DOI: https://doi.org/10.23925/1677-1222.2021vol21i3a9
SEÇÃO TEMÁTICA
O cristianismo e a religiosidade popular do Império
Romano: da tradição textual à arqueologia
Christianism and popular religiosity in Roman
Empire: from textual tradition to archaeology
Filipe Noé da Silva*1
Pedro Paulo Abreu Funari**2
Resumo: Neste artigo, propomos uma interpretação sobre o cristianismo desenvolvido nos primeiros
séculos que evidencie suas características compartilhadas com outros referenciais religiosos populares
do império romano nesse mesmo período. Para tanto, realizamos um cotejo entre a tradição textual
judaico-cristã e vestígios arqueológicos, referentes sobretudo à religiosidade de grupos sociais desprovidos de pleno direito, com o objetivo de avaliar suas similaridades. Esperamos que esse exercício
comparativo possa reiterar a feição mediterrânica da religiosidade cristã.
Palavras-chave: Cristianismo primitivo; arqueologia romana; império romano.
Abstract: In this paper, we propose an interpretation of first centuries’ Christianism aiming to highlight its characteristics shared with contemporary popular religions of the Roman Empire. For
this, we did an assessment between Judeo-Christian’s textual tradition and archaeological remains,
referring above all to the religiosity of social groups deprived of full rights, aiming to evaluating of
their similarities. We expect that this comparative exercise stresses the Mediterranean character of
Christian religiosity.
Keywords: Early Christianism; Roman archaeology; Roman Empire.
Introdução
Religiosidade (Bulbulia et alii, 2008) e subalternidade (Bhabha, 1996) nem sempre
são termos associados (Gurevich, 1990; Funari, 1994). E, no entanto, são aspectos
relacionados. Neste artigo, trataremos de ambas, no seu entrecruzar, entre os primeiros
seguidores de Jesus e na sociedade em geral, ao colocar em contato a tradição textual
com vestígios arqueológicos em contexto popular. Iniciamos com considerações epistemológicas sobre o funcionamento e transformação sociais, sobre a religiosidade e
sobre o caráter subalterno ou popular. Em seguida, apresentamos essa inserção social
dos primeiros seguidores de Jesus para centrar na convivência espiritual no mundo romano, na salvação, na cura, na convivência popular quotidiana, culminado com breve
*
Doutor em História Cultural (UNICAMP). ORCID: 0000-0001-5075-0131 – contato: f144983@
dac.unicamp.br
** Professor Titular do IFCH/Unicamp (Campinas-SP). Doutor em Arqueologia (USP, São Paulo-SP).
ORCID: 0000-0003-0183-7622 – contato: ppfunari@uol.com.br
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estudo de evidência arqueológica. Concluíamos pela relevância de uma perspectiva
subalterna para o conhecimento da sociabilidade religiosa popular, à época do cristianismo primitivo ou inicial.
Teoria social e estudo da religiosidade popular
Não é possível especular sobre o presente ou o passado sem o recurso à teoria
(Benjamin, 1980), entendida em seu sentido mais profundo e genérico de perspectiva
ou ponto de vista (θέαν ὁράω, “vejo algo a ser visto”). Há, pois, dois condicionantes:
a posição, acuidade e interesse de quem olha, assim como há as condições de visualização do que é observável. A visão pode ser tomada como generalização dos sentidos
sempre em ação, da audição ao tato ou olfato. Em todos os casos, há os condicionantes
de um lado e de outro. Mais ainda, o tempo muda ambos os polos, observador e observado. Teoria social refere-se a um âmbito apenas: os elos entre pessoas. Socius, cuja
raiz está presente no português “seguir”, refere-se, pois, ao compartilhamento, com seu
implícito potencial de conflito (Boland & Clogher, 2017; Wight, 2004). Socius, em
latim, era o aliado para a defesa ou ataque, como no termo “os Aliados”, na Segunda
Guerra Mundial, para referir-se aos que estavam juntos para lutar contra outros que se
associavam em torno ao Eixo. A teoria social pode ser definida, assim, como o estudo
das maneiras de interpretar relações sociais no presente e no passado (Hartog, 2020).
