A GUERRA DOS TRINTA ANOS:
IMAGENS DE UM PERÍODO DE TRANSIÇÃO
Prof. Dr. Antônio Jackson de Souza Brandão1
RESUMO: Este ensaio procura traçar um panorama do século XVII durante a Guerra do
Trinta Anos, cujo palco foi o Sacro Império Romano Germânico. Concomitante aos
conflitos religiosos sangrentos, a Europa conheceu o significado das crises econômicas
que se abateram no continente nesse momento de transição para o surgimento do Estado
moderno.
PALAVRAS-CHAVE: Guerra dos Trinta Anos, Reforma, Contrarreforma, crise social
ABSTRACT: This essays looks for to trace a panorama of 17th century during the Thirty
Years' War, whose stage was the Holy Roman Empire. Simultaneous to the bloody
religious conflicts, the Europe knew the meaning of the economic crises that occurred in
the continent at this moment of transition for the sprouting of the modern State.
KEY WORDS: Thirty Years' War, Reformation, Counter-Reformation, social crisis
Aspectos gerais
Para se compreender o século XVII alemão é mister conhecer dois aspectos
fundamentais dos séculos anteriores: sua estrutura política e religiosa. Politicamente,
não havia uma nação alemã, pois essa era dividida em mais de trezentos estados
semiautônomos e cada um deles governado por um príncipe, bispo ou conde, apesar da
aparente unidade transmitida pelo Sacro Império Romano-Germânico, cujo imperador
era eleito pelos príncipes mais poderosos – os Eleitores2; do ponto de vista religioso, a
região foi o berço da Reforma, que mudaria o destino da Igreja Católica e da Europa,
provocando uma série de conflitos e guerras.
Martinho Lutero, o arauto da insatisfação que se alastrava por todos os recantos
da Europa contra a instituição eclesiástica, soube aproveitar os preceitos e o
desenvolvimento trazidos pelos ideais renascentistas que dominavam o século XVI.
Paradoxalmente, poderíamos considerar que a Reforma foi tanto uma reação contra o
1
Antônio Jackson de Souza Brandão, escritor, poeta, mestre e doutor em Literatura alemã pela
Universidade de São Paulo (USP), é docente no mestrado da Universidade de Santo Amaro (UNISA/SP),
, email: jackbran@gmail.com.
2
O colégio Eleitoral ou Kurfürstentag era formado pelos três Arcebispos-Eleitores de Mogúncia, Tréveris
e Colônia; o conde Palatino do Reno; o duque da Saxônia; e o eleitor de Brandemburgo, juntamente com
o Rei da Boêmia.
Renascimento como seu resultado, na medida em que se não fossem as inovações
trazidas pelos Quinhentos, dificilmente haveria espaço para que as propostas reformistas
lograssem êxito; por outro lado, muitos aspectos referentes à liberdade que foram
alcançados no período também foram condenados pelos reformadores.
Se, por um lado, Lutero teve a inclinação religiosa de tornar o cristianismo mais
puro, não foi o que imaginaram muitos de seus protetores, entre eles príncipes
poderosos que vislumbraram, no movimento, a oportunidade de se apropriarem dos
bens eclesiásticos, como saída para contornarem a necessidade de dinheiro tanto para
sustentar uma administração cada vez mais complexa, quanto para equipar seus
exércitos, ou mesmo para adquirir objetos de luxo para a ostentação de sua posição.
(GREEN, 1984)
No entanto, aquilo que poderia ser apenas uma disputa de alguns príncipes com
os prelados em seus territórios, assumiu grandes proporções, levando as grandes
potências europeias a digladiarem-se, naquela que seria uma das mais brutais guerras
conhecidas pela humanidade: a Guerra dos Trinta Anos, iniciada em 1618.
O já fragmentado pseudoestado alemão, ou melhor, os limites do Sacro Império
Romano-Germânico, tornou-se, devido a sua falta de unidade e de interesses políticos
contrários aos Habsburgos, um palco onde se definiria a fase decisiva da luta entre
católicos e protestantes. Desde seu início, porém, ficou claro que os motivos da
beligerância iam muito além das questões religiosas e adentraram em questões
seculares. Isso fica claro ao verem-se nações de credos diferentes que se preocupavam
mais em buscar alianças para derrotar os Habsburgos, a Casa mais poderosa da Europa,
do que, efetivamente, a expansão de sua fé.
Pode-se exemplificar essa situação com Francisco I (1515-1547) da França que
se aliou não só com os protestantes suecos e dinamarqueses, como também com os
muçulmanos turcos (1543), a fim de derrotar o imperador Carlos V (1519-1558); ou,
anos mais tarde, o todo-poderoso cardeal francês Richelieu (1585-1642), que
compactuou com o rei protestante da Suécia, Gustavo Adolfo.
Não é difícil compreender que, quando em 1648, o Tratado de Vestfália pôs
termo à guerra, encerrou-se a era dos conflitos religiosos, instaurando-se a dos conflitos
políticos (LIMA, 1922); além disso, sinalizou que a concepção medieval da Europa, há
muito moribunda, chegara a ser termo, dando lugar ao aparecimento do Estado
moderno.
