre de Nueva Venecia" (xv). La declaración llevó a conjeturas sobre la
ciudad como mera "visión" de escritos apócrifos por el propio Avilés, Garcia Quevedo, o
aun por Pedreira. "Otros le otorgan una mayor reolidad histórica, asegurándonos que fue
un notaria embaucador y libertino de !inales dei dieciocho, companero dei incorregible
Luis Paret Alcázar" (xvi). En 1946, Cadalso escribe el Prólogo, donde refiere el caso; y en
1984 ven la luz las primeras crónicas. como La noche oscura de/ Nino Avi/és.
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
277
historia de una confabulación por parte de la lglesia y el Estado (con la
participación de la timorata burguesia crioilo dependiente dei poder
colonial) para encubrir la verdadera historia dei deseo representada en
esa "maldita ciudad lacustre".
Lo cierto es que Nueva Venecia también desapareció de la
memoria colectiva dei pueblo, ya para siempre desterrada ai
olvido. convertido su recuerdo en pesadilla de la historia,
borrada de libros y canciones su breve posadura en el tiempo.
Nueva Venecia se convertia así en oscuro reverso de nuestro
pacífica y respetable historia colonial. (xiii; el énfasis es mío.)
Rodríguez Juliá postula la justificación definitiva de la ficción: el
propósito de esta novela-ciudad es la liberación de nuestro reprimido
inconsciente histórico, narrar no la historia de los hechos, sino la de los
deseos frustrados. En un estudio perspicaz, Antonio Benítez Rojo detecta el
deseo de la novelo de convertirse en historio. Así, en lo sobrio proso de
froy lnigo Abbod, Historia de Puerto Rico [1782), reverso ilustrado y
controcoro histórica de lo novelo, Benítez Rojo expone uno predilección
por lo narrativo, un prurito por lo onecdótico e imaginaria y el deseo de
devenir ficción: concluye que historio y novelo quieren cambiar papeles,
y llama ai Nino Avilés "lo libido de la historio". Mos poro Rodríguez Juliá,
como veremos, la novela es también /o historia de lo libido.
El cuerpo político
La estructura picaresca (o su modificación) es un aspecto a
menudo senolodo en los lnfortunios, a cuya obra se le reconoce odemás
su contribución a la formación de un discurso crioilo hacia los orígenes de
278
LETRAS - Revisto do Curso de Mestrado em Letras do UFSM [RSI.
la novela latinoamericana 8 . Sin embargo, lo significativo dei texto barroco
de Sigüenza es que pane ai descubierto la afinidad y plasticidad
genéricas que se dan entre la crónica europea, la picaresca, el relato de
viajes,
y
la
novela
crioilo
moderna:
seudocrónica,
anticrónica,
anacrónica. En especial su fusión de crónica y picaresca, o más
exactamente, su reconversión de la primera en la segunda, resulta en un
producto inesperado, en una partícula genérica que deviene histórica y
politicamente activada: la anti-crónica. Existe un interesante proceso
operante en la narratología histórica y mayormente inexplorado por los
estudios coloniales: el trânsito de la crónica a la picaresca y sus
implicaciones. Las crónicas de lndias dei siglo dieciséis, conocidas con
más propiedad como "crónicas de la Conquista", escritas por europeos
para legitimar la empresa colonial, pertenecían a un período de
descubrimiento, viajes épicos y guerras cuya gloria el crioilo americano
nunca compartió. Era un sueno exclusivamente europeo. Sin embargo,
para 1595 hasta Francis Drake había circunnavegado el globo. Conque
cuando terminá aquella era dei epos heroico que nos dio La Araucana y
los europeos se dedicaron a las faenas de la vida diaria, lo que en
América significaba administrar las colonias y poblar las tierras, los suenos
de gloria dieron poso a las realidades más duras de la supervivencia
económica y la movilidad social en una sociedad de castas. Esto último
constituyó una realidad definidora para el crioilo, y su forma de expresión
idónea, lejos de la épica, pronto se vislumbrá en la picaresca. Ya en
1598, la poesía de Mateo Rosas de Oquendo describía el sentido
picaresco de la vida en Lima. Pero fue con el concepto barroco dei
Véanse Casos, Costagnino, Chang, Fornet, González, Johnson, Ross y Sacido; luego
Arrom, López y Morona.
8
LETRAS - Revisto do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
279
desengano que la picaresca colonial alcanzó su madurez. Quevedo
había unido desengano y picaresca; Diente dei Parnaso de Caviedes
(1689) y Uma por dentro y fuera de Terra lia Landa (1792) los fundieron en
América. En Espana, Mateo Alemán (Guzmán de Alfarache, 1604) y Vélez
de Guevara (fi diablo cojue/o, 1641) habían proclamado a América la
nueva tierra dei pícaro, senalando satíricamente que los espanoles que
allí marchaban "dejaban sus conciencias en Sevilla". Después de todo,
fue siempre el desengano lo que transformara la épica (el ethos de la
conquista) en picaresca (el ethos de la vida colonial). Picaresca fue la
narrativa, de íníortunios a Concoíorcorvo a Periquiíío sarniento. 1'-Joveiistos
modernos como Carpentier y Fuentes han querido buscar el origen de la
novela latinoamericana en las crónicas, pero sus propias crónicas, desde
E/ arpa y la sombra hasta Terra Nostra, aparecen permeadas de
picaresca.
Mediante los tropas dei desengano, la picaresca americana
expuso el falso heroísmo de la conquista y de la empresa colonial.
Aquella "mirada imperial" que Mary Pratt ha descrito en las crónicas
europeas y relatos de viajes tenía que ser reemplazada con una mirada
subalterna proyectada de abajo arriba. Tal es la orientación dei viaje de
Alonso Ramírez, viaje de descubrimiento a la inversa, proyectado desde
América en lugar de Europa. El resultado es una anti-crónica en la
medida que la picaresca es una anti -épica -en verdad, una parodia de
la épica homérica y virgiliana que había llegado a América a través de
Tasso y Ariosto, en el ethos de Ercilla, Ona, y las crónicas de lndias. Mucho
de ello lo reconoce el censor Ayerra en la hiperbólica comparación que
hace de su "compatriota" Alonso Ramírez:
280
LETRAS - Revista da Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
Puede el sujeto de esta narración quedar muy desvanecido de
que sus infortunios son hoy dos veces dichosos: una, por ya
gloriosamente padecidos, que es lo que encareció la musa de
Mantua [Virgílio] en boca de Eneas en ocasión semejante a sus
comparieros Troyanos ... y otra porque le cupo en suerte la
pluma de este Homero . . . que ai embrión de la funestidad
confusa de tanto suceso dia alma con lo aliriado de sus
discursos y ai laberinto enmorariado de tales rodeos halló el hilo
de oro para coronarse de aplausos. (6)
Rodríguez Julió también parodia la épica -"Yo desfallecía el
rubicundo Apolo en sus últimos destellos cuando . . . deseoso de
contemplar los encrespados rizos de Neptuno ... "(78)- y particularmente
ai Eneas virgiliano de cara a lo batallo -"Con poso lento, bojo
nubarrones y altos relómpogos, se acercó la batalla infame, dolor
demasiado terreno que apenó mi
conciencia
hasta anhelar lo
muerte"(232)-, comparando o menudo su Nueva Venecia con Trova y
Tenochtitlón.
Sin embargo, el "alma" o "hilo de oro" que el censor eclesiástico
encuentra en la narración de Sigüenza es precisamente la reconversión
en lo parábola de Job que el autor hoce de la picaresca ("Para eternizar
Job lo que refería deseaba quien lo escribiera ... cuanto él había sabido
tolerar"). La narración de Sigüenza finalmente será una picaresca "a lo
divino" -6otra de sus tentativas de reodmisión a la orden jesuíta de la
que fue expulsado en 166 7? De las tres partes dei viaje de Alonso ---el
viaje de fortuna (Lazarillo, Guzmón de Alfarache); los sufrimientos dei
cautiverio (Job); y las tribulaciones dei noufragio (Jonós, Eneas)solamente la primera, que concluye en las Filipinas, es realmente
picaresco: constituye también lo porte mós "realista" e históricamente
plausible de la narración. El resto es o lo mínimo una adaptación hecha
por Sigüenzo. Pera en esta último inversión, o remodelación de la
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
281
picaresco, hay un doble desengano: tras el falso heroísmo de los
crónicos, la falso picordío dei crioilo. Alonso Romírez triunfo sobre su
destino grocios o los valores de honestidad y humildad inculcados en su
ninez por su madre puertorriqueno, cuyo apellido escoge en lugar dei de
su padre andaluz. Sus privociones como coutivo de piratas no son otro
cosa que uno intensificoción paralelo, un espejo hiperbólico de sus
trobojos como crioilo dentro de lo situación colonial. En pocas polobros,
los inversiones de Sigüenza terminon por constituir ol crioilo en el
verdodero héroe cotidiano de lo empresa colonial.
La
CílOIIa
í6COnV6íS!Ón
dei
diSCUíSO
impeíiOI
8UíOpeo
en
seudocrónico testimoniol siempre produce nuevos versiones de la historia
e inversiones ideológicos. Lo reescrituro por Sigüenzo de los crónicos
heroicos de los conquistadores, los Colón y los Cortés, deviene ai fin uno
épica descolza cuando el humilde plebeyo Alonso Romírez, el crioilo
emblemático, soporto con estoicismo y verdodero heroísmo todos los
tribulaciones de la vida colonial sin jomás envilecerse. El Nino Avilés de
Juliá, mientros tonto, se convierte en un Colón degradado, quien trueco
sus tres corobelos por trece cholupos, y el Mar Océono por los cenagosos
canos de la bahía de San Juan, en su expedición fundadora de uno
ciudad para!e!a,
セjオ・カ。@
Venecial uencrucijada de Sodoma y !a Nueva
Jen.Jsolén". El outoproclomado Cristo ferens (que morirío de sífilis en
Vollodolid) se hobío transformado en el deforme y tullido torso dei Nino
Avilés, el onti-mesíos, primo hermono dei "colo de cerdo" de Gordo
Márquez, en otro crónico subvertida por los tirobuzones de lo historia, si no
por lo trópico dei discurso.
Mos si Alonso Ramírez es el crioilo emblemático, 6quién es este
nino deforme, nocido sin brozos, con piernas ton pequenos que son lo fiel
282
LETRAS -Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
imagen de la atrofia, atadas a torso y cabeza por lo demás normales,
excepto por la eterna y angustiada fijeza de dos ojos que miran
extraviadamente desde el fondo dei retrato de Campeche? Este
pequeno diablo embotellado, primo dei "imbunche" de Donoso, resulta
de inmediato el emblema mismo de la represión síquica 9 . Rodríguez Juliá
hace esta lectura dei retrato en su Campeche, o los diablejos de la
melancolía (1986):
Según la leyenda en la parte inferior, este nino de Coamo
nació el 2 de julio de 1806. Fue traído por sus padres a San
Juan, donde recibió el Sacramento de la Confirmación el 6 de
abril de 1808. Entonces fue que el Obispo Arizmendi le ordenó
a Campeche este retrato. i'.Cuál seria la motivación dei
Obispo? Dávila nos senala: "En América y Espana son corrientes
estos gestos de curiosidad científica de parte de los obispos en
el curso de las visitas pastorales, durante la segunda mitad dei
siglo dieciocho" ... Si esa fue la intención inicial, Campeche la
rebasa prontamente, convirtiendo el retrato en una metáfora
dei sufrimiento . . . Y este sufrimiento está relacionado con el
pueblo: la mirada dei pintor. acostumbrada a captar la
personalidad y función de la élite crioilo y la casta
administrativa colonial, se posa aquí en lo disforme, en un hijo
dei pueblo , .. , El Avilés está atado dentro de su cuerpo,
maniatado por la deformidad orgánica . . . . Se revela una
incertidumbre en lo tocante a la edad dei nino. De repente nos
parece que en realidad estamos ante la condición lastimera
de un joven amortajado en el cuerpo de un infante. La cabeza
nada tiene que ver con el cuerpo. Ha envejecido en ese do1or
atroz, en ese robloso Süfrirniento .. , , En esa distancia entre el
' E! diablo cojuelo [1641] de Luis Vélez de Guevara, último ejemplar de la novela
picaresca espanola clásica, es la fuente principal para el Nino Avilés de Juliá. Se trata
de un deforme diablillo mensajero dei folclor espano! ("el diablo cojuelo es buen
mensajero"], ai que Vélez presenta otrapado en una botella, como el genio de Los mil y
una noches. El estudiante Don Cleofás lo abrirá y lo dejará salir. Por ese favor, el diablo
cojuelo lo lleva en un viaje de desengano por la sociedad espanolo. El Nino Avilés es
ese demonio mensajero embotellado en el inconsciente de Campeche, ai que los
escritos de Juliá dejan salir. El archivero Pedreira, como Don Cleofás, libera ai diablo
cuando revela los manuscritos. Finalmente, el acto de leer, de abrir el libro ai modo de
una caja de Pandora, desata el pandemonium textual de la novela y libera a los
demonios embotellados de la libido histórico.
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
283
ojo derecho y el izquierdo residen la obediencia y la rebeldia,
la salvación y la maldición, la santidad y nuestra soberbia. [11723)
De acuerdo ai autor, el Nino Avilés representa ai "pueblo", y ai
mismo tiempo para Campeche, la oportunidad de subversión. José
Campeche era el hijo de un antiguo esclavo endeudado por la compra
de su libertad y de una inmigrante de las lslas Canorias. El mulato,
entrenado por Luis Paret y Alcázar, pintor de cámara de Carlos III, se
convirtió en propiedad artístico de la lglesia y de la élite política, nunca
libre para pintar a su propia gente. La inversión de la historia ("oscuro
reverso") parte de la liberación dei deseo reprimido de Campeche y
desemboca en la liberación de la libido histórica dei "pueblo".
La novela comienza como una cita dei "Diario" de Campeche,
cuando ocompana a Avilés en su expedición fundadora, pues el texto es
antes que nada una lectura liminal de la emblemática dei pintor, la que
Juliá considera una "escritura pictórica" en busca de una voz liberadora
(Campeche 24). El ano es 1797. De inmediato, la novela regresa a la
noche dei 9 de octubre (el cumpleanos dei novelista) de 1772 para
relatar el rescate de un naufragio cuyo único sobreviviente es el recién
nacido Avilés, que flota en un moisés. En la playa, la muchedumbre se
lanza a un carnaval, con música improvisada, baile, venta de trituras y
demás, como será el caso cada vez que los caribenos se reúnan por
algún acontecimiento.
