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Edição Especial Quinto Centenário

NOTA PRÉVIA - Pedro Brum Santos APRESENTAÇÃO - Theodore Robert Young / Santiago Juan-Navarro COISAS E RETRATOS DO BRASIL - Alamir Aquino Corrêa NOVAS CONQUISTAS E OUTROS GALEÕES: BREVE HISTÓRIA DE NAVEGAÇÕES EM MARES DE PAPEL - Paulo Motta Oliveira A SOLIDÃO COMO RIQUEZA E COMO POBREZA - Lucia Helena MEMÓRIA CULTURAL E CONSTRUÇÃO DO CÂNONE LITERÁRIO BRASILEIRO - Luiz Roberto Cairo A VIOLÊNCIA CONSTITUTIVA: NOTAS SOBRE AUTORITARISMO E LITERATURA NO BRASIL - Jaime Ginzburg FICÇÃO E FUTEBOL: CULTURAS EM MOVIMENTO - Pedro Brum Santos ANTROPOFAGIA, TROPICALISMO, E COMO ERA GOSTOSO MEU FRANCÊS - Theodore Robert Young TRES VISIONES DE AMERICA - Eduardo Subirats LOS MITOS CULTURALES DE LA OTREDAD: REVISIONES CONTEMPORÁNEAS DE LOS NAUFRAGIOS DE CABEZA DE VACA - Santiago Juan-Navarro LA MARINA DE "CEREMONIAS DEL ALBA": UNA MUJER FRENTE AL ESPEJO DE SU TIEMPO - Gladys M. Ilarregui DAIMÓN Y EL EROTISMO DE LA CONQUISTA - Terry Seymour LA PENETRACIÓN DEL TEXTO: SEUDOCRÓNICA TESTIMONIAL EN LA NOCHE OSCURA DEL NIÑO AVILÉS DE EDGARDO RODRÍGUEZ JULIÁ VISTA DESDE INFORTUNIOS DE ALONSO RAMÍREZ DE SIGÜENZA Y GÓNGORA - Erik Camayd-Freixas LA HISTORIA COMO BUFONADA: PARODIA, RISA E HISTORIA DEL DESCUBRIMIENTO EN MALUCO DE NAPOLEÓN BACCINO PONCE DE LEÓN - Magdalena Perkowska-Álvarez

o '..eiras REVISTA DO PROGRAMA DE. PÓS-GRADUAÇÃO E.M LETRAS y Universidade Federal de Santa Maria CAPA SOBRE ACESSO CADASTRO PESQUISA AT UAL PP6L UFSM ANTER IORES CHAMADAS Capa > Edições anteriores > n . 18/19 n. 18/ 19 (Jan./ Dez. 1999) - Edição Especial- Quinto Centenário Sumário PDF 2-4 EXPEDIENTE Apresentação PDF 9-27 APRESENTAÇÃO Theodore Robert Young, Santiago Juan- Na PDF 7-8 NOTA PRÉVI A Pedro Brum Santos PDF 29-44 COI SAS E RETRATOS DO BRASIL Alamir Aquino Corrêa NOVA S CONQUI STAS E OUTROS GALEÕES : BREVE HISTÓRI A DE NAVEGAÇÕES e セQ@ Paulo Motta Oliveira MARES DE PAPEL PDF 45-71 PDF 73- 100 A SOLIDÃO COMO RI QUEZA E COMO POBREZA Lucia Helena MEMÓRIA CULTURAL E CONSTRUÇÃO DO CÂNONE LITERÁRI O BRASILEIRO Luiz Roberto Cairo PDF 101- 119 A VI OLÊNCIA CONSTITUTIVA: NOTAS SOBRE AUTORITARI SMO E LITERATURA NO BRASIL Jaim e Ginzburg PDF 121- 144 FICÇÃO E FUTEBOL: CULTURAS EM セQP Pedro Brum Santos PDF 145- 165 v i m en t o@ ANTROPOFAGI A, TROPI CALISMO, E COMO ERA GOSTOSO MEU FRANCÊS Theodore Robert Young PDF 167- 188 TRES VISIONES DE AMERICA Eduardo Subirats PDF 189-200 LOS セQ t os@ CULTURALES DE LA OTREDAD: REVI SI ONES CONTEMPORÁNEAS DE LOS NAUFRAGIOS DE CABEZA DE VACA Santiago Juan- Navarro PDF 201-224 LA MARI NA DE "CEREMON IAS DEL ALBA" : UNA セQuj e r@ FRENTE AL ESPEJO DE SU TIEMPO Gladys M. Ilarregui PDF 225-245 DAIMÓN Y EL EROTISMO DE LA CONQU ISTA Terry Seymour PDF 247-267 LA PENETRACIÓN DEL TEXTO : SEUDOCRÓNI CA TESTIMON IAL EN lA NOCHE OSCURA DEL NINO AVILÉS DE EDGARDO RODRÍ GUEZ JULIÁ VISTA DESDE INFORTUNIOS DE ALONSO RAMÍREZ DE SIGÜENZA Y GÓNGORA Erik Camayd-Freixas PDF 269-302 LA HISTORIA COMO BUFONADA: PARODI A, RISA E HISTORIA DEL d e s c ubr Magdalena Perkowska-Áivarez PDF 303-336 I SSN Letras: 1519-3985 I SSN Letras on- line: 2176- 1485 Endereço eletrônico: www.ufsm .br/ periodicoletras i セQ e n t o@ EN MALUCO DE NAPOLEÓN BACCINO PONCE DE LEÓN Pedro Brum Santos, Santiago Juan-Navarro Theodore Robert Young (Orgs.) LETRAS Nos 18 e 19 Edição Especial Quinto Centenário REITOR Paulo José Sarkis DIRETOR DO CENTRO Robson Pereira Gonçalves COORDENADOR DO CURSO DE MESTRADO EM LETRAS Pedro Brum Santos COMITÊ CIENTÍFICO ESTUDOS LINGÜÍSTICOS Eni Pulcinelli Orlandi José Luis Fiorin Luiz Paulo Moita Lopes Maria José Rodrigues Coracini ESTUDOS LITERÁRIOS Fábio Lucas Lúcia Helena Maria Luíza Ritzel Remédios Regina Zilberman COMISSÃO EDITORIAL Amando Eloina Scherer Désirée Motta Roth Jaime Ginzburg Miriam Rose Brum de Paula Pedro Brum Santos REVISÃO DOS TEXTOS Pedro Brum Santos EDITORAÇÃO Simone de Mello de Oliveira PROJETO GRÁFICO DA REVISTA Luiz Vida! Negreiro Gomes Rodrigo Silveira LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS) . 3 PERIODICIDADE Semestral ENDEREÇO Universidade Federal de Santa Maria Curso de Pós-Graduação em Letras Centro de Educação Compus - Camobi 97119-900 - Santa Maria, RS. Brasil Fone/fax: Oxx 55 220 8025 E-mail: mletras@cal.ufsm.br http:WW'N.ufsm.br/mletras LETRAS I Universidade Federal de Santa Maria, Centro de Artes e Letras, Curso de Mestrado em Letras- Nos 18 e 19 (Jan./Dez. 1999] Santa Maria: UFSM/CAL. 1999 Semestral CDD:405 CDU: 8(06] Esta é uma obra que conta com o apoio institucional da CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior 4 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS) . NOTA PRÉVIA Esta edição especial de Letras, correspondente aos números l 8 e 19, reúne abordagens a respeito das tradições culturais e literárias das Américas portuguesa e hispânica. Publicamente, convencionamos que a oportunidade da edição é o quinto centenário do Brasil português, transcorrido no ano 2000. Particularmente, sabemos que a iniciativa nasceu do contato que estabelecemos com o professor Theodore Robert Young, da Florida internationai üniversity, a partir de sua vinda a Santa Maria em l 999 para participar do Seminário promovido por nosso grupo de pesquisa, Literatura e História. Depois disso, tocamos o projeto. Vencemos as distâncias físicas através do uso constante do correio eletrônico e tivemos sempre próximos de nós vários colegas - tanto daqui como de lá - peças fundamentais para que o quadro fosse composto com a abrangência .e com a qualidade que imaginamos para a empreitada. A revista, enfim, foi de fato organizada por Theodore e por seu colega Santiago Juan-Navarro, os quais se responsabilizaram pelos articulistas de fora, fizeram as traduções necessárias do inglês para o espanhol, definiram a ordem dos textos e assinam a apresentação propriamente dos conteúdos. Por aqui, o colega Jaime Ginzburg, da üFSM, foi responsável pelos convites e contatos com os professores brasileiros, cabendo a nós a revisão final do material. De sorte que eu e Jaime garantimos a retaguarda brasileira para a organização do Theodore e do Santiago, nesta experiência tão apropriadamente LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 7 americana, seja pela natureza da proposta seja pela execução do trabalho. Pedro Brum Santos Professor do Curso de Mestrado em Letras - UFSM 8 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). APRESENTAÇÃO Theodore Robert YOUNG Santiago JUAN-NAVARRO Sobre as Águas e Sobre as Terras: O Encontro Descoberto As navegações européias, e sobretudo o Encontro entre os povos da Europa e das Américas, transformaram o mundo de uma forma única na história humana. Os empreendimentos ultramarinos dos europeus constituíram um deslocamento de seres humanos e de culturas numa escala nunca vista antes ou depois. O ano 2000 marca os 500 anos da chegada oficial dos portugueses nos terras agora conhecidas pelo nome "Brasil". Portanto, comemora-se· o grande aventura expansionista e mercantilista dos portugueses que resultou no criação desta noção. Ao mesmo tempo, lamento-se o invasão de europeus em territórios dos povos indígenas, especificamente neste coso dos tribos tupi-guaronis. ' Também questiona-se o identidade nacional que resultou deste Encontro, deste choque de culturas, semelhante às questões de identidade em todo o hemisfério. Poro e,scritores e pensadores dos culturas de base européia nos dois lodos do oceano Atlântico, o chamado descobrimento dos Américas é também um ato de autodescobrimento, evocando topos da consciência profundo européia como o paraíso perdido, o locus amoenus, o eldorado. As conseqüências deste Encontro são variadas e complexas, e incluem pessoas de todos os continentes. De fato, pode-se dizer que o LETRAS Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 9 Encontro continua, especialmente nas Américas mas também no mundo inteiro, evidente no tão comentado processo de "globalização" e mais sutilmente nas misturas de raças e de culturas registradas no Brasil nas suas expressões culinárias (como o espaguete italiano de origem chinesa), sociais (como o futebol britânico mundialmente ligado ao único país tetra-campeão) e lingüísticas (como os topônimos "lguaçu", "Rondônia" e "Novo Hamburgo") que, tomadas em conjunto, formam esta imprecisa noção de identidade nacional. O período entre 1992 e 2000 deu à luz uma quantidade incontável de produção cultural, entre literatura, cinema, estudos, congressos, etc. É quase impossível calcular o volume de material bibliográfico produzido como resultado desta reflexão em massa dos 500 anos da chegada de Colombo e de Cabral nas Américas, apesar dos imensos esforços de James Axtell e David Block no primeiro caso. Não obstante este oceano de papel, um conceito percorre todos os debates da época: revisionismo. Em comparação com as comemorações acríticas anteriores, as considerações atuais questionam os clichês e estereótipos propagados sobre os eventos históricos ocorridos no mar e na terra. O próprio termo utilizado para designar o evento tem passado por uma ótica mais crítica: do "descobrimento" aplaudido (que por sua parte era o "achamento" colonização/ de CaminhaL conquista/ ao dominação/ encontro, invasão, subjugação/ choque/ transculturaçãol contaminação/ extermínio/ genocida, ethnocidal ecoc)da (Oiivier 92). O papel dos povos indígenas/ por exemplo/ tem mudado de objeto a sujeito do debate/ gerando uma mudança de perspectiva e ênfase (vide Barreiro/ Griml Bamonte e Della Marina/ Gentry e Grinde). As últimas duas décadas viram o surgimento da crítica pós-colonial, dos estudos culturais, LETRAS Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). e do Novo Histericismo, o que permite uma reconsideração do assunto desde o ponto de vista do sujeito colonizado em vez da metrópole colonizadora. Presenciamos a desmitificação das histórias e dos valores que formavam a base da visão eurocêntrica do fenômeno do Encontro. Os ensaios aqui reunidos tratam de vários aspectos da produção literária referente ao Encontro. Formam dois grupos: os das letras lusófonas e outros das letras hispanófonas, refletindo a heterogeneidade ibero-americana. Por enfocarem a América Latina, estão tanto em português quanto em espanhoL e a temática vai do cânone literário brasileiro até ao futebol, passando pela conquista do México e as falsas crônicas caribenhas, entre outras perambulações. Esta diversidade reflete a grande produção acadêmica provocada pelos 500 anos de Colombo e de CabraL que por sua parte foi acompanhada por uma proliferação semelhante de narrativa histórica ao nível popular. Romances, contos, poemas, e filmes sobre o Encontro invadiram o mercado cultural inter-americano. Em casos como o do Novo Romance Latino-Americano, alguns críticos têm sugerido que a narrativa histórica tor:nou um lugar de destaque justamente como conseqüência do Quinto Centenário (Menton). Escritores e cineastas nos dois lados do Atlântico estão tentando repensar a maneira de retratar o Encontro, um ímpeto refletido também nas pesquisas .acadêmicas. O estilo jornalístico e a recepção popular da trilogia de Eduardo Bueno A Viagem do Descobrimento: A_ Verdadeira História da Expedição de Cabral; Náufragos, Traficantes e Degredados: As Primeiras Expedições ao Brasil; e Capitães do Brasil: A Saga dos Primeiros Colonizadores - confirmam esta tendência, como também o aparecimento de edições de textos históricos como Os Três Únicos Testemunhos do Descobrimento do Brasil, LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). organizado por Paulo Roberto Pereira. É também o caso no cinema, seja a paródia Carlota Joaquina. Princesa do Brasil de Caria Camurati, seja o nouveau-noir Terra Estrangeira de Walter Salles Jr. e Daniela Thomas. Os primeiros ensaios destacam o Brasil e a colonização portuguesa. Alamir Aquino Corrêa, em "Coisas e retratos do Brasil", faz um "pequeno passeio pela literatura brasileira" enfocando como a apresentação do ambiente sócio-físico funciona como uma qualidade nacionalizante. Trata-se de um breve resumo do cânone de obras que retratam o Brasil. Parte de Pera Vaz de Caminha e destaca a herança estudo passa por José de Anchieta, Manuel da Nóbrega e o período colonial; pelo barroco e os louvores da terra; pela postura neoclássica de defesa consciente da terra; pelo romantismo que busca no povo o "substrato fundamental para a criação artística"; por Machado de Assis e os realistas, enfocando a emergente sociedade burguesa; e pelo modernismo de 1922, que o autor considera "politicamente nacionalista". Em "Novas conquistas e outros galeões: breve história de navegações em mares de papel", Paulo Motta Oliveira enfoca o tema das navegações entre os saudosistas do período "fin-de-siécle". O estudo demonstra a importância do empreendimento ultramarino na consciência nacional portuguesa até a virada do século XX, seja para um Alexandre Herculano, que considera as navegações produto de uma monarquia corrompida, seja para um Teixeira de Pascoaes, o poeta do "navio Portugal" que vai "atingir conquistas muito superiores às já realizadas". O autor analisa as perspectivas contrastantes de todo um grupo de escritores e pensadores portugueses, que no entanto consideram que as navegações constituíam a identidade nacional 12 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). portuguesa. As "conquistas" ultramarinas servem como paradigma quase que permanente para a orientação política e cultural de Portugal, de forma paralela e inversa à situação no Brasil. Oliveira destaca uma declaração de Camilo Pessanha, para quem o significado das grandes navegações ainda não se completou. Este processo de redefinição é o enfoque da presente coletânea. Um dos momentos mais estratégicos na tentativa de definir a identidade nacional brasileira foi o período romântico. Ao se declarar independente de Portugal, o Brasil teve que buscar uma base para distingir o brasileiro de hoje do português que ele era ontem. Em "A solidão como riqueza e como pobreza", Lúcia Helena enfoca a obra de José de Alencar e a construção da cidadania, especificamente a ''vontade-de-ser-nação" das elites da época. A autora afirma que até então a nacionalidade brasileira era "uma hipótese encravada na nacionalidade portuguesa transplantada [... ] para terras tropicais". Segundo ela, as origens desta diferenciação vêm do começo do século XIX quando de súbito o país se transforma em corte e reedita ao nível de um discurso nacional a experiência ficcional de Robinson Crusoe, criada pelo inglês Daniel Defoe em 1719: "o mito do indivíduo que necessita criar do nada a civilização". Informado pelo Crusoe de Defoe e pelo "homem natural" do francês Rousseau, Alencar cria personagens que de uma forma óbvia (em O Guarani e Iracema) ou de uma forma mais sutil (em A Víuvínha e Senhora) - manifestam as dúvidas do novo país diante das incertezas do futuro: "a procura de desprender-se do complexo colonial de que fizera parte vincula-se aos destinos dos personagens". A invenção da comunidade imaginária brasileira toma lugar neste período, produto do culto da independência individual LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (RS). 13 mantido pelos românticos: o espírito da liberdade do ser humanc funciona como modelo para a auto-identificação do caráter naciona brasileiro independente de Portugal. É interessante notar que os portugueses na mesma época lidavam com questões semelhantes, como indica Paulo Motta Oliveira, A questão da identidade também é abordada por Luiz Roberto Cairo. Em "Memória cultural e construção do cânone literário brasileiro", o autor focaliza o tema sob a perspectiva da formação da história da literatura. Observa que o cânone nacional encontra suas primeiras sistematizações nos românticos da primeira metade do século XIX, Esses, contrariando exemplos de outras literaturas 13mergentes, valorizaram a diferença em detrimento da semelhança em relação à tradição clássica do colonizador. A prática encontra respaldo em uma relação tensa entre colonos e reinóis, cujos registras literários já se acham no seiscentista Gregório de Matos. O reforço da diferença, no entanto, foi sugerido pelos próprios europeus que aconselhavam os jovens românticos da nação recém fundada sobre as bases que deveriam nortear a nacionalidade da literatura. Cairo lembra que sob esse ideário romântico surgiram os primeiros bosquejos de história literária nacional, aos quais se somaram os trabalhos de historiadores e críticos estrangeiros, salientando a importância que teve o periódico como veículo preferencial de divulgação. Em seguida, o autor apresenta uma suma das principais publicações que veicularam a referida história em meados do século XIX. Destaca que, assim, críticos românticos arquitetaram uma História da Literatura Brasileira que veio a ser construída pelos críticos realistas brasileiros. Conclui o artigo com a releitura de pontos pinçados 14 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). do discurso da aludida crítica realista, em particular das idéias de Araripe Jr., Sílvio Romero e José Veríssimo. Em "A violência constitutiva: notas sobre autoritarismo e literatura no Brasil", Jaime Ginzburg estuda a desumanização do ser humano oprimido pelo autoritarismo. evidente na literatura brasileira. Ele afirma que os escritores fundamentais do cânone literário brasileiro acentuam o caráter problemático e agônico da condição humana: "a condição da subjetividade é atingindo pela opressão sistemática da estrutura social, de formação autoritária". Ginzburg refere-se a Paulo Sérgio Pinheiro que identifica como raiz a falta de ruptura entre o absolutismo colonial e o absolutismo das elites posterior à independência e à proclamação da República. Ginzburg vê a história do país como um trauma e declara que a representação literária desta experiência implica uma "renúncia aos modos convencionais da representação" no texto. Ele cita a noção de Theodor Adorno segundo a qual antagonismos da realidade se expressam como antagonismos formais, dando como exemplo as obras de Machado de Assis, Guimarães Rosa. Clarice Lispector. Carlos Drummond de Andrade e Graciliano Ramos, entre outros. Portanto, elementos históricos como a inquisição, o escravismo exploratório, a iepiessão política e outiOS acontecirnentos rnotivam a fiagíT,entação literária moderna. Em "Ficção e futebol: culturas em movimento", Pedro Brum Santos ・セエイ@ o esporte e a literatura em termos de identidade nacional brasileira. Há muitos estudos sobre o futebol e a sociedade, estuda a relação principalmente tratando da violência no futebol europeu (por exemplo Giulianotti, Bonney, e Hepworth) mas também alguns enfocando as ligações entre o esporte e o caráter nacional, como o estudo LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS]. 15 psicoanalítico do futebol argentino de Suárez-Orozco, e no caso do Brasil a coletânea organizada por Roberto DaMatta, Universo do futebol: esporte e sociedade brasilera, além do estudo monográfico de Janet Lever, Soccer Madness. Aqui Santos examina um elemento a mais: o vínculo entre a identificação cultural e o seu tratamento na literatura Ele destaca a resistência inicial ao_ fenômeno estrangeiro, nacional. como os ataques literários ao futebol por ser "estranho às origens brasileiras" por parte de Lima Barreto e outros na década de 1920, e a profissionalização do esporte sob o regime de Vargas na década de 1930, apesar do clima anti-futebolista no interior na mesma época retratado por Graciliano Ramos. Santos traça a evolução do esporte bretão ao esporte brasileiro por excelência passando pela influência dos imigrantes italianos em São Paulo, vista na obra de Alcântara Machado, e a eventual incorporação desses e de outros imigrantes à identidade cultural brasileira. Ele enfatiza o papel da popularização decorrente em grande medida da "paulatina apropriação pelos veículos da comunicação em massa". No entanto, Santos reconhece o verdadeiro aspecto de cultura popular do futebol no Brasil, indicando que é por isso que funciona como base para a reprodução de dramas humanos no meio literário. O estudo de Theodore Robert Young, "Antropofagia, tropicalismo, e Como era gostoso meu francês", trata da construção do Outro no período colonial representada no filme de Nélson Pereira dos Santos. Young analisa como o cineasta utiliza a estética artística do tropicalismo da década de 1960 para questionar tanto o período colonial histórico quanto o período contemporâneo. O autor argumenta que essencialmente Pereira dos Santos "canibaliza" a estilística tropicalista de 16 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). Caetano Veloso e outros de modo parecido com a proposta do "Manifesto Antropológico" de Oswatd de Andrade, da década de 1920. O artigo enfoca a justaposição da história "oficial" com uma reinvenção irreverente do passado colonial desenvolvida por Pereira dos Santos. Em última análise, Young tem como objetivo revelar as implicações políticas do tropicatismo como reação ao regime militar autoritário das décadas de 1960 e 1970. O primeiro ensaio do segundo grupo, "Tres visiones de América" de Eduardo Subirats visa a contextualizar interpretações contemporâneas do Encontro dentro de tendências recentes da história intelectuaL do pósmodernismo literário. e do revisionismo histórico. O artigo examina várias visões do mundo que têm influenciado percepções modernas das Américas desde o século 16: o desenho providencial histórico da Espanha cristã imperial; o discurso anti-escotástico, tecno-científico e económico da colonização americana dos filósofos empíricos; e a visão reflexiva, marginal, e híbrida baseada na restauração hermenêutica de línguas e culturas indígenas históricas representadas pelo Inca Garcitaso de ta Vega. Subirats argumenta que estas três visões do mundo aparecem em proporções desiguais ao longo da história da conciência espanhola e da identidade nacional, e continuam a manter sua importância no mundo contemporâneo. Santiago Juan-Navarro, em "Los mitos cutturates de ta otredad: revisiones contemp9ráneas de tos Naufragios de Cabeza de Vaca", também trata do Outro colonial como uma construção cultural. O autor examina, através das bases literárias e historiográficas, o processo histórico da glorificação de Cabeza de Vaca que leva a sua transformação final em herói cultural. Dois exemplos recentes das LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS]. 17 reinvenções fílmicas e dramáticas do Encontro são discutidas pela ótica das conseqüências políticas do Quinto Centenário: o filme Cabeza de Vaca (1990) de Nico/ás Echevarría, e o drama Naufragios de Alvor Núnez o la herida de/ Otro (1992) de José Sanchis Sinisterra. Estas duas obras, que enfocam a figura mítica do conquistador espanhol, são marcadas pelas atitudes ideológicas que prevaleciam no_ mundo hispânico na primeira parte da década de 1990. O ensaio de Juan-Navarro examina como textos dramáticos e cinematográficos refletem estas atitudes, e como transmitem uma interpretação revisionista da conquista que tenta legitimar agendas culturais e políticas dessemelhantes. Dentro deste contexto, saber como Cabeza de Vaca foi transformado em um herói cultural por agências institucionais tanto quanto contra-institucionais é essencial ao entendimento de alguns dos paradoxos mais patentes da literatura e do cinema históricos contemporâneos, sobretudo o paradoxo de assumir uma atitude simultaneamente de oposição e revisionista em uma conjuntura em que o revisionismo deixou de ser oposicional e, pelo contrário, faz parte da ortodoxia literária e historiográfica. "La Marina de Ceremonias dei Alba: una mujer frente ai espejo de su tiempo" de Gladys M. llarregui compara e contrasta duas grandes obras mexicanas: o Códice Florentino. Libra XII ("Libro de la Conquista") registrado pelo frade Bernardino de Sahagún na primeira metade do período pós-contato; e, quatro séculos depois, a obra criativa de Carlos Fuentes, Ceremonias. A intenção da autora é de revelar Marina como retratada nas duas obras, e encontrar nesta busca colonial/contemporânea uma voz e uma nova identidade para esta mulher subjugada a uma grande variedade de interpretações (Baudot, Glantz, Gonzalvo, Cypress). 18 llarregui indica que, apesar desta atenção LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). crítica, poucos têm percebido Marina desde o ponto de vista do seu posicionamento dentro da escritura de cronistas e intérpretes masculinos. Entre a Marina sem voz (a intérprete cujas palavras não são próprias) e a Marina que fala, discute e interpreta história, llarregui propões uma Marina alternativa através de uma apropriação feminista de seu papel e seu status como mulher em dois momentos específicos e particulares do tempo e do espaço. De acordo com o escritor argentino Abel Posse, a conquista espanhola foi motivada tanto pelo erotismo quanto pela busca de riquezas. Em "Daímón y el erotismo de la conquista", Terrv Seymour propõe resolver as seguintes perguntas: como o tratamento do erotismo difere entre a obra de Posse e as crónicas de viagem? Em que medida a ficcional vida sexual do conquistador Lope de Aguirre ajuda a entender a história moderna da América Latina (sobretudo a repressão política e os movimentos de guerrilha das décadas de 1960 e 1970)? E finalmente, por que Posse introduz uma problemática sexual ao discurso histórico pelo uso de tipos estabelecidos (conquistador, rainha das Amazonas, freira mística, etc.)? Até que ponto o autor adota esta presença de sexualidade dos textos históricos e de outros romances históricos anteriores, e até que ponto ele rompe com estes modelos? Seymour conclui com o argumento de que. em Daímón, Posse apresenta o desejo sexual como um desafio a todas as manifestações de ordem, uma força subversiva em luta eterna com a repressão política e sexual. "La penetración dei texto: seudocrónica testimonial en Lo noche oscura dei Nino Av/lés de Edgardo Rodríguez Juliá vista desde lnfortuníos de Afonso Ramírez de Sigüenza y Gôngora" enfoca o reinvenção do passado através de crónicas apócrifos. O autor, Erik Camayd-Freixas, LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS]. examina o processo de construção da autoridade textual como inscrita da reapropriação ficcional de crónicas testemunhais. A pretensão à veracidade histórica sugerida pela imitação de formas discursivas nãoficcionais, só parcialmente levada a sério dentro do propósito de plausibilidade lúdica, já estava presente no relato protomoderno de Sigüenza (1690) que conta as desventuras do indlgente Alonso Ramírez à toa pelo mundo. O lnfortunios reconta ficcionalmente as crónicas das Índias, do ponto de vista de um jovem nascido em Porto Rico, uma espécie de Magalhães acidental. Camayd-Freixas argumenta que trezentos anos depois outro cronista porto-riquenho, Edgardo Rodríguez Juliá, recapta o aperto de mãos entre autor e personagem na sua busca pelo corpo deformado e sem mãos do Menino Avilés, fundador de Nova Veneza em 1797. Camayd-Freixas compara os dois textos, e demonstra como reconversões crio/las (nascidas nas Américas) - pseudo-crónicas testemunhais do discurso europeu imperial - sempre produzem novas versões de história e inversões de ideologia. O autor analisa como Sigüenza transforma os conquistadores heróicos em indigentes humildes e tímidos, e o Menino Avilés de Juliá vira um Colombo degredado. O último ensaio desta coletânea trata de um dos elementos mais características da nova ficção histórica latino-americana: o uso de intertextualidade, paródia e carnavalização para apresentar uma visão alternativa da história. Em "La historia como bufonada: parodia, riso e Historia dei descubrimiento en Maluco de Napoleón Baccino Ponce de León", Magdalena Perkowska-Áivarez examina o papel do humor - riso, paródia e ironia - em desafiar versões historicamente aceitas do "Descobrimento", e em reavaliar os relatos anónimos e ficcionais do período. 20 Seu estudo concentra-se em um dos romances mais LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). representativos desta tendência, Maluco (1988) do uruguaio Napoleón Baccino Ponce de León. A análise deste romance fecha o círculo da temática aqui apresentada: apesar de escrito em espanhol, a narrativa conta a história da viagem de circunavegação do português Fernão de Magalhães, só que do ponto de vista do bobo da armada. Perkowska argumenta que a ótica irreverente do narrador - socialmente deslocado mas também se deslocando entre várias esferas da expedição redefine a história tradicional. O riso e a ironia do bobo reorganizam os relatos aceitos da viagem de Magalhães de acordo com um princípio dialógico que dissolve a dicotomia entre o grandioso e o mesquinho, o positivo e o negativo, o público e o particular, o centro e a pereferia, que determinava e re-enfatizava a escritura da história. Esta ironia destaca-se no título, uma fusão dos nomes de umas ilhas "descobertas" por Magalhães (as ilhas Malacca ou Molucca), mas também um eco claro da língua portuguesa. Nesta situação, quem é mais maluco: o capitão que comanda uma expedição de cinco navios e 270 homens, dos quais somente um navio e 17 dos marinheiros originais voltam vivos, ou o "bobo" que vê e comenta a desgraça que acontece, inclusive a morte do próprio capitão? Em 1871, ao contemplar as "Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos", Antero de Quental declarou que "os livros, as tradições e a memória dos homens andam cheios dessa epopéia guerreira, _que os povos peninsulares, atravessando oceanos desconhecidos, deixaram escrita por todas as partes do mundo" (285-6). As navegações deram ímpeto à colonização portuguesa do Brasil, e em todo momento tiveram um papel fundamental na definição da identidade brasileira, seja da ótica colonial, seja da pós-colonial. LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). Este 21 processo repete-se no resto do continente americano, e de certa forma em todas as regiões colonizadas. Os ensaios aqui reunidos refletem a herança desses encontros e choques da colonização no hemisfério. Enfocam as tentativas de construir uma identidade culturaL ao mesmo tempo em que questionam a validade de tais construções. Tomado como um todo, este número da Revista Letras oscila entre assuntos coloniais e contemporâneos, rompendo as barreiras entre períodos literários e culturais tradicionalmente estudados separadamente, em si uma reflexão do campo dos estudos pós-coloniais como indicado por Rolena Adorno. Esta representa uma nova tendência dentro do campo da crítica literária colonial que visa a unir leituras pós-estruturalistas do passado colonial e análises dos textos fundamentais da literatura latinoamericana tomando em consideração os contextos históricos de suas produções. O revisionismo histórico que emerge dos artigos incluídos nesta revista faz parte de um ímpeto contemporâneo maior. De relevância especial para o tema do presente projeto é a tendência crescente dentro do campo da filosofia da história a questionar as pretenções básicas do historicismo tanto em relação a seus fins quanto a suas metodologias. Keith Jenkins indica que "[b]oth philosophy and literature, for example, have engaged very seriously with the question of what is the nature of their own nature"[l ). Este relativismo altamente acentuado na teoria crítica contemporânea exerce um impacto forte nas práticas epistemológicas dos novos historiadores, para quem a antiga busca da verdade constitui cada vez mais uma utopia inatingível. Hoje em dia é essencialmente impossível falar de um discurso histórico exclusivo ou definitivo; no seu lugar aparecem somente posições, perspectivas, 22 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). modelos e ângulos que oscilam de acordo com vários paradigmas. O oensador pós-moderno reúne múltiplas formas discursivas enquanto smultaneamente reflete sobre o uso de tais formas e suas limitações oossíveis. Como conseqüência de suas tendências auto-reflexivas e desconstrucionistas, a nova teoria histórica e suas aplicações ao campo da literatura desestabiliza visões tradicionais do historiador e do empreendimento historiográfico. O conceito do historiador como testemunha, proposto pela historiografia clássica e explorado pelos historiadores do período colonial, deixou de ter validade, segundo Jorge セッコョN@ Este conceito, baseado na necessidade de contato imediato entre o autor de história e o evento narrado, não é mais sustentável dentro dos novos paradigmas de pesquisa. Segundo as orientações teóricas contemporâneas, não existem fatos inteiramente evidentes. Os que percebemos (inclusive os aparentemente empíricos) são inevitavelmente percebidos numa maneira particular e portanto são teóricos. Ao revelar a mediação inerente na escritura da história, junto com seu componente ideológico, a historiografia pós-moderna debilita a noção positivista das leis naturais que se manifestarão pela análise científica aplicada à condição humana. Estas tendências teóricas permitem-nos entender algumas das características observadas nas reconstruções contemporâneas do Encontro entre o "Mundo Velho" e o "Mundo Movo". Entre as novas práticas histórico-narrativas da América Latina, Fernando Aínsa identifica dez: 1} a releitura da história baseada em histericismo crítico; 2) a rejeição da legitimidade das versões "oficiais" do passado; 3) a multiplicidade de perspectivas que propõem expressar múltiplas verdades históricas; 4) a abolição do distancionamento épico; LETRAS- Revisto do Curso de Mestrodo em Letras do UFSM (RS). 5) a re-escritura parodística e irreverente da história; 6) a superimposição fantástica e anacrônica de períodos históricos variados; 7) o uso de historicidade textual ou a invenção totalmente mimético de crônicas e relações de viagem; 8) a adoção de crônicas falsas disfarçadas como historicismo ou a glosa de textos autênticos em contextos grotescos ou exagerados; 9) a leitura distanciada, onírica ou onacrônica da história, através de escritura carnavalesca; e lO) a preocupação lingüística manifesta no uso massivo de arcaísmos, pastiches, paródias e humor agudo. O coróter oposicionol destas coracterfstlcas aflrrna-se núo somente nos textos literários e fílmicos analisados nesta coletânea, como também nos discursos críticos utilizados. De ambos podemos 、・オセゥイ@ um novo e abrangente conceito historiográfico. As novas formas discursivas que reclamam um valor tanto criativo quanto epistemológico unem-se ao impulso arqueológico da historiografia acadêmica tradicional. Isto favorece um encontro entre a historiografia em si, e outras formas de reflexão histórica que podem incluir o romance, o teatro e o cinema. Em contraste com a subalternidade tradicional do discurso criativo ficcional (que desde o Renascimento leva o estigma de "histórias falsas"), nas últimas décadas a ficção tem conquistado um status como suplemento à história. No campo literário ibérico e ibero-americano, este novo papel manifesta-se em um revisionismo histórico sem precedentes. Na temática destas novas modalidades da ficção histórica, o Encontro - ou confronto - entre o "Mundo Velho" e o "Mundo Novo" ocupa um lugar preferencial. Enquanto houver uma reflexão sobre as origens da identidade latino-americana, o período do "descobrimento" e da conquista estimulará a imaginação dos que constroem o conceito iberoamericano. 24 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). Obras Citadas Adorno, Rolena. 1990. "New Perspectives in Colonial Spanish American Literary Studies." Journal of the Southwest 32 (Summer): 173-191. Aínsa, Fernando. "La nueva novela histórica latinoamericana." Plural 241 (Sept. 199.1 ): 82-85. Axtell, James. "Columbian Encounters: Beyond 1992". The William and Mary Quarterly 49 (1992): 335-60. Beyond 1492: Encounters in Colonial Nortlf America. f\Jew York: Oxford University Press, 1992 . . "Columbian Encounters: 1992-95". The William and Mary Quarterly 52 (1995): 649-696. Bamonte, Gerardo, e Della Marina, Guilia, eds. 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LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). 27 COISAS E RETRATOS DO BRASIL Alamir Aquino CORRÊA UE L-PR A literatura portuguesa distinguiu-se das literaturas castelhana e galega, e a brasileira o fez em relação à portuguesa, refletindo ou até antecipando os processos de diferenciação política. Talvez não seja mais necessário discutir o caráter específico da qualidade nacional da literatura brasileira, a não ser as variantes análises do período colonial, como é o caso do recente ensaio de Flávio Kothe 1, A literatura brasileiro não só é independente da literatura portuguesa, como já se tornou foco irradiador de idéias. De acordo com porte da crítico literária lusobrasileira, o romance nordestino de 30 teria influenciado o ficção neorealista portuguesa; o concretismo já se difundiu por vários países; os novelas de televisão, aqui encarados como texto ficcional, são exportadas paro países diversos como Cuba, Chino, Roménia e, principalmente, Portugal. Como afirmo King (1980, 47), há momentos de menor ou maior presença do preocupação nacionalista em uma literatura. Realmente, houve momentos em que a afirmação do brosilidode deixou de ser importante, coso do Simbolismo; tal distanciamento também ocorreu no poesia intimista e no ficção introspectivo modernistas. É potente o fato de que hó obras que não se valem do tradição social e de termos regionais brasileiros. Entretanto, o boa, talvez o maior, parte do cânone ·O Cânone Colonial, Brasília: Unb, 1997, LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS]. 29 literário brasileiro contém reflexos de um ambiente sócio-físico como qualidade nacionalizante. Neste sentido, procura-se aqui fazer um pequeno passeio pela literatura brasileira, evidenciando as diversas manifestações dessa qualidade. É comum nas histórias literárias brasileiras situar em Pero Vaz de Caminha o início da literatura brasileira, com_ as ressalvas canônicas de que o primeiro século seria composto apenas de obras de informação. Não obstante isso, essa literatura de retratos do Brasil interessa aos brasileiros e deve ser reconhecida como parte da herança nacional, visto que o europeu em cantata com o Novo Mundo distancia-se daquele que permaneceu em terras conhecidas, legando uma. tradição diferenciada. Além de caracterizar e descrever o sistema sócio-geofísico do Brasil Colonial, tais obras servem de fundo para o mito do índio, temática romântica, modernista e até mesmo contemporânea. 2 O espírito mercantilista encontrável em Caminha inaugura a observação simpática dos costumes e das coisas brasileiras. A atitude sua e a dos prosadores pósteros é a da louvação da potencialidade da riqueza, motivando e conclamando os reinóis à imigração. Em Pero de Magalhães Gândavo, principalmente com o seu Tratado da Terra do Brasil, chega a haver uma visão do "paraíso," como apontou Holanda (1959). Os costumes indígenas e os de hierarquia social entre os colonos e escravos, as descrições das plantas, frutas e mantimentos, com símiles quase risíveis, e a preocupação com as riquezas minerais tornam 2 Aqui, resta firme o entendimento de que há valor literário nas obras de informação. O estilo do ensaio [carta, relação, relato) prima pelo detalhe e pela escolha vocabular caracterizadora do símile, sendo ainda que interessa mormente aos estudos literários os gêneros diálogo, carta e auto, que desusados ou sem continuidade não atraem, pela pecha de áridos, a atenção de boa parte dos pesquisadores hodiernos. 30 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). Gândavo uma fonte imprescindível para a compreensão da colonização brasileira. Essas grandezas e os costumes, principalmente aqueles de conversão dos índios e transgressão pelos reinóis dos dogmas da religião católica, estão nas obras de Gabriel Soares de Sousa, Manuel da Nóbrega, Fernão Cardim e Frei Vicente do Salvador. Há de se observar que a atitude de Ambrósio Fernandes Brandão é a da defesa da Colônia, com a descrição de grandezas e de maneiras de adaptação do reinai ao Novo Mundo, como é o caso da caça e degustação de animais silvestres. Igualmente classificado dentro do grupo denominado literatura de informação, a obra Cultura e Opulência do Brasil (171 1), de André João Antonil, reflete, juntamente com Brandão e seus Diálogos das Grandezas do Brasil, o orgulho da terra até no próprio título, pois há "grandezas" e "opulência" do Brasil. A obra de Antonil destaca-se pelo registro de léxico técnico do ciclo da cana-de-açúcar, levantado como "Vocabulário e Índices Antroponímico e de Assuntos" por LeonardoArroyo (Antonil1982, 207-39). No período inicial, merece atenção especial a obra teatral de José de Anchieta. Filiado à tradição medieval do metro breve, Anchieta inova não pelo polilingüismo, embora use o tupi para compor suas obras, mas sim por adaptar os autos de moralidade à conversão e edificação do gentio, e neste últjmo caso também dos colonos, com cenas de correção dos costumes, e por adaptar coreografias indígenas a cerimônias イ・ャゥァッセ。ウL@ como se vê em O Auto de São Lourenço. O próximo momento, o Barroco, tem como marco inicial a obra Prosopopéia de Bento Teixeira publicada em 1601, que já se ufana pela terra, na "Descrição do Recife de Paranambuco." Em Manuel Botelho de Oliveira, os primores da terra são mormente louvados, em especial o LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS}. 31 clima, os animais e as frutas no poema "À Ilha da Maré" com particular menção dos vegetais aipim, ananás, araçá, banana, caju, corá, coco, mamão, mandioca, mangaba, maracujá, pimenta, pitanga, pitomba. É de se anotar que alguns desses elementos locais já haviam sido usados por Gândavo e Soares de Sousa; em Botelho de Oliveira a atitude é a do orgulho do contato e da priroazia da Colônia sobre a Metrópole e o resto da Europa. Outro poeta ufanista, dentro da mesma linha de Botelho de Oliveira, é Frei Manuel de Santa Maria ltaparica e seu poema Descrição da Cidade da Ilha de ltaparica, quase réplica do poema de Botelho, com a enumeração similar de frutos, fontes, legumes, áNores, igrejas e capelas, sendo-lhe distintiva a sua descrição da pesca da baleia. Gregório de Matos é a sátira social, evidenciando não só a formação étnica brasileira como os costumes e tradições da cidade da Bahia, como é o caso da promiscuidade da célebre procissão de cinza em Pernambuco ou o descalabro resultante, segundo o poeta, da passagem do cometa em 16803 . Suas palavras são a prova documental do vocabulário fescenino, principalmente no poema "A Cidade da Bahia." Sua crítica à falsa fidalguia, aos pecados seculares e aos membros da Igreja mantêm, mutatis mutandis, a sua atualidade. É também importante o registro de termos indígenas em "Aos Caramurus da Bahia" e "Aos Mesmos Caramurus." Na parenética barroca, além da defesa que faz da Colônia contra o parasitismo político e econômico, que sugava todas as riquezas da terra, indo contra a escravidão dos indígenas e negros, o padre Antônio Vieira menciona a ema, o papagaio, a baleia, elementos americanos e locais. Nas cartas, a sua 3 O eclipse de ll de agosto de 1999 também dele se disse catástrofe. 32 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). atitude é de êxtase diante da natureza brasílica, com o registro da toponímia indígena: "Com esta frota partimos pelo rio Tocantins, ... à meia-noite fizemos paboca, que é frase com que cá se chama o partir, corrompendo palavra da terra, e nos dias seguintes possamos às praias da viração." (1948, 153). Entre os autores de prosa alegórica no Brasil coloniaL só Nuno Marques Pereira, com seu Compêndio Narrativo do Peregrino da América, contempla o Novo Mundo. J. Leite de Vasconcelos aponta-o como "valiosa fonte de investigação etnográfica e histórica: caracteres, formas de habitação, móveis, objetos de uso, alimentação, trajos, música, poesia popular, danças, provérbios, teatro, festas e festejos, costumes religiosos, superstições" (Gomes 1968, 1: 281 ). Um ponto específico é a ornitologia presente na obra de Marques Pereira: a aracuã, a araponga, o beija-flor, o canário, a juriti, a lavandeira, o papaarroz, o papagaio, o periquito, o pica-pau, o sabiá, o sanhoço, e o tucano (Gomes 1968, 1: 283), que dão o toque local. As academias do século XVIII prenunciam a postura neoclássica de defesa consciente da terra. Dignas de nota pela particularização geográfico em seus títulos são a Academia Brasílica dos Esquecidos (1724-25) e a Academia Brasílica dos Acadêmicos Renascidos (1759); há de se listar também, embora. sejam já do século XIX, a Academia Parnambucana (1808) e a Sociedade Bahiense dos Homens de Letras (181 0), pois que 。セョエ・イゥッウ@ à Independência. As obras acadêmicas concentram a sua atenção nas coisas brasileiras, como o comprovam a título de exemplo as Memórias acerca dos Pássaros da Colônia Luso- americana de Caetano de Brito Figueiredo, a Dissertação sobre a História Eclesiástica do Brasil, de Gonçalo Soares de França, os LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). Exercícios de Marte, Nova Escola de Belona, Guerra Brasílica ou Dissertações Críticas Históricas do Descobrimento e Origens dos Povos e Regiões dAmérica, Povoações, Conquistas, Guerras, e Vitórias com que a Nação Portuguesa Conseguiu o Domínio das Catorze Capitanias que Formam a Nova Lusitânia ou Brasil, de Inácio Barbosa Machado, os Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco,_ de Domingos de Loreto Couto, o Novo Orbe Seráfico Brasílico e Catálogo Genealógico, de Antônio de Santa Maria Jaboatão, e a História Militar do Brasil, de José Mirales (Castello 1968, 1: 296-312). Os escritores neoclássicos brasileiros em sua maior parte são considerados como pertencentes à literatura nacional pela sua participação na Inconfidência Mineira (pelo menos porque encarcerados). Por professarem as idéias literárias de então, muitos se caracterizam pelo retrato da natureza bucólica clássica, repleta de campos e gado, distante da brasílica, especialmente a mineira de montes e vales na visão de um Cláudio Manuel da Costa (Candido 1975, 1: 88-89). Muitas de suas descrições, entretanto, se atêm aos fatos locais. Há uma "determinação de elementos que podem parecer · exóticos a olhos estrangeiros mas que são comuns aos que participam da civilização que produz esta literatura e que, por sua estranheza, servirão para conglutinar e solidificar, por força de sua vivência ambientaL todos os brasileiros" (Martins 1982, 159). Já há uma cultura nacionaL uma identidade presente em quase todo o país: "podemos encontrar autores que comungam das mesmas idéias em quase toda a extensão do território nacional: de Santos a Belém do Pará, de Recife ao interior de Goiás" (Martins 1982, 18). Citemse, a exemplo, o indianismo de um Basílio da Gama e de um Santa Rita 34 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). Durão, ainda que só como motivo, a poesia laudatória de teor ilustrado, reclamando providências para com a Colônia, de um Tomás António Gonzaga, de um Alvarenga Peixoto e de um Basílio da Gama, a poesia folclórica de um Caldas Barbosa e sua Viola de Lereno, e principalmente a poesia herói-cómica de um Silva Alvarenga e de um Melo Franco. Estes dois escritores com seus, pela ordem, O Desertor e O Reino da Estupidez, constituem-se numa sólida resposta brasileira ao predomínio intelectual metropolitano; há de se estudar nestes, como também noutros obras do gênero produzidos por brasileiros, o qualidade da sátira menos afeita a pessoas e muito mais dirigida a instituições, resultando numa consciência liberal progressista dos brasileiros, obviamente ligados a Pombal, oposta a retrógrada e conservadora posição da maior parte dos intelectuais portugueses do mesmo período em obras do gênero. A genérica percepção dos escritores neoclássicos, aventada acima, necessita como ponto de equilíbrio de uma singularização no que se refere aos traços distintivos aqui propostos. As condições sociais do Brasil Colonial estão nas Cartas Chilenas, com a menção dos desmandos em Vila Rica e com o registro da presença de elementos africanos como o lundum, o batuque e a mulata, e na Marília de Dirceu de Tomás António Gonzaga, com a queimada, o fumo e o açúcar; em O Uraguai, com o louvação da indústria naval brasileira por meio da nau Serpente e a citaçS)o da queimada, e em Quitúbia, ambos de José Basílio da Goma, com o reconhecimento do negro como herói; em Caramuru de Santa Rita de Durão, com a antropofagia e os ornamentos corpóreos indígenas, na consciência da formação étnica brasileira nas "Oitavas" de Alvarenga Peixoto: "Estes homens de vários acidentes I LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 35 Pardos, e pretos, tintos, e tostados, I São os escravos duros, e valentes I Aos penosos trabalhos costumados" (Martins 1982, 81 ). Num misto de tradições sociais e léxico diferenciado, há de se observar nas obras neoclássicas a presença de animais como o acarapepe, a anta, a baleia, o galo de campina, o jacaré, a onça, a preguiça, o xexéu; de frutos, legumes e plantas como aipim, ananás, anil, araçá, araticum, ata, bacupari, banana, cajueiro, cambucá, cambuci, corá, caruru, coqueiro, fruta de conde, gabiroba, goiaba, grumixama, inhame, jabuticaba, jaco, jambo, jasmineiro, jatobá, jenipapo, joá, mamão, mandioca, mangaba, mangueira, maracujá, murici, palmito, pitanga, sapucaia; e de vocábulos melodiosos como dengue, iaiá, jambé, moenga, moleque, nhanhá, nhonhó, quindim, quingobó, xarapim, que atraíram a atenção de Caldas Barbosa, Joaquim José Lisboa, Natividade Saldanha, Frei Francisco de São Carlos e Bartolomeu Antônio Cordovil. O romantismo no Brasil buscou no povo o substrato fundamental para a criação artística. Enfatizados a pátria, a natureza, o povo e o passado histórico-mítico, enquanto caracteres gerais, afirmou-se uma estrutura calcada numa negação do padrão clássico e universal a favor da singularização da tradição social e política. Paradoxalmente, a nacionalização da temática e a intencional popularização da linguagem, ou em outros termos a focalização local, foram frutos da influência estrangeira. A originalidade decorreu, pois, da essência brasileira então tornada literária. As obras centradas no passado colonial, como O Guarani e As Minas de Prata de Alencar, As Mulheres de Mantilha de Macedo, Maurício e O Bandido do Rio das Mortes de Bernardo Guimarães, exploram o passado histórico para a construção 36 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). de mitos, com especial atenção aos códigos morais do honra, lealdade e cavaleirismo. A formação étnica brasileira Já evidenciada em obras do Brasil colonial mantém-se presente durante o romantismo. O índio, talvez o maior motivo romântico, está presente enquanto lenda (em tracemo e Ubirajara de Alencar, no lenda de Aiotin e Aín em A Moreninha de Macedo, e em Os Três Dias de um Noivado de Teixeira e Sousa) e enquanto mito (em O Guarani de Alencar). A poesia romântica exalta a contribuição indígena, dotando-a de valores como o coragem, o amor, a dedicação, a lealdade, a bravura e a honradez. Há de se mencionar a desventurado Confederação dos Tamoíos de Gonçalves de Magalhães; "1-Juco Pirama" de Gonçalves Dias; "O Hino à Cabocla," de Junqueira Freire; "Americanas," de Joaquim Norberto; "Colombo," de Araújo Porto-Alegre; "lmprecação do Índio," do Barão de Paranapiocaba; "A Maldição do Piaga," de Macedo Soares; Harpejas Poéticos de Santa Helena Mogno, e Anchieta ou O Evangelho nas Selvas de Varela. O negro também é motivo literário, ainda quase sempre retratado de formo negativo, como ocorre em As Vítimas-A/gozes de Macedo. Infelizmente, A Escrava Isaura de Bernardo Guimarães, e Mãe de Alencar não enfrentam com vigor o drama do negro, como tampouco o foz de forma efetiva Castro Alves, o poeto de "Navio Negreiro" e Os Escravos. Menção positivo e valorosa neste caso se aplica à Medltaçãg de Gonçalves Dias, e às Trovas Burlescas de Luís Gama, este no esteiro de Caldas Barbosa. A coragem e a paisagem rurais são encontráveis tonto na poesia quanto na proso de ficção. A descrição da roça e do ermo está presente na pastoral dos Cantos do Ermo e da Cidade, de Fagundes LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 37 Varela, no lirismo de tom popular de Casimiro de Abreu (como se percebe no poema "Moreninha," das "Brasilianas"), e até mesmo no poema "Cantiga do Sertanejo" do universalista Álvares de Azevedo. Os romances do "contador de casos" Bernardo Guimarães reproduzem "usos e costumes, paisagens e tradições da vida rural mineira ou goiana" e "estão cheios de particularidades sintáticas.. e vocabulares de certa área do nosso sertão, e podem, por isso, constituir documento importante para estudos de dialetologia brasileira" (Alencar 1969, 2: 26162). Em Távora, há "literatura do norte," como única expressão rea! da literatura brasileira, que nega a existência de uma literatura regional no centro e no sul do Brasil, tal como se dividiam as regiões na época. A sua preocupação com a verossimilhança, que lembra a personagem Macário de Álvares de Azevedo ao apontar a realidade dos mosquitos e sezões do Amazonas e do Orinoco, Heron de Alencar considera falha ficcional; a obra de Távora seria apenas relatório histórico-geográficosocial. Entretanto, o mesmo crítico reconhece-o como o primeiro a chamar a atenção para "os recursos temáticos que o Norte" poderia oferecer à literatura (1969, 2: 267). Taunay, por sua vez, registra em Inocência a vida sertaneja, com seus códigos de honra e convivência próprios do ermo, e a natureza viva e pujante, sob a ótica extasiada de um naturalista alemão. Romance rural por excelência, a obra de Taunay fixou um modus vivendi preciso e particular, encontrável também na ficção de Guimarães Rosa e Bernardo É/is. Citem-se, ainda, pela intenção em retratar regiões específicas do país, com os respectivos costumes, O Sertanejo e O Gaúcho de Alencar. O romance urbano prima pelo retrato de costumes, com críticas severas à vileza do comportamento da gente das cidades. Pela sua 38 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). singularidade temático-estilístico-cronológica, citem-se separadamente as Memórias de um Sargento de Milícias de Manuel Antônio de Almeida, que faz a listagem de modas, costumes e tipos do ''tempo do rei" D. João VI, caricaturando a figura histórica do Major Vidigal. Com traços pícaros, malandro típico como o vê o professor Antonio Candido em "Dialética da Malandragem" (1970), Leonardo, o próprio povo, com todos os seus usos. Em Macedo, predominam "aspectos da vida pequeno-burguesa dos meados do século XIX, os namoros , de estudante, os saraus familiares, as festas, as cónversas de comadre, os hábitos, os costumes e as tradições da sociedade de seu tempo" (Alencar 1969, 2: 234-35). No Alencar de Cinco Minutos, A Viuvinha, Lucíola, Diva e Senhora, os costumes da corte fluminense assumem laivos de requinte a par da também descrita grosseria dos novos-ricos, com o registro da moda, das danças, das recepções, da galantaria e das regras do bom gosto (Cascudo 1951, 4: 14). Não menos importante é a obra teatral de Martins Pena. Ela se destaca pela descrição das diferenças entre a província e a capital, o sertanejo e o metropolitano, o brasileiro e o estrangeiro, fazendo sátira dos costumes nacionais, em especial as relações políticas e religiosas, com pequenos toques cômicos no que se refere a profissões e a tipos. Algo também interessante é a sua filiação à corrente indianista, embora com laivos shakesperianos (Magaldi 1976, 55). Por último, como prova da filiação romântica à tradição social brasileira há de se lembrar os traços comuns a toda a gente, como a presença do sabiá, do coqueiro, das laranjeiras, dos cajueiros, encontráveis freqüentemente, em especial na poesia de Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela e até mesmo em Álvares de LETRAS- Revisto do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (RS). 39 Azevedo, o louvação poética dos heróis nacionais e o pesquiso do lira popular. Os ambientes físico e social participam da literatura do período realisto quase como personagens, enriquecidas pelo pesquiso dos falares regionais, do folclore e dos contrastes 'entre o urbe e o ermo. Por convir aos escritores do período o moi§ estrito e plausível verossimilhança, cria-se um inusitado culto do palavra precisa e exata. A poesia realista urbana de Carvalho Júnior, Teófilo Dias, Afonso Celso e Celso Magalhães prima pela descrição de atitudes, modas e mobiliário, enquanto a poesia rural de Bernardino do Costa Lopes preocupo-se com a vida nas fazendas brasileiras. Os poetas parnasianos concentram a sua atenção no ambiente físico, caso da presença tropical no obra de Luís Guimarães, dos acidentes geográficos e cidades em Alberto de Oliveira, e da vivência do mar subtropical em Vicente de Carvalho. Os escritores considerados naturalistas enfatizam os costumes relativos a convivência, em geral, promíscua dos variados tipos sociais, como ocorre nas obras de Aluísio Azevedo, Inglês de Sousa e Adolfo Caminha. Os escritores considerados realistas servem-se tanto do ermo, caso de Coelho Neto e Euclides da Cunha, quanto da cidade, caso de Machado de Assis, Raul Pompéia e Lima Barreto, com as respectivas descrições dos usos e costumes correspondentes. Em Machado, há uma preocupação mais forte com principalmente porque representam a moral e os costumes, tais axiomas e dogmas o arcabouço da emergente sociedade burguesa, concentrando a sua ótica na gangorra social. com fina ironia acerca do adultério, do escravismo e da esporádica alforria, dos costumes esotéricos, da maldade metropolitana contra a inocência provinciana. LETRAS- Revisto do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). Menos preocupado com a sociedade em si, como ocorre em Senhora de Alencar, Machado identifica-se mais com a psicologia dos pecados, como o ciúme, a luxúria, a inveja, a cobiça e a hipocrisia, sem deixar entretanto de se ater aos usos e costumes da família brasileira do Segundo Reinado e dos seus percalços (percebidos, por exemplo, em Esaú e Jacó). Raul Pompéia, em O Ateneu, descreve a vida escolar, ' com as nuances próprias dos momentos de dúvida, com as diferenças entre fortes e fracos, e com o moto da burguesia, o dinheiro. Para este trabalho importa sobretudo a consciência da cultura brasileira expressa pelo personagem Dr. Cláudio. Mais concreto em relação a Machado de Assis, pois que se preocupa mais com as relações sócio-econômicas ao invés das psicológicas, Lima Barreto externa a vida menor e suburbana de pessoas comuns: "carteiros, funcionários da Guerra, empregados no comércio, seresteiros e poetas de arrebatado sestro" (Gomes 1969, 3: 205). A época, com suas paisagens e tipos, com sua maneira onipotente de discriminar os índios, negros e mulatos, é retratada com fidedignidade pela pena jornalística de Lima Barreto, com especial atenção às serenatas, festas, jogos de cartas e namoricos do subúrbio. O ermo realista retrata o choque do homem com a terra, tornando-se evidente o contraste com a urbe, caso de Euclides da Cunha, e a série de mistérios e encantamentos a assombrar o homem perdido na solidão, como ocorre em Coelho Neto. Há, pois, uma - crescente documentação das reações e usos do homem em face do agreste meio ambiente. Em cada uma das regiões brasileiras, retratadas literariamente, salta aos olhos uma determinada característica. No Norte, o homem aparece ao lado de bichos, doenças, mitos e sombras, LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). 41 eternamente deslocado, pretenso agressor e regulador, mas vítima da panfagia aventada por Ronald de Carvalho, como comenta Peregrino Júnior (Coutinho 1969, 3: 225). A seca e suas personagens fundamentais, o sertanejo e o cangaceiro, no Nordeste, denotam a força bruta da natureza, empurrando o homem para longe, a viver o dilema de ''ter de ir e querer ficar," ao lado de danças típicas, f?stas religiosas e lendas ou histórias heróicas. A região da Bahia prima pela presença de negros e dos costumes afro-brasileiros. em especial o sincretismo religioso. A região central tem, como personagem, o homem integrado ao meio, conhecedor de fatos, feitos, coisas e "causos." A vivência é de tom pastoril. com sistemas de honra que lembram o cavaleirismo medieval. Aparentado desse é o sertanejo ou caboclo paulista, desanimado, pobre e doente, cheio de receitas medicinais e -crendices. O Sul caracteriza-se por uma vida campeira, com um linguajar todo particular, próprio do contato com a criação de gado vacum e eqüino, além da influência dos vizinhos argentino e uruguaio. O modernismo de 22 é politicamente nacionalista, havendo buscado, pelo menos como intenção, realizar uma obra fundamentada nas tradições populares, como é o caso do aproveitamento de figuras sem nobreza clássica visto em Juca Mulato de Menotti dei Picchia, e em Macunaíma de Mário de Andrade. O índio e as figuras históricas mantêm-se como personagens importantes e tradicionais. A estes, vieram se juntar os imigrantes e o homem urbano comum, pobre, covarde e impotente. Em vários instantes dos inúmeros estilos de época na literatura brasileira, percebe-se haver um traço nacionalizante, como se a brasilidade pudesse resultar (ou talvez resulte) da demonstração do 42 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). outramento, da diferença, da peculiaridade, de um exotismo, todos para uma literatura outra, da qual partiu a literatura brasileira. Sinal de que se buscou conquistar pelo retrato e reconhecimento de um mundo diverso a consciência de uma nacionalização, processo intelectual e emotivo, quem sabe um estatuto da brasilidade nas coisas e retratos do Brasil. Obras Citadas ALENCAR. Heron de. 1969. "José de Alencar e a Ficção Romântica." Coutinho, A Literatura no Brasil 2: 217-300. CANDIDO, Antonio. 1970. "Dialética da Malandragem." Revista do Instituto de Estudos Brasileiros [São Paulo) 8: 67-89. _. 1975. Formação da Literatura Brasileira. 2 vols. Belo Horizonte: ltatiaia. CASCUDO, Luís da Câmara. 1951. "O folclore na obra de José de Alencar." Obras de Ficção. Por José de Alencar. 16 vols. Rio de Janeiro: José Olympio. CASTELLO. Jose Aderaldo. 1968. "O Movimento Academicista." Coutinho. A Literatura no Brasil 1: 296-31 2. COUTINHO. Afrânio, org. 1968-71. A Literatura no Brasil. 2 ed. 6 vols. Rio de Janeiro: Sul Americana. COUTINHO. Afrânio. et ai. 1969. "O Regionalismo na Ficção." Coutinho, A Literatura no Brasil 3: 209-89. GOMES. Eugênio. 1968. "Botelho de Oliveira. Nuno Marques Pereira." Coutinho, A Literatura no Brasil 1: 255-84 . . 1969. 'lima Barreto." Coutinho, A Literatura no Brasil 3: 203-09. HOlANDA S,rgio Buarque de. 1959. Visão do Paraíso. Os Motivos Edênicos no Descobrimento e Colonização do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio. LETRAS· Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 43 KING, Bruce. 1980. The New English Uteratures; Cultural Nationalism in a Changing World. London: Macmillan. MAGALDL Sábato. 1976. Panorama do Teatro Brasileiro. Rio de Janeiro: Funarte. MARTINS, Heitor, org. 1982. Neoclassicismo: uma Visão Temática. Brasília: Academia Brasiliense de Letras. VIEIRA Padre António. 1948. Cartas. Clássicos Jackson 14. Rio de Janeiro: W. M. Jackson. 