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A falácia da distorção da realidade na CPI da Pandemia (texto que desejo enviar à Coluna Anpof, comentem à vontade) Dr. Matheus Oliva da Costa (Pós-doutorando em Filosofia na USP, membro da ALAFI) Assistimos neste ano de 2021 a uma Comissão Parlamentar de Inquérito, a CPI da Pandemia SENADO FEDERAL. CPI da Pandemia. Disponível em: <https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2441>. Acess. 08/07/2021;, criada para investigar de quem é a responsabilidade para a ineficiência governamental brasileira para lidar com a tragédia de mais de meio milhão de mortos pela pandemia de COVID-19. A ideia de verificar as causas desse problema, por um lado, é de natureza política por ser a expressão da fiscalização de ações do poder público. De outro lado, tem apresentado características epistemológicas, já que em diversos depoimentos apareceram dúvidas se as pessoas envolvidas com o atual governo de fato sabem algo sobre a pandemia, as vacinas ou o uso de remédios como a cloroquina, e como esse suposto conhecimento tenta ser justificado. Nesse breve texto visamos mostrar que os argumentos que alguns depoentes expressaram nessa CPI podem ser entendidos pelo que o filósofo Xun apontou já na antiguidade como falácias da distorção da realidade. Defendemos que a proposta da epistemologia das virtudes contribui para superar isso. O que seria essa falácia citada acima? Conforme descrito no texto Nomeação correta ou Retificação dos nomes, Zheng ming, da obra Xunzi XUNZI. Zheng Ming. In: STURGEON, D. Chinese Text Project. 2006. Disponível em <https://ctext.org/xunzi/zheng-ming>. Traduzido ao espanhol: <https://gongsunlongzi.wordpress.com/category/xunzi/>. Acess. 08/07/2021; , o filósofo Xun (310-211 AEC) identifica três falácias. A segunda delas é descrita por ele da seguinte maneira, na nossa tradução: “Montanhas e penhascos estão no mesmo nível” Frase atribuída ao filósofo Huishi., “os desejos derivados das emoções são poucos” A frase é atribuída ao filósofo Song Xing., “Carnes de animais de criação não são mais saborosas e grandes sinos não são mais divertidos” A primeira parte da frase é atribuída a Song Xing e a segunda parte à Mozi., estes são exemplos de usos confusos de objetos da realidade que levam a desordenar a linguagem. Se verificar a razão para diferenciar o igual e o diferente nessas expressões, e observar a coerência própria delas, então será capaz de contê-las”. A seguir vamos analisar esse trecho. A questão central é que o filósofo Xun aponta um processo da linguagem em que alguém faz usos confusos de objetos da realidade que levam a desordenar a linguagem, ou seja, usa discursos em que uma realidade confundida (RC) leva a confundir a linguagem (CL), ou seja, se RC então CL. Essa narrativa da realidade é falaciosa por embaçar ou omitir as distinções que são condições necessárias para entender essa mesma realidade, como quando o filósofo Huishi (ou Huizi) afirma que “Montanhas e penhascos estão no mesmo nível”. Se nós conhecemos as montanhas comparativamente pelas suas diferenças de nível ou altura em relação a outros objetos mais baixos, se essa referência é retirada, não temos mais critérios para conhecer o mundo a nossa volta. E o mesmo se aplica no caso da falaciosa indistinção entre objetos da realidade que nossos sentidos captam com mais ou menos intensidade. Dizer que tais objetos não têm diferença, quando sensorialmente tem, e dizer que não tem semelhança quando são claramente semelhantes, são duas estratégias para causar confusão em nosso raciocínio, e, por consequência, nossa capacidade de decisão. No caso da sentença do filósofo Song Xing (ou Songzi) de que “os desejos derivados das emoções são poucos”, a questão é menos óbvia, mas ainda sim inconsistente. O filósofo Xun argumenta que podemos observar que os desejos humanos derivam das nossas emoções naturais, que vem do nosso caráter natural (nossa biologia, diríamos hoje). Os desejos humanos são muitos e produzidos constantemente conforme nossas necessidades biológicas, controlados apenas pelo nosso coração-mente – ou seja, por controle mental e emocional, o que era interligado na antiguidade chinesa. Tendo isso em vista, dizer que os desejos que vem das emoções são poucos é novamente omitir uma realidade. Qual realidade? O fato de que todos nós, por sermos seres naturais (orgânicos), temos necessidades que serão produzidas continuamente, apesar do nosso querer racional, ainda que possam ser administradas mental e emocionalmente. Sendo uma falácia, um discurso enganoso e logicamente falso, o filósofo Xun propõe que devemos conter tais ações, sejam em nós mesmos ou nos outros. E por que até mesmo deve rejeitar o discurso dos outros? Pois, para ele, tais discursos tem um potencial social destrutivo que deve ser contido e até proibido, caso contrário, as consequências seriam graves em termos políticos e