El anacronismo (Avilés nació en 1806) es
respaldado por su envejecida apariencia en el retrato de Campeche,
pero también sirve para sugerir la eternida d emblemática de este "hijo
dei pueblo". Juliá escoge el siglo dieciocho como marco para su novela
porque es el momento fundacional de la identidad histórica oficial de
284
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS].
Puerto Rico. Hasta ese punto, San Juan había sido poco más que una
prisión militar, con unas 300 casas junto a la fortaleza de El Morro. Para
fines dei dieciocho, la población de la isla había aumentado a 45.000 en
1765 y a 155.000 para 1800 (Bianco 43-44). Luego de un letargo de tres
siglos. interrumpido sólo por los saqueos de Drake y Cumb erland (1595,
1598), la capital islena entró en los anales de la modernidad con la Real
Orden de Libre Comercio con las Antillas (1765); su primer código
administrativo (fi Director/o General de Muesas, 1770); su primer censo
oficial (Miyares 1779); su primera historia oficial (lnigo Abbad 1782); la
consolidación dei poder de la lglesia (Trespalacios 1784-89); y la
expedición científica de los naturalistas franceses Ledrú y Baudin para
documentar la flora, fauna y costumbres (1798). La toma de La Habana
por los ingleses (1764) fue acicate de oportunas fortificaciones entorno a
El Morro de San Juan (1766-95) -que aparece en la novela como el
castillo de Obatal- para lo que se importó a cientos de reos y esclavos.
En lugar de la fundoción de Nueva Venecia. 1797 es el ano dei ataque
inglés bojo Harvey y Abercromby, que desembarcaron con 65 barcos y
8,000 hombres en Cangrejos (lugar dei naufragio de Avilés y de su
simbólico nacimiento), para un frustrado cerco a la ciudad. Campeche,
quien participó de la defensa, había hecho distribuir desde su taller
docenas de copias de la flamenca Virgen de Belén: los ciudadanos
atribuirán la salvación de la ciudad a los pinturas. Ese mismo ano un
decreto real confiere el título de la "Más noble y leal ciudad de San Juan
Bautisto de Puerto Rico". Sin embargo, ai otro lado dei canal de La Mona,
la isla de Santo Domingo había visto un levantamiento de esclavos (1791)
que condujo o lo independencio de Haití (1804). Si El Morro fue fortificado
en respuesta a la amenaza inglesa, la amenaza negro desotó la
LEmAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras do UFSM [RS).
285
represión temerosa y el "blanqueamiento" oficial de Puerto Rico, el que
yace en los cimientos dei estado colonial como un pecado original
enterrado en la conciencia nacional, dei cual la epifanía dei mesiánico
Nino Avilés, catalizadora de la catarsis colectiva, habría venido a redimir.
La novela intenta penetrar la oficialidad y narrar el "oscuro reverso "
de los hechos fundacionales,
la historia dei deseo reprimido. El
desenmascaramiento que busca Rodríguez Juliá vincula el desengano
quevediano de "EI mundo por de dentro" con el sicoanálisis lacaniano,
para revelar la historia de la libido, la historia "por de dentro".
10
"EI Hijo dei
Pueblo" no será el protagonista de la acción, sino el objeto dei deseo.
Será llevado de la playa por el diabólico obispo Larra y puesto dentro de
La Orejuda, un anexo laberíntico dei palacio episcopal disenado para
amplificar los gemidos dei nino, y donde monjas sádicas clavan de
pinchas sus carnes -mortificación que recuerda la pasión de Alonso
Ramirez. La reputación demoníaca de Avilés crece pareja con el poder
de Larra, que ha creado sus propios demonios para poder exorcizarias
públicamente. Larra le paga a un actor sefardita, Juan Pires, para que
haga el papel de exorcista, mas éste, creyéndose sus propios sermones,
se transforma en profeta que proclama a Avilés segundo Mesías,
fundando !a secta heterodoxa de 11 !0s avi!e!losll antes de morir en !a pira.
La empresa de Rodríguez Juliá exponde el contropunto de dos predecesores. En el
prólogo o su crónico novelado dei levontomiento haitiano, E/ reino de este mundo
[1949), Alejo Carpentier odvierte que "el relato que voo leerse ho sido estoblecido sobre
uno documentoción extremodomente riguroso que no solomente respeto lo verdod
histórico de los ocontecimientos, los nombres de personojes セゥョ」ャオウッ@
ウ・」オョ、。イゥセL@
de
lugares y hasta de colles. sino que oculto, bojo su aparente intemporolidod, un
minucioso cotejo de fechos y de cronologias". En el prólogo de su reescrituro de Froy
Servondo, E/ mundo alucinante [1969), Reinaldo Arenas propone contar lo historio "como
fue, como pudo hober sido, y como o mi me hubiese gustado que hubiero sido". "Estas
novelos no son históricos. Son fundaciones utópicos que disfrazon de historicismo su
textuolidad" [Rodríguez Juliá, "Tradición y utopia" l 0).
10
286
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
Resuelto o imponer lo restouroción católico, el obispo Trespolocios con su
floto bombardeo lo ciudod de Lorro desde el mar. Lo botollo de los
obispos (el aparato civil y militar de lo colonio se hollo notoblemente
ausente) represento lo guerra intestino dentro de lo propio trodición
represivo dei catolicismo hispânico. Todo lo novelo se transformo en uno
botollo épico contra los demonios, inspirada en Historia de una pelea
cubana contra los demonios de Fernando Ortiz (1959) -la principal
fuente intertextuol 11 . Favorecidos por la batallo, los negros de la guardio
de Lorro se rebelon para derrocaria, lidereod os desde el este por Obotal,
quien fundo un reino africano en la torre de El Morro, mientros los ovilenos
blancos retroceden hasta Catono, ai oeste de lo bohía. Obotol tomo ai
Nino Avilés como tolismán de poder, pero o diferencio de Lorra,
omordozo ai infante y lo silencio. Pronto ocurre uno disención entre los
líderes negros: Mitume estoblece una facción contrario en el litoral
oriental. El maquiavélico obispo Trespolocios, instigador indirecto, oun
aguarda en el mar. El Renegado, un crioilo simpatizante ( emisario de
11
AI igual que Juliá, Fernando Ortiz se propone contar una desconocida y olvidada
historia, no registrada en la historiografia oficiaL acerca de una batalla librada contra los
demonios durante la fundación de la villa cubana de San Juan de los Remedias en el
siglo XVII. Según orchivos eclesiásticos, ünos 800.000 demonlos fueron exorcizados de
una población de 700 habitantes, en su mayoría negros, aunque hubo algunos
sacerdotes entre los posesos. Un certificado notarial de 1682 registra una declaración
jurada dei propio Lucifer (quien había invadido, con 35 legiones de demonios, el cuerpo
de una anciana negra) donde declaraba que los demonios habían venido por culpa de
los pecados de los posesos y de sus padres, y que el pueblo literalmente se hundiría
(597-8). El antropólogo Ortiz, rastrea las raíces de la demonologia europea, su !legada a
América, y su empleo en contra de la cultura afro-cubana. Todos los demonios de la
novela de Juliá son tomados de Ortiz. quien a su vez cita de E/ diablo cojuelo de Vélez
los nombres y atributos de los demonios dei floclor medieval espano! (1 04). Los más
importantes son: Asmodeo, príncipe de la lujuria; y Renfás o el "Diablo Cojuelo", senor de
la pereza (cfr. Juliá, caps. 44-47). El uno desata ai otro. Si Vélez presenta ai Cojuelo
como inspirador de todas las danzas lascivas venidas desde África ai Nuevo Mundo y
luego a Espana, Ortiz encuentra su homólogo en la deidad yoruba de una sola pierna,
Obatalá.
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS].
287
ObataL camarada de Mitume y espía de Trespalacios) deja unas
crónicas en las que él es protagonista. Obatal lo envía en embajada de
paz con su amada Reina de Africa por la maravillosa tierra de Yyaloide
en busca dei campamento de Mitume, el cual encuentra diezmado por
un huracán y un ras de mar. Las facciones se reagrupan y guerrean en
bote
por
los
manglares,
participando
los
avilenos
en
algunas
escaramuzas. La batallo, modelada según lo descripción por Berna! Díoz
de la conquista de Tenochtitlán, "será lacustre": los negros divididos serán
aztecos y tlaxcaltecos: los avilenos, huestes de Narváez: El Renegado, La
Molinche; y Trespolacios, Cortés. El obispo y su cronista Gracián
observarán esta "épica etíope" desde el interior de una "máquina de
espionaje" en forma de jirafa hueca (el caballo de Trova de la novela), la
cuol, por supuesto, posa inadvertido paro los africanos. El rebelde Mitume
emerge con una victoria precaria, pero ahora, el obeso obispo dei retrato
de Campeche, quien posa toda la novela comiendo en compensación
por su celibato, horá su movida hacia el poder, mientras su cronista
Gracián domino la narración. Trespalacios reestablece el orden con el
destierro de los "diablos negros", el exorcismo de Avilés, la limpieza y
"despojo" de lo ciudad y la fundación dei estado. El día de Navidad de
1773, bautiza a Avilés, y los avilenos regresan a un San Juan cristiana. El
. "diario secreto" dei obispo contará de sus suenos de construir la Ciudod
de Dios, la Nueva Jerusalén; de sus interminables batallas contra los
demonios, instigadores de Arcadia y Utopía; y de sus proféticas pesadillas
sobre una ciudad lacustre en zancos sobre los manglares, reflejada su
naturaleza efímera en el agua, como el espacio de la esperanza infinita y
dei deseo insatisfecho.
--·-·-- - '
288
·--------- -·
MᄋZLセ]」
LETRAS Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
Aníbal González ha llamado la novela una "alegoria de la cultura
puertorriquena", senalando que sus varias utopias ( el reino africano de
Obatal, la Ciudad de Dios de Trespalacios, la Arcadia jíbara de Pepe Díaz
y la Nueva Venecia de Avilés) corresponden a interpretaciones de la
cultura nacional hechas por los anos treinta: Antonio S. Pedreira,
lnsu/arismo (1934), Tomás Blanco, Prontuario histórico (1935) y Palés
Matos, Tuntún de posa y grifería (1937). La correspondencia no es exacta,
y la noción de "cultura" es algo estrecha. Por otra parte, Rubén Ríos Avi/a y
Jean Franco descartan el papel de la alegoría, prefiriendo la última
llpasticiJ8 ivios González preslente algo, llórnese 'lolegorfo de lo culturo
11
•
1
',
o con más propiedad siguiendo a Campeche: emblemática dei poder.
Ríos Avila, en su excelente estudio, sugiere que el autor regresa ai siglo
XVIII en busca dei ethos nacional; y ai igual que González, ubica la
verdadera
referencialidad
de
la
novela
en
el
siglo
XX.
Estas
interpretaciones convienen con la perspectiva de Avilés como emblema
dei "pueblo". Benítez Rojo y Duchesne ven en el pa/enque o comunidad
cimarrona el modelo de Nueva Venecia, un espacio de libertad hurtado
ai espacio de la represión, un refugio de esperanza para los esclavos
fugitivos. Senalan, junto con Guillermo Baralt, que a pesar de algunas
revueltas el palenque, tan común en Brasil y El Caribe, se encuentra
notablemente ausente de la historia de Puerto Rico, permaneciendo
como lugar de deseos, algo que pudo ser, semejante a la ciuda d mítica
de Avilés. Sin embargo, esto ya había sido sugerido por el reino africano
de Obatal más que por Nueva Venecia, cuya fundación es únicamente
profetizada pero nunca realmente lograda. Por otro lado, vale notar que
la novela presenta una sociedad no mezclada racialmente, donde el
mulato (la raza de Campeche) es otra ausencia notable y donde la
LETRAS -Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
289
posibilidad fundacional dei mestizaje -representada en El Renegado y la
Reina
de
Africa-
es
deliberadamente
frustrada.
Además,
las
mencionadas utopías o interpretaciones de la cultura -excepto para
Nueva Venecia- corresponden a mitos étnicos y aspiraciones que son
exclusivamente hispanas, criollas o negras. Contrario ai retrato de
armonía racial que Tomás Blanco hace dei período colonial, Rodríguez
Juliá nos refiere a una moderna sociedad puertorriquena cuya apariencia
orgânica se deshace en sus costuras 12 . La propia palabra "mulato"
(híbrido, dei griego para "mula"), tan corriente en Cuba, rara vez se
ernpiea en Puerio Rico, donde incluso negro ha sido reempiazado por
eufemismos como moreno y trigueno, siendo los mulatos considerados
blancos
---analogía
sociolingüística
dei
"blanqueamiento"
de
la
conciencia nacional. Nueva Venecia es, a su vez, el espacio de la
entropía racial, esa tierra-de-nunca-jamás de armoniosa hibridez y
permisible heterogeneidad:
Mis novelas padecen el trasiego, la inquietud de una sociedad
a media hacer. que está por definirse. Nuestras mejores
ciudades son las utópicas: las otras son encrucijadas de las
incesantes comparsas y peregrinaciones dei colonialismo, dei
exilio y de la emigración. ("Tradición y utopia" 1O; el énfasis es
mío.)
El Prontuario histórico de Tomás Blonco sostiene que para l 770 se instaba oficialmente
a que las escuelas públicas admitieran a todos los ninas, fueran blancos, mulatos o
negros libres セBウゥ・ョ、ッ@
esto digno de recalcar, pues denota la temprana convivencia
entre las razas" (60]. Como el tamano de la montanosa isla no admitia grandes
plantaciones. el número de esclavos. según Blanco. nunca sobrepasó el 13% de la
población, en contraste con el 90% en Haiti, 81% en Jamaica. 51% en Brasil y 36% en
Cuba (77-78), lo que desde luego explicaria la ausencia de palenques en la historia
puertorriquena. El "oscuro reverso" de Tomás Blanco mostraria, sin embargo, que el
brusco aumento de población a partir de la segunda mitad dei siglo XVIII obedecia a
una política de blanqueamiento que para 1834 había reducido la proporción de negros
a un 46%, de los cuales un tercio seguia siendo esclavo.