Desdobramentos da Guerra dos Trinta Anos
É lugar-comum afirmar que os conflitos humanos, mormente as guerras, têm sua
origem em fatos anteriores a sua eclosão. Conhecem-se bem as causas da Grande
Guerra – a frágil política das alianças entre as potências europeias –, mas foi necessário
o assassinato do Arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono austro-húngaro,
em 1914, como estopim para seu início; ou, então, a invasão do exército alemão à
Polônia, em 1939, − mesmo após a Anschluss da Áustria e de parte da Tchecoslováquia
pelos nazistas – para que se desencadeassem as sucessivas declarações de guerra que
levariam à Segunda Guerra
Mundial.
Somos, muitas vezes,
levados a pensar que somente
ambas
foram
os
piores
momentos em que grande
parte
da
humanidade
se
digladiou em nível mundial,
houve, entretanto, no século
XVII, um momento em que as
nações europeias participaram
Figura 1
Destruição de imagens religiosas durante a Era Puritana,
Londres (?), s/d
de um conflito de dimensões
até
então
desconhecidas
e
somente revividas no século
XX. Tal conflito foi conhecido como Guerra dos Trinta Anos, que se estendeu de 1618
a 1648, e cujo palco foi a Europa central, no território compreendido pelo antigo Sacro
Império Romano-Germânico.
Assim, para se compreender o cerne desencadeador e o porquê da complexidade
dos confrontos nesse período, faz-se necessário conhecer sua gênese. Exatamente cem
anos antes do estopim da guerra, em 1517, Martinho Lutero afixara suas 95 teses em
Wittenberg, inaugurando a era dos conflitos religiosos. Suas ideias logo conquistaram a
simpatia de parte da nobreza alemã, pois o
luteranismo tornara-se um seguro aliado do particularismo político dos
príncipes alemães. O príncipe, estivesse ou não genuinamente convertido à
verdade das ideias luteranas, fruía lucros terrenos da confiscação dos bens da
Igreja, aumentava o seu controle sobre os negócios eclesiásticos e adquiria
um maior grau de independência do imperador católico. (GREEN, 1984, p.
157)
Lutero, ao ser condenado por heresia na Dieta de Worms, é acolhido por nobres
alemães e lança os fundamentos de sua doutrina, que serão combatidos pelo imperador
Carlos V, afinal o reformador acabou por fomentar também o particularismo dos
príncipes, o que poderia diminuir a autoridade imperial e romper, com isso, a unidade
do Império que o imperador pretendia tornar forte e centralizado. Sucederam-se e
intensificaram-se, a partir daí, querelas militares, religiosas, políticas – como a
rivalidade entre os Valois e Carlos V –, além de
sociais como a Guerra dos Camponeses (fig. 3).
As ideias de Lutero não atingiram apenas
os príncipes que enxergavam nelas benefícios
para si mesmos, mas chegaram também aos
menos
afortunados,
representados
pelos
camponeses. Liderados por Thomas Münzer,
esses
viam
no
movimento
reformista
a
oportunidade de quebrar a estrutura feudal e o
vínculo que os ligava a seus senhores, nem que
para isso tivessem de usar da força para
conquistar terras da Igreja e da própria nobreza.
Lutero, entretanto, condenou com veemência tal
Figura 2
Panfleto da Reforma contra Lutero
(As sete cabeças de Martinho Lutero),
Leipzig, 1529
atitude, incitando os príncipes a esmagarem os
insurretos, fato que ocorre em 1525 com a morte
de Münzer, apesar de haver focos rebeldes que
se estenderam até 1526.
Apesar disso, os conflitos envolvendo os príncipes do Norte e o Imperador
prosseguiram, quando se estabeleceu uma trégua, em 1555, a conhecida Paz de
Augsburgo, quando se determinou que cada príncipe decidiria qual religião adotaria
(cuius regio, eius religio): ou o luteranismo ou o catolicismo.
Como o tratado não era para defender a tolerância, já que apenas consentiu na
existência de duas religiões – nem o povo nem a Igreja teriam direito à escolha própria:
ou se aceitava, ou se retiraria para outro lugar, deixando para trás tudo o que se
construíra – estava claro que tal compromisso cedo ou tarde seria desafiado.
O desafio, por sinal, foi constante nos séculos XVI e XVII, como ficou claro na
geopolítica europeia com os constantes enfrentamentos entre suas potências, que
visavam a uma maior participação territorial, econômica e política. Podem-se, inclusive,
enumerar alguns exemplos: se, por um lado, a Espanha buscava manter-se como
potência hegemônica no continente europeu, a França, por outro, procurava
desestabilizar a atuação e o poder dos Habsburgos em seus dois ramos, o espanhol e o
austríaco; se por um lado a Inglaterra buscava condições para sua futura dominação dos
mares, por outro, as Províncias Unidas lutavam por sua independência da Espanha e do
Império; enquanto Dinamarca e Suécia disputavam a hegemonia na região do Báltico, o
Império Otomano visava avançar ainda mais em solo europeu, a fim de manter o
controle e o comércio com o Oriente; havia ainda a busca, pela Igreja Católica póstridentina e contrarreformista, por sua reestruturação, quando se ratificaria a ruptura
permanente entre a doutrina católica e a protestante, e a consequente luta para
reconquistar o espaço perdido pela Reforma.
Figura 3
Cena da Guerra dos Camponeses, na qual esses aprisionam um cavaleiro.