públicos. É justamente isso que observamos no Brasil atual, e a já citada CPI da Pandemia tem mostrado exemplos disso. Observamos pelos menos três exemplos de falácias da distorção da realidade ligado à CPI da Pandemia. (1) Diversas vezes vemos a relativização do número de mortes, como se morrer centenas de milhares de pessoas fosse o mesmo que morrer algumas dezenas, ocorrendo um erro claro de matemática e de insensibilidade ao sofrimento humano, algo que, para ser mudado, exigiu a necessidade de uma CPI. (2) Governistas-bolsonaristas defensoras(es) do uso da cloroquina como tratamento ao COVID-19 foram expostas(os) pelo senador Otto Alencar (PSD-BA) por confundirem os conceitos biológicos de “vírus” e de “protozoário”, já que defendiam um remédio (cloroquina) contra protozoários para combater um vírus. (3) Diversas depoentes que defendem a ciência e trabalharam temporariamente no Ministério da Saúde no primeiro semestre de 2021 deixaram claro que a posição de negacionismo e de “não obrigatoriedade” de receber a vacina por parte da presidência prejudicou claramente a vacinação, aumentando irresponsavelmente o número de mortes. É claro o impacto negativo dessas falácias na saúde pública brasileira, gerando milhares de mortes e muito sofrimento humano devido a uma visão equivocada de mundo que se tornou política oficial. Era exatamente isso que o filósofo Xun previa como consequência das falácias, incluindo a citada: não é apenas um discurso equivocado, mas gera ações erradas, e até a morte de pessoas e o caos social. Como então evitar isso? Ele aponta que, uma vez que essa falácia citada visa confundir a linguagem inebriando distinções e semelhanças, então o antídoto é checar a coerência interna das sentenças, de um lado, e a relação da sentença com a realidade, de outro lado. Em outras palavras, sua consistência lógica-dedutiva, e a verificação indutiva da sua correspondência com a realidade. Se passar nos dois testes, não seria essa falácia. Contudo, um problema observado na tragédia brasileira é que para evitar falácias não tem bastado a checagem racional e científica. Estas são condições necessárias, porém não suficientes para conhecer de modo seguro e confiável. Nesse sentido, desde a década de 1980 o filósofo analítico Ernest Sosa Conferir referências e explicações em: SILVA FILHO, Waldomiro. Resenha - Pessoas epistemicamente virtuosas: sobre Epistemologia da virtude de E. Sosa. Philósophos-Revista de Filosofia, v. 18, n. 2, p. 293-312, 2013. tem proposto a união entre epistemologia contemporânea e a ética das virtudes aristotélica. Sosa defende que as condições suficientes para o conhecimento passam pela performance do agente epistêmico como elemento chave para saber de modo confiável. No caso, a performance de cada pessoa passaria pelo desenvolvimento de virtudes intelectuais e da rejeição de vícios intelectuais. Assim, para evitar falácias como as descritas anteriormente, é importante que cada pessoa treine virtudes intelectuais, como honestidade e cuidado intelectuais, de forma a evitar vícios epistemológicos como arrogância e omissão, para assim conhecer de maneira mais confiável. Observamos que de modo equivalente a Sosa, Xun trabalha com uma conexão forte entre a construção humana de virtudes e o processo de conhecimento seguro. Mas o que este último pensador antigo oferece que Aristóteles já não ofereceu à proposta de Sosa? Dentre outros aspectos, o filósofo Xun tem como um conceito central a virtude que traduzo como ritualidade (Li), o ato de saber se comportar adequadamente tal como se tivesse em uma cerimônia ritual, ou seja, com o mesmo grau de atenção, respeito e timing (perceber o momento certo). Agir com ritualidade no processo epistêmico de conhecer o mundo e a si mesmo significa ter um cuidado intelectual, transposto de um tipo de cuidado cultural que exige atenção mental, emocional e corporal simultaneamente. Brasileiros são majoritariamente religiosos, e mesmo os não religiosos já participaram de ritos civis como ouvir em público o hino nacional, então provavelmente todos e todas já experimentaram a solenidade desses atos sociais. O processo de deslizamento semântico da performance ritual dessas ocasiões para uma atitude de desenvolvimento da virtude de ritualidade intelectual pode ser um caminho seguro para mudar a atitude brasileira diante do conhecimento. Esse cuidado ritual com o conhecimento, se praticado, pode ser uma forma orgânica de aperfeiçoamento intelectual constante de brasileiros – e de todo ser humano. Como acreditar que tomar “vacina não é necessário” é uma proposição verdadeira e justificada, quando o cuidado, atenção e respeito com o conhecimento apontam o contrário? E quando a própria ética com a humanidade não permite aceitar tais proposições? Por isso defendemos uma performance de solenidade ritual diante do conhecimento como uma virtude que contribui para combater vícios intelectuais.