12
290
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
Rios Avila percibe en el propio Juliá a un autor "a medio hacer",
como su infante Avilés, senalando que en su primera novela, La renuncia
dei héroe Baltasar (197 4), sus vorios cronistas tienen nombres compuestos
y en clave, los cuales refieren a otros autores como coordenadas
intertextuales donde su propia identidad autoral se disemina. Lo mismo
puede decirse o propósito de La noche oscura, la que provee en su
prólogo el contexto para su propia lectura. Aquí, no obstante, los autores
aludidos son subvertidos, puesta ai descubierto su libido, sus "demonios"
liberados; siendo tal el procedimiento que Juliá emplea para cifrar su
"oscuro reverso" de la historia. El Alejandro Codolso que firma el prólogo
seria Alejandro Tapia, primer biógrafo de Campeche (1855), quien nos da
uno lectura armoniosa dei pintor mulato, que la novela se propone
subverti r. EI archivero Pedreira sería el oscuro reverso dei hispanófilo auto r
de lnsularismo, mientras que Julián Flores, el supuesto Renegado, serío
Juan Flores, autor de tnsularlsmo e ldeo/ogía burguesa en Antonio S.
Pedreira (1979). Pedreira definió el carácter nocional por su tímido
aislamiento (lo opuesto a la empresa globalizante de Alonso Ramirez),
una lnsularídad que engendra docilidad (lo opuesto ai Nino Avilés).
lnsutarísmo y su ensayo complementaria, El puertorríqueno dócil de René
Marquês, rumian viejas versiones de la docilidad desde lo "pereza
tropical" de lnigo Abbad hasta la "abulia patológica" en Crónica de un
mundo enfermo (1903) de Manuel Zeno Gandía. Juliá parodia estas
concepciones en la batalla que Trespalacios sostiene contra el Diablo
Cojuelo, demonio de la pereza (cfr. Abbad 181-88, Juliá 387). Tomás
Costelló Pérez Morris, quien emplazo la autenticidad de las crónicas de
Nuevo Venecia serío un compuesto de los historiadores criollos Tomás
Blanco, antes mencionado, y Pérez Morris (1840-1881), cronista dei Grito
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
291
de Lares (1868). El otro archivero, el que "arriesga su salvación" para
rescatar las crónicas y a quien los escépticos tildan de verdadero inventor
de Nueva Venecia, Don Ramón García Quevedo, no es otro que el
maestro barroco espano! dei desengano, autor de "Las zahurdas de
Plutón". Gracián, el cronista de Trespalacios es la libido locuaz dei
ultrasucinto Baltasar Gracián (cuyo fi criticón, dicho sea de poso, sería el
modelo estilístico para los lnfortunios de Sigüenza), pero también podría
ser el oscuro reverso dei historiador ilustrado Fray lnigo Abbad y Lasierra,
que en 1772 fue secretario y confesor dei obispo de San Juan.
i.X qué decir acerca de ese cronista-protagonista apodado "EI
Renegado"? En su crónica social acerca dei funeral de Luis Munoz Marín,
Las tribu/aciones de Jonás (1981 ), Rodríguez Juliá se refiere ai exgobernador como "EI Renegado". No es difícil ver el porqué. Munoz era
un joven líder nacionalista, quien como gobernador encontró acomodo
político con los Estados Unidos. Escritor frustrado, Munoz deviene
"arquitecto" dei nuevo Estatus nacional ai traducir "colonia subalterna y
dependiente" como "Estado Libre Asociado". Antonio Benítez Rojo ha
encontrado otro primo hermano dei Nino Avilés en el axolotl de Cortázar:
aquel otro reprimido, cansado de ser el deforme nino de la ficción,
aguarda desde su retrato-jaula por su leal visitante, su homólogo, el nino
normal de la historia que siempre quiso ser, el que algún día lo liberará y
tomará su legítimo lugar de ese otro lado dei espejo. En La jaula de la
melancoiía, Roger Bartra senala que el anfíbio axoloti, criatura lacustre
natural dei lago Xochimilco en la vieja Tenochtitlán y perfectamente
incapaz de reproducirse en otro habitat, es biológicamente el estado
larval de la salamandra, que alcanza la adultez sin desarrollarse: crece,
envejece, y aun así, rehusa desprenderse de su peculiar y perpetuo
292
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS].
estado embriónico. Lo tiene por símbolo de la polis mexicana. Tal el Nino
Avilés, ávido joven encerrado en un cuerpo de renacuajo. La ficción dei
estadolibrismo munocista, ese perpetuo estado embriónico de la Nación,
lo condena a una atrofia v melancolía infinitas. Y es que el hijo dei
pueblo, ese puer aeternus, se ha convertido a hora en el estado larval dei
cuerpo político.
La ciudad como palimpsesto
EI simulacro de regreso de la novela (para construir una
referencialidad
actual,
contemporánea)
es
un
aspecto
de
la
seudocrónica testimonial que, naturalmente, difiere dei prototipo de
Sigüenza. La referencialidad ai presente está senalada en Juliá por la
elipse v el anacronismo. Nueva Venecia, aunque profetizada, nunca
aparece en la novela; La noche oscura dei Nino Avi/és resulta ser sólo un
subtítulo, primera parte de la "Crónica de Nueva Venecia". Durante anos,
los críticos aguardaron el resto de la trilogía que Juliá jamás entregó. Los
escépticos rumoraron que el autor, desencantado con el primer
resultado, había abandonado la empresa. Los entusiastas llegaron a
advertir que Nueva Venecia era, en verdad, insondable; que ubicarla en
un espacio v tiempo era destruir para siempre su carácter utópico. AI
cabo, Juliá confesó que en su entusiasmo juvenil había escrito en
realidad una novela impublicable de l 500 páginas en la que Avilés era
criado v educado por Trespalacios: La noche oscura fue el convenio final
(véase su ensavo gracianesco "En la mitad dei camino"). Lo que tenemos
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
293
es esa firma dei barroco que Severo Sarduy llama la apoteosis de la
elipsis: Nueva Venecia nunca llega porque ya existe.
La referencialidad ai presente permite una tercero y último
penetración dentro de otro texto oculto: el San Juan de Rodríguez Juliá, lo
ciudad como polimpsesto; uno excovación arqueológica en los cinco
siglas de historio que cubren su paisaje, generaciones que expiraron
dejando barrosos caracteres inscritos en su topografía; una incursión en la
reconstrucción cronotópica de su siempre incompleta renovación
urbana. La diferencia que destaco con la Odisea de Sigüenza es que su
muchacho, Alonso Ramirez, sole de Puerto Rico paro navegar por el
mundo en el espocío de unos cuantos anos, mientras que en su Ilíada,
Juliá deviene un peregrino en casa viajando a través de copos
temporales en torno de un mismo punto, pero con no menos afán
picaresco. Sigüenza, obsesionado con la hidrografia más que la
topografia, dirá poco de los lugares que visita. Cuondo arriba a Batavia,
en Java, bullente emporio dei comercio mundial como el Hong Kong
actual, lo condensa en cifra gracianesca: "Pera con decir estar ollí
compendiado el Universo lo digo todo" [20). Cuando regresamos,
sentimos que nodo dei mundo hemos visto, sólo el interior d el barco de
Sigüenza, un vaso de palabras; es el discurso vehiculor de lo
seudocrónica y dei libra de viajes, el que constituye el verdadero
argumento de la historia. Juliá, no obstante, obsesionado con la
topografia histórico, nos dará en su laudes civitatum una ilimitada
descripción moral y física de la ciudad, explorando con ojo de
miniaturista el microcosmos de Nueva Venecia, ese San Juan liminal, el
multus ln parvo, el Universo resumido. Su propio "cronista Gracián"
294
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
poseerá
un
estilo
barroco
diferente,
imbuido
dei
penetrante
sobrepujamiento satírico de Quevedo, Lezama y Cabrera Infante.
Real o imaginada, la Nueva Venecia de Juliá es la arqueologia
libidinal dei San Juan moderno y metropolitano, un comentaria cáustico
acerca de la contradictoria fusión urbana de disciplina y deseo, represión
católica y liberación sexual. Los tiempos sobreimpuestos, en la escritura
de la antigua Nueva Venecia y en la lectura dei moderno San Juan,
existen en función dei despliegue mixto dei lenguaje arcaico de la
crónica y el lenguaje callejero dei Puerto Rico actual -respondiendo el
último ai proyecto literario de "escribir en puertorriqueno" propulsado por
Luis Rafael Sánchez con La guaracha dei Macho Camacho. Las
numerosas inserciones de la jerga moderna ("incordio", "molleto", "galán",
"compio"), de letras de canciones populares ("pare, cochero", "cachito
pa huelé"), y dei lenguaje de la cultura de la droga ("perico", "date un
pose", "/es vofó los sesos", "los arrebataba") sirven de marcadores
anacrónicos de la referencialidad ai presente. Además, el discurso de las
viejas crónicas está en realidad casado, en cuanto a ciertos aspectos
formales, con el género neopicaresco de las crónicas de sociedad,
ampliamente cultivado por Juliá, en su neorrealista -cosi periodístico, si
carnavalesco- retrato de la cultura popular urbana y moderna de Puerto
Rico. Tal mezcla de viejas y nuevas historias, de formas cultas y populares,
reflejan la plasticidad genérica entre la seudocrónica testimonial de La
noche oscura y las más modestas "crónicas sociales" que enmarcan la
producción de su autor. 13 El hilo común que recorre el gracianesco relato
13
Las tríbu/acíones de Jonás [1981 ), E/ entíerro de Cortijo [1983), Una noche con /ris
Chacón (1986), E/ cruce de la Bahía de Guáníca (1989).
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
295
de viaje de Sigüenza, la picaresca, la sátira quevedesco y las modernos
crónicas de lo cultura popular en Juliá es el ideal barroco dei desengano
-la
penetración
en
las
opariencias
y
fachadas
públicas,
el
desenmoscoromiento de la sociedad oficial. El parco retrato que
Sigüenza hace de Puerto Rico en l 690 se reduce a esa cifra dei
desengano: "Puerto Rico", el nombre mismo es un fraude; los pepitas de
oro que una vez tuvieron los rios se habían agotado junto con los
indígenas que las tamizaban; los huracanes habían diezmado los
cacaotales que una vez fueron la principal cosecha islena; y las "riquezas"
de su nombre siguieron encubriendo la "pobreza" de sus habitantes
(Sigüenza l O),
Un marcador central en la geografia ucrónica de la novela es la
transposición dei moderno Pinones ai siglo XVIII. Pinones es un poblado
playero, negro y pobre, cercano de Boca de Cangrejos, lugar dei
naufragio y rescate dei Avi lés, Hoy Pinones es famoso como refugio
sexual, con sus cabanas apartadas y oscuros cabarés bailantes, de
vellonera y biliar, adonde los citadinos orilleros escapan dei chismoteo de
la remilgada sociedad provinciana y bochinchera de San Juan, para los
que el solo hecho de frecuentar el lugar es ya prueba dei delito. Cuando
el rescate dei Avilés, hallan a una parejo haciendo el amor entre los
arbustos, "suceso nada raro en Pinones, lugar a la verdad que muy
notorio por ser escondite de ilícitos amores" (8). Piriones es el San Juan
oculto, reino de Asmodeo, espacio lascivo ai margen de lo ciudad; pero
también es puente entre San Juan y Loiza Aldea, la comunidad
neoafricana culturalmente más pura que queda en Puerto Rico, El reino
africano de Obatal en El Morro se sostenía por una "línea de suministro"
LETRAS -Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS),
desde Pinones, bombardeada por Trespalacios, un cordón umbilical que
el obispo tuvo que cortar para fundar el Estado.
Mas, para comprender la Nueva Venecia dei Nino Avilés hay que
llegar ai San Juan dei joven Julió (que fue también el mío). La mítica
ciudad de la novela se ubica en un tramo de manglares ai sudeste de
San Juan, posada la hilera de burdeles que una vez flanquearon el
puerto de la bahía, con su clientela de marinas y turistas de crucero
amén de la juventud capitalina para la que por generaciones éstos
representaron un rito de poso hacia la adultez. Convergiendo detrás de
Trastalleres y Miraflores, los pantanales, ahora parcialmente ocupados por
una autopista, se extendían desde el interior de la bahía por todo el
estuario de San Juan, hasta el moderno centro comercial Plaza Las
Américas, a lo largo dei famoso Cano Martín Pena. Es de saber que lo
que mós recientemente se hallaba en esa infecta red de canales y
manglares pululantes era el mós notorio arra boi de San Juan, EI Fanguito,
una comunidad invasora de chozas de modera y techos de zinc en
zancos sobre las fétidas aguas, para aquellos pasajeros de La carreta de
René Marquês que no tenían con qué vivir en tierro seca. Oculto durante
décadas, este vasto arrobai se hizo visible en toda su miseria desde el
nuevo Expreso Las Américas. Pintadas de rojo o azul en época de
elecciones, con los banderines de los partidos en alto sobre canas de
bambú y su lema ondulante de "Pan, Ti8rra, Libertad", los cientos de
chozas eran encuesta perpetua y visible, y a menudo certero pronóstico
de
resultados
electorales.
Mas
el
pintoresco
barrio,
descrito
romónticamente como una "acuarela de pobreza" en centenares de
cuentos, pinturas, poemas y canciones, se convirtió en boch orno de la
LETRAS - Revista da Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS].
297
turística ciudad, en negación de la empresa progresista proclamada por
el estadolibrismo munocista.
El prólogo de Juliá alega que las ruínas de Nueva Venecia fueron
diezmadas por los bombardeos yanquis durante la ocupación de 1898:
teoría
simbólica,
pues
(,quién
iba
a
bombardear
un
manglar
deshabitado? (EI Fanguito aun no existía). El hecho es que Juliá, como el
resto de nosotros, fue testigo de la "limpieza" de los arrabales y burdeles
de la ciudad por el nuevo partido anexionista en el poder (ba jo el
patrocínio dei magnate dei cemento convertido en gobernador, Luis A
Ferré) durante los setentas y ochentas -un proceso que refleja el
"exorcismo" de la maldita ciudad mítica ai final de la novela. Muchos
residentes de EI Fanguito que se negaron a sa lir fueron trasladados a la
fuerza a los caseríos públicos o enviados por lancha a Catano (como los
avilenos) dei otro lado de la bahia, donde disfrutar de las brisas dei
progreso respirando dióxido de azufre de la cercana Commonwealth Oil
Refining Company. El Fanguito fue nivelado y su miseria soterrada.
lrónicamente, como parte dei embellecimiento de la ciudad para la
magna celebración dei Quinto Centenario, el Cano Martin Pena -por
donde el Avilés llegó con sus trece chalupas en la expedición
fundadora- fue modernizado con servicio de lanchas ai viejo San Juan,
transportando a miles de espectadores a contemplar una vez más desde
EI Morro los poderosos navios desfilar a vela por la bahia.