Esse termo tem sido acionado para abranger diferentes disciplinas, da filosofia à ciência política, passando pelas restantes ciências sociais e humanas (Lévinas, 1995). Sem
desconsiderar suas diferenças e particularidades das discussões epistemológicas em cada
disciplina, a teoria social permite agenciar uma variedade de abordagens para tratar do
funcionamento e transformação sociais (Bleiker, 2003).
Antes de chegar à religiosidade, convém mencionar as diversas abordagens de subalternos (Góes, 2014), populares (Gonçalves, 2000), colonizados, minorias (Pinto e
Pinto, 2013), mulheres (Belo, 2020; Cavicchioli, 2008; Feitosa & Garraffoni, 2010),
doentes e loucos, entre outras tantas categorias (Silva, 2020) que se confrontam com
tentativas de controle (Funari, Garraffoni & Letalien, 2008; Magalhães de Oliveira,
2020; Silva, 2008). Cada um desses termos vem carregado de significados sugestivos,
como popular, tanto o povo todo, como o povinho, ou subalterno, estar de baixo de
outrem, usado para a posição do colonizado em relação ao colonizador. Isso não significa
apenas submissão ou opressão (Thompson, 2015), mas também circularidade cultural
(Bakhtin, 1970), mescla, hibridização, negociação, resistência, transculturação, linhas
de fuga, para mencionar parte do vocabulário em uso na teoria social. Esses e outros
conceitos associam-se, ainda, ao estudo das maneiras como a literatura acadêmica, em
particular nos últimos dois séculos, ao menos, deve ser levada em conta (Chin, 2011;
Croce, 2011; Funari, 2011; Grafton & Settis, 2010).
A importância dessa abordagem genealógica, histórica (Sand, 2012), contextual,
desconstrutiva, como quer que a denominemos, consiste em distanciar-se dos preconceitos recentes, hoje questionados. Os modelos interpretativos normativos consideraram
e consideram como comportamentos desviantes atitudes que foram e são consideradas
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aceitáveis ou mesmo abençoadas. Esse o caso de pessoas que foram tomadas por uma
força ou sabedoria divina (θεία μανία, theia mania) e está presente nas culturas grega,
cristã, hindu, budista, muçulmana sufista e xamânicas, entre outras. Com isso, chegamos à religiosidade (Arendt, 2005).
Em grego ou hebraico não há palavra para religião, assim como em outros idiomas tampouco (Rappaport, 1999). A religio latina, na origem do termo vernáculo
religião, tampouco se referia a diferentes aspectos do seu uso moderno e apresentava
uma anfibologia criativa. Podia ser entendida como ligação ou leitura, daí escrúpulo,
consciência, coisa ou lugar sagrado, honra, estima, apenas na Antiguidade tardia com o
sentido de sistema de crença ou religião sistematizada: Christianam religionem absolutam
et simplicem anili superstitione confundens, Amm. 21, 16, 18; a clara e simples religião
cristã, confundindo-se com uma superstição de idosa.
Frente às conotações modernas que associam religião a instituições e sistematização teológica, outros termos têm sido propostos, como religiosidade e espiritualidade (Philippe, 2004). Eles permitem abranger aspectos variados e muito além dos
sentidos institucionais e teológicos (Ombrosi, 2008), reafirmados, na modernidade,
pelas chamadas guerras de religião, a partir do século XVI. Dois aspectos podem ser
destacados: por um lado, a adesão subjetiva, por outro a conveniência social, ambos
interrelacionados (Aron, 1944; Bohmann, 2009). No primeiro caso, a convicção é
essencial (Cohen, 2010; Feierman, 2005; Dissanayake, 2010; King, 2009; Rossano,
2006; Trimlin, 2006; Voland & Schiefenhövel, 2009; Wade, 2009; Wardega, 2012;
Watanabe & Smuts, 1999), como no engajamento com o culto e homenagem a santos
ou líderes, como Stalin ou Mao.