44 LETRAS- Revista da Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). NOVAS CONQUISTAS E OUTROS GALEÕES: BREVE HISTÓRIA DE NAVEGAÇÕES EM MARES DE PAPEL Paulo Motta OLIVEIRA UFMG Lá onde escoa o Tejo, os Escultores De entre a água erguerão altos heróis, Poetas, Santos e Navegadores (" ') Eu confio em ti, reza d'Heróis E confiar em ti, não é vaidade Vossos nomes de bronze são faróis Que luz darão, à nossa tempestade. António Nobre' Durante nove meses, Teixeira de Pascoaes e António Sérgio se digladiaram em uma das mais famosas polêmicas portuguesas do primeiro quartel do século XX. O confronto ocorreu nas páginas da segunda série de A águia, tendo tido início no n. 0 22 dessa revista, de outubro de 1913, e só terminando no n. 0 31, de junho de 1914. Se já em outro momento estudamos de forma detida essa controvérsia, neste artigo pretendemos analisar outros aspectos do confronto entre o autor dos Ensaios e os saudosistas. Articulando algumas idéias apresentadas parcialmente em textos que publicamos, centraremos aqui nossa atenção em um aspecto fundamental para as propostas saudosistas - o papel das navegações - buscando fazer uma breve história desse tema 1 Nobre, 1945, p. ll 2. LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 45 ao longo do século XIX, para, a seguir, analisar como ele é incorporado pelos saudosistas e questionado em dois poemas de Sérgio 2 • 1- O tempo das navegações Pensar nas formas díspares como António Sérgio e os saudosistas analisaram as navegações é . debruçar-se sobre uma questão mais ampla, que percorre todo o século XIX e o início do XX em Portugal: o da situação presente do país e do papel que as navegações e descobertas, ocorridas nos séculos lN e /NI, poderiam ter nesse presente. De fato, a questão nacional percorre o segmento mais significativo das produções literárias, históricas e ensaísticas produzidas em PortugaL no período que vai do vintismo ao Estado Novo. Existe, em vários textos desse período, uma esperança no futuro do país que se concilia com uma visão negativa do presente. Essa união, expressa de forma matricial no Bosquejo do história do poesia e língua portuguesa de Almeida Garrett, acaba por atravessar textos tão díspares como as Cartas da história de Portugal de Alexandre Herculano, o Cousas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos de Antero de Quental, a História do civilização ibérico de Oliveira Martins e o "San Gabriel" de Camilo Pessanha, aos quais voltaremos a nos referir, e também pode ser encontrada na expectativa demasiadamente otimista, quase milagroso, que é depositada no advento do República, no final do século XIX e no 2 Estudamos a polémica entre António Sérgio e Teixeira de Pascoaes em Oliveira, 1995, p. 217-364. As idéias, jó parcialmente apresentadas, e aqui retomadas encontram-se em Oliveira, 1996; Oliveira, 1997 e Oliveira, 1998. LETRAS llevista da Cursa de Mestrado em Letras da UFSM (RS). início do XX. Existe uma esperança que é sempre um pouco desmedida, para além daquilo que, racionalmente, poder-se-io esperar que ocorresse, que se articula com a idéia de decadência, também ela recorrente, para a qual são formuladas múltiplas e variadas propostas de superação. É no interior dessa problemática mais ampla que situam-se os vários olhares que as navegações receberam nesse período. De início, duas visadas sobre esse tema são fundamentais, as de Alexandre Herculano e o de Antero de Quental, pois ambos tenderam, por motivos apenas em parte diversos, a ter uma visão bastante negativa desse fenômeno. Alexandre Herculano, na quinta das Cortas sobre a história de Portugal, publicada em 1842 na Revista universal lisbonense, tendeu a ver nas descobertas e navegações o efeito das atividades de um princípio monárquico já vitorioso, e, (Herculano s.d. (b), por isto, socialmente estéril p. 154-5). Nessa epístola, opondo-se ao que considerou efeito de "estudo superficial e irrefletido" - a visão do "século décimo-sexto como a verdadeira era da grandeza nacional" (Herculano, s.d. (b), p. 129) - aponta que a real era de grandeza ocorreu em outro período: "a virilidade moral da nação portuguesa completou-se nos fins do século XV, e a sua velhice, devia começar imediatamente" (Herculano, s.d. (b), p. 131 ). Nessa perspectiva, o esplendor do século XVI se deve a uma geração que "foi educada pelo século anterior", e, em vista disso, "O século décimo-sexto nada mais fez que aproveitar a herança da Idade Média" (Herculano, s.d. (b), p. 134). Para Herculano a história de Portugal, e de toda a Europa, durante o período medieval, pode ser considerada como "o largo e custoso lavor LETRAS- Revisto do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 47 (... ) para transformar a unidade do império romano na individualidade dos povos modernos. (... ) O restabelecimento da variedade sobre as ruínas da unidade absoluta é o grande princípio que a meu ver a Idade Média representa" (Herculano, s.d. (b), p.l42-l43). Foi justamente a variedade e a independência, fundamentais no caráter dos homens da Idade Média, que desapareceu com a consolidação da monarquia absoluta. Se durante o período medieval o elemento monárquico ainda tem uma ação "enérgica, civilizadora, progressiva", "Obtido o triunfo, assemelha-se a todos os vencedores: degenera e corrompe-se nos ócios da vitória" (Herculano, s.d. (b), p. i 54). É essa monarquia corrompida que promove as navegações, usando as energias da última geração ainda educada no período anterior. O poderio, por mais que grandioso, é apenas aparente, e a monarquia, por suas características intrínsecas, acabará por perdê-lo: "no lugar da ordem põe a servidão; em vez do repouso da paz produz a quietação do temor; à moralidade substitui a corrupção dos costumes. Pervertida a índole nacionaL enfraquecida a energia interior do povo, o poderio exterior começa a desmoronar-se logo" (Herculano, s.d. (b), p. 155). Todo esse discurso não é, como poderia parecer, apenas uma reflexão sobre o passado. Como notou Eduardo Lourenço, o passado interessa para Herculano como uma forma de entender e atuar sobre o seu tempo (Cf. Lourenço, 1982). Também aqui é, de fato, o presente que norteia suas reflexões. Para o autor de Eurico o seu tempo, em PortugaL caracteriza-se por uma retomada de certas características do período medieval, já que voltavam a ocorrer as lutas pela independência que haviam então existido: 48 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). O renascimento (... ) foi a restauração completa da unidade como princípio dominador e exclusivo, salva a distinção das nacionalidades, que ficou subsistindo. (... ) O que são as revoluções políticas do nosso tempo? São um protesto contra o renascimento; uma rejeição da unidade absoluta; uma renovação da tentativa para organizar a variedade" (Herculano, s.d. (b), p.3-4). Podemos, a partir do acima apontado, perceber os motivos que 'evam Herculano a ver as navegações como fruto de um espírito -rJonárquico já estéril. Na sua concepção da história de Portugal não existiria nenhuma relação entre o período das navegações e o seu oresente. Este seria muito mais próximo da Idade Média, e, por isso, as navegações são, para ele, apenas um acontecimento que não mais teve prosseguimento na história do país. No raciocínio histórico de Herculano, o estudo do período das navegações é inútil, o que viria a ser confirmado na sua História de Portugal, em que, por sinal, será analisado apenas o período que vai "Desde o começo da monarquia até o fim do reinado de Afonso III" [Herculano, s.d. [a), p.3). Quando, quase trinta anos depois, Antero de Quental proferir, em 27 de maio de 1871, a Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos, desdobrará, levando às últimas conseqüências, alguns aspectos já presentes nos raciocínios de Herculano. Como sabemos, nessa conferência, o· autor dos Sonetos considera que a decadência da península, a partir do século XVII, só pode ser explicada se buscarmos as SIJOS causas no século XVI. Esse raciocínio mostra que Antero é tributário das Carta que atrás analisamos. Mas existem diferenças importantes entre os raciocínios desses dois escritores. De inicio é importante assinalar que se duas das três causas da decadência já haviam sido apontadas pelo autor de Eurico, o absolutismo e as LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 49 navegações, o mesmo não ocorre com a terceira, o Concílio de Trento. Além disso, a segunda - as navegações -, que particularmente aqui nos interessa, aparece, no texto de Herculano, muito mais como uma conseqüência do absolutismo, do que propriamente como uma causa que ajudara à decadência. Sobre a transformação das navegações em uma causa da decadência, devemos notar gue o próprio Antero mostra, em sua conferência, como é delicado o assunto: Há dois séculos que os livros, os tradições e o memória dos homens, andam cheios dessa epopeia guerreiro, que os povos peninsulares, atravessando oceanos desconhecidos, deixaram escrita por todas as partes do mundo. Embalaramnos com essas histórias: atacá-las é quase um StílCrilégio. E todavia esse brilhante poema em acção foi uma das maiores causas da nossa decadência. É necessário dizê-lo, em que pese aos nossos sentimentos mais caros de patriotismo tradicional. Tanto mais que um erro económico não é necessariamente uma vergonha nacional. No ponto de visto heróico, quem poderá negá-lo? foi esse movimento das conquistas espanholas e portuguesas um relâmpago brilhante, e por certos lados sublime, da alma intrépida peninsular. A moralidade subjetiva desse movimento é indiscutível perante a história: são do domínio da poesia, sê-lo-ão sempre, acontecimentos que puderam inspirar a grande alma de Camões. A desgraça é que esse espírito guerreiro estava deslocado nos tempos modernos: os nações modernas estão condenadas o não fazerem poesia, mas ciência. (Quental, 1982, p.285-6) Termos como brilhante poema de acção, um relâmpago brilhante, e por certos lados sublime mostram bem com que cuidado Antero tenta fazer o que ele mesmo qualifica como quase um sacrilégio. Existe, inegavelmente, uma grande distância entre mostrar a inutilidade das conquistas e apontá-las como uma das causas da decadência. Para, porém, perceber o significado profundo dessa postura, é 50 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). :,portante relacionar esse trecho com um outro, já quase no fim da :onferência: "Que é pois necessário para readquirirmos o nosso lugar na :.rvilização? para entrarmos outra vez na comunhão da Europa culta? É セ・」ウ£イゥッ@ um esforço viril, um esforço supremo: quebrar resolutamente :om o passado." (Quental, 1982, p.294). Esse trecho mostra que, para -Vltero, a única forma de Portugal recuperar o seu lugar na civilização seria quebrando resolutamente com o passado, ou seja, renegando oquelas características que, por mais que fossem fruto das causas opontadas, eram também o que constituía a identidade nacional. Negar os descobertas e, junto com elas, as características tradicionais do país, era considerar que Portugal só teria saída se conseguisse se inventar outro, se alterasse radicalmente o que era e o que antes havia sido, refazendo-se à imagem e semelhança da Europa culta, da qual, então, passaria a fazer parte. Existe, nessa conferência, como podemos notar, não apenas uma interpretação nova da história de Portugal, o que, em certo medida, Herculano já havia feito, mas uma tentativa de alterar radicalmente a face do país, um desejo de transformá-lo no que de mais moderno, em termos económicos e sociais, existia então na Europa 3 • Mas, apesar 3 Pelo que acima dissemos. não podemos concordar com Joel Serrão, que afirmou: "As inovações anterianas cingem-se na essência, por um lado, à generalização à Península Ibérica da problemática da decadência, e, por outro, à ideia-força que por então o movia e comovia e empolgava, a saber 'o novo mundo industrial do socialismo, a quem pertence o ヲオエイッセB@ [Serrão, 1982, p.21). Como vimos, não é apenas a adesão ao socialismo e a generalização para a Península Ibérica que diferenciam a conferência de Antero do que havia sido formulado por Herculano. Além disso, se pensarmos nesse desejo de rasurar de forma radical a face do país, podemos entender por que António Quadros se refere à geração de 70 como "um grupo de jovens intelectuais insatisfeitos, europeístas e estrangeirados" (Quadros, 1989, p.57), ou por que Lourenço afirma: "Nas famigeradas Conferências do Casino e no que delas se seguirá, não é apenas a mera realidade histórico-política de Portugal que vai ser questionada ou quem questiono os actores das Conferências: é a totalidade do seu LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). dessas diferenças, o confronto dos raciocínios de Antero e Herculano mostra-nos que os dois partilham de uma mesma concepção, a de que o tempo das navegações não pode trazer nenhum aspecto positivo para o seu presente. O Portugal que Herculano enxerga, e o que Antero deseja, é um Portugal imerso em um tempo distinto do das navegações: para o primeiro um tempo que, em certo sentjdo, retoma as lutas que existiam na Idade Média; para o segundo, um tempo europeu, para o qual o espectro das navegações é um estorvo. Inúteis para o primeiro, prejudiciais para o segundo, as navegações são negadas não pelo que foram, mas pelo que ainda são ou pelo que não podem vir a ser. Será justamente esse aspecto que será visto de uma nova forma por um companheiro de geração de Antero, Oliveira Martins. Em 1879 este autor publicará a História da civilização ibérica e a História de Portugal. Será no início da última dessas obras que Martins explicitará a diferença existente entre elas: No História da civilização ibérica tratamos de estudar o sistema de instituições e de idéias da sociedade peninsular, poro expor o suo vida coletiva orgânico e moral. Tomamos aí a sociedade como um indivíduo, e procuramos retratá-lo física e moralmente. Agora o nosso propósito é diverso.[ ... ) Metade da história portuguesa está [ ... ) escrita na História da civilização ibérica: a metade que trata da vida do sociedade como um ser orgânico.[ ... ) Resta fazer a segundo metade: resta caracterizar o que há de particular na história portuguesa; resta fazer viver os seus homens e representar de um modo real o cena em que se agitam: tal é o programo deste livro. [Martins, s.d .. , /, p.l4). ser histórico-cultural. O sentido do nosso aventura passado aparece aos olhos de alguns jovens impressionados com os ecos tardios da revolução técnica e ideológica da Europa, como problemático." (Lourenço, 1982, p. 95-96) 52 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). No fim da História do civilização ibérico - ao falar do possível セMjイッ@ desse ser orgânico que, um dia, havia construído uma cultura ::;ropria, e que em seu presente passava por um processo de :>eeomposição - existe um trecho importante para a questão que aqui es;amos tratando: Nós acreditamos firme e diremos até piamente [... ) na futura organização das nações da Europa; cremos portanto em uma vindoura Espanha mais nobre e mais ilustre ainda do que foi a do século XVI. Acreditamos também que já hoje navegamos na viagem para este porto, embora os nevoeiros conturbem as vistas dos nautas agora que apenas acabamos de largar as costas do velho mundo. Que papel destina o futuro à Península, e qual será a fisionomia dessas idades vindouras? A história não é profecia; mas o estudo das idades passadas deixa entrever muitas vezes as probabilidades futuras; e, quando, através de todas as crises, no meio dos ambientes mais sistematicamente adversos, observamos que o heroísmo peninsular soube vencer tudo com a sua indomável energia, somos levados a crer que o papel dos apóstolos das futuras ideias está reservado aos que foram os apóstolos da antiga idéia católica. A independência dos caracteres individuais e a nobreza do carácter coletivo deram e hão-de dar à Espanha, quando os seus áureos tempos voltarem, esse aspecto monumental e soberano que a distingue no mundo.[ ... ) Daqui por séculos, alguém, ao declinar do sol dessa futura idade (... ) fará para a vindoura Espanha o que nós acabamos de fazer com amor, para a Espanha do passado. [Marlins, 1973, p.338-339) 4 ' Esse trecho responde. de forma indireta. a cerras perguntas, com que se fecha o -!.'stória de Portugal. qu&abaixo reproduzimos: 'Continua ainda a decomposição nacional. apenas interrompida de um modo :Jparente pelas ideias revolucionárias e pela restauração das forças económicas セZクョ・エ。、ウ@ pelo utilitarismo universal? Ou presenciamos um fenômeno de obscura ·econstituição, e sob a nossa indecisa fisionomia nacional, sob a nossa nudez patriótica. sob a desesperança que por toda a parte ri ou geme. crepitará latente e ignota a ::homo de um pensamento indefinido ainda?"( Martins, s.d.,/1, p.211 .). :::omo podemos notar. esse pensamento indefinido estava sendo gerado, se não especificamente em Portugal. ao menos em toda a Ibéria. LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 53 Ao mostrar a trajetória da antiga Espanha católica para a nova sociedade que ainda está se formando como uma navegação, que partindo do velho mundo busca por entre nevoeiros o novo porto, ou seja, a futura idéia-síntese que irá congregar a sociedade, Martins acaba por criar um topos que será recorrentemente utilizado a partir de então. O destino da península, ou, de forma mais restiita, o de Portugal, será, nessa perspectiva, o de reconquistar um poderio semelhante ao antigo, através de novas navegações, .desta feita não mais terrenas e sim espirituais. Assim, não só é recuperada a importância das navegações passadas, mas também elas se transformam em paradigma de um futuro o ser atingido. O tempo presente, separado das navegações por Herculano e Antero, de novo a elas se liga, na visão de Martins. Essa idéia básica ganhará outros desdobramentos no final do século com "San Gabriel", de Camilo Pessanha, publicado inicialmente no Jornal Único de Macau em 25 de Maio de 1898, justamente para comemorar o quarto centenário da chegada de Vasco da Gama nas Índias. Nesse poema, em que Portugal é visto como uma nau presa em uma calmaria, o eu lírico, após afirmar: "Que cilada os ventos nos armaram!", pergunta: "A que foi que tão longe nos trouxeram?" (Pessanha, 1973, p.40). Esta questão, em que se pede um sentido ao já realizado, indica que o significado das grandes navegações ainda não se completou, perspectiva que fica ainda mais patente quando o eu lírico pede a San Gabriel para que este de novo qbençoe o mar e guie os portugueses à conquista final: Vem guiar-nos, Arcanjo, à nebulosa Que do além vapora, luminosa, E à noite lactescendo, onde, quietas, 54 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). Fulgem as velhas almas namoradas ... Almas tristes, severas, resignadas, De guerreiros, de santos, de poetas. (Pessanha, 1973, p.4l) Apenas chegando a essa nebulosa, em uma viagem claramente espiritual e não mais terrena, é que os portugueses, com a ajuda do arcanjo Gabriel, poderão atingir um novo estado em que o já feito ganhará seu verdadeiro significado, em que a navegação, iniciada e interrompida no passado, será finalmente completada. O que em Martins era uma analogia entre a missão passada e o destino futuro aqui se converte em uma construção mais intrincada: não apenas existe essa analogia entre os dois tempos, mas o passado não possui um significado em si, já que é apenas o início de algo que só em um futuro poderá se consumar. Como pudemos notar, se existia uma semelhança entre os raciocínios de Antero e Herculano, ele também pode ser encontrado entre os de Martins e Pessanha. Para estes, em confronto com os dois primeiros, a experiência das navegações possui relação com o presente de Portugal, pois nelas se criou um certo aprendizado que possibilitará ao país, ou a toda a península ibérica, estar preparado para outras formas de navegar, que, em ambos os casos, não mais serão feitas em mares concretos, mas em um outro tipo de oceano, de carácter espiritual. 11 - O novo navegar Será essa diferença básica, entre as posturas dos dois grupos que aqui assinalamos, que estará presente nas perspectivas dos saudosistas, mais próximos de Martins e Pessanha, e na de Sérgio, mais próximo de LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). 55 Antero e Herculano. Para entendermos as posturas dos primeiros, e os motivos que levaram o segundo a entrar com elas em confronto, é necessário que analisemos o contexto em que o topos das navegações aparecerá nos primeiros volumes da segunda série de A águia. Esse topos estará presente em textos não apenas poéticos, mas também de análise social e inteNenção na vida política, escritos pelos intelectuais que, em 1912, constituíam o grupo saudosistas. No primeiro volume aparecem os contornos iniciais desta visão, em parte dispersos em vários textos de Pascoaes e, de forma mais explícita, em dois poemas: o "Regendo a sinfonia da tarde" de Jaime Cortesão e o "O poeta e a nau" de Augusto Casimiro. No primeiro, o eu lírico conclama os portugueses a embarcar "Para as Índias sem fim", pedindo para si, por ser poeta, "a mais alta gávea" (Cortesão, jun. 1912, p. l 77). O segundo, que sintetiza alguns aspectos importantes do topos da navegação em A águia, é abaixo reproduzido: Vai errante, no Mar, uma nau sem governo ... O oceano é chão, o céu azul fundindo em aço ... As velas mortas ... Nem sequer vento galerno As vem inchar para dormir no seu regaço! ... Sobre o antigo convés pesa um velho cansaço, E ou destino fatal ou maldiçoo do inferno, O mastro grande em vão aponta para o espaço ... -Sobre as ondas a nau é um cárcere eterno! Dominando em redor, lá na gávea mais alta, Um marujo, a cantar, fala do Além, e exalta Um passado esplendor sobre a nau sepulcral ... 5 Este grupo possuía como seus principais membros Teixeira de Poscmes, Jaime Cortesão, Augusto Casimiro, Fernando Pessoa e Leonardo Coimbra. Uma análise sistemática deste período do Saudosismo pode ser encontrada em OLIVEIRA. 1995, p. 79-218. 56 LETRAS- Revisto do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). "Porque o vento há-de vir aninhar-se nas velas! "Porque a nau voará,- tocará as estrelas! ... " -O marujo é Poeta- e a nau ... Portugal! (Casimiro, abr. 1912, p. 129) Podemos perceber que existem grandes semelhanças entre o texto acima e "San Gabriel" de Pessanha. Apesar desse poema de Pessanha haver sido publicado apenas em Macau, sendo, portanto, em 1912, ainda inédito em Portugal (Cf. Osório, p. 149), devemos notar que vários dos poemas do autor de C/epsídra eram conhecidos em diferentes círculos de intelectuais 6 , e que, além disso, entre os colaboradores de A águia - revista em que foi publicado um poema desse autor, o "Voz débil que passas" - ao menos Jaime Cortesão, sogro de Augusto Casimiro, conhecia nessa época algumas das obras de Pessanhd. Todo esse contexto só vem o confirmar a possibilidade de ' Como afirmou Barbara Spaggiari: "Ele [Pessanha] gostava de recitar os seus versos também aos estranhos e era pródigo em dar autógrafos, por vezes até inéditos, a quem lhos pedisse" (Cf. Spaggiari, 1982, p. 19.). Esse conhecimento dos poemas de Pessanha é confirmado, entre outros textos, por duas cartas. Em uma delas, datado de dezembro de 1912, de Sá'Corneiro para Pessoa, temos o seguinte trecho: "Rogava-lhe encarecidamente que me enviasse, para mostrar ao Santa-Rito, os violoncelos de Pessonho e o soneto sobre a mãe- e mesmo mais algum se para isso estivesse. Era um favor que muito lhe agradeceria. Tem apanhado mais versos dele?" (Sá-Carneiro, 1978, p.37). Na outra, enviado por Pessoa o Camilo Pessanha, provavelmente de 1915, ou seja, pouco depois deste período. o poeto de Orpheu afirma que "Há anos que os poemas de V. Ex. 0 são muito conhecidos, e invariavelmente admirados, por todo a Lisboa." [2essoa, 1973, p.337) ' Esse conhecimento pode ser comprovado pelo trecho abaixo de uma carta de Sá' Carneiro. enviada a Fernando Pessoa em 1O de maio de 1913: "Muito interessante e significativo o que me narra do Jaime Cortesão. O caso contado por ele acerca do Dr. Fernando Lopes é simplesmente lamentóve. Não sei como um poeta, em todo o caso um poeta, pode achar estranho que se goste do Camilo Pessanha! ... Se não conhecesse versos do Cortesão, e me viessem contar isso, eu ficaria fazendo a pior das ideias de semelhante poeta" (Sá'Carneiro, 1978, p. 131 ). LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM IRS). 57 Augusto Casimiro ter tido acesso a "San Gabriel", com o qual o poema acima possui visíveis semelhanças. Em ambos Portugal é um navio parado no meio do mar, imerso em uma calmaria, já que os ventos pararam de soprar. Nos dois existe uma espécie de castigo e/ou maldição, que pesa sobre o navio, expresso por "Que cilada os ventos nos armaram I A que foi que tão longe nos trouxeram?" (Pessanha, 1973, p.40) e pela imagem do mastro grande apontando em vão para o espaço, o que é interpretado como marca de um destino fatal ou de uma maldição do interno. É esse navio inerte que Pessanha pede que seja levado à conquisto final por San Gabriel, numa viagem através das estrelas: O que no poema de Clepsidro é uma súplica, no de Casimiro se transforma na fala de um marujo-poeta que está na gávea mais alto posição que, devemos assinalar, o eu lírico do poema de Cortesão, que citamos, solicitava para si, já que era poeta. É dessa gávea que o marujo-poeta afirma, para o navio morto, que o vento de novo inflará as velas, e fará com que a nau voe e toque as estrelas. Se poderíamos supor, pelas relações que aqui traçamos, que o poema de Casimiro é uma homenagem a Pessanha, afinal ele havia sido o poeta que afirmara a possibilidade dessa navegação espiritual, devemos notar que, no interior da revista em que esse texto foi publicado, uma outra leitura é possível. Em A águia é Teixeira de Pascoaes a figura central, considerado pelos saudosistas não só o poeto, mas também como o profeta por excelência. São principalmente as suas profecias que afirmam a possibilidade do navio Portugal não simplesmente voltar a se mover, mas de fato atingir conquistas muito superiores às já realizadas. Para esse autor, como deixa expresso em textos publicados no primeiro volume, o país se encontra em um momento 58 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). genes1co em que o Saudade, para ele síntese entre Cristianismo e Paganismo e centro da alma portuguesa, finalmente revelada através da nova poesia, poderá gerar uma nova religião, dando, assim, o resposta necessária a um mundo carente de religiosidade (Cf. Pascoaes, jan. 1912, fev. 1912, mar. 1912). Ou seja, em certo sentido, Portugal poderá tocar as estrelas. Por tudo isso, o poeta que aparece no poema de Casimiro pode ser ao mesmo tempo Pascoaes e Pessanha, ou, se preferirmos, a voz que, tendo ecoado pela primeira vez nos versos de Pessanha, agora encarna na figura de Pascoaes. Pelo que dissemos podemos notar que a relação de Pascoaes com as navegações se faz, na segunda série de A águia, não apenas pelos textos que escreve - em que, devemos assinalar, as referências às navegações não são muito freqüentes - mas também, e principalmente, pelo papel que ocupa na revista, de uma espécie de capitão desse novo navegar que se constrói através da nova poesia portuguesa. Se no segundo volume de A águia encontraremos textos importantes para alguns aspectos dessas novas navegações, eles acabarão por apresentar uma postura muito próxima a das obras que já analisamos. Gostaríamos apenas de apontar que, se pensarmos nos dois primeiros volumes em conjunto, Jaime Cortesão, Fernando Pessoa, Teixeira de Pascoaes e Augusto Gasimiro constroem, em seus textos, um vasto painel em que algumas verdades são insistentemente repetidas8 • Portugal encontra-se em um momento genésico, de elaboração de uma nova síntese religiosa, momento este que é considerado como herdeiro 8 Os textos fundamentais dessa construção são os de Teixeira de Pasccoes, Jaime Cortesão, Augusto Casimiro e Fernando Pessoa, publicados na Segunda série de A águia, que estão citados na bibliografia. LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). 59 de uma série de características, sejam especificamente portuguesas, sejam mundiais, que estão há muito sendo geradas. Dessa forma podemos entender como o fazer poético pode ser elevado, por estes autores, à categoria de novas descobertas. Se os navegadores, graças ao esforço de se lançar a espaços ainda não conhecidos e, portanto, ainda não anexados à cultura européia, conseguitam em seu tempo dar à Europa o que ela necessitava, estes poetas-navegantes partiam em uma aventura semelhante, a de construir uma nova síntese religiosa, navegando por territórios ainda inexplorados, que a Europa precisava, na sua nova ânsia religiosa, de forma análoga à necessidade que tinha tido, no passddo, das regiões descobertas pelos portugueses. Como podemos notar, o que nos textos de Oliveira Martins e Camilo Pessanha era um desejo, se transforma em realidade presente. As navegações, para os saudosistas, já estão ocorrendo e são, como foram as do passado, um esforço coletivo: vários poetas estão realizando, neste novo mar em que se converteu o espaço poético, uma síntese religiosa que terá dois resultados fundamentais: por um lado, fará com que o deserto em que se converteu Portugal, esse país em que os portugueses estão afastados da alma nacional "pelas más influências literárias, políticas e religiosas vindas do estrangeiro" (Pascoaes, fev. 1912, p. 34), possa de novo se transformar em um espaço fértil; por outro, essa nova navegação completará superiormente a missão portuguesa interrompida no passado: Sim: a alma lusíada tem de completar a sua obra iniciada com as Descobertas. O espírito da aventura, que é a Tentação do Mistério, levou-a por entre o negrume lampejante dos temporais, através dos mares desconhecidos, por mores nunca de outrem navegados; e, no seu regresso à pátria terra, 60 LETRAS -Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). trazia nas mãos o globo descoberto. Eis a nossa dádiva ao género humano. Mas. só por si, o mundo físico é um esboço apenas, é corpo sem espírito. A alma lusíada precisa completar a sua obra, dando ao mundo material que descobrtu, uma nova expressão espiritual, um novo sentido religioso que o torne presente aos olhos de Deus, mais uma vez. Ela precisa, enfim, de concluir espiritualmente o que materialmente iniciou, porque a vida corpórea é o meio, mas a vida espiritual é o fim. (Pascoaes, 1988, p.l73.) Existe assim, na concepção desses escritores, uma evidente relação entre o navegar e o presente do país. As novas navegações, realizadas pela poesia, estariam completando aquilo que, nas navegações do passado, teria ficado incompleta e por se cumprir. III- Acordai marinheiros Será justamente essa visão de um novo navegar que será discutida e questionada por António Sérgio. Se isso ocorrerá, de forma lateral, na polémica que travou com Pascoaes, terá um papel preponderante em outros textos, em especial em dois poemas que, por serem pouco conhecidos, gostaríamos de aqui privilegiar. No terceiro número da segunda série de A águia, António Sérgio publicará o seu "Apostilha aos Navegadores", em que aparecem muitas das críticas 」・ョエイ。ゥセ@ que faz ao Saudosismo e à visão que os escritores desse movimento tinham das navegações: Ar de névoas ... Nem luz, nem sombras ... Nevoeiros ... Mar de névoas também ... Reflexos turvos ... Lago De chumbo, o mar, e o céu ... O Ser-Não-Ser ... O vago LETRAS· Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 61 E o silêncio, a ilusão, o torpor ... - Marinheiros! ... Névoas ... Névoas ... Nem luz, nem sombras ... - Marinheiros, Marinheiros! ... Um ar d'espectros .. .Triste afago Do sonho, a sombra-luz e o seu silêncio mago ... E a incerteza, a ilusão, o torpor ... - Marinheiros! -À escola! Ao leme! Andai! Desperta a claridade! Fugi, prestígios vãos, e sombras da Saudade! Tudo que foi, além, p'la popa, o mar esconde ... O Passado, esse é morto -e jaz em paz no escuro! Novos Navegadores, naveguem ... Para onde? Naveguem NO PRESENTE ao rumo do futuro! [Sérgio, abr. 1913, p.133) O soneto é bastante explícito. Partindo do tópico da navegação, presente em muitos dos textos saudosistas publicados em A águia, Sérgio o altera de forma radicaL propondo um outro navegar, não voltado para o passado, forma como interpreta este navegar saudosista, mas no presente e em direção ao futurd. Qualquer leitor da polêmica entre Sérgio e Pascoaes poderá notar que algumas das críticas que aquele nela fará a este e aos saudosistas já estão aqui indicadas, assim como a visão básica que o autor dos Ensaios possui da história. Por esse soneto podemos concluir que para Sérgio o navegar saudosista é feito de características totalmente inconsistentes, uma repetição de termos sem sentido. Isto é indicado não só através da 9 Sérgio parece cair aqui no mesmo equívoco que, segLndo Lourenço, a crítica teve em relação à obra de Pascoaes, o de supor que a Saudade é o "reflexo de um pendor passeísta, forma insuperável de recusar através dela não apenas o presente como o futuro". Como afirmou Lourenço em relação ao autor de Marânus, e consideramos válido para o Saudosismo como um todo, é em termos de uma futuridade "como horizonte cada vez mais revelador do percurso havido e da verdade nele contida que Pascoaes mitificou a pátria e não como mero acontecer-passado a regozar em êxtases de duvidosa plenitude" (Lourenço, 1982, p.1 09). 62 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). insistente repetição de palavras e expressões que remetem para o campo semântico do que é vago e inconsistente, como névoas, nem luz, nem sombras, torpor, ilusão, mas também pela própria estrutura dos quartetos, formados por uma sucessão de pequenas expressões, cercadas de reticências, e onde não está presente nenhum verbo. Este discurso sonambúlico só é interrompido pelo chamamento "Marinheiros!", três vezes repetido, como que a querer acordá-los deste sono ilusório. Os tercetos opõem a este primeiro discurso um tom afirmativo, repleto de verbos e exclamações. O primeiro verso contrapõe aos anteriores não só um agir evocado por uma sucessão de imperativos, mas também pela claridade, que destrói a sombra da Saudade e seus prestígios vãos - e devemos aqui lembrar que um dos significados possíveis para prestígio é "ilusão dos sentidos produzida pela magia" (Bastos, 1928, p.ll 08), ilusão que, para Sérgio, certamente não pode resistir à claridade. Os quatro versos finais deixam bem explícita a forma através da qual Sérgio analisa o tempo: o passado, para ele, é morto, nenhuma serventia tendo para o presente. Apenas este, em constante evolução para um futuro, é que importa 10 • É essa, para ele, a única navegação possível. Como podemos ver, existe nesse soneto uma total desqualificação das propostas e do próprio discurso saudosista. Este movimento, para Sérgio, está em erro, por não navegar para o futuro, e ficar preso não só ao passpdo, mas a tudo aquilo que, por ser vago e falso, de nada pode servir ao país. Usando a claridade de sua razão " Um dos temas que será discutido em vários dos artigos da polémica SérgioPascoaes será o de se o passado pode ou não fornecer energias para o presente. Para Sérgio é o presente que fornece energias ao passado, sendo este portanto, como ele expressa no poema que estamos analisando, morto, e totalmente inútil. LETRAS- Revisto do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 63 Sérgio vê nas propostas do Saudosismo uma sucessão de fantasmas e espectros que é preciso exorcizar para que o país possa navegar na correta direção. Essas idéias de Sérgio serão retomadas, algum tempo depois, em outro poema, "Pela grei", publicado no quinto volume da revista, que abaixo reproduzimos: PELA GREI Os que sonham a Augusto Casimiro, em resposta à sua carta. Uma nação que não está a par do seu tempo é forçosamente uma nação miserável. .. O gênero humano, que sempre caminha avante, deixará acaso após si esta porção de seus membros, chamada nação portuguesa? ALEXANDRE HERCULANO Sonhais, amigos meus: sonhais, vagando No saudoso jardim das ilusões; Entre um povo de Espectros e Visões Teceis um sonho etéreo, ingénuo e brando ... A Sombra dos avós-nevoento bandoNum nimbo vos cercou de cerrações: A chama, o ardor da vida, os seus clarões, Ela os muda em sol-pôr, crepusculando ... Ah! meus amigos, como é bela a vida E a mente clara se arroja à lida, E à acção, e à idéia, vai chamando os povos. Revolve a terra, cruza o mar profundo, - Olhos na busca de horizontes novos, - Pulso na faina directriz do mundo! (Sérgio, maio 1914, p.147.) 64 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). A dedicatória do poema a Augusto Casimiro 11 , o poeta saudosista com produção mais sistemática nos três primeiros volumes, já deixa claro quais são os interlocutores que pretende atingir com o soneto. A epígrafe de Herculano também tem objetivos para além do que vem nela escrito: referenda a postura recorrente de Sérgio de se considerar um discípulo e continuador das idéias do solitário de Vai dos Lobos. Emoldurado pela dedicatória e pela epígrafe, encontramos no soneto uma postura muito próxima à que existia no "Apostilha aos navegadores". Nele se opõem duas posturas distintas, a dos que sonham - que, por todo o contexto, são os saudosistas, com suas infundadas esperanças reerguimento gerado por um passado que não mais existe - de um e a dos que, agindo com mente clara, modificam o mundo 12 . Esta oposiÇão entre os dois campos mostra bem, mais uma vez, que a conciliação entre as duas posturas, para Sérgio, é impossível. Ou se sonha fixado em um passado que não mais existe, e fica-se fora do fluxo sempre para adiante que caracteriza a humanidade, como afirma Herculano na epígrafe, ou se entra em compasso com o tempo presente, e se abre ao sol da vida, marchando resolutamente para a frente como então ocorria, na visão de Sérgio, com os principais povos europeus, e em especial 11 Esta dedicatória e o início da segunda participação de Sérgio na polêmica- em que é dito "E à sua frente, gládio em punho, pusemos o Pascoaes. - Isto me escrevia há dois meses e meio, anunciando-me o seu artigo que recebi ontem, o nosso Augusto Casimiro" [Sérgio, jan. 1914, p. 1.) - parecem indicar que era relativamente freqüente a troca de correspondência entre o autor dos Ensaios e o escritor de "O poeta e a nau", apesar de estarem em campos opostos. 12 Devemos notar que ambos os sonetos de Sérgio possuem uma visível semelhança com o "A um poeta" de Antero de QuentaL poema em que também existe uma oposição entre o dormir e despertar e a presença do sol que "Afugentou as larvas tumulares ... " [Quental, 1968, p.52). Certamente as semelhanças, facilmente perceptíveis, servem como uma espécie de reforço para as idéias de Sérgio, que se considerava como herdeiro das concepções do autor dos Sonetos. LETRAS- Revisto do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (RS). 65 com a Grã-Bretanha. Assim, temos neste soneto a reelaboração, em forma poética, do que Sérgio vinho recorrentemente afirmou em todas as suas participações na segunda série de A águia desde o referido poema publicado no terceiro volume, ou seja, a necessidade de romper· com o passado e entrar em contato com o mundo moderno, única maneira de reerguer um país atolado em recordações de um passado que não tem mais existência concreta. Certamente, como estes sonetos nos mostram, nem os saudosistas poderiam aceitar a postura de Sérgio, nem este a dos membros desse movimento. Pascoaes e Sérgio, ao longo de sua polêmica, acabarão por construir um discurso de surdos 13 • Nas posturas de Sérgio e Pascoaes podemos notar, como tentamos mostrar neste artigo, um confronto entre duas tradições diversas. Se Sérgio, considerando-se um herdeiro de Herculano e Antero 14 , 13 Sérgio lndlcaró. em sua terceira participação na polémica, que não pretendia dialogar com os saudosistas. No Inicio desse texto, afirma: "A tudo. querido amigo, se pode responder, e são todas as discussões por sua natureza eternizóveis; da minha parte, porém, estó dito o lndispensóvel, que era mostrar a outra estrada aos jovens leitores da Águia e da Vida Portuguesa: a estrada não-saudosista, não-Isoladora, ou não-purificadora. Que cada um deles decida agora. (Sérgio, abr. 1914 ,p, 109)." Em outro trecho, diz: "Não pretendi convencer saudosistas-natos, porque os sentimentos se não movem pelas alavancas que eu emprego, mas pela Música e pela Facúndia; e porque o Isolamento, se é incombustível como me diz, é comburente como todos os diabos, o que ficou provado na nossa história de três séculos. Falo e falarei para os neutros, os materialões, ou para os que ftverem degenerado do temperamento fantasista, Impulsivo, inconsistente- por uns classificado de Idealista e por outros de retórico,- que nos formou a velha sina de conquistadores e aventureiros, retardatários da cavalaria. "(Sérgio, abr. 1914,p.l12). 14 Essa filiação, sempre apontada por Sérgio, pode ser notada, entre outros, no seguinte trecho: "Como a historia se repete na nossa terra desgraçada! Pois que significa esta palestra, senão um minlmo episódio (mínimo, decerto, porque eu não sou ninguém) na grande luta portuguesa entre o Isolamento e a Cultura, entre a Inquisição e o Humanismo, entre os Jesuítas e Verney, entre Pina Marques e os pedreiros livres, entre 66 LETRAS - Revisto do Curso de Mestrado em Letras do UFSM [RS). afirma que mais nenhum papel cabe às navegações no presente de Portugal, Pascoaes, e os demais saudosistas, tentarão mostrar que o navegar ainda não está completo, e que é através de um mar de poesias que o futuro do país poderá ser construído. Se, certamente, no sentido prático, Sérgio tem uma visão muito mais realista do país, e se digladia com seres que, como ele mesmo virá a afirmar ironicamente, constroem um "mundo fantástico e seráfico onde as montanhas são de mel, e os rios são de leite, e os pássaros dão flor, e das ginjeiras brotam homens, como das nossas brotam ginjas ... " (Sérgio, jan. 1914, p.4), será justamente o outro grupo, chefiado por Pascoaes, que, atualizando uma tradição que como vimos se inicia em Martins, virá a formular algumas das intuições básicas que estarão presentes no Mensagem de Fernando Pessoa. A visão das navegações como parte de uma missão ainda por se completar, que aparece entre outros no poema "O Infante"; a importância que o eu poético assume em poemas como "A última nau"; e até mesmo a visão de uma nova eucaristia em que se dará a consumação dos tempos, presente em "O quinto império", todas estas construções podem ser vistas como releituras, feitas por Pessoa, de alguns tópicos que já estavam presentes nas reflexões saudosistas. Assim, se Sérgio reelaborou uma tradição que via as navegações como características de um tempo passado, que nenhuma relação possuía com o presente do país, serão os saudosistas, com a sua criação de um novo navegar, que fornecerão algumas das vigas mestras que, os rigoristas e os franceses, entre os Ouriquistas e Herculano. entre o grupo de Castilho e Antero de Quental?" (Sérgio. jan. 1914, p.5) LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 67 anos mais tarde, serão utilizadas na obra do principal poeta português do século XX. Bibliografia BASTOS, J. T. da Silva. Dicionário etimológico, prosódico e ortográfico da língua portuguesa. Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 1928, 2. ed. CASIMIRO, Augusto. A primeira nau. A águia, 2° série, Porto, v.2, n. 1O, p. 125-133, out. 1912. CASIMIRO, Augusto. O poeta e a nau. A águia, 2° série, Porto, v. 1, n.4, p. 129, abr. 1912. CASIMIRO, Augusto. Versos de aleluia. A águia, 2° série, Porto. v.2, n.6, p. 1O, jul. 1912. 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Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1982. LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 71 A SOLIDÃO COMO RIQUEZA E COMO POBREZA Lucia HELENA UFRJ-UFF Tematizar a articulação da vida selvagem com a história da colonização européia nas Américas e, a partir dela, representar o Brasil foi o desafio que José de Alencar tomou a seu cargo. Por vezes a questão alcança uma evidência explícita, noutras fazse co-lateral. Nos chamados romances urbanos, a narrativa se torna uma forma de representar o país nascente, construindo a "memória" citadina de um homem que ocupasse o lugar das mitologias da origem. Lido de forma um tanto preconceituosa ou de maneira ufana por sua fortuna crítica, o texto de Alencar surpreende pela qualidade de perspicácia. Ressalta o tratamento dos impasses com que se defrontava a sociedade daquele momento para construir uma imagem que a habilitasse ao exercício da cidadania, sonho acalentado na vontade-deser-nação das elites da época. Quero examinar alguns aspectos da questão, numa reflexão que articule o trabalho de Alencar e seu imaginário ao universo que lhe é contemporâneo. Duas chaves deste instn'lte - duas revoluções - estão, em nossa hipótese, na Inglaterra e na França. A primeira. a revolução industrial, era decisiva para os destinos do capitalismo. A França, por outro lado, promoveu a revolução de seu tempo, não mais uma revolução com minúscula, mas um marco para todos os países. Suas repercussões. ao contrário daquelas da revolução LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). americana, 73 ocasionaram levantes que conduziram à libertação da América Latina depois de 1808.' Daniel Defoe ilustra o exemplo inglês, pela importância de seu Robinson Crusoe, hoje visto como a obra que contribuiu para implantar um dos mais fortes mitos do individualismo ocidentaL Da França, vem Rousseau, pela forma como trata os dilemas da relação entre a razão iluminista e o mergulho precursor no ''território da intimidade". E pela maneira como enlaça, numa tensão perpétua, o homem social e o homem naturaL A alusão por ele feita ao Robinson Crusoe figura no contraste entre o eu social (o cidadão do novo contrato) e o eu individual (a dimensão na qual se debatem ·forças que impulsionam a subjetividade). Meu objetivo é lançar alguns pressupostos que construam novas bases intelectuais para uma releitura do projeto cultural que a narrativa de Alencar esboça. O ponto de partida para essa tentativa consiste em examinar, a partir do tema da solidão e da relação entre o social e o natural, a construção pedagógica de uma imagem de comunidade e de cidadania. Preside esta empresa a intenção de compreender o que nos dizem os personagens de Alencar acerca da pergunta: o que é ser brasileiro no século XIX? Num país periférico e contraditório, o patriarca da independência estudara em Coimbra e pertencera à geração lusobrasileira de 1790, tendo ocupado, em Portugal, cargo jamais oferecido a quem não fosse português. 1 Eric Hobsbawm. O mundo na década de 1780, in·. ---.A era das revoluções. Europa 1789-1848, 5°. ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1986. p. 73. 74 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). A viuvinha, de l 85 7, apresenta um narrador que se desdobra noutro tipo de patriarca: o que interroga o sistema social engenhoso e procura despertar "os bons instintos pelo isolamento e pelo silêncio". Mas estar em solidão não é algo de monta apenas em O guarani e em A viuvinha. Iracema também apresenta a questão de forma estrutural. A solidão, nesses textos, vem acompanhada da crise, do anúncio de uma transformação. Alencar tem por escrever a história de uma nação. Dar-lhe forma e origem. Atribuir-lhe valores. Há que considerar seus preceitos e preconceitos. E formular versões possíveis, verossímeis ao século e aos leitores. São muitos os percalços. Peri/Ceci, Iracema/Martim, Jorge/Carolina são alguns dos pares à deriva de uma relação em que presente e passado desenham um conflito: há um mundo anterior que não se coaduna com o presente. E este vem marcado pela iminência do perigo. Apaixonado por Carolina, na véspera do casamento, Jorge se encontra com o Sr. Almeida, velho amigo de seu pai, e seu tutor. Este o avisa:"-- O senhor está pobre!" , Casar sem lastro o presente com o passado. Em Senhora, também o presente de Seixos e Aurélia tem contas a ajustar com a falta de lastro. Com o pouco de que dispõem, os heróis de Alencar têm que propiciar a origem do Brasil (Iracema e Peri) e liquidar as dívidas (Seixos e Jorge). Defrontam-se permanentemente com a solidão e a contradição entre puros sentimentos e a engenhosidade social, que deles demanda um equilíbrio instável entre o ser e o parecer. A escolha do tema da solidão tem uma razão quase óbvia: os impulsos de mudança traziam a necessidade de figurar a idéia de um LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 75 reinício, sob a forma da alegorização da origem de uma coisa e de uma causa novas. O tema solidão, focalizado por diversos ângulos, cai como uma luva na mão de Alencar. "Tudo passa sobre a terra", frase final de Iracema, pode ser um mote no percurso narrativo de Alencar, que do nada tem que rastrear, lembrando e esquecendo, rasurando e escrevendo sobre o já escrito de uma cultura que, começando a saber de si no século XVI, leva três séculos à procura de si mesma. Ilha de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz e, finalmente, Brasil são os três nomes desse continente solitário visitado por europeus, habitado por índios e colonizado por portugueses. De súbito, no século XIX, ainda convivendo com a institu'ição colonial, o país se transforma em corte. Despreparado, reedita-se nos oitocentos brasileiros o mito do indivíduo que necessita criar do nada a civilização, que Defoe grafara na Europa dos setecentos. Em 1719, Daniel Defoe reservara a Robinson Crusoé uma ilha deserta. Quarenta e três anos depois, observando uma discordância entre as palavras e os atos dos homens, Rousseau pressupõe que a cultura estabelecida nega a natureza e que a civilização, longe de iluminar os homens, obscurece valores. Diante disso, decide que o personagem Robinson, vivendo em solidão, representa para os leitores a oportunidade de experimentar o mundo a partir de valores autênticos. Assim, nas páginas do Émite, publicado em 1762, considera que "[e]ste livro será o primeiro que irá ler o meu Emílio; sozinho irá compor, durante longo tempo, toda a sua biblioteca e .nela sempre terá um lugar de destaque." 2 2 Jean-Jacques Rousseau, Émi/e ou de l'éducatlon, Paris, Garnier-Fiammarion, 1966, p. 239. As demais citações da obra serão feitas no corpo do texto. 76 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). A situação natural, como que pré-reflexiva, do personagem, que mantém com a natureza um contato direto regido apenas pela necessidade, parece levar Rousseau a uma leitura apoteótica da obra de Defoe. Provavelmente o leu na tradução de 1720, ou na adaptação de Saint Hyacinthe e Justus van Effen, feito na medida do gosto literário da França daquela época 3 . Nas duas hipóteses, a versão que teria chegado a Rousseau, segundo lan Watt, redunda numa apologia da natureza. Um exemplo disso é que, a certa altura, quando o personagem vê o milho pela primeira vez, a edição francesa faz com que ele exclame: "Ó Natureza!" (Watt, 1997, 181 ). O valor que Rousseau atribui ao texto, no Émile, e as numerosas referências ao estado de solidão num lugar isolado, mas fértil e acolhedor, encontradas nos Devaneios do caminhante solitárlo4 , no qual é aludido algumas vezes, revelam a grande admiração de Rousseau pelo romance (ou, melhor dizendo, por sua maneira de interpretar o romance de Defoe). Nascido em 1712, Rousseau teria em torno de oito anos quando da tradução da obra para o francês, sendo impossível que Robinson Crusoe constasse entre os romances que herdara da mãe. Não tinha sido, portanto, a partir do personagem de Defoe que o menino Rousseau plasmara sua alma, já que de acordo com o que diz n' As confissões, por volta dos seis anos começara a ler com o pai, depois do jantar, os 3 lan Watt, Mitos do individualismo moderno. Fausto, Dom Quixote, Dom Juan, Robinson Crusoe, trad. Mário Pontes, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997, p. 178. 4 Jean-Jacques Rousseau, Os devaneios do caminhante solitário, trad. Fúlvia Maria Luiza Moretto, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 3°. ed., 1995. romances deixados por sua mãe, morta quando ele nascera. Dessa prática, afirma, datava a "consciência de si mesmo" 5 : Ignoro o que fiz até os cinco ou seis anos. Não sei como aprendi a ler; lembro-me somente das minhas primeiras leituras e do efeito que me produziram: é o tempo de onde começo a contar sem interrupção a consciência de mim mesmo. Minha mãe tinha deixado romances; pusemo-nos a lê-los, depois da ceia, meu pai e eu. [... ] Essas emocões confusas que experimentei seguidamente não alteraram o raciocínio que ainda não tinha: porém formaram-me de uma outra têmpera e me deram nocões bizarras e romanescas sobre a vida humana. nocões das quais nem a experiência nem a reflexão conseguiram jamais curar-me perfeitamente. Os romances terminaram com o verão de 1719. O inverno que se seguiu foi diferente. Esgotada a biblioteca de minha mãe, recorreu-se à de meu avô. que nos tinha caído nas mãos.(grifo meu) 6 Esse trecho d' As confissões, especialmente o que sublinhamos, deixa entrever um dos motivos de Rousseau querer, ao tematizar o preceptor de Emílio, que o aluno aprenda da vida e não dos livros. É o julgamento do moralista que o leva a esta conclusão. Emílio, aos quatorze anos, não deverá ler senão o Robinson Crusoe a partir da crença de que o estado de natureza seria capaz de fazer com que o homem vivesse em equilíbrio, não o opondo ao mundo, nem a si próprio.(Starobinski, 1991, 37). Os desejos, a linguagem, tudo o que os livros podem despertar e desencadear as emoções bizarras a que ele se refere devem ser 5 Jean Starobinski, Jean-Jacques-Rousseau. A transparência e o obstáculo. Seguido de sete ensaios sobre Rousseau. trad. Maria Lúcia Machado, São Paulo, Companhia das Letras. 1991, p. 346. 6 Jean-Jacques Rousseau. As confissões, pref. e trad. de Wilson Lousada. Rio de Janeiro, Ediouro, [s.d], p. 15. 78 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). contidos e adiados. Desta forma, o homem experimentaria um "( ... ]contato límpido com as coisas, que ainda não é turvado pelo erro. (... ] A esse estado em que se supõe que o homem viva aquém da distinção do verdadeiro e do falso, Rousseau concede o privilégio da posse imediata da verdade" (Starobinski, 1991, 37-38). Nas páginas do Émí/e, assim se justifica a razão da escolha desse livro-ideal: Robinson Crusoe em sua ilha. sozinho, sem contar com a quda de companheiros nem de instrumentos necessários às diversas artes, consegue assegurar a própria sobrevivência, a própria segurança, chegando mesmo a alcançar um certo bem-estar, assunto que certamente interessa a todas as idades, e que podemos de mil maneiras tornar agradável às crianças. O que primeiro tentei com as minhas comparações, foi fazer de modo que a ilha deserta se tornasse real. A situação que lá existe, devo concordar, não é a do homem social; e portanto não é a do Emílio: mas é justamentente por esse estado que devemos avaliar todos os outros. O melhor meio de nos livrarmos dos preconceitos, e de organizar nosso pensamento em sua verdadeira relação com as coisas, é nos vermos como se estivéssemos na situação de um homem isolado, e julgar tudo da maneira como ele poderia julgar, ou seja, conforme a utilidade das coisas para ele. (Rousseau, 1966, 239) O homem solitário numa ilha deserta, gozando de "sentidos puros, isentos de ilusões", coisa que Rousseau identifica como "a plenitude", seria para ele o eloqüente juiz da utilidade das coisas. O compromisso do Émíle parece ser o de definir estratégias para que o futuro cidadão venha a ser capaz de extrair uma utilidade para a vida prática, da qual verdadeiros valores pudessem derivar: É pela relação sensível com a utilidade. a segurança. a conservação e o bem-estar que Emílio deve apreciar os corpos da natureza e os trabalhos dos homens. Assim, em sua LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 79 visão, o ferro deve ter um preço mais alto do que o ouro e o vidro valer mais do que o diamante; (... ]. (Rousseau, 1966, 242) Leitor da República, por ele considerado o mais belo tratado de educação já produzido, Rousseau estava então convencido de que o homem mais vivido não é o mais velho, mas o que mais tivesse experimentado a vida (Rousseau, 1966, 40). É desse modo que o Robinson lhe surge como o modelo por excelência para o homem abstrato, representado no Emílio como aquele que deve saber tudo o que lhe seja útil "e não saber senão isto" (Rousseau, 1966, 241 ). Para aproximar-se do natural e afastar-se da opinião, segundo ele arbitrária e contaminada pelo preconceito, Rousseau buscava àncorar a educação (daquele aluno só em aparência particular, pois em tudo representando o homem universal sonhado no Contrato social que publica no mesmo ano do Émile) em princípios que relacionavam as atividades às necessidades. Desse modo. lia o personagem de Defoe como um ser capaz de sensibilizar-se com o valor-real das coisas, que lhe seria dado pela vivência. Rousseau adota o livro como leitura para a "idade feliz". Seu personagem é uma figura com a qual Emílio deve identificar-se. Finalmente. a solidão é para ele o requisito fundamental da obra. Podemos pensar se esta interpretação de Rousseau realmente dá conta do perfil de Robinson, no ecaminhamento que a narrativa de Defoe desenha para seu personagem. Na primavera-verão de 1777, Rousseau escreve a sétima caminhada de seus Os devaneios do caminhante solitário. Com mais de sessenta e cinco anos e meditando sobre as disposições de sua alma diante das situações da vida, alude ao Robinson Crusoe, quando se 80 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). refugia na recordação de uma antiga viagem através da cadeia de montanhas do Jura, entre a França e a Suíça. Lembra-se de que se havia posto a [... ] devanear mais à vontade, pensando estar num refúgio ignorado por todo o universo, onde os perseguidores não me descobririam. Um movimento de orgulho misturou-se em breve a esse devaneio. Comparava-me a esses grandes viajantes que descobrem uma ilha deserta, e dizia a mim mesmo com complascência: sem dúvida, sou o primeiro mortal a penetrar aqui; considerava-me quase como um outro Colombo. (Rousseau, 1995, l 001 A ilha deserta aqui se metamorfoseia na suposição da descoberta de um recanto ignorado do universo, em completa solidão (no mesmo texto Rousseau vê que se equivocara, pois perto dali havia uma fábrica de meias). Tanto no primeiro sentido atribuído, no Émi/e, à ilha deserta, vista como espaço de aprendizagem dos valores da natureza, a educarem o homem social para uma vida baseada em valores-reais, vinculados à necessidade; até um segundo sentido, encontrável em Os devaneios, de recolhimento em si mesmo, em busca de paz, a interpretação de Rousseau, parece se desligar do que nos diz a narrativa do viagem do náufrago Robinson e de seus vinte e oito anos de duro faina na ilha em que se encontrava após ter-se decidido a abandonar o casa paterna em razão de buscar o sucesso económico para além da mediania de uma vida confortável. Para o Rousseau d' Os devaneios, a ilha é o lugar isolado onde o eu se enlaça em si mesmo (Rousseau, 1995, 72). Na quinta caminhada, em que fala de sua estada na Ilha de Saint-Pierre, no centro do lago de Bienne, a ilha se metamorfoseia no /ocus omoenus que interessa aos solitários, aos inebriados que gostam de perder-se na sua própria LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). interioridade, seres movidos, pelos encantos da natureza, ao mergulho interior cada vez mais profundo (Rousseau, 1995, 71 ). Diz ele: Quando a noite se aproximava, descia dos cumes da ilha e ia de bom grado sentar-me à beira do lago, sobre a praia, em algum refúgio escondido; lá, o ruído das vagas e a agitação da água fixando meus sentidos e expulsando de minha alma qualquer outra agitação, a mergulhavam num devaneio delicioso. em que a noite me surpreendia sem que o tivesse percebido. O fluxo e refluxo dessà água, seu ruído contínuo mas crescente por inteNalos, atingindo sem repouso meus ouvidos e meus olhos, supriam os movimentos internos que o devaneio extinguia em mim e bastavam para me fazer sentir o prazer da existência sem ter o trabalho de pensar. De tempos em tempos nascia alguma fraca e curta reflexão sobre a instabilidade das coisas deste mundo do qual a superfície das águas me oferecia a imagem: mas, em brev\3. essas impressões leves se Dpagavam na uniformidade do movimento contínuo que me embalava, e que, sem nenhuma ajuda ativa de minha alma, não deixava de me fixar, a tal ponto que, chamado pela hora e pelo sinal combinado, não podia arrancar-me de lá sem esforço. (Rousseau, 19995, 75. Grifo meu.) Ainda que esta obra se distancie, tanto na construção como no propósito, do Émiie, o fragmento destacado acentua marca fundamental do pensamento de Rousseau: "[c]om a reflexão termina o homem da natureza e começa 'o homem do homem"'(Starobinski, 1991, 39). Ou seja, o estado reflexivo é contra a natureza, e o problematizar, o pensar, conduzirá Rousseau a um mundo inquietante e contraditório, no qual a transparência, que ele tanto busca e nomeia como verdade, se põe diante da opacidade, do obstáculo, da melancolia. O devaneio desejante, diz Starobinski, não pode, por assim dizer, fugir ao seu próprio poder de ímpeto e de excesso. Por mais que Rousseau queira sugerir que o recurso ao devaneio o remete 82 LETRAS -Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). à tranqüilidade, pois suspende a agitação do pensar, não é bem isto o que ocorre: [c]om o recuo dos anos, a imagem da vida estável e limitada torna-se atraente por sua própria impossibilidade. O retorno ao país natal converte-se, desse modo, em uma direção nova da fantasia romanesca. Assim, surge um horizonte de nostalgia maravilhada [ e aqui eu interrompo para lembrar dos romances indianistas de Alencar, onde isso também ocorre], que oferece a imagem da felicidade em uma vida que não foi vivida. A perspectiva da nostalgia, com os anos, acentuarse-à cada vez mais. O sonho se reportará ao tempo perdido, às possibilidades desaparecidas, aos rostos do passado. A memória tende a suplantar a esperança. (Starobinski, 1991, 349) A busca da comunicação total e da confiança -- o que o levara a teorizar sobre a moral, no Émile, e a abrir publicamente os seus segredos n' As confissões -- faz com que a obra de Rousseau tematize, do início ao fim, o fio de um paradoxo: de um lado, almeja realizar o mito da transparência, ou seja: o paraíso perdido das consciências em recíproca e plena interação; de outro, a consciência de que o próprio mundo muda incessantemente de aspecto, tece véus que encobrem, entre outras coisas, a confiança, a inocência, a simplicidade, o valor-em-si da verdade. Com Rousseau, a linguagem tornou-se o lugar de uma experiência e de uma meditação, pois ele [... ]inventou a atitude nova que se tornará a da literatura moderna (para além do romantismo sentimental pelo qual se tornou Jean-Jacques responsável): pode-se dizer que ele foi o primeiro a viver de maneira exemplar o perigoso pacto do eu com a linguagem: a nova aliança na qual o homem se faz verbo.(Starobinski, 1991, 207) LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 83 Quando Rousseau recomenda a leitura do Robinson Crusoe, na obra de 1762, e quando o retoma, na de 1776-78, publicada postumamente, este mundo conflituoso se abre para o sentido da solidão, que nele alcança patamares inusitados de significação e riqueza. Mas esta riqueza está em Rousseau e na sua obra. Ele a empresta ao Robinson de Defoe que, comQ já foi lido por outros, pode ser visto não como Jean-Jacques o compreende, mas como a metáfora do homo economicus, a abrir as portas do individualismo na versão que dele conhece a economia do capitalismo. Filho de um bem-sucedido comerciante alemão que se estabeleceu na Inglaterra, Robinson se sente, desde muito cedo, atraído pelo mar. Seu pai suspeita que esta vocação irá conduzí-lo ao desastre. Aos 19 anos, no dia 1o de setembro de 1651 , o filho parte do porto de Hull, em companhia de um amigo. Ao referir-se a esta parte da trama, lan Watt a compara com o entrelaçamento de duas célebres passagens do cristianismo: o pecado original e o arrependimento e volta do filho pródigo ao lar paterno. Mas, no caso de Robinson, o que se dá é a inversão. Nem ele volta, apesar do naufrágio, nem se arrepende. Surgido em abril de 1719, o longuíssimo título da obra de Defoe dá uma espécie de resumo das peripécias do personagem: A vida e as surpreendentes aventuras de Robinson Crusoe, marinheiro de York; que viveu vinte e oito anos completamente só em uma ilha desabitada na costa da América, perto da foz do grande rio Orinoco: atirado na praia por um naufrágio no qual morrem todos. exceto ele, .com um relato de como foi afinal curiosamente libertado por piratas. Escrito por ele mesmo. (Watt, 1997, 151) Robinson sofre um primeiro naufrágio do qual todos se salvam. Durante a tempestade, temendo morrer, planeja voltar à casa 84 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). do pai e reconhecer seu erro. Quando a tempestade amaina, o "filho arrependido" cede lugar ao aventureiro ambicioso e, assim que chega a Londres, embarca novamente, dirigindo-se à África. A aventura se revela lucrativa, e ele resolve continuar, sendo então capturado por um pirata turco. Preso durante dois anos, escapa junto com um adolescente mouro, Xuri, de quem se torna amigo, embora vá adiante vendê-lo, sem qualquer escrúpulo. Recolhido por um navio português, vem parar no Brasil, onde cultiva tabaco e açúcar. Trabalha duramente quatro anos e prospera. Querendo conseguir ainda mais, toma outro navio para a África e novamente naufraga. Único sobrevivente, é levado pelas ondas para uma ilha próxima. Consegue, num rasgo de sorte, voltar ao que ainda restara da embarcação e, antes que afunde, dela retira provisões, caixas de ferramentas e armas de fogo. Com inquebrantável ânimo e humor, Robinson enfrenta toda a sorte de infortúnios, dentre eles um terremoto e febres tropicais, dos quais sempre se recobra. Trabalhador incansável, consegue construir uma cerca protetora, uma cabana, mantém um diário e chegará a ter uma casa de campo, erguida noutra parte da ilha. No décimo-quinto ano, ainda solitário, mas dono de plantações e bem instalado por sua MキNAセZ@ fJIUfJIIU :..-.:..-..:-+:, ,_ IIIIL,;IUIIVU 1 LNjセM@ ,... UV\>I..,..UUIV U ".....-.,... .......,..,...... I I IUI\.. .A.J .......1,-.. '\...IV Q@ , Lセ@ r...A h o lr'Y'\r'lnr"'. n,-, イGャセゥLM UI II jVV I I U I I I U I I V 11'-'4 """''411'-'IU a '-' encontra restos de ossos, crânios, mãos, pés, enfim, diversas partes do corpo humano. Vê canibais e consegue deles escapar, encontrando Sexta-Feira, indígena que, salvo por ele, torna-se seu escravo. Planeja, ajudado pelo servo, construir uma embarcação para escapar. Antes que isto ocorra, invasores apartam na ilha e, numa verdadeira operação militar, feita apenas por ele e seu servo, consegue vencer quase todos, exceto um espanhol e um outro indígena, que descobre ser o pai de LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 85 Sexta-Feira. Juntos, continuam o plano de fuga, adiado para conseguirem maior quantidade de suprimentos. Deus ex-machína, surge um grande navio europeu. Estimulando um motim, Robinson consegue, através de complicadas negociações, embarcar com Sexta-Feira para a Inglaterra, levando consigo os bens acumulados. Chega a Londres em 11 de junho de 1687, após quase trinta e seis anos de ausência. A Rousseau parece ter interessado apenas o Robinson na ilha, solitário, lutando operosamente pela vida, identificando-se com o homem natural. Todavia, este apelo à solidão, por parte do herói de Defoe, consistirá em transformar a ilha e a própria solidão no espaço em que o· outro acaba sendo transformado em mercadoria. A "ilha- é para ele a utopia de um homem de negócios"(Watt, 1997, 170); e o encontro de Crusoe consigo mesmo, na ilha, resulta essencialmente de seu desejo de enriquecimento (Watt, 1997, 171): A posição intelectual de Defoe remonta à dos empiristas ingleses do século XVII. especialmente Locke e Hobbes, e expressa diversos elementos do individualismo de um modo mais completo do que fora feito, segundo Watt, por qualquer outro escritor inglês antes dele. A primazia do motivo econômico orienta a narrativa, que faz parte do novo modo de olhar as antigas relações sociais não-escritas, opostas às que as substituem e a elas se opõem: as relações contratuais escritas, em que a tradição e a idéia de coletividade se perdem. Além de sempre apoiadas no motivo econômico, há ainda nas relações contratuais uma reverência ao contábil e ao advento do individualismo. Neste sentido, o desejo que o Robinson Crusoe representa, visto por este ângulo, nada tem com o que nele antevia Rousseau: 86 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS]. [... ] o herói tem um lar e uma família e os deixa pela clássica razão do homo economicus -- é necessário para melhorar sua condição financeira. 'Algo fatal naquela propensão da natureza' chama-o ao mar e à aventura e o impede de 'dedicar-se aos negócios' na posição em que ele nasceu -- 'a posição superior da vida humilde'; e isso apesar do panegírico que seu pai faz de tal condição. Depois ele considera que é seu 'pecado original' essa falta de 'desejos limitados', essa insatisfação com 'o estado em que Deus e a natureza o colocaram'. Na época, porém, a discussão entre ele e o pai gira em torno não do dever filial ou da religião, e sim do que poderia resultar em maiores vantagens materiais: partir ou ficar. Os dois lados aceitam como básico o argumento econôrrico. E naturalmente Crusoe lucra com seu 'pecado original' e enriquece mais que o pai. Na verdade, esse 'pecado original' é a própria tendência dinâmica do capitalismo, que tem por objetivo não apenas manter o status quo, mas transformá-lo sem cessar. Partir, melhorar de situação constitui uma característica fundamental do estilo de vida individualista. [... ] 'nada mais havendo, descobri que viajar e negociar com lucro tão grande e, posso dizer, certo proporcionava maior prazer e satisfação ao espírito que ficar parado -- isso, sobretudo para mim, era a pior coisa da vida' [dizia Robinson]. 7 Leitura bem diferente da de Rousseau apresenta o crítico inglês lan Watt. Diante do mesmo homem em estado de natureza, mas focalizado por outro ângulo, Robinson é agora caracterizado como um dos mitos do individualismo moderno. Defoe afirma, confiante, que a solidão pode se tornar o prelúdio do realização mais plena das potencialidades de cada indivíduo; e os leitores solitários de dois séculos de individualismo só podem aplaudir um exemplo tão convincente da transformação da necessidade em virtude, uma visão tão colorida e estimulante dessa imagem universal da experiência individualista: a solidão. 7 lan Watt, A ascensão do romance, estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding, trad. Hildegard Feist, São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 60. LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 87 Não resta dúvida de que a solidão é universal - a palavra está sempre inscrita no reverso da medalha do individualismo. Embora Defoe fosse. um otimista porta-voz da nova ordem sócio-económica, a irrefletida veracidade de sua visão como romancista levou-o, como vimos, a relatar muitos dos fenômenos menos empolgantes relacionados com o individualismo económico que tendiam a isolar o homem da família e da pátria. (Watt, 1990, 80) Se, como propôs lan Watt, em A ascensão do romance, caberia ao personagem de Defoe representar o homem empreendedor que mimetizaria o capitalismo, ao Émíle de Rousseau restava mostrar a existência de uma fratura no corpo do novo contrato: de um lado, criava cidadãos abertos à empiria e ao conhecimento objetivo; de outro, fechados à leitura de Buffon e de Aristóteles. Nos limites e dilemas desta fronteira se esboçavam as bases de uma nova forma de concepção e de inserção do individual no social. Tornando a questão ainda mais rica, se em 1762 Rousseau lançara em dois textos a utopia do contrato burguês, a partir de 1764 descerraria o véu das confissões pessoais, liberando para o espaço público camadas ignoradas de si mesmo, prática antes reservada à confissão religiosa. Rejeitado o projeto social que elaborara, e frustrada a tentativa de se fazer aceitar e amar através do desnudamento, exila-se, a partir de 1776, na escrita d' Os devaneios de um caminhante solítárío, obra em que se anuncia que o eu social e o eu individual se deblateram numa complexa elaboração da identidade. Apresentava cindidos o "eu social" (o je) e o "eu interior" (o moí) que tentara, nas duas obras anteriores, articular numa unidade indissolúvel, mediada pela educação e pelo contrato social. 88 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). Segundo belíssima leitura que disso faz Starobinski, é preciso pensar a questão das relações entre a textualização e a construção de identidades, na dialética entre a transparência e o obstáculo, problema impossível de ser elucidado por leituras biográficas, deterministas ou rasamente psicalíticas. Rousseau ia além de si mesmo, tornando-se o personagemnarrador do narrador Jean-Jacques, do mesmo modo que o conflito entre o eu social e o eu interior não é mais a indicação das adversidades de um homem real. mas a revelação do dilaceramento do pactário de uma nova concepção de linguagem, que a obra do pensador tanto anunciara quanto problematizava, antecipando questões que ainda hoje merecem relevo e debate. Não é, portanto, de estranhar que a primeira caminhada d' Os devaneios de Jean-Jacques se inicie por uma dramática declaração de exílio e solidão: Eis-me, portanto, sozinho na terra, tendo apenas a mim mesmo como irmão, próximo, amigo, companhia. O mais sociável e o mais afetuoso dos humanos dela foi proscrito por um acordo unânime. Procuram nos refinamentos de seu ódio que tormento poderia ser mais cruel para a minha alma sensível e quebraram violentamente todos os elos que me ligavam a eles. Teria amado os homens a despeito deles próprios. Cessando de sê-lo, não puderam senão furtar-se ao meu afeto. Ei-los, portanto, estranhos, desconhecidos, inexistentes enfim para mirr visto que o quiseram. Mas eu, afastado deles e de tudo, que sou eu mesmo? Eis o que me faltà procurar. Infelizmente, essa procura deve ser precedida por um exame da minha situação. É uma idéia por que devo necessariamente passar para chegar deles a mim. (Rousseau, 1995, 23). A busca de um estado de plenitude punha em marcha o refluxo de um vôo do personagem, que se dirige da consciência à memória e LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). 