Observa-se que os camponeses levam a bandeira do Bundschuh , literalmente
“sapato amarrado”, símbolo empregado por eles em contraposição às botas,
empregadas pelos nobres. Augsburg, 1532
Essa reconquista, no entanto, perpassa as paredes da Igreja e pode nos dar uma
ideia clara da exaltação dos ânimos, bem como da realimentação do espírito belicoso
entre muitos príncipes que foram árduos defensores ou dos ideais católicos – como
Maximiliano I, da Baviera – ou dos protestantes − como Gustavo Adolfo, rei da Suécia.
Cada um dos grupos não via com bons olhos o avanço do outro lado.
Figura 4
Defenestração de Praga, ilustração do Theatrum Europaeum (Bd. 1),
Mathäus Merian (o velho), 1662
Assim, enquanto o contrarreformismo avançava, o mesmo se dava com os
reformados, cujos membros ganhavam posições nas Dietas, apesar de estarem divididos
entre luteranos e calvinistas, o que, seguramente, os enfraquecia. Em maio de 1608, é
fundada a União Evangélica que reunia os príncipes protestantes, aceitando-se a
inclusão dos calvinistas após a Paz de Augsburgo. Um ano depois, é a vez dos católicos
unirem forças na Liga Católica encabeçada por Maximiliano II, da Baviera.
Em 1609, o imperador Rodolfo II havia fixado sua residência em Praga e, diante
de uma iminente rebelião na Boêmia, concede aos protestantes3 a Carta de Majestade,
garantindo-lhes a liberdade de praticarem sua religião.
Em 1612, Matias I torna-se imperador e promete aos boêmios manter sua
liberdade religiosa, apesar de demonstrar a vontade de impor a Contrarreforma na
região. Os protestantes se opõem, na Dieta da Boêmia, e reivindicam junto ao imperador
que mantenha a Carta de Majestade, no entanto o imperador dissolve-a, proibindo seu
culto e encontros.
3
Tal concessão foi outorgada somente aos luteranos, não o foi para os calvinistas e irmãos boêmios,
herdeiros dos hussitas do século anterior.
Figura 5a
Frederico V e o acampamento para recepcionar sua noiva vinda da Inglaterra,
Elisabeth Stuart, em Nurembergue, gravura de Georg Keller, 1613
Enfurecidos, os protestantes dirigiram-se ao Palácio Hradschin e, após terem se
atracados
com
os
regentes
imperiais,
atiraram-nos pela janela, fato conhecido
como a Defenestração de Praga (fig. 4),
dando início à Revolta da Boêmia, marco
inicial dos conflitos que culminaram com a
Guerra dos Trinta Anos, que “afundou a
Alemanha4 num mar de sangue e lágrimas.”
(GEISS, 1987, p. 180)
Os rebeldes instauraram um governo
novo e formaram um exército. Entrementes,
morreu o Imperador Matias I e elegeram, à
revelia, Frederico V (fig. 5b), eleitor do
Palatinado, como seu rei, mesmo sabendo
que o trono caberia a Fernando da Estíria,
sobrinho do imperador morto, e que se
4
Figura 5b
Frederico V, ilustração
do Theatrum Europaeum (Bd. 1),
Mathäus Merian (o velho), 1662
Apesar de ainda não haver o que conhecemos hoje por Alemanha, mas a fragmentação de mais de 200
estados autônomos e semiautônomos, empregaremos o termo a título ilustrativo.
tornou o novo imperador, Fernando II (fig 6). Este se lança contra os sublevados após
receber apoio da coroa espanhola e do príncipe Maximiliano da Baviera, cujo apoio
militar
seria
Figura 6
Coroação de Fernando II, em Frankfurt, em 1619,
ilustração do Theatrum Europaeum (Bd. 1), Mathäus Merian (o velho), 1662
recompensado com o eleitorado palatino.
Em novembro de 1620, as tropas
católicas − da Liga e do Imperador −, sob o
comando
do
general
imperial
Johann
T’Serclaes de Tilly (fig. 7), invadiram a
Boêmia e derrotaram os rebeldes na
Montanha Branca a poucos quilômetros de
Praga (fig. 8). Após a derrota, Frederico V
foge para a Silésia e de lá para a Holanda.
O imperador foi implacável com os
sublevados: todos os cabeças do movimento
foram executados, suas famílias desterradas,
seus bens confiscados e distribuídos às
famílias
católicas
Extinguiram-se
que
lhe
praticamente
eram
todas
leais.