A conveniência social está presente tanto no caso de adesão ao poder, como na União
Soviética, no Irã pós 1979, ou no império romano à época de Teodósio (Griffin, 2004;
Rex, 2008; Riegel, 2005; Voegelin, 1985). Termos como religiosidade e espiritualidade
permitem abranger dos sentimentos mais antigos e persistentes no que está além do
material e sensível, ao comportamento coletivo de adesão interessada. Religiosidade e
espiritualidade apresentam ressonância particular com o povo, com aqueles que, sem
mesmo estudo formal, expressam sua cultura, no sentido antropológico mais amplo e
acessível pelo vestígio arqueológico (Bermejo-Barrera, 1990; Fogelin, 2007; Fogelin,
2008; Hodder, 2010; Insoll, 2004; Renfrew, 1994; Rowan, 2012; Ucko, 1962). Neste
artigo, tratamos de um aspecto da religiosidade popular compartilhada e que permitiu
a difusão de espiritualidades ligadas a vertentes cristãs em ambientes dos subalternos.
Os primeiros seguidores de Jesus de Nazaré
Elaborado de modo a congregar elementos referentes à historiografia e à novela
grega (Nogueira, 2020, p. 53), o livro dos Atos dos Apóstolos, redigido entre os anos
de 64 e 85 da Era Comum (Chevitarese & Funari, 2012, p. 11), aproxima-nos, ainda
que de maneira nem sempre precisa em relação aos fatos narrados (Lourenço, 2018, p.
46), de algumas das principais tensões debatidas no interior das comunidades cristãs por
volta da década de 60 do primeiro século (Nogueira, 2020, p. 53). Dentre os embates
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registrados pelo texto atribuído ao evangelista Lucas, aquele alusivo à admissão, ou
não, da população greco-romana (gentios) no cristianismo, aparece em primeiro plano.
Os cristãos oriundos do judaísmo de Jerusalém reivindicavam o cumprimento da
ritualística judaica (sobretudo, a circuncisão masculina), preconizada na lei mosaica,
por parte daqueles que se convertessem ao cristianismo: o próprio Pedro, segundo o
livro dos Atos (10.14; 10.28), mostrava-se resistente e inflexível ao menor contato com
a impureza dos gentios. Como destacou Paulo Nogueira (2020, p. 58), a aceitação dos
não judeus nas comunidades cristãs teria ocorrido apenas mediante intervenção divina. Uma visão de Pedro é arrematada com uma voz que assevera: “As coisas que Deus
purificou não consideres tu vulgares” (At.10.15. Tradução de Frederico Lourenço).
Situação distinta ocorreu entre as comunidades cristãs emergentes nas cidades gregas:
derivada de um judaísmo de diáspora, a igreja cristã de Antioquia, por exemplo, teria
reagido de maneira favorável a uma formação multiétnica do cristianismo (Nogueira,
2020, pp. 64-68). A conversão dos gentios ao cristianismo, do mesmo modo, é um dos
principais temas abordados nas epístolas paulinas. Na missiva endereçada aos Gálatas,
Paulo de Tarso, em tom enfático e respondendo a pregações cristãs que exigiam adeptos
circuncidados, reitera que a circuncisão é prescindível: “Em Cristo Jesus não importa
nem circuncisão nem prepúcio, mas [só] fé que atua através de amor” (Gl. 05.06.
Tradução de Frederico Lourenço). O chamado apóstolo dos gentios também esclarece
que: “Não há judeu nem grego, não há escravo nem pessoa livre, não há macho e fêmea:
todos vós sois um em Cristo Jesus. Se vós sois Cristo, então sois semente de Abraão e
herdeiros segundo uma promessa” (Gl. 03, 28-29. Tradução de Frederico Lourenço).
Redigidas entre as décadas de 40 e 60 da Era Comum (Chevitarese & Funari,
2012, p. 11), as epístolas paulinas antecipam uma característica observável em textos
posteriores sobre as comunidades cristãs: a heterogeneidade social destas comunidades.
Tanto no seio da comunidade de camponeses judeus da Galileia, quanto nas igrejas
mencionadas no Novo Testamento e alhures, pode-se observar a ampla presença de
pessoas pobres e marginalizadas, mulheres e homens cuja sobrevivência dependia do
esforço e do trabalho (Nogueira, 2020, p. 18).