Si existió en verdad la infame ciudad lacustre de Nueva Venecia o
fue sólo una quimera, no es ya acaso lo que importa. La Nueva Jerusalén
esconde a Sodoma tras bastidores. Rodríguez Juliá muestra que en las
oscuras noches dei Nino Avilés, Nueva Venecia debe existir, aun hoy, bojo
el adoquinado, el asfalto, el concreto, como lo que realmente es: el San
298
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
Juan subliminal, libidinal; su nuevo síntoma aparecido a inícios de los
ochentas, bojo la epidemia dei SIDA, fue triste testimonio de este hecho.
La noche oscura dei Nino Avi/és fue el segundo recordatorio de la
existencia de Nueva Venecia, pues ahora la novela misma es esa ciudad
letrada.
Obras Citadas
Abbad y Lasierra, Fray Agustín lnigo. Historia geográfica, civil y natural de la is/a
de San Juan Bautista de Puerto Rico [1788]. San Juan: Editorial de la
Universidad de Puerto Rico, 1970.
Arrom, José Juan. "Carlos de Sigüenza y Góngora. Relectura crioilo de lnfortunios
de Afonso Ramirez". Thesaurus XLII (1987) 23-46.
Baralt, Guillermo A. Esc/avos rebeldes. Conspiraciones y sub/evaciones de
esc/avos en Puerto Rico (1795-1873). Río Piedras: Ediciones Huracán.
1985.
Bartra, Roger. La jaula de la melancolóia. México: Grijalbo. 198 7.
Blanco, Tomás. Prontuario histórico de Puerto Rico. San Juan: Instituto de Cultura
Puertorriquena, 1970.
Benítez Rojo, Antonio. "Nino Avi/és, o la libido de la historia". La is/a que se repite:
E/ Caribe y la perspectiva posmoderna. Hanover: Ediciones dei Norte,
1989. 277-304.
Casas de Faunce. Maria. La novela picaresca latinoamericana. Madrid: Cupsa,
1977.
Castagnino, Raúl H. "Carlos de Sigüenza y Góngora o la picaresca a la inversa".
Razón y Fábula 25 (1971) 27-34.
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
299
Chang Rodríguez, Raquel. "La transgresión de la picaresca en los tnfortunios de
Afonso
Ramirez".
Viofencia
y
subversión
en
la
prosa
colonial
hispanoamericana. Madrid: José Porrúa Turanzas, 1982. 85-1 08.
Cummins, J. S. "fnfortunios de Afonso Ramirez: 'A Just History of Facr?" Bulfetin of
Hispanic Studies LXI (1984) 295-303.
Dávila , Arturo V. José Campeche 1751-1809. San Juan: Instituto de Cultura
Puertorriquena, 1971 .
Duchesne, Juan R. "Una lectura de La noche oscura dei Nifío Avi/és". Cuadernos
Americanos 259.2 (1985) 219-224.
Flores, Juan. lnsu/arismo e ideología burguesa en Antonio S. Pedreira. La
Habana: Casa de las Américas, 1979.
Fornet, Jorge. "lronía y cuestionamiento ideológico en lnfortunios de Afonso
Ramirez". Cuadernos Americanos 9.1 (1995) 200-211.
Franco, Jean. "The Nation as lmagined Community'. H. Aram Veeser, ed. The
New Historicism. New York: Routledge, 1989. 204-12.
González, Aníbal. "Los lnfortunios de Afonso Ramírez: Picaresca e historia".
Hispanic Review 51 (1983) 189-204.
"Una alegoría de la cultura puertorriquena: La noche oscura de/ Nifío
Avi/és, de Edgardo Rodríguez Juliá". Revista tberoamericana 52.135-6
(1986) 583-90.
González Echevarría, Roberto. Myth and Archive. Cambridge: Cambridge UP,
1990.
González S., Beatriz. "Narrativa de la estabilización colonial". /deo/ogies afd
Literatures 1.1 (1987) 7-52.
Gracián, Baltasar. E! criticón [1651 ]. Madrid: Cátedra, 1996.
lnvernizzi, Lucia. 'Naufragios e infortunios: Discurso que transforma fracasos en
triunfos". Dispositio XL (1986) 99-111.
Johnson, Julie Greer. "Picaresque Elements in Carlos de Sigüenza y Góngora's Los
lnfortunios de Afonso Ramirez". Hispania 64 (1981) 60-6 7.
300
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
López, Kimberle S. "ldentily and Alterily in the Emergence of a Creole Discourse:
Sigüenza y Góngora's
lnfortunios de Afonso Ramírez".
Colonial Latin
American Review 5.2 (1996) 253-76.
Marquês, René. E! puertorriqueno dócil y otros ensayos. San Juan: Editorial
Antillana, 1977.
Morona, Mabel. "Máscara autobiográfica y conciencia crioilo en lnfortunios de
Afonso Romírez". Dispositio 15 (1990) 10-1 7.
Ortiz, Fernando. Historia de una pe/ea cubana contra tos demonios. La Habana:
Instituto Cubano dei Libro, 1975.
Pedreira,
Antonio
S.
/nsu/arismo.
Obras.
San
Juan:
Instituto
de
Cultura
Puertorriquena, 1970.
Pérez Blanco, L. "Novela ilustrada y desmitificación de América". Cuadernos
Americanos 244.5 (1982) 176-95.
Pratt, Mary Louise. Imperial Eyes: Travei Writing and Transculturation. London:
Routledge, 1992.
Ríos Ávila, Rubén. "La invención de un autor: Escritura y poder en Edgardo
Rodríguez Juliá". Revista lberoamericana 59.162-3 (1993) 203-19.
Rodríguez Juliá, Edgardo."At the Middle of the Road". Asela Rodríguez de
Laguna, ed., /moges and ldentities: The Puerto Rican in Two World
Contexts. New Brunswick: Transaction Books, 1987.
_ _ Campeche o los diab/ejos de la melancolía. San Juan: Instituto de Cultura
Puertorriquena, 1986.
La noche oscura dei nino Avi/és. San Juan: Editorial de la Universidad de
Puerto Rico, 1984.
_ _ "Tradición y utopía en el barroco caribeno". Caribán: Revista de Literatura
2 (1985) 8-10.
Ross, Kathleen. "Cuestiones de género en lnfortunios de Afonso Ramírez". Revista
lberoamericana 61.172-3 (1995) 591-603.
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
30 I
_ _ The Baroque Narrative of Carlos de Sigüenza y Góngora: A New Worfd
Paradise. New York: Cambridge UP, 1993.
Socido Romero, Alberto. "Lo ombigüedad genérica de los lnfortunios de Afonso
Ramírez como producto de lo dialéctico entre discurso oral y discurso
escrito". Bulletin Hispanique 94 (1989) 1-21.
Sigüenzo y Góngoro, Carlos de. fnfortunios de Afonso Ramírez. Obras históricas.
México: Porrúa, 1983.
Vélez de Guevara, Luis. E/ diabfo cojuefo [1641 ]. Madrid: Ediciones Alcalá, 1968.
302
LETRAS- Revisto do Curso de Mestrado em Letras do UFSM [RS).
LA HISTORIA COMO BUFONADA:
PARODIA, RISA E HISTORIA DEL DESCUBRIMIENTO
EN MALUCO DE NAPOLEÓN BACCINO PONCE DE LEÓN.
Magdalena PERKOWSKA-ÁLVAREZ
Universiteit Leiden - Nederland
GTú nunca dudas. Guzmán, a ti nunca se te acerca un
demonio que te dice, no fue así, no fue sólo así, pudo ser así
pero también de mil maneras diferentes, depende de quién lo
cuenta. depende de quién io vio y cómo io vio; imagina por un
instante, Guzmán, que todos pudiesen ofrecer sus plurales y
contradictorias versiones de lo ocurrido y aun lo no ocurrido;
todos, te digo. así los senores como los siervos, los cuerdos
como los locas, los doctores como los herejes. L.qué sucederia,
Guzmán?
Carlos Fuentes. Terra nostra
En el artículo "Nietzsche, Geneología, Historia", Michel Foucault
plantea la idea dei conocimiento como perspectiva (90). Dado que el
conocimiento es base e instrumento dei Poder, existe un vínculo
significativo entre el Poder y el lugar de enunciación, es decir, el punto de
vista desde el cual se origina una reconstrucción dei posado 1 • Foucault
senala que en la historiografia tradicional se establece una relación muy
particular entre el historiador y el objeto de su discurso. Es "la perspectiva de
la rana" que, de acuerdo con Foucault, consiste en postrarse ante la
grandeza de los personajes, acontecimientos o ideas y contemplarias
1
Una complicidad similar entre las estructuras dominantes y la construcción textual de la
realidad es el objeto de las reflexiones de Ángel Rama quien estudia en La ciudad letrada
la relación entre "la ciudad letrada" (a la que pertenecen los: "religiosos, administradores.
educadores, profesionales. escritores y múltiples servidores intelectuales"; 25) y el Poder.
LETRAS - Revisto do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (RS).
303
desde la distancia, con admiración y veneración (89)
2
.
Es una perspectiva
útil para el Poder porque el historiador, ai convertir el posado en
monumento, institucionaliza una versión oficial y supuestamente universal
que es controlada y que controla. Perder el control sobre la perspectiva
significa, por consiguiente, arriesgar el Poder. De aquí el miedo a las
versiones contradictorias, escritas desde la otredad, imprevisibles y
desconocidas, que Carlos Fuentes le atribuye a Felipe 11 en su novela Terra
Nostra (en el epígrafe).
Este ensayo analiza
la reescritura de la historia oficial dei
Descubrimiento a través de la parodia y la riso en Maluco. La novela de
los descubrídores de Napoleón Baccino Ponce de León (Uruguay, 1989).
La novela narra el viaje de circunnavegación de Magallanes (1519 -1 522)
- una de las más grandes hazanas dei descubrimiento - desde la
perspectiva dei bufón de la !lota, Juanillo Ponce. El bufón encarna a las
clases más desfavorecidas de la sociedad espanola, los insignificantes
para la historia monumental; representa la marginalización que condena
ai silencio. Aunque Juanillo es un personaje ficticio, en él cobra presencia
un personaje histórico colectivo que existió pero no logró trascende r: la
comunidad marinera, los hombres de clases bojas que se integraron a las
expediciones dei descubrimiento como participantes anónimos:
Doscientos y tantos hombres, como Vos, no tan Reales ni menos
reales. Con sed, con hambre, con sueno, con ilusiones, con
miedo .... Capaces de gozar de un buen vino, de una buena
hembra, de una manana de sol y de una comida cualquiera,
con o sin especias. Padres, hijos, esposos, novios y solitarios ....
"La perspectiva de la rana" hace pensar en la noción dei aura acunada por Walter
Benjamin en "La obra de arte en la época de su reproductibilidad técnica" que también
involucra el distanciamiento y la veneración.
2
304
LETRAS - Revista da Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
Marineros, capitanes. calafates. contramaestres. lombarderos,
toneleros. grumetes, criados y qué sé yo. (52) 3
Por ser "reales" solamente con una "r" minúscula, estas hombres
están fuera dei espacio en que se hace lo Historia. AI cederle la voz a
Juonillo, Nopoleón Boccino Ponce de Léon desplaza el foco de las
versiones oficioles hocio uno
reolidod
alternativa y recupero los
experiencios de los seres cuyo poso por la Historio no dejó huello.
Escribir lo Historia desde los márgenes
La reescritura de lo Historio desde los márgenes y lo inscripción en
los espacios de ella de los que tradicionalmente fueron relegados o la
periferia político-social y cultural es un proceso muy complejo. En él, el
cuestionamiento de las versiones oficiales vo o lo por con lo necesidad de
la Historia como un sistema de legitimación porque los que no tienen
Historia lo necesiton paro existir históricomente. Puesto que todo ataque
definitivo a lo Historio significaría también uno auto-destrucción (histórica),
reescribir desde lo posición oposicionol es un acto de negociación, un
juego de aceptación y negación, que busca recuperar el posado
reconfigurando ai mismo tiempo el discurso que lo construye:
The social articulation of diflerence, from the minority
perspective. is a complex on- going negotiation that seeks to
authorize cultural hybridities that emerge in moments of
historical transformation. (Bhabha 2)
3
Maluco. La novela de los descubridores. (Barcelona: Seix Borrai, 1990). Todos los
referencias de páginas en el texto remiten o esta edición.
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
305
En Maluco, la principal estrategia dei replanteamiento de la Historia
que pertenece a "the man of deeds and power" (Nietzsche 67)
es la
parodia definida por Linda Hutcheon como una repetición diferenciada
de textos (A Theory 32). El acto de parodiar incorpora convenciones y
normas para desestabilizarias desde dentro: "Parody seems to offer a
perspective on the present and the past which allows an artist to speak to
a discourse from within it, but without being totally recuperated by it" (A
Poetics
35).
Por
esta
razón,
sus
implicaciones
ideológicas
son
contradictorias: es, a la vez, un homenaje respetuoso y un gesto
irreverente (33). Esta ambivaiencia ideológica hace de ia parodio uno de
las estrategias más eficaces para la reescritura de la Historia desde la
periferia, porque da cabida tanto a la aceptación de una convención
discursiva o de una versión dei posado como a su cuestionamiento.
La novela de Baccino que reescribe Primer viaje afrededor de/
mundo de Antonio de Pigafetta (1550, Venecia) y Décadas dei Nuevo
Mundo de Pedro Mártir de Anglería (1516, Alcalá) es un ejemplo acabado
de la repetición diferenciada de los textos 4 . Walter Mignolo senala que los
textos de la conquista se escribieron con la obligación de informar a la
Corona de los avances de la empresa espanola en las nuevas tierras (59).
E! discurso de las crónicas, los diarios y las cartas de relación
es
determinado por su lector principal, el rey, quien encarna ai lmperio y el
4
Lo reescrituro dei Descubrimiento es uno vertiente importante de lo novelo histónco
lolinoomericono, especialmente o partir de lo década de los setenta. Terra nostra (1975)
de Carlos Fuentes, E/ arpa y la sombra (1979) de IIJejo Corpenlier, Lope de Aguirre,
príncipe de la libertad (1979) de Miguel Otero Silvo, E/ mar de las lentejas (1979) de Antonio
Benítez Rojo, La crónica dei descubrimiento (1980) de Alejondro Poternoin, E/ entenado
(1983) de Juan José Soec Los perros dei paraíso (1983) de Abel Posse, 1492. Vida y tiempos
de Juan Cabezón de Castilla (1985) de Homero Aridjis y Vigília dei Almirante (1992) de
Augusto Roo Bastos, son los ejemplos más conocidos de novelos que reescriben, con
propósito revisionista, los textos historiográficos sobre lo Conquisto.