89 da sociedade para a natureza, numa negação ao mundo antes homenageado na utopia social do Émíle. Na procura de escapar da dor, ocorre o afastamento do sujeito para regiões inconscientes, que se vão pouco a pouco tematizando no devaneio do caminhante solitário. Isto fazia da caminhada em direção à natureza algo de certo modo equivalente ao mergulho do ser em direção a si mesmo. Deste modo, a escrita de Rousseau não é apenas autobiográfica, abrindo-se em direção a uma espécie de fantasia retrospectiva em que o passado, a natureza e o aprofundamento da escavação interior se interllgavarn, produzindo não só a textuallzação do desencontro consigo próprio e com o outro, mas também a busca de ultrapassar a biobrafia pela reflexão. Ao retirar-se do domínio do ser em sociedade, o personagem dos devaneios se recolhe nos abismos secretos do "eu", atingindo a cena da fantasmagoria da escrita (nem mentira, nem verdade) do proscrito. No contraste entre o personagem eufórico que acredita no homem natural na transparência da sinceridade e o caminhante soturno e melancólico que mergulha nos "estados d'alma", o imaginário de uma época traçava o contraponto entre a sociabilidade e a solidão, entre o Duas ilhas de solidão, portanto, se fundiram (e confundiram) na colisão de projetos e de paradoxos do século XVIII se articulamos o Robinson de Defoe ao Robinson de Rousseau. A primeira, aponta para a concepção de individualismo como aliado da tecnologia e do desenvolvimento, coincidindo com a metáfora do Robinson Crusoé, - o individualista que se outorga criar, das 90 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). ruínas da civilização, o novo pacto; e com a metonímia das relações de servidão que este mantém com o indígena Sexta-Feira. A outra, insulada na melancolia, rediscute a utopia do progresso e do Estado contratuaL ameaçada pelos obstáculos que nele antevê o outro eu de Rousseau. Em compasso com o naturaL o homem social habitara com eloqüência e vaticínios auspiciosos as páginas do Émile e sua articulação com o Robinson Crusoe. Pouco a pouco, na tessitura d' Os devaneios, vai-se transmudando no homem desesperançado, que quer retornar a um estado primevo de quietude e harmonia entre o ser e o parecer. Acirrados os limites da subjetividade, o estado de natureza tornavase incompatível com a cultura estabelecida e a obra pretendida passava a necessitar de conversão para um mundo interior menos solar, mais errante e escorregadio. E, se aqueles que se refugiavam na Igreja podiam manter o silêncio e a solidão, o caminhante solitário passa a entrever que o que pensa só tem justificação em si mesmo, o que o obriga a retomar incessantemente a palavra, e a derrarmar-se para dentro dos limites de seu próprio eu, o que vai cada vez mais tornando opacas as relações entre a solidão e a palavra. (Estas considerações serão retomadas adiante, quando tratarmos de Iracema e de O guarani que, lidos a partir destas coordenadas, revelam que a reflexão de Alencar vai muito além do que nele tem visto a crítica). O que é dramático em tudo isso é que o personagemcaminhante (de) Rousseau não quer apenas singularizar-se e mostrar a sua diferença em relação aos "detratores". A tensão trágica resulta da necessidade de fazer coincidir a todo momento sua solidão com o bem e com a verdade, tais como os reconhece em seu foro íntimo, mas LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS]. 91 ambicionando que assim também estes possam ser reconhecíveis por todos. "Rousseau se estabelece na solidão a fim de poder falar legitimamente em nome do universal" (Starobinski, 1991. 52). E aí ele muito se distingue dos Iluministas, que cancelam a diferença, o particular, em nome do universal e da semelhança. Ao elevar a razão ao status de autoridade. o Iluminismo, para libertar os homens dos preconceitos do passado, produz, na visão de Hanna Arendt8 , teorias de emancipação que predizem e evocam a experiência, o mundo, as pessoas e a sociedade, dando a isto uma coloração de realidade. Isso cria um problema, pois a experiência pressuposta pode cair na invenção desta, ou seja, na dificuldade. ao se pensar o geral, de incluir a categoria da particularidade. Rousseau, no Émíle, se distingue dessa prática. Mesmo procurando valores gerais e convencido da necessidade de pressupor um homem universal, detecta que a discussão sobre o geral necessariamente tem que dialogar com a contingência histórica, com particularidade. ou seja, com a singularidade dos indivíduos e da vida prática. Sua obra se marcará dessa preocupação, daí surgindo os matizes de uma impressionante "caminhada" (é sintomático que a expressão integre o título de seu livro sobre os devaneios) rumo à interioridade do eu, que irá repercutir no Romantismo. Por outro lado, o pensar que ricocheteia sobre si mesmo e se faz pela incessante escavação da intimidade singular, pode desencadear um outro risco: o de, por outra razão que ,não a que ameaça a 8 Hanna Arendt, Rohel. Rahel Varnhagen, a vida de uma judia alerrã na época do Romantismo. Trad. Antonio Trânsioto e Gernot Kludash, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1994, p, 20 92 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). abstração generalizante do Iluminismo, provocar o isolamento do mundo exterior, fazendo que o sujeito se entrincheire "diante do único objeto 'interessante': o próprio interior' (Arendt, 1994, 21 ). Em Alencar, por exemplo, esse duplo movimento, e a dificuldade de lidar com esta questão, pode ser sentido, gerando muitas vezes um efeito de estranhamento. Pensemos em Senhora. A narrativa matiza o jogo do interesse econômico que obscurece o valor-em-si de Seixos e de Aurélia, cuja individualidade fica submetida ao valor-de-mercadoria que rege o pacto social vigente. Quando se volta para o particular, no entanto, a caminhada em direção ao interior das personagens, que permitiria considerar os valores intrínsecos de cada um e estabelecer uma discussão mais profunda do problema, esbarra na alienação dessas questões pelo mergulho numa pincelada romântica de diluição, na qual a personagem feminina se entrega ao amor numa inversão das relações de vassalagem. De senhora dos dinheiros a serva do amor, o final do romance talvez conceda ao leitor a suspensão do projeto reflexivo, mais denso, que poderia ter-se adensado mais. Fica naquele ''final feliz" a tensão entre modelos gerais de eficiência social e o que rege a interioridade dos personagens, que merece ser examinada de forma mais pormenorizada em análise posterior. A questão, em Rousseau, encarna também uma relação com a polêmica que surge de suas obras no ambiente francês conservador e que acarreta uma experiência autobiográfica que ele textualiza de forma surpreendente. Mas não se deve tomar esse movimento para dentro de si como um gesto romântico de Rousseau, pois apenas muito remotamente o escritor prefigura o Romantismo. Se assim é, como interpretar a imagem LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). 93 do homem que foge de asilo em asilo, de retiro em retiro, na periferia de uma sociedade que velou os valores? O banido e proscrito, o ser sem-morada, que corta todos os laços com o social, visto n' Os devaneios tematiza o mundo nostálgico de tudo o que resta em latência nas trevas, como forças opacas, faces mascarados, vivendo das sombras inquietantes do inveja, do persegu·1ção e do recusa. Desse modo, "a solidão de Rousseau é [a busca de] um retorno à transparência" (Starobinski, 1991, p. 52) A consciência descobre que escapa ao mundo hostil desde que deixe de ocupar-se dele. A lição que o Romantismo, todavia, recebe de Rousseau, é o de que o recolhimento no "território da intimidade" irá dor vazão a uma solidão intencionalmente construída. Dos termos em conflito -- o mundo e o eu -- o devaneio melancólico cede lugar a um movimento que visa restaurar a integridade ameaçado da existência pessoal. Fechar-se para o mundo e abrir-se para o extrema intimidade do eu é uma forma, retomada pelos românticos, de contornar o peso insuportável que passa a custar a vida em sociedade. Voltar-se poro dentro de si mesmo passa o ser não um meio, mas um fim. E o escrita será, a partir de Rousseau, aquilo que fixa o devaneio, o suporte desse encontro do mesmo consigo mesmo e com o outro. Fixa-se nela um vezo de mise-en-abyme, de consciência moderna da escritura, e do "ser de linguagem" de todos os processos de rememoração. Mergulhar nos profundezas do eu passa a equivaler à busca de se anular a diferença entre o natural externo ao homem e a natureza interno do subjetividade. Focalizada nesta rede, a linguagem de Rousseau não tem mais nada em comum com o discurso clássico. LETRAS Revisto do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 'infinitamente mais imperiosa, é também mais precária." (Starobinski, i 991, 206) Nesta linha de reflexão - a linguagem como carência e plenitude, simultaneamente - a linguagem é tudo o de que dispõe o eu que confessa, mas ela mesma não é o bastante para redimi-lo da perda das ilusões. Haverá sempre uma fratura entre a linguagem e o vivido. Do mesmo modo, a linguagem com que se rememora a experiência do que não pode mais ser, não é o suficiente para o caminhante solitário, ainda que, sem ela, ele não possa existir. É, portanto, a linguagem como exercício de escrita do limiar da subjetividade o veio que se abre, com Rousseau, para a literatura moderna. Com ele e a partir dele é que se tematiza para a modernidade o perigoso pacto do eu com a linguagem e desta com a realidade, no qual a "obra literária já não pede o assentimento do escritor sobre uma verdade interposta como "terceira pessoa" entre o escritor e seu público." (Starobinski, 1991, 206) Sem querer fazer de Rousseau um romântico, é preciso pensar o Romantismo a partir do que sugere sua obra. Mais do que isso: convém relembrar a articulação de seu pensamento com o conceito de literatura que emana do famoso fragmento 206 do Athenaeum, atribuído a Friedrich SchlegeL leitor declarado de Rousseau: "É preciso que um fragmento seja como uma pequena obra de arte, inteiramente isolado do mundo circundante e completo em si mesmo, como um ouriço.'' 9 Sob o impulso e o impacto da solidão, a escrita fragmentária d' Os devaneios de Rousseau abre novas considerações teóricas, nas quais se 9 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia e outros fragmentos, trad., pref. e notas Victor-Pierre Stirnimann, São Paulo, Iluminuras. 1994, p. l 03. (Biblioteca Pólen) LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 95 antevêem múltiplas e suplementares concepções de identidade e se faz surgir um novo tipo de texto -- o fragmento, não mais apenas confissão, porque forma singular de escritura, que viria a repercutir na obra dos jovens idealistas alemães de Jena. Na batalha textual que travou, Rousseau ofereceria ao Romantismo formidável vertente de inquietaçqes políticas, filosóficas e literárias, desdobradas a partir da tematização da solidão, e através da qual a sociedade dos oitocentos constituiria e ampliaria a paisagem de suas indagações. Nos estudos que tenho feito sobre a obra de Alencar tem-me chocado a dificuldade da crítica de lê-lo fora da relação quase mecânica entre o possível conservadorismo político do autor e sua produção literária. Na tentativa de lê-lo em outra pauta, quero evocar que o tratamento que em seus textos é dado à questão da solidão abre para a crítica literária um importante desafio: o de se relerem os impasses melancólicos que seus personagens enfrentam. E, a partir daí, reler-se a própria fortuna crítica de seus textos na cultura brasileira e as concepções de identidade que emergem de nosso Romantismo. A solidão é quase sempre evocada em sua obra de maneira dúplice. De um lado, é forma de expressão das dúvidas e isolamento do novo país diante da incerteza de rumos. A procura de desprender-se do complexo colonial de que fizera parte vincula-se ao destino dos personagens. Indígenas cheios de virtudes, eles problematizam os dilemas vividos pelo eu rousseauniano, cindido entre a cidadania e os desejos individuais. No novo pacto brasileiro, dramatizam a procura de um novo código e dos tropeços para defini-lo, implantá-lo e administrá-lo a partir de modelos ao mesmo tempo autóctones e importados. 96 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). Há uma nostalgia recalcada na forma romanesca alencariana. A nostalgia de que fala Novalis e que o viajante, o exilado e o deslocado conhecem e carregam: a saudade de uma aspiração que não se atinge, a de estar em toda a parte como em sua casa, como na carta ao Dr. Jaguaribe, apensa ao final de Iracema, em que o narrador aspira à modorra da rede e ao à vontade nordestino perdido. O romance, na visão de Lukács, nos conduz de volta à matriz das solidões. Ele é o sintoma de uma laceração entre o interior e o exterior, significativa de uma diferença essencial entre o eu e o mundo, de uma inadequação entre os soni10S dos l1omens, sua alma, e a ação que i11es permite a máquina do mundo. Ou, ainda, a saudade e solidão que atingem, por razões distintas, Iracema e Martin. Alienada de seu povo, ao partir com Martim, Iracema abandona, de certo modo, o estado de natureza. Sem os "seus", segue o guerreiro branco. Mas este também vai deixá-la, ao partir com Poti em campanha. O estado de natureza com que a heroína agora se defronta é o da total solidão de um eu cujo destino se revela interrompido. Não pode voltar atrás, nem ir mais adiante. No segundo momento do romance, Iracema tem diante de si a hipótese regressiva e mortal de retorno ao estado mais primitivo do primitivo: o de identificar-se com o indiferenciado, até que a morte definitivamente a faça refluir para a dimensão de terra-mãe, que a enterra. Martim, em solidão, à beira do penhasco, lembra da noiva distante, da sociedade de que precisou abdicar na aventura da colonização. Penetra no mundo natural, mas dele não participa, senão LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 97 como ameaça: leva o desconcerto à tribo de Iracema e, no concerto das nações indígenas, implanta a mairi dos cristãos. Seus personagens, como a da casa de D. Antonio de Mariz, estão sempre na iminência do abismo. Peri, assemelhado às águas do rio que não deságua no marnão se abre ao comércio das nações, nem ao da urbanidade. Pelo conluio obscuro da vida natural com a razão social, Peri é impedido de localizar a si mesmo num espaço que não o da natureza selvagem, no qual é condenado a ficar retido, pelo código de um processo civilizatório que confere apenas a Ceci o poder de dupla mobilidade. Estabelecer moradia na selva e na cidade, ou nos espaços internos e externos ao mundo citadino é prerrogativa vedada,ao homem natural. Na filosofia que o embasa, e na arte com que encarna sua forma, o romance de Alencar põe em circulação a luta desigual, jamais vitoriosa, do homem natural com a potência de forças que ele não domina, no confronto de seus desejos, suas perdas e o horror da morte. Em suas páginas se encena o drama da construção identitária de uma comunidade imaginada. Fragmentos da trajetória de uma identidade em crise ecoam nas diversas narrativas de Alencar. Se "Tudo passa pela terra" (Alencar, 1975, 57), o mito se transmuda em história, na confluência do corpo morto da mãe, a virgem de Tupã, com o silêncio reservado ao filho, ícone de uma pesada ausência: o brasileiro Moacir vive ao custo do corpo morto de Iracema. enterrada sob a força de uma outra fecundação, a da mairi dos cristãos: Muitos guerreiros de sua raça acompanharam o chefe branco, para fundar com ele a mairi dos cristãos. [... ]A mairi que Martim erguera à margem do rio, nas praias do Ceará, medrou. Germinou a palavra do 98 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). :::eus verdadeiro na terra selvagem e o bronze sagrado ressoou nos vales :;nde rugia o maracá. (José de Alencar, 1975, p. 57) Locus nada ameno de uma 'autoctonia fraturada, o corpo de iracema recua à condição de sombra melancólica, e percorre, sustenta e corrói, subterraneamente, o tom de outra forma eufórico de uma narrativa urdida sob o signo das identidades em solidão. Reserva-se, aos dois personagens maiores da galeria históricoindianista de Alencar, o trágico movimento para dentro de si mesmos, até se confundirem com a natureza que, se os concebeu, irá retê-los e, num certo sentido, engolfá-los em seus domínios e mortal solidão. Não é de pouca monta o que Alencar realiza ao tematizar a solidão como lugar da origem da nacionalidade. Ao fazer Isto, ele recupera, provavelmente sem saber que Rousseau também o fizera, o questionamento da transformação, em mercadoria, da moeda cultural por excelência, o homem pactário do contrato social. Alencar trazia à luz a discussão de um tópico extremamente problemático e não o representava exatamente como mais um intelectual envolvido com a elite vinculada, diretamente, ao Império e ao Instituto Histórico e Geográfico, instituição que, de modo oficial, implantava uma visão de brasilidade. De certo modo incompatibilizado com as elites nacionais, e sem contar com "o povo", até hoje uma categoria à margem de qualquer direito entre nós, o terreno em que se movia sua preocupação com a "hipótese Brasil" e as dores da nacionalidade era singular. Se na França"'[o] povo' identificado com 'a nação' era um conceito revolucionário, mais revolucionário do que o programa liberalburguês que pretendia expressá-lo" (Hobsbawm, 1986, 78); Alencar, no LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 99 Brasil, dispunha apenas do programa, contraditório, da incipiente burguesia nacional, cujo florescimento, no início do século, se marcava por uma face extremamente tênue, em que a nacionalidade 'brasileira' era uma hipótese' encravada na nacionalidade portuguesa transplantada, por motivos político-econômico europeus, para terras tropicais. Tematiza-se e problematiza-se, portanto, nas narrativas de Alencar, a diferença que importa ao pacto social do Estado-nação recémformado: a sutil distinção entre os que podem ocupar os domínios e fundar cultura e civilização - os que atribuem o valor de mercado, sem serem mercadorias, e aqueles que, pertencendo à terra, são condenados ao silêncio, à morte, à solidão. Diferentemente de como tem sido lido, o romance de Alencar narra, com mestria, os vazios e fraturas sob os quais se engendram as marcas e estigmas de nossa identidade. 100 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). MEMÓRIA CULTURAL E CONSTRUÇÃO DO CÂNONE LITERÁRIO BRASILEIRO 1 Luiz Roberto CAIRO UNESP/CNPq A poesia brasileira não é uma indígena civilizada; é uma Grega vestida à francesa e à portuguesa, e climatizada no Brasil; (... ) Enfeitiçados por esse nume sedutor, por essa bela estrangeira, os poetas brasileiros se deixaram levar por seus cânticos, e olvidaram as simples imagens que uma natureza virgem com tanta profusão lhes oferecia. [MAGALHÃES, Domingos José Gonçalves de. Discurso sobre a História da Literatura do Brasil. Niterói, Revista Brasiliense. Paris, 1836.) Na primeira metade do século XIX, os críticos brasileiros criaram o cânone da história da literatura brasileira, influenciados pelas idéias da crítica romântica européia que contribuíram para a construção da identidade nacional desta literatura. Este cânone permanece vivo, apesar das diferentes leituras e releituras, às vezes, a ele opostas, que os críticos contemporâneos vêm propondo. Isto se explica pelo fato de que, em se tratando de cânone literário, cada período busca redefini-lo em função da tradição que melhor se adeqüe ao horizonte de perspectivas de quem, no presente, o seleciona. 1 Texto apresentado, inicialmente, no Rio de Janeiro, numa mesa-redonda do Colóquio Internacional Cultura Nacional. Teoria Internacional: A contextualização das discursos sobre a literatura, realizado na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. de 9 a ll de junho de l 999. LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 1OI Num momento em que os estudiosos de Literatura cッュー。イセZ@ cada vez mais centram seu interesse na questão dos emprés ti'""'•;)õ culturais, enfatizando principalmente a diferença entre colonizador colonizado, João Alexandre Barbosa, um dos mais importantes セ@ 」イ■エゥセ@ brasileiros contemporâneos, publica "A Biblioteca Imaginária" (BARBos.:.. 1996, p. 13-58), ensaio fundamental para a discussão sempre oportur.:: da formação do cânone da história da literatura brasileira. Neste ensaio, ele vai justamente marcar como uma 、・セ@ peculiaridades do caso brasileiro o fato de que: [. ..] a formação do cânone literário seguiu, de bem perto, c próprio desenvolvimento de nossas relações de dependência e d€ autonomia com vistas às fontes metropolitanas. (1996, p. 23) Ou seja, na formação do cânone da História da Literatura Brasileira [. .. ) contribuíram sobretudo os esforços no sentido de estabelecer urr: corpus de autores e obras Identificados como brasileiros e diferenciados das origens européias, em que se destacavam, como não podia deixar de ser, as portuguesas. (1996, 23) Ao contrário, portanto, das literaturas européias e norte -americana em que: (... ) a fixação de cãnones literários resultou assim do aparecimento de grandes ensaios de interpretação da herança cultural do Ocidente, quase sempre movidos por um forte apelo classicizante, dando como resultado uma rígida hierarquização de gêneros, raças e modelos culturais, que somente será abalada pelos movimentos multiculturais de anos recentes( ... ) (1996, p. 23). As considerações de João Alexandre Barbosa me levam a dizer que os críticos brasileiros fundadores do cânone se anteciparam à crítica contemporânea, ao inventarem um paradigma para a História da 102 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). Literatura Brasileira centrado multo mais na diferença do que na semelhança em relação à tradição clássica do colonizador. Talvez esta seja a causa da permanência deste cânone, que acabou cunhando como clássica uma tradição identificada pela construção da diferença, ou seja, pela marca da nacionalidade, ao invés de se pautar nos princípios esteticizantes da tradição literária clássica do Ocidente. Na verdade, isto foi possível graças à relação tensa que, desde o Início da colonização, se estabeleceu no Brasil entre colonos e イ・ャョ￳ゥウセ@ de certa forma representada em vários textos literários como, por exemplo, em alguns poemas de Gregório de Matos, verdadeiras crônicas de costumes da sociedade baiana dos tempos coloniais. O poema satírico de Gregório de Matos intitulado Descreve o que era realmente naquele tempo a cidade da Bahia ilustra bem o que estou afirmando: A cada canto um grande conselheiro, Que nos quer governar a cabana, e vinha, Não sabem governar sua cozinha, Epodem governar o mundo inteiro. Em cada porta um freqüentado olheiro, Que a vida do vizinho, e da vizinha Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha, Para levar à Praça, e ao Terreiro. Muitos mulatos desavergonhados, Trazidos pelos pés os homens nobres, Posta nas palmas toda a picardia. Estupendas usuras nos mercados, Todos, os que não furtam, muito pobres, Eeis aqui a cidade da Bahia. (BARBOSA, 1997, p. 24-25) LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 103 No século XIX, após as lutas da independência, esta tensão se agravou e se tornou o centro das discussões dos nossos escritores, no empenho de construirem a nacionalidade da literatura brasileira. A variedade de interpretações possíveis sobre o momento de fundação da literatura brasileira propriamente dita é fruto desta tensão. Com o surgimento do Brasil Nação, pressionados pelos escritores da antiga metrópole, que não admitiam a existência de uma literatura brasileira, pelo fato dos textos aqui produzidos não expressarem de maneira explícita a brasilidade e serem escritos em língua portuguesa, considerado propriedade deles, os escritores brasileiros tiveram que, de alguma forma, idealizar um modelo que viesse a marcar a sua nacionalidade. Isto se tornou viável através das idéias românticas de Augusto Frederico Schlegel e Madame de Stael advindas principalmente dos conselhos que o francês Ferdinand Denis e o português Almeida Garrett deram aos jovens brasileiros Domingos José Gonçalves de Magalhães, Manuel de Araújo Porto Alegre e Francisco de Soles Torres-Homem que, estando em Paris, por volta de 1836, criaram a Níteróí-Revísta Brasílíense, considerada o marco inicial das discussões em torno da nacionalidade da literatura brasileira. As idéias românticas européias favoreceram a difusão do sentimento nacional e conseqüentemente a criação do conceito de literatura nacional como expressão maior da evolução espiritual de uma nação, vindo ao encontro dos interesses prioritários dos jovens brasileiros, que passaram então a identificar o modelo da literatura clássica com o Brasil Colônia e buscar na nova proposta romântica, outros modelos que pudessem sinalizar para a nação que surgia. 104 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). No discurso dos críticos românticos, começam a se esboçar as idéias que, além de fundamentarem as interpretações dos futuros críticos realistas, aqueles que efetivamente inventaram a História da Literatura Brasileira, irão permanecer como centro das discussões de uma eventual teoria da literatura brasileira. A História da Literatura Brasileira veio construindo-se, portanto, através das tentativas dos críticos românticos, que, inicialmente, buscaram coletar um corpus que justificasse a própria existência de uma literatura que se pudesse chamar de brasileira. Nesta fase, marcada por um critério meramente quantitativo, estes críticos, conforme Antonio Candido (CANDIDO, 1971, 2, p. 349), empenharam-se tanto em escrever os "bosquejos", panoramas gerais, onde se traçava rapidamente o passado literário, quanto em organizar os "florilégios" ou "parnasos", antologias dos poucos textos disponíveis. Somente a partir daí, puderam concentrar-se isoladamente nos autores, antes referidos ligeiramente nos "bosquejos", produzindo então as biografias literárias, que, reunidas, formaram as "galerias" e os "panteóns". Além desta tarefa árdua, os críticos românticos tomaram a si a preparação de edições e reedições dos textos já coletados, seguidos de notas biográficas e explicativas. Estas etapas foram da maior importância para o processo de construção da História da Literatura Brasileir:J propriamente dita, conforme se depreende do texto de Antonio Candido: Na primeira etapa, são os esboços de Magalhães, Norberto, Pereira da Silva; as antologias de Januário, Pereira da Silva, Norberto-Adet. Varnhagen. Na segunda etapa, as biografias em série ou isoladas, de Pereira da Silva, Antonio Joaquim de Melo, Antonio Henriques Leal, Norberto; são as edições de LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS]. 105 Varnhagen, Norberto, Fernandes Pinheiro, Henriques Leal etc. Na terceira, os "cursos" de Fernandes Pinheiro e Sotero dos Reis, os fragmentos da história que Norberto não chegou a escrever. [1971' 2, p. 349) Ao lado desse trabalho dos críticos românticos brasileiros, não se podem esquecer os textos dos historiadores e críticos estrangeiros do Romantismo que escreveram sobre o Brasil. Neste sentido, vale ressaltar a importância do livro do crítico e historiador gaúcho Guilhermino César (CÉSAR, 1978) que seleciona os textos mais significativos de Friedrich Bouterwek, Sismonde de Sismondi, Ferdinand Denis, Almeida Garrett, C. Schlichthorst, José da Gama e Castro, Alexandre Herculano e Ferdinand Wolf. No entanto, para o estabelecimento do cânone, foi essencial o trabalho de compilação empreendido pelos escritores e críticos que escreveram os "florilégios" e "parnasos". As antologias foram, efetivamente, responsáveis pela recuperação do acervo literário disperso ao longo dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX. Analisando as antologias, Maria Eunice Moreira, num importante trabalho intitulado Nacionalismo literário e crítica romântica, chamou a atenção para seus objetivos variados: divulgar a produção poética, preservar obras, reabilitar textos mais antigos, fornecer dados sobre autores, estimular as novas gerações. (MOREIRA, 1991, p. 93) O Parnaso Brasileiro ou coleçõo das melhores poesias dos poetas do Brasil, tanto inéditas, como já impressas (BARBOSA, 1829), do Cônego Januário da Cunha Barbosa, datado de 1829, segue o modelo do Parnaso Lusitano ou poesias seletas dos autores portugueses antigos e modernos, ilustrado com notas. Precedido de uma história da língua e poesia portuguesa (GARRETI, 1826), de Almeida Garrett, publicado em 106 LETRAS -Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). 1826. O Parnaso Brasileiro tinha por finalidade tornar ainda mais conhecido do mundo literário o Gênio daqueles brasileiros, que, ou podem servir de modelos, ou de estímulo à nossa briosa mocidade, que já começa a trilhar a estrada das Belas Letras, quase abandonada nos últimos vinte anos dos nossos acontecimentos políticos. (1829, I, p. 3) Além disso, buscou reunir numa só coleção as poesias estimáveis dos autores do Brasil e concentrar o maior número possível de dados relativos a todos os poetas do Brasil. desconhecidos ou não. Vale ressaltar que, dada a abrangência da tarefa, o autor solicitou aos eventuais leitores que colaborassem com ele, encaminhando -lhe informações com porte pago para sua residência, onde se dará recibo para a entrega do original, depois de copiado. (18 29, p. 4) A segunda edição é de 1831 e saiu com acréscimos. Joaquim Norberto de Sousa e Silva e Emílio Adet, em 1842, publicaram Mosaico Poético, poesias brasileiras antigas e modernas, raras e inéditas, acompanhadas de notas, notícias biográficas e críticas, e de uma introdução sobre a literatura nacional. (SILVA & .A.DET, 1842) Em 1843, foi lançado o Parnaso Brasileiro ou seleção de poesias dos melhores poetas brasileiros desde o descobrimento do Brasil procedido de urna introdução histórica e biográfica sobre a literatura brasileira (SILVA I. 1843), de J. M. Pereira da Silva que buscou completar a antologia do Cônego Januário da Cunha Barbosa. Neste senti do, recolheu não só autores de poesia, como de outros gêneros, tendo também coletado autores anteriores ao século XVIII. O critério de seleção que presidiu esta antologia é o do nacionalismo, desenvolvido em torno da idéia de compromisso patriótico. LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em letras da UFSM (RS). 107 Quando Francisco Adolfo Varnhagen, em 1850, publicou o Florilégio da Poesia Brasileira ou coleção das mais notáveis composições dos poetas brasileiros falecidos, contendo as biografias de muitos deles, tudo precedido de um ensaio histórico sobre as letras no Brasil (VARNHAGEN, 1987), o critério da nacionalidade já estava quase firmado ·como parâmetro estético para a seleção das poesias. O Florilégio teve dois tomos publicados em Lisboa e o terceiro em Madri e foi apresentado como uma antologia do que de mais americano tivemos (1987, L p.14). Rejeitando a denominação de pornoso, Vornhogen se justificou dizendo estarmos um pouco em briga com a mitologia, com o propósito de distingui-la de outra anterior que leva aquele título (1987, p. 14), querendo referir-se assim ao Parnaso Lusitano, de Almeida Garrett. Com esta referência, deu a sua contribuição para a discussão do tema da separação entre a literatura portuguesa e a brasileira, negada pela via lingüística. Varnhagen estabeleceu duas condições para que as obras fossem incluídas no Florilégio: obras com temas brasileiros e obras de autores nascidos no Brasil. Deste modo, consolidou como critério de identificação da literatura brasileira o nacional que se consagrou como elemento organizador do património literário. Estava assim constituído o cânone do Romantismo que viria a ser o paradigma tanto para os panteóns e galerias, quanto para a história da literatura. Paralelo a essas publicações, os críticos românticos brasileiros elegeram, como veículo de escoamento de sua produção, os periódicos. Estes tiveram um importante papel na construção da identidade literária nacionaL na medida em que divulgaram textos 108 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). manifestos, alimentaram polêmicas e geraram, conseqüentemente, novos textos que mantiveram viva a chama da nacionalidade. Dentre os principais periódicos brasileiros do momento romântico, destacaria: . a Revista da Sociedade Filomática, publicada em São Paulo, em 1833.Teve seis números. Nela encontram-se principalmente textos de Justiniano José da Rocha e José Salomé Queiroga; . a NiteróL Revista Brasiliense de Ciências, Letras e Artes, publicada em 1836, em Paris, é considerada, juntamente com a publicação de Suspiros Poéticos e Saudades, de Domingos José Gonçalves de Magalhães, o marco do Romantismo brasileiro. Teve apenas dois números. Além do citado Domingos José Gonçalves de Magalhães, atuaram, na Niterói, Manuel de Araújo Porto Alegre e Francisco Soles Torres-Homem, dentre outros. . a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro foi criada em 1839 como veículo de divulgação das idéias nacionalistas do projeto imperial do Instituto, fundado no ano anterior, por iniciativa principalmente de um militar, Raimundo José da Cunha Matos e do escritor Januário da Cunha Barbosa. O projeto oficial, desenvolvido com o apoio do Imperador Dom Pedro !L tinha por objetivo a pesquisa da história brasileira e a construção paralela de uma literatura nacional. Nesta revista, foi publicado, principalmente no período compreendido entre os anos de 1839 e 1869, um vasto materi ai literário, composto de biografias de poetas e escritores brasileiros, estudos de obras poéticas e instituições literárias, poesias e composições poéticas de teor laudatório, de autores como Gonçalves Dias, Joaquim Manuel de "Aacedo, Januário da Cunha Barbosa, Santiago Nunes Ribeiro, João LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 109 Manuel Pereira da Silva, Francisco Adolfo Varnhagen, Pero de Magalhães, Joaquim Norberto de Sousa e Silva e Fernandes Pinheiro (PILlAR, 1996). . o MineNa Brasiliense, Jornal de Ciências, Letras e Artes foi publicado por uma associação de escritores e circulou no Rio de Janeiro, no período compreendido entre 1843 e 1845. Tratava de uma enorme variedade de assuntos: astronomia, medicina, botânica, zoologia, química, física, geografia, história e literatura. Nele colaboraram Francisco de Soles Torres-Homem, seu primeiro redator-chefe, Santiago Nunes Ribeiro, que assumiu o cargo de redator-chefe, após o primeiro ano, e os escritores Antonio Gonçalves Teixeira e Sousa, Antonio Francisco Dutra e Melo, Luís Antonio Burgain, Joaquim Norberto de Sousa e Silva e Joaquim Manuel de Macedo, dentre outros . . a Guanabara foi uma revista mensal artística, científica e literária, redigida por uma associação de literatos e dirigida por Manuel Araújo Porto-Alegre, Antonio Gonçalves Dias e Joaquim Manuel de Macedo. Circulou no período compreendido entre 1849 e 1856 e teve publicados 36 números, distribuídos em três tomos de 12 números. Além dos di retores citados escreveram, neste periódico, Domingos José Gonçalves de Magalhães, Joaquim Norberto de Sousa e Silva, J. C. Fernandes Pinheiro, dentre outros . . a Revista Popular teve dezesseis números que circularam entre 1859 e 1862. Foi considerada o centro dinâmico na renovaçâo das idéias literárias (1991, p. 77). A redação da Revista Popular esteve entregue a Joaquim Norberto de Sousa e Silva, Luís de Castro, José da Rocha Leão, Duarte Paranhos Schutel, Joaquim Manuel de Macedo, Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, e outros; e teve como colaboradores: Lino de Almeida, Casimiro de Abreu, Luís Antonio Burgain, 110 LETRAS- Revisto do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (RS). Luís Delfina, Maciel Monteiro, Macedo Júnior, Juvenal Galeno, Teixeira de Melo, Faustino Xavier de Novais, Domingos José Gonçalves de Magalhães, Bruno Seabra, Augusto Fausto de Sousa, Augusto Emílio Zaluar, dentre outros. Editada, no Rio de Janeiro, por B.L.Garnier, a revista foi substituída em 1863, pelo Jornal das Famílias, do mesmo editor. Um dos focos de maior interesse desta revista prende -se ao fato de nela terem sido publicados os capítulos daquela que teria sido, caso se concretizasse, a primeira História da Literatura Brasileira, a de Joaquim Norberto de Sousa e Silva. Os famosos capítulos da eventual História davam continuidade às idéias, anteriormente, veiculadas por ele, no Minerva Brasiliense, ou seja, abordavam a tendência dos selvagens para a poesia, a questão da nacionalidade e da originalidade da literatura brasileira e a história literária. (1991, p. 77) Aspecto curioso desta História é o fato de ser uma História da Literatura sem literatura, uma vez que não há capítulos onde figurem os autores brasileiros e suas obras. Outros periódicos circularam no Rio de Janeiro, no momento romântico: Íris (1848-1849), Anais da Academia Filosófica (1858), O Espelho (1859-1860), Jornal das Famílias (1863-1878), Revista Brasileira (la. fase, 1857-1860, 2a. fase, 1869-1881, 3a. fase, 1895-1899), Revista Mensal de Ensaios Literários (1863-1865, 1872-1874), e vários outros de interesse literário ou eclético. Através dos bosquejos, antologias e biografias literárias publicadas sob forma de livros ou veiculadas em periódicos, os críticos românticos arquitetaram uma História da Literatura Brasileira que veio a ser posteriormente construída pelos criticos realistas brasileiros que, na verdade, viam a sua elaboração como o ápice do exercício crítico. LETRAS- Revisto do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (RS]. Ao lado destas considerações feitas sobre a crítica romântica brasileira, gostaria de acrescentar uma breve releitura de três possíveis interpretações recorrentes na crítica brasileira contemporânea, pinçadas no discurso dos críticos realistas, aqueles que efetiva mente publicaram, sob forma de livro, a História da Literatura Brasileira. A primeira interpretação a que recorro seria a mesológica, que fundamenta a teoria da obnubilação brasílica de Araripe Júnior. Por obnubilação brasílica, ele entendia a transformação por que passavam os europeus ao atravessarem o oceano Atlântico e a sua conseqüente adaptação ao meio físico e ao ambiente primitivo. Esta transformação ocorria também a nível das idéias que, ao serem transplantadas, adaptavam-se ao meio ambiente, adquirindo uma certa originalidade, que se traduziu no que ele chamou de estilo tropical. Partindo do pressuposto de que os europeus, ao chegarem no Brasil, perdiam a sua identidade, adquirindo uma outra, por força do fenômeno da obnubilação, os textos por eles produzidos apresentariam, conseqüentemente, marcas de um novo estilo, o estilo tropical, característica definidora do gênero brasílico, sendo, portanto, textos de literatura brasileira. Desta forma, Araripe Júnior considerava relevante a inclusão dos textos dos cronistas da época colonial na História da Literatura Brasileira, por constituírem, sem sombra de dúvida, textos de autores brasileiros: Portugueses, franceses, espanhóis, apenas saltavam no Brasil e internavam-se, perdendo de vista as suas pinaças e caravelas, esqueciam as origens respetivas. Dominados pela rudez do meio, entontecidos pela natureza tropical, abraçados com a terra, todos eles se transformavam quase em selvagens; e se um núcleo forte de colonos, renovado para contínuas viagens, não os sustinha na luto, raro era que não acabassem pintando 112 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). o corpo de jenipapo e urucu e adotando idéias, costumes e até as brutalidades dos indígenas. (ARARIPE JÚNIOR, 1960, p. 407) Sob o ótico da obnubilaçõo brosílica, a leitura que Araripe Júnior faz da obra de José de Anchieta chamo o atenção pelo diluição do misticismo do jesuíta em um curioso naturalismo e o transformação da teologia em fetichismo. Diz ele: (... ) a sua vida entre os selvagens e o seu prestígio contra os sacerdotes índios atestam que este podre, se não por imposição do meio ao menos por arte refinado, se fez um legítimo pajé. A missão do toumoturgo brasileiro, como o chamavam, nos florestas do Sul. não se pode explicar senão pelos feitiçarias, aceitos ou habilmente copiados, dos piogos, e com que ele catequizou os seus caboclos. (1960, p. 408) Curiosamente esta interpretação de Araripe Júnior vai fornecer subsídios não só para uma leitura antropológica da literatura brasileira, mos também para a crença numa tradição afortunada advindo do processo de descolonização literária como foi pensado por Afrânio Coutinho, o mais refinado leitor do crítico cearense (COUTINHO, 1959). Ao tentar definir a literatura brasileira, num dos inúmeros textos que escreveu sobre o assunto. Afrânio Coutinho diz que: Ela é um processo longo, coerente. persistente de afastar -se do européia, na busca de um coráter nacional. em procura da identidade nacional, brasileira. Desde a primeira hora que esse esforço diferenciador se desenvolve, consciente ou inconscientemente, pela pena dos poetas, oradores e ficcion';stos, pela mão barroca dos jesuítas. O barroco fo'; o instrumento, nos dois primeiros séculos, mediante o qual a mente brasileiro tomou consciência de sua missão civilizatória, de suo originalidade criadora. (1983, p, 36) A busca do caráter brasileiro na literatura, segundo ele: LETRAS Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS]. Esse esforço pertinaz inicia-se mesmo nos albores de nossa vida de colônia lusitana. Se a nossa civilização pode ser caracterizada por um espírito sincrético, esse sincretismo tem começo com o Padre José de Anchieta, nosso primeiro criador de literatura no lirismo e no teatro. (... ) Anchieta foi o iniciador da literatura brasileira e sua obra literária é o símbolo do sincretismo lingüístico e cultural brasileiro. (1983, p.19) Por conta disso, vale dizer que o maneirismo da obra de Anchieta deve ser entendido como um pré-barroquismo. A segunda interpretação, a etnológica tem, em Sílvio Romero, seu principal representante que vai pensar a literatura brasileira a partir do conceito de mestiçagem. Para ele: A literatura brasileira, como todas as literatura do mundo, deve ser a expressão positiva do estado emocional e intelectual, das e dos sentimentos de um povo. Ora, nosso povo não é o índio, não é o negro, não é o português; é antes a soma de todas estas parcelas atiradas ao cadinho do Novo Mundo. (ROMERO, 1980, 2, p. 371) Uma literatura tem uma base, tem elementos e tem órgãos. A base da nossa é o sentimento do brasileiro, como nação à parte, como produto étnico determinado; os elementos são as tradições das três raças sem predomínio de uma sobre as outras; os órgãos são os nossos mais notáveis talentos, todos aqueles que sentiram como brasileiros. (1980, 2. p. 373) Sílvio Romero não reconhece José de Anchieta como o fundador da literatura brasileira. No máximo pode ser considerado um precursor. De acordo com o seu ponto de vista: Uma literatura, além de tudo, nunca tem um fundador; tem órgãos de manifestação, mais ou menos aperfeiçoados, e não passa disto. Uma escola é que pode ter um chefe, um criador. (1980, 2, p. 373) 114 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). Apesar dos índices exageradamente cientificistas, no discurso crítico de Sílvio Romero, já está presente a idéia de formação que deve ter subsidiado o conceito de formação do sistema literário brasileiro, como foi pensado por Antonio Candido, que não fala em processo de descolonização, no sentido como Afrânio Coutinho o coloca. A literatura dos tempos coloniais, de acordo com Antonio Candido, não passa de manifestações esparsas de literatura brasileira. Isto porque, o conceito de literatura pressupõe a existência de um sistema vivo de obras, agindo uma sobre as outras e sobre os leitores: e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a. A obra não é um produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem este é passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito. São dois termos interatuantes a que se junta o autor, termo inicial desse processo de circulação literária, para configurar a realidade da literatura, atuando no tempo. (CANDIDO, 1973, p. 74) Como nos primeiros séculos de Brasil, é impossível pensar em autores, obras e leitores, os três elementos definidores do sistema, fica difícil imaginar a existência, nesta época, de uma literatura brasileiro propriamente dita. A terceiro interpretação, o estético, fundamento -se na existência de um instinto nacional, expresso muito mais numa linguagem brasileiro do que num referencial temático do brosilidade. Esta tendência já se delineia no discurso do crítico romântico Santiago Nunes Ribeiro, concretiza-se na poética de Machado de Assis, sendo talvez a causa da perplexidade de José Veríssimo em relação às teorias cientificistas do século XIX e à construção do conceito de literatura brasileira, da forma como aparece na Introdução de sua História da Literatura Brasileira. LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). Ao contrário de Sílv'lo Romero que admitia, à maneira dos alemães, um conceito amplo, para o termo literatura, José Veríssimo, apoiando-se nos franceses, vai afunilá-lo na medida em que utiliza-o apenas para os textos com preocupação estética. Literatura, diz ele, é arte literária. (VERÍSSIMO, 1969, p. lO) Além disso, vale ressaltar que mesmo não havendo grandes divergências em relação aos autores e obras selecionados na História de Sílvio Romero, ele percebe um estranhamento no cânone literário proposto e aconselha uma revisão constante do mesmo por parte dos histoiiadoieS do futuío. Com bastante pertinência, observa que: A literatura brasileira (como aliás sua mãe, a portuguesa) é uma literatura de livros na máxima parte mortos, e sobretudo de nomes, nomes em penca, insignificantes, sem alguma relação positiva com as obras. Estas, raríssimas são, até entre os letrados, os que ainda as versam. Não pode haver maior argumento da sua desvalia. Por um mau patriotismo, sentimento funesto a toda a história que necessariamente vicia, e também por vaidade de erudição, presumiram os nossos historiadores literários avultar e valorizar o seu assunto, ou o seu próprio conhecimento dele, com fartos róis de autores e obras, acompanhados de elogios desmarcados e impertinentes qualificativos. Não obstante o pregão patriótico, tais nomes e obras continuaram desconhecidos eles e elas nao lidas. Nao quero cair no mesmo engano de supor que a crítica ou a história literária têm faculdades para dar vida e mérito ao que de si não tem. Igualmente não desejo continuar a fazer da história da nossa literatura um cemitério, enchendo-a de autores de todo mortos, alguns ao nascer. (1969, p. 12) É impressionante como em 1912, ele já tivesse percebido o que quase na mesma direção, o critico Haroldo de Campos, constata, em 1976: 116 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS]. O estatuto do historiador literário brasileiro é, por assim dizer, um estatuto dilacerado e dilacerante. Confrontado com um panorama diacrônico onde são raros os momentos de altitude, este historiador oscila entre a melancolia do profissional que não encontra um objeto satisfatório para o exercício de seu métier e a indulgência do fideicomissário que procura valorizar os bens sob sua custódia. (CAMPOS, 1976, p, 13) Contra este estado de coisas, Haroldo de Campos vai pensar na possibilidade de uma História Sincrónica da Literatura Brasileira, infelizmente não concretizada, em oposição ao velho paradigma do historiador diacrónico. Antes de finalizar este texto, no verdade, uma síntese de algumas dos possíveis interpretações sobre o momento de fundação da literatura brasileiro, fragmento de uma pesquisa que venho desenvolvendo sobre a construção do cânone na História da Literatura Brasileira, convém dizer que a publicação, nos anos 50, de A literatura no Brasil (1955), de Afrânio Coutinho, e de Formação do Literatura Brasileiro (Momentos decisivos) (1959), de Antonio Candido, bem como a publicação, nos anos 60, dos três pequenos textos de Haroldo de Campos, intitulados "Por uma poética sincrónica" (1960, p. 203-223), constituem uma verdadeira divisão de águas na tradição crítica brasileira que, além de afortunada (COUTINHO, 1968), tem sido, certamente, como bem definiu João Alexandre Barbosa uma verdadeira tradição do impasse (BARBOSA 197 4). Referências Bibliográficas ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. Obra Crítica de Ararípe Júnior. (Dir. Afrânio Coutinho) Vol. 11. Rio de Janeiro:MEC-Cosa de Rui Barbosa, 1960. LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). BARBOSA. Frederico (Sei. e org.) Clássicos da poesia brasileira. São Paulo: Klick Editora, 1997. BARBOSA. Januário da Cunha (Côn.) Parnaso Brasileiro. Rio de Janeiro: Tipografia Imperial e Nacional. 1829-1832, 2 tomos. BARBOSA, João Alexandre. A Biblioteca Imaginária. São Paulo: Ateliê Editorial, 1996. __ . A Tradição do Impasse. São Paulo: Ática, 197 4. CAMPOS, Haroldo de. A Arte no Horizonte do Provável. São Paulo: Perspectiva, 1969. __ .A operação do texto. São Paulo: Perspectiva, 1976. CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura no Brasil (Momentos Decisivos). São Paulo: Martins, 1971, 2 v . . Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1973. CÉSAR, Guilhermino. Historiadores e Críticos do Romantismo. 1. A Contribuição Européia: Crítica e História Literária. São Paulo: EDUSP; Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1978. COUTINHO, Afrânio (Dir.). A Literatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio; Niterói: EDUFF, 3a. ed. rev. e atualizada, 1986, 6 v. __ . A tradição afortunada ( O espírito de nacionalidade na crítica brasileira). Rio de Janeiro: José Olympio; São Paulo: EDUSP, 1968. __ . Euclides, Capistrano e Araripe. Rio de Janeiro: MES, 1959 . . O processo da descolonização literária. Rio de janeiro: Civi!ização Brasileira, 1983. GARRETI, Almeida. Parnaso Lusitano. Paris: J. P. Aillaud, 1826. MOREIRA. Maria Eunice. Nacionalismo Literário e Crítica Romântica. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1991 , PILLAR, Thanira Chayb de. A literatura na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro de 1839 a 1869. Letras de Hoje. V.31, no. 4. Porto Alegre: EDIPUCRS, dez./1996, p, 37-40. 118 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: INL-MEC, 7a. ed .. 1980, 5v. SILVA J. M. Pereira da. Parnaso Brasileiro. Rio de Janeiro: Laemmert, 1843, 2 tomos. SILVA Joaquim Norberto de Sousa & ADET. Emílio. Mosaico Poético. Rio de Janeiro: s.ed., 1842. VARNHAGEN, Francisco Adolfo. Florilégio da Poesia Brasileira. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 198 7, 3 tomos. VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969. LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 119 A VIOLÊNCIA CONSTITUTIVA: NOTAS SOBRE AUTORITARISMO E LITERATURA NO BRASIL Jaime GINZBURG UFSM Dedicado a Celso Pedro Luft Forma e história Existe uma relação direta entre a fragmentação formal em obras literárias na modernidade e uma série de processos histórico -sociais que atingiram profundamente as relações entre os seres humanos e abalaram a concepção clássica de sujeito. Dessa relação, discutida de diferentes modos por Theodor Adorno, Erich Auerbach e George Steiner, entre outros. tentaremos examinar aqui um aspecto em particular - a desumanização. Karl Erik Schollhammer propõe que no Brasil "a violência aparece como constitutiva da cultura nacional, como elemento 'fundador'" (SCHOLLHAMMER: 2000, p.236-7). Dedic-'ldo a entender a literatura brasileira contemporânea. o autor propõe a representação da violência como eixo para entendimento de sua caracterização formal e temática. A compreensão sistemática das representações da violência na literatura brasileira mereceu estudos de elevada relevância. Entre os mais recentes, cabe destacar o belo estudo de Francisco Foot Hardman LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 121 "Visões da guerra: o Brasil na crise da civilização" (HARDMAN: 1998), em que o autor mostra a recorrência do tema, resgatando de modo oportuno o trabalho do escritor Alberto Rangei. O estudo de Hardman, articulando textos e contextos, motiva a reflexão e ajuda a medir a necessidade de estudar as relações entre violência e literatura no Brasil. Alguns escritores fundamentais da literatura brasi !eira moderna elaboraram suas representações da condição humana acentuando seu caráter problemático e agônico, em acordo com o fato de que, no contexto histórico brasileiro, a constituição da subjetividade é atingida pela opressão sistemática da estrutura social, de formação autoritária. Sendo abalada a noção de sujeito, em razão do impacto violento dessa opressão, é abalada também a concepção de representação. Esta se fragmenta, exigindo do leitor a perplexidade diante das dificuldades de constituição de sentido, tanto no campo da forma estética, como no campo da experiência social. As representações da História, nesses escritores, resistem à acomodação em lógicas lineares causais, ou a esquemas positivistas, incorporando contradições e indeterminações, e se aproximando do que Benjamin propunha como uma representação da História como sucessão de catástrofes, como ruína. Esses autores, ao lado de outros (rTlOS diíerentemente âe outros), estiveram atentos ao quanto há de violência, injustiça e agonia na sociedade brasileira, e trouxeram a problematização âo externo para o interno, atingindo assim a forma de suas criações [CANDIDO: 1980, 7). Não temos condições de demonstrar adequadamente, no espaço deste artigo, como podemos perceber as profundas marcas do autoritarismo e da violência do país em textos desses escritores, optando por formular a hipótese em linhas gerais, para um desenvolvimento posterior. 122 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). A violência brasileira Paulo Sérgio Pinheiro, José Antonio Segatto, Oscar Vilhena Vieira, Emílio Dellasoppa, José Vicente Tavares dos Santos e Cláudia Tirelli elaboraram estudos sobre a formação social brasileira em que ressaltam a presença constante de elementos de autoritarismo. Nesta parte do artigo, é feita a transcrição de alguns trechos fundamentais de suas reflexões, procurando encontrar entre eles uma articulação. A leitura desses trabalhos leva à percepção de que as práticas autoritárias, associadas à violência e ao reforço das desigualdades sociais, são matéria básica de nossa constituição social: É necessário definir aqui o conceito de autoritarismo. Entendemos o conceito, para efeito deste trabalho, do seguinte modo. O autoritarismo é uma caracterização de um regime político em que existe um controle da sociedade por parte do Estado, que manipula as formas de participação política e restringe a possibilidade de mobilização social. Nesse quadro, existe interesse político na cooptação dos intelectuais; a administração pública é apresentada como um bem em si mesmo, ao servir ao interesse do Estado; o setor militar desempenha um papel decisivo na manutenção da ordem. Em formas extremas, como o totalitarismo, o regime autoritário institui um partido único e reprime com rigor manifestações de contrariedade (SCHWARTZMAN: 1988; LAMOUNIER: 1981 ). A modernização no Brasil trouxe mudanças próprias do sistema capitalista, promoveu o desenvolvimento das cidades e alterou as LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 123 estratégias de obtenção de renda. No entanto, ela ocorreu dentro de uma política de elites, dotada de lógica de dominação, constituída na política oligárquica, e herdeira da exploração colonial. A reificação crescente das classes de baixa renda, no mundo do mercado, foi acompanhada de uma desumanização no plano dos conflitos entre indivíduo e Estado, estando o indivíduo em posição de fragilidade diante das práticas autoritárias do aparelho estatal. Entre a violência da criminalidade, associada à desigualdade social, e a violência institucional, exercitada pelo poder público, a população brasileira acompanhou o processo de modernização do país com incerteza e ansiedade, sendo submetida a várias formas de manipulação ideológica, em nome do bem da ordem social. De acordo com Paulo Sérgio Pinheiro, Um dos traços da especificidade do caso brasileiro é a extraordinária longevidade da cultura e das práticas autoritárias, independentemente, como já dissemos, da transformação do regime político ou da complexidade crescente do passado. [... ) Gerard Lebrun mostrou que nunca houve aqui uma ruptura com o antigo regime: o absolutismo colonial se transformou simplesmente no absolutismo das elites. E sobreviveu à abolição da escravatura uma total assimetria entre dominador e dominado: 'A ordem civil se transforma, 'patrão' conseNa muito de 'senhor em sua condição de cidadão, e o trabalhador [livre ou semi-livre ... ) é um cidadão de categoria tão ínfima que possui algo de 'escravo' em potencial e muito pouco de cidadão' [... ) O caso do Brasil mostra que o autoritarismo e o arbítrio podem persistir apesar da abertura democrática, das eleições e da reforma constitucional. A tortura sistematicamente administrada persiste nas delegacias de polícia em todo o país[ ... ) [PINHEIRO: 1991, 52-3) 124 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS]. As práticas autoritárias teriam origem no passado colonial e imperial, havendo continuidade no período republicano, em que ocorre a modernização capitalista. Nesse sentido, cabe lembrar Oscar Vilhena Vieira: A modernização económica, diferentemente do que se esperava, não foi capaz de alterar essa situação e produzir um Estado de modelo liberal, protetor de direitos (Faoro, 1989). Como nota Florestan Fernandes, em A revolução burguesa no Brasil, o padrão de dominação de cada um dos períodos da história brasileira não foi suprimido quando do florescimento de uma nova ordem económica dominante. Pelo contrário, os padrões de dominação dos períodos anteriores foram sempre absorvidos pela elite insurgente que em hipótese alguma eliminou a precedente; havendo o que se poderia denominar uma conciliação entre a velha e a nova elite, para que fosse possível a convivência de dois modelos económicos sem a necessidade de destruição do antigo padrão de dominação. Esse caráter conciliatório das elites brasileiras, descrito por Michel Debrun (Debrun, 1983), aponta um importante caminho na compreensão da manutenção do enorme hiato existente entre as classes, na esfera económica ou política, e conseqüentemente entre direito e realidade material do poder. Sob esse signo da conciliação e do patrimonialismo, perdura um Estado que mantém relações ambíguas com a sociedade: autoritário e violento para com a grande maioria da população; dócil e transigente aos interesses das elites" (VIEIRA: 1991, 90) Em reflexão afim à de Pinheiro, Vieira propõe a continuidade das práticas políticas de elites no Brasil em termos de uma dinâmica de alianças. Os processos de transformação social, nesse sentido, são epidérmicos e acabam conservando estruturas. A lógica de exercício de práticas autoritárias no país permanece, estando presente mesmo em contextos considerados democráticos. Para compreender a permanência dessas práticas, é preciso considerar a vida social em LETRAS. Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 125 perspectiva cotidiana, em que encontramos os "microdespotismos", práticas autoritárias exercidas em relações sociais públicas e privadas. Tudo indica que os governos autoritários foram tão bem sucedidos, por um período tão largo, ao simplesmente exacerbarem, com sustentação sociaL certos elementos autoritários presentes na cultura política do Brasil (... ) Para se compreender os percursos através dos quais o autoritarismo socialmente implantado é engendrado - desde aquelas longínquas origens históricas - e se reproduz, é essencial reconstituir a rede de microdespotismos nos mais variados contextos sociais: violência familiar, discriminação raciaL violência contra a mulher e a criança, justiceiros, linchamentos [PiNHEiRO: 1991, 55-6) Como Pinheiro, Segatto traça uma linha de continuidade que contempla o conjunto de nossa formação, incluindo a experiência colonial, o império escravista e o período republicano. Essa continuidade é sustentada pela presença firme do exercício do autoritarismo, em variadas formas, na vida política. Esse exercício é articulado, segundo Segatto, pela aliança entre o Estado e a classe dominante. Durante o período colonial, o governo de Portugal desenvolveu a política exploratória responsável pela dizimação de tribos nativas. A escravidão representou um exercício sistemático e calculado de coerção pela violência, sendo o governo brasileiro sustentado, durante o império, por essa coerção. No período republicano, tivemos no Estado Novo e na ditadura militar recente períodos de intensa intervenção da política autoritária na vida social. Para dizer de maneira breve, de modo geral, de acordo com Segatto, a política de orientação autoritária tem um papel importante na definição de nossas relações sociais. 126 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS]. Há um certo consenso na historiografia segundo o qual o processo histórico brasileiro caracterizou-se por ter sido marcadamente excludente e autoritário. (... )O Estado no Brasil, independentemente das formas e composições que assumiu nos diferentes momentos e períodos (Monarquia e República; impertal. oligárquico, corporativo, ditatorial. etc) tem ao longo da história uma característica essencial comum: de se impor autaritariamente sobre a sociedade civil. (... ) Um processo histórico marcado pela ausência de mudanças bruscas e radicais nas formas de dominação política e de acumulação de capital. ou melhor, pela ausência de transformações revolucionárias que envolvessem o conjunto da sociedade nacional. mas é, ao contrário, assinalado pela conciliação entre frações ou grupos da classe dominante, por meio de reformas "pelo alto", excluindo das decisões políticas a grande massa da população. (... ) a classe dominante sempre procurou rearticular e reorganizar as formas de dominação política e acumulação de capital para fazer frente aos crescentes antagonismos e contradições sociais que se acumulavam. como. também. para impedir que as classes subalternas subvertessem a ordem vigente e, ainda, para truncar sua participação no processo político. (SEGADO: 1999, p.201-2 e 214) É imprescindível referir neste ponto ao ensaio de Antonio Candido, de 1979, intitulado "Censura-violência". Nele, Candido mostra sua forte preocupação com a violência social, seu respeito pelo levantamento feifo pelo historiador Edgard Carone da "sucessão ininterrupta de ferocidade. numa cadeia de chacinas. conflitos sanguinolentos. inteNenções armadas cheias de selvageria" que encontramos em nossa formação social (CANDIDO, p.205), e que nos afasta da imagem de "um Brasil pacífico por natureza, cordato e generoso" (idem, p.204). Emilio E. Dellasoppa elabora uma articulação entre autoritarismo e violência no Brasil, a partir de estudos de Guillermo O· Donnell. O autor relaciona a persistência do autoritarismo no país e a ampla difusão da violência no corpo social. LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS]. 127 A magnitude do autoritarismo socialmente implantado no Brasil assume características tais que para O' Donnell de alguma maneira impermeabiliza o estado autoritário contra os embates dos [pequenos) grupos que o enfrentavam desde o projeto da revolução ou da simples contestação [... ) para O' Donnell a violência aparece no tecido da sociedade brasileira com características protopolíticas, expressão multifacetada de uma ordem imposta na;; favelas, na pobreza, no desemprego, no inexistência ou descumprimento dos direitos trabalhistas [... ) [DELLASOPPA: 1991, 81) Uma contribuição importante em sentido semelhante é dada por José Vicente Tavares dos Santos e Cláudia Tirelli, que articulam autoritarismo e violência ao problema da cidadania no país: A explicação histórica para a impossibilidade de se estabelecer no sociedade brasileiro o cidadania plena pode ser buscada na herança social, marcada pelo extrema hierarquização social e por um forte autoritarismo de Estado, elementos ainda hoje influentes na desincompatibilização entre o poder político e a participação social. Como conseqüência, persistiria no Brasil uma organização hierárquico da sociedade, tolhendo a igualdade de tratamento dos indivíduos no plano legal e reinvindicotório, e um autoritarismo, que reprime os manifestações das classes subalternos por vê-los como um risco para a ordem pública. Essa situação indico que estão em vigor mecanismos os mais de hierarquização, sem que haja discriminatórios reciprocidade. A violência entraria como o recurso eficaz paro assegurar a hierarquização presente no sociedade brasileira, na falto de uma outra base consensual. [SANTOS & TIRELLI: 1999, 115) Rosani Ketzer Umbach nos alerta para o fato de que, no século XX, encontramos experiências de autoritarismo em regimes militares em diversos países na América Latina, assim como na Europa. Segundo a autora, é comum aos regimes autoritários a constituição de estruturas de governo que monopolizam armas, economia, imprensa, e procuram 128 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). controlar ideologicamente as ações individuais. Faz parte do exercício do autoritarismo a realização de ações de repressão violenta, dentro dos interesses do Estado. As opiniões de Pinheiro e Segatto, somadas às idéias de Regina Célia Pedroso (PEDROSO: 1999), nos levam a crer que, para além dos períodos explicitamente caracterizados por políticas autoritárias, encontramos um processo histórico, em seu conjunto, marcado pelo autoritarismo. Isso significa que, ao examinarmos um período tido como mais democrático - os anos 50, ou a atualidade, por exemplo - cuja consolidação ocorreu em regimes autoritários, ou à custa de repressão. O tema foi desenvolvido de maneira brilhante por Paulo Sérgio Pinheiro, em "Autoritarismo e transição". Examinando as conseqüências dos regimes autoritários no Brasil no século XX, Pinheiro explica que, após seu término, o governo autoritário deixa com o legado "resíduos autoritários( ... ) no nível ideológico e no nível das práticas( ... ) podemos ter mudanças no quadro político institucional sem que a cultura política, por exemplo, seja afetada. No âmbito da cultura e da ideologia o movimento de reprodução dos elementos do legado limita as possibilidades de transformação" (PINHEIRO: 1991, 47) É importante, para compreender especificamente a atualidade, a observação de que "os 15 anos da ditadura Vargas foram decisivos para a consolidação de um padrão autoritário de interação entre o Estado e a sociedade que persiste de certa forma ainda hoje" (REIS: 1998, 194). Em um sentido mais abrangente, nosso passado colonial, escravista, patriarcal, calcado em ações de repressão e violência - cobiça, para LETRAS- Revisto do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (RS). 