as
liberdades dos boêmios: sua coroa passou a
Figura 7
General imperial Jean T'Serclaes de Tilly,
ilustração do Theatrum Europaeum (Bd. 1),
Mathäus Merian (o velho), 1662
ser hereditária da Casa de Habsburgo; a religião católica foi imposta à força, fecharamse as igrejas protestantes; a língua alemã passou a ter o mesmo peso da tcheca;
intensificou-se a germanização da região; a educação ficou a cargo dos jesuítas e
destituíram-se, assim, os professores protestantes, entre os quais Comenius, considerado
um dos maiores educadores do século XVII, que expôs, em uma carta a Samuel
Hartlieb, amigo de Milton, a arbitrariedade com que se processou tal ato e quem foram
os atingidos:
Alle, die über Frömmigkeit, Sittlichkeit, Wissenschaftlich und Künste
geschrieben haben, gleichviel ob Christ oder Mohammedaner, Jude oder
Heide oder welcher Sekte sie immer angehört haben mögen, Pythagoräner,
Akademiker, Peripatetiker, Stoiker, Essäer, Griechen, Römer, Alte oder
Neue, Doktor oder Rabbi, jedwede Kirche, Synode, Kirchenversammlung:
alle, sage ich, sollen zugelassen und gehört werden5. (JESSEN, 1966, p. 123)
Figura 8
Batalha na Montanha Branca, próximo a Praga, ilustração do Theatrum Europaeum (Bd. 1), 1662
5
[Todos aqueles que têm escrito sobre piedade, moral, ciência e artes, sejam cristãos ou muçulmanos,
judeus ou gentios, ou qualquer seita a que sempre pertenceram, pitagóricos, acadêmicos, peripatéticos,
estoicos, essênios, gregos, romanos, velho ou novo, doutor ou rabino, qualquer igreja, sínodo, conselho
eclesiástico: todos, eu digo, deveriam ser tolerados e ouvidos. Tradução nossa]
Fernando II conseguiu debelar de
forma eficaz a rebelião na Boêmia, e a Dieta
de Regensburg concedeu a Maximiliano da
Baviera a dignidade de Eleitor no lugar de
Frederico V, além do Alto Palatinado.
Entretanto, a política extremamente repressora
do Imperador fez com que surgissem várias
reações contra os Habsburgo em toda Europa,
prolongando e extrapolando uma revolução
que seria intestinal. Vários fatores foram
decisivos para isso, como, por exemplo, o
Figura 9
Cristiano IV, rei da Dinamarca, ilustração do
Theatrum Europaeum (Bd. 2),
Mathäus Merian (o velho), 1646
final da Trégua dos Doze Anos (1621) entre
Holanda e Espanha (outro braço dos
Habsburgo); o receio dos reis da Dinamarca
e da Suécia (protestantes) de que o Imperador aproveitasse a situação para restaurar seu
poder por toda a Alemanha e impor, à força, a fé católica; da mesma forma, os reis
católicos também queriam assegurar sua
hegemonia na Europa setentrional.
Assim, Cristiano IV, rei da Dinamarca
(fig. 9), e o conde Ernst von Mansfeld (fig.
10), mercenário que estava a serviço de
Frederico,
invadem
o
império
e
são
seguidamente derrotados pelo general Tilly,
que ocupa o ducado de Schleswig-Holstein, a
Jutlândia, Mecklemburgo e a Pomerânia.
Surge, nesse momento, uma figura
importante no cenário da guerra: Albrecht
Eusebius Wenzel von Wallenstein (fig. 11)6,
quem derrota Mansfeld que recebia ajuda de
6
Figura 10
Ernst von Mansfeld, ilustração do Theatrum
Europaeum (Bd. 1),
Mathäus Merian (o velho), 1662
As tropas sob comando de Wallenstein foram recrutadas e equipadas por sua conta e risco , já que o
mesmo havia enriquecido sobremaneira com o comércio de cereais que abastecia os exércitos do
imperador.
Jaime I, da Inglaterra. Após a vitória das tropas imperiais, é assinado o Tratado de
Lübeck (1629), pelo qual a Dinamarca recebe novamente seus territórios para que não
interferisse mais em assuntos do Império, e que abandonasse suas pretensões aos
bispados de Bremen e de Verden.
As sucessivas vitórias de Fernando II
levaram-no a promulgar o Edito de Restituição –
anulando a Paz de Augsburgo – que, além de
obrigar a devolução das terras secularizadas pelos
protestantes à Igreja
Católica, destituía os
calvinistas de seus cargos, o que pressupunha que
tentaria impor o catolicismo a todo o Império. A
execução do edito foi delegada a Wallenstein, que
não o via com bons olhos, pois acreditou que
perderia as regalias conquistadas com a guerra.
Figura 11
Albrecht Wallenstein,
de Anthonis van Dyck, por volta de
1636/1641
Essas, por sinal, irritavam profundamente muitos
príncipes alemães, entre eles Maximiliano, que
solicitavam ao imperador a saída do boêmio do
comando das tropas. Apesar da relutância de
Fernando II, este, finalmente, concedeu.
Sua saída foi em parte uma demonstração do que fazia (e queria) a diplomacia
francesa nos bastidores em sua busca pela desestruturação do Império por meio de
intrigas entre os príncipes católicos e o Imperador, como a que se verificou na Dieta de
Regensburg (1630), quando alguns príncipes foram contrários ao envio de tropas
imperiais a Mântua que auxiliariam os espanhóis em detrimento dos franceses; ou a
neutralidade de Maximiliano I, em relação aos franceses, que se mostraria,
posteriormente, desastrosa à Baviera; ou ainda por meio de acordos beligerantes com
outros países, visto que a França ainda não tinha condições de intervir diretamente no
conflito. Assim, a política externa francesa consistia tanto em semear a discórdia dentro
do Sacro Império quanto em outros países, como forma de alcançar sua supremacia na
Europa. Isso ficaria evidente com Richelieu que apoiaria, financeiramente, Gustavo
Adolfo, o rei da Suécia protestante.
O sueco via, dessa forma, a possibilidade de dominar o Báltico, pois seu
concorrente direto, a Dinamarca, havia sucumbido e assinara o Tratado de Lübeck
(1629). Estabeleceu-se entre a França e a Suécia o Tratado de Bärwalde (1631), cuja
duração seria de seis anos, segundo o qual os suecos receberiam dinheiro para enfrentar
os Habsburgos, desde que respeitassem a religião católica nos territórios ocupados.