Judeus ou gentios, essas pessoas carregaram para dentro do cristianismo as marcas da desigualdade social vigente no império romano dos primeiros séculos da Era
Comum. Como corolário, como já observado no estudo de Nogueira (2018), as produções textuais cristãs, canônicas ou não, apresentam temas e características advindos
do âmbito popular. A seguir, pretendemos demonstrar que alguns dos temas presente
nas produções intelectuais do cristianismo primitivo também podem ser observados
noutras manifestações religiosas do império romano. Para tanto, realizaremos um
breve exercício comparativo a partir da tradição textual antiga e das inscrições latinas
dedicadas a diversas divindades.
Religiosidade e convivência no Império Romano
Em uma de suas Sátiras (III. 62-65), o poeta Juvenal lamentava que o sírio rio
Orontes estaria a desaguar sobre o Tibre a língua, os costumes, os tímpanos e as flautas
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vindas da região oriental do Mediterrâneo: sua metáfora, com efeito, nos revela certa
aversão ao intercâmbio étnico e cultural resultante da expansão imperial romana. Tanto
Catulo (Poema 63) quanto Ovídio (Fast. IV. 179-188) nos informam sobre a utilização
dos referidos instrumentos musicais em manifestações religiosas, sobretudo nas procissões
e ritos associados à deusa Cibele. Oriundo da Ásia Menor, o culto à Magna Mater foi
adotado em Roma por volta de 205/204 AEC. A construção de templos, bem como
a oficialização de um festival público (Megalesia) dedicado à deusa a partir 194 AEC,
atesta a ampla disseminação do seu culto entre os romanos desde a época republicana
(Beard, North & Price, 1998. p. 165).
Cibele, no entanto, é apenas uma dentre as muitas divindades e cultos de mistérios
incorporados (não sem certo ceticismo e xenofobia, como bem atesta Juvenal) pela população do império romano. Ísis, Anúbis, Serápis, Átis, Mitra, Javé ou seu filho Jesus,
entre outras divindades, reconhecidas ou não pelos jogos e celebrações oficiais, formavam
parte de um universo religioso marcado sobretudo pela diversidade e muito marcado
pela participação de subalternos, como mulheres, libertos e outros marginalizados.
O enaltecimento da convivência entre distintos referenciais religiosos no império
romano nem sempre gozou de boa estima na modernidade, em particular quando
confrontado por ideais nacionalistas pautados em padrões de pureza étnica e cultural.
Exemplifica essa postura a interpretação histórica proposta pelo historiador francês
Jérôme Carcopino ([1936] 1990). Ministro da Educação durante o regime de Vichy,
o eminente membro da Academia Francesa, cuja obra é reconhecida, também, por seu
teor aristocrático e excludente (Silva, 2005, p. 170), interpretava a presença dos “cultos
orientais” em Roma como uma afronta à racionalidade daquela civilização:
Entretanto, a fé não desaparecera de Roma. Sequer diminuíra. Longe disso. Com efeito,
à medida que, pela carência de uma educação que nada tinha de racional nem de real,
as inteligências se depauperaram e se desarmaram, ela ampliou seus domínios e sua
intensidade aumentou. Mas a fé romana mudara de direção e de objeto. Afastara-se
do politeísmo oficial e refugiara-se nas “capelas/’ formadas pelas seitas filosóficas e nas
confrarias onde se celebravam os mistérios dos deuses orientais (Carcopino, [1936]
1990, p. 155).
Evidenciadas como perniciosas pelas teorias sociais pós-colonialistas, as interpretações históricas similares àquela proposta por Carcopino ([1936] 1990) passaram a
ser criticadas por suas pretensões imperialistas, racistas e antissemitas (Bernal, 1993, p.
264; 2005, p. 31). Nos dias atuais, as narrativas históricas têm se dedicado à (re)escrita
de uma história do império romano a partir de conceitos e perspectivas que valorizam
a convivência e a diversidade cultural entre as distintas populações do Mediterrâneo
(Funari & Garraffoni, 2019). Reconhecer o aspecto multicultural de uma sociedade
não significa caracterizá-la como desprovida de conflitos sociais, étnicos e culturais. Ao
contrário, implica o reconhecimento da diversidade e também das relações de poder
e hierarquias que permeiam essas mesmas diferenças, no presente (Canen, 2000) e no
passado (Funari, 1989).