129 usar o termo cunhado por Paulo Prado nos anos 20 (PRADO: 1962) - é o solo sanguinolento em que construímos nossa glória. A história como trauma Com base nas reflexões conceituais sobre História da Escola de Frankfurt, em oposição aos modelos positivistas comuns no país, cabe procurar caminhos de interpretação da formação social brasileira que consigam ultrapassar as distorções criadas pelos idealismos ufanistas, e pelas linearidades ideologicamente construídas com fins conseNadores. Como estabelecemos a literatura brasileira moderna como horizonte, destacando a fragmentação formal e apontando a conexão desta com a interiorização de conflitos existentes na realidade externa, se faz necessária a definição de parâmetros de análise para mediar essa conexão. A fragmentação se tornaria adequada para a representação na realidade, na medida em que as seguintes condições fossem satisfeitas: o entendimento do processo histórico é problematizado, pela sua complexidade e por seu impacto, de modo que a consciência humana, em condições convencionais, não tem como dar conta de sua profundidade, exigindo novo modo de pensar e representar: o sujeito (narrador ou sujeito lírico) que enuncia a representação, por estar em um contexto de autoritarismo e opressão, tem sua individualidade atingida, sua integridade dilacerada, e sua expressão deixa marcas das fraturas provocadas pelo contexto. O abandono das estruturas tradicionais - a narrativa com tempo linear, enredo articulado logicamente, personagens planos ou coesos, o 130 LETRAS - Revista da Cursa de Mestrado em Letras da UFSM (RS). poema com metro regular, esquema de rimas, sintaxe culta - em favor de uma concepção fragmentária, com a subversão das referências de tempo e espaço, a adoção de verso livre, a representação de uma subjetividade frágiL inconstante e freqüentemente paradoxal, corresponde a uma mudança, por parte de escritores dedicados à atitude crítica, no modo de perceber o sentido da História. Perde -se a noção de totalidade, abandona -se a idéia de progresso. Em seu excelente ensaio "A história como trauma", centrado na reflexão sobre a literatura que tematiza o Holocausto, Márcio Seligmann Silva desenvolve uma apurada discussão conceituai. Gostaria de recuperar e comentar alguns tópicos examinados pelo autor. Seligmann obseNa, no campo das formas literárias, a tendência moderna à consolidação de gêneros híbridos, em lugar dos tradicionais gêneros puros. De modo correlato, no campo reflexivo, o desenvolvimento de um questionamento a respeito da própria noção de verdade. Em ambos os casos, a noção de representação da realidade é abalada em seus fundamentos. Os moldes tradicionais de entendimento da linguagem são postos em questão. Para Seligmann, esse processo de problematização da noção de representação está associado à presença do choque na vida moderna. O problema toma dimensões abrangentes, e mesmo extremas, quando encaramos, no século XX, a realidade como marcada pela experiência da catástrofe. Esse assunto foi ricamente explorado por Eric Hobsbawm, que levantou um enorme repertório de experiências dolorosas em sua avaliação do século XX, e explicou com rigor o que foi "a era da guerra total". As novas tecnologias foram apropriadas pela barbárie - "Uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso LETRAS -Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 131 desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem" (BENJAMIN: 1985, 115). A utilização do conceito de catástrofe por Hobsbawm e por Seligmann é da maior importância. É uma perspectiva colocada para o interpretação do passado histórico do ocidente, quando centramos o olhar no fato de o Holocausto ter sido possível e efetivamente acontecido. A forma radical de extermínio foi de um impacto tão intensamente violento que, quem tentasse representá -lo em moldes tradicionais, estaria reduzindo-o a um objeto de representação com estatuto de experiência assimilável. O problema reside em que, de fato, não há como assimilar uma experiência como essa sem sofrer seu impacto, e ter abaladas as bases de nosso pensamento, tão dedicado à acomodação das coisas em lógicas lineares. É precisamente o espanto com o singularidade do Holocausto, o preservação da perplexidade, que nos impede de banaliza-lo e torná-lo cotidiano. Se é verdade, considerando George Steiner, que há nas inter -relações humanas uma irrefreável pulsão à guerra, o uma afirmação de si pela destruição do outro, o esforço em pensar a violência sem banalizar, sem recair na reprodução de modelos autoritários ou preconceituosos, é imprescindível paro a preservação de valores civilizatórios. A perplexidade, freqüentemente melancólica, nos assegura a possibilidade de pensar um mundo em que a subjetividade está abalada e oprimida em uma perspectiva que formule a possibilidade da transformação da realidade, e não da consolidação da opressão. Para expressar com a devida intensidade essa perplexidade, é necessário manter a perspectiva de que no Holocausto há um excesso, uma desmedido, cujos parâmetros não podemos calcular ou padronizar, que estão paro além de qualquer medida tolerável de dor, e de LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS]. qualquer escala racionalizável de desumanização. Representar a experiência da catástrofe em proporções tais como as que a História nos mostrou no século XX implica, necessariamente, uma renúncia aos modos convencionais de representação, pois estes seriam incapazes de preservar a singularidade da experiência e a perplexidade que deve acompanhá-la. O questionamento dirigido ao estatuto da linguagem, dos modos de representação e das formas artísticas tradicionais está ligado a uma busca de renovação da expressão. Seligmann observa que a "incapacidade de recepção de um evento que vai além dos limites da nossa percepção e torna-se, para nós, algo sem-forma" constitui o trauma, de acordo com a psicanálise (SELIGMANN: 1998/9, p. 116-7). Em um mundo marcado pela experiência radical de destruição, o trauma se torna um elemento constitutivo da formação social. Por ultrapassar nossos mecanismos de absorção e atribuição de legibilidade aos eventos, o trauma ultrapassa nossas referências de concepção de forma. O problema psicanalítico se torna, na reflexão do autor, um problema estético. Com o trauma, perdemos a "capacidade de discernimento entre o real e o irreal" (p. 122), vendo nossa consciência posta em crise de sustentação. Decorrência natural disso é a condição melancólica, que resulta da experiência dolorosa de perda, cujos limites, no campo coletivo, são inexatos e indeterminados. Na Europa, assinala Márcio, a poética de Paul Celan formula esse dilema. A perda humana do Holocausto, jamais superáveL leva escritores a romper com as estruturas convencionais de representação, a suspender as referências de delimitação da realidade, e a refletir melancolicamente. LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 133 A motivação histórica da fragmentação Na medida em que compreendemos o papel preponderante do autoritarismo e da violência na formação histórica brasileira, somos levados a questionar a sua importância para as concepções estéticas e literárias surgidas em nossa cultura. Trazendo para o campo brasileiro alguns dos pontos levantados por Márcio Seligmann -Silva, podemos propor o seguinte. A experiência crua do passado violento e autoritário, incluindo os massacres da inquisição, o escravismo exploratório, a repressão patriarcaL constitui uma série de traumas, no sentido social discutido por Seligmann. Sua constância e complexidade nos coloca, com certeza, diante da perspectiva da realidade como catástrofe, de história como ruína. A argumentação de Renato Janine Ribeiro sustenta a interpretação da história do Brasil com ênfase em seu componente traumático. O Brasil. já o comentei em outro lugar, pode ser dito um país traumatizado. Ele jamais ajustou contas com duas dores terríveis, obscenas, a da colonização e a da escravatura. A condição colonial significou viver na mais franca heteronomia, sem o autogoverno que nas partes inglesas do continente então se praticava, e na mais decidida ignorância, sem o ensino universitário, que nas regiões hispânicas da América se ministrava, e tudo isso como uma terra destinada ao esgotamento de sua natureza mineral: sofreu. pois a predação do invasor português. Já a escravatura desdobrou ou completou a obra da colonização: o fisicídio, se assim podemos chamar o assassinato da natureza, e a heteronomia colonial exigiram também que o trabalho fosse praticado sob o modo do esgotamento e da destituição, no caso, do negro africano. Ora, nosso problema não é apenas que cenas primitivas como estas se tenham produzido, e reiterado, ao longo de nossa história; é que elas nunca tenham sido 134 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). realmente elaboradas e extirpadas de nosso caráter. Daí que se repitam, compulsivamente, até hoje. (RIBEIRO: 1999, 11) Seguindo Theodor Adorno, sabemos que antagonismos da realidade se apresentam em obras de arte como antagonismos formais. Elementos como hibridismo de gêneros, relativização da verdade, problematização ·da linguagem, perplexidade diante do objeto tratado serão fundamentais para indicar, no interior das formas literárias, a percepção dificultada e melancólica da realidade violenta e traumática. Para a pesquisa literária, é necessário o desafio de verificar como, nas formas contradições, literárias, encontramos lapsos, subversões de convenções, descontinuidades, rupturas com gêneros tradicionais, questionamentos a respeito da capacidade comunicativa e expressiva da literatura. Devemos redobrar a atenção sobre esses elementos quando interessam não com fim em si mesmos, como experimentos formais, mas quando associados a temas que, direta ou indiretamente, digam respeito ao impacto brutal da violência social. Alguns dos maiores escritores brasileiros se dedicaram a lidar com temas referentes a experiências de autoritarismo, violência e opressão. E alguns dentre eles abdicaram da perspectiva realista, que faz supor, conforme lan Watt, uma capacidade de compreensão do objeto representado, em parâmetros documentais e/ou racionais. Em vez dela, procuraram tensionar o limite entre realidade e imaginação, subverter parâmetros tradicionais, apontar ambivalências da linguagem, pautar a representação em contradições, romper, enfim, com os padrões tradicionais de entendimento da consciência e da linguagem. Em Machado de Assis, por exemplo, a narrativa de ficção vai se constituir em meio a uma problematização do ato de narrar, em LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). 135 consonância com a problematização do sujeito em um contexto desumano. Como explica claramente Antonio Sanseverino, seguindo as reflexões de Walter Benjamin, "o mundo administrado e estandardizado acaba com a unidade, com a experiência individual. O que rege é a abstração da mercadoria, da falsa universalidade. Assim, no romance contemporâneo, (... ) a ilusão é quebrada pela variação de posturas do narrador, que introduz o leitor na construção do discurso ficcional". A representação deixa de lado a "aparência de totalidade sem fissuras" e o conduz à expressão da cisão das relações entre o sujeito e o mundo empírico (SANSEVERINO: 1999, 131 -2). Caem as máscaras do realismo de fachada, caem as acomodações, e são expostas as descontinuidades da subjetividade cuja constituição foi atingida, em seu cerne, pela opressão da História. Como mostra João Alexandre Barbosa (BARBOSA: 1982), as conquistas de Machado de Assis serão retomadas e transformad as por vários de nossos maiores ficcionistas. Assim, alguns elementos da narração de Memórias póstumas de Brás Cubas, como a incerteza sobre o sentido do que se conta, a subversão da linearidade temporal, a heterogeneidade de tons e a atenção ao interlocutor, serão fundamentais em Grande sertão: veredas. A problematização da capacidade da memória surge em Drummond e em Graciliano Ramos. A quebra da ilusão tradicional da representação vai se tornar um elemento estratégico, no século XX, em termos brechtianos (PASTA: 1986), para a ação da consciência crítica, desvelando aparências e mascaramentos ideológicos. O processo de abalo das concepções tradicionais de representação da modernidade é amplo. A fragmentação das formas 136 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). literárias tradicionais é constante, no mínimo, desde o Romantismo, isso sem mencionar antecedentes importantes. Sem pretender contemplar todas as dimensões desse processo, cabe apontar, em linha proposta por Theodor Adorno, uma motivação histórica que contribui como um fator de aumento de sua difusão e complexidade. Isso importa sobretudo nos casos, dentro da literatura brasileira, em que as explicações que se baseiam em adoção de influências se esgotaram, mostrando sua insuficiência. Machado de Assis leu Sterne, Guimarães Rosa conheceu Goethe, mas suas formulações estéticas de modo algum se reduzem a reproduções passivas de modelos, pois são desenvolvidas em contextos específicos, e se vinculam a problemas histórico -sociais que não equivalem aos conhecidos pelos escritores europeus. Podem existir escritores que adotaram a fragmentação formal apenas por idolatria de um escritor estrangeiro, ou por uma atitude de vanguarda, como puro experimento formal. Não são esses escritores que interessam aqui. Interessam aqueles capazes de refletir, dentro da produção literária, problemas que constituem prioridades no âmbito social. A motivação histórica a que nos referimos consiste na experiência da formação social calcada em autoritarismo e opressão, que contribui sistematicamente para a desumanização. A violência teve um papel fundamental na formação social norte-americana, assim como na alemã, na indiana. No entanto, é necessnrio, para os fins desta reflexão, lidar com o caso brasileiro sem generalizar - vincular o modo particular como ela se desenvolve no Brasil, e articular com os modos particulares como repercute na criação literária. Cabe ressaltar, mesmo considerando uma dimensão ocidental do fenômeno, a especificidade da desumanização no país. A crise do sujeito, no Brasil, não se dá nas LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 137 mesmas condições nem pelas mesmas razões que se dá em países europeus. A constituição do sujeito, contextualizada na formação social brasileira, é abalada desde suas bases pelo solo violento e destrutivo em que se desenvolve. Questão aberta A desconfiança com relação à linguagem, a suspeita resultante do reconhecimento de "desarticulações entre representação e realidàde", é consolidada no Brasil a partir de Machado de Assis, cuja ficção fragmentária, que inclui paradoxos e descontinuidades internas, foi indispensável para "almejar uma configuração mais complexa da realidade psicológica, social e histórica que o autor conseNa em seu horizonte" (BARBOSA: 1982, 25). A fragmentação da forma narrativa, em livros como Grande sertão: veredas, se vincula com a problematização, por parte do narrador, da possibilidade de entender uma experiência, pelo seu grau de violência. Como afirma Riobaldo, as coisas se mexem dos lugares: a experiência, por sua complexidade e impacto, não tem seu sentido dominado pelo protagonista. No Humanitismo de Quincas Borba, a luta é o principal atributo da condição humana. Em seus relatos de infância, Graciliano Ramos insiste na exposição à violência e ao medo como dados formadores. Quando Drummond nos joga constantemente para perto do medo, Rosa nos aponta o inferno como nossa origem, Dyonélio toca no limiar da loucura, isso é feito de um modo que se apresentem marcas de um contexto 138 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). social opressor e difícil, em que as possibilidades de emancipação e liberdade individual são limitadas e questiona das. Não é casual que escritores como esses, que contribuíram de maneira decisiva para a consolidação de formas literárias modernas, tenham feito referências decisivas a opressão, violência, preconceito. A fragmentação neles surge como meio de ruptura com a linguagem reificada, com a ilusão de conhecimento objetivo total da realidade, com as convenções conservadoras de representação do processo histórico. Nesse sentido, os procedimentos formais são necessários para a possibilidade de encaminhar, a partir da leitura, reflexões de interpretação do Brasil. que se afastem dos maniqueísmos e das idealizações. e dêem visibilidade à reificação, à opressão e às práticas autoritárias. Na medida em que percebemos como a História é violenta, como o autoritarismo nos marca profundamente, como os antagonismos sociais são radicalmente difíceis, como nossa experiência não é passível de fácil entendimento, é acentuada nossa perplexidade. Ficamos perplexos porque a História pesa sobre nós como um trauma, difícil de aqsimilar, de compreender. Por isso, representa -la, considerando sua complexidade, exige uma atitude de renovação, perante as limitações dos recursos de linguagem convencionais. Encarar o processo histórico a partir do conceito de "trauma" da psicanálise nos leva, necessariamente, a avaliar nossa capacidade de compreender e representar o passado. Conhecemos traumas coletivos, sociais. Para o entendimento das relações entre Literatura e História, é fundamental considerar a importância dos traumas históricos como motivação para mudanças nos modos de representação literária, tanto na Europa como no Brasil. LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 139 O papel preponderante de políticas e estruturas autoritárias ganha nitidez quando observamos a presença impressionante da violência, sobretudo da violência a serviço do Estado, em nossa formação histórica; isso torna necessário perceber o processo histórico em termos de uma dinâmica múltipla, marcada por conflitos e antagonismos, por repressão e resistência. Lembrando Wander Melo Miranda, é apenas com o esquecimento da violência do processo da formação social que seria possível definir a constituição da nação como unidade ideal (MIRANDA: 1997, 417). Em escritores como Drummond e Graciliano, a representação do Brasii não se dó de maneira idealizada, mas permeada por "identidades e alteridades que se entrecruzam e se superpõem gerando afiliações/resistências múltiplas e não -lineares" (SCHMIDT: 1997, 7). Suas obras propõem uma forma "essencialmente adversa a qualquer movimento político que se empenha numa direção" próxima à do fascismo, sendo a "desarmonia na arte" elemento formal necessário para a compreensão da dimensão conflitiva do sujeito (ROSENFELD: 1993, 191-2). Os esforços de Machado, Dyonélio, Graciliano e Rosa, entre outros, vão abrir caminho para que a crítica e a historiografia sejam capazes de reconhecer. mais recentemente, o valor dos recursos da ficção moderna para a elaboração contemporânea, nos últimos trinta anos. Vários escritores, a partir dos anos 60, como lgnácio de Loyola Brandão e Ivan Ângelo, de acordo com Lígia Chiappini. vão encontrar formas renovadas de trazer a violência para o universo ficcional (CHIAPPINI: 1998). O distanciamento entre a experiência e as condições necessárias para seu entendimento, como foi mencionado anteriormente, é um elemento constante na produção dos autores mencionados. É também 140 LETRAS- Revisto do Curso de Mestrado em Letras do UFSM [RS). um aspecto muito importante, quando se descreve o processamento de um trauma. Aproximemos esses dois aspectos. Os modos como esses escritores representam experiências humanas, quando incidem em aproximações temáticas do autoritarismo e da violência, estão freqüentemente marcados pela fragmentação e descontinuidade formal. Esses elementos são importantes para desfazer qualquer impressão de "normalidade" que aos componentes de catástrofe da História se pudesse atribuir. Para a catástrofe, guardemos a perplexidade, a inquietação, jamais a linearidade ou a banalização. セッエ。@ do aütor: Este trabalho é üma versão ampliada e reelaborada do artigo Autoritarismo e literatura: a história como trauma, publicado na revista Vidya (Santa Maria: Centro Universitário Franciscano, 2000. n.33). Agradeço à Profa. Dra. Zília Mora Pastorello Scarpari pela oportunidade e pela atenção generosa. Este artigo foi discutido por e-mail, antes de sua publicação, com os colegas Cláudia Maria Perrone, Márcia Lopes Duarte, Márcio Seligmann-Silva e Rosani Ketzer Umbach, que trabalham comigo no Grupo de Pesquisa Literatura e Autoritarismo. Agradeço a eles pelas excelentes contribuições. E sou muito grato também ao meu colega Pedro Brum Santos, por ter me convidado para participar deste número da Revista Letras. Referências Bibliográficas ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. ln: BENJAMIN, Walter e outros. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1983. 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Considerado como manifestação de natureza plural, detentora de uma história própria, que resulta, em grande parte, de suas forças internas, e que é tanto anterior como superior à padronização imposta pela cultura de massa, o futebol incorpora um rico universo como matéria de representação literária. Em contrapartida, a possibilidade de leitura desse universo pelo viés da ficção, possibilita recuperar passagens importantes relativas a aspectos culturais e históricos que envolvem esse esporte. 1 O futebol descobre o Brasil O futebol, na versão que chegou ao Brasil, na virada do século XIX para o XX, é resultado de longo trajeto, que passou por diversas formas LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 145 de disputas, cujo ponto comum é ter como instrumento preferencial objetos esféricos. Os jogos de bola já tinham registros no antigo Egito em 2500 a. C. Mil anos depois, na Grécia e, mais tarde, em Roma, desenvolveu-se o harpastum, uma disputa coletiva que ocupava um campo de aproximadamente cem metros de comprimento com postes sinalizadores nas extremidades. Durante a Idade Média, modalidade semelhante era disputada com bola de couro, cheia de farelo e de feno, tendo ganhado adeptos na Bretanha e Normandia. Tratavam -se de jogos que reproduziam enfrentamentos bárbaros e que foram, em função disso, reiteradamente proibidos pelas autoridades do tempo. Somente na primeira metade do século XIX é que a Inglaterra regulamentou tais embates. Na oportunidade, criou-se a distinção entre o rugby (que denominamos de futebol americano) e o association footba/1 ( o nosso futebol). Depois disso, essas modalidades começaram a ser inseridas nos ensinamentos universitários. No Brasil, o futebol ingressou pelo litoral introduzido por marinheiros europeus na segunda metade dos oitocentos, até que Charles Müller, na década de 90, retornando de viagem de estudos à Inglaterra, trouxe bolas e divulgou o jogo em bases organizadas tendo por local a capital paulista. O mesmo Müller promoveu disputas entre empregados de companhias inglesas por volta de l 895 e, mais tarde, entre servidores da Viação Paulista. Surgiram, em seguida, os primeiros teams e, junto com eles, afirmaram-se clubes já existentes ou fundados a propósito, espalhando-se a organização futebolística por São Paulo, Rio de Janeiro, 146 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). Rio Grande do Sul e, em seguida, por outras capitais e cidades brasileiras 1, O incremento do futebol ocorre na época da implantação da república, do incentivo à política imigratório no Sul e Sudeste e da modernização dos traçados e dos hábitos urbanos. O início do século XX, a propósito, trouxe consigo uma onda de renovação que atingiu as maiores cidades brasileiras. Em São Paulo, abandonavam -se as ruas estreitas e de chão batido, enquanto no Rio de Janeiro os novos traçados rapidamente eram tomados por dezenas de automóveis, aos quais se puxados a burro. Com o incentivo inicial das classes dominantes, o futebol logo alcança crescente aceitação. Afinal, trazia consigo princípios organizados de disputa em moldes de fácil assimilação, era coletivo, proporcionando o envolvimento de mais gente direta e indiretamente em cada confronto, e, além disso, seus adereços de cores, símbolos e fardamentos consistiam, desde logo, em irresistível e fascinante apelo junto ao povo. A tradição de morro e de maloca, caudatária dos ritos e dos molejos afros e indígenas, encontraram no novo esporte campo fértil de desenvolvimento ..A. corrida a pé, o salto, a rasteira, bem como os atabaques e agogôs, todos convergiam para o futebol, visto tanto de dentro do campo, nas piruetas praticadas pelos atletas, como de fora, em forma de manifestações dos torcedores. Ademais, desenvolvidos em locais abertos, tendo em vista as dimensões da área de embate, os jogos eram franqueados à assistência em geral, bem como po diam se 1 Cf. ENCICLOPÉDIA BRITIANICA. s.d. São Paulo: Brittanica. v. 8. LETRAS· Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). 147 adaptar para enfrentamentos que exigiam poucos requisitos prévios da concha. Nas áreas baldias das cidades e no campo-fora dos interiores, nos pátios das fábricas, nas praças e logradouros, de modo particular entre os anos de 1920 e 1930, sob a espontaneidade do amadorismo, o futebol ultrapassa o controle clubístico e elitista que marcara sua implantação e exponde-se como manifestação popular, fazendo parelho com o carnaval na condição de tópico do identidade brasileiro 2 • Novos e antigos clubes organizam-se em torno do esporte que, cultivando legiões crescentes de torcedores, logo busca definir regimes e relações próprios de trabalho. Surge, assim, no esteira modernizante do estado getulisto do década de 30, a profissionalização do prática futebolística nacional. Nesse percurso, que vai da afirmação ao profissionalismo e seus estágios subseqüentes, o futebol, à medida que ganho adeptos, suscita formos de tratamento e enquadramento interessadas em interpretar, representar ou simplesmente reforçar suo dimensão e seu alcance no nível social dos relações e dos trocos simbólicas 3 . A literatura e o imprenso, nesse particular, manifestam -se como portadoras de espécies de textos fundadores, cuja verificação, hoje, resulta em indicações sobre os desdobramentos desse esporte entre o culto popular e a cultura de massa. ' Há reflexões sobre o tema em AGUIAR. Flávio. Notas sobre o íutebol como situação dramática. lN: BOSI, Alfredo (org.). 1987. Cultura brasileira. Temas e situações. São Paulo: Ática. 3 Ver, a propósito de trocas simbólicas. Reprodução cultural e reprodução social. ln: BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 148 LETRAS Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 2 Jornal, literatura e televisão À época da passagem do amadorismo para o profissionalismo, quando acirraram-se os campeonatos e os clássicos regionais, a crónica jornalística alcançou o tom que contribuiria decisivamente para a expansão popular do futebol. Nos anos 30, a otuação de Mário Filho no jornalismo carioca criou os bases de um estilo que, mais tarde, seria atualizodo de acordo com interesses mercadológicos que, com o tempo, tornaram-se cada vez mais imperativos para o comunicação de massa. A descrição que Ruy Castro foz do produção de Mário Filho, o irmão mais velho de Nelson Rodrigues, relativamente ao Fio -Fiu, é ilustrativa: Mário Filho apenas não inventou a siglo. Tudo o mais no Fla-Fiu moderno foi inventado por ele. Folclorizou torcedores ilustres de cada time e transformou o passado do jogo Flamengo e Fluminense numa saga. Quando escrevia sobre 'o Flo-Fiu de 1919', era como se estivesse contando um capítulo da história mundial. E, quando parecia que o interesse pelo jogo começava decair, algo acontecia que reativava seu mistério (CASTRO, 1992, p, 132). Entre os anos 30 e 60, junto com o jornal, o rádio contribuiu decisivamente como divulgador do entusiasmo despertado pelos clubes e pelas disputas. Esse é um período em que o profissionalismo do futebol brasileiro apresenta muitos resquícios de amadorismo. Os jogadores, mesmo os mais consagrados, vivem modestamente e dedicam -se, por toda o profissão, a um único clube. Assim, durante uma época que ainda não havia acordado para as potencialidades do futebol como LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM mercadoria, o jornal e o rádio divulgam -no da forma que melhor sabem fazer tudo o que se propõem a divulgar, isto é, ao sabor do improviso. Após a Copa do Mundo de 1970, com o incremento capitalista verificado em nações emergentes, o Brasil, tricampeão no México, molda-se aos imperativos que transformaram o futebol em poderoso instrumento de morketíng, destinando aos craques dos grandes clubes os brilhos e riscos que são comuns aos astros do show business. Como outras práticas populares, diante das leis de mercado, o futebol perde a espontaneidade própria de suas fases iniciais. A televisão, como o mais acabado veículo de manipulação dos interesses mercadológicos, passa a funcionar como uma espécie de agente ao qual são submetidos os jogos e, por conseqüência, o público. As grandes redes pagam aos clubes e ligas para poderem decidir inclusive sobre locais, datas e horários das partidas. Alimentada pelo discurso grandiloqüente da mídia, já que as práticas que têm na televisão uma espécie de carro -chefe, também se reproduzem nos veículos tradicionais, como o rádio e o jornal - a maioria, hoje, submetida aos interesses económicos e financeiros que orientam a comunicação de massa - cada torcida de grande clube paga mais na proporção em que o time ganha mais, e ganhar mais significa mais espaço na mídia e mais jogos, já que a boa classificação em um campeonato leva necessariamente à disputa de um outro, num ciclo que se renova e se reforça a cada vez, monopolizando os calendários futebolísticos em torno dos grandes. A relação do torcedor com os jogos também fica alterada num outro ponto em função das manobras operadas pela cultura de massa. Trata-se da domesticação promovida pelas transmissões ao vivo da 1V. A !50 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). começar, que essa é uma prática que afasta torcedores dos estádios, algo que funciona não apenas em relação ao que está sendo transmitido, mas também a jogos que estejam acontecendo nos locais onde o sinal é captado. Boa parte da torcida se acomoda, perde o gosto de sair, deixa-se ficar em casa e colabora para substituir o calor e a discussão. próprios das disputas, por um embate acético, próximo ao do vídeo-game. A transmissão televisiva reduz a riqueza de um jogo a truques de imagens computadorizadas e a um verdadeiro xadrez de estatísticas. Os planos táticos, a cultura das torcidas, a história, os lances duvidosos, as riquezas de detalhes dos antecedentes e, em especiaL dos conseqüentes do jogo, tudo isso cede aos imperativos do padrão televisivo, que se esforça para transformar os embates em uma série de seqüências previstas como se fossem partes um programa de auditório. Malgrado o triunfo de aspectos que têm retirado do futebol brasileiro muito do caráter espontâneo que, no passado, contribuiu para fixar sua popularidade, é necessário destacar que, por outro lado, o jornal. nos moldes propagados por Mário Filho e pelo irmão Nelson, consagrou uma forma especial de focalizar esse esporte, a qual não se esgota nos modelos da massificação. Trata-se da feição literária que ambos ernprestorarn à crónica esportiva, algo que, desde então, cooperou para afirmar a temática do futebol entre escritores de ofício como Paulo Mendes Campos, Femando Sabino, Luiz Vilela e Sérgio Sanf Anna, seguindo, assim, o exemplo do desbravador Antonio de Alcântara Machado, ficcionista do modernismo que já havia dado trato literário à matéria. LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). !51 3 Recortes da ficção Antes que o jornal consagrasse um estilo próprio para se referir ao futebol, e que a própria literatura por ele se interessasse como matéria de representação ficcional, foram autores literários que chamaram atenção para a disputa, vendo-a com reservas. A primeira restrição que a prática futebolística sofreu, após sua implantação no final do século XIX, manifestou-se através de escritores que o acusaram de ser estranho às origens brasileiras, fonte de alienação para a juventude e opoltunidade para brigas e discórdias. Essa última é a principal preocupação expressa por Lima Barreto na década de 1920, ironizando aqueles que defendem o novo espolte pelo desenvolvimento da saúde física que proporciona aos jovens. Barreto, cuja ficção costuma gracejar do feitio excludente afiançado pelo modelo de desenvolvimento brasileiro, utiliza -se de expressão questionadora ao reproduzir, num estilo de crónica jornalística, flagrantes de disputas futebolísticas: "No Rio, não há domingo em que esse extraordinário jogo, tão zoologicamente executado com os pés, não mereça a consagração de barulhos, rixas e conflitos, em todos os campos da cidade" (BARRETO, apud RAMOS, 1990, p. ll ). No fecho da crónica, mantendo o tom irónico, o escritor reproduz final de conferência pronunciada pelo hipotético Doutor Francoso Hell Jacuencanga, no salão nobre da Liga Metropolitana dos Troncos e Pontapés (referência jocosa à Liga Metropolitana de Footba/1, fundada no Rio de Janeiro em 1905), em defesa da prosperidade e das vantagens oriundas do futebol e com a セウー・イ。ョ￧@ de que "os players se façam também políticos, a exemplo do que fi zerom os sportmen de jogos 152 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). antigos de ligeireza e golpes singulares" (Idem, p. 15). Tudo isso, no transcrito pronunciamento do conferencista, para que "o footbo/1 preencha plenamente o seu destino superior' (Idem, p. 15). O narrador, após as transcrições e de acordo com as intenções irânicas do texto, arremata: "houve uma prolongado salva de palmas e um começo de rolo. Alguns footba/lers quiseram agredir um cronista esportivo: mas ficou só em ameaça. Ainda bem". (Idem, p. 15). As ironias de Lima Barreto podem ser vistas, não exatamente como uma manifestação genuína do escritor contra o advento do futebol, mas, algo que é típico em suas posições e produções, como uma reação a uma prática que tinha a simpatia de moços de elite, entre eles alguns classificados como intelectuais e até escritores praticantes 4 . A contrariedade que se manifesta em Graciliano Ramos, à altura dos anos 30, alcança, de outra parte, um fundamento que explicita uma profunda compreensão preservacionista dos valores regionais, no sentido de que não sejam tragados pela voragem empreendida pela denominada civilização. O ficcionista alagoano observa, em crônica a respeito do assunto, que nas grandes cidades geram -se ambientes que permitem a absorção do alienígena como matéria de esnobismo ou de hedonismo: "nas cidades os viciados elegantes absorvem o ópio, a cocaína, a morfina. [... ] ... assiste-se, cochilando, à representação de peças que poucos entendem, mas que todos aplaudem ao sinal da claque" (RAMOS, apud RAMOS, 1990, p. 27 -29). Para Graciliano Ramos, o que não se justifica é a entrada do futebol nos interiores do Brasil, cuja ' No Rio de Janeiro, notadamente escritores pertencentes ao grupo Dinamista, de inspiração Modernista, muitos deles oriundos de uma tradição beletrlsta do neoslmbolismo dos anos 10, eram ligados às diretorias dos recém-fundados clubes de LETRAS- Revista do Cursa de Mestrado em Letras da UFSM (RS). cultura é genuína e assim deve ser preservada. Daí sua exortação aos jovens no sentido de que desenvolvam os músculos com práticas que conhecem e que recebem dos antepassados, sem procurar esquisitices que "têm nomes que vocês nem sabem pronunciar" (idem, p.29): Reabilitem os esportes regionais, que aí estão abandonados: o porrete, o cachação, a queda-de-braço, a corrida a pé, tão útil a um cidadão que se dedica ao arriscado ofício de furtar galinhas, a pega de bois, o salto, a cavalhada e, melhor que tudo, o cambapé, a rasteira (Idem, p. 29). As posições expressas por Lima Barreto e Graciliano Ramos encaram o futebol como algo vindo de fora e que se transfomara em modismo sob o patrocínio da ascendente burguesia nos maiores centros urbanos brasileiros entre as décadas de 1910 e 1920. Ramos chega mesmo a vaticinar: "com exceção, talvez, de um ou outro tísico, completamente impossibilitado de aplicar o mais insignificante pontapé a uma bola de borracha, vai haver por aí uma excitação, um furor dos demônios, um entusiasmo de fogo de palha capaz de durar bem um mês" (Idem, p. 24). Enganava-se o autor de Vidas secas, subestimando a força catalisadora do futebol. Lima Barreto e Graciliano Ramos, ao expressarem pontos de vista que desqualificam o futeboL taxando-o de modismo, acabam, sem o desejar, indicando uma forma adequada de emprestar trato ficcional à matéria. Tal como se verifica nas considerações desses primeiros cronistas ilustres, o vezo, o olhar oblíquo, atravessado, vão se constituir, ao futebol. Cf. MOREYRA. Alvaro. 1989. As amargas não ... Porto Alegre: IEL e lN MEMORIAM DE FELIPPE D'OLIVEIRA. 1933. Rio de Janeiro: Soe. Felippe O' Oliveira. !54 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS]. longo do tempo, nos modos consagrados para imprimir foro de ficção ao tema. Pressentindo os riscos da matéria, que, por si, todos os dias, experimenta diversos meios de circulação, além de protagonizar peripécias que se desenrolam naturalmente em ricos enredos tramados pela exploração da mídia e ampliados pela fruição duas ruas, a ficção brasileira, em verdade, tem sido econômica no que se refere ao futebol. Quando o elege como matéria de representação, de modo particular na constituição do conto, narrativa em geral breve e de efeito contundente, busca tirar proveito das desmedidas trágicas e cômicas que são próprias das paixões populares, como o futebol, e que, em geral, escapam à percepção do senso comum. Antonio de Alcântara Machado, modernista dos anos 20, e Sérgio Sanf Anna, situado como expressão da literatura brasileira do final dos novecentos, são produtores de contos que expressam justamente o aludido antagonismo entre o trágico e o cômico. Mais do que isso, separadas no tempo por mais de cinqüenta anos, as produções desses autores transplantam, para o nível da ficção, situações típicas de diferentes fases das disputas futebolísticas. Assim, o entusiasmo espontâneo do amadorismo, encontrado nos textos de Alcântara Machado, é substituído pela tortura do atleta submetido à técnica da comunicação de massa, na produção de Sanf Anna. 4 Futebol: matéria de ficção e de cultura Antônio de Alcântara Machado inscreve -se como renovador da prosa brasileira, compondo textos eivados de falas e práticas do LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). !55 cotidiano, numa linguagem próxima a do jornalismo, empregada antes dele por Lima Barreto em seus romances e sátiras cariocas. Machado mostra-se mestre no discurso direto, em entrechos povoados de tipos e espaços de uma São Paulo que passa por sérias transformações a partir da incorporação dos imigrantes em sua paisagem, notadamente os barulhentos italianos. Em Brás, Bexiga e Barra Funda, de 1927, o futebol merece dois registras. O primeiro encontra-se logo no conto de abertura, Gaetaninho. O outro registro verifica-se na narrativa Coríntíans (2) vs. Palestra (1). Gaetaninho é o norne do personagem principal, urn rT1enino, filho de imigrantes italianos. Sabe-se, desde logo, do seu alheamento em relação aos obstáculos perigosos da cidade, tais como carros, carroças e bondes. O futebol é referido nos primeiros parágrafos, no entrecruzamento entre o discurso telegráfico do narrador e as falas soltas das personagens. Gaetaninho perdeu a hora de vir para casa e a fuga que empreende para escapar da zelosa mãe é comparada a de um futebolista: Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho. Estudando o terreno. Diante da mãe e do chinelo parou. Balançou o corpo. Recurso de campeão de futebol. Fingiu tomar a direita. Mas deu meia volta instantânea e varou pela esquerda porta adentro. Eta salame de mestre! (MACHADO, 1988, p.80). Tal como na passagem transcrita, o futebol em Alcântara Machado é visto como movimento, lance de esperteza, barulho entusiasta, demonstração de mestria. Gaetaninho, a personagem, no entanto, sonha com enterros e é disperso em relação à realidade mais próxima. Por isso, sua corrida atrás da bola acaba sendo uma corrida !56 LETRAS · Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS]. para a morte. O conto, pois, quando alude novamente ao futebol, depois de rápidos flagrantes sobre a família de Gaetaninho, o faz paro desencadear o desfecho trágico: O Nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem perto. Com o tronco arqueado, as pernas dobradas, os braços estendidos, as mãos abertas, Gaetaninho ficou pronto para a defesa. -Passa pro Beppino! Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o muque. Ela cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua. - Vá dar tiro no inferno! - Cala a boca, palestrino! -Traga a bola! Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou. Pegou e matou (Idem, p. 81, 82). o futebol não é apenas pano de fundo para o desfecho trágico do conto, nas duas cenas em que aparece. Ele funciona, também, como justificativa poro a agilidade das cenas e poro o recorte dos planos, além de ser uma espécie de costura entre o nível mais superficial da narrativa - as descrições, os movimentos, os caracteres das personagens típicas, e o nível profundo da significação, que resgata um jeito tipicamente itaiiano de cultivar enterros. de espetacuiarizar a desgraça, de dor crédito às superstições. A tragédia - morte de Gaetaninho - fica amenizada em meio a tais perspectivas da mesma forma que a dor da derrota no futebol é capaz de encontrar lenitivo no simples fato de que perder faz parte do jogar. Ao menos nessa hora, compreende-se que o mais importante é competir e dor espetáculo. Essa pode não ser a compreensão da família de Gaetaninho, no conto, LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). !57 mas certamente é algo próximo da reação do leitor diante da morte bizarra da personagem. Em Coríntians [2) vs. Palestra [1), diverso de Gaetaninho, o futebol ocupo praticamente toda a cena do conto. Ambientado aí pelos anos 20, trato-se mesmo da descrição de um confronto entre os dois clubes paulistas realizado no Porque Antártica (estádio do Palmeiras, clube que, na época, denominava-se Palestra Itália). A narrativa propõe um contraponto entre os lances e os acontecimentos da disputo, ocorridos dentro do campo e os reoções da torcida, particularmente concentradas em uma torcedora: Miquelina, ex-namorado de Biagio, meia-direita do Coríntians. Miquelina o trocara por Rocco, do Palestra, justificando-se, assim, como novo torcedora polestrina, em cuja condição comparecia ao jogo. Os lances de campo confundem-se com lances do arquibancada. O clima do Estádio é reproduzido nas imprecoções, nas palavras de ordem, no apito do juiz, no pregão do vendedor, na descrição do andamento do jogo. O Coríntions foz um a zero: Camisas verdes e calções negros corriam, pulavam, chocavam-se, embaralhavam-se, caíam, contorcionavam-se, esfalvavam-se, brigavam. Por causa da bola de couro amarelo que não parava um minuto, um segundo. Não parava. - Neco! Neco! Parecia um louco. Driblou. Escorregou. Driblou. Correu. Parou. Chutou. - Gooool! Gooool! [Idem, p. l 03) À descrição do gol corintiono, segue-se a desolação de Miquelino na arquibancada. O Palestra, no entanto, marca antes do inteNalo. A !58 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). cena do gol de empate é descrito pelo ponto de vista da torced ora enamorada: Miquelino ergueu-se na ponta dos pés. Ergueu os braços. Ergueu a voz: - Centra, Matias! Centro, Matias! Matias centrou. A assistência silenciou. lmparato emendou. A assistênca berrou. - Palestra! Palestra! Aleguá - guá! Palestra! Aleguá! Aleguá! (Idem, p. l 04). A cena da vitória do Coríntians culmina o entrecruzamento que o conto propõe entre a disputa do campo e a definição do triângulo amoroso: Biagio alcançou a bola. Aí, Biagio! Foi levando, foi levando. Assim, Biagio! Driblou um. Isso! Fugiu de outro. Isso! Avançava para a vitória. Salame nele, Biagio! Arremeteu. Chute agora! Parou. Disparou. Parou. Aí! Reparou. Hesitou. Biagio! Biagio! Calculou. Agora! Preparou-se. Olha o Rocco! É agora. Aí! Olha o Rocco! Caiu (Idem, p. l 05). A descrição do lance, feita de frases curtas, insistentes exclamações, sentenças imperativas e recursos do modo narrativo indireto livre, exemplifica a forma como a linguagem ficcional de Alcântara Machado incorpora ao texto cenas próprias do futebol, recuperando-lhes tonto a plasticidade como a emoção. O resultado da cena é o confronto, em campo, entre Biagio e Rocco, a dupla que mexe com o coração de Miquelina. A vantagem é do primeiro que, além de sofrer o pênalti, como se depreende da passagem transcrita, encarrega-se logo após de cobrá-lo, marcando o gol da vitória corintiana. Decidido o jogo, o conto logo se decide: Miquelina resolve ir à LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS]. 159 reunião dançante do noite em local que deixara de freqüentar desde que iniciara romance com Rocco. O enredo sugere que a volto significo o possibilidade de reencontrar Bioggio, que como o narrativo informara antes, é freqüentodor assíduo de tais reuniões. Tal como se verificou em Gaetaninho, em Coríntians (2) vs. Palestra (1J constato-se o preponderância de uma perspectivo relativista, colocado em circulação o partir dos referências ao futebol enquanto disputo que afloro paixões que alternam vários sentimentos. Miquelina transito entre o alegria e o tristeza, entre o namoro e a dor -de-cotovelo e, por fim, entre um namorado e outro. Se em Gaetanínho o impacto do morte, poro o leitor, é atenuado pelo bizarrice de um jogo de garotos, nesse segundo conto, o antigo temo do triângulo amoroso vê substituído o tradição do desfecho trágico pelo lance que define a partida em disputo. Nos dois casos, para usar uma expressão aristotélico, o futebol é apresentado como produtor de um efeito catártico 5, classificação que parece de acordo com o sentimento que desperto ao tempo em que Alcântara Machado produz seus textos - década de 20. O advento do indústria cultural, particularmente da mídio televisivo, altera a relação e permite que a ficção, sessenta anos mais tarde, modifique o enfoque. Contista e novelista mineiro, Sérgio Sanr Anno incorporou -se à literatura brasileiro nos anos de 1970. Possui um estilo caracterizado pelo misturo entre diferentes gêneros, cujo resultado aparece em textos que se classificam entre o narrativo, o poesia e o teatro, com abordagens de espaços, tempos e personagens marcados por troços difusos, tal como nos sonhos. Com Luís Vilela, Roberto Drummond e outros conterrâneos 160 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS]. compôs o denominado grupo dos novos, ficcionistas de vanguarda que se afirmaram entre os anos 70 e 80. O futebol, no conto No último minuto, de Sérgio Sanr Anna, é situado na era dos recursos televisivos. A narrativa prefere uma abordagem que contradiz a lógica ufanista repetitiva da televisão. Para isso, elege o ponto de vista do goleiro que falha no último minuto, possibilitando o gol da vitória e do campeonato do time adversário. O conto, em verdade, descreve o martírio do goleiro que assiste a insistente repetição do lance na N. A linguagem é densa, em primeira pessoa. As frases são curtas, os parágrafos longos. O goleiro assiste as repetições, perfeitamente marcadas no texto por tópicos que idenficam as diferentes estações: Canal 5, Canal 3, Canal 8. Cada uma delas é composta pelo lance normal e pela reedição, também subdivida no texto, sob o título de Câmara lenta. Enquanto revê o lance, vai recompondo as ações tais como foram protagonizados dentro do campo: O nosso zagueiro direito ficou muito pra trás e o Canhotinho vem na maior correria. É nessa hora que eu grito para o Lula: "Vai nele, vai nele". Mas o grito não se escuta na arquibancada nem na N. E o Lula é o zagueiro central da seleção e. entre mim e ele, eles preferem me queimar. "Vai nele, vai nele", eu estou gritando. por precaução. Porque ninguém pode acreditar numa jogada dessas (SANT'ANNA, 1997, p, 72 ). O goleiro que revê o lance na televisão expresso a certeza de que a jogada era fácil e de que o gol sofrido foi obro do imponderável, isso Para Aristóteles. a catarsis era a função do gênero trágico e correspondia à purificação das paixões do temor e da piedade. Cf. ARISTÓTELES. 1992. Poética. São Paulo: Ars Poetica. 5 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). 161 porque além da vantagem do zagueiro, havia sua própria vantagem. É disso que tenta se convencer cada vez que revê a seqüência: Eu fechei o ângulo direitinho e caio na bola. Eu sinto a bola nos meus braços e no peito. E sei que a torcida vai gritar e aplaudir, desabafando o nervosismo, naquele último ataque do jogo. Eu tenho a bola segura com f'1rmeza contra o peito e, de repente, sinto aquele vazio no corpo. Eu estou agarrando o ar (Idem, p. 72-73 ). O lance transmitido repetidos vezes com as diferentes velocidades da imagem e com o monótono lamento do goleiro -narrador, dá ao conto de SanfAnna um tom obsessivo. O futebol, aí, diferente da leveza e da graça alcançadas nas narrativas de Alcântara Machado, torna -se pesado e algo monótono. O jogador de SanfAnna é presa da televisão. Os jogadores de Machado são produtos das ruas e dos saraus dominicais. Os dois momentos representados ficcionalmente pelos escritores em pauta reiteram, por um lado, uma dicotomia entre aspectos do amadorismo e do profissionalismo futebolístico e, por outro lado, a possibilidade de se considerar um esporte popular como esse a partir de uma perspectiva cultural pluralista. Os textos lidos, confrontados com a história da evolução do futebol no Brasil e com sua paulatina apropriação pelos veículos da comunicação de massa, podem ser tomados como expressões literárias que permitem cruzar, no mesmo espaço de leitura, reflexões que servem para iluminar o tema em seus aspectos sincrônicos e diacrônicos, ou seja, a partir da mobilidade cultural e da projeção temporal que lhe dizem respeito. A consideração sobre a riqueza cultural envolvida nas práticas futebolísticas é, de resto, a percepção que já está LETRAS Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). na crônica de jornal, quando esta dedica um trato literário à matéria. A propósito de cultura, Alfredo Bosi observo que são diversos os níveis em que ocorre e precária a separação entre eles, devido aos constantes intercâmbios que experimentam entre si. A cultura de massa, a propósito, que se. mostra sintonizada com fenômenos atuais, utiliza -se de recursos produtores de sentidos que são da ordem da mitologia primitiva. A cultura como fenômeno arraigado na tradição dos povos, por seu turno, freqüentemente debate-se com o perspectiva de atuolizar-se bem como de utilizar-se dos meios de divulgação de massa. Bosi registra que esses cruzamentos produzem a necessidade de se olhar os fenômenos culturais como fenômenos caracterizados pela pluralidade: "a cultura das classes populares, por exemplo, encontra-se em certas situações, com a cultura de massa; esta, com a cultura erudita; e vice versa" (BOSI, 1989, p. 8). A respeito do futebol brasileiro, é necessário reconhecer que se trata de uma manifestação que, para além da lógica mass !ficada da sociedade de consumo, está garantido na simbologia das relações sociais pela incorporação que tem experimentado através dos tempos de aspectos plurais de cultura. Sua trajetória, de fato, apresenta história interna específica, ritmo próprio e modo peculiar de existir nos tempos histórico e subjetivo - atributos que Alfredo Bosi (op. clt.) confere às culturas popular e erudita. Logo, as práticas da massificação, orientadas pelas leis do consumo e que resultam no direcionamento da paixão, manipulam mas não anulam atributos de outros níveis culturais encontrados no referido esporte. Caso não fosse assim, ficaria difícil a sua sustentação em determinados meios, inclusive como tema literário LETRAS. Revista da Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 163 capaz de reproduzir dramas humanos nos moldes verificados em textos como os de Alcântara Machado e Sérgio Sant' Anna. Bibliografia BOSI, Alfredo. 1987. Cultura brasileira. Temas e situações. São Paulo: Ática. [Org.). 1992. Dia/ética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras . . 1980. História concisa da literatura Brasileira. Sóo Paulo: Cultrix. BOURDIEU. Pierre. 1992. Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva. CALLIGARIS, Contardo. 1996. Helio Brasil! Notas de um psicanalista europeu viajando ao Brasil. São Paulo: Escuta. CANDIDO, Antonio. Dialética do malandragem. Caracterização de Memórias de um sargento de milícias. lN: DASCAL, Marcelo [Org.). Conhecimento. ideologia, linguagem. 1989. São Paulo: Perspectiva. CASTRO, Ruy. 1992. O anjo pornográfico. A vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras. DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983. ENCICLOPÉDIA BRITTANICA s.d. São Paulo: Brittanica. v. 8 lN MEMORIAM DE FELIPPE D'OLIVEIRA. 1933. Rio de Janeiro: Soe. Felippe O' Oliveira. MACHADO, Antônio Alcântara. 1988. Novelas paulistanas. São Paulo: EDUSP; Belo Horizonte: ltatiaia. LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS]. MOREYRA, Alvaro. 1989. As amargas não ... Porto Alegre: IEL RAMOS, Ricardo (Org.). 1990. A palavra é futebol. São Paulo: Scipione. SANT'ANNA, Sérgio. 1996. Notas de Manfredo Rangei, o repórter. ln: _. Contos e novelas reunidos. São Paulo: Companhia das Letras. LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 165 ANTROPOFAGIA, TROPICALISMO, E COMO ERA GOSTOSO MEU FRANCÊS Theodore Robert YOUNG Florido lnternotionol University "Contra Anchieto cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema, - o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo." Oswald de Andrade, "Manifest Antropófago" Em 1971, durante o auge do repressão político no Brasil, enquanto o íntelligentsía do esquerdo procurou mobilizar trabalhadores e estudantes através de arte "revolucionário e consciente" (Dunn 16), o cineasta Nélson Pereira dos Santos dirigiu um filme histórico inspirado num relato de cativeiro entre os tupinombás em 155 7. O filme de Pereira dos Santos, Como era gostoso meu francês, pode parecer anacrónico à primeiro visto, dado o turbulento e engajado clima artístico do época. No entonto, o filme no realidade incorporo o estético tropicalista do década de 1960 ao idioma cinematográfico. Essencialmente, o cineastü "canibaliza" a estilística müsica1 do tropicalismo, ao modo do "Manifesto Antropófago" modernista, enquanto justapõe o história "oficial" com uma reinvenção irreverente do período colonial brasileiro. Em último análise, esta técnico revisionista propositadamente subverte o autorepresentação autoritário do regime militar depois do Ato Institucional V de 1968. LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 167 Em 1556, o aventureiro alemão Hans Staden publicou um livro de suas viagens no Brasil feitas de 1547 a 1548 e também de 1549 a 1555. 1 Estas crônicas incluem os nove meses que ele passou como prisioneiro dos tupinambás durante a segunda viagem. 2 A questão da antropofagia ritualística do Brasil é essencial para a compreensão da história de Staden, do sistema totêmico indígena, e das tentativas posteriores de criar uma identidade cultural brasileira. De fato, o frontispício da edição de Marburgo (1557) declara: "Descripção verdadeira de um paiz de selvagens nús, ferozes e cannibaes" (Staden 13). De acordo com seu relato, Staden foi prisioneiro dos tupinambás enquanto esperava ser devorado por seus captores. Semelhante aos caribes precolumbinos cujas práticas limitavam -se ao consumo ocasional de prisioneiros de guerra (Boucher 6), vários povos da cultura tupi freqüenteme nte comiam inimigos capturados em batalhas, literalmente incorporando parte da identidade do indivíduo ingerido e ao mesmo tempo adquirindo um novo nome (Staden 68). 3 Mudar de nome depois de ingerir um Outro faz parte do sistema de crenças dos habitantes do Brasil pré-cabralino. Os 1 Uma primeira, porém provavelmente não definitiva, edição parece ter-se publicado em Frankfurt am Main por Weygandt Han em 1556. Não há data no livro, mas o prefácio é daquele ano. Segundo J. C. Rodrigues. na sua Bibliotheca Brasiliense (Rio: 1907, 590), Staden provavelmente optou por uma editora de Marburgo em 1557, com a intenção de melhorar a precisão histórica das gravuras que ilustram o livro, apesar da queda em qualidade artística (Staden 9, note 1). 2 No prefácio da edição de Marburgo, Staden indica nove meses (16), enquanto o Sumário indica dez meses e meio (25). 3 Esta forma de exocannibalismo - o consumo de forasteiros ou estrangeiros - há-de ser distinguido de autocannibalismo (o consumo de si mesmo) e especialmente de endocannibalismo, o consumo de membros do seu próprio grupo social (Shipman 70). O último é amplamente documentado como canibalismo de sobrevivência (aviões caídos nos Andes, etc.), e também aparece em certos casos de preservação ritualística de antepassados por ingestão (Boucher 7, and Lévi-Strauss, Tristes Tropiques 387). 168 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS]. nomes de pessoas refletiam seu totem, um espírito da Natureza que expressava a identidade do indivíduo ou do clã. Em The E/ementary Structures of Kinship, Claude Lévi-Strauss indica que "the religious life of these [primitive] societies is dominated by beliefs affirming an identity of substance between the clan and the eponymous totem" (20). Ele continua, "We know that this belief poses no obstacle to the eating of the totem, but merely confers some ceremonial significance upo n this eating" (21 ). Ao devorar um corpo estranho as características daquele Outro incorporam-se ao devorador. Em Tristes Tropiques, sem se referir explicitamente ao exocannibalismo, Lévi -Strauss confirma a obseNação de Staden a respeito da mudança de nomes depois de matar um prisioneiro, indicando que os tupis também "acquire nomes on passing from childhood into adolescence, and then ogain when they reach adulthood" (353). De acordo com o antropólogo inglês Edmund Leach, a questão daquilo que uma pessoa come relaciona-se intimamente com quem uma pessoa pode manter relações sexuais em muitas sociedades rurais e pré-industriais (Shipman 71, 72). Os fatores determinantes são mais ou menos proximidade ao Eu, e alteridode familiar. Num tratamento da separação básico de imediação (o Eu e seus irmãos) de olteridode (primos ou outros parentes), Leach indica o oposição lógico entre união através de incorporação e união através rle aliança (Rethinking 19). Ele desenvolve o hipótese geral da distinção entre as re loções de substância compartida (corpo, sangue) e as de metafísico (alianças): in any system o! kinship and marriage, there is a fundamental ideological oppostion between the relations which endow th_e individual with membership o! a "we group" o! some kind (relations o! incorporation), and those other relations which link LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). 169 "our group" to other groups of like kind [relations of alliance), and that, in this dichotomy, relations of incorporation are distinguished symbolically as relations of common substance, while relations of alliance are viewed as metaphysical [as opposed to physical] influence. [Rethinking 21) Como conseqüência desta perspectiva de relações, irmãos não se casam, primos podem em algumas sociedades, 4 e vizinhos ou habitantes da mesma comunidade (Outro conhecido) são ideais, enquanto estranhos não são imediatamente selecionados até que seu caráter seja revelado. De modo semelhante, a maior parte dos seres hümanos caínfvoías consomem animais domesticados explicitarr1ente para alimentação. Em contraste, animais de estimação, como cães e gatos nas sociedades européias e euro -americanas, não são comidos pelas pessoas, já que estas os percebem mais como Eu (humano) do que Outro (animal). Animais selvagens também são consumidos, porém em grau menor; no entanto, espécies estranhas e desconhecidas não são comidos imediatamente, algo que evita a possibilidade de intoxicação ou outro perigo. 5 Shipman retrata-o da seguinte maneira: 4 Basta conferir a família real portuguesa, entre outras, para ver a aceitação do casamento entre primos irmãos: João III de Portugal casou-se com Catarina dos Hapsburgos, irmã de Carlos V rei da Espanha; a irmã de João, Isabel, casou-se com Carlos V. O filho do primeiro casal casou-se por sua parte com a filha do segundo, e a filha do primeiro casou-se com o filho do segundo. Portanto, os casais João e Juana, e Felipe e Maria, eram todos primos-irmãos pelos pais e pelas mães. 5 Pergunta-se quem foi a primeira pessoa a comer uma lagosta. 170 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS), ()· LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 171 Shipman utiliza a Figura 1 para representar tanto as expressões de parentesco e alteridade para casamento desenvolvidas por Leach, quanto a avaliação de tabus para consumo dele. No primeiro caso: A=Eu; B=lrmã/irmão: casamento impossível; C=Primos: casamento possível; D=Vizinho: casamento desejado; E=Pessoas remotos: casamento impossível. No segundo caso: A=Eu [seres humanos]; B=Bichos de estimação: não-comida; C=Animois domesticados, criados para consumo: comida; D=Animais selvagens: comida, sujeita a regras; E=Animais selvagens remotos: não-comida. (72) As tendências alimentícias e sexuais variam de cultura a cultura. Alguns povos comem cães, gatos e macacos, e algumas comunidades permitem o casamento entre primos. Muitas sociedades enfatizam a distinção entre primos-irmãos e outros parentes mais distantes. A codificação destas tendências constitui os tabus sociais, as maiores proibições sendo contra o incesto e o canibalismo. Ambas práticas transgridem as regras de distâncias aceitáveis pela sociedade, e a paleontóloga Pat Shipman: Because both connibalism and incest violate rules of accepted distances, the two ore often believed to be practiced together. Thus to accuse a group of both cannibalism and incest is tantamount to denying their humonity. (72) 6 6 No capítulo li de The Elementary Structures of Kinship, Lévi-Strauss analisa o problema de incesto. com referência às semelhanças entre os totens e tabus de copular e de comer: "Marriage and, in very many societies. the sexual act itself have a ceremonial 172 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). Em 1979, no seu livro The Man-Eatíng Myth: Anthropology and Anthropophagy, William Arens ataca a própria noção de canibalismo, chamando-a de "a myth generated to enslave or otherwise oppress a hostile 'other"' (Boucher 6). Shipman observa que acusações de canibalismo servem para distanciar o acusador (Eu) do acusado (Outro), e podem funcionar para contrastar o "estado civilizado" de uma cultura da barbárie animalesca da outra. Tais acusações podem servir até como justificativa para uma guerra. 7 Negar a humanidade de um povo alheio parece justificar atrocidades normalmente inadmissíveis como a escravidão, genocídio, e a apropriação de terras. Principiando com o Diário de Bordo de Colombo (1492) e o Carta do Achamento de Caminho (1500), muitos descrições dos indígenas das Américas de algum modo animalizam os chamados "selvagens", multo à maneira do relato de Staden. Estes tratamentos do "Outro" vis-à-vis o "Eu" europeu mais freqüentemente refletiam percepções européias do que as realidades das culturas indígenas, quase sempre favorável aos interesses do empreendimento colonializador. Em Savagísm and Cívilization, Roy Harvey Pearce dos discute a visão indígenas norte -americanos conceituada pelos colonizadores ingleses: "The lndian become important for the English mind, not for what he was in ond of himself, but rother for what he showed civilized men they were not ond must not be" (5). Leoch explica: "Nearly ali the earliest printed illustrotions of Americon lndians and ritualistic significance in no way incompatible wlth lhe claim that they represent a form of totemic communion" [21 ). 7 Neste sentido bosta lembrar a propaganda dos Aliados na Segunda Guerra Mundial que retratava os alemães como lobos famintos e os japoneses como ratos traiçoeiros. LETRAS - Revista de Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS]. concentrated obsessively on the gol)l details of their supposed cannibalism ... The illustrations, though mostly absurd, were based on later and more authentic accounts of cannibalism among the coastal peoples of Brazil" (Social 65). O próprio Colombo encorajou os Reis Católicos, Fernando e lsabela, a escravizar "these cannibals, a people vel)l savage and suitable for the purpose" (Boucher 16, Greenblatt 71 ), uma medida que aumentaria o valor capital dos novos territórios sob o comando de Colombo. Não obstante a declaração do navegador, Leach duvida da informação apresentado por Colombo: "ln actual foct it is doubtful whether any of the lndians with whom Columbus had direct contact ever ate human flesh" (Socia/65). 8 Independente dos motivos, a herança do canibalismo deixou um marco no iconografia do Brasil colonial, e conseqüentemente no noção que se desenvolveu. Em 1928, o modernista Oswald de Andrade publicou seu "Manifesto Antropófago", uma declaração de brasilidade através do canibalismo cultural. Andrade admite o ocorrência histórico ' Em Marvelous Possessions, Stephen Greenblatt indica que o Diario da primeira viagem de Colombo descreve a população indígena como pacífica e ordeira: "[Columbus] recognizes olmost at once that even here, on these small lslands with thelr naked inhabitants living in tiny hamlets and appearing to share everything, there is a politicai and social arder of some kind. lndeed in the log-book Columbus describes communltles characterized not by savage confusion but by an admlrable orderliness" (65). Somente mais tarde Colombo expressa suas suspeitas de canibalismo nas outras ilhas que ele não visitou: "ln the letter to SantangeL Columbus mentions an island he calls 'Quaris,' which is inhabited 'by a people who are regarded in ali the islands as very fierce and who eat human flesh' (i. 14)" (Greenblatt 171, n.45). Sobre como Colombo percebeu o canibalismo no Caribe, veja o livro de Peter Hulme, Colonial Encounters: Europe and lhe Native Carlbbeon. 1492-1797 (London: Methuen, 1986); e Michael Palencia-Roth, 'Connibolism and the New Man of Latin America in the 15"'- and 16th·century European lmaginotion', in Comparativo Clvlllzations Review 12 (1985): 1-27. 174 LETRAS -Revista do Curso de Mestrodo em Letros da UFSM (RS], de antropofagia não como um estigma, porém com orgulho. Ao se referir ao rito indígena de devorar os inimigos cativos, Andrade escreve: Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência Antropofagia. A transformação codificação da Magia. permanente do Tabu em totem. (15) No sentido social e cultural, Andrade percebe a identidade da ex -colónia como um conjunto de elementos diversos incorporados [literalmente introduzidos ao corpo) de outras culturas. Uma sociedade cria seu próprio corpo ao ingerir e internar elementos de culturas alheias, da mesma maneira que um corpo humano produz sua proteína dos enzimas das plantas e dos animais consumidos. Andrade apoia o consumo de outras culturas: "Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago" [13). Ele completa: "Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia" [15). Haroldo de Campos classifica o "Manifesto Antropófago" como: caminhando para uma visão brasileira do mundo sob a espécie da devoração, para uma assimilação crítica da experiência estrangeira e sua reelaboração em termos e circunstâncias nacionais e alegorizando nesse sentido o can1balísmo de nossos selvagens. (Perrone 65) A noção de devorar e de assimilar influências estrangeiras à cultura brasileira resurgiu 40 anos depois do Manifesto. Em 1968, os músicos Caetano Veloso e Gilberto Gil lançaram seu disco Tropicália que simultaneamente criticava o status quo sócio-político brasileiro e misturava estilos musicais de todo o mundo, formando uma nova e brasileira expressão artística [Perrone 65). O próprio Caetano explica: LETRAS- Revista da Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 175 We took the example of cultural cannibalism, created [... ] by the Modernists, especially Oswald de Andrade, who had invented this idea that you devour everything that comes from anywhere in the world and digest it however vou like in arder to produce something new. (Dunn 17) O título completo do álbum, Tropicália, ou Panis et Circensis, combina a noção do Brasil como um país tropical com panem et circenses, o conceito clássico romano da pacificação do descontentamento das massas através da comida e do entretenimento, elaborado por Juvenal no seu ataque satírico à corrupção e decadência do império romano. A obra de Caetano e Gil é um comentário crítico da situação brasileira sob o regime militar do final da década de 1960. - Os músicos também contestavam a extrema censura do governo do presidente Arthur da Costa e Silva, que decretou o quinto Ato Institucional no dia 13 de dezembro de 1968. "justaposição de A estética tropicalista que resultou foi uma elementos contraditórios, metrificação irregular, incorporação de ruídos da cidade industrializada etc." (Franchetti 138). Ainda mais, os tropicalistas rebelaram-se contra toda forma de limitação musical, tomando da MPB, o samba tradicional, Bossa Nova, boião, e estilos caribenhos, entre outras influências (Perrone 65). Ao misturar vários estilos de diversos lugares e períodos, e ao desconsiderar propositadamente as considerações políticas da música eletrônica (derivada do "Primeiro Mundo") vis-à-vis expressões tradicionais (do "Terceiro Mundo"), os tropicalistas desenvolveram anacronismos que suvertiam o imperialismo cultural da soei edade modernizada euroamericana ao romper a separação entre culturas "desenvolvidas" e as 176 LETRAS- Revisto do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). "em desenvolvimento". 9 De acordo com Roberto Schwarz, estes anacronismos resultam em uma alegoria do Brasil (74) na medida em que a justaposição do velho e do novo, o 'Terceiro Mundo" antiquado e do "Primeiro Mundo" moderno, formam um absurdo social e político (76). Ele elabora: [N]ós, os otuolizados, os articulados com o circuito do capital, folhado a tentativa de modernização social feito de cimo, reconhecemos que o absurdo é o olmo do país e o nosso. (77) Antônio Carlos de Brito, no artigo "Tropicalismo: suo estético, suo história," extrapolo do texto de Schwarz: À primeiro visto esta combinação do moderno e do antigo indico apenas o coexistência de manifestações ligados o fases diferentes do mesmo sistema. Mos o importante no sistematização dessa coexistência é seu sentido, que pode variar ... [É] esta discordância interno que constitui o brilho próprio, o marco de fábrica do imagem tropicalista ... [N]o contraposição do imagem tropicalista figura um abismo histórico real, o conjugação de etapas diferentes do desenvolvimento capitalista. (697) Schwarz conclui que o efeito básico do tropicolismo está justamente no submissão de anacronismos desse tipo, grotescos à primeiro visto, inevitáveis à segundo, à luz bronca do ultra-moderno, transformando-se o resultado em alegoria do Brasil. A reservo de imagens e emoções próprios ao país patriarcal, rural e urbano, é exposto à formo ou técnica mais avançado ou no modo mundial. . . O resultado do combinação é estridente 9 Como indico Christopher Dunn, o sompling aberto de tão amplo variedade de músico por porte dos tropicalistas alienou o esquerdo radical: "lronicolly, their most virulent critics were left-wing students, ortists ond critics who rejected ony real or perceived copitulotion to cultural imports. Following the militory coup of 1964, the jozzy sounds of bossa novo, pioneered ... in the lote 1950s, fel I out of favor with the politicolly engoged urbon youth who preferred ocoustic protest music" (14-16). LETRAS - Revisto do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (RS). 