A chegada de Gustavo Adolfo (fig. 12)
aos limites do Sacro Império transformou,
indiscutivelmente,
a guerra num
conflito
europeu, pois representou a confluência do
imperialismo báltico protestante e do receio
francês às ambições dos Habsburgos; além
disso, foi inconteste que o rei sueco tenha sido
uma das maiores personagens da guerra, já que
via também em sua expansão territorial e no
aumento da área de influência sueca uma forma
de
proteção
maior
contra
as
agressões
habsburga e polaca. “ ‘A Pomerânia e a costa
báltica são os redutos exteriores da Suécia’,
escreveu ele; ‘são suas garantias contra o
imperador.’”(GREEN, 1984, p. 340) Além de
Figura 12
Gustavo II Adolfo, rei da Suécia, ilustração do
Theatrum Europaeum (Bd. 2),
Mathäus Merian (o velho), 1646
querer restaurar os príncipes protestantes
destituídos e defender as liberdades políticas religiosas no Sacro Império, devido a seu
interesse pela causa protestante, queria levar adiante o imperialismo sueco. Não era de
se estranhar que grande parte dos príncipes alemães fosse protestantes ou católicos, não
confiava nos suecos.
Para Gustavo Adolfo, que já possuía em seu curriculum três guerras − vencera a
Polônia contra seu primo Sigismundo III (1621-1629), a Dinamarca (iniciada por seus
pai Carlos IX e encerrada em 1613) e a Rússia (terminada em 1617) −, foi relativamente
fácil invadir a Alemanha, conseguindo uma importante vitória sobre as tropas imperiais
sob o comando de Tilly, em Breitenfeld (1631), o que alargou sobremaneira seus
objetivos políticos e imperialistas. Diante disso, deixara de cumprir o pacto que fizera
com os franceses, ao impor o luteranismo por onde passava.
Em 1632, o general imperial Tilly morre cinco dias após ter sido ferido próximo
a Rain am Lech, abrindo, destarte, o caminho ao rei sueco rumo a Munique. (JESSEN)
Diante desse acontecimento, não restou outra alternativa a Fernando II que se
reconciliar com a Liga e com Wallenstein, que derrota Gustavo Adolfo em
Nurembergue − onde a penúria devido à escassez de víveres já era reinante. (ibidem)
Junto com seu exército, o
rei sueco dirige-se para o norte e,
dessa vez, surpreende e derrota
as tropas do general Gottfried
Heinrich von Papenheim e as de
Wallenstein. Entretanto, em meio
a essa batalha, em
Lützen,
Gustavo Adolfo tombou (fig. 13)
e seu exército, um dos mais
Figura 13
Morte de Gustavo II Adolfo, em uma batalha próxima a
Lützen, , ilustração do Theatrum Europaeum (Bd. 2),
Mathäus Merian (o velho), 1646
disciplinados e bem preparados
da guerra, transformou-se num
corpo de mercenários, controlado
em grande parte por Richelieu.
(GREEN)
Ambicioso, Wallenstein queria vingar-se do imperador que já o destituíra uma
vez. Tal desejo aumentou ainda mais com sua derrota em Lützen, quando conspirava
contra o imperador com o inimigo. Acusado de traição, é assassinado em Eger (fig 14),
juntamente com um grande número de seus Friedländer 7, a mando do próprio
Imperador.
Vale a pena ler a carta do confessor do Imperador, o jesuíta Wilhelm
Lamormaini, de 3 de março de 1634, na qual explicita algumas razões encontradas por
Fernando II para destituí-lo novamente, além de condená-lo à morte por traição:
Die geheimen Machinationen des Friedländers mündeten schlielich am 12.
Januarii in eine Verschwörung. Er wollte den Kaiser verderben, das Haus
Österreich auslöschen, die Königreiche und österreichichen Lande in seine
eigene Hand bekommen und die Güter und Herrschaften der getreuen Diener
des Kaisers unter seine Mitverschworenen verteilen8. (JESSEN, 1966, p. 354)
7
Soldados de Wallenstein.
[As maquinações secretas dos Friedländer desaguaram finalmente em uma conspiração em 12 de
janeiro. Ele [Wallenstein] queria arruinar o Imperador, extinguir a Casa dos Áustria, ter em suas mãos o
reino e as terras austríacas, dividir os bens e o domínio sobre os serviçais entre seus conluios
conspiradores. Tradução nossa]
8
Figura 14
Assassinato de Wallenstein, retirado de JESSEN, 1966, p. 345
Após a morte de Wallenstein, o comando das tropas imperiais passa para o
conde Matthias Gallas que, juntamente com o cardeal-infante D. Fernando, irmão de
Felipe IV da Espanha, e o rei da Hungria vão reconquistando posições ao norte.
Impuseram uma grande derrota ao exército do duque protestante Bernardo do SaxeWeimar e, em 6 de novembro de 1634, vencem os suecos em Nördlingen. Os suecos
deixam, aparentemente, de ser uma ameaça à estabilização do Império; diante disso, os
protestantes, sem seus principais aliados, procuram encontrar uma solução pacífica para
o conflito, o que culminou com o Tratado de Praga, quando se fizeram importantes
concessões aos protestantes, modificando-se, inclusive, algumas resoluções do Edito de
Restituição.