306
LETRAS -Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
Poder: la crónica narro para él 5 • Esos textos presentan los viajes dei
Descubrimiento desde una perspectiva oficial que celebra la importancia
histórica
de los acontecimientos y con frecuencia monumentaliza el
posado describiendo hechos y personas que los autores consideran
suficientemente nobles, grandes y elevados para figurar en la Historia 6 • En
Maluco, el narrador recurre a las versiones oficiales de la empresa y repite
el gesto de informar ai Rey de la suerte que corrió la expedición, pero
replantea constantemente su discurso, su modo de producir la Historia a
partir de los jirones dei posado. AI adoptar uno perspectivo diferente - la
visión recortada que caracteriza lo "historio efectivo" (Foucault
89) -,
parodio esta visión centrípeto de la Historia escrita desde y hacia el centro
dei Poder y propone lo perspectiva de un partícipe anónimo e
(in)significante que devalúo lo que la Historia privilegio y realza su lado no
oficial y silenciado. Reescribe, pero no destruye, porque la aniquilación dei
espacio
histórico
imposibilitaría
la
inscripción
en
él
de
nuevas
subjetividades.
5
Cabe recordar aquí et comentaria de Lévi-Strauss en que se evidencia to porctotidod
de ta escrituro histórico : "history is ... never history, but history for" (257).
6
Existen, por supuesto, excepciones. AJ lodo de la crónica de Gómara que cuenta los
hechos de un ''valiente capitán" y que se escribe "en too o las glorias de Espano" (Mignolo
81 ), existen la Verdodera Historio de /os Sucesos de lo Conquisto de la Nuevo Espano de
Berna! Díaz dei Castíllo que, narrada desde la perspectiva de un símple soldado, expone la
otra cara de la Conquista de Méjico; lo Brevísima reloción de la destrucción de las lndios
de Bartolomé de las Casas que denuncia tas atrocidades de la Conquista; y tos
Comentarias Reoles dei Inca Garcitaso de ta Voga en tos que la realídad se describe
desde una perspectivo mestizo, es decír, "impura". Por la condición dei protagonistanarrador, Maluco entronca también con esta verliente, lo cual le contiere credibilidad
porque la novelo repito un discurso reconocido por la historiografia. Por otro lodo, llama la
otención la relación hipertextual (Genette, Pallmpsestes) entre Maluco y ta crónica de
Berna! Díaz dei Costillo: en ambos textos el narrador es un hombre víejo quien anos antes
participó en las empresas espanolas en América como un simple soldado o marinero y
quien escriba su versión de tos acontecimientos para corregir tas omlsiones de las verslones
oficiales.
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (RS).
307
Hutcheon explica que la repetición diferenciada y diferenciadora de
la parodia se realiza mediante una distancia crítica senalada con
frecuencia a través de la ironía (A Theory 32). En su estudio más reciente
sobre la ironía como figura retórica y manera de percibir el mundo,
Hutcheon indica que la ironía - con su énfasis en el contexto, la
perspectiva y la inestabilidad significativa -, define la condición actual
(posmoderna)
dei
conocimiento
(lrony's
Edge
33).
Su
potencial
desestabilizador que deconstruye y descentra los discursos dominantes
resulta particularmente útil como una estrategia política:
[T]he last few decades have seen many claims made for irony as
a most appropriate mode not only for those in politicai opposition
but, more generally, for those with the "divided allegiance" ... that
comes from their difference from the dominant norms of roce,
ethniciiy, gender or sexual choice. (31)
La ironía es un instrumento de crítica, recodificación y redefinición
de significados en los que se basa la construcción social de la realidad.
Sus mecanismos principales - la doble mirada, el humor, el énfasis en el
contexto y en la perspectiva -, desestabilizan y subvierten; a través de ellos
se cuestiona toda pretensión de Verdad en las versiones autoritarias y
dogmáticas dei posado. Esta inestabilidad de la ironía invade Maluco
legitimando un nuevo espacio discursivo: la Historia reescrita por un bufón,
es decir, la Historia como bufonada.
El mayor sustento de esta re--definición paródica es el narrador y
protagonista de la novela, quien escribe un relato personal de la
expedición de Magallanes, dominado en totalidad por su perspectiva y su
voz. Su relato ejemplifica la narración abiertamente controlada por el
narrador que Hutcheon identifica como uno de los modos de narración
308
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
privilegiados por la metaficción historiográfica posmoderna (A Poetics 117).
El YO narrativo senala un discurso personal, autobiográfico [aunque se trata
de una autobiografía ficticia), la inscripción de la subjetividad en la Historia
que subvierte el principio de la narración "neutral" en tercera persona que,
según Émile Benveniste, caracteriza y determina el discurso histórico:
Nous définirons le récit historique comme le mode d'énonciation
qui exclut toute forme linguistique < <autobiographique> >.
L'historien ne dira jamais je ni tu, ni ící, ni maíntenant, parce qu'il
n'empruntera jamais l'appareil formei du discours, qui consiste
d'abord dons la relation de personne je : tu. On ne constatera
donc dons le récit historique strictement poursuivi que des formes
de <<3 8 personne>>. (239) 7
La tercera persona "feigns to make the world speak itself" (White 2);
encubre la presencia de un sujeto de enunciación y disim ula el acto de
narrar. Dicha disimulación aspira a persuadir que la Historia es una
representación objetiva, transparente e impersonal de la realidad, libre de
pasiones, preferencias, evaluaciones subjetivas y distorsiones discursivas. La
subjetividad de la primera persona desafía esta transparencia indicando
que detrás de cada enunciado se sitúa un YO que selecciona, analiza,
organiza e interpreta los hechos, construyendo una realidad textual. En
Maluco, el recurso dei YO localiza la mirada que organiza la enunciación
en la subjetividad dei narrador y protagonista de la novela:
Para [nuestros cronistas] todo es tan simple como cocinar un
guisado a partir de cuatro o cinco ingredientes. Pero, 6qué
saben ellos, Alteza, de lo que en verdad sentíamos cada uno de
En el mismo estudio Benveniste define el pronombre yo como representación verbal de la
persona subjetiva ("personne subjective"), tú como signo de la persona no-subjetiva
("personne non-subjective), y él/el/a como la no-persona ("non-personne") (233). Si la tercera
persona se designa como el modo de enunciación dei discurso histórico, entonces, de
acuerdo con este razonamiento, este discurso es impersonal.
7
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
309
nosotros ante esos cuatro o cinco grandes hechos a los que se
limita su historia? Pues os digo que es allí donde está la verdad,
muy dentro de cada uno de quienes fuimos partícipes de esa
empresa y en nadie más, ni siquiera en Vos, Majestad. Ni en
ningún otro lugar; es inútil que busquéis en los archivos, hurguéis
en las bibliotecas; nada, no hay nada allí. (65-66; el énfasis es
anadido)
Es importante subroyor que lo óptico subjetivo de Juonillo depende
de su lugar social que es lo morginolidod y de lo posición y función que
éste tiene dentro dei mundo representado en su relato.
Lo mirado diológico
Desde lo perspectivo de lo historiogrofío tradicional Juonillo no
pertenece o lo esfera de lo Historio. Hijo de uno prostituto (163
v 270),
desconoce o su podre, es decir, es un ser sin origen, sin filioción. Es
tombién extremodomente pobre: se considero o sí mismo "menos que
uno gollino, simple truhán de pueblo" (163)
v
recuerdo "hober visto o su
hermonito de meses morir de hombre y de frío, y hober es todo todo [su]
vida o punto de morir por los mismos cousas" (163). Se enlisto en lo
expedición ai Maluco porque deseo huir de lo pobreza. Lo morginon
tombién lo oporiencio físico - es "enono y bastante controhecho" (74) - y
lo religión: como judío converso es un ser constantemente despreciodo y
sospechodo por lo sociedod cristiana esponolo (los cristionos viejos).
Lo otredod social de Juonillo determino lo locolizoción y lo dirección
de su mirado que aparece desplozodo respecto o lo óptico dominante,
periférico en reloción con el centro. Este desplozomiento se monifiesto de
dos moneros distintos. Primero, por ser un "sujeto banal" (Bolondier 8),
310
LETRAS- Revista da Cursa de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
sumergido en la vida ordinaria, Juanillo narra enfocando la cotidianidad.
Sustituye las visiones macrohistóri cas de los historiadores cultos por el
espacio microhistórico: analiza con lupa los fenómenos que describe,
recupera el detalle que la Historia descartó por insignificante; privilegia la
experiencia vivida sobre el conocimiento institucionalizado.
El segundo desplazamiento se vincula directamente con el primero.
George Balandier observa que la perspectiva cotidiana cosi siempre es
transgresora:
Le quotidien peut devenir le terrain sur lequel le sujet individuei, et
les petits groupes qui encadrent ses activités réguliéres, situent
leur débat ou leur affrontement avec la société globale. C'est en
ce sens que la formule usée: la "bataille du quotidien" retrouve
un emploi. Le quotidien apparaít .. . com me le moyen de la
dissidence ... ou com me le moyen de l'alternative créatrice
d'enclaves expérimentales ou sein même de la "grande société".
Au degré supérieur, ii délimite un espace de la resistance ... cor ii
fait obstacle à certains totalitarismes: à ses frontiéres s'arrêtent
partiellement le conditionnement et la domination des pouvoirs.
(12)
La otredad encarnada en Juanillo activa una mirada alternativa,
una manera distinta de ver y percibir la(s) realidad/es. La novela
proporciona una escena que ilustra simbólicamente tanto el lugar social
donde se origina la perspectiva de Juanillo como su conciencia de la
importancia de este desplazamiento. Se trata dei juicio de los capitanes
traidores ai que Juanillo asiste escondido debajo de la mesa:
Dime, Majestad Cesárea, i.habéis estado alguna vez en tu
vida debajo de una mesa observando los pies de los
comensales y siguiendo su conversación? Pues habéis hecho
muy mal, que no es bueno para un príncipe ver el mundo
desde el trono solamente .... En cambio, debajo de una mesa
las cosas se vende manera diferente. La inquietud de unos pies,
el movimiento de una pierna, el balanceo nervioso de unas
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
311
rodillas, una mano que boja en gesto furtivo, el sonido de las
palabras sin cara: os dirán mucho más de los hombres y de los
negocias dei Estado que todos los discursos y alcahuetes a los
que miróis y escuchóis desde lo alto de la regia tarima forrada
en terciopelo púrpura. Te lo digo yo que he atisbado la vida
desde todos los rincones y lo poco que he aprendido ha sido
siempre bojo una cama, escondido en un armario, por el ojo de
una cerradura, detrás de un sillón, o debajo de una mesa. (129)
Dos perspectivas se contraponen en esta cita: la dominante y la
marginal; la convencional
v la inusual,
la desplazada. La mirada "boja" dei
bufón descubre las cosas veladas a la perspectiva dominante y
desfamiliariza lo que ésta percibe como familiar. En otra ocasión, Baccino
se vale de la metáfora dei bosque para describir la posición enunciativa
dei narrador: "No entiendo nada de esas cosas grandes: grandes
ambiciones, grandes suenos, grandes amores. Nada de eso es para mí
que soy de los que ven los árboles pero jamás el bosque" (113). En
Maluco, el narrador ve la Historia desde la periferia o desde "abajo" y la
reescribe en términos ajenos a los grandes proyectos históricos. Su
perspectiva periférica ocasiona lo que Homi K. Bhaba llama "restaging [of]
the past" (2): la reinvención de tradiciones recibidas y aceptadas.
Ahora bien, la reescritura dei descubrimiento en Maluco se origina
no sólo en la mirada desplazada sino también en la mirada que se
desplaza. La movilidad de la mirada de Juanillo radica en la ambivalencia
de la posición dei bufón. Por un lado, siendo parte de la chusma marinera,
Juanillo pertenece a la periferia social; por el otro, tiene acceso ai espacio
tanto público como privado de los poderosos. Su profesión, pero tombién
su aparente ingenuidad, ignoroncia y falto de experiencia mundana
hacen que nadie sospeche ni desconfie de su presencia:
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS].
[U]n butón es como un amigo alquilado .... Con nosotros puede
la gente solazarse v sincerarse sin consecuencias, porque i..quién
toma en serio lo que dice un bufón? A nosotros pueden decirnos
cosas que no dirían a sus mejores amigos v tratarnos como no
tratarían a sus enemigos .... [21 l)
La posición dei bufón puede compararse con la de un bribón, un
aventurero, un parvenu social, un sirviente, una prostituta o una cortesana,
personajes estudiados por Bakhtin en The Dia/ogic lmagination. Bakhtin
senala que la posición de estos personajes favorece el estudio dé los
secretos de la vida humana; respecto a la vida privada, todos ellos se
sitúan como una '1ercera persona", un observador "externo". No participan
directamente en el espacio privado de otros (en la mayoría de los casos.
los otros son aqui los miembros de las clases acomoda das), ni ocupan en
él un lugar fijo y definido, pero tienen acceso a él y pueden observaria
("espiar" es la palabra usada por el autor; 124 -127). Para los novelistas este
"intruso incluído" es un recurso de la subversión textual, porque permite
recoditicar la vida de los "grandes de este mundo" a través dei prisma
crítico de los "pequenos".
Entre los miembros ordinarios de la tripulación, Juanillo es el único
que puede entrar en el camarote de Magallanes y deambular libremente
por el barco, escuchando las conversaciones tanto de los jefes como de
los simples marineros. Transita libremente entre los dos espacios - el público
y el privado dei famoso navegante; el herr
ᄋセョ@
y el humilde de la empresa
-, sin que se lo identifique de una manera fija con uno de e llos. Recurriendo
a las palabras de Homi Bhabha se puede describir a Juanillo como "o
subject that inhobits the rim of an 'in-between' reality" para quien "private
and public, past and present, the psyche and the social develop an
interstitial intimacy. lt is an intimacy that questions binary divisions through
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
which such spheres of social experience are often spatiallv opposed" (13).