Judeus e cristãos coexistiram em um império romano que, muitas vezes, se mostrou hostil a essas populações: a destruição do templo de Jerusalém (70 EC), assim
como as perseguições e martírios de cristãos, são alguns dentre os muitos exemplos
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que poderiam ser arrolados. Neste estudo, entretanto, interessa-nos demonstrar que
as produções textuais do cristianismo antigo, não obstante sua singularidade, também
carregavam consigo elementos que podem ser evidenciados noutros referenciais culturais
do Mediterrâneo Antigo.
As divindades politeístas, a salvação e a cura
Uma conhecida passagem do livro dos Atos dos Apóstolos (14: 08-14) relata que
Paulo de Tarso e seu companheiro Barnabé, em uma visita à cidade de Listra, teriam
curado um homem cuja má formação dos pés o impedia de caminhar. Ao ter ouvido as
ordens de Paulo, o indivíduo, já curado, teria se levantado e andou como nunca fizera
antes. Às testemunhas da cura milagrosa não restariam dúvidas: Paulo foi associado
ao deus Hermes e Barnabé seria o próprio Zeus em forma humana. Em uma explícita
oposição às divindades, cuja manifestação é narrada pelos autores cristãos como um
atributo de magia e feitiçaria (Nogueira, 2020, p. 85), o milagre da cura seria um apanágio dos apóstolos cristãos.
Por se constituir como um tema advindo de âmbito popular (Nogueira, 2018, p.
69), a crença na cura por intermédio e ação de uma divindade é um tema que pode ser
observado, também, em referenciais culturais que não são de origem judaico-cristã. Essa
característica pode ser observada, por exemplo, no romance latino Metamorfoses (ou O
Asno de Ouro), de autoria do africano Apuleio, de Madaura, datado do século II EC.
Apesar de sua ficcionalidade, como bem observou Fergus Millar (1981, p. 63), a obra
em questão foi construída em base realista, com referenciais da vida social e econômica
do império romano de sua época. O aspecto da magia perpassa toda a obra e tem seu
desfecho a partir da interferência da deusa Ísis.
Após ser transformado em asno e percorrer inúmeras provações, Lúcio, já cansado de sua forma bestial, apela à providência divina para reaver sua forma humana.
Comovida pelas preces de Lúcio, a deusa Ísis propõe a ele um acordo: para ser curado,
ainda na forma de burro, o protagonista do romance deveria ingressar em uma procissão
consagrada à deusa e tocar uma coroa de rosas carregada pelo sacerdote. Em meio ao
processo de transformação e cura da maldição, Apuleio se refere a Ísis como a deusa da
salvação: “(...) deae sospitatricis” (Apuleio. Met. XI. 09). Versão feminina de sospitator,
o vocábulo sospitatrix (nominativo singular) também deriva de sospes, salvação. À deusa
Juno, por exemplo, figura o epíteto sospita. Em todas essas versões, por sua vez, pode-se
constatar a presença do sufixo -spes, referente à esperança, à expectativa de algo por
acontecer. O caráter salvífico de Ísis, por sua vez, também pode ser presumido por meio
de uma inscrição votiva oriunda da cidade de Italica, atual Santiponce (Espanha), na
província romana da Baetica:
Isidi / Regin(ae) / Soter / votum / s(olvit) l(ibens) a(nimo). Cidade: Italica, Baetica.
Referência: Hispania Epigraphica. 1995, 715.
À Rainha Ísis. Salvação, Voto cumprido com mérito e de bom grado (tradução nossa).
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O poder curativo de Ísis também foi registrado em outros suportes materiais.
Noutra inscrição (CIL 06, 00574), Ísis e Serápis são evocados em favor da boa saúde
e incolumidade de um liberto e de uma mulher chamada Aurélia Quintiliana. Ambos
os personagens, portanto, são pertencentes a categorias sociais desprovidas de pleno
direito. Com efeito, a inscrição se encontra na base de uma estátua do deus Baco, uma
divindade considerada oriental à época, e que se encontra sentado sobre uma pantera
(Stéphanie, 2015, p. 243; p. 268):
Invicto deo / Serapi et Isidi / Reginae / Philetus Augg(ustorum) / lib(ertus) pro incolu/
mitate sua et Aureliae Qui/ntilianae a/rulam cum basi / et sigilla duo / votum libe(n)s /
solvit. Referência: CIL 06, 00574. Data: 211-217 da Era Comum. Cidade: Roma.
Dedicado ao deus invicto Serápis e à Rainha Ísis. Fileto, liberto dos Augustos, pela
incolumidade sua e de Aurélia Quintiliana. Cumpriu seu voto com um pequeno altar
e duas estatuetas (Tradução nossa).
Conclusão: história também vista de baixo
Não é incomum o estudo dos influxos de filósofos como Platão, Aristóteles, os estoicos, entre outros, para o que viria a ser a teologia cristã. A esses elos, têm aumentado
a atenção à erudição de rabinos e pensadores hebreus para a nascente institucionalização
e sistematização teológica cristã (Birch, 1994; Steward, 2016). Não se tem descuidado
de outras interações, como no caso daquelas persas, como o zoroastrismo ou o maniqueísmo. Essas abordagens são esclarecedoras de diversos aspectos e controvérsias dos
primeiros pensadores cristãos. Esses estudos partem da perspectiva de cima para baixo
(top down) ou de diálogo entre elites e servem para mostrar, entre outras coisas, que
a interação intelectual sempre foi muito intensa (González-Ferrín, 2018). Alguns estudiosos da teoria social consideram que as ideias dos dominantes se tornam as ideias
das pessoas comuns, num efeito de cima para baixo (trickle-down, gotejamento). Karl
Marx e Friedrich Engels, n’A ideologia alemã (2007, p. 47), afirmavam que "as ideias da
classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força
material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante"
(Marx 1959; cf. 1970, tradução nossa).
Sem desconsiderar essa ênfase, tem-se também buscado adicionar conceitos como
circularidade para dar conta do efeito inverso, de baixo para cima (bottom up). Nesta
ocasião, acrescentamos um breve estudo de caso: a aproximação de práticas cristãs e
de outras divindades em termos de sociabilidades populares. A sacralização de restos
de mártires tem sido relacionada tanto a práticas judaicas quanto romanas (Eastman,
2020), mas as procissões cristãs, ainda que atestadas apenas após o Edito de Milão, em
313 EC e sua permissão do culto cristão, podem ser relacionadas a práticas politeístas
populares.
De Pompeia provém a imagem (Imagem 02) da procissão de Cibele ou Magna
Mater, na officina coactiliaria (oficina de produção têxtil) de Verecundus (IX, 7, 1),
destinada a ser vista pelos passantes (Potts, 2009). É bem conhecida a apropriação
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institucional, de cima, de festas politeístas ao cristianismo, como nos casos paradigmáticos das festividades das estações: inverno, primavera, verão, outono. Também a
construção de igrejas sobre templos dedicados a divindades visou a capturar, se assim
podemos dizer, a sacralidade para a nova fé. Em ambos os casos, são decisões de dominantes, assim como o amálgama teológico de conceitos filosóficos e religiosos eruditos.
O que se destaca, aqui, é o processo inverso, de pessoas comuns (CIL X 1023; CIL X,
1054), acomunadas pela frequentação de procissões, na sua contraditória significação
de convicção espiritual e interior e conveniências sociais exteriores. Sem essa comunhão
entre subalternos, sem a frequentação comum e quotidiana, não floresceriam tantas
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Editora responsável: Fábio L. Stern
Recebido em: 13/10/2021
Aprovado em: 08/12/2021
Agradecimentos
Agradecemos a Taís Pagoto Belo, Marina Régis Cavicchioli, André Leonardo
Chevitarese, Lourdes Conde Feitosa, Renata Senna Garraffoni, Emilio González-Ferrín,
Ian Hodder, Paulo Augusto Nogueira, Júlio César Magalhães de Oliveira e Glaydson
José da Silva. Mencionamos o apoio institucional da Unicamp, CNPq e Fapesp. A
responsabilidade pelas ideias restringe-se aos autores.
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