Aquilo que parecia ser apenas uma negociação isolada entre o Imperador e o
Eleitor do Saxe, estendeu-se a toda a coalizão protestante. No entanto, o que seria o
prenúncio da paz, não o foi, pois segundo escreveu Richelieu (fig. 15):
O Eleitor da Saxônia fez a sua paz, mas isso não terá sobre nós outro efeito
além do de nos fazer redobrar de esforços para termos tudo a postos.
(GREEN, 1984, p. 343)
Se no início da Guerra dos Trinta Anos a França não agiu diretamente por não
estar preparada, chegou agora sua vez de entrar diretamente no conflito para
desestabilizar, em definitivo, o poder habsburgo. O fato preponderante para isso fora a
derrota de seus aliados em Nördlingen. Assim, nove dias antes de ser assinado o
Tratado de Praga entre o imperador e os líderes protestantes, sob comando do Eleitor da
Saxônia, a França declara guerra à Espanha.
Aunque sus recursos militares estaban relativamente subdesarrollados,
Francia por lo menos entraba en la guerra de refresco. Por el contrario,
España llevaba quince años combatiendo, y los combates habrían de durar
otros veinticinco años y llegar hasta la propia Península. (KAMEN, 1984, p.
333)
A França entra na guerra com tropas
regulares ao lado dos suecos, segundo
Richelieu, numa clara demonstração que a
razão de estado deve prevalecer sobre a da
confissão religiosa. Em 1636, os suecos
vencem em Wittstock e avançam em direção à
Morávia, chegando a Praga em 1645; os
franceses, por seu turno, já dominam grande
parte da Renânia e chegam à Baviera em
1646. Dessa forma, a Alemanha torna-se um
campo de batalha dos exércitos francês e
sueco, que espalham a peste e o medo; até o
próprio Imperador teve de abandonar Praga.
Apesar de tais conquistas, não houve batalhas
Figura 15
Cardeal Richelieu, Armand-Jean, ilustração
do Theatrum Europaeum (Bd. 2),
1646
decisivas nessa fase da guerra, com exceção de
Rocroi, em 1643, quando os franceses impuseram uma grande derrota aos espanhóis,
iniciando assim as discussões de paz.
Estas se estenderam até 1648, com o Tratado de Vestfália, mas até se chegar a
ele, houve longas negociações, pois as partes envolvidas não chegavam a um consenso,
principalmente aqueles que mais se beneficiaram com os últimos anos da guerra: os
franceses e os suecos. Dessa forma, a paz foi firmada em dois blocos: de um lado entre
o Imperador (e seus aliados) e o rei da França; de outro entre o Imperador e a rainha da
Suécia (ZEENDEN), isso explica o porquê de o tratado ter sido celebrado em duas
cidades: Münster e Osnabrück.
Além de territórios cedidos e perdidos entre as partes, o Tratado de Vestfália:
a)
revoga o Edito de Restituição, decidindo que as terras da Igreja
ficariam nas mãos daqueles que as possuíssem em janeiro de 1624;
b)
praticamente manteve as cláusulas da Paz de Augsburgo, como o
princípio cuius regio, eius et religio, no qual os príncipes impõem a
religião a seus territórios, independentemente da vontade do povo;
c)
permitiu que os príncipes adquirissem maior autonomia em relação
ao Imperador, apesar de estarem ainda sujeitos à lei imperial;
d)
ratificou a fragmentação da Alemanha em mais de duzentos estados,
nos quais não havia uma consciência nacional;
e)
preparou o caminho para a política de engrandecimento da França,
que passa a ser o Estado mais poderoso da Europa e terá na figura de
seu rei, Luís XIV, o paradigma do soberano absoluto;
f)
assinalou o fim da concepção medieval europeia com o surgimento
do Estado moderno.
A Guerra dos Trinta Anos e a crise do século XVII
A Guerra dos Trinta Anos, além de ter sido uma guerra religiosa e europeia, foi
uma variante político-militar de uma crise geral que se abateu sobre o Velho Continente
no século XVII. Constitui-se, dessa maneira, em uma forma extrema rumo à mudança
sociopolítica da Alemanha e da Europa em direção à modernidade, mesmo que esse
impulso modernizador tenha trazido com ele tamanho horror. (SCHILLING)
Figura 16
Saqueando e queimando uma vila, A miséria da guerra, gravura de Jacques Callot, 1632
Como a história já demonstrou inúmeras vezes, quem mais sofre direta e
indiretamente com os conflitos é a população. Veremos a repetição dessa máxima
durante os trinta anos do conflito que dominou o cenário europeu na primeira metade do
século XVII.
Dados apontam para mais de 300.000 pessoas mortas nos campos de batalha,
além de milhares de civis, em decorrência de doenças, da desnutrição, da ferocidade das
tropas (fig. 16 e 17), dos grandes êxodos e deportações em massa. Entretanto, vale
salientar que, apesar de haver muitos dados sobre as perdas humanas na Alemanha ao
longo da guerra, nunca será possível precisar seu número, pois são muito contraditórios.
Alguns dão conta que cerca de dois terços da população alemã pereceu, já que cinco
sextos das aldeias do império foram destruídos (HUBERMANN); a Alemanha possuía,
por volta de 1600, 15 milhões de habitantes, número que chegou perto dos 10 milhões
em 1650. Provavelmente, seja possível afirmar que as maiores perdas foram no campo
(fig. 18) − cuja população mais sofreu com as nefastas consequências da guerra.