La posición intersticial de Juanillo imprime una marca indeleble en su
relato. Su marginalidad v trânsito entre diversos esp acios sociales producen
una mirada dialógica que cuestiona la visión "sencilla"de las crónicas
oficiales v reorganiza el espacio histórico. La mirada dei bufón se desplaza
entre lo público v lo privado, lo insigne v lo banal, lo positivo v lo negativo,
lo central v lo periférico, los provectos trascendentes v las vivencias
particulares. El personaje-narrador actúa como un traductor de estos
espacios, es decir, los rearticula en su lenguaje creando una realidad
híbrida v dialógica:
ahora en la vejez ... determiné, antes de morir, dar cuenta a
Vuestra Alteza de los muchos prodigios v privaciones que en
aquel viaje vimos y posamos, y el mucho dolor y la gran hambre
que sufrimos, junto a las muchas maravillas y placeres que
tuvimos. (8; el énfasis es anadido)
Esta cita revela una de las estrategias fundamentales dei narrador
en Maluco: "privaciones" o "dolor/hambre" se yuxtaponen a "prodígios" v
"maravillas/placeres", v cada uno modifica ai otro, creando nuevos o
diferentes matices v sugiriéndole ai lector que no existen oposiciones fijas,
separaciones definitivas, sino que cada elemento de la dicotomia
participa de su opuesto v se rearticula en la zona designada por él.
Según las crónicas oficiales, el principal logro de la expedición de
Magallanes fue el descubrimiento dei estrecho que le abrió a Espana el
camino a las islas de las especias. Sin restarle importancia histórica, Juanillo
registra este acontecimiento en su relato, pero lo rodea de descripciones
de lo que él en su calidad de partícipe v descubrido r anónimo considera
relevante:
314
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
Allí, en el bojo vientre de la nave, oculto a los ojos dei
contramaestre por su propia concavidod, tuve ocosión de
descubrir aspectos de nuestra aventuro, prolijamente
escamoteados por los cronistas en su petulante ignorancia dei
oficio de descubridor.
Fíjote en los algas, por ejemplo, los hay parecidos o lechugas
pero de un verde más intenso, oscuros y suaves como el musgo
... , semejantes o retozos de cuero y viscosas ai tacto y otros que
porecen ostas de cieNo, y pequenos trozos de coral rojo, y hojos
de roble en atono, y vello púbico y angelical, y rosas y plumas ...
.(83)
En las páginas de la crónica de Juanillo se despliegan minuciosas
descripciones de la selva, de las plantas terrestres y marítimas, de la costa
vista desde las naves que la bordean, de los animales, de los colores dei
fondo dei mar, de los peces, de los nidos de pájaros, de las corrientes
tumultuosas dei río que después se llamará de la Plata. Lo que la tradición
historiográfica de aquella época considera relevante y lo que descartaría
por insignificante se ubica en el mismo plano - el de la realidad
descubierta - y se contamina en el relato dei bufón. La disolución de la
frontera trazada entre lo importante y lo nímio produce "la pulsión
renovadora de las imágenes" (Bustillo 301 ): lo glorioso se desvaloriza, posa
ai segundo plano, mientras que lo fútil se re-valoriza, adquiere nuevos
significados y trepidaciones.
Este replanteamiento "bufonesco" afecta también la visión de los
personajes históricos, especialmente la de Magallanes. El ser legendario,
jefe de una expedición que logró lo imposible, se desmitifica y humaniza
en la narración dei bufón. Son los pórrafos dedicados ai navegante
portugués donde se observa con claridad cómo el tránsito entre vari os
espacios le abre a Juanillo perspectivas vedadas a los que nunca cruzan
las fronteras de su espacio social y cultural. Cuando su doble posición dei
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
315
bufón posa ai segundo plano y Juanillo es tan sólo un marinero de la
tripulación, se le presenta la imagen pública de Magallanes, el hombredios,
escogido por el
destino
para
ejecutar hazanas y proezas
extraordinarias:
Primero, y recortándose contra el cielo blanco, se distingue a
don Hernando, igual a un dias. Sus armas que reverberan y la
capa de terciopelo verde que cubre sus espaldas y las ancas
de su cabalgadura le dan un aspecto sobrenaturaL inhumano.
(19)
Juanillo observa a lo largo de su relato que Magallanes nunca se
quita la armadura por temor a un acto de traición. Este comportamiento,
en primer lugar pragmático, es también simbólico. La armadura oculta de
la mirada lo que en el jefe hay de más vulnerable y humano: el cuerpo.
Cubierto por capas de metal reluciente, Magallanes deja de ser una
criatura perecedera, expuesta ai dolor físico, la fatiga y la enfermedad.
Con la armadura, su figura se agranda y dignifica, su presencia se vuelve
imponente; en otras palabras, se deshumaniza. A los ojos de los miembros
comunes de la dotación debe ser semejante a un dios que tira las riendas
de sus vidas 8 •
Sin embargo, en su calidad de bufón, Juanillo tiene acceso ai
espacio privado dei héroe y durante sus encuentros con él en el camarote
es testigo de una metamorfosis que transforma ai dios en hombre:
Yo seguía mudo .... Sabía que tarde o temprano saldría de
su caparazón de metal como un gusano de su crisálida y se
metamortosearía en mariposa de brillantes colores, revolteando
en torno a sus recuerdos y a mis mentiras. Ya había ocurrido
otras veces cuando estóbamos a solas, en la intimidad de su
cámara. (1 05)
En una ocasión, cuando Magollanes se libra de la armadura. Juanlllo obseNo que "[e]ra
muy pequenito sin ella" (139).
8
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
La armadura, en su sentido literal y figurativo, encubre a un ser
humano parecido a todos los demás, con sus deseos, suenos, miedos,
goces y sufrimientos. Juanillo, quien conoce la complejidad dei espacio
público y privado de Magallanes, se percata de que la identidad de su
amo es una zona gris de interrogaciones sin respuestas, donde nada es fijo
ni coherente. "i.Cuál eres en realidad?" (112), pregunta confundido, sin dar
con una respuesta satisfactoria. El texto subraya esta indeterminación con
un espacio en blanco que sigue a la pregunta de Juanillo. Los seres
humanos, grandes o pequenos, son espacios en blanco donde las
circunstancias imprimen signos diferentes, a veces, incluso contradictorios,
irreconciliables.
El desplazamiento crítico de la mirada activa también un diálogo
entre la Historia como un proyecto trascendental y la historia como
experiencia. El narrador llama la atención a esta dicotomía cuando
compara su propio relato con el enfoque de las crónicas e historias
oficiales. En éstas, los historiadores resaltan el acontecimiento, la hazana,
insisten en una relación directa entre la causa y el efecto. En cambio, a
Juanillo le atraen los espacios intermedios, lo que sucede entre la causa y
el efecto y, en particular, numerosas bifurcaciones de esta realidad. Así,
refiriéndose a la calma de tres meses que inmoviliza a la escuadra en el
Pacífico, el narrador se queja de que los cronistas reales "despacharon ...
en dos párrafos todo este asunto que [le]lleva a [él] tantas páginas" (200), y
pregunta irónicamente:
i.No bastaba acaso con decir que nos atropá uno calma de
meses y que se nos acaboron por completo los bastimentos, y
posamos gron hambruno; y luego meter a los vientos de nuevo
y la !lota en marcha hacia su destino? i.Poro qué tanto rodeo? .
(206)
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
Para Juanillo este rodeo es crucial, porque él percibe la travesío dei
Pacífico en dos dimensiones distintos que se complementan: la hozana
(histórica) y ia vivencia (personol). Por eso insiste en la vivencia, es decir, en
el hombre, ias enfermedades, el miedo, las estrotegios de sobrevivencia,
la implacable quietud de las aguas resplandecientes como un espejo, los
muertes, el olor a podredumbre. La vivencia es todo lo que recontextualiza
e ironiza el significado de lo polabra "hozona".
En el nível dei discurso, dicha problematización dei binomio
Historia/historia se articula en ia preferencio que ei narrador manifiesta
hacia el presente como el tiempo dei relato. Es uno diferencia con las
convenciones historiográficas, donde ei posado es el tiempo de la
enunciación:
L'énonciation historique, ,.. , caractérise le récit des événements
passés .... [EIIe] comporte trois temps: l'aoriste (=le passé simple
ou passé défini), l'imparfait (y compris la forme en -rait dite
conditionnel), le plus-que-parfoit. Accessoirement, d'une maniére
limitée, un temps périphrastique substitut de futur, que nous
appellons le prospectif. Le présent est exclu ... . (239; el
subrayado es anadido)
Ei posado connota la depuración, la estabilidad significativa, una
realidad acabada v fíja; disipa dudas y encubre vacíos; presenta los
acontecimíentos como hechos inequívocos e írrefutables 9 • En cambio, el
presente no ímpone iímítes (Barthes dice que es "parole sons limite"), senala
un mundo obierto a tronsformaciones, semánticamente inestabie; una
realidad en proceso de devenír, de hacerse v deshacerse, que fluve, que
9
Sobre el valor distanclador dei pretérito en el discurso histórico 」ッョウセ・Z@
MM Bakhtin,
The Dialogic lmagination (18), R. Barthes, Le degré zéro de lécriture [26-27) v P.Ricoeur,
Temps et réc1t, especialmente el tomo segundo.
318
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS),
es transitaria, no tiene fin. El presente de la narración en Maluco ve la
Historia en términos de experiencia inmediata;
presenta los sucesos y
vivendas como algo inconcluso y abierto cuyo significado último siempre
se escapa a los que en ella participan.
A fin de reforzar la impresión de inmediatez connotada por la
narración en presente, Baccino Ponce de León recurre también ai tempo
narrativo a través dei cual establece la relación entre el tiempo vivido (el
tiempo tal como lo experimentan los personajes, el tiempo de la historia
enunciada) y el tiempo de la narración, que es el de la enunciación 10 •
Algunas veces la acción se demora, se aletarga; otras, acelera
vertiginosamente. Lo largo travesía dei Océano Pacífico es la mejor
ilustración de este juego con la dinâmica dei relato. La expedición posa
tres meses atropada en las aguas dei océano, tres meses durante los
cuales no ocurre nada. El narrador reconstruye esta situación a través de
períodos muy largos que acumulan adjetivos descriptivos y, sobre todo,
repeticiones. Por ejemplo, la frase "Es que hablábamos mucho" se reitera a
lo largo dei capítulo séptimo donde el narrador relata
la travesía dei
Pacífico. En contraste, cuando ai cabo de meses reaparece el viento, el
relato se dinamiza, la frase se vuelve breve, rápida y dominada por
sustantivos y verbos:
Entonces Su Alteza abre los ojos ... [y lo] que ... ve es otra cosa.
Ve a los hombres que se lanzan a las vergas, que trepan por los
obenques, que tensan las jarcias, que sueltan las velas. Ve la
Trinidad que parece un hormiguero roto. Que se encabrita
como un potro. Porque en todos los mástiles siguen estallando
velas. (227) 11
10
Véase: G. Genette, Figures III y P. Ricoeur, Temps et récit, vol.2.
11
Los mecanismos dei dinamismo expresivo se describen muy bien en Teoria de la
expresión poética de Carlos Bousono (t. 1). Bousono distngue entre el dinamismo positivo y
negativo: "una frase posee dinamismo positivo si su estructura nos obliga a una lectura
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
319
A lo largo de la novela el tempo narrativo varía porque no todos los
momentos de la empresa se viven de modo igual. Esta reconstrucción de
la expedición de Magallanes en términos de experiencia modifica las
convenciones de la crónica histórica en la cual predominan "la acción y su
vértigo" (187).
Sin embargo, Juanillo-narrador es muy consciente dei hecho de
que todo acto de escritura traiciona la experiencia, que necesariamente la
empobrece imponiéndole las normas dei relato que vuelve transparente lo
que en realidad es confuso. Más aún, sabe que el relato traiciona también
el acto de escritura, porque elimina el mundo dei narrador, el contexto de
enunciación que lo rodea y condiciona:
i.Qué sabéis vosotros de la historia real de esa página? i.Cómo
sabéis si cuando don Hernando estaba por, el cronista no tuvo
que interrumpir porque le han avisado que su madre ha muerto
o porque está tiritando de frío ... ? Por eso, Alteza, muchas veces,
como ahora, me da rabia la continuidad de mi discurso.
Vergüenza me da pensar que la tranquilidad, que la protección
que te da esa continuidad, sea a costa de esconder mis llagas,
de desaparecer tras la máscara de las palabras, tras los rastros
de los personajes, tras las penas inventadas de esos seres
fantasmales que se mueven por las páginas que tanto te
deleitan o afligen. (207)
Para incorporar la vivencia en la escritura de la H/historia, Juanillo
subvierte el eje temporal de su relato inscribiendo en él el presente dei
acto de enunciación: su vejez y su cansancio, y también su desengano
rápida, y ... , por el contrario, posee dinamismo negativo si esa misma estructura nos obliga
a una lectura lenta" (337). El dinamismo positivo es encomendado a las partes de la
oración que transportan nociones nuevas, es decir, los verbos y los sustantrvos. En cambio,
el dinamismo negativo se debe a las palabras que siNen sólo para matizar lo ya dicho, los
adjetivos y los adverbias. El valor dinâmico de la repetición es negativo porque no aparta
nada nuevo (338).
320
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
con la Historia que se olvida de los Juanillos tan pronto como deja de
necesitarlos. Así la novela conjuga dos H/historias y dos vivencias: la
expedición a las Molucas y la empresa de contaria.
La Historia y el humor
En Maluco, lo revisión dei discurso de las crónicas se produce
gracias o la "posicionalidad" dei narrador y, sobre todo, a su función en el
mundo que describe. Juanillo fue contratado como bufón; el bufón es el
que se ríe y hoce reír a los demás. Como narrador de un relato histórico,
Juanillo se ríe y nos hace reír de la Historia, Uno de los principales
mecanismos de la revisión dei discurso histórico es la riso que se origina en
el desplazomiento social de la mirada.
Bakhtin senaló en Rabelals and Hls World que la Historia, así como
otros discursos de significancia social y político, no pueden ser cómicos:
Laughter is not a universal, philosophical form. lt can refer only to
individual and individually typical phenomena of social life. That
which is important and essential cannot be comical. Neither can
history and persons representing it - kings, generais, heroes - be
shown in a comic aspect. The sphere of the comic is narrow ond
specific (private and social voices); the essential truth about the
world and about man cannot be told ln the ianguoge of
iaughter. (67)
Más que el tono, la seriedad es una forma de percepción dei
mundo; elimino toda ambivalencia e indeterminación, y reduce la
polivalencia semântica de la realidad a un sólo significado, fijo, estable y
completo. De acuerdo con Bakhtin, la palabra seria es inequívoca, no
produce verdades sino la Verdad; como tal mantiene el orden y la
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS].