177 como um segredo familiar trazido à rua, como uma traição de classe. (74) Os elementos essenciais do tropicalismo - fragmentação, anacronismo e reciclagem, pastiche - correspondem à estética pósmoderna, segundo definições correntes [Yúdice 6). George Yúdice distingue definições euro-cêntricas típicas do pós-modernismo das expressões não-européias da estética, sobretudo na América Latina. Ao contrário de Lyotard e Jameson que identificam o pós -modernismo como algo que substituiu a modernidade com um novo "dominante cultural", Yúdice postula a pós-modernidade como uma série de condições que abrangem diversas formações sociais e múltiplas respostas à modernização [7): lt is nota matter, then, of a different order of things following or replacing modernity, as it has been suggested from Weber to Habermas. lf postmodernity has any specificity it is in the rethinking of how modernity has been represented, how alternative sciences, morais, and aesthetics, as well as different sociocultural formations, have ali contributed to the constitution of modern life. (7) Ele mantém que o pós-moderno não procura necessariamente inovar, como o moderno, senão rearticular tradições alternativas para desalienar a vida contemporânea [15). No Brasil, apesar de que muito do que formalmente constitui tropicalismo derive-se do modernismo, o que fundamentalmente diferencia os dois, além da cronologia, é o conceito de identidade cultural manifesta das duas estéticas. Os modernistas procuravam ingerir elementos de culturas estrangeiras, ou admitir a de fato apropriação de artefatos culturais na formação de uma identidade brasileira, distinta de simplesmente uma neo-portuguesa. 178 George Yúdice declara: "Brazilian LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). avant-gardes ... were not so much a break with the [indigenous, AfroBrazilian and Luso-colonial) past as a rearticulation of it in their attempts to establish a national culture" [21 ). O conceito vanguardista da ruptura com o passado proclamada pelo movimento modernista foi mais exatamente uma continuação da construção de cultura do Brasil: no seu "Manifesto da Poesia Pau-Brasil" [1924)- um dos documentos canônicos do movimento - Oswald de Andrade refere-se à "coincidência da primeira construção brasileira no movimento de reconstrução geral" [7). Mais de seis décadas depois, Renato Ortiz concorre: The ruptura never occurred as it did in European countries becouse the idea that dominated our imaginary wos always connected to the need to construct a modern Brazilion nation. (209) No seu artigo "Permanência do discurso da tradição no modernismo," Silviano Santiago também reconhece que ao incorporar a estética vanguardista brasileira à expressão cultural pós -moderna da apropriação, a ênfase do papel da ruptura deve ceder a um enfoque no pastiche que aceita o passado não com reverência, senão como presumido no presente [ l 36). Com influências tonto do noção modernista de canibalismo elaborada por Oswald de Andrade, quanto da destruição pós -moderna da história dos tropicalistas, Nélson Pereira dos Santos recriou os conflitos culturais exemplificados no relato de cativeiro de Staden. 10 O pano-de- 10 Numa entrevista com José Agustín Mahieu na revista Cuadernos Hispanoamericanos (Madrid), Pereira dos Santos reconhece o papel de "canibalismo cultural" no filme: "La concepción de esta historia [Como era gostoso o meu francês] se basa en esa recuperación de la cultura brasilefía, colonizada desde hace siglos, a través de una tronsferencia de las virtudes dei enemigo ... Es una teoria de la osimilación de la cultura extranjera por el hombre brasilefío ... Cuando se formula esa teoria, esta idea coincide LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). 179 fundo para Como era gostoso meu francês são as guerras entre os portugueses e os franceses na região da Baía de Guanabara e São Vicente. Ambos os países europeus estabeleceram alianças com tribos indígenas rivais, entre eles os tupiniquins e os tupinambás. A personagem titular, transformada do alemão Staden num francês sem nome, é um prisioneiro de uns portugueses quando estes são atacados pelos tupinambás que o prendem, tomando-o erroneamente por um inimigo português. Ele convive com a tribo por um ano até ser comido por eles. Desde a primeira cena, Pereira dos Santos justapõe a história oficial com questionamento revisionista, uma expressão daquilo identificado por George Yúdice como dúvida pós-moderna. A primeira seqüência de imagens mostra as autoridades franceses supostamente no ato de punir uns soldados rebeldes. A narração verbal não diegética consiste em uma carta do comandante francês para o rei, a qual descreve a versão oficial dos eventos, em contraste perturbador com os imagens visuais. A cena termina com a narração de um gesto fútil de clemência por parte das autoridades: "[Nós] libertamos um deles de suas correntes a fim de que pudesse melhor defender sua causa. Mos ao ver-se livre, deitou-se a correr e jogou-se ao mar, afogando-se." Ao mesmo tempo, a audiência vê no tela o prisioneiro ainda acorrentado jogado ao mar pelos soldados depois de um rápido sinal-da-cruz feito pelo padre. Ao longo do filme, Pereira dos Santos provoca a audiência com um choque de normas culturais. Depois da primeira cena, quase todo o filme é na língua tupi, com legendas em português para a audiência brasileira. Dado que a grande maioria do cinema visto no Brasil tem con el momento en que el país intenta descolonizarse, tras una colonlzación permanente. de lo cual no consigue salir" (421 ). 180 LETRAS Revista da Curso de Mestrado om Letras da UFSM (RS). origem ou nos Estados Unidos ou na Europa, a platéia brasileira estará acostumada à leitura de legendas. Não obstante, em Como era gostoso meu francês o cineasta polemiza o distancionamento inerente no uso de legendas, texto escrito que forçosamente traduz só uma fração do diálogo falado, criando uma distância entre o espectador e a audibilidade da experiência cinematográfica. Obviamente, as antigas fitas sem som dependiam do texto escrito para transmitir algum diálogo, mas o idioma fílmico era correspondentemente distinto: os diretores da era dos "mudos" criaram filmes como imagens em movimento, enquanto os cineastas das películas "faladas" desenvolveram seu produto-arte com a experiência auditiva incluído no meio de for ma orgânica. Pereira dos Santos acentua a perda de informação constante sofrida por audiências ''terceiro-mundistas" ao obrigar espectadores brasileiros a assistirem um f;lme brasileiro sobre um povo indígena brasileiro enfrentando o filtro das legendas. Em contraste, a maior parte dos filmes situados num ambiente lingüístico distinto daquele da audiência putativa apresentam o diálogo no língua local. Quando aparecem apenas umas poucas personagens estrangeiras como minoria entre o elenco todo, podem fala r normalmente na língua da audiência, com sotaque estrangeiro na língua da audiência, numa língua estrangeira com legendas, ou numa língua estrangeira parcialmente legendada ou sem legenda alguma. Através destas opções, o diretor fornece ao espectador mais ou menos informação, enfatizando o papel da comunicação verbal. Em Como era gostoso meu francês, há apenas poucas falas em português, a grande maioria dos diálogos sendo em tupi, com algumas falas em francês. Além de LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 181 evocar o abismo informativo entre o "Primeiro Mundo" e o "Terceiro Mundo", Pereira dos Santos também reitera a problemática do "Velho Mundo"contra o "Novo Mundo" manifesta pela imposição das línguas européias na paisagem cultural das Américas. Ao fazer com que o tupi seja a língua dominante no filme, o diretor destaca a questão da língua portuguesa, e não a tupi, ser a língua dominante no Brasil atual. Pereira dos Santos também apresenta o choque de culturas em termos do uso de roupa, do tratamento de cativos, do sexo, e evidentemente da antropofagia. Tanto o francês titular do enredo, quanto a audiência euro-americana, encontram dificuldades em entender o comportamento dos tupinambás do filme. Uma das primeiras diferenças culturais mais óbvias é a nudez das personagens indígenas, e posteriormente do francês. 11 De fato, ao longo do filme somente uns poucos europeus aparecem vestidos. O diretor imediata e constantemente confronta a platéia com um elenco completamente nu, chamando atenção às normas sociais do vestuário, sobretudo em climas tropicais. Mais perturbador ainda para a mentalidade euro -americana é o tratamento dos tupinambás para com seu cativo. Os captores dão ao prisioneiro uma esposa, a jovem viúva de um guerreiro morto pelos portugueses, e o permitem andar solto não somente pela taba, mas também pelas terras adjacentes. Na medida em que o francês transforma suas próprias aparências conforme o estilo tupi, ele também vira parceiro de caça do cacique, até na matança de dois portugueses. 11 James lto-Adler, um antropólogo que participou como figurante no papel de um dos soldados franceses na primeira cena do filme. indicou a dificuldade do cineasta em recrutar atrizes em Parati para fazer os papéis das indígenas nuas. 182 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). Apesar de nunca deixar de esperar uma volta a território francês, o cativo começa a considerar-se como integrado na sociedade tupinambá. Ele chega a insistir em que a esposa indígena refira -se a ele como marido. Sutilmente, Pereira dos Santos demonstra a diferença entre as percepções das duas personagens quando a mulher tupinambá chama seu falecido marido pela palavra indígena para esposo enquanto adota a palavra francesa marí para seu parceiro europeu. Quando surge uma oportunidade para ele escapar, o francês perde a chance de conseguir a liberdade: o navio embarca enquanto ele tenta convencer a esposa indígena a acompanhá-lo. Pouco depois o cacique anuncia que o francês será devorado logo e que a mulher comerá o pescoço. Quando ela ensina-lhe o ritual de morte, o francês obviamente não acredita fundo na realidade da situação, escolhendo ter relações sexuais mais uma vez a fugir. O diretor erotisa esta cena, numa fusão do ato sexual e o ato de comer.' 2 O próprio título do filme, .Como era gostoso meu francês, manifesta um sentido duplo: "gostoso" como "saboroso" mas também no sentido popular de sexualmente atraente. A ironia final é que enquanto no uso vulgar o homem "come" a mulher quando a penetra, no filme é a mulher quem literalmente come o homem. Ao contrário da experiência de Staden, na conclusão de Como era gostoso meu francês os tupinambás de fato matam o cativo, e comem-no. Desta maneira, Pereira dos Santos mostra o desentendimento cultural: o francês entendia sua interação com o cacique e especialmente com a esposa indígena como re loções 12 Como indica Pat Shipman, "Sex and eating are. of course. closely associated in many societies. including our own [American]" [71 ). A importância sócio-lingüística do uso de "come(' na língua portuguesa para a penetração sexual é largamente documentada. LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 183 interpessoais, um vínculo emocional, enquanto aos olhos dos seus captores em nenhum momento ele passava de algo a comer. Tanto que o apelido que a esposa lhe dera era "meu pescoço": ele era um substituto do marido morto enquanto aguardava a morte. O assassinato e devoração do francês perturba audiências euroamericanas. É bárbaro por definição, segundo os critérios de Shipman, Leach e outros. Mas Pereira dos Santos procura algo além de um retrato dos costumes históricos: ele demonstra o fundo antropófago indígena da cultura brasileira, enquanto simultaneamente subverte a suposta nobreza da sociedade européia nas Américas. Parecido com a mixagem de elementos contrastantes - às vezes dissonantes - da música tropicalista de Caetano Veloso, Como era gostoso meu francês apresenta à audiência uma série de oposições internas: a voz narrativa e as imagens visuais; a resolução esperada baseada na intimidade do protagonista com seus captores, e a violência da verdadeira conclusão: e o comportamento incoerente dos europeus. Numa cena estratégica, um comerciante francês vem negociar com seus aliados tupinambás. O francês cativo implora ao outro para identificá -lo como compatriota e portanto não sujeitável ao exocanibalismo, já que foi confundido com um português quando foi preso. O comerciante, no entanto, perpetua o engano de identificação propositadamente, dizendo: "Ele é português. Podem comê-lo." O motivo da decepção é para que o comerciante possa explorar um trabalhador de confiança dentro do conjunto indígena. Ele calcula poder lucrar muito mais desta maneira. A audiência tem que decidir qual é mais bárbaro: uma sociedade que adere a um sistema totémico antropófago correntemente aceito por todos os elementos envolvidos, amigos e inimigos: ou um indivíd uo que 184 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). conscientemente infringe o ético de suo propno sociedade e no processo sacrifico um inocente o uma provável morte bárbaro pelo possibilidade de algum lucro material. Pereira dos Santos enfatizo a barbárie dos europeus supostamente civilizados quando numa outra cena o protagonista mato o comerciante com uma pá à cabeça não numa disputa sobre sua traição senão sobre um ouro e umas jóias encontrados pelo cativo. Ainda mais, o francês cativo descobre o tesouro ao assaltar a tumba do falecido marido do suo otual "esposa" indígena. O comportamento imoral (pelos critérios dos próprios europeus) dos dois franceses, movido à ganância, subverte ainda mais a versão oficial e européia da luta entre "civilização" e "barbárie." Nélson Pereira dos Santos fez Como era gostoso meu francês numa época de extremo controle governamental sobre a iconografia estatal e sobre os meios de comunicação. Ao contrastar culturas indígenas e européias, o cineasta pôde questionar a orientação tradicional e "primeiro-mundista" das imagens da sociedade brasileira, ao mesmo tempo em que driblava a censura. Ele conseguiu fazê -lo do um modo que seguiu o estilo composicional do movimento tropicalista. Como indica Charles Perrone: "Tais composições justapõem o antigo (primitivo, nativo, selvagem, subdesenvolvido) e o novo (moderno, industrializado, desenvolvido) para ridicularizarem valores sociais e para criticarem o estatuto dos assuntos brasileiros" (Perrone 72). Em Como era gostoso meu francês, Nélson Pereira dos Santos canibaliza esta estética tropicalista, digerindo-a para produzir uma nova expressão fílmica dos seus ataques, sérios e satíricos, à opressão e ao status quo. LETRAS · Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). Works Cited Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias: Andrade, Oswald de. Manifestos, teses de concursos e ensaios. Obras Completas. Vol. VI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970-. Arens, William. The Man-Eating Myth: Anthropology and Anthropophagy. Oxford: Oxford University Press, 1979. Boucher, Philip P. 1492-1763. Cannibal Encounters: Europeans and lsland Caribs, Baltimore and London: Johns Hopkins University Press, 1992. Brito, Antônio Carlos de. "Tropicalismo: sua estética, sua história." Vozes 66.9 (1972): 693-702. Campos, Haroldo. Prefácio. Trechos Escolhidos. De Oswald de Andrade. 2a ed. Rio de Janeiro: Agir, 197 7. Dunn, Christopher. "lt's Forbidden to Forbid." Americas 45.5 (Sept.-Oct. 1993): 14-21' Franchetti, Paulo e Alcyr Pécora. Caetano Veloso. 2a ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988. Greenblatt, Stephen. Marvelous Possessions: The Wonder of the New Vv'oríd. 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George Yúdice, Juan Flores, Jean Minneapolis: U of Minnesota P, 1992. 188 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). Franco. TRES VISIONES DE AMÉRICA Eduardo SUBIRATS Princeton Universi1y -1Quiero describir en breves trazos tres concepciones dei mundo que han definido de manera elemento! otras tantas miradas modernas sobre y de América, desde el siglo XVI hasta el día de hoy. Tres cosmovisiones que atraviesan de una manera desigual la historia de la conciencia esponola y de su identidad nacional. Y tres filosofias que siguen manteniendo inquebrantoblemente su vigencio tombién en el mundo contemporâneo. La primero de ellas está ligado de uno manero muy profunda o lo Espano imperial y cristiana. Alentó los valores éticos formados a lo largo de la cruzada hispânica contra el lslam, atravesó agriamente el acoso y expulsión de las comunidades judías de la península ibérica, e instaurá el Estado nacional católico espano!. Es el ideario de la conquista, tal como lo formularon los primeros cronistas de América, pero sobre todo, como lo expresó la lglesia romana através de sus bulas y sus estrategias de propaganda de la fe. El centro de esta comprensión de la realidad americana lo constituye la idea de un plan providencial de la historia, en cuyo centro se · hallaba precisamente la corona espanola. EI Estado católico desempenaba el papel de pueblo elegido de la Cristiandad para LETRAS - Revisto do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). imponer por lo fuerzo su sistema de valores sobre el orbe entero. Yo en lo bulo de Alejondro VI, lntercoetero, de 1493, se aludia o esta dimensión históricoteológico que los Reyes Católicos hobíon hecho suyo. Su sentido último era lo posesión territorial dei Nuevo Mundo y lo explotoción de sus inmensas riquezas, pero sólo como instrumento de lo conversión forzodo de la pobloción americano, y lo construcción político dei orbe cristiono, lo primera utopía moderna de un orden internacional y global. Este vínculo providencial de Espana con Américo cristalizó como sistema de domínio colonial, en lo político, y como lazo de subordinoción teologicolingüística en lo espiritual. América se defínía, de acuerdo con este principio, como vasalla. El verbo que la bula de Alejandro VI empleaba para esclarecer este nexo era, precisamente, "deprimire", es decir: rebajar, reprimir o suprimir, o las tres cosas ai mismo tiempo. Por lo demás, esta sujecíón dei americano o la corona espanola, ai princípio cristiano de vasollaje y a la racionalidad occidental fue elevada a principio de salvación. Ginés de Sepúlveda formuló esta redención cristiana dei índio através de su esclovízocíón como líberacíón de los potencias ínfernales que lo dominaban, esto es, la destrucción de su memoria y su civilización material. Este era tombién uno de los motivos que esgrimía la letra de los requerimientos que la soldadesca espanola leío rutinariomente a los pueblos americanos ínmedíatomente antes de su soqueo, extermínio o sujeción. Bojo estos términos precisamente se legitimaba eclesiásticamente la colonización americana como Guerra Justa contra lndios. El significado espiritual de esta dependencio colonial se expresaba en el predomínio lingüístico dei costellano sobre las lenguas históricos de 190 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS]. América. Semejante predomínio, que Nebrija formulá funcional o gramaticalmente, no se fundaba solamente en una relación táctica de dominación, ni como el resultado simple de la prohibición y destrucción de las lenguas originarias dei continente ai dío siguiente de la conquista. Más bien se fundá o pretendió fundarse en un axioma metafísico. Joseph de Acosto lo formulaba drásticamente en su tratado de propaganda De Procurando lndorum Solute: los lenguas americanas, en tonto que lenguas gentiles, no eran capaces por si mismas de expresar los categorias metafísicas de los dogmas fundamentales de la teologia cristiana. Solamente la lenguo de Castilla era capaz de expresor el concepto de un Dios único y trino, creador, causo de sí mismo y ser absoluto ... Este vínculo unidireccional entre el amo cristiana, virtuoso y heroico, y, ai otro lado, el índio como estado de naturaleza y pecado, y por consiguiente, pasible de esclovización como única vía de emancipación, se rompe, en determinado momento histórico de la conquista, como reacción y como reformismo provocado por sus propia brutolidad genocida. O en otras palabras: ante el absurdo teológico de definir lo emancipación de los índios como un proceso de destrucción de sus lenguas y memorias, y de una racionalización militar de la producción esclava que ai mismo tiempo suponía su extermínio étnico, lo teologia cristiana de lo colonización se convirtió en teologia de la liberación. El artífice politicoteológico de esta conversión dialéctica de la conquista fue Los Casas. De acuerdo con su revisión de la conquista, el vasa Ilo americano no solamente se sometía ai cristiana espano!, y lo reconocía como su expresión universal o como su verdad absoluta, en un sentido teológico y LETRAS Revista do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (RS). político. Además, lo deseaba, aspiraba a ser y sentirse como su senor. El indio queria ser cristiana y espano!, porque, aun sin saberlo, lo había sido siempre, según su concepto. Tal fue la posición teológica y política de Las Casas. Era un punto de vista anticipado a su tiempo, y sin duda alguna revolucionaria; un principio estrictamente moderno porque suponía una estrategia de seducción propagandística en el lugar de la guerra santa de extermínio y las prácticas de conversión compulsiva ligadas a ella. La revisión dialéctica de la servidumbre americana por Las Casas era moderna porque llevaba implícito el ideal de una subjetividad abstracta, vacía e infinita. La relación de Espana con las Américas ha estado senalada predominantemente por este principio teologicopolítico de hegemonia espiritual. Quiero subrayar asimismo que semejante principio teológico no ha sufrido sustanciales modificaciones a lo largo de la historia moderna. En particular me parece importante senalar que el derrumbe final dei imperio colonial espano!, en 1898, supuso la conciencia de un desastre a la vez político y moral, y toda una crisis y hasta un trauma de la identidad imperial espanola, pero de ningún modo la revisión de aquellas categorias metafísicas, heroicas y trascendentes bojo las que se había comprendido la realidad americana. En el contexto poscolonial, aquel principio de hegemonia teologicopolítica tan sólo abandoná sus significados administrativos, para conservar el sentido de una hegemonia puramente espiritual. "Si no hemos sabido decir "sí" a la vida, sepamos decírselo a la muerte, haciéndola gloriosa, digna de Espana" - había escrito Maeztu la manana siguiente de la destrucción de la flota espanola frente a Santiago de Cuba. Esta reivindicación de la muerte, profundamente 192 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). arraigada en el concepto cristiana de heroísmo, ponía de manifiesto lo que estaba llamado a convertirse en el punto de partida de todo uno filosofia y uno literatura de lo identidad esponola. Bojo los condiciones de la bancarrota política y militar de 1898, y de lo crisis de los valores históricos que habían definido la mítica grandeza de la Espana cristiana, intelectuales como Ganivet, Unamuno, Azorín y Maeztu elevaron uno identidad nacional capaz de superar el conflicto con las excolonias en nombre de uno espiritualidad trascendente, de un nihilismo heroico, dei mito quijotista. Bojo su postulado, la perdida grandeza colonial espanola se reformulaba en términos trógicoexistencialistas. El novelista Valera, embajador de Espana en Washington en el período final de las guerras de Cuba, horto significativamente, se consolaba dei desastre con el siguiente espíritu: se ha perdido el poderio imperial, pero la raza espanola es la más numerosa dei siglo. Menéndez Pelayo estilizaba los valores mós o menos quiméricos de lo lenguo espanola como principio de cohesión político dei vasto territorio excoloniol. ni más ni menos que en los planes un día dirigidos a Isabel la Católica. Su autoridod, otrora confundida con el poder providencial dei lmperio, se sublimaba ahora en algo mós discretos "princípios dei buen gusto", en cuyo nombre, sin embargo, el erudito espano! pretendia nada menos que asentar los jerarquias estéticos dei mundo americano. Un coso si no importante, ai menos sintomático y curioso de esta redefinición espiritual de la hegemonia imperial espanola lo debemos a lo novela de Angel Ganivet, La conquista de/ reino de maya. En esta novela el fracasado imperialismo espano! se proyectabo épicamente en los cielos de delirantes conquistas en ignotos territorios africanos por mor de lo gloria y lo virtud, que despreciabon heroicamente cuolquier LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). objetivo pragmático o productivo dei colonialismo inglês y francês dei siglo XIX. El nuevo sentido de un imperio espano! se elevaba éticamente através de sacrifícios virtuosos en aras a la fidelidad conyugal, o bien, se celebraba estéticamente bojo la pura belleza de las gestas sublimes, el espíritu de conquista como guerra y destrucción regeneradoras, y un tedioso etcétera. El héroe, la horda y la destrucción, el sacrifício, la muerte y la gloria, estas mitos exaltados por Ganivet no hacían más que antici par literariamente la utopía nacionalcatólica espanola de 1936. Su descripción se cerraba, en la mencionada novela, precisamente con el programa de "otra civilización más perfecta", basada en la "superioridad de la sangre" y el "mejoramiento de la raza por el sistema más recomendado de los antropólogos", según sus propias palabras. La glorificación nacional católica de un heroico posado espiritual, ai mismo tiempo universalista y nacionalista, coronaba, unas décadas más tarde, este renacimiento dei pensam iento espano! en el extenso ensayo Defensa de la Hispanidad, de Ramiro de Maeztu. Allí se trazaba con mano segura la solución: restaurar los valores dei universalismo cristiano de la Contra-reforma como punto de partida de la redefinición espiritual de ia patrio reger1erodo, o seo, ei ideorio de ia Hisponidad. -2- La segunda visión colonial y poscolonial sobre América no es teológica, ni metafísica, sino antiescolástica, empiricista, racionalista y tecnocientífica. Una representación de esta nueva concep ción la 194 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). ilustraba el pintor flamenco Jan van der Straet que, en 1576, publicó una serie de grabados en torno ai descubrimiento de América bojo el elocuente título de Nova Reperta. Uno de estos grabados muestra didácticamente una interesante colección de ob jetos diversos: la imprenta, una brújula, medicinas, el canón ... y, en el centro, rodeado de tan preciosas "invenciones", el Continente americano. La nueva representación de América ya no era heroica, ni apelaba a un principio teológico o metafísico: era empírica y democrática, equiparaba el continente a cualquier otra invención de las ciencias pragmáticas, y se basaba en un concepto productivo dei conocimiento y el poder. La construcción conceptual moderna de este nuevo discurso tecnológico y económico de la colonización americana fue formulada por el filósofo Francis Bacon, en su tratado Novum Organum de 1620. El frontispicio de esta obra muestra, en un primer plano, las Columnas de Hércules. Es el símbolo de un ultrapasado límite mitológico, y, con éL de un distanciamiento de la concepción clásica dei universo. Pero también es el símbolo de virtudes y potencias heroicas, ligadas a los antiguos "trabajos" fundacionales de la civilización clásica. Tras aquellos límites míticos dos carabelas navegan a mar abierta con sus velámenes henchidos. Es una escena odiseica que rememora la voluptuosidad de la aventura, y el afán de nuevas experiencias y riquezas. Una de las naves ya rompe con su proa las aguas que separan el límite simbólico entre el Viejo Mundo y el océano infinito. AI pie dei grabado una leyenda reza: "Multi pertransibunt & augebitur scientia". Es una cita dellibro de Daniel en el Antiguo Testamento. "Muchos pasarán, y la ciencia avanzará ... " La sabiduría o la ciencia dei Libro, a la que aludía la profecía de Daniel, es LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS]. 195 sustituida ahora, sin embargo, por la empresa colonizadora de los descubrimientos. De acuerdo con Francis Bacon existia un vínculo interior v una solución de continuidad entre la exploración intercontinental v la "luz" dei conocimiento inductivo como principio de dominación v producción globales. En la Antigüedad - escribía el filósofo-, cuando la filosofia solamente era capaz de acceder a un conocimiento deductivo, se conocía muv poco dei globo terráqueo. Las navegaciones apenas alcanzoban los limites de un mundo doméstico v cotidiano. No había, por consiguiente, la posibilidad real de un conocimiento basado en la experiencia, es decir, en la confrontación con lo nuevo v desconocido. La moderna inducción tiene, en cambio, según las palabras de la citada obra, "un alcance universal". Su "método de interpretación ... dirige ai espíritu de tal manera que por doquier pueda penetrar la esencia de las cosas". El método científico se convierte en el principio de la nueva universalidad de las empresas de conquista tecnocientífica. Una universalidad que, a su vez, reformulaba, en sus categorias de progreso de la dominación humana, aquel mismo principio salvacionista que habia distinguido el ideal Cristiano de un universo integralmente convertido. Todo ello se coronobo, en el Novum Organum, con un significativo comenta rio sobre los indios de Américo. Su naturaleza, una vez más, era definida negativamente. Pero la inferioridad dei sujeto colonizado no se desprendia va de sus pecados nefandos, ni de su gentilidad, a diferencia de lo teologia de Sepúlveda v de Acosta. Lo que los condenaba a lo seNidumbre era la imperfección de su conocimiento ligado a los "ídolos". Y era, asimismo, el resultado dei carácter subsecuentemente LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). "suburbanas" o locales de sus formas de conocimiento, o sea, su carácter no críticoempiricista. Ciertamente no ha sido este paradigma científico e ilustrado el que la Espana moderna de los Habsburgo, ni de los Borbones esgrimió para hacer prevalecer sus intereses hegemónicos sobre América. Incluso escritores que en la cultura espanola han merecido el nombre de ilustrados, como el padre Feijoa, mantuvieron una rigurosa restricción dei escepticismo gnoseológico v el empirismo de la filosofía científica moderna sobre las últimas verdades reseiVadas a la jurisdicción política de la lnquisición o la jurisdicción metafísica de la escolástica. El momento antimetafísico de la epistemologia científica moderna ha sido sentido por la conciencia espanola más bien como una amenaza a su principio espiritual de dominación por lo menos hasta Unamuno v el nacionalcatolicismo. Por otra parte, la persistencia dei tradicionalismo espano!, desde Ginés de Sepúlveda hasta Maeztu, en aquella visión metafísica v ética dei mundo, contra la moderna concepción empíricoracionalista ha distinguido históricamente el atraso espano! en un sentido tanto tecnoeconómico como filosófico v social. Y lo ha distinguido precisamente como una categoría que comprende primero la llamada "levenda negra", es decir, el relato protestante y liberal sobre el despotismo y la crueldad de la monarquia católica espanola, y, más tarde, el discurso de la civilización industrial y moderna sobre el subdesarrollo de las culturas hispânicas en general. Tan sólo en el contexto de los eventos mediáticos agrupados en torno ai Quinto Centenario de 1992, el progresismo espano! llegó a romper la continuidad histórica dei tradicionalismo nacionalcatólico a LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 197 este respecto. Sólo en este contexto se llevó o cabo lo sustitución de los categoríos heroicas y teológicas de la conquista y la colonización cristianas de América por lo representoción _posmoderna de una modernidad tecnocientífica y espectacular. Y sólo en este contexto lo ejemploridod y el predominio espanoles con relacion a América suplantá sus anacrónicos emblemas castizos por los modernos signos de . un indefinido descubrimiento, homologable y homologado con los descubrimientos tecnocientíficos de la era de los descubrimientos. -3- Existe una tercera mirada: mirada de América. Mirada de la América histórica. Elia es reflexiva. Se basa en una restauración hermeneútica de las lenguas y culturas históricas, destruidos en nombre dei universalismo moderno. Mirada singular, sin dudo. Y visión marginal también. Es la perspectiva intelectual de un filósofo, descendiente de la aristocracia Inca, que conoció tempranamente la obra filosófica de un tratadista hispanojudío, expulsado a ltalia, y a través de ello, lo tradición dei humanismo latino. Es la obro que traza, a partir de esta tradición crítica dei humanismo europeo y de la antigua espiritualidad inca, una compleja utopía centrada en el diálogo entre culturas y religiones plurales, bojo el principio panteísta de lo unidad dei "mundo todo y uno". Me refiero ai Inca Garcilaso. En su crónica, los Comentarias rea/es, Garcilaso comenta una curioso situoción dialógica y lingüística. El asunto en cuestión luce un título pomposamente filosófico: "Deducción dei nombre de Perú''. El cronista 198 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS]. cuenta cómo llegaron por vez primera los barbudos a las costas dei antiguo reino de Tawantinsuyo, "Las cuatro partes dei universo" de acuerdo con el significado etimológico de esta palabra. Los aventureros, según narra el Inca, encontraron a un humilde pescador junto a la orilla de un río. Le dieron voces. El pescador, temeroso, pronunciá primero su nombre propio: Berú. Los espanoles volvieron a inquirir. El pescador profirió entonces el nombre dei río en el que estaba pescando: Pelú. Los descubridores hicieron el resto. Sumando Berú a Pelú, dedujeron que Perú era el nombre verdadero de aquella inmensa extensión cuya población, lengua, historia y civilización ignoraban. Como dice Garcilaso a renglón seguido de su "Deducción": "Los cristianos entendieron conforme a su deseo". La violencia y la arbitrariedad de este nombre c ompulsorio, que no es más que la metáfora dei nombre impuesto por el bautismo a quienes sólo elípticamente reconocemos bojo el nombre de "indios", inaugura precisamente el falso dilema de la identidad americana. Frente a la irrealidad de esta "deducción" a rbitroria dei nombre, y de esta identidad violentamente impuesta, Garcilaso propone la restauración hermeneútica de la comunidad destruido a través de la recuperación de los nombres propios y de ios norTrbres de ios dioses, y con eiios ia reconstrucción de i o memoria. La narración garcilasiana cumple esta exigencia a través de una articulación original de lo épico, lo mítico, la crónica y la poesía en sus Comentarias rea/es. Es esta obra, según sus propias palabras, "noticia" y "fábula", y relato de las "historias" de la civilización inca. Su narradores por ello, ai mismo tiempo, un Yo intelectual y la voz colectiva que se configura como memoria histórica a lo largo de la crónica narrativa. LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 199 Es esta, a su vez, una memoria dei "corazón" y una memoria dei "parentesco", según las propias palabras de Garcilaso. Es la recuperación de una voz remota y profunda. Su significado escapa a la lógica de la dominación formulada bojo el principio teológico de la conversión universaL o bojo el principio empíricoinductivo de las ciencias productivas que históricamente le sucedió. Fue y es una voz poética. Tiene que ver con el valor evocativo de esta palabra y su relación secreta con una experiencia ai mismo tiempo íntima y comunitaria. Como dice Garcilaso, una voz "oída y guardada en el corazón" (1: 47). Obras Citadas Acosta, José de. 1984-87. De Procurando lndorum Salute. Madrid: Consejo Superior de lnvestigaciones Científicas. Bacon, Francis. 1980. Novum Organum. lndianapolis: The Bobbs Merrill Co. Gavinet, Angel. 1988. La conquista dei reino de Maya. Los trabajos dei infatigable creador Pio Cid. Barcelona: Editorial Planeta. Maeztu, Ramiro de. 1998. Defensa de la Hispanidad. Madrid: Rialp. Vega, Garcilaso de la (the Inca). 1976. Comentarias reates. 2 vols. Caracas: Ayacucho, 197 6. 200 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). LOS MITOS CULTURALES DE LA OTREDAD: REVISIONES CONTEMPORÂNEAS DE LOS NAUFRAGIOS DE CABEZA DE VACA Santiago JUAN-NAVARRO Florida lnternational Universlty Desde la publicación de sus dos primeras ediciones en 1542 y 1555, los Naufraglos de Cabeza de Vaca no han cesado de suscitar el interés de lectores y críticos por muy diversos motivos. La concesión que Carlos V hizo a su autor de la gobernación dei Río de la Plata sería una primera muestra de las visiones que Cabeza de Vaca supo conjurar en la imaginación dei emperador. El proceso de magnificación que pronto se desplegó en torno a las supuestas curaciones milagrosas sería asimismo prueba de otro tipo de interés, asociado en este caso a una visión providencialista de la conquista y evangelización dei Nuevo Mundo. Algunos historiadores escrupulosos dei siglo XVI como Las Casas vieron en los Naufragios un doble valor: científico, por cuanto otrecía una inestimable información acerca de los grupos indígenas que vivían en las costas dei Mar dei Norte, y moraL por su propuesta de posibles evangelizaciones pacíficas en el Nuevo Mundo. A partir dei siglo XIX, tras la anexión de todo el territorio de México r:! norte dei Río Bravo. el público norteamericano empezó a interesarse en la obra y su autor ai considerarias como claves de la historia y lo cultura de los estados meridionales. Este mismo carácter fundacional de Naufraglos se ha extendido osimismo ai ámbito de lo literatura y cultura chiconas, hasta el punto de que críticos como Juan Bruce-Novoo hon querido ver en lo LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS]. relación de Cabeza de Vaca un precedente de la literatura chicana contemporánea. Más recientemente, los Noufrogios han acaparado por igual la atención de directores de cine y dramaturgos, quienes se han valido de la obra de Álvar Núnez para legitimar sus proyectos 」オャエイセ・ウ@ políticos. El presente ensayo explora algunas y reinvenciones contemporáneas de esta figura mítica en la crítica !iteraria, el cine y el teatro hispánicos. I. Cabeza de Vaca en la crítica !iteraria cantemporánea Desde un punto de vista formal, el rasgo más discutido de la relación de Cabeza de Vaca es, sin duda, la hibridez que caracteriza ai texto. Tal hibridez tiene varias manifestaciones. Bruce-Novoa habla, por ejemplo, de un amalgamamiento de sistemas semióticos, géneros y códigos semánticos (14). Pero el aspecto más destacado por la crítica en conexión con la naturaleza híbrida dei texto es la interacción entre los discursos de la ficción y de la historia. 1 Un ensayo pionero en este sentido es el de David Lagmanovich (1978), quien centra su análisis en la "calidad narrativa" dei texto. 2 Para Lagmanovich los Noufragios se organizan en torno a una red de "conflictos y tensiones" que se 1 Algunos de los ensavos que tratan con mavor detenimiento la relación entre discurso histórico v fictivo dentro de los Naufragios son: Lagmanovich (1978), Merrim (1981 ), Lewis (1982). Pastor (1983). Carreno (1987), Moura (1987) v Pupo-Walker (1982, 1987, 1989, 1990) 2 Como reconoce el propio Lagmanovich (27), su lectura tiene, sin embargo, algunos precedentes. Entre ellos destaca el de Angel Rosenblat, quien una década antes había utilizado una aproximación !iteraria similar en su obra acerca dei Inca Garcilaso. 202 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS), manifestaria a distintos niveles. Por lo que se refiere ai modo discursivo ai que se adscribe, el texto de Cabeza de Vaca, según Lagmanovich, proyecta una tensión evidente entre el elemento histórico y el propiamente literario. A nivel estructural, el conflicto se produce entre una linealidad cronológica y una subjetividad que adopta formas episódicas (35). Ambos elementos estarían estrechamente イ・ャ。」セッョ、ウ@ con la tradición !iteraria. La ilarración lie1eal, se acómoda ai modelo literario de las narrativas de viajes, y se articula en torno a los recursos igualmente literarios dei presagio y el reconocimiento (30). El aspecto episódico se revela en la forma de cuentos ·Interpolados en los que coexisten lo real maravilloso, lo extrano, lo fantástico y lo testimonial, enmarcados todos ellos por un episodio final que contiene y rige a todos los demás: la profecia de la mora de Hornachos (35). Por su anticipación de rasgos y técnicas característicos de formas novelescas posteriores, Lagmanovich termina confiriendo un carácter inaugural a Naufragios. AI modelo de la crónica o relación (Lagmanovich no establece una distinción entre ambos), Naufragios superpone rasgos propios de un "realismo moderno" precursor de la picaresca, un discurso moral sobre el indio que anticipa las ideas lascasianas y una presencia de lo maravilloso que anuncia la narrativa latinoamericana dei siglo XX (36). El valor principal dei trabajo de Lagmanovich consiste en llenar un vacío en los estudios sobre Cabeza de Vaca: el análisis dei aspecto fictivo de los Naufragios y el uso de determinadas técnicas consideradas como características de la prosa de ficción. Su ensayo, sin embargo, presenta ai menos tres insuficiencias. En primer lugar, la tajante división que establece entre discurso histórico y construcción narrativa es una LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 203 idea que ha sido desmantelada por la historiografia moderna. Como ha demostrado la filosofia de la historia contemporánea, todo discurso histórico se organiza sobre una base narrativa que comparte muchos de los elementos retóricos de la llamada "literatura de creación". 3 Desde este punto de vista, cualquier obra histórica podría someterse a un aná/isis de perspectiva /iteraria, sin que por e/lo debamos /legar a la conclusión de que se trata una obra novelesca y no histórica. Por otra parte, la decisión de tratar los Naufragíos desde el punto de vista literario se toma sobre la base de que su valor historiográfico ya ha sido abundante y convenientemente elucidado por numerosos ensayos, entre los cua/es Lagmanovich cita los libros de Hal/enbeck y Covey (36). De nuevo, tenemos aquí una confusión evidente en re/ación con el concepto de obra "histórica". Lagmanovich parece referirse a aquellos trabajos que discuten el itinerario de Cabeza de Vaca desde la península de la Florida hasta la Nueva Galicia. Ahora bien, la mayor parte de estas obras dejan de lado e/ aspecto formal de la historiografía dei siglo XVI, es decir, l.en qué sentido e/ texto de Cabeza de Vaca es o no es lo que pretende ser: una relación de seNicios que sigue los dictados dei discurso histórico de la época?. Incluso los detal/es relativos ai itinerario son muy controvertidos y nunca podemos !legar a concluir, ta! y como sugiere Lagmanovich, que la materia ha sido agotada. Un poso adelante en e/ análisis de la dicotomia historia vs. ficción lo ofrecen los ensayos de Robert E. Lewis (1982), Antonio Carreno (1987) y Enrique Pupo-Walker (1982, 1987, 1989, 1990a, 1990b). 3 Todos e/los La obra reciente de Havden White, Dominick LaCapra, Paul Vevne, Michel de Certeau v Louis O. Mink, entre otros, explora la relación entre discurso histórico v literorio, subravando el aspecto narrativo de ambos v volviendo problemáticas las nociones heredadas de la historiografia tradicional. 204 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). enriquecen el estudio de esta aparente oposición a la luz de la multiplicidad de modelos y propósitos que enfrenta el estudio de la obra de Cabeza de Vaca. Lewis centra su análisis en el "prohemio" de los Nautragios como metatexto historiográfico que nos informa dei origen y propósito de la obra. En este segmento inicial se superponen tres problemas intencionales que coexisten en tensión a lo largo de la obra: la "narración personal autobiográfica", la "relación de servicios" y la "noticia verdadera" (686}. El primero de estos aspectos se manifiesta, según Lewis, en el problema de organizar de modo artísticamente coherente los recuerdos caóticos acumulados durante diez anos de experiencias en el Nuevo Mundo. El segundo de los problemas alude ai intento de presentar una imagen dei autor que testimonie su servicio fiel a la carona. La "noticia verdadera", por último, se refiere ai problema de presentar como verosímiles acontecimientos que se situaban en las fronteras de lo increíble. Según Lewis, el tratamiento apropiado de estos tres problemas no podía circunscribirse ai ámbito puramente historiográfico, y habría obligado a Cabeza de Vaca a introducir dentro de su discurso elementos propios de la tradición !iteraria. De entre estos elementos, Lewis subraya la creación dei autor como protagonista de talla heroica en el que se fusionan el explorador intrépido, el conquistador humano, el personaje quijotesco o el santo milagrero (693}. La tesis pragmáticas de Lewis apuntan hacia el uso de la retórica novelesca para hacer más persuasivo el mensaje de su autor. 4 Desde este punto de vista, el éxito final de Cabeza de Vaca vendría dado por el impacto que tuvo en la audiencia. Su destinatario inmediato, Carlos V, concedió a su autor 4 Sobre el valor persuasivo de los Nautragios y su relación con la crónica periodística moderna, véase también Soren Triff (1990). LETRAS- Revista da Curso de Mestrado em Letras da UrSM (RS). 205 la gobernación de La Plata y sus lectores últimos a lo largo de los siglos han aceptado como ciertos los hechos más inverosímiles, !legando a magnificar la figura de Cabeza de Vaca hasta extremos inconcebibles. AI igual que Lewis, Antonio Carreno busca una explicación a esta tensión entre la retórica de la historia y la de la novela que caracteriza a los Noufrogios. Carreno ve en dicha tensión uno de los elementos fundacionales dei género novelesco. Las vacilaciones entre "realidad vivida" [historia) y "tabulada" (literatura) convertirían a las primeras crónicas en un adelanto de la retórica propia dei género picaresco, en la cual, a su vez, se encuentran las bases de la novela moderna (515). 5 AI igual que la picaresca es una antinovela, por cuanto viola las normas épicas ai uso. La transgresión de la épica de la conquista, que lleva a cabo Cabeza de Vaca, convierte a los Noufrogios en una anticrónica [514). 6 Según Carreno, la inversión de los patrones establecidos por la crónica, mediante el énfasis en la sumisión, hambre y cautiverio de Cabeza de Vaca y sus companeros, convierte a éstos en antihéroes de las crónicas (509). Tanto los Noufrogios como las novelas picarescas se presentan como documento fidedigno por lo que ambos se oponen a los relatos novelescos en su concepción renacentista (fábulas). La metáfora dei viaje se corresponde asimismo a la desarrollada por la novela picaresca. Como en este género, los Noufrogios presentan el relato de una iniciación y conversión materializado a través de un proceso de 5 Esta conexión entre el lenguaje jurídico y burocrático de la relación y la retórica de la novela picaresca ha sido desarrollada con gran amplitud por González Echevarría en Myth and Archive. Para González Echevarría, la picaresca, y por extensión, la novela moderna, surge con la intención de desenmascarar el proceso de legitimación impuesto por la retórica notarial que saturaba la organización dei imperio espano! (57). 6 Sobre la transgresión dei modelo épico en los Noufrogios, véase Pastor 216-44. 206 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). ojustomientos, en el que lo imposturo [hacerse posar por lo que no se es) odquiere un papel dominante. Tonto la picaresco como los Nautragios responden o un determinismo que es, sin embargo, de distinta índole [ai determinismo sobrenatural representado por lo profecío de lo moro de Hornachos se opondrío el socioculturol de la picaresco) [515). Por último, ai igual que en los relatos picarescos, el narrador es también protogonis to [objeto de lo narrado y sujeto de lo narroción), lo que permite su evolución paralelo en respuesto a los ocontecimientos vividos [515). Como expreso el título mismo de uno de sus ensayos (La vocación /iteraria dei pensamiento histórico en América), lo obro de Pupo-Wolker vo igualmente encominodo o discutir el componente imaginativo que subyoce o los grandes crónicos de Américo. Desde el siglo XVI se produjo en los crónicas y relaciones de lndias lo que Pupo-Walker colifico de una feliz intersección entre proyección autobiográfica, documento forense y reflexiones filológicas dei humanismo renacentista. En el caso de los Naufragios se produce una "orticuloción conflictiva de mecanismos retóricos" ["Pesquisas" 537). Tales mecanismos tienen su base en diferentes modelos intertextuales, según las diferentes etapas narrativas que revela el esquema narrativo de los Naufragios. Los primeros siete capítulos, por ejemplo, se presentan como constatociones forenses que siguen los preceptos retóricos de los relaciones de servicios. Los capítulos VIII ai XX, sin embargo, derivan hocio uno reloción de signo autobiográfico en lo que dominon los formas testimoniales característicos dei diario. En su parte final. los Noufragios se convierten en uno crónico de las peregrinociones, curociones y evangelización llevodos o cabo por Cobeza de Vaca y sus componeros. En esta última etapa el modelo intertextuol vendrío dado, según Pupo-Walker, por la LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). trodición 207 hogiográfico dei medioevo que glorifico los hozonos milagrosos de santos errantes ("Pesquisas" 535). En esta fase culminante dei texto es donde se do osimismo uno moyor incidencio de los relatos fantásticos, como el de Mola Coso y lo profecío de lo moro de Hornochos. Según Pupo-Wolker hoy dos factores que podríon explicar esta ocumuloción de "estratos narrativos disímiles": el proceso de composición de lo obro, que fue el resultado de sucesivos reescrituros y redocciones desiguales realizados o lo largo de unos veinticinco anos, osí como lo búsquedo de un impacto retórico en el destinotorio mediante un sólido aparato de intensificoción expresivo. Los modelos literorios ton diversos que se don cito en los Noufragios (los crónicos medievoles, los textos de lo Antigüedod, lo Biblio, los epístolas, lo hogiogrofío medieval, los libro s de viajes, osí como los novelos de cobolleríos, picarescos y postoriles) serviríon, desde el punto de visto de Pupo-Wolker, propósitos pragmáticos: hocer su reloción lo más convincente posible de modo que su autor pudiero olconzor lo dirección de uno nuevo empresa conquistadora en lo Florido ("Pesquisas" 536), Esta interacción de modelos diversos se troduce en el uso de mecanismos retóricos en conflicto, de donde surge lo ombigüedod, pero tombién la riqueza de los Noufragios. Todas los tesis piesentadas tienden a privilegiar de forma clara el ámbito imaginativo de lo ficción sobre el ámbito de los hechos que se osocion con lo historio, Según Lewis y Pupo-Wolker, olgunos de las crónicos y relaciones de lo conquisto, y en concreto los Noufrogios de Cobezo de Vaca, recurren o lo ficción poro ser convincentes, poro elevar su potencial persuasivo, lo cuol los emporentorío con lo trodición novelístico que empezobo o desorrollorse en el siglo XVI. Según Correno, "lo soturoción constante dei yo" que se produce en Naufragios olejo ai 208 LETRAS - Revisto do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS), relato de "la objetividad que caracteriza a la historia" (507). AI privilegiar la prosa de ficción con la exclusividad dei impacto retórico, se tiende a recaer en la caduca distinción entre objetivismo histórico y subjetivismo literario. Pero la explicación a esta obsesiva búsqueda de modelos literarios en los Naufragios habría que buscaria no tanto en la lógica dei discurso mismo como en las características intrínsecas de la historia !iteraria hispanoamericana. Rolena Adorno ha senalado como desde Alfonso Reyes y Pedro Hernríquez Urena los críticos hispanoamericanos, han asignado una "vocación iiteraria" a ios escritos historiográficos sobre ia conquista, los cuales se convertirían para muchos en el fundamento de la literatura hispanoamericana ("New Perspectives"l 75). Entre las razones que explicarían esta actitud, Adorno ("New Perspectives"l75) y Mignolo (157) sugieren la búsqueda de un espacio cultural autóctono en el que los escritos coloniales, originalmente considerados como imitacion es deficientes de la cultura metropolitana, han sido recuperados e incorporados ai canon literario. Hasta aquí he venido comentando el tratamiento que la crítica ha hecho de los aspectos formales de los Nautragios. Por lo que se refiere ai aspecto temático e ideológico, de entre los numerosos temas tratados en relación con la obra de Cabeza de Vaca, tres de ellos están intimamente relacionados y han ofrecido valiosas interpretaciones de la obra: la construcción de la identidad sobre la base dei diálogo con el otro, el intercambio de los espanoles con las culturas ameríndias y el papel de las curaciones milagrosas como expresión dei mestizaje cultural y religioso. En mi breve repaso dei tratamiento recibido por estos tres temas me centraré en los ensayos de Silvia Molloy (1987), Rolena Adorno LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS]. 209 (1991) y Jacques Lafaye (1984 ), en donde se ofrece el tratamiento más exhaustivo de los mismos. Según Molloy, la construcción dei yo narrador y actor en los Naufragios se Ileva a cabo mediante un proceso de diferenciació n, despojamiento y traslado (428). La diferenciación se manifiesta formalmente en el uso fluctuante de los pronombres. El uso dei "nosotros" inicial alterna pronto con el de la primera persona. El yo incipiente de esta fase inicial intentaría establecer u n terreno propio frente a Pánfilo de Narváez, figura que ostenta la autoridad ai comienzo de la relación. Las tensiones y enfíentamientos con el jefe de lü expediclón culrninarian cün el relevo dei mando, simbolizado por la "toma de leme". Este acto supone, según Molloy, una doble liberación: ai nivel de los hechos (el dei Cabeza de Vaca-autor), el subalterno se emancipa y asume el mando de la expedición; vaca-narrador), la ai nível de la escritura (el dei Cabeza de instancia narrativa principal gana autoridad y protagonismo (431 ). La inversión de los planes originales de la expedición !leva a los expedicionarios a enfrentarse con una cultura aborigen radicalmente diferente, sobre la cual apenas saben nada. Su desnudez física emblematiza en estas primeros instantes la necesidad de renunciar a lo propio para sobrevivir en un espacio dominado por códigos culturales ajenos (432-33). AI despojamiento sucede, en la progresión descrita por Molloy, el aprendizaje dei otro. En este proceso, las vacilaciones entre un yo partícipe y un yo testigo revelan la extrema dificultad de tal aprendizaje (434). La tercera etapa o nível en la construcción dei yo, "el traslado", acapara la mayor parte dei ensayo de Molloy. El desplazamiento espaciaL que constituye el eje estru cturador de los Naufragios, 210 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). se manifiesta de múltiples maneras: desplazamiento de un destino a otro, de una cultura a otra, de un yo a otro yo. En tales desplazamientos el yo deviene vínculo de unión entre polos opuestos. Las profesiones que Cabeza de Vaca ejerce en la segunda etapa de su viaje (buhonero y chamán ambulante) simbolizarían esta posición mediadora (437). Es de particular interés la descripción que Molloy hace dei proceso de ritualización dei viaje curativo en los Naufragíos (441 ). Lo que en una etapa inicial consiste en .curas ocasionales, adquiere rápidamente un valor sagrado, se amplía su alcance (la misma presencia de los físicos se convierte en una garantía contra el mal), se alteran las relaciones entre los grupos ameríndios, el viaje transformado en rito posa a convertirse en empresa lucrativa para los grupos nativos que acompanan a los espanoles, el cobro de las curas degenera en saqueo y, finalmente, a la cura y la prevención de los males se anade la consagración. Para Molloy esta progresiva ritualización dei viaje culmina en la visión evangélica final, momento en el que tanto el yo de la acción como el de la narración alcanzan su máxima autoridad (441 -43). El yo despojado y servil de la primera parte recobra parte de su legado cultural originaria, lo utiliza para marcar distancias frente ai ameríndio, y prepara así su reintegración en el mundo dei que procede. El texto, por su parte, se institucionaliza finalmente ai inscribirse dentro dei programa de conquista espiritual que asumen las crónicas (444). El tema dei proceso de adaptación cultural descrito en los Naufragíos ha sido tratado también por Rolena Adorno desde la perspectiva de las estrategias de intercambio entre europeos y ameríndios. Adorno se centra en el uso dei miedo como arma en los contactos interétnicos descritos en los Naufragíos. La LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). llamada 211 "negociación dei miedo" se manifiesta, según Adorno, de tres formas: el dominio dei miedo que los aborígenes inspiraban en los espanoles, el miedo que estos últimos, a su vez, despertaron entre los amerindios y el apaciguamiento dei miedo indígena que Cabeza de Vaca y sus companeros llevaron a cabo en la última etapa de su viaje ("Negotiation" 167). En un primer momento, el miedo se manifiesta en el terror que el grupo de Cabeza de Vaca tiene que experimentar a manos de sus duenos en la isla dei Malhado. 7 Su aprendizaje de las técnicas de producción y control dei miedo en esos momentos habría de ser crucial en acontecimientos posteriores. El ciclo de las curaciones muestra, sin embargo, una inversión en la agencia dei miedo. Ahora se trata de la presencia espanola la que desata el temor entre la población india. El origen mismo de las prácticas curativas, sugiere Adorno, podría estar en este temor generalizado ("Negotiation" l 69) . AI igual que Molloy, Adorno recurre a Lévi-Strauss para justificar esta hipótesis. Según Lévi -Strauss el complejo chamánico se compone de tres agentes (chamán, enfermo y grupo consensual). Para que la curación sea efectiva deben darse tres condiciones: el chamán debe confiar en sus técnicas; el enfermo debe creer en el podeí dei chomán; y la opfnión colectiva debe mostrar su consenso. Pero, como sugieren Molloy y Adorno, en los Naufragíos se produce una inversión de la secuencia: las exigencias de la comu nidad llevon ai enfermo a confiar en el chamán; tal confianza provoca, a su vez, la convicción dei chamán, quien ai principio rechaza la práctica 7 Adorno seiiala el impacto de la relación de Cabeza de Vaca en un lector espanol familiarizado con las crónicas de cautivos, que enfrentabon la figura terrorífica dei dueiio moro de esclavos y la dei hidalgo cristiana dispuesto a enfrentar el martírio con una dignidad y coraje caballerescos ("Negotiation" 167). 212 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). como ridícula, pero luego recurre a ella repetidamente. El problema consiste en encontrar una razón a esta exigencia que la comunidad impone sobre Cabeza de Vaca y su grupo: 6por qué precisamente tienen que ejercer ellos como chamanes? Molloy aventura la hipótesis de que su naturaleza "diferente" lleva o los indígenas a ubicar o los esponoles en el extremo dei privilegio o dei sometimiento (439-40). Adorno ve en lo decisión de los comunidades omerindias un intento de compensación frente o lo potencial omenozo que implicabo lo presencia dei hombre blonco en su territorio ("Negotiation" 173). En apoyo de esta posibilidad, Adorno conecto sugestivamente los curaciones con la leyendo de "Mala Coso". Esta leyenda, cuyos rasgos argumentoles coinciden sorprendentemente con tradiciones mesoomericanas, podría muy bien ser uno materializoción fantástico dei miedo indígena ante los esponoles. Los analogíos entre esta representoción diabólico (ser barbado ai que se le ofrece comido que no consume) y las actividades de los espanoles como destructores (Nuno de Guzmán) y curadores (Cobezo de Vaca), hocen de Mola Coso una expresión de lo presencio espanola en la región ("Negotiotion" 174). En los episodios de los curaciones es donde lo negociación dei su peregrinoción o pilloje ritual los espanoles eran precedidos de indígenas que otemorizabon a oquellos grupos que no los conocíon, con el propósito de que les ofrecieron todos sus bienes. El miedo es aquí creado por lo fuerzo y sujeto o lo manipuloción de los grupos familiarizados con los esponoles ("Negotiotion" 178-83). La tercero etapa mencionado en esta negocioción dei miedo hoce de Cobeza de Vaca un agente útil ai imperio. Se le pide que LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 213 contribuya a la pacificación y repoblación de las tierras que los índios habían abandonado. Los grupos nativos de la Nueva Galici a habían huido a los montes aterrorizados por las acciones vandálicas de Nuno de Guzmón. Cabeza de Vaca recibe el encargo de apaciguar los temores de los nativos y hocerles regresar a sus tierras. En su ejecución de esta tarea, Cabeza de Vaca presenta, según Adorno, una alternativa pacífica a la conquista y evangelización violentas que se venían practicando ("Negotiation" 186). En la opinión de Adorno, el éxito de esta acción representaba un triunfo de la negociación y el intercambio sobre la hostilidad dominante entre los conquistadores ("Negotiation" 191 ). Las lecturas de Molloy y Adorno representan dos oportaciones críticos a la interpretación de los Naufragios. Las actividades de Cabeza de Vaca en la Florida y la Nuevo Espana han sido objeto, sin embargo, de una idealización desmedida a lo largo de los siglas. En un magnífico ensoyo Jacques Lofaye hace un breve repaso dei tratamiento que las curas milagrosas han merecido a lo largo de los siglos. Para Lofoye lo leyenda de un Cabeza de Vaca milogrero tien e su origen no en los Naufragios propiamente, sino en la Historia General de López de Gómara. Gómaro fue el primero en usar la palabra "milagro" para referirse a las curaciones realizadas por Cabezo de Vaca, creando así las bases de una leyendo que se enriquecerá con las aportaciones de historiadores posteriores. El método de análisis de Lafaye consiste en un sistemático rastreo de las fuentes existentes sobre el tema, desde la Epístola proemial de Motolinía (1541 ), donde ni siquiero se mencionan los milagros, hasta la Histoire du Paraguay dei jesuíta francés padre Charlevoix (1756), que presenta el grado de evolución extremo de la leyenda. Entre estos dos polos asistimos a la mitogénesis de una leyenda LETRAS Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). en la que cada nuevo historiador habría de amplificar I a figura de Cabeza de Vaca como autor de milagros. En su estudio inicial de los Naufragios, Lafaye deduce que no existen evidencias de que el propio Cabeza de Vaca se creyera dotado de un poder sobrenatural. AI contrario, en muchos casos el yo -narrador califica la curación de enfermos y la expresión "hijos dei sol" como "mentiras mayores". Lo que sí se consideraba el conquistador espano! era un mediador o instrumento privilegiado de la gracia divina (70). Esto es algo que se corresponde con el espíritu providencialista que animaba a ios conquisiadores v evangelizadores de rTrediados dei siglo XVI, quienes se veían a sí mismos como agentes de un desígnio divino: la propagación de la fe más aliá dei horizonte conocido. Una atenta lectura de los pasajes más conflictivos - por ejemplo, aquél en que se cuenta la aparente resurrección de un muerto - revela un alto grado de ambigüedad. Los milagros podrían deberse a la activa propaganda de los indígenas que acompanaban a Cabeza de Vaca y que se beneficiaban de las curaciones. Pero si los términos en que Cabeza de Vaca describe estos sucesos pueden parecer ambiguos, aquellos en que se pronuncian los historiadores posteriores !o son cada vez menos, hasta convertirse en auténticas certidumbres. Gómara, como ha sido indicado, se refiere a tales hechos como milagros, aunque ai mencionar la presunto resurrección anade un ambiguo "según ellos dijeron" (76). El Inca Garcilaso elimina, a su vez, las expresiones de ambigüedad de Gómara, reemplazando la condición de "hijos dei sol" que los indígenas atribuían a los espanoles con la de dioses (77). Esta misma dinámica se repite en las versiones posteriores de Antonio de Herrera, el marqués de Sorito, Andrés LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 215 Pérez Ribas, el padre Nichole du Toit y el mencionado padre Charlevoix. Ciento veinte anos después las formas de la leyenda llegan a adoptar formas disparatadas que nada tienen que ver con el modelo original. Como senala Lafaye, "ya no es Álvar Núnez el que ha hecho los milagros, son los milagros los que han hecho a Álvar Núnez" (80). Las reflexiones finales de Lafaye contribuyen a explicar la confusión existente en los estudios sobre Cabeza de Vaca y servirían para orientar futuras aproximaciones a los Naufragios. Lafaye insiste en entender a Cabeza de Vaca dentro dei contexto de la historiografia dei siglo XVI, una disciplina preocupada más por la creación de modelos edificantes, y por glorificar personajes o exaltar valores espirituales de trascendencia nacional y política, que por la objetividad propiamente dicha. Esto explicaría el proceso de amplificación dei mito, así como la actitud de muchos críticos contemporáneos obsesionados por encontrar en modelos literarios lo que era característico de las prácticas historiográficas dei momento. 11. Cabeza de Vaca en el teatro y el cine hispánicos La película de Nicolás Echevarría [Cabeza de Vaca, l 990) responde ai impulso revisionista dominante en los anos inmediatamente anteriores ai Quinto Centenario. El filme, que tardó lO anos en completarse fue coproducido por México y Espana, en colaboración con el Canal 4 de la televisión británica y PBS, siendo programado en los EE.UU. como parte de la serie American Playhouse Theater. Parte de la financiación corrió a cargo de la comisión oficial dei Quinto Centenario y 216 LETRAS - Revisto do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (RS). muestra, por tanto, algunas de las ventajas y limítacíones de este tipo de proyectos respaldados institucionalmente. El filme aspira ai rigor histórico y antropológico y se benefício de un despliegue de medios inusual en el marco cinematográfico hispáníco. Sin embargo, lo supuesta fidelldad ai original se viene abajo tras un detenido anólisis de la relación dei Álvar Núnez. Aunque ofrece una vísión revisionista dei conquistador como sujeto aculturado, continúa presentando a Cabeza de Vaca como el mistificado héroe cultural, resultado de cinco siglas de magnificación seudohistórica. De entre los numerosos temas que han dado fama a los Naufragios, me gustaría concentrarme en la transposición cinematográfica y dramática de dos de ellos: la construcción de la identidad sobre la base dei diálogo con el Otro y el papel de las curaciones milagrosas como expresión dei sincretismo cultural y religioso durante el período de la conquista. El filme de Echevarría confirma desde el comienzo la visión outomitificadora que Cabeza de Vaca ofrece en su relación (una visiónrecordemos - destinada a justificar su desacuerdo con Narváez y el fracaso de su expedición). Álvares así presentado como el conquistador honesto y juicioso, crítico desde el principio de los atropellos de otros conquistadores menos escrupulosos. Su largo período de esclavítud en la lsla dei Malhado supone una inícíación "'n el mundo indígena que le prepara para un nuevo relevo en el poder. Si anteriormente había suplantado a Narváez en el liderazgo de la expedición, a hora releva ai chomán que le había esclavizado en las prácticas curativas de los indígenas, iniciándose así su correra de Mesíos milagrero. Todos los acontecimientos posteriores parecen estar controlados por el poder LEmAS r1evísta do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (fiS). sobrenatural dei chamán. No es posible entrar aquí a comentar las numerosas elipsis e inexactitudes de la adaptación de Echevarría. La idea de un chamán controlando los pasos dei conquistador, aunque carente de toda base histórica, no parece inadecuada dentro dei marco de la ficción cinematográfica. Puede, de hecho, interpretarse como un intento de conceder protagonismo ai colonizado, así como de invertir la tradicional dicotomía entre civilización y barbarie 8 • Lo que resulta cuestionable es la mistificación de la figura de Cabeza de Vaca. Una mistificación que tiene su origen en las manipulaciones dei propio autor de los Nautragios, pero que fue magnificada aún mucho más por historiadores posteriores, !legando a alcanzar, como hemos visto, dimensiones anacrónicas en el momento presente. Para muc hos, Cabeza de Vaca es hoy día un abanderado dei multiculturalismo; un precursor dei movimiento chicano; un conquistador humanitario y altruista; y un avanzado de la etnología con un interés genuinamente científico en conocer ai "otro" indígena. Algo bastante alejado de la realidad histórica y en abierta contradicción con los datos a nuestro alcance. Esta tendencia a buscar en el posado héroes culturales que apacigüen nuestras propias ansiedades ideológicas olvidaría, sin embargo, un aspecto fundamental en la génesis dei texto: que la 8 Gustavo Verdesio desarrolla esta visión dei filme de Echevarria como parodia dei discurso dominante de la conquista. El énfasis en la condición de sometimiento de los espanoles en la película iria destinada a subravar "la inversión de la distribución de valores v poder en el encuentro cultural. Lo espanol aparece dominado. controlado por la naturaleza dei lugar v por sus habitantes" (Verdesio 198). Si bien es obvio el carácter desmitificador tanto de la relación de Cabeza de Vaca como dei filme de Echevarria en relación con el discurso oficial de la conquista, no es menos cierto que ambos tienden a "remitologizar" la figura de Cabeza de Vaca desde perspectivas ideológicas dispares. En los Naufragios, Cabeza de Vaca se presenta como conquistador leal v evangelizador eficiente v el filme de Echevarria convierte ai personaje histórico en un abanderado dei multiculturalismo de nuestros dias. 218 LETRAS . Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). imagen que se desprende de la obra es el resultado de la automitificación que Cabeza de Vaca lleva a cabo meticulosamente a lo largo de su relación. La presentación de sí mismo como leal conquistador y evangelizador pacífico, con dotes de líder político y religioso, conocimiento geográfico y etnológico dei territorio, así como capacidad retórica para encender la imaginación de sus lectores, tiene un objetivo que no es principalmente ético, científico ni literario, sino político y militar: justificar obedientemente sus acciones en la Florida y la Nueva Galicia y solicitar nuevas "mercedes" dei emperador (su nombramiento como capitán o Adelantado de una nueva expedición). Como ocurre a menudo en el cine histórico, la película de Echevarría explota el mito de Cabeza de Vaca como héroe cultural. Pero, aunque presenta ai protagonista como un abanderado dei multiculturalismo y la coexistencia interétnica (en lugar de un conquistador parcialmente aculturado), el filme degenera en una vi sión "orientalista" y mistificadora dei personaje, perdiendo de vista por completo la finalidad principal de la relación: obtener mercedes dei monarca (la dirección de una nueva aventura colonizadora dentro de la empresa imperial espanola). ldeológicamente, la adaptación llevada a cabo por el dramaturgo espanol Sanchis Sinisterra se aparta sustancialmente de los dos modelos anteriores. Si la crónica de Álvar Núnez expresa de modo inconsciente, pero recurrente, la dificultad dei protagonista para establecer un espacio de identidad propio en relación con nativos y conquistadores, la obra de Sanchis Sinisterra le da a este progresivo "descubrimiento" dei Otro indígena un valor trascendental. LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 219 La obra teatral de Sanchis Sinisterra presenta literalmente una representación de los hechos narrados por Álvar Núnez desde una perspectiva ideológica que cuestiona tanto la relación de los hechos escrita por su protagonista como la mistificación de los mismos !levada a cabo a lo largo de los siglos y, muy especialmente, en el momento presente. El primero de los dos actos de la obra se abre con un Álvar integrado en la vida burguesa de la sociedad dei siglo XX, pero que escucha con inquietud las quejas de Shila, su apócrifo mujer indígena, que le recrimina el olvido de que ha sido objeto en su relación. Los protagonistas de la expedición, tnsatisfechos taíí'1bién ante la veíslón dada por Álvar, fuerzan a éste a representar su papel, a revivir una vez más los acontecimientos descritos en la crónica. Es importante senalar que son las voces más marginadas en la relación aquellas que monopolizan progresivamente la obra dei dramaturgo espano!: las de las mujeres que obviamente debieron existir en la vida de los conquistadores y la dei negro magrebí Esteban (o Estebanico) que en la pieza dramática es presentado como un vagabundo alcoholizado. Progresivamente se van poniendo en escena algunos de los episodios más significativos de la relación: la torpeza y testarudez de Narváez, los padecimientos sufridos por los expedicionarios, !o esc!ovitud de Á!vor, su cuestionob!e pape! de chamán (que también habían compartido sus companeros), las profecías dei desastre hechas por la llamada Mora de Hornachos, y un largo etcétera. En las descripciones de tales episodios se repiten literalmente las palabras de Álvar en su relación. Pero tales descripciones son cuestionadas por los personajes de forma sistemática. Así, se le acusa a Álvar de monopolizar su papel milagrero, de ignorar los padecimientos de sus companeros, de repudiar a su esposa indígena, y 220 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). de omitir en sumo todos oquellos ocontecimientos que no hubieron contribuído o magnificar su imogen. En último instoncio, lo obro se revelo como el ensueno de Shilo, quien lo concluye con estas palobros: No sé de qué me hablas. Esas palabras ... "final ... "historia" ... no están en mi lengua. (Indica ai tondo de la escena.} Allí no hay nada. (Miro a su olrededor). Bueno ... No hay nada en ninguna parte ... (Pausa). Todo esto ... todo lo que ha ocurrido ... lo estoy sanando yo. (238) Lo obro teatral de Sonchis Sinisterro se presenta así como reacción frente ol fenómeno de la conquisto, pero también frente ol revisionismo "oficial" dei período. Pone ai personaie en su lugar histórico e idealiza en cambio un personoje apócrifo [Shila). Paradójicamente, resulta más verosímil que el filme de Echevorrío, yo que el discurso ontihegemónico no es puesto en boca dei conquistador, sino de un personaje imaginario, que por su condición de indígena y mujer es doblemente marginal. AI emplozor la occión dramática en nuestros días, el mensoje ideológico, de signo igualmente multicultural, se hace así más creíble y efectivo. Como en la mejor tradición dei teatro épico brechtiano, el espectador es convocado a juzgor de forma crítica la versión de los hechos transmitida en el registro histórico. A diferencio dei discurso monológico de Álvar Núnez, aparentemente dirigido ai Rey en busca de reconocimiento, Sanchis Sinisterra hace hoblar ai Otro a través de un personoje ausente en la relación: Shila, la mujer indígena que el conquistador hobría dejodo atrás en su desastroso periplo. A diferencia de la relación y de su adaptación cinematográfica, Sanchis Sinisterra nos ofrece la posibilidad de escuchar el discurso no sobre sino dei Otro. El Otro deviene así no objeto LETRAS Revista de Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). subalterno, sino sujeto creador, no sólo observado, sino también observador. La inversión final que generan las últimas palabras de Shila se corresponde con una de los técnicas de apropiación y resistencio características dei discurso genuinamente anticolonial. De tales palabras se desprende que todo lo acontecido ha sido (sigue siendo) parte de su propio sueno. Lo historia de la Conquisto se manifíesta de ese modo, como la fabuloción de una mujer indígena. El poder se desploza así de la metrópoli a la colonia, dei centro a la periferia. AI evidente fracaso de la empresa conquistadora de Cabeza de Vaca, Sanchis Sinisterra opone un triunfo apenas esbozado por Álvar Núnez y Esteban Echevarría: el nacimiento de un tercer tipo de olteridad o, como ha expresado el propio autor, "el acceso o una identidad mestiza, fronteriza, un no ser de ninguna porte y por tanto de todas" (Antón 7). Obras citadas Adorno, Rolena. "New Perspectives ín Colonial Spanísh American Literary Studies." Joumal of the Southwest 32.2 (1990): 173·191. "The Negotiation of Fear in Cabeza de Vaco's Naufragfos." Representatfons 33(1991 ):163-199. Antón, Jacinto. "Brecht en Mocondo." E/ país/Babefia, 16 de noviembre de 1991, 7. Barrera, Trinidad. "lntroducción." Naufragios, Madrid: Alianzo, 1985. 7-55. Bruce-Novoa, Juan. "Noufragios en los mares de la significoción: De lo relación de Cabeza de Vaca a la literatura chicana." P/ura/221 (1990):12-21. 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[p. 79) La fundación de Nueva Espana debe considerarse como algo más que la apropiación territorial de Mesoamérico, a pesar de tratarse de la colonizoción de un mosaico de pueblos indígenas sometidos por el invasor europeo. Se trotó sobre todo de uno fundoción textual que puso en movimiento la creación activa de textos doctrinorio -antropológicos que abrieron el mundo nativo para lectores transatlânticos. Esta empresa llevada a cabo especialmente por las órdenes religiosas, promovió una investigoción pragmático dentro de lo vida religiosa y local dei México prehispónico. Los froiles cronistas pusieron en funcionamiento algunas de las investigaciones más prodigiosos sobre una cultura exótica y dominada, desarrollando activos programas de cooperoción indianoreligioso paro recoger y re-estructurar los datos históricos de la nueva colonia 1 . EI fenómeno textual produjo dos movimientos alternativos en lo Fernando Ainso desorrollo en su ensayo: "Los signos imaginarias dei encuentro y lo invención de lo utopia", Anna Houzková and Martin Procházka Ed. Utopias ot the New World. (Praga: lnstitute for Czech and World Literature, 1992) un análisis de los 1 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 225 primera mitad dei siglo XVL por un lado, los textos europeos inva dían el mundo de los glifos mesoamericanos con el fin de instruir sobre una moral mediterránea, ai mismo tiempo que el emigrado europeo se preocupaba - dentro de los círculos religiosos y humanistas- por comprender esa fase de la cultura subyugada, sus pró cticas, historia, y su cosmologia. En este clima de creación textual se encuentra la recolección prodigiosa de Fray Bernardino de Sahagún. Sus informes etnográficos producidos por reportaje directo a los sobrevivientes de Tlatelolco, recuentan los diferentes aspectos dei mundo cuyas costumbres los misioneros trataban de convertir. En particular el "Libro de la Conquista" (Libro XII) de su prodigioso Códice Florentind articula el enfrentamiento de dos modelos culturales, en donde el relato ameríndio proy ecta la frustración creciente ante la incomprensión de un nuevo simbolismo político-religioso importado por los europeos. El discurso que se articula procedimientos pragmáticos que tomó la utopia en América a través dei discurso social y antropológico generado por las ordenes religiosas. A través de la crítica ai modelo histórico vigente en Espana, los misioneros proyectan el modelo de cristianismo primitivo en el mundo nativo, de ahí su necesidad de estructurar el conocimiento dei México local. AI mismo tiempo que esto ocurría, para los escritores seculares la producción de una literatura etnográfica no tenía mayor importancia, y sus objetivos estaban relaCionados con el registro de las hazanas espanolas en tierras nuevas. Para ellos. el mundo textual era también el mundo dei reclamo social. La letra concedió un prestigo preeminente a soldados rasos que habían partido de las costas espanolas hacia ya varias anos. 2 El trabajo de Sahagún se denomina normalmente La historia general de /os cosas de la Nueva Espana. Este errar se debe a que la página con la versión más detallado con el nombre de Códice Florentino se perdió. Sin embargo, otras versiones de Sahagún no omiten este título. Para un rectificación de este errar consultar la obra de Jesús Gorda Bustamante: Fray Bernardino de Sahagún: Una revisión crítica de los manuscritos y su proceso de composición. (México: UNAM, 1990). 226 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). :Jor parte dei recolector, sus nahuatlatos 3, y los nativos informantes propone una lectura ambigua de la posición de los nahuas enmarcados dentro de una situación colonizadora. Narrando la derrota final, derrota que elimina la diversidad cultural desde la cultura material: alimentos, rapas y armamentos hasta la configuración dei espacio histórico, por lo tanto espacio simbólico, ritual y grupal de los indígenas, el texto invita a una lectura compleja de los protagonistas: el escritor/ el sobreviviente. El lenguaje- tema crucial para Sahagún interesado en las curiosidades lingüísticas- posa a ser el espacio de la invasión por excelencia, en la m,......,...,lj,-,1,.... ,....., ,......._ I IIVUIUU \....jUV J,.....,.. IUV ,.............,-..+,.!,f,.....,.,..,.,.. I I IVIUIVIU,) 1 ,.., ,,... .JU.;) ,.........,....., ,; .......... ;....... .-.+,.....,... I IIVVII IIIV'I I IV,) ,..,J,-.. UV' ,.,f.-.+,...... ... ;,.. ', ,)JliiV'o)l.) y ,....j VI .....,,......,....,.......,+,...._ UI--JUIUJV jeroglífico indumentaria de la cultura oral, se reduce dentro de la traducción colonizadora, produciendo un texto ya editado a nivel verbal, descontextualizado de la identidad dei grupo local mexicano. Este es el momento que elige Carlos Fuentes para trasladarse a los antepasados de su raza, en "Ceremonias dei Alba" (primera versión 1968, segunda 1991) pieza teatral que nos enfrentará a esos últimos días de la historia de la Conquista, tomando cosi literalmente los pasajes dei Códice sahaguntino 4 • Lo impactante de la pieza es su fidelidad a un 3 Los nahuattatos o interpretes, reconciliaron la parte prohibida de su posado con la realidad colonial inevitable. Las función que cumplieron fue fundamental si se considera las múltiples formas que tuvieron que adaptar a nuevos conocimientos y técnicas extranieros. AI decir de Gruzinski: "There were a multiplicity of expressive media: glyphs rubbed shoulders with the alfabet and musical notation: the painted picture met the engraving; oral transmission oscillated between prehispanic or Christianized forms; plain chant, poliphony followed upon ancestral dances. Multiplicity also of languages: Latin and Spanish were added to the lndian languages, dominated by Nahuatl, which served everywhere as língua franca. Multiplicity of calendar in the Annals, which recorded the lndian and the Christian year at the some time." (p.62) The Conquest of Mexico. The lncorporation of lndian Societies into lhe Western World, 16th-18th Centuries. ( UK: Polity Press, 1993). ' Carlos Fuentes desarrolla un paralelismo histórico de formidable fidelidad ai Códice sahaguntino. Como en otros trabajos suyos tales como Terra Nostra o Cristobal Nonato, LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 227 documento producido en el siglo XVI en nóhuatl clósico y espano! renacentista y todavia capaz de procurar - como en otras producciones narrativas de Fuentes- una reflexión sobre el posado, reflexión que realmente marca la presencia dei texto en el presente mexicano, por cuanto los personajes históricos tienen ya una noción dei destino que les esperará cumplir. Dentro de ese dialogismo de tiempos - y a la manera dei documento etnográfico franciscano- dos edades dialogan: el presente y el posado, la Malinche y Marina, el mudo dei conquistador conquistado, la fuerza dei caos que sobreviene después de la caída dei imperio azteca. El protagonismo de Marina en la obra de Fuentes ofrece una lectura contemporónea. puesto que en el Códice, Malinche es solamente una alusión aunque se trata de una protagonista clave para la historia de conquista. Su presencia dentro de los textos novohispanos y en la correspondencia dei Corpus Cortesianum (l 51 9- l 526) no ocupa mós que unas breves líneas ai rey. AI decir de Baudot en México y los albores dei discurso colonial: Lo único que concede el conquistador es una alusión pasajera a la situación de intermediaria obligado que cumplía Malitzin cuando las conversaciones políticas con las poblaciones o con las autoridades ameríndias, y esto con ei caiiíicativo anodino de "nuestra lengua" o de " la lengua". Escrita por una pluma tan racional y tan preocupada por el nivel de proximidad dei relator con respecto ai relato y a su voluntaria y supuesta objetividad, este mensaje dei conquistador dentro de su estrategia verbal es ya profundamente significativo. En el el posado establece su tejido de relaciones y lo historia deviene el texto primigenio poro lo búsquedo de uno identidod mexicano y lotinoomericono. En el cruce de los posiones - a muchos niveles- que desorrolla la historia de conquista, como escr'rtor encuentra el júbilo y la tragedia de una región vencida y que ai mismo tiempo está por nocer, tal como lo expresa Bernardo Ezequiel Koremblit en " Trogedia y humor dei Nuevo Mundo: la narrativo de Carlos Fuentes" Buenos Aires: La Prensa. 20 de Morzo de 1988. 228 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). proceso de ficcionalización que va a plasmar su representación de la conquista, el papel atribuido (sin insistencias) a la palabra de Malintzin es, sin embargo, el de la crucial distribución dei discurso, el dei reparto político y verbal que implica una situación central. Aunque la intención de Cortés, a nivel inmediato, no fuera ésta debido a la carga táctica que anda inserto en Las Cartas de Re/ación. A todos nosotros, y también a nivel inmediato, nos parece poco, incluso muy poco, tratándose de una mujer que le ofrecía las llaves de un imperio. ( 288) Carlos Fuentes hace ingresar a Marina en escena como la verdadera "traductora" de esta historia de dos mundos. No ve en ella la depositaria de los adjetivos hostiles y de las postergaciones de sus coetáneos, sino que la identifica como la mujer dei gran enigma de la identidad mexicana, dei nepantla. término náhuatl para denominar la situación de intermedio. Marina viste el huipil bordado de su cultura y aparece en la oscuridad total dei escenario mientras un rumor de escoba que barre se escucha en el fondo. Cuando ella se dirige a la audiencia lo hace llena de preguntas que nos introducen ai conflicto de su identidad pero de una identidad que como la cultura grupal prehispánica representa mucho más que un "yo", y se extiende a los conflictos territoriales y políticos de México. Malitzin, el nombre recibido por sus padres que la abandonaran, y Marina, nombre que recuerda el océano, ruta de tránsito desde donde llegaron los espanoles para desarticular el poder de los nativos se relacionan complejamente juntos. Con esos dos nombres, dos hombres están también enclavados en su propia identidad: Moctezuma Xocoyotzin, gran tlatoani de México y Fernando Cortês, capitán y pequeno hidalgo de Espana. Cuyos datos biográficos procurados sucintamente en la pieza son, a pesar de lo LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 229 breves, suficientemente orientadores para ver el nino que crece con una geografia en plena exponsión: Hernán Cortés. Natural de Medellín, en Extremadura, hijo de molineros que reunieron escasos recursos para mandarme a Salamanca, donde fui gorrón y caballero de la tuna, decepcionando a mis padres. Algunos !atines, sí. unas cuantas leyes, pero sobre todo, libras de caballería que ensenan las normas dei arrojo y el honor, y relaciones dei nuevo mundo que ensenan a sonar con las ciudades de oro y las belicosas amazonas ... Te das cuenta?, tenía siete anos cuando Colón descubrió el Nuevo Mundo. (60) A la hora de llegar o Mesomamérica, Dona Cotolina, primero esposa de Cortés se hobío quedado en Cuba, v el matrimonio no se reuniría va para una existencia feliz en Nuevo Espano, sino paro la sospecha v la muerte. Moctezuma Xocovotzin, el otro hombre clave de Marina, es en cambio un mandataria llenos de poderes, poderes que sobrepasan a cualquier hombre, de él dice Marina: " Nadie puede miraria a la cara, tal es su fulgor. Moctezuma es el sol en lo tierro. Le sirven en su palacio más de tres mil criados v cuenta con treinta mujeres para holgarse" (64). Marina negocia uno nueva concepción de sí misma, enfrentado o una guerra en donde traducir es facilitar el conocimiento dei Otro, través dei contraste entre hombres de dos mundos va simbólicos comprende que su propia identidad está también abriéndose a nuevos e inesperados eventos que responden o las autoridades invisibles pero presentes en la figura de Cortés: un rey v un dios cristiana v europeo. Cortés siendo la figura de negociaciones por excelencia, dispuesto ai pan amargo v mohoso de esas expediciones interminables con el fin de recoger el botín dei oro, reflexiona en la obra que:" No se puede regresar LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). a un hogar miserable. El futuro está aquí ... No podemos regresar con las manos vacías". (74). La ambición cortesina instala a Malinche dentro un juego propio, juego destinado a la fortuna personal, es la de una mujer que, en cierto momento, asume el estado de sumisión frente ai caudillo de una expedición ambiciosa y violenta 5 , pues en una de las anotaciones para la pieza Fuentes apunta que: " Marina ayuda a Cortés a desvestirse, quitándole la armadura. Hay un paralelismo con I os gestos de las doncellas vistiendo a Moctezuma" (90). Este gesto podría leerse también como un gesto anticipatorio dei traspaso de poderes que tendría lugar en Tenochtitlán, en gran parte por la ayuda lingüística y valeroso de Marina. Como vemos en el "Libro de la Conquista" esos objetos únicos, los envía Moctezuma a Cortés, como senal de bienvenida, son los hombres, no las mujeres las que aparecen preocupados por apariencias en el recuento de la Conquista, y son ellos los que se preocupan de que el cuerpo como sitio de autoridad, asuma una presencia ideal. En el Capítulo IV se describen los artículos lujosos enviados ai conquistador espanol, entre ellos: 5 Cortés después de la conquista va negociando progresivamente sus ventajas económicas y sus títulos. En una carta de Carlos V fechada el 1ero de abril de 1529, amplía el título de Cortés de "Capitón general" a "Capitón general de toda la Nueva Espana y províncias y costa dei Mar dei Sur". La Reina el 5 de abril de 1529 ordena que se concedan honores a Hernando Cortés, marquês dei Valle, durante su viaje de regreso a Nueva Espana. El 16 de abril de 1529, el Papa Clemente VIl legitima los Ires hijos naturales de Cortés: Martín Cortés (hijo con Malitzin), Luis de Altamirano (hijo con Antonio o Elvira Hermosillo) y Catarina Pizarro (hija con Leonor Pizarro, acaso pariente de Cortés). En otra cédula real ese mismo afio Carlos V y la Reina Juana le otorgan veintitres mil vasallos. Este poderío creciente no inicia mós que otra batalla en la vida de Cortês, entre la iglesia y los ex-compafieros de armas, numerosas peripecias lo acompanarían durante el resto de su vida en México, como lo atestiguan los Documentos Cartesianos (1528-1532) (México: UNAM, 1991 ). LETRAS - Revista da Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS(. 231 ... Lievaban también unas orejeras de oro: llevaban colgados unos cascabelitos de oro, y sartales de caracolitos marinas blancos y hermosos. De estas sartales colgaba cuero que era como peto, y llevábanle cenido de manera que cubría todo el pecho hasta la cintura: !leva este peto, muchos caracoles sembrados y colgados por todo é!; llevaban también un corselete de tela blanca pintado, la orilla de abajo de este corselete iba bordada con plumas blancas en tres listas por todo e! rededor: llevaban una manta rica, la tela era de un azul claro y toda !obrada encima de muchas labores de azul muy fino, (726) Los artículos entregados van desde mantas hasta máscaras, sombreros, y plurnojes preciosos engorzodos en piedros como e! jade o la obsidiana, favoritas dei emperador azteca. Berna! Díaz, que aparece en la pieza teatral de Fuentes como un cronista en gestaci ón, el hombre que posteriormente replantearía y recontaría la Conquista, otorgándole a Marina el lugar de una traductora excepcionalmente valiente, le recuerda a Cortés la importancia de las ropas, cuando abriendo un baúl comienza a sacar las ropas de cabo llero elegante que Cortés utilizara ai ser nombrado jefe de la expedición de Cuba. Marina ai ver estas ropas las celebra - aunque nunca vemos a Marina embellecerse- coloca a Cortés penachos, medallas y cadenas de oro, junto a las prendas de terciopelo que recuerdan el mundo dei esplendor ibérico. En estos signos culturales advertimos que la presencia femenina de Marina es una presencia fundamental dentro de la dualidad ideológica y política que plantea el enfrentamiento de estos dos mundos. Aunque hay que recordar que el enfrentamiento está orientado sobre todo, por parte de los europeos a la dominación de la cultura material 6 y la abundancia 6 No podrá ser suficientemente enfatizada la diferencia de la cultura material espafíola. La dominación de ciertos metales como el acero dió a los espafíoles desde el principio ese halo psicológico de dioses, brillando con sus cuerpos. José Lameiras Olvera, 232 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RSJ. azteca, que eventualmente, como fuero explicado, revertiría el problema de identidad dei mismo Cortés afirmándolo frente a la Espana que dejaba atrás y a la que quería conquistar por medio de su gloria económica. Marina como traductora de los signos materiales aparece en un segundo plano durante este recuento de Cortés para reaparecer cuando el conquistador duerme. Este sueno - que nunca vemos en el "Libro de la Conquista"- da tregua a las ambiciones cortesinas, mientras Marina reflexiona sobre México, el México que de olguna manera comienza a desgajarse. En estos pensamientos Marina dice en voz alta a Cortés mientras duerme abrazado a ella:" Sé, en verdad, la Serpiente Emplumada; devuelve, en verdad, la unión y la felicidad a este pueblo disgregado y sometido ... No desvastes este jardín." (1 06). Este pensamiento protector hacia la ciudad esplendorosa que ha llegado a ver por primera vez, sugiere que Marina quería creer como los mexicas, que Cortés era ese dios, el teúl que daría una oportunidad de reconciliación entre pueblos fatigados de impuestos y de sacrifícios humanos requeridos por Moctezuma. Pero las alianzas mismas que Cortés va estableciendo relatadas en el "Libro de la Conquista" y en la que Tlaxcala cumple un papel fundamental en el Capítulo XXVII, nos dan encuentra otra diferencia entre el hombre renacentista y el mesoamericano, que reside en la cultura material comprendida dentro de un ciclo simbólico en el que celebrar y guerrear eran parte dei calendario indígena. Ader-.ás de la conformación sacio-política mesoamericana que se sustentaba en la guerra. ·• El caso de los mexica, tepaneca, acolhua, colhua, chalca, huejotzinca, xochimilca, coyuaque, tlaxcalteca, y oiros grupos dei Altiplano Central; /os mixtecos y zapotecos, mayas y huastecos, totonacos, chontales y demás etnias surenas y orientales constituían sociedades estratificadas con la nobleza a la cabeza. Lo guerra ejercida por y entre ellas a lo largo de once siglos iría !levando a estratos superiores a los militares." (p.86) La llegada de nuevos armamentos, desacralizodos y llenos de novedad, fueron el gron impacto de Cortés en su derroto final de Moctezumo. E/ encuentro de la piedra y e/ acero: la Mesoamérica militarista dei Siglo XVI que se opuso a la irrupción europea. (México: EI Colegio de Michoacán, 1994). LETRAS -Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). 233 una pauta dei territorio dividido que permite el ingreso y la derrota de Tenochtitlán. Incluso como lo sugiere Ryszard Tomicki 7 , en este momento dei siglo XVI en Mesoamérica, no es extra no que circularan profecías antiMoctezuma e incluso antitenochcas, a partir de la subyugación de estos pueblos frente ai gran imperio dei Valle de México. De Moctezuma se dice: El bienaventurado Moctezuma no le dirige la palabra a nadie: a los mortales, por indignos; a los dioses, porque ya conocen su pensamiento. Sobran las razones. (112) Marina, criada entre los magos y los adivinos, en una concepción religiosa circular y por tanto repetitiva, debe contraponer la expectativa de ese universo prehispánico basado en la interpretación divina y en las senales supersticiosas, ai mundo expansivo y táctico de los hombres con los que comparte este avance territorial. En ellos, los signos encantados y los calendarios son fabricaciones que pueden ser conquistadas no a partir de la sugestión sino a partir de la razón y la acción guerrera. El desplazamiento que toma lugar entre la historicidad de la memoria mexica, y el implantamiento de nuevas condiciones simbólicas, se da el hecho mismo de nombrar, siendo "la lengua", la Marina de Fuentes 7 Tomicki cuestiona la información de los records dei siglo XVI, argumentando que los hechos históricos reales han sido encubiertos por una serie de levendas políticas posteriores. En el Códice Florentino, la debilidad de Moctezuma puede haber sido recreada posteriormente. los hombres son tratados como mujeres que sienten miedo ante lo desconocido. Pero la anti-popularidad de Moctezuma es evidente antes dei ingreso espano! ai territorio mesoamericano. v frente a las aspiraciones absolutistas que el emperador sentia por otros pueblos subvugados dei complejo de Mexico. Con Moctezuma Xocovotzin, el domínio de los mexica-colhua-tenochca estaba asegurado, pero su autoridad militar. religiosa v política tomo características absolutas. tal como describe Diego Durán en Historia de las lndias de Nueva Espafía, 2 vols. (México: Edina, 1967). 234 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). reflexiona en torno a las condiciones dei lenguaje, cuando êste es tambiên una trampa y produce una fuerza desarticuladora dei espacio y el tiempo, por el mismo nombrar que se modifica entre el náhuatl y el espano!, ella dice: Cómo se llamó antes esta montano?. Cómo se llamará ahora este río?. Recuerdas el antiguo nombre de este pájaro?. Qué nombre le pondremos a esta nueva ciudad? ... Cómo te !lamas? Cómo hablas? Quién habla por tí?. Cuáles son tus pala bras?. (119) En otro momento de ternura - de los muchos que la obra muestra entre el joven conquistador y Marina - Marina le pregunta: " Quieres conocer lo que dice tu lengua?" y Cortês la besa apasionadamente, mientras ella lo separa y le dice: "Tu lengua dice que las lenguas de esta tierra te nombran como a un Dios" (127). Es indudable que Marina rearticula estos dos mundos desconocidos el uno para el otro, un problema por otra parte más importante si se considera que Cortês no puede comunicarse con ninguno de los dos emperadores más importantes de su tiempo, con Moctezuma ai no poder intercambiar con él una sola palabra en náhuatl, y con Carlos V, porque el emperador no püede hablaí espaflol: No, por mi fe, mi joven rey don Carlos ha !levado plácida vida fuera de Espana: hijo de Flandes, ni siquiera sabe hablar espano!, hijo de Juana, la reina loca, ha vivido tanto recluído como su madre, entre preceptores, médicos y cortesanos ... De ahora te lo apuesto mujer: jamás pondrá un rey de Espana las plantas sobre estas tierras ganadas por nosotros para su linaje. Yo, en cambio ... yo, desde nino, he vivido con los ojos llenos de la visión dei nuevo mundo. (128) LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 235 No existió en Mesoamérica la posibilidad de biculturalidad que darían las doctrinas ilustradas a los nativos a punto de convertirse. Esos textos persistentes que florecen a partir de una ideología cristiana, contienen la posibilidad de reordenar el mundo caótico dei lenguaje, mundo en cuya riqueza y asombro perpetuo se mueve Marina. La destrucción de Mesomérica aparece para ella como la destrucción de esas construcciones fabulosas, construcciones ficcionales y ricas en imaginación como las de los libras de caballería. El lenguaje que representa Marina está en un proceso de crisis por cuanto la misma iglesia que promovería lingüistas brillantes y dedicados, enmarcarían la cultura indígena dentro de los parámetros de una ideología diabólica. Esas pala bras y textos glíficos, pinturas y memorias que Sahagún se empena en recoger en el Códice, pasan a tener el status de textos prohibidos, textos que la inquisición perseguirá en la segunda mitad dei siglo. Lo que Marina viene a pronunciar y traducir, no borra el status de nepantla puesto que Olmedo, como representante de la iglesia rígida, enfrenta a Marina y a Cortés en "Ceremonias" anticipando el papel posterior de los clérigos en asuntos de legislación de la moral y los usos cristianos, en un momento en que Marina exalta a Cortés en las virtud es de su sueno expansionista, dice Olmedo: Calla ya, mujer diabólica, que aunque has recibido de mis manos el agua dei bautizo y la senal de la cruz, sigues perteneciendo tu alma pagana a estos inmundos ídolos de piedra, que en nuestro camino vamos destruyendo. (129) A Cortés, Olmedo lo increpa prometiendo una venganza futura, en la medida que la Conquista no es solamente para el rey sino también para la iglesia. Esta iglesia planeará una apropiación de los mexicanos a 236 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). través de la conquista espiritual, retórica, obsesiva, sobre esas manifestaciones "idolátricas y paganas" que el mismo Sahagún describe en su prólogo allector. Las recolecciones nativas- producidas a partir dei esfuerzo genuino de estas órdenes- son los manifiestos más claras de un guerra textual entre el texto oral vencido y apropiado por la escritura que fractura ese mundo y lo devuelve intacto. Olmedo anticipa en la obra, esa manipulación de la historia "pagana", pre-cristiana, politeísta. La derrota Moctezuma Llegamos a esta tierra con un solo dios, Huitzilopochtli. deidad de la guerra. Pero para legitimarnos tuvimos que apropiarnos de un segundo dios, Quetzalcóatl, deidad de la moral. A quién debo honrar ahora?. (p.l39) En esta pieza que no está dividida en escenos, identifico una segunda parte que se produce a través de la derrota sangrienta sobre el pueblo mexica. Tros la invasión ai polocio de Moctezuma, con lo muerte violento de los mexicanos, lo que era entonces el jordín entre lagos que Marina deseaba preservar, se ha convertido a merced de los espanoles y la pestilencia. en un campo de batalla cruento donde Malinche reconoce en voz alta la nueva tiranía, la de Cortês ... AI escuchar estas palabras, Cortês tira ai suelo a Marina, moltratándola físicamente por primera vez, las palabras que le dieron un imperio se convierten en palabras que le pesan: LETRAS Revista do Curso de Mestrado em Letras do UFSM [RS). 237 Cuida tus palabras, bruja; no sea que te devuelva a la esclavitud de la que te saqué; no sea que te entregue ai más bojo de mis soldados. (158) Marina entonces intensifica el discurso de protección hacia el pueblo mexicano, tal vez porque comprende que su propia identidad está realmente fragmentada en este mercado de esclavos y muertos en el que se ve forzada a permanecer trás las acciones cortesinas. Su discurso invita a la reflexión después de la acción fulminante que deja en ruínas a Tenochtitlán. Marina se pregunta y le pregunta a su companero: Qué habríamos encontrado nosotros en tu casa si esta historia sucede ai revés?. Qué maL qué horror, qué sacrificios, qué tiranías, senor, en tu propia casa?. Trata de entendernos. Danos una oportunidad. No mates el bien de mi pueblo tratando de matar sus males. No destruyas nuestra frágil identidad. Toma lo que está construido aquí y construye algo ai lado de nosotros. No asesines a mi patria. No nos quites nuestra historia, pues también gracias a ella eres quien eres. Alguien, alguien, nunca más nadie. (159) El diálogo apasionante entre los dos protagonistas principales de esta historia, hace comprender que Cortés, joven, poderoso, rico, encuentra en la Conquista finalmente el hilo conductor hasta su propia seguridad social y personal. Mesoamérica es el territorio que le devuelve una imagen distinta, ahora puede reconocerse. Pero Marina intuitivamente describe a Cortés sus mie dos: Te amo y no temo tu muerte sino tu destino, pues el destino es siempre más breve que la vida, y la muerte es seguir viviendo cuando el destino ya se cumplió. (161) Esta anticipación a manera de presagio, signará en la realidad las vidas de Cortés y Marina después de la Conquista. Sus roles se 238 LETRAS -Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). desvanecerán en una nuevo red de relaciones políticas en las que el destino cumplido quedará subyugado ante las pautas de un primer virreinato y en medio de la metodología didáctica y evangélica de la iglesia. Ni siquiera el hijo que Marina pare con un largo monólogo en la piezo, puede creor la seguridad de un espacio común paro los dos. Este hijo nace después de lo derroto indígena y o este hijo Marina le advierte que no podrá gozar dei privilegio de los hijos nocidos entre espanoles, porque es un hijo blonco y moreno, un hijo dei mestizoje, ocupando el espacio de nepontlo que es su propio espacio desde el momento en que fuera bautizada por los hombres de Cortés. A ese hijo le auguro uno infelicidad que ella misma experimenta, una orfandad que le es conocida y resentida, y una astucia que Marina ha sabido ganor a través dei lenguaje, de los trompas de lo lengua y de sus mutociones. Ahora le pide o su hijo que se convierta en lo Serpiente Emplumada, la que regresa: ... mi hijito de la chingada, tú deberás ser la serpiente emplumada, la tlerra con alas, el ave de barro, el cabrón y encabronado hijo de México y Espana: tú eres mi única herencia, la herencia de Malitzin, la diosa, de Marina, la puta, de Malinche, la madre .. (178) AI repetir su nombre en la diferentes etapas de reinterpretación que éste tuviera, encontramos que la fragmentación ha tomado lugar, porque ella no puede parir uno unidod, como no puede parirse dentro de este espacio como una mujer nuevo. El posado está latente, y ese posado la fractura frente a los vencidos. AI mismo tiempo, como madre, asume una actitud de revancha ante esa fragmentación que la LETRAS ·Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM IRS]. condena en la cultura mexicana. Judy Mclnnis en su artículo "La Malinche as Symbol of lllegitimacy and Betrayal" ejemplifica esta lucha de ideologías frente a Malinche/Marina/ Malitzin como un ícono mexicano: As Sandra Cypess points out in her book La Ma/inche ín Mexícan uterature. Paz denied Malinche the" sacredness ... as mother of the Mexican people" that his grandfather lreneo Paz has developed in the novel Dona Marina. While lreneo developed her as embodiment of the Virgin Mary archetype possessing beauty. courage, valor, a good heart and compassion, Octavio assimilated her to Eve. the woman who betrays and brings the downfall' of her people. Octavio Paz's identification of Malinche with "la chingada" and "la llorona" reduced her to an example of female passiv'lty yet more abject than Eve. (53) Dentro dei complejo de la historiografía mistificadora. no cabe duda que Marina fue una participante eficaz para los propósitos cortesinos y espanoles. a lo que agrega Georges Baudot: Cabe anadir que su intimidad física con Cortés le ha facilitado e incluso permitido este papel central en donde se elabora el proceso decisivo de la conquista. Podemos así notar, en efecto. que Malitzin sólo fue la amante dei conquistador durante el período determinante de la empresa, es decir, desde la llegada a Tlaxcala hasta la caída de México [más o menos durante dos anos), que el hijo de sus amores, Martin Cortés. nació en la primavera de 1522. lo que sitúa el momento de su concepción en la fase final de la Conquista, en el sitio de México. cuando el destino parecia por fin volcarse definitivamente. Habrá que subrayar también que estas amores se distanciaron. a veces se enturbiaron, después de la victoria final, como si el proyecto que los regia ya no existiera. ( 297) Hacia el final de la obra se perfila la historia de Bernal Díaz como la futura crónica que en la vejez el soldado de Cortés podrá brindar una 240 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). visión fresca de estos momentos culminantes para la vida mesomericana. Con su pluma ejercerá un poder único: el de examinar su propia historia y la historia de los personajes de ese tiempo bojo una mirada benevolente para Malinche, y en general para la cultura mexica. Sus páginas renegarán nada menos que de todo lo escrito con anterioridad, anticipando a los lectores un despliegue único de esos momentos culminantes en la vida de los dos imperios. Si la identidad de Cortês es un problema durante toda la obra, la identidad de Marina es una búsqueda incesante, agigantada por la proximidad dei derrumbe de un imaginaria social e ideológico que ve anticiparse a sus veinticinco anos. Los interrogantes que se plantean los personajes ai final, son interrogantes que los colocan como protagonistas y espectadores ai mismo tiempo: dónde está ahora el nombre de las cosas?, a quién servirán estos nuevos sujetos, estas realidades locales, de qué forma se articularán, articulándolos?. Por tanto, el espejo dei fondo, espejo que a dominado toda la pieza y en el cual pasan reflejados estos distintos momentos de Marina/Malinche se rompe, y coe hecho pedazos. Esta es posiblemente la metáfora de una ruptura definitiva dei protagonismo de Marina ai terminar el encuentro bélico, y ante la rápida apropiación territorial que las órdenes religiosas hicieron, construyendo conventos en los antiguos templos, quemando o prohibiendo las pinturas sagradas, traduciendo para someter el mundo de los rit uales ameríndios. La nueva Malinche de Carlos Fuentes tiene una voz y una conciencia para el espectador como no la pudo tener el lector dei siglo XVI. Elia es parte de un nuevo modelo cultural dentro de la búsqueda historiográfica contemporánea. Cuando la pieza fue escrita en 1968, Fuentes la produjo como un protesta pública contundente hacia los LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 241 problemas de la identidad mexicana, el eterno nepantla, la tradición de una derrota. Desde ese mismo ángulo, la mujer traductora funciona en la pieza teatral, como el verdadero nudo de las cuestiones que todavia afectan la historia mexicana. Como cronista contemporáneo Fuentes inicia la búsqueda de esa sensibilidad femenina, la misma que paralelamente busca en archivos e investigaciones Baudot, quien piensa que: Aquel largo viaje de reencuentro con ella mlsma parece así que duró cerca de veinticinco anos, un cuarto de siglo de soledad en Nueva Espana, después de un primer cuarto de siglo de helada rebelión en el México de los aztecas. Una vida que dos vertientes reparten por espacios cosi iguales, pero ambos marginados, fuera de todo trayecto previsible, más aliá de los Otros. Sorprende el silencio que Malitzin impuso a la última mitad de su existencia, probablemente por entero dedicada a su marido Juan Jaramillo y a sus dos hijos Martín Cortés y María Jaramillo rechazando honores y toda clase de éxitos sociales. Acaso la perseguían los recuerdos?. Acaso huía de la mirada de un pueblo destrozado, de aquellos índios que en Tlatelolco o en Texcoco la veían en suenos quemándose en lo más hondos de los infiernos, como lo recuerda Bernal Díaz: ".... cerca de Tlatelolco ... vió en el patio que ardían en vivas llamas el ánima de Cortés y Dona Marina ... " o aún: "... andaban en los patios de Texcoco unas cosas malas y que decían los índios que era el ánima de Dona Marina y la de Este artículo sin duda no concluye esa indagación en torno a la persona de Malinche ficcionalizada siempre entre los siglas XVI y XX 8 . 8 En mi artículo " ltoca Malitzin/Dona Marina: Biografia de una mujer indígena", exploro desde un enfoque etnográfico contemporâneo las diferentes versiones sobre el nombre y la figura de Malitzin antes y después de la conquista. Esa revisión posa por la documentación de archivos después de 1521 y continúa el proceso de indagación en torno a la figura de una mujer mítica a partir de nuevas concepciones históricas postestructuralistas. Consultar: Beyond lndigenous Voices. Ed. by Mary Preuss (Pennsylvania State University: Labyrinthos, 1996). 242 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). Quiero pensar que más bien ingresa ai corpus de construcciones especulativas en torno a esa mujer que con valor excepcional resistió y soportó ai mismo tiempo, la batalla, el embarazo y el colonialismo ideológico. No es posible creo, identificar a Malinche desde una perspectiva eurocéntrica, únicamente, puesto que una cultura circular, una cultura ritual la vió nacer y le otorgó un sentido a su vida. EI espejo de Fuentes ofrece una versión alternativa bojo una premisa particular: el ingreso de la mujer como sujeto de autobiografía, indagación, y análisis 9 . En un trabajo de elementos de síntesis cultural, "Ceremonias dei Alba" y el Códice ,c/orentino se semejan y se distancian en la e!aboración de de! mismo tópico. En el primero es ya un escritor mexicano enfrentando su propio posado 1y acaso su propia búsqueda cultural) mientras que el documento sahaguntino se inserto dentro de las complejidades ideológicas dei siglo XVI. Según Fuentes, en su prólogo escrito para la segunda versión de la obra: Mientras México no liquide el colonialismo, tanto el extranjero como el que algunos mexicanos ejercen sobre y contra millones de mexicanos, la conquista seguirá siendo nuestro trauma y pesadilla históricos; la sena de una fatalidad insuperable y de una voluntad frustrada. El clamor de la 9 En el capítulo: "Toward intimacy: The Fourteenth and Fifteenth Centuries" Philippe Aries and Georges Duby, comentan sobre el fenómeno de la auto-conciencia y el nacimiento progresivo de diarios, cartas, crónicas privadas que comienzan a nacer en este período. La emergencia progresiva de la narrativa autobiográfica es algo que ya conocen los europeos cuando ingresan a Mesomérica. Pera los sentimientos privados son desconocidos en los códices pre-hispánicos, excepto por áreas de dolor. fracaso, alegria, dolores comunes ai grupo en cuestión. Desde luego, las mujeres tuvieron un acceso limitadísimo a este proceso de individualización y proyección personal. Marina habla por Fuentes, que intuitivamente la refleja desde una sociedad en busca de una historia femenina. Para ampliar el tema de las subjetividad en la escritura, consultar el libra de Arles y Duby: A History of Pr/vote Life. Reve/ations of the Medieval World. (England: The Belknap Press of HaNard U.P., 1988). LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). 243 Malinche es la advertencia dei nuevo sacrificio humano v dei nueva necesidad humana dei México nacido en la conquista.(12) Entra las páginas guerreras de un encuentro único, Malinche en la ficción v en la etnografía permanece aún como esa Uenzo de Tfaxcald 0 , mujer que ocupa el la que habló durante anos en su persistente curiosidad y osadía, rica en palabras, poderosa en las intepretaciones lingüísticas de dos culturas, pero muda desde la iéonografía en la cual la reencontramos como la joven mujer mexicana que todavía nos asombra. La extraordinaria fuerza de su mito todavía nos revela, el espacio académico fresco de la mujer en la historiografía, y la necesidad de entrar en los juegos subjetivos de los textos antiguos y doctrinarios tanto como Fuentes lo hace en esta obra de teatro contemporâneo. Obras citadas Baudot, Georges. Lo pugno franciscano por México. México: Alianza Editorial México, 1996. _ _ . México y los o/bares dei discurso colonial. México: Editorial Patria, 1996. 10 AI decir de Serge Gruzinski "The Lienzo of Tlaxcala was probably painted to arder for the viceroy don Luis de Velazco between 1550 and 1564. lt is thus a commissioned work, 7 by 2.5 meters, which reconstructs the Tlaxcaltec version of events in 87 pictures. For these lndians it was also a politicai manifesto that did not hesitate to disguise events when they might refute the irreductible attachment of the lndtans of Tloxcolo to the cause of the conquistadores .... Although colonial in content, the Lienzo still in many respects belongs to the native tradition. Nomes of places and protagonists and dates were indicated according to custam by glyphs. The lndians were represented in profile with the attributes of their functions, the signs of their power - the ícpallí seat- the clothes of their rank, the hairdos of their tribes." (p.21 ). The Conquest of Mexíco. The lncorporation of !ndían Socíetíes ínto the Western World, 16th-18th Centuríes. (UK:Polity Press, 1993). 244 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). Cypess, Sandra Messinger. La Ma/inche in Mexican Literature: From History to Myth. Austin: U. of Texas P., 1991. Fuentes, Carlos. Ceremonias dei Alba. México: Siglo XXI Editores, 1991. Gruzinski, Serge. "Le passeur suceptible. Approches ethnohistoriques de la Conquete spirituelle du Mexique", Mélanges de la Casa de Velázquez, XII, pp. 195-217, 1976. . The Conquest of Mex1co. The lncorporation of lndian Societies into the Western World, 16th- 18th centuries. UK: Polity Press, 1993. Karttunen, Frances and James Lockhart. Nahuatl in the Middle Years: Language Contact Phenomena in the Texts of the Colonial Period, Publications in Linguistics: 85. Berkeley: U. of California P., 1976. Mclnnis, Judy. "La Malinche as Symbol of lllegitimacy and Betrayal". MACLAS: Latin American Essays. Volume VIII, 51-56, 1995. 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LETRAS- Revista do Curso de.Mestrado em Letras da UFSM (RS). 245 DAIMÓN Y EL EROTISMO DE LA CONQUISTA Terry SEYMOUR Ya/e Universtiy Según Abel Posse, la conquista espanola de la América Latina fue motivada más bien por el erotismo que por la búsqueda de riqueza, ya que la desinhibición de los indíginas en cuanto ai sexo llegó a ser un regalo de consolación a falta de encontrar las riquezas que originalmente habían buscado los conquistadores: "EI oro y las perlas dejaron de ser la única atracción, desde entonces en adelante los invasores encontrarían un gran consuelo. El otro oro fueron los cuerpos." [Posse 1989, 200). Sin embargo, Posse afirma que las crónicas acallaron la motivación erótica para conformarse con las regias de la moral judeocristiana: "Durante siglos la crónica oficial y académica acalló el móvil erótico con todo lo que tenía de destape y de salvaje libertad para gente que no veía desnuda a una mujer ni en la noche de bodas." (Posse 1989, 200). Uno de los objetivos explícitos que tuvo Posse ai escribir Daimón y Los perros dei Paraíso fue presentar el choque entre dos maneras de ver el erotismo. En Daimón, estos son las regias represivas de la moral judeocristiana y la idílica libertad sexual dei paganismo latinoamericano (Posse 1989, 200). Como sugiere la cita anterior, la novela de Posse interpreta la conquista como una búsqueda masculina dei Otro femenino. El conquistador Lope de Aguirre vuelve a la vida, y lleva a cabo una serie de encuentros sexuales que son a menudo poco satisfactorios o peNersos y que no se mencionan en las crónicas. Estos LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 247 incluyen violaciones, necrofilia, incesto, y prostitución. Además, las aventuras eróticas dei conquistador tienen sus paralelos en los cambios políticos y culturales que se dan en Amércia Latina. Así, Daimón, como otras novelas de los anos sesenta y setenta que tratan el tema de la conquista, intenta mostrar cómo los problemas contemporáneos tienen sus raíces en la historia de la región. La novela critica lo que Posse llama la "eterna adolescencia" de la región (Gorda Pinto 1989, 500) ai descubrir en su historia y su cultura un complejo edípico todavía no resuelto. Por otra parte, la manera en que Posse trata el erotismo en Daimón es píoblemática. Poí media de ün píoceso de 1nveísión paíódica, el autor asocia la represión sexual con la "barbarie", y la "civilización", con la libertad sexual. Sin embargo, aunque parodia la idea de Freud de que la represión erótica es un prerrequisito indispensable para la civilización, presenta el erotismo como un impulso peligrosamente rebelde y asociado con la voluntad ai poder. La manera de Posse de presentar a los personajes femeninos es aún más ambígua. Aunque invierte la evaluación dei arquetipo de la virgen y la prostituta, presentando ai personaje de la prostituta de manera positiva, el uso de degradación paródica sirve para reforzar estereotipas misógenos. Una causa de este pioblema es e! uso de la "parodio postmoderna" (abundantes alusiones paródicas a otros textos, los cuales muchas veces son citados en contextos radicalmente diferentes), lo cual es una característica de las narraciones postmodernas que Linda Hutcheon li ama metaficción historiográfica 1 • Estas novelas adoptan las 1 Aunque es verdad que el posmodernismo no existe en América Latina en el sentido de Jameson de un producto cultural que "expresa la verdad interna dei orden social que recientemente ha emergido dei capitalismo tardio" [Jameson 1983, 113}. ya que el capitalismo tardio no existe allí. muchas de las descripciones de las prácticas 248 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). convenciones de la historia y la ficción realista para socavarias, incluyen importantes figuras históricas como personajes, falsifican a propósito detalles históricos bien conocidos, incluyen cultura popular, y se preocupan [Hutcheon opina que están "obsesionadas") por la cuestión de la perspectiva dei historiador ["de quién es la historia que sobrevive", Hutcheon 1988, 49-50). Hutcheon alega que el tono irónico de la "parodia posmoderna" hace que la metaficción historiográfica sea inherentemente ambigua. Posse ha hecho hincapié en la importancia dei erotismo en la conquista, y su técnica principal para elaborar las huellas dei erotismo en las narraciones históricas y ficticias anteriores de la expedición de Aguirre es la parodia. Si se examina la relación entre el erotismo y la historia en Daimón, se comprenderá mejor la ambigüedad inherente en el uso que hace Posse de la parodia en esta novela. Posse no pretende funcionar en un vacío !iteraria o histórico: más bien le fascina resaltar sus modelos. Por ejemplo, hace hincapié en la relación entre Daimón y las crónicas de las expediciones que hicieron Orellana y Ursúa ai Amazonas. El Escribano está escribiendo su propia crónica que incluye citas de la Relación de la Jornada de Pedro de potmodernos (Hutcheon, Collins, Hosson) se hon bosodo en lo literatura latinoomericana dei Boom y el post-Boom (Rutfinelli 1990, 33). José '=>aquín Brunner ofrece la explicoción más convincente de esto, es decir, que lo experiencio lotinoomericono de la modernidod es de uno frogmentación que se expreso como "postiche",: "esto es, una configuración heteróclita de elementos tomados virtualmente de cuolquier porte, pero siempre fuero de su contexto de origen (Brunner 1988, 198). Según Brunner, o menudo la cultura Occidental de Américo Latino tomo la formo de un "pastiche" que no es irónico ni paródico. Sin embargo, también puede adoptar una perspectivo más distanciada hacio los elementos que incluye. Es este tipo de obra que corresponderia o lo que se llomo el posmodernismo. LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS]. 249 Orsua a Omagua y a/ Dorado2 - de Francisco Vázquez; otras referencias sugieren un conocimiento o de la historia de Toribio de Ortiguera o de una relación anónima que se cree que fue escrita por un sobreviviente de la expedición, y la descripción dei encuentro de Aguirre con las amazonas sugiere que Posse ha leído la crónica de la expedición de Orellana escrita por Gaspar de Carvajal 3 • Es verdad que estas relaciones no hacen referencias explíctas dei papel dei erotismo en la conquista, ni presentan una motivación 4 erótica para los conquistadores. Esto no es sorprendente, ya que fueron escritas para cumplir con una obligación de informarle ai rey de acciones que se llevaban acabo en su nombre en las Américas (Mignolo 1982, 71 ) o para disculpar la participación dei autor en actos de rebelión en contra dei rey (Pastor 1983, 412). Sin embargo, no falta un elemento de erotismo. Las crónicas de la expedición de Ursúa describen un episodio en donde dei orden se posa ai desorden y termina con la aparente resstauración dei orden 5 . La causa dei trastorno es la presencia de lnés de Atienza, la amante de Pedro de Ursúa. Como nota Pastor, las crónicas presentan a lnés como posible causa de la transformación de Ursúa de un conquistador modelo a uno que descuida sus deberes militares para mejor satisfacer sus deseos 2 Además, Posse ha dicho que hizo mucho trabajo de investigación historiográfica antes de escribir la novela (García Pinto 1989, 500). 3 Pastor muestra la transición de la transgresión dei orden establecido a su "restauración ficticia" en la crónica de Vázquez (41 7-424). 5 En 'Daimón, Lope de Aguirre lleva a cabo una transformación similar, dei guerrero de la primera parte de la novela "La epopeya dei guerrero", ai amante de la segunda, "La vida personal". 250 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). personales 6 . Los soldados que participaron en la expedición creían que o lnés había hechizado a Ursúa, haciendo que él se olvidara de sus deberes v finalmente llevándolo a la muerte, o que ella era responsable porque era una mujer "mala" o "inmorol": "uno le decio puta v otro le deçio que ella abio muerto ai governador con echiços" (Crónicas, 194). Aguirre también parece hober pensado que lo mujer sin honra era lo raíz de todo mal. Tonto Vázquez como Zúniga le atribuven a él este sentimiento: "Decio este tirano[ ... ] que habia de matará todos las malas mujeres de su cuerpo, porque estas eron cousa de grandes moles v escándalos en el mundo, é por una que el gobernador Orsúa habio !levado consigo habian muerto á él vá otros muchos" (Crónicas 238; 22). Aunque los cronistas presentan a lnés como la causa de rinas celosas entre los soldados después de la muerte de Ursúa, a veces parecen estar inseguros si lnés era realmente una "mola mujer'' o si en cambio el "problema" era simplemente su gran belleza. El grado de comprensión que le muestran varía desde la crónica de Hernández, ai cual claramente le da lástima la incómoda situación de lnés después de la muerte de Ursúa (Crónicas, 194) hasta lo de Ortiguera, el cuol adopta un tono más vindicativo, estructurando su narración explícitamente en torno ai tema de la honra/deshonra femenina. Para él, lnés de A tienza es un modelo de la deshonro v lo causa de grandes maldades: "v cierto se cree que si Pedro de Ursúa no !levara esta dona lnés, se poblara la tierra se excusaran grandes donos, [... ] v en efeto fué total principio v v 6 Aunque ambas mujeres mueren a estocadas, Ortiguera distingue claramente entre la muerte de lnés, la cual le parece el justo castigo por su papel como la fuente dei mal, y la muerte de Elvira, que era cruel y no necesaria, yo que ella era inocente y podía haber entrado en el convento. LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 251 destruicion de la jornada, y ai cabo murió cruel y tiranizadamente á estocadas y sin confisión, porque no quedase sin castigo" (Crónicas 46). Por otro lado, Elvira, la h'1ja de Aguirre, encarna la honra femenina. Las crónicas la presentan, por lo general, como una joven mestiza, como una doncella, o como inocente (Crónicas 279), ocasionalmente la presentan como una influencia que humaniza a los soldados (Crónicas 253). Cuando Aguirre la mata, es su crueldad más perversa; es un tirano y un demonio (Crónicas 149-150, 268). En la versión de Ortiguera, el demónico Aguirre le explica a su hija virgen que la va a matar para preservarle la virtud: ["para que ningun bellaco goce de tu beldad y hermosura" (Crónicas 149)]. La desventurada víctima coe de rodillas, pidiendo misericordia y ofreciendo meterse de monja para rezar por él. No obstante, el cruel tirano la mata a estocadas, ya que para él la virginidad femenina es igual a la honra. Por lo tanto, la presencia deshonrosa de dona lnés en la expedición !leva finalmente ai sacrifício de la inocente víctima, Elvira 7 • La sexualidad femenina desenfrenada y los sentimientos eróticos que ésta evoca en los hombres de la expedición son las raíces dei desorden y la rebelión, pero aún una virgen como Elvira provoca cierta preocupación. El tema de la honra femenina no aparece en la relación anónima, pero está presente en todas las otras crónicas que he examinado. Lo que Posse hace, finalmente, es invertir la idea de que el erotismo femenino es la raíz de todo mal (especialmente por medio de 7 En la novela de Ramón J. Sender La aventura equinoccia/ de Lope de Aguirre, los otros personqes desprecian a lnés por su origen racial: "Dona lnés era una cholita de esas que encalabrinan ai mismo San Antonio y no había nacido para esposa ni madre como las hembras de Sevillo" (267). Sin embargo, en Oaimón no hoy ninguna mención dei origen mestizo de lnés. La vemos por media de Aguirre, el cuolla tiene idealizada. 252 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS]. su tratamiento de la prostituta la Mora). Sin embargo, comparte con los cronistas la idea de que el erotismo es una fuente de desorden. De hecho, Posse se aprovecha dei tema dei erotismo que sugieren las crónicas, y lo matiza por media de una sensibilidad postf reudiana y postmoderna, refundiéndolo para sus propios fines paródicos. En Daimón, el deseo sexual es un reta a todas las formas de orden, una fuerza subversiva ocupada eternamente en una lucha contra las fuerzas de represión política y sexual. Por media de un proceso de inversión y elaboración hiperbólica, Posse parodia las narraciones históricas de la rebelión de Aguirre y las narraciones fictícias que se basan en ellas. Por ejemplo, el personaje Elvira se asemeja a la hija de Aguirre; es mestiza, como el personaje histórico, y tiene aproximadamente la misma edad que la Elvira histórica en el momento de su muerte. En la versión de Ortiguera, Aguirre pretende que la mata por el gran amor que le tiene ["porque cosas que yo tanto quiero no venga a ser colchon de vellacos" (Posse 1981, 279)]. Posse finge comprender ese amor de manera literal, interpretando la muerte de Elvira como un resultado extremoso dei deseo incestuoso reprimido, y hace que su Aguirre sucumba a la lujuria. Una idea similar aparece en la película de Werner Herzog "Aguirre, la ira de Dias," pero hay diferencias importantes entre las dos obras. Como bien senala Aleida Anselmo Rodríguez, en la película, Flora (la hija de Aguirre), se muere,cuando una flecha indígena le atraviesa el pecho, en una alusión a la iconografía católica dei Amor Divino. La diferencia no estriba solamente en que Aguirre no mata a su hija, sino que también declara que desea casarse con ella y fundar la dinastía más pura jamás vista en la tierra. Así que pretende tomar el lugar de Dios, quien, por media de la Virgen, dará a luz a un hijo (Rodríguez 1989, 236). La versión LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 253 de Posse, en cambio, subraya el lado demoníaco de esta competencia con Dios: Aguirre está bastante consciente de la falta de pureza en su relación incestuosa. Además, en vez de ser un representante dei imperialismo europeo, Aguirre se convierte en una figura de rebelión americana. Y Elvira, la cuaL en la película de Herzog como en las crónicas, era la inocencia en persona, es, en cambio, un ejemplo de complicidad perversa. Cuando Aguirre se encuentra con ella durante la lndependencia latinoamericana, mira las heridas en su cuello que causó con las estocadas y, en una c!ara parodia det pathos de !a novela romántico dei siglo diecinueve, se emociona. Con gran ternura trata de disculparse por lo posado: "Tal vez no he sido el mejor padre ... no lo niego ... ," comienza, como un padre de familia arrepentido por no haber cumplido por completo con su deber. Elvira lo mira intensamente de una maner a que el narrador califica como inapropiada, y habla "con una voz tal vez demasiado íntima y no filial" (Posse 1981, 178). La eterna adolescencia de Elvira es aparente en su cuerpo siempre juveniL que el narrador compara insistentemente, pero también con humor, a las bellezas de la naturaleza. También, es clara por sus reacciones ai mundo que la rodea. Proclama a voz en cuello su apoyo a la igualdad racial; mientras tanto, calladamente excluye de su casa a los indígenas, los negros y los mulatos. Y cua ndo su esposo es encarcelado y torturado bojo una dictadura militar dei siglo veinte, alegremente hace las maletas para salir ai exilio a Europa, contenta de tener la oportunidad de estudiar bel canto. La fascinación de Elvira con la cultura europea es evidencia de su falta de independencia, como también lo es su complicidad contínua 254 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). con el posado incestuoso que la liga con su padre. Freud opinaba que este tipo de adoración infantil ai padre por parte de una hija adulta era sintomático de un complejo edípico no resuelto (Freud 1989, 673). Según Freud, culminaba en el deseo de la hija de tener un bebé con su propio padre. En el caso de Elvira, este "deseo" se realiza, lo cual muestra de nuevo que Elvira se queda en un estado de adolescencia perpetuo. La inmadurez de Elvira y su complicidad representan una crítica a los miembros de las élites liberales y mestizas de América Latina. Por un lado, les hace falta madurez tanto política como cultural. Por el otro, su admiración por los modelos europeos no pu ede disfrazar responsabilidad por los sistemas injustos que pretenden despreciar. su Sin embargo, la parodia bienintencionada de la virtuosa Elvira de las crónicas se basa en la idea de que ésta es cómplice dei incesto. No habría humor si el narrador hiciera hincapié en el sufrimiento de Elvira, mas la idea de que goza de la memoria de la relación incestuosa nos !leva a la vieja mentira de que las mujeres gozan en secreto cuando se abusa de ellas. Posse lleva a cabo un proceso de inversión paródica si mil ar con lnés de Atienza, la amante de Ursúa. Como ya hemos visto, lnés no es una figura idealizada en las crónicas. Aunque la alaban repetidas veces por su gran belleza, la presentan como una mujer de inquietante encanto erótico o aún como de boja moral o manipuladora. invierte esta situación. Posse Su Aguirre idealiza a lnés, viéndola como una belleza fría y aristócrata 8 , pero cuando se entera de su aventura amorosa 8 Aparentemente, Posse adopta el nombre Cofíori de la novela de Sender. en la cual un indígena avisa a los espafíoles que deben tenerles receio a las amazonas. El narrador lo cita como sigue: "Reciquié cutían puiara" (261 ). Entonces. el narrador explica que el nombre Cofíori se basa en un malentendido que tuvieron los espafíoles LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 255 con el vulgar dictador y torturador Carrión (su contrincante socialmente) la degrada con fantasías de violación sadomasoquista. En cuanto a la crítica social, el resultado parece claro: lnés representa a los aristócratas derechistas que apoyan las dictaduras militares, cuyos sermones, según la novela, disimulan un amor secreto por los tiranos sádicos. Este tratamiento de lnés se lleva a cabo por media de una padodia !iteraria que manipula el ideal dei amor cortés, y las convenciones de la poesía dei amor cortés, el modernismo y las novelas dei romanticismo. Posse caracteriza la tendencia romántica en la literatura latinoamericana como un delicado velo que cubre una degradada realidad de violación necrofílica y sadomasoquista. Por ejemplo, el lector descubre que Aguirre ha assesinado a la bella lnés porque no pudo expresar su amor por ella. El tema de la falta de comunicación continúa cuando lnés, después de renacer, participa en un juego "sin palabras" con Aguirre. Como las pálidas y pasivas heroínas de la novela romántica, lo espera, sangrando "dulcemente", con sus "marvellosos muslos" bri llando bojo la luz de la luna y con una expresión indescifrable en la cara. Cuando la viola Aguirre, ella acepta este "homenaje" dei enamorado torpe que por su excesiva timidez fue incapaz de declarar su amor ["iHaber hablado a su tiempor' (41 )]. Lo ''tenderse sobre ella". vio!ación necroff!ico se convierte en un tierno Mientras ella se queda en "el sereno remanso", Aguirre lucha en vano por alcanzar "la mayor delicia", contra el calor de su choza ardiente y "la inminente frialdad de la muerte", EI resultado final es "Coitus interruptus in aeternis " (Posse 1981, 41 ). dei nombre de uno de los afluentes dei Amazonas, el río Conhuris: "Y la reina de ellas se llamaba coiiopuira (escribe ingenuamente fray Gaspar]. Su nombre verdadero era Cuiianpu-iara" (Posse 1981. 262-63). Sin embargo, el chiste es de Sender, ya que esta información no aparece en las crónicas. 256 LETRAS - Revista da Curso de Mestrado em letras da UFSM (RS). El uso que hace Posse de las convenciones de la poesía dei amor cortés [las llamas y las heridas amorosas, el homenaje, la nobleza aristocrática) y dei romanticismo (la pasiva víctima dei amor, y el amor a ella después de muerta; la luz de la luna) sugieren que a Posse le interesa una tendencia más generalizada en la literatura hispana a sentimentalizar un posado brutal ai presentaria como amor puro. Posse devuelve el erotismo ("el cuerpo") a los textos supuestamente castos de la literatura (y la historia) latinoamericana en parte para burlarse de la idea de que la violación necrofiliaca sea el amor verdadero disfrazado, el amor que no ha podido decir su nombre. El problema de lnés y Aguirre se convierte en un problema de comunicación. Sin embargo, no es ella la que ha malentendido sus intenciones, sino la literatura latinoamericana, ai tratar de disfrazar cadáveres, presentándolos como evidencia dei amor no declarado. Posse pretende que el estereotipo dei aristócrata degradado resulte divertido. Obviamente, el narrador no está presentando su propio punto de vista sino el dei personaje; es porque Aguirre ha idealizado a lnés que él se rinde enojado a la fantasía de violaria. Sin embargo, este juego sirve finalmente las intenciones alegóricas de Posse. mostrar a la aristocracia "entrepernarse" con el tirano. Necesita Por la misma razón, lnés tiene que buscar ai verdugo Carrión y gozar de su propia violación. La alegoría requiere que a los dos personajes femeninos se les degrade por media dei uso paródico dei incesto y e! sadoerotismo. Pera el texto no lleva a que el lector cuestione las ideas misógenas en las que se basa la parodia, ya que si sugiriera éste que los personajes est uvieran sufriendo o que no estuvieran de acuerdo con el tratamiento que reciben acabaría con el efecto humorístico que busca el autor. LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 257 Aun cuando la novela trata a los personajes femeninos de manera positiva, como en el caso de las Amazonas, asocia con ellas cualidades que son estereotípicamente "femeninas". Ya que las crónicas de la expedición de Ursúa, en la cual participó Aguirre, contienen poca información acerca de estas guerreras míticas, Posse utiliza la crónica de Carvajal que trata de la expedición de Orellana, y la novela de Ramón Sender La aventura equínoccia/ de Lope de Aguirre como pretextos para incluir a las amazonas en la novela. Carvajal describe su pelea contra unas fieras guerras amazónicas, altas mujeres blancas que "andan desnudüs en cuerosl tapados sus vergüenzaslf (Carvajal 1542, 3ó3). Cuando los personajes de la novela de Sender llegan ai lugar donde Orellana y sus hombres deben haberse encontrado con las amazonas, descubren un esqueleto, que les parece de una amazona. Esto lleva a los personajes a criticar la reacción de los espanoles frente a las amazonas. "Había que tener cuidado, pero no la clase de cuidado que tuvo Orellana, sino otro muy distinto" (Sender 1962, 261 ), comenta el narrador. Sin embargo, mientras que en la versi ón de Sender las posibilidades de un encuentro con las amazonas sigue siendo una ilusión, en Daímón, el sueno de los espanoles se vuelve realidad. Las amazonas a !as que conocen !os hombres de セLァオャイ・@ encarnan fantasías masculinas. Andan cosi completamente desnudas, mostrando sus pechos firmes, adoran bojo la luna llena lo que parece ser un monumento fálico, y suenan con el embarozo. Su reina es "la reina Cunan (que otros llamaban Conori)" (Posse 1981, 61 ); hasta su nombre la asocia con los genitales femeninos 9 • En esta inversión de los tradicionales 9 Tampoco las fuentes históricas que usó Posse sugieren que las amazonas hayan castrado a sus enemigos. 258 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). papeles de hombres y mujeres, las amazonas "conquistan" a los espanoles reprimidos. La reina y sus princesas saben el "arte" dei beso y la "ciencia" dei amor, y dejan a sus temorosas parejas espanolas gritando de placer.(Posse 1981, 66). Aunque ai principio los espanoles logran calmar su angustia, sufren de un gran miedo de castración. Se dice que una vez que las amazonas queden embarazadas, los soldados tendrán que unirse a los eunucos esclavizados que sirven a las guerreras (otra inovación de Posse). "iUna vez fecundadas nos devorarán!" les avisa el verdugo Llamoso (Posse 1981, óO): Glo haián con los dientes, como se decfa?)" pregunta el narrador, socarrón (Posse 1981, 57). En el mundo de las amazonas con sus eunucos esclavizados, la castración podría parecer un peligro, pero no hay nada en el comportamiento de las amazonas, que de por sí es bastante pasivo, para que la amenaza sea creíble 10 . A pesar de la presencia de los eunucos, el narrador trata la amen azo de castración con humor e ironía. De hecho, según los indígenas, es el cristianismo lo que castra a los espanoles: "su estúpido dios parecía tenerlos agarrados de los genitales" (Posse 1981, 58-59). Como Freud en La civilización y sus descontentas, consideran el primer poso hacia la civilización. Aunque los soldados logran por un tiempo suprimir su exagerado miedo a ser castrados y los sentimientos de culpa inspirados por su religión, con el tiempo sucumben a ellos. La falta de obstáculos los inquieta; quieren ser ellos los que inician las relaciones y los transgresores; las mujeres deben ser algo prohibido, o 10 "La selva trastorna ai hombre, desarrollándole los instintos más inhumanos" (Lo vorágine, 139). LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 259 por lo menos deben resistirse. Con el tiempo la desnudez de las amazonas deja de excitarias y disminuye sus fantasías eróticas. Aburridos con el sexo (o temerosos de él), los soldados se dedican a pasatiempos con los que se sienten más cómodos. los juegos de naipes y la guerra. Por fin, aunque las amazonas se quedan pasivas frente a las agresiones espanolas, los soldados abandonan el paraíso dei placer sexual. mencionando su miedo de "una espantosa castración ritual" (Posse 1981 , 75). Así Posse parodia actitudes machistas hispanas, sugiriendo que a pesar de sus poses, los soldados prefieren la amistad masculino a las relaciones sexuales con una mujer. Igual como las míticas amazonas evitan la companía masculino salvo para procrearse. estos soldados buscan el acompanamiento femenino sólo para breves encuentros sexuales. De esta manera Posse presenta la cultura de las amazonas como la inversión de la cultura patriarcal espanola, un hecho que, según Alison Taufer, es típico de la tradición de las amazonas en la cultura Occidental. En su análisis de las amazonas en el ciclo de Amadís, Taufer sostiene que "el personaje de la amazona les servía a los espanoles como un modelo para comprender y tratar con culturas extranjeras ai presentarias como el opuesto de la civHización europea" (Taufer 1991, 36). Afirma que este modelo fue adoptado después por los cronistas espanoles para conceptualizar el Nuevo Mundo. En primera instancia parece que Posse !leva el modelo a otro nivel ai presentar la refinada cultura de las amazonas como superior a la espanola. Sin embargo, aunque los espanoles están restringidos por su absurdo miedo a la sexualidad femenina y su incapacidad de experimentar placer erótico sin transgresión, la reina de las amazonas LETRAS Revista da Cursa de Mestrado em Letras da UFSM (RS]. resulta tener un defecto fatal, su pasividad. A pesar de toda la evidencia que ofrece el texto de la superioridad cultural de la civilización amazona, Cunán, como todos los personajes indígenas de la novela, está asociada con una pasividad excesiva que es, finalmente, suicida. Sin embargo, la forma que adopta la pasividad depende dei género dei personaje. Huamán, el amauta y gurú inca, inicia a Aguirre en una filosofía de resistencia pasiva, mientras que Conori, de acuerdo con su nombre, sólo le puede ensenar a hacer el amor. La reina dominada por sus sentimientos coe en una pasividad tal, que provoca la extinción de su civilización. Cuando, muchos anos después, Aguirre vuelve a la laguna de las amazonas, descubre que está completamente contaminada por las letrinas de los obreros dei caucho, y las amazonas ya no se encuentran en ninguna parte. A pesar de que Posse usa a menudo la inversión paródica en Daimón, cosi siempre vuelve a caer en el uso de estereotipas tradicionales de los géneros. No obstante, hay por lo menos una excepción: la erotización dei medio ambiente. En este caso, aunque la parodia se basa en estereotipes de los géneros, sirve para cuestionar conocidos mitos culturales. Pastor hace notar que en sus crónicas, los sobrevivientes de !o expediclón de Ursúa hacen hincapié en las dificultades causadas por la hostilidad dei medio ambiente selvático (Pastor 1983, 391-92). Posse transforma este poder hostil en un estímulo que adquiere un carácter obsesivo. Por ejemplo, cuando los soldados de Aguirre llegan a El Dorado, encuentran dunas doradas que les parecen senos ["Dunas lisas y tersas. lnmensos tetones áureos" (Posse 1981, 128)], las cuales ellos besan (y que, como todo lo relacionado con el erotismo, los hace sentirse culpables). Es así como los conquistadores LETRAS- Revista do Cursa de Mestrado em Letras do UFSM (RS]. 261 experimentan el Nuevo Mundo, abrumados por su belleza y aterroriza dos por su increíble fertilidad. Un modelo importante para la erotización dei medio ambiente presentado como de género femenino es la famosa novela de José Eustacio Rivera La vorágine [1924). El precursor de Posse asociaba la selva con la procreación y la sexualidad; Posse no solamente le hace eco sino que se va más aliá dei modelo. Por ejemplo, mientras que Rivera describe "flores inmundas que se contraen con sexuales palpitaciones y su olor pegajoso emborracha como una droga" [Rivera 1942, 182), Posse hace que el Cura y el Escribano copulen con aquellas flores ["Las silenciosas expediciones dei Cura y dei Escriba no [ ... ] para acoplarse a las sedosas orquídeas contráctiles que los devolverán extenuados ai amanecer" [Posse 1981, 40)], pero en su descripción se omite la evaluación negativa ["inmundas"] y en lugar de censurar la selva, censura ai mojigato Aguirre. Posse reevalúa la representación de la selva que según la novela de Rivera es un infierno de sexo vil, sádico, impuro y hasta perverso, el lugar que anima a los hombres a ceder a sus impulsos más degradantes 11 • Una referencia, en particular, muestra como la perspectiva de Posse se distingue de la de su precursor. En La vorágine, cuando los personajes se dan cuenta de que se encuentran perdidos en la selva amazónica, ven "la visión de un abismo antropófago, la selva 11 Hay otra posible referencia; en el ensayo "De lo real maravilloso americano", Carpentier describe lo que pasó cuando el artista francés André Masson trataba de dibujar la selva de Martinique: "con [ ... ] la obscena promiscuidad de ciertos frutos, la maravillosa verdad dei asunto devorá ai pintor, dejándolo poco menos que impotente frente ai papel en blanco" (116). Esta sugiere que Posse también pretende parodiar la idea de que los artistas europeos sufren dei miedo edípico a la castración, algo que supuestamente no afecta ai artista americano. 262 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS), misma, abierta ante el alma como una boca que se engulle los hombres a quienes el hambre y el desaliento le van colocando entre las mandíbulas" (Rivera 1942, 192) 12 . Posse sexualiza esta visión dei abismo caníbal. Cuando Aguirre y sus hombres gozan dei felatio con las amazonas, el narrador de Daimón describe su reacción como sigue: "Cedían a la tentación de la delicia superando el abismo de miedoancestral en el hombre blanco---a la antropofagia, el miedo a la traicionera castración de la leyenda o a la magnitud pecaminosa dei hecho" (Posse 1981, 66). Esta descripción evoca pero ai mismo tiempo contradice el "abismo antropófago" de Rivera. Así Posse transforma el abismo metafórico, un bostezo que se abre ante las almas de los hombres perdidos en la boca de una mujer que está practicando el felatio. El miedo de ser devorado por la selva se convierte en un miedo de castración, infundido e inducido por nociones religiosas de pecado y tentación. Los soldados están reprimidos por la religión que considera el placer ["delicia"] como pecado, y tienen un complejo edípico todavía no resuelto que los ha dejado con un "miedo ancestral a la castración". La forma en que Posse reescribe las descripcion es de la naturaleza de La vorágine enfatiza la idea de que su precursor se ha equivocado. La naturaleza "corrompe" a los europeos, pero ese efecto es beneficioso. Les anima a librarse de la extremada (bárbara) represión sexual. Por lo tanto, el problema no son las amazonas, ni la sexualidad, ni la selva, sino las represiones religiosas de la civilización europea. Por supuesto, esto 12 Aquí se aplica la definición que hace Hutcheon de la parodia como "imitación caracterizada por una inversión irónica" o "repetición con distancia crítica" (Hutcheon, 8). Posse no lleva a cabo una "imitación nostálgica de modelos dei posado", sino "una confrontación de estilos, un uso de códigos nuevos y modernos que establece la diferencia en el corazón dela similitud" (Hutcheon, 8). LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (RS). 263 controdice el concepto que tenío Rivera de lo función positivo de lo civilizoción ai limitar los peligrosos excesos dei cor ozón solvoje 13 • A pesar de los comentarias que hace Posse acerca de la importancia de la "salvaje" libertad erótica que experimentaron los conquistadores, Doimón presenta el erotismo sin límites como una fuerza peligroso. Esto es obvio especialmente en el último encuentro de Aguirre con la prostituto la Moro, un personaje arquetípico que no se encuentra en los crónicas, pero que (con su opuesto, la virginal Sor Angelo) es otro avatar de la dicotomía de la virgen y lo prostituta. En el último capítulo de la novela, Posse asocia a Aguirre con Che Guevara y a la Mora, con lo guerrillera Tania (Tomara Bunke), que trabajaba con Guevara y su guerrillo en Bolivia o finoles de los anos sesenta. Lo que le interesa a Posse es el mítico Guevara de la leyendo popular. La aventuro amorosa de Aguirre con la Moro tiene paralelos con el supuesto romance entre Guevara y Tania. Después de que los dos murieron en 1967, hubo muchas especulociones acerca de su relación. Hubo abundantes rumores de la posible complicidad de Tania en la muerte de Guevara. Según olgunos, Tania era uno bella espía soviética que lo traicionó a propósito;otros la considerobon la amante de Guevara que lo traicionó sin querer por sus "indiscreciones" y su "falta de conducta profesionol" (Welles 1968, 2). 13 Como slempre, la novela parodio lo "historia oficial", en este caso, la conoclda foto perlodístlca dei cadáver de Che Guevara rodeado de los soldados y otros agentes que habían participado en su captura y ejecuclón. [La foto aparece en la reclente biografia de Guevara escrito por Jon Lee Anderson, entre otros lugares.] El narrador de Dalmón menciona una foto supuestamente difundida por la Associated Press, que muestra ai viejo ayudante de Agulrre. Nicéforo Méndez. junto ai cadáver de Tania en la costa de un riacho. Otra vez, Posse ha cambiado la sltuaclón histórico de manera que el héroe martirizado no es Aguirre-Guevora. sino lo Mora-Tania. LETRAS Revisto do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). La cuestión de la traición es fundamental en Daimón, pero la situación parece ser la opuesta a la histórica. En el caso de la novela, no es la Mora-Tania que traiciona a Aguirre-Che, sino Aguirre que piensa traicionar a la Mora. 13 Quiere utilizaria para derrotar a su rival, el místico revolucionaria Diego de Torres cuya ideología de ascetismo (represiva y de negación a la vida) Aguirre desprecia. AI transmitir su daimón erótico a la Mora, quien a la vez "contaminará" a Torres, Aguirre podrá derrotar ai rival. En este caso, la Mora funciona como una descendiente de Eva, corno el instiurnento dei diablo (Agüiííe) en la "cOííüpción" de TOíí6S, salvo que ahora esta corrupción es presentada como algo que por la mayor parte es positiva. Sin embargo, a pesar de que se disculpa a la pecadora, el futuro es poco prometedor. Por un lado, la traición de la Mora muestra que Aguirre no ha cambiado de manera fundamental. Resulta que el impuslo erótico es rebelde precisamente porque nunca se le puede satisfacer permanentemente, nunca aceptará ningún límite, ni respeta nada. Mas se alía tan fácilmente con impulsos retrógrados con los de Aguirre, como con el intento supuestamente revolucionaria de la Mora (o de Posse) de renovar los códigos literarios ["renovar un juego de claves secretos" (Posse 1981, 266)]. De la misma manera, se puede caracterizar el uso de la parodia en Daimón como un acto de rebelión co"trn los modelos históricos y de ficción, un intento revolucionaria de volver el cuerpo a los supuestamente castos textos de la tradición latinoamericana. Sin embargo, como muestra el tratamiento de los personajes femeninos en la novela, el erotismo literario de la parodia es tan ambiguo como el impulso dei LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 265 erotismo físico y emocional. Aunque aparentemente Posse pretende hacer un intento de renovación que sea liberador, la novela también apoya sin querer los tradicionales estereotipas misógenos. Bibliografia Anderson, Jon Lee. Che Guevara: a revotutionary fite. Nueva York: Grove Press, 1997. Aguirre, die Rache Gottes. Dir. Werner Herzog, 197 4. Brunner, José Joaquín. Un espejo trizado. culturales. Santiago, Chile: Carpentier, Alejo. Ensayos sobre cultura y políticas FLASCO, 1988. "De lo real maravilloso americano." Tientos y diferencias. Montevideo: ARCA 1967. 102-120. Carvajal, Gaspar de. Relación de! nuevo descubrimiento dei Río Grande por e/ capitán Francisco de Ore/lona. Historiadores de lndias. América de! Sur. Comp. Angeles Masia. México: Bruguera, 1972. 321-389. 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Los lnfortunios es un recuento anómalo de las crónicas de lndias, una épica invertida vista ahora desde la perspectiva de un chamaco crioilo, reacio descubridor, Magallanes boricua que circunnavega el globo en calidad de cautivo y lacayo de piratas. Y aunque de sucesos que sólo subsistieron en la idea de quien los finge, se suelen deducir máximas y aforismos , .. entre lo deleitable ... , no será esta lo que yo aquí intente sino solicitar lágrimas que, aunque posteriores a mis trabajos, harán por lo menos tolerable su memoria. (9; mi énfasis) LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS]. 269 Esta retorcida declaración de propósitos no afirma la verdad ni admite la falsedad. Una duplicidad de voces sugiere que la narración autobiográfica es cierta para el personaje, si falsa para el autor. Es más bien una penetración dei texto en un doble sentido: una entrada discursiva de la plausibilidad lúdica en el texto y dei texto en el lector. La seducción/rapto se consuma ai final cuando Afonso Ramirez entrega su informe ai propio Sigüenza para que lo redacte y publique. Trescientos anos después otro cronista puertorriqueno, Edgardo Rodríguez Juliá, volveria a captar ese apretón de manos monieristo entre autor y personaje (émulo de Mateo Alemán, Cervantes, Velózquez, Sigüenza, Unamuno), en busca dei deforme cuerpo mocho dei Nino Avilés, mítico fundador en l 797 de la fictícia ciudad de Nueva Venecia -ese angelical y demoníaco microcosmos de San Juan- y objeto de un retrato extranamente fascinante realizado por el Velázquez boricua, José Campeche. La presencia dei autor en de su propio texto se realiza ahora con un penetrante "Prólogo" a lo Borges, proyectado como ensayo de arqueologia histórica, con notas ai calce y rigurosa crítica de documentos fuente. Aquella ciudad de leyendas y canales está ausente de nuestras principales colecciones de documentos históricos. Pero su fama fue escándalo y maravilla de aquella sociedad colonial de hace dos siglas; a nosotros llega la imagen de un recinto ai parecer reprimido por la memoria colectiva. Oculta por el olvido renace ante nosotros la ciudad maldita .... La crónica de González Campos pertenece a una colección de documentos descubierta por el archivero Don José Pedreira Murillo en el 1913 .... Algunos historiadores no le conceden valor histórico alguno a los documentos de la colección Pedreira. Se trata, según ellos, de una "historia apócrifo" compuesta en torno a los paisajes visionarias dei genial pintor. (ix-xi) 270 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). Como en Sigüenza, ni se afirma la verdad ni se admite la falsía; hay sólo plausibilidad lúdica, rematada por la frase autorreflexiva sobre la novela en sí, una "historia apócrifo" construido en torno a dos retratos de Campeche (los dei Nino Avilés y el obispo Trespalacios) así como los supuestos "paisajes visionarias" de Nueva Venecia salidos dei pincel de un tal Silvestre Andino, sobrino y aprendiz de aquél. Pero antes que el piadoso rococó de la escuelo de Campeche, estos paisajes (la novela mismo) semejan las visiones demoníacas dei Bosco en E! jardín de las delicias o el tremendismo barroco de los Suefíos de Quevedo. Lo íunción dei prólogo en ias seudocrónicas testirnoniales es lo de reclamar no tanto la verdad absoluta como lo plausibilidad histórica. En los lnfortunios esto se consigue de inmediato con el modo autobiográfico en boca dei propio Alonso Ramírez. No obstante, en la nota dei censor, que aprueba la obra en virtud de su ejemplaridad pía, los esfuerzos dei "sujeto" son igualados a las "laboriosas fatigas dei autor", y la escritura misma, con el penoso viaje que ello relato. Semejante identificación se intima en el prólogo de Rodríguez Juliá: "renace ante nosotros la ciudad maldita" se refiere ai hallozgo de las crónicas cuyos retazos componen el cuerpo de la novela. La ciudad es la novela, y la escrituro, el hallazgo. El censor Ayerra contribuye ai crédito de la historia ai llamar a Alonso Ramírez "mi compatriota" --aunque sólo debió conocerlo en la lectura. A su vez, el prólogo de Juliá está firmado por un historiador que autentica los documentos, un tal profesor Alejandro Cadalso, con fecha "9 de octubre de 1946" -la misma dei nacimiento dei novelista, siendo el historiador una de sus máscaras autorales. Insistentes reclamos a la autenticidad hacen de las seudocrónicas testimoniales textos prolijos en meta-narración. Valdría recordar aquí la LETRAS- Revista da Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 271 distinción trazada por los formalistas rusos entre sjuzet y fábula (la historia con todos sus pelos y senales como hubiese ocurrido en la vida real, contra aquellos fragmentos que el autor escoge narrarnos). Lo mismo aplica a la meta-narración, obteniéndose lo que llamo un meta-sjuzet y una meta-fábula; esta última, los fragmentos justificadores que el autor decide revelar, sirve para establecer la plausibilidad histórica. En cambio, si el meta-sjuzet, si todo el meta-relato de justificación fuese contado, la plausibilidad dei relato principal se vendría abajo. Inversamente, ai retener parte de la evidencia meta -ficticia se crea una complicidad con el lector, quien la acepta como a un hecho consumado. Luego el autor amplía juguetonamente ese pacto de credibilidad como si probara sus limites, o incluso los transgrede, parte en broma y exageración. El resultado es lo que llamo plausibilidad lúdica. En los lnfortuníos la meta-fábula no se completa hasta el final de la obra, cuando Afonso regresa a México de su viaje de cautiverio para contar su historia, sellando el pacto meta -ficticio. Los elementos de autenticidad son: si Afonso de verdad existió, si en realidad cruzá los mares, y si los sucesos dei viaje ocurrieron como éllos narra. 1 Finalmente, está la cuestión de si el cronista Sigüenza corrigió, modificá o embelleció 1 La mayoría de los críticos acepta la existencia de Alonso Ramirez aunque no consta en otro documento que la biografia novelada de Sigüenza. Es improbable que sea fictício dada la dedicatoria ai virrey de Nueva Espana, de quien se dice que refirió el caso a Sigüenza y tal vez encargó la relación. Mas no es ésta opinión general: el pretexto de ser escriba por encargo de la "relación verdadera" de otro era un artilugio literario de moda (Pérez Blanco). Algunos sucesos silos en las Filipinos son comprobobles y quizás muy recientes para haber llegado a México por otra vío (Cummins). A lo más, esta verifica a" Alonso hasta las Filipinas. De los piratas Donkin y Bell, sus presuntos apresadores, no ha quedado mención; las descripciones luego de las Filipinas, hasta el regreso a Yucatán, cuando se dan, son tan parcas que carecen de peso. Arrom, quien recalca el carácter irónico y literario dei libra, admite que Alonso debió ser uno persona real, pero advierte que también lo fueron Hamlet y EI Caballero de Olmedo (44-45). 272 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (RS). el testimonio, transformando los hechos en ficción. Mientras que la existencia de Alonso se da por sentada desde el comienzo y la sinceridad de su relato es "protestada" a lo largo dei texto, indicias ai final senalan posibles motivos para urdir, si no exagerar, la historia de sus tribulaciones . . Con su narración, Alonso busca no sólo compasión de las autoridades coloniales sino también favores materiales -táctica común a los cronistas de lndias, notable por ejemplo en Bernal Díaz y no dei todo . ajena a Sigüenza 2 . Alonso incluso sostiene que visitó ai virrey Sandoval, el cual apremiado por el relato lo envió donde Sigüenza quien "formó esta Relación" y abogó por él. Se ordenó así que ai joven le fuera dado un puesto naval por temporero hasta que se estableciera, y que fuera premiado con el contenido dei barco que heroicamente rescatara de piratas [Y que lo acusaban de robar) 3 . Un meta-sjuzet completo, sin embargo, habría tenido que confrontar detalles como el parqué Sigüenza [amén dei propio virrey) nunca se molestó en corroborar la historia con los demás sobrevivientes, quienes supuestamente fueron dispersados por Alonso después que hicieran declaraciones a autoridades locales más interesadas en incautarse el botín que en averiguar la verdad [73). La meta-fábula sólo refiere de posada que 2 "Su Excelencio ... [m]ondóme (o por el afecto con que lo miro o quizá porque estando enfermo divirtiere sus moles con lo noticio que yo le dorío de los muchos míos), fuese o visitar o don Carlos de Sigüenzo y Gôngora, cosmógrafo y catedrático de matemáticos dei Rey nuestro senor en lo Academia mexicano, y copellán moyor dei hospital Real dei Amor de Dias de lo ciudod de México (títulos son éstos que suenon mucho y valen muy poco ... )" (75). Poro uno perspectivo de lntortunios como reescrituro de Bernol Díoz, véose o Ross. 3 El botín es lo moyor incongruencio dei relato. En el cop. IV, Alonso alego que los piratas lo liberoron en uno fragata vacía. En el VI. a raíz de su noufragio en Yucatán, nos ofrece un inventario de su reclamación: 9 coiíones, 2000 proyectiles, toneladas de plomo, estoiío, hierro y cobre, jorras de porcelana chino, 7 colmillos de elefante, etc. LETRAS - Revisto do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (RS). 273 Sigüenza se encontraba "enfermo" cuando le llegó la historia de Alonso (75), excusándose así de investigar más a fondo. En cuanto ai embellecimiento dei testimonio podemos citar la equilibrada prosa dei erudito autor ai estilo de Gracián, inconcebible en su inculto sujeto; la adaptación dei relato a ciertos cánones genéricos de su tiempo (''formá esta Relación"), en particular la crónica y la picaresca; y la inversión de esta última que convierte a Alonso de un potencial Lazarillo en un Job bíblico, satisfaciendo el ideal de edificación moral que tanto complació ai censor. Luego, están esos complejos rumbos de navegación que ...-..lir-!Ar-+ir-1""11 \, ,.....,..,.l"i UIUUI....diVU y VUVI i,-.,,-...+-.-.r-i.-...r-,.....,....,...,..-...-.+.-.. jU\...IUI 1\...dVVUI I lVI li V ... .-.. +.. ,....,.....,.,.....,...... VV IIUL.Ul I ...... ,....,,.. +,...........r,.... tJVI IUUV ,-...1 VI n......,.,.....{+:,....,..... íU\...IIII....U , , Y -.I VI Atlántico, propios de un cosmógrafo reaL matemático y cartógrafo como convenía a la verdadera profesión de Sigüenza. En pocas pala bras, e I autor está ampliando el pacto meta-fictício. Curiosamente, el virrey, a quién Sigüenza dedica el libro, sólo reaparece ai final dei relato, como "Su Excelencia" (cfr. el "Vuestra Merced" dei Lazarillo). "Su Excelencia" es aquí el lector último, árbitro y juez dei meta-relato, la autoridad tras el texto, a quien ha de remitirse cualquier duda de la lectura; es decir, si él admite la historia, también ha de admitiria el lector. En su dedicatoria Sigüenza lo elogia y le suplica que acepte el libro, como antes el relato oral de Alonso, pero también le está rindiendo informe de su investigación, ya que aquél había acogido la historia de Alonso por compasión, remitiéndola a Sigüenza, ai parecer, para una verificación experto. La peritación de Sigüenza favorece la historia de Alonso (y su inocencia), ofreciéndole ai virrey este alegato: "confiado desde luego, por lo que me toca, ... en la crisis altísíma que sabe hacer con espanto mío de la hídrografía y geografía dei mundo" (4). Es decir, Sigüenza defiende la historia basado en su mayor inverosimilitud: la ostentación 274 LETRAS -Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). técnica v científico que debió ser de su propia factura. El rozonamiento, como el viaje, es perfectamente circular: lo mós increíble deviene lo base misma de la credibilidad 4 • El carácter judicial v legalizonte de las crónicas coloniales v de lo picaresca testimonial, estudiado por González Echevarría en Mito v archivo, opera también aquí. La narración de Sigüenza puede muv bien leerse como acta notariaL testimonio pericial e informe sumario ai vir rev, donde se recomienda la absolución de Ramirez. Mas en el plano de la seudocrónica testimonial lo que realmente está en tela de juicio no son los actos dei personaje, sino el propio meta -relato de plausibilidad histórica. Es decir, lo que se busca no es la legitimidad judicial sino la histórico, la obsolución dei relato (no dei personaje) por el lector (no por un juez, ounque el lector implícito pudiera serlo. Es decir, la carga de la prueba recae sobre la narración (meta-fábula) v no sobre los hechos (s)uzet). Esto es aun mós notable en el prólogo de Rodríguez Julió, donde el juez no es otro que el historiador Cadalso, quien examina las pruebos documentoles para lo outenticidad de las crónicas de Nueva Venecia ( v de la novela). La plausibilidad histórica se establece de inmediato en los seudocrónicas testimoniales mediante la presencia de personojes históricos como Sandoval, el propio Sigüenza, v otros que aparecen en lnfortunlos. Tales presencias deben considerarse parte dei meta -relato. Lo mismo se consigue en Lo noche oscura v su prólogo, con los pintores 4 Es posible que Sigüenza remitiera a Sandoval justamente lo que éste queria leer, máxime si fue un trabajo por encargo. El virrey era conocido por su compasión, como "alivio de los pobres," ocostumbrado a "oir generalmente a todos en suma benignidad y agosojo, sin dejar de consolar ai más miserable e infirmo" (Honke, Guía de tuentes virreinales, 1: 174-6, en Cummins 302nl7). Sobre lntortunios como texto jurídico, véase a lnvernizzi LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). José Campeche (1751-1809) y Luis Paret y Alcázar (1746-1799), el almirante Nelson (1 758-1805), el obispo Trespalacios (m. 1799), el gobernador Ramón de Castro (a partir de 1795), y el propio Nino Avil és (n. 1806). Los demás personajes, sus crónicas, testimonios y bibliografía son fictícios: el obispo Larra, los cimarrones Obatal y Mitume, el Renegado, el cronista Gracián, las fuentes evidenciarias aducidas en el prólogo, el archivero Pereira y el pintor leproso Andind. Sin embargo, el lector incauto quedaría convencido por la profusa documentación, aunque ésta apunta a fuentes ficticias 6 -un uso deliberado de apócrifos que recuerda a Antonio de Guevara o a Jorge Luis Borges. El resultado es la penetración de la ficción dentro dei meta-relato de legitimación. Lo que comienza como ensayo histórico deviene pesquisa novelada; y ya que La noche oscura está compuesta por las crónicas defendidas, la novela toda se transforma en extensión dei prólogo, en un ampl io (Y cada vez más extravagante) meta-relato. De hecho, la trama metafictícia dei prólogo es más compleja que la de la novela misma 7 • Luego 5 5. No he logrado comprobar la existencia de Silvestre Andino Campeche. quien sin embargo pudo ser hijo de Domingo de Andino. cufiado y maestro de música de José Campeche. " "José Pedreira Murillo. Historia de un descubrimiento. Editorial Antillana. San Juan. 1915. pág. 9" y "Tomás Castelló Pérez Morris, Historia de un embeleco. Editorial La Milagrosa, San Juan. 1920, pág. 1" (xi-xii). Avilés funda Nueva Venecia (1797), destruido por piratas [1799) pagados por el gobernador Castro y comandados por un tal Samuel Wright. En 1820, los crónicas de lo ciudod libertino son quemodas en hoguera. Se salvon pinturas de Silvestre Andino en un archivo: un triplico parecido ai dei Basco muestro en "poisajes visionarias" las torres de Nuevo Venecio en formo de colmenos. El archivero Pedreiro descubre algunos crónicos en 1913: lo de cierto González Campos cito un libra apócrifo dei histórico almirante Nelson. Great Naval Ocassions of the Middle Seas. donde Nelson cito a su supuesto amigo Wright, quien narra su ataque a lo ciudod infernal y describe sus torres como "portentosas colmenos". Pereira recuerda el tríptico de Andino en el archivo municipal de San Juan y publico su hallazgo en 1915. Costelló Pérez Morris ataco su autenticidod en 1920, tildando todo ello de "embeleco engordado en los mentes calenturientos de mosones y lit'lrepensodores. bolcheviques y socialistas de todo rumbo y monejo"[xi). En 7 276 LETRAS- Revisto do Curso de Mestrado em letras do UFSM (RS). de tan prolija defensa de su plausibilidad histórica, la novela comienza citando diferentes "cronistas" bojo la autoridad de sus profesiones: "Severino Pedrosa, primer cronista dei Ayuntamiento, nos cuenta en su Verdadera relación dei muy famoso rescate de/ Nino Avi/és ... "(ó). Después, tales introducciones se reducen a" según las palabras de ... " o" escuchemos la voz de ... ": y se acaba identificando a los cronistas en los títulos de capítulo, sin más introducción. Los acontecimientos se hacen más y más absurdos, el pacto meta-fictício es transgredido, y la plausibilidad histórica, servido su fin como instrumento de pen etración y seducción dei texto, deviene plausibilidad lúdica. La autoridad de los "cronistas" no necesita ya ser afirmada porque el lector se ha hecho cómplice en el sincero engano de la ficción. Los primeros críticos de La noche oscura fueron historiadores que reaccionaron ante sus anacronismos y falsificaciones, quejándose de que ésta no era una novela histórica (González 583). De hecho, el infame prólogo no sólo es parodia dei método histórico sino invectiva vitriólica contra la historiografia oficial (la meto-fábula de la historia) y su represión dei inconsciente histórico (sjuzet). Aquí la trama meta-fictícia viene a ser la artículo de 1932, un tal Gustavo Castro defiende la colección narrando cómo Pedreira halló los documentos en una torre colmena en ruinas entre los manglares, adonde lo condujo un vecino conocido sólo como "Pedro el Cojo" (ver "D1ablo Cojuelo", notas 9 y 11 ); hallando luego la crónica sobre la muerte dei Avilés, dentro de las ruinosas torres (esta vez reales) de lsla de Cabras en la boca de la bahía de San Juan, que sí fue bombardeada durante la invasión yanqui de 1898. En carta de 1820 hallada entre los documentos, un tal Garcia Quevedo, secretario dei archivo episcopal, explica cómo salvá y escondió esas crónicas: "Si bien arriesgo mi salvación eterna, dulce es sostener aquella idea ... donde el Avilés fundó, en el siglo posado, aquella magnífica visión que fue la ciudad lacustre de Nueva Venecia" (xv). La declaración llevó a conjeturas sobre la ciudad como mera "visión" de escritos apócrifos por el propio Avilés, Garcia Quevedo, o aun por Pedreira. "Otros le otorgan una mayor reolidad histórica, asegurándonos que fue un notaria embaucador y libertino de !inales dei dieciocho, companero dei incorregible Luis Paret Alcázar" (xvi). En 1946, Cadalso escribe el Prólogo, donde refiere el caso; y en 1984 ven la luz las primeras crónicas. como La noche oscura de/ Nino Avi/és. LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 277 historia de una confabulación por parte de la lglesia y el Estado (con la participación de la timorata burguesia crioilo dependiente dei poder colonial) para encubrir la verdadera historia dei deseo representada en esa "maldita ciudad lacustre". Lo cierto es que Nueva Venecia también desapareció de la memoria colectiva dei pueblo, ya para siempre desterrada ai olvido. convertido su recuerdo en pesadilla de la historia, borrada de libros y canciones su breve posadura en el tiempo. Nueva Venecia se convertia así en oscuro reverso de nuestro pacífica y respetable historia colonial. (xiii; el énfasis es mío.) Rodríguez Juliá postula la justificación definitiva de la ficción: el propósito de esta novela-ciudad es la liberación de nuestro reprimido inconsciente histórico, narrar no la historia de los hechos, sino la de los deseos frustrados. En un estudio perspicaz, Antonio Benítez Rojo detecta el deseo de la novelo de convertirse en historio. Así, en lo sobrio proso de froy lnigo Abbod, Historia de Puerto Rico [1782), reverso ilustrado y controcoro histórica de lo novelo, Benítez Rojo expone uno predilección por lo narrativo, un prurito por lo onecdótico e imaginaria y el deseo de devenir ficción: concluye que historio y novelo quieren cambiar papeles, y llama ai Nino Avilés "lo libido de la historio". Mos poro Rodríguez Juliá, como veremos, la novela es también /o historia de lo libido. El cuerpo político La estructura picaresca (o su modificación) es un aspecto a menudo senolodo en los lnfortunios, a cuya obra se le reconoce odemás su contribución a la formación de un discurso crioilo hacia los orígenes de 278 LETRAS - Revisto do Curso de Mestrado em Letras do UFSM [RSI. la novela latinoamericana 8 . Sin embargo, lo significativo dei texto barroco de Sigüenza es que pane ai descubierto la afinidad y plasticidad genéricas que se dan entre la crónica europea, la picaresca, el relato de viajes, y la novela crioilo moderna: seudocrónica, anticrónica, anacrónica. En especial su fusión de crónica y picaresca, o más exactamente, su reconversión de la primera en la segunda, resulta en un producto inesperado, en una partícula genérica que deviene histórica y politicamente activada: la anti-crónica. Existe un interesante proceso operante en la narratología histórica y mayormente inexplorado por los estudios coloniales: el trânsito de la crónica a la picaresca y sus implicaciones. Las crónicas de lndias dei siglo dieciséis, conocidas con más propiedad como "crónicas de la Conquista", escritas por europeos para legitimar la empresa colonial, pertenecían a un período de descubrimiento, viajes épicos y guerras cuya gloria el crioilo americano nunca compartió. Era un sueno exclusivamente europeo. Sin embargo, para 1595 hasta Francis Drake había circunnavegado el globo. Conque cuando terminá aquella era dei epos heroico que nos dio La Araucana y los europeos se dedicaron a las faenas de la vida diaria, lo que en América significaba administrar las colonias y poblar las tierras, los suenos de gloria dieron poso a las realidades más duras de la supervivencia económica y la movilidad social en una sociedad de castas. Esto último constituyó una realidad definidora para el crioilo, y su forma de expresión idónea, lejos de la épica, pronto se vislumbrá en la picaresca. Ya en 1598, la poesía de Mateo Rosas de Oquendo describía el sentido picaresco de la vida en Lima. Pero fue con el concepto barroco dei Véanse Casos, Costagnino, Chang, Fornet, González, Johnson, Ross y Sacido; luego Arrom, López y Morona. 8 LETRAS - Revisto do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 279 desengano que la picaresca colonial alcanzó su madurez. Quevedo había unido desengano y picaresca; Diente dei Parnaso de Caviedes (1689) y Uma por dentro y fuera de Terra lia Landa (1792) los fundieron en América. En Espana, Mateo Alemán (Guzmán de Alfarache, 1604) y Vélez de Guevara (fi diablo cojue/o, 1641) habían proclamado a América la nueva tierra dei pícaro, senalando satíricamente que los espanoles que allí marchaban "dejaban sus conciencias en Sevilla". Después de todo, fue siempre el desengano lo que transformara la épica (el ethos de la conquista) en picaresca (el ethos de la vida colonial). Picaresca fue la narrativa, de íníortunios a Concoíorcorvo a Periquiíío sarniento. 1'-Joveiistos modernos como Carpentier y Fuentes han querido buscar el origen de la novela latinoamericana en las crónicas, pero sus propias crónicas, desde E/ arpa y la sombra hasta Terra Nostra, aparecen permeadas de picaresca. Mediante los tropas dei desengano, la picaresca americana expuso el falso heroísmo de la conquista y de la empresa colonial. Aquella "mirada imperial" que Mary Pratt ha descrito en las crónicas europeas y relatos de viajes tenía que ser reemplazada con una mirada subalterna proyectada de abajo arriba. Tal es la orientación dei viaje de Alonso Ramírez, viaje de descubrimiento a la inversa, proyectado desde América en lugar de Europa. El resultado es una anti-crónica en la medida que la picaresca es una anti -épica -en verdad, una parodia de la épica homérica y virgiliana que había llegado a América a través de Tasso y Ariosto, en el ethos de Ercilla, Ona, y las crónicas de lndias. Mucho de ello lo reconoce el censor Ayerra en la hiperbólica comparación que hace de su "compatriota" Alonso Ramírez: 280 LETRAS - Revista da Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). Puede el sujeto de esta narración quedar muy desvanecido de que sus infortunios son hoy dos veces dichosos: una, por ya gloriosamente padecidos, que es lo que encareció la musa de Mantua [Virgílio] en boca de Eneas en ocasión semejante a sus comparieros Troyanos ... y otra porque le cupo en suerte la pluma de este Homero . . . que ai embrión de la funestidad confusa de tanto suceso dia alma con lo aliriado de sus discursos y ai laberinto enmorariado de tales rodeos halló el hilo de oro para coronarse de aplausos. (6) Rodríguez Julió también parodia la épica -"Yo desfallecía el rubicundo Apolo en sus últimos destellos cuando . . . deseoso de contemplar los encrespados rizos de Neptuno ... "(78)- y particularmente ai Eneas virgiliano de cara a lo batallo -"Con poso lento, bojo nubarrones y altos relómpogos, se acercó la batalla infame, dolor demasiado terreno que apenó mi conciencia hasta anhelar lo muerte"(232)-, comparando o menudo su Nueva Venecia con Trova y Tenochtitlón. Sin embargo, el "alma" o "hilo de oro" que el censor eclesiástico encuentra en la narración de Sigüenza es precisamente la reconversión en lo parábola de Job que el autor hoce de la picaresca ("Para eternizar Job lo que refería deseaba quien lo escribiera ... cuanto él había sabido tolerar"). La narración de Sigüenza finalmente será una picaresca "a lo divino" -6otra de sus tentativas de reodmisión a la orden jesuíta de la que fue expulsado en 166 7? De las tres partes dei viaje de Alonso ---el viaje de fortuna (Lazarillo, Guzmón de Alfarache); los sufrimientos dei cautiverio (Job); y las tribulaciones dei noufragio (Jonós, Eneas)solamente la primera, que concluye en las Filipinas, es realmente picaresco: constituye también lo porte mós "realista" e históricamente plausible de la narración. El resto es o lo mínimo una adaptación hecha por Sigüenzo. Pera en esta último inversión, o remodelación de la LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). 281 picaresco, hay un doble desengano: tras el falso heroísmo de los crónicos, la falso picordío dei crioilo. Alonso Romírez triunfo sobre su destino grocios o los valores de honestidad y humildad inculcados en su ninez por su madre puertorriqueno, cuyo apellido escoge en lugar dei de su padre andaluz. Sus privociones como coutivo de piratas no son otro cosa que uno intensificoción paralelo, un espejo hiperbólico de sus trobojos como crioilo dentro de lo situación colonial. En pocas polobros, los inversiones de Sigüenza terminon por constituir ol crioilo en el verdodero héroe cotidiano de lo empresa colonial. La CílOIIa í6COnV6íS!Ón dei diSCUíSO impeíiOI 8UíOpeo en seudocrónico testimoniol siempre produce nuevos versiones de la historia e inversiones ideológicos. Lo reescrituro por Sigüenzo de los crónicos heroicos de los conquistadores, los Colón y los Cortés, deviene ai fin uno épica descolza cuando el humilde plebeyo Alonso Romírez, el crioilo emblemático, soporto con estoicismo y verdodero heroísmo todos los tribulaciones de la vida colonial sin jomás envilecerse. El Nino Avilés de Juliá, mientros tonto, se convierte en un Colón degradado, quien trueco sus tres corobelos por trece cholupos, y el Mar Océono por los cenagosos canos de la bahía de San Juan, en su expedición fundadora de uno ciudad para!e!a, セjオ・カ。@ Venecial uencrucijada de Sodoma y !a Nueva Jen.Jsolén". El outoproclomado Cristo ferens (que morirío de sífilis en Vollodolid) se hobío transformado en el deforme y tullido torso dei Nino Avilés, el onti-mesíos, primo hermono dei "colo de cerdo" de Gordo Márquez, en otro crónico subvertida por los tirobuzones de lo historia, si no por lo trópico dei discurso. Mos si Alonso Ramírez es el crioilo emblemático, 6quién es este nino deforme, nocido sin brozos, con piernas ton pequenos que son lo fiel 282 LETRAS -Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). imagen de la atrofia, atadas a torso y cabeza por lo demás normales, excepto por la eterna y angustiada fijeza de dos ojos que miran extraviadamente desde el fondo dei retrato de Campeche? Este pequeno diablo embotellado, primo dei "imbunche" de Donoso, resulta de inmediato el emblema mismo de la represión síquica 9 . Rodríguez Juliá hace esta lectura dei retrato en su Campeche, o los diablejos de la melancolía (1986): Según la leyenda en la parte inferior, este nino de Coamo nació el 2 de julio de 1806. Fue traído por sus padres a San Juan, donde recibió el Sacramento de la Confirmación el 6 de abril de 1808. Entonces fue que el Obispo Arizmendi le ordenó a Campeche este retrato. i'.Cuál seria la motivación dei Obispo? Dávila nos senala: "En América y Espana son corrientes estos gestos de curiosidad científica de parte de los obispos en el curso de las visitas pastorales, durante la segunda mitad dei siglo dieciocho" ... Si esa fue la intención inicial, Campeche la rebasa prontamente, convirtiendo el retrato en una metáfora dei sufrimiento . . . Y este sufrimiento está relacionado con el pueblo: la mirada dei pintor. acostumbrada a captar la personalidad y función de la élite crioilo y la casta administrativa colonial, se posa aquí en lo disforme, en un hijo dei pueblo , .. , El Avilés está atado dentro de su cuerpo, maniatado por la deformidad orgánica . . . . Se revela una incertidumbre en lo tocante a la edad dei nino. De repente nos parece que en realidad estamos ante la condición lastimera de un joven amortajado en el cuerpo de un infante. La cabeza nada tiene que ver con el cuerpo. Ha envejecido en ese do1or atroz, en ese robloso Süfrirniento .. , , En esa distancia entre el ' E! diablo cojuelo [1641] de Luis Vélez de Guevara, último ejemplar de la novela picaresca espanola clásica, es la fuente principal para el Nino Avilés de Juliá. Se trata de un deforme diablillo mensajero dei folclor espano! ("el diablo cojuelo es buen mensajero"], ai que Vélez presenta otrapado en una botella, como el genio de Los mil y una noches. El estudiante Don Cleofás lo abrirá y lo dejará salir. Por ese favor, el diablo cojuelo lo lleva en un viaje de desengano por la sociedad espanolo. El Nino Avilés es ese demonio mensajero embotellado en el inconsciente de Campeche, ai que los escritos de Juliá dejan salir. El archivero Pedreira, como Don Cleofás, libera ai diablo cuando revela los manuscritos. Finalmente, el acto de leer, de abrir el libro ai modo de una caja de Pandora, desata el pandemonium textual de la novela y libera a los demonios embotellados de la libido histórico. LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 283 ojo derecho y el izquierdo residen la obediencia y la rebeldia, la salvación y la maldición, la santidad y nuestra soberbia. [11723) De acuerdo ai autor, el Nino Avilés representa ai "pueblo", y ai mismo tiempo para Campeche, la oportunidad de subversión. José Campeche era el hijo de un antiguo esclavo endeudado por la compra de su libertad y de una inmigrante de las lslas Canorias. El mulato, entrenado por Luis Paret y Alcázar, pintor de cámara de Carlos III, se convirtió en propiedad artístico de la lglesia y de la élite política, nunca libre para pintar a su propia gente. La inversión de la historia ("oscuro reverso") parte de la liberación dei deseo reprimido de Campeche y desemboca en la liberación de la libido histórica dei "pueblo". La novela comienza como una cita dei "Diario" de Campeche, cuando ocompana a Avilés en su expedición fundadora, pues el texto es antes que nada una lectura liminal de la emblemática dei pintor, la que Juliá considera una "escritura pictórica" en busca de una voz liberadora (Campeche 24). El ano es 1797. De inmediato, la novela regresa a la noche dei 9 de octubre (el cumpleanos dei novelista) de 1772 para relatar el rescate de un naufragio cuyo único sobreviviente es el recién nacido Avilés, que flota en un moisés. En la playa, la muchedumbre se lanza a un carnaval, con música improvisada, baile, venta de trituras y demás, como será el caso cada vez que los caribenos se reúnan por algún acontecimiento. El anacronismo (Avilés nació en 1806) es respaldado por su envejecida apariencia en el retrato de Campeche, pero también sirve para sugerir la eternida d emblemática de este "hijo dei pueblo". Juliá escoge el siglo dieciocho como marco para su novela porque es el momento fundacional de la identidad histórica oficial de 284 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS]. Puerto Rico. Hasta ese punto, San Juan había sido poco más que una prisión militar, con unas 300 casas junto a la fortaleza de El Morro. Para fines dei dieciocho, la población de la isla había aumentado a 45.000 en 1765 y a 155.000 para 1800 (Bianco 43-44). Luego de un letargo de tres siglos. interrumpido sólo por los saqueos de Drake y Cumb erland (1595, 1598), la capital islena entró en los anales de la modernidad con la Real Orden de Libre Comercio con las Antillas (1765); su primer código administrativo (fi Director/o General de Muesas, 1770); su primer censo oficial (Miyares 1779); su primera historia oficial (lnigo Abbad 1782); la consolidación dei poder de la lglesia (Trespalacios 1784-89); y la expedición científica de los naturalistas franceses Ledrú y Baudin para documentar la flora, fauna y costumbres (1798). La toma de La Habana por los ingleses (1764) fue acicate de oportunas fortificaciones entorno a El Morro de San Juan (1766-95) -que aparece en la novela como el castillo de Obatal- para lo que se importó a cientos de reos y esclavos. En lugar de la fundoción de Nueva Venecia. 1797 es el ano dei ataque inglés bojo Harvey y Abercromby, que desembarcaron con 65 barcos y 8,000 hombres en Cangrejos (lugar dei naufragio de Avilés y de su simbólico nacimiento), para un frustrado cerco a la ciudad. Campeche, quien participó de la defensa, había hecho distribuir desde su taller docenas de copias de la flamenca Virgen de Belén: los ciudadanos atribuirán la salvación de la ciudad a los pinturas. Ese mismo ano un decreto real confiere el título de la "Más noble y leal ciudad de San Juan Bautisto de Puerto Rico". Sin embargo, ai otro lado dei canal de La Mona, la isla de Santo Domingo había visto un levantamiento de esclavos (1791) que condujo o lo independencio de Haití (1804). Si El Morro fue fortificado en respuesta a la amenaza inglesa, la amenaza negro desotó la LEmAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras do UFSM [RS). 285 represión temerosa y el "blanqueamiento" oficial de Puerto Rico, el que yace en los cimientos dei estado colonial como un pecado original enterrado en la conciencia nacional, dei cual la epifanía dei mesiánico Nino Avilés, catalizadora de la catarsis colectiva, habría venido a redimir. La novela intenta penetrar la oficialidad y narrar el "oscuro reverso " de los hechos fundacionales, la historia dei deseo reprimido. El desenmascaramiento que busca Rodríguez Juliá vincula el desengano quevediano de "EI mundo por de dentro" con el sicoanálisis lacaniano, para revelar la historia de la libido, la historia "por de dentro". 10 "EI Hijo dei Pueblo" no será el protagonista de la acción, sino el objeto dei deseo. Será llevado de la playa por el diabólico obispo Larra y puesto dentro de La Orejuda, un anexo laberíntico dei palacio episcopal disenado para amplificar los gemidos dei nino, y donde monjas sádicas clavan de pinchas sus carnes -mortificación que recuerda la pasión de Alonso Ramirez. La reputación demoníaca de Avilés crece pareja con el poder de Larra, que ha creado sus propios demonios para poder exorcizarias públicamente. Larra le paga a un actor sefardita, Juan Pires, para que haga el papel de exorcista, mas éste, creyéndose sus propios sermones, se transforma en profeta que proclama a Avilés segundo Mesías, fundando !a secta heterodoxa de 11 !0s avi!e!losll antes de morir en !a pira. La empresa de Rodríguez Juliá exponde el contropunto de dos predecesores. En el prólogo o su crónico novelado dei levontomiento haitiano, E/ reino de este mundo [1949), Alejo Carpentier odvierte que "el relato que voo leerse ho sido estoblecido sobre uno documentoción extremodomente riguroso que no solomente respeto lo verdod histórico de los ocontecimientos, los nombres de personojes セゥョ」ャオウッ@ ウ・」オョ、。イゥセL@ de lugares y hasta de colles. sino que oculto, bojo su aparente intemporolidod, un minucioso cotejo de fechos y de cronologias". En el prólogo de su reescrituro de Froy Servondo, E/ mundo alucinante [1969), Reinaldo Arenas propone contar lo historio "como fue, como pudo hober sido, y como o mi me hubiese gustado que hubiero sido". "Estas novelos no son históricos. Son fundaciones utópicos que disfrazon de historicismo su textuolidad" [Rodríguez Juliá, "Tradición y utopia" l 0). 10 286 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). Resuelto o imponer lo restouroción católico, el obispo Trespolocios con su floto bombardeo lo ciudod de Lorro desde el mar. Lo botollo de los obispos (el aparato civil y militar de lo colonio se hollo notoblemente ausente) represento lo guerra intestino dentro de lo propio trodición represivo dei catolicismo hispânico. Todo lo novelo se transformo en uno botollo épico contra los demonios, inspirada en Historia de una pelea cubana contra los demonios de Fernando Ortiz (1959) -la principal fuente intertextuol 11 . Favorecidos por la batallo, los negros de la guardio de Lorro se rebelon para derrocaria, lidereod os desde el este por Obotal, quien fundo un reino africano en la torre de El Morro, mientros los ovilenos blancos retroceden hasta Catono, ai oeste de lo bohía. Obotol tomo ai Nino Avilés como tolismán de poder, pero o diferencio de Lorra, omordozo ai infante y lo silencio. Pronto ocurre uno disención entre los líderes negros: Mitume estoblece una facción contrario en el litoral oriental. El maquiavélico obispo Trespolocios, instigador indirecto, oun aguarda en el mar. El Renegado, un crioilo simpatizante ( emisario de 11 AI igual que Juliá, Fernando Ortiz se propone contar una desconocida y olvidada historia, no registrada en la historiografia oficiaL acerca de una batalla librada contra los demonios durante la fundación de la villa cubana de San Juan de los Remedias en el siglo XVII. Según orchivos eclesiásticos, ünos 800.000 demonlos fueron exorcizados de una población de 700 habitantes, en su mayoría negros, aunque hubo algunos sacerdotes entre los posesos. Un certificado notarial de 1682 registra una declaración jurada dei propio Lucifer (quien había invadido, con 35 legiones de demonios, el cuerpo de una anciana negra) donde declaraba que los demonios habían venido por culpa de los pecados de los posesos y de sus padres, y que el pueblo literalmente se hundiría (597-8). El antropólogo Ortiz, rastrea las raíces de la demonologia europea, su !legada a América, y su empleo en contra de la cultura afro-cubana. Todos los demonios de la novela de Juliá son tomados de Ortiz. quien a su vez cita de E/ diablo cojuelo de Vélez los nombres y atributos de los demonios dei floclor medieval espano! (1 04). Los más importantes son: Asmodeo, príncipe de la lujuria; y Renfás o el "Diablo Cojuelo", senor de la pereza (cfr. Juliá, caps. 44-47). El uno desata ai otro. Si Vélez presenta ai Cojuelo como inspirador de todas las danzas lascivas venidas desde África ai Nuevo Mundo y luego a Espana, Ortiz encuentra su homólogo en la deidad yoruba de una sola pierna, Obatalá. LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS]. 287 ObataL camarada de Mitume y espía de Trespalacios) deja unas crónicas en las que él es protagonista. Obatal lo envía en embajada de paz con su amada Reina de Africa por la maravillosa tierra de Yyaloide en busca dei campamento de Mitume, el cual encuentra diezmado por un huracán y un ras de mar. Las facciones se reagrupan y guerrean en bote por los manglares, participando los avilenos en algunas escaramuzas. La batallo, modelada según lo descripción por Berna! Díoz de la conquista de Tenochtitlán, "será lacustre": los negros divididos serán aztecos y tlaxcaltecos: los avilenos, huestes de Narváez: El Renegado, La Molinche; y Trespolacios, Cortés. El obispo y su cronista Gracián observarán esta "épica etíope" desde el interior de una "máquina de espionaje" en forma de jirafa hueca (el caballo de Trova de la novela), la cuol, por supuesto, posa inadvertido paro los africanos. El rebelde Mitume emerge con una victoria precaria, pero ahora, el obeso obispo dei retrato de Campeche, quien posa toda la novela comiendo en compensación por su celibato, horá su movida hacia el poder, mientras su cronista Gracián domino la narración. Trespalacios reestablece el orden con el destierro de los "diablos negros", el exorcismo de Avilés, la limpieza y "despojo" de lo ciudad y la fundación dei estado. El día de Navidad de 1773, bautiza a Avilés, y los avilenos regresan a un San Juan cristiana. El . "diario secreto" dei obispo contará de sus suenos de construir la Ciudod de Dios, la Nueva Jerusalén; de sus interminables batallas contra los demonios, instigadores de Arcadia y Utopía; y de sus proféticas pesadillas sobre una ciudad lacustre en zancos sobre los manglares, reflejada su naturaleza efímera en el agua, como el espacio de la esperanza infinita y dei deseo insatisfecho. --·-·-- - ' 288 ·--------- -· MᄋZLセ]」 LETRAS Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). Aníbal González ha llamado la novela una "alegoria de la cultura puertorriquena", senalando que sus varias utopias ( el reino africano de Obatal, la Ciudad de Dios de Trespalacios, la Arcadia jíbara de Pepe Díaz y la Nueva Venecia de Avilés) corresponden a interpretaciones de la cultura nacional hechas por los anos treinta: Antonio S. Pedreira, lnsu/arismo (1934), Tomás Blanco, Prontuario histórico (1935) y Palés Matos, Tuntún de posa y grifería (1937). La correspondencia no es exacta, y la noción de "cultura" es algo estrecha. Por otra parte, Rubén Ríos Avi/a y Jean Franco descartan el papel de la alegoría, prefiriendo la última llpasticiJ8 ivios González preslente algo, llórnese 'lolegorfo de lo culturo 11 • 1 ', o con más propiedad siguiendo a Campeche: emblemática dei poder. Ríos Avila, en su excelente estudio, sugiere que el autor regresa ai siglo XVIII en busca dei ethos nacional; y ai igual que González, ubica la verdadera referencialidad de la novela en el siglo XX. Estas interpretaciones convienen con la perspectiva de Avilés como emblema dei "pueblo". Benítez Rojo y Duchesne ven en el pa/enque o comunidad cimarrona el modelo de Nueva Venecia, un espacio de libertad hurtado ai espacio de la represión, un refugio de esperanza para los esclavos fugitivos. Senalan, junto con Guillermo Baralt, que a pesar de algunas revueltas el palenque, tan común en Brasil y El Caribe, se encuentra notablemente ausente de la historia de Puerto Rico, permaneciendo como lugar de deseos, algo que pudo ser, semejante a la ciuda d mítica de Avilés. Sin embargo, esto ya había sido sugerido por el reino africano de Obatal más que por Nueva Venecia, cuya fundación es únicamente profetizada pero nunca realmente lograda. Por otro lado, vale notar que la novela presenta una sociedad no mezclada racialmente, donde el mulato (la raza de Campeche) es otra ausencia notable y donde la LETRAS -Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 289 posibilidad fundacional dei mestizaje -representada en El Renegado y la Reina de Africa- es deliberadamente frustrada. Además, las mencionadas utopías o interpretaciones de la cultura -excepto para Nueva Venecia- corresponden a mitos étnicos y aspiraciones que son exclusivamente hispanas, criollas o negras. Contrario ai retrato de armonía racial que Tomás Blanco hace dei período colonial, Rodríguez Juliá nos refiere a una moderna sociedad puertorriquena cuya apariencia orgânica se deshace en sus costuras 12 . La propia palabra "mulato" (híbrido, dei griego para "mula"), tan corriente en Cuba, rara vez se ernpiea en Puerio Rico, donde incluso negro ha sido reempiazado por eufemismos como moreno y trigueno, siendo los mulatos considerados blancos ---analogía sociolingüística dei "blanqueamiento" de la conciencia nacional. Nueva Venecia es, a su vez, el espacio de la entropía racial, esa tierra-de-nunca-jamás de armoniosa hibridez y permisible heterogeneidad: Mis novelas padecen el trasiego, la inquietud de una sociedad a media hacer. que está por definirse. Nuestras mejores ciudades son las utópicas: las otras son encrucijadas de las incesantes comparsas y peregrinaciones dei colonialismo, dei exilio y de la emigración. ("Tradición y utopia" 1O; el énfasis es mío.) El Prontuario histórico de Tomás Blonco sostiene que para l 770 se instaba oficialmente a que las escuelas públicas admitieran a todos los ninas, fueran blancos, mulatos o negros libres セBウゥ・ョ、ッ@ esto digno de recalcar, pues denota la temprana convivencia entre las razas" (60]. Como el tamano de la montanosa isla no admitia grandes plantaciones. el número de esclavos. según Blanco. nunca sobrepasó el 13% de la población, en contraste con el 90% en Haiti, 81% en Jamaica. 51% en Brasil y 36% en Cuba (77-78), lo que desde luego explicaria la ausencia de palenques en la historia puertorriquena. El "oscuro reverso" de Tomás Blanco mostraria, sin embargo, que el brusco aumento de población a partir de la segunda mitad dei siglo XVIII obedecia a una política de blanqueamiento que para 1834 había reducido la proporción de negros a un 46%, de los cuales un tercio seguia siendo esclavo. 12 290 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). Rios Avila percibe en el propio Juliá a un autor "a medio hacer", como su infante Avilés, senalando que en su primera novela, La renuncia dei héroe Baltasar (197 4), sus vorios cronistas tienen nombres compuestos y en clave, los cuales refieren a otros autores como coordenadas intertextuales donde su propia identidad autoral se disemina. Lo mismo puede decirse o propósito de La noche oscura, la que provee en su prólogo el contexto para su propia lectura. Aquí, no obstante, los autores aludidos son subvertidos, puesta ai descubierto su libido, sus "demonios" liberados; siendo tal el procedimiento que Juliá emplea para cifrar su "oscuro reverso" de la historia. El Alejandro Codolso que firma el prólogo seria Alejandro Tapia, primer biógrafo de Campeche (1855), quien nos da uno lectura armoniosa dei pintor mulato, que la novela se propone subverti r. EI archivero Pedreira sería el oscuro reverso dei hispanófilo auto r de lnsularismo, mientras que Julián Flores, el supuesto Renegado, serío Juan Flores, autor de tnsularlsmo e ldeo/ogía burguesa en Antonio S. Pedreira (1979). Pedreira definió el carácter nocional por su tímido aislamiento (lo opuesto a la empresa globalizante de Alonso Ramirez), una lnsularídad que engendra docilidad (lo opuesto ai Nino Avilés). lnsutarísmo y su ensayo complementaria, El puertorríqueno dócil de René Marquês, rumian viejas versiones de la docilidad desde lo "pereza tropical" de lnigo Abbad hasta la "abulia patológica" en Crónica de un mundo enfermo (1903) de Manuel Zeno Gandía. Juliá parodia estas concepciones en la batalla que Trespalacios sostiene contra el Diablo Cojuelo, demonio de la pereza (cfr. Abbad 181-88, Juliá 387). Tomás Costelló Pérez Morris, quien emplazo la autenticidad de las crónicas de Nuevo Venecia serío un compuesto de los historiadores criollos Tomás Blanco, antes mencionado, y Pérez Morris (1840-1881), cronista dei Grito LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 291 de Lares (1868). El otro archivero, el que "arriesga su salvación" para rescatar las crónicas y a quien los escépticos tildan de verdadero inventor de Nueva Venecia, Don Ramón García Quevedo, no es otro que el maestro barroco espano! dei desengano, autor de "Las zahurdas de Plutón". Gracián, el cronista de Trespalacios es la libido locuaz dei ultrasucinto Baltasar Gracián (cuyo fi criticón, dicho sea de poso, sería el modelo estilístico para los lnfortunios de Sigüenza), pero también podría ser el oscuro reverso dei historiador ilustrado Fray lnigo Abbad y Lasierra, que en 1772 fue secretario y confesor dei obispo de San Juan. i.X qué decir acerca de ese cronista-protagonista apodado "EI Renegado"? En su crónica social acerca dei funeral de Luis Munoz Marín, Las tribu/aciones de Jonás (1981 ), Rodríguez Juliá se refiere ai exgobernador como "EI Renegado". No es difícil ver el porqué. Munoz era un joven líder nacionalista, quien como gobernador encontró acomodo político con los Estados Unidos. Escritor frustrado, Munoz deviene "arquitecto" dei nuevo Estatus nacional ai traducir "colonia subalterna y dependiente" como "Estado Libre Asociado". Antonio Benítez Rojo ha encontrado otro primo hermano dei Nino Avilés en el axolotl de Cortázar: aquel otro reprimido, cansado de ser el deforme nino de la ficción, aguarda desde su retrato-jaula por su leal visitante, su homólogo, el nino normal de la historia que siempre quiso ser, el que algún día lo liberará y tomará su legítimo lugar de ese otro lado dei espejo. En La jaula de la melancoiía, Roger Bartra senala que el anfíbio axoloti, criatura lacustre natural dei lago Xochimilco en la vieja Tenochtitlán y perfectamente incapaz de reproducirse en otro habitat, es biológicamente el estado larval de la salamandra, que alcanza la adultez sin desarrollarse: crece, envejece, y aun así, rehusa desprenderse de su peculiar y perpetuo 292 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS]. estado embriónico. Lo tiene por símbolo de la polis mexicana. Tal el Nino Avilés, ávido joven encerrado en un cuerpo de renacuajo. La ficción dei estadolibrismo munocista, ese perpetuo estado embriónico de la Nación, lo condena a una atrofia v melancolía infinitas. Y es que el hijo dei pueblo, ese puer aeternus, se ha convertido a hora en el estado larval dei cuerpo político. La ciudad como palimpsesto EI simulacro de regreso de la novela (para construir una referencialidad actual, contemporánea) es un aspecto de la seudocrónica testimonial que, naturalmente, difiere dei prototipo de Sigüenza. La referencialidad ai presente está senalada en Juliá por la elipse v el anacronismo. Nueva Venecia, aunque profetizada, nunca aparece en la novela; La noche oscura dei Nino Avi/és resulta ser sólo un subtítulo, primera parte de la "Crónica de Nueva Venecia". Durante anos, los críticos aguardaron el resto de la trilogía que Juliá jamás entregó. Los escépticos rumoraron que el autor, desencantado con el primer resultado, había abandonado la empresa. Los entusiastas llegaron a advertir que Nueva Venecia era, en verdad, insondable; que ubicarla en un espacio v tiempo era destruir para siempre su carácter utópico. AI cabo, Juliá confesó que en su entusiasmo juvenil había escrito en realidad una novela impublicable de l 500 páginas en la que Avilés era criado v educado por Trespalacios: La noche oscura fue el convenio final (véase su ensavo gracianesco "En la mitad dei camino"). Lo que tenemos LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 293 es esa firma dei barroco que Severo Sarduy llama la apoteosis de la elipsis: Nueva Venecia nunca llega porque ya existe. La referencialidad ai presente permite una tercero y último penetración dentro de otro texto oculto: el San Juan de Rodríguez Juliá, lo ciudad como polimpsesto; uno excovación arqueológica en los cinco siglas de historio que cubren su paisaje, generaciones que expiraron dejando barrosos caracteres inscritos en su topografía; una incursión en la reconstrucción cronotópica de su siempre incompleta renovación urbana. La diferencia que destaco con la Odisea de Sigüenza es que su muchacho, Alonso Ramirez, sole de Puerto Rico paro navegar por el mundo en el espocío de unos cuantos anos, mientras que en su Ilíada, Juliá deviene un peregrino en casa viajando a través de copos temporales en torno de un mismo punto, pero con no menos afán picaresco. Sigüenza, obsesionado con la hidrografia más que la topografia, dirá poco de los lugares que visita. Cuondo arriba a Batavia, en Java, bullente emporio dei comercio mundial como el Hong Kong actual, lo condensa en cifra gracianesca: "Pera con decir estar ollí compendiado el Universo lo digo todo" [20). Cuando regresamos, sentimos que nodo dei mundo hemos visto, sólo el interior d el barco de Sigüenza, un vaso de palabras; es el discurso vehiculor de lo seudocrónica y dei libra de viajes, el que constituye el verdadero argumento de la historia. Juliá, no obstante, obsesionado con la topografia histórico, nos dará en su laudes civitatum una ilimitada descripción moral y física de la ciudad, explorando con ojo de miniaturista el microcosmos de Nueva Venecia, ese San Juan liminal, el multus ln parvo, el Universo resumido. Su propio "cronista Gracián" 294 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). poseerá un estilo barroco diferente, imbuido dei penetrante sobrepujamiento satírico de Quevedo, Lezama y Cabrera Infante. Real o imaginada, la Nueva Venecia de Juliá es la arqueologia libidinal dei San Juan moderno y metropolitano, un comentaria cáustico acerca de la contradictoria fusión urbana de disciplina y deseo, represión católica y liberación sexual. Los tiempos sobreimpuestos, en la escritura de la antigua Nueva Venecia y en la lectura dei moderno San Juan, existen en función dei despliegue mixto dei lenguaje arcaico de la crónica y el lenguaje callejero dei Puerto Rico actual -respondiendo el último ai proyecto literario de "escribir en puertorriqueno" propulsado por Luis Rafael Sánchez con La guaracha dei Macho Camacho. Las numerosas inserciones de la jerga moderna ("incordio", "molleto", "galán", "compio"), de letras de canciones populares ("pare, cochero", "cachito pa huelé"), y dei lenguaje de la cultura de la droga ("perico", "date un pose", "/es vofó los sesos", "los arrebataba") sirven de marcadores anacrónicos de la referencialidad ai presente. Además, el discurso de las viejas crónicas está en realidad casado, en cuanto a ciertos aspectos formales, con el género neopicaresco de las crónicas de sociedad, ampliamente cultivado por Juliá, en su neorrealista -cosi periodístico, si carnavalesco- retrato de la cultura popular urbana y moderna de Puerto Rico. Tal mezcla de viejas y nuevas historias, de formas cultas y populares, reflejan la plasticidad genérica entre la seudocrónica testimonial de La noche oscura y las más modestas "crónicas sociales" que enmarcan la producción de su autor. 13 El hilo común que recorre el gracianesco relato 13 Las tríbu/acíones de Jonás [1981 ), E/ entíerro de Cortijo [1983), Una noche con /ris Chacón (1986), E/ cruce de la Bahía de Guáníca (1989). LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 295 de viaje de Sigüenza, la picaresca, la sátira quevedesco y las modernos crónicas de lo cultura popular en Juliá es el ideal barroco dei desengano -la penetración en las opariencias y fachadas públicas, el desenmoscoromiento de la sociedad oficial. El parco retrato que Sigüenza hace de Puerto Rico en l 690 se reduce a esa cifra dei desengano: "Puerto Rico", el nombre mismo es un fraude; los pepitas de oro que una vez tuvieron los rios se habían agotado junto con los indígenas que las tamizaban; los huracanes habían diezmado los cacaotales que una vez fueron la principal cosecha islena; y las "riquezas" de su nombre siguieron encubriendo la "pobreza" de sus habitantes (Sigüenza l O), Un marcador central en la geografia ucrónica de la novela es la transposición dei moderno Pinones ai siglo XVIII. Pinones es un poblado playero, negro y pobre, cercano de Boca de Cangrejos, lugar dei naufragio y rescate dei Avi lés, Hoy Pinones es famoso como refugio sexual, con sus cabanas apartadas y oscuros cabarés bailantes, de vellonera y biliar, adonde los citadinos orilleros escapan dei chismoteo de la remilgada sociedad provinciana y bochinchera de San Juan, para los que el solo hecho de frecuentar el lugar es ya prueba dei delito. Cuando el rescate dei Avilés, hallan a una parejo haciendo el amor entre los arbustos, "suceso nada raro en Pinones, lugar a la verdad que muy notorio por ser escondite de ilícitos amores" (8). Piriones es el San Juan oculto, reino de Asmodeo, espacio lascivo ai margen de lo ciudad; pero también es puente entre San Juan y Loiza Aldea, la comunidad neoafricana culturalmente más pura que queda en Puerto Rico, El reino africano de Obatal en El Morro se sostenía por una "línea de suministro" LETRAS -Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS), desde Pinones, bombardeada por Trespalacios, un cordón umbilical que el obispo tuvo que cortar para fundar el Estado. Mas, para comprender la Nueva Venecia dei Nino Avilés hay que llegar ai San Juan dei joven Julió (que fue también el mío). La mítica ciudad de la novela se ubica en un tramo de manglares ai sudeste de San Juan, posada la hilera de burdeles que una vez flanquearon el puerto de la bahía, con su clientela de marinas y turistas de crucero amén de la juventud capitalina para la que por generaciones éstos representaron un rito de poso hacia la adultez. Convergiendo detrás de Trastalleres y Miraflores, los pantanales, ahora parcialmente ocupados por una autopista, se extendían desde el interior de la bahía por todo el estuario de San Juan, hasta el moderno centro comercial Plaza Las Américas, a lo largo dei famoso Cano Martín Pena. Es de saber que lo que mós recientemente se hallaba en esa infecta red de canales y manglares pululantes era el mós notorio arra boi de San Juan, EI Fanguito, una comunidad invasora de chozas de modera y techos de zinc en zancos sobre las fétidas aguas, para aquellos pasajeros de La carreta de René Marquês que no tenían con qué vivir en tierro seca. Oculto durante décadas, este vasto arrobai se hizo visible en toda su miseria desde el nuevo Expreso Las Américas. Pintadas de rojo o azul en época de elecciones, con los banderines de los partidos en alto sobre canas de bambú y su lema ondulante de "Pan, Ti8rra, Libertad", los cientos de chozas eran encuesta perpetua y visible, y a menudo certero pronóstico de resultados electorales. Mas el pintoresco barrio, descrito romónticamente como una "acuarela de pobreza" en centenares de cuentos, pinturas, poemas y canciones, se convirtió en boch orno de la LETRAS - Revista da Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS]. 297 turística ciudad, en negación de la empresa progresista proclamada por el estadolibrismo munocista. El prólogo de Juliá alega que las ruínas de Nueva Venecia fueron diezmadas por los bombardeos yanquis durante la ocupación de 1898: teoría simbólica, pues (,quién iba a bombardear un manglar deshabitado? (EI Fanguito aun no existía). El hecho es que Juliá, como el resto de nosotros, fue testigo de la "limpieza" de los arrabales y burdeles de la ciudad por el nuevo partido anexionista en el poder (ba jo el patrocínio dei magnate dei cemento convertido en gobernador, Luis A Ferré) durante los setentas y ochentas -un proceso que refleja el "exorcismo" de la maldita ciudad mítica ai final de la novela. Muchos residentes de EI Fanguito que se negaron a sa lir fueron trasladados a la fuerza a los caseríos públicos o enviados por lancha a Catano (como los avilenos) dei otro lado de la bahia, donde disfrutar de las brisas dei progreso respirando dióxido de azufre de la cercana Commonwealth Oil Refining Company. El Fanguito fue nivelado y su miseria soterrada. lrónicamente, como parte dei embellecimiento de la ciudad para la magna celebración dei Quinto Centenario, el Cano Martin Pena -por donde el Avilés llegó con sus trece chalupas en la expedición fundadora- fue modernizado con servicio de lanchas ai viejo San Juan, transportando a miles de espectadores a contemplar una vez más desde EI Morro los poderosos navios desfilar a vela por la bahia. Si existió en verdad la infame ciudad lacustre de Nueva Venecia o fue sólo una quimera, no es ya acaso lo que importa. La Nueva Jerusalén esconde a Sodoma tras bastidores. Rodríguez Juliá muestra que en las oscuras noches dei Nino Avilés, Nueva Venecia debe existir, aun hoy, bojo el adoquinado, el asfalto, el concreto, como lo que realmente es: el San 298 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). Juan subliminal, libidinal; su nuevo síntoma aparecido a inícios de los ochentas, bojo la epidemia dei SIDA, fue triste testimonio de este hecho. La noche oscura dei Nino Avi/és fue el segundo recordatorio de la existencia de Nueva Venecia, pues ahora la novela misma es esa ciudad letrada. Obras Citadas Abbad y Lasierra, Fray Agustín lnigo. Historia geográfica, civil y natural de la is/a de San Juan Bautista de Puerto Rico [1788]. San Juan: Editorial de la Universidad de Puerto Rico, 1970. Arrom, José Juan. "Carlos de Sigüenza y Góngora. Relectura crioilo de lnfortunios de Afonso Ramirez". Thesaurus XLII (1987) 23-46. Baralt, Guillermo A. Esc/avos rebeldes. Conspiraciones y sub/evaciones de esc/avos en Puerto Rico (1795-1873). Río Piedras: Ediciones Huracán. 1985. Bartra, Roger. La jaula de la melancolóia. México: Grijalbo. 198 7. Blanco, Tomás. Prontuario histórico de Puerto Rico. San Juan: Instituto de Cultura Puertorriquena, 1970. Benítez Rojo, Antonio. 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Guzmán, a ti nunca se te acerca un demonio que te dice, no fue así, no fue sólo así, pudo ser así pero también de mil maneras diferentes, depende de quién lo cuenta. depende de quién io vio y cómo io vio; imagina por un instante, Guzmán, que todos pudiesen ofrecer sus plurales y contradictorias versiones de lo ocurrido y aun lo no ocurrido; todos, te digo. así los senores como los siervos, los cuerdos como los locas, los doctores como los herejes. L.qué sucederia, Guzmán? Carlos Fuentes. Terra nostra En el artículo "Nietzsche, Geneología, Historia", Michel Foucault plantea la idea dei conocimiento como perspectiva (90). Dado que el conocimiento es base e instrumento dei Poder, existe un vínculo significativo entre el Poder y el lugar de enunciación, es decir, el punto de vista desde el cual se origina una reconstrucción dei posado 1 • Foucault senala que en la historiografia tradicional se establece una relación muy particular entre el historiador y el objeto de su discurso. Es "la perspectiva de la rana" que, de acuerdo con Foucault, consiste en postrarse ante la grandeza de los personajes, acontecimientos o ideas y contemplarias 1 Una complicidad similar entre las estructuras dominantes y la construcción textual de la realidad es el objeto de las reflexiones de Ángel Rama quien estudia en La ciudad letrada la relación entre "la ciudad letrada" (a la que pertenecen los: "religiosos, administradores. educadores, profesionales. escritores y múltiples servidores intelectuales"; 25) y el Poder. LETRAS - Revisto do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (RS). 303 desde la distancia, con admiración y veneración (89) 2 . Es una perspectiva útil para el Poder porque el historiador, ai convertir el posado en monumento, institucionaliza una versión oficial y supuestamente universal que es controlada y que controla. Perder el control sobre la perspectiva significa, por consiguiente, arriesgar el Poder. De aquí el miedo a las versiones contradictorias, escritas desde la otredad, imprevisibles y desconocidas, que Carlos Fuentes le atribuye a Felipe 11 en su novela Terra Nostra (en el epígrafe). Este ensayo analiza la reescritura de la historia oficial dei Descubrimiento a través de la parodia y la riso en Maluco. La novela de los descubrídores de Napoleón Baccino Ponce de León (Uruguay, 1989). La novela narra el viaje de circunnavegación de Magallanes (1519 -1 522) - una de las más grandes hazanas dei descubrimiento - desde la perspectiva dei bufón de la !lota, Juanillo Ponce. El bufón encarna a las clases más desfavorecidas de la sociedad espanola, los insignificantes para la historia monumental; representa la marginalización que condena ai silencio. Aunque Juanillo es un personaje ficticio, en él cobra presencia un personaje histórico colectivo que existió pero no logró trascende r: la comunidad marinera, los hombres de clases bojas que se integraron a las expediciones dei descubrimiento como participantes anónimos: Doscientos y tantos hombres, como Vos, no tan Reales ni menos reales. Con sed, con hambre, con sueno, con ilusiones, con miedo .... Capaces de gozar de un buen vino, de una buena hembra, de una manana de sol y de una comida cualquiera, con o sin especias. Padres, hijos, esposos, novios y solitarios .... "La perspectiva de la rana" hace pensar en la noción dei aura acunada por Walter Benjamin en "La obra de arte en la época de su reproductibilidad técnica" que también involucra el distanciamiento y la veneración. 2 304 LETRAS - Revista da Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). Marineros, capitanes. calafates. contramaestres. lombarderos, toneleros. grumetes, criados y qué sé yo. (52) 3 Por ser "reales" solamente con una "r" minúscula, estas hombres están fuera dei espacio en que se hace lo Historia. AI cederle la voz a Juonillo, Nopoleón Boccino Ponce de Léon desplaza el foco de las versiones oficioles hocio uno reolidod alternativa y recupero los experiencios de los seres cuyo poso por la Historio no dejó huello. Escribir lo Historia desde los márgenes La reescritura de lo Historio desde los márgenes y lo inscripción en los espacios de ella de los que tradicionalmente fueron relegados o la periferia político-social y cultural es un proceso muy complejo. En él, el cuestionamiento de las versiones oficiales vo o lo por con lo necesidad de la Historia como un sistema de legitimación porque los que no tienen Historia lo necesiton paro existir históricomente. Puesto que todo ataque definitivo a lo Historio significaría también uno auto-destrucción (histórica), reescribir desde lo posición oposicionol es un acto de negociación, un juego de aceptación y negación, que busca recuperar el posado reconfigurando ai mismo tiempo el discurso que lo construye: The social articulation of diflerence, from the minority perspective. is a complex on- going negotiation that seeks to authorize cultural hybridities that emerge in moments of historical transformation. (Bhabha 2) 3 Maluco. La novela de los descubridores. (Barcelona: Seix Borrai, 1990). Todos los referencias de páginas en el texto remiten o esta edición. LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). 305 En Maluco, la principal estrategia dei replanteamiento de la Historia que pertenece a "the man of deeds and power" (Nietzsche 67) es la parodia definida por Linda Hutcheon como una repetición diferenciada de textos (A Theory 32). El acto de parodiar incorpora convenciones y normas para desestabilizarias desde dentro: "Parody seems to offer a perspective on the present and the past which allows an artist to speak to a discourse from within it, but without being totally recuperated by it" (A Poetics 35). Por esta razón, sus implicaciones ideológicas son contradictorias: es, a la vez, un homenaje respetuoso y un gesto irreverente (33). Esta ambivaiencia ideológica hace de ia parodio uno de las estrategias más eficaces para la reescritura de la Historia desde la periferia, porque da cabida tanto a la aceptación de una convención discursiva o de una versión dei posado como a su cuestionamiento. La novela de Baccino que reescribe Primer viaje afrededor de/ mundo de Antonio de Pigafetta (1550, Venecia) y Décadas dei Nuevo Mundo de Pedro Mártir de Anglería (1516, Alcalá) es un ejemplo acabado de la repetición diferenciada de los textos 4 . Walter Mignolo senala que los textos de la conquista se escribieron con la obligación de informar a la Corona de los avances de la empresa espanola en las nuevas tierras (59). E! discurso de las crónicas, los diarios y las cartas de relación es determinado por su lector principal, el rey, quien encarna ai lmperio y el 4 Lo reescrituro dei Descubrimiento es uno vertiente importante de lo novelo histónco lolinoomericono, especialmente o partir de lo década de los setenta. Terra nostra (1975) de Carlos Fuentes, E/ arpa y la sombra (1979) de IIJejo Corpenlier, Lope de Aguirre, príncipe de la libertad (1979) de Miguel Otero Silvo, E/ mar de las lentejas (1979) de Antonio Benítez Rojo, La crónica dei descubrimiento (1980) de Alejondro Poternoin, E/ entenado (1983) de Juan José Soec Los perros dei paraíso (1983) de Abel Posse, 1492. Vida y tiempos de Juan Cabezón de Castilla (1985) de Homero Aridjis y Vigília dei Almirante (1992) de Augusto Roo Bastos, son los ejemplos más conocidos de novelos que reescriben, con propósito revisionista, los textos historiográficos sobre lo Conquisto. 306 LETRAS -Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). Poder: la crónica narro para él 5 • Esos textos presentan los viajes dei Descubrimiento desde una perspectiva oficial que celebra la importancia histórica de los acontecimientos y con frecuencia monumentaliza el posado describiendo hechos y personas que los autores consideran suficientemente nobles, grandes y elevados para figurar en la Historia 6 • En Maluco, el narrador recurre a las versiones oficiales de la empresa y repite el gesto de informar ai Rey de la suerte que corrió la expedición, pero replantea constantemente su discurso, su modo de producir la Historia a partir de los jirones dei posado. AI adoptar uno perspectivo diferente - la visión recortada que caracteriza lo "historio efectivo" (Foucault 89) -, parodio esta visión centrípeto de la Historia escrita desde y hacia el centro dei Poder y propone lo perspectiva de un partícipe anónimo e (in)significante que devalúo lo que la Historia privilegio y realza su lado no oficial y silenciado. Reescribe, pero no destruye, porque la aniquilación dei espacio histórico imposibilitaría la inscripción en él de nuevas subjetividades. 5 Cabe recordar aquí et comentaria de Lévi-Strauss en que se evidencia to porctotidod de ta escrituro histórico : "history is ... never history, but history for" (257). 6 Existen, por supuesto, excepciones. AJ lodo de la crónica de Gómara que cuenta los hechos de un ''valiente capitán" y que se escribe "en too o las glorias de Espano" (Mignolo 81 ), existen la Verdodera Historio de /os Sucesos de lo Conquisto de la Nuevo Espano de Berna! Díaz dei Castíllo que, narrada desde la perspectiva de un símple soldado, expone la otra cara de la Conquista de Méjico; lo Brevísima reloción de la destrucción de las lndios de Bartolomé de las Casas que denuncia tas atrocidades de la Conquista; y tos Comentarias Reoles dei Inca Garcitaso de ta Voga en tos que la realídad se describe desde una perspectivo mestizo, es decír, "impura". Por la condición dei protagonistanarrador, Maluco entronca también con esta verliente, lo cual le contiere credibilidad porque la novelo repito un discurso reconocido por la historiografia. Por otro lodo, llama la otención la relación hipertextual (Genette, Pallmpsestes) entre Maluco y ta crónica de Berna! Díaz dei Costillo: en ambos textos el narrador es un hombre víejo quien anos antes participó en las empresas espanolas en América como un simple soldado o marinero y quien escriba su versión de tos acontecimientos para corregir tas omlsiones de las verslones oficiales. LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (RS). 307 Hutcheon explica que la repetición diferenciada y diferenciadora de la parodia se realiza mediante una distancia crítica senalada con frecuencia a través de la ironía (A Theory 32). En su estudio más reciente sobre la ironía como figura retórica y manera de percibir el mundo, Hutcheon indica que la ironía - con su énfasis en el contexto, la perspectiva y la inestabilidad significativa -, define la condición actual (posmoderna) dei conocimiento (lrony's Edge 33). Su potencial desestabilizador que deconstruye y descentra los discursos dominantes resulta particularmente útil como una estrategia política: [T]he last few decades have seen many claims made for irony as a most appropriate mode not only for those in politicai opposition but, more generally, for those with the "divided allegiance" ... that comes from their difference from the dominant norms of roce, ethniciiy, gender or sexual choice. (31) La ironía es un instrumento de crítica, recodificación y redefinición de significados en los que se basa la construcción social de la realidad. Sus mecanismos principales - la doble mirada, el humor, el énfasis en el contexto y en la perspectiva -, desestabilizan y subvierten; a través de ellos se cuestiona toda pretensión de Verdad en las versiones autoritarias y dogmáticas dei posado. Esta inestabilidad de la ironía invade Maluco legitimando un nuevo espacio discursivo: la Historia reescrita por un bufón, es decir, la Historia como bufonada. El mayor sustento de esta re--definición paródica es el narrador y protagonista de la novela, quien escribe un relato personal de la expedición de Magallanes, dominado en totalidad por su perspectiva y su voz. Su relato ejemplifica la narración abiertamente controlada por el narrador que Hutcheon identifica como uno de los modos de narración 308 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). privilegiados por la metaficción historiográfica posmoderna (A Poetics 117). El YO narrativo senala un discurso personal, autobiográfico [aunque se trata de una autobiografía ficticia), la inscripción de la subjetividad en la Historia que subvierte el principio de la narración "neutral" en tercera persona que, según Émile Benveniste, caracteriza y determina el discurso histórico: Nous définirons le récit historique comme le mode d'énonciation qui exclut toute forme linguistique < <autobiographique> >. L'historien ne dira jamais je ni tu, ni ící, ni maíntenant, parce qu'il n'empruntera jamais l'appareil formei du discours, qui consiste d'abord dons la relation de personne je : tu. On ne constatera donc dons le récit historique strictement poursuivi que des formes de <<3 8 personne>>. (239) 7 La tercera persona "feigns to make the world speak itself" (White 2); encubre la presencia de un sujeto de enunciación y disim ula el acto de narrar. Dicha disimulación aspira a persuadir que la Historia es una representación objetiva, transparente e impersonal de la realidad, libre de pasiones, preferencias, evaluaciones subjetivas y distorsiones discursivas. La subjetividad de la primera persona desafía esta transparencia indicando que detrás de cada enunciado se sitúa un YO que selecciona, analiza, organiza e interpreta los hechos, construyendo una realidad textual. En Maluco, el recurso dei YO localiza la mirada que organiza la enunciación en la subjetividad dei narrador y protagonista de la novela: Para [nuestros cronistas] todo es tan simple como cocinar un guisado a partir de cuatro o cinco ingredientes. Pero, 6qué saben ellos, Alteza, de lo que en verdad sentíamos cada uno de En el mismo estudio Benveniste define el pronombre yo como representación verbal de la persona subjetiva ("personne subjective"), tú como signo de la persona no-subjetiva ("personne non-subjective), y él/el/a como la no-persona ("non-personne") (233). Si la tercera persona se designa como el modo de enunciación dei discurso histórico, entonces, de acuerdo con este razonamiento, este discurso es impersonal. 7 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). 309 nosotros ante esos cuatro o cinco grandes hechos a los que se limita su historia? Pues os digo que es allí donde está la verdad, muy dentro de cada uno de quienes fuimos partícipes de esa empresa y en nadie más, ni siquiera en Vos, Majestad. Ni en ningún otro lugar; es inútil que busquéis en los archivos, hurguéis en las bibliotecas; nada, no hay nada allí. (65-66; el énfasis es anadido) Es importante subroyor que lo óptico subjetivo de Juonillo depende de su lugar social que es lo morginolidod y de lo posición y función que éste tiene dentro dei mundo representado en su relato. Lo mirado diológico Desde lo perspectivo de lo historiogrofío tradicional Juonillo no pertenece o lo esfera de lo Historio. Hijo de uno prostituto (163 v 270), desconoce o su podre, es decir, es un ser sin origen, sin filioción. Es tombién extremodomente pobre: se considero o sí mismo "menos que uno gollino, simple truhán de pueblo" (163) v recuerdo "hober visto o su hermonito de meses morir de hombre y de frío, y hober es todo todo [su] vida o punto de morir por los mismos cousas" (163). Se enlisto en lo expedición ai Maluco porque deseo huir de lo pobreza. Lo morginon tombién lo oporiencio físico - es "enono y bastante controhecho" (74) - y lo religión: como judío converso es un ser constantemente despreciodo y sospechodo por lo sociedod cristiana esponolo (los cristionos viejos). Lo otredod social de Juonillo determino lo locolizoción y lo dirección de su mirado que aparece desplozodo respecto o lo óptico dominante, periférico en reloción con el centro. Este desplozomiento se monifiesto de dos moneros distintos. Primero, por ser un "sujeto banal" (Bolondier 8), 310 LETRAS- Revista da Cursa de Mestrado em Letras da UFSM (RS). sumergido en la vida ordinaria, Juanillo narra enfocando la cotidianidad. Sustituye las visiones macrohistóri cas de los historiadores cultos por el espacio microhistórico: analiza con lupa los fenómenos que describe, recupera el detalle que la Historia descartó por insignificante; privilegia la experiencia vivida sobre el conocimiento institucionalizado. El segundo desplazamiento se vincula directamente con el primero. George Balandier observa que la perspectiva cotidiana cosi siempre es transgresora: Le quotidien peut devenir le terrain sur lequel le sujet individuei, et les petits groupes qui encadrent ses activités réguliéres, situent leur débat ou leur affrontement avec la société globale. C'est en ce sens que la formule usée: la "bataille du quotidien" retrouve un emploi. Le quotidien apparaít .. . com me le moyen de la dissidence ... ou com me le moyen de l'alternative créatrice d'enclaves expérimentales ou sein même de la "grande société". Au degré supérieur, ii délimite un espace de la resistance ... cor ii fait obstacle à certains totalitarismes: à ses frontiéres s'arrêtent partiellement le conditionnement et la domination des pouvoirs. (12) La otredad encarnada en Juanillo activa una mirada alternativa, una manera distinta de ver y percibir la(s) realidad/es. La novela proporciona una escena que ilustra simbólicamente tanto el lugar social donde se origina la perspectiva de Juanillo como su conciencia de la importancia de este desplazamiento. Se trata dei juicio de los capitanes traidores ai que Juanillo asiste escondido debajo de la mesa: Dime, Majestad Cesárea, i.habéis estado alguna vez en tu vida debajo de una mesa observando los pies de los comensales y siguiendo su conversación? Pues habéis hecho muy mal, que no es bueno para un príncipe ver el mundo desde el trono solamente .... En cambio, debajo de una mesa las cosas se vende manera diferente. La inquietud de unos pies, el movimiento de una pierna, el balanceo nervioso de unas LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 311 rodillas, una mano que boja en gesto furtivo, el sonido de las palabras sin cara: os dirán mucho más de los hombres y de los negocias dei Estado que todos los discursos y alcahuetes a los que miróis y escuchóis desde lo alto de la regia tarima forrada en terciopelo púrpura. Te lo digo yo que he atisbado la vida desde todos los rincones y lo poco que he aprendido ha sido siempre bojo una cama, escondido en un armario, por el ojo de una cerradura, detrás de un sillón, o debajo de una mesa. (129) Dos perspectivas se contraponen en esta cita: la dominante y la marginal; la convencional v la inusual, la desplazada. La mirada "boja" dei bufón descubre las cosas veladas a la perspectiva dominante y desfamiliariza lo que ésta percibe como familiar. En otra ocasión, Baccino se vale de la metáfora dei bosque para describir la posición enunciativa dei narrador: "No entiendo nada de esas cosas grandes: grandes ambiciones, grandes suenos, grandes amores. Nada de eso es para mí que soy de los que ven los árboles pero jamás el bosque" (113). En Maluco, el narrador ve la Historia desde la periferia o desde "abajo" y la reescribe en términos ajenos a los grandes proyectos históricos. Su perspectiva periférica ocasiona lo que Homi K. Bhaba llama "restaging [of] the past" (2): la reinvención de tradiciones recibidas y aceptadas. Ahora bien, la reescritura dei descubrimiento en Maluco se origina no sólo en la mirada desplazada sino también en la mirada que se desplaza. La movilidad de la mirada de Juanillo radica en la ambivalencia de la posición dei bufón. Por un lado, siendo parte de la chusma marinera, Juanillo pertenece a la periferia social; por el otro, tiene acceso ai espacio tanto público como privado de los poderosos. Su profesión, pero tombién su aparente ingenuidad, ignoroncia y falto de experiencia mundana hacen que nadie sospeche ni desconfie de su presencia: LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS]. [U]n butón es como un amigo alquilado .... Con nosotros puede la gente solazarse v sincerarse sin consecuencias, porque i..quién toma en serio lo que dice un bufón? A nosotros pueden decirnos cosas que no dirían a sus mejores amigos v tratarnos como no tratarían a sus enemigos .... [21 l) La posición dei bufón puede compararse con la de un bribón, un aventurero, un parvenu social, un sirviente, una prostituta o una cortesana, personajes estudiados por Bakhtin en The Dia/ogic lmagination. Bakhtin senala que la posición de estos personajes favorece el estudio dé los secretos de la vida humana; respecto a la vida privada, todos ellos se sitúan como una '1ercera persona", un observador "externo". No participan directamente en el espacio privado de otros (en la mayoría de los casos. los otros son aqui los miembros de las clases acomoda das), ni ocupan en él un lugar fijo y definido, pero tienen acceso a él y pueden observaria ("espiar" es la palabra usada por el autor; 124 -127). Para los novelistas este "intruso incluído" es un recurso de la subversión textual, porque permite recoditicar la vida de los "grandes de este mundo" a través dei prisma crítico de los "pequenos". Entre los miembros ordinarios de la tripulación, Juanillo es el único que puede entrar en el camarote de Magallanes y deambular libremente por el barco, escuchando las conversaciones tanto de los jefes como de los simples marineros. Transita libremente entre los dos espacios - el público y el privado dei famoso navegante; el herr ᄋセョ@ y el humilde de la empresa -, sin que se lo identifique de una manera fija con uno de e llos. Recurriendo a las palabras de Homi Bhabha se puede describir a Juanillo como "o subject that inhobits the rim of an 'in-between' reality" para quien "private and public, past and present, the psyche and the social develop an interstitial intimacy. lt is an intimacy that questions binary divisions through LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). which such spheres of social experience are often spatiallv opposed" (13). La posición intersticial de Juanillo imprime una marca indeleble en su relato. Su marginalidad v trânsito entre diversos esp acios sociales producen una mirada dialógica que cuestiona la visión "sencilla"de las crónicas oficiales v reorganiza el espacio histórico. La mirada dei bufón se desplaza entre lo público v lo privado, lo insigne v lo banal, lo positivo v lo negativo, lo central v lo periférico, los provectos trascendentes v las vivencias particulares. El personaje-narrador actúa como un traductor de estos espacios, es decir, los rearticula en su lenguaje creando una realidad híbrida v dialógica: ahora en la vejez ... determiné, antes de morir, dar cuenta a Vuestra Alteza de los muchos prodigios v privaciones que en aquel viaje vimos y posamos, y el mucho dolor y la gran hambre que sufrimos, junto a las muchas maravillas y placeres que tuvimos. (8; el énfasis es anadido) Esta cita revela una de las estrategias fundamentales dei narrador en Maluco: "privaciones" o "dolor/hambre" se yuxtaponen a "prodígios" v "maravillas/placeres", v cada uno modifica ai otro, creando nuevos o diferentes matices v sugiriéndole ai lector que no existen oposiciones fijas, separaciones definitivas, sino que cada elemento de la dicotomia participa de su opuesto v se rearticula en la zona designada por él. Según las crónicas oficiales, el principal logro de la expedición de Magallanes fue el descubrimiento dei estrecho que le abrió a Espana el camino a las islas de las especias. Sin restarle importancia histórica, Juanillo registra este acontecimiento en su relato, pero lo rodea de descripciones de lo que él en su calidad de partícipe v descubrido r anónimo considera relevante: 314 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). Allí, en el bojo vientre de la nave, oculto a los ojos dei contramaestre por su propia concavidod, tuve ocosión de descubrir aspectos de nuestra aventuro, prolijamente escamoteados por los cronistas en su petulante ignorancia dei oficio de descubridor. Fíjote en los algas, por ejemplo, los hay parecidos o lechugas pero de un verde más intenso, oscuros y suaves como el musgo ... , semejantes o retozos de cuero y viscosas ai tacto y otros que porecen ostas de cieNo, y pequenos trozos de coral rojo, y hojos de roble en atono, y vello púbico y angelical, y rosas y plumas ... .(83) En las páginas de la crónica de Juanillo se despliegan minuciosas descripciones de la selva, de las plantas terrestres y marítimas, de la costa vista desde las naves que la bordean, de los animales, de los colores dei fondo dei mar, de los peces, de los nidos de pájaros, de las corrientes tumultuosas dei río que después se llamará de la Plata. Lo que la tradición historiográfica de aquella época considera relevante y lo que descartaría por insignificante se ubica en el mismo plano - el de la realidad descubierta - y se contamina en el relato dei bufón. La disolución de la frontera trazada entre lo importante y lo nímio produce "la pulsión renovadora de las imágenes" (Bustillo 301 ): lo glorioso se desvaloriza, posa ai segundo plano, mientras que lo fútil se re-valoriza, adquiere nuevos significados y trepidaciones. Este replanteamiento "bufonesco" afecta también la visión de los personajes históricos, especialmente la de Magallanes. El ser legendario, jefe de una expedición que logró lo imposible, se desmitifica y humaniza en la narración dei bufón. Son los pórrafos dedicados ai navegante portugués donde se observa con claridad cómo el tránsito entre vari os espacios le abre a Juanillo perspectivas vedadas a los que nunca cruzan las fronteras de su espacio social y cultural. Cuando su doble posición dei LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 315 bufón posa ai segundo plano y Juanillo es tan sólo un marinero de la tripulación, se le presenta la imagen pública de Magallanes, el hombredios, escogido por el destino para ejecutar hazanas y proezas extraordinarias: Primero, y recortándose contra el cielo blanco, se distingue a don Hernando, igual a un dias. Sus armas que reverberan y la capa de terciopelo verde que cubre sus espaldas y las ancas de su cabalgadura le dan un aspecto sobrenaturaL inhumano. (19) Juanillo observa a lo largo de su relato que Magallanes nunca se quita la armadura por temor a un acto de traición. Este comportamiento, en primer lugar pragmático, es también simbólico. La armadura oculta de la mirada lo que en el jefe hay de más vulnerable y humano: el cuerpo. Cubierto por capas de metal reluciente, Magallanes deja de ser una criatura perecedera, expuesta ai dolor físico, la fatiga y la enfermedad. Con la armadura, su figura se agranda y dignifica, su presencia se vuelve imponente; en otras palabras, se deshumaniza. A los ojos de los miembros comunes de la dotación debe ser semejante a un dios que tira las riendas de sus vidas 8 • Sin embargo, en su calidad de bufón, Juanillo tiene acceso ai espacio privado dei héroe y durante sus encuentros con él en el camarote es testigo de una metamorfosis que transforma ai dios en hombre: Yo seguía mudo .... Sabía que tarde o temprano saldría de su caparazón de metal como un gusano de su crisálida y se metamortosearía en mariposa de brillantes colores, revolteando en torno a sus recuerdos y a mis mentiras. Ya había ocurrido otras veces cuando estóbamos a solas, en la intimidad de su cámara. (1 05) En una ocasión, cuando Magollanes se libra de la armadura. Juanlllo obseNo que "[e]ra muy pequenito sin ella" (139). 8 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). La armadura, en su sentido literal y figurativo, encubre a un ser humano parecido a todos los demás, con sus deseos, suenos, miedos, goces y sufrimientos. Juanillo, quien conoce la complejidad dei espacio público y privado de Magallanes, se percata de que la identidad de su amo es una zona gris de interrogaciones sin respuestas, donde nada es fijo ni coherente. "i.Cuál eres en realidad?" (112), pregunta confundido, sin dar con una respuesta satisfactoria. El texto subraya esta indeterminación con un espacio en blanco que sigue a la pregunta de Juanillo. Los seres humanos, grandes o pequenos, son espacios en blanco donde las circunstancias imprimen signos diferentes, a veces, incluso contradictorios, irreconciliables. El desplazamiento crítico de la mirada activa también un diálogo entre la Historia como un proyecto trascendental y la historia como experiencia. El narrador llama la atención a esta dicotomía cuando compara su propio relato con el enfoque de las crónicas e historias oficiales. En éstas, los historiadores resaltan el acontecimiento, la hazana, insisten en una relación directa entre la causa y el efecto. En cambio, a Juanillo le atraen los espacios intermedios, lo que sucede entre la causa y el efecto y, en particular, numerosas bifurcaciones de esta realidad. Así, refiriéndose a la calma de tres meses que inmoviliza a la escuadra en el Pacífico, el narrador se queja de que los cronistas reales "despacharon ... en dos párrafos todo este asunto que [le]lleva a [él] tantas páginas" (200), y pregunta irónicamente: i.No bastaba acaso con decir que nos atropá uno calma de meses y que se nos acaboron por completo los bastimentos, y posamos gron hambruno; y luego meter a los vientos de nuevo y la !lota en marcha hacia su destino? i.Poro qué tanto rodeo? . (206) LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). Para Juanillo este rodeo es crucial, porque él percibe la travesío dei Pacífico en dos dimensiones distintos que se complementan: la hozana (histórica) y ia vivencia (personol). Por eso insiste en la vivencia, es decir, en el hombre, ias enfermedades, el miedo, las estrotegios de sobrevivencia, la implacable quietud de las aguas resplandecientes como un espejo, los muertes, el olor a podredumbre. La vivencia es todo lo que recontextualiza e ironiza el significado de lo polabra "hozona". En el nível dei discurso, dicha problematización dei binomio Historia/historia se articula en ia preferencio que ei narrador manifiesta hacia el presente como el tiempo dei relato. Es uno diferencia con las convenciones historiográficas, donde ei posado es el tiempo de la enunciación: L'énonciation historique, ,.. , caractérise le récit des événements passés .... [EIIe] comporte trois temps: l'aoriste (=le passé simple ou passé défini), l'imparfait (y compris la forme en -rait dite conditionnel), le plus-que-parfoit. Accessoirement, d'une maniére limitée, un temps périphrastique substitut de futur, que nous appellons le prospectif. Le présent est exclu ... . (239; el subrayado es anadido) Ei posado connota la depuración, la estabilidad significativa, una realidad acabada v fíja; disipa dudas y encubre vacíos; presenta los acontecimíentos como hechos inequívocos e írrefutables 9 • En cambio, el presente no ímpone iímítes (Barthes dice que es "parole sons limite"), senala un mundo obierto a tronsformaciones, semánticamente inestabie; una realidad en proceso de devenír, de hacerse v deshacerse, que fluve, que 9 Sobre el valor distanclador dei pretérito en el discurso histórico 」ッョウセ・Z@ MM Bakhtin, The Dialogic lmagination (18), R. Barthes, Le degré zéro de lécriture [26-27) v P.Ricoeur, Temps et réc1t, especialmente el tomo segundo. 318 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS), es transitaria, no tiene fin. El presente de la narración en Maluco ve la Historia en términos de experiencia inmediata; presenta los sucesos y vivendas como algo inconcluso y abierto cuyo significado último siempre se escapa a los que en ella participan. A fin de reforzar la impresión de inmediatez connotada por la narración en presente, Baccino Ponce de León recurre también ai tempo narrativo a través dei cual establece la relación entre el tiempo vivido (el tiempo tal como lo experimentan los personajes, el tiempo de la historia enunciada) y el tiempo de la narración, que es el de la enunciación 10 • Algunas veces la acción se demora, se aletarga; otras, acelera vertiginosamente. Lo largo travesía dei Océano Pacífico es la mejor ilustración de este juego con la dinâmica dei relato. La expedición posa tres meses atropada en las aguas dei océano, tres meses durante los cuales no ocurre nada. El narrador reconstruye esta situación a través de períodos muy largos que acumulan adjetivos descriptivos y, sobre todo, repeticiones. Por ejemplo, la frase "Es que hablábamos mucho" se reitera a lo largo dei capítulo séptimo donde el narrador relata la travesía dei Pacífico. En contraste, cuando ai cabo de meses reaparece el viento, el relato se dinamiza, la frase se vuelve breve, rápida y dominada por sustantivos y verbos: Entonces Su Alteza abre los ojos ... [y lo] que ... ve es otra cosa. Ve a los hombres que se lanzan a las vergas, que trepan por los obenques, que tensan las jarcias, que sueltan las velas. Ve la Trinidad que parece un hormiguero roto. Que se encabrita como un potro. Porque en todos los mástiles siguen estallando velas. (227) 11 10 Véase: G. Genette, Figures III y P. Ricoeur, Temps et récit, vol.2. 11 Los mecanismos dei dinamismo expresivo se describen muy bien en Teoria de la expresión poética de Carlos Bousono (t. 1). Bousono distngue entre el dinamismo positivo y negativo: "una frase posee dinamismo positivo si su estructura nos obliga a una lectura LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 319 A lo largo de la novela el tempo narrativo varía porque no todos los momentos de la empresa se viven de modo igual. Esta reconstrucción de la expedición de Magallanes en términos de experiencia modifica las convenciones de la crónica histórica en la cual predominan "la acción y su vértigo" (187). Sin embargo, Juanillo-narrador es muy consciente dei hecho de que todo acto de escritura traiciona la experiencia, que necesariamente la empobrece imponiéndole las normas dei relato que vuelve transparente lo que en realidad es confuso. Más aún, sabe que el relato traiciona también el acto de escritura, porque elimina el mundo dei narrador, el contexto de enunciación que lo rodea y condiciona: i.Qué sabéis vosotros de la historia real de esa página? i.Cómo sabéis si cuando don Hernando estaba por, el cronista no tuvo que interrumpir porque le han avisado que su madre ha muerto o porque está tiritando de frío ... ? Por eso, Alteza, muchas veces, como ahora, me da rabia la continuidad de mi discurso. Vergüenza me da pensar que la tranquilidad, que la protección que te da esa continuidad, sea a costa de esconder mis llagas, de desaparecer tras la máscara de las palabras, tras los rastros de los personajes, tras las penas inventadas de esos seres fantasmales que se mueven por las páginas que tanto te deleitan o afligen. (207) Para incorporar la vivencia en la escritura de la H/historia, Juanillo subvierte el eje temporal de su relato inscribiendo en él el presente dei acto de enunciación: su vejez y su cansancio, y también su desengano rápida, y ... , por el contrario, posee dinamismo negativo si esa misma estructura nos obliga a una lectura lenta" (337). El dinamismo positivo es encomendado a las partes de la oración que transportan nociones nuevas, es decir, los verbos y los sustantrvos. En cambio, el dinamismo negativo se debe a las palabras que siNen sólo para matizar lo ya dicho, los adjetivos y los adverbias. El valor dinâmico de la repetición es negativo porque no aparta nada nuevo (338). 320 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). con la Historia que se olvida de los Juanillos tan pronto como deja de necesitarlos. Así la novela conjuga dos H/historias y dos vivencias: la expedición a las Molucas y la empresa de contaria. La Historia y el humor En Maluco, lo revisión dei discurso de las crónicas se produce gracias o la "posicionalidad" dei narrador y, sobre todo, a su función en el mundo que describe. Juanillo fue contratado como bufón; el bufón es el que se ríe y hoce reír a los demás. Como narrador de un relato histórico, Juanillo se ríe y nos hace reír de la Historia, Uno de los principales mecanismos de la revisión dei discurso histórico es la riso que se origina en el desplazomiento social de la mirada. Bakhtin senaló en Rabelals and Hls World que la Historia, así como otros discursos de significancia social y político, no pueden ser cómicos: Laughter is not a universal, philosophical form. lt can refer only to individual and individually typical phenomena of social life. That which is important and essential cannot be comical. Neither can history and persons representing it - kings, generais, heroes - be shown in a comic aspect. The sphere of the comic is narrow ond specific (private and social voices); the essential truth about the world and about man cannot be told ln the ianguoge of iaughter. (67) Más que el tono, la seriedad es una forma de percepción dei mundo; elimino toda ambivalencia e indeterminación, y reduce la polivalencia semântica de la realidad a un sólo significado, fijo, estable y completo. De acuerdo con Bakhtin, la palabra seria es inequívoca, no produce verdades sino la Verdad; como tal mantiene el orden y la LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS]. 321 ideología establecidos, imposibilita el cambio y la renovación (Robelais 6781 ). Es por eso que los discursos oficiales, originados en y orientados hacia el Poder, privileglan los géneros de los que se expulsó la riso. La historiografía, con todos sus subgéneros, pertenece a esta categoría de textos. El temor a la riso se debe a su "poder terapéutico" (Rabelaís 67) que libera, corrige y renueva: "laughter [is] a universal philosophical principie that heals and regenerates" (70). Privilegiando una óptica particular, la riso destruye los significados fijos, introduce ambigüedad, pone en movimiento lo petrificado por tradición y convención; cambia la relación entre el hablante, su discurso y el objeto de ése, causando así la reorganización de perspectivas. La irrupción de la riso en el espacio de la Historia es, por lo tanto, una manera de subvertir la versión oficial o tradicional dei posado ('tradicional" en el sentido elaborado por Hobsbawm en The lnvention of Trodítion 12) Mediante su "poder terapéutico", la riso desfamiliariza lo que la convención presenta como normal y familiar. En una palabra, la riso altera lo reolidad, abriendo sus puertas o la otredad, ai discurso dei otro. Estas características hacen de la riso y dei humor un componente esencial de la reescritura paródica de la historia oficial dei descubrimiento en Ma/uco 12 • 12 La parodia no siempre es cómica, observan L. Hutchecn (A Thecry 32) y G. S. Morson (69). Por ejempio, castigo divino parodio los convenciones tanto de ia novela histórica como dei relato poiicíaco. pero no recurre ai humor como mecanismo de recodificación. Por esta rozón dedico una sección especial a lo riso. Por otro iodo, es revelador ei hecho de que, en lo mayoría de los casos. ia novela histórica tombién se inscribe en ia seriedad. En algunas novelos aporecen escenos cómicas (por ejempio, en Santa Evito. el encuentro entre ei Coronel y los polidas olemanes, o el episodio dei desembarque dei cuerpo de Evita en ltaiia). pero muy pecas hacen dei humor ei principio de ia construcción de reaiidad. En América Latina, además de Maluco, se puede citar Los relómpagos de agosto de Jorge lbargüengoitia (1963) cuyo humor devastador caricaturiza lo revolución mexicana. AI mismo tiempo, resulta interesante observar que El nombre de la rosa de Umberto Eco (1980), novela que tecriza ei potenciai subversivo de lo riso, mantiene ia seriedad a lo largo LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). El relato de Juonillo está sembrado de ironía, burlo, sarcasmo y chistes que ponen en entredicho a la vez los acontecimientos narrados y los valores occidentales que les dan origen (como son: Rey, lmperio, derecho divino, civilización, barbarie, cultura, religión). El protagonista presento estas sucesos con una ingenuidad que es sólo aparienc ia. Debajo de lo máscara dei bufón se esconde la sagocidod que resquebraja desde dentro los Imposturas ideológicos y culturales dei mundo occidental. El juicio práctico dei bufón percibe con cloridad lo ihsensotez y arrogancia de las teoríos europeos acerca de la geografia dei mundo, especialmente la idea dei paraíso terreno! elaborado por Colón. Expone la ridiculez de los suposiciones dei almirante ai contrastarias con lo que le dieta su conocimiento de la vida y, sobre todo, su sentido crítico agudizado por la inmersión en la cotidianidad: [E}I Almirante Colón tenía dei Paraíso uno teoria diferente de la mía . ... [S]egún aquel ilustre navegante, el mundo tiene forma de una teta de mujer, con el pezón en altos, cerca dei cielo y por eso decía. "los navíos van alzándose hacia el cielo suavemente y entonces se goza de más suave temperancia"; de resultas de lo cual aquel empecinado marina colocaba el Paraíso en ese "dulce pezón". Lo que no sé decirte es si se trataba dei pezón de la teta de su madre o de la mía, aunque pienso que sería la suya, ya que menguodos bienes depararia el Paraíso de estar situado en la magra teta de mi madre. (77) Este fragmento permite esbozar un paralelo entre el discurso de Juanillo y la manera en que Sancho Panza recodifica el mundo caballeresco de Don Quijote. Colón y Don Quijote inventan una visión dei de sus 500 páginas. Se nota en esta obra una contradicción obvia entre la propuesta ideológica/cultural y ia praxis de escritura. LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). mundo basándose en sus ideales culturales (religiosos o literarios). La mirada desplazada - prosaica, popular, "banal" o ingenua - de personajes "bojos" como Sancho Panza y Juanillo traduce esta visión, activa una reinterpretación de perspectivas. La cita, pero también la novela entera, ilustra "the processes through which the low troubles the high" (Stallybrass and White 3) creando una visión cómica y, por eso, más flexible, dei mundo. La riso dei bufón reevalúa también el Descubrimiento como un proyecto político y cultural. El discurso dei Poder, llamado por Michel de Certeau "l'écriture conquérante" (3) construyó una visión esencialista y simplificada de la realidad dei continente americano y de sus habitantes. En ella, las costumbres de los índios - en particular las prácticas relacionadas con el cuerpo como la desnudez, la sexualidad o la antropofagia - y el estado "primitivo" de sus almas, adquieren un significado especial porque permiten representar a América como una "criatura deforme y monstruosa " (O'Gorman 134) que necesita ser civilizada a través de la dominación. Esta misión cristianizadora y civilizadora que se constituye como base ideológica de la conquista se desafia sin cesar en Maluco. AI unir la riso bufonesca a su experiencia de judío 」ッョカ・イウセ@ Juanillo cuest1ona este proyecto co!onizador ridiculizando los . métodos, los propósitos y también los resultados de los empenas evangelizadores: [O]í más de una vez la voz aflautada dei cura Sánchez Reina y la de trueno de capellán Balderrama, desgranando a un invisible auditorio los rudimentos de nuestra fe .... Ambos curas se referían a Sodoma y Gomorra. y a las siete plagas de Egipto, y a otras calamidades destinadas a poner en claro cómo se portaba Dios con los rebeldes a su fe. Y aquello era tan aleccionador que .. . me puse a trabajar por temor a merecer alguno de 324 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). aquellos cataclismos con mi perversa molicie. Ahora, que si aquellos sermones estaban destinados a las mujeres que, se decía, ocultaban en la nave, las lnfelices debían de estar muy entusiasmadas por la formo ton llano y concisa con que les explicaban cosas como la de la Santa Tlinidad y la Reencornación y la Ascensión y otros osí de simples. Y también hablaban dei lnfierno, y sin duda les mostraban láminas como las que me ensenoron a mí cuando me cristianizoron y que aún no se me borran. (85-86) El bufón no se limita a la ironía verbal. En un gesto irreverente de burla imita la costumbre de los descubridores de bautizar y poner nombres cristianos a cuanto ser vivo o tierra encuentren. Repite el discurso religioso emulando la solemnidad dei acto, pero lo recontextualiza radicalmente porque sus "neófitos" no son seres humanos sino animaies: Aquella tarde en una sencilla pero conmovedora ceremonia, di a mis [animales] nombres cristianos. Era un poco antes de la hora dei ángelus y estaba de regreso en la Trinidod, así que aproveché la ausencla dei capellán para tomar prestados sus hábitos, y vistiendo el omito, el alba y hasta las casullas que llevaba de repuesto en un baúl, me instalé dispuesto a administrar el Sacramento a mis criaturas .... Tenía dos cuervos ... a los que llamé Fonseca y Cristobao, y una pareja de buitres o los que denominé Los Habsburgo ... . Tenía también uno loro parlonchina y muy histérica a la que bauticé Juanito ta Loca, y un elegante papagoyo amarillo y azul ai que llamé tsabe/ito. (87-88) Nombrar es definir la propiedad, en el doble sentido de atributo y posesión; bien lo sabían los descubridores y colonizadores cuando se apropiaban de los territorios descubiertos mediante la nominación. Juanillo imita estos actos, pero los deforma a través de la burla. Bakhtin observa que la riso altera la realidad acercando entidades que no suelen asoc iarse o que siempre existen separadas y distanciando lo que suele unirse [ The Dlaloglc /maglnatlon 237). El "bautismo" administrado a los animales LETRAS Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). 325 construye una realidod híbrida en la que coinciden realidades distantes: los anima\es exóticos y los nombres de personajes ilustres de la historia espanola. E\ efecto de esta desfamiliarizoción es doble: por un lado, degrada y desheroiza a los miembros de las clases gobernantes; por otro, pone ai descubierto y ridiculiza la práctica occidenta\ de apropiarse de América mediante e\ acto de nombrar. La idea misma dei Descubrimiento cambia vista desde la perspectiva dei bufón--descubridor. E\ suyo no es un proyecto ilustre o una hazana heróica. A veces, Juanillo duda dei carácter político y evangelizador de la expedic ión de Magallanes y la presenta como uno empresa culinoria que salió de Espana con e\ único propósito de proveer las especias que mejororían los sabores en la mesa imperial: 6Y qué éramos nosotros ... ?: simples marionetas .. ., títeres sujetos ai arbítrio de unos locas para dar contento a los ricos. para que no falte en la mesa de los poderosos la pimienta con que sazonar la carne ni el clava y la canela para aromatizar el vino. [18) AI mismo tiempo, Juanillo no deja de insistir en que la expedición es una locura. Lo sugiere claramente e\ título de la obra que establece un juego entre e\ nombre dei verdadero destino de Magallones - las islas Molucas -, y el nombre fictício de éste - Maluco -, que en portugués significa /oco. El narrador intensifica esta visión ai describir los elementos dei viaje recurriendo a la polobra /oco o sus derivados. Toda persona que tenía algo que ver con la empresa estaba contagiada de una locura colectiva: Estábamos locos, sí, como lo estuvo siempre Ruy Foleiro y el Capitán don Hernando, como lo estaba Vuestra Majestad Imperial y los altos funcionarias de la Casa y el obispo Fonseca y don Cristobao de Haro. que financiá la empresa. 326 LETRAS -Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). Y como lo estaban quienes calafatearon las naves y quienes cargaron con tanta comida v baratijas como jamás había llevado flota alguno. Como lo estaban las mujeres que cosieron amorosas las velas y los herreros que moldearon el bronce de los herrajes y los carpinteros que dieron forma a los mástiles. (14) Los tripulantes eran "locos errantes" (14), "hormigas locas" (115), "pequenos locos" (139); en alguna ocasión se comportaban "como un punado de locas muy excitadas por algo" [187): en otra, "el tedio y la locura [los] acosaban como perros" [142). La expedición se presenta en la crónica de Juanillo como "un loco viaje alrededor dei mundo todo" (8) o "el loco proyecto" (29), disenado por un hombre que enloqueció (45). El estrecho que ahora lleva el nombre de Magallanes se describe como "un escenario absurdo" (179) que "parece creado por la imaginaci ón de un dios loco" (178). Una alusión intertextual a E! Quijote realza la codificación de la empresa en términos de locura. Por razones de verosimilitud cronológica, no se encuentran en el texto alusiones directas a la novela de CeiYantes, publicada anos después dei viaje de Magallanes. Sin embargo, Juanillo alude a un nino de nombre Alonso Quijana que vivía en la parroquia dei cura Sánchez Reina, partícipe de la expedición (99). Se pueden senalar también otras alusiones que establecen una relación inte rtextual entre las dos novelas: como Don Quijote, Magallanes cosi nunca se quita la armadura; Don Quijote le promete a Sancho un condado para agradecerle los seiYicios y Magallanes le promete a Juanillo nombrarlo el conde de Maluco (52). La intertextualidad subraya la re-definición paródica dei viaje de Magallanes como una empresa quijotesca. AI reescribir la expedición como un acto de locura, Baccino desheroiza y desmitifica los hechos dei Descubrimiento. AI mismo tiempo, cuestiona la LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM [RS). racionalidad de la Historia que deja de percibirse como un proyecto consciente trazado por el hombre y adquiere el matiz de una fuerza irracional que arrastra ai ser humano, sin mostrar preferencia alguna por su condición social. La riso dei bufón no perdona a nadie, ni siqu iera ai destinatario mismo dei relato, el rey Carlos V. Toda la crónica es una larga epístola dirigida ai rey, pero a menudo Juanillo interrumpe su fluir para retar ai monarca mediante digresiones cuyo tono oscila entre la osadía y la irreverencia, características dei espíritu carnavalesco definido por Bakhtin como: (a] temporary liberation from the prevailing truth and from the established order; .. . the suspension of ali hierarchical rank, privileges, norms, and prohibitions: ... the true feast of time, the feast of becoming, change and renewal ... hostile to ali that was immortalized and completed. (Rabelais lO) El componente principal dei carnaval en los apóstrofes de Juanillo es lo grotesco que degrada y materializa, destruye el aura que rodea ai personaje real. De acuerdo con Stallybrass y White, el realismo grotesco abarca "transcodings and displacements affected between the high/low image of the physical body and other social domains" [9) y conduce a una inversión de jerarquías: la cultura popular reescri be la cultura alta produciendo una perspectiva opuesta a la aceptada [4). Uno de los emblemas más importantes de la cultura alta es lo que los autores denominan, siguiendo a Bakhtin, el cuerpo c/ósico: elevado, estático, monumental, modelo estético, forma inherente de la cultura oficial, distanciado dei contexto social, universal y trascendente, cerrado, sin orificios. La irrespetuosa creatividad dei carnaval reescribe el cuerpo 328 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras do UFSM (RS). clásico imprimiendo en él los rasgos dei cuerpo grotesco: la multiplicidad, la apertura hacia el mundo exterior, el énfasis en las partes pudendas. Esta re--evaluación de lo elevado en el prisma de lo bojo es la característica sobresaliente en Maluco. En las digresiones, Juanillo manifiesta su curiosidad por saber si el cuerpo real de Carlos V se parece ai de la gente común como él mismo, es decir, si es un cuerpo fisiológico: Incluso me he !legado a preguntar si vosotros los reves cagóis, si con toda vuestra majestad os ponéis en cuclillas sobre un cubo v hacéis fuerza, si os quitáis la capa de arminos por vosotros mismos, o si un poje tiene tal cometido v el honor adicional de limpiaros el culo, v si en los palacios hav algún lugar destinado a tales menesteres, todo oro v esencias. En verdad que tengo gran confusión ai respecto, porque con todo lo que tragáis, manducáis, roéis v corroéis, de todo lo mejor v la mavor parte, ilógico seria que vosótros comierais v nosotros cagáramos. [l 03) [T]ú naciste entre púrpuras v apuesto que ni siquiera asomaste a la luz pegoteado v sucio como cualquiera de nosotros, sino inmaculado v soberbio. Y no diste un berrido cuando el aire de este mundo llegó a tus pulmones, sino una orden. [163) La yuxtaposición dei espacio real - prístino, puro, estático, noble -, con las funciones fisiológicas dei cue rpo descompone la estructura binaria que define, también en los términos sociales, la posición de lo alto y lo bojo, y así produce una realidad híbrida, heterogénea e inestable. El mecanismo más importante de este desplazamiento es el lenguaje. Bakhtin observa que una de las fuentes más importantes de la riso en la obra de Rabelais es el lado no oficial dei habla: palabras indecentes, vocablos relacionados con la bebida, la defecación, el sexo y otras funciones fisiológicas dei cuerpo, el lenguaje usado por el hampa de las ciudades y los pueblos. A través de él, Rabelais disenó un punto de vista LETRAS -Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). 329 específico sobre el mundo. una selección particular de la realidad que difería considerablemente de la visión oficial ( The Dialogical lmaginotion 238). No sorprende, entonces, que las indecencias Jingüísticas, chistes verdes, juegos de palabras e "historietas" eróticas sean una fuente de humor y una estrategia dei desplazamiento en Maluco. En sus apóstrofes ai rey, pero también en la totalidad de su relato, Juanillo recurre a un lenguaje a menudo indecente, procaz y hasta pícaro; sus chistes cosi siempre revelan un doble sentido con fuertes connotaciones eróticas. Lo significativo radica en el hecho de que el narrador aplique este habla no oficial a una realidad elevada que normalmente trata de distanciarse de los espacios designados por el lenguaje "bojo", como el cuerpo, la cultura popular, la vida cotidiana. La combinación de las palabras cagar, na/gas, cu/o, berrinche, teta, con otras como rey, imperio, príncipe, capitán. pa/acio, orden, produce una incongruencio transgresiva que impregna el lenguaje oficial de una inestabilidod semántica. Los coloquialismos de Juanillo materializan lo que parece no tener cuerpo resquebrajando las construcciones discursivas creadas por las clases dominantes como el mecanismo principal de su dominación ideológica. El espacio real que puede interpretarse como una realidad "descorporizada", es una de estas construcciones. Judith Butler habla en Bodles thot Motter de la "figuration of masculine reason as disembodied body'' (49). La autora sugiere que el hombre, en cuanto la encarnoción de la razón instrumental y dei Poder, suele representarse como una figura sin cuerpo: sin niríez, sin necesidad de comer, defecar, vivir v morir. En cambio, las mujeres, los nil'ios, los esclavos y otros sujetos subalternos "perform the bodily functions" (49). Esta estrategia simboliza la oposición entre lo racionalidad dei poder o el centro y la materialidad de la periferia. 330 LETRAS - Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS]. El proceso de racionalizar o "desmaterializar" los espacios dei poder es una manera de la sublimación que es, según Stallybras y White, "the main mechanism whereby a group or class or individual bids for symbolic superiority over others: sublimation is inseparable from strategies of cultural domination" (197). AI unir lo sublime con lo grotesco y ai reescribir ai monarca mediante términos fisiológicos, Juanillo re-materializa el espacio real y deshace la imagen abstracta y simbólica dei Poder. Ahora bien, la reinterpretación dei espacio real se realiza también en la reflexión sobre la decadencia que emprende la crónica de Juanillo 13 . El relato descubre el cuerpo degenerado y envejecido dei monarca cuyas funciones fisiológicas y demandas materiales se exasperan hasta el límite, terminando con la imagen de un moribundo babeante, sardento, achacado por una infinidad de males: Lo piei marchita, de colar cetrino. La boca desdentada. El belfo tembloroso. El hilo de baba que escapa de la comisura derecha de los labias y se pierde en la barba entrecana. El mentón prominente, aguzado por la edad. El pelo blanco. (261) Entonces, [el rey], ... , seguirá su camino hasta el aposento de trobajo .... Hasta !legar ai sillón. Allí vuelve a detenerse. Trepa trabajosamente, como un nino; aferrándose con sus dedos deformados por el reuma ai dosei dei terciopelo negro. Se le coe el bastón. Busca apoyo en el respaldo. Finalmente logra acomodorse. Sobre la pila de almohadones y bojo el dosei negro, parece el retrato de un recién nacido. Uno de esos 13 Numerosos autores de América Latina recurren a la lmagen dei cuerpo enfermo y/o viejo como método de desestetización dei discurso de la historia. Sirven de ejemplo E/ otoiío de! patriarca y E/ general en su /aberínto de Gabriel Gorda Márquez, Yo e/ Supremo de Augusto Roa Bastos, Terra Nastro de Carlos Fuentes, E/ mar de los !entejas de Antonio Benítez Rojo, La trogedia de! generolístmo de Denzil Romero, Sola de bastos. cabal/o de espadas de Héctor nzón, Lo novela de Perón de Tomás Eloy Martínez y Noticias detlmperio de Fernando dei Poso. En lo moyoría de estas obras se puede observar la relnterpretación dei binomio cuerpo/idea seríalada por Mudrovcic. -Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). príncipes enfermizos cuyas vidas se extinguen en la cuna. [225226) A veces, la riso de Juanillo se !lena de crueldad porque muy poca compasión siente por el monarca destruido por la gota, la ceguera y el debilitamiento general dei cuerpo; cosi se percibe una satisf acción o un goce mórbido en la enumeración de los achaques reales. María Eugenio Mudrovcic obseNa que el énfasis en el deterioro físico de los héroes nacionales "cambia la relación de fuerzas entre cuerpo/idea institucionalizada por el discurso historiográfico dominante" (454). Las figuras prominentes de los panteones patrios no mueren por una idea, sino que tratan de sobreponerse a la corrupción dei cuerpo (454). Este "afantasmamiento "afantasmamiento simbólico" físico" es (Mudrovcic ai 454). mismo Así, tiempo en Maluco, un la descomposición corrompe no sólo el cuerpo de Carlos V sino que invade todos los espacios reales: lo familia, el palacio, la corte y, finalmente, el imperio entero. El deterioro moral y físico dei monarca equivale a la decadencia de la nación. Mediante la imagen irreverente dei monarca moribundo, el bufón articula su burla dei país que pretendía ser abanderado de la civilizoción. Tanto Carlos V como su espacio metropolitano quedan desmitificados. La Historia (con "H" mayúscula) se hace vulnerable, despojada de esa calidad etéreo que la convierte en herramienta de poder y dominación. La riso dei bufón, a veces ligera y otras sarcástica y acusadora, es un gesto irreverente que resquebraja e/ esqueleto rígido dei discurso histórico de las crónicas, una forma de re- y descodificar los signos de la historia y despojaria de toda verdad absoluta y autoritaria. Bakhtin asegura que la riso, en todas sus formas, introduce "a critique on the one332 LETRAS- Revista do Curso de Mestrado em Letras da UFSM (RS). sided seriousness of the /ofty word, the corrective of realily that is always richer, more fundamental and most importantly too contradictory and heteroglot to be fit into a high and straightforward genre (The Dialogic lmagination 55). En Maluco, e/ humor de Juanillo corrige las crónicas oficiales, crea matices nuevos, destruye las convenciones que definen lo significante y lo insignificante para la Historia, y propone una visión más flexible y plural, más inclusiva, dei posado. Con razón, pues, el Felipe 11 ficticio de Terra nostra- y quizá también el real - tenía miedo de las "plurales y contradictorias versiones de lo ocurrido''. Ei reiato de Juaniiio en Maluco de Napoieón Baccino Ponce de León ataca a la Historia, transformándola en un espacio risible, en una bufonada. 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