(MOHRMANN) −, oscilando entre 35% a 40%; na cidade − cuja proteção aparente era
devida a suas inexpugnáveis muralhas −, entre 25% e 35%. (HENNIG)
Vale salientar, porém, que nem todas as regiões do Império foram assoladas pela
guerra concomitantemente: muitas foram poupadas; outras, em contrapartida, foram
devastadas várias vezes.
Figura 17
Árvores eram empregadas como forca coletiva, A miséria da guerra, de Jacques Callot, 1632
Será que somente a guerra, com sua brutalidade e inumanidade, poderia ter
causado tamanha destruição no solo europeu e alemão? Houve fatores paralelos a
tamanha miséria? Poder-se-ia justificar tal barbárie somente por contendas religiosas ou
seriam também elas sociais, apesar de sua inter-relação? Maravall (1997, p. 74) afirma
que
não se pode identificar essa crise comum do século XVII como um fenômeno
novo derivado da conflagração quase generalizada da Guerra dos Trinta
Anos, porque começa muito antes, afeta esferas não ameaçadas pela guerra,
foi mais grave nos países que não sofreram os estragos da soldadesca e seu
processo de restabelecimento não acompanhou a linha de recuperação das
perdas da guerra. A crise do século XVII não pode ser entendida [...] sem que
se leve em conta o amplo contexto europeu no qual se desenvolve (...)
Tampouco é possível entender essa crise se referindo apenas às dificuldades
econômicas por mais graves que tenham sido (...).
Vemo-nos diante de uma sucessão de conflitos banais, agravadas por crises
econômicas num momento de transição, quando o capitalismo, que dera seus sinais
vitais já no Renascimento, impulsionou os navegadores em busca de riqueza. Para
piorar o quadro, vê-se diante de uma nobreza inepta, que visaria à riqueza e ao lucro
fácil por meios da exploração da riqueza alheia. Dessa forma, a grande potência do
século XVII, a Espanha, cuja Casa também dominava o Império, é a representação
fidedigna do exposto acima, pois enquanto mercadores da Inglaterra, Holanda e França
amontoavam fortunas enormes no comércio, os espanhóis haviam descoberto uma
forma mais simples de aumentar as somas de dinheiro do tesouro: a exploração das
minas de ouro e prata da América. (HUBERMANN)
Figura 18
Pilhagem a uma grande fazenda, A miséria da guerra, de Jacques Callot, 1632
O afluxo dos metais à Europa resultou numa revolução de preços jamais vista:
os preços das mercadorias em 1600 eram mais de duas vezes superiores aos
que foram em 1500, e em 1700 estavam ainda mais altos – mais de três vezes
e meia o que haviam sido quando a revolução dos preços teve início. (ibidem,
p. 109)
De repente, a Espanha viu-se assolada por uma inflação sem precedentes que,
rapidamente, se espalhou por toda a Europa. As pessoas não tinham como comprar
nada, sequer conseguiam entender o porquê daquela situação e buscavam culpar-se
mutuamente, pois era-lhes incompreensível que tal fato tivesse origem internacional.
(ibidem, p. 110)
Em breve, grande parte da Europa viu-se ocupada por um sem-número de
mendigos que ocupavam todos os grandes centros; Paris, por exemplo, na década de
1630, contava com um quarto de sua população constituída por eles. (ibidem, p. 107)
Essa massa de indigentes, deslocados e cheios de rancor, surgiram das
guerras, das epidemias, da opressão dos poderosos, da falta de trabalho à que
obriga a crise da economia. No século XVII, eles se encontravam em todos
os lados: são conhecidos na França, na Alemanha, em Flandres. (ibidem, p.
106)
Figura 19
Estalagens eram usadas por soldados e depois pilhadas, A miséria da guerra, de Jacques Callot, 1632
Assim, essa crise encerrará uma grande dicotomia em solo europeu: apesar de ter
sido uma época de profundo desenvolvimento econômico – vislumbrado na expansão
colonial −, será uma época repleta de miseráveis; a burguesia que havia sido a
corresponsável pelos descobrimentos, vê-se agora relegada a um segundo plano,
enquanto a nobreza tenta de toda forma aumentar seu patrimônio, pois já reconquistara
seu poder político, levando pequenos proprietários à penúria e obrigando-os a
abandonar o campo, o que aumentava os deslocamentos das massas humanas em
direção às cidades. (MARAVALL)
Havia de um lado grupos que tentavam manter e aumentar seus privilégios e
riquezas − e poderiam fazê-lo −, já que viam a crise os ameaçar; de outro, uma massa,
aparentemente amorfa, açoitada por pestes, pobreza, fome e guerra (fig. 19). Aqueles,
sabendo que os recursos da repressão física poderiam não conter esta, viam-se
obrigados a buscar uma cultura coercitiva, para manter a massa dentro da ordem
estabelecida socialmente. (ibidem) Dessa forma, buscaram-se meios de penetração nas
consciências bem como o controle psicológico que favoreceriam o processo de
integração, além de combater os rancores e a violência. A nobreza estaria assegurando
assim sua superioridade sobre o conjunto. Utilizam-se todos os recursos ideológicos,
artísticos e sociais para manterem-se as vontades sob controle. (ibidem)
Figura 20
Soldados renegados eram punidos em praça pública, como o que está pendurado no pêndulo, ou como os
quatro que estão do lado esquerdo, montados no burro espanhol, A miséria da guerra, de Jacques
Callot, 1632
É possível verificar isso ao se deparar com características da arte barroca, pois
esta acaba sendo um drama estamental: a submissão do indivíduo à moldura da ordem
social; reprime-se, assim, toda a individualidade. Na França de Richelieu,
aspectos tradicionais da estrutura de poder e da sociedade eram mantidos pela
força, assim como a sujeição imposta ao povo e a dura repressão de seus
protestos [...]. ‘Sempre foi o castigar razão de Estado’, escrevia C. de
Bocángel, mas nunca como na monarquia do século XVII, sua razão de ser
tão principal. (MARAVALL, 1997, p. 94)
Isso fica claro nas relações dentro dos regimentos do exército, pois não havia
mais a antiga camaradagem, mas uma constituição senhoril severa. Os próprios
comandantes e seus oficiais utilizavam de extrema violência para com os soldados (fig.
20), que eram dominados por uma rígida disciplina e submetidos a castigos.
(FLEMMING)
Contra esse estado de tensão e mesmo diante de tamanho aparato, eclodiam
levantes por toda Europa; parcela da população insurgia-se contra as autoridades locais,
viam-se ondas de sedições e de revoltas que eram prontamente sujeitadas pelos
exércitos reais e pelos nobres. Muitos desses, temerosos da perda de seu status quo e
das nefastas proporções a que tais atos poderiam levar, sequer cumpriam sua única ou
quase única carga, o serviço militar. Alguns nobres furtavam-se assim de suas
obrigações, preferindo até contribuir com o rei ou mesmo alegando que não possuíam
“fundos para custear os gastos da expedição”. (MARAVALL, 1997, p. 09) Mais uma
vez, o ônus dessa situação recairia sobre os mais pobres, que iriam aos campos de
batalha à força.
Demonstra-se, assim, que as bases sociais em que estava alicerçada essa
sociedade começariam a ruir em todas as camadas. Diante desse estado de infortúnios,
surgem, por toda Europa, legiões de ladrões e salteadores.
Existe inegavelmente uma relação entre Barroco e crise social. Encontramonos − não apenas na Espanha, mas em toda a Europa − diante de uma época
que, em todas as esferas da vida coletiva, se vê arrastada por forças
irracionais, o apelo à violência, a multiplicação de crimes, o relaxamento
moral, as formas alucinantes de devoção etc. Todos esses aspectos são
resultado da situação patética na qual se exterioriza a crise social subjacente e
que se expressa nas manifestações da mentalidade geral da época. (ibidem, p.
115)
Isso tornaria a Guerra dos Trinta Anos extremamente perversa, pois não havia
mais limites para as ações humanas, o caos instaurara-se, como demonstram as relações
entre os membros do exército, mormente os soldados. Estes eram os profissionais mais
inseguros que havia no momento, não só por verem-se a todo momento diante da morte,
mas também por terem de trabalhar meses, anos e, de repente, seu regimento não existir
mais, vendo-se na rua com mulher e filhos. (FLEMMING) Não que a profissão fosse
recompensada à altura dos inúmeros sacrifícios exigidos, porque não era, já que o soldo
prometido mormente não era pago, quando o era; entretanto, poderiam ressarcir-se por
meio de extorsões e pilhagens, pois essas eram permitidas. (ibidem) Assim, o despojo
era um elemento do qual não poderiam abrir mão para a segurança existencial de si
mesmos e de suas famílias. Em primeiro lugar estava a luta pela sobrevivência, não uma
tendência criminosa latente, que os levava a roubar.
Dessa forma, a população local ficava à mercê dos regimentos e dos exércitos
que invadiam suas cidades, obrigando-a a toda sorte de maus-tratos e violações. Nos
cinco a seis meses de inverno, por exemplo, os soldados aquartelavam-se nas casas dos
moradores. Os que estavam a pé ficavam nas cidades, os a cavalo, no campo, usufruindo
de tudo que o morador pudesse ou não oferecer. A exceção eram as casas de príncipes,
nobres e sacerdotes. (LANGER)
A exação compensatória pelo não recebimento dos soldos, imposta por meio da
ocupação dos exércitos, era extremamente dura à população local. Além do
aquartelamento, vinha outra solicitação − a contribuição imposta pelo comandante,
atingindo tanto o campo quanto a cidade, que era o pagamento único e em prazo curto
de uma alta soma de dinheiro. (ibidem)
Encontramos, por exemplo, essa situação nos exércitos que travaram as
inúmeras batalhas na Guerra dos Trinta Anos, cuja principal característica em relação às
outras foi a casualidade. “Tudo nela foi casual: sua origem, seu desenvolvimento, seu
alargamento, seu fim.” (FRIEDELL, 1969, p. 414) Pode-se demonstrar isso na própria
formação de seus exércitos, cujos soldados ou eram obrigados a se alistar ou não tinham
outra opção diante da miséria que se alastrava por todos os meios, sem contar os
exércitos como o de Wallenstein, cujos soldados não tinham compromissos com povo
algum, diferindo muito do de Gustavo Adolfo, cuja formação era de camponeses
extremamente religiosos e nacionalistas. (FLEMMING)
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