321
ideología establecidos, imposibilita el cambio y la renovación (Robelais 6781 ). Es por eso que los discursos oficiales, originados en y orientados hacia
el Poder, privileglan los géneros de los que se expulsó la riso. La
historiografía, con todos sus subgéneros, pertenece a esta categoría de
textos.
El temor a la riso se debe a su "poder terapéutico" (Rabelaís 67) que
libera, corrige y renueva: "laughter [is] a universal philosophical principie that
heals and regenerates" (70). Privilegiando una óptica particular, la riso
destruye los significados fijos, introduce ambigüedad, pone en movimiento
lo petrificado por tradición y convención; cambia la relación entre el
hablante, su discurso y el objeto de ése, causando así la reorganización de
perspectivas. La irrupción de la riso en el espacio de la Historia es, por lo
tanto, una manera de subvertir la versión oficial o tradicional dei posado
('tradicional" en el sentido elaborado por Hobsbawm en The lnvention of
Trodítion 12) Mediante su "poder terapéutico", la riso desfamiliariza lo que la
convención presenta como normal y familiar. En una palabra, la riso altera
lo reolidad, abriendo sus puertas o la otredad, ai discurso dei otro. Estas
características hacen de la riso y dei humor un componente esencial de la
reescritura paródica de la historia oficial dei descubrimiento en Ma/uco 12 •
12
La parodia no siempre es cómica, observan L. Hutchecn (A Thecry 32) y G. S. Morson (69).
Por ejempio, castigo divino parodio los convenciones tanto de ia novela histórica como dei
relato poiicíaco. pero no recurre ai humor como mecanismo de recodificación. Por esta
rozón dedico una sección especial a lo riso.
Por otro iodo, es revelador ei hecho de que, en lo mayoría de los casos. ia novela histórica
tombién se inscribe en ia seriedad. En algunas novelos aporecen escenos cómicas (por
ejempio, en Santa Evito. el encuentro entre ei Coronel y los polidas olemanes, o el episodio
dei desembarque dei cuerpo de Evita en ltaiia). pero muy pecas hacen dei humor ei
principio de ia construcción de reaiidad. En América Latina, además de Maluco, se puede
citar Los relómpagos de agosto de Jorge lbargüengoitia (1963) cuyo humor devastador
caricaturiza lo revolución mexicana.
AI mismo tiempo, resulta interesante observar que El nombre de la rosa de Umberto Eco
(1980), novela que tecriza ei potenciai subversivo de lo riso, mantiene ia seriedad a lo largo
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
El relato de Juonillo está sembrado de ironía, burlo, sarcasmo y
chistes que ponen en entredicho a la vez los acontecimientos narrados y
los valores occidentales que les dan origen (como son: Rey, lmperio,
derecho divino, civilización, barbarie, cultura, religión). El protagonista
presento estas sucesos con una ingenuidad que es sólo aparienc ia.
Debajo de lo máscara dei bufón se esconde la sagocidod que
resquebraja desde dentro los Imposturas ideológicos y culturales dei
mundo occidental.
El juicio práctico dei bufón percibe con cloridad lo ihsensotez y
arrogancia de las teoríos europeos acerca de la geografia dei mundo,
especialmente la idea dei paraíso terreno! elaborado por Colón. Expone la
ridiculez de los suposiciones dei almirante ai contrastarias con lo que le
dieta su conocimiento de la vida y, sobre todo, su sentido crítico
agudizado por la inmersión en la cotidianidad:
[E}I Almirante Colón tenía dei Paraíso uno teoria diferente de la
mía .
... [S]egún aquel ilustre navegante, el mundo tiene forma de una
teta de mujer, con el pezón en altos, cerca dei cielo y por eso
decía. "los navíos van alzándose hacia el cielo suavemente y
entonces se goza de más suave temperancia"; de resultas de lo
cual aquel empecinado marina colocaba el Paraíso en ese
"dulce pezón". Lo que no sé decirte es si se trataba dei pezón de
la teta de su madre o de la mía, aunque pienso que sería la
suya, ya que menguodos bienes depararia el Paraíso de estar
situado en la magra teta de mi madre. (77)
Este fragmento permite esbozar un paralelo entre el discurso de
Juanillo y la manera en que Sancho Panza recodifica el mundo
caballeresco de Don Quijote. Colón y Don Quijote inventan una visión dei
de sus 500 páginas. Se nota en esta obra una contradicción obvia entre la propuesta
ideológica/cultural y ia praxis de escritura.
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
mundo basándose en sus ideales culturales (religiosos o literarios). La
mirada desplazada - prosaica, popular, "banal" o ingenua - de personajes
"bojos" como Sancho Panza y Juanillo traduce esta visión, activa una
reinterpretación de perspectivas. La cita, pero también la novela entera,
ilustra "the processes through which the low troubles the high" (Stallybrass
and White 3) creando una visión cómica y, por eso, más flexible, dei
mundo.
La riso dei bufón reevalúa también el Descubrimiento como un
proyecto político y cultural. El discurso dei Poder, llamado por Michel de
Certeau "l'écriture conquérante" (3) construyó una visión esencialista y
simplificada de la realidad dei continente americano y de sus habitantes.
En ella, las costumbres de los índios - en particular las prácticas
relacionadas con el cuerpo como la desnudez, la sexualidad o la
antropofagia - y el estado "primitivo" de sus almas, adquieren un
significado especial porque permiten representar a América como una
"criatura deforme y monstruosa " (O'Gorman 134) que necesita ser
civilizada a través de la dominación. Esta misión cristianizadora y
civilizadora que se constituye como base ideológica de la conquista se
desafia sin cesar en Maluco. AI unir la riso bufonesca a su experiencia de
judío
」ッョカ・イウセ@
Juanillo cuest1ona este proyecto co!onizador ridiculizando
los . métodos, los propósitos y también los resultados de los empenas
evangelizadores:
[O]í más de una vez la voz aflautada dei cura Sánchez Reina y la
de trueno de capellán Balderrama, desgranando a un invisible
auditorio los rudimentos de nuestra fe .... Ambos curas se referían
a Sodoma y Gomorra. y a las siete plagas de Egipto, y a otras
calamidades destinadas a poner en claro cómo se portaba
Dios con los rebeldes a su fe. Y aquello era tan aleccionador
que .. . me puse a trabajar por temor a merecer alguno de
324
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
aquellos cataclismos con mi perversa molicie. Ahora, que si
aquellos sermones estaban destinados a las mujeres que, se
decía, ocultaban en la nave, las lnfelices debían de estar muy
entusiasmadas por la formo ton llano y concisa con que les
explicaban cosas como la de la Santa Tlinidad y la
Reencornación y la Ascensión y otros osí de simples. Y también
hablaban dei lnfierno, y sin duda les mostraban láminas como
las que me ensenoron a mí cuando me cristianizoron y que aún
no se me borran. (85-86)
El bufón no se limita a la ironía verbal. En un gesto irreverente de
burla imita la costumbre de los descubridores de bautizar y poner nombres
cristianos a cuanto ser vivo o tierra encuentren. Repite el discurso religioso
emulando la solemnidad dei acto, pero lo recontextualiza radicalmente
porque sus "neófitos" no son seres humanos sino animaies:
Aquella tarde en una sencilla pero conmovedora ceremonia, di
a mis [animales] nombres cristianos.
Era un poco antes de la hora dei ángelus y estaba de regreso
en la Trinidod, así que aproveché la ausencla dei capellán para
tomar prestados sus hábitos, y vistiendo el omito, el alba y hasta
las casullas que llevaba de repuesto en un baúl, me instalé
dispuesto a administrar el Sacramento a mis criaturas .... Tenía
dos cuervos ... a los que llamé Fonseca y Cristobao, y una
pareja de buitres o los que denominé Los Habsburgo ... . Tenía
también uno loro parlonchina y muy histérica a la que bauticé
Juanito ta Loca, y un elegante papagoyo amarillo y azul ai que
llamé tsabe/ito. (87-88)
Nombrar es definir la propiedad, en el doble sentido de atributo y
posesión; bien lo sabían los descubridores y colonizadores cuando se
apropiaban de los territorios descubiertos mediante la nominación. Juanillo
imita estos actos, pero los deforma a través de la burla. Bakhtin observa
que la riso altera la realidad acercando entidades que no suelen asoc iarse
o que siempre existen separadas y distanciando lo que suele unirse [ The
Dlaloglc /maglnatlon 237). El "bautismo" administrado a los animales
LETRAS Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
325
construye una realidod híbrida en la que coinciden realidades distantes: los
anima\es exóticos y los nombres de personajes ilustres de la historia
espanola. E\ efecto de esta desfamiliarizoción es doble: por un lado,
degrada y desheroiza a los miembros de las clases gobernantes; por otro,
pone ai descubierto y ridiculiza la práctica occidenta\ de apropiarse de
América mediante e\ acto de nombrar.
La idea misma dei Descubrimiento cambia vista desde la
perspectiva dei bufón--descubridor. E\ suyo no es un proyecto ilustre o una
hazana
heróica.
A veces,
Juanillo
duda
dei
carácter político y
evangelizador de la expedic ión de Magallanes y la presenta como uno
empresa culinoria que salió de Espana con e\ único propósito de proveer
las especias que mejororían los sabores en la mesa imperial:
6Y qué éramos nosotros ... ?: simples marionetas .. ., títeres sujetos
ai arbítrio de unos locas para dar contento a los ricos. para que
no falte en la mesa de los poderosos la pimienta con que
sazonar la carne ni el clava y la canela para aromatizar el vino.
[18)
AI mismo tiempo, Juanillo no deja de insistir en que la expedición es
una locura. Lo sugiere claramente e\ título de la obra que establece un
juego entre e\ nombre dei verdadero destino de Magallones - las islas
Molucas -, y el nombre fictício de éste - Maluco -, que en portugués
significa /oco. El narrador intensifica esta visión ai describir los elementos dei
viaje recurriendo a la polobra /oco o sus derivados. Toda persona que tenía
algo que ver con la empresa estaba contagiada de una locura colectiva:
Estábamos locos, sí, como lo estuvo siempre Ruy Foleiro y el
Capitán don Hernando, como lo estaba Vuestra Majestad
Imperial y los altos funcionarias de la Casa y el obispo Fonseca y
don Cristobao de Haro. que financiá la empresa.
326
LETRAS -Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
Y como lo estaban quienes calafatearon las naves y quienes
cargaron con tanta comida v baratijas como jamás había
llevado flota alguno. Como lo estaban las mujeres que cosieron
amorosas las velas y los herreros que moldearon el bronce de los
herrajes y los carpinteros que dieron forma a los mástiles. (14)
Los tripulantes eran "locos errantes" (14), "hormigas locas" (115),
"pequenos locos" (139); en alguna ocasión se comportaban "como un
punado de locas muy excitadas por algo" [187): en otra, "el tedio y la
locura [los] acosaban como perros" [142). La expedición se presenta en la
crónica de Juanillo como "un loco viaje alrededor dei mundo todo" (8) o "el
loco proyecto" (29), disenado por un hombre que enloqueció (45). El
estrecho que ahora lleva el nombre de Magallanes se describe como "un
escenario absurdo" (179) que "parece creado por la imaginaci ón de un
dios loco" (178).
Una alusión intertextual a E! Quijote realza la codificación de la
empresa en términos de locura. Por razones de verosimilitud cronológica,
no se encuentran en el texto alusiones directas a la novela de CeiYantes,
publicada anos después dei viaje de Magallanes. Sin embargo, Juanillo
alude a un nino de nombre Alonso Quijana que vivía en la parroquia dei
cura Sánchez Reina, partícipe de la expedición (99). Se pueden senalar
también otras alusiones que establecen una relación inte rtextual entre las
dos novelas: como Don Quijote, Magallanes cosi nunca se quita la
armadura; Don Quijote le promete a Sancho un condado para
agradecerle los seiYicios y Magallanes le promete a Juanillo nombrarlo el
conde de Maluco (52).
La intertextualidad subraya la re-definición
paródica dei viaje de Magallanes como una empresa quijotesca. AI
reescribir la expedición como un acto de locura, Baccino desheroiza y
desmitifica los hechos dei Descubrimiento. AI mismo tiempo, cuestiona la
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS).
racionalidad de la Historia que deja de percibirse como un proyecto
consciente trazado por el hombre y adquiere el matiz de una fuerza
irracional que arrastra ai ser humano, sin mostrar preferencia alguna por su
condición social.
La riso dei bufón no perdona a nadie, ni siqu iera ai destinatario
mismo dei relato, el rey Carlos V. Toda la crónica es una larga epístola
dirigida ai rey, pero a menudo Juanillo interrumpe su fluir para retar ai
monarca mediante digresiones cuyo tono oscila entre la osadía y la
irreverencia, características dei espíritu carnavalesco definido por Bakhtin
como:
(a] temporary liberation from the prevailing truth and from the
established order; .. . the suspension of ali hierarchical rank,
privileges, norms, and prohibitions: ... the true feast of time, the
feast of becoming, change and renewal ... hostile to ali that
was immortalized and completed. (Rabelais lO)
El componente principal dei carnaval en los apóstrofes de Juanillo
es lo grotesco que degrada y materializa, destruye el aura que rodea ai
personaje real. De acuerdo con Stallybrass y White, el realismo grotesco
abarca "transcodings and displacements affected between the high/low
image of the physical body and other social domains" [9) y conduce a una
inversión de jerarquías: la cultura popular reescri be la cultura alta
produciendo una perspectiva opuesta a la aceptada [4). Uno de los
emblemas más importantes de la cultura alta es lo que los autores
denominan, siguiendo a Bakhtin, el cuerpo c/ósico: elevado, estático,
monumental, modelo estético, forma inherente de la cultura oficial,
distanciado dei contexto social, universal y trascendente, cerrado, sin
orificios. La irrespetuosa creatividad dei carnaval reescribe el cuerpo
328
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (RS).
clásico imprimiendo en él los rasgos dei cuerpo grotesco: la multiplicidad,
la apertura hacia el mundo exterior, el énfasis en las partes pudendas.
Esta re--evaluación de lo elevado en el prisma de lo bojo es la
característica sobresaliente en
Maluco.
En
las digresiones, Juanillo
manifiesta su curiosidad por saber si el cuerpo real de Carlos V se parece
ai de la gente común como él mismo, es decir, si es un cuerpo fisiológico:
Incluso me he !legado a preguntar si vosotros los reves cagóis, si
con toda vuestra majestad os ponéis en cuclillas sobre un cubo
v hacéis fuerza, si os quitáis la capa de arminos por vosotros
mismos, o si un poje tiene tal cometido v el honor adicional de
limpiaros el culo, v si en los palacios hav algún lugar destinado a
tales menesteres, todo oro v esencias. En verdad que tengo
gran confusión ai respecto, porque con todo lo que tragáis,
manducáis, roéis v corroéis, de todo lo mejor v la mavor parte,
ilógico seria que vosótros comierais v nosotros cagáramos. [l 03)
[T]ú naciste entre púrpuras v apuesto que ni siquiera asomaste a
la luz pegoteado v sucio como cualquiera de nosotros, sino
inmaculado v soberbio. Y no diste un berrido cuando el aire de
este mundo llegó a tus pulmones, sino una orden. [163)
La yuxtaposición dei espacio real - prístino, puro, estático, noble -,
con las funciones fisiológicas dei cue rpo descompone la estructura binaria
que define, también en los términos sociales, la posición de lo alto y lo
bojo, y así produce una realidad híbrida, heterogénea e inestable.
El mecanismo más importante de este desplazamiento es el
lenguaje. Bakhtin observa que una de las fuentes más importantes de la
riso en la obra de Rabelais es el lado no oficial dei habla: palabras
indecentes, vocablos relacionados con la bebida, la defecación, el sexo y
otras funciones fisiológicas dei cuerpo, el lenguaje usado por el hampa de
las ciudades y los pueblos. A través de él, Rabelais disenó un punto de vista
LETRAS -Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
329
específico sobre el mundo. una selección particular de la realidad que
difería considerablemente de la visión oficial ( The Dialogical lmaginotion
238). No sorprende, entonces, que las indecencias Jingüísticas, chistes
verdes, juegos de palabras e "historietas" eróticas sean una fuente de
humor y una estrategia dei desplazamiento en Maluco. En sus apóstrofes ai
rey, pero también en la totalidad de su relato, Juanillo recurre a un
lenguaje a menudo indecente, procaz y hasta pícaro; sus chistes cosi
siempre revelan un doble sentido con fuertes connotaciones eróticas. Lo
significativo radica en el hecho de que el narrador aplique este habla no
oficial a una realidad elevada que normalmente trata de distanciarse de
los espacios designados por el lenguaje "bojo", como el cuerpo, la cultura
popular, la vida cotidiana. La combinación de las palabras cagar, na/gas,
cu/o, berrinche, teta, con otras como rey, imperio, príncipe, capitán.
pa/acio, orden, produce una incongruencio transgresiva que impregna el
lenguaje oficial de una inestabilidod semántica. Los coloquialismos de
Juanillo materializan lo que parece no tener cuerpo resquebrajando las
construcciones discursivas creadas por las clases dominantes como el
mecanismo principal de su dominación ideológica.
El espacio real que puede interpretarse como una realidad
"descorporizada", es una de estas construcciones. Judith Butler habla en
Bodles thot Motter de la "figuration of masculine reason as disembodied
body'' (49). La autora sugiere que el hombre, en cuanto la encarnoción de
la razón instrumental y dei Poder, suele representarse como una figura sin
cuerpo: sin niríez, sin necesidad de comer, defecar, vivir
v morir.
En
cambio, las mujeres, los nil'ios, los esclavos y otros sujetos subalternos
"perform the bodily functions" (49). Esta estrategia simboliza la oposición
entre lo racionalidad dei poder o el centro y la materialidad de la periferia.
330
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS].
El proceso de racionalizar o "desmaterializar" los espacios dei poder es una
manera de la sublimación que es, según Stallybras y White, "the main
mechanism whereby a group or class or individual bids for symbolic
superiority over others: sublimation is inseparable from strategies of cultural
domination" (197). AI unir lo sublime con lo grotesco y ai reescribir ai
monarca mediante términos fisiológicos, Juanillo re-materializa el espacio
real y deshace la imagen abstracta y simbólica dei Poder.
Ahora bien, la reinterpretación dei espacio real se realiza también en
la reflexión sobre la decadencia que emprende la crónica de Juanillo 13 . El
relato descubre el cuerpo degenerado y envejecido dei monarca cuyas
funciones fisiológicas y demandas materiales se exasperan hasta el límite,
terminando con la imagen de un moribundo babeante, sardento,
achacado por una infinidad de males:
Lo piei marchita, de colar cetrino. La boca desdentada. El belfo
tembloroso. El hilo de baba que escapa de la comisura
derecha de los labias y se pierde en la barba entrecana. El
mentón prominente, aguzado por la edad. El pelo blanco. (261)
Entonces, [el rey], ... , seguirá su camino hasta el aposento de
trobajo .... Hasta !legar ai sillón. Allí vuelve a detenerse. Trepa
trabajosamente, como un nino; aferrándose con sus dedos
deformados por el reuma ai dosei dei terciopelo negro. Se le
coe el bastón. Busca apoyo en el respaldo. Finalmente logra
acomodorse. Sobre la pila de almohadones y bojo el dosei
negro, parece el retrato de un recién nacido. Uno de esos
13
Numerosos autores de América Latina recurren a la lmagen dei cuerpo enfermo y/o viejo
como método de desestetización dei discurso de la historia. Sirven de ejemplo E/ otoiío de!
patriarca y E/ general en su /aberínto de Gabriel Gorda Márquez, Yo e/ Supremo de
Augusto Roa Bastos, Terra Nastro de Carlos Fuentes, E/ mar de los !entejas de Antonio
Benítez Rojo, La trogedia de! generolístmo de Denzil Romero, Sola de bastos. cabal/o de
espadas de Héctor nzón, Lo novela de Perón de Tomás Eloy Martínez y Noticias detlmperio
de Fernando dei Poso. En lo moyoría de estas obras se puede observar la relnterpretación
dei binomio cuerpo/idea seríalada por Mudrovcic.
-Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
príncipes enfermizos cuyas vidas se extinguen en la cuna. [225226)
A veces, la riso de Juanillo se !lena de crueldad porque muy poca
compasión siente por el monarca destruido por la gota, la ceguera y el
debilitamiento general dei cuerpo; cosi se percibe una satisf acción o un
goce mórbido en la enumeración de los achaques reales. María Eugenio
Mudrovcic obseNa que el énfasis en el deterioro físico de los héroes
nacionales
"cambia
la
relación
de
fuerzas
entre
cuerpo/idea
institucionalizada por el discurso historiográfico dominante" (454). Las figuras
prominentes de los panteones patrios no mueren por una idea, sino que
tratan de sobreponerse a la corrupción dei cuerpo (454).
Este
"afantasmamiento
"afantasmamiento simbólico"
físico"
es
(Mudrovcic
ai
454).
mismo
Así,
tiempo
en Maluco,
un
la
descomposición corrompe no sólo el cuerpo de Carlos V sino que invade
todos los espacios reales: lo familia, el palacio, la corte y, finalmente, el
imperio entero. El deterioro moral y físico dei monarca equivale a la
decadencia de la nación. Mediante la imagen irreverente dei monarca
moribundo, el bufón articula su burla dei país que pretendía ser
abanderado de la civilizoción. Tanto Carlos V como su espacio
metropolitano quedan desmitificados. La Historia (con "H" mayúscula) se
hace vulnerable, despojada de esa calidad etéreo que la convierte en
herramienta de poder y dominación.
La riso dei bufón, a veces ligera y otras sarcástica y acusadora, es
un gesto irreverente que resquebraja e/ esqueleto rígido dei discurso
histórico de las crónicas, una forma de re- y descodificar los signos de la
historia y despojaria de toda verdad absoluta y autoritaria. Bakhtin
asegura que la riso, en todas sus formas, introduce "a critique on the one332
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
sided seriousness of the /ofty word, the corrective of realily that is always
richer, more fundamental and most importantly too contradictory and
heteroglot to be fit into a high and straightforward genre (The Dialogic
lmagination 55). En Maluco,
e/ humor de Juanillo corrige las crónicas
oficiales, crea matices nuevos, destruye las convenciones que definen lo
significante y lo insignificante para la Historia, y propone una visión más
flexible y plural, más inclusiva, dei posado.
Con razón, pues, el Felipe 11 ficticio de Terra nostra- y quizá también
el real - tenía miedo de las "plurales y contradictorias versiones de lo
ocurrido''. Ei reiato de Juaniiio en Maluco de Napoieón Baccino Ponce de
León ataca a la Historia, transformándola en un espacio risible, en una
bufonada. Este mecanismo de degradación, como dirían Stallybrass y
White, humilla y mortifica, pero ai mismo tiempo revive y renueva (8).
Obras citadas:
Aridjis, Homero.
1492. Vida y tiempos de Juan Cabezón de CastJ/Ia. México:
Siglo Veintiuno Editores, 1985.
Baccino Ponce de León, Napoleón. Maluco: La novela de los descubridores.
Barcelona: Seix Barrai, 1990.
Bakhtin, Mikhail M. The Dialogic lmagination: Four Essays. Ed. Michael Holquist.
Austin: University of Texas Press, 1981.
Rabe/ais and his World. Bloomington: Indiana University Press, 1984.
Balandier, George. "Essai d'identification du quotidien."
Cahiers lnternationaux
de Socio/ogie 74 (1983): 5-12.
Barthes, Roland. Le Degré zéro de !'écriture. Paris: Seuil, 1972.
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
333
Bartolomé de las Casas. Historia de tas tndlas. Caracas: Biblioteca Ayacucho,
1986.
Benítez Rojo, Antonio. E/ mar de tas tentejas. Barcelona: Plaza & Janes, 1984.
Benjamin, Walter. 1/uminaciones /. Ed. Jesus Aguirre. Madrid: Taurus, 1971.
Benveniste, Émile. Probtémes de lingutsttque générale. Paris: Gallimard, 1966.
Bhabha, Homi K. The Location of Culture. London: Routledge, 1994.
Bousorío, Carlos. Teorío de la expresión poética. Vol. 1. Madrid: Gredos, 1970.
Bustillo, Carmen. "Personaje y tiempo en La tragedla dei generalísmo de Denzil
Romero." Revista lberoomericana 166-167 (1994): 289-305.
Butler, Judith. Bodies that Matter. New York: Routledge, 1993.
Carpentier, Alejo. E! arpo vla sombra. México: Siglo Veintiuno Editores, 1980.
Certeau, Michel de. L'écrlture de l'hlstolre. Paris: Gallimard, 197 5.
Dei Poso, Fernando. Noticias dellmperio. Madrid: Mondadori, 1987.
Eco, Umberto.
/mie rózy.
Trad. Adam Szymanowski.
Warszawa: Panstwowy
lnstytut Wydawniczy, 198 7.
Foucault, Michel . "Nietzsche, Genealogy, History."
The Foucault Reader. Ed.
Paul Rabinow. New York: Pantheon Books, 1984. 76-100.
Fuentes. Carlos. (1975). Terra Nostra. Barcelona: Seix Barrai.
García Márquez, Gabriel. E! general en su laberinto.
Bogotá: Editorial Oveja
Negra, 1989.
__ .E! otoflo dei patriarca. Bogotá: Editorial Oveja Negra, 1978.
Genette, Gérard. Figures III. Paris: Éditions du Seuil, 1972.
__ . Palimpsestes. La littérature ou second degré. Paris: Seuil, 1982.
Hutcheon, Linda. lron)ls Edge. The Theory and Politics ot lrony.
London:
Routledge, 1994.
A Poetics of Postmodernism: History, Theory, Fiction. New York: Routledge,
1988.
セ@
. A Theory of Parody. New York: Methuen, 1985.
334
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
lbargüengoitia, Jorge. Los relâmpagos de agosto. México: J.Mortiz, 1968.
Inca Garcilaso de la Vega. Comentarias reales.
2 vols.
Caracas: Bibiloteca
Ayacucho, 1991.
Martínez, Tomás Eloy. La novela de Perón. Madrid: Alianza Editorial. 1985 .
. Santa Evita. Barcelona: Seix Barrai, 1995.
Mignolo, Walter. "Cartas, crónicas y relaciones dei descubrimiento y la
conquista." Historia de la literatura hispanoamericana.
Ed.
Luis lnigo
Madrigal. Vol.1. Madrid: Cátedra, 1982. 57-116.
Morson, Gary Saul. "Parody, History and Metaparody."
Extensions and Challenges.
Rethinking Bakhtin:
Ed. Gary Saul Morson and Caryl Emerson.
Evaston, IL: Northwestern University Press, 1989. 63-89.
Mudrovcic, María Eugenio. "En busca de dos décadas perdidas: la novela
latinoamericana de los anos 70 y 80." Revista lberoamericana 164-165
[1993): 445-468.
Nietzsche, Friedrich.
Untime/y Meditations.
Cambridge: Cambridge University
Press, 1983.
O'Gorman, Edmundo. The lnvention of America. Westport, CT: Greenwood Press
Publishers, 1972.
Otero Silva, Miguel. Lope de Aguirre, príncipe de la libertad. Caracas: Biblioteca
Ayacucho, 1985.
Paternain, Alejandro.
Crónica dei descubrimiento.
Montevideo: Lectores de
Banda OiientaL 1980.
Posse, Abel.
Los perros dei paraíso. Barcelona: Plaza y Janes, 1987.
Rama, Angel. La ciudad letrada.
Hanover, NH: Ediciones dei Norte, 1984.
Ramírez, Sergio. Castigo divino. Madrid: Mondadori, 1988.
Ricoeur, Paul. Temps et récit. 3 vols. Paris: Éditions du Seuil. 1983.
Roa Bastos, Augusto. Vigi/ia dei Almirante. Madrid: Alfaguara, 1992.
__ . Yo e/ Supremo. México: Siglo Veintiuno Editores, 197 4.
Romero, Denzil. La tragedia dei Generalísímo. Caracas: Alfadil Ediciones, 198 7.
LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).
335
Saer, Juan José. E! entenado. Barcelona: Ediciones Destino, 1988.
Stallybrass, Peter, and Allon White.
The Politics and Poetics of Transgression.
lthaca, NY: Cornell University Press, 1986.
Tizón, Héctor. Sota de bastos, cabal/o de espadas. Buenos Aires: Crisis, 1975.
White, Hayden.
The Content of the Form: Narrative Discourse and Historical
Representation. Baltimore and London: The Johns Hopkins University Press,
1987.
Gráfica Editora Pallotti
Santa Maria - RS
Março de 2001
336
LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS).