POLÍTICAS E
ESTRATÉGIAS ADMINISTRATIVAS
NO MUNDO ATLÂNTICO
Suely Creusa Cordeiro de Almeida
Gian Carlo de Melo Silva
Kalina Vanderlei Silva
George Felix Cabral de Souza
(Organizadores)
POLÍTICAS E
ESTRATÉGIAS ADMINISTRATIVAS
NO MUNDO ATLÂNTICO
Recife, 2012
Editora
Universitária
UFPE
Universidade Federal de Pernambuco
Reitor: Prof. Anísio Brasileiro de Freitas Dourado
Vice-Reitor: Prof. Sílvio Romero Marques
Diretora da Editora UFPE: Profª Maria José de Matos Luna
Comissão Editorial
Presidente: Profª Maria José de Matos Luna
Titulares: Ana Maria de Barros, Alberto Galvão de Moura Filho, Alice Mirian Happ Botler,
Antonio Motta, Helena Lúcia Augusto Chaves, Liana Cristina da Costa Cirne Lins, Ricardo
Bastos Cavalcante Prudêncio, Rogélia Herculano Pinto, Rogério Luiz Covaleski, Sônia Souza
Melo Cavalcanti de Albuquerque, Vera Lúcia Menezes Lima.
Suplentes: Alexsandro da Silva, Arnaldo Manoel Pereira Carneiro, Edigleide Maria Figueiroa
Barretto, Eduardo Antônio Guimarães Tavares, Ester Calland de Souza Rosa, Geraldo Antônio
Simões Galindo, Maria do Carmo de Barros Pimentel, Marlos de Barros Pessoa, Raul da Mota
Silveira Neto, Silvia Helena Lima Schwamborn, Suzana Cavani Rosas.
Editores Executivos: Afonso Henrique Sobreira de Oliveira e Suzana Cavani Rosas
P769 Políticas e estratégias administrativas no mundo Atlântico / Suely Creusa Cordeiro de Almeida;
Gian Carlo de Melo Silva; Kalina Vanderlei Silva; George Felix Cabral de Souza
(organizadores). – Recife : Ed. Universitária da UFPE, 2012. 493 p. : il., tab.
Vários autores.
Inclui referências bibliográicas.
ISBN 978-85-415-0080-7
(broch.)
1. Brasil – História – Período Colonial – 1500-1822. 2. Brasil – Política e Governo. 3.
Escravidão. 4. Índios. I. Almeida, Suely Creusa Cordeiro de (org.). II. Silva, Gian Carlo de
Melo (Org.). III. Silva, Kalina Vanderlei (Org.). IV. Souza, George Felix Cabral de (Org.).
981.03
CDD (23.ed.)
UFPE(BC2012-071)
Agradecimentos
Cultura e Sociabilidades no Mundo Atlântico e Poder e Administração
no Mundo Atlântico são obras que resultaram de um trabalho coletivo
iniciado em inais de 2008 quando as Universidades públicas
pernambucanas, através de seus professores de História Colonial,
aceitaram o desaio de realizar no Recife, em 2010, a 3ª versão do
Encontro Internacional de História Colonial. Para sua edição nas antigas
terras de Duarte Coelho, a comissão organizadora buscou articular os
debates que norteiam a História Colonial, especialmente no espaço
Atlântico, levando a temática central a intitular-se: Cultura, poderes e
sociabilidades no Mundo Atlântico.
Para realização do encontro, e consequentemente dos volumes
que apresentamos ao público, contamos com o apoio de pessoas
e instituição às quais desejamos expressar nosso agradecimento,
pois sem elas teria sido impossível realizá-los. Em primeiro lugar a
todos aqueles que participaram do evento em 2010 nas mais variadas
atividades. Aos discentes das instituições envolvidas e que atuaram nos
bastidores por meses. Aos que disponibilizaram seus trabalhos, fruto
de pesquisas inéditas e ainda em andamento para compor os livros que
hoje entregamos à comunidade cientíica.
As instituições que abrigaram e inanciaram o evento não podem
ser esquecidas. Nosso agradecimento à Universidade Federal de
Pernambuco, que através da Coordenação do Programa de PósGraduação em História e da Direção do Centro de Filosoia e Ciências
Humanas nos cedeu o espaço físico e nos apoiou inanceiramente. À
Universidade Federal Rural de Pernambuco e ao Programa de PósGraduação em História, pelo apoio inanceiro e acolhida à ideia, e à
Universidade de Pernambuco pelo apoio. À FACEPE (Fundação de
Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco), instituição
que sempre tem amparado nossas promoções acadêmicas e que não
nos faltou também no 3º Encontro Internacional de História Colonial.
E, por im, mas não menos importante, ao apoio dado pela CAPES
(Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), sem o
qual não seria possível a publicação destes livros que consideramos ser
uma grande contribuição cientíica para o estudo do passado colonial.
Os Organizadores
Sumário
Apresentação ................................................................................. 11
Temas Introdutórios ............................................................................ 17
Articulação Portugal/Brasil. Redes informais na construção do
sistema Atlântico (séculos XVI-XVIII) ............................................. 19
Amélia Apolônia e Amândio Barros
Os municípios e a justiça na colonização portuguesa do Brasil – na
primeira metade do século XVIII ........................................................ 49
Joaquim Romero Magalhães
PRIMEIRA PARTE
Adminstração e Administradores no Império
81
Um governador ilustrado: Francisco de Sousa Coutinho, governador
do Estado do Grão-Pará e Maranhão .................................................. 83
Ângela Domingues
Da periferia insular às fronteiras do império: colonos e recrutas dos
Açores no povoamento da América .................................................... 103
José Damião Rodrigues
Em busca de um lugar nas conquistas ultramarinas: Trajetória e
Luta de Manuel de Almeida Mattoso pelo ofício de Ouvidor da
Comarca das Alagoas (Século XVIII) ................................................ 121
Antonio Filipe Pereira Caetano
Nassau e os Judeus ................................................................................ 135
Ronaldo Vainfas
Venalidade de ofícios e honras na monarquia portuguesa:
um balanço preliminar .......................................................................... 145
Roberta Giannubilo Stumpf
“Muito mais cadáver do que estado” – Trajetórias Administrativas
no Estado do Grão-Pará e Maranhão (Século XVIII) ...................... 169
Fábiano Vilaça dos Santos
Dignidade de ofício, trajetória familiar e estratégia cortesã: os
secretários do Conselho Ultramarino nos séculos XVII e XVIII ... 189
Maria Fernanda Bicalho
Comunicação entre os poderes do centro e os locais: uma análise da
correspondência trocada entre o secretário da Marinha e Ultramar
e o governo da capitania de Pernambuco ........................................... 213
Érika S. de Almeida C. Dias
Governadores e negociantes nas franjas dos impérios: a praça
mercantil da Colônia do Sacramento (1750-1777) ........................... 229
Fábio Kühn
SEGUNDA PARTE
Economia e Estratégias Políticas
245
A estratégia dos Habsburgo para a América portuguesa. Novas
propostas para um velho assunto ........................................................ 247
José Manuel Santos Pérez
A América Açucareira Portuguesa no Governo de Felipe IV de
Espanha ................................................................................................... 255
Kalina Vanderlei Silva
Circulação monetária e uso do açúcar como meio de pagamento no
Brasil neerlandês: explorando novas fontes ...................................... 271
Lucia Furquim Werneck Xavier e
Fernando Carlos G. de Cerqueira Lima
Falências mercantis e execuções de propriedades de terras: notas
de pesquisa sobre Pernambuco. Século XVIII ao início do XIX ... 287
Tereza Cristina de Novaes Marques
TERCEIRA PARTE
Os indígenas e a colonização do novo mundo
309
Entre supressão e consolidação: os aldeamentos jesuíticos na
Amazônia portuguesa (1661-1693) .................................................... 311
Karl Heinz Arenz
A Batalha dos Papéis: a reação escrita indígena durante a
demarcação de limites (1750-1761) .................................................... 337
Eduardo S. Neumann
As sesmarias e a ocupação do território na Amazonia colonial ...... 357
Rafael Chambouleyron
Obediência e adaptação ao diretório dos índios nas reivindicações
indígenas por liberdade e terras ........................................................... 373
Fátima Martins Lopes
Apresentação
A obra que ora apresentamos, “Políticas e Estratégias Administrativas
no Mundo Atlântico”, é fruto de um verdadeiro trabalho em conjunto,
nascida que foi do III Encontro Internacional de História Colonial:
um evento que congregou historiadores colonialistas de todo o Brasil,
mas também de Portugal, Espanha, México, Costa Rica, Holanda,
EUA e China, consolidando antigas alianças acadêmicas e formando
novas. Realizado em 2010, e já tendo produzido seus anais1, o IIIEIHC,
todavia, continua a dar frutos, um dos quais é o livro em suas mãos
que, juntamente com seu gêmeo “Cultura e Sociabilidades no Mundo
Atlântico”, traz a público alguns dos mais signiicativos trabalhos
apresentados durante o evento. Alguns dos quais, inclusive, de
importantes colonialistas ainda pouco publicados no Brasil.
Apesar de independentes, os trabalhos compilados em “Políticas
e Estratégias Administrativas no Mundo Atlântico” seguem uma
busca comum pelas múltiplas estratégias de governo colonial – e mais
do que isso pelas diferentes estratégias de poder – e pelos personagens
nelas envolvidos. Essa busca é realizada a partir de abordagens diversas,
mas em geral sempre inseridas na ampla perspectiva da História
Sociocultural, que inclui estudos sobre elites e órgãos administrativos,
como as câmaras municipais, governadores, militares, secretarias e
estruturas monetárias. Mas as populações indígenas estão incluídas aqui,
não mais consideradas como meras espectadoras da política colonial,
mas como agentes desta, em suas reivindicações e resistências.
Do ponto de vista espacial os capítulos estudam recortes
regionais especíicos, como a Amazônia, a Capitania de Pernambuco,
1 Anais do 3o Encontro Internacional de Historia Colonial: cultura, poderes e
sociabilidades no mundo atlântico (sec. XV-XVIII), Recife, setembro 07-11, 2010/
Universidade Federal Rural de Pernambuco. Recife: UFRPE, 2011. 1392 p.
o Grão-Pará e a Colônia do Sacramento, mas também trazem uma
preocupação com as conexões atlânticas, políticas e mercantis, e com
projetos coloniais metropolitanos e a cultura cortesã.
Assim é que, neste segundo volume, nos debruçamos sobre
aspectos da administração e dos poderes existentes no cenário colonial.
Os autores que compõem o livro nos mostram exemplos de estratégias
usadas pela administração na América portuguesa para atender aos
interesses das elites locais e do poder metropolitano. Através de seus
textos passamos a observar as formações de redes, no comércio ou nas
câmaras municipais, e como estas se articularam dentro da dinâmica
colonial, conseguindo consolidar interesses ao longo dos séculos em
que o Brasil pertenceu a Estado Português.
Para tanto, partimos, nos “Temas Introdutórios”, do texto de
Amélia Polónia e Amândio Barros, que constrói uma abordagem sobre
as redes comerciais existentes entre Brasil e Portugal nos séculos XVI
e XVII, procurando explicar alguns mecanismos de funcionamento e
o papel dos agentes sociais que izeram parte de tal dinâmica. Algo
que nos revela toda uma trama existente que articulava várias margens
do Atlântico. Mas a concretização do projeto colonizador ica mais
clara quando nos debruçamos nas contribuições de Joaquim Romero
Magalhães, que nos mostra os mecanismos de criação dos municípios
e sua função dentro da colonização. O autor aborda ainda como as
câmaras municipais, a justiça e os administradores foram ativos no
processo de consolidação das ações da coroa portuguesa para criação
de novas vilas e apropriação dos espaços em todo território colonial.
Logo em seguida, a primeira parte de nossa obra, “Administração
e Administradores do Império”, aborda ações e personagens que
souberam circular no espaço colonial atendendo a interesses diversos
e o faz dando uma ênfase especial ao estudo das trajetórias individuais.
Assim é que Ângela Domingues nos leva ao norte do Brasil, abordando
as estratégias administrativas. Nesse artigo a autora tem como elemento
central a história de Francisco Maurício de Sousa Coutinho, um dos
governadores do Estado do Grão-Pará e Rio Negro. Sua história
permite conhecer uma rede clientelar que tinha ramiicações em todo o
Império Ultramarino e que proporcionou maior controle e aumento de
poder ao Estado português. Já José Damião Rodrigues nos leva para as
fronteiras do Brasil colonial, buscando estudar as ações de povoamento
e defesa para garantir a soberania portuguesa no Atlântico Sul. Para
isso Rodrigues foca sua atenção no recrutamento militar e no papel
que os colonos dos Açores desempenharam na colonização da América
Portuguesa. Por sua vez, as estratégias para conquista de cargos
administrativos no ultramar é o prumo do que nos apresenta Antonio
Filipe Pereira Caetano. O autor tem no ouvidor Manoel de Almeida
Matoso o foco de sua análise, na qual consegue retratar a história de
muitos homens que vieram ocupar cargos nos Trópicos. Logo após, o
Brasil Holandês ganha novos detalhes na narrativa de Ronaldo Vainfas,
que aborda as relações políticas e econômicas existentes entre Nassau,
WIC e os judeus.
Buscando entender o papel das honras e mercês no Império
Português Roberta Stumpf apresenta alguns resultados de suas
investigações sobre venda de honrarias e mercês por parte da Monarquia
Portuguesa. Seu estudo traz contribuições para pensarmos as elites
e instituições dentro da monarquia enquanto o Estado do Grão-Pará
e Maranhão ganha mais destaque na abordagem de Fabiano Vilaça,
que nos traz através dos governadores, um pouco das ações da coroa
portuguesa na administração daquela região que era “mais cadáver
do que Estado” segundo o relato da época. Deixando para trás os
governadores, Maria Fernanda Bicalho apresenta aos leitores o cargo
de secretário do Conselho Ultramarino, seu poder e inluência dentro
do governo do império. E para enriquecer a análise aborda a história da
família Lopes de Lavre, que durante mais de um século foi detentora do
ofício de Secretário do Conselho Ultramarino.
Findando a primeira parte é possível conhecer um pouco dos
aspectos comerciais em duas regiões do Brasil colonial no século
XVIII. Primeiro a Capitania de Pernambuco que, entre os reinados de
D. José I e D. Maria I, é investigada por Erika Dias. Seu foco é voltado
para o processo de inalização das atividades da Companhia Geral de
Comércio de Pernambuco e Paraíba, durante o governo de José César
de Menezes. No extremo sul do território Fabio Kuhn nos leva para os
aspectos comercias da Colônia do Sacramento. O autor percorre vários
pontos da cadeia mercantil existente numa região em que portugueses e
espanhóis tinham interesses.
Na segunda parte do livro, denominada “Economia e Estratégias
Políticas”, estão mescladas preocupações com projetos políticoadministrativos gerais e intercâmbios e circulações muito menos
focados nas estruturas políticas. O capítulo de José Manuel Santos
Pérez aborda o Período Filipino, que também é tratado pelas vertentes
historiográicas por termos como União Dinástica, União Ibérica ou
União das Coroas. Nele o autor alerta para necessidade de investigação,
com outros olhares, desse período já tão estudado, mas que carece de
estudos que tragam perspectivas mais atuais da historiograia. Um
exemplo desses novos prismas é encontrado na contribuição de Kalina
Vanderlei Silva que relete sobre os sucessos ocorridos em Pernambuco
e Bahia durante o governo Filipino frente à ocupação holandesa. A
abordagem dá ênfase às relações construídas entre as elites coloniais
e os Habsburgos, reletindo sobre as lealdades políticas devidas pelos
senhores do açúcar aos reis de Portugal e Espanha.
Por sua vez, as estratégias econômicas da época colonial são
visitadas por Lucia Furquim Werneck Xavier e Fernando Carlos G.
de Cerqueira Lima que tratam da circulação monetária no período
holandês e esclarecem como o “ouro branco”, o açúcar produzido
nos engenhos coloniais, tornou-se moeda de troca e de que forma foi
usado para pagamento de bens e investimentos. Já com o território
reconquistado e sob o poder da Coroa portuguesa, Tereza Cristina de
Novaes Marques analisa o papel do crédito na economia escravista,
investigando exemplos de cobranças de dívidas na Capitania de
Pernambuco durante o período das companhias de comércio.
Mas na busca do conhecimento sobre a colonização e
posteriormente a administração na colônia é preciso também abordar
o elemento indígena e conhecer quais as relações que mantiveram
com a Coroa durante os séculos XVI e XVIII. Assim, englobando
principalmente os territórios ao norte do Brasil colonial, a terceira parte
de nosso livro, intitulada Os indígenas e a colonização do novo mundo,
procura entender as diferentes formas de interação social, cultural
mas também política das populações indígenas com as estruturas
governativas coloniais. Inicialmente Karl Arenz aborda a questão
temporal das missões e as relações entre os missionários na Amazônia
portuguesa. O autor avança no debate, já estabelecido na historiograia,
sobre as relações conlituosas entre a autonomia aldeã e a introdução
do Diretório dos Índios em 1757. Enquanto isso Eduardo S. Neumann
trata, através dos papéis de escrituração, da demarcação de fronteiras
estabelecidas pelo Tratado de Madri e as posições e enfrentamento
tomado pelos indígenas, letrados, frente às decisões de Portugal e
Espanha nesse episódio. Por sua vez, deixando os limites e as fronteiras
de lado, o texto de Rafael Chambouleyron investiga a questão da
terra e da ixação de populações no território da atual Amazônia da
América portuguesa assim como o interesse da coroa portuguesa pelo
desenvolvimento de lavouras para comércio em larga escala.
E por im, Fátima Martins Lopes analisa o processo de transição
dos aldeamentos religiosos para as vilas, surgidas entre os anos de
1760 a 1762 na Capitania de Pernambuco, apresentando o quadro de
inseguranças e conlitos instalados nas localidades entre indígenas e os
novos administradores impostos pela Coroa.
Dessa forma, viajando das cortes ibéricas para as aldeias
amazônicas e os fortes da fronteira sul, passando por cidades e indo até
as cozinhas atrás de personagens que procuravam, por diversos meios,
controlar ou negociar poderes em seu contexto, é que neste “Políticas
e Estratégias Administrativas no Mundo Atlântico” procuramos traçar
um amplo panorama das estruturas políticas do mundo colonial em seus
mais diversos signiicados. Esperamos ter conseguido.
Os Organizadores
TEMAS INTRODUTÓRIOS
Articulações Portugal / Brasil.
Redes informais na construção do sistema atlântico
(séculos XVI – XVIII)
Amélia Polónia
Universidade do Porto.
Amândio Barros
Escola Superior de Educação do Porto
Esta é uma contribuição desenvolvida em colaboração entre
dois autores, a qual pretende, num primeiro momento, apresentar o
quadro teórico que informou a submissão de uma sessão temática com
o mesmo título ao III Encontro de História Colonial (Recife, 04-07
Setembro 2010), aqui desenvolvida por Amélia Polónia, e num segundo
momento desenvolver uma abordagem empírica das inter-relações
Portugal/Brasil, nos séculos XVI e XVII, focalizada a partir da ação de
agentes e de redes comerciais sediadas na cidade do Porto, apresentada
por Amândio Barros.
1. Redes informais e mecanismos de cooperação na época moderna.
Quadro teórico e contributos epistemológicos aplicados ao Brasil
colonial
O quadro teórico que norteia este estudo baseia-se em duas
convicções centrais que têm orientado a nossa investigação nos
últimos anos1. A primeira é a de que devemos olhar para o outro lado
1
Cf. POLÓNIA, Amélia Self organising networks in the construction of the Portuguese overseas empire apresentada ao 5th International Congress of Maritime History (Greenwich, 2327 Junho 2008); Self-organised networks in maritime transport. Portugal. 16th. Century na
workshop Le transport maritime et ses acteurs à l’epoque moderne, de la mer du Nord à la
Mediterranée/ Maritime Transport and its actors in the Early Modern Europe from the North
Sea to the Mediterranean (Brest, 14-15 outubro 2010); Ruling strategies and informal power of
self-organising networks in the First Global Age. The Portuguese case, apresentada na sessão
The power of the commoners. Informal agent-based networks as source of power in the First
Global Age, org. Amélia Polónia, na ASSHC 2010 (Chicago, 18-21 novembro 2010) e Indivíduos e redes auto-organizadas na construção do império ultramarino português in Livro de
19
do espelho no que se refere à construção e manutenção dos chamados
“impérios marítimos e coloniais2” europeus durante a Época Moderna.
A historiograia europeia tem estado centrada em aproximações que
conferem clara prevalência ao estudo dos desempenhos políticos,
militares, econômicos das coroas e dos poderes centrais europeus, a
que chama de Estados. As projeções ultramarinas e a construção de
espaços coloniais são explicadas, neste período, em grande medida,
a partir da primazia conferida às estratégias do poder central e às
rivalidades deinidas entre potências políticas. É, pelo contrário, nossa
convicção, que os indivíduos e os grupos de indivíduos contribuíram
extensivamente para estas dinâmicas, às vezes ainda mais do que o
próprio poder central.
No caso português, esta postura decorre, em simultâneo, de duas
linhas de revisão historiográica: a que tem sido desenvolvida em torno
da reavaliação do conceito de Estado e da contestação da emergência
desta “entidade” já nos séculos iniciais do período moderno, para
a qual muito contribuiu o pensamento e a obra de Antônio Manuel
Hespanha3, e aquela que decorre de uma distinta abordagem do processo
Homenagem a Joaquim Romero Magalhães [no prelo]. Os tópicos que aqui se enunciam de
forma sumária serão desenvolvidos na monograia, em inalização, intitulada The power of the
commoners. Crown and individuals in the Portuguese Overseas Expansion.
2
Os conceito de “império ultramarino” ou “império colonial” são altamente discutíveis quando
aplicados ao caso português na época moderna. Não avançaremos, porém, com esse debate,
no presente trabalho, o qual exige uma discussão teórica vasta, que envolve a delimitação das
dimensões do próprio conceito e a sua aplicação ao caso em estudo. Sobre esta matéria, vd.
ABERNETHY, David B. The dynamics of global dominance: European overseas empires,
1415-1980. New Haven: Yale University Press, 2000; LUTHY, Herbert “Colonization and the
making of mankind” in NADLE, George H.; CURTIS, Perry eds. Imperialism and colonialism.
Nova Iorque: The Macmillan Company, 1964, pp. 26-37; POMPER, Philip “The history and
theory of empires”. History and Theory . Vol. 44 (Dezembro 2005), pp. 1-27, e ainda LIMA,
Luís Filipe Silvério Os nomes do império no século XVII em Portugal. Disponível in http://
people.ufpr.br/~andreadore/lfslima.pdf [Consultado em 23 de Junho de 2010].
3
HESPANHA, Antônio Manuel “Para uma teoria da história institucional do Antigo Regime”
in Poder e instituições na Europa do Antigo Regime. Colectânea de textos, Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, [1984] pp. 31-89; HESPANHA, Antônio Manuel As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal – século XVII. Coimbra: Almedina, 1994, p. 21-60;
HESPANHA, Antônio Manuel Savants et rustiques. La violence douce de la raison juridique. In
SIMON, Dieter; WILHELM, Wlater (coord) Ius Commune. Veroffenthichungen des Max-Planck-
20
expansionista. Com efeito, em contraponto, ou em complementaridade,
a uma leitura tradicionalmente centrada na projeção externa do
expansionismo português, algumas dissertações e estudos monográicos
têm disponibilizado, nos últimos anos, perspectivas, desenvolvidas no
âmbito dos estudos locais e a partir de um enfoque micro-analítico,
que apontam para diferentes práticas, diferentes agentes e diferentes
estratégias daquelas conhecidas para o poder central4.
Constituídas por agentes anônimos, dinâmicas coletivas,
informais, orientadas pela adaptabilidade constante a novas circunstâncias
e contextos, atuando frequentemente em franjas periféricas e por isso
menos controladas pelo poder central; preenchendo lacunas que este
deixa em aberto, por incapacidade de resposta, por escassez de recursos,
ou por estratégias deliberadas, estas redes emergem e dão espaço a
novas lógicas e a dinâmicas complexas. O protagonismo conferido aos
agentes individuais e a redes auto-organizadas, de constituição, atuação
e normatividade diversas das oiciais, ganha, nesta linha de revisão
historiográica, acrescida importância.
A segunda convicção em que esta comunicação assenta parte
da tese de que uma cooperação generalizada existia, para além das
fronteiras políticas e territoriais, europeias e ultramarinas, e articulava,
a partir dessas mesmas redes e lógicas, os diversos espaços coloniais,
transcendendo rivalidades e criando uma rede de comunicações e de
Instituts fur Europaische Rechtsgeschichte, X. Frankfurt am Main: Klostermann, 1983. pp. 1-48.
4
Vejam-se, entre outros, os trabalhos clássicos de MAGALHÃES, Joaquim Romero Para o estudo do Algarve econômico durante o século XVI, Lisboa, Cosmos, 1970 e O Algarve econômico: 1600-1773, Lisboa , Estampa, 1988.; MOREIRA, Manuel Fernandes Os mareantes de Viana e a construção da atlantidade, Viana do Castelo, Câmara Municipal, 1995; Os mercadores
de Viana e o comércio do açucar brasileiro no séc. XVII, Viana do Castelo, Câmara Municipal,
1990; O porto de Viana do Castelo na época dos descobrimentos, Viana do Castelo, Câmara
Municipal, 1984; POLÓNIA, Amélia A Expansão Ultramarina numa perspectiva local. O
porto de Vila do Conde no século XVI, Lisboa, IN-CM, 2007, 2 vols.; BARROS, Amândio O
Porto: a construção de um espaço marítimo nos alvores da Época Moderna”, Porto, 2004 [Dissertação de doutoramento policopiada] ; PEREIRA, Susana A comunidade marítima de Vila do
Conde no século XVII . Estudo socioproissional, Porto, 2006 [Dissertação de mestrado apresentada à FLUP sob orientação cientíica de Amélia Polónia]; PINTO, Sara Caminha no século
XVI: estudo socio-econômico. Dos que ganhão suas vidas sobre as agoas do mar, Porto, 2008
[Dissertação de mestrado apresentada à FLUP sob orientação cientíica de Amélia Polónia]
21
transferências em que assenta todo o processo de globalização, gerado
no período de tempo em análise.
Vários exemplos dão testemunho destas dinâmicas, entre os
quais podemos citar, como paradigmático, o das redes formadas por
agentes mercantis e inanceiros cristãos novos, localizados em vários
espaços políticos europeus, desde a Península Ibérica, à Itália, aos
Países Baixos e depois às Províncias Unidas e coordenadas em espaços
ultramarinos que vão desde a África, ao Brasil, à Índia ou mesmo, quando
não predominantemente, às Índias de Castela. Podemos ainda referir
as redes de tráico de escravos, que atravessam fronteiras políticas, e
conectam diversos universos coloniais, mesmo contendentes; ou as
redes inter-confessionais, envolvendo agentes de distintas iliações
religiosas, cooperantes em sólidas rede de negócios, em que atuavam
como parceiros5.
Esta releitura histórica baseia-se em alguns conceitos
centrais: o de redes, informais e auto-organizadas, e o de cooperação,
estando este na base de um projeto de investigação internacional e
transdisciplinar, de que faz parte também uma equipe portuguesa:
o DynCoopNet: (Dynamic Complexity of Cooperation-Based
Self-Organizing Commercial Networks in the First Global Age)6.
Para percebermos a pertinência da Cooperação como tópico
de investigação, lançado pelo programa TECT (The Evolution of
the Cooperation and Trade), importa lembrar que a cooperação foi
recentemente apresentada como um dos três componentes nucleares
da evolução, a par da seleção e da mutação. Autores clássicos, como
5
Dinâmica estudada, por exemplo, nas sessões do painel: Interfaith commerce in Medieval and
Early Modern Times, coord. Francesca Trivellato e Cátia Antunes, integrado na recente European Social Science History Conference (Gent, Belgium, 13-16 April 2010), nomeadamente
no painel III: Early Modern Europe and the Atlantic e introduzidas, por exemplo, nas obras
recentes de TRIVELLATO, Francesca The familiarity of strangers. The Sephardic Diaspora,
Livorno and cross-cultural trade in the Early Modern Period. New Haven & London, Yale
University Press, 2009; LAMIKIZ, Xabier Trade and trust in the eighteenth-century Atlantic
world : Spanish merchants and their overseas networks, Woodbridge, Suffolk, UK ; Rochester,
NY : Boydell Press, 2010.
6
DynCoopNet “Dynamic Complexity of Cooperation-Based Self-Organizing Commercial Networks in the First Global Age” (Ref. ESF - 06-TECT-FP-004; Refª FCT TECH/0002/2007).
22
Darwin, Rousseau, Hume e Smith deiniram problemas que envolviam
questões de cooperação. Na verdade, os processos de cooperação
existem desde que a vida existe e são hoje alvo de estudo de disciplinas
como a Biologia, a Antropologia, a Física, a Economia, as Ciências
Cognitivas, a Matemática, tendo vindo a ganhar terreno nos domínios
disciplinares da História. Os mecanismos evolutivos da cooperação são
hoje, pois, objeto de debate em numerosos encontros cientíicos, em
que a História está também presente7.
Quanto às “redes”, desde há muito que a Sociologia e a Economia
adiantaram modelos de estudo que se revelam úteis para a História.
A análise de redes perspectiva, como se sabe, as relações sociais em
termos de nódulos e laços, sendo os nódulos os indivíduos e os laços
as articulações entre eles8. Ao contrário, porém, dos tradicionais
modelos da Sociologia, que entendem que a posição de um indivíduo
7
Vd. Por exemplo, The evolution of cooperation – Models and theories. International workshop (Laxenburg-Viena-Áustria, 15-18 September 2009) e a TECT/ INCORE Summer School,
sob o tema Cooperation since times begin (Budapeste, 11-15 Setembro 2010).
8
Ver, entre outros, J.C. Mitchell, ed. “The Concept and Use of Social Networks”. In Social
Networks in urban Situations, Manchester, Manchester University Press, 1969; Zacarias Moutoukias «La notion de réseau en histoire sociale: un instrument d’analyse de l’action collective ». In J. L. D. Castellano; Jean Pierre Dedieu, eds. Réseaux, familles et pouvoirs dans le
monde ibérique à la in de l’Ancien Régime, Pars, CNRS Editions, 1998 ; Duncan J. Watts, The
Structure and Dynamics of Networks, Princeton: Princeton University Press, 2006; Linton C.
Freeman The Development of Social Network Analysis: A Study in the Sociology of Science ,
Vancouver: Empirical Press, 2004; Alan Latham ‘Retheorizing the Scale of Globalization: Topologies, Actor-Networks, and Cosmopolitanism’, in Andrew Herod, and Melissa W. Wright,
eds. Geographies of Power, Placing the Scale, Oxford: Blackwell, 2002, 115-144; Peter Carrington, John J. Scott and Stanley Wasserman, eds. Models and Methods in Social Network
Analysis, Cambridge, Cambridge University Press, 2005; David Knoke and Song Yang Social
Network Analysis, London: Sage, 2008; Margrit S. Beerbühl and Jörg Vögele, eds. Spinning
the Commercial Web: International Trade, Merchants, and Commercial Cities, c. 1640-1939,
Frankfurt am Maim: Peter Lang, 2004; Albert-László Barabási Linked: The New Science of
Networks, Cambridge: Perseus, 2002; Gernot Grabher, ‘Trading Routes, Bypasses, and Risky
Intersections: Mapping the Travels of “Networks” between Economic Sociology and Economic
Geography’, Progress in Human Geography, 30 (2006), 163-189; Russell Hill and Robin I.
M. Dunbar “Social Network Size in Humans” Human Nature 14, No. 1 (2002), 53-72; Matthew O. Jackson “A Strategic Model of Social and Economic Networks”, Journal of Economic
Theory, 71 (2003), 44-74.; John Scott Social Network Analysis: A handbook, London: Sage,
2000; .M.E.J. Newman Networks. An introduction. Oxford: Oxford University Press, 2010.
23
numa rede é determinada e deve ser compreendida pelo sistema em
que se integra, novos modelos de análise entendem o sistema como
o resultado das redes complexas que se geram entre os nódulos, os
agentes. Neste sentido, os sistemas não existem como pré-deinição,
mas são deinidos, e redeinidos, pelas articulações entre indivíduos.
É nos termos deste novo modelo, que toma o indivíduo como objeto
primário de estudo, e a partir dele tenta deinir as redes e compreender
os sistemas, que nos situamos do ponto de vista teórico e metodológico.
Aplicada ao domínio dos estudos coloniais, a análise dessas
redes estabelecidas entre indivíduos, desenvolvida numa escala intercontiental e inter-cultural conduz o historiador, não só a novos enfoques,
mas também à adopção de novas metodologias. E pelos resultados
parciais até agora atingidos, esta nova senda de análise poderá conduzir
também a uma percepção mais complexa e, por isso, mais completa,
das dinâmicas históricas em estudo.
Cruzando, em simultâneo o estudo dos mecanismos de cooperação
e os modelos de análise de redes, o projeto DynCoopNet-Pt9, cuja
equipe coordenamos, parte, na verdade, da assunção de algumas ideias
básicas sobre esta matéria, as quais passamos a sistematizar. O projeto
assume, em primeiro lugar, que a economia mundial tornou-se, na época
moderna, assumida como 1ª idade da globalização, um sistema dinâmico,
aberto, complexo, não linear. Por isso, os mecanismos tradicionais que
regulavam as relações econômicas, não eram já adequados à nova ordem
econômica. Assume, em 2º lugar, que tende a delinear-se um processo
de articulações globais, nomeadamente a nível econômico, mas não
um sistema global, e que variações e especiicidades entre os subsistemas faziam parte do sistema como um todo. Assume, em 3º lugar,
que neste processo dinâmico, mesmo pequenos lugares, aparentemente
marginais, sofreram, direta ou indiretamente, mais profundamente ou
de forma mais diluída, implicações e impactos desse processo, através
de redes de articulação complexas10.
9
Para mais informações vd. http://dyncoopnet-pt.org/
Cf. proposta do DynCoopNet submetida ao programa TECT - EUROCORES (European
Science Foundation)
10
24
Daqui decorrem alguns pressupostos em termos de dinâmicas de
redes. Primeiro, o de que a cooperação terá ligado de forma continuada
diversas redes, institucionalizadas ou não; segundo, o de que a cooperação
em redes auto-organizadas era caracterizada pela difusão de autoridade e
por esquemas normativos diversos das esferas de poder oiciais; terceiro,
o de que essas redes de cooperação informal funcionaram como a fonte
de inovação necessária para responder de forma lexível às rupturas dos
tradicionais mecanismos de transferência de bens, informação e capital11.
Partindo destes pressupostos, pensamos que é possível provar,
no caso português, que os desempenhos dos indivíduos e dessas
redes é tão ou mais importante que aqueles liderados pela coroa. Esta
comunicação sustenta, precisamente, que a emergência, a construção e
a manutenção dos chamados “impérios” coloniais, de base marítima,
deve ser explicada pela conjugação entre as iniciativas da coroa e a ativa
participação de agentes individuais, em particular aqueles localizados
em comunidades marítimas.
Para discutir as evidências empíricas que sustentam esta hipótese,
centrar-nos-emos, de forma tópica e exempliicativa, em apenas dois dos
vários domínios de análise possíveis. Em concreto, poder-se-á discutir
o papel do Estado e dos indivíduos na manutenção da logística naval
da expansão portuguesa; o papel de redes informais e auto-organizadas
na construção de um sistema econômico intercontinental12.
É consabido que a expansão ultramarina dependia de náuticos,
embarcações, força militar e capital. Todavia, nos séculos XV e XVI,
como se sabe, a coroa portuguesa não tinha uma armada de guerra ou
uma frota mercante que respondesse às necessidades ultramarinas,
nem possuía um exército ou uma marinha regulares; nem possuía
estaleiros que respondessem satisfatoriamente às necessidades de
construção naval. A Ribeira das Naus, estaleiro régio, criado em Lisboa
11
Idem.
Para maiores desenvolvimentos sobre estas matérias vd. POLÓNIA, Amélia Indivíduos e
redes auto-organizadas na construção do império ultramarino português in Livro de Homenagem a Joaquim Romero Magalhães [no prelo] e The power of the commoners. Crown and
individuals in the Portuguese Overseas Expansion [em inalização].
12
25
por D. Manuel, nunca foi suiciente nem para prover às especíicas
necessidades da carreira da Índia. Estudos monográicos centrados em
vários portos portugueses provam que esses meios eram garantidos
por indivíduos que respondiam às necessidades logísticas da Coroa
através de auto-iniciativas: a necessidade de homens do mar era suprida
através de migrações espontâneas do hinterland rural para o litoral; as
necessidades de Lisboa em tripulações eram supridas por uma ativa
mobilidade de cada porto de mar para a capital; a construção naval era
garantida pela mesma mobilidade de técnicos com destino a Lisboa e pela
multiplicação de parcerias de associação de capital que dinamizavam os
vários estaleiros do reino; os fretamentos eram garantidos através de
proprietários navais, mercadores, mas também, se não principalmente,
mestres, pilotos e mareantes, que se juntavam, em número variável,
com pequenas somas de capital para construir embarcações, nas quais
viriam depois a desempenhar também funções técnicas; conhecimentos
e saber técnico eram transmitidos por linha familiar, embarcando os
ilhos com seus pais desde muito cedo, em idades inferiores aos 10 anos,
fazendo-se a aprendizagem da arte de marear pelos neóitos através de
processos idênticos aos dos oiciais mecânicos e através de uma relação
direta entre mestre e discípulo13.
A coroa portuguesa tinha uma clara percepção desta dependência
do envolvimento voluntário de particulares e tenta incentivar o seu
comprometimento através da concessão de privilégios, que aumentavam
à medida que os seus contributos eram mais necessários. Autorizações
para cortar madeira em coutadas privadas; isenção de impostos na
aquisição de matérias-primas e de equipamentos navais; subsídios
de arqueação; subsídios para equipar as embarcações com artilharia;
privilégios sociais, incluindo a nobilitação para os indivíduos que
construíssem, são algumas das medidas tomadas pela coroa portuguesa
em ordem a promover a construção naval e a adequar a frota às
necessidades das navegações, comércio e guerra naval14.
13
POLÓNIA, Amélia A Expansão Ultramarina numa perspectiva local, vol. I, pp. 330-342.
Cf., entre outra regulamentação avulsa sob forma de alvarás e decretos, a regulamentação
contida In: COSTA, Leonor Freire, ed. “Os Regimentos sobre a matrícula dos Oiciais da
14
26
Conceder privilégios iscais e sociais aos homens do mar é outra
das iniciativas tomadas pelo poder central em circunstâncias em que a
coroa não tinha tripulações suicientes para sustentar viagens regulares
para a Índia ou para alimentar frotas de defesa adequadas para responder
aos ataques de corsários franceses, ingleses ou holandeses15.
Para além disto, mesmo quando a coroa pretendia forçar a
resposta às suas necessidades, seja em termos de homens, embarcações
ou capital, mecanismos evasivos eram accionados por parte dos súditos,
que inviabilizavam o sucesso dos objetivos pretendidos, mais ainda em
situações de crise. Podemos ilustrar este fato com um exemplo: em
1557, deliberações régias tornavam obrigatória a presença de artilharia
a bordo; todavia, a própria legislação dá conta de que os mestres e
pilotos saíam de Lisboa com artilharia, como eram obrigados, mas
desembarcavam-na em Cascais, algumas milhas adiante, para evitar o
excesso de peso, os inconvenientes da artilharia a bordo e a diminuição
da capacidade de carga16.
A multiplicidade de recrutamentos forçados de homens do mar,
aplicados a toda a costa portuguesa, em particular na segunda metade
do século XVI, e o crescimento drástico das penalizações impostas
aos que evadissem o recrutamento ou desertassem posteriormente,
que incluíam a prisão dos seus familiares, são também expressivos da
dependência da coroa do comprometimento desses agentes individuais
para atingir objetivos do poder central, para desenvolver políticas
da coroa, ou até para garantir a já tão frágil subsistência do império
marítimo português17.
navegação, da Ribeira e Bombardeiros de 1591 e 1626”. Revista de História Econômica e Social, 25 ( Jan.-Abril 1989), pp. 99-125 e PINTO, J.A. Ferreira, ed. “Certas providências régias
respeitantes à guarda da costa do reino e do comércio ultramarino no século de Quinhentos”.
Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto, XXX (1967), pp. 335-360.
15
COSTA, Leonor Freire, ed. Os Regimentos sobre a matrícula dos Oiciais da navegação…; PINTO, J.A. Ferreira, ed. “Certas providências régias respeitantes à guarda da costa do reino e do comércio ultramarino … e POLÓNIA, Amélia Expansão e Descobrimentos…, vol. 1, pp. 416- 422.
16
PINTO, J.A. Ferreira, ed. “Certas providências régias respeitantes à guarda da costa do reino
e do comércio ultramarino …”, p. 337.
17
POLÓNIA, Amélia A Expansão Ultramarina, vol. 1, pp. 416-422.
27
Se simplesmente analisarmos a evolução dos exames de pilotos
entre 1596 e 1648, período para o qual há dados seriais, podemos
constatar o poder e o impacto das decisões individuais. Em tempos
em que o poder central mais precisava deles, os candidatos faltavam,
precisamente para as carreiras marítimas em crise: a Rota do Cabo em
todo o período considerado e mesmo a rota do Brasil para o período
compreendido entre 1630 e 1637, contexto em que se faziam sentir com
maior incidência os ataques holandeses na terra e no mar18.
Existem outros exemplos paradigmáticos, já não de evasão, mas
de boicote, no que se refere à atuação de particulares face a políticas
régias. São exemplos, amplamente documentados, o ativo contrabando
de navios, construídos em Portugal, quer para o Norte e Sul de Espanha,
quer para outros espaços europeus. O contrabando de produtos, ativo
nas costas de África e no Brasil, através do qual súditos portugueses
cooperavam com agentes estrangeiros, visando ganhos econômicos
acrescidos está de igual modo baseado numa lógica individual, airmada
contra a normatividade imposta pela coroa portuguesa. Ao mesmo
tempo, permitia a entrada de agentes estrangeiros em espaços que lhes
estavam vedados por lei e a constituição de redes ilegais, que vêm
muitas vezes mais tarde a ser legalizadas e incorporadas nos circuitos
oiciais: veja-se o comércio com os Ingleses no Brasil e os pressupostos
do clausulado do Tratado de Methuen.
Os comportamentos de espionagem, de venda de cartograia
e de tecnologia; os processos de emigração ilegal para as Índias de
Castela, profusamente documentados no Arquivo Geral das Índias19, em
Sevilha, apontam para os mesmos procedimentos de engano e de boicote
que fragilizavam ou inviabilizavam as estratégias do poder central.
Todos eles encontram-se, por sua vez, sustentados por mecanismos
de cooperação ativa, construídos numa base de auto-organização e de
18
POLÓNIA, Amélia “Mestres e Pilotos das Carreiras Ultramarinas (1596-1648)…”, pp280290.
19
POLÓNIA, Amélia; BARROS, Amândio “Commercial lows and transference patterns between Iberian empires (16th-17th. centuries” In: CRESPO SOLANO, Ana; ALONSO GARCIA,
David, eds. Self-Organising Networks and Trading Cooperation [No prelo].
28
improviso, que se revelam contrários às supremacias do poder e às
rivalidades oiciais.
Existe um outro nível em que estas escolhas e mecanismos de
resistência ou de recusa em colaborar eram ainda mais dramáticos e
perigosos: a guerra. Na verdade, mesmo as campanhas militares e a
defesa naval dependiam de contributos de particulares. Isto ocorre não
só no que se refere a recursos humanos, mas também aos inanceiros.
A frota naval que permitiu a tomada de Ceuta era formada por navios
mercantes, compulsivamente recrutados para o efeito. O ataque de
D. Sebastião a Alcácer Quibir, em 1578 dependeu de contributos
inanceiros da Igreja, da comunidade de cristãos novos e de banqueiros
e mercadores particulares.
No que se refere à defesa marítima, da costa e das rotas
oceânicas, mesmo em contextos de incremento da pirataria e do corso,
e a despeito dos alvarás régios que ordenam a constituição de armadas
de defesa, nomeadamente no reinado de D. João III20, repetidos
testemunhos mostram que as frotas mercantes deveriam prover à sua
própria proteção, com exceção da Carreira da Índia. Mesmo quando a
coroa procura acionar alguns procedimentos de segurança, ela depende
da adesão dos particulares para a sua efetivação. Assim ocorre num
regimento de 1571, o qual obriga à inclusão de artilharia a bordo e à
navegação em conserva”, isto é, a constituição improvisada de armadas,
resultantes do agrupamento de embarcações que saíam de determinado
porto, lideradas por uma delas, considerada a capitaina21. Todos estes
mecanismos, lançados em contexto de crise naval, provam a incapacidade
da coroa para prover à proteção oicial das frotas mercantes. Mesmo
para se protegerem de ataques de corsários, as comunidades marítimas
portuguesas tinham que prover à sua própria defesa, dependendo de
contributos individuais a constituição de uma frota de vigilância da
costa e a implementação de um sistema de informação capaz de alertar
em caso de aproximação de frotas suspeitas e permitir a organização da
20
GODINHO, V. Mito e mercadoria, utopia e prática de navegar. Lisboa: Difel, 1994, pp. 459-476.
PINTO, J.A. Ferreira, ed. “Certas providências régias respeitantes à guarda da costa do reino
e do comércio ultramarino …”.
21
29
fuga ou da defesa22.
No que se refere à defesa efetiva de territórios coloniais,
escusado será lembrar que, quando os holandeses tomaram o Recife e
Olinda, a coroa foi incapaz de armar uma frota de defesa e de constituir
um exército, e teve que recorrer a empréstimos dos municípios que
todavia não foram suicientes nem atempados. O envio de uma força
naval e terrestre para resgatar a capitania de Pernambuco e o Recife
e Olinda, dependia em grande medida de um imposto extraordinário
lançado aos municípios portugueses, especialmente os do litoral. A
cobrança desse imposto viria a despoletar movimentos de rebelião
local, em reação a essa sistemática transferência de responsabilidades
do poder central para as autarquias, mais ainda em contexto de
desagrado pelo governo de representantes de um monarca visto como
estrangeiro23. No im, como é sabido, não foi um exército português
que expulsou os holandeses do Brasil, mas um exército colonial,
também ele baseado na cooperação, entre colonos portugueses, índios
e negros, e também ele profundamente informal e auto-organizado24.
Se estas premissas são aceitáveis no que respeita à logística e
à defesa naval e colonial, cremos que as poderemos levar ainda mais
longe no que se refere aos desempenhos econômicos relacionados
com o comércio ultramarino, apesar de uma boa parte da historiograia
europeia descrever a expansão comercial portuguesa como monopolista
e controlada pela coroa.
É também certo que a políticas de comércio monopolista,
nomeadamente quando aplicadas ao comércio das especiarias, do ouro,
do tabaco ou dos diamantes deram prevalência a Lisboa, como capital
do reino e do “império” ultramarino. Este fato acabou por determinar
a sua posição central nos circuitos de comércio monopolista, em
POLÓNIA, Amélia A Expansão Ultramarina …, vol. 1, pp. 174-186.
OLIVEIRA, Antônio de Movimentos sociais e poder em Portugal no século XVII. Coimbra:
Instituto de História Econômica e Social/ Faculdade de Letras, 2002.
24
POLÓNIA, Amélia A ação da coroa e dos indivíduos na constituição do território e da identidade do Brasil colonial. As batalhas dos Guararapes como estudo de caso in XXXVII Congresso
Internacional de História Militar (Rio de Janeiro, 27 agosto - 03 setembro 2011). Actas no prelo.
22
23
30
detrimento de outros portos. A proeminência de Lisboa é inquestionável,
quer através da concentração de infra-estruturas políticas e inanceiras,
quer através dos rendimentos alfandegários, quer através das elevadas
taxas de concentração populacional, sem paralelo a nível do reino. Mas
vários portos portugueses do Noroeste, como Porto e Viana do Castelo,
não deixaram de assumir signiicativo protagonismo, particularmente
no que se refere ao comércio do açúcar brasileiro. O comércio brasileiro
seguia rotas que não se encontravam controladas administrativamente,
o que permitia a cada porto um ativo envolvimento em rotas altamente
lucrativas. A diferença ente estes portos e Lisboa, como sede da coroa,
é um exemplo da tese aqui defendida. O Porto, Viana do Castelo ou Vila
do Conde, portos do Noroeste, não ascenderam a uma posição relevante
no comércio das especiarias, em grande medida porque foram excluídos,
através de uma política comercial monopolista que dava prevalência
a Lisboa, mas mantiveram uma posição de grande protagonismo no
comércio insular, africano e brasileiro, circuitos em que não existia um
controle direto do Estado.
No que especiicamente se refere ao Brasil, para além de estar
comprovado que as frotas de transporte se encontravam em grande
medida nas mãos de privados25, nunca é demais lembrar que a sua inicial
exploração econômica se deveu a iniciativas de particulares, com a
constituição de feitorias de gestão privada, em que o nome de Fernão de
Noronha e a existência de uma companhia comercial, supostamente de
cristãos novos, dão apenas as provas mais emblemáticas. Os luxos de
emigração e armações comerciais para o Brasil, incluindo de comércio
de escravos, de que milhares de registos de pequenos e médios portos
portugueses dão prova, nos séculos XVI e XVII, tornam inequívoca a
importância da iniciativa privada e da vitalidade do intervencionismo
privado, quantas vezes ilegal e sempre auto-organizado, nas estratégias
de povoamento e colonização do Brasil.
25
COSTA, Maria Leonor Freire O transporte no Atlântico e a Companhia Geral do Comércio
do Brasil: 1580-1663. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses, 2002, 2 v.
31
Na verdade, é reconhecido que a navegação, emigração e exploração
econômica do Brasil não foram nunca seriamente condicionadas por uma
política colonial, centralizada, antes dependiam da atuação de indivíduos
e de redes, que se revelaram agentes essenciais para a estruturação do
povoamento e para a exploração econômica do território brasileiro26.
Isso explica ainda a inluência marcadamente regional de determinados
espaços: o Minho português tende a projetar-se particularmente no
Nordeste brasileiro. Estas tendências não resultam, nos séculos XVI a
XVIII, de qualquer planiicação concertada pela coroa ou pelo Governo
Geral, antes decorrem de estratégias de emigração deinidas em rede,
e através de procedimentos auto-organizados, de que as “cartas de
chamada”27 e as redes de angariadores de emigrantes28 são instrumento em
séculos subsequentes. O mesmo se diga de toda a estruturação municipal
no Brasil, construção de grupos em consolidação e espaço institucional de
vertebrização de oligarquias que se deinem de acordo com estratégias de
auto-airmação e de consolidação de critérios de prestígio e de ascensão
social que não repercutem necessariamente os reinóis. O hibridismo,
rácico e social das elites municipais brasileiras é disso prova29.
26
Isso ocorre a despeito dos multiplicados esforços do poder central para fortalecer, face a
Espanha e a comunidades ilegais francesas, o domínio territorial brasileiro, nomeadamente
quando o modelo das capitanias donatárias tende a fracassar. Vd. MAGALHÃES, Joaquim
Romero “O reconhecimento do Brasil”, In: Francisco Bethencourt e Kirti Chauduri, História da
Expansão Portuguesa. Lisboa: Círculo de Leitores, 1998, I, 192-221 e “A construção do espaço
brasileiro”, In: Francisco Bethencourt e Kirti Chauduri, História da Expansão Portuguesa.
Lisboa: Círculo de Leitores, 1998, II, 28-64.
27
CROCI, Federico O chamado das cartas: migrações,cultura e identidade nas cartas de
chamada dos italianos no Brasil. “Locus: revista de história”, Juiz de Fora, v. 14, n. 2 (2008),
pp. 13-39; SILVA, Brasilina da Assunção Oliveira Almeida Pereira da Cartas de chamada: a
dimensão familiar da emigração : Sernancelhe no início do séc. XX, Porto, 2005 [Dissertação
de mestrado policopiada].
28
ALVES, Jorge Fernandes Os Brasileiros : emigracão e retorno no Porto oitocentista, Porto, Gráicos Reunidos, 1994
29
Vd., entre outros, MAGALHÃES, Joaquim Romero “Relexões sobre a estrutura municipal portuguesa e a sociedade colonial brasileira”, In: Revista de História Econômica e Social.
Lisboa, Sá da Costa, n.º 16, 1985; “Algumas notas sobre o poder municipal no império português durante o século XVI”, In: Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, CES, n.º 25-26
(1988); “Os nobres da governança das terras”, in Nuno G. F. Monteiro, Pedro Cardim e Mafalda Soares da Cunha, eds., Optima Pars, Elites Ibero-Americanas do Antigo Regime, Lisboa,
32
Estudos locais, de enfoque micro-analítico, quando
multiplicados, como ocorre com os casos do Porto, de Vila do Conde
e de Viana do Castelo30, traçam um quadro que constitui o reverso do
que se sabe sobre a atuação da coroa na consolidação da experiência
colonial brasileira. Os próprios índices de miscigenação e de
cruzamentos culturais, genéticos, linguísticos e religiosos que marcam
indelevelmente e sociedade colonial brasileira e se projetam até à
contemporaneidade, deverão ser lidos e analisados, segundo cremos, à
luz deste enfoque, que apontamos como renovador de direções a tomar
pelos estudos coloniais.
No que toca ao comércio de escravos, de que aqui não trataremos
pela extensão das problemáticas envolvidas, também este se encontrava
dominado por redes auto-organizadas, a atuar no terreno, ainda que
dependentes da passagem de cédulas reais que deiniam os contingentes
legais a ser transportados. Este é, sem dúvida o mais explícito exemplo
da constituição de redes, comerciais, inanceiras e administrativas,
se não políticas, geradas estas através da venda de inluências e da
constituição de lobbies. A existência de redes de comércio ilegal, através
do Atlântico e mesmo através das fronteiras internas do Brasil com as
Índias de Castela parece ser também inquestionável. Como explicar de
outro modo a continuidade de abastecimento às colônias espanholas
durante o período das guerras da Restauração? Nestes circuitos
numerosos agentes privados, detentores de pequenas e médias parcelas
de capital, participavam, por associação em parcerias informais, como
documentam os arquivos notariais de múltiplas localidades marítimas31.
Em conclusão, o que aqui defendemos é que o papel do poder
central, na Época Moderna, na construção de empórios comerciais e na
construção de modelos de ocupação colonial de espaços ultramarinos
é inegável. Todavia, os sistemas complexos coordenados pelo poder
Instituto de Ciências Sociais, 2005; “Respeito e lealdade: poder real e municípios nas colônias
hispânicas durante os séculos XVI e XVII”, in História do Municipalismo – Poder local e
poder central no mundo ibérico, Funchal: CEHA, 2006.
30
Cf. bibliograia citada supra, nota 5.
31
POLÓNIA, Amélia A Expansão Ultramarina…, vol. 2, pp. 171-181 e 194-208.
33
central dependiam, em primeiro lugar, da cooperação dos indivíduos e
não respondiam, em segundo lugar, a todas as exigências emergentes de
uma nova ordem internacional e de um novo sistema, que se airmava
como global. A atuação de agentes individuais, enquadrados em redes
informais e auto-organizadas é, pois, de fundamental compreensão para
a análise dos mecanismos de construção de interações globais, deinidas
a uma escala intercontinental, os quais frequentemente transcendiam
fronteiras políticas, religiosas ou econômicas.
Foi este repto que inspirou a submissão do painel Articulações
Portugal / Brasil. Redes informais na construção do sistema Atlântico
(séculos XVI - XVIII). O que se pretendeu foi promover uma discussão
alargada dos pressupostos teóricos assinalados, envolvendo
investigadores e acadêmicos portugueses e brasileiros, a partir de estudos
de caso das duas margens do Atlântico. (Vd. Anexo 1- Programação das
sessões do painel).
2. Interações Portugal / Brasil nos séculos xvI /xvII – Algumas
relexões sobre o papel da Coroa e de redes comerciais
Nas páginas seguintes, perceberemos como evoluiu o interesse
português sobre o Brasil. Conheceremos alguns dos protagonistas desse
processo, os empreendimentos em que se envolveram, as formas de
organização que promoveram e a projeção que alcançaram.
Entre o achamento do Brasil e meados do século XVI, Portugal
foi posto à prova na resolução dos grandes problemas que se lhe
colocaram sobre a ocupação e exploração do território que a expedição
de Cabral acrescentara aos domínios da Coroa. Vista do mar, a imensa
faixa costeira que se apresentava a quem demandava aquelas partes
prometia mais trabalhos que riquezas. Havia expectativas, é certo.
Havia a esperança de se encontrarem recursos mineiros abundantes,
como aqueles que os rivais castelhanos tinham descoberto, ali bem
perto, à distância de um curto percurso por rio. Mas o otimismo era
moderado, já que os primeiros contactos, detalhadamente descritos por
Caminha na carta que o celebrizou, não faziam crer que seria fácil dar
34
com eles no espaço que a Portugal coubera em sorte.
A urgência desses recursos, necessários para inanciar o negócio
oriental, explica as primeiras iniciativas exploratórias da região
que, pelos fracos resultados obtidos, se foram tornando iniciativas
de capitães aventureiros. Iniciativas dispendiosas, e escassamente
compensadas pelos carregamentos de pau-brasil que, no entanto, se
tornava, paulatinamente, a alternativa ao ouro e à prata que teimavam
em não aparecer32.
Esta falta de resultados espetaculares explica algum do
desinteresse, algum do abandono que a Coroa manifestou pelo Brasil.
Desinteresse que, em boa verdade, se explica pela falta de meios com
que ela se debatia; meios que lhe permitissem apostar seriamente na
organização desse imenso espaço. Assim, as primeiras décadas da história
do Brasil português decorrem sob o signo de intermitentes expedições
de reconhecimento da costa, do estabelecimento de algumas relações
com os nativos, indispensáveis, por exemplo, para o funcionamento
do comércio do pau-brasil. Tudo muito frágil, como se pode perceber,
e como se pôde constatar pelos desenvolvimentos seguintes. Que são
marcados pela intervenção de outros rivais europeus, de tal forma que
é o próprio domínio português que, a certa altura, ica mesmo posto em
causa.
Como é sabido, foram os franceses, de vários portos, quem
mais se interessou pelo Brasil dos primeiros decênios de Quinhentos,
realizando viagens, entabulando relações com os indígenas fornecedores
de Brasil e ensaiando formas de assentamento que em alguns momentos
pareceram consistentes e prometiam ser viáveis. Muito rapidamente,
uma vez que já muito se escreveu sobre elas, citem-se as de Binot
Paulmier de Gonneville, armador habitualmente presente em Lisboa
(onde terá conseguido obter os conhecimentos necessários para ser bem
sucedido), que zarpou de Harleur com o Espoir em 24 de Junho de
1503 e chegou ao sul do Brasil, onde signiicativamente ergueu padrão,
32
Ver a problemática desta primeira aproximação lusa ao Brasil em BARROS, Amândio Minas
e açúcares. Notas sobre a evolução da economia brasileira (1554-1573), In: Livro de Homenagem a Joaquim Romero Magalhães [no prelo].
35
em Janeiro do ano seguinte; a de Jean Seguin, no Martine, em 1518,
a de Jean Denhys (c. de 1519), a de Jean Parmentier (c. de 1520), e a
de Guillebert Scot, de Dieppe, no Petit Lyon, em 1537. No entanto, a
maior ameaça resultou da iniciativa huguenote comandada por Nicolas
Durand de Villegagnon, também de Dieppe, que deu origem ao projeto
da França Antárctica que decorreu entre 1555 e 1567 e, entre outras
coisas, suscitou um interessante movimento de comércio entre a
América do Sul e vários portos do Norte da Europa33.
E é então que os portugueses despertam para o Brasil, procurando
resolver os dilemas, como estes, que se lhes colocavam quanto à posse,
povoamento e valorização daquela terra que, durante algum tempo,
julgaram ser uma ilha. Primeiro, as armadas de patrulhamento da
costa com as missões de Cristóvão Jaques desde a Bahia, Itamaracá
e Pernambuco – fundou feitorias – até ao estuário do Prata; depois,
as ações dos donatários e a expedição de Martim Afonso de Sousa;
por im, o governo-geral quando se já se aproximava a metade da
centúria34. Soluções contextualizadas, em geral complementares, em
maior ou menor grau começaram a dar consistência ao território. A
ensaiar formas de povoamento e de exploração das potencialidades da
terra, sem que isso queira dizer que a prioridade tivesse deixado de ser a
busca das minas. As armadas da década de cinquenta – de Luís de Melo
e de Duarte da Costa, no Maranhão e em S. Vicente, respectivamente,
realizadas sob o signo da rivalidade com os castelhanos acerca da posse
de minas – aí estão para o comprovar. De resto, esta obsessão portuguesa
pela busca de minas não iria cessar. Quando muito, em certas ocasiões e
em certas regiões seria colocada em suspenso.
33
Sobre este tema, ver GRUNBERG, Bernard “Le Brésil et le commerce interlope français au
début du XVIe siècle», in Le Brésil, l’Europe et les équilibres internationaux, XVIe-XXe siècles,
dir. de Kátia de Queirós Mattoso, Idelette Muzart, Denis Roland. Paris: Presses de l’Université
de Paris-Sorbonne, 1999, p. 47-60, e MARIZ, Vasco; PROVENÇAL, Lucien – Villegagnon e a
França Antártica: uma reavaliação. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
34
Sobre estes temas ver CARVALHO, Filipe Nunes de “Do Descobrimento à União Ibérica”,
in Nova História da Expansão Portuguesa, dir. de Joel Serrão e A.H. de Oliveira Marques, O
império luso-brasileiro, 1500-1620, coord. de Harold Johnson e Maria Beatriz Nizza da Silva.
Lisboa: Editorial Estampa, 1992, p. 96 e seguintes.
36
Até que, a partir da segunda metade da década de sessenta, o
Brasil surge em força em tudo o que diz respeito ao comércio português.
Para sermos mais rigorosos, em tudo quanto diz respeito ao negócio de
alguns portos e de alguns grupos envolvidos no comércio português.
Que se virão a salientar no panorama geral do comércio português e
internacional. Trata-se de um movimento que só se consegue explicar
cabalmente desde os portos e a partir das suas casas comerciais e da
documentação dos seus mercadores. Com eles, com a sua estratégia, o
Brasil passará a fazer parte ativa e a protagonizar muitas das dinâmicas
do negócio atlântico. Com o açúcar a surgir como produto dominante e
a ser base de empreendimentos de sucesso, juntamente com o algodão
e o tradicional pau vermelho. De tal forma que, ainda que possamos
ler nas suas palavras algum desencanto, no início do século XVII o 9º
governador-geral Diogo de Meneses escrevia ao rei e dizendo-lhe que
“as verdadeiras minas do Brasil são as minas de açúcar e o pau-brasil”35.
Não cremos que o investimento no açúcar, elemento mais
uniicador até então introduzido no território, tenha sido pensado
e incentivado pela Coroa36. Havia, como já vimos, um passado de
iniciativa privada muito forte nas diferentes intervenções sobre esse
espaço. O investimento na economia açucareira seguiu esta mesma
linha; foi obra dos homens de negócios dos portos que perceberam
que o território constituía o “habitat ideal”37 para a expansão da
cana, e que deram continuidade e amplitude a um processo (com o
qual estavam familiarizados) que há algum tempo se mostrava bem
sucedido nas Ilhas Atlânticas, em especial na Madeira e em S. Tomé.
Os portos nortenhos constituem observatórios privilegiados deste
fenômeno comercial, importante para a construção do mundo moderno.
35
JOHNSON, Harold “Desenvolvimento e expansão da economia brasileira”, In: Nova
História da Expansão Portuguesa, citado, p. 224.
36
Stuart Schwartz tem a mesma opinião. Ver, deste autor, Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
37
MELLO, José Antônio Gonsalves de “Brasil”, In: Dicionário de História de Portugal, dir. de
Joel Serrão, vol. I. Porto: Livraria Figueirinhas, s/d, p. 374.
37
Principalmente porque nos legaram uma interessante documentação
– notarial, de difícil tratamento e frequentemente lacunar, mas que
compensa. Complementada com outra de tipo processos judiciais,
conservada em arquivos estrangeiros, esta documentação introduz-nos
no complexo universo do negócio europeu e deixa-nos acompanhar as
formas de intervenção promovidas por estes homens, e a projeção que
eles alcançaram no seu tempo.
Na primeira parte deste estudo, familiarizamo-nos com os
princípios teóricos que orientaram o funcionamento geral de redes
mercantis e a natureza dos seus empreendimentos. Nesta segunda parte,
observaremos casos concretos, com nomes e negócios, de realizações
mercantis entre o Norte de Portugal e o Brasil no início da Época
Moderna.
Começamos por assinalar que se trata da visão da questão por
outros lugares que não os tradicionalmente citados pela historiograia.
Sem esquecer o protagonismo da praça de Lisboa (que acabará por se
manifestar também no contexto do comércio com o Brasil), a verdade
é que uma importante percentagem dos negócios atlânticos foi gerida
pelo Porto, Viana, Vila do Conde, Aveiro, e outros centros a eles ligados
que, no decurso do século XVI, se articulavam também com os recursos
– logísticos e políticos – proporcionados pela praça lisboeta.
Quando caracteriza Jorge Tomás, um dos acusadores à Inquisição
de Bento Teixeira, poeta vendedor de pau-brasil e de açúcar, natural do
Porto, Elvira Mea descreve-o como “um dos muitos cristãos-novos de
origem portuense [...] que se inserem num grupo muito mais vasto de
«gente de nação» nortenha do Porto, Vila do Conde, Barcelos, Ponte de
Lima, Viana que ainda na primeira metade do século XVI ruma ao Brasil
constituindo-se no primeiro núcleo predominante de colonizadores que
alia o comércio do pau-brasil com as tentativas iniciais da lavoura,
nomeadamente da cana-de-açúcar”38. Eis uma segunda característica
que devemos sublinhar: é uma nova geração de mercadores, muitos
38
MEA, Elvira Os cristãos-novos, a Inquisição e o Brasil – século XVI, In: “Revista da Faculdade de Letras”, II Série, vol. IV. Porto, 1987, p. 163.
38
deles cristãos-novos, assentada em Portugal no ocaso do século XV,
que fez destes portos e destes centros o ponto de partida de ambiciosos
projetos. Deste modo, este estudo, para além de revelar nomes de
mercadores que se movimentaram entre Portugal e o Brasil, também
contribui para um melhor conhecimento das cronologias das relações
entre ambos os espaços.
Por outro lado, importa igualmente notar que no que diz
respeito às companhias de comércio que iremos conhecer, trata-se de
organizações bem estruturadas, sobretudo tendo em conta a realidade da
época, sendo de destacar o protagonismo que, graças a essa organização
e ao sucesso de negócios realizados, estas irmas alcançaram.
Atentemos num caso concreto de dinâmicas de negócio de
uma destas companhias, a de Tristão Rodrigues Vila Real. Mais um
cristão-novo, do Porto (com origens familiares no Minho), envolvido
em inúmeros negócios. Vila Real é protagonista de uma história trágica.
Filho de Francisco Rodrigues Vila Real e de Catarina Rodrigues, era
casado com Leonor Rodrigues. Mercador de panos lamengos, de
escravos africanos, de açúcares e algodões e de muitas outras fazendas
de maior ou menor valor, um dos primeiros a combinar vários interesses
no Atlântico – nas Ilhas, nas Índias de Castela e no Brasil – e na Europa,
da Península Ibérica à Flandres, foi acusado de judaísmo e detido nos
cárceres da Inquisição de Coimbra em 30 de Maio de 1573; interrogado
sucessivamente, optou por se suicidar, na cela, em 30 de Agosto de
1575. Apesar disso, o auto-de-fé a que foi condenado realizou-se em 21
de Outubro de 1576 e os seus ossos foram relaxados à justiça secular39.
Em 18 de Agosto de 1569, Tristão Rodrigues passou procuração
a vários membros da sua companhia para o Brasil. Segundo ele,
“hum João da Rocha Vicente morador na vylla de Viana hora
estante no Brasyll em Porto Seguro, hera hobrigado a pagar e
dar a ele Tristam Rodriguez por hũa pubrica escriptura que
este presente ano lhe fezera em ha cidade de Lisboa dozentas e
sesenta harrobas d’açuquere has quaes lhe avia de dar na Baya de
39
Torre do Tombo – Inquisição de Coimbra. Processo de Tristão Rodrigues Vila Real, 025/00806.
39
Todollos Santos per todo ho mes de Fevereiro primeiro seguinte
do ano vindouro de mill e quynhentos e setenta anos, e as havia
de receber por elle […] Gonçalo Rodriguez ilho delle Tristam
Rodriguez ou quem seu poder dele seu pay pera elo tevese como
se poderia ver pela dita escriptura que estava em poder do dito
Gonçalo Rodriguez seu ilho. E dise elle Tristam Rodriguez que
por ho dito seu ilho ter outras cousas de arrequadar que elle
Tristam Rodriguez […] fazia procuradores ha Tristam Ribeiro
mercador naturall e morador nesta cidade [do Porto] e ha Manuell
Carvalho sobrinho delle costetointe morador em Ponte de Lima
hora estantes no dito Brasyll na Baya […] para que em nome
delle costetointe cobrem, recebam e harrequadem do dito João
da Rocha Vicente as ditas dozentas e sesenta arrobas d’açuqueres
na dita Baya […]. E que cobrando elles seus procuradores has
ditas dozenta e sesenta harrobas d’açuquere hou quallquer deles
do dito Joham da Rocha Vicente faram dellas […] comforme a
hordem e comisão que elle costetoynte lhes mandar.
E dise mais elle costetointe que dava poder ao dito Manuell
Carvalho seu sobrinho pera cobrar e receber um assinado e
dinheiro que dele tem o genro de Mestre Afonso sollorgyão
morador na dita Baya ho qual mandou de Porto Seguro Dinis
Eanes mercador morador nesta cidade estante no dito Porto
Seguro que era de resto de hũa conta que com elle costetointe
tinha o dito Dinis Eanes ho qual lhe quobrara o dito genro de
Mestre Afonso e ho dito asinado tinha em seu poder ho dito
Gonçalo Rodriguez ilho dele costetoynte […]. E recebendo ho
sobredito do dito genro de Mestre Afonso todo ho que receber lhe
de as pagas e quitações que comprir”40.
Este tipo de informação é muito vulgar na cidade do Porto e
nos portos do Norte de Portugal, provando o interesse que o Atlântico
e, mais concretamente, o Brasil, havia alcançado no universo dos
negócios portuários nortenhos. E reforçando aquilo que atrás se
escreveu a propósito da entrada em cena deste espaço nos meios
mercantis nacionais. E este interesse cresce à medida que a centúria
40
Arquivo Distrital do Porto (ADP) – Po 1º, 3ª série, liv. 31, ls. 72v-74v.
40
decorre chegando-se, no caso do Porto, ao seguinte escalonamento das
viagens marítimas efetuadas por conta dos seus mercadores.
Figura 1. Rotas de comércio internacional do Porto na
segunda metade do século XVI (viagens)41
Retornando ao documento citado, note-se a cronologia: 1569.
Mas o discurso mostra-nos que esta atividade começara antes. Dando
tempo a que maturassem os assentamentos, que se montassem os
primeiros engenhos, que se começassem a colher os primeiros frutos,
expressivos, capazes de justiicar a deslocação de feitores, de agentes
de negócios e de navios.
Os nomes citados remetem para a natureza destas irmas,
destas redes. Tristão Rodrigues entrega os seus contratos a quem lhe
41
BARROS, Amândio. Porto: a construção de um espaço marítimo nos alvores dos tempos
modernos, vol. I, p. 649.
41
dá garantias de coniança, conceito este que, de resto, constitui um
pilar do funcionamento dos negócios nesta (e em todas as) época(s)
e favorece a construção de reputações. Neste caso, e apontando um
modelo invariavelmente seguido pelas redes de comércio cristãs-novas,
os elementos deslocados para o centro da ação (e haveria ainda que
contar com outros representantes instalados em Antuérpia, destino
inal da maior parte do açúcar que transacionavam) são familiares
chegados, ilhos e sobrinhos. Participantes diretos do negócio, herdeiros
do negócio, acompanhar a sua atuação é perceber a evolução e a
organização da geograia do comércio a que se dedicam estas irmas, e
é perceber também a concretização de uma espécie de cursus honorum
que leva estes agentes a familiarizar-se com o trato deslocandose pelos vários lugares onde a companhia actua, até chegar o tempo
de ocuparem os lugares de topo da organização. Se o parentesco é
importante, a conissão religiosa não o é menos. A partilha de crenças
e de práticas religiosas ajudam a reforçar laços de coniança. As redes
que conhecemos combinam o elemento familiar com o confessional,
numa distribuição de tarefas e numa dispersão geográicas que alargam
o espectro de atuação das mesmas. Como se pode veriicar no esquema
referente à rede de Simão Vaz, que publicamos em apêndice (vd.
Apêndice 1). Note-se que nos referimos ao núcleo da rede, da irma, da
companhia, já que nas suas relações com os agentes no terreno, com os
parceiros comerciais nos diferentes espaços em que intervêm (seja na
Europa, no mundo colonial atlântico, africano e no universo oriental) e
nas conexões políticas e administrativas que procuram, mostram uma
interessante agilidade que lhes permite ultrapassar essa circunstância
(que poderia constituir uma limitação) e relacionar-se, familiarizar-se,
com elementos de outros credos e conissões42.
Paralelamente, surgem os contratos de feitoria. Enquadram outra
modalidade de intervenção das redes ou das grandes irmas comerciais,
42
Numa expressão feliz, Fracesca Trivellato refere-se a esta dinâmica como a familiarity of
strangers. Ver obra citada na nota 7.
42
complementando a ação dos membros integrados que ali estão. Os feitores
reletem o interesse crescente da comunidade mercantil dos portos no
Brasil, e atuam nos domínios da venda de mercadorias interessantes
aos engenhos e aos colonos. São celebrados para estarem em vigor por
alguns anos (pelo menos cinco, em regra, no caso do Brasil). O feitor
encarregar-se-á de vender as mercadorias que leva consigo e de estar
preparado para receber outras que lhe enviem da metrópole ao longo do
tempo que estiver no Brasil. Poderá ser feitor de vários mercadores em
simultâneo (deve celebrar contrato com cada um dos encomendeiros)
e receberá pelo seu trabalho oito por cento dos lucros. Um exemplo
desta prática pode ser detectado no contrato de feitoria celebrado entre
Henrique Gomes (pai do já citado Simão Vaz) e Henrique Homem com
Antônio Fernandes, mercador do Porto de partida para o Brasil, em 10
de Abril de 1571, para onde levará, para vender,
“hum quoarto d’enxadas em que vam dozentas e vynte; e mais
cem barrumas; e dezanove mylheyros e meo de amzoes; e dous
barris de barbante; e seys tachos de cobre; e vinte e quatro
esteyras asy gramdes como piquenas; e hua duzia de chapeos
forrados de tafeta (falar dos problemas que estes artigos, de
seda, davam); e duas sarjas commuas; e mais hũa apizoada; e
trynta e tres covados de veos; e seys cobertores de Castella; e
hũa duzia de camdyeiros; e hũa duzia de cadeados; e dezaseys
grosos d’ataquas; e hũa duzia de serras; e setenta e duas varas de
burell; e duas peças de baeta; e hua pesa de Grysea (“Frisea”?);
e duas meas peças de pano d’Allemtejo; e meo Lomdres preto;
e omze barretes pretos; e vinte e sete camysas; e quatrocentas
e cinquoenta e oito varas e mea de pano de linho de toda sorte;
e cinquo peças de boquaxis; e duas duzias e mea de cordavão
çurrado; e duas peças de Çaragosa; e vinte e quatro colheres de
prata; e treze garfos de prata; quatro copos de pee allto de prata; e
hũa taça dourada de pee; e vinte pares de servilhas; e duas caixas
43
novas”43.
Tal como se viu no documento citado referente a Tristão
Rodrigues Vila Real, o produto dominante na carteira de negócios destes
homens é o açúcar. A interferência na organização produtiva do Brasil
é uma das características marcantes da sua intervenção, moldando a
logística das culturas e a sua geograia. Uma geograia que inicialmente
não é bem clara na documentação, que fala de Olinda, de Pernambuco
(ou Fernambuco), de Itamaracá, da Baía de Todos os Santos e da cidade
do Salvador, do Espírito Santo, do Rio de Janeiro, de Ilhéus, em suma,
de lugares onde há canaviais e engenhos (de água ou trapiches), e
onde há agentes a movimentar-se entre portos ainda em processo de
estabelecimento, entre povoações recém-criadas. Mas sobretudo, entre
engenhos que começam a pontuar a geograia da terra e a dar frutos.
Engenhos cuja posse interessa a algumas destas associações comerciais.
Eis o caso de Bento Dias de Santiago, homem do Porto, associado a seu
irmão Miguel Dias, e coniando uma boa parte dos seus negócios a sua
mulher Guiomar Rodrigues. Bento Dias começa por ser um negociante
de pau-brasil que, rapidamente, se transforma em senhor de engenho, de
um dos mais célebres por sinal, o de Camaragibe, suspeito de albergar
sinagoga, cuja propriedade partilhava com Diogo Fernandes44. Eis o
caso de Manuel Pires, outro mercador portuense, que morre em 1577
na posse de dois engenhos em Pernambuco, o de Nossa Senhora dos
Prazeres e o engenho de S. Pantalião, que passarão para a posse de sua
ilha Isabel Rodrigues, a qual passou procuração a seu marido, Manuel
Vaz, para que os pudesse vender, escambar ou arrendar45. Eis, enim, e
para não alongar mais esta lista, o caso de James Lopes, sobrinho de
ADP – Po 1º, 3ª série, liv. 38, l. 140.
Entre muitos outros documentos sobre Bento Dias de Santiago (que um dos autores deste
texto está presentemente a trabalhar), ver ADP – Po 1º, liv. 67, l. 7. Sobre o engenho de Camaragibe, ver RIBEMBOIM, José Alexandre – Senhores de engenho: judeus em Pernambuco
colonial, 1542-1654. Recife: Editora 20-20 Comunicação, 1995, p. 123 e seguintes.
45
ADP – Po 1º, 3ª série, liv. 60, l. 25v. Não é claro se os engenhos passaram para a posse da
ilha por serem de sua terça, já que a mãe dela (viúva de Manuel Pires) Beatriz Rodrigues estava
viva e presente neste ato.
43
44
44
Lopo Nunes Vitória e Garcia Gomes Vitória com eles co-proprietário
de engenhos em Pernambuco, vila de Olinda, para onde segue o
carpinteiro portuense Adão Ferreira para fazer, às sua ordens “carros
e caixas d’açuquere e outras cousas do dito Ofício de carpintarya nos
engenhos d’açuqueres delle dito James Lopez que tem no dito Brasyll
na dicta capitanya ou em outra parte da dicta capitanya omde tever hos
taes emgenhos e obras”, tarefa que cumprirá por dois anos durante os
quais ganhará 50 mil reais46.
Domina-se a produção açucareira, promove-se a deslocação
de mão-de-obra especializada retirando proveito do desenvolvimento
da economia da cana, mas, acima de tudo, promovem-se rotas que
envolvem os principais portos do reino e articula-se a atuação destes47
com a atividade de portos estrangeiros, dinamizando-se frotas, capitais
e empreendimentos de navegação e comércio. A Flandres, claro, porque
se constituiu no maior destino de entrega das mercadorias brasileiras,
mas também a Galícia, e o seu complexo de portos, que estes tratantes
escolhem como o principal ponto de retorno dos seus navios e das urcas
lamengas que têm ao seu serviço, enquanto não se alterou o regime
iscal que incidia sobre o comércio do Brasil.
É também com as redes de comércio internacional que se
impulsiona a circulação de capitais, facilitada pela organização que
cultivaram. Em rede, gerindo informação mercantil, tecendo uma teia
de negócios, de solidariedades, de partilha (interessada) de meios que
dão uma dimensão nunca antes alcançada ao negócio centrado no
Atlântico, mas com prolongamentos cuja dimensão e inluência ainda
estamos longe de conhecer. De Livorno a Sevilha, no Mediterrâneo,
de Lisboa a Antuérpia, do Porto a Medina del Campo, de Viana a
Hamburgo multiplicam-se e entrecruzam-se as rotas, os percursos, as
migrações, as infra-estruturas portuárias e industriais (por exemplo, a
reinação de açúcar na Flandres, França e Itália), a partilha de riscos, os
mercados de dinheiro e de seguros. O mundo dos mercadores ganhava
ADP – Po 1º, liv. 64, l. 181v.
Como se viu pelo documento referente a Tristão Rodrigues Vila Real, a articulação entre
portos nacionais (no caso tratava-se de Viana e do Porto na igura dos seus agentes).
46
47
45
uma dimensão nunca antes alcançada. Uma dimensão verdadeiramente
global.
Anexo 1. Simpósio temático - Articulações Portugal / Brasil. Redes informais
na construção do sistema Atlântico (séculos XVI – XVIII). Coord. Amélia
Polónia/ Amândio Barros
Dia
Autor
04.09.2010 Amélia Polónia
Mônica Ribeiro de
Oliveira
Cândido Eugênio
Domingues de Souza
Ariadne Ketini Costa
Henrique Nelson da
Silva Mestrando
Título
Redes informais de cooperação. Quadro
teórico e contributos epistemológicos
aplicadas ao espaço colonial português na
Época Moderna
Indivíduos e grupos: redes informais e
estratégias sócio-econômicas na segunda
metade do século XVIII em Minas Gerais
Capitaneando embarcações humanas – um
olhar sobre o capitães de vasos negreiros
na Bahia setecentista
A nobreza como négocio: a trajetória
econômica e política de José Gonçalves
da Silva – “ O Barateiro” no Maranhão
(1777-1821)
Trabalhadores de São José do Ribamar do
Recife, século XVIII
Jeaneth Xavier de Araújo Indivíduos e grupos: artistas e artíices no
espaço atlântico português, Minas Gerais
no século XVIII
Divino Marcos de Sena
Lavradores (as) e camaradas nas fontes
censitárias: Distrito de serra Acima – MT,
1809
46
05.09.2010 Marcos Vinicius
Holanda Sousa
Soia Mendes Geraldes
Helio Costa Lima
Renato Pereira Brandão
Danilo Batista Barbosa
Rached
Christian Fausto Moraes
dos Santos Luiz Henrique Ozanan
de Oliveira
06.09.2010 Leonardo Cândido
Rolim
Ana Lúcia do
Nascimento Oliveira e
Josué Lopes dos Santos
Julianne S ocorro do
Monte
Gilberto da Silva
Guizelin
Roberta Barros Meira
Janaina Guimarães da
Fonseca e Silva
Amândio Barros
Capitanias na colônia: motivações em
1530
Alguns “best sellers” anti-napoleónicos
numa viagem transatlântica
Sobre as misérias da Paraíba no século
XVIII: o e dizem as pedras?
O Sistema Mercantil Atlântico e a Evasão
do Ouro: do déicit explícito ao lucro
oculto
A Companhia Geral de Pernambuco e
Paraíba e o tráico de escravos ( 1759 1780 )
Das malaguetas e dedos de moça:
disseminação e uso dos pimentos do Novo
Mundo no século XVI.
Rede clientelares na colônia: da lavra aos
ourives
Dinâmica social na vila de Santa Cruz do
Aracati: produção e comercialização das
carnes secas e couros (1746-1802)
Na rota das navegações : estudo do
transporte marítimo na ilha de Itamaracá
do Século XVII.
Comércio de mercadorias no Atlântico:
um estudo de seus relexos na Zona da
Mata Sul de Pernambuco
A comunidade traicante: a “grande
senhora” do negócio negreiro, quiçá do
Atlântico Sul
Memória sobre o preço do açúcar”: uma
defesa dos produtores de açúcar
Rotas e redes. Um olhar teórico sobre
grupos comerciais de origem cristã nova
na capitania de Pernambuco (1580-1640)
Redes de cooperação Portugal/ Brasil na
construção do sistema atlântico. O caso do
Porto no século XVI
47
Apêndice 1. Rede Comercial de Simão Vaz.
48
Os municípios e a justiça na colonização portuguesa
do Brasil – na primeira metade do século XVIII
Joaquim Romero Magalhães
Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
À memória de Manuel Correia de Andrade
Aos 21 dias do mês de Setembro de 1593 a câmara de Olinda
recebeu uma comunicação do Senhor Heitor Furtado de Mendonça
em que anunciava vir como visitador do Santo Ofício ao bispado e
capitania de Pernambuco. Logo a governança mandou buscá-lo num
bergantim ao Arrecife. Na vila foi recebido pelo capitão logo-tenente,
pelo ouvidor do eclesiástico e por muitos clérigos, ouvidor geral e
mais justiças seculares, juízes, vereadores e os principais da terra. O
Sargento-mor com as companhias e bandeiras de soldados não faltaram
à recepção. Tudo envolvido “com grande concurso de gente e povo que
o estava esperando.”1 Era o que acontecia numa vila portuguesa, mesmo
que situada na América. Eclesiásticos, autoridades e oiciais da Câmara
iguravam em nome da população. Seria o mesmo em qualquer cidade
do Reino, Ilhas ou Ultramar. Regendo-se pelas mesmas leis, prestandose até as mesmas honras protocolares.
Transposição institucional do Reino para os territórios
ultramarinos a que chamamos hoje colonizar: então usava-se “povoar”.
E povoar signiicava fazer frutiicar as terras, fazê-las produzir.2 E não
só: implicava ainda organizar a governação à portuguesa.3 Por isso
Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil. Denunciações e conissões de Pernambuco 1593 ‒ 1595. Estudo introdutório de José Antônio Gonsalves de Mello. Recife: Governo de Pernambuco, 1984, p. 1.
2
Diário da Navegação de Pêro Lopes de Sousa 1530-1532. Estudo crítico pelo Comandante
Eugénio de Castro, 2ª edição. Rio de Janeiro: Comissão Brasileira dos Centenários Portugueses
de 1940, vol. II, p. 13.
3
GÂNDAVO, Pêro de Magalhães. História da Província Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil. Edição facsimilada. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1984, l. 7.
1
49
também as sesmarias se destinavam aos que desbravavam os campos e
apenas a esses – por implicar estabilidade. Pelos que por essas paragens
eram assim ditos povoadores. No respeito pelos oiciais régios e pelas
autoridades, civis ou eclesiásticas. E em nome dos poderes civis iguram
os juízes ordinários, os vereadores e o procurador do Concelho. Era
a política de ixação, evitando e opondo-se à improdutiva política de
transporte de outras partes do império.4
Logo no começo da expansão portuguesa a solução encontrada
para que as populações localmente se governassem foi esse transplante
do município tal como tinha vindo a ser deinido ao longo da Idade Média
em Portugal. O que não foi imediato ‒ só aconteceu quando se constatou
haver já grupos numerosos necessitando de exercício de justiça.5 Teria
que ser assim, criando-se o município? Não havia alternativa. O que se
conhecia, o que se sabia, o que estava já consignado nas Ordenações do
Reino era o concelho. Nada se inventou. O crescimento populacional e a
necessidade de melhor enquadrar juridicamente as populações impõem
que novas vilas se criem. Que em nada se distinguem dos municípios do
continente na sua composição e em muitas das suas funções ‒ embora a
distância acresça algumas mais.
O concelho instalou nas terras de colonização a justiça e a
administração. Como gerou a indispensável comunicação no interior
das comunidades, aquilo que no Brasil do século XVI se disse ser uma
“vida segura e conversável.”6 Ou, dois séculos depois, se esperava que
servisse para “poderem viver os seus habitadores com modo civil e
político.”7 Por isso foi essencial ao desenvolvimento dos territórios e
não apenas ao governo da sociedade. As cidades e vilas regulavam-se
pelas leis do Reino: “o município surgiu unicamente por disposição do
4
Distinção de Antônio Sérgio, “As duas politicas nacionais”, In: Ensaios, tom. II. Lisboa: Seara
Nova, 1929, pp. 69-120.
5
MAGALHÃES, Joaquim Romero. “A ilha da Madeira e a economia atlântica no tempo do infante D. Henrique, in: O Infante e as Ilhas. Funchal: Região Autónoma da Madeira, 1994, p. 25.
6
MAGALHÃES, Joaquim Romero. “Os primórdios de uma “vida segura e conversável no Brasil”, In: FONSECA, Fernando Taveira da (coord.). O poder local num tempo de globalização,
uma história e um futuro. Coimbra: Imprensa da Universidade – CEFA, 2005, p. 124.
7
Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Cartas régias ‒ Bahia, Cód. 246, l. 140 v.
Estado que, nos primeiros casos, no bojo das naus, mandava tudo para
o deserto americano: a população da vila, os animais domésticos, as
mudas das espécies cultiváveis e a organização municipal encadernada
no Livro I das Ordenações.”8
Tinham as câmaras os poderes administrativos e judiciais que
caracterizavam no Reino as instituições do poder local. Muitas vezes
eram as únicas formas políticas existentes. E na ausência de oiciais
régios, tinham as instâncias municipais que resolver as questões que
se punham às coletividades, desde a alimentação à defesa – por vezes
escolhendo os chefes militares. Até mesmo elegendo e dando posse a
governos interinos. Entendia-se que politica e socialmente o concelho
era um modelo provado ‒ instituição conhecida que se recriava. E por
isso ocorre como que espontaneamente – há quem diga de maneira
“automática”. Para as primeiras fundações pode até não haver ordens
régias sobre como se deveria proceder. Tomavam-se por boas aquelas
práticas que se conheciam, nas quais se tinha vivido. O município era
tido como a boa resposta a uma necessidade política e social. É nele
que se “agrupam os homens que convivem sobre um mesmo território
limitado.”9 Município que era não só o território como ainda os
vizinhos que o ocupavam – e também a organização jurídica necessária
a garantir uma vivência coletiva bem ordenada. Procurando harmonizar
os interesses da Coroa com as necessidades dos colonos.
A distância e os recursos não permitiam à realeza outro controlo
direto e efetivo dos territórios das conquistas. Havia que o conseguir
através de compromissos e acordos com as populações colonizadoras.
Compromissos e acordos as mais das vezes tácitos. Que se enquadram
na multiplicidade das funções que abarcam quase todas os aspectos
da vida comunitária. As respostas aos desaios que iam sendo postos
às coletividades de vizinhos tinham de encontrar-se localmente. O
provimento diário das suas necessidades não pode esperar por soluções
8
ZENHA, Edmundo. O município no Brasil (1532-1700). São Paulo: Instituto Progresso Editorial, p. 23.
9
CASARIEGO, J. E.. El Municipio y las Cortes en el Imperio Español de Indias. Madrid:
Biblioteca Moderna de Ciências Históricas, 1946, pp. 43-44.
51
do poder real que levarão anos a chegar – se chegarem. Na maior
parte das ocasiões o único poder de fato era o poder municipal: essa
a autoridade que as populações conheciam e sentiam. Sobretudo, que
acatavam e respeitavam. Não só por isso. Havia que conjugar auctoritas
(autoridade do poder real) com potestas (mando dos eleitos locais)1010.
O poder real e os poderes locais se em alguns momentos podiam
entrar em colisão não eram conlituais em permanência. E se num caso
ou outro revelavam alguma oposição, em geral eram tidos e agiam
como complementares.11 O rei era a entidade em nome de quem se fazia
ou proibia fazer, mas distante e simbólica. Sobretudo. A que todos, com
mais ou menos gosto, com maior ou menor boa-vontade, acabavam por
obedecer. Obediência que implicava que a autoridade de Sua Majestade
se não imiscuísse no âmbito do mando que dia a dia se exercia. Que
consolidava um ordenamento social e político que servia à sociedade,
tal como ela se representava nos municípios. E se organizava a partir
deles.
Aos eleitos – representantes do poder social do conjunto dos
vizinhos – tendem pois a contrapor-se os agentes reais, ouvidores
e corregedores e juízes de fora – agentes políticos. Com variantes
relativamente ao Reino. Nas conquistas havia necessidade de ainda
contar com os votos dos moradores o que já pouco se dava na
Península. E por isso a ocorrência de concelhos abertos para certas
decisões – como em Salvador da Bahia a eleição de louvados para a
venda dos açúcares ou para pagamento de tributos. Onde comparecem
nobreza e povo e senhores de engenho, lavradores de canas e homens
de negócio.12 Quando no Reino já não era comum a audição das
10
Para usar a distinção proposta por Jaime Vicens Vives, “Estructura administrativa estatal en
los siglos XVI y XVII”, in: Conyuntura econômica y reformismo burguês. Barcelona: Ariel,
1984; Vd. Antoni Pasola Tejedor, La historiograia sobre el município en la España Moderna.
Lleida: Publicaciones de la Universidad de Lleida, 1997.
11
ARES, José Manuel de Bernardo. “Poder local y Estado absoluto. La importancia política
de la administración municipal de la corona de Castilla en la segunda mitad del siglo XVII”,
in: ARES, José Manuel de Bernardo e RUIZ, Enrique Martínez (editores), El Municipio en la
España moderna. Córdova, Universidad de Córdoba, 1996, p. 143.
12
Documentos históricos do Arquivo Municipal. Atas da Câmara. 1700-1718. Salvador da
52
assembleias dos vizinhos. Nas conquistas sentir-se-ia a necessidade
de os grupos populares serem ouvidos. E que os próprios magistrados
pudessem querer apoio para o que se decidia. Por isso, e para assuntos
que a todos interessassem, continuava a convocar-se “Nobreza e Povo
ao som de campa tangida.”13 Os mesteres e o Juiz do Povo atuavam na
defesa do que entendiam ser os seus interesses, como a rigorosa inta
que se prolongou durante anos no Brasil – dote da sereníssima Rainha
da Grã-Bretanha e Paz de Holanda.14
Ainda em princípios do século XVIII o bom funcionamento das
câmaras no Brasil era condição para o bem viver em colônia. E por isso
era preocupante o conlito entre representantes do rei e municípios, como
aconteceu em Olinda, em 1711: “Sublevação formal e abominável, de
que não há exemplo na nação portuguesa, sempre iel e obediente a seus
legítimos príncipes.”15 Como foram graves os motins de 1720 em Vila
Rica em que a rua apoiada na câmara afrontou o governador.16 Exigiase das autoridades régias que obtivessem e mantivessem a obediência e
a coesão social cimentadas em populações que se deviam auto-governar
‒ e não apenas esperar pela autoridade régia.
Muito complicada terá sido a situação no Ceará entre 1723 e
1731 que se disse ser um “labirinto de embrulhadas”.17 Para atalhar a
tais complicações havia que saber lidar com prudência. E muitas vezes
faltava bom senso e tino políticos aos delegados régios. Prudência que
os experientes não se cansavam de aconselhar.18 Para o governador
Bahia: Prefeitura do Município do Salvador, 7º vol., 1984, pp. 16-18.
13
Ibidem, p. 22-24.
14
Ibidem, pp. 30-31; MELLO, Evaldo Cabral de. O negócio do Brasil. Portugal, os Países
Baixos e o Nordeste (1641-1669). 2ª ed. Lisboa: CNCDP, 2001, pp. 260.
15
MELLO, Evaldo Cabral de. A Fronda dos Mazombos. Nobres contra Mascates. Pernambuco
1666-1715. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 312.
16
MAGALHÃES, Joaquim Romero in: Labirintos Brasileiros. Saída prevista na Editora Alameda, São Paulo, em Novembro de 2010.
17
Dizer do governador de Pernambuco Duarte Sodré Pereira: (AHU), – Con. Ultra – Brasil/Minas Gerais – Cx: 2, Doc. 129; vd. ABREU, Capistrano de. Caminhos antigos e o povoamento do
Brasil. 2ª ed.. Rio de Janeiro: Sociedade Capistrano de Abreu ‒ Livraria Briguiet, 1960, p. 255
18
Como o Doutor Antônio Rodrigues da Costa, do Conselho Ultramarino: AHU, ‒ Con. Ultra
– Brasil/Ce – Cx. 2, Doc. 87.
53
de Pernambuco Duarte Sodré Pereira, devia mesmo o rei ordenar aos
ouvidores que não se excedessem nas condenações permitidas pelas
Ordenações, “nem uzando do rigor dellas com os vereadores e oficiaes
da Camara que comummente são huns homens rusticos e com frivolos
pretextos os condenão em grandes condenações em que não podem
ter recurso pello longe da Rellação (da Bahia).”19 Também o Conselho
Ultramarino zelava por que o equilíbrio entre as autoridades régias e os
concelhos municipais se não rompesse.20
A criação de novos municípios no território brasileiro
acompanha a expansão das áreas povoadas – para Nordeste (Filipeia
de Nossa Senhora das Neves em 1585 e São Cristóvão de Sergipe em
1590) ou Norte (São Luís de Maranhão em 1615 e Belém do Pará cerca
de 1616) ou depois partindo do litoral para o interior –, com destaque
para o avanço no século XVII no Sul em direção ao Continente do Rio
Grande e ao Rio da Prata. Tratava-se de tentar segurar essas paragens,
com a intenção de se aproximarem os domínios portugueses das fontes
da prata espanhola, proporcionando o comércio de contrabando. A crise
portuguesa ‒ que acompanha e se segue à Restauração ‒ assim o exigia.
Agravada que se encontrava ainda pelo conlito com os Países Baixos.
Por isso a criação dos municípios de Ubatuba em 1637, Nossa Senhora
do Rosário de Paranaguá em 1648, Nossa Senhora da Graça do Rio de
São Francisco (do Sul) em 1660, Nossa Senhora do Desterro em 1675,
Santo Antônio dos Anjos da Laguna em 1676. Mesmo na fundação
da Colônia do Sacramento, em 1678, se previa que se formasse “o
governo civil e político como hé costume nas villas deste Reyno.”21
Mais para o interior, e também para garantir o domínio dos caminhos,
estabelece-se São Francisco das Chagas de Taubaté em 1645, Santo
Antônio de Guaratinguetá em 1651, Nossa Senhora da Conceição da
Parayba (Jacareí) em 1653, Itu em 1657 e Nossa Senhora da Ponte de
19
AHU, – Con. Ultra – Brasil/Ce – Cx. 2, Doc. 127.
CALMON, Pedro. Espírito da sociedade colonial, São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1935, pp. 230-231.
21
ALMEIDA, Luís Ferrand de. “Origens da Colônia do Sacramento. O Regimento de D. Manuel Lobo”, sep. da Revista da Universidade de Coimbra. Coimbra: 1982, p. 124.
20
54
Sorocaba em 1661. Mais tardia será a Vila de Nossa Senhora da Luz
dos Pinhais de Curitiba, em 1693. Entretanto a Vila de Nossa Senhora
dos Remédios de Paraty em 1660 e a vila de São Salvador dos Campos
dos Goytacazes em 1677 declararam-se separadas da alçada municipal
a que tinham estado sujeitas e conseguiram ser reconhecidas como
cabeças de novos concelhos.22 De Taubaté destaca-se em 1705 a Vila
Real de Nossa Senhora do Bom Sucesso de Pindamonhangaba.
Também no Nordeste, em ins do século XVII e princípio do
século XVIII bastantes são as novas vilas: Nossa Senhora da Conceição
de Guarapari, em 1679, Santa Maria de Icatu em 1688, Nossa Senhora
de Camamu, Vigia de Nazaré e Santo Antônio do Rio das Caravelas em
1693 – efetivada em 1701.23 Seguir-se-á a criação de um conjunto de
novos concelhos decidida em Lisboa: Santo Amaro das Brotas, Nossa
Senhora da Piedade do Lagarto, Santo Antônio e Almas d’Itabaiana,
Santa Luzia do Rio Real em 1697. Também então se deine um conjunto
de novos concelhos no recôncavo baiano: São Francisco de Sergipe do
Conde e Nossa Senhora d’Ajuda de Jaguaripe em 1697, Nossa Senhora
do Rosário do Porto de Cachoeira em 1698. A que se acrescentam em
1724 Maragogipe e em 1725 Nossa Senhora da Puriicação e Santo
Amaro. Tratava-se de conseguir uma “melhor administração da justiça”,
sabe-se. E assegurar “o recurso de suas causas, e brevidade das suas
demandas.” Mais: procurava-se organizar os interesses econômicos na
região. Algumas vantagens do isco andariam por perto. Mais ainda:
interesses militares, pois as vilas de Cairú, Camumu e Boipeba estavam
obrigadas a enviar farinhas para o sustento dos soldados; por isso aí
era proibido o plantio de tabaco; a renda do verde de Jaguaripe, São
Francisco, Cachoeira e Lagarto pagava a infantaria.24 E sempre, como
se lê na carta em que o rei reconhece a criação de Santo Antônio do
22
GARCIA, Rodolfo. Ensaio sôbre a História Política e Administrativa do Brasil (1500-1810).
Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editôra, 1956, p. 96; algumas datas um pouco diferentes
em: ABREU, J. Capistrano de. Capitulos de Historia Colonial. Rio de Janeiro: Sociedade Capistrano de Abreu – Typographia Leuzinger, 1928, p. 153.
23
AHU, – Con. Ultra – Brasil/Ba – Cx. 3, Doc. 317.
24
AHU, Cartas régias ‒ Bahia, Cód. 246, ls. 128 v, 191, 218 e 258, por exemplo.
55
Rio das Caravelas, as vilas eram indispensáveis para “poderem viver os
seus habitadores com modo civil e político.”25
Sergipe do Conde ainda tenta impedir que a povoação de
Cotinguiba seja elevada a vila e que se concretizem outras fundações
já decididas ‒ no Lagarto e em Itabaiana.26 Diiculdades que vão exigir
atenção e cuidado também ao governador para evitar conlitos entre
os municípios e a velha cidade de Salvador que se via desapossada de
partes do seu termo.27 Temiam os oiciais da capital, e assim representam
ao rei, o
“dano que se segue aos moradores dessa cidade com a creação
das villas que mandei se formassem no certão della por se
quererem levantar em muito pequena distancia e perto dessa
Cidade devendo ser ao menos vinte, ou trinta legoas distantes
dellas a respeito do pouco destricto que lhe ica, e das contendas
que hade haver sobre os foros dos domecilios, e ainda para o
serviço das respublicas das mesma villas por não haver nellas
comodidade para as vivendas dos que forem para isso elleitos.”
Porém o soberano não se comove e responde que Lisboa tinha
“na sua vezinhança muitas povoaçoens e villas.”28 Desde sempre houve
preocupação com a ixação da distância entre as vilas: logo pelas cartas
de doação das capitanias do Brasil se tinha ixado em seis léguas o
intervalo a ser respeitado.29
Criação de vilas com que se ia procurando estruturar a
fachada atlântica, com que também se intentava dinamizar a atividade
produtiva. Grande cuidado havia na execução desta política de criação
de concelhos. Quer pela escolha da área no conjunto do território como
também do sítio em que se iria estabelecer a sede, ocupação e deinição
Ibidem, l. 140 v.
Ibidem, l. 92.
27
Ibidem, ls. 78, 79 v, 92, 101 v, 128 v-130.
28
Ibidem, l. 52.
29
Doações e forais das Capitanias do Brasil. 1534-1536. Ed. Maria José Mexia Bigotte Chorão. Lisboa: Instituto dos Arquivos Nacionais / Torre do Tombo, 1999, p. 13.
25
26
56
do espaço político e social em que havia que contar com os moradores.
Exemplo de 1703:30
“Os oficiaes da Câmara da Villa de Santo Amaro novamente
criada em carta de 2 de Julho do anno paçado me dão conta de
haverem comprado hũ retalho de terra a Antonio Martins de
Azevedo para cituação e povoação daquella villa por ser mais
commodo que o sitio que o governador geral D. João de Lancastro
mandara medir para a cituação da mesma villa. E pareçeome
ordenarvos vades a essa villa e vejais estes citios e achando que
o que se lhe asignalou para a sua cituação he o mais acomodado
façaes com que nelle se faça a villa, e quando entendais que o
citio mais conveniente he o que ellegerão os moradores lhes
não impidais a tal situação com declaração que a terra que elles
dizem lhe he necessaria a devem pagar a seu dono pollo seu justo
valor.”
É também nesta reorganização espacial que ocorre na viragem
do século que surge uma outra inovação. Que fosse necessário haver
magistrados, concretamente juízes em todo o território, é evidente. Mas
durante longos anos não se atendeu a isso. O alerta terá chegado do
sertão da Bahia, da região do Sertão dos Rodelas. Talvez por sugestão
da Junta das Missões, e
“para se evitarem os repetidos crimes, e atrozes cazos que aly
sucedem que ordinariamente icão impunidos assim por se não
ter noticia delles pella distancia em que são cometidos, como
por não haver modo de justiça naquellas partes,” o rei decide
que “sendo estes destritos da jurisdição desse governo da Bahia
ordeneis que de sinco em sinco legoas haja hum juiz ordinario
com a jurisdição de tirar devassas tomar denunciações e querellas
nos delictos que aly se izerem, e remetellas por treslados ao
ouvidor da comarca dessa cidade para se proceder nesta matéria
como for justiça.”
30
AHU, Cartas régias ‒ Bahia, Cód. 246, l. 171 v.
57
Foi decisão comunicada de Lisboa a 16 de fevereiro de 1698.31
Tratava-se de montar então uma rede de juízes em espaços já
com alguma população colonizadora, fora e para além do território
compreendido nas áreas dos concelhos existentes. Logo esta disposição
foi considerada de difícil ou impossível aplicação,
“por não haver nelles (no sertão dos Rodelas) homens que saybão
ler nem escrever. E pareceume dizervos deveis fazer a delligencia
que se vos tem mandado, recomendando aos ouvidores geraes
que nas suas comarcas fação todo o possivel porque se criem
estes Juizes que ainda que não saybão ler basta que o seu escrivão
o saiba.”
Foi a resposta de 10 de novembro de 1698.32
Porém essa ordem não teria sido executada. É que entretanto, e
mesmo em Lisboa, ter-se-ia considerado melhor uma outra distribuição
desses juízes. E em vez das cinco léguas vai preferir-se o quadro
territorial da freguesia. Assim, e em conformidade, a determinação
comunicada ao governador e capitão general do Estado do Brasil a 20
de janeiro de 1699:
“havia, sempre, que resolver “sobre os damnos espirituaes
e temporaes que se experimentão nesse Estado por falta
das Missoens, e de quem administre Justiça, aos que vivem
nos dillatados certoens delle em sua liberdade, fazendo tão
exurbitantes excessos que obrigão aos que amão a quietação a
retiraremsse, icando as terras só povoadas dos malfeitores.”
Apresentada a justiicação da medida, el-rei determina: “Fuy
servido rezolver que em cada Freguezia das que tenho mandado formar
pelos ditos certoens, haja hum Juiz à semelhança dos Juizes da vintena
que há neste Reyno, o qual será dos mais poderozos da terra.”
Isso ainda não bastava para garantir o bom funcionamento desta
inovação. Daí acrescentar-se:
31
32
AHU, ‒ Con. Ultra. – Brasil/ B ‒ Cód. 246, l. 63 r-v.
AHU, ‒ Con. Ultra. – Brasil/ B ‒ Cód. 246, l. 73 v.
58
“E para que este (juiz) viva seguro fazendo o seu oficio. Hey
por bem se criem em cada hũa das taes Freguezias hum capitão
mor, e mais cabos de milicia, e que nestes postos se nomeem
aquellas pessoas que forem mais poderozas, os quaes serão
obrigados a socorrer, e ajudar aos Juizes, dandolhe toda ajuda, e
favor para as deligencias da justiça e cominandolhes pennas, se
faltarem à sua obrigação, e que os que rezistirem aos taes Juizes,
sejão castigados, como se o izerão aos Juizes de fora, e se lhes
soquestrem seus bens athe sentença inal, […] e os corregedores,
e ouvidores das Comarcas serão obrigados hũa vez em seu Triénio
vizitar estes moradores fazendo correyção como nas mais em que
a faz todos os annos.”33
Se havia semelhança nas atribuições do cargo destes juízes
ordinários, seria com os juízes das vintenas como constava das
Ordenações do Reino. Todavia, e para mais autorizar estas novas
criaturas dava-se-lhes a preeminência de juízes de fora pela autoridade
de que os revestiam.34
Alguém inluente, “pessoa muito inteligente, e de comũa
opinião de bem procedido, e zeloso do serviço de Deus nosso senhor,
e do meu” teria proposto ao soberano este novo modo de encontrar a
solução pretendida. Mas não parece conseguido, porque havia locais que
não estavam enquadrados em freguesia alguma, precisamente nesses
longínquos sertões onde se procurava introduzir o exercício da justiça.
Porque a diiculdade residia nos territórios fora do quadro municipal
estabelecido. E se a proximidade com a igura do juiz da vintena, prevista
na Ordenações, e que no Reino estava há muito radicada, era uma boa
referência, nem por isso tudo se conseguia regular. Está por saber se
estes juízes ordinários continuaram a ser eleitos e a desempenhar o
seu papel essencial. No Sertão dos Rodelas parece que sim.35 Ainda na
Bahia aparecem o julgado de Santo Antônio do Urubu (município em
1749, hoje Paratinga), o de Santo Antônio de Pambu (município em
AHU, ‒ Con. Ultra. – Brasil/ B ‒ Cód. 246, l. 88; Idem, Cx. 3, doc. 277.
Sugestão do Prof. Doutor Arno Wehling, a quem agradeço.
35
Site de João Justiniano da Fonseca.
33
34
59
1832, hoje Curaçá) e o de Santusé (também município em 1832 com o
nome de Sento Sé).
As fundações de municípios no Nordeste continuarão,
concretizando o que se pensava da necessidade do seu estabelecimento
para bem povoar ‒ e não se estaria muito distante de como se fazia
e agia desde o começo da colonização: Aquiraz será de 1699; depois
virão a Vila da Mocha (agora Oeiras) em 1712, Santo Antônio de
Jacobina em 1722, Maragogipe em 1724 (contra o parecer dos oiciais
de Jaguaripe36), Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção em 1726, São
João de Água Fria em 1727; Nossa Senhora de Nazaré de Itapicuru de
Cima em 1728. E ainda mais criações haverá para meados da centúria:
Icó em 1738, Nossa Senhora do Livramento do Rio das Contas em
1745, Santo Antônio do Urubu em 1749 e São Francisco da Barra do
Rio Grande em 1753, para referir algumas.37
Também assim se estava a fazer nas regiões mineiras que agora
se ocupavam. Cedo foi entendido em Lisboa que só se encontraria
alguma limitação ou obstáculo à total independência dos que andavam
nos descobertos a partir do momento em que começassem a organizarse os núcleos habitacionais nesse vasto interior. Pelo que não tardou
a que se oicializasse a constituição de municípios.38 Vinha o Estado
a encarrilar os impulsos dos grupos até então sem regras. Para isso,
e mais uma vez, havia que promover a fundação de vilas: Vila de
Ribeirão de Nossa Senhora do Carmo, em 1711 (leal vila, depois
cidade de Mariana, em 1745); Vila Rica (Ouro Preto) e Vila Real de
Nossa Senhora da Conceição de Sabará, feitas concelhos também em
1711. Seguir-se-á em 1713 São João d’El-Rei (fundado em 1705 como
Arraial Novo do Rio das Mortes); Vila do Príncipe (Serro do Frio) e
AHU, Cartas régias ‒ Bahia, Cód. l. 79 v.
A partir de José Antônio Caldas, “Noticia geral de toda esta capitania da Bahia desde o seu
descobrimento até o prezente anno de 1759”, in Revista do Instituto Geographico e Histórico
da Bahia, nº 57. Salvador: 1931, pp. 53-57 e 71-85.
38
COELHO, Maria Helena da Cruz e MAGALHÃES, Joaquim Romero. O poder concelhio
das origens às Cortes Constituintes. Notas de história social. 2ª ed. Coimbra: CEFA, 2008;
Capistrano de Abreu, Capítulos de História Colonial (1500-1800). Rio de Janeiro: Edição da
Sociedade Capistrano de Abreu, 1928, p. 205.
36
37
60
Vila Nova da Rainha (Caeté) em 1714; Nossa Senhora da Piedade de
Pitangui em 1715 e São José d’El-Rei em 1718 (chamara-se o Arraial
Velho de Santo Antônio da comarca do Rio das Mortes e muito depois
será denominado Tiradentes).39 Elevação de arraiais a vilas por ordem
de Lisboa, que os governadores promoveram: “e pondo em execução,
que se fundem algumas povoaçoens, para que as peçoas que asistem nas
mesmas Minnas vivão reguladas e na subordinação da justiça […].”40
Para evitar que lei e justiça deixassem de ser “valores incógnitos”.41
Nova era chegava às Minas com “a criação de vilas e a instalação das
municipalidades.”42
Política devidamente fundamentada, conforme parecer do
Doutor Antônio Rodrigues da Costa, conselheiro ultramarino:
“nem se pode esperar que de huma multidão de gente confuza,
sem ley, sem ordem, sem obediência, sem temor dos Magistrados,
sem receio do castigo, e sem esperança de premio que o Principe
possa tirar della tributo ou conveniência alguma mas antes
desobediências e desatinos, e de omissão ou descuido em os
remediar a indignação divina que em nenhuma couza he tão pronta
e evidente, como nas faltas de Justiça, pelas quaes promete Deos
destruir os Reinos e Monarquias, de que temos tão lastimozos
exemplos antigos e modernos, e assim para remediar esta grande
desordem, e reduzir aquella gente a governo cristão e político,
parece previo que V. Mag.e mande […] fundar igrejas, constituir
parrochos, tomar conhecimento das cauzas ecleziasticas, fundar
villas e povoaçoens, ordenar milicias, estabelecer a arrecadação
39
VASCONCELOS, Diogo de História Antiga das Minas Gerais. 4ª ed.. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Limitada, 1974, 2º vol., pp. 97-101; Códice Costa Matoso. Belo Horizonte: Fundação
João Pinheiro – Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1999, vol. I, doc. 3, p. 200, n. 2 e
doc.; Feu de Carvalho, “Índices dos Livros do Archivo Publico Mineiro. Livro Quinto”. in:
Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte: Ano XXIV, 1933, I vol. p. 528; MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O rei no espelho. A monarquia portuguesa e a colonização da América
1640-1720, São Paulo, Editora HUCITEC, 2002, pp. 289-290
40
AHU, – Con. Ultra – Brasil/Ce – Cx: 2, Docs 129, 133 e 143.
41
CALÓGERAS, J. Pandiá. Formação histórica do Brasil. 5ª Edição. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército – Editôra, 1957, p. 65.
42
ABREU, J. Capistrano de. Capítulos de História Colonial, p. 205.
61
dos quintos, e dos dizimos, o pôr justiças, castigar delictos, e
outras muitas couzas.”
Em relação às povoações a fundar também havia orientações:
dever-se-ia
“reduzir toda a gente que anda nas Minnas a povoaçoens,
constituindo-lhe […] igrejas e parrochos, e o mais que pertençe
à jurisdição ecleziastica , e […] Justiças e governo de Camara,
na forma que são governadas as Cidades e Villas do Brazil. E
pera estas fundaçoens das villas, devem ser convidados os
Paulistas, e peçoas mais poderozas, que andarem nas Minnas e
estiverem nellas de assento, dando-se-lhe e prometendo-se-lhe
em nome de V. Mag.e algumas honras como são foros e habitos;
e as alcaidarias mores das villas que fundarem, ou ajudarem a
fundar, a cada hum conforme o seu serviço e qualidade. E estas
vilas e povoaçoens se deve procurar sejão fundadas em sitios
salutiferos, com vezinhança de rios e boas agoas, terreno fértil, e
em pouca distancia dos Ribeiros principaes do ouro, porque estes
devem ser precisamente os que devem regular a situação das
villas, das quaes huma a que se poderá dar o titullo de cidade para
residência daquela Cappitania; deve icar quanto for possivel no
meio della.”43
Estavam justiicadas as medidas a tomar para a colonização
a partir de núcleos habitados e ainda informes na sua estruturação.
Assim terá sido considerado pelo rei e pelo conselho ultramarino nesta
segunda grande fase do alargamento do território efetivamente ocupado
e administrado nessa expansão para o interior que fora desencadeada
pelos descobrimentos do ouro. Para cujo povoamento se requeria a
fundação de municípios. Seriam então criadas câmaras nas terras novas
onde a população aumentando precisava de ser enquadrada em novas
unidades. E garantido o exercício da justiça.
Aos núcleos populacionais impunham-se regras de apropriação
do espaço circundante. Que não poderia estender-se até muito longe,
43
AHU, – Con. Ultra. – Brasil/MG – Cx: 1, Doc. 13.
62
sob pena de ineicácia no exercício dos seus poderes em especial
da justiça. Além de que as condições naturais podiam levar ao seu
abandono.44 O que as autoridades reinóis evitavam. Por isso mesmo só
há notícia de se terem juntado os municípios de São José de Ribamar e
o de Aquiraz, no Ceará, em 1721. Sem resolver todas as diiculdades,
porque mesmo aí Aquiraz icava a cinco léguas de Fortaleza e havia
quem propusesse a extinção de uma delas. Porque os concelhos deviam
ser implantados atendendo ao conjunto da área a administrar: para
isso, e como a capitania do Ceará tinha duzentas léguas de comprido,
deveria preferir-se a fundação de uma vila para o interior no lugar de
Jaguaribe, escreveu-se em 1732. O que veio recusado por Lisboa.45
Havia que contar com a população aí residente. Porque o soberano era
parcimonioso na criação de concelhos.
A mesma política de ixação populacional em municípios
ocorrerá bem longe do litoral, no Mato Grosso onde se organizavam
novas explorações auríferas. No Arraial do Bom Jesus em 1726 já se
contavam uns 148 fogos: casas “de pau a pique cubertas de capim”.
Embora um só bom prédio houvesse “por serem as paredes de taipa,
todas cobertas de telha e três casas forradas, e assoalhadas de madeira
com todas as comodidades necessárias para a assistencia de qualquer
menistro, ou governador.”46 Desloca-se ao Cuyabá o governador da
capitania de São Paulo Rodrigo César de Meneses a fundar a Vila Real
do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, em 1 de janeiro de 1727. À simples
concentração de gente em busca de minas substitui-se o povoamento
devidamente regulado. E naturalmente que os homens da governança
se não esquecem de requerer ao rei as honras de que outras povoações
já gozavam – como as devidas propinas para os oiciais nas festas
principais (Corpo de Deus, Santa Isabel, Anjo Custódio do Reino e dia
AHU, ‒ Con. Ultra. – Brasil/ MT, Cx. cx. 2, doc. 110.
AHU, – Con. Ultra – Brasil/Ce – Cx: 1, Doc. 81; Idem, Cx. 2, docs. 127 e 143.
46
TAUNAY, Affonso de E. História das bandeiras paulistas. 3ª edição. São Paulo: Edições
Melhoramentos, 1975, tom. II, p. 192; sobre a expedição de Rodrigo César de Meneses e o seu
signiicado político, vd. MYRUP, Erik Lars. To Rule from Afar: the Overseas Council and the
Making of the Brazilian West, 1642-1807. New Haven: Yale University, 2006, pp. 173-204.
44
45
63
do Orago).47 Também a vereança, logo em 17 de julho de 1728, requereu
os mesmos privilégios que os vizinhos da cidade de São Paulo. Se esses
os mereciam por serem descobridores, os requerentes invocam o zelo
com que atendem ao serviço de Sua Majestade.48 Era o que se esperava,
o que normalmente se fazia, para realçar o prestígio social que se tinha
por necessário ao exercício do poder. Para além do que ganhavam em
honras próprias as pessoas que constituíam as nobrezas das terras.49
Todos queriam mostrar-se, sobretudo em momentos especiais, como na
procissão do Corpo de Deus em que a Câmara ia logo atrás do palio e
assim à frente dos clérigos...50
Onde havia vários núcleos povoados deveria tomar-se em linha
de conta a importância relativa deles antes de executar a criação de
uma vila. Governadores, ouvidores e demais autoridades apercebem-se
dessa necessidade. Por isso em Goiás, e
“naquelle Arrayal (de Sant’ana), por ser a primeyra povoação
daquellas Minas, e as maes permanentes, parecia a elle
superintendente que V. Mag.de mandasse criar villa, […], porque
ainda que a pequena povoação o não permittisse, poderia ser que
a sua creação izesse maes populloza e permanentes os moradores
que aly se achão e se disponhão os que andão dispersos para
gozarem das honras da Respublica.”
Sabia-se
“que só pello meyo do estabellecimento destas villas, e do
governo dellas se podem reger homens que andão vagando por
estes descobrimentos, não sendo conveniente deixallos andar
sem subordinação pellas dezordens que podem cometter.”
Acontecia que não só Sant’ana, como Meia-ponte e mesmo os
novos descobertos de Crixás e Garinos poderiam ser escolhidos para
AHU, ‒ Con. Ultra. ‒ Brasil, Cód. 1232, l. 88v.
AHU, ‒ Con. Ultra. – Brasil / MT, cx. 1, doc. 29.
49
Aconteceu logo em 1728: Annaes do Sennado da Câmara de Cuyabá 1719-1830. Cuiabá:
Arquivo Público de Mato Grosso - Entrelinhas, 2007, p. 60.
50
AHU, – Con. Ultra – Brasil/Pa – Cx. 22, Doc. 2060.
47
48
64
ascenderem a vilas.51 Porque ainda a população não se ixara, “andando
toda esta gente que serão até quinze mil pessoas em huma continua
mudança que tem dado cauza a sua perdiçam em detrimento grande
à Rial fazenda pella deminuição dos reais quintos.”52 O que por igual
levava a que houvesse opiniões desencontradas sobre onde instalar a
nova vila. Assim,
“a respeito do estabelecimento da Villa que V. Mag.de manda criar
para a qual lhe pareceo sempre melhor o lugar da Meia Ponte,
donde he maes conveniente que aly se junte todo o ouro dos reaes
quintos e dos defuntos e auzentes para melhor commodidade
e menos despeza das remessas, e que tãobem se estabeleça a
Provedoria da Fazenda e não naquele Arrayal de Santa Anna
onde se acha por icar em hum lado do continente, o mais distante
das outras povoações que seis dias maes longe dos caminhos de
povoado que a Meya Ponte.”
Ainal, o Arraial da Meia Ponte só teria 311 vizinhos, contra 743
de Sant’ana.53 Este “permetia mais persistencia por ter muitas famílias
e pessoas mais capazes para os cargos da Respublica.” Importava ainda
“ser também caminho para o Cuyabá por se ter aberto daquellas para
estas minas.” Porém,
“não determinou o Conde General o luguar da villa, passando para
os Tucantins […] a fazer ali a capitação e a pôr obediência deste
Governo o discuberto chamado Carllos Marinho que me seguram
diiculta o rigente delle sugeitarse as ordens do Conde General,
por estar provido pello Governo do Estado do Maranhão.”
51
Os núcleos habitados parece terem sido Sant’ana, Meia Ponte, Tocantins, Remédios, Terras
Novas e Crixás: AHU, ‒ Con. Ultra. – Brasil/ Go, Cx. 2, doc. 178; na área a Norte de Goiás,
hoje Estado do Tocantins, terão sido depois S. Félix, Arraias, Conceição, Cavalcante, Traíras
e Natividade: Notícia geral da capitania de Goiás em 1783, edição Paulo Bertran, Goiânia /
Brasília: Editora da Universidade Católica de Goiás – Editora da Universidade Federal de Goiás, 1997, tomo I, p. 99; as delimitações seriam do tempo do governador Barão de Moçamedes
(1772-1778): VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII, vol. III, pp. 866-872; José
Antônio Caldas, “Noticia geral de toda esta capitania da Bahia desde o seu descobrimento até
o prezente anno de 1759”, p. 116.
52
AHU, ‒ Con. Ultra. – Brasil/ Go – Cx 1, doc. 23.
53
AHU, ‒ Con. Ultra. – Brasil/ Go, Cx. 1, doc. 75; Go, Cx. 1, doc. 73.
65
Fosse como fosse,
“em qualquer dos Arraiais que se forme a villa, não pode
aproveitar aos mais para a demenistração da justiça por icarem,
huns dos outros mais de trinta legoas, assim me parece ser
conveniente ao aumento das minas mandar V. Mag.de formar
mais tres villas, huma nos Tucantins outra nos Crixás, e outra na
Meia Ponte achandose com o mesmo estabelecimento que tem
de prezente.”54
O que não se revelaria viável por então.
Só em 1736 o Conde de Sarzedas, governador da Capitania
de São Paulo, passou às Minas de Goiás para empreender a fundação.
Deveria decidir e determinar “citio mais a preposito para huma Villa” e
procurar que seja o que parecer mais saudável e
“com provimento de boa agoa e lenha e perto de algum arrayal
que se ache ja estabelecido para que os moradores delle possão
com mais comodidade mudar a sua habitação para a villa, e logo
detremineis nella o lugar da praça no meyo da qual se levante
Pelourinho, e se assignale a area para o edifício da Igreja capaz de
receber competente numero de Freguezes ainda que a Povoação
se aumente, e que façaes delinear por linhas rectas a área para
as cazas com seus quintaes, e se designe o lugar para se ediicar
a Caza da Câmara, e das Audiências, e Cadea, e maes oficinas
publicas que todas devem icar na área detreminada para as cazas
dos moradores as quaes pello exterior sejão todas do mesmo
peril, ainda que no interior as fará cada hum dos moradores à
sua eleição, de sorte que em todo o tempo se conserve a mesma
fermozura da terra, e a mesma largueza das ruas, e junto da villa
ique bastante terreno para logradouro publico, e para nelle se
poderem ediicar novas cazas que serão feitas com a mesma
ordem, e concerto com que se mandão fazer as primeiras […].”
Também desde logo se dispunha como deveria ser a governança:
“e na forma que a Ordenação dispoem se faça logo eleição das
54
AHU, ‒ Con. Ultra. – Brasil/ Go, Cx. 1, doc. 31.
66
pessoas que hão de servir os cargos da terra, aonde havera dous juizes
ordinarios, e dous vereadores, hum Procurador do Concelho, que sirva
de Thesoureiro, e de mais do Escrivão e Meirinho da Superintendencia,
haverá hum Escrivão da Camara que sirva por hora tambem da
Almotaçaria, e hum Escrivão do publico Judicial e nottas que sirva
tambem das execuçoens, e escreverá alternativamente com o Escrivão
da superintendencia, como se pratica com os Oficiaes das Ouvedorias,
e se fação o Alcayde na forma que dispoem a Ordenação.”55
Mas o governador vai morrer na expedição e a execução caberá
por im a D. Luís Mascarenhas, que lhe sucederá na Capitania de São
Paulo e que erguerá Vila Boa, junto do Arraial de Sant’ana, em 25 de
julho de 1739. Depois de haver estado quinze dias no Arraial da Meia
Ponte, escreve o governador:
“cheguey a este de Santa Anna em sinco de Julho do prezente
anno (1739), aonde em concideração de estar bem estabelecido,
ser populozo e salutifero seo territorio, ter muitas lenhas e boas
agoas, e ser citio senão de grandezas de ouro no tempo prezente,
ao menos de permanentes faisqueiras, e estar vizinho a hum
descobrimento de grandes esperanças chamado dos Araés, e dos
Rios Claro e Pillões, e ser tambem por onde se tem aberto, e
creyo se há-de frequentar o caminho de Cuyabá […].” “todas
attendiveis, e que excede as que comcorrião em qualquer dos
outros Arrayaes destas Minas, de que me informey exatamente.”
Assim, erigiu
“huma villa na forma da ordem de V. Mag.de expedida pello
Conselho Ultramarino levantando pellourinho no meyo do citio
detreminado para a Praça, e observando tudo o mais que dispõem
a refferida ordem, e se intitulou Villa Boa […].”56
Mesmo com estas indicações “urbanísticas” vindas de Lisboa
alguma coisa falhou na nova Vila Boa, pelo que logo em 1746 a vereação
55
AHU, ‒ Con. Ultra. – Brasil/ Go, Cx. 1, doc. 26; passará a ter mais um vereador em 1740:
AHU, ‒ Con. Ultra. – Brasil/ Go, Cx. 2, doc. 113.
56
AHU, ‒ Con. Ultra. – Brasil/ Go – Cx: 1, Doc. 73.
67
se propôs “assentar nova praça, e mudar o pellourinho como também
novas cazas da Camera e cadea.”57
Acontecia haver propostas de elevação de povoados que não
eram bem acolhidas: em 1731 o Conselho Ultramarino não acedeu
às razões que lhe foram apresentadas, negando-se a dar seguimento à
passagem a vila do Arraial dos Fanados nos conins das capitanias das
Minas com a Bahia – que ainal será logo depois vila com o nome de
Nossa Senhora da Graça do Bom Sucesso das Minas Novas do Araçuaí,
na área da ouvidoria do Serro do Frio.58 Era a elevação a concelho de
um núcleo já suicientemente povoado ‒ ou como tal considerado pelas
autoridades. Que hesitavam nas fundações de vilas, com receio de que
a população se deslocasse para outras paragens, o que acontecia nas
terras de mineração aurífera. Os arraiais eram muitas vezes efémeros,
correndo os mineiros para os descobertos mais abundantes ou mais
promissores.
Permanecia por encontrar a forma legal de estabelecer alguma
autoridade onde não cabia fundar uma vila. Por isso, e embora sem
qualquer apoio no determinado nas Ordenações, havia que continuar
dando poderes aos “Juízes Ordinários” à semelhança do que fora
feito no sertão da Bahia e depois no Piauí.59 Figura que vai reaparecer
noutras bandas, sempre que as distâncias impedem a integração de um
dado espaço nos quadros municipais. Será então esse território dito um
julgado. Explica essa criação, em 1746, o governador Gomes Freire de
Andrada, encarregado do Centro e Sul do Brasil:
“Foy V. Mag.de servido por sua real ordem de 28 de abril de
1732, mandar criar no certão da Capitania das Minas, dous juizes
ordinarios, e dous escrivaens do publico, judecial e notas, hũ no
destricto do Papagayo, distante de Vila Real do Sabará, cabeça da
AHU, ‒ Con. Ultra. – Brasil/ Go – Cx. 1, doc. 26; AHU, ‒ Con. Ultra. – Brasil/ Go – Cx. 4,
doc. 300.
58
AHU, ‒ Con. Ultra. – Brasil/MG – Cx: 30, Doc. 55; provavelmente por ordem do Vice-Rei
do Estado do Brasil: AHU, ‒ Con. Ultra. Cód. 1232, l. 139 v.
59
Tenho pronto um artigo sobre o assunto: Joaquim Romero Magalhães, “Documentos sobre
“Juízes Ordinários” em territórios brasileiros no século XVIII”.
57
68
comarca, outo dias de viagem, e outro no Arrayal de São Romão,
em distancia da mesma Vila, mais de vinte dias, por obviar o
discomodo que aquelles moradores exprimentavão em ter tão
remota providençia, para aprovação dos testamentos, e factura
de algũas escripturas.”
O que se manteve, sendo estes juízes de eleição popular, com
apuramento pelo ouvidor. Também teria sido concedido um juiz
ordinário, com o seu escrivão, para Nossa Senhora da Conceição de
Catas Altas.60 E outro tanto terá ocorrido no distrito do Paracatu.61 Neste
caso seria povoado de mais de 1300 vizinhos, fora os seus subúrbios,
onde viviam “em lavras de ouro e roças de mantimento.” Tinha sido
preciso criar essa intendência “no Arrayal de São Luís do distrito de
Paracatu, comarca de Villa Real de Sabará” por se encontrar a mais de
cento e setenta léguas da Vila do Ribeirão do Carmo.62
Não se icarão pelo sertão da Bahia, do Piauí e das Gerais as
criações destes especiais julgados. Também aparecem estes juízes em
outro território sertanejo:
“o superintendente das Minas dos Goyaz […] dá conta […] em
como attendida a necessidade, que padescião os povos daquellas
Minas de administração de justiça pella distancia em que icão
humas povoações das outras, se assentou em huma junta de
Ministros que se achavam naquela parte no serviço de V. Mag.de
convocados pelo Governador de S. Paulo o Conde de Sarzedas,
que emquanto V. Mag.de se não servia mandar crear as villas nas
povoações a que chamão Arrayaes, se elegessem na forma da
ley dous Juizes ordinarios em cada hum delles e hum Tabalião
do publico judicial e notas e hum Meirinho para servirem com
os ditos Juizes conciderandosse igualmente que estes Tabeliães
se fazião precizos para poderem sem despesa da Real Fazenda
escrever nos livros da matricula, e encher os bilhetes da capitação
AHU, ‒ Con. Ultra. – Brasil/MG – Cx: 45, Doc. 38 e Cx. 32, Doc. 12.
ROCHA, José Joaquim da. “Memoria historica da Capitania das Minas Geraes”, Revista
do Archico Publico Mineiro, Anno 2, vol. 3, Ouro Preto, Imprensa Oficial de Minas Geraes,
1897, pp. 453-456.
62
AHU, ‒ Con. Ultra. – Brasil/MG – Cx. 46, doc. 28, 29 e 46; Cx. 47, docs. 28, 29 33 e 46.
60
61
69
e do censu naquelles Arrayaes com os Intendentes Comissários,
que nelles se nomearão sem ordenado, propinas, nem ajuda de
custo para a cobrança, e arrecadação dos reaes quintos comutados
na refferida capitação e censu […].”63
O Procurador da Coroa e o próprio Conselho Ultramarino
aceitam esta solução, embora ao arrepio dos quadros jurídicos vigentes:
foi esse o parecer de 7 de julho de 1739, para o território de Goiás.64 “E
dandosse vista ao Procurador da Coroa disse que lhe parecia se devia
responder ao Superintendente que com parecer do Governador continue
per ora thé nova ordem no provimento dos Juizes conhecendo delles
por aggravo, e appelação e dandosse tãobem para a Rellação da Bahia.”
Mais: “Ao Concelho [Ultramarino] paresse o mesmo que ao Procurador
da Coroa para que V. Mag.de se sirva por ora de aprovar a creação destes
Juizes e maes oficiaes novamente creados nestes Arrayaes por se
fazerem precizos para a boa administração da justiça.”
Mas o Conselho não esquece o formalismo jurídico:
“Não se ignorou, que esta criação de Juizes, e oficiaes que
com elles servissem, he só própria da regalia de V. Mag.de mas
a preciza necessidade de manter os povos em justiça e socego,
e a indigencia de meios para a arrecadação da Real Fazenda,
junta a notoria deiculdade do recurso a V. Mag.de faz parecer
conveniente a seu real serviço este procedimento provizional,
dependente da sua Real approvação, interpretada pela urgensia
dos insidentes, a que se não podia de outra maneira dar o remedio
prompto que estavão pedindo.”
E nem pela excepcionalidade se deixavam de cumprir as
formalidades normais das eleições concelhias. Os ouvidores e
superintendentes iriam dando conta do que se passava.
Por ordem do Conde de Sarzedas, escreve um deles,
“procedi a eleição nas Minas de S. Felix descobertas por Carlos
Marinho, de dous juizes ordinarios, para o resto daquelle anno
63
64
AHU, ‒ Con. Ultra. – Brasil/Go – Cx. 1, Doc. 23.
AHU, ‒ Con. Ultra. – Brasil/Go – Cx. 1, Doc. 73.
70
de 1737. De hum para as povoaçoens das Terras Novas na Barra
da Palma, e Pernatinga, que distão do Arrayal de S. Feliz quadro
dias de viagem; de outros dous nas Minas de Tocantins e troixe
comigo as pautas para por ellas nos dous annos seguintes tirar
as pessoas, que deverão servir de Juizes ordinarios naquellas
povoaçoens, por não haver arca de concelho em que guardassem
os pelouros, e indo que foi o anno de 1737, em que acabarão de
servir os juizes para elle eleitos, pelas ditas pautas tirei outros
para o prezente ano de 1738, e mandando-lhe expedir cartas de
conirmação, tomado o juramento entrarão a servir.”
E em seguida, e por ordem do novo encarregado de governo
Gomes Freire de Andrada, foram feitos juízes ordinários nos arraiais de
Meia-Ponte, Santa Ana, Crixás.65 De eleição mediada pelo apuramento
do ouvidor.66 Também se nomeou intendente para Meia Ponte, Crixás
e Natividade, que o isco não se fazia esperar.67 Haverá ainda outros
julgados em Goiás ‒ pelo menos cinco em 1742, dez em 1783.68 Vila
Boa permanecerá como único município nesse sertão mineiro.
Também nos territórios do Maranhão e do Pará vamos encontrar
esses juízes. Assim na Ribeira da Parnaíba e no Gurupá necessitavam de
juízes ordinários sem estarem ainda formados os municípios. Foi esse
o pedido do governador da Capitania João de Abreu Castel-Branco, em
1738. Mas em 1746 o pedido alarga-se a Mearim (Vitória do Mearim),
Aldeias Altas (depois Caxias) e Santa Maria do Icatu. Com o mesmo
argumento, o da grande distância e premência em que se izesse justiça
e facilitassem os recursos à autoridade e à justiça.69
AHU, ‒ Con. Ultra. – Brasil/Go – Cx. 1, doc. 60.
Luiz Palacin, Goiás 1722-1822. Estrutura e conjuntura numa Capitania de Minas, Goiânia:
Departamento Estadual de Cultura, 1972, p. 118.
67
AHU, ‒ Con. Ultra. – Cartas régias, Minas Gerais, cód. 241, l. 342.
68
AHU, ‒ Con. Ultra. – Brasil/ Go, Cx. 2, doc. 178; Notícia geral da capitania de Goiás em
1783, edição Paulo Bertran, Goiânia / Brasília: Editora da Universidade Católica de Goiás –
Editora da Universidade Federal de Goiás, 1997, tomo I, p. 99; terão sido delimitados no tempo
do governador Barão de Moçamedes (1772-1778): Luís dos Santos Vilhena, A Bahia no século
XVIII. Bahia: Editora Itapuã, 1969, vol. III, pp. 866-872.
69
AHU, ‒ Con. Ultra. – Brasil/Pa – Cx. 22, doc. 2026 e Cx. 25 doc. 2369; AHU, ‒ Con. Ultra.
– Brasil/Ma – Cx. 29, doc. 02978.
65
66
71
Teriam sido criados outros julgados, nos territórios onde ainda
a rede concelhia não fora instalada? Há que averiguar, sabendo-se que
se tratou sempre de um expediente para as terras mais distantes. Não
se generalizou este procedimento de haver juízes ordinários fora do
quadro concelhio – tratou-se apenas de casos pontuais. Sempre em áreas
de fronteira, de expansão ainda incerta. Nos territórios administrados
há mais anos já não se aceitariam essas soluções provisórias. Assim,
os “Juízes Ordinários” equiparados a Juízes de Vintenas, servem
transitoriamente, dependendo a sua criação da só e indispensável
vontade real.70
Os juízes das vintenas nas freguesias iriam chegando para
satisfazer as necessidades de administração de justiça nas áreas mais
distantes das cabeças dos concelhos. Os juízes pedâneos a partir de 1718
em Minas passam a ser nomeados pelas câmaras. Dois juízes escolhidos
para cada um dos arraiais. Com os respectivos escrivães. Inicialmente
para Padre Faria, em Ouro Preto, eleitos aos mais votos.71 O que só se
concretizará em todas as freguesias das Gerais lá para 1735…
Desde a primeira nomeação sabiam os juízes das vintenas quais
os limites das suas competências e atribuições. Em especial “terão muito
cuidado no sussego do lugar de sua jurisdição atalhando pendencias e
ruidos, prendendo os agressores na cadea” da Vila. Conhecerão por ação
apenas de uma a duas oitavas e meia de ouro, entregando ao Senado
esse produto. Especialmente deveriam “dar execussam as ordens que
deste Sennado ou pello Juizo ordinario lhe forem expedidas.” Sem
iniciativas próprias, em tudo se conformando com a letra da Ordenação
do Reino.72
Estas magistraturas para as áreas das freguesias assumem em
Minas uma relevância insuspeitada no Reino – embora constassem da
legislação (Livro I, Título LXV, nº 73). Provavelmente por causa da
70
CALDAS, José Antônio. “Noticia geral de toda esta capitania da Bahia desde o seu descobrimento até o prezente anno de 1759”, p. 116.
71
AHU, ‒ Con. Ultra. – Brasil/MG – Cx. 45, doc. 95.
72
Atas da Câmara Municipal de Vila Rica [1716-1721]” ]”, In: Revista do Arquivo Publico
Mineiro. Belo Horizonte: Anno XXV, 2º vol., 1938, pp. 61-63.
72
distância. Não obstante as vantagens da permanência local de um oicial,
as câmaras sentem-se “gravemente prejudicadas pella demenuição que
tiverão os seus oficios depois que a camara da mesma villa [do Carmo]
nomeou com hordem de V. Mag.de Juizes e Escrivaens da vintena em
todas as suas freguesias.” Os vintenários por vezes cumprem obrigações
à distância de quatro léguas – pelo que deviam receber ajudas de custo.73
O que será fortemente contestado pelos oiciais concelhios. Pelo que
propõem que as ajudas deixem de ser pagas, limitando-se os juízes
das vintenas a exercer as suas funções apenas nos respectivos arraiais.
Assim teria sido de início. Mas em 1746 já Vila Rica quer que se conte
o caminho para as diligências a efectuar pelos vintenários. E vai ser ao
rei que não parecerá conveniente que isso aconteça.74
Claro que o parecer do Provedor da Fazenda Real não deixa de
referir a questão central:
“Os vintaneyros nos lugares, e tão distantes das villas, como
costumão ser nas Minas são uteis a República, por isso determina
a ley os haja neste Reino onde he menor a distancia dos termos
das cidades e villas, porem os ditos vintaneiros [nas Minas] se
devem conter em não excederem o Regimento que lhe dá a ley, e
não exercitarem o seo oficio fora do seu destrito.”
Foi decisão de 1744, conirmada em 1747.75 Esta magistratura
menor – se assim se pode dizer – exigia a participação de muita gente.
Na Vila do Carmo / Cidade de Mariana, entre 1736 e 1750 houve 60
homens-bons que passaram por esse lugares, no conjunto das freguesias
do termo.76
Se a criação dos julgados e a importância que assumem os juízes
pedâneos têm a ver com a especiicidade brasileira, também o mesmo
73
BARRETO, Abilio Velho. “Sumario do codice n. 11. Cartas, ordens, despachos e bandos do
Governo de Minas-Gerais, 1717-1721”, In: Revista do Arquivo Publico Mineiro. Belo Horizonte: Anno XXIV – 1933, II vol., p. 619; AHU, – Con. Ultra. – Brasil/MG – Cx. 45, doc. 91.
74
AHU, Cartas régias, Minas Gerais, Cód. 241, ls. 307 v e 326.
75
AHU, – Con. Ultra. – Brasil/MG – Cx. 44, doc. 24; Cx. 50, doc. 56.
76
CHAVES, Cláudia Maria das Graças; PIRES, Maria do Carmo; MAGALHÃES, Sónia Maria
de. Ouro Preto (Org.). “Casa de vereança de Mariana: 300 anos de História da Câmara Municipal.”. Editora UFOP, 2008, pp. 56-57.
73
se passa com as juntas que os governadores das capitanias do Brasil
convocavam, reunindo representantes dos municípios. Em especial
algumas reuniões sabemos terem ocorrido precisamente em Minas
Gerais, para decidir do modo de cobrança dos quintos. O que se nem
sempre era do agrado dos governadores, porém consideradas essenciais
para a ixação dos tributos: como foi com o lançamento do processo
da capitação e censo em 1735. O que ocorria não apenas autorizado
como promovido pelo soberano. E onde os procuradores eleitos pelos
concelhos emitiam os seus votos vinculativos. Reuniões que não há
notícia de terem ocorrido no Reino, onde o município pode ser visto
como a-regional e mesmo anti-regional.77 Para além dessas juntas – de
algum modo representativas – também recebiam a designação de juntas
gerais as reuniões convocadas pelos governadores, comparecendo gente
de qualidade e condição com nobreza, clero e populares para decisões
sobre os interesses do concelho.78
A criação de uma vila por si só concretiza a subordinação a
um conjunto de normas de povoamento e colonização. Destina-se a
agregar os moradores que têm em simultâneo de se autogovernar e de
se submeter à autoridade da Coroa: uma coisa não ia sem a outra. O que
correspondia ao que desde o início tinha sido imposto às terras. Onde a
vida corre com os percalços e acidentes de qualquer sociedade, que não
é a realeza nem os poderes locais que podem impedir “que os oficiaes
da justiça a vendam por dinheiro e peitas e rogos dos poderosos”, e
façam “erros e falsidades em seus oficios tirando ha justiça ás partes
em favor dos que mais podem.” Ou que os que “vivem limpamente”
e pertencem ao grupo dos “bons e honrados”, da governança da terra,
gente nobre e de mais qualidade procurem disso tirar proveito.79
77
MAGALHÃES, Joaquim Romero. O alvorecer da modernidade, vol. III da História de Portugal, direc. José Mattoso, Lisboa: Círculo de Leitores, 1994.
78
“Termo que se fez no Palácio do Ex.mo Senhor Gomes Freire de Andrade, Governador e Capitam General do Rio de Janeiro e Minas pellos Procuradores das Camaras das Vilas das mesmas
Minas, 1735”: AHU, – Con. Ultra. – Brasil / SP, Cx. 2, doc. 140; LISBOA, João Francisco.
Crônica do Brasil Colonial. Apontamentos para a História do Maranhão. Petrópolis: Editora
Vozes Ltda., 1976, pp. 379 e 532-534.
79
Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil. Denunciações e conissões de Per-
74
Como a execução iscal se encontrava por detrás de muitas das
escolhas das autoridades, assim também a inquietação dos habitantes
nos territórios mineiros, sempre a aguardar mais iscalizações a um
pagamento que tinham por pesado e injusto e a que procuravam fugir.
Para o que era bom pretexto, em novas situações, invocar a pertença
a outras jurisdições. Assim o izeram os habitantes das minas de
Tocantins, escusando-se a ir pagar a capitação a Sant’ana de Goiás, a
quase oitenta léguas de distância, dizendo pertencerem ao Estado do
Maranhão, “sendo o verdadeiro motivo de sua rebelião, o não quererem
pagar a capitação, e o censo, e viverem na liberdade que permittia
aquele certão.”80
Pouco depois de fundada, Vila Boa de Goiás pedirá privilégios
iguais aos concedidos à vila do Ribeirão do Carmo:
“porque se aquella, sendo a segunda da Comarca de Villa Rica,
mereçeo ser a primeira nos foros, que V. Mag.de foi servido
concederlhe, esta hé tanto de V. Mag.de como aquella, e se os
povos daquella são obedientes ás hordens de V. Mag.de os desta,
são obedientissimos e leais e esta he a primeira villa nestas
Minnas, e como tal cabeça desta comarca, e fazendonos V.
Mag.de esta mercê será servido com dobrado gosto, dos Eleytos
que sahirem nos Pelouros, para esta governança, que muitos se
escuzão com pretextos suisticos, que mostrão provados, porque
se não utilizão, com honrras e distinçoins por premio de seu
travalho (sic).”81
As populações pretendem equipar as novas povoações com
as necessárias ajudas à vida em comum. Como sejam misericórdias e
hospitais. O que nem sempre em Lisboa é atendido. Como o pedido do
Cuiabá que mostra não haver Igreja de Misericórdia, nem hospital para
os enfermos pobres, que são bastantes;
nambuco 1593 - 1595, pp. 29-33 e 41-42.
80
AHU, – Con. Ultra. – Brasil / Go, Cx. 1, doc. 45.
81
AHU, – Con. Ultra. – Brasil / Go, Cx. 2, Doc. 214.
75
“e muitos morrem ao disamparo de queixas adquiridas nestes
sertõis, que tem sulcado com dispêndio de suas fazendas e perdas
de muitas vidas. As doenças mais comuns são a lepra, obstruções,
idropisias, cezões, algũas malinas, e pleurizes, e de todas morrem
muitos pobres por não terem, com que se curar, nem ter chegado
athé o presente a esta terra Medico de proissão, nem cirurgiões
capazes mais que hum e todos os mais que aqui tem vindo são
barbeiros.”
Mesmo assim, o Conselho Ultramarino duvidou da necessidade
dessa criação.82
As terras cuidam da sua sobrevivência e as situadas na fronteira
procuram ligar-se aos vizinhos, mesmo que pouco amigáveis, como era o
caso do Mato Grosso em relação com os territórios da Coroa espanhola.
Porque mesmo as povoações já estabelecidas, como Cuiabá, sofriam
revezes, e a gente ainda não se estabilizara. Como sentiam os homens
da governança, “haver sempre o receio de que se não conservasse esta
povoação por o gentio Payaguá lhe impidir a navegação dos rios, e por
consequência o socorro e commonicação dos povoados.” A vila quase
ameaçara desaparecer, chegando
“a icar quasi deserta no anno de mil setecentos trinta e dois,
e porque no presente tempo (1740) se acha já em grande parte
desinfestada a dita navegação por V. Mag.de ser servido mandar
fazer guerra ao dito gentio, com a qual se lhe fés grande
destruição no anno de mil setecentos e trinta e quatro annos, e
no de mil setecentos trinta e seis, se abrio caminho por terra para
as Minas dos Goyas, e se vay frequentando dos viandantes para
a introdução da cavalaria, e gados dos curaes, de que avia total
carencia e tem os suplicantes por certo que com o favor de Deos,
e de V. Mag.de irá sempre esta povoação em augmento.”83
Porém, uma só povoação, nos longes do Oeste, revelava-se marca
insuiciente, sobretudo no período de deinição de fronteiras em que se
82
83
AHU, – Con. Ultra. – Brasil / MT, Cx. 3, Doc. 139.
AHU, – Con. Ultra. – Brasil / MT, cx. 3, doc. 140.
76
estava. Por isso a decisão tomada em Lisboa em 1741 (e formalizada
em 1746) de instalar mais uma outra vila, esta mesmo na raia: de que
resultou a criação de Vila Bela da Santíssima Trindade, efetivada em 19
de março de 1752.84 Chamavam Pouso Alegre ao sítio escolhido pelo
governador da nova capitania D. Antônio Rolim de Moura nas margens
do Guaporé. Por ter
“a villa a circonstancia de estar ao Poente dos Arraiais, e das Minas
athe agora descobertas, pello que ica cobrindo huma couza, e
outra, e não somente da parte do Pará tem o accesso facil, mas
ainda do Cuyabá, e Araritaguaba lhe era menos deicultozo pella
navegação do Goaporé podendo vir as fazendas dezembarcar ao
seu porto só com o tranzito de terra de cinco dias de cavallos
carregados desde o Jauru athe a passagem do Goaporé, cujo rio
por este meyo será mais frequentado assim com a pesca, como
com a navegação.”
Observadas as redondezas, onde haveria “duas mil duzentas, e
vinte e sete pessoas de conição, em que entrão carijós”, a instalação
ocorreu: “Movido de todas estas razões me rezolvi fundar aqui a villa, o
que se fez a dezanove de Março levantandose o pelourinho, e entrando
a servir os oficiaes da Camera.”85 Talvez pela situação e pelo melindre
político que podia decorrer da vizinhança com os espanhóis para ali vai
nomeado um juiz de fora. Esta vila também desempenhará funções de
cabeça da Capitania de Cuiabá que há pouco fora destacada – separada
da de São Paulo, como a de Goiás (9 de maio de 1748).86 Criando-se
ainda uma prelazia, embora sabendo que o povo “anda todavia volante,
mudando a cada passo o domicilio para onde aparecem melhores pintas
de ouro.”87 E escasseando a população. Pelo que é lembrada a vantagem
da ida de casais das Ilhas a povoar Mato Grosso: “por ser gente mais
MOURA, Carlos Francisco. Antônio Rolim de Moura. Biograia. Cuiabá: UFMT – Imprensa
Universitária – Proedi, 1982, Doc. 41, pp. 139-142.
85
AHU, – Con. Ultra. – Brasil / MT, cx 6, doc. 386.
86
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil. 5ª ed. São Paulo: Edições
Melhoramentos, 1956, tom. IV, pp. 82-83.
87
AHU, ‒ Con. Ultra. – Brasil/ Go, Cx. 3, doc. 264.
84
77
humilde, e pobre, perdendo logo o amor da Pátria, […] fazendo suas
lavouras de que vivem.”88 Todavia, não se acatou a carta régia que
mandava que os vizinhos “de entre si ellejão cinco pessoas para estas
determinarem o sitio em que a villa se deve fundar.” A decisão foi do
governador porque “os moradores destas Minas se inclinavão mais
nesta materia a procurarem o seu comodo particular, do que o serviço
de Vossa Mag.de.”89 É o despotismo a desrespeitar a vontade das gentes.
Despotismo que – na continuação do absolutismo – não dispensa
a organização municipal do território, embora desequilibre a relação de
autoridade e poder com as populações. Procurando menos os consensos
para governar. Mesmo assim mantendo-se como princípio que havia que
criar municípios para a colonização do Brasil. O desembargador Pedro
Gonçalvez Cordeiro, Procurador da Coroa no Conselho Ultramarino
em 1746, assim o airma:
“Que, quem tem experiencia do Brazil, e andou já alguns dos
seus Certões, somente poderá saber a necessidade que há de
se multiplicarem as povoações, e de se criarem justiças, para
melhor comodo dos moradores, e se evitarem os muitos insultos,
que nelles se cometem quotidianamente; sem haver remedio para
tanto mal, e que se havia algum hera somente o de se criarem
villas, e poremse justiças, a que com mayor comodidade se possa
acudir; […].”90
Não se distanciava do parecer emitido pelo Doutor Antônio
Rodrigues da Costa alguns anos antes a propósito da fundação das vilas
das Minas Gerais.
Por se continuar assim a pensar na segunda metade do século
XVIII muitos concelhos se hão-de ainda criar, do Norte da Amazônia
(onde foram uns setenta e tantos) ao Continente do Rio Grande do
Sul, onde a necessidade de organizar as populações os foi impondo.
Porque se entendia que não bastava delimitar fronteiras mas havia
AHU, ‒ Con. Ultra. – Brasil/ MT, Cx. 3, doc. 369.
AHU, ‒ Con. Ultra. – Brasil/ MT, Cx. 3, doc. 386.
90
AHU, Cartas régias, Maranhão, Cód. 209, ls. 187 - 188 v.
88
89
78
que prosseguir na deinição do espaço político e social brasileiro em
que a vida coletiva foi criando poderosas raízes e ainal preparando
a independência. Exceptuavam-se as posições de defesa, como no
Macapá, onde criada a vila em 1758 não funcionou câmara, porque
tudo se subordinava ao governador militar.91 Não era uma instituição
para a guerra. Porque o concelho, como escreveu em 1736 o ouvidor
geral de Paranaguá, conforma e une “em hum corpo sem corrupção
as pessoas de varias calidades que nelle habitão, regulandose pella
admenistração da Justiça.” Mais: “da boa admenistração da Justiça se
segue á conservação das povoaçoens, como origem da pax, extirpadora
dos vicios, e cifra de todas as vertudes.”92
Vilas e justiças iam a par na construção do grande espaço
brasileiro. Poderia não resultar, mas assim se queria que fosse.
91
REIS, Arthur C. F..Limites e Demarcações na Amazônia Brasileira. 1º Tomo. A Fronteira
Colonial com a Guiana Francesa. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1947, pp. 154-155.
92
AHU, ‒ Con. Ultra. – Brasil/ SP, Cx. 2, doc. 141.
79
PRIMEIRA PARTE
Administração e Administradores do Império
Um governador ilustrado:
Francisco de Sousa Coutinho, governador
do Estado do Grão-Pará e Maranhão
Ângela Domingues
Instituto de Investigação Cientíica Tropical
Quando, recentemente, lia uma obra de Daniel Headrich
intitulada “When information came of age. Technologies of
knowledge in the Age of Reason and Revolution, 1790-1850”1,
deparei-me com uma ideia que me pareceu ser inspiradora para
iniciar a abordagem da atividade de um membro da aristocracia
portuguesa de finais do século XVIII durante a sua permanência no
Norte do Brasil, onde o personagem que é objeto do presente texto
desempenhou o cargo de governador e capitão-general do Estado do
Grão-Pará.
O autor mencionado refere que os historiadores do Iluminismo,
inspirados em personagens tão marcantes como Voltaire, Kant,
Diderot, Rousseau e Lavoisier, privilegiaram nos seus estudos
a história do pensamento político, econômico, científico e das
ideias filosóficas e estruturaram as suas teses em função das
tradicionais relações dicotômicas entre a ciência e a razão contra a
religião e a superstição, a tolerância contra o preconceito, a justiça
contra o abuso de poder, ou o contrato social contra o absolutismo2.
Contudo, continua Headrich, é possível verificar naquela época uma
outra espécie de transformação intelectual, que embora não tivesse
merecido a mesma atenção por parte da historiograia contemporânea
porque é normalmente considerada menos dramática ou controversa,
1
HEADRICK, Daniel R. When information carne of age. Technologies of knowledge in the Age
of Reason And Revolution, 1700-1850. Oxford e New York: Oxford University Press, 2000.
2
A corroborar a airmação de Daniel Headrick confronte-se, entre outros, o modelar artigo de
MAXWELL, Kenneth R. Eighteenth century Portugal: faith and reason, tradition and innovation during a Golden Age» In: LEVENSON, J. (org.) The Age of the Baroque in Portugal.
Washington New Haven. London: The National Gallery of Art e Yale University Press, 1993.
83
continua a ser por ela considerada de extrema importância, a saber: a
recolha, processamento, utilização e armazenamento sistemáticos de
informação3.
De que forma é que esta airmação pode ser o ponto de partida
para analisar a atuação de Francisco Maurício de Sousa Coutinho
enquanto elemento constitutivo da administração colonial regional
na colônia brasileira? De que maneira este governador utilizou
uma rede de informações previamente existente que permitia uma
circulação mais ágil da informação entre as povoações lusobrasileiras localizadas numa das franjas mais inóspitas do Império
e o aparelho burocrático central, localizado em Lisboa4? Em que
medida é que estes canais de comunicação político-administrativa
proporcionaram um maior controle geográico e o aumento do poder
soberano do Estado Português sobre o espaço colonial? Teria esta rede
sido usada para permitir uma melhor gestão ou uma administração
mais eiciente?
Francisco Maurício de Sousa Coutinho encontra-se, então,
integrado numa rede clientelar inserida numa cadeia de poder
com interesses comuns, relacionada por laços de parentesco que,
constituída no reino, se ramiicava pelo e sustentava o Império
Ultramarino Português. Estamos, portanto, no âmbito das conexões
imperiais e das elites coloniais estudadas por Maria de Fátima
Gouveia.
Francisco Maurício era Cavaleiro da Ordem de Malta e
capitão-de-fragata do Corpo da Marinha Real. Foi o vigésimo
quinto governador do Estado do Grão-Pará e Rio Negro, nomeado
por carta patente de 23 de outubro de 1789, confirmada por carta
régia de 22 de abril de 1790 5. Tomou posse do cargo a 16 de junho
3
HAEDRICK, Daniel R. When information carne of age. p. 9.
MONTEIRO, Nuno Gonçalo, O central, o local e o inexistente regional. In: OLIVEIRA,
César (Org.) História dos municípios e do poder local (dos inais da idade Média à União
Europeia). Lisboa: Circulo dos Leitores, 1996, p. 80-81.
5
PORTO SEGURO Visconde de, História Geral do Brasil antes da sua separação e
independência de Portugal. S. Paulo: Companhia Melhoramentos de São Paulo, Tomo
IV-V, 3 a edição, s d., p. 346. BAENA, Antônio Ladislau Monteiro de. Compêndio das eras
4
84
desse ano e exerceu-o até 22 de setembro de 1803, altura em que foi
substituído por D. Marcos de Noronha e Brito, oitavo conde dos
Arcos 6. O indivíduo que, dos inícios da década de noventa do século
XVIII aos primeiros anos do centénio seguinte, administrou o Norte
do Brasil era o ilho mais novo de D. Francisco Inocêncio de Sousa
Coutinho, que tinha ocupado os cargos de governador de Angola
e Benguela entre 1764 e 1774, embaixador em Espanha de 1775
a 1781 e um dos principais responsáveis pela assinatura do Tratado
de Santo Ildefonso; e de D. Ana Luísa Joaquina Teixeira de Andrade
e Silva. Era também irmão de D. Rodrigo de Sousa Coutinho que,
à data da nomeação de Francisco Maurício para a administração
do Pará, ocupava o cargo de embaixador plenipotenciário na corte
de Turim e que viria a ser Ministro da Marinha e Ultramar (17961801), Presidente do Real Erário (1801-1803), Ministro e Secretário
de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra entre 1808 e 1812.
Era, ainda, irmão de José Antônio de Meneses Sousa Coutinho (o
Principal Sousa), que foi membro da regência do reino entre 1811
e 1817, e de Domingos Antônio de Sousa Coutinho, que exerceu
cargos diplomáticos na Dinamarca, Itália e Inglaterra entre 1788 e
18337
O espaço colonial que Francisco Maurício de Sousa Coutinho ia
administrar era objeto da particular atenção dos estadistas portugueses
desde meados de setecentos. Esta relevância do espaço amazônico no
discurso político colonial reletia-se, por exemplo, na nomeação de
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão de Sebastião José de
Carvalho e Melo, conde de Oeiras e futuro marquês de Pombal, para
da província do Pará. Belém: Universidade Federal do Para, 1969, p. 222.
6
D. Marcos de Noronha e Brito ocuparia, entre 1806 c 1808, o cargo de vice-rei do Brasil
até à altura em que a família real desembarcou no Rio de Janeiro. Foi governador e capitão-general da Baía (1810-1818): ministro da Marinha (1817) e presidente do ministério constituído junto do príncipe regente D. Pedro (1821) (VEIGA, Raul da Silva. Diplomas régios
e outros documentos dados no governo do Brasil (Coleção Conde dos Arcos). Catálogo.
Coimbra: Arquivo da Universidade de Coimbra. 1988. p. 9.
7
CARDOSO, José Luís. O pensamento econômico em Portugal nos finais do século
XVIII, 1780-1808. Lisboa: Editorial Estampa, 1989. p. 128
85
governador e capitão-general do Estado do Grão-Pará entre 1751 e
17598.
Considero como premissa já adquirida a importância que os
territórios coloniais e, muito particularmente, as colônias americanas
assumiam como pólos estruturadores do pensamento político,
estratégico, econômico, social e cientíico europeu, ao serem
considerados como fatores de prestígio e engrandecimento dos
Estados Ibéricos e enquanto elementos determinantes nos jogos de
poder e nas negociações diplomáticas entre as monarquias reinantes9.
Não pretendo, por isso, desenvolver aqui esta questão.
O meu objetivo consiste em perceber a razão que levava a que
estes indivíduos, oriundos de uma elite estrangeirada, com familiares
próximos a exercer funções de prestígio nas cortes europeias mais
consideradas, e, consequentemente, permeáveis e influenciados
por um programa ideológico, político, científico e econômico tido
como capaz de elevar Portugal ao nível de desenvolvimento das
novas potências em ascensão, fossem escolhidos para desempenhar
altos cargos administrativos no Norte brasileiro. Está-se, claramente,
no âmbito das redes clientelares transindividuais e transgeográicas,
reveladoras de uma estratégia mais eicaz de execução das decisões
do centro administrativo do reino, neste caso relativas aos domínios
coloniais10.
8
DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos. Colonização e relações de poder no Norte do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional
para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses, 2000, p. 128; RODRIGUES, Isabel
Vieira. A política de Francisco Xavier de Mendonça Furtado no Norte do Brasil (1751-1759).
In: Oceanos, nu 40,Outubro/Dezembro 1999, p. 96-110; SILVA, Andrée Mansuy-Diniz.
Imperial re-organization, 1750-1808. In BETHELL, Leslie (Org.). Colonial Brazil. Cambridge e New York: Cambridge University Press, 1987, p. 246;
9
ANDERSON, M. S. The rise of Modern Diplomacy, 1450-1919. Londres e New York:
Longman, 1993. p. 190; SILVA, Andrée Mansuy-Diniz Silva. Imperial re-organization. p.
244 e ss; NOVAIS Fernando A. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (7771808). São Paulo: Editora HUCITEC, 1986, p, 198 e ss.; CARDOSO, José Luís, O pensamento econômico em Portugal nos inais do século XVIII. Lisboa: Editorial Estampa, 1989,
p. 193 e ss.; ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do Império, Questão nacional e questão
colonial na crise do Antigo Regime português. Porto: Edições Afrontamento, 1993, p. 93 e ss.
10
XAVIER, Ângela Barreto e HESPANHA, Antônio Manuel. As redes clientelares. In: MAT-
86
Para além disso, e como em outro local defendi, havia
igualmente um interesse claro da coroa portuguesa em dominar
internamente e deinir externamente o espaço soberano numa área
geográfica onde a autoridade administrativa portuguesa era
contestada por todos os extratos da sociedade colonial e por grupos
a ela externos, tanto habitando o território colonial, como era o caso
dos índios não aculturados, como oriundos de fora desse espaço,
como estava bem patente nas intenções de vizinhos espanhóis
e franceses, que eram movidos por interesses expansionistas,
comerciais, cientíicos e religiosos. O objetivo estratégico e político
era, sem sombra de dúvida, o que a seguinte airmação de D. Rodrigo
de Sousa Coutinho explicita:
“(...) salta aos olhos a receptividade que [no Brasil] há de formar
dois grandes Centros de força hum ao Norte, e outro ao Sul,
debaixo dos quais se reúnam os territórios que a Natureza
dividiu tão providamente por Grandes Rios, ao ponto de
fazer ver que esta concepção política é ainda mais natural
que artiicial. Os dois grandes Centros são sem contradição
o Pará e o Rio de Janeiro (...) Deste modo, os Governos de
Goiazes, de Mato Grosso, do Rio Negro, do Pará, Maranhão
e Piauí são destinados pela Natureza e Arte a dependerem de
hum Vice-rei que reside no Pará e a fazerem com Ele causa
comum”11.
À justiicação ponderada por D. Rodrigo de Sousa Coutinho,
baseada no fato de as capitanias do interior comunicarem
naturalmente com o Pará pela navegação dos grandes rios que
desaguavam no Amazonas (Negro, Branco, Tocantins, Tapajós e
Madeira), outra se deve acrescentar, fundamentada pelas características
especiicas do Atlântico Sul, verdadeira placa giratória de circulação
TOSO, José (Org.). História de Portugal, Lisboa: Círculo de Leitores, vol. IV, 1993, p. 390.
COUTINHO D. Rodrigo de Sousa. Memória escrita pelo Senhor.... de que se remete
copia ao Senhor D. João de Almeida, ao Rio de Janeiro em Julho de 18/0 (minuta). Sobre
o melhoramento dos domínios de Sua Majestade na América. Lisboa: Arquivo Histórico
Ultramarino, s/d., p. 3.
11
87
de pessoas, capitais, produtos, serviços e ideias, um oceano cujo
sistema de ventos e correntes punha mais facilmente o Norte do Brasil
em ligação com Lisboa, a capital do Império, do que com o ViceReinado do Brasil12. Como ponto de ligação situado a meio caminho
entre a terra e o mar, surgia Santa Maria de Belém, capital do Estado
do Grão-Pará a partir de Francisco Xavier de Mendonça Furtado e
sede da administração de Francisco Maurício de Sousa Coutinho13.
Belém era o ponto de confluência e expedição de ordens
e notícias que chegavam da administração central, dos locais
periféricos mais distantes ou dos núcleos urbanos luso-brasileiros
localizados ao redor da cidade. Era a partir dela que se estabelecia
uma relação hierárquica de poder e mando: com as outras capitanias,
como Mato Grosso que, na década de noventa, era governada por
D. João de Albuquerque de Melo Pereira Cáceres (1789-1796) e
Caetano Pinto de Miranda Montenegro (1796-1803); e o Rio Negro;
administrada por Manuel da Gama Lobo de Almada (1786-1799) e
José Antônio Salgado (1799-1804); mas também com as fortalezas
que pontuavam militar e administrativamente o território, dirigidas
por um comandante militar, como era o caso de Macapá, Gurupá
e Santarém; e, ainda, com as vilas e lugares geridos por câmaras,
diretores e principais índios 14
12
Este fenômeno é claramente explicado por ALENCASTRO, Luís Filipe de. O trato dos
viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul. Séculos XVI e XVIII. S. Paulo: Companhia
das Letras, 2000. p.
13
Sobre a cidade de Belém no tempo de D. Francisco Maurício de Sousa Coutinho veja-se SANJAD, Nelson Rodrigues. Nos jardins de São José: uma história do Jardim Botânico
do Grão Pará, 1796-1873. Campinas: Dissertação de Mestrado ao Instituto de Geociências
da Universidade Estadual de Campinas, 2001. p. 66-78; para uma panorâmica geral DERENJI, Jussara da Silveira, Sé, Carmo e Largo do Palácio. Espaços públicos de Belém no
período colonial. In: TEIXEIRA, Manuel (Org.) A praça na cidade portuguesa. Lisboa: Livros
Horizonte, 2001, pp.185-197
14
DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos. Colonização e relações de poder no Norte do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional
para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, p. 151 e SS.; para uma
perspectiva comparada com a Hispanoamérica veja-se SOLANO, Francisco de Solano.
Urbanización y municipalización de Ia población indígena. In: SOLANO, Francisco
(Org.). Estudios sobre Ia ciudad iberoamericana. Madrid: Consejo Superior de Investigacio-
88
Francisco Maurício de Sousa Coutinho ia nitidamente
incumbido de avaliar o território, sobretudo no que dizia respeito ao
seu estado econômico e inanceiro. A administração central acreditava
que o Estado era mal gerido, que os abusos perpetrados eram graves
e constantes e que a Fazenda Real era permanentemente iludida,
sobretudo no que tocava à cobrança dos impostos e aos contratos
de arrendamentos. As instruções entregues ao governador iam no
sentido de se inteirar das receitas e despesas das capitanias do Pará,
Rio Negro e Mato Grosso, socorrendo-se do estudo comparativo
dos balanços inanceiros dos seis anos anteriores a 1790, de
impedir as fraudes e prevaricações dos contribuintes e o descuido e
omissão de quem as tolerava, de dinamizar a economia regional pelo
desenvolvimento agrícola e pela coleta dos recursos naturais15.
Após a sua chegada, o novo governador procurou aperceber-se
das condições em que se encontrava o território que ia administrar,
inquirindo Manuel Gama Lobo de Almada sobre a situação inanceira,
defensiva e logística da capitania do Rio Negro e enviando cartas
circulares aos diretores e vigários das povoações da sua capitania
para o informarem, de forma objetiva, da população aldeada,
da distribuição das terras férteis, da extensão das roças, do tipo
de gêneros cultivados, da extração de drogas do sertão e da pesca
e salga de peixe, dados que deviam ser sistematizados em mapas
distribuídos pelas entidades administrativas laicas e religiosas
das povoações, acompanhados das instruções de preenchimento dos
inquéritos e dos prazos de entrega16.
nes Cientíicas, L983, pp. 252-260.
15
Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino, códice 588. Instrução que levou
Francisco de Sousa Cominho, governador e capítão-general do Pará que foi no navio Águia
e Coração de Jesus, doc. de 1790, ls. 5-35.
16
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Secção de Manuscritos, Livro de registos de cartas e ordens de Francisco de Sousa Coutinho. 9-1-22, does. n” 2, Ofício dirigido a Manuel
Gama Lobo de Almada, de 22 de julho de 1790; n° 3, idem, de 23 de julho de 1790; n° 8,
carta circular para os vigários fazerem as averiguações que se pede no mapa, de 1 de Agosto
de L790; n° 9, Carla circular aos diretores informando que anexa o modelo do mapa. 1 de
Agosto de 1790; nº 29, Carta circular aos diretores, de 1 de setembro de 1790.
89
Enquanto representante do monarca português em território
colonial e membro do sistema político e administrativo de um
soberano esclarecido, o novo governador procurava estabelecer uma
rede de informação segura sobre o território que ia gerir ou, então,
aperfeiçoar o seu funcionamento. Nesta rede, os dados eram oriundos
de várias proveniências: câmaras, diretores, vigários, comandantes
de fortiicações, governadores de capitanias subalternas; e deviam,
por isso, concorrer não só para uma informação mais precisa, mas
também mais controlada e conirmada de assuntos relacionados com
o Pará.
Para além disso, os mapas e as instruções que elucidavam
os órgãos administrativos locais do que, de fato, se queria saber;
revelavam a existência de métodos e técnicas normalizados na
recolha, processamento e seleção de informação destinada à Secretaria
de Estado da Marinha e Negócios Ultramarinos sob a forma de ofícios,
relatórios, gráicos, listagens.
« Monarchs and their ministers who thought of themselves as
enlightened gathered information about their realms through
cartographic projects, population enumerations, and trade
and agricultural surveys. Official investigations and private
research projects brought forth plentiful data about tropical
plants, yields and harvests, the shape of the earth, deaths
from smallpox, and much else »17
Há motivações que se encontram subjacentes à implantação
destes sistemas de informação. Antes de mais, mencione-se a
curiosidade: por uma natureza e uma humanidade estranhas,
exóticas, desmesuradas, que ainda hoje nos atraem e intrigam. Depois,
repare-se que os elementos integrantes da administração colonial
ilustrada entendiam que a governação eficaz do território dependia
do acesso e domínio da informação. O conhecimento geográfico
e o controle político baseavam-se numa cartograia exata, numa
17
RODERICK, Daniel. When information carne of age, p. 11
90
noção pormenorizada dos recursos demográicos, em relatórios sobre
abastecimentos e reservas de alimentos, em projetos de exploração
agrícola e comercial, em relatórios sobre a organização militar,
e estavam intrinsecamente associados à aplicação de reformas
de reorganização territorial, à eficácia na cobrança de taxas
e dos impostos reais e ao domínio eficiente de insurreições
populacionais. Finalmente, o despotismo esclarecido pressupunha
que os monarcas deviam governar em benefício dos seus súbditos,
em nome de princípios ilosóicos e ilantrópicos tão válidos em
inais do século XVIII como eram o bem-comum e a felicidade dos
povos. Consequentemente, monarcas e governantes consideravam
que era indispensável ao bem-estar de cada indivíduo e do todo em
geral controlar a maior quantidade possível de informação para se
tomarem as medidas mais acertadas18.
A confluência de informação de diferentes tipos à
administração regional permitiu que, oito meses após a sua
chegada ao Pará, Francisco Maurício redigisse um parecer dirigido
à rainha sobre a causa da decadência da agricultura nas povoações
de índios do Norte brasileiro, intimamente associada, segundo o
governador, à diminuição da população, resultante da conjunção
de vários fenômenos, nomeadamente as epidemias que assolavam a
capitania, as obras das fortificações, as expedições no Rio Negro e
as viagens para Mato Grosso 19. Contudo, a argumentação de Sousa
Coutinho é claramente alicerçada na experiência de governadores
anteriores, como João Pereira Caldas que, no seu entendimento,
tinha dado estabilidade à agricultura do Estado ao estimular o cultivo
do arroz e do algodão. Mais do que um parecer, este documento
é uma reflexão crítica sobre a atuação dos diretores, avaliados
globalmente como corruptos, gananciosos, cruéis, desumanos;
sobre a injustiça do sistema tributário que não premiava
18
A este propósito veja-se o que já foi referido em Domingues, Ângela. Quando os índios
eram vassalos, p. 300 e ss.
19
A.H.U., Pará. caixa 22 (742), doc. s/n”, Ofício de Francisco de Sousa Coutinho à rainha,
de 22 de março de 1791.
91
equitativamente os indivíduos envolvidos no processo produtivo;
sobre o absentismo dos índios que preferiam viver ociosamente no
mato, isentos de tributos e da prestação de trabalhos pesados, do que
ser maltratados e coagidos por diretores e moradores. Para além
destas críticas, o governador avançava já com soluções, patentes, por
exemplo, nos descimentos de índios do sertão, no ajustamento dos
salários, na limitação das viagens para Mato Grosso, na observância
da legislação protecionista da liberdade indígena, na educação e
civilização dos índios20.
Desde meados de 1790 até 1803, o governador e capitãogeneral seria o impulsionador e executor de uma série de medidas,
tradicionalmente associadas às atribuições do Estado Moderno, “para
aumentar o Estado e pela felicidade dos seus habitantes”: na defesa
da soberania territorial, com repercussões ao nível econômico,
social, educacional e cultural21.
Estes aspectos estão patentes na documentação consultada até
ao momento que, não obstante elucidativa, é lacunar. O universo
documental de que disponho para a análise da administração
de Sousa Coutinho no Grão-Pará é constituído pelos ofícios e
informações dirigidos à Secretaria de Estado da Marinha e Negócios
Ultramarinos e de um códice dos registos expedidos pelo governador
entre 1790 e 1791 para as entidades administrativas do território
sob sua jurisdição, as capitanias subalternas de Mato Grosso e Rio
Negro. O que quero fazer ressaltar é que nesta abordagem não
posso considerar as decisões do governador para a capitania do
Pará nos anos subsequentes a 1791, cujos testemunhos estarão,
provavelmente, depositados (senão na sua totalidade, pelo menos em
parte) nas bibliotecas e arquivos estaduais brasileiros.
20
Repare-se no parecer dado pelo Conselho Ultramarino a este documento: «A primeira informação que deu a respeito deste assunto, consistiu em que este lhe pareceu tão sério que se
deveria pôr à consideração da Rainha. Parece-lhe que os meios que o Governador aponta são os
mais apropriados para evitar a falta de população que há na capitania» (AHU, Pará, caixa 22
(742), doc, s/n°, de 22 de março de 1791).
21
AMARAL, Diogo Freitas. Curso de direito administrativo. Coimbra: Livraria Almedina,
vol. I, 1996. p. 225.
92
Não obstante, as fontes compulsadas permitem-me destacar
quatro linhas de atuação que considero de maior relevância na
atuação de Francisco Maurício de Sousa Coutinho: as críticas
constantes à atuação dos diretores, considerados responsáveis
pela decadência do Estado e pela incivilidade dos índios; o
reconhecimento e a defesa do território, patenteados nas expedições
geográicas e os levantamentos cartográicos realizados aos limites
territoriais com Caiena numa época de indefinição de fronteiras;
a exploração do território designadamente através da agricultura,
como demonstra a fundação do jardim botânico de S. José, que
tinha não só o propósito de aclimatar espécies vegetais exóticas,
como difundi-las e planificar as suas culturas entre os agricultores
com vista à dinamização econômica da capitania; e, inalmente, a
dinamização das comunicações internas do Pará com Goiás, Mato
Grosso e Cuiabá, ou seja, a articulação de um vasto espaço geográico
que Sousa Coutinho queria colonizar, desenvolver economicamente
e governar a partir de um centro político e administrativo autônomo
do vice-reinado do Brasil localizado no litoral: Belém.
O primeiro aspecto diz respeito à atuação dos diretores.
Afirmava o governador, em bando datado de 25 de Agosto de 1790,
que
“o deplorável estado a que se acham reduzidas as povoações
de índios desta Capitania [é explicado] pela escandalosa
conduta da maior parte dos diretores inteiramente esquecidos
da obrigações que lhes são impostas no Diretório, e das ordens
dos meus Antecessores tendentes ao fim de aumentar as
Povoações e promover a civilização dos índios”22.
Esta noção de que o atraso do Estado e a infelicidade dos
povos se deviam à ineiciência e à ambição desmesurada destes
órgãos do poder central a exercer funções nos núcleos urbanos lusobrasileiros é uma constante e culmina na proposta de extinção do
Directório, endereçada a Lisboa depois da nomeação de D. Rodrigo
22
Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, Papéis do Brasil, Avulsos n° 1, doc. 20. n° l.
93
de Sousa Coutinho para a Secretaria de Estado da Marinha e Negócios
Ultramarinos.
No entender de Francisco de Sousa Coutinho, o Diretório
era um instrumento de intervenção moderado do poder colonial
junto das sociedades ameríndias que, aplicado por um período
indeterminado de tempo por Francisco Xavier de Mendonça
Furtado ao território amazônico, acabou por se perpetuar. Os
índios, dizia o governador, tinham sido esquecidos pelo poder
central depois da morte daquele governador, tornado mais tarde
secretário de Estado, e de seu irmão, o marquês de Pombal. Assim,
os princípios de tutela moderada, que atribuíam aos diretores uma
jurisdição não coativa mas diretiva, tinham dado azo ao surgimento
de indivíduos tiranos e incontroláveis, árbitros absolutos, corruptos
e depravados de costumes, que se dedicavam a negócios ilícitos e
prejudiciais aos índios23.
Até à promulgação do decreto régio de 12 de Maio de 1798,
as críticas aos diretores são constantes24: por fazerem uma má gestão
da mão-de-obra composta por poucos índios e raríssimos negros25;
se dedicarem a atividades que lhe eram vedadas, como o comércio
de drogas-do-sertão ou a venda de aguardentes26, maltratarem e
agredirem os índios, tomando-se, assim, responsáveis por inúmeras
desordens e sedições27, descuidarem o cultivo das roças do comum,
Instituto Histórico e Geográico Brasileiro, lata 343, doc. 29. Informação sobre a civilização
dos índios do Pará. por Francisco de Sousa Coutinho, de 2 de agosto de 1797.
24
AH.U. Conselho Ultramarino, códice 588, ls. 181-195; idem. Rio Negro, caixa 19. doc.
52; Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, códice 807, vol. 11, ls 34 e ss.
25
B.N.R.J., 9-1-22, doc. 1, Ofício de Francisco de Sousa Coutinho ao capitão comandante de
Macapá, de 21 de julho de 1790; A.H.U., Pará, caixa 22 (742). Ofício de Francisco de
Sousa Coutinho aos diretores das povoações sobre os índios usados nas canoas do comércio
do sertão, de 12 de fevereiro de 1791.
26
AN./T.T., Papéis do Brasil, Avulsos, n° 1. doc. 20, n° 1, Bando promulgado por Francisco de
Sousa Coutinho. de 25 de agosto de 1790.
27
B.N.R.J., 9-1-22, doc. 30, Ofício de Francisco de Sousa Coutinho ao vigário de Vila
Nova del Rei, de 9 de setembro de 1790; doc. 31; Ofício ao diretor da mesma povoação, de
9 de setembro de 1790; doc. 92; Ofício de Francisco de Sousa Coutinho ao diretor de Pombal,
de 4 de novembro de 1790.
23
94
as plantações dos índios e a atividade comercial das povoações28;
serem responsáveis pela deserção dos ameríndios para o sertão29;
desobedecerem às leis e determinações reais e governamentais3030,
se recusarem a prestar os auxílios necessários de remeiros e
mantimentos aos viajantes e expedicionários31.
Como alternativa ao Diretório, Francisco Maurício propunha
um plano para a civilização dos índios, destinado a corrigir os erros,
excessos e abusos, a fixar e aculturar os ameríndios e a desenvolver
economicamente o Estado do Grão-Pará, expresso na informação
que deu a D. Rodrigo de Sousa Coutinho em 2 de Agosto de 1797.
Com o projeto deinido pelo governador pretendia-se introduzir
«elementos de civilização» junto das comunidades índias, tais como
ferramentas e produtos agrícolas, mas também missionários ou
incentivando o aumento de trocas comerciais, com o objetivo
de contribuir para a implementação da igualdade entre todos os
súbditos portugueses em território colonial32.
O segundo aspecto está relacionado com a defesa territorial.
Nesta altura, mais do que as fronteiras com a Hispanoamérica,
importava a definição da soberania territorial com a França e com
a colônia de Caiena. A proximidade francesa era considerada uma
ameaça. De fato, desde 1777, haviam-se registado incursões de tropas
e colonos franceses em território considerado português pelo Tratado
28
. B.N.R.J. 9-1-22. doc. 23, Ofício de Francisco de Sousa Coutinho ao juiz ordinário de Cametá. de 27 de agosto de 1790; doc. 137, Ofício de Francisco de Sousa Coutinho ao diretor
de Alenquer, de 24 de dezembro de 1790; doc. 138, Ofício de Francisco de Sousa Coutinho
ao diretor de Almeirim, de 24 de dezembro de 1790.
29
B.N.R.J., 9-1-22, doc .29. Carta circular aos diretores das povoações, de 1 de setembro
de 1790.
30
B.N.R.J. 9-1-22, doc. 59, Ofício de Francisco de Sousa Coutinho ao comandante de Gurupá
de 3 de Outubro de 1790; AN./T.T., Papéis do Brasil, Avulsos, n” I. doc. 20, nº 2, Bando
de Francisco de Sousa Coutinho reativando uma carta régia dirigida a Manuel Bernardo de
Melo e Castro de 23 de dezembro de 1762, para se punirem severamente os diretores que transgredissem as ordens relativas ao governo das aldeias c liberdade dos índios, de 11 de setembro
de 1790.
31
B. N. R. J. 1-17-12-2, Ofício de Francisco de Sousa Coutinho a Manuel da Gama Lobo de
Almada de 3 de julho de 1796.
32
IHGB. lata 343, doc. 29
95
de Utrech. E em 1795, tinha havido um recrudescimento expansionista
francês com a incorporação do Suriname holandês nos seus domínios
coloniais sul-americanos33. Para Portugal, os postos avançados
franceses do Oiapoque e do Araguaia significavam uma porta aberta
ao contrabando, uma possibilidade de refúgio para os desertores e,
ainda, uma oportunidade para os diminutos escravos africanos que,
seduzidos pelos princípios revolucionários «liberdade, igualdade,
fraternidade», podiam fugir para a colônia francesa34 Por um lado,
temia-se uma ação ofensiva francesa contra a integridade territorial
lusa no Norte do Brasil, sobretudo como uma consequência das
Invasões Francesas. E por outro, havia por parte de Sousa Coutinho
a vontade manifesta de incorporar Caiena no Estado do Grão-Pará,
ainal uma forma de impedir qualquer contaminação revolucionária e
pôr im à disputa luso-francesa pelo controle da foz do rio Amazonas35.
Tendo em vista a prossecução destes objetivos, que estiveram
sempre presentes ao longo de todo o período da administração de
Francisco de Sousa Coutinho no Pará, empreenderam-se obras de
reparo em algumas das fortiicações e ediicaram-se novos fortes
na foz do rio; instituíram-se patrulhas que policiaram tanto o
litoral oceânico como os vários rios e canais de comunicação que,
vindos do Norte, podiam dar acesso a território luso-brasileiro.
Sobretudo, de Belém izeram-se viagens de exploração geográica
e de reconhecimento das posições avançadas francesas; tomaramse depoimentos de espiões; e deu-se asilo e proteção a senhores
de engenhos que, receosos das retaliações dos seus escravos, se
quiseram estabelecer em território português36. Alguns membros das
33
Ernest Pijning, «The Portuguese Jewish community of Surinam and changing ideas of nation
and Nationhood at the end of the eighteenth century» (no prelo).
34
A.H.U. Pará. Caixa 45 (763). Ofício de Francisco de Sousa Coutinho a Maninho de Melo e
Castro de 1 de março de 1791.
35
SANJAD, Nelson. Nos jardins de São José: uma história do Jardim Botânico do Pará 17961873. p. 77.
36
A.H.U., Pará. caixa 45 (763). Ofício de Francisco de Sousa Cominho a João Vasco
Manuel de Braun. de 24 de fevereiro de 1791; idem. idem, Diário roteiro da diligência
de que estou encarregado pelo governador da praça em conformidade das ordens que tinha
96
demarcações de limites com a América Espanhola, nomeadamente
alguns engenheiros-cartógrafos, permaneceram no Pará depois
de extintas as partidas e ficaram encarregados de proceder ao
levantamento topográico e hidrográico do litoral norte do Brasil,
como foi o caso de José Joaquim Vitório da Costa; ou então, de
elaborar um plano de defesa e fortificação da barra do rio Amazonas,
tal como foi solicitado a José Joaquim Vitório da Costa, Teodósio
Constantino de Chermont e José Simões de Carvalho37.
Um outro aspecto que importa ressaltar na administração
do Norte brasileiro por Sousa Coutinho consiste na implantação de
um jardim botânico em Belém, o primeiro criado em todo o Brasil38.
Cumpre destacar que este fato é importante enquanto relexo de uma
política econômica de desenvolvimento agrícola e comercial que o
governador queria implantar no território sob sua administração,
na qual se integram, juntamente com a aclimatação de plantas
exóticas e a introdução de espécies vegetais estranhas ao território
para exploração agrícola e industrial, a cultura planificada
das plantas e árvores indígenas e a utilização de novas técnicas e
métodos agrários39. O objetivo era dinamizar a economia regional do
recebido do Exm° Governador e Capitão General do Estado, de 26 de maio de 1791; idem,
idem, Ofício de Francisco de Sousa Coutinho a Maninho de Melo e Castro, de 14 de janeiro
de 1793; idem, idem, caixa 47 (764), Ofício de Manuel Joaquim de Abreu a Francisco de
Sousa Coutinho, de 28 de julho de 1795; idem, idem, caixa 47 (764). Ofício de Francisco de
Sousa Coutinho a D. Luís Pinto de Sousa, de 3 de abril de 1796. BAENA, Antônio Ladislau
Monteiro de. Compêndio das eras da província do Pará, pp. 228-229.
37
B.N.R.J., 7-4-19, doc. 4, Ofício de José Joaquim Simões de Carvalho a Francisco de Sousa
Coutinho sobre a hidrograia do rio Amazonas, de 17 de fevereiro de 1799; doc. 5, de 3 de
março de 1799; doc. 7, de 25 de março de 1799; idem, idem, doc. 1, Ofício de Francisco de
Sousa Coutinho a D. Rodrigo de Sousa Cominho, de 27 de abril de 1799. A.H.U. Pará, caixa
52 (766). Ofício de Francisco de Sousa Coutinho a Chermont, Vitorio da Costa e Simões
de Carvalho, de 21 de fevereiro de 1803.
38
Este assunto foi objeto de estudo da tese de mestrado defendida na Universidade Federal de
Campinas em 2000 por Nelson Sanjad. intitulada Nos jardins de São José: uma história do
Jardim Botânico do Pará 1796-1873.
39
DOMINGUES, Ângela. Para um melhor conhecimento dos domínios coloniais: a constituição de redes de informação no Império português em inais de Setecentos. In: Manguinhos
- história, ciência e saúde. vol. V (suplemento), 2001, p.829; SANJAD, Nelson. Nos
jardins de São José: uma história do Jardim Botânico do Pará 1796-1873, p. 79.
97
Pará, incentivando os moradores e os índios das povoações lusobrasileiras a cultivarem produtos para abastecimento interno e
exportação e, nesse sentido, o jardim agrícola de S. José devia ter o
papel de difundir junto da população especímenes vegetais novos e
técnicas de cultivo mais rentáveis e, ainda, de realizar ensaios para
cultivo de produções naturais em larga escala.
Sousa Coutinho acreditava que o território amazônico possuía
capacidades inesgotáveis, quer no que dizia respeito à cultura
da mandioca, arroz, algodão, café, cacau, anil, quer no que se
relacionava com a extração de madeiras e especiarias nativas dos
rios e igarapés da bacia amazônica. Na tentativa de se aproveitarem
as potencialidades naturais do solo, o governador ordenou aos
diretores, vigários e oficiais camarários que obrigassem os índios
e incentivassem os moradores a plantar roças comunitárias e
particulares e a recolher cacau, cravo e outras drogas-do-sertão
pelas margens dos rios40.
De igual modo, estimulou a introdução e climatação de
caneleiras, mangueiras, pimenteiras, craveiros da índia, canforeiras
e outros especímenes que chegaram a território paraense e, mais
especificamente ao Jardim Botânico, oriundos quer do Oriente, quer
da vizinha Caiena41. Pela diversidade climatérica, pela fertilidade da
terra e pela proximidade geográfica do reino, o Norte brasileiro
aparecia como uma alternativa válida às colônias orientais: enquanto
centro de aclimatação e de produção de especiarias, particularmente
numa altura em que a presença portuguesa era contestada no Oriente,
na maioria dos casos com êxito, por outras potências econômicas e
navais europeias, como a Inglaterra e a Holanda42.
40
BNRJ. 9-1-22. doc. 16 A Ofício de Rodrigo de Sousa Coutinho ao diretor de Monsaraz.
de 19 de agosto de 1790; idem, doc. 51, Ofício de Francisco de Sousa Coutinho ao principal
de Mondim, de 24 de setembro de 1790
41
Sobre o processo de aclimatação desenvolvido pelos franceses na Guiana e o jardim de
La Gabrielle cf. REGOURD, Françoi. Maítriser Ia nature: un enjeu colonial. Botanique
el agronomie en Guyane et aux Antilles (XVIIe et XVIIIe siècles). In: Revue Francaise
d’Histoire d’Outre-Mer, tomo 86. n° 322-323, 1999.
42
ALMEIDA, Luís Ferrand de. Aclimatação de plantas do Oriente no Brasil durante os
98
O jardim foi instalado ao lado do antigo Hospício dos
Capuchos de Nossa Senhora da Piedade, convertido no quartel do
Corpo de Artilharia após a expulsão dos missionários e próximo de
uma prisão dos condenados às galés e destinava-se a ser o centro de
um complexo cientíico e comercial programado para ser construído
nos inícios de oitocentos43.
Um outro aspecto que cumpre salientar diz respeito às
ligações entre as capitanias. Belém era o porto atlântico através do
qual se fazia a circulação de ordens e notícias entre a colônia e o
reino juntamente com a capital, outros locais situados no interior do
território desempenhavam um papel de placa giratória de informações,
como era o caso da Barra do Rio Negro, ponto centralizador de
notícias que eram geradas nos núcleos luso-brasileiros dos rios
Negro e Branco, e de Borba, posto extremo da capitania de S. José
do Rio Negro no caminho para Mato Grosso, ou que eram destinadas
a esses locais44. Era até Borba que deviam avançar as remessas do
Pará e, se integradas nos comboios regulares das canoas de ligação,
prosseguir viagem pelas cachoeiras do rio Madeira até Vila Bela da
Santíssima Trindade; ou, caso tal não sucedesse, expedirem-se
avisos para que saíssem canoas de Mato Grosso buscar as mercadorias
e correspondência enviadas45.
As ligações com esta capitania pela navegação do complexo
luvial Madeira-Guaporé, apesar de morosas e arriscadas, eram
regulares, sobretudo depois da autorização concedida por carta
régia de 14 de novembro de 175246. Justiicavam-se na medida em que,
juridicamente, podiam ser evocadas para defenderem as pretensões
portuguesas no sentido de conservar o monopólio de navegação
destes rios e, assim, controlar os acessos ao interior do Estado do
séculos XVII e XVIII. Coimbra: Faculdade de Leiras de Universidade de Coimbra, 1976.
SANJAD, Nelson. Op. Cit., p. 72.
44
B.N.R.J., 9-1-22. doc. 62, Ofício de Francisco de Sousa Coutinho ao comandante de Santarém, de 7 de outubro de 1790.
45
Idem, idem, doc. 75, Ofício de Francisco de Sousa Coutinho ao governador de Mato Grosso
de 18 de outubro de 1790.
46
LAPA, J.R. Amaral. Economia colonial. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973, pp. 23-28.
43
99
Grão-Pará e aos arraiais mineiros de Mato Grosso. Em 1798, a rainha
aprovou um projeto elaborado por Sousa Coutinho para dinamizar e
tornar mais rentáveis estas ligações, através da fundação de uma
povoação luso-brasileira nas cachoeiras do rio Madeira, destinada
a suprir de víveres e remeiros as canoas que viajavam entre o Pará
e o Mato Grosso. As ligações entre Belém e este estabelecimento
deviam ser feitas por duas canoas de grande calado (mais de duas mil
arrobas) por conta da Fazenda Real ou de um arrematador47.
Era, particularmente, a ligação com outras capitanias,
nomeadamente com Goiás e Cuiabá, por outras estradas luviais que
importava a Sousa Coutinho. Logo em 1790, quando tomou posse
do cargo, expediu uma carta circular difundindo a decisão régia de
abrir as comunicações com Goiás através do rio Tocantins e com
Mato Grosso pelos rios Xingu e Tapajós48. Nos anos subsequentes,
um consórcio mercantil visando beneiciar do comércio entre
Belém e Goiás promoveu a navegação dos rios Araguaia e Tocantins,
explorados por Tomás de Sousa Vila Real49. Para o governador, havia
não só que incentivar a iniciativa de Ambrósio Henriques e de seus
sócios pela concessão de mercês, como também de abrir as ligações
de Goiás com o Pará, fundar com reinóis e reforçar com colonos de
povoações já existentes nas capitanias do Norte, com índios e escravos
africanos, as povoações para que se pudessem socorrer eicazmente
os viajantes, e aculturar e civilizar as etnias Carajá e Apinagé que,
apesar de viverem afastadas do contacto com os luso-brasileiros,
mostravam uma apetência notória por ferramentas e outros artefatos
necessários às suas roças50.
47
AHU. Conselho Ultramarino, códice 588, Carta régia a Francisco de Sousa Coutinho. de 12
de maio de 1798. ls. 195-204.
48
B.N.R.J., 9-1-22. doc.73, Carta circular de Francisco de Sousa Coutinho, de 16 de outubro
de 1790.
49
I.H.G.B., lata 281, pasta 4, doc. 2, Cópia do ofício de Feliciano José Gonçalves, Manuel
José da Cunha e Ambrósio Henriques dando conta ao governador do Pará do diário da viagem
de Tomás de Sousa Vila Real, de 1 de março de 1793.
50
I H.G.B., lata 281, pasta 4, doc. 1, Ofício de Francisco de Sousa Coutinho a Martinho de
Melo e Castro, de 8 de março de 1793, BAENA, Antônio Ladislau Monteiro de. Compên-
100
Possivelmente as dificuldades de navegação causadas
pelos troços encachoeirados do rio Araguaia foram um obstáculo
à utilização regular desta via de comunicação porque em 1796,
insistia-se de novo na abertura de uma via luvial que articulasse o
Mato Grosso e Cuiabá com o Pará e Goiás51 De acordo com Sousa
Coutinho, devia haver uma articulação interna entre todas estas
capitanias e o Maranhão, de forma a permitir o estabelecimento de
um sistema de transmissão de ordens eicaz, bem como a circulação
de mercadorias importadas e de produções internas por todo o
território; e ainda o auxílio militar rápido. Propunha igualmente o
governador que estas capitanias formassem uma unidade política
com um governo superior a todos os outros, localizado na costa, e
com uma administração judicial autónoma, evitando-se assim
recursos ao reino ou a Relações distantes52.
De qualquer modo, os rios Araguaia e Tocantins apareciam
como possíveis trajetos a utilizar na comunicação entre as capitanias.
Em concordância com este objetivo, também Tristão da Cunha
de Meneses, governador do Maranhão, mandou explorar algumas
áreas deste complexo luvial pelo capitão de milícias Luís Pinto de
Cerqueira, com o intuito de aí estabelecer colonos luso-brasileiros
motivados pelo comércio com o Pará53.
A administração de Francisco Maurício de Sousa Coutinho
revelou-se muito mais complexa do que a abordagem aqui
efetuada, que relevou, apenas, quatro aspectos que considerei
signiicativos da ação do vigésimo quinto governador do Pará.
Suponho que com esta relexão estará aberto um novo caminho de
investigação sobre o papel da aristocracia estrangeirada e ilustrada
dio das eras da província do Pará, p. 227 e 231; sobre o processo de paciicação destas etnias
veja-se DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos, pp. 293-295.
51
A.H.U. Conselho Ultramarino, códice 588, ls. 116 v°-l 18 v°.
52
B.N.R.J., 1-28, 25,30, Ofício de Francisco de Sousa Coutinho a D. Rodrigo de Sousa Coutinho, de 20 de setembro de 1797.
53
AH.U., Pará, caixa 50 a (769), Ofício de Tristão da Cunha de Meneses a Francisco de
Sousa Coutinho, de 20 de maio de 1799.
101
de inais de setecentos e inícios de oitocentos na construção e na
execução de um discurso político colonial para o Brasil.
102
Da periferia insular às fronteiras do império:
colonos e recrutas dos Açores no
povoamento da América
José Damião Rodrigues
Universidade dos Açores
1. Em 1680, a fundação da colônia do Sacramento na margem
norte do Rio da Prata, autêntica porta de entrada para o contrabando
entre o Rio da Prata e o Perú, comprovou a importância estratégica
que a coroa portuguesa atribuía à bacia platina. Os castelhanos haviam
atingido pela primeira vez a região em 1516, mas foi a segunda fundação
de Buenos Aires, em 1580, que assinalou a airmação deinitiva das
pretensões dos Áustrias à posse desse espaço. A instalação de uma
colônia portuguesa nas margens do Prata, cem anos mais tarde, em
frente a Buenos Aires, representou, pois, um perigo para os objetivos da
Monarquia Católica, abrindo-se assim um foco de tensão em torno dos
limites dos territórios ibéricos na América do Sul que marcou a política
americana das monarquias portuguesa e espanhola entre os inais do
século XVII e a década de 1770.
A descoberta de ouro no sertão paulista na última década de
Seiscentos, “prometendo riquezas e felicidades ao reino de V. Magde.”,
nas palavras de D. João de Lencastre em carta dirigida a D. Pedro II, em
1701, conirmou a “ocidentalização” do império que se desenhara no
século XVII e a importância do Brasil no contexto imperial português1
e o realinhamento político da dinastia brigantina operado no contexto
da Guerra da Sucessão de Espanha e materializado nos tratados
celebrados em março e dezembro de 1703 consagrou em deinitivo a
opção atlântica da monarquia2. Todavia, a conjuntura da guerra, que se
projetou no Atlântico com ataques castelhanos à praça do Sacramento
1
SOUZA, Laura de Mello e; BICALHO, Maria Fernanda Baptista. 1680-1720: O Império
deste mundo, “Virando séculos, 4”, São Paulo, Companhia das Letras, 2000, pp. 19 e 21.
2
Sobre o signiicado destes tratados, ver AAVV, O Tratado de Methuen (1703): diplomacia,
guerra, política e economia, Lisboa, Livros Horizonte, 2003.
103
– abandonada em 1705 – e franceses ao Rio de Janeiro (1710 e 1711),
estes integrados num claro projeto de conquista da cidade e de controle
do comércio aurífero3; as revoltas na colônia e os conlitos entre
colonos, como a Guerra dos Emboabas (1707-1709) e a dos Mascates
(1710-1711), demonstraram que era necessário reforçar a autoridade
metropolitana no Estado do Brasil e providenciar a ocupação e defesa
do litoral, de modo a evitar quer este tipo de ataques, quer o comércio
de estrangeiros.
Em relação a este trato, em julho de 1710, o memorialista José
Soares da Silva dava conta nas suas notas de que um navio de licença
chegara a Lisboa ido da Bahia levando a notícia de que os ingleses
faziam o seu comércio na América portuguesa enviando navios à Bahia,
ao Rio de Janeiro e a Pernambuco e regressando à Europa com ouro,
açúcar e tabaco. E concluía o seu registo a este propósito expressando
o receio de que, caso tão danoso negócio continuasse, estaria em risco
a posse do Brasil, pois, conforme escreveu, “com a demora se faz
irreparável, como tambem a perda deste nosso Reyno sem a utilidade
daquellas Conquistas.”4 Anos mais tarde, Sebastião da Rocha Pita
conirmaria estas palavras, ao denunciar os “grandes insultos e roubos
de piratas nos seus mares, tomando vários navios que saíam dos seus
portos ou a eles iam, e com maior poria depois que se descobriram as
Minas do Sul.”5
Foi pois perante a necessidade de garantir a projeção da soberania
portuguesa nas regiões sul-brasileiras que a monarquia joanina recorreu
à presença de contingentes militares e à ixação de casais ilhéus, política,
de resto, que a coroa portuguesa tinha já praticado no século XVII em
3
BOXER, Charles Ralph. The Golden Age of Brazil: Growing Pains of a Colonial Society
1695-1750, Manchester, Carcanet, 1995 [edição original: 1962], pp. 84-105; SOUZA, Laura de
Mello e; BICALHO, Maria Fernanda Baptista. ob. cit., pp. 41-61; BICALHO, Maria Fernanda.
A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
2003, pp. 268-279.
4
Biblioteca Nacional de Portugal, Fundo Geral, cod. 512, l. 162.
5
PITA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa, apresentação de Mário Guimarães Ferri, introdução e notas de Pedro Calmon, Belo Horizonte, Editora Itatiaia, 1976, p. 257.
104
relação ao Maranhão e ao Pará6. Com efeito, no século XVIII, e apesar
das ordens régias em contrário – publicadas em 1709, 1711, 1713, 1720
e 17447 –, a emigração portuguesa para o Brasil aumentou e contou
com o contributo das gentes insulanas. Não obstante a publicação da lei
de 20 de março de 1720, com aplicação nas ilhas, que surgiu como um
entrave à livre circulação de homens entre o reino e o Brasil, ao longo
da primeira metade de Setecentos a coroa continuou a promover a saída
de “casais” ilhéus para a América do Sul com o objetivo de povoar e
defender as regiões fronteiriças meridionais e setentrionais, optando por
nova estratégia, a dos recrutamentos militares nos Açores, a partir da
segunda metade do século XVIII. É então sobre estes dois tipos de luxos
migratórios rumo ao Atlântico Sul que focaremos a nossa atenção.
2. Ainda durante o período crítico da Guerra da Sucessão de
Espanha e face à ameaça de um ataque ao Rio de Janeiro e outros
territórios da América portuguesa, por ordens régias de 8 de Abril e 26
de Setembro de 1708, foi determinada a recruta na Terceira e nas “ilhas
de baixo” de 200 homens destinados à capitania do Rio de Janeiro e
de 120 ao Maranhão8. Tal como izera no passado e voltaria a fazer
ao longo de Setecentos, a coroa recorria ao alistamento de recrutas
insulanos numa conjuntura difícil.
Nesse mesmo ano, os franceses, comandados por René
Duguay-Trouin, atacaram a ilha de São Jorge e saquearam as vilas de
Velas e da Calheta, provocando grande apreensão nas ilhas, sobretudo
6
RODRIGUES, José Damião; MADEIRA, Artur Boavida. “Rivalidades imperiais e emigração: os açorianos no Maranhão e no Pará nos séculos XVII e XVIII”, Anais de História de
Além-Mar, Lisboa, vol. IV, 2003, pp. 247-263.
7
Francisco Adolfo de Varnhagen, História Geral do Brasil, 5ª ed., São Paulo, Edições Melhoramentos, 1956, tomo IV, p. 99, n. 16.
8
Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Angra do Heroísmo (BPARAH), Arquivo da Câmara de Angra do Heroísmo (ACAH), Livro do Tombo [Registo] (1680-1726), l. 100, carta
régia de 26 de Setembro de 1708; BPARAH, ACAH, Acórdãos, Livro 16 (1706-1714), l. 113,
vereação de 5 de Novembro de 1708; DRUMMOND, Francisco Ferreira. Anais da Ilha Terceira, reimpressão fac-similada da edição de 1850-1864, Angra do Heroísmo, Secretaria Regional
de Educação e Cultura, 1981, vol. II, p. 229.
105
na Terceira9. O ataque francês revelou as fragilidades das estruturas
defensivas existentes nas ilhas açorianas e a coroa reagiu enviando aos
Açores, em 1709, Antônio do Couto de Castelo Branco (1669-1742)
com a missão de inspecionar o estado das fortiicações e das guarnições
pagas, bem como das milícias, nas ilhas dos grupos central e ocidental10.
Na sua descrição, o inspetor régio deu conta da situação encontrada,
mas também se pronunciou quanto à possibilidade de se retirar gente
das ilhas: na Graciosa, e a requerimento dos povos, 200 casais, “porque
a gente que ha é muita, e pouco o em que se occupem e com que
vivam”; e, no Pico, também “alguns casaes, por ter mais gente da com
que pode.”11 Retenhamos esta argumentação: face à pobreza das ilhas
e à sobrepopulação, a emigração constituía uma resposta adequada,
sobretudo quando podia conigurar-se como um serviço da monarquia.
Finda a Guerra da Sucessão de Espanha com a assinatura dos
vários tratados bilaterais de Utrecht e de Rastatt (1713-1715)12, a
Nova Colônia do Sacramento, abandonada em 1705, foi recuperada
por Portugal, conseguindo a diplomacia lusa que a colônia fosse
reconhecida por Espanha como o ponto mais meridional do domínio
português nas Américas. E, após a restituição da praça, em 1716, o
Conselho Ultramarino tratou de promover a ocupação do território com
o recurso a casais de Trás-os-Montes e dos Açores13. No entanto, apesar
BPARAH, ACAH, Acórdãos, Livro 16 (1706-1714), ls. 100 v-102, consulta de 22 de Setembro
de 1708; CUNHA, Manuel de Azevedo da. Notas Históricas, I: Estudos sobre o concelho da
Calheta (S. Jorge), recolha, introdução e notas de Artur Teodoro de Matos, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1981, pp. 463-479; João Gabriel Ávila, “René Duguay-Trouin e a invasão
de Velas, em 29 de Setembro de 1708”, In: Dom Frei Bartolomeu do Pilar, Bispo do Grão Pará e
Maranhão e outras crónicas, Ponta Delgada, Signo, 1992, pp. 69-85.
10
BPARAH, ACAH, Acórdãos, Livro 16 (1706-1714), ls. 180 e 186, vereações de 19 de Fevereiro e 8 de Abril de 1710, respectivamente.
11
Arquivo dos Açores, edição fac-similada da edição original, Ponta Delgada, Universidade
dos Açores, vol. XII, 1983, pp. 460-472, “Carta a El Rey nosso Senhor em que lhe faz relação
Antonio do Couto das seis ilhas baixas e da Terceira, anno de 1709”, maxime pp. 468 e 470.
12
OSIANDER, Andreas. The States System of Europe, 1640-1990. Peacemaking and the Conditions of International Stability, Oxford, Clarendon Press, 1994.
13
MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A Colônia do Sacramento, 1680-1777, Porto Alegre,
Globo, 1937, t. 2, p. 61; Joaquim Romero Magalhães, “As novas fronteiras do Brasil”, in:
BETHENCOURT, Francisco; CHAUDHURI, Kirti. (dir.), História da Expansão Portuguesa,
9
106
do acordado em Utrecht, no terreno as demarcações revelaram-se de
difícil execução, conforme atesta a correspondência trocada entre o
governo da colônia e a Corte nos anos de 1718 e 171914, e a necessidade
de ixar população continuou a fazer sentir-se.
Entretanto, a conjuntura que medeia entre a formação da
Quádrupla Aliança, em 1718, opondo-se às ambições de Filipe V –
que, em 1720, acabaria por integrar a mesma, renunciando ao trono
francês –, e a assinatura do Tratado de Cambrai, a 27 de março de 1721,
conirmando a nova aliança franco-espanhola, revelou-se preocupante
para os interesses portugueses na América do Sul15. Neste quadro,
a crise sísmica e vulcânica que assolou a ilha do Pico nos anos de
1717, 1718 e 1720 forneceu uma nova oportunidade para o Conselho
Ultramarino promover o povoamento português no Brasil meridional,
apoiando a súplica das populações atingidas pelos efeitos da crise, que
requeriam passar às “partes do Brazil”. Em consulta de 31 de outubro de
1720, a posição do Conselho Ultramarino acerca da representação dos
picoenses é exposta de forma clara: o requerimento devia ser atendido
não apenas por ser obrigação dos reis acudir à necessidade dos seus
vassalos e remediar o seu sofrimento, mas, “muito principalmente”,
quando o “remédio” proposto
“he o que maes conuem ao seruisso de vossa magestade e defesa
e bom gouerno da monarchia por ser preciso e muito necessario
que se pouoe a costa do sul [riscado] que corre do porto de
Santos para o sul athe a Noua Colonia, porque contem esta costa
os milhores portos de toda a America portugueza e podendo por
esta cauza recear se justamente que os navios da Europa uendo as
vol. III: O Brasil na Balança do Império (1697-1808), Lisboa, Círculo de Leitores, 1998, pp.
10-42, maxime p. 10; SILVA, Maria Beatriz Nizza da. D. João V, “Reis de Portugal, XXIV”,
Lisboa, Círculo de Leitores-Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa,
2006, p. 210.
14
Maria Beatriz Nizza da Silva, op. cit., pp. 210-211.
15
André Ferrand de Almeida, A formação do espaço brasileiro e o projeto do Novo Atlas da
América Portuguesa (1713-1748), Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 2001, pp. 66-72.
107
desemparadas as queirão ocupar”16.
Para os conselheiros, em nome da segurança e do aumento do
Estado do Brasil, era urgente mandar povoar todos os portos até aos rios
de São Francisco Xavier e Rio Grande de São Pedro e ainda povoar a
ilha de Santa Catarina, cujos moradores, em reduzido número, “uiuem a
medo dos piratas, [riscado] que os obrigão a fornecer lhe os mantimentos
e agoada”17, palavras que parecem antecipar as que Sebastião da Rocha
Pita registará na sua história. Assim, entre 1720 e 1723, o Conselho
Ultramarino procurou organizar, com a colaboração do corregedor dos
Açores e a das câmaras locais, o alistamento de casais que deveriam
rumar ao Brasil meridional18.
O processo não foi célere nem fácil. Em carta de 22 de Agosto
de 1722, o corregedor dos Açores escrevia a D. João V informando-o de
que, em obediência às ordens emanadas da Secretaria de Estado, tratara
de escrever às câmaras picoenses, pedindo-lhes as listas das pessoas que
se haviam voluntariado para irem para a Nova Colônia do Sacramento
e que “estauão de animo” em relação à viagem, na medida em que a
Fazenda Real procurava evitar as despesas do transporte com aqueles
que se revelassem menos motivados. E, de fato, enquanto as listas
iniciais registavam mais de 1.700 indivíduos, as relações recebidas pelo
magistrado no Verão de 1722 indicavam um total de 1.432 pessoas,
divididas em 261 casais19.
Para as gentes do Pico, que trabalhavam uma terra pobre e
16
Cf. Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Conselho Ultramarino (CU), caixa 2, doc. 30, in
Arquivo dos Açores, 2ª Série, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, vol. II, 2001, doc. 31,
pp. 184-186.
17
Idem, p. 186.
18
Sobre estas movimentações, ver Arquivo dos Açores, 2ª Série, vol. II, 2001, docs. 31-38, pp.
184-223, de 31 de outubro de 1720 a 12 de fevereiro de 1723, e docs. 40-42, pp. 254-258, de
julho a dezembro de 1723; Avelino de Freitas de Meneses, Gentes dos Açores: o número e a
mobilidade em meados do século XVIII, trabalho elaborado no âmbito da prestação de Provas
de Agregação, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1997, policopiado; e, do mesmo autor,
“Os Ilhéus na colonização do Brasil: O caso das gentes do Pico na década de 1720”, Arquipélago-história, Ponta Delgada, 2ª Série, vol. III, 1999, pp. 251-264.
19
AHU, CU, Açores, caixa 2, doc. 33, In: Arquivo dos Açores, 2ª Série, vol. II, 2001, doc. 33,
pp. 188-189.
108
insuiciente para o seu sustento, os lagelos da natureza agravavam a
luta quotidiana pela sobrevivência, pelo que a hipótese brasileira surgia
como uma fuga à pobreza. Com efeito, ao chegarem à colônia do
Sacramento, transportadas à custa da Fazenda Real, receberiam ainda
alfaias agrícolas, sementes e “terras iguais às da Europa”20. A importância
desta migração, que libertaria a ilha de um número considerável de
habitantes, a maior parte dos quais em situação de precaridade social,
e, ao mesmo tempo, acudiria à urgência estratégica de povoar o litoral
sul-brasileiro, foi resumida por Antônio de Bettencourt da Silveira,
encarregado de controlar a feitura das listas das pessoas dispostas a
passar à América portuguesa nas jurisdições de Lages e de São Roque.
Após descrever a sua atuação, elogiar a “paterna liberalidade” de D.
João V e defender ser serviço de Deus que o rei ordenasse às câmaras
que embarcassem os casais “pobres e miseráveis” que se não tinham
alistado, “dos quoais eu conhesso muitos que não tem mais que a noite
e o dia”, concluía declarando, num enunciado revelador dos princípios
da cultura política do Antigo Regime, que os alistados deviam ser
obrigados a embarcar “para que focem fazer pouoasonis, con que o real
imperio de el rei nosso senhor se augmente, e já que o não podem seruir
de outra sorte, o siruam desta, e juntamente não percam huma ocaziam
tam […] a de se milhorarem de estado”21.
A oportunidade oferecida à ilha do Pico levou a que também os
oiciais da câmara de Angra decidissem escrever a D. João V, pedindo
ao rei que “mande tirar desta Jlha mil pessoas para [a] nova Colonia
ou para as Comquistas”22. Assim, na sequência da vereação de 22 de
agosto de 1722, os oiciais representaram ao monarca, em nome do
serviço régio, que igual diligência podia ser praticada na Terceira e
recordaram a D. João V que aquela se tratava de uma ilha “opulenta de
gente sem bens nem razão que possa deicultar o seo embarque” e que
todos os anos, nos navios do privilégio, partiam terceirenses em busca
20
Ibidem.
AHU, CU, Açores, caixa 2, doc. 36, de 15 de setembro de 1722, In: Arquivo dos Açores, 2ª
Série, vol. II, 2001, doc. 35, pp. 190-191.
22
BPARAH, ACAH, Acórdãos, Livro 17 (1714-1724), l. 297 v.
21
109
de fortuna no Brasil23. De igual modo, na vizinha ilha de São Jorge,
os oiciais da câmara do Topo produziram uma relação dos moradores
que, dada a “pobreza desta villa e sua jurisdiçam”, estavam prontos a
viajar rumo à Nova Colônia do Sacramento, onde esperavam receber
instrumentos de trabalho, armas, casas e uma légua de terra. Entre
os alistados, contavam-se lavradores, trabalhadores, moços de servir,
vendeiros e oiciais mecânicos24.
Porém, em janeiro e fevereiro de 1723, o desembargador
Antônio Tavares da Rocha, provedor da Fazenda Real nas ilhas dos
Açores, ainda tratava de conirmar quantos eram os casais e as pessoas
que “estavão com animo de serem mudados da jlha do Pico para as
costas ou melhores terras da costa do Brazil”25. Efetivamente, apesar do
transporte correr por conta da Fazenda Real e dos candidatos a colonos
terem recebido a garantia de que, uma vez no Brasil, receberiam
ferramentas, sementes e terra, a demora no processo de registo, a
reavaliação dos riscos por parte de muitos alistados, sobretudo quando
se tratava de mulheres e crianças, e o óbito de outros tiveram, como
consequência, uma diminuição no número dos casais. No inal de um
segundo alistamento, que a coroa ordenara para garantir um maior rigor
na feitura das listas, estavam arrolados somente 315 picoenses e 194
jorgenses do Topo.
Alguns naturais do Pico, como um João Machado, ainda se
esforçaram por expor a D. João V que existiam pessoas dispostas
a embarcar voluntariamente para as terras da Nova Colônia do
Sacramento e, em requerimento anterior a julho de 1723, airmava
23
Cf. AHU, CU, Açores, caixa 2, doc. 35, In: Arquivo dos Açores, 2ª Série, vol. II, 2001, doc.
34, p. 189. Sobre os navios do privilégio, ver GIL, Maria Olímpia da Rocha. “Os Açores e
o comércio Atlântico nos inais do Século XVII (1680-1700)”, Arquipélago, Série Ciências
Humanas, Número Especial, 1983, pp. 137-204; e RODRIGUES, José Damião. São Miguel no
século XVIII: casa, elites e poder, Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 2003,
vol. I, pp. 150-160.
24
AHU, CU, Açores, caixa 2, doc. 34, de 10 e 11 de novembro de 1722 (lista elaborada a 14 de
Agosto de 1722), In: Arquivo dos Açores, 2ª Série, vol. II, 2001, doc. 36, pp. 192-201.
25
AHU, CU, Açores, caixa 2, docs. 37, de 16 de janeiro de 1723, e 38, de 12 de fevereiro de
1723, In: Arquivo dos Açores, 2ª Série, vol. II, 2001, docs. 37-38, pp. 201-223, maxime p. 201
para a citação.
110
estarem alistadas e prontas cerca de 2.000 pessoas “sertaz e bem
dispostas para este embarque, alem de outras muntaz em numaro
que deixarão de alistarce porque os ministros julgarão ser suficiente
esta rezeinha”26. Apelava, pois, para a piedade e a grandeza do
rei esperando que este determinasse a efetivação do transporte.
Mas, apesar da entrada de metal precioso no reino, a Fazenda Real
enfrentava diiculdades na obtenção do capital necessário para custear as
despesas. Em consulta de 20 de outubro de 1723, o Conselho Ultramarino
representou a D. João V que a arrecadação de 300.000 cruzados com
empréstimos a 5% se mostrava difícil, propondo os conselheiros –
entre os quais avulta o nome de Antônio Rodrigues da Costa – que se
recorresse a dinheiro recolhido no Brasil (Minas Gerais, Rio de Janeiro,
Baía e Pernambuco)27. E, no ano seguinte, o mesmo órgão informava o
rei que, embora tivessem sido publicados editais a esse respeito, ninguém
aparecera para assegurar o empréstimo que permitiria suportar o transporte
das gentes do Pico para o Brasil28. A demora revelava-se prejudicial aos
interesses estratégicos da monarquia, mas a pressão em torno da disputa
territorial na bacia platina diminuiu com a reaproximação entre as coroas
ibéricas por ocasião das negociações matrimoniais que culminariam com
a “troca das princesas” em janeiro de 1729.
A crise sísmica de agosto de 1729 proporcionou nova ocasião
para que os moradores da ilha do Pico, pela voz dos oiciais da câmara
das Lages, apelassem para D. João V. Recordaram então que, havia uma
década, tinham já recorrido a Sua Majestade para que este “vzasse de
sua piedade com aquelles mizeraveis vassallos em os mandar transportar
para as costas dos Brasiz”. Todavia, não obstante a promessa do
monarca, nada se concretizara: João Machado Goulart requeria sobre
este assunto havia dez anos e os casais do Pico estavam “padecendo
26
AHU, CU, Açores, caixa 2, doc. 40, In: Arquivo dos Açores, 2ª Série, vol. II, 2001, doc. 40,
pp. 254-256, maxime p. 256 para a citação.
27
AHU, CU, Açores, caixa 2, doc. 41, In: Arquivo dos Açores, 2ª Série, vol. II, 2001, doc. 41,
pp. 256-258.
28
AHU, CU, Açores, caixa 2, doc. 45, de 21 de julho de 1724, In: Arquivo dos Açores, 2ª Série,
vol. II, 2001, doc. 44, p. 259.
111
mares de mizeria”29. Uma vez mais, os naturais das ilhas invocavam a
sua pobreza, pedindo que a piedade régia retirasse 500 casais do Pico, e
novamente o Conselho Ultramarino se pronunciou a favor da ocupação
dos territórios brasileiros com menor densidade de ocupação. No entanto,
a piedade do rei só poderia manifestar-se por meio da sua liberalidade,
que, neste caso, precisava de inanciamento, que não existiu. Assim, face
ao fracasso da iniciativa, a coroa suspendeu temporariamente o projeto
de transportar casais dos Açores para o Brasil.
No início da década de 1730, a disputa em torno do controle da
bacia do Prata atravessava uma fase de relativo adormecimento, após
o episódio da ocupação do sítio de Montevidéu pelos Portugueses, em
1723, que terminou em 1725. Dez anos mais tarde, em 1735, teve lugar
um reacender das hostilidades, que se manteriam até 1737, período esse
durante o qual a colônia do Sacramento esteve cercada30. A Convenção
de Paris de 15 de março de 1737 permitiu declarar o im das hostilidades
na América do Sul, mas, no mesmo ano, Portugal reforçou a sua presença
na região sul do Brasil, contra a oposição espanhola, com a fundação
do presídio do Rio Grande pelo brigadeiro e engenheiro-militar José
da Silva Pais, responsável pelas obras de defesa do Rio de Janeiro ao
Rio da Prata. Foi igualmente este oicial quem assegurou a defesa da
ilha de Santa Catarina, quando esta, juntamente com o Rio Grande,
foi separada da capitania de São Paulo, icando os dois territórios na
dependência jurisdicional da capitania do Rio de Janeiro31.
29
Cf. AHU, CU, Açores, caixa 2, doc. 46, de 30 de outubro de 1729 a 6 de outubro de 1730,
In: Arquivo dos Açores, 2ª Série, vol. II, 2001, doc. 46, pp. 260-262; e Avelino de Freitas de
Meneses, “Os Ilhéus na colonização do Brasil: O caso das gentes do Pico na década de 1720”,
op. cit., pp. 262-263.
30
MASSIEU, Antonio de Béthencourt. Relaciones de España bajo Felipe V. Del Tratado de
Sevilla a la Guerra con Inglaterra (1729-1739), Valladolid-La Laguna-Las Palmas, Universidad de Valladolid-Universidad de La Laguna-Universidad de Las Palmas, 1998, pp. 377-398;
CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid, “Obras Completas de Jaime
Cortesão, XXXI”, 2ª ed., Lisboa, Livros Horizonte, 1984 [edição original: 1950-1963], vol.
II, pp. 551-577; ALMEIDA, Luís Ferrand de. Alexandre de Gusmão, o Brasil e o Tratado de
Madrid (1735-1750), “História Moderna e Contemporânea ‒ 5”, Coimbra, INIC, Centro de
História da Sociedade e da Cultura, Universidade de Coimbra, 1990, pp. 17-25.
31
Artur Cezar Ferreira Reis, “Pais, José da Silva (século XVIII)”, In Joel Serrão (dir.), Dicio-
112
A monarquia bourbônica não conseguiu responder à iniciativa
portuguesa no Brasil meridional, pois a atenção de Filipe V e dos
seus ministros estava orientada para a ameaça de nova guerra contra
a potência naval britânica. O conlito, que icou conhecido como a
Guerra da Orelha de Jenkins, delagrou em 1739, confundindo-se com
a Guerra de Sucessão da Áustria (1740-1748). Portugal, escudandose nos tratados de 1703, optou por manter uma posição neutral, que
permitiu a D. João V evitar o desvio de meios humanos e materiais para
um cenário que não lhe interessava.
Em 1738, foi criada a capitania de Santa Catarina, na dependência
da do Rio de Janeiro, e José da Silva Pais foi nomeado para o respectivo
governo. Tendo visitado a região e constatado que o povoamento era
débil, colocando, por isso, problemas no tocante à defesa da ilha de
Santa Catarina e do litoral, em 1742, o brigadeiro escreveu a D. João
V, defendendo que a presença de casais das ilhas em Santa Catarina
era necessária para a conservação de todo o espaço geoestratégico sulbrasileiro32. Também o Conselho Ultramarino, onde tinham assento
ministros conhecedores dos negócios do Brasil, como o desembargador
Rafael Pires Pardinho ou Alexandre de Gusmão, se pronunciou, em
consulta de 30 de março de 1745, a favor do recrutamento de famílias
das ilhas, “tão precizas para deffença, e augmento daquelle Estado.”33
Foi com este pano de fundo que, em 1746, os moradores dos
Açores, em pedido dirigido ao rei, solicitaram a passagem aos sertões
que se achavam desertos, articulando os argumentos da existência nas
ilhas de uma “grande multidão de povo que nelas se acha sem emprego
nem meios para subsistir e a necessidade que ha de povoadores para o
nário de História de Portugal, s. ed., Porto, Livraria Figueirinhas, 1981, vol. IV, pp. 516-517;
MARTINIèRE, Guy “A Implantação das Estruturas de Portugal na América (1620-1750)”, In:
MAURO, Frédéric. (coord.), O Império Luso-Brasileiro 1620-1750, Nova História da Expansão Portuguesa, direção de Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, Lisboa, Editorial Estampa,
vol. VII, 1991, pp. 91-169, maxime pp. 162-163.
32
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. op. cit., p. 213.
33
PIAZZA, Walter F. A epopéia açórico-madeirense, 1748-1756, 2ª ed., revista, Funchal, Centro de Estudos de História do Atlântico, Secretaria Regional do Turismo e Cultura, 1999 [edição
original: 1992], pp. 65-66.
113
Brasil”34. Nos Açores, as crises cerealíferas sucediam-se com alguma
frequência e atingiam, com diferentes ritmos, as várias ilhas; além disso,
eram geralmente acompanhadas de fomes e doenças. Deste modo, para
as populações de mais parcos recursos, a emigração surgia como uma
forma de fuga a estas situações.
Ora, nesses anos, Portugal negociava com a Espanha os limites
entre os territórios sul-americanos de ambas as monarquias, processo
que conduziria à assinatura do Tratado de Madrid, em 1750, pelo que o
projeto dos açorianos se revelava de grande utilidade, respondendo aos
objetivos estratégicos da coroa portuguesa. Iniciou-se então um período
de grande intensidade emigratória que se estendeu ao longo de vários
anos e que foi estudado em profundidade por Walter F. Piazza e Avelino
de Freitas de Meneses35.
Após a representação dos ilhéus, o Conselho Ultramarino
pronunciou-se favoravelmente quanto à proposta, em consulta datada de
8 de agosto de 1746. Os conselheiros sublinharam a manifesta utilidade
e importância do transporte dos casais em matéria de defesa e de
inanças, propondo o recurso a empréstimos para garantir a deslocação
de 4.000 casais, à razão de 50.000 réis por unidade familiar, e sugerindo
a publicação de editais nas ilhas, que poderiam ir acompanhadas por
uma recomendação da Secretaria de Estado da Marinha e do Ultramar
– a “secretaria de estado das conquistas” – no sentido de se executarem
as ordens do Conselho Ultramarino, apesar dos Açores não estarem sob
a jurisdição deste órgão36.
Em 1746 e 1747, foram emitidas ordens para o corregedor dos
Açores contendo as disposições que deviam ser seguidas no alistamento
dos casais; o regimento que organizava o transporte foi distribuído pelas
autoridades; e o Conselho Ultramarino elaborou um “lembrete” relativo
ao modo como os casais deviam instalar-se e procurou coordenar a
34
AHU, CU, Açores, caixa 3, doc. 10, de 1 a 8 de agosto de 1746, In: Arquivo dos Açores, 2ª
Série, vol. III, 2005, doc. 10, pp. 23-34, maxime p. 23 para a citação.
35
Walter F. Piazza, op. cit. (cf. supra, nota 34); e Avelino de Freitas de Meneses, Gentes dos
Açores: o número e a mobilidade em meados do século XVIII (cf. supra, nota 19).
36
AHU, CU, Açores, caixa 3, doc. 10, de 1 a 8 de agosto de 1746, In: Arquivo dos Açores, 2ª
Série, vol. III, 2005, doc. 10, pp. 23-34, maxime pp. 29-31.
114
atuação entre os ministros régios nas ilhas e no Brasil37. O transporte
foi arrematado a diversos homens de negócio, destacando-se o nome
de Feliciano Velho de Oldenberg38, e o primeiro contingente de casais
partiu dos Açores em outubro de 1747, aportando em território brasileiro
no início de janeiro do ano seguinte39.
O intenso luxo migratório que se iniciou no inal do reinado de
D. João V foi um movimento controlado pela monarquia portuguesa, que
regulamentou a saída dos ilhéus e disciplinou a sua ixação em território
brasileiro, quer na Amazônia – Pará e Maranhão –, quer, sobretudo, na
região dos atuais Estados de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul.
No que respeita ao estado e à condição social, partiram essencialmente
casais, mas também indivíduos solteiros de ambos os sexos, de humildes
recursos, pobres ou no limiar da pobreza, entre os quais encontramos
lavradores, cavadores, trabalhadores e oiciais mecânicos. Quanto ao
número dos que partiram para o Brasil, o total exacto de indivíduos não
recolhe a unanimidade dos autores. Em 1747, entre casais e solteiros,
estavam alistadas cerca de 8.000 pessoas de várias ilhas, como se pode
comprovar pela consulta do Quadro 1.
Quadro 140 – Distribuição por ilhas dos alistados para o Brasil (1747).
Ilhas
Habitantes
Alistados
%
São
Miguel
54.670
328
0,60
Terceira Graciosa
26.433
919
3,48
8.037
771
9,59
37
São
Jorge
13.995
2.820
20,15
Pico
Faial
Açores
20.639
1.816
8,80
16.669
1.287
7,72
151.573
7.941
5,24
AHU, CU, Açores, caixa 3, docs. 11, de 31 de agosto a 5 de setembro de 1746, 13, de 26 de
junho de 1747, e 14, de 17 de agosto de 1747, in: Arquivo dos Açores, 2ª Série, vol. III, 2005,
docs. 11, 13 e 14, pp. 34-60.
38
AHU, CU, Açores, caixa 3, docs. 15, de 17 de agosto de 1747 a 11 de fevereiro de 1756, 21B,
anterior a 17 de junho de 1748, e 53, de 3 de julho de 1748, in: Arquivo dos Açores, 2ª Série,
vol. III, 2005, docs. 15, pp. 60-68, 24, pp. 86-88, e 26, pp. 91-92.
39
PIAZZA, Walter F. op. cit., pp. 305-306.
40
Fonte do Quadro 1: AHU, CU, Açores, caixa 3, doc. 20, In: Arquivo dos Açores, 2ª Série, vol.
III, 2005, doc. 20, pp. 80-81; e MADEIRA, Artur Boavida. População e emigração nos Açores
– 1766-1820, Cascais, Patrimonia, 1999, p. 209, Quadro 93.
115
O destaque vai para São Jorge, onde mais de 1/5 da população se
dispunha a procurar novas oportunidades no espaço brasileiro, e, com
menor importância, para as ilhas Graciosa, Pico e Faial. Cerca de uma
década mais tarde, em 1756, de acordo com um mapa das freguesias
de Santa Catarina, os casais das ilhas que aí residiam eram 1.084, num
total de 3.421 pessoas. Em termos globais, cálculos recentes situam
a perda de efetivos populacionais do arquipélago em cerca de 5,25%
da população, o que não deixou de ser, se levarmos em conta a saída
de gente jovem, pelo que é fácil entender como este surto migratório
condicionou a evolução demográica de algumas ilhas nas décadas de
1760 e 177041.
3. A emigração açoriana com destino ao Brasil continuou ao longo
da segunda metade de Setecentos, apesar da lei de 4 de julho de 1758,
com aplicação restrita aos arquipélagos dos Açores e da Madeira, que
procurou limitar a saída das populações insulares. Estas movimentações
ocorreram paralelamente a outras registradas em diversas zonas do reino,
em especial no Minho, mas a saída dos açorianos, sobretudo aquela que
foi fomentada pela coroa na segunda metade do século XVIII, teve a
particularidade de ser uma emigração essencialmente baseada em levas
de recrutas42. Devemos salientar que a movimentação de açorianos
do sexo masculino e em idade ativa para o exercício militar assumiu
Sobre as cifras deste luxo migratório, ver BOLÉO, Manuel de Paiva. Filologia e História.
A emigração açoriana para o Brasil (Com documentos inéditos), Coimbra, Edição da Casa do
Castelo, Editora, 1945, p. 8; CABRAL, Oswaldo R.. “Os Açorianos”, In: Anais do Primeiro
Congresso de História Catarinense, Florianópolis, Imprensa Oicial, 1950, vol. II, pp. 503-608,
com documentos; PIAZZA, Walter F. op. cit.; PIAZZA, Walter F. ; FARIAS, Vilson Francisco
de. “O contributo açoriano ao povoamento do Brasil”, in Actas da III Semana de Estudos da
Cultura Açoriana e Catarinense, Ponta Delgada, 30 outubro-4 novembro 1989, Ponta Delgada,
Universidade dos Açores, 1993, pp. 191-220, com dados demográicos; e MADEIRA, Artur
Boavida. op. cit..
42
Sobre esta questão, ver RODRIGUES, José Damião. e MADEIRA, Artur Boavida. “A emigração para o Brasil: As levas de soldados no século XVIII”, In: Portos, Escalas e Ilhéus no
relacionamento entre o Ocidente e o Oriente. Actas do Congresso Internacional Comemorativo
do Regresso de Vasco da Gama a Portugal, Ilhas Terceira e S. Miguel, 11 a 18 de abril de 1999,
Lisboa, Universidade dos Açores-Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001, 2º vol., pp. 109-130.
41
116
contornos de uma verdadeira emigração, com características próprias
que inluíram no movimento natural dos ilhéus. As suas repercussões
tiveram igualmente um efeito adverso na estrutura socioeconômica,
que se ressentiu da falta de mão-de-obra masculina em idade ativa.
Em 1766, foram recrutados na ilha de São Miguel 200 homens,
que seguiram para o Rio de Janeiro. Sobre o método de recrutamento
adoptado, o sargento-mor de São Miguel, Antônio Borges de Bettencourt,
referiu que os candidatos, entre os quais se contavam ilhos de elementos
das governanças nobres da ilha, “forão concorrendo voluntariamente
thé se prefazer o numero”. A esse propósito, acrescentou ainda
“que se mayor fora mais gente avia voluntaria, desta escolhi a
melhor e todos os rapazes que poucos excedião a idade de 24 annos
com os quais julgo se daria por satisfeito o Excelentissimo Conde
da Cunha, porque sertamente herão avultados, e bem igurados os
ditos soldados, que sem discomodo antes com utilidade da jlha
pela muita gente que tem, se podião repetir as levas”43.
Os voluntários chegaram ao Rio de Janeiro a 9 de agosto de
1766, na charrua Nossa Senhora da Conceição. Sobre esta recruta, o
conde da Cunha, vice-rei e capitão-general do mar e terra do Estado do
Brasil, escreveu a 10 de setembro que
“por serem todos voluntarios, de boas iguras, e desembaraço, hé
muito propria para o ministerio a que vem destinada. A dita Recruta
tem aprendido o Manejo com gosto, e brevidade; e parece-me
que entre elles vem alguns, que poderão vir a ser oficiaes, por
serem ilhos de pessoas nobres, e tão bem doutrinados, que se
fazem distinguir entre os mais.”44
Concluía o vice-rei que era necessário fazer-se outro
recrutamento,
“não só porque já nesta Capitania se não podem fazer muitos
43
AHU, CU, Açores, caixa 5, doc. 49, 5 de agosto de 1766, In: Arquivo dos Açores, 2ª Série, vol.
IV, 2007, doc. 96, pp. 519-570, maxime p. 519 para a citação (desenvolvemos as abreviaturas).
44
AHU, CU, Brasil-Rio de Janeiro, caixa 86, doc. 11, 10 de setembro de 1766.
117
Soldados, mas tambem porque quazi todos os Soldados do tempo
de meo Antecessor são já de mayor idade, cazados, cheyos de
ilhos, e achaques, sendo estes os melhores, que a Tropa tinha.”45
A opinião do conde da Cunha seria reforçada por uma carta
do bispo do Rio de Janeiro, frei Antônio do Desterro, datada de 22
de dezembro do mesmo ano, na qual, a respeito de problemas com as
ordenações sacerdotais, aquele religioso denunciava que, na cidade, não
se achavam “homens moços para recruta das Tropas”, em parte devido
ao elevado número de clérigos, a maior parte dos quais ociosos46.
O recurso à recruta nas ilhas, composta por homens “de boas
iguras”, era, pois, essencial, tanto mais que, apenas chegados ao Rio
de Janeiro, uma parte dos homens era enviada para as praças do Sul,
juntamente com outros mancebos, recrutados na colônia. Em setembro
de 1766, a cidade do Rio de Janeiro tinha três regimentos, com um
total de 2.390 praças, e haviam sido enviados 276 novos recrutas para
a ilha de Santa Catarina, 180 para o Rio Grande e 429 para a Colônia
do Sacramento47. Assim, as autoridades no reino, nas ilhas e no Brasil
continuaram voltadas para os Açores e, em particular, para São Miguel
de modo a que a formação de novos contingentes militares continuasse
a efetivar-se. O conde da Cunha, em meados do ano de 1767, reconhecia
a importância da recruta insulana48, mas estava consciente de que essa
45
Ibidem.
Idem, caixa 86, doc. 60, 22 de dezembro de 1766.
47
Idem, caixa 86, doc. 19, 16 de setembro de 1766. A atenção prestada pela coroa portuguesa
às questões militares relectiu-se nas medidas levadas a cabo pelo conde da Cunha no ano de
1767, quando, para execução da carta régia de 22 de março de 1766, mandou alistar todos os
moradores da sua jurisdição “que se achassem em estado de servir nas Tropas Auxiliares, sem
exceção de Nobres, Plebeos, Brancos, Mistiços, Pretos, Jngenuos, e Libertos”, para formar terços de auxiliares e companhias de ordenanças, de infantaria e de cavalaria. Cf. idem, caixa 87,
doc. 24, 4 de fevereiro de 1767, e doc. 25, com a mesma data.
48
“A percizão que há de Se Completar o numero dos Soldados que São nesseçarios nos tres
Regimentos desta Capital, asim Como tambem do da Praça da nova Colonia, no dos Dragões
do Rio Grande e nas Seis Companhias que guarnecem Santa Catherina he Constante a Sua
Magestade. Por este motivo foy o mesmo Senhor Sertido [sic] mandar no anno procimo paçado
Conduzir para esta Terra da das [sic] Ilhas dos Assores, duzentos Homens, e detreminar que no
prezente venham outros tantos”. idem, caixa 88, doc. 66, 27 de julho de 1767.
46
118
não poderia ser a única solução, nomeadamente devido a problemas de
ordem econômica. Não obstante, as levas de militares prolongaramse durante a segunda metade do século, com um impacto bastante
acentuado sobre a estrutura socioeconômica insular.
Quadro 2 – Recrutamentos militares nos Açores (segunda metade do século
XVIII).
Ano
1766
1767
Ilha
São
Miguel
200
São
Miguel
200
Recrutas
Total
1774
1774
1775
1788
1796
1798
Várias Várias Várias Várias Várias Várias
[?]
600
215
1.000
600
400
600
3.815
Apesar das críticas e das diiculdades de mão-de-obra masculina
que se faziam sentir nas ilhas, na viragem de século os recrutamentos
continuaram a efetuar-se. Por ofício de 19 de outubro de 1799, os
governadores interinos dos Açores trataram de responder a novo pedido
de recruta de sessenta casais de “pessoas robustas” destinadas a um
novo estabelecimento que se projectava criar na Bahia, processo que
continuou no ano seguinte49. Em 180450, lançou-se um recrutamento de
1.000 indivíduos e, em 180951, solicitava-se novamente às autoridades
açorianas que recrutassem pelo menos 3.000 mancebos. Como corolário
de todo este luxo multissecular, a presença açoriana no Brasil foi-se
consolidando. A título de exemplo, reiramos que, em 1801, com base
nas listas de habitantes da capitania de São Paulo, 20% dos homens
era oriundo dos Açores, percentagem unicamente ultrapassada pela dos
minhotos, com 45%52.
49
AHU, CU, Açores, caixa 30, docs. 30, 19 de outubro de 1799, e 38, 22 de outubro de 1799;
caixa 32, doc. 13, 8 de maio de 1800; caixa 34, doc. 12, 23 de junho de 1800; caixa 40, doc.
3, 4 de julho de 1801; Francisco Ferreira Drummond, Anais da Ilha Terceira, reimpressão fac-similada da edição de 1850-1864, Angra do Heroísmo, Secretaria Regional de Educação e
Cultura, 1981, vol. III, p. 97.
50
AHU, CU, Açores, Caixa 45, doc. 5, 20 de fevereiro de 1804.
51
BPARAH, Capitania Geral, Livro nº 3 do registo das ordens expedidas pelas secretarias de
Estado ao governo das ilhas dos Açores, 26 de abril de 1809-7 de maio de 1814, ls. 4v-5, nº 30
e 31, julho e novembro de 1809.
52
Cf. FLORENTINO, Manolo. e MACHADO, Cacilda. “Ensaio sobre a imigração portuguesa
e os padrões de miscigenação no Brasil (séculos XIX e XX)”, Portuguese Studies Review, 10
119
A mobilidade tradicional dos açorianos em direção à América
do Sul foi apenas interrompida com os problemas políticos decorrentes
da revolução liberal de 1820 e a independência brasileira. O fato de o
Brasil se ter tornado um país estrangeiro acarretou novos problemas
de circulação. Seria somente na década de 1830, após a guerra civil
em Portugal e a implementação de reformas administrativas que
recomeçaria a emigração para o Brasil, mas agora com diferenças
consideráveis em relação ao passado.
5. É, pois, evidente a importância desempenhada pelos Açores
na colonização do território brasileiro até ao início do século XIX. Se
estas movimentações ocorreram em paralelo com outras registadas em
diversas zonas do reino, a saída de açorianos teve a particularidade de ser
uma emigração estratégica, essencialmente colonizadora e deinitiva,
sobretudo aquela que se organizou em torno de movimentações
familiares, os “casais”, ou militares, as “levas”. Neste contexto, embora
a política dos “casais” tenha sido aplicada também no Amazonas
e na Bahia, foi sobretudo na fronteira sul-brasileira que o papel dos
migrantes açorianos teve um impacto maior e mais duradouro. E, sobre
a importância desempenhada pelos Açores na colonização das periferias
do vasto território brasileiro53, podemos concluir com as palavras inais
do romance de Luiz Antônio de Assis Brasil, Um quarto de légua em
quadro:
“Os ilhéos, huma vez que as Missoens nam se desocuparam, já
se accomodam & alguns athe tornaram-se grandes proprietários
& abastados fazendeiros.Já nam querem mais voltar para o
Archipelago, apezar de jamais esquecerem os padecimentos sem
conta que passaram.”54
(1), 2002, pp. 58-84, maxime p. 59.
Para o século XVII e para a bacia do Amazonas, ver RODRIGUES, José Damião e MADEIRA, Artur Boavida “Rivalidades imperiais e emigração: os açorianos no Maranhão e no Pará
nos séculos XVII e XVIII”, lop. cit..
54
BRASIL, Luiz Antônio de Assis. Um quarto de légua em quadro, s. l., Direção Regional das
Comunidades-Editora Movimento, s. d. [2005], p. 205.
53
120
Em busca de um lugar nas conquistas ultramarinas:
Trajetória e Luta de Manuel de Almeida Mattoso
pelo ofício de Ouvidor da Comarca das Alagoas
(Século XVIII)1
Antonio Filipe Pereira Caetano
Universidade Federal de Alagoas
A corrida dos homens do Antigo Regime português por aquisição
de cargos ou ofícios junto à coroa lusitana explica, em grande parte, o
sentido de existência e da manutenção do poder régio ao longo de vários
séculos. Como resultado da demonstração de idelidade ao monarca,
sobretudo a partir da realização de feitos e prestações de serviços, essas
honrarias dotavam o beneiciado de status social e prestígio político que
progrediam com o tempo, com as ações e com as maiores demonstrações
de imagens de iel vassalo do rei.
De maneira generalizante podemos dividir em três grandes
grupos as possibilidades de concessões de ofícios/cargos no Antigo
Regime: os administrativos (tabelião, escrivão, provedor), os militares
(capitães, sargentos, oicial) e os jurídicos (juízes, ouvidores,
desembargadores). Este último grupo, que ganhava o maior estatuto de
letrado, também se exigia, para sua ascensão a formação em Direito.
Mesmo existindo a presença de homens não letrados no mundo jurídico
moderno, as possibilidades de crescimento na magistratura se limitavam
se a formação não acompanhasse os feitos enquanto atuante nos cargos
a eles direcionados.
Marcado por grande autonomia e com características e regras
especíicas na carreira, a magistratura portuguesa tinha um elemento em
comum com os demais ofícios régios (além do fato de serem concessões
monárquicas): o lugar que a América possibilitava para aqueles que
Esse texto é fragmento da pesquisa, inanciada pelo CNPq, entre 2010-2012, intitulada “Para
Julgar, Tirar Devassas e Manter a Ordem...”: A Atuação da Comarca das Alagoas e seus Ouvidores (1712-1798).
1
121
se aventuravam na experiência de cruzar o Atlântico, na ascensão na
carreira administrativa. Neste caso, viver a experiência nos Trópicos
poderia signiicar uma corrida mais rápida ao cargo mais cobiçado entre
os magistrados portugueses do século XVIII: o lugar de desembargador
no Desembargo do Paço2. Esse, talvez tenha sido o intuito de Manuel
de Almeida Matoso (como de tantos outros homens) quando veio parar
na Comarca da Alagoas, em 1721, para assumir as funções de ouvidor
daquela localidade. Por outro lado, o mesmo não imagina a agrura na
qual se metia, não só pelas diiculdades de sobrevivência que aquela
conquista proporcionava, como também o imbróglio que viveria apenas
para ter o direito em ocupar o ofício que lhe fora nomeado. Assim, o
presente texto visa acompanhar a trajetória desse personagem, sobretudo
enquanto agente régio no território alagoano, buscando apontar como
os espaços americanos exigiam comportamentos extremados para a
garantia de suas funções, principalmente para aqueles que almejam
uma ascensão em sua carreira.
A saga em busca de um lugar ao sol de Manuel de Almeida
Matoso inicia-se de maneira mais difícil possível, no Tribunal do Santo
Ofício. Quando, em 9 de outubro de 1719, entrava com processo junto à
instituição eclesiástica para adquirir o lugar de familiar do Santo Ofício.
Com base em Daniela Calainho, pode-se airmar que essa postura de
Manuel Matoso não era estranha aos regulamentos da magistratura
portuguesa, visto que os instrumentos burocráticos e políticos eram
devassados pelo Tribunal do Santo Ofício para tentar coibir a presença
de indivíduos com marcas de defeito de sangue, contribuindo para a
formação de uma elite administrativa pura e limpa3. Segundo Calainho,
O Regimento da Inquisição portuguesa de 1640 e o Regimento
dos Familiares determinavam (...) as pré-condições necessárias
ao preenchimento do cargo: teriam de ser indivíduos cristãos2
Para essa discussão, CAMARINHAS, Nuno. Juízes e Administração da Justiça no Antigo
Regime: Portugal e o Império Colonial, séculos XVII e XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.
3
CALAINHO, Daniela. Agentes da Fé: Familiares da Inquisição Portuguesa no Brasil Colônia. São Paulo: EDUSC, 2006.
122
velhos, limpos de sangue, que não ocorreram em nenhuma infâmia
pública, nem fossem presos ou penitenciados pela Inquisição,
nem descendentes de pessoas que tivessem “algum dos defeitos
sobreditos”. A “boa vida e costumes” era, junto com a pureza
do sangue, requisito fundamental para que se habilitassem aos
“negócios de importância e segredo do Santo Ofício4.
Logo, o processo de aquisição do lugar de familiar do Santo
Ofício exigia uma investigação profunda da vida ascendente e dos
costumes do candidato, o que obrigou a Manuel Matoso ter sua pureza
de sangue avaliada pelos eclesiásticos antes da concessão do ofício. Foi
exatamente a partir desse processo instaurado pelo suplicante que se
pode ter acesso, em grande parte, de sua vida pessoal, de suas origens e
relações sociais, já relexão biográica.
Natural da freguesia de São Miguel de Fermulã, do Bispado
de Coimbra, Manuel Matoso engrossaria o índice proposto por Nuno
Camarinhas que apontou que 4,9% dos magistrados no Antigo Regime
português eram oriundos de Coimbra, perdendo apenas para Lisboa
(20,9%)5. Ser precedente daquela localidade pode ter facilitado o acesso
à Universidade e sua formação em bacharel em Direito, principalmente
porque alegava que todos os seus familiares pertenciam à mesma região
coimbrã. Seus pais, Antonio Matheus e Izabel de Almeida, de quem era
ilho legítimo; e seus avós paterno, Matheus André e Ana Dias; e seus
avós materno, João de Almeida e Ana Pereira tinham raízes no norte
de Portugal6, demonstrando a consolidação familiar em uma localidade
especíica com as características requisitas: cristãos velhos e limpos de
toda a infecta nação7. O único desvio de localidade teria sido a avó
materna, natural de Canelas, que um dos padres responsáveis pelo
processo airmava que era batizada, não causando constrangimento na
ascendência familiar.
4
Idem, p. 59.
CAMARINHAS, Nuno, Op. Cit., p. 140.
6
Arquivo Nacional/Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações,
Manuel de Almeida Matoso, Mç 85, Documento 1608, l. 6.
7
Idem, l. 5.
5
123
Sua formação também é adquirida através desse processo,
quando se indicou ter tido a formação em Bacharel nos Sagrados
Cânones e que havia chegado naquela localidade há pouco tempo,
vindo de Lisboa aonde tinha ido participar da leitura de bacharéis na
Mesa do Desembargo do Paço. Nascido em 21 de junho de 1686, na
altura do processo encontrava-se com 33 anos o que também converge
para as impressões de Nuno Camarinhas sobre os magistrados lusitanos
quando airma que os candidatos apresentavam-se a exame após uma
longa carreira de estudos universitários e de prática de advocacia, o que
explica a sua média de idade elevada. No início da série mais completa
de dados, a média de idade dos candidatos é de 30 anos8.
Com a idade certa, formação correta, as origens familiares
adequadas, Manuel Matoso era um personagem adequado para receber
a chancela do Tribunal do Santo Ofício. Para além de tudo isso, a
condição abastada dos seus entes também contribuiria para o desfecho
positivo do processo. Em suas investigações, os padres do Tribunal
atestavam que:
(...) seus pais Antonio Matheus e Izabel de Almeida, lavradores
atuais são ricos em fazendas de raiz, pensões e senos e juros, e é
a casa grossa desta freguesia, e seu pretendente a alguma coisa
terá dinheiro que tenha interessado pelas letras, de que até algum
usou nos Auditórios do Bem posta a Angeja e do presente o não
fará por está na expectação do lugar do serviço de El Rei Nosso
Senhor (...)9
O lugar de família abastada e com possibilidades de gastos era
algo que agradava ao Tribunal do Santo Ofício já que a instituição podia
ter nos recursos familiares a garantia do exercício das funções sem busca
de ganhos extras inanceiros com isso. Como eram homens do mundo
agrícola, suas garantias de pureza de sangue só se avolumavam. Mas,
8
CAMARINHAS, Nuno, Op. Cit., p. 255.
Arquivo Nacional/Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações,
Manuel de Almeida Matoso, Mç 85, Documento 1608, ls. 6-6v.
9
124
por outro lado, havia uma mácula duvidosa em sua trajetória apontada
pelos religiosos da Inquisição:
(...) Pelo que deve o seu procedimento lhe não conheço defeito
em sua vida e costumes, no que tudo convém os ditos Padres
comigo, e só é público dissesse tem uma menina chamada Mana
de uma Mariana solteira da minha anexa de Angeja cujos avós se
chamam Manoel Fernandes Chacorreyro e Páscoa de Figueiredo,
todos naturais da dita minha anexa, limpos de sangue, e geração
sem raça ou descendência de nação infecta, e do livro dos
batizados consta atestado por pai10.
Possuir uma ilha ilegítima não era algo que agradava aos olhos
do Tribunal, mas o conjunto de fatores a seu favor eram maiores do
que o deslize de um relacionamento fugaz com uma moça solteira. Não
é a toa que no momento de listar suas características, a condição de
“amancebado” era sempre posta em último lugar:
(...) é legítimo cristão e limpo de toda a infecta nação, sem fama,
nem rumor em contrário, pessoa de boa vida e costumes, e tem
capacidade para a ocupação que pretende, está habilitado pelo
Desembargo do Paço e nele tem lido para servir os lugares de
letras, é solteiro, vive com bom tratamento, seu pai é lavrador,
rico, e abastado e lhe assiste com tudo o necessário, dando lhe
um cavalo em que anda, é notória que houve de uma Mariana
Solteira uma ilha a qual no Livro dos Batizados está dado por
Pai, e que esta, por mãe e avós, é legítima e inteira cristã11.
Em primeiro lugar importava ser cristão, depois ser nobilitado
na lei e ocupante de cargos dessa natureza, em seguida visto como
proprietário de terra familiar e, por im, que havia tido uma ilha
ilegítima, porém batizada e de família também pura e não infectada por
sangue impuro. Logo, não é de se estranhar que havia conseguido seu
10
11
Idem, l. 6v.
Idem, l. 3.
125
posto almejado e, naquele momento, ao logo do processo inquisitorial,
conquistava também, em 16 de agosto de 1719, o título de escudeiro
e cavaleiro idalgo da coroa portuguesa, com 450 réis de moradia no
primeiro cargo, e mais 300 réis no segundo. Além disso, ganhava 740
réis de moradia e um alqueire de cevada por dia por assumir todas essas
atribuições12. Ou seja, Manuel de Almeida Matoso saía de toda essa
conjuntura como familiar do Tribunal do Santo Ofício e mais 1490 réis
no bolso.
Quando conquistou, em 3 de abril de 1721, a magistratura
de Ouvidor da Comarca das Alagoas e, junto com ele, a função de
Provedor das fazendas, defuntos, ausentes, capelas e resíduos da mesma
localidade (como era costumeiro naquela região a fusão dos dois ofícios)
por ter atuado em bom serviço em nome da coroa portuguesa, sua
trajetória de magistratura antecedente não foi assinalada na concessão
da mercê? Assim, sabe-se, apenas, das mercês de familiar do santo
ofício, escudeiro e idalgo da coroa, bem como na leitura de bacharéis
na mesa do Desembargo do Paço. Pensar na hipótese da Comarca das
Alagoas ter sido a primeira etapa da magistratura de Manuel Matoso é
extremamente tentador, mas não coaduna com as informações de Nuno
Camarinhas, Stuart Schwartz e Arno Wehling que defendem a existência
de uma trajetória hierárquica progressiva dos letrados na magistratura
portuguesa de juízes ordinários até ocupação de cargos mais elevados,
como Desembargador do Desembargo do Paço13.
Por outro lado, no momento em que se olha o lugar e o papel da
Comarca das Alagoas no cenário político-administrativo e judicial da
América portuguesa, mais uma vez permite supor que esta magistratura
tenha sido uma das primeiras ocupadas por Manuel de Almeida
Arquivo Nacional/Torre do Tombo, Registro Geral de Mercês, D. João V, Livro 11, l. 24,
MF 389.
13
WEHLING, Arno & WEHLING, Maria José. Direito e Justiça no Brasil Colonial – O Tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1751-1808). Rio de Janeiro: Renovar, 2004; SCHWARTZ,
Stuart. Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial: O Tribunal da Bahia e de Seus Desembargadores, 1609-1751. São Paulo: Companhia das Letras, 2011; CAMARINHAS, Nuno. “O
Aparelho Judicial Ultramarino Português – O Caso do Brasil (1620-1800) In: Almanack Brasiliense. Número 9, maio, 2009, pp. 84-102.
12
126
Matoso. Pensada em sua instituição em 1706, somente em 1712 que
a Comarca das Alagoas saiu do papel, bem como a ouvidoria local,
com a transferência de seu primeiro ouvidor, José da Cunha Soares.
A distância entre a origem da ideia de uma nova delimitação jurídica
para a Capitania de Pernambuco e sua efetiva criação deve-se muito
ao turbulento momento da Guerra dos Mascates, que não só fez com
que a coroa portuguesa emitisse esforços na contensão do conlito entre
comerciantes de Recife e a açucarocracia de Olinda, se esquecendo de
nomear o ouvidor para Alagoas, como também demonstrou ainda mais
a necessidade da nova delimitação jurídica para impedir os amotinados
que fugirem para a parte sul da Capitania14.
Além de servir de punição para os rebeldes “pernambucanos”,
a Comarca das Alagoas do mesmo modo contribuía para impedir o
surgimento de novos quilombos, principalmente depois do extermínio
de Palmares; como também se constituía como uma resposta aos anseios
da população local que suplicava ao monarca a resolução mais rápida
dos problemas jurídicos que, por conta da distância que se localizava
o Ouvidor de Pernambuco, se consideravam desamparados pela lei15.
Todavia, a preocupação de contensão dos homens rebeldes só reforça a
concepção que a parte sul da Capitania de Pernambuco adquirira ao longo
dos anos, visto estar em posição centralizada entre a sede do governo
geral (Bahia) e a maior produtora de açúcar na América (Pernambuco),
tornando-se um ponto de passagem de todo o tipo de gente em busca
de enriquecimento, fugas e estratégias alternativas de sobrevivência
no mundo Américo-português16. Por im, nas recomendações de José
da Cunha Soares igualmente era destacado que cuidasse de produção
Arquivo Nacional/Torre do Tombo, Ministério do Reino, Livro 391, Portarias, l. 110-110v.
CARNAÚBA, Lanuza Maria Pedrosa. “Entre Prestígios e Conlitos: Formação e Estrutura
da Ouvidoria Alagoana por Intermédio de seus Ouvidores-gerais (Séculos XVII e XVIII)” In:
CAETANO, Antonio Filipe Pereira (Org.) Alagoas e o Império Colonial Português – Ensaios
sobre Poder e Administração (Séculos XVII-XVIII). Maceió: Cepal/Graciliano Ramos, 2010,
pp. 81-124.
16
CARVALHO, Arthur Almeida Santos de; MARQUES, Dimas Bezerra; PEDROSA, Lanuza
Maria Carnaúba; e ROLIM, Alex. “Crime e Justiça no “Domicílio Ordinário dos Delinquentes”:
Comarca das Alagoas (Século XVIII). In: Revista Crítica Histórica, Vol. 3, 2011, pp. 33-58.
14
15
127
de tabaco, gênero que despontava como expoente econômico e
possibilidades de lucratividade da coroa portuguesa naquela localidade.
De todo modo, a concepção da Comarca das Alagoas ajudou
na delimitação geográica e espacial das “partes sul” da Capitania de
Pernambuco, que até 1712 estavam desconectadas e autônomas entre si,
e que passavam, a partir daquele momento, a se constituir em um espaço
político, jurídico e administrativo único, subordinadas a Vila de Santa
Maria Madalena de Alagoas do Sul, que, como cabeça da comarca,
passava, inclusive, a nomear a todo o lugar dali em diante. Sendo
neste cenário que Manuel de Almeida Matoso vai ser encaminhado,
a conjuntura dos acontecimentos não o favorece na efetiva ocupação
da magistratura, isto porque, seu antecessor, João Vilela do Amaral, o
segundo direcionado para aquelas partes da ouvidoria, recusava-se ou
ingia-se recusar a deixar o cargo, gerando constrangimentos locais,
insatisfações de seu sucessor e muitas tintas gastas para a resolução da
pendenga, permeada por troca de acusações de desrespeitos aos cargos
administrativos régios.
O primeiro pedido de providências de Manuel de Almeida
Matoso para resolver a situação data de 17 de outubro de 1721, quase
seis meses depois de ter recebido autorização régia para atuar em
Alagoas, quando o Conselho Ultramarino recebia a denúncia de que
o juiz do tombo, José de Lima Castro, não havia tirado a residência de
João Vilela do Amaral. Em posicionamento administrativo, o Conselho
airma que:
(...) Manoel de Almeida Matoso está nomeado há muito tempo
no lugar de ouvido geral das Alagoas e na fé de que ele o ia
servir em março do ano passado se lhe passou ordem para tirar
residência a seu antecessor, João Vilela do Amaral, porém como
ele não foi no tempo que se esperava, e depois sobre visse as
queixas de que se trata na consulta inclusa contra o dito ministro,
que ele ia sindicar em matérias graves (...)17
17
Arquivo Histórico Ultramarino, Alagoas Avulsos, Documento 21, l. 1.
128
Ou seja, a surgimento de um rol de queixas contra João Vilela
do Amaral diicultava o acesso ao mesmo cargo por Manuel de Almeida
Matoso antes que a devassa fosse feita das circunstâncias. Segundo
os conselheiros, João Teles da Silva e Antonio Rodrigues, não era
recomendável que os ouvidores sucessores tirassem residência de
seus antecessores, pois poderiam gerar excessos e desordens. Assim,
sugeria-se que o juiz de tombo cumprisse com que foi determinado
por Sua Majestade. Neste caso, o trabalho seria imenso visto que as
duas principais vilas da Comarca (Penedo e Porto Calvo) haviam
discriminado os atos de irregularidade jurídica e comportamento do
gestor régio. Segundo os moradores da vila de Penedo, João Vilela do
Amaral usava excessivamente de pessoas e cargos, retirava pessoas
indicadas pelo monarca ou governador de Pernambuco para ocupação
de determinados ofícios, vendia devassas e sentenças em troca de
dinheiro, proibia apelações e agravos que não fossem pagos, matinha
relações pessoais com os acusados, colocava a casa da câmara e cadeia
pública à venda, roubava bens e dinheiros dos súditos portugueses,
intrometia-se nos assuntos eclesiásticos, tratava com desleixos e
desdém os nobres locais, prendia inocentes, acusava a população de
concubinato para adquirir dinheiro, mantinha relações íntimas com
mulheres comprometidas, desacatava a instituição familiar e não
possuia compostura de funcionário jurídico e régio18.
A implicação direta desta situação foram as constantes alegações
de Manuel de Almeida Matoso de ser prejudicado inanceiramente
por João Vilela do Amaral não deixar a cadeira. Segundo o natural de
Coimbra,
(...) não pode ele suplicante entrar de servir o dito lugar e não é justo
[corroído] mandar despachado há mais de um ano desservindo
menção há nove meses nesta corte fazendo excessivo gastos se
18
CAETANO, Antonio Filipe Pereira. “Por ser Público, Notório e Ouvir dizer: Queixas e Súplicas de uma Conquista Colonial contra seu Ouvidor (Vila de Penedo, 1722)” In: Alagoas
Colonial: Construindo Economias, Tecendo Redes de Poder e Fundando Administrações (Século XVII-XVIII). Recife: Edufpe, 2012, pp. 151-174. Arquivo Histórico Ultramarino, Alagoas
Avulsos, Documento 22.
129
[corroído] do meu Conselho de fazer a [corroído] logo que estar
a servir o dito lugar, por ser factível pode falecer ou adoecer o
sindicante nomeado ou por outro qualquer impedimento não
pode ir fazer a diligência com a brevidade necessária, o que será
de notável prejuízo a ele suplicante pela delação que pode ter
[corroído] o recurso tão distante para dar qualquer conta o será
necessário um ou dois para a sua resolução em cujo não por ele
suplicante quer gastar (...)19
Corroborava com essa discussão o discurso feito por Manoel
Matoso de que o atraso do sindicante adoentado para tirar residência
de João Vilela do Amaral causava-lhe problemas inanceiros familiares
porque, justamente, deixava suas irmãs, que tinham icado em Portugal
e que eram sustentadas por ele, desamparadas. Todavia, o que se torna
curioso em todo esse discurso é a contradição apresentada pelo ouvidor
no que se refere à sua condição econômica, visto que anos antes, como
foi apontado, apresentava-se ao Tribunal do Santo Ofício como homem
abastado e de família proprietária de terras para angariar a mercê de
familiar da Inquisição, bem como havia recebido vários rendimentos
por conta de sua titulação de escudeiro e oicial régio. Neste caso, o
discurso de “pobreza” evidencia um recurso recorrentemente utilizado
pelos súditos portugueses como um caminho mais rápido para ter suas
súplicas atendidas pelos monarcas lusitanos.
Consciente da situação de seus funcionários e dos mecanismos
que utilizavam para chegar mais próximo ao reino, a coroa portuguesa
não comprou o discurso de Manoel Matoso levando-o a utilizar todo
o manancial deixado pela população de Penedo e Porto Calvo contra
seu antecessor, além de recolher outros maus procedimentos realizados
depois de sua chegada para provar sua administração muito mais
visando o bem particular do que o bem público. Assim, acusava-o
de: continuar a despachar documentos, mesmo estando suspenso de
suas funções como ouvidor; livrou João de Souza Salazar sem estar
autorizado para isso; autorizou Julião Gutierres a embolsar o dinheiro
19
Arquivo Histórico Ultramarino, Alagoas Avulsos, Documento 21, l. 4.
130
do cartório dos ausentes; utilizou deste mesmo dinheiro para distribuir
entre os seus apaziguados; e fazia descaradamente fazenda do dinheiro
dos defuntos. Assim, mais desesperado ainda, em carta, de 4 de abril
de 1724, já quase três anos depois de ter sido nomeado para a Comarca
das Alagoas, informava ao Conselho Ultramarino de ter prendido
João Vilela do Amaral e que o teria embarcado para a Bahia para o
procedimento das devassas e residências.
O reverso da medalha para o “ouvidor desesperado” veio
rápido, quando Francisco Magalhães Pereira, João da Mota e Souza e
André Barros, moradores de Alagoas, considerados e apontados como
pessoas de boa fé e zelosos da coroa portuguesa, escreviam ao Conselho
Ultramarino e descreviam Manoel de Almeida Matoso como insolente
e encobrindo as crueldades e injustiças que obram o Capitão-mor da
mesma vila, Bento da Costa, e seu primo, Francisco de Barro, e seu
sogro, o Sargento Manoel de Chaves, e Francisco Alvares Camelo20.
Apontavam que aliado aos poderosos locais fazia negociações;
recolhiam dinheiro dos defuntos para futuros acordos; cobravam preços
elevados e como queriam para os gêneros comercializados; ajustava
sentenças sem apelações por conta dos preços que poderiam ser
cobrados; e, o mais interessante, que Manoel Matoso airmava que sua
riqueza não permitiria viver em desgraça caso o rei de Portugal optasse
por lhe retirar do cargo21. Para os moradores isso era considerado uma
afronta por que permitia Manoel Matoso assumir todas as culpas sem
que houvesse prejuízo algum inanceiro para seus bolsos.
A confusão gerada pelo ouvidor Manoel de Almeida Matoso
havia revertido, naquele momento, contra ele mesmo. Sem apoio
da população, com os inimigos políticos latentes e os amigos de
administração de João Vilela do Amaral buscando vingança, o resultado
não podia ser diferente: a exoneração das funções. Segundo Lanuza
Pedrosa o desfecho dos acontecimentos não foi favorável a nenhum dos
dois agentes régios, visto que o Conselho Ultramarino chegava a apontar
20
21
Arquivo Histórico Ultramarino, Alagoas Avulsos, Documento 27, l. 9.
Idem, l. 9.
131
que a Comarca das Alagoas não havia recebido ainda um ouvidor com
características essenciais para uma boa administração da justiça22. João
Vilela do Amaral teve sua promoção para a ouvidoria da Comarca da
Colônia de Sacramento sustada e Manuel de Almeida Matoso não teve
mais notícia de ocupação na administração ou magistratura portuguesa
a partir de então.
Levando em consideração a recente criação da Comarca das
Alagoas e os tumultos ocasionados logo no início desta divisão jurídicoadministrativa, algumas questões precisam ser levadas em consideração.
Em primeiro lugar, o ouvidor pioneiro, José da Cunha Soares recebeu
antes da sua chegada no território alagoano a promessa de um lugar no
Tribunal da Relação da Bahia, como uma clara intenção de demonstrar
que aquela localidade precisava se tornar atrativa para os futuros
magistrados que por lá passagem. Em segundo lugar, seu sucessor, João
Vilela do Amaral, apesar de alguns apontarem como detentor de uma
boa gestão, em término do mandato emergem insatisfações de duas
vilas principais de Alagoas. Seu sucessor, Manuel de Almeida Matoso
parece ser inexperiente na carreira, mas não menos abastado, sendo
jogado em um território ainda em construção e com severas críticas ao
seu antecessor.
Olhando estrategicamente e sob o prisma articulador da coroa
portuguesa e do Conselho Ultramarino, muito provavelmente Manoel
Matoso era a pessoa certa na hora errada (para ele mesmo) e a certa
(para os ins administrativos lusos). Coibir João Vilela do Amaral
trazia a necessidade de entregar-lhe um opositor ambicioso, mas pouco
experiente capaz de “enfocar-se com a própria corda no pescoço”. O
im anulador das trajetórias na magistratura para ambos só corrobora
a se aviltar tal hipótese, bem como demonstra que, por estar aberto a
possibilidades de ganhos e exploração, o território alagoano acabou se
tornando alvo, nesse primeiro quartel do século XVIII, para agentes
régios que gostariam de mostrar serviço e idelidade ao monarca
português e, ao mesmo tempo, enriquecer aqui e acolá com a verba da
22
PEDROSA, Lanuza Maria Carnaúba, Op. Cit., p. 118.
132
provedoria dos defuntos, ausentes e resíduos. Para Manuel de Almeida
Matoso não foi dessa vez, mas para outros tantos que passaram por lá
como Diogo Soares Tangil, Antonio Rebelo Leite, Francisco Nunes da
Costa e, sobretudo, José de Mendonça de Matos Moreira (com dezenove
anos de atuação na Comarca) Alagoas era sim uma terra a se desbravar,
administrar, aplicar a justiça e, antes de tudo, enriquecer.
133
Nassau e os judeus1
Ronaldo Vainfas
Universidade Federal Fluminense
Maurício de Nassau governou o Brasil holandês entre 1637
e 1641. Patrocinou a missão de artistas como Frans Post, construiu
a Cidade Maurícia na outra banda do Capibaribe, criou um jardim
botânico e outro zoológico. Desde ins do século XIX, o mito Nassau
estimulou a crença difusa de que o Brasil seria melhor se os holandeses
tivessem icado. Mas o conde Nassau foi, sobretudo, um administrador
de conlitos na sociedade pernambucana: entre os senhores da terra e a
Companhia das Índias Ocidentais; entre os calvinistas e os católicos;
entre os cristãos velhos e os cristãos-novos; entre cristãos e judeus.
Não seria exagero dizer que, em meio a tantos conlitos,
o conde Maurício de Nassau pendeu a favor da “gente da nação”.
Cumpria, nesse ponto, os objetivos da WIC, favorável à imigração
de comerciantes judeus para a Nova Holanda. Não esqueçamos que
cada comerciante sefardita, mesmo que miúdo ou de “vestido roto”,
como dizia Manuel Calado, nunca estava totalmente só. Não era um
aventureiro solitário que se lançava ao Brasil às cegas. Por mais pobre
que fosse, ele integrava uma rede, ao menos como vendedor ambulante
de um consórcio, distribuidor de bebidas importadas ou mercador de
doces, batendo de porta em porta. Quase sempre tinha parentes na
Holanda e no Brasil, o que facilitava os contatos comerciais no exterior
e o alojamento na colônia.
Os acionistas da WIC sabiam dessa elasticidade das redes
judaicas; o conselho diretor da companhia (Dezenove senhores) também
conhecia a experiência e o estilo do comércio sefardita; o Conselho
Político do Recife, enim, reconhecia o papel estratégico dos judeus nos
negócios do Brasil. Maurício de Nassau, homem de coniança da WIC e
1
Este texto resume as considerações que iz em Jerusalém Colonial: judeus portugueses no
Brasil holandês. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, pp. 207-216.
135
autoridade máxima na Nova Holanda, protegeu os judeus por dever de
ofício e responsabilidade do cargo.
Mas Nassau pisou em ovos desde o início, pois seu governo
coincidiu com o aluxo crescente de judeus e aventureiros holandeses,
atraídos pela política de “livre comércio” inaugurada em 1638, a conselho
do próprio Nassau. O início de seu governo coincidiu, ainda, com a
estruturação das congregações judaicas, de um lado, e do presbitério
calvinista, de outro, entre 1636 e 1638, sem contar as reivindicações dos
católicos, incansáveis no peditório de licenças para procissões e festas
barrocas. As três principais religiões do Brasil holandês – católica,
calvinista e judaica – brigavam por espaço institucional e físico numa
Recife cada vez mais abarrotada de gente. Os grupos de interesse da
Babel holandesa também disputavam privilégios, cada um com seu
poder de pressão, suas habilidades e limitações.
Nassau ainda se dedicou, enquanto estadista, a reconstruir um
Pernambuco devastado pela guerra de conquista, além de transformar o
Recife em uma capital da Nova Holanda digna desse nome. Melhorar
o arruamento do Recife velho, estimular a construção civil, aperfeiçoar
o porto e as fortiicações. Construir uma “nova cidade” na outra banda
do Capibaribe ‒ Cidade Maurícia, Mauritzstadt ‒ dotada de palácio
monumental, horto, jardim zoológico.
Como “príncipe humanista”, ainado com o que de melhor se
ensinava na Universidade de Leiden, Nassau patrocinou missão de
naturalistas e artistas holandeses, alemães, lamengos. Na sua agenda de
governo, era fundamental recolher informações sobre história natural e
etnograia, retratar a paisagem rural e a cidade, o engenho de açúcar e
os becos do Recife. Colecionar amostras de plantas exóticas, descobrir
suas qualidades. Colecionar animais, aves e mamíferos brasílicos. Foi
nesta onda que Frans Post, Albert Eckout, Zacharias Wagener, Gaspar
Barléus, Willem Piso, George Marcgrave e tantos outros chegaram a
Pernambuco, produzindo o principal acervo iconográico, etnográico e
cartográico de nossa história colonial.
136
Pieter Michielsz van Mierefeld, Retrato
de Maurício de Nassau, 1637.
Na política exterior, Nassau se valeu da experiência militar
adquirida nas guerras europeias, embora obrigado a adaptá-las ao estilo
da “guerra brasílica”, ao menos nas batalhas campais. Mas seus encargos
foram enormes. Conquistar o Sergipe del Rei, em 1637. Conquistar,
no mesmo ano, a praça de São Jorge da Mina, na Guiné, pelo mar.
Conquistar nada menos que a Bahia, em 1638, de onde foi escurraçado.
Defender o Recife da contra-ofensiva hispano-portuguesa, em 1639,
derrotando a malsinada expedição do Conde da Torre. Conquistar
Luanda, na África, em 1641, e de quebra São Luiz do Maranhão, no
mesmo ano.
Em meio a tantas atribulações de governo, tentou apaziguar
a “nobreza da terra”, facilitar créditos, proteger interesses, cativar
amizades. Negociou até mesmo uma convivência civilizada com o
governo hispano-português da Bahia, encarnado na pessoa de Jorge
Mascarenhas, marquês de Montalvão.
Nassau tinha 32 anos quando chegou ao Brasil. Não falava uma
palavra de português e, mesmo após oito anos de governo, claudicava
na língua de Camões. Era, porém, muito luente em francês, língua que
admirava, alemão, sua língua materna, e holandês. Nenhuma das línguas
137
faladas por Nassau o credenciavam a comunicar-se com as gentes do
Brasil. Estava fadado a ser um governador distante, dependente de um
séquito de intermediários para administrar a Nova Holanda. Mas não
foi o que ocorreu.
Aprofundou-se como poucos no conhecimento do Brasil,
mantendo extraordinário equilíbrio entre católicos, calvinistas e judeus;
entre comerciantes holandeses e senhores de engenho luso-brasileiros.
Era chamado de príncipe, embora fosse conde, pois só ganhou aquele
título em 1653, quando já tinha deixado o Recife. Alguns conselheiros
da WIC o chamavam de “brasileiro”, ironicamente, sabedores do largo
uso do pau-brasil no mobiliário, portas e janelas de seu palácio. Os
judeus o adoravam, e veremos em detalhe o por quê. Os católicos o
chamavam de “o nosso Santo Antônio”, reconhecidos pela proteção que
Nassau dispensava aos cultos “papistas”. Os que menos o apreciavam,
quando não destestavam, eram os predicantes calvinistas, perdidos no
seu rigorismo, órfãos de um príncipe que nunca foi deles.
Tantas digressões ou atalhos têm por objetivo contextualizar
o personagem Maurício de Nassau e, sobretudo, a complexidade das
questões que devia administrar. No assunto que nos interessa, Nassau
decidiu proteger os judeus, simulando, ao mesmo tempo, que governava
com equidade, dando a devida atenção às reivindicações dos cristãos
reformados. Esta dissimulação calculada era dirigida aos predicantes
calvinistas, mas também ao bureau da WIC. Nas mensagens para os
diretores da WIC Nassau parecia usar de linguagem quase cifrada.
No relatório de 1638, conhecido como “Breve discurso”, Nassau
reportou a ousadia dos judeus e a insatisfação dos ministros calvinistas,
e mesmo dos católicos, em face dos desacatos que os judeus faziam
ao cristianismo. Mas o relatório contém um lapso calculado, ao dizer
que os cristãos velhos se escandalizavam com a liberdade concedida
aos judeus, ou antes, que se esforçam por tomá-la. Arrisco interpretar:
Nassau considerava que os judeus tinham alcançado aquelas posições
por mérito próprio e que ele, enquanto governador, só fazia reconhecer
as evidências.
138
No entanto, para temperar o informe, acrescentou um juízo
capital:
“Os judeus entendem que devem ter mais liberdade que os
papistas, porque nós estamos mais certos de sua idelidade, pois
sabemos que, como eles fazem pública proissão do judaísmo,
de modo algum quereriam ou poderiam voltar ao domínio dos
espanhóis, mas antes, pelo contrário, haviam de envidar esforços
para manter e defender este Estado, ao passo que os portugueses
papistas têm mostrado que nos são inteiramente iniéis, e na
primeira mudança nos abandonariam”2.
Enigma de fácil interpretação. Nassau achou um meio de lembrar
aos diretores da companhia que os judeus, ao contrário dos católicos,
eram aliados iéis dos holandeses. Ganhavam dinheiro como parceiros
comerciais da WIC, e odiavam a Inquisição e os espanhóis do mesmo
modo que os holandeses. Nassau sustentou, por meio de hábil jogo
de palavras, a continuidade, no Brasil da política pró-judaica vigente
na Holanda. Quanto aos católicos, por sua vez, insinuou que seriam
capazes de inventar uma “guerra divina” para expulsar os holandeses do
país, se tivessem chance. Nassau não escreveu exatamente isto, porque
não era adivinho. Mas ainda em 1638, antecipou os lances possíveis do
jogo, como enxadrista.
Em resumo: os predicantes calvinistas deviam pagar a conta
espiritual e qualquer outra fatura, aguentando os judeus na Nova
Holanda. Tratava-se de uma questão de Estado e de negócios. A WIC
devia colocar seus interesses comerciais acima de quaisquer sectarismos
religiosos.
O Presbitério do Recife sabia que Nassau protegia os judeus e,
por isso, provocava o governador. Em janeiro de 1638, proclamou que as
liberdades concedidas aos judeus eram tamanhas, que tanto calvinistas
como portugueses (sinônimo de católicos para os predicantes), achavam
que os holandeses eram “meio judeus”. Nassau desprezou a queixa e
manteve sua política pró-judaica. A cada nova reclamação, prometia
2
“Breve discurso sobre o estado das quatro capitanias…”, pp. 100-101.
139
aos predicantes que resolveria o problema o quanto antes. Quem sabe
amanhã ou depois de amanhã…
Dois episódios dramáticos puseram em xeque a aliança entre
Nassau e os judeus portugueses. Um deles foi o caso de Daniel Gabilho
que, apesar de pouco documentado, foi elucidado com brilho por
Gonsalves de Mello3. Daniel Gabilho era homem de 25 ou 30 anos,
descrito como baixo, tez muito alva, olhos grandes e “cabeça quase
pelada”. Dizia ter nascido na Holanda, de onde partiu para o Recife, em
1635, junto com um tio, mercador de grosso trato, a serviço de Duarte
Saraiva, um dos judeus mais ricos do Brasil holandês. Gabilho tinha,
então, no máximo, 20 anos de idade.
Se não nasceu na Holanda, como dizia, cresceu ali, sendo
daqueles jovens judeus luentes em português e holandês. Isto se
conirma por ter sido corretor, função que exigia homens bilíngues.
Gabilho integrava a rede comandada por Duarte Saraiva. Há registro
de que Gabilho comprou escravos angolanos no Recife e carregou
mercadorias para a Holanda. Gabilho tinha seus próprios negócios,
além de integrar o grupo de agentes de Duarte Saraiva. Um caso típico
de inserção de jovem judeu nas redes mercantis sefarditas.
Mas o rapaz se atrapalhou nos negócios e, para fugir das dívidas,
sumiu do Recife, em dezembro de 1641. Devia mais de 10 mil lorins
aos credores holandeses. O Conselho Político logo tomou providências,
ordenando aos capitães de navios para não embarcar o judeu insolvente
– coisa muito comum na época. Uns fugiam para a Bahia, outros para
a Holanda. Em janeiro de 1642, Gabilho foi capturado na Cidade
Maurícia e resistiu à prisão aos gritos, blasfemando contra Cristo.
Quase foi linchado ali mesmo.
O clima de tensão entre calvinistas e judeus era, então,
insuportável. Poucos meses antes, em junho de 1641, dois escabinos
holandeses de Maurícia tinham pleiteado, junto ao Conselho Político,
a proibição do comércio a retalho e do ofício de corretagem para os
3
MELLO, J. A. Gonsalves de. Gente da nação: cristãos novos e judeus em Pernambuco. Recife: FUNDAJ/Massangana, 1996, pp. 269 e 399.
140
judeus, sendo a solicitação indeferida. Os holandeses ligados ao
pequeno comércio estavam em pé de guerra com os judeus.
No caso de Gabilho, a Câmara dos Escabinos resolveu julgar
o caso sumariamente. Condenou-o à morte por blasfêmia, mandando
erguer uma forca na cidade. A comunidade judaica interveio e pediu a
Nassau que concedesse clemência ao condenado, alegando, entre outras
coisas, que o Escabinato não tinha poderes legais para exarar sentença
de morte. Foi nesse contexto que surgiu, entre os judeus, o rumor de
que se havia introduzido uma “nova inquisição” ou “uma inquisição
calvinista” na Nova Holanda – o que é um tremendo exagero.
De todo modo, Nassau interferiu a favor dos judeus, embora a
siuação fosse muito mais delicada. O conde negou a oferta de 11 mil
lorins que os judeus lhe ofereceram para perdoar Gabilho, mas montou
uma operação para aplacar a ira dos credores holandeses do condenado.
Reuniu-se com os comerciantes holandeses e negociou a suspensão
da pena de morte em troca de 15 mil lorins a serem divididos pelos
credores na razão do que tinham emprestado a Gabilho. A pena de morte
foi comutada por degredo para a ilha de São Tomé, na costa africana.
O negócio saiu caro para os judeus, pois 15 mil lorins era quantia
suiciente para comprar cerca de 40 escravos angolanos, considerando
os preços praticados em 1642. É fácil presumir de onde saiu o dinheiro
que salvou Gabilho da forca: dos cofres de seu patrão, Duarte Saraiva,
ajudado por um tio rico chamado Bento Henriques.
Ainda mais grave foi o caso de Moisés Abendana, integrante
da primeira leva de judeus portugueses estabelecidos no Recife4.
Abendana exportava mercadorias para a Holanda desde 1637 e, a partir
de 1642, passou a comprar escravos no Recife para revendê-los nos
engenhos. Tomou empréstimos junto a holandeses e judeus, mas foi
desastrado nos negócios e acabou insolvente. Desesperado, cometeu
suicídio em 5 de agosto de 1642. A hostilidade contra os judeus chegou
ao máximo neste episódio. O escolteto da Cidade Maurícia, onde
Abendana residia, sequestrou o corpo e proibiu seu enterro, decidindo
4
Idem, pp. 269-270 e 489.
141
que o cadáver devia ser pendurado numa forca pública até apodrecer.
Pretendia humilhar a família do defunto, comprometer a salvação de
sua alma e desmoralizar a comunidade judaica de Pernambuco.
Os judeus reagiram, alegando que Abendana tinha sido
assassinado por holandeses. Além disso, uma comissão de judeus
ofereceu “grande soma de dinheiro” para Nassau impedir a execução
da sentença contra o cadáver de Abendana. Novamente o conde recusou
a oferta, mas se dispôs a interferir a favor dos judeus, caso a dívida
de 12 mil lorins fosse paga. Os mercadores judeus procuraram, então,
os colegas holandeses e assumiram a dívida do morto. Ato contínuo,
Nassau despachou o caso, proibindo a execração do cadáver. Abendana
foi sepultado no cemitério judaico. Os judeus insitiram na versão do
assassinato. Não tinham saída senão ocultar o suicídio do amigo.
Nos dois episódios, Nassau defendeu os interesses da
comunidade judaica, sem desconsiderar o interesse dos holandeses.
Defendeu os judeus no mais perfeito estilo do Antigo Regime, usando
de seu prestígio pessoal para neutralizar as instituições. Transformou
sentenças judiciais, inclusive penas de morte, em acordos inanceiros
para ressarscir credores coléricos. Promoveu a interseção entre o
público e o privado. O capitalismo comercial à moda holandesa, por
mais moderno que fosse, não dispensava os ingredientes da sociedade
de corte, ainda mais no Brasil, tão distante dos diretores da empresa.
Nassau administrou os negócios da WIC no Brasil enquanto
autêntico príncipe. Construiu uma corte, criou um séquito, erigiu um
palácio, fundou uma cidade. Incluiu os judeus, enquanto comunidade,
na sua rede clientelar, e bastaria isso para demonstrar a mescla entre a
lógica do mercado e a da corte principesca no governo nassoviano. Além
de proteger os judeus em momentos cruciais, continuou favorecendo
seus negócios articulados com os investimentos da WIC e dos grandes
comerciantes holandeses. Saíram perdendo, nesse contexto, os pequenos
negociantes holandeses e os predicantes, que dependiam da degradação
dos judeus para se airmarem na colônia, cada grupo a seu modo.
142
Antes mesmo do caso Abendana, quando circularam rumores
de que Maurício de Nassau seria chamado de volta à Holanda por
improbidade administrativa e gastos excessivos, os judeus izeram uma
petição comprobatória de seu apreço pelo governador. Arnold Wiznitzer
traduziu e publicou na íntegra este documento, cujo original, datado de 1
de maio de 1642, se encontra no arquivo público de Haia5. O documento
tem por título “Petição da Nação Hebraica” e contém, basicamente, uma
proposta dos moradores das capitanias holandesas ao governador Nassau
para convencê-lo a icar no Brasil. O tom é o máximo elogioso possível
à pessoa e ao governo de Nassau, qualiicando sua administração como
“prudente e feliz” e reconhecendo os “benefícios, a honra e o favor de
sua parte usufruídos”. Os judeus praticamente suplicavam a Nassau que
permanecesse no cargo, dispondo-se a pagar uma doação mensal de três
mil lorins enquanto o governador permanecesse no Brasil. Dez judeus
graúdos assinaram a petição, entre eles Duarte Saraiva e Benjamim de
Pina. Ambos assinaram com seu nome português – vale sublinhar – e
não com o nome judeu que usavam na comunidade.
Fac-símile da Petição da
Nação Hebréia de 1642
(em holandês) Algemeen
Rijjksarchief, Haia. Fonte:
A.Wiznitzer. Os judeus no
Brasil Colonial, p.194.
5
WIZNITZER , Arnold. Os judeus no Brasil Colonial. São Paulo: Pioneira, 1966, p.195.
143
No mesmo ano, o representante da “gente da nação hebréia” do
Brasil em Amsterdã reforçou a proposta para a direção da companhia,
esclarecendo que, “se lhes fosse necessário pagar a permanência de
Sua Excelência nesta terra, nenhum preço achariam demasiado elevado
para isso, ainda que se tratasse de seu póprio sangue, contanto que o
pudessem reter”.
O jesuíta Antonil escreveria, no inal do século XVII, que o
Brasil era o inferno dos negros, purgatório dos brancos e paraíso dos
mulatos. Na Babel religiosa do Brasil holandês, o paraíso era dos
judeus, o inferno dos calvinistas e o purgatório dos católicos. Ao menos
no governo de Nassau que, nos momentos de maior tensão entre as
comunidades religiosas, sempre encontrava um jeito de favorecer os
sefarditas.
Maurício de Nassau somente deixaria o Brasil em meados de
1644, chegando à Holanda em julho. Havia sido dispensado do governo
pela WIC desde setembro do ano anterior, mas permaneceu um pouco
mais, inclusive para inaugurar a ponte unindo o Recife Velho à Cidade
Maurícia. Sua bagagem pessoal ocupava nada menos que duas naus, com
carga estimada em 2,6 milhões de lorins! A carga incluía ininidade de
madeiras da terra, toras de jacarandá, 100 barris de frutas cristalizadas,
um sem-número de botijas de farinha de mandioca, coleções de plantas e
aves, trinta cavalos… Na companhia de Nassau seguiu número elevado
de judeus portugueses para Amsterdã. O retorno de Nassau marcou o
reluxo da imigração judaica para o Brasil. A partir de 1645, com o
início da insurreição pernambucana, o número de judeus retornados só
faria aumentar a cada dia. Um claro sinal de que o im da “Jerusalém
colonial” estava próximo.
144
Venalidade de Ofícios e Honras
na Monarquia Portuguesa: um balanço preliminar
Roberta Giannubilo Stumpf
Universidade Nova de Lisboa
Ao receber o convite para integrar essa Mesa, optei por apresentar
uma investigação ainda em andamento, iniciada há poucos meses, sobre
a venalidade de ofícios e honras na América portuguesa no Setecentos
pois, ainda que as relexões que serão expostas não tenham a pretensão
de serem conclusivas, o estudo sobre o mercado venal de mercês régias
pode trazer novos elementos para se pensar as instituições e as elites na
monarquia imperial portuguesa. Dimensionar a importância da riqueza
na aquisição de honrarias concedidas pela realeza contribui para repensar
o peril das nobrezas no Antigo Regime, assim como os próprios
critérios hierárquicos de uma sociedade que se auto-representava como
sendo estamental. No estágio em que esta pesquisa se encontra este
viés social ainda não foi devidamente aprofundado, já que antes desta
etapa outras questões devem ser esclarecidas. Se o ponto de partida é a
hipótese de que a Coroa portuguesa vendeu honras e ofícios aos súditos
abastados, é preciso averiguar a dimensão de tal prática assim como
compreender os mecanismos pelos quais ela se efetivava, o que signiica
que no momento são os aspectos administrativos e institucionais o foco
de minha atenção.
Antes de tudo, convém esclarecer que o tema das venalidades,
seja no reino ou nas conquistas, não despertou grande interesse da
historiograia luso-brasileira, ao contrário do que veriicamos, por
exemplo, na França ou na Espanha cujas historiograias em muito
contribuem para pensarmos questões teóricas e metodológicas1. Não
1
Para a venalidade de cargos e honras na monarquia portuguesa, os trabalhos de Antônio Manuel Hespanha e Fernanda Olival respectivamente, merecem ser citados, os quais deram enorme
contribuição ao estudo que agora se apresenta. Dentre tantos: HESPANHA, A. M. Poder e
Instituições na Europa do Antigo Regime. Coletânea de textos. Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, 1984. OLIVAL, Fernanda. Mercado de hábitos e serviços em Portugal (séculos
145
deixa de despertar curiosidade esta defasagem entre as historiograias
ibéricas, para tomarmos apenas o caso castelhano, a qual não pode ser
explicada pela irrelevância do tema para a análise do Antigo Regime
no Império português. É verdade que em Castela as fontes permitem
concluir que quase tudo se vendia, como airmou Enrique Soria2,
porque a venda de senhorios, hábitos, comendas, títulos e cargos nos
mais diversos níveis tornou-se um instrumento eicaz para sanar as
diiculdades do Erário Régio e não só em períodos de conlitos bélicos3.
Quanto ao caso português, embora fosse legítimo do ponto de vista
jurídico que o monarca vendesse mercês em contextos de “necessidade
pública”, tal como apontou Fernanda Olival4, são escassos os indícios de
que a venalidade tenha ganhado a mesma intensidade que na monarquia
vizinha, ou mesmo em França. E se isto explica o suposto desinteresse
da historiograia em estudá-la, quando o tema mereceu algum relevo
normalmente o que se procurou entender foi este distanciamento entre
as realidades portuguesa e castelhana do Antigo Regime e as explicações
na maioria das vezes recaem sobre um mesmo ponto. Se a venalidade
régia não era ilegal, era entendida como imoral pelos contemporâneos
que faziam uma forte censura político-teológica a ela5. Sendo assim,
frente ao rigor das críticas, a monarquia portuguesa teria buscado
outras alternativas, mesmo que impopulares como a criação de novos
impostos, para resolver problemas de ordem econômica.
XVII-XVIII). In: Análise Social, vol. XXXVIII (168), Lisboa, 2003, pp. 743-769.
2
SORIA MESA, Enrique. La nobleza en la España moderna-cambio e continuidad. Madrid,
Marcial Pons Historia, 2007, p. 47.
3
ANDÚJAR CASTILLO, Francisco. Vender cargos y honores: un recurso extraordinario de
la corte de Felipe V. Homenaje a Antonio Domínguez Ortiz, T.III, Granada, 2008, pp. 89-110.
Agradeço ao autor por me conceder uma cópia deste artigo.
4
OLIVAL, Fernanda. As Ordens militares e o Estado moderno: Honra, mercê e venalidade:
moderno (1641-1789). Tese de doutorado apresentada a Universidade de Évora. Lisboa,
Coleção Thesis. 2001, p. 239.
5
HESPANHA, História das Instituições. Épocas medieval e moderna. Coimbra, Livraria
Almedina, 1982, p.391. Ver ainda, BETHENCOURT, Francisco. A América Portuguesa. In:
BETHENCOURT, Francisco; CHAUDHURI, Kirti (dir). História da Expansão portuguesa,
Volume 3, Lisboa, Círculo dos Leitores, 1998, pp. 247-249.
146
Já é mais do que sabido que a sociedade do Antigo Regime
apresentava uma certa mobilidade social e que esta nunca foi objeto de
alarme quando realizada de forma controlada, obedecendo aos padrões
hierárquicos vigentes, estabelecidos a partir da dicotomia vícios X
virtudes que deinia a importância e o lugar social dos vassalos. Os
homens que herdassem as virtudes de seus antepassados ou que
demonstrassem com suas próprias ações que respeitavam e seguiam
as regras comportamentais tidas como honradas eram prestigiados pela
sociedade ou ainda pelo monarca que os poderia elevar socialmente ao
patamar nobiliárquico caso fossem de origem plebéia.
Nos tratados de nobreza escritos ao longo dos séculos, o sangue
raramente deixou de ser visto como a principal fonte de brilhantismo
dos homens. A ancestralidade condicionava, inclusive, o pertencimento
ao degrau superior da nobreza, sendo raros os titulados ou mesmo os
Grandes que não descendessem de famílias há muito reputadas como
sendo socialmente mais prestigiosas6. No entanto, o fortalecimento
do poder real e o principio jurisdicionalista no qual estava baseada
a sua conduta contribuíram para que o monarca se tornasse também
uma fonte de nobreza dos homens. Mediante um sistema que a
historiograia denomina de diversas formas, como economia da
mercê, recompensava àqueles que dessem demonstrações de terem se
sacriicado, como então se dizia, em benefício da monarquia e do bem
comum. Como este comportamento era tido como natural da nobreza
de sangue, que para honrar sua condição devia agir sempre de forma
virtuosa, muitos tratadistas irão exaltar a atitude daqueles que, embora
plebeus, valorizavam o estilo de vida e o comportamento da nobreza,
demonstrando assim serem superiores ao próprio nascimento. Eram
dignos também de pertencerem a este estamento, ainda que em seu
patamar inferior7.
6
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O Crepúsculo dos Grandes. A Casa e o patrimônio da aristocracia em Portugal (1750-1832). Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003.
7
Segundo Oliveira, esta polêmica dividiu juristas e ilósofos. Estes defendiam que a nobreza
e a honra não estavam lado a lado, pois as virtudes não eram qualidades que se adquiriam no
nascimento, mas eram conquistadas depois. No entanto, porque tal máxima era prejudicial aos
147
Independentemente da polêmica que possa ter se estabelecido
quanto à superioridade da nobreza hereditária ou da civil, termo
incorporado à literatura jurídica no século XVI8, o heterogêneo
estamento nobiliárquico guardava uma unidade identitária: eram todos
qualiicados como homens virtuosos. A limpeza de sangue e de ofícios
eram atributos associados à ideia de nobreza, o que explica que descender
de raças reputadas como infectas e mesmo exercer ofícios mecânicos
constituíam-se impedimentos ao ingresso ao estamento nobiliárquico.
Porém, os nobres distanciavam-se da massa dos homens comuns não
apenas porque suas virtudes traduziam a ausência de vícios. Para
engrandecerem seus nomes e de suas famílias, ou mesmo para aqueles
que desejavam pertencer à nobreza, não herdada de seus pais, destacarse no serviço à monarquia era condição quase que obrigatória, pois a
idelidade à Coroa signiicava sacrifícios de seus interesses particulares.
O rei ao reconhecer suas virtudes, doando-lhes mercês ou nobilitandoos, agia como era esperado, reforçando os laços que o unia a todos os
seus súditos que eram assim incentivados a obrarem bem. Aos bons
cristãos, o futuro lhes reservava o reino dos céus, aos bons súditos era
justo que se tornassem nobres. Disto dependia o bom andamento da
ordem social, mas também política.
Se insisto neste aspecto já tão estudado é para dar a exata
dimensão dos riscos que a venalidade oferecia, ainda que fosse
legalmente permitida quando encabeçada pelo monarca. Se o dinheiro
abrisse as portas ao estamento nobiliárquico, as virtudes perdiam sua
eicácia enquanto critério legitimador da identidade e da superioridade
da nobreza, isso sem falar que se o rei se rendesse ao “sonido del dinero”,
na feliz expressão de Francisco Andújar9, estaria se comportando como
um mercador, e não como um governante a quem cabia agir como Deus
interesses da nação, foi rejeitada, estabelecendo-se assim que o sangue era a principal origem
da nobreza. OLIVEIRA, Luiz da Silva Pereira. Privilégios da Nobreza e Fidalguia de Portugal.
Lisboa, Nova Oicina de João Rodrigues Neves, 1806.
8
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Op. Cit., pp. 22-23.
9
ANDÚJAR CASTILLO, Francisco. El sonido del dinero. Monarquia, ejército y venalidad en
la España del siglo XVIII. Madrid, Marcial Pons Historia, 2004.
148
na própria terra.
Tais advertências quanto à periculosidade da compra-venda das
mercês nobilitantes, ou daquelas que poderiam se constituir em um
primeiro degrau rumo à nobilitação, nem sempre estão explicitadas
nas páginas dos tratadistas, ainda que nestas seja possível inferir uma
crítica latente. No século XVII, Diogo Camacho Aboim, por exemplo,
em Escola Moral, política, christã e jurídica, airmava que “com as
virtudes se adquirem as riquezas, mas com as riquezas não se compram
as virtudes; donde bem pode ser rico o que é virtuoso, mas não é
consequência que seja virtuoso, o que é rico”10. Difícil encontrar uma
passagem em sua obra que exempliique com maior clareza o que estou
procurando demonstrar. Mas esta frase nos remete para outro ponto
que merece ser também destacado, para que ique igualmente claro
que se as dignidades, que hierarquizavam os homens, não deveriam ser
conquistadas unicamente mediante a riqueza, nem por isso o cabedal
adquirido ou herdado deixou de ter um papel importante na escalada
social. Citando outro tratado de nobreza, de autoria de Villas Boas,
vemos que este embora contestasse o adágio português “quem dinheiro
tiver terá o quanto quiser” e advertisse que “nem por um homem ser
rico ica logo nobre”, reconhecia que “justamente com as riquezas é
necessário concorrer virtude e merecimento dos progenitores”11.
Em síntese, o que se coloca aqui é que a riqueza não deveria
se constituir no principal critério de enobrecimento, embora a pobreza
nunca fora vista como compatível com a nobreza dos homens. Camacho
Aboim, mais atento à realidade do que Villas Boas, enfatizava que “a
nobreza necessita de fazenda para sua conservação, assim como o
corpo humano de sangue para a vida”12 mas, continua o autor, de nada
valia ter “riquíssimos tesouros” ou ser abundante de bens se os homens
não se comportassem virtuosamente e preservassem sua honra, mais
10
ABOIM, Diogo G. Camacho. Escola Moral, politica, christã e jurídica. Oicina de Bernardo
Antonio de Oliveira, 1754. Terceira edição 1754, p. 54.
11
SAMPAIO, Antonio de Vilas Boas e. Nobiliárquica portuguesa-Tratado da nobreza hereditária e política. Lisboa, Livraria de Fialho de Almeida, 1912, p. 134 (1º edição 1676).
12
ABOIM, Diogo G. Camacho. Op.Cit., p. 46 e 59.
149
estimada do que a própria vida.
Ainda nos primórdios do século XIX, a questão da riqueza
enquanto critério enobrecedor mereceu a atenção de Luiz da Silva
Oliveira, autor da tão conhecida e referida obra Privilégios da nobreza
e da idalguia em Portugal. Diferentemente dos demais cita casos
concretos de venda de mercês honoríicas todos referentes ao ano de
1800, quando se concedeu o foro de idalgo a quem concorresse com 125
mil cruzados para o Estado, ou mesmo o hábito da Ordem de Cristo aos
que izessem entrar 5 mil no Erário Régio para ajudar na guerra contra
a França. O autor não entra em detalhes, nem tampouco emite qualquer
juízo sobre esta prática, embora a leitura de sua obra não deixe dúvidas
de que a venda de distinções pelo monarca, para angariar fundos para a
Fazenda Real, não merecia o seu incentivo. Em sua opinião, a melhor
alternativa para resolver os problemas inanceiros era retirar o estigma
associado àqueles que exerciam atividades mecânicas quando eram estas
as que mais contribuíam para o progresso econômico da monarquia,
como era o caso da agricultura e do comércio. No fundo o que propõe
é uma reavaliação da ideia de virtude e de utilidade dos súditos, mais
próxima ao que defendiam os iluministas sem, no entanto, questionar a
estrutura hierárquica da sociedade. Se propunha uma lexibilização dos
critérios de ascensão social, as virtudes continuavam a ser o elemento
qualiicador da importância social dos homens, pelo que o dinheiro não
poderia comprar a nobilitação. Segundo Oliveira, a riqueza só poderia
ser uma fonte de origem da nobreza quando fosse considerável e remota
porque “a riqueza sendo opulenta e antiga nobilita o possuidor, não
por virtude própria, mas pela presunção de ter o Príncipe conferido
nobreza ao que desde o tempo imemoriável se acha na quase posse da
mesma, tratando-se como nobre”13.
Mudando a natureza das fontes, vemos também em Raphael
Bluteau, em seu dicionário publicado no início do século XVIII, que
a prática venal era uma conduta desqualiicante, própria daqueles que
agiam sem princípios, deinição que ainda hoje conserva seu signiicado.
13
OLIVEIRA, Luiz da Silva Pereira. Op. Cit., pp. 114-118.
150
Segundo ele o adjetivo venal: “é muito usado no sentido metafórico e
moral, falado em quem se deixa peitar e em outras coisas de honra ou
ciência em que se fazem só por dinheiro”. O homem venal, por sua vez,
é “o que está pronto a fazer qualquer coisa por dinheiro”. Porém, no
verbete dedicado ao substantivo “venda” se a “venalidade da justiça”
mereceu seu desprezo já que “è peste da monarquia a venalidade dos
méritos. Brachilog. De Príncipes, p.293”14 ao se referir à venda de
“cargos e ofícios &c.” não emiti qualquer opinião como se fosse uma
prática aceitável e presumivelmente, uma vez que a cita, efetuada com
alguma frequência.
Seria possível, mediante as citações acima referidas, concluir
que a venalidade de honras (como se refere Oliveira) ou de cargos
e ofícios (tal como menciona Bluteau) existiam? Não desejo fazer
airmações precipitadas, mas de qualquer forma vale a pena considerar
a hipótese de que a censura expressa nos tratados ou em outras fontes
não necessariamente inibiram os órgãos do poder central a se valer desta
alternativa. Creio que seria mais profícuo apostar na hipótese de que
a monarquia portuguesa não abriu mão da venda de cargos e honras,
embora tivesse a devida prudência em não dar a ela grande amplitude
e publicidade.
Neste sentido, se persistirmos na comparação com a Coroa
castelhana, o que precisa ser explicado não é porque ali a venalidade
ganhou acolhimento ao contrário do que aconteceu na monarquia
portuguesa. Mas sim porque em Castela, onde a cultura política era de
similar matriz e as críticas à venalidade não deixaram de ser expressas,
a Coroa não demonstrou o mesmo pudor, embora seja preciso enfatizar
que nem por isso a nobilitação mediante o dinheiro deixou de ser
vista como uma ascensão pouco honrosa. Os próprios privilegiados
com a compra de mercês, como mostra a historiograia, muitas vezes
procuravam ocultar a via pela qual lhes tinha sido possível ingressar na
nobreza, ou seja, que fora o dinheiro que lhes permitira adquirir honras
14
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário português e latino. Coimbra, 1712-1728. Disponível em
www.Ieb.usp.br/on line/dicionários/Bluteau. Acessado em 14 de janeiro de 2010. p. 392.
151
e principalmente ofícios15.
De qualquer forma, se é fundamental buscar explicações para
o fato de que na monarquia portuguesa a venda de mercês régias
supostamente ter ganhado menor expressão, é preciso considerar
algumas hipóteses. Creio que em parte esta suposição deve-se à
associação feita por muitos contemporâneos entre a prática venal e a
administração ilipina. A legitimidade da dinastia bragantina dependia
também da desqualiicação da dinastia anterior, como se o novo período
que se inaugurava a partir de 1640 signiicasse também a restauração da
moralidade na esfera política16. Para além desta visão que inluenciou
substancialmente também os historiadores, é possível considerar ainda
algumas especiicidades do contexto português, associadas à intensidade
das crises econômicas ou mesmo à maior importância que a cultura de
remuneração de serviços tinha à legitimidade e à conservação do poder
real.
Como foi dito, são hipóteses e que como tais merecem ser
devidamente averiguadas com base na pesquisa documental que poderá
comprovar a plausibilidade dos argumentos aqui expostos. Ainda assim,
se apostamos na tese de que a venalidade possivelmente ganhou uma
expressão mais alargada na monarquia portuguesa do que se refere a
historiograia, é porque em minha pesquisa anterior me deparei com um
caso preciso que, no entanto, não foi analisado naquele momento nos
15
ANDÚJAR CASTILLO, Francisco. Op. Cit., pp. 18-20. Este silêncio das fontes ajuda a entender o câmbio imóvel da nobreza castelhana, tal como referido por Enrique Soria, na medida
em que se tudo muda, na aparência tudo se preserva como imutável. SORIA MESA, Enrique.
Op. Cit.
16
Os pregadores no reinado de Filipe II, de Portugal, mostravam-se alarmados que “com tendas
abertas e publicamente se vendiam os cargos, os bispados, as comendas, os títulos, e toda a
maneira de cargos, Ofícios e dignidades”. Memorial de Pero Roiz Soares. In: MARQUES,
João Francisco. A parenética portuguesa e a dominação ilipina. Ed. Porto e INIC, 1986, p.140.
E “com pretexto de desterrar do reino a forma de governo castelhano, tornando ao que sempre observaram os Reis portugueses”, dizia o autor das Monstruosidades do tempo e da fortuna, que se tirou a Antonio de Mendonça da Presidência da Mesa da Consciência, que “havia
anos (que) ocupava o lugar, reconduzindo muitas vezes nele. Murmuravam-no os escândalos,
porém faziam-no sofrível os donativos; quem aceitava estes lhe permitia aqueles”. Crônicas
e Memórias. Monstruosidades do Tempo e da Fortuna. Porto, Companhia Editora do Minho,
volume II, p. 21.
152
termos que agora proponho.
Em dezembro de 1750, um novo Regimento foi imposto à
capitania de Minas Gerais, com o propósito de instituir a cobrança
do quinto mediante o sistema das Casas de Fundição17. No capítulo 9
parágrafo 4 deste Regimento a monarquia prometia aos que izessem
entrar anualmente mais de oito arrobas de ouro uma mercê em retribuição
a essa excessiva idelidade. Dentre o período de 1750 a 1808 cerca de
oitenta e nove habitantes das Gerais solicitaram um hábito de cavaleiro
das Ordens militares, e dentre estes quase a metade foi considerada
apta para se tornar cavaleiro, em especial, da Ordem de Cristo. Se o
número parece pouco expressivo, é preciso lembrar que a partir de 1763
se vivenciou na Capitania o decréscimo da contribuição do quinto em
função da decadência da atividade aurífera, o que signiica que a soma
de arrobas exigida era uma quantia bastante expressiva, correspondendo
a quase 10% do que devia anualmente toda Capitania aos cofres reais.
Sem entrar em detalhes, importa observar que os candidatos a
tal mercê precisavam inicialmente apresentar ao Conselho Ultramarino
documentos que comprovassem que haviam efetuado a dita entrega,
ou seja, uma certidão emitida pelo intendente de uma das quatro Casas
de Fundição, a qual devia ser devidamente atestada pelo governador.
Para além desta, era preciso comprovar que não haviam cometido
nenhum crime e que pelo serviço da entrega do ouro não haviam
sido remunerados anteriormente. Nesta etapa, não era exigido que os
candidatos se referissem a suas qualidades, já que a mercê do hábito era
concedida pelo serviço em questão.
A priori poderíamos pensar que estamos diante de um exemplo
signiicativo de venda de mercês honoríicas, já que o teor do Regimento
nos faz pensar que o hábito de cavaleiro de uma Ordem militar poderia
ser concedido aos homens abastados que expressavam sua idelidade
ao monarca contribuindo para com o Erário Régio mediante a entrega
17
STUMPF, Roberta G. Cavaleiros do ouro e outras estratégias nobilitantes: as solicitações
de hábitos das Ordens Militares nas Minas Setecentistas. 2009, 333 f., Tese. (Doutorado em
História Social). Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Brasília, Brasília, 2009. (no
prelo, Editora Hinterlândia)
153
de arrobas de ouro. Vale a pena destacar, no entanto, que esta estratégia
incentivada pela Coroa para controlar o contrabando do ouro, acabou por
satisfazer não apenas os intuitos nobilitantes dos súditos enriquecidos
nas Minas. Isto porque a solicitação da mercê poderia ser efetuada por
serviços de terceiros já que a entrega do ouro nas Casas de Fundição
poderia ser registrada no nome de quem o depositante desejasse,
no caso, daqueles que acabaram por requerer a mercê. Conforme
pesquisa já realizada, sabemos que destes agraciados 1/3 eram súditos
prestigiados por pertencerem à estrutura burocrática local. Em nenhum
momento de suas trajetórias nas Minas Gerais exerceram alguma
atividade econômica, como a mercantil ou a extração aurífera. Neste
caso, é seguro airmar que se tornaram cavaleiros em função de um ouro
que não lhes pertencia. No entanto, o restante era reconhecido como
homens de posse ou cabedal que iniciaram suas trajetórias ascendentes
na Capitania principalmente dedicando-se ao comércio. Enriquecidos
conseguiram obter prestígio entre os assistentes nas Minas mas, porque
desejavam aumentar sua importância social mediante o reconhecimento
régio, recorreram ao Regimento de 1750 para conquistar oicialmente
o status nobre.
Por outro lado, se o Conselho Ultramarino ao conceder a mercê
do hábito não averiguava mais do que a prestação do serviço, a Mesa
de Consciência e Ordens ao realizar as provanças inquiria testemunhas
com o intuito de veriicar se os requerentes portavam as características
que habitualmente eram exigidas a todos súditos que ingressassem
no grupo dos cavaleiros das Ordens militares. A limpeza de sangue
e sobretudo a de ofício dos requerentes, e de seus pais e avós, eram
critérios fundamentais para serem considerados dignos perante os
deputados da Mesa, mas não só. Ter servido à monarquia na estrutura
burocrática e militar, assim como viver à lei da nobreza, podia fazer
grande diferença.
Nos casos em que a falta de qualidade dos requerentes ou de
seus familiares obstaculizava a obtenção do hábito de uma Ordem
militar, a maioria obteve a dispensa régia destes impedimentos sem
154
pagar um donativo, já que compensavam seus defeitos não apenas por
terem demonstrado sua idelidade em arrobas de ouro, mas sobretudo
por terem desempenhado outros serviços. Sabiam os homens das Minas
que não bastava contribuir com o ouro para ostentarem no peito uma
insígnia do hábito de cavaleiro das Ordens militares, e assim após
depositarem-no nas Casas de Fundição, esperavam anos para solicitar
a mercê, com vistas a entrarem para a estrutura burocrática civil ou
militar e assim engrandecer seu “currículo”.
Desta forma, se o depósito das arrobas de ouro era o primeiro
passo para que estes processos de nobilitação se iniciassem, ele não
garantia o ingresso às Ordens, já que o estilo de vida e os demais
serviços prestados à monarquia eram também matéria de averiguação
quando realizadas as provanças. Sendo assim, podemos concluir que
estes habitantes das Minas compraram a mercê do hábito de cavaleiro
das Ordens militares? Para responder a esta pergunta, é preciso tocar em
um ponto fundamental: o que era venalidade no período em questão?
Ainda que a deinição proposta por Bluteau nos auxilie, não me parece
ser de todo suiciente. Ainal, ainda resta por esclarecer se a venalidade
tratava-se apenas de uma transação econômica ou se ela pode ser
identiicada toda vez em que o dinheiro aparece como sendo um dos
critérios, e não necessariamente o único, para a aquisição de uma mercê
régia.
Creio que as diferenças entre as realidades ibéricas ao longo do
Antigo Regime no que se refere à intensidade da venda de ofícios e honras
deve-se, em parte, ao posicionamento das respectivas historiograias
na deinição do conceito. Ainda que os trabalhos acadêmicos sobre a
matéria tanto em Portugal como no Brasil sejam escassos, é possível
dizer que o conceito de venalidade tem sido utilizado apenas quando
o dinheiro, e apenas este, foi fundamental à ascensão social pelas vias
oiciais.
Já dissemos que a historiograia espanhola está muito mais
avançada no estudo sobre este tema, e as pesquisas desenvolvidas a
partir da década de 1970, por Domínguez Ortiz e Tomás y Valiente,
155
contribuíram signiicativamente para isso, ao lançar importantes
pistas que hoje estão sendo cuidadosamente averiguadas, com uma
proliferação de estudos que não pode ser comparada qualitativa ou
quantitativamente ao caso português. No geral, ainda que o conceito
não seja aplicado de forma consensual, observa-se que a prática venal
normalmente é identiicada toda vez em que uma quantia de dinheiro
foi entregue para se realizar tais transações, independentemente se
os atributos como a honra, o mérito, a experiência foram também
indispensáveis para o sucesso das mesmas.
Evidentemente, que a depender da forma como adotamos o
conceito, podemos chegar a conclusões distintas, tal como é o caso
do exemplo citado anteriormente concernente à aquisição ou compra
pelos habitantes das Minas do hábito de cavaleiro da Ordem militar. No
que se refere à pesquisa iniciada há pouco preiro não me posicionar
ainda, por entender que este impasse só pode ser esclarecido depois
de avançar na análise documental. Ainda assim, como estratégia
metodológica, preferi não alargar demasiadamente o sentido deste
conceito, mesmo sabendo que esta opção diicultará meu trabalho, na
medida em que se empregarmos o conceito tal como proposto pela
historiograia castelhana pode-se airmar desde já que muitas mercês
foram concedidas mediante à venda, uma vez que a Coroa portuguesa,
por exemplo, retribuiu muitos vassalos por seus serviços pecuniários,
vale dizer, por aqueles que exigiram dos protagonistas “sacrifício
de suas vidas e fazendas”, como eram referidos nas consultadas
enviadas ao Conselho Ultramarino. Da mesma forma, pode-se
entender como compra e venda os casos em que mulheres obtiveram,
por serviços de seus parentes, mercês que foram incorporadas aos
seus dotes, ou de ssuas ilhas, que passaram a constituir parte de seu
patrimônio e como tal “moeda de troca” no mercado matrimonial.
Porém, porque estou interessada em certiicar a sustentabilidade
dos argumentos comumente apresentados pela historiograia portuguesa,
tenciono iniciar esta pesquisa atenta aos casos em que o sucesso na
concessão de mercês dependeu exclusivamente do dinheiro entregue
156
pelos súditos, que assim poderiam estar compensando sua falta de
qualidade ou de serviços. Restringindo a análise a estas transações, penso
que estarei contribuindo de forma mais profícua para a compreensão da
venalidade enquanto alternativa de ascensão social àqueles que de outro
modo não poderiam chegar aos patamares superiores da sociedade
portuguesa do Antigo Regime. Por outro lado, se a documentação
não nos fornecer indícios de que o dinheiro por si só acentuou a
mobilidade social, contrariando os parâmetros hierárquicos próprios
de uma sociedade que se representava como estamental, seguiremos
a estratégia da historiograia espanhola, analisando as negociações nas
quais a aquisição do status nobre pelas vias oiciais tornou-se possível
aos homens abastados que possuíam também as qualidades tidas pela
cultura política vigente como sendo indispensáveis ao ingresso no
estamento nobiliárquico.
Ainda como estratégia a ser seguida nesta primeira etapa da
pesquisa, optei por estudar somente os casos nos quais era a Coroa quem
vendia os cargos, ou seja, quando eram os próprios órgãos políticos
do centro a concedê-los em troca de dinheiro, excluindo por ora a
venalidade entre particulares. Não porque esta é menos importante ou
porque já tenha sido devidamente estudada, mas sim porque a compra
e venda entre súditos é muito mais conhecida pela historiograia dado o
volume das fontes que sugere a sua ocorrência. Evidentemente, porque
a legislação normalmente censurava este tipo de negociação, raramente
estas aparecem como sendo venais, embora não seja difícil notar que
em grande parte das vezes em que os súditos renunciavam as mercês
régias estavam a esconder uma prática venal.
Em uma breve consulta nos índices da documentação do Arquivo
Histórico Ultramarino referente às Capitanias brasileiras encontramos
inúmeras consultas nas quais os requerentes solicitavam permissão
para nomear serventuários, ou a aprovação da escolha dos mesmos,
comprovando assim o quanto era usual que os cargos fossem servidos
não pelos súditos que haviam sido nomeados para eles. Frequentemente
estes renunciavam a serventia em terceiros e os termos em que tais
157
repasses eram efetuados só aparecem explicitamente como sendo
vendas quando estas transações foram denunciadas, e isto em pouco
mais de uma dezena de casos.
Vejamos um exemplo. Em 1743, o provedor-mor da Fazenda
de São Luis do Maranhão, Inácio Gabriel Lopes Furtado, em carta
dirigida ao rei D. João V, solicitava esclarecimentos quanto à conduta
que deveria seguir em relação à venda do ofício de escrivão da Fazenda
e Almoxarifado de propriedade de José Teles Vidigal para Manuel
Gaspar Neves18. Segundo Furtado, a venda havia se realizado mediante
a falsiicação de escrituras, já que o renunciante, segundo suas palavras,
“não tinha permissão para vender, só para renunciar, o que não é a
mesma coisa”. Dentre as informações que disponibiliza, icamos
sabendo que Vidigal renunciou/vendeu o cargo para tomar estado de
eclesiástico e, não obstante a ilegalidade com que ocorreu o repasse
do ofício, o comprador, como se refere o provedor, recebeu a carta do
ofício. As dúvidas que apresentava às autoridades competentes eram
as seguintes: deveria ou não “negar a propriedade de quem comprou o
oicio, sub-repticiamente, como se fosse renúncia, quando na verdade é
venda”? ou, como continuava o iel servidor Furtado, deveria “ordenar
ao procurador da fazenda que venha com libelo para se anular a
chamada renúncia e se declarar o tal oicio vago para a Fazenda de
Vossa Majestade”? O procurador da Fazenda, de forma extremamente
vaga, respondeu “com indiferença, não aprovando, nem reprovando
o contrato que se declara, dizendo somente que não impugne, nem
contradiga”(....), recomendando assim que Furtado cumprisse a carta
de ofício já emitida.
Nota-se pelo posicionamento do ministro régio que a venalidade
de ofícios entre particulares era matéria espinhosa sendo preferível
ignorar casos desta natureza a fazer frente a eles. Se não propõe qualquer
punição aos envolvidos, tampouco consente com todas as letras este
tipo de prática pois se assim izesse estaria contrariando a legislação
concernente ao assunto. Legislação que procurou minimizar os danos
18
AHU_ACL_CU_009, Cx. 27, D. 2809. Maranhão 03[153_003] 037 003 424.
158
que a venalidade, entre os súditos, trazia à imagem do monarca como
aquele a quem cabia doar as mercês ou delegar a seus servidores que
assim o izessem. Como lembra Camacho Aboim, “não deve o Príncipe
consentir, que as suas mercês passem por outras mãos, mais que as
suas” pois o “Príncipe deve ser muy zeloso de seus favores; porque o
Povo beija a mão a quem lhe dá, e não a quem lhe manda dar; o mar
bebe do rio, e não conhece a fonte”19. Se os vassalos vendessem os
cargos para os quais foram providos, atentos unicamente ao valor que
seria pago pelos seus substitutos, não haveria também garantias de que
estes possuíssem as qualidades necessárias ao bom representante do
poder régio.
Frente a estes prejuízos à administração régia, a Coroa tentou
se precaver mediante uma diversidade de leis, decretos, alvarás, ordens
cujo teor se repete ao longo dos séculos; uma coerência normativa
que pode ser lida também como ineicácia destes esforços. Há vários
exemplos a serem citados como o livro 5 título 96 da Ordenação Filipina
que esclarecia que o “oicial que vende ou renuncia seu Ofício sem ter
licença de El Rei, perde o Ofício e o dinheiro ica para El Rei”20.
As renúncias em si, como adiante explicarei, não eram ilegais
mas a frequência com que ocorriam ou a forma como se efetivavam
eram preocupantes. Sendo assim, procurou-se assegurar que os cargos
fossem servidos por aqueles que tinham sido eleitos para exercê-los. Pelo
decreto de 16 de fevereiro de 1662 condenava-se “o grande descuido
nos proprietários de ofícios, assim de justiça como de fazenda, em não
servirem seus ofícios e andarem os mais deles de serventia”, pois eram
renunciados. Provavelmente tal censura não surtiu qualquer efeito já
que quase cem anos depois, em 20 de abril de 1754, um novo decreto
coibirá as ditas renúncias21. Quando estas eram realizadas levando-se
19
ABOIM, Diogo G. Camacho. Op. Cit., p. 178.
Repertorio das Ordenações, e Leis do Reino de Portugal - Tomo III. Letras J-PA. Coimbra, Real Imprensa da universidade, 1795, p. 801, Disponível em www.iuslusitania.fcsh.unl.pt.
Acesso em 21/10/2009.
21
SILVA, José Justino de Andrade e. Collecção Chronologica da Legislação Portugueza.
1640-1700. Lisboa, Imprensa, J. J. Silva, 1854-59. Disponível em www.iuslusitania.fcsh.unl.
20
159
em conta exclusivamente o cabedal dos futuros serventuários, a questão
agravava-se. É isso o que se percebe, por exemplo, no alvará de 25 de
julho de 1642, contrário á “renunciação(sic) de oicios” que pertenciam
a mulheres que os incorporavam a seus dotes. Segundo seu teor, se por
direito os seus futuros maridos tornavam-se proprietários destes cargos
estas, casando-se com “pessoas de maior qualidade das que costumam
servir os tais ofícios (acabavam por) renunciar depois a eles, passando
a pessoas mui desiguais, em grande prejuízo da Justiça e bem comum
de meus Reinos, (por) serem todas estas renunciações(sic) vendas”22.
Não deixa de causar certa estranheza a tentativa da Coroa em
normatizar as renúncias dos ofícios dados em propriedade quando estes,
em conformidade com o sistema patrimonialista então vigente, uma vez
concedidos eram incorporados ao patrimônio de seus detentores23. Como
doações irrevogáveis, deixavam automaticamente de pertencerem ao
patrimônio régio, o que signiica que a monarquia, além de perder o
poder sobre os mesmos, já que devia respeitar o direito adquirido por
seus vassalos, não poderia doá-los novamente, em prejuízo do sistema
de remuneração de serviços. Ainda assim, este tipo de provimento foi
bastante comum pois dado o valor simbólico e material da mercê em
causa, usualmente exigia-se destes futuros servidores régios qualidades
mais elevadas, indispensáveis ao bom andamento da administração real.
Entretanto, quando os nomeados repassavam seus cargos
mediante as renúncias os benefícios que justiicavam os provimentos
desta natureza desfaziam-se já que, como parece ter icado claro, os
substitutos não portavam necessariamente as boas qualidades que
supostamente foram essenciais à nomeação dos proprietários. Pode-se
questionar, a esta altura, porque concomitantemente à doação do cargo
em muitas vezes era concedida também a “faculdade para renunciar” a
eles. Longe de se constituir uma medida paradoxal, a concessão de tal
mercê, pois era disto que se tratava, era vista como benéica também à
administração régia. A Coroa ao permitir que o proprietário escolhesse
pt. Acesso em 21/10/2008.
22
Idem.
23
HESPANHA, A. M. Poder e Instituições.... Op. Cit., p. 7.
160
um substituto visava que o ofício, em caso do mesmo ter algum
impedimento que o impossibilitasse de servi-lo, icasse vago por tempo
excessivo. Porém, tal atribuição, que era também um privilégio, não
eximia os órgãos centrais da responsabilidade por em tais nomeações.
Se era exigido que os proprietários renunciassem apenas em indivíduos
com proximidade consaguínea ou, como passou a ser constante no
século XVIII, em “pessoa apta”, cabia as instituições régias controlar
as ditas renúncias veriicando as aptidões e as qualidades dos futuros
serventuários24.
No entanto, o que as fontes nos revelam é que este controle
era ineicaz, pois ainda que os documentos relativos às renúncias
tramitassem nas instituições competentes, normalmente as justiicativas
apresentadas pelo renunciante eram satisfatórias para a aprovação dos
serventuários. Disto resultava, como parece evidente, benefícios aos
proprietários que facilmente conseguiam burlar as normas e efetuar
a renúncia da forma que lhes fosse conveniente, o que era vantajoso
também aos que eram escolhidos para substituí-los. Estes contavam
com uma alternativa viável para iniciar uma carreira política ou mesmo
para elevar-se na hierarquia burocrática quando possivelmente, dada
sua ausência de qualidades ou mesmo de experiência no trato da coisa
pública, diicilmente conseguiriam de outra forma. Uma vez inseridos
na estrutura da administração régia, contavam ainda com a possibilidade
de serem recompensados pelo sistema da economia da mercê em
função dos serviços que poderiam ser prestados a partir de então.
Quanto aos proprietários, os ganhos eram signiicativos, em distintos
aspectos. Para além do fato de conservarem o prestígio de terem a
posse do ofício, a escolha dos serventuários propiciava o fortalecimento
das suas redes de amizade e parentesco. Os ganhos pecuniários eram
igualmente relevantes, já que por direito deveriam receber a terça parte
do rendimento anual do cargo. Para além deste benefício legal, se acaso
efetuassem as renúncias observando apenas critérios econômicos,
24
Sobre os critérios legais que regulavam as renúncias ver: OLIVAL, Fernanda. As Ordens
militares... Op. Cit., pp. 247-248.
161
a posse dos cargos garantia ainda um considerável aumento de seu
patrimônio, ainda que o valor despendido pelo comprador seja difícil
de dimensionar. Contra tal situação, a monarquia procurou se precaver,
como indica, por exemplo, a carta de lei de 1667, sancionada em 15 de
setembro de 1696, que proibia que os serventuários pagassem mais do
que a terça parte aos proprietários, pois estes “buscam os que mais lhes
dão, sem reparo à qualidade, procedimento e préstimo”dos mesmos25.
A venalidade entre particulares, como acima mencionei, não se
constituirá o foco principal de minha pesquisa, ao menos nesta etapa
inicial, embora a compreensão dos mecanismos e da frequência com que
ocorria permite questionarmos o pudor atribuído à Coroa portuguesa
quanto à venda de ofícios que pertenciam a seu patrimônio. Segundo
as relexões apresentadas por Alberto Gallo, historiador italiano que em
2000 publicou um artigo sobre a venalidade na América portuguesa26,
a censura efetuada contra a venalidade régia não impediu que a
monarquia adotasse também esta prática, e não somente pelos atrativos
econômicos que poderia trazer. Segundo o autor, as vantagens políticas
eram consideráveis, pois proporcionava que a Coroa controlasse as
transmissões de ofícios entre particulares, ou mesmo as nomeações
pelos representantes régios que nem sempre se baseavam nos critérios
tidos como justos no provimento de seus subalternos. Do ponto de vista
legal, a eventual imoralidade de tal prática pode ser contornada com
o decreto de 1722 o qual instituía que os serventuários pagassem à
Coroa um terço de sua renda, o que signiica que a monarquia estava se
apropriando de um direito já concedido aos seus súditos que ganhavam ao
renunciar aos cargos parcela do rendimento dos mesmos27. Os costumes
e as práticas no que respeita aos provimentos de ofícios transformavam
o pudor atribuído à Coroa em ingenuidade política. E como se observa,
a realidade não permite apostarmos em nenhum destes extremos.
25
SILVA, José Justino de Andrade e. Op. Cit., p. 26.
GALLO, Alberto. La venalidad de ofícios públicos durante el siglo XVIII. In: BELLINGERI,
Marco (coord). Dinâmicas de Antiguo Régimen y orden constitucional. Representación, justicia
y administración. Siglos XVIII-XIX, Torino, Otto Editore, 2000, pp. 97-175.
27
Idem, p. 98.
26
162
De qualquer forma, tudo isso exige comprovação empírica,
evidentemente, e o principal problema que se coloca refere-se à
natureza das fontes que devem ser consultadas. Indícios explícitos que
comprovem a venda de cargos por parte da monarquia, seja através dos
órgãos políticos centrais ou de instituições periféricas, são escassos mas
podem ser encontrados, como o alvará de 13 de outubro de 1699 “em
que se autoriza a câmara de Santarém a vender o ofício de tesoureiro da
mesma e aplicar o preço para o desempenho de suas rendas”28. Outros
casos pontuais aparecem na historiograia mas, à exceção do artigo de
Gallo, os estudos empreendidos até agora não permitem airmar que a
Coroa portuguesa tenha adotado uma política sistemática de concessão
de mercês para se beneiciar do dinheiro de seus súditos, em contextos
de urgência inanceira, ou ainda para controlar a nomeação dos ofícios.
Sendo assim, preferi seguir as pistas do historiador italiano e
veriicar a amplitude e a importância que a venda de ofícios ganhou, a
partir do decreto de 18 de fevereiro de 174129, que instituía os provimentos
de ofícios da América mediante o pagamento de um donativo. Como
estratégia analítica passei a consultar às fontes referentes à Chancelaria
do Reino, depositadas no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, por
entender que para além da questão anunciada este corpus documental
possibilita também compreender os mecanismos que norteavam tais
nomeações, matéria que ainda hoje tem sido pouco analisada. Como
o estudo da venalidade exige o cruzamento das fontes não pretendo
ao longo desta pesquisa restringir-me a este corpus documental, razão
28
Sabemos também que o Ofício de Secretário do Conselho Ultramarino foi comprado Manuel
Lopes de Lavre no inal do século XVII. BICALHO, Maria Fernanda. Labirinto dos Negócios:
Secretaria e Secretários do Conselho Ultramarino. Comunicação apresentada no XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA DA ANPUH, em Fortaleza, 14 de julho de 2009. (inédito)
ou ainda que o cargo de escrivão da câmara da Macau foi vendido em 1776. BOXER, C.R.
Portuguese society in the tropics. The municipal Councils of Goa, Macao, Bahia and Luanda.
1510-1800. The University of Wisconsin Press, 1965, p. 45.
29
“Decreto para se proverem as serventias dos ofícios do Brasil, que não tiverem proprietários,
por donativos à Fazenda Real”. RIBEIRO, João Pedro. Indice Chronologico Remissivo da Legislação Portugueza Posterior à Publicação do Codigo Filippino com hum Apéndice, Lisboa,
Typograia da Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1805, p. 162. Disponível em www.
iuslusitania.fcsh.unl.pt. Acesso em 11/12/2009.
163
pela qual me limitei à análise dos provimentos de ofícios civis para as
capitanias do Sul: Rio de Janeiro, S. Vicente, S. Paulo, S. Catarina, Rio
Grande de S. Pedro e Colônia do Sacramento.
Neste momento, foi analisada toda a documentação referente ao
período joanino, restando ainda consultar as nomeações efetuadas no
reinado de D. José I. Futuramente, pretende-se fazer uma comparação
entre os dois reinados, não só para veriicar uma eventual continuidade
no que se refere à venda de cargos mediante donativo, mas também
no que concerne às diretrizes que regiam os provimentos e como estas
estavam ou não de acordo com a tendência de centralização política
particularmente visível a partir da segunda metade do século XVIII30.
Mediante a consulta das fontes referente ao reinado de D.
João V, observa-se que os cargos providos pelos órgãos políticos do
centro eram em número reduzido se levarmos em conta a dimensão da
estrutura burocrática judicial, fazendária ou mesmo da administração
local da América portuguesa. O que revela que os provimentos
eram essencialmente feitos à escala local. De qualquer forma, se as
nomeações régias não alcançam a quantia de duas centenas, a oposição
das autoridades locais ao provimento efetuado mediante o pagamento de
um donativo, conforme análise de Gallo, revela o temor destas quanto
a uma possível tendência da monarquia portuguesa em centralizar no
reino os provimentos, minimizando assim os poderes outrora atribuídos
aos representantes régios na América, em particular daqueles que
compunham as Câmaras.
Destes provimentos analisados mediante a consulta da
documentação da Chancelaria do Reino, em mais da metade as
nomeações justiicavam-se porque os súditos possuíam as tradicionais
qualidades que os tornavam dignos e capazes de servir à monarquia.
Porém, ainda que a ascendência por vezes aparecesse como um
atributo qualiicador de grande estima, normalmente era a capacidade,
a experiência, a boa informação os critérios mencionados. Quanto
aos cargos de justiça, tal como tem sido estudado pela historiograia,
30
HESPANHA, A. M. Poder e Instituições.... Op. Cit., p. 77.
164
eram concedidos aos súditos de letras, que tinham efetuado a leitura no
Desembargo do Paço. Estaríamos, portanto, diante de uma reorientação
política a partir do período joanino no que concerne ao peril dos oiciais
régios? Para Gallo, tudo demonstra que sim.
As nomeações que cediam a propriedade dos ofícios são poucas
e normalmente eram efetuadas naqueles que possuíam algum grau de
parentesco com os anteriores proprietários destes ofícios, como ilhos,
netos e genros. A transmissão por hereditariedade era um direito, mas
não era feita automaticamente, pois o encarte deveria ser formalizado
mediante a apresentação de uma sentença da justiicação, assim como
o súdito a ser beneiciado deveria ser estimado por sua boa reputação
e por sua limpeza de sangue. De qualquer forma, são poucos aqueles
que conseguem a propriedade do ofício por mérito próprio, ou seja, por
serviços efetuados à monarquia, ou porque possuíam direito a ela por
terem sido contemplados com uma renúncia.
Talvez se possa pensar que a preferência por conceder os
provimentos em serventia, em detrimento da propriedade, aos que
haviam demonstrado aptidão em outros serviços, pelos quais adquiriram
experiência, estava em conformidade com as diretrizes políticas
já anunciadas, vale dizer, com a tentativa de recuperar os cargos
para o patrimônio régio, fundamentais à manutenção do sistema de
remuneração de serviços. O que pode explicar também porque aqueles
que adquiriram a propriedade dos ofícios em poucas vezes conseguiram
também a mercê de renunciar a eles.
Para não me alongar demasiadamente, importa ressaltar que
os cargos concedidos pela entrega de donativos correspondem a um
porcentual signiicativo (30%) dos provimentos analisados para o
período de 1706-1750, embora só passassem a ser adotados a partir de
1742. Evitando repetir as considerações de Gallo, que estuda também
os trâmites destas nomeações, desejo apenas salientar alguns aspectos
para concluir esta breve exposição. Primeiro, que a partir desta data
as provisões de serventia mediante donativo tendem a substituir as
de outra natureza. O que parece indicar que a Coroa deinitivamente
165
acolheu a prática venal sem grande preocupação com as críticas que
poderia desencadear. E isto não somente porque deu publicidade a ela,
mas também porque as justiicativas que embasam estes provimentos
referem-se apenas ao valor do donativo. Não há nenhuma precaução
por parte da Coroa em relação às qualidades e a capacidade destes
futuros servidores. A monarquia procurava usufruir essencialmente
das vantagens econômicas deste tipo de provimento, razão pela qual a
“faculdade para renunciar” fora também concedida em tais casos.
Se isso parece contradizer aquela tendência já referida em
primar pelo bom desempenho de seus representantes, as diiculdades em
controlar esta matéria provavelmente explicam porque ainal a Coroa se
rendeu à venalidade, ainda que só para os cargos subalternos, tirando
proveito de uma prática que até então só beneiciava a seus súditos. As
consequências de tal atitude devem ainda ser averiguadas, como tantas
outras questões que a riqueza destas fontes pode ajudar a compreender.
Resta ainda por analisar, por exemplo, os impostos pagos à
Chancelaria do Reino como os novos direitos, as ianças, a taxa cobrada
pelos oiciais, ou para se empreender a avaliação dos ofícios, os quais
podem revelar que também antes da década de 1740 os ofícios foram
vendidos. Se conseguir estipular uma média destes valores, considerando
a natureza dos cargos, creio que será possível descobrir casos venais
quando os valores destes impostos excederem demasiadamente aqueles
que eram normalmente cobrados.
Esta pesquisa está ainda no início, pelo que as relexões que
foram aqui apresentadas serão aprofundadas ou eventualmente refutadas
à medida que a pesquisa documental avançar. De qualquer forma, se a
intenção foi repensar o peso da venalidade na monarquia portuguesa, ao
menos foi possível mostrar que o tema merece ser objeto de investigação
e que as fontes, ainda que escassas, podem fornecer indícios de que a
Coroa no século XVIII também vendeu ofícios da estrutura burocrática
na América portuguesa. Nada que se comparasse ao que ocorria na
América espanhola, mas nada que possa também sustentar a tese de que
a venalidade praticamente não existiu na monarquia portuguesa. E neste
166
sentido, um trabalho desta natureza pode em muito contribuir, inclusive
para se reavaliar outros aspectos que não foi possível mencionar mas
nem por isso devem deixar de ser observados, ainda que para tanto seja
preciso que a venalidade passe a ser objeto de estudo de um número
considerável de historiadores.
167
“Muito mais cadáver do que Estado” –
Trajetórias Administrativas no Estado do Grão-Pará
e Maranhão (século XVIII)
Fabiano Vilaça dos Santos
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(...) aquela capitania [do Maranhão] se acha no último desamparo;
necessita com a maior brevidade de um governador, e governador
que não só seja soldado, mas que saiba da arrecadação da Fazenda
Real; que cuide nas plantações, no comércio e em instruir aquela
rude gente, e que inalmente se não lembre de sorte alguma do
seu interesse particular.1
Introdução
Em um requerimento para que seus préstimos beneiciassem a
Casa a qual devia “o nascimento, a educação e a subsistência”, Francisco
Xavier de Mendonça Furtado anexou um rol dos serviços que prestara
desde o início de sua carreira na Real Armada. Na parte referente ao
governo do Estado do Grão-Pará e Maranhão, destacou a melhoria na
arrecadação da Fazenda, a fundação de vilas, o fomento do comércio
e o combate aos jesuítas como as realizações mais importantes “para
ressuscitar aquele muito mais cadáver do que Estado”.2
Os pedidos de remuneração de Mendonça Furtado lembravam,
indiretamente, alguns dos principais tópicos da política pombalina para
a Amazônia, consubstanciados na dinamização do comércio em bases
1
MENDONÇA, Marcos Carneiro de (coord.). A Amazônia na era pombalina. Correspondência inédita do governador e capitão-general do Estado do Grão-Pará e Maranhão Francisco
Xavier de Mendonça Furtado (1751-1759). São Paulo: Instituto Histórico e Geográico Brasileiro, 1963, t. 1, p. 343.
2
Instituto dos Arquivos Nacionais – Torre do Tombo (doravante IANTT). Ministério do Reino, Decretos (1745-1800), pasta 13, n.º 83.
169
mercantilistas, por meio da criação da Companhia de Comércio do GrãoPará e Maranhão (1755); no povoamento da vasta região, com a criação
de vilas no lugar das antigas missões religiosas, e nas leis de liberdade
dos índios (1755), projeto associado à expulsão da Companhia de Jesus
dos domínios portugueses (1759). Ao comparar o Estado do Grão-Pará e
Maranhão a um cadáver, Mendonça Furtado procurou realçar o esforço
daqueles que para lá foram designados a im de executar os planos de
recuperação econômica da Amazônia portuguesa.
Embora o objetivo deste trabalho – uma apresentação descritiva
dos resultados de pesquisa para o doutoramento3 – não seja rever a
estrutura administrativa das capitanias do Norte, antes de investir na
coniguração das trajetórias de seus governantes é conveniente delimitar,
em linhas gerais, o seu espaço de atuação.
O espaço da ação governativa: caracterização geral
Entre 1621 e 1751, as capitanias do Pará, do Maranhão e do
Ceará (esta até meados do século XVII4), assim como várias donatarias
particulares, estiveram reunidas sob a jurisdição do Estado do Maranhão
e Grão-Pará, com sede em São Luís.5 À época, o Maranhão correspondia
à “cabeça” do Estado, onde pontiicava o governador e capitão-general
ou simplesmente o governador-geral. Da capitania subalterna do Pará
icava encarregado um capitão-mor (durante o curto período de 18
3
SANTOS, Fabiano Vilaça dos. O governo das conquistas do norte: trajetórias administrativas no Estado do Grão-Pará e Maranhão (1751-1780). Tese de Doutorado. FFLCH, USP, 2008.
O trabalho encontra-se editado e consta na bibliograia.
4
Há certo consenso entre os autores de que a capitania do Ceará separou-se do Estado do Maranhão e passou à jurisdição de Pernambuco por volta de 1656. GIRÃO, Raimundo. Pequena
história do Ceará. 2ª ed., Fortaleza: Ed. Instituto do Ceará, 1962, p. 134. Ver também MAURO,
Frédéric. “Portugal e o Brasil: a estrutura política e econômica do império, 1580-1750”. In:
BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina: a América Latina colonial. Tradução de
Maria Clara Cescato. São Paulo: EDUSP; Brasília: FUNAG, 1997, vol. 1, p. 453.
Cf. STUDART FILHO, Carlos. Fundamentos geográicos e históricos do Estado do
Maranhão e Grão-Pará (com breve estudo sobre a origem e evolução das capitanias
feudais do Norte e Meio Norte). Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1959,
pp. 328-329.
5
170
meses em que o Estado foi dissolvido, entre 1652 e 1654, houve um
governador em Belém).
A partir de 1751, quando surgiu o Estado do Grão-Pará
e Maranhão, o governador e capitão-general passou a residir em
Belém, havendo um subalterno no Maranhão que ostentava o título de
governador (com a patente de tenente-coronel) e não mais o de capitãomor.6 Ainda na década de 1750, foi fundada a capitania de São José
do Rio Negro (3 de março de 1755) e inalmente organizada a do Piauí
(criada em 1718). O governo do Rio Negro caberia, segundo a carta
régia de criação da capitania7, a um governador subalterno ao capitãogeneral no Pará. Em igual situação icaria o Piauí – cuja administração
foi ordenada conforme a carta régia de 29 de julho de 1758 –, ou seja,
entregue também a um indivíduo que ostentaria o título de governador.
Em suma, no período pombalino, o Grão-Pará funcionou como
sede do governo-geral do Estado, tendo Maranhão, Rio Negro e Piauí
como unidades subalternas. Somente com a divisão do Estado, na década
de 1770, uma nova coniguração reuniu as capitanias com demandas
semelhantes e geograicamente mais próximas. A divisão em duas
unidades – Estado do Grão-Pará e Rio Negro e Estado do Maranhão e
Piauí – foi regulamentada em 20 de agosto de 1772 e concretizada dois
anos depois pela provisão de 9 de julho de 1774.
O recrutamento dos governadores do Estado do Grão-Pará e
Maranhão
Pela situação geográica e devido às questões que mais ocuparam
a metrópole em toda a história das conquistas do Norte, o Estado assumiu
a condição de governo militar. A premente defesa da extensa linha de
6
Luís de Vasconcelos Lobo, nomeado para o Maranhão em 1751, inaugurou essa nova fase
da administração do Estado, conforme registrado no princípio das instruções a Francisco Xavier de Mendonça Furtado. MENDONÇA, Marcos Carneiro de (coord). A Amazônia na era
pombalina..., t. 1, p. 26. No entanto, quando Joaquim de Melo e Póvoas assumiu o governo do
Maranhão, em 1761, ostentava a patente de coronel.
7
Carta régia da criação da capitania do Rio Negro: 3 de março de 1755. Revista do Instituto
Histórico e Geográico Brasileiro. Rio de Janeiro, 61(97), 1898, pp. 59-63.
171
fronteira com domínios espanhóis, holandeses, franceses e ingleses
demandou esforços no sentido de construir e aparelhar fortiicações e
de manter contingentes militares em condições de manter a integridade
dos territórios portugueses.
Assim, a geopolítica demandou o recrutamento de indivíduos
com peril eminentemente militar. Tais agentes se encaixavam, em boa
medida, na caracterização dos administradores coloniais elaborada por
Caio Prado Júnior, para quem
(...) o governador [era] uma igura híbrida em que se reuniram as
funções do governador das armas das províncias metropolitanas;
(...) e como o único modelo mais aproximado que se tinha dele
no Reino era o do citado governador das armas, ele sempre foi
acima de tudo, militar.8
A caracterização de Caio Prado pode ser aproximada da deinição
de Fernando Dores Costa acerca do cargo de governador das armas em
Portugal – “um lugar de condução militar”.9 Adotando-se rapidamente
a perspectiva comparativa e direcionando-a para as conquistas do
Norte, tem-se que os governadores do Estado do Grão-Pará e Maranhão
eram, em suma, militares não só de formação, mas de carreira. A origem
social e as experiências dos mesmos no Real Serviço reforçam essa
tipologia, esmiuçada na caracterização individual das trajetórias. Todos
possuíam comprovada experiência militar, um requisito importante
observado nos recrutamentos. Faltava-lhes, todavia, vivência nos
assuntos administrativos. Apesar disso, atendiam a outros requisitos,
como a posse de riquezas, um aspecto contemplado nas indicações.10
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 15ª ed., São Paulo:
Brasiliense, 1977, pp. 301-302.
8
9
COSTA, Fernando Dores. “A nobreza é uma elite militar? O caso Cantanhede-Marialva em
1658-1665”. In: MONTEIRO, Nuno Gonçalo; CARDIM, Pedro & CUNHA, Mafalda Soares
da (orgs.). Optima pars: elites ibero-americanas do Antigo Regime. Lisboa: ICS, 2005, pp.
47-63.
10
RUSSELL-WOOD, A. J. R. “Governantes e agentes”. In: BETHENCOURT, Francisco e
CHAUDHURI, Kirti (orgs.). História da expansão portuguesa. Lisboa: Círculo dos Leitores,
1998, vol. 3, p. 173-175.
172
A falta de experiência administrativa dos governantes das
conquistas do Norte há muito foi percebida pela historiograia, ainda
que algumas interpretações incorram em generalizações. No século
XIX, João Francisco Lisboa airmou que os governadores do Estado
eram
(...) escolhidos ordinariamente na classe dos militares, e reputado
este gênero de despacho um acesso na carreira, galardão de
serviços passados ou ainda mero favor à posição ou família do
agraciado, pouco se atendia nas nomeações aos dotes civis
e políticos indispensáveis em quem tinha de governar em
regiões afastadas, e onde era quase nula a ação iscalizadora
do governo supremo.11
João Francisco Lisboa enumerou aspectos essenciais para a
caracterização dos governadores: a formação eminentemente militar,
em perfeita sintonia com a posição geográica do Estado, e o fato de
as nomeações representarem a possibilidade de ascensão social e na
carreira, levando-se em conta os serviços prestados. Por outro lado, teceu
considerações gerais, sem se deter em um momento histórico especíico.
Pedro Octávio Carneiro da Cunha classiicou os titulares do
antigo Estado do Maranhão a partir de uma visão depreciativa da
região: “território imenso, população escassa, riqueza quase que
apenas potencial, os postos não despertavam o interesse de gente
melhor”. Elegeu Gomes Freire de Andrade (1685-1687) e Antônio de
Albuquerque Coelho de Carvalho, o moço (1690-1701), como iguras
de destaque na administração, o primeiro por ter debelado a Revolta de
Beckman (1684-1685) e o segundo pela abertura do caminho terrestre
que ligou São Luís a Salvador. Dessa forma, Carneiro da Cunha realçava
os feitos em detrimento das qualidades pessoais e do rol de serviços dos
antecessores de Gomes Freire e de Coelho de Carvalho, considerados
“iguras secundárias”.12
11
LISBOA, João Francisco. Crônica do Brasil colonial: apontamentos para a história do Maranhão. Petrópolis: Vozes; Brasília: INL, 1976, pp. 377. Grifo nosso.
12
CUNHA, Pedro Octávio Carneiro da. “Política e administração de 1640 a 1763”. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (dir.). História geral da civilização brasileira. 10ª ed., Rio de
173
Contudo, as trajetórias no Estado do Grão-Pará e Maranhão
demonstram o esforço de centralização administrativo da Coroa
percebido por Ângela Domingues como elemento fundamental da
política colonial para a região Norte, na segunda metade do século XVIII.
E para executar a contento os planos metropolitanos de revitalização da
colonização amazônica, a Coroa apostou em indivíduos inseridos em
“relações nítidas de dependência e idelidade, (...) como também (...)
vínculos familiares e noções de gratidão pessoal” envolvendo a igura
central de Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal.13
Origem e tradição de serviços
Os governadores do Estado do Grão-Pará e Maranhão em
grande parte nasceram em Lisboa, mas suas famílias deitavam raízes
em províncias mais ou menos distantes da Corte. Não eram idalgos na
acepção de membros da aristocracia cortesã nem provinham de Casas
titulares – à exceção de Manuel Bernardo de Melo e Castro (neto do
4º conde das Galveias, André de Melo e Castro). A maioria pertencia,
conforme as clivagens na nobreza observadas por Nuno Gonçalo
Monteiro, à “primeira nobreza”14 do Reino, detentora de bens fundiários
e senhorios, embora alguns não possuíssem bens de raiz, como Joaquim
de Melo e Póvoas e Gonçalo Lourenço Botelho de Castro. Em certos
casos, os senhorios foram concedidos em remuneração de serviços
durante a permanência em terras amazônicas ou no retorno a Portugal.
De resto, foram nobilitados pelo serviço à monarquia, sobretudo, no
campo das armas.
Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, t. 1, vol. 2, pp. 29-31.
13
DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos. Colonização e relações de poder
no Norte do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, pp. 127-128.
14
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Trajetórias sociais e governo das conquistas. Notas preliminares sobre os vice-reis e governadores-gerais do Brasil e da Índia nos séculos XVII e XVIII”. In:
FRAGOSO, João Luís Ribeiro; BICALHO, Maria Fernanda Baptista & GOUVÊA, Maria de
Fátima Silva (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos
XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, pp. 249-283. Ver página 281.
174
A observação do local de nascimento permite agrupar os
governadores do seguinte modo: Gonçalo Pereira Lobato e Sousa e seu
ilho, João Pereira Caldas, eram naturais da província do Minho, mais
especiicamente da vila de Monção, no extremo Norte de Portugal. Seus
antepassados também eram naturais de Monção ou da vila próxima de
Viana do Castelo, como a avó materna de João Pereira Caldas. Joaquim
Tinoco Valente nasceu na vila de Estremoz, na província do Alentejo,
assim como sua mãe e avós maternos. Seu pai e avós paternos eram
naturais de Elvas, também no Alentejo. Manuel Bernardo de Melo e
Castro nasceu em Lisboa, mas sua origem familiar se dividia entre a
província da Estremadura, de onde provinha seu avô materno, nascido
na vila de Cadaval, e a do Alentejo – seu pai era de Estremoz, o avô
paterno de Borba e a avó paterna da vila de Portalegre. A mãe e a avó
materna de Manuel Bernardo eram naturais de Lisboa. Na província
da Estremadura também estava radicada parte da família de Gonçalo
Lourenço Botelho de Castro. Embora nascido em Lisboa, pátria de sua
mãe, do avô materno e da avó paterna, seu pai e seu avô paterno eram de
Alenquer e sua avó materna de Santarém, ambas vilas da Estremadura.
Francisco Xavier de Mendonça Furtado e Fernando da Costa
de Ataíde Teive eram naturais de Lisboa, assim como seus pais e avós.
Sobre Joaquim de Melo e Póvoas e Luís de Vasconcelos Lobo, as
informações são poucas e os registros por vezes equivocados. Em todos
os documentos consultados, inclusive o testamento de Melo e Póvoas,
nada é mencionado a respeito de seu local de nascimento e iliação. E
como não obteve as mercês dispensadas aos seus pares no governo do
Estado, como o hábito de cavaleiro da Ordem de Cristo, seus dados
biográicos mostraram-se ainda mais escassos e incertos.15 Consta, no
entanto, que era “sobrinho” de Mendonça Furtado e de Sebastião José de
Carvalho e Melo, aos quais se dirigia como seus “tios”.16 O parentesco
15
REIS, Arthur Cezar Ferreira. “Póvoas, Joaquim de Melo e”. In: SERRÃO, Joel (dir.). Dicionário de história de Portugal. Porto: Iniciativas Literárias, 1971, vol. 5. O verbete nada informa
sobre a iliação ou a data de nascimento de Joaquim de Melo e Póvoas. No lugar desta última
consta apenas que o personagem nasceu no século XVIII.
16
Uma boa fonte para a análise das relações entre Joaquim de Melo e Póvoas e os “tios” Fran-
175
era remoto, pois, segundo alguns dados recolhidos, Melo e Póvoas
seria trineto de Sebastião de Carvalho, moço idalgo, desembargador
do Paço e cavaleiro professo na Ordem de Cristo, bisavô de Francisco
de Mendonça Furtado e do marquês de Pombal.17 A própria trajetória
de Joaquim de Melo e Póvoas demonstra a distância parental de seus
interlocutores, embora reairmasse continuamente a proteção que
recebeu desde a indicação, em 1757, para primeiro governador da
capitania de São José do Rio Negro.18
A escassez de dados também se aplica a Luís de Vasconcelos
Lobo, cujas origens são conhecidas por meio de fragmentos da
correspondência de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, que se
refere ao governador do Maranhão como “ilho do brigadeiro Francisco
de Vasconcelos”.19 Apesar de sucinta, a única referência à origem de
Vasconcelos Lobo permite inferir que se tratava de um homem cuja
experiência se constituiu no manejo das armas e que era membro de
uma família com alguma tradição de serviços militares. O casamento,
em segundas núpcias, com D. Helena Lourença de Castro, nascida em
Viseu em “família nobre”20, mostra que Luís de Vasconcelos Lobo
estabeleceu vínculos com gente da região da Beira Alta.
Em relação à condição sócio-econômica das famílias, podese airmar que quatro dos governadores desfrutavam rendimentos
de morgados estabelecidos por antepassados, como João Pereira
cisco Xavier de Mendonça Furtado e Sebastião José de Carvalho é a correspondência escrita
pelo primeiro quando governava a capitania de São José do Rio Negro. Cartas do primeiro
governador da capitania de São José do Rio Negro, Joaquim de Melo e Póvoas (1758-1761).
Transcrição paleográica e introdução do Prof. Samuel Benchimol. Manaus: Comissão de Documentação e Estudos da Amazônia, 1983.
17
ALBUQUERQUE, Martim de. Para a história das ideias políticas em Portugal (uma carta
do marquês de Pombal ao governador do Maranhão em 1761). Lisboa: Instituto Superior de
Ciências Sociais e Política Ultramarina, [1968], p. 7. Uma discussão sobre a concepção da
família de Antigo Regime em Portugal encontra-se em HESPANHA, Antônio Manuel. “A família”. In: ______ (coord.). História de Portugal – O Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa,
1998, vol. 4, pp. 245-256.
18
IANTT. Registro Geral de Mercês. D. José I, livro 11, ls. 378-378v.
19
MENDONÇA, Marcos Carneiro de (coord.). A Amazônia na era pombalina..., t. 1, p. 238.
20
MARQUES, César Augusto. Dicionário histórico-geográico da província do Maranhão.
Rio de Janeiro: Ed. Fon-Fon & Seleta, 1970, p. 338.
176
Caldas e seu pai, Gonçalo Pereira. Na qualidade de primogênito,
Pereira Caldas passou a administrar o morgado de São Martinho de
Alvaredo, na comarca de Valença do Minho, após a morte do pai. Ao
dito morgado estava vinculada uma quinta, no interior da qual havia
outras propriedades livres do morgadio.21 Fernando da Costa de Ataíde
Teive administrava um morgado instituído na Ilha da Madeira por um
antepassado remoto, Diogo de Teive, um dos primeiros portugueses a
se estabelecer na Ilha Terceira no século XV, passando à Madeira a
serviço do infante D. Henrique.22
Além da instituição do morgadio, veriicou-se que possuíam
propriedades fundiárias não vinculadas, das quais também auferiam
rendimentos. A posse desses bens conferia-lhes não apenas riqueza, mas
o prestígio social e a nobreza que os caracterizava, a exemplo de Gonçalo
Pereira Lobato e Sousa e seu ilho João Pereira Caldas. Enraizados havia
gerações na distante vila de Monção, eram representantes de uma elite
provincial baseada na riqueza da terra e nos rendimentos dos senhorios,
mas sem títulos.23
Em outra situação, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, que
não possuía bens de raiz livres de vínculos, mas herdou o morgado
instituído por seu meio-irmão, Pedro José da Silva Botelho, teve que
recorrer à graça régia. Como pretendia se casar, pediu autorização à D.
Maria I para hipotecar os rendimentos do morgado com o objetivo de
apurar a quantia de 500 mil réis referente às arras previstas no ajuste do
enlace.24
Ainda em relação ao status social, quase todos os governadores
eram cavaleiros professos da Ordem de Cristo. A exceção era Fernando
da Costa de Ataíde Teive, da Ordem de Santiago da Espada, e Joaquim
IANTT. Chancelaria de D. Maria I, livro 32, l. 358v.
MORAES, Cristóvão Alão de. Pedatura lusitana. Braga: Edição de Carvalhos de Basto,
1997, t. 1, vol. 1, p. 74.
23
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Elites e poder: entre o Antigo Regime e o Liberalismo. Lisboa:
Imprensa de Ciências Sociais; Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2003,
pp. 75-80.
24
IANTT. Chancelaria de D. Maria I, livro 11, ls. 352-352v. O alvará de concessão da mercê é
de 15 de julho de 1778, quando Gonçalo Pereira já havia retornado do governo do Piauí.
21
22
177
de Melo e Póvoas, que não pertenceu a nenhuma das ordens militares
existentes em Portugal. João Pereira Caldas, Gonçalo Lourenço Botelho
de Castro, Francisco Xavier de Mendonça Furtado e Gonçalo Pereira
Lobato e Sousa gozavam, ainda, o foro de idalgos da Casa Real. Os
dois últimos, além de Manuel Bernardo de Melo e Castro desfrutavam
também o cargo de familiar do Santo Ofício, de reconhecido prestígio.
No que concerne à formação, todos eram militares de carreira,
construída principalmente no Exército. As exceções icaram por conta de
Francisco Xavier de Mendonça Furtado e de Gonçalo Lourenço Botelho
de Castro, que serviram na Armada Real. Eram todos descendentes
diretos de homens dedicados às armas. Gonçalo Lourenço apresentava
uma lacuna nessa tradição de serviços por ser ilho de um negociante de
grosso trato que se estabeleceu ainda jovem em Lisboa, embora o avô
paterno fosse militar.25
Apesar da formação e das experiências concentradas no campo
das armas, a maior parte dos governadores estudados não participou
de eventos importantes antes de serem indicados para seus postos na
Amazônia. Nesse sentido, suas folhas de serviços icavam em débito
se comparadas às de seus antecessores da segunda metade do século
XVII, credenciados pela participação nas Guerras da Restauração.26
Francisco Xavier de Mendonça Furtado participou de expedições de
socorro à Colônia do Sacramento, em meados dos anos 1730, quando
os castelhanos, após um prolongado cerco, ameaçaram retomar a
possessão disputada com os portugueses.27 Soldado da Armada Real,
permaneceu em Sacramento de dezembro de 1736 a maio de 1737,
partindo para o Rio de Janeiro meses antes da assinatura do armistício
que pôs im às hostilidades castelhanas. Seguiu então para Pernambuco
IANTT. Habilitações da Ordem de Cristo, letra G, maço 4, n.º 3 (l. 17).
Biblioteca da Ajuda, 54-XI-27, nº 17. Relação por mapa, dos governadores capitães-generais
e dos capitães-mores que governaram o Maranhão e Pará; e depois esta última distinta e separadamente até 1783, l. 25.
27
POSSAMAI, Paulo. A vida quotidiana na Colônia do Sacramento (1715-1735). Lisboa: Editora Livros do Brasil, 2006, pp. 22-23.
25
26
178
a im de participar do socorro à Ilha de Fernando de Noronha, invadida
por franceses.28
Fernando da Costa de Ataíde Teive participou, no posto de
coronel, da Campanha de 1762 – episódio no qual Portugal confrontouse com a Espanha durante a Guerra dos Sete Anos – destacando-se
em um de seus principais momentos: o cerco à praça de Almeida,
devidamente registrado como principal feito de sua trajetória.29 Joaquim
Tinoco Valente, por sua vez, integrou o Regimento de Artilharia do
Alentejo, alcançando o posto de capitão após mais de 30 anos de
serviço. Recompensado com o hábito de Cristo, deixou o regimento em
janeiro de 1762. No ano seguinte, Ataíde Teive e Joaquim Tinoco foram
nomeados, respectivamente, governador e capitão-general do Estado
do Grão-Pará e Maranhão e governador do Rio Negro. Conclui-se que
a decisão régia visava aproveitar a experiência dos militares em uma
província vizinha à fronteira de Portugal com a Espanha, a im garantir
a defesa dos territórios das duas capitanias coninantes com domínios
castelhanos, uma vez que a guerra de 1762 trouxe consequências para
os territórios ao Norte e ao Sul da América portuguesa.
A tradição de serviços na Índia e em Angola também é um traço
perceptível na trajetória das famílias de Manuel Bernardo de Melo e
Castro, de Fernando de Ataíde Teive, de Gonçalo Pereira Lobato e Sousa
e, consequentemente, de João Pereira Caldas, que herdaram serviços
de antepassados. Neto do 4º conde das Galveias, Manuel Bernardo era
aparentado dos Castro de Melgaço, ramo estabelecido no governo do
Estado da Índia desde meados do século XVII.30 João Pereira Caldas
(homônimo do neto), o próprio Gonçalo Pereira (com cerca de 15
anos) e um tio, Gregório Pereira Soares, serviram na Índia no século
XVII.31 O avô de Fernando de Ataíde Teive, Gaspar de Ataíde Teive,
28
IANTT. Ministério do Reino. Decretos (1745-1800), pasta 13, n.º 83.
IANTT. Ministério do Reino. Decretos (1745-1800), pasta 17, n.º 27. IANTT. Chancelaria de
D. Maria I, livro 43, ls. 67-67v. Biblioteca da Ajuda, 54-XI-27, nº 17, Relação..., l. 25.
30
CUNHA, Mafalda Soares da & MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Vice-reis, governadores e
conselheiros de governo do Estado da Índia (1505-1834). Recrutamento e caracterização social.
Penélope, Lisboa, nº. 15, 1995, p. 112.
31
IANTT. Chancelaria da Ordem de Cristo, livro 67, ls. 33v-35.
29
179
também esteve no Oriente, herdou os serviços de um tio, D. Jerônimo
de Azevedo, vice-rei da Índia (1612-1617), e combateu os franceses
nas águas da Guanabara em 1711, na qualidade de cabo da esquadra
enviada de Portugal para socorrer a cidade invadida.32 Com isso, as
carreiras dos descendentes foram acrescentadas graças à participação
dos antepassados no serviço à monarquia, comumente lembrado nos
requerimentos de mercês e de recompensas, levando-se em conta
a relação entre o rei e seus súditos e o mecanismo de remunerações
vigentes na sociedade portuguesa de Antigo Regime.33
Deslocamentos na administração colonial
Um aspecto revisto em função das características próprias
das trajetórias no Estado do Grão-Pará e Maranhão diz respeito à
circulação dos governadores. Da mesma forma que os nove agentes
analisados nunca haviam exercido função equivalente em outras partes
do Império português, aqueles que assumiram um segundo governo o
izeram nos limites da jurisdição do Estado. Ao deixar o Rio Negro, em
1761, Joaquim de Melo e Póvoas assumiu o Maranhão (primeiro como
governador da capitania e, a partir de 1775, como governador e capitãogeneral do Estado do Maranhão e Piauí) e João Pereira Caldas passou
do Piauí, em 1769, ao Estado do Grão-Pará e Rio Negro (1772), após
uma breve estadia no Reino, sobre a qual nada se sabe até o presente.
Isso não signiica que o acesso a capitanias que compunham o Estado
do Brasil estivesse vedado aos que deixavam a jurisdição do Estado:
Manuel Bernardo de Melo e Castro e João Pereira Caldas chegaram a
IANTT. Chancelaria da Ordem de Santiago, livro 28, l. 432-433; Registro Geral de Mercês,
D. João V, livro 6, ls. 57-57v. Ver também PITA, Sebastião da Rocha. História da América
portuguesa, desde o ano de 1500 do seu descobrimento até o de 1724. Belo Horizonte: Ed.
Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1976, pp. 254-255.
33
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Elites..., p. 77. Nuno Monteiro chama atenção para a importante contribuição dos serviços de irmãos e/ou tios que detinham posições privilegiadas na
carreira eclesiástica, o que não exclui a legação dos préstimos por indivíduos dedicados a outras
atividades.
32
180
ser nomeados para o governo da capitania de Mato Grosso – um cargo
de maior projeção que o do Pará.
Contudo, por motivos distintos, ambos não tomaram posse.
Instruções enviadas por Martinho de Melo e Castro previam que depois
de passar o cargo a José de Nápoles Telo de Meneses, Pereira Caldas
deveria partir para uma fortaleza no Rio Negro ou para a vila de Barcelos
(capital do Rio Negro) a im de iniciar os trabalhos de demarcação do
Tratado de Santo Ildefonso, enquanto aguardava a chegada de Joaquim
de Melo e Póvoas – este deixaria o Maranhão para assumir o comando
das demarcações e Pereira Caldas seguiria para Mato Grosso.34 Porém,
os planos mudaram: com a volta de Melo e Póvoas para Lisboa, em
1779, Pereira Caldas instalou-se em Barcelos como 1º comissário da
4º divisão de limites. Nessa época, desenvolveu uma bem-sucedida
parceria com o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira.35
Ao contrário de João Pereira Caldas, Manuel Bernardo de Melo
e Castro declinou da indicação para o governo de Mato Grosso, segundo
um cronista do século XIX, porque as “moléstias a tem constituído
necessária”.36 Na verdade, é bem possível que estivesse temeroso de
que o esforço bélico no Reino, envolvido na Guerra dos Sete Anos,
ameaçasse o seu patrimônio, pois “como a conjuntura da guerra dá
motivos a se acantonarem as tropas, e estas de ordinário hostilizam a
província a que se dirigem, consequentemente a de Alentejo onde tenho
este [não mencionado] pequeno vínculo, experimentará presentemente
esta sensível opressão, temo que a renda da minha Casa tenha quebra”.37
Para evitar o descalabro inanceiro, pediu a proteção do então conde
34
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Divisão de Manuscritos. I - 17, 12, 5 (doc. 6). Atentar
para a 2ª instrução.
35
Biblioteca da Ajuda, 54-XI-27, n.º 17, Memória das pessoas que desde o princípio da conquista governaram as duas capitanias, do Maranhão e Grão-Pará, 1783, l. 16. Ver RAMINELLI,
Ronald. “João Pereira Caldas”. In: VAINFAS, Ronaldo (dir.). Dicionário do Brasil colonial
(1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. Ver também, Viagens ultramarinas: monarcas,
vassalos e governo à distância. São Paulo: Alameda, 2008, p. 138ss.
36
BAENA, Antônio Ladislau Monteiro. Compêndio das eras da província do Pará. Belém:
Universidade Federal do Pará, 1969, p. 176.
37
Instituto Histórico e Geográico Brasileiro (doravante IHGB). Seção do Conselho Ultramarino, Arq. 1.1.3, l. 272.
181
de Oeiras. Em pouco mais de um ano, Manuel Bernardo foi removido
do cargo (1763). Não substituiu D. Antônio Rolim de Moura em Mato
Grosso38, voltando para Portugal, onde faleceu em 1792.
Joaquim de Melo e Póvoas poderia ter dado um passo signiicativo
em sua trajetória se a indicação para Pernambuco, em 1773, tivesse
se concretizado. Mas a conjuntura da guerra luso-castelhana e seus
relexos na Colônia acabaram reforçando a presença de um membro de
uma família de melhor extração social naquela capitania. No lugar de
Melo e Póvoas, que acabou permanecendo em São Luís, foi nomeado
José César de Meneses (1774-1787), ilho do antigo vice-rei Vasco
Fernandes César de Meneses, conde de Sabugosa.39 A preterição de
Melo e Póvoas tinha outro motivo: José César de Meneses era homem
experimentado nas artes militares e já havia servido na Índia. Seus
préstimos valeram-lhe a indicação para colaborar com o marquês do
Lavradio, então vice-rei do Estado do Brasil, no esforço de guerra
contra os castelhanos no Sul.40
Os outros administradores que deixaram o Estado também
não assumiram um segundo governo colonial. Francisco Xavier de
Mendonça Furtado tornou-se secretário adjunto do irmão e mais
tarde Secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos.41
38
A sucessão de D. Antônio Rolim de Moura recaiu em João Pedro da Câmara (1765-1768).
Depois deste seguiram-se: Luís Pinto de Sousa Coutinho (1769-1772) e os irmãos Luís de
Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres (1772-1788) e João de Albuquerque de Melo Pereira
e Cáceres (1789-1796). MELGAÇO, Barão de. Apontamentos cronológicos da província de
Mato Grosso. Revista do Instituto Histórico e Geográico Brasileiro, vol. 205 (1949). Rio de
Janeiro, pp. 263-290.
39
Biblioteca Nacional de Lisboa, Seção de Reservados, caixa 246, nº. 20. Ver também BETHENCOURT, Francisco. “A América portuguesa”. In: ______ & CHAUDHURI, Kirti (coords.). História da expansão portuguesa. Lisboa: Círculo dos Leitores, 1998, vol. 3, p. 244. Sobre
os César de Meneses, ver SOUZA, Laura de Mello e. “Morrer em colônias: Rodrigo César de
Meneses, entre o mar e o sertão”. In: ______. O sol e a sombra: política e administração na
América portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, p. 303ss.
40
ALDEN, Dauril. Royal government in colonial Brazil, with special reference to the administration of the marquis of Lavradio, viceroy, 1769-1779. Berkeley/Los Angeles: University of
California Press, 1968, pp. 453-454.
41
DOMINGUES, Ângela. “Francisco Xavier de Mendonça Furtado”. In: SILVA, Maria Beatriz
Nizza da (coord.). Dicionário da história da colonização portuguesa no Brasil. Lisboa: Edito-
182
Manuel Bernardo de Melo e Castro, Fernando da Costa de Ataíde
Teive e Gonçalo Lourenço Botelho de Castro voltaram para o Reino
e retomaram a carreira militar. Os três restantes não desempenharam
nova comissão no ultramar por razões óbvias: Gonçalo Pereira Lobato e
Sousa, Joaquim Tinoco Valente e Luís de Vasconcelos Lobo faleceram
no exercício da função governativa. O primeiro, septuagenário, de uma
hemorragia intestinal; o segundo, de alguma doença não identiicada; o
terceiro beirando os 70 anos e repleto de achaques, depois de 16 anos
no Rio Negro.42
Serviço e recompensa
No que diz respeito aos préstimos à monarquia,
independentemente das peculiaridades dos peris e das trajetórias no
Estado do Grão-Pará e Maranhão, em outros domínios ultramarinos ou
mesmo no Reino, quase sempre não se escapava às engrenagens de
um mecanismo inerente às relações entre o rei e seus ieis vassalos: o
do serviço e remuneração, enraizado nos costumes e na identidade da
sociedade portuguesa de Antigo Regime.43
Na retomada da carreira militar, Manuel Bernardo de Melo e
Castro desempenhou o governo das armas das importantes províncias
de Elvas e do Alentejo. Foi o único governador do Estado agraciado
com um título de nobreza – o de visconde da Lourinhã (com o senhorio
da mesma vila) –, em 1777, além da alcaidaria-mor de Sernancelhe e
da comenda de São Pedro das Alhadas, da Ordem de Cristo, mercês
concedidas menos em atenção aos seus préstimos no Grão-Pará e
Maranhão do que aos serviços do irmão, Martinho de Melo e Castro.44
rial Verbo, 1994.
42
SANTOS, Fabiano Vilaça dos. O governo das conquista do norte: trajetórias administrativas
no Estado do Grão-Pará e Maranhão (1751-1780). São Paulo: Annablume, 2011, p. 125ss.
43
XAVIER, Ângela Barreto & HESPANHA, Antônio Manuel. “As redes clientelares”. In:
HESPANHA, Antônio Manuel (coord.). História de Portugal... , vol. 4, pp. 346-348 (tópico
“Serviços e mercês”).
44
IANTT. Ministério do Reino. Decretos (1745-1800), pasta 26, n.º 39. IANTT. Registro Geral
de Mercês. D. Maria I, livro 1, l. 330.
183
João Pereira Caldas voltou para Portugal em 1789, falecendo
cinco anos depois. Sua trajetória culminou com a nomeação para
o Conselho Ultramarino, em reconhecimento da vasta experiência
adquirida no ultramar, onde serviu 36 dos seus 58 anos de vida.45
Também foi elevado a marechal-de-campo46, ilustrando uma tendência
iniciada no reinado de D. José I, sobretudo após as reformas militares
do conde de Lippe, de acesso da “idalguia de província” aos postos
mais altos da oicialidade.47 João Pereira Caldas morreu endividado.
Quando faleceu, seu irmão e “universal herdeiro”, Gonçalo José Pereira
de Castro e Caldas, marechal-de-campo e comandante do Regimento
de Infantaria de Valença, no Minho, dirigiu-se a Lisboa para reclamar
a satisfação dos serviços do irmão, de seu pai e de um tio, ainda não
remunerados. As propriedades da família estava arruinadas e as terras
“livres de morgado não chega[va]m para a satisfação das consideráveis
dívidas contraídas no Real Serviço”.48
Joaquim de Melo e Póvoas, cuja folha de serviços aparentemente
começou com o governo de São José do Rio Negro, não logrou qualquer
recompensa ao voltar a Lisboa. De origem obscura, sem respaldo em
aliados poderosos, à exceção do marquês de Pombal, sentiu diretamente
os efeitos de sua queda, em 1777. De volta a Portugal dois anos depois,
caiu no ostracismo e morreu pobre, em 1787, sem nunca mais se
encartar no Real Serviço. Seu testamento revelou que possuía uma
pequena quantidade de moedas, doadas a alguns serviçais, credores e
aos pobres.49 O primo e herdeiro, Joaquim Francisco de Melo e Póvoas,
recebeu a título de recompensa por seus próprios serviços e os do exgovernador, apenas a comenda de São Miguel de Aveiro, da Ordem de
São Bento de Avis, e uma tença vitalícia.50
IANTT. Registro Geral de Mercês. D. Maria I, livro 25, l. 205v.
REIS, Arthur Cezar Ferreira. “Caldas, João Pereira”. In: SERRÃO, Joel. Dicionário..., vol. 2.
47
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Elites..., p. 119 segs.
48
IANTT. Ministério do Reino. Decretos (1745-1800), pasta 56, n.º 26.
49
IANTT. Ministério do Reino. Decretamentos de Serviços, maço 119, nº. 1, serviços de 1790.
O testamento de Joaquim de Melo e Póvoas está apenso ao memorial de serviços.
50
IANTT. Ministério do Reino. Decretamentos de Serviços, maço 129, nº. 28, serviços de 1791.
45
46
184
Em 1792, Fernando da Costa de Ataíde Teive encontrava-se na
primeira plana do Exército, como tenente-general, e prestes a assumir
o governo das armas da província do Alentejo, na sucessão de Manuel
Bernardo de Melo e Castro, assim como no Grão-Pará e Maranhão.
Recebeu também a mercê do senhorio do concelho de Baião e várias
terras, sobre as quais possuía direitos de nomear oiciais e de recolher
tributos, conforme os respectivos forais.51 Ataíde Teive estava, contudo,
assoberbado de dívidas contraídas desde sua atuação na Campanha de
1762 e no governo do Estado, as quais “até o presente lhe não fora
possível pagar nem o poderia conseguir para se ver livre da opressão
que lhe faziam os seus credores, sem tomar algum dinheiro a juro”.
Os bens que possuía eram vinculados e a única alternativa possível
era hipotecar seus rendimentos – no caso, de um morgado na Ilha da
Madeira instituído por um seu ancestral, Diogo de Teive52 – a im de
oferecê-los como garantia pelos 15 mil cruzados que pretendia tomar de
empréstimo. E para que pudesse desempenhar a nova comissão “com o
decoro próprio”, requeria o consentimento da rainha para hipotecar as
rendas do morgado.53 Dessa forma, asseguraria não só a satisfação de
seus empenhos, mas também as condições mínimas para a conservação
do seu status e a continuidade da ascensão no Real Serviço.54 Exemplo
disso foi a conquista de um lugar no Conselho da Guerra.55
Nos últimos anos de vida, apesar da idade avançada, Ataíde
Teive ainda cuidava pessoalmente dos negócios da Casa, como se
depreende da provisão (registrada em 24 de outubro de 1805) que
lhe autorizava celebrar novo contrato com Nicolau Maria Raposo, da
51
IANTT. Ministério do Reino. Decretos (1745-1800), pasta 17, nº. 27. IANTT. Chancelaria
de D. Maria I, livro 43, ls. 67-67v.
52
Diogo de Teive, ilho de Lopo Afonso de Teive (escudeiro e provedor da Albergaria de
Rocamador, no Porto), passou à Ilha Terceira quando esta foi descoberta e depois à Madeira,
a serviço do infante D. Henrique. MORAES, Cristóvão Alão de. Pedatura lusitana..., vol. I, t.
1º, p. 74.
53
IANTT. Chancelaria de D. Maria I, livro 43, ls. 67-67v.
54
XAVIER, Ângela Barreto & HESPANHA, Antônio Manuel. “As redes clientelares”..., p.
343.
55
IANTT. Chancelaria de D. Maria I, livro 73, ls. 94v-95.
185
Ilha de São Miguel (Açores), para o arrendamento por mais 12 anos
do morgado que Ataíde Teive administrava na Ilha da Madeira.56 Uma
mostra de que as dívidas – de mais de 30 anos – ainda não haviam sido
liquidadas. Faleceu em 21 de janeiro de 1807, “com 78 anos e oito dias
de idade”.57
As recompensas e a ascensão social de Gonçalo Lourenço
Botelho de Castro despertam atenção não só pela diversidade de seus
deslocamentos, mas pelo valor das mercês com que foi agraciado. Na
verdade, sua promoção no Real Serviço deveu-se menos aos seus feitos
na Armada e no Piauí do que ao casamento, em 16 de julho de 1778,
com D. Ana Joaquina Apolônia de Vilhena Abreu Soares, sobrinha
pelo lado materno de Jerônimo Antônio Pereira Coutinho Pacheco de
Vilhena e Brito, 1º marquês de Soidos.58 Por sinal, foram os serviços de
D. Ana Apolônia como açafata da rainha-mãe (D. Mariana Vitória) e de
sua ilha (a infanta D. Mariana, irmã de D. Maria I), que estimularam a
promoção de Gonçalo Lourenço. Um requerimento da esposa rendeu ao
marido o foro de idalgo cavaleiro da Casa Real.59 Em seguida, Gonçalo
Lourenço foi nomeado engenheiro-mor do Reino, com a patente de
brigadeiro de infantaria; marechal-de-campo; tenente-general (o posto
mais alto na hierarquia militar); guarda-roupa da Câmara Real; censor
da Mesa do Desembargador do Paço e membro da Sociedade Real
Marítima, Militar e Geográica. O enobrecimento de Gonçalo Lourenço
icou patente com a concessão, em 1785, da “carta de privilégios de
idalgo”.60
A notável ascensão de um homem oriundo de uma família
da província, com alguma tradição de serviços militares, não podia
passar despercebida. O seu testamento e, principalmente, o de sua
IANTT. Chancelaria de D. Maria I, livro 75, l. 145v.
BARATA, Manoel. Formação histórica do Pará. Belém: Universidade Federal do Pará,
1973, p. 29.
58
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O crepúsculo dos grandes. A Casa e o patrimônio da aristocracia em Portugal (1750-1832). 2ª ed., Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 2003,
p. 271.
59
IANTT. Registro Geral de Mercês. D. Maria I, livro 5, ls. 61-61v.
60
IANTT. Ministério do Reino. Decretamentos de Serviços, maço 165, nº. 1, serviços de 1803.
56
57
186
esposa foram os elos que faltavam para completar o entendimento das
promoções de Gonçalo Lourenço no Real Serviço, iniciadas com o
casamento. A análise dos documentos mostrou que D. Ana Apolônia
era uma mulher rica e inluente. Seu testamento sugere também que
as mercês recebidas por Gonçalo Lourenço podem estar relacionadas
ao prestígio da parentela e às alianças de D. Ana Apolônia. Prima de
Antônio de Araújo de Azevedo (conde da Barca em 1815), legou-lhe
todas as obras de arte que o mesmo, conforme o testamento, desejasse
retirar da casa da Rua Direita de São Sebastião.61
Os bens vinculados que D. Ana Apolônia administrava desde a
morte de Gonçalo Lourenço, em 1801 (sem remuneração pelos serviços
no Piauí), estavam bastante empenhados. Para saldar essas dívidas e
outra pendente no Erário Régio, instruiu em testamento à sua irmã e
testamenteira, D. Mariana Joaquina, a pedir ao desembargador Manuel
José de Arriaga Brum da Silveira que a isentasse de prestar contas
em juízo. Isto porque D. Mariana Joaquina era casada com Miguel de
Arriaga Brum da Silveira, que tinha dois irmãos, João e José. Este último
era pai do desembargador Manuel José, sobrinho torto de D. Mariana
Joaquina a quem sua irmã se referiu como potencial intercessor.62
Considerações inais: novas perspectivas de investigação
O estudo das trajetórias dos governadores da Amazônia
portuguesa ainda está aberto a outras possíveis abordagens. Como a
análise dos peris dos agentes que assumiram no período mariano, mas
ainda estavam ligados de algum modo à igura do marquês de Pombal
e, quiçá, às diretrizes do seu ministério, a exemplo de José de Nápoles
Telo de Meneses (1780-1783), governador do Estado do Grão-Pará
IANTT. Registro Geral de Testamentos, livro 348, ls. 24v-26 (Gonçalo Lourenço Botelho
de Castro); livro 355, ls. 207-208v (D. Ana Joaquina Apolônia de Vilhena Abreu Soares). Ver
também ZÜQUETE, Afonso Eduardo Martins. Nobreza de Portugal e do Brasil. 3ª ed., Lisboa:
Edições Zairol, 2000, vol. 2, pp. 373-375.
62
GAYO, Felgueiras. Nobiliário das famílias de Portugal, 2ª ed., Braga: Edições Carvalhos de
Basto, 1989, vol. IV, p. 525. Ver também CORRÊA, Manuel de Mello (dir.). Anuário da nobreza de Portugal. Lisboa: Instituto Português de Heráldica, 1985, t. II, p. 191.
61
187
e Rio Negro, e de D. Antônio de Sales e Noronha (1779-1784), que
assumiu o Estado do Maranhão e Piauí.
Esses dados fazem parte de uma investigação em andamento sobre
os peris biográicos e as trajetórias administrativas dos governadores das
conquistas do Norte durante todo o século XVIII, que dá continuidade
à temática desenvolvida no doutorado. A pesquisa atual contempla os
titulares do Pará, do Maranhão, do Piauí e do Rio Negro, levando em
conta as distintas conigurações político-administrativas existentes na
região, desde o antigo Estado do Maranhão e seus sucedâneos. Desse
modo, pretende-se, entre outras abordagens, vislumbrar com maior
amplitude os aspectos delineadores do governo e dos governantes
daquelas unidades administrativas.
Está aberta ainda a possibilidade de um estudo de fôlego
que compare os peris e as trajetórias dos titulares das capitanias da
região amazônica com os traços biográicos e as carreiras daqueles
que atuaram no Estado do Brasil. Assim, poderão ser realçadas
semelhanças e diferenças nos critérios de seleção dos agentes – em
razão das especiicidades de cada repartição – e evitados os riscos da
generalização que cercam a coniguração das trajetórias governativas
no Império colonial português.
188
Dignidade de ofício, trajetória familiar e estratégia
cortesã: os secretários do Conselho Ultramarino
nos séculos XVII e XVIII.1
Maria Fernanda Bicalho
Universidade Federal Fluminense
Contamos, no seio da historiograia, com valiosas contribuições
para o conhecimento da monarquia, dos reis e de seus reinados,
assim como dos tribunais régios e personagens das esferas civil e
eclesiástica em Portugal do Antigo Regime.2 Só muito recentemente os
historiadores brasileiros, preocupados não apenas com a história social
e política, mas baseando-se em métodos prosopográicos e da microhistória, vêm se dedicando às histórias de vida, às trajetórias pessoais,
familiares, administrativas e econômicas, às biograias e às redes
tecidas por personagens cujas experiências, de projetos e infortúnios
acabaram por se tornar fulcrais para a compreensão da sociedade, da
cultura, da economia e da administração reinol e colonial. Personagens
que viveram em diferentes níveis hierárquicos do império português:
escravos, senhores, mercadores, magistrados, militares, governadores,
homens e mulheres que tiveram fragmentos de sua história recompostos
por minuciosas pesquisas e acuradas narrativas.
Este artigo pretende discutir a posição institucional, a trajetória
ascensional e as estratégias cortesãs de uma família que ocupou por
cerca de cem anos o ofício de secretário do Conselho Ultramarino.
Este artigo é produto de uma investigação mais ampla inanciada, no Brasil, por bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq, com o projeto Labirinto dos Negócios: A dinâmica política e
administrativa do Conselho Ultramarino entre comunicação, consultas e papéis de secretaria;
e em Portugal, pela FCT, no âmbito do projeto A comunicação política na monarquia pluricontinental portuguesa (1580-1808): Reino, Atlântico e Brasil, sob a coordenação do Prof. Dr.
Nuno Gonçalo Monteiro.
2
Entre 2005 e 2007 foi publicada em Lisboa a coleção Reis de Portugal pelo Círculo de
Leitores e Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, sob a direção
de Roberto Carneiro e a coordenação cientíica de Artur Teodoro de Matos e de João Paulo
Oliveira e Costa.
1
189
Percorrerá, num primeiro momento, os estudos que se dedicaram ao
mesmo ofício no governo do Brasil e do reino, para então apresentar,
em termos regimentais e políticos, o ofício de secretário do Conselho
Ultramarino. Analisará, por im, a trajetória ascensional de uma família
que aliou, com suma maestria, o exercício de uma função central na
monarquia portugesa, estratégias cortesãs e ganhos econômicos,
políticos e simbólicos por meio de serviços prestados e retribuídos em
inúmeras mercês por sucessivos reis de Portugal.
Secretários de governo nos territórios ultramarinos
Em trabalho inspirador sobre o secretário do Governo-Geral do
Brasil, Bernardo Vieira Ravasco, Pedro Puntoni debruçou-se sobre a
trajetória social e política de uma das mais importantes famílias da elite
baiana, que teve no padre Antônio Vieira sua igura mais destacada.
Demonstrou de forma pioneira e inovadora a importância estratégica
do ofício de secretário do Estado do Brasil na dinâmica relacional das
redes de reciprocidade e na conexão de interesses políticos, econômicos
e cortesãos nos dois lados do Atlântico.3
Remunerado pelos serviços prestados no contexto da Restauração
portuguesa e da guerra contra os holandeses em Pernambuco, Bernardo
Ravasco, embora não encartado oicialmente por provisão régia,
auxiliou o vice-rei marquês de Montalvão em “matérias de secretaria”.
No governo de Antônio Telles da Silva (1642-1647), escreveu ao rei
airmando que “para o Estado do Brasil se poder bem o governar seria
conveniente haver um secretário assim como na Índia que tenha a seu
cargo os papéis daquele governo com que se dará melhor expediente
aos negócios e serem mais bem encaminhados”.4 Após consultar o
Conselho Ultramarino, D. João IV criou e concedeu-lhe, em fevereiro
3
PUNTONI, Pedro. “Bernardo Vieira Ravasco, secretário do Estado do Brasil: Poder e elites
na Bahia do século XVII”. In: BICALHO, Maria Fernanda & FERLINI, Vera L. A. (orgs.).
Modos de Governar. Ideias e Práticas Políticas no Império Português, séculos XVI-XIX. São
Paulo: Alameda, 2005, pp.157-178.
4
Apud PUNTONI, Op. Cit., p. 168.
190
de 1646, carta de provisão do ofício de secretário do Estado do Brasil,
ofício que Ravasco ocupou por mais de cinquenta anos. Segundo
Puntoni,
“Ravasco, com o cargo de secretário, para além do controle
notarial de parte da prática política e administrativa do Estado
do Brasil, notadamente nas matérias de Justiça (provimento
e conirmação de ofícios) e de Guerra, estava numa posição
extremamente privilegiada para gerir facilmente o ‘segredo de
Estado’, uma vez que a ‘memória burocrática’ que seu ofício
constituíra lhe dava praticamente o monopólio desses saberes
(arcana práxis). Podia, em vários momentos, impor sua opinião
ao Conselho e ao governador, quando não ao próprio rei, na
medida em que tinha consigo a memória dos procedimentos da
administração, o corpo das decisões.”5
Também no Brasil, porém em Pernambuco, conectando àquela
capitania, o Reino de Angola e o Estado da Índia, o caso de Antônio
Coelho Guerreiro é exemplar no que diz respeito à capacidade de um
secretário – de vários governos ultramarinos – tramitar por uma espiral
ascendente de status e poder, aliada à experiência burocrática, à defesa
de interesses e negócios – tanto os régios, quanto os de governadores e
demais súditos portugueses –, à tessitura de extensas redes governativas.
É de Maria de Fátima Silva Gouvêa a análise da extraordinária trajetória
deste “agente conector privilegiado” das tramas políticas e econômicas
que deram vida e dinâmica ao império português.6
Guerreiro nasceu em Santiago de Cacém, no Alentejo e, em
1678, aos 25 anos de idade, acompanhou Aires de Souza e Castro, então
nomeado governador de Pernambuco. De soldado passou a secretariar o
governador, embora àquela época ainda não existisse formalmente, com
5
Idem, p. 174.
Todas as informações abaixo sobre a trajetória de Antônio Coelho Guerreiro foram retiradas
do artigo de GOUVÊA, Maria de Fátima S. “Redes governativas portuguesas e centralidades
régias no mundo português, c. 1680-1730”. In: FRAGOSO, João & GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Na Trama das Redes. Política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, pp. 172-175.
6
191
regimento e provisão régia, o ofício de secretário. Voltou ao reino em 1682
e dois anos depois, em 1684, seguiu para Angola, acompanhando o novo
governador, Luís Lobo da Silva. Mais uma vez sentou praça de soldado,
ocupando simultaneamente o posto de secretário de governo, embora
extra-oicialmente. Da África, Guerreiro voltou ao reino, fazendo antes
escala no Brasil, para, em 1688, retornar a Angola em companhia do
novo governador, João de Lencastre, desta vez formalmente nomeado,
com provisão régia, no ofício de secretário de governo. Lá permaneceu
por um período de quatro anos, exercendo simultaneamente atividades
mercantis e militares, chegando a ser nomeado, em 1691, lugar-tenente
do mestre-de-campo-geral para a expedição contra a rainha Jinga. Em
1692, Lencastre e Guerreiro retornaram a Portugal, não sem antes
aportarem na Bahia, quando a governava Antônio Luís Gonçalves
da Câmara Coutinho. A permanência de cerca de quatro meses no
Recôncavo certamente estreitou os laços de amizade, baseados em
interesses comuns, entre estes reinóis e as elites locais.
De volta a Lisboa, Guerreiro casou-se em 1694 e, quatro anos
depois, sua única ilha seria batizada por Câmara Coutinho. Quando este
foi nomeado vice-rei da Índia, Guerreiro assumiu formalmente o cargo
de secretário daquele Estado, enquanto João de Lencastre governava o
Brasil e Luís Cesar de Meneses assumia o governo de Angola. Em 1701
Câmara Coutinho nomeou Guerreiro como o primeiro governador das
ilhas de Timor e Solor. Este permaneceu no Oriente até 1707, passando
depois ao Brasil, onde viveu até 1710, retornando enim ao reino, onde
faleceria em 1717, aos 64 anos de idade. Segundo Maria de Fátima S.
Gouvêa, a
“centralidade administrativa que passava a ser exercida pelo
secretário de governo colocava-o numa posição privilegiada
para atuar em favor de determinados interesses em detrimento de
outros. Negócios e governabilidade estavam tão intrinsecamente
imiscuídos que era praticamente impossível saber o que
engendrava o que àquela altura. O livro de rezão deixado por
Coelho Guerreiro demonstra com clareza a forma como ele
atuou enquanto um poderoso conector de variados interesses
192
mercantis e administrativos, sendo impossível separá-los àquela
altura. Essa curiosa combinação – mercador e agente régio –
fomentava uma maior aderência entre essas duas esferas de
administração imperial, articulando assim um amplo leque de
conexões dentre a multiplicidade de agentes e interesses ali
existentes.”7
Outro trabalho importante sobre os secretários de governo é
a tese de doutorado de Josemar Henrique Mello, A Ideia de Arquivo:
a Secretaria do Governo em Pernambuco (1687-1809), defendida
na Faculdade de Letras da Universidade do Porto em 2006. O autor,
apoiado em teorias e metodologias próprias da arquivística no sentido
de estabelecer “relações orgânicas entre os papéis”, analisa os códices
produzidos pela Secretaria de Governo de Pernambuco entre 1687 –
data em que é oicialmente criado o ofício de secretário de governo
naquela capitania, no Rio de Janeiro e em Angola – e 1809, ano em
que o Conselho Ultramarino deixou de ter alçada sobre o território
americano. Embora sua análise se distancie do enfoque proposto
pelos autores supra citados, lança luz sobre inúmeras questões que
envolveram os secretários e o cotidiano das secretarias nas sociedades
ultramarinas e nas monarquias corporativas e polissinodais do Antigo
Regime ibérico.8
Caio Boschi também dedicou um estudo aos secretários,
no sentido de entender as origens do Arquivo Público Mineiro,
particularmente no que se refere às relações de organicidade de seus
fundos documentais. A seu ver, “uma das graves lacunas primárias
da arquivística e da historiograia brasileira, no que respeita aos
instrumentos de busca, é a inexistência de lista nominal dos ocupantes
das Secretarias de Governo do período colonial”, lacuna atribuída ao
“descaso conferido à história político-administrativa [que] fez e faz
com que o pesquisador se ressinta hoje de meios auxiliares básicos
7
Idem, p. 177.
MELO, Josemar Henrique de. A Ideia de Arquivo: a secretaria de governo da capitania de
Pernambuco. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006 (Tese de Doutorado
inédita).
8
193
para o início ou para o desenvolvimento de seus trabalhos.”9 Mesmo
diante desta diiculdade, como exímio conhecedor dos arquivos, tanto
no Brasil, quanto em Portugal, o autor nos lega um sugestivo estudo
sobre os secretários de governo em Minas Gerais durante a gestão
de Gomes Freire de Andrade. Suas observações são esclarecedoras
da importância destas iguras secundárias, embora fundamentais, da
administração colonial:
“Apenas chegado a Vila Rica para assumir a governação da
área mineradora, é muito possível que Gomes Freire de Andrade
se tenha dado conta de que o êxito de suas ações não poderia
prescindir do rápido e fácil acesso à documentação recebida
e produzida por seus antecessores no cargo. Reportando-se
ao secretário de governo da Capitania, Matias do Amaral e
Veiga, a im de inteirar-se do estado da arte naquela matéria,
pôde constatar o desleixo existente e a imperiosa necessidade de
reverter a situação.”10
Boschi deteve-se no exercício do ofício por Antônio de Sousa
Machado que, além do trabalho propriamente dito de secretaria, na
produção e no arquivamento de papéis, acompanhou o governador
interino, Martinho de Mendonça Pina e Proença, na jornada que este
fez à comarca do Rio das Mortes. Tempos depois deslocou-se à vila
de Pitangui, representando-o, com o objetivo de colocar em prática
as determinações régias da legislação da capitação. Ainda naquela
vila, cuidou de questões relativas às Ordenanças e ao descobrimento
de aljôfares e pérolas, recolhendo amostras que enviou ao mesmo
governador.11 Embora a preocupação primordial do autor não seja
especiicar as funções dos secretários, e sim compreender a “trajetória
das fontes”, seu trabalho é um precioso contributo para os pesquisadores
interessados em desvendar a atuação destes funcionários tão importantes
9
BOSCHI, Caio. “Nas origens da Seção Colonial”, Revista do Arquivo Público Mineiro, vol.
43, fascículo 1, jan-jun. 2007, p. 42.
10
Idem, p. 42.
11
Id. Ibidem, p. 46.
194
quanto esquecidos pela grande maioria dos estudos sobre a política e a
administração imperiais.
Secretários de Estado e do Conselho Ultramarino
A atuação dos Secretários de Estado em Portugal recebeu em
2008 uma minuciosa análise por parte de André da Silva Costa. Em sua
dissertação de mestrado, Os Secretários e o Estado do Rei: luta de corte
e poder político, séculos XVI-XVIII, Costa airma que, para entendermos
a igura dos Secretários na monarquia portuguesa de Antigo Regime é
necessário termos em conta dinâmicas político-burocráticas e cortesãs.
Entre elas, o controle cada vez maior do Secretário sobre o registro e a
circulação de papéis e documentos, seu poder de inluência e mediação
não só em assuntos de governo, mas também no interior da corte, e,
por im, a concessão de privilégios aos que ocuparam este cargo, o que
resultou numa crescente dignidade do ofício.12
O autor faz uma arguta análise do regimento do Conselho de
Estado, publicado em 1569. Este órgão destacava-se por ser, até o
reinado de D. João V, uma das principais instituições com funções
consultivas que atuavam junto ao monarca, e por isso era igualmente
conhecido como o ‘Conselho do rei’. Nele tinham assento um número
restrito de dignitários, todos idalgos, que representavam os mais altos
escalões da aristocracia e do clero em Portugal. De acordo com o seu
regimento, as atribuições do Secretário eram assistir às reuniões do
Conselho, sem direito a voto, e anotar as resoluções tomadas, assim
como os principais fundamentos dos votos e pareceres dos conselheiros.
Feitos e assinados os assentos, cabia-lhe levá-los pessoalmente ao rei,
responsabilizando-se pelas provisões decorrentes da decisão tomada
pelo monarca sobre o negócio em questão. Elaborar e redigir esse tipo
de documentação signiicava não apenas aceder à forma e aos meandros
do despacho régio, mas também ter relativo controle sobre o próprio
12
COSTA, André da Silva. Os secretários de Estado do Rei: Luta de corte e poder político,
séculos XVI-XVII. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de
Lisboa, 2008. (Dissertação de Mestrado inédita).
195
processo decisório. Este protagonismo do Secretário de Estado requeria
também, e cada vez mais, um saber especializado desses oiciais da
escrita.
André Costa airma ainda que os secretários dos Conselhos –
não só o de Estado, mas os dos demais tribunais do reino – faziam
um verdadeiro trabalho de arqueologia jurídica, devido ao seu domínio
dos arquivos e à sua capacidade de sistematização de conteúdos, assim
como à agilidade na produção de votos e pareceres. Embora seu campo
de atuação fosse um organismo consultivo e colegiado, não se pode
esquecer de que no seu interior se processavam não somente arbítrios
e decisões, mas também a disputa entre magistrados e cortesãos que
o compunham. A seu ver, os secretários vincaram progressivamente
sua posição ao mediarem este complexo processo de negociação
que resultava nas consultas e nos pareceres dos Conselhos e que se
desdobrava na ação política do monarca.
No que diz respeito ao Conselho Ultramarino, criado em 1642,
seu regimento baseou-se no do anterior Conselho da Índia, tribunal de
existência efêmera, instituído em 1604 e extinto em 1614, ainda em
tempos de União Ibérica. Contava, inicialmente, com um presidente,
dois conselheiros de capa e espada (nobres) e um conselheiro letrado,
formado em leis na Universidade de Coimbra. Possuía um secretário
e vários oiciais menores, distribuídos em diferentes ocupações.
Competia-lhe todos os negócios relativos aos domínios ultramarinos,
exceto as ilhas dos Açores e Madeira e os lugares do norte da África. De
acordo com seu regimento, aos conselheiros cabia propor a nomeação
dos oiciais régios para o ultramar, conferindo-lhes cartas, provisões,
despachos e patentes. Arbitravam sobre a concessão de mercês
solicitadas por aqueles que serviam o monarca nos distantes territórios.
Por eles passava a correspondência dos governantes, administradores e
súditos ultramarinos dirigida ao rei.13
13
CAETANO, Marcelo. O Conselho Ultramarino. Esboço de sua história. Lisboa: Agência
Geral do Ultramar, 1967. Até bem pouco tempo, este era um dos únicos estudos especíicos
sobre o Conselho Ultramarino. Nos últimos anos esse órgão fundamental para se pensar a política imperial portuguesa tem sido objeto de novas publicações e abordagens. Cf., entre outros,
196
Entre as funções do secretário do Conselho Ultramarino
sobressaíam a elaboração de listas de matérias assentes no respectivo
livro, a redação de consultas, rubricadas pelo presidente e por todos
os conselheiros, a obrigação de guardar os papéis em lugar seguro,
em caixões e escrivaninhas fechados à chave guardada por ele. Nos
primeiros tempos de existência do Tribunal, elaborava despachos
para que a Torre de Belém permitisse a saída dos navios, tratava
dos assuntos concernentes à armada do Rio de Janeiro, executava o
pagamento de contratos por meio de seus oiciais, recebia e cuidava
dos papéis comprovativos de serviços em caso de disputa por ofícios.
Comunicava-se, quer com o Conselho de Estado, quer com a Secretaria
de Estado. Embora o regimento do recém criado Tribunal dispusesse
que os secretários “não tratarão nem proporão outro algum negócio
mais que os que o presidente lhes ordenar (...) [e] terão muito cuidado
dos negócios e despachos que estiverem a seu cargo, lendo os papéis
e fazendo relação deles no conselho, sem poderem falar mais se não
perguntados”14, não resta dúvida de que os sujeitos encartados em
sua secretaria detinham grande conhecimento e indiscutível controle
do processo burocrático de comunicação política entre o reino e o
ultramar.15
Por outro lado, o fato de a política imperial portuguesa emanar
a partir de 1642 de um órgão colegiado fazia com que a mesma
não fosse produto de uma “razão de Estado”, e muito menos de um
Estado centralizado e absolutista. Se compartilharmos o argumento
de que a administração ultramarina não se baseava exclusivamente no
desiderato dos agentes situados no centro da monarquia, mas envolvia
BARROS, Edval de Souza. “Negócios de tanta importância”: O Conselho Ultramarino e a
disputa pela condução da guerra no Atlântico e no Índico (1643-1661). Lisboa: Centro de
História de Além-Mar, 2008.
14
CAETANO, Op. Cit., p. 60.
15
Uma análise mesmo por alto da documentação do Arquivo Histórico Ultramarino, incluindo
os Cds do Projeto Resgate – Barão do Rio Branco, relativos às diversas capitanias dos Estados
do Brasil e do Grão Pará, demonstra que os secretários do Conselho Ultramarino se correspondiam com relativa frequência não só com autoridades no reino, mas com funcionários régios e
representantes locais de cada uma das capitanias, cidades e vilas ultramarinas.
197
consideravelmente as injunções econômicas e as negociações políticas
que possuíam nas elites do ultramar protagonistas ativas, torna-se
interessante pensar nas relações entre os interesses e as ações que
conectavam as decisões no reino e as demandas das elites nos distintos
e distantes territórios do além-mar.
Nas últimas décadas, os estudiosos das múltiplas dinâmicas
imperiais deram-se conta dos escassos meios que o centro da monarquia
possuía para controlar os imensos territórios e interesses sob sua
tutela, tanto no continente europeu, quanto nos espaços mais remotos
do Atlântico e do Índico. Muito se tem discutido sobre as formas e
as modalidades por meio das quais se efetivou a integração desses
espaços e populações por um período tão alargado, nos quais o rei,
‘cabeça da monarquia’, estava invariavelmente ausente. É certo os que
governadores e capitães generais nas conquistas representavam-no, tal
como magistrados, eclesiásticos e oiciais militares espalhados pelas
conquistas. Mas havia outras formas de comunicação entre o centro e
as periferias imperiais a despeito da intermediação de governadores,
capitães-mores, bispos, ouvidores e provedores da Fazenda. Uma
das marcas distintivas da monarquia portuguesa foi ter desenvolvido
uma administração imperial articulada pelo fato de quase todos, senão
todos os seus vassalos e súditos poderem apelar aos distintos tribunais
régios e, em última instância, ao rei. Nos mais diversos conselhos e
tribunais da administração central dos Bragança, com destaque para
o Conselho Ultramarino, abundam as petições e os requerimentos
individuais, corporativos ou institucionais provenientes dos mais
longínquos domínios do ultramar. As inúmeras representações, petições,
requerimentos, queixas, agravos e súplicas remetidas ao rei eram, em
geral, objeto de consulta pelos membros do Conselho.
Elemento fundamental no funcionamento burocrático do
regime conciliar, e mecanismo indispensável no processo de tomada de
decisões por parte do rei, a consulta escrita é peça e objeto fundamental
para a compreensão da comunicação política entre o reino e o
ultramar. O historiador Feliciano Barrios deine a consulta como um
198
ato de caráter político-administrativo, pelo qual um indivíduo ou uma
instituição colegiada, em cumprimento de um mandado régio, genérico
ou especíico, assessora o monarca em uma questão determinada.
Denomina-se também consulta o próprio documento em que se redige a
opinião do órgão emissor do parecer. Em geral a consulta era acordada
e redigida em uma sessão ordinária ou extraordinária dos Conselhos,
traduzindo parecer unânime do organismo consultivo – “ao Conselho
parece” – e votos particulares quando havia divergência de opiniões
entre seus membros. A peça documental da consulta, ao se materializar
em documento escrito, era confeccionada pelos oiciais do Conselho
a partir de uma minuta do seu secretário e sob sua responsabilidade
e vigilância. Em muitos casos era redigida pelo próprio secretário,
quando o assunto era delicado ou sua complexidade o requeria. Elevada
a consulta ao monarca – que embora não estivesse necessariamente
submetido à opinião do Conselho, em geral concordava com seu alvitre
– este emitia sua resolução, escrevendo nas margens do documento
umas poucas linhas ou uma só frase – “Como parece”. Algumas vezes
a consulta era devolvida ao Conselho com a ordem especíica de que
voltasse a considerar o assunto. Resolvida pelo rei e remetida, ou
novamente ao Tribunal ou a um dos Secretários de governo – de Estado
ou das Mercês –, estes encarregavam-se de tomar as providências
necessárias para por em execução a decisão régia.16
16
BARRIOS, Feliciano. “Consolidación de la Polisinodia Hispánica y Administración Indiana”. In: BARRIOS, Feliciano (coord.). El Gobierno de un Mundo. Virreinatos y Audiencias en
la América Hispánica. Cuenca: Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha, 2004, pp.
133-134. Segundo José Sintra Martinheira, a consulta era elaborada pelo presidente e conselheiros do Tribunal. O destinatário era sempre o rei, que, a partir dela, emitia sua real resolução
sobre o assunto consultado. A consulta mencionava no seu formulário as indicações sobre o
processo burocrático e o circuito do documento. Referia-se ao nome dos autores ou requerentes,
dos conselheiros quando emitiam parecer diferente do resto do Conselho, dos procuradores da
Coroa e/ou da Fazenda (de acordo com a matéria em questão), e o alvitre de outros peritos, se
fosse o caso. A resolução régia era escrita à margem da consulta, com a rubrica do soberano ou a
assinatura do secretário de Estado. Cf. MARTINHEIRA, J. Sintra. Catálogo dos Códices do Conselho Ultramarino relativos ao Brasil existentes no Arquivo Histórico Ultramarino. Rio de Janeiro: Real Gabinete Português de Leitura; Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 38.
199
De acordo com o Antônio Manuel Hespanha, a consulta aos
órgãos colegiados garantia a expressão de diferentes pontos de vista,
reairmando o caráter corporativo do governo, atualizando a imagem
do rei enquanto árbitro. Produto da solidariedade e da competitividade
corporativas, acima dos particularismos e dos interesses individuais, a
consulta escrita e, portanto, passível de ser arquivada, para além de criar
uma memória e uma jurisprudência administrativa, consolidava um
“ponto de vista técnico” da burocracia letrada.17 Em todo esse processo
a igura do secretário é central. Ao comentar o projeto elaborado pelo
Secretário de Estado Cristóvão Soares para o antigo Conselho da Índia,
André Costa airma:
“Quanto aos processos de circulação documental, o ‘Projeto’
era muito minucioso, respondendo à crescente formalização de
um trabalho de ‘secretaria’, integrando a preocupação com a
rapidez e autonomia do processo e cortando, em parte, com o
conceito de ‘Repartição’. O conjunto de ‘cartas’ e ‘despachos’,
enviados ao Conselho, seria controlado pelos ‘secretários’,
devendo este – em caso de notiicação – dar seguimento de
forma pronta às ‘Consultas’ urgentes. Os ‘secretários’ deviam
ainda gerir a recepção e arquivo das diferentes vias desta
correspondência, bem como zelar pelo envio de contínua
informação do Conselho para as ‘conquistas’, além de redigir
as ‘Consultas’ onde igurariam os resultados das atribuições
de ‘mercês’, cabendo ao rei sanciona-las de forma deinitiva. É
fácil depreender que os ‘secretários’ adquiriam capacidade para
inluenciar decisões, controlando o circuito das ‘Consultas’ entre
Presidente [do Conselho], conselheiros e rei.”18
Trajetória social e política dos secretários do Conselho Ultramarino
O que se propõe a partir daqui é desvendar não tanto a inluência
e o poder de mediação dos secretários do Conselho Ultramarino no
17
HESPANHA, Antônio Manuel. As Vésperas do Leviathan. Instituições e Poder Político.
Portugal. Século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994, pp. 278 e segs.
18
COSTA, Op. Cit., p. 120.
200
governo do império, e sim as estratégias políticas e cortesãs de uma
família hábil na obtenção de inúmeros privilégios ao longo de três
gerações. A família Lopes de Lavre deteve, por mais de um século, o
ofício de Secretário do Conselho Ultramarino. André Lopes de Lavre
exerceu o cargo por cerca de 53 anos. Seu ilho, Manuel Caetano Lopes
de Lavre, o herdou em 1730. Em 1736 foi aventado para ocupar a recém
criada Secretaria de Estado da Marinha e dos Negócios Ultramarinos, e,
em 1743 foi nomeado Conselheiro ultramarino. Manuel Joaquim Lopes
de Lavre, seu ilho, foi secretário do Conselho até sua morte, em 1796.
Os Lavres, Lopes, ou Lubeiras, eram uma família natural do
Alentejo. A ascendência paterna de Manuel Lopes de Lavre, o patriarca
que comprou o ofício de secretário do Conselho Ultramarino na década
de 1670, é oriunda da freguesia de Santo Aleixo, concelho de MonteMor o Novo. Seu avô, André Fernandes Lubeira exercia o ofício de
alfaiate. Manuel começou a vida a comprar gado para os marchantes
da Corte, tornando-se ele próprio marchante, e mudando-se para
Lisboa, onde se casou com Maria Francisca, ilha de Francisco Álvares,
cortador de carnes no açougue. Maria Francisca, assim como sua mãe,
eram forçureiras, ou seja, viviam de vender tripas pelas ruas da Corte.
No negócio de carnes Manuel Lopes de Lavre enriqueceu e adquiriu,
em 1672, umas “casas nobres” na rua Direita de São José, por detrás
do Convento da Anunciada. Desta propriedade instituiu morgado
por escritura de 14 de Junho de 1683, nomeando como primeiro
administrador, no caso de sua morte, seu ilho primogênito, André
Lopes de Lavre.19
A rápida ascensão deste simples mercador na segunda metade do
século XVII é realmente impressionante. Tornou-se, além de proprietário
do ofício de secretário do Conselho Ultramarino e de vários padrões
de juros da Coroa, Cavaleiro da Ordem de Cristo, Deputado da Junta
do Tabaco, Irmão da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, Familiar
do Santo Ofício e Tesoureiro da Rainha D. Maria Francisca Isabel de
19
FERREIRA, Godofredo. “Três Palácios dos Correios na Rua de São José” Separata do Guia
Oicial dos C.T.T. Lisboa: 1952, pp. 155-157.
201
Sabóia, esposa de D. Afonso VI e, com a anulação do casamento, de D.
Pedro. À rainha Manuel adiantou, mais de uma vez, grandes somas de
dinheiro sem cobrar juros, razão pela qual a soberana o mencionou e o
recomendou em seu testamento.20
Embora inúmeros documentos comprovem sua extraordinária
ascensão, talvez os mais interessantes sejam as duas tentativas de
habilitação à familiatura do Santo Ofício. A primeira, em 1659, foi
indeferida devido a uma suspeita de sangue infecto que recaía sobre sua
família.21 Porém, Manuel não era homem de desistir fácil. Em 1675
solicitou a revisão de seu processo, novas inquirições foram feitas, até
que conseguiu, em 1676, tornar-se familiar do Santo Ofício.
O mesmo se dera com seu pedido do Hábito da Ordem de Cristo.
As primeiras provanças realizadas pela Mesa da Consciência e Ordens
em meados de 1665 reprovaram-no alegando suspeita de ascendênca
cristã-nova. Devido à sua segunda solicitação, a Mesa autorizou novas
diligências e, em abril de 1666, emitiu parecer de que, mesmo que
estivesse provado que Manuel Lopes de Lavre não possuía qualquer
estigma de raça, “seu pai, e o avô paterno foram marchantes e o mesmo
avô, comprador de azeites, e outras cousas que tornava a vender; e o
avô materno carreteiro de trigo”, o que consistia em graves defeitos a
demonstrar sua falta de qualidade para ter acesso ao Hábito. No entanto,
à margem do processo podemos ler a dispensa régia “por justas causas
que para isso há”. A 18 de abril de 1666, Manuel tomava o Hábito da
Ordem de Cristo.22
20
Essa última informação é de FERREIRA, Op. Cit., p. 157. Cf. também, LIMA, Jacinto Leitão
Manso de. Famílias de Portugal. Cópia iel do manuscrito original existente na Biblioteca
Nacional de Lisboa, Vol. XIII (Jacomes – Lobos). Lisboa, 1931; MORAIS, Cristóvão Alão de.
Pedatura Lusitana (Nobiliário de Famílias de Portugal), Tomo Quinto – Volume Segundo.
Porto: Livraria Fernando Machado, s. d.; REIS, Pedro José da França Pinto dos. Conselheiros e
Secretários de Estado de Portugal de D. João V a D. José I (subisídios para o seu estudo sócio-jurídico). Mestrado em Histórica Cultural e Política pela Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra.Coimbra, 1987.
21
Arquivo Nacional da Torre do Tombo (IAN/TT). Tribunal do Santo Ofício. Conselho Geral.
Habilitações. Maço 15, doc. 395.
22
IAN/TT. Chancelaria da Ordem de Cristo, Livro 45, l. 170 v. Carta de Hábito a Manoel Lopes de Lavre; Idem, l. 171. Alvará de Proissão de Manoel Lopes de Lavre na Ordem de Cristo;
202
Em 1678 Manuel era já homem riquíssimo, como atesta o
empréstimo que fez de trinta e um mil e quinhentos cruzados à Fazenda
Real, transação que passou a lhe render anualmente seiscentos e trinta mil
réis de juros (5% da quantia total) pagos pelo almoxarifado dos azeites
do reino. O empréstimo foi feito em seção do Conselho da Fazenda e os
papéis assinados, entre outros, pelo Conde de Ericeira, do Conselho de
Estado do Príncipe D. Pedro.23 Em junho de 1688 foi encartado Fidalgo
da Casa Real, com direito a mil e seiscentos réis de moradia por mês
e um alqueire de cevada por dia. Na carta de concessão dessa mercê,
D. Pedro II airmava tê-la feito a pedido da rainha, D. Maria Francisca
Isabel de Sabóia, em consideração ao serviço que Manuel sempre lhe
izera em sua tesouraria.24 Em seu testamento, de dezembro de 1696,
Manuel declarava possuir “várias pretensões, e negócios com diversas
pessoas”. Ordenava que todas as suas dívidas fossem pagas, instituindo
por universais herdeiros seus três ilhos, André Lopes de Lavre, Manuel
Lopes de Lavre (seu homônimo) e D. Luisa Maria Francisca. A André
legou, além do morgado em que se destacavam as casas nobres que
possuía em Lisboa, vizinha ao convento da Anunciada, o ofício de
secretário do Conselho Ultramarino, “por ser mais velho e o estar
servindo”.25
Embora não tenha economizado em investimentos no serviço
real e igualmente em promover a ascensão de sua família, Manoel Lopes
de Lavre evitou na hora de sua morte todo tipo de luxo e ostentação. Foi
Idem, l. 171. Alvará de Cavaleiro de Manoel Lopes de Lavre na Ordem de Cristo; Idem, l.
408v. Carta de Padrão de 20$000 réis de tença, com o Hábito, de 1º de dezembro de 1666 para
Manoel Lopes de Lavre (ilho); Idem, l. 408v. Padrão de mercê de 20 mil réis a Manuel Lopes
de Lavre; e IAN/TT. Processo de Habilitação para a Ordem de Cristo de Manoel Lopes de
Lavre. A única outra mercê que encontramos até agora nos livros de Registro Geral de Mercês
de D. Afonso VI, concedida em 1658 a Manoel Lopes de Lavre, é a da escrivania da câmara,
almotaçaria, órfãos, notas, e do judicial da vila de Lavre, o que já não era pouca coisa, mercê
solicitada por “apresentação” do Conde D. João Mas, donatário da mesma vila. Cf. IAN/TT.
Registro Geral de Mercês, D. Afonso VI, Livro 3, l. 273.
23
IAN/TT. Chancelaria de D. Pedro II, Livro 5, l. 84.
24
IAN/TT. Registro Geral de Mercês, D. Pedro II, Livro 4, l. 201.
25
IAN/TT, Registro Geral de Testamentos, Livro 85, Nº 4, l. 5. Testamento de Manoel Lopes
da Lavre para seu ilho André Lopes Lavre.
203
parcimonioso em relação à assistência de clérigos e religiosos em seu
enterro, apesar de ter sido pródigo na caridade aos mais necessitados.
A vontade de Manoel era que seu corpo fosse “levado à sepultura no
hábito de São Francisco, e sobre ele o manto branco da Ordem de Nosso
Senhor Jesus Cristo”. Embora, além da Santa Casa de Misericórdia,
fosse igualmente “irmão de muitas Irmandades”, ordenava “que se lhe
não mande recado para me acompanharem, nem a religião alguma, e só
quero me acompanhem quarenta pobres, a cada um dos quais se dará
uma tocha que levará acesa (...) [e] deixará por esmola cem mais dois
cruzados novos (...), sem mais obrigação que a de me encomendarem a
Deus”. Dispunha ainda que estivesse presente em seu enterro apenas o
vigário de sua freguesia e um ajudante, e “não irão mais clérigos que os
dois nomeados, nem nele se façam mais ostentações nem funerais, nem
se mandará recado a pessoa alguma para me acompanhar, e somente
me porão quatro velas à cabeceira”. Por outro lado desejava que “no
dia do meu falecimento se repartam por pobres cem mil réis além dos
quarenta que me hão de acompanhar, que estes serão escolhidos por mais
necessitados por arbítrio de meus testamenteiros”. Era seu desejo que
se distribuíssem duzentos mil réis na freguesia em que vivia em Lisboa,
sobretudo, a “viúvas e pessoas pobres que forem mais necessitadas”; e
que na vila de Lavre, sua terra natal, se repartissem outros duzentos mil
réis, “não excetuando casados ou viúvas”. Ordenava, por im, que na
mesma vila “se casem quatro órfãs com dote de cem mil réis cada uma”
retirados de seu patrimônio.26
André Lopes de Lavre, seu ilho, era formado na Universidade
de Coimbra e herdou de Manoel o ofício de secretário do Conselho
Ultramarino, tendo recebido conirmação da propriedade do mesmo em
1696, por carta régia na qual D. Pedro II dispunha:
“Faço saber aos que esta minha carta virem que havendo respeito
a André Lopes de Lavre idalgo de minha Casa, ser ilho varão
mais velho que icou de Manoel Lopes de Lavre, proprietário
que foi do ofício de secretário do Conselho Ultramarino, e
26
Idem.
204
me haver servido o dito Manoel Lopes de Lavre em tudo o de
que o encarreguei muito a minha satisfação e da mesma força
o dito seu ilho na ocupação do mesmo ofício de Secretário do
Conselho Ultramarino (...) me praz e hei por bem fazer mercê
ao dito André Lopes de Lavre da propriedade do dito ofício
de Secretário do Conselho Ultramarino (...) da maneira que o
teve o dito seu pai e como o tiveram e serviram Manoel Barreto
de Sampaio, Bartolomeu Afonso de Barros Caminha e com o
mesmo ordenado, propinas prós e percalço e emolumentos (…)
[e] os mesmos privilégios, graças, liberdades e franqueza que
lhe pertencem e podem pertencer (...) pelo Regimento do dito
Conselho, provisões e resoluções minhas”.27
No mesmo ano de 1676, André receberia outras duas mercês do
rei: a de Fidalgo da Casa Real28 e a Alcaidaria Mor da Vila de Celourico
da Beira.29 Em abril de 1697 D. Pedro II lhe conirmava os privilégios,
honras e liberdades, graças e mercês concedidas ao Regedor da Casa
da Suplicação, Governadores e Desembargadores da Relação do Porto,
Escrivães da Puridade, Presidentes e Desembargadores do Desembargo
do Paço, Vedores e Desembargadores da Fazenda, Secretários de Estado,
Presidentes e Deputados da Mesa da Consciência e Ordens, AlmotacésMores, Escrivães da Chancelaria da Corte e da Fazenda.30 André já era
familiar do Santo Ofício desde 1676, mesmo ano em que a familiatura
fora concedida a seu pai.31 Em outubro de 1696, por seus préstimos na
secretaria do Conselho Ultramarino e pelos serviços prestados por seu
pai à rainha D. Maria Francisca Isabel de Sabóia, D. Pedro II lhe fez
mercê da Comenda de Santa Margarida da Mata da Ordem de Cristo.
IAN/TT, Chancelaria de D. Pedro II, Livro 23, ls. 252-252v. Carta de propriedade do ofício
de Secetário do Conselho Ultramarino para André Lopes de Lavre, com o ordenado anual de
duzentos mil réis pagos pela Fazenda Real.
28
IAN/TT, Registro Geral de Mercês, D. Pedro II, Livro 4, l. 335. André Lopes de Lavre ilho
de Manoel Lopes de Lavre idalgo da casa de SM.
29
IAN/TT, Chancelaria de D. Pedro II, Livro 24, l. 21v, 13-13v.
30
IAN/TT, Chancelaria de D. Pedro II, Liv. 23, l. 259v-260. Cf, também, Registro Geral das
Mercês, D. Pedro II, Liv. 4, l. 335, e ANTT, Chancelaria de D. Pedro II, Liv. 24, l. 15v-18.
Privilégio de Desembargadores a André Lopes de Lavre.
31
IAN/TT, Processo de Familiar do Santo Ofício de André Lopes de Lavre, Ms 3, doc. 63.
27
205
Entre maio e junho de 1700, André comprara, com os trezentos mil réis
de juros assentados no almoxarifado dos azeites que herdara de seu pai,
o Reguengo da Carvoeira, no termo de Sintra, perto de Lisboa, que lhe
rendia cerca de cento e sessenta mil réis.32 Adquiriu também o senhorio
dos lugares de Valbom, Baleia e Fonteboa. Faleceu em 28 de novembro
de 1730, com 73 anos de idade, e 53 devotados ao serviço régio no
ofício secretário do Conselho Ultramarino. Já viúvo, foi enterrado
junto a seu pai, no convento de Santo Antônio dos Capuchos, depois de
seu corpo icar exposto na ermida do Bom Sucesso, onde lhe izeram
ofícios de corpo presente, com assistência de “toda a nobreza e prelados
das diferentes ordens religiosas”.33 Seu funeral, portanto, não foi tão
simples como o de seu pai, mas cercou-se da pompa e circunstância
devida a homens de sua posição hierárquica e condição, em função não
apenas do ofício que desempenhava, mas de sua copiosa fortuna, das
mercês régias herdadas do pai e de outras que recebeu diretamente;
mas, e sobretudo, pelas redes de aliança que teceu na Corte.
De seu casamento com D. Briolanja Luísa Henriques da Costa,
André teve três ilhos. O primogênito, Manoel Caetano Lopes de Lavre,
herdou de seu pai o ofício de secretário do Conselho Ultramarino.
Batizado em 24 de janeiro de 1693, teve como padrinho ninguém menos
do que o Duque de Cadaval, D. Nuno Álvares Pereira, e como madrinha
sua avó, D. Maria Francisca, a mesma que iniciara sua vida vendendo
tripas pelas ruas de Lisboa. Sucedeu seu pai em todos os bens, comendas
e alcaidarias, além de ter sido herdeiro de seu tio, o Dr. Manuel Lopes
de Lavre. Este, ilho homônimo do grande patriarca da família Lavre,
fora, ao longo de sua vida, e em parte por ter herdado mercês e negócios
de seu pai, Fidalgo da Casa de El-rei, Deputado da Junta do Tabaco,
Tesoureiro da Casa da Rainha e Superintendente da Casa dos Duques de
Aveiro. Morreu em 1726, riquíssimo, solteiro e sem ilhos, instituindo
seu sobrinho, Manoel Caetano, seu universal herdeiro. Manoel Caetano
recebeu também como mercê de D. João V a Alcaidaria Mor de Torres
32
33
IAN/TT, Chancelaria de D. Pedro II, Livro 26, l. 131v.
FERREIRA, Op. Cit., p. 161.
206
Novas. No cargo de secretário do Conselho Ultramarino, gozando,
como seu pai, dos privilégios dos desembargadores, tudo indica que
se distinguiu de forma notável, a ponto de se fazer recomendado para
postos de maior responsabilidade e distinção.
Em março de 1738 foi nomeado conselheiro do Conselho
Ultramarino, passando a receber trezentos mil réis de ordenado, e
podendo acumular o ofício de secretário com a posição de conselheiro.34
Porém, o mais curioso é que, resolvendo D. João V desdobrar as duas
Secretarias então existentes, a do Estado e a das Mercês, e consultando
o Cardeal da Mota, este opinou pela criação de três Secretarias:
a dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, a de Marinha e Negócios
Ultramarinos e a dos Negócios do Reino. Ao sugerir alguns nomes,
mencionou o de Gonçalo Manuel Galvão de Lacerda para a primeira,
Manuel Caetano Lopes de Lavre para a segunda, e Sebastião José de
Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal, para a terceira.35
As três Secretarias de Estado foram de fato criadas em 1736 e,
algum tempo depois, Galvão de Lacerda seguiu para a França como
enviado extraordinário, e Sebastião José de Carvalho e Melo ocupou
posto equivalente junto à Corte de Londres. Não se sabe porque Manoel
Caetano Lopes de Lavre não foi nomeado pelo rei para a Secretaria de
Estado da Marinha e Negócios Ultramarinos. Talvez devido a outras
pressões políticas, ou, como advinhava o Cardeal da Mota, por não haver
quem o substituísse na secretaria do Conselho Ultramarino, tão digno,
capaz e conhecedor dos trâmites políticos e burocráticos como ele.
Manoel Caetano desposou, em 1729, D. Antônia Joaquina de
Meneses, ilha de João Jacques de Magalhães, governador de Mazagão,
e de sua mulher D. Mariana Ignácia de Meneses. Tiveram dois ilhos,
Joaquim Miguel Lopes de Lavre e D. Ana Joaquina Policena de
Meneses. Esta nasceu em 1731 e se casou em 1755 com D. Antônio
de Meneses, já viúvo, ilho de D. Jorge de Meneses e de D. Luisa
IAN/TT. Chancelaria D. João V, Liv. 129, l. 303v. Manoel Lopes de Lavre de Conselheiro
do Conselho Ultramarino; e, sobre o ordenado, cf. Chancelaria D. João V, Liv. 129, l. 376. Cf.,
ainda, IAN/TT, Registro Geral de Mercês, D. João V, Livro 16, l. 141v.
35
Biblioteca Nacional de Lisboa, Reservados, Códice 8058, Microilme 2870, ls. 240-243.
34
207
Clara de Portugal, mais conhecida como Flor de Murta, celebrada por
seus amores com D. João V, de quem teve uma ilha, e depois com o
duque de Lafões, D. Pedro, de quem teve outra ilha. Ao morrer, em
1750, Manoel Caetano deixou uma grande fortuna, propriedades em
Lavre, Carcavelos, Chamusca, e outros lugares. A seu ilho, Joaquim
Miguel, legou todos os bens que possuía, assim como os seus serviços
à monarquia.36
Joaquim Miguel Lopes de Lavre nasceu a 29 de dezembro de
1730, e não havia ainda atingido a maioridade quando faleceu seu pai,
motivo pelo qual icou sob a tutela da mãe. Quando Manoel Caetano
ainda vivia, embora já estivesse bastante doente, Joaquim Miguel
começou a substituí-lo, apenas com dezessete anos de idade, nas funções
de secretário do Conselho Ultramarino, ofício no qual foi encartado
deinitivamente em 1750, ocupando-o até a data do seu falecimento, em
junho de 1796.
No entanto, Joaquim Miguel parece não ter herdado nem o dom
para a organização dos papéis – qualidade essencial para o desempenho
do ofício de secretário numa secretaria tão complexa como a do
Conselho Ultramarino – , nem a habilidade para a administração dos
bens familiares. Depois de sua morte, entre 1796 e 1802, acumularamse os requerimentos de seu sobrinho e único herdeiro, D. Jorge de
Meneses, solicitando aos tribunais competentes a prorrogação do
prazo para a organização do inventário da herança, alegando “ser
difícil o exame de bens e imensidade de dívidas, pela falta de papéis
e clarezas no arquivo do morgado, o que obriga a fazer indagações
em diversos juízos e cartórios, assim de Lisboa como de Santarém,
Golegã, Chamusca e Torres Novas.”37 No entanto, parece ter estendido,
assim como seu pai, avô e bisavô, os negócios da família, bem como
as relações entre a o clã dos Lavre e algumas das mais importantes
casas nobres de Portugal. Em seu testamento airmava que as casas dos
IAN/TT, Registo Geral de Testamentos, Livro 248, l. 78v. Testamento de Manoel Caetano
Lopes de Lavre, testamenteiro sua mulher a Srª D. Antônia Joaquina de Meneses, e o Ex.mo
R.mo Sr Principal D. Pedro de Meneses (27 de outubro de 1750).
37
FERREIRA, Op. Cit., p. 165.
36
208
excelentíssimos Marqueses de Valença e Viscondes de Asseca lhe eram
devedoras de muitos mil cruzados de juros vencidos, sendo também
credor do Morgado de Oliveira.38 Não se casou, mas teve uma ilha
natural, D. Antónia Joaquina de Meneses.
Porém, os arquivos da Secretaria do Conselho Ultramarino – que
guardava em sua casa, o palácio da Anunciada, provavelmente desde
o terremoto que em 1755 destruiu Lisboa – estavam numa verdadeira
confusão. Detenhamo-nos numa breve descrição deste palácio, ‘cabeça’
do vínculo ou morgado dos Lavre.
Das casas que seu avô, Manoel Lopes de Lavre, compara em
1672 constavam “sobrados, loja, pátio, quintais com seus poços e,
pela parte da rua que vai para Santana, uma ermida.”39 O patriarca
da família Lavre adquiriu ainda outros edifícios no sítio da Anunciada,
como, em 1695, uma propriedade comprada a D. Isabel Maria de
Gamboa, composta de “casas nobres de um só sobrado, com estrebaria,
palheiro, casa de moços, quintalão com parreiras e um poço de nora
com água nativa e algumas árvores”. Em 1715, André adquiriu, de
Francisco Quaresma, outra grande casa, “com lojas e quintal”, todas
elas contíguas umas às outras.
Em 1740 incendiou-se uma das casas que compunham o
palácio dos Lavres. Novo incêndio, em 1749, pouco antes da morte
de Manuel Caetano, destruiu outras partes do grande complexo. Em
1762 encontram-se nos livros da Intendência da Décima Urbana de
Lisboa novas referências ao palácio da Anunciada. Neles iguram “as
casas de Joaquim Miguel Lopes de Lavre, constando de duas lojas e
um andar, que é palácio do dito senhorio”. Tinha ali instalada, além
de sua residência particular e onze criados, a secretaria do Conselho
Ultramarino, com o respectivo arquivo e pessoal responsável pelos
papéis e despacho do Tribunal.
IAN/TT. Registro Geral de Testamentos, Livro 339, l. 189. Testamento do Ilmº Joaquim
Miguel Lopes de Lavre, Testamenteiro D. Jorge de Meneses, morador ao Poiais de São Bento.
39
FERREIRA, Op. Cit, pp. 170-174. Todas as citações que se seguem foram retiradas da obra
do mesmo autor.
38
209
De 1765 em diante começaram, porém, a aparecer novos
inquilinos no palácio: um correeiro e uma fábrica de pão, depois um
barbeiro e um armazém de trigo e, em 1776, a morada dos Lavre
transformara-se numa verdadeira
“arca de Noé: uma loja alugada a Francisco Manuel, correeiro;
outra a Nicolau Foque; outra a Dionísio José, funileiro; outra a
Estêvão de Sequeira, barbeiro; outra a Pedro José, remendão;
um andar alugado a Diogo Manuel, negociante; uma loja e
várias acomodações a Nicolau Foque, fabricante de chapéus,
e Joaquim Baptista seu companheiro; outra loja a D. José de
Noronha; mais quartos e lojas na frente a João Alberto; jardim
a João Gonçalves, com fábrica de oleados; outra loja a Joaquim
Alberto Reis.”40
O resto do prédio era ocupado pelo secretário e pelos oiciais da
secretaria do Conselho Ultramarino. Dois anos após a morte de Joaquim
Miguel, em 1798, o requerimento de um tal João Gonçalves à rainha D.
Maria I solicitava que ele fosse incluído na folha de despesas miúdas do
Conselho Ultramarino, a im de receber o pagamento pelo transporte que
izera dos papéis, livros e trastes pertencentes à secretaria do Conselho,
que se mudara do sítio da Anunciada para o palácio do Terreiro do
Paço.41 Em 1800, o sobrinho e legítimo herdeiro de Joaquim Miguel,
D. Jorge de Meneses, requeria ao Príncipe Regente, D. João, permissão
para vender o que restava do antigo palácio da Anunciada.42
O desempenho do ofício de Secretário do Conselho Ultramarino,
assim como a trajetória familiar e a estratégia cortesã da família Lavre
exempliicam aquilo para o que André da Silva Costa chamou atenção
em seu estudo sobre os Secretários de Estado em Portugal do Antigo
Regime: o controle cada vez maior sobre o registro e a circulação de
papéis e documentos, seu poder de inluência e mediação não só em
40
Idem, p. 172.
Arquivo Histórico Ultramarino. AHU_ACL_CU_089, Cx. 11, D. 995. Lisboa, anterior a 18
de setembro de 1798.
42
FERREIRA, Op. Cit., pp. 167-168.
41
210
assuntos de governo, mas também no interior da corte e, por im, a
concessão de privilégios aos que ocuparam este cargo, o que resultou
numa crescente dignidade cortesã do ofício. Por outro lado, a incrível
trajetória ascendente da família Lavre é exemplo contundente de
como no Portugal restaurado, na segunda metade do século XVII, ao
longo dos reinados de D. Afonso VI e de D. Pedro II, a necessidade de
fortalecimento da dinastia dos Bragança contou com uma política de
remuneração em mercês, que não abrangia apenas e exclusivamente
serviços prestados na guerra por aqueles que viriam a constituir as
principais casas nobres da monarquia portuguesa no século XVIII.43
Foram igualmente remunerados, respeitando todas as evidentes
proporções, serviços em grande parte pecuniários por parte de indivíduos
e parentelas que, como a de Manoel Lopes de Lavre, iniciaram suas
vidas e trajetórias como simples mercadores, e sobre os quais pesava,
inclusive, suspeita de ascendência cristã-nova.
43
MONTEIRO, Nuno G. F. O Crepúsculo dos Grandes (1750-1832). Lisboa: Imprensa Nacional /Casa da Moeda, 1998.
211
Comunicação entre os poderes do centro e os locais:
uma análise da correspondência trocada entre o
secretário da Marinha e Ultramar e o governo
da capitania de Pernambuco
Érika S. de Almeida C. Dias
Universidade Nova de Lisboa
O trabalho aqui apresentado é o resultado preliminar de uma
pesquisa mais ampla que se centrará na administração da capitania de
Pernambuco no inal do reinado de D. José I, início do de D. Maria I, mais
precisamente na comunicação entre o centro da monarquia portuguesa
e a citada capitania. Das fontes que embasam a investigação, interessanos a correspondência trocada antes e durante o processo de extinção
da Companhia de Comércio Pombalina, sobretudo a partir da nomeação
de José César de Meneses para o governo da capitania de Pernambuco.
Companhia, que ao que tudo leva a entender, nunca foi bem aceita na
capitania e que diicilmente se manteria após a queda do Marquês de
Pombal ministro que a concebeu e a implantou no Nordeste brasileiro.
Pretende-se destacar, neste texto, a intervenção feita pelo agente da
governação, o referido governador, representante da coroa na capitania
perante o secretário de Estado da Marinha e Ultramar em Lisboa e as
respostas deste a tal mediação.
Para isso, escolhemos trabalhar sobretudo os códices de
Pernambuco, principalmente os de avisos e ofícios do secretário para
as autoridades na capitania; e também os ofícios que o governador
enviava a Lisboa, e que se encontram na documentação avulsa de
Pernambuco existente no Arquivo Histórico Ultramarino1. Optamos
1
O códice 583 do Arquivo Histórico Ultramarino, (doravante citado apenas por sua sigla AHU),
contém avisos, ofícios, escritos e portarias, mas, maioritariamente avisos e ofícios. Os códices
ou livro de registros estão numerados e em ordem cronológica, mas sem qualquer tipo de índice
que facilite a pesquisa, e pode-se dizer que as cartas escritas de Lisboa para as partes ultramarinas estão preservadas nesses livros, em forma de cópias, e algumas do punho do próprio secre-
213
por esses conjuntos documentais por serem escritos pelos responsáveis
pela administração ultramarina: caso de Martinho de Melo e Castro,
secretário de Estado no Reino, e do governador José César de Meneses,
encarregado pela governação da capitania a partir de 1774.
A princípio o objetivo era o de compreender, mediante a
correspondência trocada entre os moradores da capitania com os agentes
da administração central, a situação da capitania, as solicitações dos
moradores, a questão da economia, a revolta contra a companhia, e como
tais matérias eram entendidas pelos órgãos centrais da administração
portuguesa. A partir da análise dessa correspondência, foi possível
perceber a constituição de uma questão fulcral para o entendimento
das relações entres os poderes centrais e os locais: a visão das
instituições centrais da monarquia portuguesa do que seria considerado
relevante era diferente do que aparentemente seria o interesse dos
vassalos ultramarinos, se nos basearmos pela documentação enviada
das partes para Lisboa. O estudo dessa comunicação direta entre os
agentes no Reino e na capitania revelou o tom das medidas que o
secretário procurava implementar, negociar e/ou impor em um período
recheado de mudanças políticas tanto em Portugal, quanto no Brasil.
Mostrou, também, como o governador procurou cumprir as
medidas, negociar aquelas das quais discordava e acatar o que era
impossível não ser aplicado, como manifesta em suas cartas. Pois,
tário. Esse livro em particular possui 223 fólios, mas só os da frente encontram-se numerados.
Para que se possa compreender melhor o tipo de documentação trabalhada, podemos dizer que
os avisos são documentos diplomáticos de correspondência. São ordens expedidas em nome do
soberano pelos secretários de Estado diretamente ao presidente do Tribunal ou aos conselheiros
do tribunal, ou ainda a qualquer magistrado, agente governativo, corporação ou particular, pelo
qual se ordenava a execução das ordens reais. Documento que aparece mais constantemente na
2ª metade do século XVIII. Os ofícios, por sua vez, são documentos não diplomáticos, informativos, ascendentes ou horizontais; trata-se da correspondência entre autoridades subalternas
delegadas entre si ou entre outras autoridades do Reino, tais como os secretários de Estado. É o
meio pelo qual os governadores, bispos, ouvidores, juízes informam aos ministros do Reino os
atos ocorridos nas capitanias, no caso do Brasil, ou nas vilas ou províncias, no caso do Reino.
Prestam esclarecimentos, enviam pareceres, mapas ou encaminham o pedido de alguém. No
século XVIII, os ofícios passam a ser numerados, e, no caso das séries do Brasil, muitos ofícios
deste século recebem um número na Secretaria da capitania e outro quando dão entrada no
Reino.
214
como diz M. Nogueira em artigo publicado acerca da relevância da
correspondência, as cartas procedentes da administração central
portuguesa, além de tornarem pública a dominação e soberania por
parte do centro, serviam como instrumento fundamental de negociação,
principalmente quando as partes eram o ultramar e o Reino.2
Como se sabe, a Secretaria de Estado da Marinha e Ultramar,
instituição a que competiam todos os negócios respeitantes ao ultramar,
a par das atribuições concernentes à Marinha, foi criada em 1736
por D. João V, e são pouquíssimos os estudos que existem acerca de
seu funcionamento, dos funcionários que nela trabalhavam e de seus
responsáveis.3
Com base nos poucos ensaios existentes sobre a secretaria de
Estado da Marinha e Ultramar, sabe-se também que a ela competia
administração da Justiça, Fazenda Real, Comércio, governo dos
Domínios Ultramarinos e Negócios das Missões. Igualmente lhe
competiam as nomeações dos vice-reis, governadores, capitães - generais
e de todos os cargos civis e militares do ultramar, atribuições antes do
Conselho Ultramarino. Como se sabe, a Secretaria de Estado coexistiu
com o Conselho Ultramarino até 1833, e seus papéis encontram-se
depositados no Arquivo Histórico Ultramarino, entremeados com os do
Conselho.
Outro dado que é melhor compreendido com a análise dessa
documentação é que as ordens régias seguiam, em sua maioria, pela
Secretaria de Estado, os ofícios do governador eram respondidos pelo
secretário, e as portarias eram da secretaria. Ao Conselho cabia analisar
2
SANTOS, Marília Nogueira. A escrita do império: correspondência no império português
no século XVII. In: Laura de Melo e Souza, Júnia Ferreira Furtado e Maria Fernanda Bicalho
(organizadoras). O Governo dos Povos. São: Paulo: Alameda, 2009. pp. 173-174.
3
Com algumas exceções, como é o caso de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, alvo de um trabalho
cuidadoso da professora Andreé Mansuy Diniz-Silva e de Martinho de Melo e Castro, objeto
de estudo da dissertação de Virgínia Valadares. DINIZ-SILVA, Andree Mansuy. Portrait d’un
homme d’État: D. Rodrigo de Souza Coutinho, Comte de Linhares, 1755 – 1812, 2 vols., Lisboa e Paris, Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 2002 e 2006 e VALADARES, Virgínia Maria
Trindade. A sombra do poder: Martinho de Melo e Castro e a Administração da Capitania de
Minas Gerais (1770-1795). Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, 1997. Dissertação de
Mestrado, 1997, Lisboa.
215
o que a secretaria repassava ou o que, da parte dos súditos, subia
diretamente ao Rei. Pelo Conselho Ultramarino, encontramos consultas
sobre cartas de ouvidores, cartas das câmaras, de governadores
interinos, de capitães-mores, e, já na regência do Príncipe D. João, em
ao menos uma consulta não encontramos a resolução régia, dispositivo
que concluía a consulta, e sim um aviso do secretário de Estado
resolvendo-a, o que era extremamente incomum, uma vez que só ao
Rei ou a um regente caberia o ato de passar o despacho inal. Mais um
dado que vem conirmar que a Secretaria de Estado, de fato, passa a
ter um lugar de destaque na solução dos conlitos e queixas das partes
ultramarinas no inal do século XVIII.4
Acerca da função dos agentes da governação no mundo colonial
português, nos séculos XVII e XVIII, levamos em conta os trabalhos
de Maria de Fátima S. Gouveia e os estudos de Nuno Gonçalo F.
Monteiro, que identiicaram o papel instrumental dos cargos de
governo ultramarino na estruturação da elite cortesã portuguesa. Ao
longo do período colonial brasileiro, a coroa pôde se utilizar de uma
complexa política de concessão de cargos na constituição de um grupo
mais intimamente ligado a ela, consolidando, assim, um núcleo seleto
de famílias, através das recompensas que recebiam, e que não apenas
davam sustentação política e institucional à própria coroa, mas que
também eram capazes de formular práticas e soluções que viabilizassem
a presença e a imposição da soberania portuguesa em territórios tão
vastos e díspares do império português.5 E, igualmente, por ser “desde
Aviso que resolve a consulta: AHU – PE - Códice 267, livro de consultas de Pernambuco, l.
149 v – 150. Aviso do secretário de Estado ao presidente do Conselho Ultramarino: Ilustríssimo
e excelentíssimo senhor levando a real presença de Sua Majestade a consulta de 25 de janeiro
do ano próximo passado que o conselho fez subir ao seu conhecimento na dita data sobre a
representação da câmara da vila de Montemor da capitania de Pernambuco em data de 26 de
janeiro de 1793. A mesma senhora aprova as medidas que o conselho tomou sobre uma tão
importante matéria e que a dita senhora manda participar a vossa excelência para o fazer presente no mesmo conselho. Deus Guarde a excelência. Palácio de Queluz, 2 de maio de 1795.
De Luís Pinto de Sousa Coutinho ao presidente do Conselho, conde de Resende. Cumpra-se e
registe-se. Lisboa 5 de maio de 1795 com seis rubricas dos ministros do conselho em que entra
a do conde de Resende presidente.
5
GOUVEIA, Maria de Fátima Silva. Diálogos Historiográicos e cultura política na formação
4
216
meados de seiscentos, a remuneração dos serviços à coroa no império
melhor e mais seguramente remunerada em rendas e distinções do
que aqueles que eram prestados no Reino” e, talvez por isso, tais
postos tenham atraído a maior parte das grandes casas aristocráticas
portuguesas, mesmo tais serviços sendo considerados um fardo para
aqueles que o aceitavam.6
Em meados do séc. XVIII, segundo A. Manuel Hespanha,
“Portugal recebe, inalmente, a inluência das correntes doutrinais que,
desde há pouco menos de dois séculos vinham a construir a moldura
política jurídica da Europa moderna. Foi o Marquês de Pombal, com
longa vivência em cortes «iluminadas» da Europa (Áustria, Inglaterra),
que as aplicou sistematicamente”. O princípio básico da nova organização
era o reformista, caracterizado pelo absolutismo político do monarca,
a serviço de uma reforma política, social, cultural, econômica e
até religiosa, que reorganizasse a sociedade de acordo com normas
racionais. Por muitas variações que essa ideia tenha tido, comuns
eram um espírito laico e antitradicionalista, uma crença no poder da
razão, uma atitude política pedagógica, uma fé na capacidade da lei
para reformar a sociedade. Segundo o autor, a obra modernizadora de
Pombal, seguida no fundamental pelos ministros de D. Maria I, acabou
por ter momentos emblemáticos em sua política do direito e da justiça.7
da América Ibérica. In: ABREU, Marta, et all. Culturas Políticas – ensaios de história cultural, história política e ensino de História, Rio de Janeiro: Mauad, 2005. pp. 94-95. CUNHA,
Mafalda Soares; MONTEIRO, Nuno G. F. Governadores e capitães-mores do império atlântico
português nos séculos XVII e XVIII. In: MONTEIRO, Nuno G. F.; CARDIM, Pedro; CUNHA,
Mafalda Soares da (orgs.), Optima Pars. Elites Ibero-Americanas do Antigo Regime. Lisboa:
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2004. pp. 214-217.
6
CUNHA, Mafalda Soares; MONTEIRO, Nuno G. F. Governadores e capitães-mores… Op.
Cit., pp. 232-233. Segundo os autores este foi um caso único no contexto europeu: a maior parte
das grandes casas teve algum dos seus membros num governo das conquistas. Mas tal só se
justiicava quando necessitavam acrescentar novas doações ou renovar as vidas nos títulos; uma
vez que tais serviços eram reputados como sendo um pesado sacrifício.
7
Hespanha. A. Manuel. Portugal e a cultura política europeia no século XVIII. Janus, [Lisboa], 1999-2000. pp. 1-6. Disponível em: http://www.janusonline.pt/portugal_mundo/port_
1999_2000_1_19_c.html. Acesso em dezembro de 2010.
217
Além de seu cunho reformador, como já foi referido, Nuno
G. F. Monteiro destaca que o principal e mais irreversível impacto
do governo pombalino foi político e simbólico e caracterizou-se pela
“airmação violenta da supremacia da realeza sobre os demais poderes
e instituições, a qual se exprimiu em muitas áreas das relações com
diferentes entidades”. Menciona que no reinado de D. José I se inaugurou
em Portugal “a intervenção reformadora e autoritária do Estado e do
governo em múltiplos domínios da sociedade”.8
A última fase da época moderna assistiu a um grande incremento
da atividade da coroa, por esta assumir as tarefas dos corpos periféricos,
veriicando-se não apenas aumento quantitativo de tarefas do poder
central mas também mudança qualitativa de suas atribuições e de seus
objetivos, ratiicando a ideia de que, no período inal do Antigo Regime,
a imagem do monarca se sobrepôs às restantes, e o governo assumiu
as características de uma atividade dirigida por razões especíicas, que
tendiam a organizar a sociedade, impondo-lhe uma ordem, legitimandose através de reformas programadas e levadas a termo, mesmo contra
os interesses estabelecidos.9 Para Pernambuco, as consequências dessas
reformas seriam as instituições criadas durante o reinado de D. José I
para controlar os preços do principal produto da capitania10: a mesa da
inspeção do tabaco e do açúcar e a companhia geral de comércio que
iriam monopolizar as atividades mercantis da capitania de Pernambuco.11
A nosso ver, no período pombalino, as medidas reformistas
implementadas por Carvalho e Melo geraram uma série de manifestações
de desacordos e até de uma certa resistência. Os órgãos do poder na
8
RAMOS, Rui (coord.) História de Portugal. Lisboa: Esfera dos Livros, 2009. pp. 376-377.
HESPANHA, A. Manuel (Org.). História de Portugal – Antigo Regime, vol. VII. Lisboa: Lexicultural, 2002, p. 202. Ver também HESPANHA, A. Manuel. Poder e instituições na Europa
do antigo regime: Colectânea de textos / A. Manuel Hespanha. Lisboa: FCG, D.L. 1984, p. 67.
Neste artigo Hespanha refere que “nos inais do Antigo Regime surge, por parte do poder, uma
intenção nova de organização ativa [da sociedade]”. p. 29.
10
Hespanha cita que a coroa portuguesa, no inal do Antigo Regime, apertada pelas novas
necessidades inanceiras, vai se esforçar por aumentar a base tributária, incentivando e organizando as atividades produtivas, criando infra-estruturas materiais. HESPANHA, A. Manuel.
Poder e instituições…, Op. Cit., p. 67.
11
DIAS, J. S. da Silva. Pombalismo e Projeto Político. Lisboa: CHC, 1984.
9
218
capitania funcionaram como espaços privilegiados para a apresentação
das reivindicações locais. A Câmara do Recife foi célere em se envolver
no embate entre os interesses locais e centrais, mas também o foi o
governador nomeado pela coroa e a mesa da inspeção.
E porque a escrita foi um dos elementos capitais para o
desenvolvimento e a coesão do império ultramarino português,
ressaltam-se as cartas de Martinho de Melo e Castro, secretário de
Estado da Marinha de D. José e de D. Maria I, para o governador José
César de Meneses, no período em questão: anos inais do consulado
pombalino.
José César de Meneses não difere da maioria dos governadores
coloniais, no que concerne às prerrogativas para se tornar um deles.
Stuart B. Schwartz refere que, no período pombalino, “quase todos
os governadores nomeados para o Brasil eram nobres ou militares de
alta patente, acostumados à obediência e ao comando” 12. Russel-Wood
também estudou os agentes da governação e, em texto conhecido,
indica que:
… Para além de qualidades como a coragem, uma boa capacidade
de julgamento, integridade moral, experiência, lealdade à Coroa
e defesa do cristianismo, pretendia-se que os nomeados fossem
nobres de sangue, de idade madura e com capacidade de liderança
comprovada…13
Maria de Fátima Gouveia ratiica a mesma ideia em artigo para
a Biblioteca Nacional de Lisboa, ela cita que os governadores coloniais
deveriam apresentar qualidades pessoais que distinguissem sua pessoa
individualmente, junto com um conjunto de credenciais que habilitassem
sua nomeação em termos de sua iliação a um grupo bastante seleto de
homens. Credenciais como pertencerem à nobreza de sangue, possuírem
idade madura e capacidade de liderança comprovada, especialmente no
12
SCHWARTZ, B. S; Lockhart, J. A América latina na época colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 444.
13
RUSSEL-WOOD, A. J. R. Governantes e Agentes. In: BETHENCOURT, Francisco e CHAUDHURI, Kirti (orgs.), História da Expansão Portuguesa, vol. 3, Lisboa: Círculo de Leitores,
1998. p. 173.
219
campo militar, seriam fundamentais. Nuno G. F. Monteiro assinala que,
entre um mínimo de 64% e um máximo de cerca de 90%, de meados do
século XVII ao início do século XIX, a maioria dos Grandes e dos que
faziam parte da primeira nobreza prestou serviço no exército e enviou
alguns de seus membros para o governo das conquistas.14
César de Meneses era ilho do antigo vice-rei do Brasil, o conde
de Sabugosa, Vasco Fernandes César de Meneses, e, como boa parte
dos governadores coloniais, começou sua carreira servindo em alémmar, no Estado da Índia, depois na Corte, serviços que duraram 26 anos,
passando ao Brasil como governador onde icou por mais de 13 anos,
sendo recompensado por isso em seu retorno, como declara a própria
Rainha em seu livro de registro geral de mercês depositado na Torre
do Tombo.15 Sua longevidade no governo da capitania deve ter-se dado
pela cooperação e pela acomodação de interesses coletivos e privativos
típicos do governo de D. Maria I16 e que devem ter concorrido para sua
maior permanência na ocupação.
Como no governo de D. José I e sob a inluência do marquês
de Pombal, a forma ministerial de governo viria a se consolidar, é
natural que Martinho de M. e Castro passasse a escrever a J. César de
Meneses de forma ordenada, como é possível conirmar nos livros de
registros da Secretaria17. No período de 1775 a 1779 encontramos 45
cartas ou escritos de Martinho apenas para o governador, e neles vemos
14
GOUVEIA, Maria de Fátima Silva. Poder, justiça e soberania no império colonial português.
In: Leituras: Revista da Biblioteca Nacional de Lisboa, S. 3, n.º 6, abril/out., Lisboa: BNL,
2000. p. 105. CUNHA, Mafalda; MONTEIRO, Nuno G. F. Governadores… Op. Cit., p. 233.
15
IANTT/ RGM/ D. Maria I. Livro 24, l. 14v. Siglas: IANTT (Istituto dos Arquivos Nacionais
Torre do Tombo), RGM (Registro Geral de Mercês).
16
Por exemplo, Luís de Vasconcelos e Sousa icará como vice-rei do Estado do Brasil durante
quase todo o período de reinado efetivo de D. Maria (1777-1792), ica no cargo de 1779 a
Março de 1790; Martinho de Melo e Castro permanece como secretário de Estado da Marinha
até 1795, quando falece, tendo entrada na pasta em 1770; Aires de Sá e Melo ica na pasta dos
Negócios Estrangeiros e Guerra de 1775 a 1786; José César de Meneses em Pernambuco ica
mais de 10 anos como governador, entre outros.
17
Cf. BICALHO, Maria Fernanda. As tramas da política: conselhos, secretários e juntas na
administração da monarquia portuguesa e seus domínios ultramarinos. In: Nas tramas das redes – Política e Negócios no Império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010. p. 365.
220
ordens especíicas da secretaria para o governo da capitania; também
encontramos dezenas de cartas para outras autoridades na capitania,
embora tenhamos optado por analisar neste artigo somente os escritos
dirigidos a J. César de Meneses.18 As ordens podem ser catalogadas em
pelo menos quatro categorias. E, se em sociedades de Antigo Regime
as correspondências por elas produzidas conjugavam o público e o
privado, o livro de ofícios da secretaria de Estado não é uma exceção.
A correspondência encontrada e analisada versa sobretudo sobre:
a questão militar, por conta da preocupação com a defesa do Sul do
Brasil; informações acerca da população; envio de madeiras; e questões
com a companhia pombalina.
As primeiras cartas continham um conjunto de ordens para que
José César de Meneses mandasse mapas do estado dos regimentos
militares da capitania a cada seis meses, mapas da população
explicitando as categorias que devem ser contempladas, como idade,
sexo, nascidos e falecidos;19 ordens para que auxiliasse o intendente
da companhia, Antônio José Souto em suas experiências com a sinopla
(tinta), e plantas que pudessem ser comercializadas no reino.
Neste livro surge ao menos uma carta ou escrito de secretário
sobre questões de foro particular: Martinho questionou, por exemplo,
o envio de mercadorias para Pernambuco por parte do procurador
do governador na Corte, indagando como se daria o pagamento das
fazendas particulares por ele pedidas.
Ainda sobre a questão militar, as disposições do secretário
diziam respeito ao envio de fardamento e armamento para os regimentos
da capitania. E, com alguma insistência, avisos para que o governador
aprontasse madeiras para os arsenais da Marinha e do Exército no
18
Como neste período já não havia mais frotas, as cartas seguiam quando os navios da companhia partiam para Pernambuco, embora fossem escritas com uma periodicidade relevante, quase uma por mês. Sendo que no ano de 1775 faltam 8 cartas, no códice há uma nota informando
que foram retiradas para uma pasta. AHU - PE - Cód. 583, l. 168v.
19
E J. César de Meneses cumpriu a ordem. Em 30 de setembro de 1777 o governador enviou
o mapa da população com os critérios estabelecidos pelo secretário. AHU_ACL_CU_015, Cx.
127, D. 966. Siglas: AHU (Arquivo Histórico Ultramarino), ACL (administração central), CU
(Conselho Ultramarino), 015 (Pernambuco).
221
Reino, pau-brasil e madeiras que fossem boas para construção de navios
e mobiliário, remetendo, por vezes, relações detalhadas das madeiras
que mais interessavam àqueles arsenais.
Em 1775, vemos reletidas nas cartas do secretário as grandes
preocupações da coroa para o período: o envio de regimentos militares
da capitania para o Rio de Janeiro. Encontramos, na documentação
avulsa de Pernambuco, as respostas de José César de Meneses e
também nas cartas do vice-rei, Marquês de Lavradio, os pedidos para
que sejam enviados de Pernambuco militares para compor as forças no
Rio de Janeiro. Como se sabe, esse é um período de grande tensão entre
portugueses e espanhóis no Sul do Brasil por conta do não cumprimento
do tratado de 1750, o de Madri e o do Prado de 1761, que causaria a
consequente invasão ao Rio Grande do Sul. O Marquês de Lavradio
tentou, de todas as formas, compor forças para fazer frente aos espanhóis
no Sul do Brasil. As cartas que escreveu aos governadores coloniais,
principalmente ao morgado de Mateus em São Paulo e ao de Minas
Gerais, e os ofícios que enviou ao então conde de Oeiras são prova de
sua preocupação constante com a defesa daquela parte do Brasil e com
a desproporção das forças lusas.20
Martinho de Melo e Castro evidenciou essa preocupação
quando ordenou ao governador de Pernambuco, em repetidos ofícios,
que cuidasse dos regimentos militares de Recife e Olinda e os enviasse
com toda a brevidade ao vice-rei, Marquês de Lavradio, no Rio de
Janeiro. Mandou também que o governador atendesse a tudo o que o
vice-rei havia pedido. A repetição dessa ordem é relevante, uma vez
que um alvará de D. João V já subordinava os governadores coloniais
ao vice-rei, embora se compreenda que tal ordem não era realmente
cumprida, tanto porque D. João V repete o alvará ao menos por mais
três vezes durante seu reinado, como porque o próprio Lavradio
20
Biblioteca Nacional de Portugal (sigla: BNP), Coleção Brasil. BNP: PT_BN_Col. Brasil, cx.
1, cx. 2. Ver também: BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Autoridade e conlito no Brasil colonial:
o governo do Morgado de Mateus em São Paulo (1765-1775), São Paulo: Alameda, 2ª ed, 2007.
p. 91 e seguintes. Ver também RUSSEL-WOOD, A. J. R. Governantes e Agentes. Op. Cit. p.
175.
222
primeiramente escreveu ao secretário pedindo que passasse as ordens
necessárias para que os governadores enviassem mantimentos e tropas,
e só depois escreveu aos governadores.21 Mesmo na segunda metade do
século XVIII, aparentemente a comunicação com o centro prevalecia:
primeiro escrevia-se para Lisboa, depois para as outras partes do Estado
do Brasil.22
Ainda acerca da questão da preocupação com a defesa do Brasil,
Martinho usou um discurso que usualmente era utilizado nas cartas da
chamada “nobreza da terra” quando queriam ver seus pedidos atendidos.
Ele escreveu a César de Meneses em nome do rei, “informando que o
rei não esqueceu o heroísmo do terço dos Henriques na Restauração
pernambucana e que os manda empregar com suas tropas regulares na
defesa dos domínios meridionais da América portuguesa, mandando-os
passar ao Rio de Janeiro”.23
Ora, em 1779, Martinho voltou a escrever a César de Meneses,
depreciando esse heroísmo e o discurso nativista tão utilizado pela elite
de Pernambuco, que principiava quase sempre seus pedidos pelo “Às
custas do nosso sangue, vida e fazendas…” como tão bem lembrou
Evaldo Cabral de Melo em várias de suas obras, especialmente em
Rubro Veio, novamente editado em 2008.24
Martinho, nessa memória que escreveu a César de Meneses,
declarou que não era possível icar cedendo aos pedidos dos moradores
da capitania por conta dos feitos do século XVII, embora, como citado
pouco antes, tenha utilizado o discurso do heroísmo desses mesmos
Academia das Ciências de Lisboa, nº 95, série azul, códice de Pernambuco, ls. 18 e 19-19 v.
Martinho escreveu para o governador de Pernambuco em março de 1775 mandando enviar
tropas para o Rio de Janeiro a pedido do vice-rei (AHU-PE- Códice 583, l. 168); e em abril
escreve ao vice-rei informando que já mandou os governadores das capitanias preparem os
regimentos e os remeterem ao Rio. BNP: PT_BN_Col. Brasil, Cx. 2, nº 22. Ver SCHWARTZ. A
América… Op. Cit., p. 444. Schwartz cita que o “vice-rei do Brasil tinha pouco controle sobre
os governadores das outras capitanias, incentivados que eram a se comunicarem diretamente
com Lisboa. Cada capitania continuou a ser em muitos aspectos uma colônia separada”.
23
AHU – PE - Códice 583, l. 168, letra q.
24
MELLO, Evaldo Cabral. Rubro Veio – o imaginário da restauração pernambucana, São
Paulo: Alameda, 3ª ed, 2008. p. 92. “Às custas do nosso sangue, vida e fazendas…” referências
como esta faziam parte do discurso político em Pernambuco, nos séculos XVII e XVIII.
21
22
223
feitos para convencer o terço dos Henriques a voluntariamente se juntar
aos regimentos de Olinda e Recife no Rio de Janeiro.25
Ainda em 1775, Martinho escreveu para César de Meneses
informando que, em Cádiz, estava sendo preparada uma grande força
para atacar a América portuguesa, e que acreditava que uma parte das
embarcações acabaria por arribar em Pernambuco; diz ele em seu ofício:
“sendo muito para recear que a guerra que até agora não tem passado da
[região] Sul do Brasil se estenda por todo ele, e venha por im declararse na Europa”. De 1774 a 1775, a grande preocupação da coroa no que
diz respeito ao Brasil foi, com certeza, a invasão do Rio Grande do Sul
e a perda da Ilha de Santa Catarina.
Em 1776 e 1777, muitos são os avisos pedindo madeiras
especíicas para a construção de navios. E em 1778 iniciou-se aquilo
que seria a quinta espécie de escritos do secretário para Pernambuco:
Melo e Castro escreveu uma série de cartas para o governador apenas
sobre a companhia geral de comércio. Como se sabe, com a queda
do Marquês de Pombal, aumentou a entrada de cartas das câmaras
de Pernambuco à rainha, nas instituições centrais do Reino, pedindo
o im da companhia.26 Sua extinção ou prorrogação seria deinida em
1780, como era do conhecimento dos moradores, do governador e da
Secretaria de Estado.
Martinho, de forma enfática, procurou que o governador
apoiasse a companhia pombalina, pois César de Meneses, em cartas
suas à secretaria, escreveu para o ministro, mostrando ser de opinião
contrária à prorrogação do monopólio da companhia. Com o aumento
da resistência por parte dos moradores para com a companhia geral,
Martinho passou a escrever com alguma insistência ao governador, e
em fevereiro de 1778 redigiu um ofício mencionando que a companhia
25
Memória anexada ao ofício do Governador José César de Meneses a Martinho de Melo e
Castro. Ver ofício e memória em AHU_ACL_CU_015, Cx. 130, D. 9823.
26
Cf. DIAS, Érika Simone de Almeida Carlos Dias. O im do monopólio: a extinção da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba (1770-1780). Dissertação de Mestrado. Ver também
MAXWEL, K. A devassa da devassa: Inconidência mineira, Brasil - Portugal, 1750-1808.
Tradução de João Maia. 3ª ed, São Paulo: Paz e Terra, 1995. p. 94.
224
foi favorável para a agricultura em Pernambuco, pois, a seu ver, antes
da companhia as lavouras estavam quase perdidas.
Escreveu novamente em junho, valorizando o papel da
companhia para a Fazenda Real por conta do envio de moeda
provincial; em agosto tornou a escrever criticando os excessos de seus
deputados, que utilizavam os créditos em seu proveito e não cumpriam
as ordens da Junta da Companhia sediada em Lisboa. Martinho baseouse nos números apresentados pela Junta, que, de fato, demonstravam
que os deputados em Pernambuco eram seus maiores devedores, e
que continuavam a distribuir os créditos entre eles mesmos, parentes
e agregados, e resistiam a cumprir as ordens vindas das instituições
centrais referentes à cobrança das dívidas.27
Em outubro, escreveu seu ofício mais crítico ao governador.
Primeiramente repreendeu-o por não tomar nenhuma atitude quanto ao
comércio feito por outras nações europeias na capitania, e, depois, por
tomar o partido dos moradores contra a companhia:
Como se desta secretaria de estado não se tivessem dado a vossa
senhoria as mais positivas ordens para coibir as escandalosas
relaxações com que nesses portos se introduzem fazendas de
França, de Inglaterra e de Holanda, extraídas da Costa da Mina,
introduzidas pela Bahia e por navios de comércio que dessa
capitania vão àquela costa.
Sua Majestade enim coniou a vossa senhoria o governo dela, não
para fomentar partidos, mas para os destruir, não para acreditar,
nem para autorizar sugestões, mas para castigar os autores delas;
não para fazer dissertações sobre a existência da companhia ou
extinção dela…28
Além desse documento, outro, dos reservados da Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro, refere os tais partidos. Manuel da Cunha
Meneses, governador que antecedeu a J. César de Meneses, já havia
27
RIBEIRO JR., José. Colonização e Monopólio no Nordeste Brasileiro, São Paulo: Hucitec,
2ª ed, 2004, p. 192. Ribeira Júnior cita que os maiores devedores à companhia eram indivíduos
integrantes da administração local.
28
Cf. AHU – PE- Códice 583, ls. 202-203.
225
escrito ao secretário informando que Francisco Xavier Cavalcanti
de Albuquerque29 “andava a formar partidos contra a companhia
pombalina, e incitava os senhores de engenho a uma revolta”.30 O caso
aparentemente foi tão sério que seu juiz conservador pediu auxílio
militar para conter a revolta.31
Sobre a repreensão de Martinho ao governador, é possível
inferir que tenha ocorrido por conta de outro ofício, que, em julho do
mesmo ano, José César de Meneses escrevera ao secretário; nele, o
governador airmava ser mais positiva para o crescimento da capitania
de Pernambuco a extinção da companhia. César de Meneses anexou
a seu ofício dezenas de certidões provando que, embora o número de
engenhos tivesse aumentado, a produção do açúcar caíra, o tráico
de escravos com a Costa da Mina e Angola diminuíra, bem como a
produção de rolos de tabaco; para ele, o comércio havia sido mais
próspero nos 20 anos anteriores ao estabelecimento da companhia que
nos 18 de seu monopólio.32
Este é um exemplo de como agentes da coroa nem sempre
concordaram no que dizia respeito às ordens vindas das instituições
centrais da monarquia portuguesa. E, nesse caso, pode-se referir que
algumas das principais medidas tomadas pela coroa no tocante à extinção
da companhia e as medidas propostas para a boa governação da capitania
tiveram como elemento crucial a correspondência do governador,
do secretário de Estado e dos súditos através da representação das
câmaras.33 Além do ativo papel do governador no cumprimento das
29
Na documentação do Arquivo Histórico Ultramarino no século XVIII há muitas referências
a Francisco Xavier C. de Albuquerque como senhor de engenho Suassuna, membro da mesa
da inspeção do açúcar e contratador do subsídio das carnes da capitania de Pernambuco. Ver
AHU_ACL_CU_015, Cx. 115, D. 8835 e AHU_ACL_CU_015, Cx. 171, D. 12051.
30
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ) - reservados. BNRJ - Livro II (33, 6, 11, l. 5).
31
Ver AHU_ACL_CU_015, Cx. 115, D. 8801.
32
O ofício é escrito em 1777, por isso o governador refere apenas 18 anos de monopólio e
não 20. Ver ofício em AHU_ACL_CU_015, Cx. 130, D. 9823. Pelas certidões da alfândega
do Recife, o número de escravos que entrou na capitania no período de 1742 a 1759 foi de 54.
161; entre os anos de 1760 a 1777 este número baixou para 37.806, uma diferença de mais de
16 mil escravos.
33
E as câmaras aproveitaram de forma única tal direito. O regimento do governador-geral do
226
ordens ou na contestação delas, como o fez nesse caso especíico, essa
documentação possibilita a análise das ordens do centro da monarquia
para as partes ultramarinas, permitindo uma nova percepção daquilo
que as instituições centrais consideravam relevante para o Brasil e para
cada capitania em particular.
Como foi dito, este artigo é o resultado preliminar de uma pesquisa
mais vasta. A análise mais pormenorizada dessa documentação, junto
com o livro das consultas do Conselho Ultramarino para Pernambuco,
poderá nos dar respostas mais precisas de quais foram as directrizes
vindas do centro da monarquia portuguesa nesse período posterior à
saída do Marquês de Pombal do governo, e de como os poderes locais
conseguiram ou não interferir nas orientações mais centralizadoras
vindas de Lisboa, que objetivavam apontar aos agentes o modo de
governar.
Encontramos na história do Brasil exemplos de como os colonos
foram capazes de exercer suiciente pressão sobre as autoridades
metropolitanas no sentido de evitar ou modiicar totalmente as políticas
propostas, de atrasar a implementação de ações prescritas, ou de negociar
um acordo menos ofensivo aos interesses coloniais.34 A análise dessa
documentação possibilita estudos de caso como este, em que existe a
resistência natural entre as partes, mas também a compreensão de que,
no geral, as ordens régias eram cumpridas e de que o “pacto político”
entre súditos e monarca continuava a ser honrado por ambas as partes,
como nos demonstra a correspondência trocada,35 uma vez que a noção
Brasil Roque da Costa Barreto estabelecia que o governador “escrevesse sempre que seguissem
navios para o reino (…), cuidando de não impedir que também escrevessem, ainda que para se
queixarem, as câmaras e seus oiciais (…)”. BARBOSA, Maria do Socorro Ferraz, ACIOLI,
Vera Lúcia, ASSIS, Virgínia Maria Almoedo Fontes repatriadas: anotações de História Colonial, referências para pesquisa, índices do catálogo da Capitania de Pernambuco, Recife: Editora universitária da UFPE, 2006. p. 47.
34
Cf. RUSSEL-WOOD, A. J. R. Centros e periferias no mundo luso-brasileiro, 1500-1808.
Revista Brasileira de História. 1998, vol.18, nº 36. P. 187-250. Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01881998000 200010. Acesso
em dezembro de 2010.
35
De acordo com a noção do “pacto político” existente entre o monarca e seus súditos, concede-se a este mesmo súdito, através das instituições de poderes locais ou mesmo um simples re-
227
de idelidade continuava muito presente no discurso dos súditos, seja
dos moradores das capitanias em suas cartas e representações, seja dos
governadores e outros agentes enviados pelo Reino para o ultramar em
seus ofícios à secretaria de Estado.36
O estudo das relações de poder que entrelaçaram colonos e coroa
através de todo o império mostra-nos que, para entender a dinâmica
colonial, nesse caso especíico na capitania de Pernambuco, é preciso
analisar com cuidado a correspondência trocada entre as partes, a im
de se compreender as redes formadas entre agentes e moradores, e
entre secretaria de Estado e governo, sejam elas por conta do sentido
de justiça, do dever ou do comércio. Só assim se torna possível o
entendimento de situações como essa, em que não apenas os colonos
dirigem a negociação de acordos, mas também a atuação do agente
enviado pela coroa.37
querimento particular, a possibilidade de apelar ao rei um acordo menos opressivo ou solicitar
a mercê mais justa pelos feitos em prol da coroa, sejam eles particulares ou coletivos. MELLO,
Evaldo. Rubro Veio… Op. Cit., p. 107.
36
A idelidade era algo inerente ao contrato da amizade que unia rei e vassalos no Antigo Regime e interagia diretamente com a prestação de serviços ao rei. Cf. CARDIM, Pedro. Amor
e Amizade na cultura política dos séculos XVI e XVII. Separata de Lusitania Sacra, 2ª série
(11), 1999. A noção de idelidade não é contraditória com a resistência feita através das cartas.
Os súditos queixam-se de algumas diretrizes mais centralistas vindas do Reino é certo, mas
continuam a proclamar sua idelidade a coroa.
37
Maria Fernanda Bicalho, ao analisar artigo de Jack Greene, refere que a formação dos chamados impérios coloniais pressupôs a construção de novos centros também eles portadores de
autoridade, por meio de intrincados mecanismos de ajustes e negociação. BICALHO, Maria
Fernanda B. Dos “Estados nacionais” ao “sentido da colonização”: história moderna e historiograia do Brasil colonial. In: ABREU, Marta, et all. Cultura Política… Op. Cit., p. 81.
228
Governadores e negociantes nas franjas dos impérios:
a praça mercantil da Colônia do Sacramento
(1750-1777)
Fábio Kühn
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
1. Historiadores da Colônia: as versões sobre o passado platino
Em tempos de revalorização dos estudos sobre os Impérios
ultramarinos, estudar a atribulada história da Colônia do Sacramento
pode nos ajudar a entender melhor a própria gênese da disputa comercial
e territorial sustentada por espanhóis e portugueses no estuário do rio da
Prata desde inais do século XVI. O tema nada tem de novo, pois desde
muito os autores em língua espanhola e portuguesa vem debatendo
a questão. Focalizando somente os autores que escreveram de forma
especíica sobre a Colônia, pode-se dizer que o ponto de vista lusitano
está resumido em Capistrano de Abreu (1900), embora o primeiro
trabalho de fôlego seja o de Rego Monteiro (1937), historiador militar
que estudou as diversas fases da história da Colônia, numa narrativa
focada nos sucessos castrenses e diplomáticos. Do lado de lá do rio da
Prata, o ponto de vista castelhano foi estabelecido desde há muito pelos
trabalhos de Bermejo de la Rica (1920), Fernando Capurro (1928),
Azarola Gil (1931) e Riveros Tula (1959). Em língua portuguesa, o
período inicial, correspondente à primeira fase da cidadela platina (16801705) está bem coberto pelo excelente trabalho de Ferrand de Almeida
(1973), ao passo que a segunda fase (1716-1749) também conta hoje
com alguns estudos acurados, que vem focalizando principalmente o
governo de Antônio Pedro de Vasconcelos, correspondente ao período
de auge do domínio lusitano, para o qual existe abundante documentação
disponível. Nos trabalhos de Fabrício Prado (2002) e Paulo Possamai
(2006) a história da Colônia é atualizada e compreendida à luz dos
novos aportes teóricos da historiograia contemporânea. Enquanto
229
Prado privilegiou o estudo de redes sociais existentes na povoação,
Possamai procurou estudar a vida cotidiana da cidadela, incluindo os
denominados grupos subalternos. A historiograia argentina recente
também vem renovando o cenário: Fernando Jumar (2000), analisou
detalhadamente o complexo portuário platino, formado por Buenos
Aires, Colônia do Sacramento e Montevidéu, enquanto que Isabel
Paredes (2004) focou sua atenção no comércio e no contrabando,
avançando inclusive no período posterior ao Tratado de Madri. Em
comum, todos os autores acima citados dedicaram pequena atenção
à fase inal da praça (com exceção de Paredes), período que até hoje
ainda está precisando de novas investigações. Deve ser aqui destacada
a contribuição pioneira do genealogista sul-riograndense Rheingantz
(1949), que fez a reconstituição das famílias que viviam na povoação
durante o século XVIII a partir dos livros de registro paroquial. Mais
recentemente a tese de doutorado de Fabrício Prado (2009) começou a
desbravar o território, estudando as redes comerciais que sobreviveram
ao im da própria Colônia como possessão portuguesa. Este texto tem
por objetivo acrescentar mais alguns elementos para a compreensão do
período inal da praça lusitana, abordando temas como a constituição
da governabilidade no sistema imperial português e a formação de
redes sociais envolvendo administradores, militares, eclesiásticos e
comerciantes.
2. Mercadores e homens de negócio
Desde que os comerciantes coloniais foram promovidos à
condição da elite econômica dominante pela historiograia revisionista
(Fragoso, 1992), uma série de trabalhos foram realizados sobre a atuação
dos homens de negócio residentes na América portuguesa, ajudando
a compor um novo enquadramento da questão.1 Os comerciantes
coloniais eram homens que no mais das vezes tinham origens sociais
1
Entre estes estudos, que abrangem diferentes regiões da América Portuguesa (respectivamente Pernambuco, Minas Gerais, Rio Grande de São Pedro, Bahia e São Paulo), destacamos:
Mello (1995), Furtado (1999), Osório (2007), Ribeiro (2009) e Borrego (2009).
230
modestas e sobre os quais ainda pesava a visão negativa existente na
sociedade portuguesa de Antigo Regime sobre o comércio2, além da
sua associação com o temido “defeito mecânico”, que denunciava as
modestas origens sociais, quase sempre vinculados ao trabalho braçal.
Isso sem contar que, desde o século XVI, os denominados “homens de
negócio” estavam associados a uma suposta origem judaica, certamente
porque muitos conversos destacavam-se nas atividades mercantis e
inanceiras (Bodian, 1994, p. 61).3 Por outro lado, durante o século
XVIII, a nova elite gozava de uma vantagem apreciável, mesmo sendo
de origem humilde, pois tinha a denominada “limpeza de sangue”,
muito necessária para a promoção social da “burguesia mercantil”.
Não por acaso, nessa época, os comerciantes estabelecidos no Brasil
procuraram com ainco a carta de familiar do Santo Ofício, uma espécie
de salvaguarda que garantia origens raciais puras, afastando quaisquer
suspeitas de “sangue infecto” (Kühn, 2010). Cabe lembrar, por im, que
justamente no período aqui estudado, ocorreu o processo de nobilitação
dos comerciantes lusitanos, notadamente durante o período pombalino,
quando toda uma legislação especíica foi dedicada ao acrescentamento
social dos homens de negócio.4
2
Essa visão negativa sobre o comércio tem origens no período medieval, quando a Igreja
formulou as bases teóricas da depreciação da atividade mercantil. A primeira causa de sua condenação é que “pelo objetivo que eles se propõem – o lucro, a riqueza – eles [os mercadores]
quase que inevitavelmente cometem um dos pecados capitais, a avaritia, ou seja, a cupidez”.
Deve ser lembrado ainda que os mercadores são levados, “por sua proissão, a praticar ações
condenadas pela Igreja, operações ilícitas que, em sua maioria, são denominadas usura” (Le
Goff, 1991, p. 73).
3
Essa é uma perspectiva válida mais para o século XVII do que para o século XVIII, quando
a maior parte da burguesia mercantil portuguesa possuía já origens cristãs-velhas.
4
Dentre a legislação que dava privilégios aos negociantes, destaco o decreto de 30 de setembro de 1755 e a carta de Lei de 30 de agosto de 1770. No primeiro caso, o monarca criou
uma Junta de Comércio, “considerando a importância de que é ao bem destes Reinos animar e
proteger o comércio de Meus Vassalos, favorecendo-o com uma proteção especial, e mostrando
a estimação que faço dos bons e louváveis Negociantes dos meus Domínios e o muito que procuro facilitar-lhes os meios de fazer lorescer e dilatar o seu comércio em comum benefício”.
Na lei de 1770, que determinava a matrícula dos negociantes na referida Junta, D. José reiterava
que “desde os princípios do Meu governo foi um dos Meus maiores e mais assíduos cuidados
animar e proteger o Comércio”. Collecção da Legislação Portugueza, Legislação de 17501762, p. 396-397 e Legislação de 1763-1774, p. 491-495.
231
O grupo mercantil da Colônia do Sacramento mudou bastante
ao longo do século de dominação lusitana na região (1680-1777). No
início, os negócios eram controlados quase que exclusivamente pelos
governadores e seus sócios. Durante a segunda fase, os portugueses
(e seus governadores) tiveram que enfrentar a concorrência direta dos
ingleses, estabelecidos com o Asiento na região, o que não impediu que os
homens de negócio e mercadores lusos aumentassem em número; mesmo
na última fase, quando a Colônia já parecia perdida, o grupo mercantil
era bastante dinâmico, centrando suas atividades principalmente no
trato negreiro (Prado, 2009, p. 71-78). Os comerciantes dividiam-se
basicamente em duas categorias: os mercadores e os homens de
negócio. Embora se dedicassem ao mesmo tipo de atividades mercantis,
a diferença estaria na escala destes empreendimentos (Sampaio, 2003,
p. 233), sendo que os “homens de negócio” se constituíam na elite
comercial propriamente dita. Além dessa divisão, os comerciantes
podiam ser classiicados quanto à sua inserção na sociedade
sacramentina: uns assemelhavam-se aos “comissários volantes” e não
residiam efetivamente na praça, somente o tempo necessário para fazer
seus negócios, voltando em seguida ao Rio de Janeiro ou aos seus locais
de origem. No inal da década de 1760, referindo-se à essa categoria,
o governador da Colônia explicava que “por serem os paisanos desta
Praça a maior parte deles sem domicílio certo nela”, eles “são homens
que concorrem ao seu negócio e imediatamente tornam a fazer regresso
para outras partes”.5 Mas também havia outra categoria, possivelmente
minoritária, que se refere aos comerciantes estabelecidos na praça,
radicados há algumas gerações e muitas vezes casados com mulheres
também locais, muitas delas ilhas de militares.
No que tange à dimensão do grupo mercantil aqui estudado,
temos alguma informação, recolhida em diversas fontes (registros de
batismos, relações e representações de mercadores e homens bons,
5
AHU-CS, Cx. 7, doc. 591. OFÍCIO do governador da Colônia do Sacramento, Pedro José
Soares de Figueiredo Sarmento ao Vice-rei Conde de Azambuja, 28.10.1769.
232
habilitações de familiares do Santo Ofício). Os dados compulsados para
o período 1749-1777 indicam a existência de pelo menos uma centena
de agentes mercantis atuando na praça nessa conjuntura, dos quais
quase dois terços (65) são denominados como “homens de negócio”, o
que supostamente os coloca no topo da hierarquia social. Mas existiam
outras formas de classiicação, que estabeleciam outras hierarquias: um
quinto dos comerciantes (20) eram também familiares do Santo Ofício,
enquanto que pelo menos 27 deles ostentavam patentes de ordenanças
e auxiliares. Em comum, todos tinham o aspecto da promoção social.
Dessa centena de negociantes, quase quatro quintos atuavam desde a
década de 1750. Ao que parece, as perturbações militares da década
de 1760 afetaram o crescimento do grupo mercantil. Se compararmos
esta comunidade de comerciantes com àquelas existentes nas principais
praças mercantis da América Meridional, percebemos que em relação
à população total da Colônia do Sacramento, o número de negociantes
era bastante avultado. Na Lima bourbônica, por volta de meados do
século XVIII, a comunidade mercantil chegava a 135 indivíduos, na
sua maioria provenientes das regiões setentrionais da península Ibérica,
como o País Basco e a Cantábria (Turiso Sebastián, 2002, p. 57-58).
Em Buenos Aires, o grupo de comerciantes poderosos e prestigiosos
alcançava 178 pessoas no período 1775-1785 (Socolow, 1991, p. 26).
Por im, no âmbito dos domínios lusos, na praça do Rio de Janeiro
existiam 122 negociantes por atacado no ano de 1792, conformando
o grupo tido como a elite mercantil (Silva, 2005, 189). Quando a
Colônia do Sacramento foi tomada pelas forças espanholas em 1762, o
governador de Buenos Aires, Don Pedro de Cevallos deu duas opções
para o grupo mercantil estabelecido na cidadela: podiam retirar-se
levando consigo “todos sus efectos de Comercio” ou então permanecer
nos domínios de Sua Majestade Católica, desde que apresentassem um
inventário exato dos seu gêneros, para que fossem taxados pela Real
Fazenda. Não obstante a elevada taxa de 45% cobrada dos mercadores
que quisessem permanecer, um número signiicativo (91 comerciantes)
decidiu icar, mesmo que como súditos espanhóis (Jumar, 2000, p. 315).
233
3. A Colônia do Sacramento: uma praça mercantil
Não obstante o seu caráter de fortaleza militar, a Colônia do
Sacramento era também – e fundamentalmente – uma praça mercantil,
onde desde o princípio estavam presentes os interesses da elite
luminense (Sampaio, 2003). Se as atividades comerciais da praça são
bem conhecidas para a primeira metade do século XVIII, o mesmo
não pode ser dito para a parte inal da centúria. Com a exceção parcial
dos trabalhos de Isabel Paredes e Fernando Jumar, a maioria dos
autores não se debruçou sobre o período, principalmente em função
da escassez documental. O que não signiica que não saibamos algo
a respeito. De fato, após o período crítico do cerco de 1735-1737, o
comércio sacramentino voltou a lorescer, atingindo seu auge na
conjuntura compreendida entre 1739 e 1762. Nesses anos, não houve
maiores hostilidades entre as Coroas ibéricas, o que permitiu uma maior
aproximação oicial entre ambos os governos. Essa situação acabou
facilitando o intercâmbio comercial, incrementando as possibilidades
de contrabando (Paredes, 2004, p. 3).
O jesuíta alemão Florian Paucke, que esteve na Colônia em 1750,
observou que a cidade era pequena e “na sua maior parte habitada por
comerciantes portugueses” (Barros-Lémez, 1992, p. 75). Realmente, a
década de 1750 parece ter sido o auge da atividade mercantil na Colônia,
não obstante as incertezas decorrentes do Tratado de Limites, que como
se sabe, previa a entrega da cidadela aos espanhóis. Os infortúnios da
demarcação, associados à eclosão de uma nova guerra na Europa (a
Guerra dos Sete Anos), acabariam revertendo esse quadro. Em 1762
a praça portuguesa seria tomada pelas forças do governador Pedro de
Cevallos e um rígido bloqueio terrestre seria implementado, após a
devolução da Colônia aos lusitanos no ano seguinte. Na verdade, desde
a criação do Real de San Carlos (1761), situado a cerca de meia légua
da cidadela, tropas da guarnição de Buenos Aires vigiavam com rigor
os portugueses, que literalmente icaram coninados à fortaleza. Um
observador castelhano, escrevendo em 1772, reparou que “o trato que
234
fazem os vizinhos da Colônia com os de Buenos Aires é agora muito
distinto do que era praticado em tempos passados, quando o executavam
com suas embarcações bem armadas, encobrindo suas frequentes
vindas a essa Cidade com vários pretextos”. Continuando, registrou
que essa prática havia deixado de existir, pois “são os de Buenos Aires
ao presente que vendem e permutam com outros os gêneros que levam
eles mesmos à Colônia”, o que lhes garantia grandes lucros, vendendo
pelo dobro ou triplo do preço os produtos que traziam aos portugueses
(Millau, 1947, p. 114-115). Existem evidências de que esse comércio
era realmente muito lucrativo, dando origem a redes mercantis e de
poder que perpassavam o rio da Prata. Assim, por exemplo, a poderosa
rede atuante no comércio ilícito, que era formada por altos oiciais da
Fazenda espanhola (Martin de Altolaguirre, Pedro Medrano e Juan de
Bustinaga) e comerciantes de Buenos Aires (Martin de Sarratea), além
de destacados homens de negócio atuantes na Colônia do Sacramento
(Antônio Ribeiro dos Santos e Manuel da Cunha Neves). Em 1764,
com a prisão de Domingo Lagos, foi desvendada uma complexa
articulação que dava sentido à referida rede. Lagos era o broker que
havia sido destacado para ir até a Colônia, estabelecer os contatos com
os comerciantes da praça portuguesa, veriicar o carregamento das
mercadorias (tecidos e escravos) e sua descarga em Buenos Aires. Do
outro lado do rio, na praça portuguesa, os comerciantes citados atuavam
como “intermediários obrigatórios”, pois obtinham as autorizações do
governador da Colônia, indispensáveis para os embarques simulados
(Moutoukias, 1992, p. 896-897). Não por acaso, Ribeiro dos Santos
era considerado um dos homens bons da praça, ao passo que o tenente
Manuel da Cunha Neves era personagem de destaque na sociedade
local, detentor do seu próprio séquito, como comprovam as suas
frequentes presenças como padrinho na pia batismal da igreja paroquial
da Colônia.6
Ao que parece, além dos gêneros tradicionais (produtos do
6
ACMRJ, Livros 3º e 5º de Batismos da Colônia de Sacramento (1760-1777). No período
compreendido entre 1761 e 1775, Neves aparece 10 vezes como padrinho.
235
Brasil e fazendas) que faziam parte do comércio da Colônia com
Buenos Aires, na segunda metade do século XVIII a praça portuguesa
especializou-se no fornecimento de escravos africanos para a região
platina. Conforme um observador contemporâneo (1766), a média anual
de negros introduzidos a partir da Colônia do Sacramento nunca era
inferior a 600, sendo que as “peças” eram adquiridas em Buenos Aires
e daí internadas para as províncias do interior. Mais ainda, no período
de 1740 a 1760, o comércio clandestino se realizou sem repressão,
sendo que nesse período o número de escravos introduzidos havia sido
o dobro. Esse comércio movimentava anualmente de 10 a 18 navios de
100 a 300 toneladas, além de muitas embarcações menores,sendo que o
grosso das cargas era de manufaturados europeus, produtos brasileiros
(como açúcar e tabaco) e negros da Guiné. Em troca, os espanhóis
levavam à Colônia a desejada prata, além de víveres, carnes, trigo,
farinha e couros (Santos, 1993, p. 185-186).
Deve ser lembrado ainda, que o declínio do mercado das Minas
Gerais renovou o interesse dos traicantes luminenses no comércio ilegal
no Prata durante a década de 1760. O viajante francês Bouganville, que
esteve no Rio de Janeiro em 1766, estimou em mais de trinta o número
de pequenas embarcações costeiras envolvidas no fornecimento de
escravos para a região platina, trazendo em troca couros e prata (Miller,
1988, p. 485). Referindo-se ao bloqueio castelhano, observou ainda que
“essa praça está no momento de tal modo fechada, devido às novas obras
com que os espanhóis a cercaram, que o contrabando com ela se torna
impossível, se não há conivências” (Cesar, 1978, p.29). Voltaremos
a esse ponto mais adiante. No momento, cabe destacar que os dados
demográicos disponíveis mostram que 58% dos habitantes da Colônia
eram escravos em 1760, sem que houvesse uma ocupação econômica
viável para tantos trabalhadores cativos. Assim, considerando a
existência de uma comunidade mercantil fortemente vinculada ao
Rio de Janeiro, os dados sugerem que este elevado número de cativos
eram habitantes temporários, à espera de serem comercializados com
os mercadores buenairenses. Mais ainda, a quantidade de escravos que
236
chegava na Colônia via tráico negreiro não pode ser explicada devido
à demanda local (se considerarmos a inexistência de um hinterland
agrário). Dessa forma, percebe-se um duradouro e ativo papel dos
comerciantes sacramentinos nos negócios negreiros, com um papel de
destaque no complexo portuário platino (Prado, 2009, p. 72 e 77).
O governador e seus interesses
Para exempliicar as formas de relacionamento existentes entre
os representantes do poder central e os homens de negócio, vamos
tratar de alguns acontecimentos ocorridos no governo de Luís Garcia
de Bivar (1749-1760), que foi administrador da praça platina durante
a fase inal da Colônia do Sacramento. Com a saída do governador
Antônio de Vasconcelos, após vinte e sete anos de governo, assumiria
o poder Luís Garcia de Bivar. Militar de carreira, ele chegaria ao posto
de Sargento-Mor de Batalha, após uma longa carreira no Exército. Ele
governaria a praça em uma conjuntura de mudanças, decorrente da
presença de Gomes Freire de Andrade no extremo sul e das tentativas
de demarcação territorial decorrentes do Tratado de Madri.
Já nomeado governador da praça, recebeu a mercê do hábito
de Cristo, mas ao se efetuarem em 1752 as provanças “constou ser
infamado de cristão-novo, com fama antiga, constante e geral, por parte
de seu pai e avô paterno”. Esta pecha foi suiciente para obstaculizar
as suas pretensões, o que o levou a enviar à Mesa de Consciência e
Ordens uma extensa justiicativa, onde tentava demonstrar a sua pureza
de sangue. Após uma longa tramitação, acabaria habilitado somente em
1757, quando conseguiu provar que tinha a “limpeza necessária”.7
Bivar parece mesmo ter se estabelecido na Colônia do Sacramento,
pois um dos poucos governadores que morreu na praça: o seu registro
de óbito indica que foi “amortalhado no hábito da Ordem de Cristo, de
que era cavaleiro professo; e no hábito de São Francisco, de que era
Terceiro”. Seu funeral teve a pompa necessária a um homem da sua
posição (e também, pode-se pensar, a reairmação da sua condição de
7
ANTT. Habilitação da Ordem de Cristo. Letra L, maço 3, nº 18, 1757.
237
bom católico), pois foi “acompanhado à sua sepultura pela sua Ordem
Terceira, pelas confrarias desta freguesia e vinte e quatro sacerdotes”,
além de terem sido rezadas pela sua alma sessenta e três missas de
corpo presente.8
Assim como no governo de Vasconcelos, algumas fações da
elite local fariam alianças com o representante do poder régio. Neste
caso, a rede envolvia o próprio governador Bivar, Pedro Botelho de
Lacerda (irmão de Manuel Botelho de Lacerda) e o próprio governador
de Buenos Aires, José de Andonaegui (Prado, 2002, p. 182-184).
Os excluídos da rede do governador, que compunham “um bando
de mercadores” liderados por Domingos Fernandes de Oliveira, não
icariam de mãos atadas, pois publicariam uns “capítulos escandalosos
e infamatórios” acusando Bivar de toda sorte de irregularidades. Logo
nos primeiros anos do seu governo, começam a surgir as acusações
do seu envolvimento em práticas consideradas ilícitas. As denúncias
começaram no inal de 1752, com as queixas formuladas pelo pároco da
Colônia, João de Almeida Cardoso. Além das arbitrariedades cometidas
no trato com os eclesiásticos, lembrava o padre que “só cuida o
Governador em sair bem lucrado do governo”. Isso aconteceria porque
“as embarcações Reais continuamente se empregam em o transporte
de contrabandos, de que ele mesmo Governador recebe os fretes, que
são importantíssimos”. Sobre a relação de Bivar com os negociantes,
explicava que os víveres que chegavam à praça eram tomados pelo
governador de forma violenta, pagando pelos mesmos o valor que
desejava, para depois “os mandar vender ao Povo por alto preço”.
Assim, impotentes, “os mercadores eram obrigados a assistirem de sala
(...) não por outro im mais que para se isentarem de tão grande pensão,
com o tributo de dinheiro que particularmente lhes era imposto”.9
8
ACMRJ. Livro 3º de óbitos da Colônia de Sacramento, 1752-1777. Registro de 16.02.1760.
AHU-RJ. Cx. 46, doc. 4724. CARTA do chanceler da Relação do Rio de Janeiro, João [Pacheco] Pereira [de Vasconcelos], ao rei [D. José], informando seu parecer sobre as irregularidades e violências cometidas pelo governador da [Nova] Colônia do Sacramento, Luís Garcia de
Bivar (15.10.1753). Em anexo, consta a carta do pároco da Colônia, João de Almeida Cardoso,
datada de 28.12.1752.
9
238
O governador Bivar, provavelmente sabendo da articulação
que se gestava contra ele, resolveu contra-atacar e providenciou
uma “atestação” registrada em cartório, onde era isentado das graves
acusações que lhe imputavam. O atestado, registrado pelo tabelião
da praça, vinha com as assinaturas de mais de uma centena e meia de
signatários, entre eles os principais oiciais militares e de ordenanças,
membros do clero secular e regular, além de muitos homens de negócio
da Colônia.10 Como militar de carreira, não parece estranho o fato de
que a maior parte da oicialidade de primeira linha tenha apoiado o
governador, assim como muitos dos oiciais de ordenanças (alguns
deles também homens de negócio).11 Quanto aos eclesiásticos, poucos
foram os sacerdotes seculares que apoiaram Bivar, provavelmente em
função da animosidade que lhe era movida pelo pároco da freguesia.
Mas o clero regular estava em peso com o governador, a começar pelos
membros da Companhia de Jesus, na igura dos padres superior, do
procurador e do mestre de Gramática. Compunham ainda com Bivar os
padres comissários das Ordens Terceiras do Carmo e de São Francisco.12
Mas interessa aqui conhecer os comerciantes que apoiaram em
peso o governador acusado. Entre aqueles que assinaram o documento,
foi possível contabilizar ao menos 39 indivíduos pertencentes ao “bando”
do governador, ou seja, praticamente metade da comunidade mercantil
10
AHU-RJ/CA, Cx. 74, doc. 17060. ATESTADO dos oiciais militares da guarnição da Nova
Colônia do Sacramento, de pessoas eclesiásticas e seculares de distinção e do povo da mesma
Praça, sobre o governo de Luiz Garcia de Bivar, 27.12.1753.
11
As companhias de ordenanças na Colônia do Sacramento foram criadas em 1719, durante o
governo de Manuel Gomes Barbosa. Inicialmente existiram somente duas companhias, mas
com o desenvolvimento da povoação foram criadas outras, a partir de critérios geográicos
(caso da companhia “extra-muros”) e de hierarquização social (companhias de mercadores e de
“homens pretos e forros”). Para maiores informações sobre o papel das ordenanças na América
portuguesa, ver MELLO, 2006, pp. 29-56.
12
Os jesuítas estavam presentes na Colônia desde a expedição de Manuel Lobo, sendo que a sua
casa foi reconstruída em 1717, quando da re-fundação da praça. Os franciscanos estabeleceram-se a partir de 1697, na época do governador Francisco Naper de Lancastre, sendo que uma ilial
da Ordem Terceira franciscana existia desde 1747 (ou 1751, segundo monsenhor Pizarro). Por
im, registra-se a presença dos carmelitas na Colônia desde 1725, sendo que também existiu
na praça uma ilial da Ordem Terceira carmelita, criada em 1750. Cf. POSSAMAI, 2006, pp.
304-313 e MARTINS, 2009, p. 319.
239
em ação na década de 1750. Do lado de Bivar estavam poderosos
homens de negócio, o que deve ter pesado no encaminhamento do seu
caso na Corte, pois ele não só permaneceu no poder, como governou até
os seus últimos dias de vida. Alguns exemplos: do seu lado estavam as
companhias mercantis representadas por Eusébio de Araújo Faria e João
Francisco Viana13, ambos familiares do Santo Ofício. Também estava ao
lado do governador o capitão de ordenanças da estratégica ilha de São
Gabriel, o negociante José de Barros Coelho, tido como “homem bom”
da praça. Outro potentado que o apoiava era o também “homem bom”
e familiar, o capitão Simão da Silva Guimarães, que tinha sociedade
no Rio de Janeiro com Francisco Xavier Lisboa. Todavia, não obstante
esses apoios de peso é preciso ressaltar que metade da comunidade
mercantil não perilhou com o governador.
Bivar escreveu ainda uma longa carta para o secretário Diogo
de Mendonça Côrte Real, onde procurou refutar, uma a uma, as
acusações que seus adversários procuravam vincular ao seu governo.
Esses adversários foram designados como “um bando de mercadores
de que era cabeça Domingos Fernandes de Oliveira, seguido de Manuel
Rodrigues Lisboa, Bartolomeu Moreira, Antônio da Costa Guimarães,
Carlos Pereira de Andrade, João de Freitas Guimarães”, que segundo
o governador “procuraram sempre impugnar as minhas resoluções,
avaliando injustos os procedimentos que com eles tive”. Em seguida,
Bivar tentaria desqualiicar os acusantes, evidenciando quais foram suas
atitudes que desagradaram ao “bando”: execução de dívidas antigas
(caso de Domingos Fernandes) e intervenção na cobrança indevida
do resselo14 (no caso de Manuel Rodrigues Lisboa). No que tocava
ao resselo, lamentava-se dizendo que “porque quero defender estes
13
As trajetórias de João Francisco Viana e seu sobrinho, Joaquim Vicente dos Reis, são ilustrativas das possibilidades de enriquecimento daqueles que se envolviam no comércio platino.
Após a perda da praça, Viana e o sobrinho tornaram-se grandes proprietários nos Campos dos
Goytacases: em 1781, Joaquim Vicente dos Reis, que também atuou na Colônia, comprou, com
dois sócios (um deles, o próprio tio), os bens dos jesuítas na região, constantes de terras, engenho, gado e aproximadamente 1500 escravos. Quando do seu falecimento, em 1813, Reis era
dono de uma fabulosa fortuna, que atingia quase 1000 contos de réis! Cf. FARIA, 1998, p. 202.
14
O resselo incidia sobre as fazendas que ingressavam na Alfândega da Colônia do Sacramento.
240
7500 cruzados para a Fazenda Real me acusam os mercadores de mau
defensor de El-Rey”. Outro ponto de atrito referia-se às “contribuições”
que os negociantes tinham que fazer periodicamente para que o governo
pudesse honrar os pagamentos da guarnição e necessidades da praça:
“Os lançamentos que faço cada seis meses por um [rateio] para o
sustento desta guarnição também contribui muito para malquistar-me
com [alguns] destes comerciantes, porque sempre se queixam de mais
carregados do que os outros”.15
Continuando sua defesa, o governador elencou ainda outros
motivos para o entendimento das acusações de que era alvo: “Também
contribui muito para inimizar-me o procedimento que tive contra
o alferes Manuel de Almeida Cardoso e seu irmão, o padre vigário
da Igreja Matriz, os que izeram nesta Praça um crime de assuada
e ferimento a Antônio José Ribeiro”. Feitas as investigações, que
envolviam o próprio pároco da Colônia, “remeti ao Bispo a culpa do
padre vigário, de que ainda hoje não está livre, por isso se declara
contra mim toda a família dos Almeidas, que é mui dilatada, me
seguiram e seguem o partido dos seis mercadores meus acusantes”.
Após estes esclarecimentos, que procuravam mostrá-lo como defensor
da justiça, Bivar passou a defender-se das acusações pontuais que lhe
atingiam. Negou veementemente que embolsasse os fretes e estivesse
acobertando o contrabando, pois observou que “a Praça tem muitas
lanchas que carregam o que querem, embarcações castelhanas e até
as mesmas corsárias vem aqui todos os dias levar e trazer o que a
ambas as Nações é conveniente”. Ou seja, se existia contrabando, ele
15
O sucessor de Bivar, o brigadeiro Vicente Fonseca, manteve a prática de ratear entre os negociantes a quantia de 50 mil cruzados para pagamentos das despesas, com a emissão de letras
que seriam descontadas no Rio de Janeiro. No entanto, para evitar que os empréstimos recaíssem sempre entre os mesmos homens, observou que “tenho acertado em fazer esta distribuição
pelas cargas dos navios que vierem vindo e pelos mercadores volantes que vem com fazendas
da frota”, pois assim “o tempo que se não faz o geral rateio vão aqueles sem fazerem nenhum
empréstimo, caindo o todo nas pessoas que aqui existem, que me pareceu justo, tendo uns e
outros igual interesse”. AHU-CS. Cx. 6, doc. 513. OFÍCIO do governador da Nova Colônia do
Sacramento, Vicente da Silva Fonseca, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar, Tomé
Joaquim da Costa Corte Real], 15.04.1760.
241
era generalizado e não restringia-se às embarcações reais. Mais ainda,
airmou que “os couros que os castelhanos vem vender a esta Praça, os
compra qualquer pessoa que com os vendedores se ajustam, sem que
ninguém os estorve ou violente”.
Partindo para o contra-ataque, o polêmico governador anotou
que “culparam-me de ambicioso e de fraudador da Fazenda de S.M. e do
próximo estes mercadores, [o que] para se fazer crível seria necessário
que assim declarassem todos os militares, pessoas eclesiásticas e
principais deste povo, e o grande número de homens de negócio que
há nele de conhecida honra”. Referia-se, nesse ponto, à “atestação”
que enviara a Lisboa, com os juramentos das pessoas honradas que lhe
absolviam de qualquer irregularidade. Lembrou ainda que, sempre que
possível, ajudava os mercadores, pois “tenho livrado da represália do
Governador de Buenos Aires um grande número de lanchas, e algumas
até com sua importante carga, e digam-no todos estes indivíduos se por
este serviço que lhes tenho feito lhe tenho aceitado nem ainda um vocal
agradecimento”.
Finalizando sua defesa, desabafou dizendo que “todo este povo
sabe que não faço negócio algum, e que os meus criados estão pobres,
sem terem outra coisa de seu mais que o que lhes dou, e são os mesmos
que há 27 anos e 28 me tem servido”. Garantiu ainda que passava por
sérias diiculdades inanceiras, porque “com os soldos de S.M. e com os
proventos que todas as frotas me vem da minha casa para vestir e comer
me tenho mantido, porém presentemente sabem os meus credores
nesta Praça que estou empenhado e para satisfazer minhas dívidas que
devo”. Desolado, concluía que “estas são as riquezas que tenho tirado
da Colônia e o muito que me tem luzido os furtos que estes insolentes
falsários querem imputar-me”.16
Sem saber em quem acreditar exatamente ou procurando obter
uma informação menos parcial, o secretário Corte Real solicitou alguns
esclarecimentos ao capitão-general Gomes Freire, que naquela altura,
16
AHU-CS, Cx. 5, doc. 480. OFÍCIO do governador da Nova Colônia do Sacramento, Luís
Garcia de Bivar ao secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Diogo de Mendonça Corte
Real, sobre as acusações de que tem sido alvo por parte de alguns mercadores [c. 1754].
242
estava envolvido na demarcação do Tratado de Madri e encontravase na Colônia. O futuro Conde de Bobadela, possivelmente tendo em
vista os interesses maiores da administração portuguesa, observou que
“vendo a precisão que eu tinha de conservar inteira harmonia com
aquele oicial [Bivar]”, pois precisava tê-lo ao seu lado para o sucesso
dos trabalhos demarcatórios, cuidou “em não ouvir as sugestões de uma
grossa parcialidade que ali há de Comerciantes, do vigário da Igreja,
e também da sua oculta cabeça, que são os padres da Companhia”.17
Essa postura do capitão-general mostrou-se acertada, pois o governador
Bivar “não achando rastro de que eu prestasse ouvidos a sugestões,
continuou o serviço gostoso, e executou com trabalho e acerto todas
as partes que nele lhe encomendei”. Todavia, atento às possibilidades
de descaminhos, não pode deixar de comentar que “a residência de
catorze meses em praça tão pequena me deu a ver que aquele governo
furtivamente pode dar interesses ao Governador e seus dependentes”.
Na sequência, em uma passagem notável, Gomes Freire fez uma
interessante apreciação sobre os administradores da parte meridional
da América portuguesa: “O estudo dos Governadores do Sul é todo
eximirem-se da jurisdição do General; fazendo ver às tropas e povos que
deles tudo depende, e que o Capitão General não tem arbítrio mais que na
remessa das consignações”. E, de forma certeira, diagnosticou que, em
decorrência “da falta de subordinação é que nascem alguns dos interesses
e liberdades dos Governadores”. No caso da Colônia do Sacramento, o
problema maior seria a excessiva concentração de poderes nas mãos
de uma única pessoa, pois o governador era também o Vedor Geral, “e
só os Hospitais são bastante causa para se por um iscal da Fazenda,
pois os criados do Governador, um é escrivão dos mantimentos, outro
cirurgião e enfermeiro, e é aquela despesa considerável”. Observador
perspicaz, o capitão-general informou ainda que “como o Governador
vai caindo em achaques, os seus criados se interessam enquanto podem.
17
Nesse aspecto, ao tentar explicar quem estaria por trás da movimentação contra Bivar, parece
que Gomes Freire estava aparentemente mal informado (o que parece pouco provável) ou talvez tivesse incorporado na sua linguagem oical o topos anti-jesuítico que caracterizou o período pombalino e culminaria com a expulsão dos inacianos dos domínios portugueses em 1759.
243
O principal envolvido era o alferes João Roiz, considerado por Gomes
Freire como homem “malíssimo”. Terminava dizendo que o alferes e
seus comparsas “tem captado inteiramente o espírito do amo; estes é
que eu creio hão de sair da Colônia com cabedal, e o amo tirará o com
que entrou”.18
O brigadeiro Vicente Fonseca, que sucedeu a Bivar, deixou
uma impressão condescendente acerca das práticas administrativas do
governador que lhe antecedeu. Em uma carta ao secretário de estado, o
novo governador, que tomou posse no início de março de 1760, relatava
as diversas irregularidades que encontrara, além de “outros muitos
roubos e descaminhos evidentemente claros, não que neles entrasse
o meu antecessor”. Chamando atenção para a diferença geracional e
talvez querendo impressionar a Coroa, Fonseca explicou que “os seus
anos não permitiam fazer as diligências que eu faço”. Segundo o novo
governador, as pessoas “se aproveitavam da caduca idade, que consigo
trás esquecimentos”, além de “uma nociva bondade, de que todos se
abusavam e se metiam no governo”.19 Seja como for, Luís Garcia de
Bivar foi mantido no seu cargo e seus inimigos tiveram que aceitar
sua presença e a exclusão dos lucrativos negócios que a praça platina
propiciava. As redes de poder e de mando cruzavam-se com as redes
mercantis em uma escala ampliada na Colônia, fato que não escapava
à Coroa, que manteve enquanto foi possível sua rentável possessão no
rio da Prata.
18
CARTA do capitão-general Gomes Freire de Andrada para o secretário Diogo de Mendonça
Corte Real (26.12.1754) in: Rego Monteiro, A Colônia do Sacramento, vol. 2, doc. 54. Gomes
Freire advertiu que Bivar somente não enriquecera, pois havia “gasto o adquirido nos divertimentos que (...) segue a loucura de sua mulher”.
19
AHU-CS. Cx. 6, doc. 513. OFÍCIO do governador da Nova Colônia do Sacramento, Vicente
da Silva Fonseca, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar, Tomé Joaquim da Costa
Corte Real], 15.04.1760.
244
SEGUNDA PARTE
Economia e Estratégias Políticas
A estratégia dos Habsburgo para a América portuguesa.
Novas propostas para um velho assunto.
José Manuel Santos Pérez
Universidade de Salamanca1
O Período Filipino já é uma categoria na historiograia do Brasil
colonial. O termo “ilipino”, tão comum na historiograia portuguesa
ou brasileira, não é usado pela historiograia espanhola, que prefere os
termos União Ibérica, União Dinástica ou União das Coroas. O termo
soa velho… A memória leva às histórias antigas de Ferreira Martins, ou
à obra, não suicientemente reconhecida, de Joaquim Verissimo Serrão.
Depois de tudo o que foi escrito, é possível dizer ainda coisas
novas sobre a União Ibérica? Em história sempre é possível encontrar
novas hipóteses, mas devemos sair das velhas questões. A velha
historiograia se ocupou muito da questão da autonomia portuguesa
e da suposta negligência dos Felipes para a defesa das possessões
portuguesas em ultramar.
Já sabemos que a autonomia portuguesa não foi completamente
respeitada (mesmo se podemos discutir bastante sobre essa questão já que
muitas das reformas feitas na administração levaram em consideração
os acordos da anexação), e já sabemos (há muito tempo) que a América
portuguesa não foi marginalizada: muito pelo contrário, foi considerada
como parte essencial do império pelos Habsburgo de Madri.
Portanto essas questões não deveriam igurar mais na agenda
dos historiadores. Nos últimos anos vários historiadores jovens, e
alguns já não tanto, estão trabalhando em projetos importantes sobre
este período que ainda atrai a atenção dos historiadores, talvez porque,
mesmo sendo já um período com uma importante produção, ainda tem
algumas questões importantes a serem respondidas.
Por um lado, são escassos os estudos regionais e locais: fora
das áreas centrais, Pernambuco e Bahia, não temos um conhecimento
1
Agradeço a Kalina Vanderlei pela revisão do texto em português.
247
preciso do que estava acontecendo durante esses anos. Mas a tese de
Rafael Ruiz sobre São Paulo na Monarquia Hispânica abre um caminho
muito interessante.2 Os trabalhos de Rafael Chambuleyron3 e de Alirio
Cardoso4 sobre Maranhão e Pará estão abrindo também novos horizontes
numa região que teve uma enorme importância nos anos do reinado
de Felipe III e Felipe IV (II e III de Portugal). É importante destacar
também o trabalho de Regina Célia Gonçalves, Guerras e Açúcares
sobre a Paraíba de 1585 a 1630.5 Além disso, o trabalho clássico de
Veríssimo Serrão sobre o Rio de Janeiro merece um aggiornamento.
Por outro lado, precisamos saber muito mais sobre a coniguração
do poder e sobre os homens que protagonizam o período. As redes
familiares funcionaram também, é claro, neste período. A coniguração
da rede mercantil é ainda pouco conhecida, mesmo se depois dos
trabalhos de Leonor Freire Costa, e outros, sabemos que houve uma
renovação importante depois da primeira crise do açúcar nos anos
vinte.6
Sabemos que os cargos eram oferecidos para a venda.
Precisamos de mais informações, mais trabalho prosopográico. Mesmo
se a prosopograia já está começando a se esgotar como ferramenta
metodológica na historiograia da América espanhola, acho que ainda
temos um caminho a percorrer no caso da América Portuguesa. É claro
que qualquer estudo dos cargos administrativos vai nos levar às relações
2
RUIZ GONSALEZ, Rafael, São Paulo na Monarquia Hispânica, São Paulo, Instituto Brasileiro de Filosoia e Ciência Raimundo Lulio, 2004.
3
CHAMBOULEYRON, Rafael, “Conquista y colonización de la Amazonia Portuguesa (siglo XVII)”, in: SANTOS PÉREZ, José Manuel & PETIT, Pere (Eds), La Amazonia Brasileña
en Perspectiva histórica, Salamanca, Ediciones Universidad de Salamanca/Aquilafuente, 2006,
pp. 11-22.
4
CARDOSO, A. “Uma nova Província para o Império: Conquista e problemas de fronteira
no Maranhão na época de Felipe III (1598-1621)”, dissertação de mestrado, Universidade de
Salamanca, 2010.
5
GONÇALVES, Regina Célia, Guerras e Açúcares. Política e economia na Capitania da
Parayba, 1585-1630, Bauru, SP, EDUSC, 2007.
6
FREIRE COSTA, Leonor, “El imperio portugués: estamentos y grupos mercantiles” En
Martinez Millán, José y Visciegla, Mª Antonieta, (dirs.) La monarquía de Felipe III. Los reinos,
vol. IV, pp. 859-882.
248
com as elites locais e devemos aprofundar o conhecimento de qual foi o
papel dessas elites na coniguração do poder durante a União dinástica.
O trabalho de Kalina Vanderlei Silva será importante para saber o que
pensavam essas elites pernambucanas que, conscientes da importância
da capitania de Pernambuco no conjunto do império, queriam se
apresentar como elites “modernas”, conectadas com a Europa e com a
corte.
Do outro lado do oceano, precisamos de um conhecimento
maior sobre a “imagem” que o Brasil mantinha perante as autoridades
monárquicas. No terreno das “representações” é fundamental a excelente
tese de Guida Marques na École des Hautes Etudes.7 Sabemos
que era muito forte a ideia de que o Estado do Brasil podia ser “um
outro Peru” e talvez muitas das decisões tomadas nos primeiros anos
tenham sido motivadas por esse fato. Entraria aí inclusive a divisão
administrativa em dois estados. Essa divisão, ponto fundamental, deve
ser melhor explicada. Pelo que parece, na concepção que as autoridades
tinham do território da América portuguesa, estava muito claro que o
Grão Para e Maranhão e o Estado do Brasil eram regiões totalmente
separadas e independentes, e deviam ser consideradas assim para uma
melhor organização territorial, antes mesmo da divisão. Mas ao mesmo
tempo, sabemos que as autoridades pernambucanas estavam muito
interessadas na conquista do norte, no que parece mais uma questão
de sub-imperialismo... Os conlitos entre interesses locais e estruturas
imperiais aparecem nitidamente neste importante assunto.
Para uma melhor compreensão dessa questão, da “imagem” do
Brasil na corte dos Habsburgo, estamos trabalhando nos últimos anos num
projeto de pesquisa inanciado pela Junta de Castela e Leão.8 O trabalho
7
MARQUES, Guida. “L’Invention du Bresil entre deux monarchies. Gouvernement et pratiques politiques de l’Amérique portugaise dans l’union iberique (1580-1640)”. Paris, Tese de
doutorado inédita apresentada a Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris, 2009.
8
Projeto: LAS RELACIONES HISPANOBRASILEÑAS EN PERSPECTIVA HISTORICA.
HISTORIAS COMUNES Y REPRESENTACIONES MUTUAS EN DOS PERIODOS CRUCIALES: SIGLOS XVII Y XIX, Junta de Castilla y León, ref. SA023A08. As fontes consultadas para este texto vem principalmente do Archivo General de Simancas (AGS), seção
Secretarías Provinciales, legs: 1476-1507, Cartas y consultas de SM.
249
feito tem sido, fundamentalmente, a partir da análise da correspondência
relativa ao Brasil mantida entre os reis e os conselhos das Índias e de
Portugal, os diferentes vice-reis de Portugal, os governadores do Estado
do Brasil e outras autoridades. A pesquisa concentrou-se no reinado de
Felipe III (II de Portugal), período muito interessante porquanto nele
começam processos de reforma para o conjunto do território português
na América e porque ainda não existiam os graves problemas que teve
que confrontar Felipe IV (III de Portugal). A pesquisa não terminou
ainda, mas já foram sistematicamente analisados os anos 1602 a 1608,
durante os quais podemos ver quais eram as preocupações da Coroa e
da corte habsbúrguica no que se refere a essa região americana.
A nossa questão principal é: Qual era a consideração da America
portuguesa dentro do império habsbúrguico de ultramar? Quais eram
as preocupações maiores que o território apresentava? E ainda qual
foi a estratégia geral que os Habsburgo desenvolveram para a América
portuguesa? E também: a experiência na América espanhola foi
importante para desenvolver as políticas para a America portuguesa?
Já se airmou que o Estado do Brasil representava uma boa
aquisição para os Habsburgo, tanto pela riqueza econômica quanto pela
importância estratégica… Como disse o historiador espanhol Rafael
Valladares: da mesma forma que Portugal para a Península Ibérica o
Brasil seria o complemento defensivo perfeito para o desenvolvimento
da estratégia imperial do Rei Católico. O problema é bem mais
complexo. A América portuguesa podia proteger a região das minas,
mas também devia ser protegida. O sistema defensivo da América
portuguesa era muito fraco e exigia a construção de um sistema de
defesa para controlar o território e evitar a conquista pelos numerosos
inimigos que estavam no mesmo. Parece que a preocupação era grande.
Durante os últimos anos do reinado de Felipe II (I de Portugal) e de
Felipe III (II) houve uma grande atividade de construção de fortalezas,
sendo enviadas várias frotas de socorro, e são numerosas as informações
que chegavam das embaixadas europeias sobre planos dos inimigos da
monarquia para enviar frotas.
250
Tudo isso fazia com que el Rey estivesse constantemente
reclamando mais esforços para a defesa de um território considerado
“as costas do Peru”; escudo de defesa, sim, mas também a porta de
entrada para o território das minas. Além disso, o Estado do Brasil
deveria ser defendido porque se pensava que tinha importantes jazidas
minerais, que era “um outro Peru”.
Essa questão da defesa do território era considerada como a
questão fundamental na política e na estratégia dos Habsburgo para a
América portuguesa, segundo estamos comprovando em nosso projeto
de pesquisa atual.
Mas para a Monarquia Hispânica a defesa do território devia ser
inanciada localmente. Apenas a defesa naval era (em teoria) garantida
pela Coroa. Isso nos leva à segunda grande questão que confrontou os
Habsburgo: a econômico-inanceira e, ligada a ela, a coniguração do
poder imperial dentro do território. Podemos dizer que nos documentos
transluz a ideia do Estado do Brasil como um território promissor, com
importantes possibilidades de crescimento econômico e portanto de
arrecadação, mas onde o sistema iscal estava numa situação muito
complicada. A questão iscal ocupa uma importante quantidade de
cartas: Felipe III se mostra inquieto com o arrendamento do paubrasil e com a as quantidades arrecadadas por dízimos, e reclama
constantemente relatórios de contas aos agentes oiciais, nos quais
(além do provável ocultamento de informação que os agentes fazem)
el Rey encontra dados muito preocupantes. A arrecadação era escassa,
segundo dizem alguns, muito aquém da que deveria ser se o sistema
fosse limpo e eicaz. A corrupção está presente e até os governadores
parecem estar implicados nos desvios. Como já é conhecido, a Coroa
controlou diretamente a exploração do Brasil durante alguns anos, e
chegou a enviar a um visitador, Sebastião de Carvalho, em 1606, para
depurar as responsabilidades dos desvios.
Achamos que essa igura do “visitador” real faz entrar a
América portuguesa dentro do modelo de império que os Habsburgo
mantinham na América espanhola. Para o controle dos burocratas reais
251
existiam duas iguras fundamentais: a “residência” (isto é: o julgamento
que um oicial fazia do seu antecessor no cargo) e a “visita” (o envio
de um oicial que tinha plenos poderes no território para investigar os
possíveis casos de corrupção). Tanto uma como outra iguras foram
introduzidas na América portuguesa. Os Habsburgo coniavam muito
que elas exercessem um poder efetivo nos domínios de ultramar. A
velha historiograia hispana sobre as instituições considerava essas
iguras administrativas como o melhor exemplo da eicácia do império
burocrata renascentista dos Habsburgo. O historiador Leddy Phelan nos
anos 60, e em uma enorme quantidade de trabalhos nos anos 70 e 80,
demonstrou que na verdade a venda de cargos e a corrupção generalizada
e permitida pela Coroa eram a essência do império habsbúrguico de
ultramar. Elas coniguravam uma estrutura na qual as redes familiares
dominavam os cargos burocráticos para o seu próprio proveito.
Se foi assim, ou começava a ser assim na América portuguesa,
é algo que ainda não sabemos e devemos avançar na pesquisa para um
melhor conhecimento.
E inalmente o terceiro tema que conigura a preocupação da
Coroa habsbúrguica, fundamentalmente dos primeiros dois felipes,
era a política indígena. O historiador Rafael Ruiz viu que para São
Paulo era exigida uma política para com os indígenas parecida a que
o virrey Toledo aplicou no Peru a partir das reformas dos anos 70:
intervenção direta da Coroa, pouca ou nenhuma intervenção por parte
das ordens religiosas, etc… O que daria mais espaço para a monarquia
na exploração econômica: isso seria a causa dos alvarás de 1609 e 1611,
tão importantes para o desenvolvimento futuro dos eventos.9
Na correspondência temos outras muitas questões difíceis de
resumir aqui e que ainda precisam ser analisadas, como por exemplo
informações sobre comércio direto que parece ter existido entre o Brasil
9
RUIZ GONSALEZ, Rafael, “La política legislativa con relación a los indígenas en la región
sur de Brasil durante la unión de las coronas (1580-1640)”, Revista de Indias, vol. LXII, nº
224 (enero-abril de 2002), pp. 17-40; BONCIANI, Rodrigo F., O Dominium sobre os Indígenas
e Africanos e a especiicidade da soberania régia no Atlântico. A colonização das ilhas à política ultramarina de Felipe III (1493-1615), Tese de doutorado, USP, 2010.
252
e Cadiz, sobre minas de ouro nas mais diversas regiões do território,
conlitos entre autoridades civis e eclesiásticas, e outras muitas
questões...
Para futuras pesquisas sobre o período da União Ibérica no
Brasil as minhas propostas são:
Que o período precisa ser estudado desde um ponto de vista
comparativo: porque é claro que as autoridades em Madri tinham uma
prática do império que podia e devia ser aplicada na América portuguesa;
Que é necessário um maior esforço no estudo das elites. A
historiograia sobre a América espanhola avançou muito nos últimos
anos e temos já um mapa muito preciso das conexões e das redes
familiares que precisamos fazer também para a América portuguesa.
A comparação seria interessante, sobretudo levando-se em conta que a
venda de cargos se generaliza na América espanhola a partir de 1591, e,
pelo que parece, já é muito comum na América portuguesa a partir do
inicio do século XVII;
Que devemos desconstruir temporalmente: não é mais possível
falarmos da “União Ibérica” como um período homogêneo. Devemos
falar de reinados, e talvez melhor, de governadores, se queremos entrar
na essência do conjunto…
Mas ao mesmo tempo, e inalmente, devemos construir melhor a
visão da América portuguesa: olhando para Ocidente ao mesmo tempo
em que para o Oriente, já que as redes comerciais trabalhavam assim,
buscando as melhores oportunidades a um lado e outro do Cabo de Boa
Esperança. Um esforço maior na linha das connected histories ajudará
a entender melhor esse, ainda interessante, período da historia colonial
do Brasil.
253
A América açucareira portuguesa
no governo de Felipe IV de Espanha1
Kalina Vanderlei Silva
Universidade de Pernambuco
Em 1621 Felipe IV de Espanha, III de Portugal, foi coroado em
Madri, herdando, entre a vastidão de terras pertencentes aos impérios
espanhol e português, a área canavieira da América portuguesa: larga
faixa litorânea que se estendia paralela ao Atlântico, desde o Recôncavo
baiano até as lavouras de cana nas várzeas da Capitania de Pernambuco
e suas anexas. Uma área que então ainda estava em expansão, baseada
na ruralidade das fazendas canavieiras, mas também espaço de núcleos
urbanos crescentes.
Em torno das capitanias de Pernambuco – a mais bem sucedida
das capitanias privadas – e da Bahia – a capital do Estado do Brasil
– circulavam grande parte dos assuntos da administração ilipina na
América portuguesa. E no momento em que o novo rei ascendia ao
trono, Olinda, herança da família Albuquerque Coelho, comandava a
maior população colonial da América portuguesa e a mais rica economia,
atraindo os próprios governadores gerais que então relutavam em se
ixar em Salvador.2
Com a coroação de Felipe IV o diálogo entre elites locais e
Coroa se intensiicou, travado por intermédio dos senhores do açúcar
que viviam na Corte e dos idalgos da Casa Real enviados como
governadores para Pernambuco e Bahia. Tais senhores juravam lealdade
aos Habsburgo, esmerando-se em prestar serviços diversos à Espanha
em troca de mercês. Caso de Gabriel Soares de Souza na Bahia e dos
Pesquisa inanciada pela Fundación Carolina/Espanha, desenvolvida com o apoio do Departamento de Historia Medieval, Moderna y Contemporánea/Facultad de Geografía e Historia,
Universidad de Salamanca sob orientação do Prof.º Drº José Manuel dos Santos Pérez – USAL.
2
Cf. DUTRA, Francis. Notas sobre a Vida e Morte de Jorge de Albuquerque Coelho e a Tutela de seus ilhos. Separata da Stvdia – Revista Semestral. Lisboa, N. 37, Centro de Estudos
Históricos Ultramarinos, dezembro de 1973. pp. 265-267. E SERRÃO, Joaquim Veríssimo. Do
Brasil Filipino ao Brasil de 1640. São Paulo, Companhia Editora Nacional. 1968.
1
255
Albuquerque Coelho em Pernambuco.3 No entanto, se essa relação
seria intensiicada a partir de 1624, com as incursões da Companhia
das Índias Ocidentais – a holandesa WIC – às possessões ilipinas na
América portuguesa, esse episódio também marcaria seu im, e o próprio
im do poderio espanhol no mundo do açúcar. Isso porque, durante o
governo de Felipe IV, a crise pela qual passava a Monarquia Católica
– inanceira e política, intensiicada pela guerra com os Países Baixos –
enfraqueceu o poderio bélico do império, impedindo que a Coroa dual
resgatasse suas possessões açucareiras tomadas a partir de 1630. 4
O primeiro momento da invasão da companhia holandesa teve
como alvo a capital do Estado do Brasil. Durou um ano, de 1624 a
1625, assolou a cidade, mas foi barrada pelo poderio da armada de
restauração enviada pelo rei. Essa invasão, todavia, estava longe de
ter sido uma surpresa para a Espanha, já que a coroação de Felipe IV
coincidiu com o im da trégua com a Holanda. Desde então a Coroa
considerava a possibilidade de uma incursão inimiga à costa oriental
da América portuguesa. Isso levou a toda uma preparação para a defesa
da região, um dos pontos mais vulneráveis da América habsbúrguica.
Assim, em 1623 o rei ordenou que o Governador Geral, então Diogo de
Mendonça Furtado, tomasse as providências necessárias para defender
tanto a Bahia quanto Pernambuco, passando a mesma ordem para
Matias de Albuquerque, que então estava em Olinda a duplo serviço da
Coroa e de seu irmão donatário.5
Logo, em maio de 1624, a frota da WIC arribou à costa da Bahia
com mais de vinte naus. Assim que foi avistada, o Governador Geral
teve tempo de reunir três mil homens e organizar a defesa nos fortes da
3
Para Gabriel Soares e os serviços prestados aos Habsburgo, cf. RAMINELLI, Ronald. Viagens
Ultramarinas – Monarcas, Vassalos e Governo a Distância. São Paulo, Alameda. 2008. p. 37.
4
Para a crise da Monarquia Católica, cf. MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda Restaurada –
Guerra e Açúcar no Nordeste 1630/1654. Rio de Janeiro, Topbooks. p. 31; ELLIOTT, J.H. La
España Imperial – 1469-1716. Madrid, Biblioteca de Historia de España. 2006. pp. 348-390.
Ver também SANTOS PÉREZ José Manuel; SOUZA, George F. C. El Desafío Holandés al
Domínio Ibérico en Brasil en el Siglo XVII. Salamanca, Ediciones Universidad de Salamanca.
2006.
5
SERRÃO. Op. Cit. pp.184-186.
256
cidade. Mas isso não impediu que as naus holandesas bombardeassem o
porto e desembarcassem suas tropas, que rapidamente foram ganhando
espaço. Dois dias depois a maioria dos defensores e moradores já havia
fugido para o interior, logo após o que os invasores conseguiram prender
Diogo de Mendonça Furtado com outras autoridades, enviando-os para
a Holanda, enquanto a notícia se espalhava pelo Estado do Brasil.6
Testemunha do acontecimento, o franciscano Frei Vicente do
Salvador não deixou de recriminar o que considerou a covardia de colonos
e religiosos durante a invasão. Não esquecendo também de elogiar os
esforços de Mendonça Furtado para sustentar as defesas da cidade. E
com ironia descreveu a reação que esses esforços desencadearam nos
colonos em fuga:
“como [Furtado] se não pôs em um cavalo correndo e discorrendo
por toda a cidade que não lhe fugisse a gente, todos lhe foram
saindo, o que não podia ser sem que os capitães das portas e
mais saídas da cidade fossem os primeiros. E o bispo, que aquele
dia se fez amigo com o governador e se lhe foi oferecer com
uma companhia de clérigos e seus criados, pedindo estância
onde estivesse, e a quem o governador, agradecendo-lhe muito
o oferecimento, disse que em nenhuma parte podia estar melhor
que na sua sé, tão bem a desamparou, consumindo o santíssimo
sacramento e deixando a prata e ornamentos e tudo o mais. O
mesmo izeram clérigos e frades e seculares, que só trataram de
livrar as pessoas e algumas coisas manuais, deixando as casas
com o mais, que tinham adquirido em muitos anos. Tanto pode o
receio de perder a vida, e enim se perde tarde ou cedo, e às vezes
em ocasião de menos honra.”7
Ou seja, para Frei Vicente foi o despreparo dos colonos que levou
à queda da Bahia. E, ainda segundo ele, logo que recebeu a notícia de
que da Holanda partira uma armada da Companhia, Felipe IV mandara
alertar o Governador Geral para que este se preparasse, pois era quase
6
Idem. pp. 190-191.
SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil 1500-1627 [1639?]. São Paulo, Itatiaia.
1982. p. 362.
7
257
certo que o destino da armada seria o Brasil. Alerta ao qual Mendonça
Furtado dera a devida atenção, avisando o Rio de Janeiro, mandando
vir gente armada do Recôncavo e procurando distribuir suas forças
pelas fortalezas da cidade.8 Não deixou assim o cronista de registrar os
esforços do governador, perdidos, a seu ver, pela fraqueza dos colonos.
Na esteira desses acontecimentos, Matias de Albuquerque, em
Pernambuco, e Salvador Correia de Sá, no Rio de Janeiro, começaram
a organizar frotas para a retomada de Salvador. Enquanto isso, a notícia
chegava ao Reino, causava celeuma entre os comerciantes lisboetas e
era recebida com pesar por Felipe IV, que ordenou a reação imediata.9
Foi, então, Matias de Albuquerque nomeado Governador Geral,
enquanto, no Reino, aprestava-se a armada para restaurar a Bahia e
algumas caravelas eram enviadas para Pernambuco, levando a notícia
da preocupação do rei com o Estado do Brasil.10
Uma notícia que agradava a seus súditos no mundo do açúcar,
a julgar pelo discurso de Frei Vicente. Esse, no entanto, não deixou de
perceber os signiicados complexos por trás dessa inquietação de Felipe
IV com a América açucareira portuguesa:
“Sabida pelo nosso rei católico Felipe Terceiro a nova da perda
da Bahia, a sentiu grandemente, não tanto pela perda quanto
por sua reputação, por entender que os holandeses por esta via
determinavam diverti-lo das guerras que atualmente lhe fazia
em Holanda, ou que, por sustentá-la e acudir aos assaltos que
continuamente lhe faziam pela costa de Espanha, não poderia
acudir a estoutra, como eles diziam. E, assim, para desenganálos destes desenhos, mandou com muita brevidade aprestar suas
armadas, e que entretanto se mandasse de Lisboa todo o socorro
possível, não só à Bahia, mas às outras partes do Brasil, pera que
os rebeldes não tomassem pé no estado, nem ainda o lançassem
fora dos limites da cidade que tinham tomada, porque nisso
8
Idem. pp. 362; 366.
Para a reação de Felipe IV à perda da Bahia, cf. SERRÃO. Op. Cit.. p.193.
10
Diz Frei Vicente que traziam apenas 120 homens, 300 arcabuzes, além de pólvora, lanças e
piques. SALVADOR. Op. Cit., p. 381.
9
258
podiam perigar as fazendas dos engenhos de açúcar que estão no
recôncavo, de que tanto proveito recebem as suas alfândegas.”11
O historiador franciscano não deixava de entender, assim, o
interesse régio na proteção da Bahia como um efeito colateral de suas
atenções aos Países Baixos, antes mesmo do que uma preocupação com
as rendas produzidas pelo comércio do açúcar. Mas essa percepção não
diminuía sua alegria pelo que considerava a constância da apreensão de
Felipe IV com a Bahia, o que o levava também a enfatizar a boa acolhida
que essa preocupação recebeu por parte dos súditos portugueses: “Com
muita brevidade mandou Vossa Majestade aprestar suas armadas, assim
em Castela como em Portugal e Biscaia, para socorrer e recuperar a
Bahia do poder dos holandeses, dizendo que, se lhe fora possível, ele
mesmo houvera de vir em pessoa, o que foi causa de todos seus vassalos
se oferecerem à jornada com muita vontade.”12
Um discurso, esse desse frade egresso da Universidade de
Coimbra e correspondente de Manuel Severim de Faria, que reproduzia
as representações elaboradas pelos súditos portugueses, mesmo na
Bahia, acerca do amor do rei espanhol pelas terras açucareiras.13
Representações que alimentaram também o apuro do autor no registro
de como o rei se esmerara, após a guerra, em atender as solicitações de
mercê feitas pelos portugueses que haviam lutado na Bahia: “Não se
poderá ver maior demonstração de amor de Sua Majestade à coroa de
Portugal, pois sem consulta do estado, só pela do amor, foi servido de
seu motu próprio formar um real decreto tão favorável a esta coroa.”14
Nessas palavras ecoavam os artifícios retóricos da escrita cortesã
dos Seiscentos que perpassavam o texto de Frei Vicente. Em sua obra,
11
Idem.
Idem, p. 385.
13
Para a biograia de Frei Vicente, cf. ANDRADE, Luiz Cristiano Oliveira de. A narrativa da
vontade de Deus: a História do Brasil de frei Vicente do Salvador (c. 1630). Rio de Janeiro:
UFRJ / IFCS, 2004. E para uma análise das notícias dadas por Frei Vicente ao Reino, sobre a
conquista da Bahia, cf. MEGIANI, Ana Paula Torres. Das palavras e das coisas curiosas: correspondência e escrita na coleção de notícias de Manuel Severim de Faria. Topoi, v. 8, n. 15,
jul.-dez. 2007, pp. 24-48.
14
SALVADOR. Op. Cit., pp. 414-415.
12
259
divulgada em forma de manuscrito no Reino, pululavam elementos
comuns ao imaginário barroco ibérico: a ênfase na humildade do autor
e na prudência do personagem; a visão aristotélica de Estado que
embasava a Monarquia Católica; a celebração do rei como celebração do
Estado.15 Elementos que transiguravam seus louvores à preocupação
de Felipe IV com a América açucareira em uma fórmula discursiva que
procurava inserir sua região, o mundo do açúcar, no contexto global da
Monarquia Católica.
Entretanto, essa busca por inserção na órbita do Império
Habsburgo não signiicava que o autor negligenciasse seu pertencimento,
ou o do Estado do Brasil, a Portugal. De fato, o franciscano não deixou
de elaborar uma apologia às proezas da idalguia portuguesa ao enfatizar
sua participação na armada de restauração; contando e nomeando tais
personagens que, segundo ele, tão alegremente se haviam alistado e
doado suas fazendas para a empreitada, e pouco mencionando a armada
real de Espanha, apesar dessa constituir o grosso da frota enviada para
a América.16
A armada de restauração – mais tarde nomeada nas relações
encomendadas pelo rei como a Jornada dos Vassalos17 – foi a resposta da
Monarquia Católica à WIC. Composta pela frota espanhola comandada
pelo grande de Espanha D. Fradique de Toledo e pela frota portuguesa,
e uniicada em Cabo Verde em fevereiro de 1625 depois de muitos
atrasos, a armada se transformou na maior frota que o Atlântico já vira
até então – segundo Padre Antonio Vieira, depois da Invencível Armada
–, com seus 52 navios e mais de 12 mil homens.18
Na Bahia, principalmente na aldeia do Rio Vermelho onde os
colonos haviam organizado a defesa, a chegada das naus de D. Fradique
causou imediatamente uma tremenda impressão. Segundo o Padre
15
Cf. ANDRADE. Op. Cit.
Para a apologia aos idalgos portugueses na armada de restauração, cf. SALVADOR. Op. cit.,
pp. 385-391.
17
Cf.CAMENIETZKI, Carlos Ziller; PASTORE, Gianriccardo Grassia. 1625, o Fogo e a Tinta:
A Batalha de Salvador nos Relatos de Guerra. Topoi v 6, n 11, jul/dez 2005. pp. 261-288. pp.
271-272.
18
SERRÃO. Op. Cit., pp. 195-196; CAMENIETZKI; PASTORE. Op. Cit.
16
260
Antônio Vieira, testemunha tanto da tomada quanto da retomada da
cidade, era “a mais poderosa armada que até agora passou a linha.”19
E o ataque dos soldados de Felipe IV, associado aos defensores que
lutavam com o apoio de tropas irregulares de indígenas e africanos,
conseguiu retomar a cidade após cerca de oito dias.20
Mas a presença da armada de D. Fradique, imensa e pesada,
com um porte e um volume de homens de armas jamais visto nas costas
orientais da América do Sul, causaria tanta celeuma entre os colonos
quanto a dos próprios holandeses. Primeiramente porque os soldados
saquearem os armazéns da cidade, seguindo a prática costumeira na
Europa, o que repercutiu negativamente entre os colonos; e em um
segundo momento porque a própria presença de milhares de soldados
ibéricos nas costas do Brasil teve um impacto social ainda não totalmente
percebido pela historiograia.21
O episódio da reconquista da Bahia se provaria o momento de
glória da relação da América açucareira portuguesa com Felipe IV.
A Jornada dos Vassalos foi plenamente celebrada na Corte em uma
euforia transigurada em obras de arte encomendadas pelo rei, como a
peça de Lope de Vega e a tela de Maíno.22 Mas foi comemorada mais
na Corte, aparentemente, do que na própria Bahia, onde deixara como
saldo um grande número de soldados a serem sustentados, e idalgos
lusos e castelhanos que não queriam perder a oportunidade de fazer um
lucrativo comércio.23
E os problemas em Salvador se avolumavam: a necessidade de
reconstrução da cidade destruída; a urgência da manutenção de uma
estrutura defensiva que pudesse fazer frente a novas ameaças. E foi para
tentar sanar esse último problema que D. Fradique, antes de retornar
19
Cartas do padre Antonio Vieira. Tomo I, p. 42. 1925 apud SERRÃO. Op. Cit., p. 197.
SERRÃO. Op. Cit., p 197
21
Para a presença dos soldados de Castela na Bahia, Cf. CAMENIETZKI; PASTORE. Op. Cit.
22
Cf. TOVAR, Cristóbal Marín. El Cuadro de Batallas de Juan Bautista Maíno La Recuperación de Bahía y las Fuentes Literarias del Siglo XVII Como Sugerencia para su Argumento.
Revista del CES Felipe II, N 07. 2007.
23
LENK, Wolfgang. Aspectos sociais da resistência á ocupação holandesa (Bahia, 16241654). In Anais do Simpósio de pós-graduação em História Econômica. São Paulo. 2008. p. 13.
20
261
ao Reino, estabeleceu uma força de mil soldados portugueses como
reforço das guarnições de presídio na capital.24
Do outro lado do Atlântico, todavia, Felipe IV e Olivares
aproveitaram as notícias da vitória para ordenar festas que se espalharam
por Madri e Lisboa; festas que, na capital portuguesa, foram celebradas
com luminárias e salvas de artilharia.25 Mas essas comemorações apenas
tiveram lugar após a ordem passada para a devassa que terminaria por
atribuir a culpa da derrota ao ex-Governador Geral Diogo de Mendonça
Furtado, que foi então acusado de deslealdade.26 Enquanto isso, na
América portuguesa a celebração foi menos festiva e mais focada em
solicitações de mercês por parte dos senhores do açúcar, incentivados
pelo próprio Felipe IV. Uma prática que décadas depois se constituiria
em uma política cara à elite açucareira baixo os Bragança.
Assim, nesse contexto de contradições, enquanto a Corte
celebrava a restauração como um importante feito da Monarquia
Católica, os colonos em Salvador – e até mesmo as autoridades imperiais
na capital do Estado do Brasil – tinham que lidar com a reconstrução,
a manutenção do exército e o perigo de novas ameaças. Mas tanto em
um quanto em outro cenário o período que entremeou a reconquista
da Bahia e a perda de Pernambuco foi de contínua preocupação com
uma ameaça que estava longe de acabar. E para combatê-la Felipe IV
enviou para o mundo do açúcar idalgos experimentados como D. Vasco
Mascarenhas, além de ordenar que se embarcasse artilharia pesada
e mais munição na frota do novo Governador Geral, Diogo Luis de
Oliveira, que aportaria na Bahia em 1625.27
Nada disso impediria, todavia, a perda de Pernambuco meia
década mais tarde, com a invasão já muito prevista. De fato, há tempos
os enviados da Coroa apontavam os muitos problemas na estrutura
defensiva da capitania dos Albuquerque Coelho e airmavam a
24
SERRÃO. Op. Cit., p 198.
Idem, p 199.
26
Idem, p 193; CAMENIETZKI; PASTORE. Op. Cit.
27
Um governador que, por sinal, recebeu e desobedeceu ordens expressas para não se deter em
Pernambuco. Cf. SERRÃO. Op. Cit., p 203-6.
25
262
necessidade urgente de lhes dar remédio. Esse foi o caso do sargentomor Diogo de Campos Moreno cujo relatório, que daria origem ao Livro
que dá Razão ao Estado do Brasil, descrevia já em 1612 a defasada
situação militar da capitania.28
Apesar de suas admoestações, no entanto, aparentemente a
situação continuava sem grandes mudanças durante o reinado de
Felipe IV quando o próprio Matias de Albuquerque escreveu repetidas
vezes expondo a necessidade de reforços e munições para a defesa da
capitania.29 E Albuquerque chegou mesmo a reestruturar as fortiicações
da costa, apesar de que após sua saída do governo de Pernambuco as
estruturas defensivas foram logo abandonadas.30
Assim, se a Coroa protelava o reforço militar na região, talvez
por seguir a prática da administração militar portuguesa que consistia
basicamente em estabelecer pequenas guarnições de presídio reforçadas
por homens locais império a fora, por outro lado, a própria preocupação
da elite açucareira com a defesa da capitania não a levava a cuidar
melhor das estruturas defensivas, apesar de que, com as notícias da
invasão da Bahia e da ameaça sobre Pernambuco, alguns senhores
28
Cf. MOURA FILHA, Maria Berthilde. O Livro que dá “Rezão do Estado do Brasil” e o
Povoamento do Território Brasileiro nos Séculos XVI e XVII. Revista da Faculdade de Letras
Ciências e Técnicas do Patrimônio. Porto, 2003. I Série vol. 2, pp. 591-613; RELAÇÃO das
Praças Fortes, Povoações e Cousas de Importância que Sua Majestade tem na Costa do Brasil,
Fazendo Princípio dos Baixos ou Ponta de São Roque para o Sul do Estado e Defensão delas, de
seus Fruitos e Rendimentos, Feita pelo Sargento-mor desta Costa Diogo de Campos Moreno no
Ano de 1609. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográico de Pernambuco. Vol.
LVII, Recife, 1984. pp. 195-246. pp. 200-201.
29
Entre os pedidos de armas e homens enviados por Matias para Madri estão: OFÍCIO do [secretário do Conselho de Portugal em Madrid], Marçal da Costa, ao [conselheiro do Conselho da
Fazenda, Luis da Silva], sobre as cartas do capitão-mor da capitania de Pernambuco, Matias de
Albuquerque, nas quais ele pede munições para defensa desta praça. Arquivo Histórico Ultramarino - AHU_ACL_CU_015, Cx. 2, D. 78. 05/06/1622; CONSULTA do Conselho da Fazenda
ao rei [D. Felipe III] sobre o pedido do capitão-mor da capitania de Pernambuco, Matias de
Albuquerque, no qual solicita que se remetam homens, armas e munições para o socorro da
mesma. AHU_ACL_CU_015, Cx. 2, D. 101. 01/08/1624.
30
ALBUQUERQUE, Marcus. Holandeses en Pernambuco. Rescate Material de La Historia. In
SANTOS PÉREZ José Manuel; SOUZA, George F. C. El Desafío Holandés al Domínio Ibérico
en Brasil en el Siglo XVII. Salamanca, Ediciones Universidad de Salamanca. 2006. pp.107-160.
p. 112.
263
chegaram mesmo a inanciar fortiicações às próprias custas: caso de
Diogo Pais Barreto que custeou o Forte de São Jorge, na barra do porto
do Recife, durante a segunda gestão de Albuquerque em Pernambuco.31
Ou seja, ao mesmo tempo em que a preocupação da Coroa
Habsbúrguica com a defesa de Pernambuco não conseguia se
transformar em um conjunto de ações eicazes devido à escassez de
recursos, o repasse da responsabilidade com a manutenção das estruturas
defensivas da costa para as mãos dos senhores locais também não se
provava eicaz, uma vez que a disponibilidade destes para sustentá-las
era no mínimo ambígua.32
Assim foi que em 1630, quando o exército mercenário da
companhia holandesa surgiu ao largo do Recife, com muitos mais homens
e navios que os reunidos para sua empreitada baiana, as fortiicações da
capitania, assim como suas tropas, não se mostravam à altura da defesa
da mesma.33 E sem o apoio por mar, e com uma localidade menos
fortiicada do que era Salvador, os defensores de Olinda tiveram muito
mais problemas em oferecer resistência aos invasores. Em razão disso a
guerra em Pernambuco se estendeu por anos, baseada amplamente nas
forças de terra que o comandante Matias de Albuquerque organizara
segundo táticas americanas.
Seu primeiro momento, que começou com a invasão em 1630,
terminaria em 1637 com a queda das forças de resistência da Monarquia
Católica.34 Entre 1637 a 1645 Pernambuco vivenciaria o período áureo
31
ALBUQUERQUE. Op. Cit., p. 113.
É de Evaldo Cabral de Mello a tese de que não foi um desinteresse da Coroa espanhola para
com a America portuguesa, mas a defasagem de seu poderio marítimo, o que levou à perda de
Pernambuco para os holandeses. Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. Um Imenso Portugal – História e Historiograia. São Paulo: Editora 34. 2002. p. 64.
33
“A esquadra que em 1630 chega ao Brasil, bem mais numerosa e aparelhada que a primeira,
desde que largara do Mar do Norte, estava disposta mesmo a combater a temida esquadra espanhola.” ALBUQUERQUE, Marcus; LUCENA, Veleda. Arraial Novo do Bom Jesus – Consolidando um Processo, Iniciando um Futuro. Recife, Graitorre. 1997. pp. 107-108.
34
Em 1637 as tropas católicas abandonaram Pernambuco, fugindo para a Bahia. MELLO. Olinda Restaurada. Op. Cit., p. 15. Mas já em 1635 o Arraial do Bom Jesus havia caído, o que
permitira a expansão do Recife holandês. MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos
Flamengos. Recife, Gov. do Estado de Pernambuco. 1978. p. 54.
32
264
da Companhia no Brasil sob o governo de Maurício de Nassau, logo
após o que começaria a guerra de restauração já sob a dinastia Bragança,
combatida basicamente pelas tropas mazombas. Mas até 1637 a guerra
de resistência foi travada pelas forças dos Habsburgo, compostas por
tropas portuguesas, castelhanas e inclusive napolitanas, agregadas aos
irregulares colonos de Pernambuco e suas capitanias anexas.35
Mas essa guerra, além de mais longa que a baiana – o que em si
já foi razão de muitas disputas e intrigas na Corte e entre a Corte e os
donatários de Pernambuco – foi combatida sob o signo da decadência
inanceira de Castela.36 E se isso não diminuía o interesse de Felipe
IV na restauração da capitania – sobre isso teria ele dito “Eu gastarei
minha Fazenda nisto e tudo o que faltará para restaurar o Brasil ao seu
primeiro ser”37 – no entanto, essa conjuntura inanceira já bem distinta
da década anterior, menos favorável aos Habsburgo, terminaria por
atrasar a montagem de uma nova armada de restauração.
Enquanto isso, a frota holandesa com seus 55 navios, maior que
a enviada à Bahia38 e mesmo que a armada de D. Fradique de Toledo,
desembarcou seus soldados na praia de Pau Amarelo, a norte de Olinda,
que de lá marcharam para tomar a própria vila de Olinda e os fortes
do porto do Recife.39 Mas essa vitória holandesa não se espalhou de
imediato, pois após tomar Olinda, o exército da Companhia icou detido
35
MELLO. Olinda Restaurada. Op. Cit., pp. 15-17.
Rafael Valladares apresenta uma esclarecedora descrição das controvérsias em torno da ‘guerra lenta’ de Pernambuco, apontada por alguns inclusive como uma manobra dos Albuquerque
Coelho para manter o poderio régio distante de sua capitania. VALLADARES, Rafael. Las Dos
Guerras de Pernambuco – La Armada del Conde da Torre y la Crisis del Portugal Hispánico
(1638-1641). In PEREZ, José Manuel Santos; SOUZA, George Cabral (orgs.). El Desafío Holandés al Domínio Ibérico en Brasil en el Siglo XVII. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca. 2006. pp. 33-65. Por outro lado, defende Evaldo Cabral que essa estratégia de guerra
lenta se coadunava com a política de Olivares para dividir o ônus da defesa imperial entre as
várias coroas da monarquia. Cf. MELLO. Olinda Restaurada. Op. Cit.. p.35.
37
CARTA régia de 1º de setembro de 1631. Apud SERRÃO. Op. Cit., p. 218.
38
SERRÃO. Op. Cit., p. 209.
39
ALBUQUERQUE; LUCENA. Op. Cit., p. 114.
36
265
– por anos – no istmo do Recife, acossado pelas tropas dos moradores
que estavam sob comando de Matias de Albuquerque.40
De fato, a situação pós-1630 se tornou um impasse com Olinda
e Recife ocupados pelos holandeses que, no entanto, não podiam
ir adiante, uma vez que as margens do rio Capibaribe e a área dos
engenhos estavam sob poder das forças de Albuquerque.41 Mas este,
sem o apoio metropolitano imediato – e quando este chegou foi de
forma pouco efetiva –, não podia fazer frente aos bem armados homens
do governador da WIC, Waerdenburch que, por seu turno, estavam
cercados, sem dominar o terreno inóspito, enquanto as tropas brasílicas
se organizavam cada dia mais.42 O impasse foi prorrogado pela resposta
da Coroa que, em vez da armada de restauração, enviou em 1631 apenas
um reforço de mil homens para Matias de Albuquerque, comandados
pelo napolitano Conde de Bagnuolo. 43 E se tal força não pendeu a
sorte da guerra a favor dos defensores, ela teve o efeito de levar os
invasores a medidas mais drásticas que as até então tomadas, pois, ao
receber a notícia do desembarque de Bagnuolo, Waerdenburch ordenou
a evacuação e o incêndio da indefensável Olinda.44
Enquanto Olinda era queimada e a Companhia tentava construir
uma nova cidade no abatido porto do Recife – e enquanto Matias de
Albuquerque se refugiava com suas tropas no Arraial do Bom Jesus na
várzea do Capibaribe, coração da área produtiva de Pernambuco45 –,
40
MELLO. Tempo dos Flamengos. Op. Cit., pp. 39-41.
Cf. NASCIMENTO, Rômulo Luis Xavier. Pelo Lucro da Companhia: Aspectos da Administração no Brasil Holandês, 1630-1639. Recife, Mestrado em História – UFPE. 2004. pp.
60-61, 64
42
Segundo Marcus Albuquerque e Veleda Lucena como o sistema de defesa formal em Pernambuco não fora suiciente para deter o ataque da Companhia, “Mais uma vez recorreu-se ao sistema das Companhias de Emboscadas, que apesar da desproporção numérica e de armamentos,
manteve os holandeses restritos ao litoral por cerca de cinco anos.” ALBUQUERQUE; LUCENA. Op. Cit., pp. 107-108.
43
Para a armada de socorro cf. VALLADARES. Op. Cit., p. 36.
44
Para o incêndio de Olinda, cf. MELLO. Tempo dos Flamengos. Op. Cit. p. 48. E para as tropas desembarcadas por Oquendo e comandadas por Bagnuolo, MELLO. Olinda Restaurada.
Op. Cit., p. 50.
45
MELLO. Olinda Restaurada. Op. Cit., p. 50, 04, 33.
41
266
as notícias corriam na Corte, causando tremendo impacto em Lisboa
e Madri e levando Felipe IV a ordenar, além da reação e de punições
aqueles que considerava responsáveis pela derrota, a celebração
de cultos e procissões para buscar o perdão divino que parecia estar
faltando à Coroa de Espanha.46
Mas se o perdão divino faltava à Coroa, não era o único: os
comerciantes lisboetas, desgastados, não deram o suporte inanceiro
para o apresto da armada de restauração. E se o rei não se cansava de
cobrar ao Conde de Bastos, então no Conselho de Portugal, agilidade no
envio dessa armada, sugerindo inclusive que a mesma fosse colocada
sob o comando de D. Fradique de Toledo, ela não seria organizada por
anos. Culpa da crise econômica da monarquia. E quando por im zarpou
de Lisboa, zarpou sem D. Fradique.47
Assim foi que no lugar da poderosa armada de restauração
desejada pelos colonos de Pernambuco e pelo próprio Felipe IV, o
Conselho de Portugal conseguiu, em curto prazo, enviar apenas armadas
de socorro cuja função não era confrontar os holandeses, e sim deixar
na costa americana reforços de homens e armas para as tropas de terra.
E apesar da guerra oferecida à WIC pelos defensores, o ano de
1635 seria deinitivo para a expansão holandesa no Brasil, com as tropas
da Companhia conseguindo inalmente sair de sua instável posição na
costa pernambucana e derrotando os defensores no Arraial do Bom
Jesus. Até então a resistência tinha se baseado largamente na guerra
lenta, também chamada pelos luso-espanhóis de guerra brasílica:
ou seja, táticas de guerrilha baseadas nas estratégias de emboscadas
indígenas. E se tal opção fora feita devido à própria escassez de recursos
militares espanhóis, nem por isso Matias de Albuquerque foi menos
criticado, tanto na Corte quanto em Pernambuco, acusado de retardar a
46
Pelo menos é isso que diz SERRÃO. Op. Cit., p. 210. E para Albuquerque e a população da
capitania se refugiando no Arraial do Bom Jesus logo após a rápida vitória da WIC em Olinda
e Recife, Cf. NASCIMENTO. Op. Cit., pp. 60-61, 64.
47
Segundo Evaldo Cabral, apesar da escassez de recursos da Coroa para socorrer Pernambuco,
quando o sogro de Duarte de Albuquerque Coelho, D. Diogo de Castro, o Conde de Bastos, assumiu pela segunda vez o governo de Portugal ele se esmerou em enviar socorro que veio na forma
da armada de D. Antonio de Oquendo em 1631. MELLO. Olinda Restaurada. Op. Cit., p. 32.
267
guerra propositalmente como forma de garantir os interesses da família
contra a intromissão da Coroa.48
Além disso, muitos choques se deram entre as forças de
Bagnuolo e os defensores, senhores de açúcar adaptados às condições
coloniais de existência e apoiados por tropas, até então irregulares, de
lecheiros e pretos forros. Isso porque não apenas as táticas escolhidas
em Pernambuco incomodavam os homens dos Habsburgo, mas
também a própria sociabilidade com pretos e indígenas, cujos costumes
confrontavam a visão de mundo dos idalgos de Castela.49
A derrocada do Arraial do Bom Jesus, que levou a uma retirada
monumental pelo Rio São Francisco, foi o início do im da guerra de
resistência: nessa retirada, na esteira de Bagnuolo seguiram para a Bahia
seis mil emigrados, que seriam depois acompanhados por cerca de mais
dois mil em 1640.50 Um revés que levou Felipe IV, sempre preocupado
com os sucessos dos holandeses, a depor Matias de Albuquerque do
comando. E a ordem régia com sua deposição chegou a Pernambuco
a bordo de uma nova armada de socorro, comandada por D. Lope de
Hoces, e foi entregue por D. Luís de Rojas y Borja, seu substituto,
que trazia também uma ordem de prisão para o irmão do donatário da
capitania.51 Essa decisão política de Felipe IV terminaria por afastar
um poderoso vassalo dos Habsburgo que se tornaria, após sair da prisão
em 1640, defensor da causa Bragança.
Somente após a queda do Arraial, último reduto da Monarquia
Católica em Pernambuco, o Conselho de Portugal enviaria, inalmente,
a armada de restauração, que partiu de Lisboa em 1637 sob o comando
de D. Fernando de Mascarenhas, o Conde da Torre. Mas reunida à frota
48
Para a ‘guerra lenta’ e sua má-fama na Corte Cf. VALLADARES. Op. Cit., pp. 40-41. Evaldo
Cabral explica que a opção pela guerra brasílica se deu pela falta de apoio do reino, e fala sobre as acusações contra Matias de Albuquerque no Reino e em Pernambuco. MELLO. Olinda
Restaurada. Op. Cit., p. 33; 36-39.
49
Segundo Evaldo Cabral de Mello, os soldados do açúcar se ressentiam de que ‘se fazia mais
caso’ dos ibéricos do que da gente da terra, enquanto o comando ibérico reclamava que as tropas mazombas ‘acudiam poucos e demoravam-se menos’. Idem, p. 227.
50
Idem, p. 220.
51
Idem, p. 50, 04, 33.
268
castelhana em Cabo Verde, depois de consideráveis atrasos causados
pelos problemas inanceiros, ela partira tão mal-abastecida que, à vista
do porto do Recife e tendo notícias da superioridade bélica holandesa,
o Conde da Torre decidiu não atacar, em vez disso dirigindo a armada
para a Bahia onde permaneceria por meses se reorganizando. E
apesar de que quando inalmente partiu para o Recife capitaneava o
surpreendente número de 87 naus e dez mil homens, sua decisão de
protelar o ataque deixou-o tão desprestigiado junto ao rei que ao partir
já havia sido inclusive deposto do cargo de Governador Geral.52
Uma vez na costa de Pernambuco, a armada do Conde da Torre
travou batalha com as forças da Companhia, mas obteve apenas um
impasse como saldo. Um resultado inadmissível, que foi considerado
um grande fracasso pela Coroa. Do ponto de vista da Corte, a guerra de
Pernambuco apenas avolumava problemas, desde as muitas críticas que
Matias de Albuquerque havia recebido por empregar estratégias e táticas
de emboscada, até a recusa do herói de Breda e da Bahia, D. Fradique
de Toledo, em aceitar o comando da nova armada de restauração.
Mas tudo isso era um relexo da decadência do poderio naval
espanhol, que icara no caminho do empenho e do entusiasmo régio
com a manutenção da costa oriental da América do Sul. Um entusiasmo
aparente na atenção que Felipe IV dedicava ao mundo do açúcar, em seu
palpável interesse não apenas na reconquista da capitania Duartina, mas
em detalhes relativos às estruturas dessa guerra e a seus envolvidos:
algumas de suas ordens para Bagnuolo mostravam, por exemplo, o
quanto estava bem informado acerca das estratégias e personagens do
conlito, chegando mesmo a defender certa adaptação tática às regras da
terra, ainda que isso alimentasse o confronto entre os rigorosos idalgos
Habsburgo, como o próprio Bagnuolo, e os defensores da guerra de
emboscada, como Albuquerque.53
52
VALLADARES. Op. Cit., p. 37.
Para o interesse de Felipe IV nos detalhes da guerra em Pernambuco, cf. MELLO, José
Antônio Gonsalves de. Pela Segunda Vez no Arquivo de Simancas. In Boletim Informativo da
Universidade do Recife. N.3 mal., 1961, pp. 36-41.
53
269
Entretanto, seu interesse não foi suiciente para salvar
Pernambuco. Uma perda que teria grandes repercussões, provocando
inclusive os ânimos anticastelhanos em Portugal.54
E foi, de fato, a Restauração portuguesa que pôs im ao diálogo
da elite açucareira com a Coroa Habsburga. Ruptura, todavia, que não
parece ter sido traumática – como também não o fora a própria ascensão
da Casa de Áustria no Estado do Brasil –, pois logo os mesmos senhores
que haviam servido aos Felipes com lealdades juradas se apressaram a
apresentar aos Bragança pedidos de mercês pelos serviços prestados
aos Habsburgo na guerra de Pernambuco. Adaptando, assim, para suas
relações com D João IV, uma prática política, essa das solicitações de
mercês, incentivada por Felipe IV.55 E dessa forma se estabelecia uma
continuidade nas relações da elite açucareira com a Coroa, fosse qual
fosse a Casa reinante. Continuidade existente ao menos do ponto de
vista da própria elite açucareira.
Tal postura dos senhores do açúcar em seu tratar com o rei os
levara a não tomar o partido de Felipe IV ou de D João IV, como antes
não haviam escolhido lados entre o Prior do Crato e Felipe II, e a jurar
lealdade e prestar serviços ao novo monarca, fosse ele quem fosse, com
a mesma verve e cerimônia que prestavam ao antigo. Para os senhores
do açúcar importava apenas o rei.
54
Valladares menciona as questões suscitadas pela perda de Pernambuco em Portugal: “Talvez
se possa falar de uma «cronologia de desencanto» entre Madrid e Lisboa: tudo começa com
um período de esperança, que se estende até à trégua com as Províncias Unidas, em 1609;
depois, a decepção aprofunda-se até à crise do Brasil, em 1630; a partir desse ano, entra-se
numa fase dominada pela sombra da sublevação. (...) Baía, capital de um Brasil açucareiro
em franca expansão, foi conquistada pelos holandeses em 1624. Um ano mais tarde, uma impressionante operação naval – que contou com o apoio entusiasmado da nobreza – conseguiu
recuperar a cidade. Todavia, os portugueses sentiram que o seu esforço tinha sido subavaliado.
«Sempre beneiciados e sempre descontentes», escreveria alguém muitos anos mais tarde. Assim, a «Jornada dos Vassalos» à Baía, em 1625, serviu para cristalizar um confronto cada vez
mais insolúvel.” VALLADARES, Rafael. A Independência de Portugal - Guerra e Restauração
1640 – 1680. Lisboa, Esfera dos Livros. 2006. pp. 35-36.
55
É Serrão quem aborda o incentivo de Felipe IV aos pedidos de mercê feitos pelos senhores
do açúcar. SERRÃO. Op. Cit., pp. 199-200. E para a continuidade dessa prática após a Restauração, dessa vez direcionada à D. João IV, cf. ACIOLI, V. L. C. Jurisdição e conlito – aspectos
da administração colonial. 1ª Ed. Recife: Ed. Universitária - UFPE/ Ed. UFAL, 1997.
270
Circulação monetária e uso do açúcar
como meio de pagamento no Brasil neerlandês:
explorando novas fontes
Lucia Furquim Werneck Xavier,
Universidade de Leiden
Fernando Carlos G. de Cerqueira Lima
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Este artigo apresenta os resultados preliminares de uma pesquisa
em andamento. Busca assim, contribuir para o debate sobre a circulação
monetária no Brasil colonial e o uso de açúcar como moeda, explorando
principalmente as Atas Diárias do Alto e Secreto Conselho do Brasil
referentes ao nordeste brasileiro durante o período em que esteve
ocupado pelos neerlandeses1. A próxima seção revisa brevemente
as contribuições de H. Wätjen e de F. Souty, autores que abordaram
aspectos econômicos do Brasil holandês, descrevendo em seguida, de
maneira sucinta, as formas de pagamento utilizadas naquele período,
tanto na Nova Holanda como no Estado do Brasil. A seção seguinte
apresenta evidências do uso, na Nova Holanda, do açúcar como meio
de pagamento e até mesmo como unidade de conta, e especula sobre as
razões dessa prática.
Entre 1630 e 1654, a empresa neerlandesa Companhia das Índias
Ocidentais (WIC) conquistou e ocupou parte da America Portuguesa.
Os vinte e quatro anos de vida da Nova Holanda, ou Brasil Neerlandês,
foram marcados principalmente por conlitos entre neerlandeses e
portugueses. Cronologicamente, a ocupação neerlandesa teve início
no chamado período de conquista (1630-36)2. Após alcançar a vitória
1
Aqui optou-se pelo uso do termo Brasil Neerlandês, e neerlandeses para referir-se a todos os
que estiveram no Brasil sob os auspícios da Companhia das Índias Ocidentais. Holanda era a
maior das Sete Províncias Unidas. Para evitar confundir o leitor, optou-se por neerlandês, pois
holandês pode referir-se às pessoas provenientes da província da Holanda.
2
Para os eventos do período, recomenda-se a obra de Boxer, Charles R., Os holandeses no
Brasil: 1624 – 1654. [London, 1957] Recife: CEPE, 2004. Para uma análise do impacto da
conquista neerlandesa na sociedade pernambucana, ver MELLO, José Antonio Gonsalves de.
271
militar em Recife, em 1630, as tropas da WIC icaram coninadas dentro
dos muros da cidade. Lentamente foram expandindo seus domínios até
a rendição do último reduto de resistência portuguesa, o Arraial do Bom
Jesus em 1635. A produção de açúcar desceu a níveis baixíssimos e
assim como o tráico negreiro. O “período de ouro” da Nova Holanda
(1637-44) foi marcado pelo governo do conde João Mauricio de NassauSiegen. A situação relativamente pacíica da colônia atrai os senhores
de engenho retirados, proporcionando assim, a retomada da produção
açucareira e o tráico negreiro. No ano seguinte ao retorno de Nassau
à Europa (1645) começou a resistência armada, tendo os colonos de
origem portuguesa se rebelado abertamente contra a WIC. Desde então,
e até a derrota inal dos holandeses em 1654, novamente a produção
açucareira na região e o tráico negreiro declinam.
Idealmente, a economia da colônia deveria funcionar da
seguinte maneira: agricultores e senhores de engenho plantavam cana
e produziam açúcar que era vendida à Companhia; esta, por sua vez,
revendia o açúcar na Europa e abastecia o Brasil com produtos europeus
e escravos. Porém, com o passar dos anos, a Companhia foi perdendo
o monopólio do comércio com o Brasil para comerciantes livres.
Essa perda signiicou para a Companhia diminuição de sua já magra
receita. Enquanto detinha o monopólio do comércio, a Companhia
ganhava com o comércio de todos o gênero de produtos. Mas, a partir
da abertura do comércio, passou a receber somente impostos os mais
variados possíveis e o transporte de produtos enviados ao Brasil. Apesar
da perda de receita, a WIC tinha de arcar integralmente com as despesas
administrativas e militares da colônia. O resultante déicit iscal parece
estar na origem das queixas enviadas à Companhia na Holanda sobre a
“falta de dinheiro” e, portanto, nos acordos para que pagamentos fossem
aceitos em mercadorias diversas, mas principalmente em açúcar.
Na literatura sobre o Brasil holandês, questões relativas à
circulação monetária em geral e, em particular, ao uso do açúcar como
Tempo dos Flamengos – inluência da ocupação holandesa na vida e na cultura do Norte do
Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001.
272
meio de pagamento têm recebido pouca atenção. Ao analisar a economia
da colônia neerlandesa, Wätjen chama a atenção para a conlitante
política da WIC de envio de numerário para o Brasil, concluindo que a
escassez de moedas deveria ser atribuída “(...) à mesquinhez e avareza
dos próprios Diretores [XIX] (...)” que não enviavam numerário
suiciente para cobrir as despesas de administração da colônia3. Além
de chegar pouco numerário das Províncias Unidas, a arrecadação na
colônia não contribuía muito para abastecer o cofre da Companhia. O
problema teria sido mais sentido a partir 1639, quando o meio circulante
torna-se reduzido, e atingido seu ponto mais critico em 1643, quando
faltava dinheiro inclusive para pagar Nassau4. Depois de descrever
os efeitos deletérios da escassez monetária, conclui que a mesma
prejudicou o desenvolvimento econômico da colônia neerlandesa5. Por
im, cabe ressaltar que o autor airma que o numerário era escasso na
colônia como um todo, não fazendo distinção se faltava apenas no caixa
da Companhia ou se de fato, era escasso na colônica como um todo.
Embora destaque o uso de “ordenanças” ou vales, não desenvolve,
porém, como o açúcar e outras mercadorias foram utilizados como
meio de pagamento.
Outro autor que dedicou atenção à economia da Nova Holanda é
F. Souty6. Seguindo os passos de Wätjen e utilizando muitos dos dados
oferecidos por ele, Souty concentra-se principalmente no estudo da
exportação do açúcar para as Províncias Unidas, não tocando seu estudo,
a circulação monetária. Seu objetivo é entender porque as Províncias,
na época uma das potências mais avançadas em termos de estruturas
3
WÄTJEN, H. O domínio colonial holandês no Brasil: um capítulo da história colonial do século XVII. Recife: CEPE, 2004. Ver especialmente o capítulo “A organização da administração
colonial e as inanças da Nova Holanda”, pp. 291-343. Para a citação, p. 312.
4
Ver para isso, Atas Diárias do Alto e Secreto Conselho do Brasil, Arquivo Nacional em Haia,
coleção Oude West-Indische Compagnie [Companhia das Índias Ocidentais velha] número de chamada 1.05.01.01, inventário 70. Trata-se principalmente das entradas de 06 e 10 de março de 1643.
5
Wätjen, Op. Cit., p. 324.
6
SOUTY, François J. L. “Le Brésil Neerlandais, 1624-1654: une tentative de projection conjoncturelle de longue durée a partir de données de courte terme” [O Brasil Holandês, 16241654: uma tentativa de projeção conjuntural de longa duração a partir dos dados de curto prazo]
In: Revue D’Histoire Moderne et Contemporaine 35 (1988), pp. 182-239.
273
econômicas, não conseguiu colonizar o Brasil. Souty explica primeiro
que economia da Nova Holanda era baseada na produção e exportação
de açúcar e importação, ora monopolizada pela WIC, ora aberta a
comerciantes particulares, de produtos principalmente europeus. Sobre
a exportação, destaca que os valores da libra do açúcar na bolsa de
Amsterdam lutuaram de acordo com a conjuntura da colônia e não
devido à demanda europeia pelo mesmo. Assim, durante os períodos
de guerra, os preços eram elevados devido à escassa produção colonial.
Foi somente durante os sete anos do governo do conde Mauricio de
Nassau, quando a situação na colônia era relativamente pacíica, que
a produção voltou a funcionar em níveis próximos a 1610, levando o
preço do açúcar branco em Amsterdam a “cai[r] (...) para 44 Florins (...),
atingindo os preços básicos de antes da guerra (...)7. Depois de analisar
a intricada produção e exportação de açúcar da Nova Holanda, Souty
conclui que o fracasso neerlandês foi antes de tudo econômico devido
à inadaptabilidade “(...) das estruturas macro-econômicas holandesas
às estruturas micro-econômicas brasileiras”8. Cabe destacar que o
autor não menciona a escassez monetária na Nova Holanda. Percebe-se
também que não leva em consideração a crise do açúcar existente antes
da chegada dos neerlandeses a Pernambuco, nem concorrência do açúcar
baiano. Ainal, durante as guerras de conquistas, 1630-1636, a produção
açucareira em Pernambuco e demais regiões foi substancialmente
reduzida, enquanto que no Recôncavo Baiano, distante dos conlitos,
a produção manteve-se em níveis elevados. Certamente, na Europa, o
açúcar baiano concorreu com o pouco açúcar enviado de Pernambuco.
No século XVII, o sistema monetário vigente na Europa
Ocidental era bimetálico: cada país estipulava a sua unidade de conta –
real, no caso português e gulden ou lorim, nas Sete Províncias Unidas
dos Países Baixos – enquanto dois metais preciosos (ouro e prata) tinham
seu valor em unidades de conta ixados pelos respectivos governos9.
Souty, p. 208. “(...) chute (...) à 44 lorins (...) rejoignant lês cours-planchers d’avant-guerre (...)”.
Souty, idem, p. 219. “(...) des structures macro-économiques Hollandaises aux estructures
micro-économiques Brésiliennes”, grifos do autor.
9
Keynes deine moeda-mercadoria como aquela composta de “unidades de uma mercadoria
7
8
274
No início dos Seiscentos, embora formalmente seguissem
o mesmo padrão monetário que o de Portugal, os Países Baixos
apresentavam um grau de monetização e de soisticação inanceira
consideravelmente superior. Além disso, não vigia uma política única
de cunhagem como em Portugal: internamente, circulavam várias
moedas estrangeiras ao lado de diferentes moedas neerlandesas; alguns
autores estimam que cerca de 800 moedas estrangeiras eram permitidas
em Amsterdã10. Outra diferença em relação a Portugal é que nas
Províncias Unidas não se pode falar em escassez de numerário. Para
tentar resolver a confusão monetária, em 1609, o governo de Amsterdã
criou um banco público de compensação (conhecido como Banco de
Amsterdã), através do qual eram obrigatoriamente feitos pagamentos
acima de determinado valor. A “moeda” deste banco eram os depósitos
nele escriturados11. O sucesso de tal empreendimento pode ser avaliado
pelo fato de que a “moeda do banco” era transacionada com ágio em
relação às moedas metálicas12.
que pode ser obtida livremente, não monopolizada, que tenha sido escolhida para os conhecidos
propósitos de moeda, mas cuja oferta é dada ‒ como a de qualquer outra mercadoria ‒ pela escassez e custo de produção” (Keynes, J. M. A Treatise on Money, vol. 1. The Collected Writings
of John Maynard Keynes, Vol. V. New York: Macmillan, 1971, p. 6.
10
Para a situação inanceira das Províncias Unidas antes, durante e depois da ocupação do Brasil, ver VRIES, J. de & WOUDE, A. Van der. The irst modern economy: success, failure, and
perseverance of the Dutch economy, 1500 – 1815. Cambridge: Cambridge University Press,
1997, especialmente o capítulo 4 “Money and taxes, borrowing and lending”, pp. 81-159. Para
a citação, ver ‘tHart, Marjolein, Jonker, Jooster e Zanden, Luiten van. A inancial history of the
Netherlands. Cambridge: Cambridge University Press, 1997, p. 40, em especial o capítulo 3.
11
Sobre a criação e o funcionamento do Banco de Amsterdã, ver, por exemplo, KINDLEBERGER, Charles. A inancial history of Western Europe. 2nd. Ed. 1993 e QUINN, Stephen &
William Roberds “The big problem of large bills: The Bank of Amsterdam and the origins of
central banking”. Working Paper 2005-16, Federak Reserve Bank of Atlanta, 2005.
12
Ao discorrer sobre a história da moeda, Keynes não atribui a importância dada por muitos
historiadores ao início da cunhagem na Lydia, no século VII antes de Cristo. A cunhagem teria
sido talvez um primeiro passo na direção da criação da moeda representativa, mas “a transição
fundamental (...) para o cartalismo, ou moeda estatal” se deu muito antes, “porque o cartalismo
começa quando o Estado designa o padrão objetivo que deve corresponder à moeda de conta”
(Keynes, Op. Cit., p.10).
275
No Brasil, tomando-se como referência as práticas então vigentes
na Europa13 e as (ainda pouco pesquisadas) evidências do Brasil, podemos
citar inicialmente os pagamentos em metais, amoedados ou não14. Nos
séculos XVI e XVII, as moedas de ouro e as grandes moedas de prata
chegaram ao Brasil português através de duas fontes: (i) transações com
Portugal, que incluíam pagamentos diversos para funcionários civis,
militares e religiosos15; e (ii) a partir da década de 1580, através do
comércio, muitas vezes ilegal, com a região do Rio da Pata (Canabrava,
1984), no caso principalmente das moedas de prata ‒ os “reales de a
ocho”, denominados “patacas”. No caso da Nova Holanda, moedas
metálicas holandesas chegavam exclusivamente através das remessas
da Companhia das Índias Ocidentais (WIC), circulando ai, junto com
as originárias da América espanhola. Para abastecer-se de moedas
não neerlandesas, o Alto Conselho costumava emprestar dinheiro de
comerciantes particulares, conforme será demonstrado abaixo.
Tais moedas circulavam internacionalmente de acordo com seu
peso, grau de pureza, etc, ou seja, de acordo com seu valor intrínseco,
e eram portanto usadas para pagamentos de produtos importados e de
dívidas. Domesticamente, entretanto, como ocorria em diversos países
europeus e nas suas colônias, o valor em unidade de conta das espécies
metálicas era manipulado tanto pela metrópole como pelas autoridades
coloniais. “Levantamentos da moeda” ‒ aumentos do valor extrínseco
sem alterar o valor intrínseco ‒ eram executados para evitar a saída de
moedas e atrair metais para cunhagem.
13
Ver, por exemplo, Van der Wee, Herman. Monetary, credit and banking systems. In. E. E.
Rich & C.H. Wilson. The Cambridge Economic History of Europe. Cambridge: Cambridge UP,
1977 e Supple, B.E. Currency and commerce in the early seventeenth century. The Economic
History Review. New Series, Vol. 10, N.2, 1957. Godinho, Vitorino M. Os Descobrimentos e a
Economia Mundial, 2 Volumes. Lisboa: Editorial Presença, 1991 e Sousa, Rita Martins de. Moeda e Metais Preciosos no Portugal Setecentista, 1688-1979. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa
da Moeda, 2006.descrevem pormenorizadamente a situação monetária em Portugal no inal da
Idade Média e início da Idade Moderna.
14
Ouro e prata podiam ser usados também em pagamentos no formato de barras, e o ouro em pó.
15
Já no período entre 1549 e 1553, mais de um terço dos pagamentos feitos pelo governador
da Bahia por serviços prestados foram efetuados em dinheiro (LEVY, Maria Barbara. História
Financeira do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: IBMEC, 1979, p. 55).
276
Eram também comuns pagamentos feitos por meios escriturais,
em que receitas e despesas eram reconhecidas nos chamados livros
de conta-corrente, livro de contas, etc16. Essa forma de pagamento era
em geral limitada a círculos de pessoas conhecidas, embora pudesse
ganhar caráter legal, ampliando assim o seu alcance. Grupos comerciais
‒ famílias no sentido amplo ‒ operavam em diversos pontos do planeta
utilizando-se de mecanismos escriturais, cujas eventuais diferenças em
unidade de conta podiam ser periodicamente compensadas em moeda
ou letras de câmbio.
Pagamentos e transferências de quantias elevadas, principalmente
a longas distâncias, eram preferivelmente feitos através de letras de
câmbio, que era uma forma de poupar o uso de moeda, reduzir riscos
de transporte e custos de transação17. Ebert (2004) relata o uso quase
exclusivo de letras de câmbio na aquisição de açúcar realizada em
Pernambuco, no início do século XVII, por mercadores da cidade do
Porto. Há diversos registros de autoridades coloniais ordenando que
impostos recolhidos no Brasil fossem enviados por letras, compradas
aqui “como de hábito”, e não em dinheiro. A preferência por pagamentos
em letras persistiu, mesmo após o im dos conlitos com os holandeses
que reduziu os ataques aos navios18.
Por im, mas não menos importante, havia pagamentos em
mercadorias não metálicas. A explicação mais tradicional para a
16
Para alguns registros no Brasil referentes ao século XVII, ver, por exemplo, Megale, Heitor e
Sílvio de Almeida Toledo Neto (org.). Por Minha Letra e Sinal: Documentos do Ouro do Século
XVII. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2005; para o século XVIII, ver FURTADO, Junia F. Homens
de Negócio: A Interiorização da Metrópole e do Comércio nas Minas Setecentistas. São Paulo:
Hucitec, 1999.
17
Em termos macroeconômicos, permitia aumentar o volume de transações sem aumentar a quantidade de moeda, ou seja, de aumentar a velocidade de circulação de um certo estoque de moeda.
18
Por exemplo, em 13 de março de 1689, o Conselho Ultramarino escrevia às autoridades de
Salvador que “como a Junta do Comércio havia mister todos os anos, na Bahia, dinheiro para
dar lodos, crena e forro a seus navios, se devia escrever aos oiciais da Câmara que entregassem
a seus administradores dinheiro que houvesse cobrado desta inta e remeterem as letras a este
Conselho [Ultramarino], ou por letra segura dos contratadores (...) e de outros mercadores da
praça, abonados e quando faltasse para toda a quantia se guardasse a remessa para outro ano,
que valia mais vir tarde que arriscar-se a não chegar o procedido desta inta” (Documentos
Históricos da Biblioteca Nacional., vol. LXXXIX, 1950, pp. 108-109).
277
utilização, a partir da Idade Média, a de certas mercadorias – p. ex.,
açúcar, tabaco, algodão, etc. – como moeda tem sido o fato de, periódica
e localizadamente, ter havido escassez de moeda metálica. Assim, em
particular na Europa e, posteriormente, nas colônias do Novo Mundo,
nos períodos em que faltavam moedas de ouro, de prata e de cobre eram
usadas essas outras mercadorias como meio de pagamento.
A evidência sugere que de modo geral, faltava dinheiro na Nova
Holanda como um todo. Em 15 de julho de 1644, os moradores da
região do Rio São Francisco solicitam ao Alto Conselho no Recife
que pudessem pagar seus credores segundo o costume antigo, ou seja,
pagando com bois e tabaco pois naquela região nunca houve dinheiro19.
Se, na colônia, o numerário existia mas era escasso, no caixa da WIC
a situação era um pouco diferente. Nas Atas Diárias, encontramos
diversas referências ao fato do caixa estar completamente vazio. Devido
aos limites desse artigo, apresentaremos um exemplo do ano de 1635.
Em 19 de outubro, para abastecer o caixa, o Alto Conselho empresta de
Isaacq van Raisere, comerciante livre e que possuía boa quantidade de
dinheiro, 4.000 Carolus Guldens (Florins) a serem pagos com açúcar,
sendo o preço do açúcar assim ixado: açúcar branco = arroba a 16
schellingen e a arroba de moscavados a 10 schellingen, mas não há
menção de quando o açúcar seria fornecido a Rasiere20.
A base documental consultada para este artigo nos permite
concluir que durante a ocupação neerlandesa do Brasil, era muito comum
o pagamento de dívidas, serviços, imóveis, etc. em mercadorias, sendo
o açúcar o meio de pagamento mais frequente. Isso ica evidenciado,
por exemplo, na petição dos moradores do Recife e de Maurícia contra
19
Dagelijkse Notulen van de Hooge ende Secrete Raad van Brazilië [Atas Diárias do Alto e
Secreto Conselho do Brasil], 15 de julho de 1644. Arquivo Nacional em Haia, coleção Companhia das Índias Ocidentais velha, numero de chamada 1.05.01.01, Inventários 68 – 75. Para não
tornar as notas repetitivas, daqui em diante, menciona-se apenas a data da entrada nos registros
das Atas. Quando a citação for inferior a 4 linhas, reproduziremos o texto em Neerlandês antigo. Citações longas não serão reproduzidas aqui.
20
Atas Diárias, 19 de outubro de 1635. Desconhecemos a tradução de Schelling para Português. Schelling era uma moeda de prata no valor de Fl. 030. Assim, a arroba de brancos seria
Fl. 4,8 e a de moscavados Fl. 3,0.
278
a cobrança de suas dívidas antes da safra. Airmam eles que “(...) sendo
o açúcar o único meio de pagamento, achavam estranho que as dívidas
fossem cobradas fora da safra”21. A WIC, através de seus representantes,
também realizava pagamentos em açúcar. Em 18 de novembro de 1635,
quando Willem Hendricxz Cop, capitão do navio Nassau, forneceu
viveres, material bélico e outras coisas ao Alto Conselho, tendo recebido
para isso “duzentas e cinquenta e duas arrobas de açúcar branco”22.
Serviços também eram pagos em açúcar, como em 11 de janeiro de
1636, quando a viúva Hans Bustinensz. recebeu duas caixas de açúcar
pelos bons serviços prestados por seu marido23.
Cabe ressaltar mais uma vez que o açúcar era a principal
mercadoria usada como meio de pagamento, mas não a única. Em 08 de
dezembro de 1635, o conselheiro político Wilhelm Schott encontravase em Muribeca para junto com o auxiliar administrativo (commies)
Mazuer comprarem farinha. Mas “não podia[m] comprar farinha
alguma a não ser que pagassem em dinheiro ou com mercadorias pois
os portugueses não mais queriam fornecer farinha e outras necessidades
com base em promessas ou com base na palavra (...)”. Foram enviados
então tecidos de linho para com eles, pudessem pagar as dívidas antigas,
mantendo os portugueses assim, iéis à Companhia24.
Se, para a Companhia, realizar pagamentos em açúcar era
uma opção em momentos de falta de “moeda de contado”, receber
21
Atas Diárias, 03 de novembro de 1642. “(...) de suijckeren de eenige remedie is waer uijt de
betaling conen moet dunckt ons seer vrempt dit men buijten tijts de jnwonderen van Reciff [ende]
Mauritsstadt (...)betaling van de Srs de jngenho [ende] labradores te becomen sijn (...)”.
22
Atas Diárias, 18/11/1635. “Js aen Willem hendricxz. Cop ordonnantie repasseert (...) voor
zijn particuliere reecke. te ontvangen twee hondert [ende] twee [ende] vijftich arroben Blanco
suyckeren (...)”. Presente no original a listagem do que Cop forneceu ao Alto Conselho e o
preço individual de cada mercadoria.
23
Atas Diárias, 11 de janeiro de 1636. “Js insgelijcx geresolveert [ende] beslooten aen[de]
weduwe van Hans Bustinensz sa: overmits de goede dienste soo hare man (...) gepresteert heeft
twee kisten suijckeren blancos (...) toe te leggen (...)”.
24
Atas Diarias, 08 de dezembro de 1635. “(...) den commijs Mazuer in Moerbeecq leggende,
geen ferinha meer becomen can sonder met gelt ofte coopmans[schappen] gececoureert te
werden want de portugesen niet langer met goed worden ende beloften on ferinha te leveren te
bewegen ofte te bewelligen waren (...)”.
279
pagamentos em açúcar tinha outra função, a saber, a de acumular mais
açúcar. Como já mencionado anteriormente, ao longo dos anos iniciais
da ocupação, a WIC foi perdendo o monopólio do comércio do Brasil.
Se, durante o monopólio, o grosso do açúcar produzido ia parar nos
armazéns da Companhia, quando este não mais existia, os senhores
de engenho comerciavam com quem lhes pagasse melhores preços. A
Companhia passou a arrecadar bem menos açúcar, recebendo somente
a parte correspondente ao pagamento dos impostos. Para atrair mais
açúcar para si, em 18/11/1638 o governador geral e o Alto conselho
resolveram “(...) publicar e pendurar editais públicos demonstrando
como nós resolvemos que o pagamento de dívidas que alguém tem
conosco e que já venceram ou que vencem durante a safra corrente, não
deve ser feito em dinheiro mas em açúcar (...)”25. O montante de açúcar
transportado pela WIC deve ter diminuído signiicativamente pois
em 1638 circulou em Haia um documento intitulado “Considerações
sobre o comércio do Brasil”. O autor não identiicado defende, entre
outras coisas, que os dízimos do açúcar e de outros produtos do Brasil
deveriam ser pagos em espécie. Alem dos impostos, escravos poderiam
ser pagos em açúcar, atraindo assim, mais açúcar para a Companhia26.
A diiculdade da Companhia em receber açúcar ica ainda mais evidente
em 29/01/1644, quando o Alto e Secreto Conselho resolveu que um de
seus membros, junto com um dos Conselheiros de Finanças viajasse
aos distritos do Sul e do Norte, indagando os senhores de engenho sobre
o açúcar que competia à WIC para pagamento de dívidas, pois a safra
já estava quase no inal e, aos poucos, o açúcar ia parar as mãos dos
comerciantes particulares, icando Companhia assim, sem receber o
que lhe era devido27.
25
Atas Diárias, 1638.
Consideratien op eenen handel van Brasÿl [Considerações sobre o comércio do Brasil]. Arquivo Nacional de Haia, Coleção Estados Gerais, código de acesso 1.01.07, inventário 12564.6,
documento 28.
27
Atas Diárias, 29 de janeiro de 1644.
26
280
Segundo Pierre Moreau, todo o comércio nas possessões
neerlandesas era feito a crédito28: os comerciantes “(...) entregavam [todo
tipo de mercadoria] a crédito aos portugueses por somas prodigiosas
(...)”29. Moreau certamente não teve uma percepção mais detalhada do
comércio na colônia, pois muitas vezes o crédito deixou de existir. Ao
consultarmos as Atas Diárias achamos vários exemplos. Pelos limites
desse artigo, limitar-nos-emos a dois exemplos do ano de 1635. No
dia 17 de novembro, o Conselho Político resolveu emprestar cinco mil
Florins de Isaacq de Ragiere pois “(...) devido à quantidade excessiva
de dívidas, os portugueses ou moradores se mostram pouco inclinados
a fornecerem farinha [de mandioca] e animais para o sustento de nossas
guarnições”30.
Ao contrário do que airmado por Moreau, muitas vezes, o
comércio nada mais era do que uma troca de mercadorias. Em 19/04/1635,
os Diretores XIX escrevem para o Conselho Político no Brasil que
caso houvesse “(...) muito açúcar nos engenhos ou propriedades dos
portugueses que passaram para o nosso lado, recomendamos aos senhores
que os negociem [em troca] dos produtos que se encontram ai”31. Mas é
nas Atas Diárias que encontramos os melhores exemplos. Por exemplo,
em 08 de abril de 1636, como faltava dinheiro, não fora possível comprar
farinha de mandioca suiciente. Resolveu-se assim, trocar farinha de
mandioca por farinha de trigo que sobrava nos armazéns da WIC32.
28
Moreau, Pierre e Baro, Roulox. História das últimas lutas no Brasil entre holandeses e portuguêses Relação da Viagem ao Pais dos Tapuias. Itatiaia: Belo Horizonte, 1979.
29
Para Moreau, ver nota acima. Citação página 28.
30
Atas Diárias, 17 de novembro de 1635. “Alsoo bij tegenwoordich overmits de menichvuldige
shculden d’jnwoonders hun weijgerich thoonen eenige farinha beesten als Anders tot sustentement ende onderhout van onse volck te leeveren (...) soo is geresolveert vijff duijsent [guldens]
van Isaacq de Ragiere vrij Coop[man] alhr te luchten (...)”. Acreditamos que Ragiere seja
forma acorruptelada de Rasiere, já mencionado anteriormente nesse artigo.
31
Carta dos Diretores XIX para o Alto Conselho no Brasil. Arquivo Nacional de Haia, Coleção
Companhia das Índias Ocidentais velha, numero de chamada 1.05.01.01, inventário 8, fólio
155. “Ende indien bij de geene die reede sich onder ons begeven heben [ende] op haer jngenios ofte in hare wooningen weder begeert, grooter partijen suijckeren mochten wesen, al wel
tegenwoordich bij UE goederen zijn, om daer tegen te verhandelen (...)”.
32
Atas Diárias, 08 de abril de 1636. “(...) men met de potgugijsen ruijlde meel voor farinha
waer mede men wel de helfde soude profijteren tis t’selve geapprobeert (...)”.
281
Não só o comércio cotidiano era a crédito, a compra e a venda
de escravos “(...) assim como as de outras mercadorias eram todas a
crédito (...)”33. Novamente o relato de Moreau generaliza. Muitas vezes
os escravos eram vendidos a prazo com a possibilidade do pagamento
em açúcar ou dinheiro conforme o valor de mercado. Um exemplo,
dentre muitos, encontramos na entrada de 11/08/1638 quando “François
Cloet comprou 3 negros e negras a 150 Patacas a peça a serem pagos
na próxima safra em açúcar segundo o preço de mercado então”34. Já
em 02/03/1638 temos que icou resolvido “vender os negros (...) na
próxima quinta feira, sendo 12 de março (...) os mesmos a serem pagos
em dezembro próximo em açúcar ou dinheiro a nossa escolha”. E no
dia 12/03/1638 foi registrado que foram “[v]endidos os negros (...) a
serem pagos em dezembro próximo, em açúcar ou em dinheiro a nossa
escolha, sendo vendidas 402 peças por diversos preços, rendendo 80968
Patacas, totalizando 194323:4 lorins”.
Como já mencionado, este artigo apresenta os primeiros
resultados de uma pesquisa em andamento. Até aqui se examinou como
o açúcar e outras mercadorias foram utilizados como moeda, isto é,
como meio de pagamento e unidade de conta. O exemplo da venda
de escravos nos indica que, embora o açúcar fosse uma opção para
o pagamento, a unidade de conta vigente no Brasil era o lorim. Na
documentação consultada não se encontrou qualquer referência relativa
ao preço de escravos ou outros preços escriturados em açúcar, quer
em arrobas ou caixas. O que poderia causar algum tipo de confusão
no pesquisador são os documentos chamados “repartitielijst van
suiker”, ou seja, divisão do açúcar. Os mesmos apresentavam como
determinados carregamentos de açúcar deveriam ser divididos entre as
diferentes Câmaras da WIC. Até 31 de março de 1643, os mesmos eram
registrados em caixas e arrobas de açúcar. Tal prática pode sugerir que
a administração da conta das diferentes câmaras tinha como unidade de
conta o açúcar. Porém, em 06 de janeiro de 1645, o Alto Conselho deixa
33
34
Moreau, p. 34.
Atas Diárias, 11 de agosto de 1638.
282
bem claro em suas Atas que tal prática era uma forma de manipular
o preço do açúcar nas Províncias Unidas, omitindo de certos tipos de
documentos, principalmente os não secretos, o preço pago no Brasil
pela arroba de açúcar35.
O exemplo do açúcar funcionando como unidade de conta vem
de outra fonte. Em dezembro de 1641 e janeiro de 1642, o conselheiro
político Adriaen van Bullestrate fez uma viagem pelos distritos do Sul,
que incluíam a região ao Sul de Pernambuco até o rio São Francisco.
Em seu relato apresenta que em Pojuca icou sabendo que ilhota Magrita
de Crasto fora arrendanda, dentro de um partido, a Paulo Ferreira de
Moryn, em benefício da WIC, por um prazo de 9 anos, mediante o
pagamento de 100 arrobas de açúcar por ano36.
Se, para a venda de negros, o valor do açúcar seria calculado
segundo o valor de mercado, o exemplo de Isaacq de Raisere
mencionado anteriormente nos mostra que algumas vezes o preço do
açúcar era ixado antes de os pagamentos acontecerem. No referido
exemplo, ao acertar o empréstimo com Rasiere, o Alto Conselho já ixa
o valor do preço do açúcar com o qual pagará sua dívida. Esse exemplo
é um dos poucos sobre a ixação do preço do açúcar para pagamento
de dívidas. Na Nova Holanda, geralmente o preço do açúcar só era
ixado para o pagamento de impostos, como em 14/01/1642, quando foi
ordenado “aos comissários do açúcar que para calcularem os impostos
dos açúcares embarcados nos navios Utrecht e Flora deveriam adotar
o seguinte: para os açúcares velhos a @ de branco a 21 schellingen e a
@ de moscavado a 14 schellingen, no que toca os açúcares novos, a @
de brancos a 26 schellingen e a @ de moscavados a 16 schellingen”37.
Nos casos em que o preço do açúcar é ixado, o mesmo se transforma
em moeda-mercadoria no sentido keynesiano referido na introdução.
35
Atas Diárias, 06 de janeiro de 1645.
Notulen gehouden door A. van Bullestrate op zijn reis door de zuiderkwartieren naar Rio
St. Francisco, van 13 december 1641 tot 24 januari 1642. Arquivo Nacional em Haia, coleção
Companhia das Índias Ocidentais velha, numero de chamada 1.05.01.01, inventário 57, documento 130.
37
Atas Diárias, 14 de janeiro de 1642.
36
283
Quais as prováveis causas da escassez de “moeda de contato”
na Nova Holanda? A evidência sugere que um dos muitos problemas
da colônia neerlandesa era o desabastecimento. Desde o início de suas
atividades, a WIC foi afetada por apertos inanceiros. Esses apertos
diicultaram o abastecimento regular dos armazéns da Companhia
no Recife. Como demonstrado acima, o dinheiro enviado deveria ser
utilizado exclusivamente no pagamento dos soldados que então usariam
o mesmo nos armazéns, adquirindo ai, tudo o que precisassem. Estando
esses armazéns desabastecidos, os soldados certamente procuravam
as lojas de comerciantes particulares, deixando ai, seu dinheiro. Ao
fazerem isso, quebravam o ciclo idealizado pelos Diretores XIX. E aos
poucos o caixa da Companhia ia esvaziando-se. Outro efeito negativo
do desabastecimento foi a necessidade do governo neerlandês na
colônia utilizar o dinheiro do pagamento dos soldados na aquisição de
produtos faltantes como em 1636, quando foi preciso comprar linho, tão
necessário ao tratamento dos doentes, dos comerciantes particulares,
com pagamento em dinheiro. Um exemplo disso encontramos em 26
de janeiro quando o Alto Conselho comprou de Wabeliau, comerciante
livre, tecidos de linho, pagos em dinheiro38. Para efetuar tal compra,
utilizava-se o dinheiro do caixa, quebrando-se novamente o ciclo
planejado pelos XIX.
Outras explicações para a falta de numerário na Nova Holanda
encontramos em carta para os Diretores XIX, escrita pelo governador
geral, conde João Maurício de Nassau, e o Alto Conselho, em de 02
de março de 163939. Havia mais de um ano que não chegava dinheiro
algum da Holanda. Ademais, circulavam rumores sobre a chegada de
uma armada espanhola. Tais rumores, por um lado, desencorajavam a
atividade comercial e, por outro lado, levavam os portugueses a retirarem
38
Atas Diárias, entrada de 26/01/1636. “(...) gecoht van...Wabeliau vrijman, wijf en twintich
Ellen grof end slecht linden (...) waer van ordonantie hebben gepasseert op[den] cassier Kelder
om de selve pn te betalen”. Destaca-se que Wabeliau pode ser corruptela de Cabeljau, sobrenome de uma série de comerciantes no Recife.
39
“Brief van 2 maart 1639 van gouverneur-generaal en raden te Recife aan de bewindhebbers
van de kamer Zeeland en de kamer Maze”. Arquivo Nacional em Haia. Coleção Companhia das
Índias Ocidentais Velha, número de chamada 1.05.01.01, inventário 55, documento 1.
284
seu dinheiro do Recife, reduzindo suas compras ao mínimo, preferindo
esconder o dinheiro temendo os danos que a Armada causaria. Se essa
incerteza quanto à segurança do território puder ser estendida para outros
períodos, teríamos uma situação clássica de preferência pela liquidez,
em que elevados graus de incerteza induzem ao entesouramento.
285
Falências mercantis e execuções
de propriedades de terras:
notas de pesquisa sobre Pernambuco.
Século XVIII ao início do XIX.
Teresa Cristina de Novaes Marques
Universidade de Brasília
Introdução
O estudo proposto toma por ponto de partida o questionamento
sobre o papel do crédito na economia escravista, tendo em vista
as especiicidades das relações de poder das sociedades no Antigo
Regime, cujo fundamento insiste em não caber nas premissas teóricas
da escolha racional.1 Trata-se de uma investigação que dialoga com
a questão dos direitos de propriedade sem tomar como premissa que
as sociedades que chegaram ao capitalismo a partir da cultura legal
do direito romano estiveram fadadas ao subdesenvolvimento.2 Como
não há como estabelecer parâmetros comparativos entre os arranjos
institucionais históricos que amparavam as transações econômicas de
distintas formações sociais, muito menos estabelecer quais arranjos
contribuíram positivamente para o crescimento econômico e quais
representaram obstáculos, a proposição de que os arranjos contratuais
vigentes na tradição do direito não-costumeiro foram prejudiciais ao
crescimento econômico não pode ser demonstrada. Isso porque, o
processo de crescimento econômico é sujeito a tantas variáveis que
nenhum desenho empírico consegue estabelecer o peso dos fatores que
1
Um panorama das vertentes teóricas neo institucionalistas pode ser obtido em: Peter Hall &
Rosemary Taylor (1996), Political Studies, XLIV.
2
Um estudo sobre o Peru, inspirado nos institucionalistas inanceiros Alchian e Demsetz concluiu que: The absence of property rights, or the ability to enforce them at low cost, is a principle cause of underdevelopment. [Anil Hira & Ron Hira (2000), The New Institutionalism:
Contradictory Notions of Change. American Journal of Economics and Sociology, vol. 9, n. 2,
p. 270.] Veja-se, também: Stephen Haber (1997), How Latin America Fell Behind: Essays on
the Economic Histories of Brazil and Mexico, 1800-1914. Stanford: Stanford University Press.
287
nele interferem, a mencionar alguns: o grau de abertura da economia,
os termos de intercâmbio, o nível de produtividade, o funcionamento da
justiça, a inserção na economia internacional, e as relações de trabalho.
Além da questão do peso do processo histórico na avaliação do
subdesenvolvimento, a discussão em torno dos direitos de propriedade
padece de uma profunda incompreensão acerca da noção histórica de
propriedade prevalente nas sociedades latinas, bem como da natureza
das relações econômicas em uma sociedade pré-mercado, onde os
preços são arbitrados por relações políticas e o acesso às oportunidades
de acumulação também depende de tais relações.3
A questão das instituições está mais bem amparada pelo
pensamento de Karl Polanyi. Para este autor, nas sociedades onde
não prepondera o sistema de mercado (price-making markets), as
conigurações sociais, inclusive o sistema de valores, regem a vida
material dos grupos sociais e não o inverso.4
Vistos deste modo, nem a política pombalina para Pernambuco
visava promover o desenvolvimento da região, nem os agentes
econômicos buscavam exclusivamente a acumulação material.
Tampouco o pleno exercício de direitos de propriedade era um valor
social dos moradores dos domínios lusos, à semelhança do entendimento
que se tem hoje acerca disso. Afora o domínio absoluto que os moradores
reivindicavam sobre os seus escravos, que se explica por outra matriz
ideológica, como já comentou Rafael Marquese, os contemporâneos
aspiravam por preços controlados, desde que os beneiciassem; por
privilégios e monopólios, desde que os beneiciassem, e por marcas
de distinção que tornassem visível sua proeminência social. Exemplo
3
Escreveram Marcelo Abreu e Luís C. Lago (2001, p. 336): “Through taxes, prohibitions, and
monopolies, as well as through the leet system implemented in 1649 and maintained until
1765, the Portuguese Crown restricted economic freedom within the colony and its commerce,
as well as a full exercise of property rights of the colonists.”
4
Karl Polanyi, The Economy as Instituted Process, In, Polanyi, K.; Pearson, H.; Arensberg, C.
(ed), Trade and Market in the Early Empires. New York: The Free Press, 1957. Outro autor que
oferece relexões sensatas sobre o ambiente institucional da economia não capitalista é Avner
Greif (1992), Institutions and International Trade: Lessons from the Commercial Revolution,
The American Economic Review, 82,2.
288
de relações econômicas reguladas por relações políticas era o ruidoso
conlito entre os moradores a direção da Companhia em Pernambuco
em torno do preço do açúcar, pois, aqueles se apoiavam na Mesa de
Inspeção para arbitrar preços do açúcar compatíveis com sua expectativa
de lucro; estes, usavam do seu poder quase ilimitado de monopólio
para impor os preços de compra e as condições nas transações com
os produtos da terra.5 Por certo, as desavenças entre os moradores e
os administradores da Companhia não tinham em vista a defesa do
mercado como instância arbitradora de preços.
No âmbito deste paper, vou examinar alguns exemplos de
cobranças de dívidas de devedores de Pernambuco, sob a premissa de
que o adequado entendimento dos direitos dos credores depende de dois
fatores: da natureza do bem oferecido em garantia – se propriedade
fundiária, ou mercadoria em estoque, e da natureza das relações políticas
onde se insere o devedor – se senhor de terra ou comerciante.
E, por que Pernambuco? Porque o ambiente institucional criado
em torno da Companhia privilegiada, baseado no juízo privativo,
proporciona condições especiais para a observação da doutrina jurídica
e das práticas forenses que diziam respeito a operações de crédito. A
partir da documentação consultada, examinam-se o fundamento jurídico
e a argumentação política dos recursos apresentados pelas partes.6 Ao
contrário de processos de penhora e arresto de bens que correram pela
justiça ordinária com lentidão e em caminhos tortuosos, os processos
dos envolvidos na Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba estão
sistematizados sob uma mesma autoridade judiciária.
Espera-se avançar na discussão acerca da atuação da Companhia
Geral Pernambuco e Paraíba.
5
Como um exemplo entre vários deste embate, veja-se: “Representação contra a Companhia
Geral da Câmara de Olinda, 17 de setembro de 1777”. [IHGB, 1.2.11]. Sobre o poder de resistência da Junta de Administração de Lisboa, veja-se: “Livro dos termos das resoluções da
Junta de Lisboa”. [ANTT, livro 401]
6
Fundo de feitos indos da Conservatória da Companhia Pernambuco e Paraíba, no ANTT.
289
O endividamento
Coerentemente com as escolhas teóricas, a metodologia adotada
não visa à reconstituição de macro tendências para avaliar o desempenho
econômico da Companhia Geral Pernambuco e Paraíba. Não só porque
isso já foi tentado anteriormente com resultados discutíveis, também
porque não se aplica ao objeto.7 Como o cerne da discussão neste
paper é a capacidade da Companhia de recuperar créditos, a escala de
observação dos fenômenos é individual.
Para quase todas as regiões da América portuguesa dispomos
hoje de estudos monográicos sobre cadeias mercantis e práticas de
crédito. Nos últimos anos, os estudiosos dedicam-se a reconstituir as
redes de comerciantes, saber quem eram os credores e os devedores,
e deinir o peril patrimonial das famílias. Sobre os grandes senhores
de terras e de escravos, há estudos sobre o padrão de endividamento e
as formas de gestão dos negócios.8 Formou-se, assim, uma tradição de
estudos que enfatiza a reconstituição das redes de crédito sem investigar
as garantias institucionais – formais e informais – oferecidas a credores
e devedores.
Há poucas pesquisas sobre o impacto da Companhia em
Pernambuco sobre a região, além dos trabalhos de Ribeiro Jr., Érika
Carlos e Antonio Carreira, e julgo haver espaço para investigar questões
que esses autores não contemplaram. As Companhias privilegiadas
pombalinas foram instituídas nas capitanias do norte – Pernambuco,
Paraíba e Grão Pará e Maranhão – no bojo de uma política econômica
que visava criar alternativas regionais às Minas e à Bahia no estado do
Brasil, a im de aumentar a exação iscal da Coroa portuguesa.9 Desde
7
Antônio Carreira enfatiza o exame da atuação da Companhia do Grão Pará e Maranhão porque
suspeita que a escrita mercantil dos livros da Companhia Pernambuco e Paraíba era deliberadamente obscura. Outro autor, José Ribeiro Jr. também não oferece uma avaliação consistente
do desempenho da Companhia de Pernambuco. Nenhum dos autores consultados ousa avaliar
se a Companhia gerou lucros ou se apenas gerou receitas, embora isso seja bastante provável.
8
Veja-se: SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial,
1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras/CNPq, 1988.
9
Veja-se: CARLOS, Erika Simone de Almeida. O im do monopólio: a extinção da Compan-
290
o início as companhias receberam o aval da Coroa, que se apresentou
como protetora das empresas e usou de seu poder político para forçar os
agentes econômicos a aceitar as apólices das companhias gerais por seu
valor de face.10 Entre os interesses dos acionistas de Lisboa e as queixas
dos moradores de Pernambuco, a balança tendeu para o primeiro lado.
Em resposta ao crescimento da Bahia, fruto do movimento do
tráico com a costa Africana a partir de portos baianos, Pombal propôs a
criação de uma companhia em Pernambuco, responsável pela oferta de
escravos na capitania e pela exportação exclusiva dos produtos locais
– açúcar, sola e tabaco. A sede política estava em Lisboa e os capitais
responsáveis pela empresa foram obtidos, fundamentalmente, no Reino.
Os comerciantes de Pernambuco foram persuadidos de várias formas a
também adquirir ações e assim o izeram, com relutância.11
A forma como a companhia agia em Pernambuco sofreu muitas
críticas dos contemporâneos, inclusive do governador da capitania,
pressionado que esteve entre a necessidade de acalmar a insatisfação
dos moradores e cumprir seu dever de defender os interesses do Rei.12
As mercadorias que a Companhia adquiria no mercado europeu e
repassava para Pernambuco, alegavam os moradores, eram de má
qualidade e recebiam o elevado sobre preço mercantil de 45% sobre o
valor.
Ora, todo o comércio colonial operava com elevado sobre preço,
talvez não tão elevado quanto os da Companhia Pernambuco, mas a
diferença entre o comércio livre (como se referiam os contemporâneos)
e a Companhia era que esta resistia em pagar os moradores com moeda
e impunha os termos das negociações. Os produtores de açúcar e de
hia Geral de Pernambuco e Paraíba, 1770-1780. Recife: UFPE/Dissertação de Mestrado em
História, 2001. MARCOS, Rui Manuel de Figueiredo. As Companhias Pombalinas contributo
para a história das sociedades por ações em Portugal. Coimbra: Almedina, 1997.
10
Alvará sobre as apólices das companhias gerais do Grão Pará, Pernambuco e Paraíba, 21 de
junho de 1766. [Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, cota 9(5) 4.6.6].
11
Veja-se: Carlos, Érika (2001). O im do monopólio.
12
Cartas do governador de Pernambuco, José César de Meneses ao provedor e deputados da
Junta de Administração da Companhia Geral de Pernambuco: 30 de setembro de 1777, 13 de
julho de 1778.[IHGB, Correspondência do governador; lata 421, pasta 1].
291
couro deviam vender sua produção para a Companhia, transportá-la
até o porto, mantê-la nos armazéns às suas expensas. Em troca, não
conseguiam receber dinheiro por seus produtos, ao invés, recebiam
mercadorias que repassavam para pequenos comerciantes. Alegavam os
moradores que eram prejudicados nas transações porque necessitavam
de moeda corrente para arcar com seus custos variáveis – salários de
empregados, alimentos para os escravos, etc. O que recebiam em troca
pelas mercadorias impostas pela Companhia não correspondia ao valor
estimado das remessas de açúcar ou outro produto exportado. Pior era
a situação do comércio de escravos nos portos de Pernambuco, uma
vez que, por alguma razão ainda não suicientemente estudada, os
agentes da Companhia que faziam o trato na Mina e em Angola não
conseguiram romper as cadeias de compromisso dos traicantes da
Bahia e do Rio de Janeiro com os negociantes africanos e retornavam
aos portos de Pernambuco com escravos doentes ou não aptos para o
trabalho, conforme as expectativas dos senhores de engenho. Talvez
o insucesso da Companhia de abastecer Pernambuco de escravos no
mesmo volume do período anterior ao monopólio possa ser explicado
pela própria situação de monopólio, pois, com sendo o mercado
pernambucano cativo dos administradores da Companhia, qualquer
qualidade de escravo obtinha compradores
Examinadas as cartas do governador Meneses e as representações
dos camaristas de Olinda e do Recife, bem como a produção
historiográica, chega-se à conclusão de que o crônico endividamento
dos produtores de açúcar com a Companhia resultou da própria dinâmica
da economia escravista. Nas Américas, os senhores adquiriam escravos
com crédito com a expectativa de que, com o trabalho deles, pudessem
pagar seu custo com o resultado da safra seguinte. Nas colônias
inglesas, o problema do descasamento entre o passivo em escravos e
a rentabilidade da produção agrícola gerou conlito idêntico entre os
interesses dos comerciantes e dos plantadores. Lá, a tradição britânica
de proteger a propriedade fundiária familiar da execução por dívidas
foi superada por pressão dos comerciantes junto ao Parlamento inglês,
292
que criou uma legislação especíica para as colônias, em 1732. Não
signiica, porém, que todas as colônias tivessem se sujeitado à nova lei
sem apresentar resistência, pois as assembléias coloniais relutaram em
aderir à inovação.13
Também em Pernambuco, o endividamento crônico foi fruto
da dependência da mão-de-obra escrava. Como já alertou Luís Felipe
de Alencastro, a reprodução exógena da força de trabalho construiu o
mundo atlântico e fez emergir as crônicas dívidas dos senhores, ou,
como diziam os colonos, “o empenho que não se dissolve”.14
Como os escravos que os senhores pernambucanos conseguiam
comprar eram – nas palavras dos contemporâneos – o refugo do tráico
– a racionalidade dos senhores se frustrava, pois os escravos morriam
antes de completar o ciclo de realização do investimento. Ou, na
terminologia de Gorender, que parece bastante adequada para o caso
pernambucano, trata-se da esterilização do capital.15 Considerando que
o capital não era dos senhores, cujo negócio sempre foi alavancado
em capital de terceiros, a perda dos escravos representava a completa
incapacidade de cumprir os compromissos com os credores. Somavamse a isso os termos de intercâmbio impostos pela Companhia e o
resultado foi o crônico endividamento dos produtores de açúcar, em
grandes proporções, a inviabilidade econômica das unidades produtivas,
e a profunda insatisfação dos moradores com a Companhia.
O crédito oferecido dessa forma aos produtores de açúcar era o
que os administradores da Companhia, em Lisboa e em Pernambuco,
entendiam por fomento à produção, no que eram secundados pela
Coroa.16
13
Veja-se: Claire Priest (2006), Creating an American Property Law: Alienability and its Limits
In American History. Harvard Law Review, 120, n. 2, December.
14
ALENCASTRO, Luis Felipe. O Trato dos viventes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
A expressão foi usada na representação da Câmara do Recife ao Rei, em 1º de outubro de
1777. Diz respeito às dívidas dos moradores de Pernambuco, para as quais, não se via solução.
[IHGB, I.2.11].
15
GORENDER, J. O Escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1988.
16
Carta da Junta de Administração da Companhia Geral ao governador de Pernambuco, Lisboa,
13 de fevereiro de 1778. Aviso dirigido à Junta da Administração da Companhia Geral de Per-
293
Houve mesmo fomento? A se coniar nos dados de que se dispõe,
a produção de açúcar evoluiu fortemente nos dez anos entre 1761 e 1771:
de 69,7 mil arrobas, passou para cerca de 278 mil arrobas produzidas.
No que diz respeito às unidades produtivas, também houve mudanças
importantes, pois, em 1761 contavam-se 268 engenhos e, em 1777,
havia 390 deles.17 Possivelmente o crédito concedido pela Companhia
logo no início da década de 1760 foi responsável pelo quadro de novos
investimentos e de aumento produtivo na capitania. No entanto, já em
1768 a direção da companhia recuava da política adotada e endurecia
na cobrança das dívidas, sustenta Ribeiro Jr.18
Na esteira da queda de Pombal, a crise política entre os moradores
da capitania e a Companhia se agravou e a Coroa determinou o im
do monopólio, embora, veremos ainda, os interesses da Companhia
não tenha icado inteiramente desatendidos. Apurou-se que a dívida
dos moradores da capitania com a Companhia chegava a 3 milhões de
cruzados, número que os moradores reconheciam, embora ninguém
soubesse ao certo como fora contabilizado. Como cobrar essa dívida?
As cobranças
O disseminado endividamento dos moradores de Pernambuco
inquietava os administradores da Companhia, que logo após o im do
monopólio apressaram-se em apurar o rol dos devedores e a pressionar
o governador para agir executivamente na chamada dos devedores à
responsabilidade.19 Mas a questão não era tão simples assim, pois, os
senhores traziam dívidas anteriores, embora todos soubessem disso há
muito.
Em verdade, logo no início das operações da Companhia, os
deputados administradores em Pernambuco alertam os administradores
nambuco e Paraíba, pelo Secretário de Estado Martinho de Melo e Castro, 11 de dezembro de
1789. [IHGB, lata 421, pasta 1].
17
ALDEN, Dauril. Late Colonial Brazil, 1750-1808. In, BETHELL, L. Colonial Brazil. Cambridge University Press, 1987.
18
RIBEIRO Jr, José. Colonização e monopólio. São Paulo: Hucite, 2004, p. 172.
19
AHU_ACL_CU_015, doc. 10206.
294
em Lisboa sobre as fracas garantias dos produtores de açúcar, que
traziam endividamentos contraídos anteriormente.20
Assim como era sabido que os senhores de engenho já estavam
endividados, todos sabiam que o devedor que alienasse ou obrigasse em
novo penhor os bens já obrigados a um diferente credor cometia o crime
de estelionato. Nos termos das Ordenações (Livro 5, tit 65), é o crime
de bulrão e inliçador.21 Bons bulrões que eram, os senhores de engenho
e lavradores haviam empenhado seus bens para mais de um credor. A
solução seria colocá-los a ferros, todos? Certamente, que não. Nem
seria viável politicamente, como levaria ao colapso a frágil economia
pernambucana e, com isso, os interesses da Real Fazenda.
A saída para a Companhia foi fazer cumprir os dispositivos
legais que amparavam a penhora de bens, revitalizados por importante
reforma legal do período pombalino, além disso, supõe-se, pressionar a
Coroa a não mais autorizar provisões em prol de senhores de engenho
endividados. Nos anos anteriores à Companhia, numerosas vezes os
moradores da capitania valeram-se do exemplo de senhores de engenho
da Bahia e do Rio de Janeiro e representaram aos poderes metropolitanos
em favor do privilégio de não serem executados em seus engenhos.
Em 1725, Felipe de Paes Barreto, capitão mor da freguesia do
Cabo de Santo Agostinho, e integrante de uma estirpe de longa tradição
de endividados, a montante e a jusante de sua família, encabeçou a
representação dos moradores da freguesia pedindo uma provisão que
os isentasse da execução de seus engenhos.22 Em 31 de julho de 1726,
uma provisão neste sentido foi passada aos moradores.23 Em agosto de
Transcrição paleográica de carta dos administradores da Companhia no Recife para os deputados em Lisboa, datada de 30 de junho de 1760. [José Mendes da Cunha Saraiva (1941), A
Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba, p. 32.] A versão para português corrente é nossa.
21
TEIXEIRA, Antonio Ribeiro Liz. Curso de Direito Civil português, ou comentário às instituições do Sr. Paschoal Jose de Mello Freire sobre o mesmo direito. Coimbra: Imprensa da
Universidade, 1848, p. 304.
22
AHU_ACL_CU_015, doc. 2970.
23
Feitos Findos. Conservatória Geral da Companhia Pernambuco e Paraíba, caixa 192, maço
4, n. 4. Ação civil contra a viúva e mais herdeiros de Mário Rodrigues Campelo, 1806-1808.
[ANTT].
20
295
1731, foi a vez de os camaristas de Goiana pedirem provisão similar
para os senhores de engenho de Itamaracá. Em setembro de 1731, os
moradores e senhores de engenho de Itamaracá reforçaram o pedido
dos camaristas de Goiana com o mesmo objetivo.24
Não apenas a justiça julgou as alegações dos devedores, que se
viam amparados por tais provisões, como improcedentes, como não se
encontram outras provisões isentando senhores de engenho de penhora
dos seus bens após a década de 1730. Até o este momento da pesquisa,
não se encontrou nenhuma provisão com tal teor passada aos moradores
de Pernambuco após o início das atividades da Companhia. A justiça
alegou que as provisões dos anos 1720 não foram conirmadas pelo
rei D. José I e não eram suicientes para amparar os devedores na sua
pretensão de não terem seus engenhos penhorados.25
Esses elementos nos chamam a atenção para a necessidade de
se rever a historiograia sobre o assunto. Formulações como a de Stuart
Schwartz vêm sendo tomadas como representativas da verdade para
todo o período, quando se sabe que as provisões tinha caráter precário
e privilegiado. Atingiam elas apenas seus proponentes, não podendo,
portanto ser tomadas como generalizadas, como se em toda a colônia
apenas as safras de açúcar tivessem sido e sempre o bem arrestado para
o pagamento de dívidas.26
Pelas Ordenações Filipinas o devedor condenado sofre penhora
de seus bens, que recai preferencialmente sobre bens móveis – dinheiro,
jóias, cereais – cabendo a penhora sobre bens imóveis apenas se os
primeiros não forem suicientes. Ainda assim, o executado perde o
domínio, isto é, o usufruto do bem imóvel, mas não perde do domínio
natural, o que equivale dizer que ele não perde a propriedade do bem.27
24
AHU_ACL_CU_015, documentos 3459 e 3739, respectivamente.
Feitos Findos. Conservatória Geral da Companhia Pernambuco e Paraíba, caixa 192. Idem.
26
Stuart Schwartz airma que uma decisão de 1663, que proibia o arresto de partes de um
engenho, foi reiterada em 1673, 1681, 1686, 169 e 1700, na Bahia. Ao passo que, no Rio de
Janeiro, idêntico privilégio foi estendido no mesmo período, com base no precedente baiano.
[Stuart Schwartz (1988), Segredos internos, p. 171.]
27
Código Filipino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal, doravante, Ordenações. Livro 3,
título 86, com comentários de Cândido Mendes de Almeida.
25
Entre os juristas, havia clareza de que o sistema português diferia
das demais nações europeias, para as quais Portugal se voltava para
atualizar seu direito, especialmente em matéria comercial. No que
diz respeito à questão das penhoras, o direito português sofreu bem
menos modiicações do que nas questões falimentares. Sobre penhoras,
escreveu Mello Freire: Coincide, pois, a nossa Legislação com a
Romana em conservar ao devedor o domínio nos bens dados em penhor
ou hipoteca, o que também é conforme com o código Visigothico.28 Mais
adiante, em outra passagem, Freire admite que a matéria já recebia
tratamento diferente na Alemanha.
Ainda segundo as Ordenações, se as dívidas superassem a um
terço do valor nominal da propriedade, esta podia ser objeto de penhora e
arrendamento em hasta pública, até que, com o produto do arrendamento,
a dívida fosse solucionada. Dívidas com valores inferiores a um terço
do bem poderiam ser recuperadas com penhoras sobre o rendimento
anual da propriedade até sua completa liquidação. Entretanto, dada a
obscura contagem dos juros efetuada pela Companhia, frequentemente
as dívidas dos senhores de terra de Pernambuco e da Paraíba superaram
o terço do valor nominal dos bens, e, assim, as famílias icaram sujeitas
a processos de execução.
Havia outras restrições ao direito do credor de executar seu
devedor, como já se comentou algumas. Devedores de maior qualidade
não podiam ser penhorados em seus bens de distinção – vestidos,
armas, livros. Tampouco os lavradores podiam ser penhorados nos bens
necessários para seu sustento, como bois, ferramentas. A luta política
dos moradores dos domínios lusos na América era justiicar que os
escravos e as pertenças dos engenhos eram necessários para o sustento
das famílias e, portanto, também deveriam ser protegidos de execução.
Outra restrição contida nas Ordenações dizia respeito à possibilidade
de a mulher embargar a execução, caso recaísse sobre o bem de raiz do
casal. A Lei de 20 de junho de 1774 eliminou essa restrição, podendo
haver penhora sobre os bens, à revelia da mulher. No entanto, nem tudo
28
Teixeira (1848, p. 299).
297
foi resolvido pela lei de 1774, pois institui-se uma hierarquia entre
as penhoras – as penhoras gerais e penhoras especiais. As especiais
relacionam os bens sujeitos ao arresto e tinham preferência sobre as
demais penhoras no recolhimento dos haveres. Na prática, a distinção
não era tão clara e prevalecia a tradição, ou a penhora mais antiga.
Sendo assim, o espaço para fraude estava criado e os credores podiam
correr aos notários para forjar documentos e se assenhorear dos bens do
devedor, uns antes dos outros.
Rui Marcos considera que as mudanças na legislação instituídas
no período pombalino garantiram maior certeza do direito. Quanto às
penhoras, a lei de 1774 eliminou obstáculos nos processos, como a
necessidade de citar a mulher, mas restaram diiculdades de interpretação,
especialmente no que tange às penhoras especiais e as gerais.293 As
incertezas foram sendo julgadas pela Casa de Suplicação, que proferiu
assentos sobre numerosas matérias. Entretanto, não estou certa de que
a linguagem cifrada dos assentos da Suplicação foi compreendida
inequivocamente por todos os juízes, boa parte deles formado na escola
antiga, dependentes, portanto, de Accurcio e Bártolo para julgar.
Mais ainda, os casos envolvendo as Companhias pombalinas
eram julgados por foro privilegiado, teoricamente de modo mais célere
do que na justiça ordinária. Ainda que os juízes se mostrassem tendentes
a acatar os argumentos dos credores, a execução das sentenças dependia
dos poderes locais, que era um espaço de poder por onde os senhores de
engenho transitavam muito bem. Vejamos o porquê.
Houve poucos leilões do arrendamento de propriedades
encontrados no conjunto dos bens penhorados até 1793. Em proporção
inversa, contam-se os extravios de sentenças. Precisamente, a lista de
1793 menciona 103 (27,9%) casos de extravio de sentença em algum
ponto do processo, e 36 (9,75%) extravios de processos inteiros. Como
o efeito de sumir com a sentença ou com o processo é o mesmo, isto
é, adiar a decisão judicial desfavorável, pode-se somar as duas ações e
29
MARCOS, Rui Figueiredo. A legislação pombalina. Alguns aspectos fundamentais. Coimbra: Almedina, 2006.
298
airmar que em 37,6% dos casos de penhora, algum papel importante
foi suprimido do processo. Aliás, quanto mais distante do Recife, menor
o controle dos administradores da Companhia sobre o andamento dos
processos na justiça
Uma visão parcial do endividamento das famílias moradoras
de Pernambuco junto à Companhia Geral pode ser obtida na listagem
concluída em novembro de 1793 para informar os acionistas em Portugal
sobre a situação das dívidas: o quanto se devia e o quanto já havia sido
arrecadado até então.30 No rol de 1793, encontramos 369 registros de
penhoras de bens. Cabe observar que um mesmo devedor podia dar
origem a mais de um registro, embora constatemos que na descrição
dos processos judiciais é recorrente que um mesmo devedor sofra mais
de uma penhora no tempo. De toda forma, os registros contêm, salvo
equívocos do escrivão e diiculdades de transcrição, o nome do devedor,
a data da primeira penhora, o nome do depositante ou iador (conforme
a situação), o valor da penhora (tomemos isso como o valor histórico
da dívida), além de uma descrição rápida sobre o que se fez para reaver
o valor emprestado pela Companhia. O valor total apurado nesses 369
registros é de 784:378$030 rs, que deve ser entendido como o valor
devido ao tempo das penhoras. Este não é o valor do principal corrigido
com o dos juros e custos administrativos. Tampouco é possível precisar
o valor real dos bens pelo valor penhorado, pois, assim como há registros
em que, nitidamente, o valor dos bens penhorados é menor que o valor
das dívidas, há casos em que os administradores da Companhia devem
ter penhorado a mais do que o necessário. Convém raciocinar, portanto,
que as penhoras eram medidas preventivas para que, na eventualidade
de outros credores investirem sobre os mesmos bens dos devedores, e
isso acontecia recorrentemente, a Companhia tivesse preferência sobre
esses bens.
Quanto ao tempo decorrido entre a penhora e a feitura da lista,
25 (6,7%) registros de penhora são datados desde antes de 1760 até o
30
Relação do estado de execuções que a Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba faz aos
seus devedores, 1770 a 1793. [AHU, Cód. 1155]
299
ano de 1775, 58 (15,7%) penhoras aconteceram entre 1776 e 1789, e
276 (74,8%) foram realizadas entre 1781 e 1793. Isso signiica que a
lista relete as ações mais recentes dos administradores da Companhia
em Pernambuco, relativamente ao ano de fechamento do documento.
Os credores dispunham de instrumentos institucionais poderosos
para coagir os devedores, entretanto, observa-se que este poder quase
nunca foi empregado e a Companhia preferiu receber parcelas das
dívidas a criar situações para que os devedores as quitassem. Airmamos
isso com base na constatação de que, dos casos examinados, apenas dez
(2,7%) resultaram em prisão efetiva do devedor, ainda que temporária.
Há sete menções à emissão de mandados de prisão (não efetivados)
contra devedores e apenas dois mandados contra depositário ou iador.
Além da ameaça de prisão, outro instrumento de força contra os
devedores é a possibilidade de perda do domínio dos bens penhorados
através da colocação em hasta pública para arremate. Entretanto, isso
aconteceu em apenas 31 casos, ou 8,4% dos registros de penhora.
Para saber se a penhora signiica a perda deinitiva do bem é preciso
observar se o devedor perdeu o domínio sobre ele, isto é, se o escravo,
ou o engenho ou a casa foi depositado em mãos de terceiros. Nessas
situações, o devedor perdia acesso ao rendimento da propriedade ou,
quando se tratava de escravo, perdia a capacidade de explorar o trabalho
do cativo. É bastante frequente na lista de 1793 o devedor coincidir com
o depositário, isso signiica que a maior parte dos devedores continuava
usufruindo da sua propriedade, embora tivessem que abrir mão de parte
importante da sua renda para a Companhia.
Uma situação drástica acontecia quando a Companhia colocava
na praça o arrendamento do bem penhorado, quase sempre um engenho
de açúcar. Entretanto, isso aconteceu apenas cinco vezes nos casos que
examinamos. Com menor frequência nos dados que examinamos até
o momento ocorrem leilões de engenhos penhorados, a exemplo do
engenho Pitribú, de Salvador Coelho Dumonte, avaliado em 4:760$940.
Os escrivães anotaram que o engenho, com suas pertenças e escravos,
fora penhorado em dezembro de 1779, e seu arrendamento foi sido
300
levado à hasta pública no Recife, onde foi arrematado por um certo
João Pereira de Lucena.
Mesmo havendo arrematação dos bens, com frequência isso
recai sobre parcela deles; a dívida era reduzida, mas não era eliminada.
Há casos em que o devedor continuou respondendo pela dívida com
outros bens e há outros em que o arrematador assumiu a antiga dívida.
Resumindo: não é simples acompanhar a lógica dos negócios da
Companhia, inclusive porque não está clara a taxa de juros empregada
e a evolução das dívidas por vezes é assustadora.
Se penhorar a propriedade e promover o leilão público do seu
arrendamento era a medida legal legítima que amparava o direito dos
credores na recuperação de créditos a senhores de engenho e lavradores,
por que há tão poucos registros de leilão entre os devedores à Companhia?
Porque o mercado local dispunha de poucos compradores interessados
no negócio. Até mesmo a Fazenda Real, que contava com indiscutível
preferência sobre qualquer sorte de credor no recebimento de créditos,
evitava promover leilões do arrendamento de propriedades, como se
lê na provisão de lei, datada de 30 de abril de 1788, que regulou a
execução dos devedores da Fazenda na Paraíba.31
Pelas razões acima comentadas, os administradores dos bens
da Companhia, fossem em Pernambuco, fossem em Lisboa, evitaram
usar os recursos legais de que dispunham para levar o arrendamento
de propriedades a leilão. Nem por isso, os moradores da capitania se
viram livres das cobranças das parciais de suas dívidas. Sendo assim,
parcela expressiva da renda dos produtores de açúcar continuou a ser
apropriada por capitais de Lisboa, na forma de pagamentos de dívidas.
Outra parcela icou retida nas mãos dos grandes comerciantes da praça
do Recife, que não eram devedores da Companhia e, ao contrário,
apresentavam-se como o único recurso para os senhores de engenho
obterem dinheiro. Vejamos exemplos de algumas dívidas nas famílias
de proprietários.
31
Provisão transcrita no requerimento apresentado pelos administradores dos bens da Companhia em Pernambuco, anexado na ação civil contra a viúva e mais herdeiros de Mário Rodrigues
Campelo. [ANTT, caixa 192, maço 4, n. 4]
301
Em 1786, os herdeiros de Francisco do Rego Barros foram
penhorados em 589$776 rs, na forma de 17 escravos e 20 bois. Se
tomarmos o valor médio de um escravo por 60$000 rs, mesmo sem
conhecer detalhes quanto a idade, gênero, condição física do escravo,
o valor dos escravos no conjunto dos bens penhorados chegaria a
1:020$000 rs.32 Talvez o escrivão tenha registrado alguma quantidade
errada, podemos pensar. Vicente Gurjão devia 118$160 rs em 1785 e
chegou a julho de 1793 devendo 1:300$215 rs, ou 11 vezes o valor
original! Se a legislação proibia terminantemente a cobrança de juros
sobre juros, a evolução das dívidas pode ser explicada pelos elevados
custos administrativos e judiciais.
Por todos esses elementos mencionados acima, somos levados a
pensar que a Companhia preferia contar com um luxo de pagamentos
permanente a receber bens que não poderia administrar ou teria
diiculdade para encontrar arrendatário na praça do Recife.
Quanto aos Paes Barreto, família com base na Mata Sul
pernambucana, particularmente na região de Ipojuca, a trajetória de
seu endividamento se estende do início do século XVIII até meados do
XIX. Como já se comentou, Felipe Paes Barreto encabeçou, em 1725,
uma representação ao rei pedindo isenção de execução por dívidas.
Pela lista de 1793, Estevão José de Paes Barreto, titular do Morgado do
Cabo de Santo Agostinho, devia 11 contos de réis à Companhia e, por
isso, sofreu penhora na renda do engenho Jurissaca. De modo típico,
a sentença foi extraviada do processo.33 Seus parentes, Francisco Paes
Barreto, Estevão Paes Barreto de Albuquerque, Estevão Paes Barreto e
Melo e João Paes Barreto de Melo também são citados como devedores
em valores que vão de 1,9 a 6,7 contos de réis. Em 1810, Estevão Paes
Barreto já havia falecido e seu ilho, Francisco, administrava o Morgado
32
É possível que o preço de arremate do lote de escravos fosse menor que o preço individual.
No registro de João Vieira de Melo, menciona-se que os 5 escravos penhorados em 1788 foram
vendidos em hasta pública por 234$000 o conjunto, ou cerca de 46$000 cada um. Também é
possível pensar que comprar escravos dessa forma devia ser bom negócio. Já Manoel Alves
Pereira teve um escravo seu arrematado por 104$000, em 1776, e José Moraes Navarro Júnior
teve um escravo vendido por 80$000, em 1791.
33
AHU_ACL_CU_015, doc. 1155.
302
do Cabo. Na ocasião, os Paes Barreto obtiveram sentença contra a
administração da Companhia, datada de 20 de agosto. O juiz, cujo nome
não é mencionado, acatou o argumento de que a dívida não havia sido
contraída em benefício e melhoramento dos bens do morgado. Como a
sentença não foi publicada, isto é, não foi submetida aos rigores exigidos
pela lei,34 a Administração da Companhia em Pernambuco continuou
a contabilizar a dívida dos Paes Barreto, que chegava a 23 contos de
réis, conforme o balanço fechado em dezembro de 1848. Em maio de
1851, a questão desta dívida foi novamente trazida à apreciação dos
administradores dos fundos remanescentes da Companhia em Lisboa,
com o argumento de que a decisão de 1810 era imperfeita e ainda
cabia espaço jurídico para cobrar algo dos descendentes da família.
O administrador e acionista, Ignácio Pedro Quintella Emaús não se
convenceu com os argumentos dos administradores de Pernambuco e
deu por perdida a dívida dos Paes Barreto.35
Como se viu, os administradores da Companhia dispunham de
muitos instrumentos para criar problemas para os devedores: ameaça de
prisão, de perda do domínio dos bens, exposição a vexames públicos.
Na verdade, as famílias de devedores sofreram com as consequências
do endividamento: perda de renda e queda no valor das propriedades.
Restou às famílias pernambucanas conviver com o problema a partir de
manobras junto aos poderes locais para protelar a execução da dívida,
talvez à espera de um perdão real.
Falências
Adam Smith já propugnava que a atitude moderada dos
capitalistas era uma virtude a ser cultivada, pois a perspectiva de falência
assombrava a todos com a perda da reputação e, consequentemente, do
crédito entre os pares: “Bankruptcy is perhaps the greatest and most
34
Escreveu Manuel de Almeida e Sousa (1865, p. 18): “é necessária sentença passada em julgado para ser exeqüível pelo ofício do juiz. Para uma sentença ser exeqüível é necessário, além
de passada em julgado, seja solenizada com os requisitos.”
35
ANTT, Feitos Findos, Conservatória Geral da Companhia Pernambuco e Paraíba, caixa 191.
303
humiliating calamity which can befall an innocent man. The greater
part of men, therefore, are suficiently careful to avoid it. Some, indeed,
do not avoid it; as some do not avoid the gallows.”36
Em sua investigação, Jorge Pedreira observou que também
os homens de negócio de Lisboa limitavam gastos de representação
em mansões, vestimentas, jóias e mobiliário.37 Assim, ao agir
preventivamente contra eventuais infortúnios nos negócios, os grandes
comerciantes preservavam sua própria reputação: principal defesa em
favor de sua boa fé na hipótese de falências. Para aqueles matriculados
na Real Junta do Comércio, esta instituição de representação do corpo
mercantil também cumpria o importante papel de mediar disputas
mercantis regulares e excepcionais, como as quebras mercantis.38
Conforme o jurista Pascoal de Mello Freire, o apanágio da
falência não se estende a lavradores e compreende apenas uma parcela
dos comerciantes, os maiores entre eles, que eram matriculados na Junta
do Comércio. Nas palavras de Freire, falência é um privilégio concedido
aos mercadores que, vendo diminuído o seu crédito e reputação
dissolvem o negócio icando imunes de todas as penas.39 Por esse
entendimento, senhores de engenho não falem, tornam-se inadimplentes.
Assim, sua eventual incapacidade de honrar compromissos inanceiros
não é amparada pelos mesmos arranjos institucionais, corporativos, que
presidiam o insucesso nos negócios de comerciantes. Nem por isso,
como se vê, os lavradores deixaram de encontrar soluções políticas para
continuar à frente de suas propriedades.
Outro, porém, foi o tratamento oferecido aos grandes
comerciantes, matriculados na Junta do Comércio. Para eles, o rito de
falência seguia a disposições legais próprias, contidas na Lei de 13 de
abril de 1756, e distintas das Ordenações.40 O legislador pombalino
36
Adam Smith, Riqueza das Nações, citado por Nathan Rosenberg (1974), Adam Smith on
Proits – Paradox Lost and Regained.
37
Jorge Pedreira (1995), Homens de negócio, p. 317.
38
Como comenta Pascoal de Melo Freire (1966), Antologia de texto sobre inanças.
39
Pascoal de Melo Freire (1966), Antologia de textos sobre inanças e economia, § XXXI.
40
Rui Marcos (2006), A legislação pombalina.
304
buscou cercar o trato mercantil de vários dispositivos institucionais para
proteger os credores e afastar os maus comerciantes – os que perdessem
o crédito – do convívio entre os pares. Os ritos de falências, ao contrário
do processo de penhora de proprietários de terra, eram mais rápidos e
decisivos. Não fosse o comerciante capaz de provar boa fé e conduta
proba, seus credores dispunham de meios para promover o rateio entre
si de todos os seus bens, até o último real.
Entre os comerciantes, a questão das garantias legais à retomada
plena e célere dos empréstimos parece ter sido contornada com o recurso
a mecanismos informais de controle sobre a conduta dos devedores, isto
é, pelo monitoramento de suas reputações. Dessa forma, os credores
contornavam o problema da assimetria de informações acerca da
probidade dos devedores e de sua real situação patrimonial.
Entretanto, na hipótese de atraso no pagamento da dívida,
preferia-se recorrer a mediações e negociações a acionar os caminhos
da justiça, cujos procedimentos para retomar créditos eram dilatados
e onerosos. Isso porque a ameaça de perda de credibilidade constituía
um poderoso mecanismo de controle moral sobre o eventual
comportamento oportunístico dos devedores, daí a sua eicácia.41 Não
sendo isso suiciente, havia recursos legais e institucionais à disposição
para extirpar o mau comerciante da praça.
Em 1814, o importante comerciante do Recife, Gervásio Pires
Ferreira, denunciou Francisco José da Costa Guimarães à Mesa da
Inspeção por falta de boa fé na sua conduta nos negócios.42 O acusado
empregara capital de terceiros para tentar o resgate de escravos
na costa africana com a galera Águia Douro. Como a embarcação
naufragou, Guimarães icou exposto sem ter como honrar as dívidas
que contraíra, estimadas em 4,5 contos de réis. O corpo mercantil do
Recife não teve tolerância com Guimarães, pois, alegou, Gervásio, o
falido não apresentara seus livros em tempo hábil e perdera a coniança
41
Homens de negócio evitavam recorrer à Justiça para reaver créditos preferindo arranjos arbitrais, como sustentam Jorge Pedreira (1995, p. 351), e Rui de Figueiredo Marcos (1997,
779-80).
42
Real Junta do Comércio e Fábricas. Caixa 409, pct. 2. [Arquivo Nacional]
305
dos comerciantes por suas atitudes escandalosas nas rodadas de jogo
no sítio da Ponte do Uchoa. Curiosamente, o tal sítio era o refúgio
rural conhecido de outro grande comerciante, Bento José da Costa,
contraparente de Gervásio.43
A tentativa de Guimarães de ser admitido em uma cadeia de
relações mercantis em Pernambuco resultou em desastre. O pedido de
sua falência foi aceito, encaminhado à Real Junta, que pronunciou a
sentença inal, condenatória, em junho de 1825. A essa época, Guimarães
já havia falecido e o processo não menciona a existência de herdeiros
habilitados para responder pelas dívidas.
As desavenças comerciais entre dois irmãos resultaram em um
processo mais rumoroso do que o anteriormente citado. Em Lisboa,
Manoel Caetano Veloso constituiu sociedade com seu irmão, José
Veloso da Silveira, que se ixou no Recife. Vale destacar que os irmãos
constituíram sociedade mediante contrato formal, registrado por notário,
o que parece incomum entre pessoas que se conhecem bem. Em janeiro
de 1810, o irmão de Lisboa representou a D. João VI para que o irmão
fosse obrigado a prestar contas do negócio, no que foi atendido. Teve
início assim, a devassa nas contas de José Veloso, sendo que os livros
e a liquidação da sociedade icaram ao encargo de dois comerciantes
louvados, um deles era Bento José da Costa. Gervásio Pires Ferreira
era procurador de Manoel Caetano Veloso, o irmão de Lisboa. Por im,
em julho de 1822, Manoel Caetano obteve sentença favorável na Real
Junta e a dívida de José Veloso foi apurada em 39.822$102 réis, coberta
por todos os bens disponíveis do comerciante falido.44
A seleção dos dois processos de falência está longe de constituir
uma amostra adequada do universo das questões comerciais julgadas
pela Real Junta. Ainda assim, sugerem que o tempo de trâmite de um
43
Para as relações familiares, políticas e de negócios entre Gervásio Pires Ferreira e Bento José
da Costa, veja-se: MARQUES, Teresa Cristina de Novaes. Famílias e conspiradores em Pernambuco, 1817. Revista do Instituto Histórico e Geográico Brasileiro, a.170, n. 443, abr./jun.
2009, p. 267-286. O sítio de Bento José da Costa é citado por Pereira da Costa, na obra Anais
Pernambucanos, volume 7.
44
Real Junta do Comércio e Fábricas, caixa 409, pacote 3. [Arquivo Nacional].
306
processo falimentar esteve em torno de 10 a 12 anos, o que é bem
menos que uma vida inteira, como são os processos de penhora que se
arrastavam por gerações, mas não chega a cumprir a promessa da Lei de
1756 de promover o rateio dos bens do falido em poucos dias.
Considerações inais
A Companhia Pernambuco e Paraíba deixou uma memória
de tensão na capitania e de insatisfação entre os acionistas do Reino,
porque o nível de endividamento dos produtores mostrou-se superior à
sua capacidade econômica, e ao mesmo tempo, o arranjo institucional
que amparava a atuação da Companhia articulado em torno do foro
privilegiado mostrou-se insuiciente para garantir a recuperação total
dos empréstimos concedidos. No início do século XIX, apenas os
acionistas remanescentes da Companhia consideravam justa a cobrança
das dívidas, àquela altura, incobráveis.
307
TERCEIRA PARTE
Entre supressão e consolidação:
os aldeamentos jesuíticos
na Amazônia portuguesa (1661-1693)
Karl Heinz Arenz
Universidade Federal do Pará
No dia 1º de janeiro de 1686, o jesuíta João Felipe Bettendorff
escreveu de Lisboa ao Superior Geral Charles de Noyelle em Roma:
“Todos são unânimes: sem a administração temporal dos índios, a
Missão não pode subsistir.”1 Preocupado com o rumo das negociações
morosas acerca de um modus vivendi aceitável para os missionários
inacianos e os colonos da Amazônia Portuguesa2, o padre luxemburguês
viu somente duas opções para a Companhia de Jesus: ou recuperar o
controle integral sobre os aldeamentos ou suprimir de vez a Missão do
Maranhão3. No im do mesmo ano, em 21 de dezembro, a promulgação
do Regimento das Missões trouxe inalmente um compromisso viável.
Os aldeamentos4 ganharam uma expressiva autonomia que eles
guardariam até a substituição do novo regulamento pelo Diretório dos
1
Carta de Bettendorff a de Noyelle, 01/01/1686. Archivum Romanum Societatis Iesu (ARSI)
cód. Bras 26, l. 129r. Traduzido do latim pelo autor.
2
Usa-se aqui o termo Amazônia Portuguesa para designar o Estado do Maranhão e Grão-Pará que, entre 1621 e 1772, ocupou aproximadamente o espaço entre a Serra de Ibiapaba
(Ceará) e o Rio Solimões (Amazonas).
3
Missão do Maranhão era a designação oicial da circunscrição administrativa da Companhia
de Jesus na Amazônia Portuguesa. Fundada por iniciativa do padre Luiz Figueira, em 1639, ela
foi transformada em Vice-Província no ano de 1727. Referente à história da Missão no século
XVII, ver ARENZ, Karl Heinz. De l’Alzette à l’Amazone: Jean-Philippe Bettendorff et les
jésuites en Amazonie portugaise (1661-1693). Luxemburgo: Institut Grand-Ducal, 2008. pp.
107-154. (Publications de la Section historique, 120).
4
Aplica-se neste trabalho o termo aldeamento enquanto núcleo habitacional concebido, conforme os cálculos dos religiosos ou autoridades, para a evangelização dos índios, diferenciando-o
de aldeia como lugar escolhido e habitado por índios sem coerção ou pressão exterior. Nas fontes históricas predomina geralmente a última designação para as missões. Ver ALENCASTRO,
Luiz Felipe de. L’histoire des Amérindiens au Brésil. Annales – Histoire, Sciences Sociales,
Paris, v. 57, n. 5, p. 1327, set.-out. 2002.
311
Índios em 1757. Em contrapartida, os inacianos tiveram que ceder no
que diz respeito ao trabalho dos índios fora das missões.
De fato, os debates e conlitos relativos ao status jurídico dos
índios marcaram profundamente, sobretudo durante a segunda metade
do século XVII, o processo de formação da sociedade colonial no Estado
do Maranhão e Grão-Pará. Fundada em 1621, esta colônia tardia teve
como uma das principais bases de sua precária airmação econômica e
sua lenta expansão geoestratégica as missões onde se concentrava – sob
o controle imediato dos missionários – a única mão-de-obra disponível
para o extrativismo lorestal que, aliás, revelou ser pouco rentável. Os
primeiros aldeamentos na Amazônia Portuguesa foram implantados
pelos franciscanos de Santo Antônio5 com o intuito de catequizar os
índios e, ao mesmo tempo, integrá-los ao sistema mercantil à base de
trabalho servil. Com a presença de Antônio Vieira, entre 1653 e 1661,
a rede de missões difundiu-se largamente, mas, ao mesmo tempo,
aumentaram as tensões com os moradores6. Ciente do fracasso da
experiência dos aldeamentos no Estado do Brasil, no im do século
XVI, em razão de dissensões internas e da falta de disposições jurídicas
eicazes7, este ilustre inaciano buscou, por meio de uma legislação sem
ambigüidades, obter o monopólio espiritual e temporal da Companhia
de Jesus sobre os índios na Amazônia8. Vieira alcançou seu objetivo,
5
Ver SARAGOÇA, Lucinda. A ação dos Franciscanos e dos Jesuítas na conquista e povoamento da Amazônia (1617-1662). 1ª parte. Brotéria – Cultura e Informação, Lisboa, v. 150,
n. 5/6, pp. 612-624, maio-jun. 2000; MARQUES, João Francisco. Frei Cristóvão de Lisboa,
Missionário no Maranhão e Grão-Pará 1624-1635, e a defesa dos Índios brasileiros. Revista da
Faculdade de Letras – História, Porto, n. 13, pp. 338-350, 1996.
6
Dauril Alden fala de mais de cinquenta missões fundadas por Vieira. Ver ALDEN, Dauril. The
Making of an Enterprise: the Society of Jesus in Portugal, its Empire, and Beyond (1540-1750).
Stanford: Stanford University Press, 1996. p. 113.
7
Ver CASTELNAU-L’ESTOILE, Charlotte de. Les ouvriers d’une vigne stérile: les jésuites et
la conversion des Indiens au Brésil (1580-1620). Lisboa/Paris: Centro Cultural Calouste Gulbenkian, 2000. p. 258-272. Referente à instalação dos aldeamentos no Brasil, ver MONTEIRO,
John Manuel. The Crises and Transformations of Invaded Societies: Coastal Brazil in the Sixteenth Century. In: SALOMON, Frank; SCHWARTZ, Stuart (Eds.). The Cambridge History of
the Native Peoples of the Americas (v. 3/1): South America. Cambridge: Cambridge University
Press, 1999. pp. 997-1005.
8
Ver SARAGOÇA, Lucinda. A ação dos Franciscanos e dos Jesuítas na conquista e povoamen-
312
mas a sua atuação na Amazônia desencadeou, nas palavras de Heinrich
Böhmer, “uma guerra de trinta anos contra os colonos”9. No entanto,
as décadas agitadas que seguiram o levante de 1661 foram pouco
contempladas pela historiograia tradicional. Até Seraim Leite, na sua
monumental História da Companhia de Jesus no Brasil, passa logo do
perdão real concedido aos revoltosos, em 1662, à chegada do primeiro
bispo, em 167910. O presente texto visa analisar esta fase crucial da
história amazônica que se estende de 1661, a expulsão de Vieira, a 1693,
a divisão das missões, tendo como enfoque principal os aldeamentos
que, constituindo a base das dinâmicas sociopolíticas e econômicas da
colônia, reletem o mal-estar geral que impregnou estas três décadas.
Uma segunda insurreição que irrompeu no Maranhão, em 1684, o
comprova. Neste contexto, a atuação do já mencionado padre João
Felipe Bettendorff e as negociações em torno do Regimento das Missões
serão destacados. Este jesuíta luxemburguês, mesmo conhecido como
autor da voluminosa Crônica dos Padres da Companhia de Jesus no
Estado do Maranhão11, continua sendo um incógnito da historiograia.
As fontes que embasam o presente texto são, além da referida crônica,
sobretudo as cartas jesuíticas contemporâneas arquivadas no Archivum
Romanum Societatis Iesu (ARSI) em Roma12.
to da Amazônia (1617-1662). 2ª parte. Brotéria – Cultura e Informação, Lisboa, v. 151, n. 1,
pp. 45-48, jul. 2000; WRIGHT, Robin Michel. Destruction, Resistance, and Transformation:
Southern, Coastal and Northern Brazil (1580-1890). In: SALOMON; SCHWARTZ, 1999, p.
305-311; COUTO, Jorge. Vieira e a fundação das missões jesuíticas no Estado do Maranhão e
Grão-Pará. Voz Lusíada, Lisboa, v. 9, p. 64-65, 2º sem. 1997; PÉCORA, Alcir Bernárdez. Tópicas políticas dos escritos de Antônio Vieira. Voz Lusíada, Lisboa, v. 9, pp. 37-38, 2º sem. 1997.
9
BÖHMER, Heinrich. Les Jésuites. Paris: Lib. Armand Colin, 1910. p. 183
10
Ver LEITE, Seraim. História da Companhia de Jesus no Brasil. T. 4. Rio de Janeiro/Lisboa:
Livraria Portugalia/Instituto Nacional do Livro, 1943. pp. 70-71.
11
BETTENDORFF, João Felipe. Crônica dos Padres da Companhia de Jesus no Estado do
Maranhão. Belém: Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves/Secretaria de Estado da Cultura, 1990 [1698]. 697 p. (Col. Lendo o Pará, 5). Além da crônica, Bettendorff publicou um catecismo bilíngüe: Compendio da doutrina christam na língua portuguesa, & brasílica. Lisboa:
Oficina de Miguel Deslandes, 1687. 142 p.
12
Referente aos escritos de Bettendorff e à correspondência jesuítica no século XVII, ver
ARENZ, 2008, pp. 198-231.
313
João Felipe Bettendorff nasceu em 1625, em Lintgen, no então
Ducado de Luxemburgo, e entrou, após os estudos das humanidades,
da ilosoia e do direito romano, no noviciado da Companhia de Jesus
na Província Galo-Belga13. Logo após a sua ordenação sacerdotal, em
1659, ele viajou a Portugal para se preparar ao trabalho missionário na
Missão do Maranhão, à qual ele foi destinado. No dia 20 de janeiro de
1661, ele aportou, junto com seu compatriota Gaspar Misch, em São
Luís. Logo em seguida, os dois foram enviados pelo Superior Antônio
Vieira ao vale do Amazonas: Bettendorff se instalou como missionárioresidente na foz do Tapajós (hoje Santarém), Misch nas cercanias de
Gurupá14. Poucos meses depois, irrompeu o levante contra a Companhia
de Jesus em Belém e São Luís. O motivo principal pela revolta dos
moradores era o acesso restrito à mão-de-obra indígena por causa de
uma lei, promulgada em 1655, por iniciativa do padre Antônio Vieira15.
Encorajados pela hesitação do governador Pedro de Mello e pela
instabilidade política na metrópole, os moradores decidiram a expulsão
dos inacianos16. De fato, desde a chegada de Vieira à Amazônia, em
1653, a secular controvérsia ibérica acerca da “liberdade dos índios” –
Seraim Leite fala da “magna questão da liberdade”17 – agitou também
esta região de colonização tardia e precária18. O jesuíta português
visou, antes de tudo, a uma substituição da legislação anterior de
13
Ver informações fornecidas nas disposições testamentárias de Bettendorff, Luxemburgo/
Tournai/Dinant, 1647-1651. Archives nationales du Grand-Duché de Luxembourg (ANL) cx.
A-XXXVIII-6, l. 1r-10r.
14
Ver BETTENDORFF, 1990, pp. 147-174.
15
“Lei sobre os Índios do Maranhão”, 09/04/1655. Anais da Biblioteca Nacional (ABN) vol. 66
(1948), pp. 25-28.
16
Ver BETTENDORFF, 1990, p. 174-184; AZEVEDO, João Lúcio de. Os jesuítas no Grão-Pará: suas missões e a colonização. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1930. pp. 123-129.
17
LEITE, 1943, p. 1. O jesuíta Leite trabalha a questão de maneira muito apologética. Ibid.,
pp. 1-94.
18
Com respeito ao debate ilosóico-jurídico sobre a “liberdade dos índios” na Amazônia, ver
KIEMEN, Mathias. The Indian Policy of Portugal in the Amazon Region: 1614-1693. Washington: Catholic University of America Press, 1954. pp. 48-65; SARAGOÇA, 2000, pp. 37-57;
FREITAS, Décio. Cronologia da escravidão dos índios no Brasil. In: BEOZZO, José Oscar
(Org.). Leis e regimentos das missões: política indigenista no Brasil. São Paulo: Loyola 1983.
pp. 93-98.
314
caráter ambíguo. Com efeito, uma lei de 1647 havia abolido todo tipo
de administração sobre os índios na Amazônia, declarando-os livres,
sobretudo no que diz respeito à escolha do trabalho19. Esta disposição
abrira uma brecha para uma escravidão mais do que camulada20.
Contudo, a intransigência de Vieira – Maria Beatriz Nizza da Silva
a caracteriza de “incapacidade de compromisso político”21 – e sua
insistência no monopólio da Companhia de Jesus sobre os indígenas
produziram uma escalada irreversível do conlito que atingiu o seu auge
com a primeira expulsão dos jesuítas em 1661.
Não obstante, a lei de 1655 foi um sucesso para Vieira, pois
ela instaurara implicitamente a “dupla administração”, espiritual e
temporal, dos missionários inacianos sobre os índios catecúmenos e
neóitos, mediante a interdição de qualquer interferência dos poderes
locais – militares ou civis – em assuntos concernentes aos indígenas. A
tutela jesuítica estendeu-se também aos índios “do sertão”, formalmente
obrigados a aceitar a pregação22. Apesar das intervenções dos colonos
na metrópole, após a morte de D. João IV, uma provisão da regente
D. Luísa de Gusmão, de 1658, acabou reforçando o monopólio dos
jesuítas23. A argumentação vieiriana partiu da ideia que poderíamos
designar de “liberdade tutelada dos índios” ou, segundo uma expressão
19
“Ley por que Sua Magestade mandou que os Indios do Maranhão sejão livres”, 10/11/1647.
ABN vol. 66 (1948), pp. 17-18.
20
Ver BEOZZO, 1983, pp. 103-105. Até o breve papal Commissum nobis (1639) de Urbano
VIII denunciou implicitamente os abusos cometidos contra os índios na América Portuguesa no
início do século XVII. Ver MARZAL, Manuel Maria. Tierra encantada: tratado de antropología religiosa de América Latina. Madrid: Trotta, 2002. p. 301.
21
SILVA, Mara Beatriz Nizza da. Vieira e os conlitos com os colonos do Pará e Maranhão.
Luso-Brazilian Review, Madison, v. 40, n. 1, p. 79, verão 2003.
22
Ver TAVARES, Célia Cristina da Silva. A escrita jesuítica da história das missões no Estado
do Maranhão e Grão-Pará (século XVII). In: CONGRESSO INTERNACIONAL, 2005, Lisboa. Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades. Disponível em: <http://cvc.
instituto-camoes.pt/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=76&Itemid=69>.
Acesso em: 19 abr. 2010. p. 7; PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos:
os princípios da legislação indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII). In: CUNHA,
Manuela Carneiro da (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras/
FAPESP/Secretaria Municipal de Cultura, 1998. pp. 123-124.
23
“Provisão sobre a liberdade do Gentio do Maranhão”, 10/04/1658. ABN vol. 66 (1948), p. 29.
315
de Dauril Alden, protective liberty24. Este conceito foi formulado pela
Escola de Salamanca, no im do século XVI, com base nos princípios da
universalidade dos direitos naturais dos povos e da incondicionalidade
da ação e eicácia da graça divina25. Uma referência ainda maior para
Vieira foi, porém, a obra De Indiarum iure ou Politica Indiana26, um
comentário prático da legislação indigenista castelhana publicado,
em 1639, por Juan de Solórzano y Pereyra (1575-1655)27. Seguindo
o raciocínio deste jurista espanhol, Vieira insistiu na primazia da
“soberania natural” dos povos indígenas sobre a mera subjugação. Por
isso, ao relatar a paciicação dos Nheengaíbas, ocorrida em 1658 ou
1659 na foz do Amazonas, ele descreve detalhadamente a cerimônia de
vassalagem como ato público que respeita, ao menos formalmente, este
princípio da soberania nativa28.
Contudo, a já mencionada revolta de 1661 pôs im à luta de
Vieira pela “liberdade dos índios”. Expulso em setembro do mesmo
ano29, ele foi, dois anos mais tarde, impedido de retornar à Amazônia.
24
ALDEN, Dauril. Black Robes versus White Settlers: the Struggle for “Freedom of the Indians” in Colonial Brazil. In: GIBSON, Charles; PECKHAM, Howard. (Eds.). Attitudes of
Colonial Powers Toward the American Indian. Salt Lake City: University of Utah Press, 1969.
pp. 39-40.
25
Referente aos principais pensadores e ensinamentos da Escola de Salamanca, ver MARTÍN,
Ramón Hernandez. Francicso de Vitoria et la « Leçon sur les Indiens ». Paris: Cerf, 1997. pp.
17-44, 58-99; QUILLIET, Bernard. L’acharnement théologique: histoire de la grâce en Occident, IIIe-XXIe siècles. Paris: Fayard, 2007. pp. 338-341.
26
PEREYRA, Juan de Solórzano y. Politica indiana. 3 v. Madrid: Fundación José Antonio de
Castro, 1996. L + 2939 p.
27
Com respeito a Solórzano, ver BACIERO, Carlos. Juan de Solórzano Pereira y la defensa del
índio en América. Hispania Sacra, Madrid, v. 58, n. 117, pp. 263-327, 2006. Vieira prometeu
enviar um exemplar de De iure Indiarum aos jesuítas na Amazônia. Ver carta de Vieira a Consalvi, 02/04/1680. In: AZEVEDO, João Lúcio de (Ed.). Cartas do Padre Antônio Vieira. T. 3.
Lisboa: Imprensa Nacional, 1971. p. 450. Alden conirma a ainidade de Vieira com o pensamento de Solórzano. Ver ALDEN, 1969, p. 37.
28
“Copia de huma carta para El Rey N. Senhor sobre as missões do Searà, do Maranham, do
Parà, e do grande Rio as Almazonas escrito pelo Padre Antonio Vieira da Companhia de Iesu,
pregador de Sua Magestade, e Superior dos Religiosos da mesma Companhia naquella Conquista”, s/l, 28/11/1659. ARSI cód. Bras 9, l. 135v-138v.
29
Antes de ser deportado, Vieira escreveu uma carta de protesto ao rei, denunciando “a cobiça,
principalmente dos mais poderosos” como motivo pela revolta. Carta de Vieira à D. Afonso VI,
na praia de Cumá, 22/05/1661, in: HANSEN, João Adolfo (Comp.). Cartas do Brasil 1626-
316
Para alguns historiadores se põe, neste contexto, a questão quanto à
permanência do legado ilosóico-jurídico de Vieira. Fernando Amado
Aymoré e José Vaz de Carvalho tendem a apontar para uma suposta
traição dos ideais do padre português, sobretudo por Bettendorff,
personagem que mais se destacou a partir de 166130. Aymoré fala, neste
sentido, de um “anti-Vieira”. Carlos de Araújo Moreira Neto, Eduardo
Hoornaert e Hugo Fragoso dividem a história da Companhia de Jesus
na Amazônia categoricamente em duas fases: uma “profética”, cujo
articulador seria Vieira, e, a partir de 1661/1686, outra de caráter
“empresarial”, que teria Bettendorff como mentor principal31. Já Maria
Liberman qualiica o padre luxemburguês como “iel continuador de
Vieira”32. Sem aprofundar aqui esta polêmica que tem caráter incipiente,
nos posicionamos na linha desta última autora, com a ressalva de ver
o adjetivo “iel” relativizado. De fato, sem condições de levar adiante
a luta de Vieira, o grupo reduzido de jesuítas que se reorganizou na
Amazônia, após o levante de 1661, buscou (re)consolidar as bases da
Missão dentro de uma conjuntura profundamente modiicada. Pois,
além da perda repentina dos padres mais experientes, inclusive Vieira, a
Missão do Maranhão viu, a partir de 1663, a sua inluência na metrópole
diminuída e o monopólio sobre os índios revogado33. Também, a política
1697: Estado do Brasil e Estado do Maranhão e Grão-Pará. São Paulo: Hedra, 2003. p. 487.
Ver AYMORÉ, Feranando Amado. Das Christentum in Amazonien: eine Geschichte im Flusse…. Tópicos – Deutsch-Brasilianische Hefte/Cadernos Brasil-Alemanha, Bonn, v. 40, n. 1, p.
19, jan.-mar. 2001; CARVALHO, José Vaz de. Bettendorff, João Felipe. In: O’NEILL, Charles;
DOMÍNGUEZ, Joaquín María (Eds.). Diccionario histórico de la Compañía de Jesús: biográico-temático. T. 1. Roma/Madrid: Institutum Historicum Societatis Iesu/Universidad Pontiicia
Comillas, 2001. p. 432.
31
Os artigos dos três autores se encontram em HOORNAERT, Eduardo (Coord.). História da
Igreja na Amazônia. Petrópolis: Vozes/CEHILA, 1990: MOREIRA NETO, Carlos de Araújo.
Os principais grupos missionários que atuaram na Amazônia Brasileira entre 1607 e 1759, pp.
71-90; HOORNAERT, Eduardo. O breve período profético das Missões na Amazônia Brasileira (1607-1661), pp. 130-138; FRAGOSO, Hugo. A era missionária (1686-1759), pp. 167-168.
32
Ver LIBERMAN, Maria. O Levante do Maranhão – “Judeu cabeça do motim”: Manoel
Beckman. São Paulo: Centro de Estudos Judaicos/USP, 1983. pp. 58-59.
33
“Provisão sobre a Liberdade dos índios do Maranhão” e “Provisão sobre se conirmar aos
moradores de Maranhão o perdão”, 12/09/1663. ABN vol. 66 (1948), pp. 29-32. Ver também
BETTENDORFF, 1990, pp. 191-194; BERREDO, Bernardo Pereira de. Annaes historicos do
30
317
de expansão iniciada por Vieira, mediante a fundação sistemática de
aldeamentos e o aumento considerável de missionários, estagnou por
completo34.
Bettendorff e seu conterrâneo Gaspar Misch conseguiram, ao
contrário da maioria de seus confrades, escapar da expulsão de 1661.
Trabalhando no interior, em missões afastadas, os dois luxemburgueses
decidiram esconder-se na loresta. Mas, a fome e o desgaste izeramnos, após algumas semanas, buscar refúgio no forte de Gurupá. Eles
constataram com alívio que o comandante da guarnição, Paulo Martins
Garro, amigo dos jesuítas, não tinha aderido à causa dos revoltosos
de Belém. Outros quatro inacianos em fuga conseguiram juntar-se a
eles. Julgando-se relativamente seguro, o pequeno grupo tentou, sob
a liderança do padre Francisco Velloso, retomar as suas atividades
missionárias no forte e seus arredores35. Quando Velloso partiu para
acompanhar uma expedição, Bettendorff o substituiu à frente dos
padres. Naquele momento chegou uma delegação da Câmara de Belém
para convencer a guarnição a aderir à revolta e para prender os jesuítas.
Os soldados conseguiram afugentar os intrusos, mas os padres, que
se encontravam fora das fortiicações para a desobriga pascal36 nas
aldeias vizinhas, foram presos. Os revoltosos exigiram que Bettendorff
assinasse, na sua função de superior provisório, um termo segundo o
qual a Companhia de Jesus renunciaria à “dupla administração” nos
aldeamentos no Pará37. Ele escreve:
Um dia me chamaram esses homens para que, como Vicesubprior, assignasse um termo de como largava de mim toda a
jurisdição assim espiritual como temporal sobre os indios, ao
que com o parecer dos mais padres respondi que me não tocava
Estado do Maranhaõ. Lisboa: Impr. de F. Luiz Ameno, 1749. pp. 494-522.
34
Ver ALDEN, 1996, p. 113.
35
Ver BETTENDORFF, 1990, pp. 173-184.
36
Trata-se da obrigação de se confessar e comungar, ao menos, uma vez por ano, de preferência
no tempo pascal.
37
Ver BETTENDORFF, 1990, pp. 1184-189. Ver também carta de Misch a superior em Colônia, 26/07/1662. Bibliothèque royale de Belgique-Cabinet des Manuscrits (BRB-CM) cód.
6828-69, l. 428-429.
318
assignar tal termo, porém como as provincias nos tinham tirado
aos padres a jurisdição temporal em ambas as capitanias, assim
do Pará como Maranhão, já não tratavamos, os Padres, dellas,
e que em o tocante à jurisdição espiritual por nenhum caso
largavamos, e desta forma levaram o termo que se fazia.38
Bettendorff que se deparou, pela primeira vez, com a delicada
questão da “dupla administração” não cedeu à pressão. Junto com os
demais jesuítas ele foi embarcado para Belém, onde eles encontravam
outros missionários presos. Apesar do fato de a insurreição já apresentar,
naquela altura, sinais de enfraquecimento, os vereadores de Belém
decidiram, em março de 1662, a expulsão dos jesuítas do Pará – como
o têm feito os seus colegas de São Luís em setembro do ano anterior.
Bettendorff e mais seis jesuítas escaparam da expulsão decretada, pois
a embarcação fez água e tinha que voltar ao porto. Após três meses
de prisão domiciliar, os religiosos foram soltos no dia 25 de junho. O
clima continuou, porém, marcado por incerteza e confusão, sobretudo
em razão da postura ainda não conhecida do novo governador Rui
Vaz de Siqueira e do novo rei D. Afonso VI. O padre italiano Pedro
Luís Consalvi caracterizou oportunamente o ano de 1662 como questo
interim, “este ínterim”39.
Em julho de 1662, Bettendorff foi escolhido como superior
da casa jesuítica em Belém. A partir desta data, ele exerceu quase
sem interrupção altos cargos administrativos na Missão, até 1693.
Na sua nova função, o padre luxemburguês concedeu, como sinal de
reconciliação, a absolvição geral à população, livrando-a assim da
excomunhão inligida por Antônio Vieira em 1661. No mesmo tempo,
voltaram alguns dos missionários que tinham sido deportados40.
No entanto, estes sinais de melhoramento deram logo lugar a novas
preocupações, pois uma epidemia de varíola começou a alastrar-se
38
Ver BETTENDORFF, 1990, p. 187.
Carta de Consalvi, 20/07/1663. ARSI cód. Bras 3 II, l. 37v-38r. Ver também relato de Consalvi reproduzido por Vieira na “Relaçam dos Successos do Maranhão”, 1662 (provavelmente).
ARSI cód. Bras 9, l. 69r-70r.
40
Ver BETTENDORFF, 1990, pp. 214-216.
39
319
pela região. Ela criou um clima de pânico, porque ela foi interpretada
como vingança divina pelos supostos excessos cometidos durante
o levante41. João Francisco Lisboa relata que, neste contexto, duas
mulheres foram acusadas de magia negra e condenadas à deportação.
Até meados de 1663, a colônia icou parada diante desse surto violento
de varíola, sobretudo pela elevada mortandade entre os índios42. Devido
à subseqüente falta de mão-de-obra, uma expedição sob o comando do
capitão Antônio Arnau de Villela partiu, em ins de 1662, para atacar
os Aruaquis. Bettendorff protestou, em sua condição de jurista, diante
da Junta das Missões contra esta “guerra justa” que não tinha, segundo
ele, nenhum fundamento legal. Na sua crônica ele constata, com
satisfação, o fracasso posterior desta campanha militar. Mas, outras
incursões ilegais, ainda mais violentas, seguiram, como em 1664 contra
os Jurunas43. Segundo Berredo, em 1665, “trezentas ocas de tapuios”
foram incendiadas e setecentos guerreiros mortos no decorrer de uma
única expedição44.
Finalmente, em ins de 1663, chegaram duas provisões
assinadas pelo novo rei D. Afonso VI45. Estas traziam, de um lado,
um certo alívio, pois esclareceram a situação confusa; de outro lado,
eles enfraqueceram a posição dos jesuítas. Embora a Companhia de
Jesus fosse restituída no Estado do Maranhão e Grão-Pará, ela se
viu obrigada a passar a administração temporal dos aldeamentos aos
“principais” (chefes indígenas). Além do mais, o povo foi agraciado
com o perdão real, exceto os principais líderes da revolta, e o padre
Vieira foi expressamente proibido de regressar. Um dos decretos reza:
Carta de Misch a Otterstedt, 29/07/1665. BRB-CM cód. 6828-69, l. 441-442. Ver também
Pereira de Berredo, 1749, p. 522.
42
LISBOA, João Francisco. Obras de João Francisco Lisboa. T. 3. São Luís: Typ. de B. de
Mattos, 1865/1866. p. 122.
43
Ver BETTENDORFF, 1990, pp. 217-219 e 232-238.
44
BERREDO, 1749, p. 537.
45
“Provisão sobre a Liberdade dos índios do Maranhão” e “Provisão sobre se conirmar aos
moradores de Maranhão o perdão”, 12/09/1663. ABN vol. 66 (1948), pp. 29-32.
41
320
Hey por bem declarar que assim os ditos Religiosos da Companhia
como os de outra qualquer Religião não tenhão juridição [sic]
algua temporal sobre o governo dos Indios e que o espiritual
a tenhão também os mais Religiosos que assistem e rezidem
naquelle Estado por ser justo que todos sejão obreiros da vinha
do Senhor... ..., hey outro sim por bem que se guarde a ultima
Ley do Anno de [1]655 e o regimento dos Governadores, e que os
ditos religiosos da Campanhia possão continuar naquella missão
na forma que ica referido, excepto o P.e Antonio Vieira por não
convir a meu serviço que torne aquelle Estado.46
No mesmo ano, Bettendorff foi nomeado superior da casa em
São Luís, a mais importante da Missão. Como antes em Belém, o padre
luxemburguês reorganizou a base econômica da comunidade. Ele
mandou logo construir um novo engenho de açúcar, plantar novos tipos
de laranjeiras – sendo um da China – e bananeiras, reformar as salinas
no litoral e uma fazenda no vale do rio Mearim, além de comprar “uns
tapanhunos [africanos] e negros da terra que por aquelle tempo eram
baratos”. Outro foco importante de sua atividade foi uma pastoral mais
intensa junto aos moradores por meio de pregações e conissões47.
Mesmo assim, Bettendorff apresenta, em 1665, no seu primeiro
relatório ao Superior Geral, um quadro bastante negativo da Missão48.
Trata-se de um primeiro balanço do luxemburguês após uma presença
de quatro anos na Amazônia. A missiva não esconde os “choques
culturais” que ele tem vivido neste período. Bettendorff lamenta, assim,
o agravamento da exploração inligida pelos moradores aos índios
desde o im da administração temporal da Companhia e a crescente
mortalidade em razão das epidemias, dos trabalhos pesados e da falta
de alimentos. Ele atribui parte da responsabilidade por esta situação
à hesitação do governador e à hostilidade persistente dos colonos.
Estes abusos que Bettendorff denuncia são conirmados pelos padres
Pedro Luís Consalvi e João Maria Gorzoni. O primeiro fala, em 1663,
46
“Provisão sobre a Liberdade dos índios do Maranhão”, 12/09/1663. ABN vol. 66 (1948), pp. 30-31.
Ver BETTENDORFF, 1990, pp. 223-226. A citação no parágrafo se encontra na página 225.
48
Carta de Bettendorff a Oliva, 11/08/1665. ARSI cód. Bras 26, l. 12r-17v.
47
321
das tropas ilegais que partiram abertamente para capturar índios com
o simples intuito de farli schiavi dei bianchi (“fazê-los escravos dos
brancos”); o segundo aponta, em 1665, para os excessos de trabalho
aos quais os moradores forçaram os índios sem pagar a remuneração
devida49. No seu relato, Bettendorff revela também o quanto ele se
sentiu distante do universo indígena. Ele chama os índios de “pouco
interessados na doutrina e nas coisas sagradas, negligentes com respeito
a Deus e à salvação, estúpidos, imbecis, brutos e quase que com uma
tendência inata para a inércia e a imoralidade”50. O luxemburguês
exprime aqui a sua frustração por meio do lugar-comum da suposta
obstinação ou indiferença dos indígenas frente à catequização que,
aliás, perpassa as cartas e crônicas dos séculos XVII e XVIII51. Outra
preocupação que Bettendorff articula, refere-se à infra-estrutura
precária da Missão e à falta de zelo pastoral e de formação intelectual
dos próprios missionários. Segundo ele, igrejas, capelas e residências
se encontravam num estado deplorável; a prática das devoções e
as confrarias leigas revelavam pouco fervor; e um curso de teologia
complementar para os jovens jesuítas deixava muito a desejar. Esta
alusão às asperezas da evangelização, constantemente repetida,
objetivou conseguir mais apoio por parte do Superior Geral52. Embora
a Missão estivesse sujeita ao regime do padroado – e, por conseguinte,
dependente da coroa lusitana –, esperava-se que a cúria generalícia da
Companhia agilizaria o envio de mais missionários e subsídios. Mesmo
sem sucesso, Bettendorff continuou cobrando mais apoio até 167453.
Após uma longa crise, que aligiu o mundo colonial seiscentista,
o Império Português tentou, desde meados dos anos 1670, reanimar a
Carta de Consalvi a Oliva, 20/07/1663. ARSI cód. Bras 3 II, l. 37r-38v; carta de Gorzoni a
Oliva, 18/09/1665. ARSI cód. Bras 26, l. 19r-21r.
50
Carta de Bettendorff a Oliva, 11/08/1665. ARSI cód. Bras 26, l. 14r. Traduzido do latim pelo
autor.
51
Ver CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac &
Naify, 2002. pp. 185-190.
52
Ver carta de Bettendorff a Oliva, 11/08/1665. ARSI cód. Bras 26, l. 12r, 13v, 15v, 17r-17v.
53
Ver cartas de Bettendorff a Oliva. ARSI cód. Bras 26, l. 26r-27r (21/08/1665); 35r-36v
(25/03/1674).
49
322
sua economia54. No que diz respeito à Amazônia, a metrópole visou
a sua integração à rede comercial transatlântica. Para isso, uma carta
régia foi enviada, no dia 19 de setembro de 1676, às câmaras de São
Luís e Belém. Esta missiva do príncipe-regente D. Pedro II instaurou
o estanco do ferro, isto é, a importação e comercialização de ferro,
aço e ferramentas sob o controle da fazenda real. Ao mesmo tempo,
ela deiniu a taxação das drogas do sertão destinadas à exportação55.
O príncipe advertiu, neste contexto, os administradores coloniais para
que incentivassem a coleta e o cultivo dos produtos mais apreciados
na Europa naquele momento: a baunilha e o cacau56. Mas, a política
de integração da Coroa não foi somente de cunho econômico. Ela
previu também a ereção de uma diocese no Maranhão e GrãoPará. O motivo principal para tal propósito foi mais político do que
pastoral. Um bispo – pelo padroado estreitamente ligado à Coroa –
tenderia a defender os projetos da metrópole e constituiria, também,
um contrapeso frente à expressiva inluência dos religiosos, razão do
constante descontentamento dos colonos. O prelado seria, por isso,
incluído no procedimento da repartição anual da mão-de-obra indígena
entre aldeamentos, missionários e moradores57. A diocese de São Luís
54
A economia portuguesa sentiu fortemente os impactos da crise econômica em razão de suas
inanças arruinadas (querelas com a Espanha até 1668), da perda de entrepostos na Ásia e
da concorrência inglesa, francesa e holandesa (produção de açúcar nas ilhas caribenhas). Ver
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. L’économie politique des découvertes maritimes. In: NOVAES, Adauto (Dir.). L’autre rive de l’Occident. Paris: Métailié, 2006. pp. 67-76; MAURO,
Frédéric. Des produits et des hommes: essais historiques latino-américains (XVIe-XXe siècles).
Paris: École Pratique des Hautes Études, 1972. p. 80.
55
Cartas régias às câmaras de São Luís e Belém, 12/09/1676. ABN vol. 66 (1948), pp. 39-40.
56
Cartas régias concernentes à coleta e ao cultivo da baunilha e do cacau: ABN vol. 66 (1948),
p. 41 (01/12/1677), 42 (01/12/1677), 45-46 (08/12/1677), 46 (19/08/1678), 46-47 (19/08/1678),
47 (13/01/1679), 47-48 (13/01/1679). Ver também as consultas do Conselho Ultramarino com
respeito à exploração dos produtos regionais (cacau, baunilha, anil, cravo e sal) e à importação
de escravos africanos, 1680-1682: Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) ACL-CU-009 cx. 6,
doc. 00642, 00643, 00647, 00649, 00653, 00654, 00655, 00660, 00661, 00672, 00675.
57
“Provisão em forma de Ley sobre o cabo de escolta das Missões do Maranhão e repartição
dos Índios”, 04/12/1677. ABN vol. 66 (1948), pp. 44-45; cartas régias concernentes à participação do bispo na repartição dos índios: ABN vol. 66 (1948), pp. 48-49 (16/03/1679), 49
(24/03/1679), 49-50 (30/03/1680), 50-51 (30/03/1680).
323
foi fundada, em 1677, e o primeiro bispo, D. Gregório dos Anjos, foi
recepcionado, em 1679, em solenidade organizada por Bettendorff58.
No mesmo ano, turbulências internas atingiram a Missão do
Maranhão. Uma visitação ordenada pelo Superior do Brasil, José de
Seixas, e executada pelo padre Pedro de Pedrosa reavivou a polêmica
acerca da pertença da Missão – à Província do Brasil ou à de Portugal.
O visitador depôs Consalvi, Superior da Missão, e Bettendorff, reitor do
colégio maranhense. Mas uma carta do Superior Geral Gian Paolo Oliva
constatou, enim, a irregularidade da nomeação de Pedrosa e airmou
a competência da Província Portuguesa59. Mas a tranqüilidade não se
reinstalou tão cedo. Em 1681, o novo bispo exigiu que os inacianos
colaborassem mais estreitamente com ele enquanto autoridade
eclesiástica máxima da colônia. O novo prelado recusou-se a conferir
a certos jesuítas a autorização para ouvirem conissões, mesmo nas
aldeias sob os cuidados pastorais da Companhia. Bettendorff constata
uma incompatibilidade entre a autoridade episcopal e a autonomia dos
jesuítas em assuntos espirituais60. Numa época que viu o sacramento da
conissão como um meio essencial para a evangelização, esta medida
equivalia a uma afronta sem igual contra os missionários. É Vieira que
recomendou inalmente que se cedesse ao bispo no que diz respeito
aos lugares de culto e às rubricas litúrgicas, mas que não se permitisse
interferência nenhuma na administração espiritual das missões por se
tratar de um direito garantido pelo rei61. A querela explica-se dentro
da tendência geral de fortalecimento da autoridade episcopal, com base
nas disposições do Concílio de Trento (1545-1563)62.
58
Cópia manuscrita da bula papal de Inocêncio XI, 20/08/1677. Biblioteca da Ajuda – Lisboa
(BAL) cod. 46-XI-8, l. 165r-180r. Ver também BERREDO, 1749, p. 581; BETTENDORFF,
1990, pp. 326-329.
59
Com respeito à polêmica acerca da visitação e da pertença da Missão, ver BETTENDORFF,
1990, pp. 330-348; relatórios de Pedrosa, 1680-1681. Biblioteca Pública de Évora (BPE) cód.
CXV/2-16, l. 6v-22v. Ver também a carta de Bettendorff a Oliva, 01/11/1679. ARSI cód. Bras
26, l. 64r-65v; carta de Consalvi a Oliva, 05/11/1679. ARSI cód. Bras 26, l. 78r.
60
Carta de Bettendorff a Oliva, 10/04/1681. ARSI cód. Bras 3 II, l. 146r-147r. Ver também
BETTENDORFF, 1990, p. 338.
61
Carta de Vieira a Consalvi, Lisboa, 02/04/1680. In: AZEVEDO, 1971, pp. 442-444.
62
TALLON, Alain. Le concile de Trente. Paris: Cerf, 2000. pp. 69-71.
324
A partir de 1680, a metrópole deu continuidade à política de
reforma no Estado do Maranhão e Grão-Pará. Duas leis, inspiradas
pelo padre Antônio Vieira e promulgadas pelo príncipe-regente em 1º
de abril de 1680, ampliaram as condições de integração da região à
rede comercial do Atlântico português. A primeira, uma provisão régia,
anunciou três medidas importantes: a) a introdução de “negros da Costa
de Guiné” para “a cultura de searas [plantações] e novas drogas [produtos
lorestais]”; b) a continuação das repartições anuais dos índios aldeados;
c) o monopólio jesuítico sobre os descimentos de índios do “sertão”
e, também, sobre a fundação de novos aldeamentos63. A segunda lei
declarou – com base numa anterior de 1609 – os índios como doravante
livres de toda forma de cativeiro e servidão, e ordenou a atribuição dos
indígenas libertos a uma das “Aldeas de Indios livres e catholicos”64,
que existiram ao lado das “aldeias de repartição” destinadas a escravos
legítimos. Estas medidas visaram formar uma mão-de-obra dócil e,
mediante a cláusula da livre escolha do serviço, adaptada às novas
condições econômicas. Neste sentido, há um nexo evidente entre as
provisões anteriores sobre a importação de ferro e ferramentas, a taxação
das drogas do sertão e a lexibilização da repartição dos índios. Além
disso, a introdução de escravos africanos faria com que os aldeamentos
fossem menos visados como “reservatórios” de mão-de-obra servil
– fator imprescindível para tornar efetiva a “liberdade dos índios”
visada por Vieira. A fundação da Companhia do Comércio do Estado
do Maranhão e Grão-Pará, em 12 de setembro de 1682, completou
as medidas promulgadas anteriormente, sendo que esta foi projetada
para viabilizar o intercâmbio transatlântico baseado na importação de
escravos africanos e na exportação de produtos lorestais e agrícolas65.
63
“Provisão sobre a repartição dos Indios no Maranhão e se encarregar a conversão d’aquella
gentilidade aos Religiosos da Companhia de Jesus”, 01/04/1680. ABN vol. 66 (1948), pp. 51-56.
64
“Ley sobre a liberdade do gentio do Maranhão”, 01/04/1680. ABN vol. 66 (1948), pp. 57-59.
65
“Bando pelo qual do Governador Francisco de Sá e Meneses, em atenção ao miseravel estado
em que encontrou o Maranhão, mandou formar uma Companhia de assentistas, para que metessem na cidade de Belém e na do Maranhão, quinhentos negros cada ano e tôdas as fazendas
que fossem necessarias, de que se fêz um contrato que foi publicado”, 28/10/1682. BAL cód.
51-V-43, l. 22r.
325
Para garantir os investimentos necessários na nova companhia, as
concessões comerciais foram conferidas, em regime monopolista, a
mercadores metropolitanos, como Pascoal Pereira Jansen66. Tratou-se
de uma tentativa de estabelecer no Atlântico Sul, ao lado da já existente
rota Brasil-Angola, um segundo eixo de comércio rentável, ligando os
portos da Amazônia ao entreposto de Cacheu na costa da Guiné.
Mas este complexo “pacote sócio-econômico”, introduzido
entre 1676 e 1682, ao invés de inspirar coniança aos moradores,
gerou um clima de revolta, sobretudo na cidade de São Luís. De fato,
os objetivos metropolitanos revelaram ser pouco condizentes com a
realidade da principal cidade da colônia e com a situação dos moradores,
sobretudo, dos que possuíam fazendas de porte maior e controlavam o
modesto comércio local. Laura de Mello e Souza fala de “dois projetos
inlexíveis” cujo afrontamento, em 1684, criaria uma situação nova67.
Para se ter uma ideia dos contrastes, João Francisco Lisboa descreve
São Luís nas vésperas do levante assim: localização apertada numa ilha
entre o mar e a mata, medo constante de incursões e revoltas indígenas,
sentimento de isolamento em razão da chegada irregular dos navios,
falta de uma mão-de-obra especializada e inventiva, métodos agrícolas
inadequados, ausência de planejamento urbano (casas de palha, ruas
irregulares e intransitáveis), alimentação rudimentar, comércio à base
de produtos “grosseiros” (pano de chita, farinha de mandioca, peixe
secado) e muitos engenhos de açúcar abandonados nos arredores (por
causa da crise econômica geral dos anos 1670)68.
Em fevereiro de 1684, os moradores mais frustrados decidiram
rebelar-se. Apesar das aparentes semelhanças com o levante de 1661,
esta segunda insurreição revelou ser bem mais complexa69. Ela tem três
66
Ver SIMONSEN, Roberto. História econômica do Brasil (1500/1820). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978. p. 358.
67
SOUZA, Laura de Mello e. “La conjoncture critique dans le monde luso-brésilien au début
du XVIIIe siècle”. In: BETHENCOURT, Francisco (Dir.). Le Portugal et l’Atlantique. Lisboa/
Paris: Centro Cultural Calouste Gulbenkian, 2001. p. 13
68
Ver LISBOA, 1865/1866, pp. 174-179.
69
Ver CHAMBOULEYRON, Rafael. Em torno das missões jesuíticas na Amazônia (século
XVII). Lusitania Sacra, Lisboa, v. 15, 2003, pp. 177-178.
326
causas imediatas: primeiro, os colonos viram o seu acesso à mão-deobra nativa restrito pela “lei da liberdade” de 1680, pois havia menos
repartições; segundo, os escravos recém-introduzidos da África estavam
fora de seu alcance devido ao preço elevado; enim, sua implicação – já
mínima – no intercâmbio com a metrópole foi “sufocada” em razão do
caráter monopolista da nova companhia de comércio. Os três principais
líderes, os irmãos Manuel e Tomás Beckman (ou Bequimão) e Jorge
Sampaio, pertenciam à camada mais abastada da sociedade colonial
que mais sentiu os impactos da nova conjuntura70. Na noite do dia 23
de fevereiro, quando a população participava de uma procissão, os
revoltosos conseguiram ocupar as residências do capitão-mor da cidade
e do governador. Em seguida, já com um séquito mais numeroso, eles se
reuniram em frente ao Colégio da Luz, onde a multidão agitada exigiu que
os inacianos renunciassem à sua participação na administração temporal
dos aldeamentos e na repartição dos índios. Os jesuítas rebateram estas
reivindicações argumentando que elas seriam contrárias à legislação em
vigor que somente o rei poderia modiicar. Mas, excitados e incapazes
de analisar a complexidade de sua própria situação, os moradores em
revolta acabaram projetando, ainda mais, a responsabilidade por suas
mazelas na Companhia de Jesus. Como os inacianos não cederam, eles
foram postos em prisão domiciliar dentro do próprio colégio. Enim,
no dia 19 de março, a Junta dos Três Estados71, órgão executivo dos
revoltosos, decretou a sua expulsão sob o pretexto de terem abusado de
seus privilégios e acumulado riquezas72. Uma semana depois, no dia 26,
foi executada a deportação73. Manuel Beckman tentou ainda persuadir
70
Quanto aos líderes da revolta, sobretudo Manuel Beckman, ver LIBERMAN, 1983, pp. 6980; COUTINHO, Milton. A revolta de Bequimão. São Luís: Geia, 2004. pp. 111-183.
71
A junta se compôs de três clérigos – evidentemente não-jesuítas –, três cidadãos notáveis e
três comuns.
72
“Populus Maranhonensis Divi Aloysii Civitatis...” (cópia manuscrita), 19/03/1684. ARSI cód.
Bras 3 II, 174r-175r.
73
Os diferentes relatórios sobre o levante e a expulsão dos jesuítas conjugam-se na descrição
dos eventos: BETTENDORFF, João Felipe. “A informação a S. Magestade sobre o succedido
no Maranhão em Fever.o de 1684”. BPE cód. CXV/2-11, l. 77r-79v; relato de Soares a de
Noyelle, 25/03/1684. ARSI cód. Bras 3 II, l. 172r-173v; relato de Pfeil à Província da Alemanha Meridional, 1684. ARSI cód. Bras 9, l. 322r-339r; carta de Perrret (Peres) a de Noyelle,
327
Bettendorff a icar na cidade, tornando-se franciscano. Indignado, o
luxemburguês declinou tal oferta74.
Os missionários foram distribuídos em duas embarcações. Uma
delas, sem condições de fazer uma viagem mais longa, foi logo atacada
por piratas que torturaram os religiosos, entre eles o Superior da Missão,
o jovem suíço Jódoco Perret (ou Peres). Mesmo abandonado em alto
mar, numa canoa frágil, o grupo conseguiu salvar-se75. O outro barco,
no qual se encontrava Bettendorff, alcançou, após uma escala no Ceará,
a cidade de Recife, no dia 20 de maio de 1684. Após uma primeira
deliberação com os confrades e uma audiência com o governador de
Pernambuco, todos consentiram que os padres Bettendorff e Pedrosa
deveriam seguir viagem até Bahia para consultar o Superior Provincial
Alexandre Gusmão. Estando este ausente, os dois emissários da Missão
do Maranhão conferenciaram com o padre Antônio Vieira que, desde
1681, estava de volta ao Brasil. Ficou decidido que Bettendorff viajaria
imediatamente à metrópole para defender, como procurador ad hoc,
a causa dos jesuítas da Amazônia. Munido de uma procuração do
provincial brasileiro76, o luxemburguês aportou em Lisboa no dia 23
de outubro de 168477.
O governador do Maranhão, Francisco de Sá Meneses, deposto
pelos revoltosos apesar de sua relação ambígua com a Companhia
de Jesus, se disse contente com a escolha e o envio de Bettendorff
“porq. dos estrangeiros, e ainda dos Portuguezes, he hum dos mais
agradaveis”78. Dos jesuítas, não todos tiveram a mesma opinião. Os
padres Barnabé Soares, então visitador da Missão, e Antônio Vieira
18/06/1684. ARSI cód. Bras 26, l. 97r-98v. Ver BETTENDORFF, 1990, pp. 359-395; BERREDO, 1749, pp. 592-599.
74
Relato de Pfeil à Província da Alemanha Meridional, 1684. ARSI cód. Bras 9, l. 328r.
75
Relato de Perret (Peres) a de Noyelle, 18/06/1684. ARSI cód. Bras 26, l. 97r-98v; carta de
Pfeil a de Noyelle, 19/06/1684. ARSI cód. Bras 26, l. 101r-102r. Ver também BETTENDORFF,
1990, pp. 377-390.
76
Procuração de Gusmão a de Noyelle, 21/06/1684. ARSI cód. Bras 3 II, l. 179r.
77
Ver BETTENDORFF, 1990, pp. 378-381 e 391-395.
78
Carta de Francisco de Sá e Meneses ao capitão Henrique Lopes, 24/02/1685, BAL cod. 51V-44, l. 248v.
328
deixaram transparecer algumas dúvidas quanto à capacidade do
missionário luxemburguês79. Vieira escreveu até com certo desdém:
“Lá vai um frade alemão, ..., buscar remédio”80. Quanto a Bettendorff,
ele logo buscou introduzir-se na corte. As primeiras audiências com D.
Pedro II, proclamado rei no ano anterior, izeram-no sentir-se encorajado
nos seus propósitos. De fato, o monarca mostrou-se, segundo do relato
do padre luxemburguês, interessado e indicou-lhe como interlocutor
o secretário régio Roque Monteiro Paim, favorável à restituição dos
jesuítas81. Bettendorff apresentou um memorando de doze propostas
que serviria de base para as negociações que se estenderam de outubro
de 1684 até dezembro de 1686.82 Este documento, formulado em nome
dos jesuítas da Missão do Maranhão, previa uma revisão completa das
relações entre os religiosos da Companhia, os moradores e as autoridades
coloniais. Por isso, ao invés de pedir meramente uma volta imediata
à Amazônia, reivindicou-se, sobretudo: a) a restituição da “dupla
administração” (espiritual e temporal) dos aldeamentos, perdida em
1663; b) a reestruturação externa e interna dos aldeamentos (menores
em número, porém maiores com respeito à população; além da presença
constante de uma equipe de missionários-residentes e da limitação do
acesso de militares e moradores); c) um controle mais eicaz sobre as
expedições e repartições (para evitar abusos); d) a garantia de um apoio
inanceiro por parte do rei (mediante um envio regular de subsídios).
O objetivo principal destas propostas foi, antes de tudo, a obtenção de
condições favoráveis a um recomeço das atividades missionárias sem
ambigüidades e incertezas, ou seja, um modus vivendi aceitável.
Ver carta de Soares a de Noyelle, 12/08/1684. ARSI cód. Bras 3 II, l. 183r; carta de Vieira ao
conde Antônio Pais de Sande, 22/07/1684. In: AZEVEDO, 1971, p. 503-506.
80
Ibid., p. 505.
81
Ver BETTENDORFF, 1990, p. 396; LEITE, 1943, pp. 88-90.
82
Há dois textos do dito memorando: “Memorial de dose Propostas, que os P.es dos Missionários do Estado do Maranhão representam a S. M.de para ser servido mandar ver e deferir-lhes, quando lhe pareça que elles voltem ás Missões do dito Estado, de que ao presente foram
expulsos, na Cidade de S. Luiz do Maranhão”, 1684/1685. BPE cód. CXV/2-11, l. 138r-151r;
“Memorial dos pontos apresentados à Sua Magestade”. In: BETTENDORFF, 1990, pp. 398400. O último documento elenca 17 pontos.
79
329
Uma junta especial foi constituída para tratar, de maneira mais
ampla, da contenda entre missionários e moradores do Maranhão. Os
seus integrantes eram, em grande parte, conselheiros régios e altos
funcionários do reino. Bettendorff exerceu a sua inluência mediante
o seu contato com Roque Monteiro Paim83. Mas ele contou também
com o apoio de certos jesuítas que atuaram na corte, como os padres
Manoel Fernandes e Manoel Madeira, além da benevolência da nova
rainha de origem alemã, D. Maria Soia de Palatinado-Neuburgo. Se
a nomeação do militar experiente Gomes Freire de Andrade ao cargo
de governador do Maranhão, ainda em 1684, parecia signiicar um
primeiro sucesso para a causa jesuítica, a presença dos procuradores
dos moradores, Tomás Beckman e Eugênio Ribeiro, foi logo motivo
de inquietação; mas os dois foram presos e mandados ao desterro em
Pernambuco. No entanto, a chegada inesperada do Superior da Missão
Jódoco Perret, de caráter impulsivo, signiicou uma ameaça maior para
as negociações.84 O padre suíço mostrou-se favorável à supressão da
Missão e defendeu, em nome de um grupo de missionários do Maranhão,
esta posição tanto diante do rei, por ocasião de uma audiência, quanto
na sua correspondência com o generalato em Roma85. Numa petição ao
monarca, ele argumenta:
... e como além disso, estavam [os missionários] vendo ser cousa
intolerável morar em um Estado, em que são expulsados em tanta
facilidade, e com tanta offensa da immunidade ecclesiastica e
perda de seus bens, o que nem se lhes faz onde moram entre
83
MELLO, Maria Eliane Alves de Souza e. O Regimento das Missões: poder e negociação
na Amazônia Portuguesa. Clio – Revista de Pesquisa Histórica, Recife, v. 27, n. 1, pp. 48-55,
2009.
84
Dauril Alden realça a incompatibilidade das posições de Bettendorff e Perret. Ver ALDEN,
1996, pp. 225-226.
85
Jódoco Perret manda, em sua qualidade de superior, uma série de cartas ao Superior Geral
Charles de Noyelle, insistindo na dissolução da Missão do Maranhão: ARSI cód. Bras 3 II, l.
219r-219v (Évora, 10/11/1685); cód. Bras 26, l 113r-113v (Coimbra, 17/09/1685); l. 125r-125v
(Évora, 01/12/1685); l. 127r-127v (Évora, 20/12/1685); l. 131r-131v (Évora, 01/01/1686); l.
136r-137v (Évora, 01/08/1686). Uma última carta é dirigida ao Secretário Geral Giacomo Massi: ARSI cód. Bras 26, l. 145r-146v (Lisboa, 01/02/1687).
330
hereges, dos quais são tratados menos mal que dos christãos
deste Estado, e não podem allegar outra cousa de todos estes
males, que defenderem os indios injustamente opprimidos, e
apertarem com a observancia das reaes leis de Vossa Magestade;
vendo, digo, os Missionarios, todas estas cousas, resolveram,
com commum sentimento de todos, que, alcançando primeiro
o beneplacito e consentimento de Vossa Magestade, pudessem
eficazmente e com grande instância da [sic] seu propósito geral,
desfeita esta missão, serem mandados os seus missionarios para
onde vos parecesse melhor, ....86
Este impasse se resolveu quando Bettendorff conseguiu, com a
aprovação do Superior Geral Charles de Noyelle, manter Perret afastado
de Lisboa e, por conseguinte, das negociações87. Mais tarde, já após a
promulgação do Regimento das Missões, o padre luxemburguês realça
ainda que a nova lei foi resultado de seus esforços pessoais apesar da
oposição do Superior da Missão Jódoco Perret88.
A partir de meados de 1685, não parecia mais haver obstáculos
maiores para impedir o bom andamento das negociações89. A restituição
do colégio de São Luís, em 23 de setembro de 1685, conirmou
aparentemente esta previsão. No entanto, várias petições da câmara de
Belém, o envio de um procurador bem instruído – o antigo capitãomor do Grão-Pará Manoel Guedes Aranha –, e a crescente inluência
86
“Carta do Padre Iodoco, Superior da Missão, feita com o consentimento dos Padres do Pará,
para se offerecer à Sua Magestade, com licença de nosso muito Reverendo Padre”. In: BETTENDORFF, 1990, pp. 405-406.
87
Ver ibid., pp. 401-407.
88
Ver carta de Bettendorff a de Noyelle, Lisboa, 22/12/1686. ARSI Bras 26, l. 144r. Fernando
Amado Aymoré classiica, ao contrário, o Regimento das Missões como “obra comum [Gemeinschaftswerk] dos Padres Jódoco Peres e João Felipe Bettendorff”. MEIER, Johannes; AYMORÉ, Fernando Amado. Jesuiten aus Zentraleuropa in Portugiesisch- und Spanisch-Amerika: ein bio-bibliographisches Handbuch (t. 1): Brasilien (1618-1760). Münster: Aschendorff,
2005. p. 190.
89
Bettendorff manteve o generalato bem informado. Ver cartas de Bettendorff, respectivamente, a de Noyelle (1685-1687), de Marini (1687) e González (1687): ARSI cód. Bras 26: 109r-110v, 111r-111v, 124r-124v, 129r-130v, 132r-132v, 133r-133v, 134r-134v, 140r-140v, 143r-144v, 147r-147v, 148r-148v, 149r-150v, 152r-152v, 156r-157v, 158r-159v, 161r-161v, 162r-162v, 163r-163v. Ver também BETTENDORFF, 1990, pp. 403-407.
331
do governador Gomes Freire de Andrade ampliaram o espectro das
negociações. A repartição tripartite anual da mão-de-obra revelou
ser o ponto mais polêmico, haja vista que o número de trabalhadores
disponíveis em certas “aldeias de repartição” era pequeno demais
para uma divisão eicaz e que os prazos de ausência permitida não
correspondiam às condições dos serviços de regime sazonal. Os jesuítas
cederam no que diz respeito à repartição que passou a ser bipartite – entre
os moradores e os aldeamentos propriamente ditos – e aos períodos de
trabalho fora das missões. Em seguida, quando foi abordada a questão da
administração temporal, restituída à Companhia em 1680, os moradores
insistiram na sua abolição, alegando que os jesuítas deveriam dedicarse exclusivamente à evangelização. Resoluto, Bettendorff reclamou
ou a restituição plena da administração temporal sobre os índios ou a
supressão da Missão.90 Diante do impasse, Gomes Freire declarou-se
favorável à posição dos inacianos. Acatando a opinião deste homem
experiente, a junta recomendou inalmente ao rei o restabelecimento da
“dupla administração”91.
Com base neste “pacote” de compromissos, foi promulgado, em
21 de dezembro de 1686, o Regimento das Missões. Esta masterpiece of
legislation (“peça-mestra da legislação”)92 tem quatro eixos principais
que permitem subsumir o conjunto dos vinte e quatro parágrafos: a)
os aldeamentos terão uma expressiva autonomia, garantida mediante: a
restituição da “dupla administração”, a nomeação de dois “procuradores
dos índios” e a supervisão da entrada de não-indígenas como da saída
de indígenas das missões (além do controle de casamentos mistos para
evitar a eventual escravização da parceira) [§§ 1-7]; b) os aldeamentos
serão reagrupados em lugares estratégicos com, respectivamente, uma
população mínima (ao menos 150 casais em cada missão), facilitando,
assim, as repartições e agilizando o intercâmbio demográico e
econômico entre eles [§§ 8-9 e 22]; c) os serviços dentro e fora dos
aldeamentos serão lexibilizados nestes termos: haverá um inventário
Ver carta de Bettendorff a de Noyelle, 01/01/1686. ARSI cód. Bras 26, l. 129r.
Ver MELLO, 2009, pp. 56-67.
92
KIEMEN, 1954, p. 163.
90
91
332
anual da mão-de-obra efetiva que será, em seguida, bipartida, sendo
que os índios que forem destinados a trabalhos fora da missão terão
deinidos, por uma comissão mista, os tipos de serviço, os períodos de
ausência (no Maranhão até quatro e no Pará até seis meses, conforme à
sazonalidade da respectiva coleta) e o valor da remuneração; quanto aos
missionários, vinte e cinco índios (mais tarde, casais) serão atribuídos
às residências mais remotas [§§ 10-19]; d) certas necessidades dos
moradores (por exemplo, a requisição de índios como remadores para um
transporte de porte maior ou de índias como amas de leite ou ajudantes
na produção de farinha de mandioca) e dos índios recém-descidos (que
icarão instalados provisoriamente em pequenos aldeamentos à parte e
estarão isentos de serviços exteriores por dois anos) não serão negadas,
mas tratadas como casos excepcionais [§§ 20-21 e 23-24]93.
Porém, a insistência dos moradores diante da falta crônica
de mão-de-obra, a consolidação das outras congregações religiosas
(franciscanos, mercedários, carmelitas) e a crescente ocupação do
interior (rede de fortes e fortins) contribuíram para que o compromisso
contido no Regimento fosse, em seguida, relativizado94. Um alvará
readmitiu, em 1688, a organização de tropas de resgate, deixando pouco
espaço para protestos da parte dos inacianos95. Em 1693, a rede de
aldeamentos foi dividida entre todas as ordens atuando na colônia, haja
vista que a Companhia não tinha missionários suicientes para garantir
um atendimento adequado conforme as disposições do Regimento96.
Os jesuítas se retiraram dos aldeamentos da margem esquerda do
Amazonas e das missões mais novas nos rios Madeira e Negro97. A
93
“Regimento & Leys das Missoens do Estado do Maranham, & Pará”, 21/12/1686. BPE cód.
CXV/2-12, l. 120r-127r. A validade do Regimento estende-se também às missões coniadas aos
franciscanos de Santo Antônio, conhecidos como “capuchos”.
94
Ver KIEMEN, 1954, pp. 173-179.
95
“Alvará, que deroga a Ley do 1º de Abril de 1680, que prohibia totalmente os resgates, e
captiveiros dos Indios; e suscita em parte a de 9 de Abril de 1655, que os admittia em certos
casos; e se acrescentam agora novas clausulas e condições”, 28/04/1688. BPE cód. CXV/2-12,
nº. 2, l. 20-26.
96
“Carta real ao governador demarcando novamente os distritos a cada Religião”, 19/03/1693.
BPE cód. CXV/2-18, l. 178r-180r.
97
Ver BETTENDORFF, 1990, pp. 544-547.
333
divisão levou, assim, à sua concentração na “banda sul” do rio-mar,
uma área já bem integrada às dinâmicas econômicas da colônia. No
intervalo entre estas duas leis, a Missão do Maranhão introduziu, em
1690, dois textos obrigatórios para fortalecer a coesão do grupo e
uniicar a pastoral nos aldeamentos. Trata-se de um regulamento interno
– de fato, uma adaptação de um estatuto escrito por Vieira entre 1658 e
1660, conhecido como Visita – e de um catecismo prático. Junto com a
chegada de novas levas de missionários, estas modiicações e inovações
evitaram, em longo prazo, uma dispersão do potencial jesuítico98.
Concluindo, apesar da aparente vantagem para a Companhia de
Jesus, o Regimento das Missões constitui um modus vivendi aceitável
e viável que contemplou os maiores interesses das principais partes
envolvidas. Os religiosos recuperaram, assim, a “dupla administração” e
voltaram fortalecidos ao Maranhão como gerenciadores de aldeamentos
autônomos. Os moradores conseguiram um acesso mais amplo à
mão-de-obra, pois a bipartição e os prazos prolongados de serviço
lhes forneceram mais trabalhadores por mais tempo. As autoridades
metropolitanas estavam conscientes de que a conciliação destes dois
grupos era imprescindível para o desenvolvimento da colônia que
revelou ser, até aquele momento, pouco rentável. Quanto aos índios
aldeados – sem participação nenhuma nas negociações –, eles obtiveram
uma relativa proteção em razão da interdição de entrada de “brancos”
e mestiços, e das disposições especiais para mulheres e grupos recémdescidos. De fato, o espaço autônomo dos aldeamentos permitiu que
uma cultura de matriz indígena pudesse desenvolver-se, justapondo e/
ou superpondo elementos de origem ameríndia aos de origem ibérica.
A atual cultura cabocla dos ribeirinhos da Amazônia remonta a esta
experiência das missões que se iniciou na segunda metade do século XVII.
O Regimento das Missões tornou-se, para além de sua supressão
em 1757, uma espécie de lei orgânica da sociedade colonial, norteando
o processo de sua formação e consolidação no século XVIII. De fato,
98
Ver ibid., pp. 482-483. Ver também ARENZ, 2008, pp. 549-564. A Visita de Vieira encontra-se em LEITE, 1943, pp. 106-124.
334
o Diretório dos Índios99 que o substituiu é basicamente uma versão
“laicizada” de suas disposições. Já em comparação com as leis vieirianas
de 1655 e 1680, que buscavam salvaguardar os conceitos de “liberdade
dos índios” e “soberania natural” – ambos muito caros a Vieira –, o
texto de 1686 visou, antes de tudo, ao fortalecimento da instituição dos
aldeamentos em si, abstendo-se de deinir o status pessoal ou grupal de
seus habitantes indígenas. O pragmatismo da realpolitik de Bettendorff
contribuiu signiicativamente a esta mudança de foco, conferindo
à última colaboração jesuítica na legislação indigenista um caráter
durável.
99
“Directório que se deve observar nas povoaçoens dos indios do Pará, e Maranhão”,
03/05/1757. Lisboa: Impr. de Miguel Rodrigues, 1758.
335
A Batalha dos Papéis: a reação escrita indígena
durante a demarcação de limites (1750-1761)
Eduardo S. Neumann
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Introdução
Este texto pretende analisar a “reação escriturária” dos guaranis
diante da celebração do Tratado de Madri, assinado em 1750, pelo qual
Portugal cederia à Espanha a Colônia do Sacramento em troca de sete
reduções instaladas na margem oriental do rio Uruguai. Na história das
reduções guaranis, um tema que atualmente tem despertado a atenção
dos pesquisadores é a negativa indígena às ordens de transmigração
decorrentes desta permuta.
Com a chegada das comissões demarcadoras a região houve
uma dinamização dos contatos epistolares, cujos episódios culminaram
na eclosão de uma rebelião colonial, conhecida na historiograia como
Guerra Guaranítica (1754/1756). Época na qual a prática da escrita foi
uma constante sendo, também, um expediente muito utilizado pelos
indígenas letrados. Sem dúvida, uma batalha dos papéis antecedeu o
confronto armado.
As provas dessa prática escriturária são os próprios “papeles
y cartas” escritos pelos guaranis, que depois de apreendidos em
território americano foram enviados para a Espanha. Os funcionários
encarregados dos trabalhos de demarcação não percebiam nos textos
indígenas formas textuais especiicas, referindo-se a eles apenas como
“papeles” sem diferenciá-los, seja pelo seu volume ou por seu formato.
Porém, a conservação desses documentos é o resultado da preocupação
das autoridades ibéricas em informar as suas respectivas monarquias da
oposição indígena. Tais papéis eram a prova material de que dispunham
os comissários demarcadores e mesmo os jesuítas, das manifestações
autônomas de desobediência dos guaranis às ordens reais de mudança.
337
Nessa época a prática da escrita não esteve restrita exclusivamente
as negociações ou à contabilidade do número de homens aptos para a
guerra. Houve uma diversiicação dos usos e funções da escrita nas
reduções. Estamos diante de uma “escriturização”1 das relações sociais.
A comunicação entre os indígenas foi operada a partir de duas
modalidades: os bilhetes e as cartas. E, segundo os cronistas, “voavam
bilhetes” entre as reduções rebeladas. Papéis que circulavam de dia e de
noite. Os bilhetes por sua escrita urgente e rápida, por serem fáceis de
portar e mesmo ocultar, foram preferidos pelos guaranis no momento
de comunicar-se com seus companheiros. Esse tipo de escrito costuma
envolver pessoas próximas, entre as quais não há formalidades
excessivas. Entre os guaranis as cartas, forma culta da epistolograia,
desempenharam a função de contatar a administração colonial, sendo
um instrumento diplomático, de reivindicação e protestos voltados
prioritariamente às relações externas. Nas reduções as cartas serviram
para diversas inalidades, como manifestar desacordo, expressar
insatisfação, enviar um conselho ou convocar homens para a guerra.
Por certo, a escrita ao instaurar outra dinâmica nas relações facilita o
estabelecimento de alianças. É um instrumento ligado ao poder, que
possibilita normalizar e produzir ideias. Igualmente permite anular a
distância e manter comunicação em segredo.
Ao que parece, a possibilidade de um entendimento dos fatos
pretéritos, calcado em dados precisos esteve mais presente entre
os integrantes dessa elite missioneira. Contudo esta tampouco se
apresentava de maneira homogênea. Certamente os indígenas que
possuíam a sua disposição atas, cartas, papéis escritos estavam mais
aptos a elaborar uma concepção do passado orientado a partir de
informações escritas, estabelecendo relações entre diferentes períodos.
A documentação escrita pelos guaranis igualmente sinaliza uma
1
Segundo o historiador Fernando Bouza, durante a Idade Moderna na Espanha, o uso da escrita
“estaba produciendo una paulatina escriturización de la sociedad, en la que la escritura terminará por afectar de una forma u otra a capas cada vez más amplias de la población”. BOUZA,
Fernando. Imagen y propaganda: capítulos de historia cultural del reinado de Felipe II. Madrid:
Akal, 1998, p. 40.
338
discussão pouco referida pela historiograia dedicada ao tema, ou seja,
a existência da defesa por escrito daquele que seria o ponto de vista dos
indígenas.
As interpretações históricas pautadas pela perspectiva da
história social da cultura escrita, de eminente vocação interdisciplinar
têm privilegiado a análise das funções, usos e práticas relacionadas com
o escrito. Os procedimentos metodológicos em questão têm fornecido
algumas pistas e subsídios importantes para investigar os materiais
escritos e desvendar os signiicados subjacentes à expressão gráica.
A prioridade é conhecer as distintas intenções que nortearam o ato de
escrever e as suas relações com o poder. O que importa, de fato, é o que
as pessoas fazem com a escrita, e não o que a escrita faz com as pessoas..
Assim, ela é concebida como um conjunto de práticas que podem
contribuir para melhor compreender as mudanças e transformações
sócio-culturais operadas em uma determinada sociedade.
O recurso a escrita, conforme observou Michel de Certeau,
era uma prática mítica “moderna”2 e, em determinadas ocasiões, os
guaranis alfabetizados manejaram com desenvoltura tal tecnologia. A
inserção da elite missioneira em algumas rotinas administrativas do
mundo colonial ampliava as suas possibilidades de contato e interação
com a sociedade rio-platense. O conjunto de habilidades requeridas
no provimento dos cabildos missioneiros ‒ modalidade de conselhos
composto por indígenas ‒ facultava a uma fração da população
missioneira, letrada ou não, contato com as práticas burocráticas da
monarquia espanhola. A especiicidade dos usos orais e escrito da língua
guarani, na administração das reduções, pode ser deinida como uma
extensão da centralização do Estado monárquico espanhol. Contexto
no qual a escrita atuava como uma forma de produção da presença da
Monarquia hispânica, conectando o centro da administração castelhana
com as suas periferias.3
2
3
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
ELLIOTT, John. H. España y su Mundo (1500-1700). Madrid: Taurus, 2007. p. 36.
339
Porém, não podemos pressupor que esta competência alfabética
determinasse um distanciamento em relação aos demais indígenas
missioneiros, mas criava uma mediação diferenciada com as hierarquias
da sociedade que determinava novas formas de organização do tempo
e da memória. O certo é que os guaranis escreveram com frequência
durante o período de conlito nas reduções e as reações “escriturárias”
indígenas – a “escritoilia” manifesta por eles –, permitem repensar
as relações históricas estabelecidas com o passado missioneiro e o
território oriental. Através da escrita reairmavam seu vínculo político
com o rei de Espanha e aletravam para o equívoco do Santo Rey em
celebrar um Tratado de permuta que favorecia aos seus inimigos, no
caso, os portugueses.
Enim, a desenvoltura no manejo da pluma indica a necessidade
de revisar os diagnósticos existentes quanto à difusão da escrita entre
os indígenas nas reduções. Há inúmeras provas de que eles sentiram-se
atraídos pela ideia de produzir relatos ou deixar mensagens. Entretanto,
nem sempre encontrava os meios necessários à escrita, como papel e
tinta. Motivo pelo qual, em determinadas ocasiões, deixaram inscrições
aixadas em pedaços de couro ou tábuas.
Cultura Escrita e Autogoverno Indígena nas Reduções
Os funcionários encarregados da demarcação dos novos limites
icaram surpresos com a localização de mensagens disseminadas
pelo território e também desconiados diante da capacidade da escrita
manifesta pelos guaranis.4 Mesmo sem compreenderem o que estava
escrito, providenciaram a tradução e o arquivamento desses papéis. A
simples presença dos oiciais demarcadores no território implicado na
permuta obrigava os funcionários envolvidos nos trabalhos a atuarem
4
A produção textual dos Guarani, inclusive, despertava suspeitas, como observou Barbara Ganson: Spanish oficials were not convinced by these Guarani letters. The Marqués de Valdelirios,
the Spanish envoy in charge of the boundary commission, and others thought the Jesuits, not
the Guaraní, had written them because they believed that Guaraní were incapable of composing such ine manuscrits. GANSON, Barbara. The Guarani under spanish rule in the rio de la
Plata. Stanford: Stanford University Press, 2003, p. 102.
340
com maior rigor no registro e comprovação dos acontecimentos, ou
mesmo a providenciarem depoimentos que serviriam de provas contra
eventuais acusados, produzindo mais documentos.
A burocracia colonial acionada pela monarquia espanhola foi,
durante esse período de conlito, uma pródiga máquina produtora de
papéis. Em tal contexto, e como parte integrante do Império Espanhol,
a população guarani missioneira manifestou durante esses episódios
um dominio pronuciado da ars escribiendi. As lideranças guarani
eram cientes de que as informações importantes, provenientes da
administração colonial, chegavam às reduções pela via epistolar e,
por valorarem positivamente os poderes do escrito, essa elite ilustrada
adotou igualmente a mesma postura. Enim, através desses documentos
é possível demonstrar como a cultura escrita é reveladora dos valores
e condutas de uma época, um índice da colonização do imaginário.5
Os usos estratégicos destinados à escrita visavam manter
certo grau de unidade nas ações dos Guarani e sustentar o seu autogoverno. Assim, a perspectiva indígena icou registrada na atuação
dessa elite e nas suas tentativas de negociação política, legando para
a posteridade uma versão indígena sobre esse período de conlito.
Os diversos documentos apreendidos – que sabemos ser apenas uma
fração do conjunto de papéis indígenas – demonstram as tentativas de
organização e negociação por parte dos Guarani e evidenciam que suas
reivindicações estavam amparadas, em provas escritas, em registros que
atestam os serviços prestados ao rei, na condição de cristãos e vassalos
de Espanha. Os vínculos com a monarquia espanhola sempre foram
mencionados, indicando que a reelaboração de seu ñande reko (“modo
de ser”) era permeado, necessariamente, por sua inserção nos valores e
condutas da sociedade hispano-americana. Um processo de etnogênese
estava em curso, conferindo uma identidade indígena a esses guaranis
critianizados. Contexto no qual o impacto da alfabetização promoveu
novas sociabilidades e canais de interação com a sociedade colonial.
5
GRUZINSKI, Serge. La colonización del imaginário. Sociedades indígenas y occidentalización en el México español. Siglos XVI-XVIII. MEXICO: FCE,1991.
341
A familiaridade manifesta por alguns indígenas frente às
diferentes formas textuais, foi um fator que estimulou novos usos para
a competência gráica nas reduções, ampliando as possibilidades de
uma relação pessoal e mais direta com o mundo dos textos, eliminando
a atuação dos intermediadores.6 Pode-se airmar que as mudanças
veriicadas nas maneiras de conduzir as negociações fora o resultado do
convívio prolongado dos indígenas com as práticas letradas, sobretudo
a partir do século XVIII.
Por certo, o uso da escrita possibilitava uma nova lógica nas
maneiras de administrar os conlitos e estabelecer alianças. A escrita
tornara-se um modo de atuar frente aos novos desaios. A capacidade
alfabética dos Guarani possibilitava organizar suas experiências a
partir de episódios documentados e, assim, agir frente aos novos
desaios, atuando como agente político no mundo hispano-americano.
As autoridades coloniais consideravam as reações indígenas como
um sinal de soberba e de insubordinação. Mas elas eram, na prática,
uma expressão da autonomia, do auto-governo guarani sustentada na
comunicação escrita, “mientras volaban correos” entre as reduções.
Diante das inalidades destinadas à escrita por parte dos guaranis
estes não parecem mais os mesmos indígenas à mercê de mediadores.
São eles, homens letrados, que interagem de modo direto e decisivo
como sujeitos políticos no mundo colonial. A escrita «civiliza», nesse
sentido, os guaranis passam a atuar de forma gradativa na tomada de
decisões diante do convívio com diferentes agentes sociais.
E, ao recorrerem a essa estratégia política, demonstravam
coniança no êxito de seus pleitos, exatamente por atuarem em
concordância com a lógica do colonizador, ou seja, por conferirem às
6
Segundo Roger Chartier: “Da maior ou menor familiaridade com a escrita depende, pois,
uma maior ou menor emancipação com relação a formas tradicionais de existência que ligam
estritamente o indivíduo a sua comunidade, que o emergem num coletivo próximo, que o torna
dependente de mediadores obrigatórios, interpretes e leitores da palavra divina ou das determinações do soberano”. CHARTIER, Roger. As práticas da escrita, In: ARIES, Philipe & CHARTIER, Roger (org.). História da vida privada 3: Renascença ao Século das Luze. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991. p.119.
342
negociações in scriptis a mesma importância conferida pelas monarquias
de Antigo Regime.
Os papeles apreendidos de Rafael Paracatu
Um conjunto de documentos indígenas, de circulação interna,
foi apreendido em outubro de 1754, logo após a Batalha do Daymal.
Estes documentos conirmam a capacidade gráica de um segmento
da elite letrada missioneira: os mayordomos. Os papeles y cartas
apreendidos com Rafael Paracatu, cacique na redução de Yapeyu, são
na sua maioria respostas enviadas pelos mayordomos das estâncias.7
A competência alfabética dos administradores indígenas permitiu ao
cacique Paracatu manter contato assíduo com eles e, assim, coordenar
temporariamente a oposição missioneira em Yapeyu. Através dessa
troca de correspondência, tomamos conhecimento do conteúdo de
documentos singulares a respeito dos usos internos reservados à escrita
pelos guaranis.
Com o objetivo de obstruir a marcha das tropas hispânicas pelas
estâncias de Yapeyu, o cacique Paracatu e os integrantes do cabildo
recorreram à correspondência escrita para agilizar a comunicação e
gerir ações conjuntas. Os papéis apreendidos com Paracatu sinalizam
primeiro, a preocupação das lideranças em responder aos pleitos
formulados por seus companheiros. E, em segundo, revela a rapidez
em atender, aos pedidos e consultas realizadas. Tais cuidados visavam
manter os indígenas informados a respeito da movimentação dos
exércitos ibéricos, notícias que bem administradas poderiam ampliar as
possibilidades de êxito da oposição missioneira.
7
Arquivo Geral de Simancas (A.G.S). Valladolid. Secretaria de Estado. Legajo 7425. Folios
145 y 146. Reiro-me aos “papeles” apreendidos com o cacique da redução de Yapeyu, Rafael
Paracatu logo após os incidentes no arroio do Daymal em 8 de outubro de 1754; Arquivo Histórico Nacionalhistórico nacional (A.H.N). Madrid. Sección Clero-Jesuítas, Legajo 120, documento 54 (Relato de Escandón) 8-XI-1755. “Cogieronse le al Cacique Paracatu varios papeles
y cartas escrita en su propia lengua. Y ante todas cosas mucha prudencia rubrico de propia mano
el governador y luego las mandó traducir para saber lo que contenia”. p. 114.
343
Nos períodos de agitação os guaranis mantiveram-se informados
através de mensagens escritas, comunicando seus companheiros a
respeito da movimentação dos espanhóis na região. Como a estância
de Yapeyu era muito extensa, os mayordomos foram constantemente
contatados e instruídos, bem como forneciam informes frequentes a
Paracatu. Algumas dessas correspondências eram coletivas, e ao inal
constava a expressão “todos los mayordomos te escrivimos”. Como a
de agosto de 1754, reproduzida abaixo:
“Dn Raphael Paracatu. Dios te guarde te decimos, nosotros los
Mayordomos. Há llegado a nosotros el papel, tenemos conianza
em Dios como tu, y te quedamos agradecidos. Dios nos preserbe
de todo mal, y quiera que vivamos em el camino de los Santos
Sacramentos, y que andeis solo em el amor de Dios. Jesus Christo
nos manda por su amor, y nosotros por el nuestro, y esto has de
tener siempre ante los otros, y has de pedir a la Virgen Santissima
nos de toda felicidad y pidamos tambien a las Santas Almas que
estan delante de Dios, que pidan para nossotros fortaleza y que
nos ayude. Esto te escrivimos para que em nombre de Dios lo
leas. Joseph Aviare te llevo dos aspas de Polbora, y 44: balas, 7:
pliegos de papel blanco, em um canuto de taquara, cinco tercios,
y uma volsa de tavaco, y como no savemos em que paro esto, no
te escrivimos mas que por que lo sepas, y quien fué el portador
te avisamos. Dios te guarde te decimos. 6 de Agosto de 54: anos,
unos pobres como tu, que te aman: todos los Mayordomos te
escrivimos”8
Como se pode veriicar, a escrita atuou como canal de
comunicação entre aqueles Guaranis empenhados na oposição à
presença hispânica, atualizando as principais lideranças, e comunicando
a determinação dos administradores em seguir resistindo. Através da
relação dos mantimentos enviados pelos mayordomos, é possível inferir
a importância que o contato in scriptis desempenhou nessa ocasião,
pois na resposta enviada a Paracatu foi mencionado o envio de “pliegos
8
A.G.S. Secretaria de Estado. Legajo 7425.
344
de papel blanco”, matéria prima destinada a dar continuidade à troca de
informações por escrito.
Através desse conjunto de correspondências indígenas
constatamos a urgência da escrita no período de conlito. Algumas cartas,
por exemplo, foram respondidas no mesmo dia em que chegavam aos
destinatários. Em determinados contatos os Guaranis agregavam as suas
missivas expressões como “invieis la respuesta a esta carta”, que são
indícios da importância atribuída à escrita nas negociações políticas dos
índios letrados com os seus interlocutores, fossem eles companheiros
de redução, demarcadores ou qualquer outra autoridade. Enim, uma
preocupação presente às estratégias de guerra.
As correspondências dos mayordomos têm permitido resgatá-los
do anonimato, exatamente pelo fato deles terem deixado testemunhos
escritos de suas opiniões, quando participaram ativamente nos bastidores
do conlito, promovendo usos inesperados às suas competências
gráicas. Outros exemplos da escritoilia guarani - o apego à escrita - são
os textos dos secretários, corregedores e alcaides que desempenhavam
às funções de cabildantes em suas respectivas reduções. De fato, ao
tomarem o texto epistolar como modelo, eles desenvolveram formas
de expressão voltadas a registrar suas opiniões ou intervir no rumo dos
acontecimentos.
Sabemos que as cartas, cujas mensagens estavam centradas
principalmente na comunicação oicial, foram o ponto de partida
para outras modalidades de textos voltados a registrar experiências
de caráter pessoal, ou coletivo. Diante das rápidas transformações
operadas na região, frente a agitação delagrada pela presença das
comissões demarcadoras, surgiam novas oportunidades escriturárias
aos indígenas letrados. A diversiicação das formas textuais, produzidas
pelos indígenas nas reduções, ainda podem ser resgatadas através dos
documentos produzidos pela sociedade missioneira e que remanescem
dispersos nos arquivos. Através desses vestígios é possível estabelecer
uma classiicação esquemática, uma tipologia das formas textuais
indígenas nas reduções. Eles conheciam as convenções que pautavam
345
os diferentes gêneros, estilos e modalidades de inscrições exposta.
Diante dessa familiaridade, em determinadas oportunidades, alguns
guaranis letrados manifestaram uma relação mais privada com a escrita
elaborando um testemunho, uma “memória indígena”, dos momentos
atípicos veriicados durante os trabalhos de demarcação.
O Relato de Nerenda: As Memórias de um Indígena
Com efeito, quase sem exceções, a escrita pessoal é marcada pelas
experiências, por vezes traumáticas, sobretudo aquelas relacionadas a
situações de cativeiro, ameaças ou perseguições. As situações inusitadas
rompiam com a rotina da vida em redução, atuando como estímulo à
elaboração de um registro da sobrevivência do narrador. Este foi o caso
de Chrisanto Nerenda, mayordomo na redução de São Luís Gonzaga.
Ele foi capturado em 1754, pelos portugueses nas proximidades do
rio Pardo, e após passar alguns meses em cativeiro, quando obteve a
liberdade, regressou a São Luís. Nessa ocasião ele redigiu um extenso
relato, em língua guarani, narrando os episódios que havia presenciado.
Este texto corresponde ao momento de sua chegada ao fortim lusitano
‒ acompanhado de meia centena de companheiros ‒ nas margens do rio
Jacuí, até o retorno à sua redução de origem.9 Tal narrativa conigura-se
no texto indígena que melhor sintetizou o estranhamento missioneiro
em relação ao mundo extra-reducional, especialmente a conduta dos
portugueses.
Através do texto de Nerenda sabemos que ele passou por
situações de extrema adversidade, além de ameaças e privações. Durante
aproximadamente dois meses, entre o início de maio até meados de
julho de 1754, o administrador da redução de São Luís, foi submetido
a várias pressões e conheceu pessoalmente Gomes Freire. Em mais
9
A.H.N. Sección Clero-Jesuítas, Legajo 120. “RELACIÓN de lo que succedio a 53 Indios
del Uruguay, cuando acometieron por 2o con otros muchos el fuerte de los Portugueses del Rio
Pardo, escribio un Indio Luisista que fue uno de estos 53 llamado Chrisanto, de edad como de
40 años, Indio Capax y mayordomo del pueblo, traduxo lo un misionero de la Lengua Guarani
en castellano, año 1755”.
346
de uma ocasião foi interrogado sobre o modus vivendi dos jesuítas,
sem jamais sucumbir às ameaças recebidas. Esse guarani letrado, de
aproximadamente 40 anos, foi um dos 14 sobreviventes a que Freire
concedeu liberdade, depois de uma prolongada permanência, na vila de
Rio Grande.
Durante o período de conlito o relato elaborado por Nerenda
chegou a atingir grande repercussão no âmbito missioneiro, a se julgar
pelas informações históricas sobre a circulação desse texto. Em 1758, o
ex-provincial do Paraguai, Manuel Quirino, ao elaborar um manuscrito
compilatório dos principais episódios relacionados ao Tratado de Madri,
qualiicou Nerenda como “índio historiador”.10 O próprio Quirino
conirmou que Nerenda “fue uno de los cincuenta y tres indios bien
capaz de San Luis en una relacion que escrivio vuelto a su Pueblo, en
que a su modo les cuenta a sus paisanos todo el suceso”.11 Com base
nessa informação pode-se inferir que esse Guarani agiu motivado pelo
desejo de transmitir aos outros suas experiências extra-reducionais e
procurou, através da escrita – no caso uma memória pessoal –, narrar os
acontecimentos que vivenciou durante seu período de cativeiro.
Em meio à expressiva produção de cartas oiciais, com eminente
caráter político-administrativo, e de comunicação pessoal, através
de bilhetes, alguns guaranis aventuraram-se em uma escrita com
características de um relato pessoal e, possivelmente, de um registro da
“memória social”. Foi, justamente, o fato dos conteúdos da Relación de
lo que sucedió a 53 Indios del Uruguay estarem de acordo com a ótica
pretendida pelos jesuítas, ou seja, a defesa do modo de vida cristã, que
determinou a tradução e conservação do texto à época.
Contudo, Nerenda recorreu à escrita para registrar sua posição
pessoal, no caso o estranhamento em relação ao modo de vida dos
portugueses. Dessa forma, manifestava sua adesão ao projeto missional
– e não o tradicional repúdio aos trabalhos de transmigração, expresso
10
Real Academia de la Historia- Madri. (RAH). Sobre el tratado con Portugal. P.Manuel Quirino; 9-11-5-151; Sig 9/2279. Mss. p.184v.
11
R.A.H.: Sobre el Tratado con Portugal en 1750. P. Manuel Quirino. 9-11-5-151; Sig 9/2279.
p. 183.
347
em outros escritos indígenas do mesmo período. Inclusive, pelo fato
de ser congregante, o relato de Nerenda expressa uma inquietação de
um indivíduo devoto. Ele tanto fazia parte da elite recrutada por mérito
religioso como, igualmente, ocupava um cargo ligado ao cabildo por
sua aptidão letrada (administrador de estância).
Entre os escritos pessoais, iguram textos que foram motivados
pelo desejo de formular testemunhos e assim manifestar opiniões
que poderiam atingir outras platéias. Por certo, Nerenda escreveu
movido pela expectativa de ser lido por outros, pelo exercício do seu
ofício, quando direcionou sua habilidade para a elaboração de um
texto com características de memória pessoal. O exercício da escrita
de maneira frequente favoreceu o desenvolvimento de outras formas
textuais, documentos que funcionam como suportes para recordações,
depositários de lembranças. Antonio Castillo, ao comentar as motivações
presentes ao ato de escrever, destacou o fato desse exercício nem sempre
corresponder exclusivamente ao apreço individual, pois apesar de
conformar “(…) el espacio escrito cuna de la intimidad (privacy), pero
igualmente explicitan la conciencia histórica del sujeto, su postura ante
los aconteceres externos y el lugar de éstos en el orden de la memoria
personal”.12
Nesse sentido, a escrita, em alguns episódios, foi depositária de
alteridades geradas diante de experiências singulares. Por seu conteúdo
a relação de Nerenda apresenta elementos que a aproximam de uma
memória coletiva, pois é uma forma de escrita pessoal mais centrada no
exterior. Segundo James Amelang, a característica de narrativas dessa
natureza é que sua “mirada se dirige hacia fuera, no hacia dentro”.13
A escrita pessoal, dentre outros textos produzidos nas reduções,
permite airmar que a memória social foi relevante no cotidiano
missioneiro e nos rumos da vida em redução. Ainal os guaranis viveram
momentos excepcionais o que justiicava o interesse em preservá-los,
12
CASTILLO GÓMEZ, Antonio. La fortuna de lo escrito: funciones y espacios de la razón gráica (siglos XV-XVII). Bulletin Hispanique, Bordeaux, t. 100, n. 2, pp. 343-381, 1998 (p. 354).
13
AMELANG, James. El vuelo de Ícaro: la autobiograia popular en la Europa moderna.
Madrid: Siglo XXI, 2003. pp.17-18.
348
para não serem relegados ao esquecimento. Em certo sentido, escrever
havia assumido entre a elite missioneira, e mesmo junto aos índios
letrados, a condição de um testemunho que imaginavam não seria
superado facilmente. Outros indígenas, por sua condição de lideranças,
igualmente recorreram à escrita por acreditarem que através desse
procedimento poderiam interferir no rumo dos acontecimentos.
As instruções de Pasqual Yaguapo
Como vimos, a preocupação dos índios missioneiros com
o controle das notícias que circulavam na região determinou a
valorização da comunicação epistolar. A rapidez manifesta por parte
das lideranças indígenas, em responder ameaças e repassar informações
aos seus companheiros, sinaliza a importância atribuída aos poderes
do escrito na sociedade missioneira. Provavelmente tenham avaliado
que as notícias bem administradas poderiam ampliar as possibilidades
de êxito indígena diante da presença dos exércitos ibéricos na região.
Como exemplo, dispomos dos textos escritos por Pasqual Yaguapo. Por
sua condição de liderança este guarani letrado vislumbrou na instrução
escrita um recurso capaz de orientar os soldados e mesmo os oiciais das
tropas missioneiras. Procurava, desta maneira, evitar que os milicianos
fossem facilmente ludibriados pelos demarcadores. Nos seus escritos
ele sintetizou o desejo de algumas lideranças missioneiras em congregar
os esforços militares em torno de uma ação coordenada.
As cartas redigidas por Yaguapo demonstram o quanto a escrita
também foi um expediente voltado à instrução coletiva, no caso uma
tentativa de organizar a tropa missioneira. Quando as comissões
demarcadoras chegaram ao território implicado na permuta, este
indígena letrado ocupava a função de alcaide maior da redução de São
Miguel. Nessa ocasião, escreveu uma carta conjunta com o corregedor
miguelista, Pasqual Tirapare, informando ao padre Tadeu Henis dos
distúrbios na estância de Santo Antonio.14
14
A. G. S. Secretaria de Estado. Legajo 7410.
349
Por meio de recomendações escritas a elite missioneira
procurou orientar os soldados missioneiros sobre a melhor conduta a
ser adotada no momento de contato com os funcionários encarregados
da demarcação. Em mais de uma ocasião ele valeu-se da sua condição
de administrador da redução de São Miguel e elaborou instruções que
deveriam ser repassadas aos demais Guaranis. Em outubro de 1754,
Yaguapo escreveu uma carta ao tenente Miguel Arayecha na qual
informa claramente os motivos do envio dessa missiva: “os escriviremos
y tambien los caziques del Pueblo, tambien encargamos que no se dejen
engañar”.
Nessa ocasião, Yaguapo, inclusive, aproveitou para alertar o
seguinte:
“(...) cuando dijere que benga un Casique à hablarnos no salga
de la muchedumbre de los soldados para que con sus muchas
palabras los han de engañar, con dadivas, con un calzon, con un
sombrero, con una chupa, o con alguna casaca, o haziendoles oyr
varias cosas y entonces han de fraguar Pleito contra nosotros por
todas partes”.15
A coniança depositada na escrita como instrumento capaz de
promover uma ação conjunta ica evidente em outro texto escrito pelo
mesmo indígena. Em junho de 1755, ele redigiu um arrazoado de motivos
intitulado “Para los Indios que han de avistarse con los Españoles,
les pongo a la vista lo que han de decir los Indios, para que lo oigan
todos los Caziques y Cavildos”16. O texto, intercalado com um diálogo
hipotético, visava instruir os Guaranis que estavam nas estâncias quanto
15
Archivo General de Indias .(A.G.I). Sevilla. Audiencia de Buenos Aires, 42. Carta de Pasqual
Yaguapo a Miguel Arayecha. 22 de octubro de 1754. Copia N 7. Es copia que concuera con la
traducción original que queda en la secretaria de mi cargo. Campamento em el Arroyo Ybacacay Marzo 8 de 1756. Pedro Medrano.
16
A.G.S. Secretaria de Estado, Legajo 7410, documento número 6. “Una copia en quatro foxas
de um papel sin fecha con una irma que dice: Hixos de San Francisco de Borxa. Y a continuación va outra Copia de uma carta que parece escrita por Pascual Yaguapo a Joseph Tiarayu, los
dos naturales del Pueblo de San Miguel en 16 de Junio del año pasado de 1755”.
350
aos argumentos que deveriam verbalizar caso encontrassem com os
oiciais das comissões demarcadoras. O conteúdo dessa mensagem está
marcado por um forte didatismo, com o intuito de preparar os indígenas
para impedir o avanço do exército espanhol por terras missioneiras.
Por seu conteúdo o texto de Yaguapo, muito provavelmente,
foi concebido com a inalidade de leitura coletiva, servindo de instrução
geral a toda população, inclusive a caciques e cabildantes. A leitura dessa
instrução visava a memorização dos argumentos apresentados, pois
a população missioneira estava familiarizada com a leitura oralizada.
Vale recordar que, inicialmente, as informações eram repassadas aos
guaranis através da leitura em voz alta. Podemos airmar que a memória
indígena foi “treinada” inicialmente pela voz, depois pela escrita, ao
longo de décadas de vida em redução.
A Relação Abreviada e os documentos authenticos
No verão de 1756, após uma breve entrevista com os
comandantes ibéricos, os índios das reduções decidiram medir forças
com os exércitos coligados. Conforme consta, no dia 10 de fevereiro de
1756, foi travada uma grande batalha nas imediações do cerro de
Caiboaté. Esta foi a maior “função militar” no qual esteve envolvida a
tropa militar missioneira e os exércitos ibéricos coligados. Tal “função
militar” icou conhecida na historiograia como a Batalha de Caiboaté,
na qual participaram índios egressos de nove reduções. Ao inal da luta
aproximadamente 1.500 guaranis estavam mortos e outros 154 foram
feitos prisioneiros. Nesses dias alguns papéis escritos pelos índios
foram localizados, antes e depois do conlito em Caiboaté.
Um ano após o encerramento dos conlitos nas reduções
orientais, foi publicado em Lisboa uma obra anônima, intitulada
Relação Abreviada,17 na qual igurava ao inal, como anexos, traduções
17
Relação abreviada da república que os religiosos das províncias de Portugal e Hespanha,
estabelecerão nos Dominios Ultramarinos das duas monarchias. E da guerra, que neles tem
movido, e sustentado contra os Exercitos Hespanholes, e Portuguezes; e por outros documentos
authenticos. Lisboa: [s.n.], 1757. Há uma nova edição, creditada ao Marquês do Pombal: Se-
351
à língua portuguesa de três papeis escritos em guarani. Os documentos
eram textos indígenas apreendidos em território missioneiro, porém,
acrescidos de títulos ictícios com a inalidade de comprometer o
trabalho executado na Província do Paraguai. Por este motivo, a
obra foi contestada à exaustão, ponto por ponto, por alguns jesuítas,
principalmente em decorrência dos três papéis traduzidos.18 Segundo um
dos religiosos estes constituiriam-se na “única prueba de la multitud de
calumnias por el aqui recopiladas”.
Assim, como peças de defesa foram redigidas várias Refutações
à Relação Abreviada. Essas refutações são manuscritos elaborados por
jesuítas que estavam em terras paraguaias, como Bernardo de Nusdorffer
e Juan de Escandón. Tais textos foram verdadeiros processos de defesa
no qual os jesuítas dialogavam com o suposto libelista ‒ no caso,
Pombal ‒ e apresentavam argumentos calcados no estudo das expressões
lingüísticas, nas peculiaridades da língua guarani. Por meio desses
textos, procuravam demonstrar que o “alboroto y emperramiento de
los indios”, que resultaram na Guerra Guaranítica não fora estimulado
pelos missionários da Companhia de Jesus, como alguns autores
antijesuíticos insistiam, mas uma atitude genuína dos guaranis.
Em meio à exposição de seus argumentos os missionários
registraram informações sobre aspectos relacionados à prática
“escriturária”, reconhecendo a competência gráica indígena. Somente
em uma situação excepcional como esta, de crítica aguda ao trabalho
evangelizador realizado na Província Jesuítica do Paraguai, explica
o motivo pelo qual nesta circunstância alguns religiosos decidiram
pronunciar-se sobre este assunto: a escrita dos guaranis.
bastião José de Carvalho e Melo, República jesuítica ultramarina. Apresentação e transcrição,
Júlio Quevedo Santos. Gravataí, SME; Porto Alegre, Martins Livreiro; Santo Ângelo, Centro de
Cultura Missioneira, 1989. Para uma aproximação ao impacto bibliográico dessa obra no século XVIII, ver: CARDOZO, Efraim. Historiograia paraguaya: I - Paraguay indígena, español y
jesuíta. México: Instituto Panamericano de Geograia e Historia, 1959. pp. 374-376.
18
Dessas três cartas, uma é anônima e as outras duas apresentam ao inal o nome dos responsáveis por sua redação, no caso Valentin Ybariguá e Primo Ybarenda, ambos integrantes do
cabildo da redução de São Miguel. NEUMANN, Eduardo S. Práticas letradas Guarani: produção e usos da escrita indígena (séculos XVII e XVIII). Tese (doutorado) UFRJ/IFCS, 2005.
352
Nessas Refutações os dois jesuítas procuravam esclarecer que:
“Ahora pues este indio, que ciertamente sabia leer, y escribir (y aun
contar) porque no podría el escribir este papel de Instrucciones?”.19
Por certo, o reconhecimento da capacidade alfabética dos guaranis por
parte dos inacianos, não era uma novidade no entanto, sempre estava
relacionada à produção de textos devocionais, a denominada reescritura
cristã.20 Entretanto, nessa ocasião, a competência gráica indígena foi
reconhecida de maneira desvinculada da escrita religiosa.
Na Refutação elaborada por Escandón, ele se propunha a
examinar os três papéis para desfazer as calúnias difundidas pelo “librito
português”. Argumentava que tão somente com este recurso, “se vera
sin recurrir a otra prueba” a falsidade das acusações e, agregavam, que
bastava proceder à perícia caligráica dos textos para se constatar que
não havia “(…) ni un solo ápice, o tilde, ni otra cosa alguna havia en
ellos de mano ni de pluma de los P.P ni de Padre alguno sino que en
todo, y por todos estavan todos tres escritos desde la Cruz a la lecha;
y irma los que la tenian de letra de indios (…)”.21 Nesse sentido, a
escrita indígena e a polêmica sobre a autenticidade dos documentos
de “letra de índios” são reveladores das disputas políticas que nos
explicam, primeiro, a existência de textos como esses e, segundo, que
foram tratados, à época, como material comprobatório da veracidade
de argumentos políticos e, portanto, instauradores de uma versão dos
acontecimentos.
Outro aspecto que merece destaque a partir desse material é a
circulação de textos manuscritos, copiados no centro e reproduzidos por
19
Suplemento de las censuras y licencias y del Prologo al curioso Lector, sin que salió â luz
estos días la Relación abreviada de la republica de los P. P Jesuitas del Paraguay, yerros, y fe de
erratas de la misma Relación, 1758 (c.a), Archivo Histórico Nacional- Madrid. (AHN), CleroJesuítas, legajo 120, caja 2, documento 75. l.24v.
20
Reiro-me aos trabalhos de Nicolas Yapuguay, que reescreveu em guarani Sermones y exemplos en lengua guarani, sendo considerado, inclusive como um “escritor”. Uma breve biograia
desse índio ilustrado pode ser consultada em: YAPUGUAY, Nicolás, Sermones y exemplos en
lengua guaraní. Buenos Aires, Editorial Guarania, 1953, p. V-IX. (Edição fac-similar impressa
na redução de San Francisco Xavier de 1727).
21
A.H.N, Clero-Jesuítas, legajo 120, caja 2, doc 74. l.54. Refutación de la Relación Abreviada
de la República de los P. P Jesuitas impresa en Portugal, 1758 (c.a).
353
letrados nas periferias, ou vice-versa. Textos como as “Refutações” pelo
fato de terem cruzaram o Atlântico, procurando atingir outros públicos,
sinalizam que a visão simplista que outrora concebia de maneira
estanque a relação entre o centro e a periferia deve ser reconsiderada.
Tal perspectiva é limitada, pois não contempla as redes de reprodução e
circulação de manuscritos existentes entre as monarquias ibéricas.
A referência aos três “documentos authenticos” apreendidos
em território missioneiro e publicados como apêndice na Relação
Abreviada é um indício do funcionamento dessas redes de circulação,
operantes entre o centro e a periferia das sociedades de Antigo Regime. A
importância conferida a tais acervos, conjugados a uma nova perspectiva
teórico-metodológica, tem contribuído para uma reavaliação geral das
dinâmicas sócio-culturais estabelecidas entre os Impérios Ibéricos na
América colonial.
A título de conclusão
Alguns dos exemplos apresentados visam comprovar a
abrangência social da escrita no âmbito reducional, destacando o
protagonismo dos guaranis enquanto sujeitos políticos no mundo
colonial e como o vínculo existente entre escrita, poder e memória
presidiram a decisão das lideranças indígenas em redigir mensagens.
A escrita produzida nesse momento permite abordar as maneiras
pelas quais os índios organizaram suas narrativas do passado, textos
nos quais iguram categorias relacionadas ao tempo linear. Nesses
episódios, a temporalidade indígena estava expressa em parâmetros
ocidentais e, geralmente, os guaranis letrados repetiam sua cantilena de
inconformidade com a entrega de suas terras, onde manifestavam um
desejo explicito de reverter á ordem de mudança. A batalha dos papéis
antecedeu o início da fase bélica, de conlito armado.
A familiaridade manifesta com os diferentes níveis das práticas
letradas, mesmo restrita a uma elite, havia promovido sociabilidades
inéditas, permitindo a população missioneira estabelecer novos modos
de relação com os outros e os poderes. O certo é que os momentos de
354
crise, de tensão ou impasse nas reduções coincidiram com a prática
da escrita pelos guaranis. Possivelmente, em situações excepcionais,
como nos momentos de contatos com os portugueses, foi quando os
indígenas missioneiros sentiram a necessidade de colocar no papel suas
inquietações, sempre que as circunstâncias permitiram e, assim, formar
um testemunho de certos acontecimentos.
355
As sesmarias e a ocupação do território
na Amazônia colonial1
Rafael Chambouleyron
Universidade Federal do Pará
A questão da agricultura e a relação entre agricultura e
extrativismo têm sido um tema central no debate sobre a ocupação
econômica da Amazônia, no período colonial e até mesmo hoje, quando
se discute a matriz de desenvolvimento da região. Em relação ao século
XVII, embora a historiograia não indique a existência de uma relexão
sistemática sobre a agricultura no pensamento político-econômico
português, não há dúvida que a agricultura assumia um papel central
ao se pensar o lugar das conquistas.2 A recorrência dessa questão nos
escritos enviados à Corte e nas ações da própria Coroa indica como
a ocupação econômica da terra, por meio da atividade agro-pastoril,
efetivada pelos “povoadores” e “habitadores”, se tornara uma lente
através da qual se compreendia o mundo que se construía no Estado do
Maranhão e Grão-Pará.3
O cultivo sistemático da terra, assim, constituiu uma preocupação
importante da Coroa durante o século XVII, para o Estado do Maranhão
e Pará. Não somente os reis tentaram de múltiplas formas desenvolver
a plantação de açúcar e tabaco, mas também o cultivo dos “frutos da
terra”, como o cacau, o anil e o cravo de casca.4 Em várias ocasiões, a
1
Esta pesquisa conta com o apoio do CNPq e da FAPESPA. O autor agradece à FADESP e
FAHIS/UFPA pelo auxílio.
2
“A agricultura não era ainda um objeto de relexão prioritário, nem tão-pouco especíico. Ela
não era um ponto de partida, mas apenas uma espécie de ‘ponto de passagem’ no contexto duma
relexão de ordem muito mais geral”. José Vicente SERRÃO. “O pensamento agrário setecentista (pré-‘isiocrátrico’): diagnósticos e soluções propostas”. In: José Luis CARDOSO (org.).
Contribuições para a história do pensamento econômico em Portugal. Lisboa: Dom Quixote,
1988, p. 29.
3
Ver: GROSS. “Agricultural promotion in the Amazon Basin, 1700-1750”. Agricultural History, vol. XLIII, nº 2 (1969), pp. 269-276.
4
Em seus textos, Arthur Cezar Ferreira Reis já indica a existência dessa experimentação agrícola, insistindo na importância da mão-de-obra indígena para essas empresas, muito embora as
357
Coroa concedeu privilégios aos produtores de açúcar, tabaco e cacau,
como isenções de impostos, benefícios jurídicos e ajuda para a obtenção
de escravos africanos e indígenas. A distribuição das terras constituía
também uma das formas de aumentar a produção agrícola do Estado.
Essa é uma realidade particularmente evidente na segunda metade do
século XVII, notadamente a partir do reinado de Dom Pedro II.
De fato, do ponto de vista político, a consolidação da dinastia
bragantina, durante a regência e reinado de Dom Pedro II signiicou,
como indica Nuno Gonçalo Monteiro, um “retorno a um modelo bem
deinido de tomada das decisões políticas”.5 Não há dúvida que tal
coniguração teve consequências importantes para pensar os modos
como a Coroa percebeu a ocupação de suas conquistas. Não que Portugal
não atravessasse momentos delicados do ponto de vista econômico. Pelo
menos essa é a leitura de Vitorino Magalhães Godinho, que aponta um
considerável recuo da economia portuguesa do inal da década de 1660
até 1693, “prolongada depressão dominada pela crise do açúcar, tabaco,
prata e tráico de escravos”.6 Mas a crise não signiicou uma retração
da ação do Estado. Em outro texto, Godinho já chamava a atenção
para o fato de que os portugueses tiveram consciência da crise e da
necessidade de um “surto manufatureiro” para enfrentá-la, que o autor
identiica com a introdução de uma “política colbertista” em Portugal.7
Por outro lado, houve uma reestruturação monetária e diversas outras
medidas direcionadas ao reino e às conquistas.8 Ora, parte dessas ações
situe principalmente durante o século XVIII. REIS. A política de Portugal no vale amazônico,
p. 13; e REIS. “Economic history of the Brazilian Amazon”. In: Charles WAGLEY (org.). Man
in the Amazon. Gainesville: The University Presses of Florida, 1974, pp. 35-36.
5
Nuno Gonçalo Freitas MONTEIRO. “A consolidação da dinastia de Bragança e o apogeu
do Portugal barroco: centros de poder e trajetórias sociais (1668-1750)”. In: José TENGARRINHA (org.). História de Portugal. Bauru/São Paulo/Lisboa: EdUSC/EdUNESP/Instituto
Camões, 2000, p. 130. A esse respeito, ver também: Carl HANSON. Economia e sociedade no
Portugal barroco, 1668-1703. Lisboa: Dom Quixote, 1986, pp. 20-22.
6
Vitorino Magalhães GODINHO. “Portugal and her empire, 1680-1720”. In: John S. BROMLEY (org.). The new Cambridge modern history. Cambridge: CUP, 1970, vol. IV, p. 511.
7
GODINHO. “Problèmes d’économie atlantique. Le Portugal, les lottes du sucre et les lottes
de l’or (1670-1770)”. Annales. Économies, Sociétés, Civilisations, vol. 5, nº 2 (1950), p. 186.
8
Ver: GODINHO. “Problèmes d’économie atlantique. Le Portugal, les lottes- du sucre et les
358
voltou-se também para as conquistas, caso do Estado do Maranhão e
Pará. Magalhães Godinho e, depois, Carl Hanson identiicaram o que
este chamou de “esforços da coroa para revitalizar a periferia”, e que
no caso da Amazônia estavam relacionadas ao desenvolvimento da
agricultura e também da cultura das drogas do sertão.9
Assim, entre os anos 1665 e 1706 (reinados de Dom Afonso VI e
Dom Pedro II), encontramos registros referentes a quase 90 sesmarias,
distribuídas pelos governadores e a maioria conirmadas pelos reis.
Essas doações de terras constituem uma velha tradição portuguesa,
ligada ao processo de conquista do território da península contra a
presença muçulmana. Não vale a pena aqui esmiuçar essa história, uma
vez que há diversos trabalhos que já o fazem com detalhe e precisão.10
Basta resgatar um aspecto fundamental da concessão de terras em
sesmaria que é a ideia do aproveitamento da terra; a ele se junta outro,
igualmente central no Estado do Maranhão e Pará, que é o da ocupação
do território.
Exemplar nesse sentido foi a forma como, em princípios do
século XVIII, brevemente se discutiu a ocupação do sertão do rio
Parnaíba (que ao longo da primeira metade do século seria extensamente
lottes de l’or (1670-1770)”, pp. 186-187; GODINHO. “Portugal and her empire, 1680-1720”,
pp. 511-17.
9
GODINHO. “Portugal and her empire, 1680-1720”, pp. 530-31; HANSON. Economia e sociedade no Portugal barroco, pp. 247-51. A respeito dos ensaios com as drogas, ver: Martim
de ALBUQUERQUE. O Oriente no pensamento econômico português no século XVII. Lisboa:
Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, 1967; José Roberto do Amaral
LAPA. “O problema das drogas orientais”. In: Economia colonial. São Paulo: Perspectiva,
1973, pp. 111-140; e Luís Ferrand de ALMEIDA. “Aclimatação de plantas do Oriente no Brasil durante os séculos XVII e XVIII”. In: Páginas dispersas. Estudos de história moderna de
Portugal. Coimbra: IHES/FLUC, 1995, pp. 59-129 (republicação de artigo saído na Revista
Portuguesa de História, em 1975).
10
Virgínia RAU. Sesmarias medievais portuguesas. Lisboa: Universidade de Lisboa, 1946;
José da COSTA PORTO. O sistema semarial no Brasil. Brasília: EdUnB, s.d., pp. 26-35;
Erivaldo Fagundes NUNES. “Sesmarias em Portugal e no Brasil”. Politeia, vol. 1, nº 1 (2001),
pp. 111-39; NUNES. Posseiros, rendeiros e proprietários. Estrutura fundiária e dinâmica
agro-mercantil no alto sertão da Bahia (1750-1850). Recife: Tese de Doutorado (História),
UFPE, 2003, pp. 73-78; Carmen de Oliveira ALVEAL. Converting land into property in the
Portuguese Atlantic world, 16th-18th century. Baltimore: Tese de Doutorado (História), Johns
Hopkins University, 2007, pp. 50-68 e 74-111.
359
ocupado). Por ordem do rei, o Conselho Ultramarino analisou um
“papel” que defendia a necessidade de se povoar o rio Parnaíba. O
Conselho convocou o parecer do antigo governador Gomes Freire de
Andrade e pediu informação ao governador de Pernambuco sobre a barra
do rio. Também se consultou a Pedro da Costa Raiol, que se encontrava
então na corte, “pessoa muito prática nos sertões do Maranhão”,
considerada por Freire de Andrade a mais capaz de informar a Corte
sobre a questão, por lá ter ido em expedição contra os Tremembé. Para
Costa Raiol, segundo o relatório do Conselho, de modo algum se devia
povoar o Parnaíba, pela grande despesa que se faria à Fazenda real, por
ser distante tanto de Pernambuco quanto do Maranhão, além de que
não tinha o necessário para se sustentar, nem se lhe poderia acudir a
tempo “em qualquer acidente”. A despeito das opiniões do sertanista, o
Conselho Ultramarino tinha um parecer emblemático:
Que o meio mais conveniente que se representa para se conseguir
a defesa e oposição dos gentios inimigos do corso é darem-se
aquelas terras de sesmaria a quem as pedir, porque enchendose de currais de gado, se virão a povoar por este caminho, com
grande interesse dos vassalos de V.M., sem que a Fazenda real
concorra para este efeito, e que assim se deve recomendar ao
governador do Maranhão, que pedindo-se-lhe algumas datas, as
dê a pessoas que as cultivem e tratem de seu benefício.11
A doação de sesmarias servia assim para assegurar o domínio
contra os inimigos “internos” – o uso do gado já havia revelado sua
eicácia nos sertões “de dentro” e “de fora”, no Estado do Brasil –, de
povoamento e de benefício econômico da terra.
É preciso destacar que há uma considerável produção
bibliográica sobre o instituto das sesmarias, da qual se destacam alguns
debates centrais, como a questão da transplantação do sistema do reino
para as conquistas, notadamente para os arquipélagos atlânticos e a
América, suas transformações e as vicissitudes de sua aplicação; ou
11
“Sobre o papel que se deu a S.Mag.de das conveniencias que se pudiaõ seguir em se povoar o
rio Parnahiba”. 23/03/1702. AHU, cód. 274, ff. 151v-152.
360
a discussão em torno aos grupos privilegiados pela distribuição de
terras; ou mais recentemente a relexão em torno aos usos da terra e aos
conlitos derivados da ocupação.12 Sem deixar de lado, a importância
dessas questões, quero aqui aprofundar outra perspectiva possível a
partir das informações presentes nas cartas de datas e sesmarias, que,
como apontei anteriormente, foi deinida exemplarmente no início do
século XVIII pelo Conselho Ultramarino.
12
Ver: ALVEAL. Converting land into property in the Portuguese Atlantic world; Edval de
Souza BARROS. “Aquém da fronteira: mercado de terras na capitania do Rio de Janeiro: 17201780”. Anais do III Encontro Brasileiro de História Econômica, 1999. http://www.abphe.org.
br/congresso1999/Textos/EDVAL.pdf; COSTA PORTO. O sistema semarial no Brasil; Mônica
DINIZ. “Sesmaria e posse de terras: política fundiária para assegurar a colonização brasileira”.
Histórica (Revista on-line do Arquivo Público de São Paulo) nº 2 (2005). http://www.historica.
arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao02/materia03/; Alberto Passos GUIMARÃES. Quatro séculos de latifúndio. 5ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, pp. 41-59;
Ruy Cirne LIMA. Pequena história territorial do Brasil. Sesmarias e terras devolutas. São
Paulo: Secretaria de Estado da Cultura, 1991, pp. 15-47; Márcia MOTTA. “História agrária
no Brasil: um debate com a historiograia”. VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências
Sociais. Coimbra, 2004. http://www.ces.uc.pt/LAB2004; MOTTA. “The sesmarias in Brazil:
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GUIMARÃES. “História social da agricultura revisitada: fontes e metodologia de pesquisa”.
Diálogos, vol. 11, nº 3 (2007), pp. 95-117; MOTTA. “Consecrating dominions and generating conlict – the sesmaria grants, 1795-1822 Brazil”. E-Journal of Portuguese History, vol.
6, nº 2 (2008). http://www.brown.edu/Departments/Portuguese_Brazilian_Studies/ejph/html/
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São Paulo: Alameda, 2009; Nelson NOZOE. “Sesmarias e apossamento de terras no Brasil
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e no Brasil”; NUNES. Posseiros, rendeiros e proprietários; Miguel Jasmins RODRIGUES.
“Sesmarias no império atlântico português”. Actas do Congresso Internacional “Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedade”. Lisboa: Biblioteca Digital do Instituto Camões,
2008. http://cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/miguel_jasmins_rodrigues.
pdf; Ligia Maria Osório SILVA & María Verónica SECRETO. “Terras públicas, ocupação privada: elementos para a história comparada da apropriação territorial na Argentina e no Brasil”.
Economia e Sociedade, nº 12 (1999), pp. 109-141; Rafael Ricarte da SILVA. “Os sesmeiros dos
‘sertões de Mombaça’: um estudo acerca de suas trajetórias e relações sociais (1706-1751)”
(Anais do II Encontro Internacional de História Colonial). Mneme – Revista de Humanidades,
vol. 9, nº 24 (2008). www.cerescaico.ufrn.br/mneme/anais; Francisco Eduardo PINTO. Potentados e conlitos nas sesmarias da comarca do Rio das Mortes. Rio de Janeiro: Tese de Doutorado (História), UFF, 2010.
361
De fato, para o século XVII e início do século XVIII, as
sesmarias no Estado do Maranhão e Pará revelam uma lógica particular
de ocupação do território pela agricultura, a partir do sistema luvial
composto pelos rios Acará, Moju, Capim e Guamá, na capitania do
Pará; e principalmente na ilha de São Luís e na fronteira oriental da
capitania do Maranhão.
É preciso lembrar que o cultivo e ocupação da terra não
se iniciavam com as doações, nem somente se legitimavam pelas
concessões. Em muitos casos era justamente a exploração econômica do
espaço que legitimava a concessão de uma terra.13 A fórmula “possuindo
e cultivando a terra” era frequente nas petições dos moradores. Era o
caso de Manuel Barros da Silva, cidadão de Belém, que cultivava um
pedaço de terra no Guajará, onde tinha feito “largos pastos de gado e
plantado muito cacau”.14 Lucas Lameira de França, também cidadão
de Belém, legitimava sua pretensão, alegando que ocupava sua terra
havia vinte anos.15 É bem verdade que esse tipo de declaração reforçava
a própria petição dos moradores. Entretanto, num território tão vasto
como era o do Estado do Maranhão, esse gênero de justiicação não
era certamente obrigatório. É bem provável que, mesmo sendo uma
determinação legal, a conirmação de terras pelo rei nem sempre fosse
solicitada pelos ocupantes. Isso ica claro quando se vê que várias
conirmações de sesmarias indicam outras terras para as quais não há
nenhuma referência nos documentos das chancelarias.
De fato, ao estabelecer as demarcações das terras, as concessões
e/ou as conirmações referem-se à existência de outros moradores
vivendo e beneiciando as terras, para os quais não pude encontrar
qualquer informação. É o caso, por exemplo, da sesmaria dada
ao capitão João Teles Vidigal, que tinha como marcos as terras de
Alexandre Ferreira, Inácio Preto e Cristina Ribeiro. A carta do capitão
13
ALVEAL. Converting land into property in the Portuguese Atlantic world, p. 70.
“Sesmaria no Maranhaõ. Manoel de Barros e Silva”. Conc. 21/08/1700. Conf. 10/03/1703.
DGARQ/TT, Pedro II, livro 28, ff. 27-28.
15
“Carta de conirmação de sesmaria para Lucas Lameira de França”. Conc. 4/06/1701. Conf.
16/05/1704. AHU, Pará, cx. 5, doc. 400.
14
362
Vidigal, inclusive, indica a região que ele escolhera para se situar –
“da banda da Bacanga” (São Luís) – como lugar “em que habitam
alguns moradores”.16 Era semelhante o caso do igarapé, onde Inácio
da Silva pretendia se estabelecer, “no qual tinham alguns moradores
suas roças”.17 Para várias sesmarias, por outro lado, não encontrei
conirmações, o que não signiica que as pessoas não continuassem a
ocupar a terra. Assim, é possível que a população estabelecida ao longo
dos rios, cultivando a terra, fosse maior do que podemos inferir pelas
concessões e conirmações de terras.
As sesmarias têm uma distribuição que se avoluma no inal
do século XVII. Signiicativamente, o século XVIII vai assistir a uma
verdadeira explosão da concessão de terras, tanto no Maranhão, como
no Pará e na nova capitania do Piauí.18
A existência dessas propriedades comporta uma relação
particular entre o sertão e as comunidades portuguesas. Em primeiro
lugar, a maioria das terras se situa a certa distância das cidades de
Belém (nos rios Moju, Acará, Tocantins, Guamá, Capim) e São Luís
(além da ilha de São Luís, rios Itapecuru, Mearim, Pindaré). Fica claro,
portanto, que esse tipo de atividade econômica se localizava não muito
próximo das principais comunidades. Entretanto, os proprietários se
deiniam como “moradores” das cidades de Belém e São Luís. Era o
caso de Genebra de Amorim, “moradora” de Belém, que possuía um
engenho no Moju.19 João Rodrigues Lisboa, que se declarava “morador
e cidadão” de São Luís, cultivava e habitava havia muito tempo “em
umas terras nesta ilha”.20 Na capitania do Pará, Leão Pereira de Barros
dizia morar em Belém, mas cultivava igualmente 5 mil plantas de cacau
16
“Joaõ Telles Vidigal ilho de Joaõ da Cruz”. Conc. 18/05/1695. Conf. 3/12/1696. DGARQ/TT,
RGM, Dom Pedro II, livro 5, ff. 320-320v.
17
“Sesmaria. Ignaçio da Silva”. Conc. 2/07/1703. Conf. 2/10/1705. DGARQ/TT, Pedro II, livro
30, ff. 191v-192v.
18
Ver: “Catalogo nominal dos posseiros de sesmarias”. ABAPP, tomo III (1904), pp. 5-149.
19
“Dona Genebra de Amorim”. Conc. 20/12/1676. Conf. 21/06/1676. DGARQ/TT, Afonso VI,
livro 33, ff. 149-150v.
20
“J.o Roiz Lisboa”. Conc. 18/04/1701. Conf. 30/11/1701. DGARQ/TT, Pedro II, livro 54, ff.
160-161.
363
nas suas terras no Guamá.21 Finalmente, Antônio Paiva de Azevedo,
“cidadão” de Belém, também cultivava cacau no Acará, de onde se
dizia “morador”.22
Claramente, havia um deslocamento signiicativo entre as
cidades e vilas e as terras cultivadas. As doações e a posse de terras
constituíam importantes mecanismos de ocupação econômica do
território, que, entretanto, não excluíam a residência permanente ou
temporária nos centros urbanos mais importantes, como São Luís e
Belém.
Os registros da Inquisição de Lisboa permitem traçar um pouco
desse deslocamento. Um caso exemplar é o dos irmãos Beckman,
acusados de judaísmo. Os dois, que, nos anos 1680, foram líderes de
uma revolta, tinham um engenho no rio Mearim, onde habitavam.
Evidentemente, os dois se deslocavam entre as suas terras e São Luís,
onde um deles, Manuel Beckman foi vereador na Câmara da cidade.
Uma das testemunhas contra os irmãos Beckman foi Antônio da Rocha
Porto, que declarava ter trabalho como lavrador na sua propriedade,
mas que, ao tempo da inquirição, dizia morar em São Luís. Graça, uma
escrava “preta do gentio da Guiné”, que denunciara a Tomás Beckman,
dizia que ele tinha sido morador no Mearim, “onde tinha sua fazenda”,
e na altura era morador em São Luís.23
A população “branca” do Estado do Maranhão, portanto, não
estava concentrada nas cidades e vilas da região, mas espalhada por
todo o território. Era essa a razão que fazia o ouvidor Antônio de
Andrade e Albuquerque se queixar da diiculdade de arrecadar os bens
dos defuntos e ausentes, “por ser dos moradores desta cidade [Belém] a
sua maior assistência nas suas roças e nos sertões, muitas léguas distante
desta cidade”.24 Em 1706, o procurador da Fazenda do Maranhão
21
“Sesmaria. Leaõ Pr.a de Barroz”. Conc. 10/10/1702. Conf. 6/10/1705. DGARQ/TT, Pedro II,
livro 30, ff. 194v-195.
22
“Sesmaria no Maranhaõ. Antonio de Payva de Azevedo”. Conc. 29/08/1702. Conf.
19/09/1705. DGARQ/TT, Pedro II, livro 30, ff. 172-173.
23
“Thomas Bequimaõ”. 1675. DGARQ/TT, IL-CP, livro 255, f. 52.
24
“Carta de Antônio de Andrade e Albuquerque”. Belém, 12/08/1685. AHU, Pará, cx. 3, doc.
250.
364
requeria índios à Câmara, “para sair a cobrar a Fazenda real ao Mearim,
Itapecuru, Icatu, Munim e Tapuitapera, por estar a dita fazenda com
mais devedores que facilmente se podia perder”.25
Isto aponta para uma questão interessante para a compreensão
do processo de urbanização do Estado do Maranhão e Pará. Para
a historiograia – e com toda razão – a urbanização da região esteve
marcada pela fundação das duas cidades principais (Belém e São
Luís), pela formação de vilas (Vigia, Icatu), inclusive em capitanias
privadas (Tapuitapera, Cametá, Sousa) e, também, pelo que poderíamos
chamar de urbanização missionária. Isto é, os inúmeros aldeamentos
(aldeias, como se dizia à época) fundados pelas ordens religiosas que
atuaram no Estado do Maranhão e Pará representaram um embrião da
futura urbanização da região, promovida, principalmente a partir da
transformação dos aldeamentos em vilas e lugares, com a instauração
do Diretório dos Índios, durante o ministério pombalino.26
Há, entretanto, uma perspectiva que parece ter sido deixada de
lado pelos autores, inclusive por se tratar do que gostaria de chamar
aqui de tendência e não propriamente de urbanização, e que, de
qualquer modo, ainda precisa ser comprovada com mais pesquisa,
principalmente para a primeira metade do século XVIII. Assim, parece
que a distribuição de terras (que se avoluma a partir dos anos 1720)
pode ter gerado “adensamentos” populacionais que, com o tempo
25
“Termo de húa junta q. se fez com o cap.m mor desta praça Matheus Carv.o de Siq.ra e o ouv.or
g.l do Estado sobre um requerim.to q. lhe izeraõ”. 8/07/1706. APEM, Livro de Acórdãos (17051714), ff. 28v-29.
26
Ver: BAENA. Ensaio corográico, pp. 287-333, 340, 363-69, 407-50; Manuel Nunes DIAS.
“Estrategia pombalina de urbanización del espacio amazônico”. In: Libro homenaje a Eduardo Arcila Farias. Caracas: IEH/ANCE, 1986, pp. 117-97; Décio de Alencar GUZMÁN.
“Constructores de ciudades: mamelucos, indios y europeos en las ciudades pombalinas de la
Amazonia (siglo XVIII)”. In: Clara GARCÍA & Manuel RAMOS MEDINA (orgs.). Ciudades
mestizas: intercambios y continuidades en la expansión occidental. Siglos XVI a XIX. México
DF: Centro de Estudios de Historia de México, 2001, pp. 89-99; COELHO. Do sertão para o
mar, pp. 196-2 e 376-431; GUZMÁN. “A primeira urbanização: mamelucos, índios e europeus
nas cidades pombalinas da Amazônia, 1751-1757”. Revista de Cultura do Pará, vol. 18, nº 1
(2008), pp. 75-94. Ver também: Rita Heloísa de ALMEIDA. O Diretório dos índios: um projeto
de “civilização” dos índios no Brasil do século XVIII. Brasília: EdUnB, 1997, pp. 53-74, 185193 e 216-225.
365
(longo tempo) também vieram a constituir lugares, quem sabe vilas.
Vimos anteriormente várias referências que indicam essa perspectiva,
na medida em que as próprias cartas indicam lugares de concentração
populacional em razão das atividades agro-pastoris. É por isso que
se falava de lugares onde habitavam vários moradores, ou onde os
moradores tinham suas roças (casos das cartas do capitão José Teles
Vidigal e de Inácio da Silva). Há aqui indícios de um possível processo
de consolidação não só da propriedade agrícola, mas talvez de núcleos
populacionais no interior dos quais começavam a se formar redes
sociais.
É signiicativo o fato de que, nos registros inquisitoriais,
algumas regiões com sabida concentração de terras dadas em sesmaria,
ou ocupadas pelos moradores, são designadas por “freguesias”. Frei
Bernardino das Entradas, arguto observador dos costumes e misturas do
Maranhão e Pará, que realizou conissões em inúmeras áreas “rurais” do
Estado, fazendo jus ao seu nome, indicava, por exemplo, a freguesia de
São Lourenço e Santa Catarina, rio Mearim, onde alguém denunciara a
Antônio Chevapara, índio forro da aldeia de São Gonçalo, e também a
Mateus, “negro índio” cativo e pescador do senhor de engenho Diogo
Fróis.27 Já na capela do Bom Jesus, engenho do capitão-mor João de
Sousa Soleima, freguesia de Nossa Senhora da Vitória de Itapecuru,
recolhia como confessor a denúncia do mulato Domingos contra
Pantaleão da Veiga, “negro tapanhuno forro”, e contra Damião, “negro
índio da terra”.28
Por outro lado, em algumas áreas do Estado do Maranhão e
Pará, à chegada dos moradores se seguia a construção de fortalezas
que, muitas vezes, tinham por função, justamente, garantir a presença
dos moradores. Esse foi o caso, principalmente, da fronteira oriental
da capitania do Pará, assolada pelos ataques dos chamados “gentios do
27
“An.to Chevapara. Feitis.as”. 1692. DGARQ/TT, IL-CP, livro 263, f. 262v; “Matheus feitis.as”.
1692. DGARQ/TT, IL-CP, livro 263, ff. 273-273v.
28
“[Contra Pantaleão da Veiga e Damião]”. 1692. DGARQ/TT, IL-CP, livro 263, f. 277, também: “[Contra Pantaleão da Veiga]”. 1692. DGARQ/TT, IL-CP, livro 263, f. 277v.
366
corso”.29 Pouco a pouco, foram construídos fortes em alguns rios em
que se concentrava a produção agrícola, como a fortaleza do Itapecuru,
que segundo o relatório feito pelo engenheiro Pedro de Azevedo
Carneiro, em 1695, levantada à custa de um morador, para repelir o
“gentio que continuamente tem infestado aquele rio e morto e roubado
muitos moradores dele”.30 A agricultura, assim, signiicou seguramente
um adensamento populacional e um domínio sobre o espaço que ainda
precisa ser devidamente estudado.
Infelizmente, diante das esparsas e fragmentadas informações
sobre ocupação da terra por meio da agricultura, em outros tipos de
documentos, os dados relativos às sesmarias se revelam claramente
incompletos. Regiões como a fronteira oriental do Maranhão, que pouco
a pouco se destacava no número de propriedades e alguns engenhos, a
ponto de o capitão Manuel Guedes Aranha chamar o rio Itapecuru de
“jardim do Maranhão” (embora se queixasse de sua decadência), estão
sub-representadas nas conirmações e concessões disponíveis.31
Vejamos, de qualquer modo, a distribuição das datas e
conirmações de terras. Infelizmente, como já havia notado Costa Porto32,
para muitas doações é quase impossível saber-se a exata localização
da terra (salvo a capitania), dada a pouca clareza das informações
geográicas, como o “pequi grande” que ajudava a demarcar as terras
do capitão João Teles Vidigal, na ilha de São Luís.33
Na capitania do Pará, a ocupação se centrará notadamente na
rede luvial composta pelos rios que luem para a atual baía do Marajó,
29
Sobre as guerras contra os “índios do corso”, ver: MELO. “Aleivosias, mortes e roubos”,
pp. 52-78.
30
O relatório do engenheiro Azevedo Carneiro, datado de 30/12/1695, encontra-se anexado à
“CCU-Pedro II”. 18/01/1696. AHU, Maranhão, cx. 9, doc. 909. Sobre a ocupação dessa região,
ver: Maria do Socorro Coelho CABRAL. Caminhos do Gado: conquista e ocupação do Sul do
Maranhão. São Luís, SIOGE, 1992.
31
Manuel Guedes ARANHA. “Papel político sobre o Estado do Maranhão” [c. 1682]. Revista
do Instituto Histórico e Geográico Brasileiro, tomo 46 (1883), 1ª parte, p. 3.
32
COSTA PORTO. O sistema semarial no Brasil, pp. 65-66.
33
“Joaõ Telles Vidigal ilho de Joaõ da Cruz”. Conc. 18/05/1695. Conf. 3/12/1696. DGARQ/TT,
RGM, Dom Pedro II, livro 5, ff. 320-320v.
367
os rios Moju (sete)34, Acará (cinco)35, Tocantins (seis)36, Guamá (sete)37
e Capim (três, uma delas concedida no reinado de Dom Pedro II e
conirmada no de Dom João V)38, onde se concentram 28 doações de
34
“M.el de Morais”. Não tem data de concessão. Conf. 27/03/1675. DGARQ/TT, RGM, Afonso
VI, livro 18, ff. 158-158v; “Donna Andreza de Amorỳ”. Conc. 20/12/1676. Conf. 21/06/1680.
DGARQ/TT, Dom Afonso VI, livro 33, ff. 147v-149; “Dona Genebra de Amorim”. Conc.
20/09/1676. Conf. 21/06/1680. DGARQ/TT, Dom Afonso VI, livro 33, ff. 149-150v e “D.
Ginebra de Morim”. Conc. 21/06/1703. DGARQ/TT, Dom Pedro II, livro 55, ff. 110-111; “Sesmaria. Fran.co Lameira da Franca”. Conc. 22/11/1700. Conf. 20/02/1702. DGARQ/TT, Dom
Pedro II, livro 27, ff. 108-109; “Sesmaria. Fran.co Lameira da Franca”. Conc. 18/10/1702. Conf.
27/09/1706. DGARQ/TT, Dom Pedro II, livro 31, ff. 90-90v; “Sesmaria no Estado do Maranhaõ. “An.to de Souza Moura”. Conc. 29/11/1701. Conf. 21/02/1702. DGARQ/TT, Pedro II, livro 27, ff. 112v-113v; “Sesmaria. Manoel Coelho”. Conc. 29/12/1702. Conf. 16/10/1705. Dom
Pedro II, livro 30, ff. 208-209; “Joaõ Vaz de Freitas”. Conc. 16/12/1705. Conf. 19/06/1706.
DGARQ/TT, Pedro II, livro 44, ff. 340v-341.
35
“CCU-Pedro II”. 20/03/1675. AHU, Pará, cx. 2, doc. 159 e “An.to da Costa de o conirmar
a carta das duas legoas de terra no sitio do rio do Acarâ”. 4/05/1675. AHU, cód. 93, f. 116v;
“CCU-Pedro II”. 23/12/1680. AHU, Pará, cx. 2, doc. 187 e “Para o mesmo ouvidor. Sobre Joaõ
Valente de Oliveira acerca das legoas de terra”. 17/07/1680. AHU, cód. 268, f. 28; “Sesmaria. Catherina Alvez”. 7/12/1700. Conf. 9/01/1704. DGARQ/TT, Pedro II, livro 28, ff. 300v301v; “Sesmaria no Maranhaõ. Antonio de Payva de Azevedo”. 29/08/1702. Conf. 19/09/1705.
DGARQ/TT, Pedro II, livro 30, ff. 172-173; “Sesmaria. Manoel Glź Luiz”. 16/01/1703. Conf.
29/09/1705. DGARQ/TT, Pedro II, livro 30, ff. 179-180; “Sesmaria. Joaõ Paes do Amaral”.
Conc. 12/03/1703. Conf. 27/09/1706. DGARQ/TT, Pedro II, livro 31, ff. 88v-89v.
36
“Carta de data de Alex.e da Cunha de Mello”. Belém, 8/10/1684. BA, cód. 51-V-43, f. 88;
“Carta de data de M.el Soeiro Lobato digo de retiicaçaõ”. Belém, 3/07/1684. BA, cód. 51-V-43,
ff. 83-84 e “Sesmaria no Maranhaõ. M.el Soeiro Lobato”. Conc. 10/02/1702. Conf. 24/03/1703.
DGARQ/TT, Pedro II, livro 28, ff. 58v-59v; “Matheus de Carvalho e Siq.ra. Sesmaria no Maranhaõ”. Conc. 7/01/1702. Conf. 23/10/1702. DGARQ/TT, Pedro II, livro 27, ff. 294-295; “Sesmaria no Maranhaõ. Joseph da Costa Tavares”. Conc. 13/02/1702. Conf. 13/10/1702. DGARQ/
TT, Pedro II, livro 27, ff. 292v-294; “Sesmaria. Luis Vr.a da Costa”. Conc. 18/10/1702. Conf.
1/10/1705. DGARQ/TT, Pedro II, livro 30, ff. 180v-181v; “Sesmaria. Jozeph do Couto”. Conc.
10/02/1705. Conf. 6/11/1705. DGARQ/TT, Pedro II, livro 30, ff. 232-233.
37
“Sesmaria no Maranhaõ. Manoel de Barros e Silva”. Conc. 21/08/1700. Conf. 10/03/1703.
DGARQ/TT, Pedro II, livro 28, ff. 27-28; “Sesmaria no Maranhaõ. M.el de Passos Moura”.
Conc. 10/06/1701. Conf. 19/02/1702. DGARQ/TT, Pedro II, livro 27, ff. 113v-114v; “Sesmaria. Leaõ Pr.a de Barroz”. Conc. 20/10/1702. Conf. 6/10/1705. DGARQ/TT, Pedro II, livro 30,
ff. 194v-195; “Manoel Lopes Reis”. Conc. 5/01/1703. Conf. [12]/02/1704. DGARQ/TT, Pedro II, livro 45, ff. 318-319; “Carta de sesmaria. An.to Glź Ribr.o”. Conc. 16/01/1703. Conf.
13/02/1704. DGARQ/TT, Pedro II, livro 63, ff. 70-70v; “Sesmaria. Ignaçio da Silva”. Conc.
2/07/1703. Conf. 2/10/1705. DGARQ/TT, Pedro II, livro 30, ff. 191v-192v; “Thomas de Souza
e Moura”. Conc. 28/08/1705. Conf. 27/09/1706. DGARQ/TT, Pedro II, livro 57, ff. 11v-12v.
38
“Sesmaria. Luis Vir.a da Costa”. Conc. 6/02/1703. Conf. 30/09/1705. DGARQ/TT, Pedro II,
368
terra. Já na capitania do Maranhão, e é aqui que os dados parecem mais
incompletos, as doações de terra se concentram na ilha de São Luís.39
Como disse antes, é evidente que a documentação encontrada
não dá conta de compreender a expansão pelos sertões da capitania,
uma vez que só há duas conirmações para o rio Pindaré (uma delas
concedida no reinado de Dom Pedro II e conirmada no de Dom João
livro 30, ff. 181v-182; “Sesmaria. M.el Aranha Guedez”. Conc. 7/03/1703. Conf. 23/09/1705.
DGARQ/TT, Pedro II, livro 30, ff. 175v-176v; “Pedro Paulo”. Conc. 18/04/1703. Conf.
27/05/1725. DGARQ/TT, João V, livro 64, ff. 343-344.
39
“An.to Frr.a de Abreu”. Conc. 39/05/1692. Conf. 22/11/1692. DGARQ/TT, RGM, Pedro II,
livro 5, f. 15v; “Sesmaria no Maranhaõ. Felicio Nunes da Silve.ra”. Conc. 24/12/[1693]. Conf.
30/01/1702. DGARQ/TT, Pedro II, livro 27, ff. 75v-76v; “Fran.co do Amaral Soares”. Conc.
21/05/1694. Conf. 28/11/1695. DGARQ/TT, Pedro II, livro 59, ff. 374-374v; “Maranhaõ. Martinho Fran.co Mascarenhas”. Conc. 22/08/1694. Conf. 2/03/1698. DGARQ/TT, Pedro II, livro 61,
ff. 318-319; “Phelippe Parenty. Datta de terras de sesmaria”. Conc. 3/09/1694. Conf. 3/03/1697.
AHU, cód. 121, ff. 349-350; “P.o Evangelho. Sesmaria”. Conc. 8/09/1694. Conf. 27/11/1695.
DGARQ/TT, Pedro II, livro 23, ff. 282-283; “Conirmaçaõ. Pedro Dutra”. Conc. 5/10/1694.
Conf. 22/11/1697. DGARQ/TT, Pedro II, livro 24, ff. 214v-215v; “Joseph Rodriguez Coelho.
Carta de cõirmaçaõ de sismariaz”. Conc. 5/10/1694. 1/12/1698. DGARQ/TT, Pedro II, livro
53, ff. 80-80v; “Sesmaria. Isidorio Glź. Pr.a”. Conc. 10/10/1694. Conf. 4/03/1703. DGARQ/
TT, Pedro II, livro 28, ff. 51v-52v; “Sesmaria. Paullo Pires Tourinho”. Conc. 27/10/1694. Conf.
10/11/1700. DGARQ/TT, Pedro II, livro 26, ff. 305v-306; “Sesmaria. M.a da Costa Pais”. Conc.
11/11/1694. Conf. 10/11/1700. DGARQ/TT, Pedro II, livro 26, ff. 307-308; “Joaõ Telles Vidigal ilho de Joaõ da Cruz”. Conc. 18/05/1695. Conf. 3/12/1696. DGARQ/TT, RGM, Pedro
II, livro 5, ff. 320-320v; “Carta de conirmaçaõ. Maria Correa e Filipe de Santhiago”. Conc.
28/11/1699. Conf. 2/11/1700. DGARQ/TT, Pedro II, livro 62, ff. 98v-99v; “Sesmaria. Pascoal
Rodrigues Leonardo”. Conc. 10/12/1699. Conf. 16/01/1702. DGARQ/TT, Pedro II, livro 27,
ff. 58-59v; “Barbara Golarte. Maranhaõ”. Conc. 16/03/1700. Conf. 10/01/1701. DGARQ/
TT, Pedro II, livro 26, ff. 332-332v; “Sesmaria. Antonio da Rocha”. Conc. 15/04/1701. Conf.
16/01/1702. DGARQ/TT, Pedro II, livro 27, ff. 57-58; “J.o Roiz Lisboa”. Conc. 18/04/1701.
Conf. 30/11/1701. DGARQ/TT, Pedro II, livro 54, ff. 160-161; “Sesmaria no Maranhaõ. Anto.
Lopes de Souza. Alexandre Fr.a”. Conc. 20/04/1701. Conf. 16/02/1702. DGARQ/TT, Pedro II,
livro 27, ff. 111-112; “Sesmaria. Joseph Dias de Odivelaz”. Conc. 2/08/1703. Conf. 2/07/1706.
DGARQ/TT, Pedro II, livro 31, ff. 21v-23; “Carta de sesmaria. Urbano Rodrigues”. Conc.
23/05/1705. Conf. 27/07/1706. DGARQ/TT, Pedro II, livro 63, ff. 213v-214; “Sesmaria. An.to
de Mattos Quental”. Conc. 26/05/1705. Sem data de conirmação. DGARQ/TT, Pedro II, livro
30, ff. 373-374v; “Antônio de Matos Quintal”. Conc. 1/07/1705. Conf. 8/03/1709. DGARQ/TT,
João V, livro 32, ff. 309-310.
369
V)40 e outra em Icatu.41 Entretanto, como procurei mostrar ao falar das
“freguesias” que se conformavam no sertão, havia importantes senhores
de engenho no Itapecuru ou no Mearim, como João de Sousa Soleima
ou Diogo Fróis de Brito, para os quais não encontrei o registro de terras.
É signiicativo notar que algumas das concessões foram conirmadas
não por carta de conirmação, mas sim por provisão régia, e inclusive
anotadas nos livros de registro de provisões do Conselho Ultramarino.42
Por outro lado, algumas terras podem ser de concessão e conirmação
muito remota, tendo sido repassadas por herança ou por dote, ou mesmo
por transação comercial aos seus detentores, razão que talvez justiique
a ausência do registro da conirmação nas chancelarias da segunda
metade do século XVII.
Há uma série de questões que podem se trabalhadas a partir das
concessões de terras no Estado do Maranhão e Pará – a transmissão
da terra, os conlitos de demarcação, a clara opção pela policultura e
pelo tamanho pequeno a médio das concessões (em geral, nunca mais
do que duas léguas em quadro) – problemas que certamente merecem
uma pesquisa à parte. O que quero sublinhar aqui é que a distribuição
de terras (por mais incompleta que seja) parece indicar a geograia da
ocupação que se consolidará ao longo da primeira metade do século
XVIII no Estado do Maranhão e Pará, à qual é preciso acrescentar
a intensiicação da ocupação na fronteira oriental da capitania do
Maranhão43 e a exploração dos sertões da nova capitania do Piauí, que
nasce no im do século XVII e alvorescer dos setecentos.44
40
“Pedro da Costa Rayol e seus irmaõs”. Conc. 5/01/1701. Conf. 13/01/1702. DGARQ/TT,
Pedro II, livro 44, ff. 206v-207v; “Paulo Pires Tourinho”. Conc. 21/04/1705. Conf. 6/12/1707.
DGARQ/TT, João V, livro 32, ff. 31-32.
41
“Sesmaria. Joseph Pinr.o Marques”. Conc. 2/12/1705. Conf. 18/09/1706. DGARQ/TT, Pedro
II, livro 31, ff. 64-65.
42
É o caso das terras dadas a Manuel de Morais, também anotada no Registro Geral de Mercês,
e Antônio da Costa. Ver: “M.el de Moraes quatro legoas de terra de sismaria p.ra se conirmar”.
27/03/1675. AHU, cód. 93, ff. 113v-114; “An.to da Costa de o conirmar a carta das duas legoas
de terra no sitio do rio Acará”. 4/05/1675. AHU, cód. 93, f. 116v.
43
Ver: Maria do Socorro Coelho CABRAL. Caminhos do Gado: conquista e ocupação do Sul
do Maranhão. São Luís: SIOGE, 1992.
44
Uma referência importante para vislumbrar a primeira ocupação do Piauí, marcada pela ação
370
De fato, se examinarmos o caso da capitania do Pará, não há
dúvida de que o que Maria de Nazaré Ângelo-Menezes denominou de
“vale do Tocantins”, banhado pelos rios Tocantins, Acará e Moju, se
transformou numa importante região de produção agrícola a partir da
década de 1720, e principalmente, no período do ministério pombalino.45
No mesmo sentido aponta o trabalho de Rosa Acevedo Marin para a
região mais especíica do rio Acará.46 Assim, a expansão da ocupação
agrícola da terra, iniciada notadamente a partir da regência e reinado
de Dom Pedro II, deu o tom e consolidou o espaço em que, em grande
medida, se concentraria a produção sistemática da terra em períodos
posteriores.
dos moradores do Estado do Brasil, mas depois legitimada pelas concessões de terra dadas
pelos governadores do Maranhão, a quem pertencia sua jurisdição, pode ser encontrada no
relato do padre Miguel do Couto. Ver: “Dezcripção do certão do Peahuy remetida ao Illm.o e
Rm.o S.or Frei Francisco de Lima Bispo de Pernam.co”. In: Ernesto ENNES. As guerras nos Palmares, subsídios para a sua história. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938, vol. 1, pp.
370-89. Sobre o Piauí, ver: José Martins Pereira D’ALENCASTRE. “Memoria chronologica,
historica e corographica da Provincia do Piauhy”. Revista do Instituto Historico e Geographico
Brazileiro, tomo XX (1857), pp. 5-164; Francisco Augusto Pereira da COSTA. Cronologia
histórica do Estado do Piauí [1909]. Rio de Janeiro: Artenova, 1974; Odilon NUNES. Devassamento e conquista do Piauí. Domingos Jorge Velho e Domingos Afonso Sertao, o Mafrense.
Teresina: COMEPI, 1972; NUNES. Pesquisas para a história do Piauí. Teresina: Imprensa
Oicial do Estado do Piauí, 1972, 4 vols.; NUNES. Economia e inanças (Piauí colonial). Teresina: COMEPI, 1974; NUNES. O Piauí, seu povoamento e seu desenvolvimento. Teresina:
COMEPI, 1973; Luiz R.B. MOTT. Piauí colonial: população, economia e sociedade. Teresina:
Projeto Petrônio Portella, 1985; Tanya Maria Pires BRANDÃO. O escravo na formação social
do Piauí. Teresina: Editora da Universidade Federal do Piauí, 1999; João Renôr Ferreira de
CARVALHO. Resistência indígena no Piauí colonial: 1718-1774. Imperatriz: Ética, 2005.
45
ÂNGELO-MENEZES. Histoire sociales des systèmes agraires dans la vallée du Tocantins –
Etat du Pará – Brésil: colonisation européenne dans la deuxième moitié du XVIIIe siècle et la
première moitiè du XIXe siècle. Paris: Tese de doutorado, Ecole des Hautes Etudes en Sciences
Sociales, 1998, pp. 246-85. Ver também: ÂNGELO-MENEZES. “O sistema agrário do Vale
do Tocantins colonial: agricultura para consumo e para exportação”; ÂNGELO-MENEZES.
“Cartas de datas e sesmarias. Uma leitura dos componentes mão-de-obra e sistema agroextrativista do vale do Tocantins colonial”. Paper do NAEA, nº 151 (2000); e ÂNGELO-MENEZES.
“Aspectos conceituais do sistema agrário do vale do Tocantins colonial”. Cadernos de Ciência
& Tecnologia, vol. 17, nº 1 (2000), pp. 91-122.
46
Rosa E. ACEVEDO MARIN. “Camponeses, donos de engenhos e escravos na região do
Acará nos séculos XVIII e XIX”. Papers do NAEA, nº 131 (2000).
371
Obediência e adaptação
ao Diretório dos Índios nas reivindicações
indígenas por liberdade e terras
Fátima Martins Lopes
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
O processo de elevação das Missões religiosas em Vilas na
Capitania de Pernambuco e suas Anexas foi efetuado num período
de três anos, de 1760 a 1762. As primeiras vilas foram criadas em
cerimônias que ocorreram cerca de um ano após a divulgação das
Leis de Liberdade1 feita pelo Governador de Pernambuco através de
correspondência aos Principais das etnias que habitavam as Missões
jesuíticas e aos funcionários régios. Passado mais um ano, o mesmo
processo ocorreu com as outras Ordens religiosas e somente após meses
foi que as cerimônias de criação ocorreram efetivamente.
Esses lapsos de tempo eram normais nas comunicações do
século XVIII, por causa das grandes distâncias a serem cobertas e pela
burocracia pela qual passava a correspondência oicial. Como disse
Arno Wehling: “...a distância transformava em meses ou anos o tempo
das decisões”2. Além disso, a correspondência chegava impressa
apenas aos funcionários régios civis, militares e eclesiásticos. Para a
maioria da população, ela chegava através das leituras feitas ao pé dos
pelourinhos ou defronte às Câmaras.
1
“Alvará com força de ley, porque V. Magestade há por bem renovar a inteira, e inviolável
observânica da Lei de doze de setembro de 1653, enquanto nella se estabeleceo, que os índios
do Grão-Pará, e do Maranhão sejão governados no temporal, pelos governadores, ministros,
e pelos seus principais, e justiças seculares com inibição das administrações dos regulares,
derrogando todas as leys, regimentos, ordens, e disposições contrárias”, in BNL, PBA 477,
Collecção dos Breves Pontifícios, e Leys Régias... Alvará de 7 de junho de 1755.; e a “Ley porque V. Magestade há por bem restituir aos Índios do Grão-Pará, e do Maranhão a liberdade das
suas pessoas, e bens, e commercio na forma que nella se declara.”. BNL, PBA 477, Collecção
dos Breves Pontifícios, e Leys Régia... Lei de 6 de junho de 1755. Ambas foram estendidas ao
Estado do Brasil, esta última pelo Alvará em forma de Lei, de 08 de maio de 1758.
2
WEHLING, Arno, WEHLING, Maria José. Formação do Brasil Colonial, p. 302.
373
Na criação das novas vilas, o interregno entre a notiicação das
novas leis e a criação oicial das Vilas ainda teve outra motivação: a
necessidade de se organizar as estratégias de ação, pois a Coroa tinha a
preocupação em manter a ordem e o controle da situação nas colônias.
Os avisos do Governador para que as Ordenanças estivessem prontas
para evitar movimentos contrários às criações das Vilas demonstram
tais temores.3
É nesse período, quando a população indígena toma ciência da
extinção das Missões, mas as Vilas ainda não existiam oicialmente, que
as inseguranças e incertezas aloraram, pois os índios informados das leis
que prometiam liberdade se depararam com novos administradores que
chegaram trazendo diretrizes sociais, econômicas e políticas. É também
quando rumores sobre levantes de índios surgiram, produzindo um
aumento de correspondência oicial e a instalação de devassas, através
das quais se vislumbrou a possibilidade de se estudar as formas de
recepção dos índios às novas regras. Buscou-se perceber como as novas
Leis de Liberdade foram recebidas pelos índios e como modiicaram
as suas formas de relação com a colonização, principalmente, porque
as novas Leis de Liberdade, a criação das Vilas, a substituição dos
missionários pelos Diretores, Mestres e Vigários, o novo projeto de
disciplinamento da vida cotidiana e da prestação de serviço poderiam
ameaçar aos índios que se viam às voltas com uma nova realidade.
Pela própria natureza da documentação com que se trabalhou,
produzida pelas várias instâncias coloniais, é difícil perceber a
recepção que os índios poderiam ter tido às novas determinações, pelos
vários interesses e motivações que essa documentação traz em si. No
entanto, a existência dos depoimentos dos índios nas devassas feitas
sobre os supostos levantes e a correspondência com o Governador
de Pernambuco, mesmo que passados pelo iltro do colonizador,
possibilitam que alguns indícios sejam apontados sobre a reação às
novas leis e suas implantações.
3
Revista do Instituto do Ceará, n. 43/44, 1929-30, pp. 109-110. Carta do Gov. de Pernambuco
ao Capitão-mor de Ceará com igual teor para o do Rio Grande, 18/05/1759.
374
Desde já se esclarece que não se pretende determinar se houve ou
não levantes. Pretende-se apenas apontar os descontentamentos, medos,
interesses conlitantes que foram sendo percebidos durante a leitura da
documentação e que poderiam ter engendrado as formas como os índios
se organizaram frente à nova legislação e sua aplicação. Pretende-se
demonstrar que a nova ordem conlitava com os interesses indígenas
e que a recepção às leis foi além de uma possível resistência armada.
Como já apontou Isabelle Silva em seu estudo sobre as Vilas de Índios
do Ceará, as ameaças contra o sistema – os supostos levantes entre eles
– estavam em par com expressões de obediência, de reivindicação para
a incorporação efetiva e de revoltas contra pontos especíicos das novas
leis, por exemplo, como contra a presença dos Diretores e restrição dos
trabalhos.4 E isto não signiica que se acredite que os índios tenham
aceitado mansamente as novas determinações legais, mas “...é necessário
observar-se o emaranhado das relações, que iam além de blocos ixos
com posições pré-determinadas e, principalmente, acompanhar como os
índios iam-se situando e acionando os mecanismos de que dispunham
para conquistar posições mais favoráveis na sociedade colonial.”5
Por outro lado, os procedimentos das devassas traziam implícitos
os interesses da Coroa: mais do que punir, as devassas impunham limites
ao que pensar e ao que falar sobre a liberdade.
Em um dos depoimentos dos índios acusados do Levante
de Guajiru (Missão transformada em Vila de Estremoz, RN) e nas
acareações com o denunciante, o escravo Marcos Saraiva, os índios
admitiram que falaram em tomar a Cidade de Natal por “zombaria”,
sendo possível que tenham efetivamente falado em tramar um levante.6
O depoimento do escravo Francisco Rodrigues sobre o episódio de um
navio avistado ao largo da praia de Genipabu é revelador: os índios
4
SILVA, Isabelle Braz. Vilas de Índios no Ceará Grande: dinâmicas locais sob o Diretório
Pombalino. Tese de Doutorado: Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2002, pp. 173182.
5
SILVA, Isabelle Braz. Op. Cit., p. 182.
6
Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), cód. 1822, l, 103v., Traslado do Auto de Acareação
feita aos índios, vindos do Rio Grande, e ao preto Marcos Saraiva, 13/03/1769.
375
teriam dito que “...se fossem lamengos os que vinham nos ditos navios
e saltassem em terra haviam de pôr-se pela sua parte para fazerem guerra
aos brancos”.7 Para grande parcela dos Potiguara e dos Tarairiu do Rio
Grande, os holandeses signiicaram a liberdade para os que lutaram ao
seu lado durante o seu domínio no nordeste colonial e signiicaram uma
proteção contra a escravidão indígena que os portugueses costumavam
praticar.8 A reminiscência do período holandês neste momento de
incertezas pode indicar que o que atemorizava os índios era a ameaça
de escravidão e isto poderia suscitar pensamentos e conversas sobre
rebeliões.
Pode parecer uma incongruência se pensar em temor de
escravidão no momento em que Leis de Liberdade eram divulgadas,
mas era comum em Pernambuco e Anexas a escravidão velada dos
índios através dos serviços prestados nas casas e fazendas nos sertões.9
Tal prática perdurou após a criação das Vilas, a ponto de suscitar a
publicação de um Bando do Governador de Pernambuco, determinando
o impedimento da permanência dos índios nas casas e fazendas sem
o consentimento legal dos Diretores, que deveriam estipular prazos e
pagamentos pré-determinados para os trabalhos.10
Esse mesmo temor da escravidão apareceu nas respostas dos
índios na Devassa sobre o Levante de Guajiru, quando airmaram que
tinham ouvido falar que seus ilhos estavam ameaçados de escravidão e
que não aceitariam isso. Alguns índios declararam que pessoas haviamlhes dito que “...os brancos haviam de entrar na sua aldeia, matarem
a todos e cativarem-lhes os ilhos”.11 Outros airmaram que ouviram
AHU, cód. 1822, l. 113-115v.,Traslado das perguntas que izeram ao preto Francisco Rodrigues, 12/05/1760.
8
LOPES, Fátima M. Índios, colonos e missionários na colonização do Rio Grande do Norte.
Mossoró: Fundação Vingt-un Rosado, 2003.
9
AHU–PE, cx. 96, doc. 7565,Ofício do Gov. de Pernambuco ao Secretário de Estado,
31/08/176. Anexo: Relação dos Índios Dispersos e Assistentes nas Fazendas e Serras dos sertões do Piancó, Apodi e Assu.
10
Instituto Histórico e Geográico do Rio Grande do Norte (IHGRN), Livro de Cartas e Provisões do Senado da Câmara de Natal (LCPSCN), n° 11, l. 75-76, Bando do Gov. de Pernambuco
e Capitanias Anexas, sobre os Índios, 11/03/1761.
11
AHU, cód. 1822, l.105, Traslado do Auto de acareação feita aos índios, vindos do Rio Gran-
7
376
que “...os meninos que se estão ensinando a ler... é para se marcarem
e irem para Lisboa para Sua Majestade”.12 De forma semelhante, em
outra devassa feita na Baía da Traição, na vizinha Paraíba, em 1762,
o Pároco Pedro de Brito airmou que alguns moradores intimidavam
os índios “...dizendo-lhes que neste lugar haviam de cativar a seus
ilhos e prender a eles.”13 Pode-se aceitar, então, a hipótese de que os
índios poderiam ter sido induzidos por funcionários e colonos a temer
uma possível ameaça de escravidão neste momento de indeinição.
Para defender a liberdade ameaçada, ao invés da estratégia de
rebelião armada, os índios a reivindicaram diplomaticamente através de
seus Principais, reairmando a sua idelidade à Coroa lusa. Na devassa
sobre o suposto levante na Baia da Traição (PB), o Capitão-mor dos
Índios, Francisco Xavier do Rosário, escreveu ao Juiz de Fora negando
a participação de seus homens no levante e lembrando que sempre
ofereceram idelidade e agora com muito mais motivo pelas “honras”
recebidas da Coroa: “...a minha gente a respeito do que esperávamos
mostrar a nossa idelidade ex-vy das honras que nos faz S. Maj. F.,
que delas julgo nos procede toda a infâmia com que nos querem
manchar...”14
De forma semelhante, os índios de Guajiru, também alegaram a
idelidade de seu povo que não atuaria contra a Coroa, “...mas que antes
sim sempre foram todos pela parte dos brancos..” e que pegariam em
armas ao seu lado contra os tapuias, como já haviam feito “...por serem
muito leais ao Rei”.15
de, e ao preto Marcos Saraiva, em 13/03/1760.
12
AHU, cód. 1822, l. 53, Carta do Diretor de Estremoz ao Gov. de Pernambuco, 14/02/1760.
13
AHU–PE, cx. 99, doc. 7735, Processo dos Autos de Devassa sobre as vilas dos índios, post.
10/02/1763. Anexo 2: Declaração do Licenciado Pedro Bezerra de Brito ao Bispo Aranha,
06/02/1763.
14
AHU–PE, cx. 99, doc. 7735, Processo dos Autos de Devassa sobre as vilas dos índios, post.
10/02/1763. Anexo: Cópia da carta do Capitão-mor dos Índios da Baía da Traição ao Juiz de
Fora, 28/12/1762.
15
AHU, cód. 1822, l. 191 e 185v., Traslado das perguntas feitas aos índios, cada um pelos seus
nomes, que izeram no Rio Grande do Norte, cidade do Natal, 16/02/1760.
377
A defesa da sua liberdade, ou um escudo contra a escravidão,
era o que pediam à Coroa em troca da sua idelidade, posto que, na
condição de vassalos, poderiam recorrer à justiça ou diretamente ao rei
na defesa de seus direitos.16
Como airma Maria Regina Almeida, em seu estudo sobre
a identidade e cultura indígenas nas aldeias do Rio de Janeiro,
baseada no que Steve Stern chamou de “resistência adaptativa”: “Na
colaboração com os europeus, os índios buscavam melhores condições
de sobrevivência e, além disso, nesse processo, seus interesses e
objetivos alteravam-se consideravelmente.”17 Para além da resistência
declarada e da resistência silenciosa, outras estratégias indígenas, como
a colaboração e adaptação ao mundo colonial entre elas, foram sendo
usadas para garantir a sobrevivência física, a liberdade e a permanência
de grupos etnicamente identiicados, mesmo que metamorfoseados.
Tal perspectiva é a mesma de Maria Idalina Pires, que
identiicou como estratégias de resistência adaptativas as ações dos
índios do sertão da Capitania de Pernambuco, airmando que, nas novas
condições históricas de meados do século XVIII, eles vivenciavam um
“...processo constante de reelaboração de valores, costumes e crenças,
airmando a identidade enquanto povos indígenas.”18 Muito mais que
uma forma de submissão, os acordos, cooperações e acomodações eram
formas de resistência à dominação e de sobrevivência ao colonialismo:
“A partir das novas situações que são postas, em níveis societários, as
viravoltas dos conlitos possibilitaram a rearticulação dos interesses
16
Sobre a prática indígena de recorrer à justiça neste período, cf. ALMEIDA, Maria Regina
Celestino. Metamorfoses indígenas, Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, capítulo 3: A ressocialização nas aldeias; e DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos, Lisboa:
Comissão Nacional para as Comemorações dos descobrimentos Portugueses, 2000, capítulo 5:
Formas de resistência.
17
ALMEIDA, Regina Celestino. Op. Cit., p. 148.
18
PIRES, Maria Idalina Cruz. Resistência indígena nos sertões nordestinos na pós-conquista
territorial: legislação, conlito e negociação nas vilas pombalinas. Tese de Doutorado: Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2004, p. 102.
378
coletivos, criando condições favoráveis para a refundação de grupos e
unidades sociais.”19
Também Isabelle Silva, estudando as dinâmicas culturais
dos índios nas Vilas do Ceará, apontou para comportamentos mais
complexos do que os pautados pelas contraposições submissão e
dominação, tradição e aculturação. As transformações por que passaram
os índios na segunda metade do século XVIII abrangiam a cultura em
profundidade, mas não impediam a persistência da identidade étnica:
“As últimas abordagens procuram libertar, de uma vez por todas,
a noção de identidade das ideias de permanência ou manutenção,
referências facilmente visíveis e constantes que escapariam às
mudanças. Identidade não é sinônimo de unicidade. A identidade
étnica poderia muito bem ser deinida não por pontos ixos, mas
pela sua trajetória. Trajetória sem destino deinido que entra
por caminhos e atalhos e, ao sofrer impactos, modiica-se, mas
continua a ser uma trajetória (trajetória étnica, diríamos)... A sua
identidade não estaria em permanências nem em pontos isolados,
mas em seu próprio curso, ainda que fragmentado e descontínuo,
reconstituído e construído através da existência.”20
Entende-se, portanto, que a luta indígena pela sobrevivência e
liberdade através dos âmbitos da justiça colonial era uma forma de agir
que pretendia não só resistir às ameaças contra a liberdade, mas manter
a própria identidade enquanto grupo que precisava manter-se livre para
continuar lutando.
No mesmo sentido acima, entende-se a luta pela posse das
terras através dos caminhos judiciais. As terras que lhes tinham sido
concedidas desde a formação das Missões21 e que agora percebiam
ameaçadas, mesmo não sendo as de ocupação ancestral, eram como elos
dentro dos grupos. Conforme Isabelle Silva, “...a territorialidade não se
reduz a uma ligação ´afetiva` com a terra ou a manutenção do espaço
19
Ibidem.
SILVA, Isabelle Braz. Op. Cit., pp. 38-39.
21
LOPES, Fátima M. Op. Cit..
20
379
físico, pura e simplesmente, mas é essencialmente um vínculo com
especíicos mecanismos de produção e reprodução social.”22 Manter
a terra demarcada e regularizada era importante para a sobrevivência
física das etnias moradoras nas novas Vilas.
Na leitura da Devassa sobre o Levante de Guajiru, um dos
depoimentos chamou atenção: perguntado sobre que tipo de “avisos
de levante” tinham recebido da Serra de Ibiapaba (CE), o índio João
da Costa respondera que os índios de lá estavam temendo pelas suas
terras porque “...os brancos queriam tomar as mesmas terras e que por
esta razão é que eles índios vinham avisando e levar cartas ao Senhor
General de Pernambuco”.23
A origem desta situação pode ser encontrada no desacordo
entre o Governador de Pernambuco, Luiz Diogo Lobo da Silva, e o
Ouvidor Geral, Bernardo da Gama e Casco, sobre como deveria ser
feita a distribuição das terras das antigas Missões entre os índios e
no consequente descontentamento dos índios que essa controvérsia
resultou.
O Diretório dos Índios24 determinara que a distribuição das terras
das antigas Missões, deinida pela Lei de 06 de junho de 1755, devia
basear-se “nas leis da equidade e da justiça”(§19), instituindo que cada
índio cabeça de família recebesse partes iguais de terras demarcadas ao
redor da sede da paróquia. No entanto, no entendimento do Governador
de Pernambuco, isso não garantia as honrarias diferenciadoras que
deveriam ser destinadas aos portadores de cargos oiciais como o de
Capitão-mor e seus oiciais, conforme o próprio Diretório deinira
(§ 9).25
22
SILVA, Isabelle Braz. da. Op. Cit., p. 37.
AHU, cód. 1822, l. 184, Traslado das perguntas feitas aos índios, cada um pelos seus nomes,
que izeram no Rio Grande do Norte, cidade do Natal, 16/02/1760.
24
DIRETÓRIO que se deve observar nas Povoações dos Índios do Pará, e Maranhão enquanto
Sua Majestade não mandar o contrário [1757]. Boletim de Pesquisa da CEDEAM, Manaus,
v. 3, n. 4, jan./dez. 1984. O Diretório foi criado pelo Governador do Maranhão e Grão-Pará,
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, a ser usado pelos Diretores das Vilas de Índios na
administração dos índios das novas vilas.
25
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ) – II-33,6,10, doc. 2, l. 7-12, Carta do Gov. de
23
380
Na Direção para Pernambuco26, elaborada pelo governo
de Lobo da Silva baseada no Diretório dos Índios mas atentando às
peculiaridades regionais de Pernambuco e suas Anexas, a distribuição
das terras deveria ser feita “segundo a graduação e postos, que ocupam
os moradores” (§23). Para orientar essa distribuição, distinguindo cada
morador por sua ocupação, foram usados 17 parágrafos da Direção,
determinando o quanto de terra deveria ser dado a cada família, do
Principal aos soldados, e aos moradores sem ocupação oicial, variando
de 10.000 braças quadradas ao primeiro a 4.000 braças quadradas aos
últimos, sendo que as destes poderiam ser acrescidas até 720 braças
quadradas por cada ilho ou doméstico que tivesse. As ocupações
intermediárias, como os Sargentos, Alferes, Cabos, Oiciais da
administração civil, também teriam seu quinhão de acordo com a sua
graduação, quanto maior o posto maior a parte recebida. (Direção §§
100-117)
No governo de Pernambuco, a repartição das terras, que
privilegiava os participantes das Câmaras e das Ordenanças, instituía
uma desigualdade social e econômica entre os índios, utilizando a
estratégia de inserir na comunidade o espírito de discriminação e de
dominação que espelhava a hierarquização já instituída na sociedade
luso-brasileira. Com esta hierarquia sócio-econômica instituída
pretendia-se a transformação sócio-cultural do índio que tinha sua
cultura e sociedade tradicionais baseadas na igualdade, de certa forma
mantidas durante o período das Missões. Além disso, essa repartição
diferenciada inseria-se no estatuto econômico-tributário da posse
de terras e bens praticado pela Coroa portuguesa que privilegiava a
propriedade individual e a relação de dependência do indivíduo com
o soberano e o Estado por meio dos impostos. Dessa forma, manter
a posse de terras e bens comunais, como era a praticada durante a
Pernambuco ao Secretário de Estado, 13/06/1759.
26
DIREÇÃO com que interinamente se devem regular os índios das novas vilas e lugares eretos
nas aldeias da Capitania de Pernambuco e suas Anexas. Revista do IHGB, v. 46, pp. 121-171,
1883.
381
vigência das Missões, tornar-se-ia um problema na prestação de contas
dos dízimos e impostos devidos individualmente a partir do Diretório.
Contudo, a maneira de distribuição das terras foi tema de debate
entre os componentes da Junta responsável pela criação das Vilas em
Pernambuco. O Governador, o Bispo e o Ouvidor haviam decidido
“pela pluralidade dos votos” que a distribuição dos lotes de terra seria
feita “...segundo a graduação e postos, que ocupam os moradores...”,
conforme dispunha a Direção para Pernambuco (§23). No entanto,
essa forma não agradou ao Ouvidor desde o primeiro momento e em
correspondência ao Conde de Oeiras, ele expôs o seu desacordo.27 O
Ouvidor defendia que as terras deveriam icar com as Câmaras e com o
dinheiro das rendas obtidas com elas se poderia pagar aos Camaristas
e funcionários das novas Câmaras. Argumentou, ainda, que seria um
imenso e demorado trabalho fazer as demarcações individualizadas
previstas, exempliicando com a Missão de Ibiapaba, futura Vila de
Viçosa Real (CE), que tinha termo com mais de trinta léguas e mais
de mil casais aos quais se deveriam demarcar as respectivas porções
individuais.28
Para tentar resolver o conlito e facilitar o trabalho do Ouvidor,
o próprio Governador Lobo da Silva elaborou um modelo esquemático
para a distribuição das terras de forma a, segundo ele, “...distribuir a
sua proporção aos que correspondessem ao predicamento em que cada
um se achava para que contentes não interrompessem o sistema que o
mesmo Senhor lhes propôs...”29
Tal medida estava de acordo com os acertos que o Governador
tinha feito com os Principais que foram convocados por ele para irem
a Recife em junho de 1759 para serem informados das novas Leis de
Liberdade. Em troca da “boa disposição” dos Principais para a criação
das Vilas, o Governador prometera manter com os índios as terras
27
AHU–PE, cx. 90, doc. 7245, Ofício do Ouvidor Geral ao Secretário de Estado, 20/03/1759.
AHU–PE, cx. 90, doc. 7245, Ofício do Ouvidor Geral ao Secretário de Estado, 20/03/1759.
29
BNRJ – II-33,6,10, doc. 3, l. 13-39v., Carta do Gov. de Pernambuco ao Secretário de Estado,
23/04/1760.
28
382
particulares já arroteadas, além daquelas que lhes estavam previstas
pelo Diretório por já lhes pertencer por demarcações anteriores. 30
O Governador Lobo da Silva, em carta ao Secretário de Estado
Tomás Joaquim da Costa Corte Real, alertou sobre a discordância
do Ouvidor que queria “manter as terras em comum” alegando a
“incapacidade da terra” e indo contra a divisão que fora determinada pelo
Diretório e Direção e acertada com os Principais. Para o Governador,
o Ouvidor tinha “pouca vontade”, preguiça e incapacidade técnica
em executar as demarcações deinidas e, por isso, a distribuição dos
bens e das terras que ele promovera nas Vilas no Ceará causara muito
descontentamento aos índios moradores das Vilas, ocasionando que a
situação icasse “...pior do que era com os missionários, por não saber
pôr em prática a direção que os índios deveriam ter...”, prejudicando as
“...boas intenções com que se achavam os índios” no estabelecimento
das novas Vilas.31
Entende-se então que, quando o Ouvidor não aceitou os planos,
mapas e modelos de distribuição indicados pelo Governador, contidos
na Direção para Pernambuco, e fez a distribuição dos bens e das terras
sem demarcar as terras particulares como o combinado, incorreu num
confronto direto com os acertos prévios estabelecidos entre o Governador
e os Principais. Esta situação gerou o referido descontentamento dos
índios, que levou ao envio dos correios às outras Vilas, como Estremoz
(RN) e Baía da Traição (PB), para avisar que não estava sendo
mantido o acordo estabelecido em Recife e que isto poderia resultar
em perdas. Pelos mesmos mensageiros, os Principais enviaram também
um requerimento ao Governador em que se queixavam do que estava
acontecendo e diziam “...ser mais útil o antigo sistema por nesse terem
meios de que se podiam ajudar, e no presente se lhes diicultam”32.
BNRJ – II-33,6,10, doc. 2, l. 7-12, Carta do Gov. de Pernambuco ao Secretário de Estado,
13/06/1759.
31
BNRJ – II-33,6,10, doc. 3, l. 13-39v., Carta do Gov. de Pernambuco ao Secretário de Estado,
23/04/1760.
32
BNRJ – II-33,6,10, doc. 3, l. 13-39v., Carta do Gov. de Pernambuco ao Secretário de Estado,
23/04/1760.
30
383
O requerimento dos índios, as queixas do Governador e defesas
do Ouvidor enviados ao Reino resultaram na substituição do Ouvidor
Gama e Casco, no encargo do estabelecimento das Vilas, pelo Juiz
de Fora, Miguel Carlos de Pina Castelo Branco, e pelo Ouvidor das
Alagoas, Manoel de Gouveia Álvares, que estabeleceram as outras
Vilas na Capitania de Pernambuco e suas Anexas durante os dois anos
seguintes.33
Talvez, os rumores sobre o suposto levante que seria delagrado
por toda Capitania de Pernambuco e suas Anexas também tenham dado,
ainal, a pressão necessária para que as decisões fossem tomadas em
Pernambuco e na Metrópole.
Constata-se, então, que esta discórdia na distribuição das terras
entre os índios da Serra da Ibiapaba poderia ter dado real motivação
para confabulações sobre um suposto levante, mas o seu desdobramento
também demonstra que os índios perceberam outra possibilidade de
ação em defesa dos seus interesses que não somente a bélica, mas
através dos requerimentos à justiça colonial, como também demonstram
outras petições que os índios das Vilas do Rio Grande encaminharam
para defesa das terras que lhes pertenciam ou para obtenção de maiores
porções.
Na Vila de Estremoz, nas terras da légua quadrada cedida em
1700, foram estabelecidos inicialmente lotes para 75 famílias, que eram
apenas 23,5 % do número total das famílias.34 Por estas primeiras terras
terem partes alagadas e outras arenosas, os índios tinham conseguido
outras duas léguas que lhes haviam sido cedidas em 1727, no lugar
chamado Olho d’Água Azul junto à Cidade dos Veados35. Destas
terras, só usavam uma légua porque a outra fora apossada por João
Carneiro da Cunha para criação de gado, alegando que os índios não
33
AHU, Cota antiga: RJ, Cx. 76, doc. 27; Cota atual: Pernambuco – Adenda, Ofício do Governador, Luiz Diogo Lobo da Silva, ao Secretário de Estado, Francisco Xavier de Mendonça
Furtado, 23/11/1763.
34
BNRJ – I-12,3,35, l. 6v., Carta do Gov. ao Diretor de Estremoz, 12/12/1760.
35
BNRJ – I-12,3,35, l. 8v.-9v., Carta do Gov. de Pernambuco ao Capitão-mor do Rio Grande,
29/12/1760.
384
tinham necessidade dela e que quando assim ocorresse a devolveria, de
acordo com o termo que assinou com o Governador de Pernambuco,
Duarte Soares Pereira. Aproveitando os arranjos para a criação da
Vila, os índios izeram requerimento ao Ouvidor Gama e Casco para
retomada desta data, alegando a atual necessidade para alocação das
outras famílias e para, no futuro, acolher o crescimento da Vila.
Frente a este requerimento dos índios, encaminhado pela nova
Câmara, o Ouvidor anuiu no pedido e fez a demarcação da terra36,
que foi referendada pelo Governador que determinou que as datas
distribuídas “segundo a diversidade de igura”, isto é, de acordo com a
graduação de cada índio, de acordo com a Direção para Pernambuco.37
Segundo o Capitão-mor, Joaquim Félix de Lima, que icou responsável
pela distribuição dessas terras, a divisão dos quinhões foi executada “na
forma que eles requeriam” e na presença de todos os índios para “evitar
dúvidas de que se podem seguir desordens”.38
Posteriormente, João Carneiro da Cunha apresentou um
requerimento para retomar a terra na Cidade dos Veados que havia sido
demarcada pelo Ouvidor Gama e Casco em favor dos índios da Vila de
Estremoz, mas as terras mantiveram-se com aqueles.39
Já os moradores da Vila de Arez (RN), através dos Oiciais da
sua Câmara, solicitaram ao Governador de Pernambuco que mediasse
junto à Câmara de Natal a disputa sobre a posse da Lagoa de Guaraíras.
Os oiciais da Câmara de Natal estavam cobrando foros sobre o uso
da Lagoa, alegando que ela pertencia ao Termo de Natal, porém os
camaristas de Arez alegavam que ela havia sido adjudicada à Câmara
de Arez pelo Ouvidor Gama e Casco quando criou a Vila, para que dela
36
AHU–PE, cx. 95, doc. 7493, Ofício do Ouvidor Geral ao Secretário Conde de Oeiras,
10/02/1761.
37
BNRJ – I-12,3,35, l. 7, Carta do Gov. de Pernambuco ao Capitão-mor do Rio Grande,
12/12/1760.
38
IHGRN, LTPDD, livro 2, doc. 46, Registro de uma carta do Capitão-mor do Rio Grande ao
Gov. de Pernambuco, 12/10/1760.
39
AHU–PE, cx. 96, doc. 7562, Requerimento de João Carneiro da Cunha, anterior a 31/08/1761.
385
os moradores tirassem seu sustento e a Câmara recebesse seus próprios
rendimentos40.
O Procurador do Conselho da Vila de São José do Rio Grande,
Manoel Gomes da Silva, juntamente com o Capitão-mor dos Índios,
Antônio dos Santos Dantas, e os demais oiciais da Ordenança também
izeram um requerimento, em nome do “povo”, ao Juiz de Fora Castelo
Branco para que lhes fosse concedida além das terras já demarcadas,
mais meia légua quadrada de terras para serem distribuídas entre os
antigos moradores, que receberam porções de terrenos “mais fracos”, e
os novos moradores que viessem juntar-se à Vila no futuro.41 O Juiz de
Fora aceitou o pedido e ordenou a imediata demarcação.42
Utilizar as armas coloniais, isto é, usar os requerimentos e
petições às autoridades coloniais para defender posições e interesses,
requeria um aprendizado sobre a cultura colonial que se baseava não
somente na capacitação intelectual, mas num conhecimento perspicaz
do mundo colonial. Também requeria uma observação realista sobre a
sua própria capacidade de ação bélica como forma de defesa, pois esta
já não resultava efetiva pela própria estratégia da conquista colonial
que dizimou os guerreiros, desestruturou as comunidades e cerceou os
movimentos através da redução aos aldeamentos/vilas. Para defender
posições arduamente conquistadas e mantidas frente à colonização, os
índios aprenderam a jogar o jogo judiciário dos colonizadores.
Este tipo de ação dos índios das Capitanias submetidas a
Pernambuco só foi possível pelo longo tempo de contato que tiveram com
os colonizadores. Identiicando o Nordeste colonial do Brasil como uma
das “áreas de colonização implantada”, classiicadas pela historiadora
Ângela Domingues que estudou as relações de poder entre índios e
colonizadores no Norte do Brasil no século XVIII, pode-se airmar que
seus índios, de forma geral, estavam “...aptos a utilizar, por si ou em
BNRJ – I-12,3,35, l. 143, Carta do Gov. de Pernambuco aos Oiciais da Câmara de Arez,
24/11/1761.
41
IHGRN, LCPCSJM, cx. 62, Livro 12, l. 56v.-58, Termo de ajuntada, 03/04/1762.
42
IHGRN, LCPCSJM, cx. 62, Livro 12, l. 58v.-62, Termo como se deu princípio a medição da
terra que consta do requerimento na petição retro, 09/05/1762.
40
386
grupo, os recursos judiciais que a legislação e as instituições coloniais
punham ao seu dispor. Detentores de bens imóveis, trabalhando a soldo
ou como rendeiros ou usufruindo um estatuto social privilegiado, estes
indivíduos já não ponderavam [a fuga para] o sertão... como opção para
o seu descontentamento.”43
A perspicácia necessária a este outro tipo de estratégia de defesa
dos seus direitos e interesses através do uso dos aparatos judiciais
pode ser notada também no depoimento do índio André dos Santos na
Devassa do Levante de Guajiru que demonstra a consciência de que
eles já que não tinham condições de se levantar belicamente e tomar a
Fortaleza dos luso-brasileiros “... para que não tinham armas, por não
serem para isso capazes as de que usavam”.44
O mesmo entendimento também pode ser vislumbrado nas duas
declarações que o Capitão-mor dos Índios Marcelino Carneiro fez ao
Governador de Pernambuco, demonstrando a consciência que tinha de
que o seu novo estatuto jurídico concedido pelo Rei através das Leis
de Liberdade trazia a reboque um novo viés conlituoso na relação
social tanto com os colonos como com os escravos negros. Quanto aos
colonos, ele declarou: “...os moradores sempre nos quiseram muito mal,
e agora mais que nunca pelas isenções que S. Maj. nos faz”. E quanto
aos negros escravos, airmou: “...estes pretos da Fazenda de São Miguel
sempre foram adversos à gente, e agora mais porque lhe advertiram que
se mandavam os ditos repartir com a gente.”45 Para ele, icara claro que
a liberdade jurídica, que os brancos tinham e que continuava negada aos
negros, quando foi estendida aos índios causou ressentimentos e invejas
que eram percebidas como mais uma ameaça à sua sobrevivência.
Por outro lado, Marcelino Carneiro também teria declarado a
Antônio Garcia, comerciante de Natal, que “...ainda que Sua Majestade
os honrava muito, as suas ordens eram por uma parte largas e por outra
43
DOMINGUES, Ângela. Op. Cit, p. 269.
AHU, cód. 1822, l, 104, Traslado do Auto de Acareação feita aos índios, vindos do Rio
Grande, e ao preto Marcos Saraiva, 13/03/1769.
45
AHU, cód. 1822, l. 35v.-37v., Carta do Capitão-mor dos Índios da Missão de Guajiru ao
Gov. de Pernambuco, 14/02/1760.
44
387
muito apertadas”.46 Este comentário demonstra a consciência que o
Capitão-mor Marcelino Carneiro tinha de que, ao mesmo tempo em
que as novas leis possibilitavam uma nova situação de direitos, como,
por exemplo, usufruir o acesso à justiça para buscar a garantia dos seus
bens e direitos, também exigia novos deveres.
Como de fato ocorria na sociedade do Antigo Regime, com as
novas leis deinindo um novo estatuto jurídico aos índios, eles passaram
efetivamente a vassalos livres do Rei de Portugal com sua liberdade,
mas, principalmente, com seus novos deveres. Passavam a fazer parte
de uma sociedade hierarquizada e baseada numa relação de trocas, cujo
maior exemplo era a relação entre vassalos e rei, na qual os direitos,
como a liberdade garantida e consentida pelo Rei, eram deinidos para
posições sociais bem determinadas e limitadas que implicavam em
deveres também determinados e limitados. A lealdade à Coroa, por
exemplo, era um desses deveres cobrados aos vassalos que, quando não
cumprido, poderia levar à forca, como no caso de levantes e traições.
A liberdade consentida aos índios, mas bastante limitada
pela legislação, foi também motivo de discórdia entre as autoridades
coloniais responsáveis pela criação das Vilas em Pernambuco e suas
anexas, corroborando para continuidade da insegurança entre os índios
e, principalmente, inluindo na maneira como foram recebidos os novos
Diretores.
Logo no início de 1760, quando as primeiras vilas estavam
sendo criadas, o Governador de Pernambuco queixou-se ao Secretário
Mendonça Furtado que o Ouvidor Gama e Casco não entendera
os princípios do Diretório e suas leis complementares, entre elas a
Direção, e, portanto, não soubera “orientar” os índios quanto ao tipo de
liberdade que lhes tinha sido concedida: “... esta liberdade se entende
a respeito da escravidão a que injustamente os reduziam e não no que
AHU, cód. 1822. l. 3, Traslado do Auto de Sumário, formado para se averiguar a sedição
argüida aos índios da Aldeia de Guajiru, e outros, e para o mais que contém o Auto de mesmo
Sumário, feito nesta Vila de Santo Antônio do Recife, 27/06/1760.
46
388
fazia relação à observância das Leis e Diretório que se reconheceu pelo
mesmo Senhor necessário para os civilizar...”47
Para o Governador, o Ouvidor não esclarecera aos índios que
a liberdade concedida não era a que eles poderiam entender ‒ como,
por exemplo, a de exercer a livre escolha de onde morar ‒, mas aquela
limitada pelas leis do Reino e que isto estava gerando “movimentos”
discordantes entre os índios que lhes estavam mandando cartas e
mensageiros para queixarem-se que sua liberdade estava sendo usurpada.
Na realidade, a liberdade defendida pelas Leis de Liberdade
de 1755 foi divulgada pelo próprio Governador quando os Principais
foram convocados ao Recife em 1759. No entanto, o Diretório, de
cuja existência só souberam quando os Diretores chegaram às Vilas,
impôs limites a essa liberdade e causou estranhamento entre os índios
exatamente porque se diferenciava das leis anunciadas anteriormente
num ponto crucial: o governo dos índios não se faria pelos seus
Principais, mas sim pelos Diretores.
Esta confusão sobre o tipo de liberdade está entre os motivos do
descontentamento dos índios das Vilas do Ceará que teriam causado os
rumores de levantes, como foi descrito pelo Pe. Cárdenas, antigo pároco
da Vila de Montemor que foi acusado de “perturbar a paz” e incitar os
índios contra os Diretores:
“O Diretório de V. Excia. foi maltratado a primeira vez em Vila
Viçosa... por ser direto oposto às Leis de S. Maj. como ofensivo
da liberdade nas pessoas, nos bens e nos comércios, por ser
inibitivo do total governo, que quer S. Maj. esteja nos Principais,
por ser introdutivo dos Administradores e administrações no
dissimulado nome de Diretores e Diretórios, por ser derrogatório
do antiqüíssimo indulto que isenta a estes homens da contribuição
dos dízimos, e além de outros porquês, por ser despótico na
imposição da inta dos 6/100, sem mais Ordens Régias, nem
consentimento popular....”48
47
BNRJ – II-33, 6,10, doc. 3, l. 13-39v., Carta do Gov. de Pernambuco ao Secretário de Estado, 23/04/1760.
48
AHU–PE, cx. 95, doc. 7493, Ofício do Ouvidor Geral ao Secretário de Estado, 10/02/1761.
389
Efetivamente, o Diretório dera forma e tamanho à liberdade dos
índios: indicou um administrador para exercer o governo dos Índios
em vez de seus Principais, alegando a incapacidade dos índios em se
auto-governarem; determinou a limitação da circulação dos índios para
fora das Vilas, a obrigatoriedade de prestarem serviços à colonização,
do pagamento de dízimos e de seis por cento da produção aos Diretores.
Esta situação desagradava aos índios, como se vê nos
requerimentos dos moradores da Vila de Viçosa Real (CE)49 e da
Vila de Soure (CE) ao Governador de Pernambuco, dizendo que não
concordavam com as novas determinações: “...além de se concordar
com a superluidade de Diretor, na oposição do Diretório às suas
liberdades, na indevida imposição dos dízimos, na inconveniência de
terras em particular e em outras mais adversidades que se opunham; era
a capital a dos seis por cento.”50
Por causa destes requerimentos, o Governador acusava o
Ouvidor de não ter sabido conduzir os índios no entendimento das leis,
não levando em conta, no entanto, que o que os índios não estavam
aceitando eram exatamente as determinações do Diretório, que não
concordava com o princípio de liberdade da lei de 1755, nem tampouco
com o que tinham ouvido em Recife, quando o Governador presenteara
os Principais para conseguir o apoio que precisava.
Novamente, os índios utilizaram os caminhos da justiça colonial
para lutar pelo que acreditavam ser os seus direitos legais. Contudo, o que
apontavam como exploração, abusos, e desmandos eram determinações
do Diretório. Percebe-se que, nesta feita, seus requerimentos e pedidos
não poderiam ser aceitos, ao contrário, o Governador determinou que
os Diretores das Vilas deveriam trabalhar duro para esclarecerem aos
índios que “...a liberdade em que se acham não é tão ampla como se
persuadem e lhes ensinou o Desembargador Ouvidor Geral... que se
Anexo 13: Carta do Pároco de Montemor ao Gov. de Pernambuco, 08/05/1760.
49
Instituto Histórico e Geográico Brasileiro (IHGB) Arq. 1.1.14, l. 209v-230, Ofício do Gov.
de Pernambuco ao Secretário de Estado, 23/04/1760.
50
IHGB, Arq. 1.1.14, l. 209v-230, Ofício do Gov. de Pernambuco ao Secretário de Estado,
23/04/1760.
390
ajustem às Leis da razão e da justiça que pedem viva cada um sujeito às
determinações dos seus superiores...”51
Em carta ao Diretor da Vila de Estremoz (RN), o Governador
ordenava rigor na observância das leis impostas e que estavam sendo
questionadas: “...no que toca às desordens e falta de obediência a
que os oiciais atuais animam os índios ingerindo-lhes poderem sair
sem permissão de V. M. e assistirem aonde quiserem, será justo por
em execução os Bandos relativos a esta matéria ... e serem castigados
os culpados e icarem os mais na inteligência do que deve seguir, na
conformidade das Ordens Régias.”52
Algumas declarações encontradas nos depoimentos da Devassa
de Guajiru também apontam para o descontentamento dos índios quanto
às determinações do Diretório, entre elas o papel dos Diretores, como
se pode observar no depoimento de Antônio Garcia, comerciante de
Natal que declarou que sabia que os índios estavam “...descontentes
com os novos estabelecimentos, como lhe disseram alguns índios
que não lembrava os nomes, que estavam melhor com os Padres da
Companhia, que agora tinham menos liberdade com os Diretores, e que
estes levavam seis por cento do que ganhavam”53
Foram queixas semelhantes a estas que os índios izeram ao
Ouvidor Gama e Casco quando ele chegou ao Rio Grande para estabelecer
oicialmente as Vilas em 1760, cerca de um ano após a divulgação das
Leis de Liberdade e da chegada dos Diretores às Povoações. Frente
a essas queixas, e as outras que foi recebendo, o Ouvidor acabou
fazendo uma série de Devassas contra os Diretores, principalmente
porque não concordava com que os Diretores recebessem os seis por
cento da produção dos índios e com outras determinações da Direção
BNRJ – II-33, 6,10, doc. 3, l. 13-39v., Carta do Gov. de Pernambuco ao Secretário de Estado, 23/04/1760.
52
BNRJ – I-12,3,35, l. 6v., Carta do Gov. de Pernambuco para o Diretor de Estremoz,
12/12/1760.
53
AHU, cód. 1822, l. 3, Traslado do Auto de Sumário, formado para se averiguar a sedição
argüida aos índios da Aldeia de Guajiru, e outros, e para o mais que contém o Auto de mesmo
Sumário, feito nesta Vila de Santo Antônio do Recife, 27/06/1760.
51
391
para Pernambuco.54 Em carta ao Conde de Oeiras, o Ouvidor deu sua
opinião sobre isto:
“...todos [os índios] obedecem pronta e seguramente às ordens
régias que se lhes distribuem e icam contentíssimos com as
honras e mercês que S. Maj. F. lhes conferiu, ainda que alguns
poucos satisfeitos com o Diretório que o Governador mandou
observar, porque suposto pelo do Maranhão, se permite aos
Diretores a 6ª parte dos lucros, que pela sua indústria e direção
granjearem, contudo neste Diretório se vêem na sujeição de
concorrerem com mais com dois por cento para o sustento dos
pobres, órfãos e viúvas...”55
Sobre as Devassas feitas nas Vilas do Ceará (Messejana e
Montemor), Isabelle Silva ressaltou que as causas apontadas pelo
Ouvidor para as queixas dos índios eram os “desmandos” dos Diretores
que exploravam os índios “...forçando-os a realizarem trabalhos além
da medida, no intuito de aumentar a tal sexta parte que legalmente
teriam direito.”56 Na Devassa contra o Diretor da Vila de Arez (RN),
Domingos Jacques da Costa, o Ouvidor fez uma introdução na qual
apontou as mesmas queixas principais:
“...tanto que chegou a esta Vila ele dito Diretor arrogou-se a si
o governo dela mandando e dispondo a seu arbítrio de todos os
seus moradores, sem atenção ao Capitão-mor a quem estava
encarregado, mandando a maior parte deles para o serviço para
diversas partes, só aim de se utilizar da quantia dos 6 por cento
que lhe permite o Diretório de tudo aquilo que cada um ganhasse
pelo seu trabalho...”57
Esses recursos interpostos às autoridades coloniais não
foram as únicas formas de reação dos índios frente às novas Leis e
BNRJ – II-33, 6, 10, doc. 3, l. 13-39v., Carta do Gov. de Pernambuco ao Secretário de Estado, 23/04/1760.
55
AHU–PE, cx. 95, doc. 7493, Ofício do Ouvidor Geral ao Secretário de Estado, 10/02/1761.
56
SILVA, Isabelle B. Op. Cit., p. 176.
57
AHU–PE, cx. 95, doc. 7493, Ofício do Ouvidor Geral ao Secretário de Estado, 10/02/1761.
54
392
particularmente ao Diretório. As fugas, individuais ou em grupos,
também apontam para uma resistência à vivência nas Vilas nesses
primeiros tempos sob as determinações do Diretório.58 Outras formas de
ação contra as disposições do Diretório também podem ter acontecido,
apesar da documentação colonial não permitir sua demonstração cabal.
Por exemplo, na Devassa de Guajiru, um dos depoentes declarou que
os índios estavam insatisfeitos porque lhes impediam de “falar a sua
própria língua”, mas apesar da proibição, os índios que foram acusados
de confabular sobre o suposto levante estavam falando na sua língua
enquanto pescavam na praia distante.
Apesar dos supostos levantes contra a implantação das Vilas
não terem ocorrido de fato, o estudo dos processos que investigaram
as denúncias de sua confabulação permitiu se perceber que, neste
momento de criação das Vilas, havia entre os índios aldeados o temor
da escravidão e o anseio de liberdade que vinculados a interesses
particulares e de grupo permitiram alorar novas práticas de defesa e de
relacionamento com o mundo colonial.
Talvez, hoje, se possa dizer que os índios nunca deixaram de
ser índios porque foram capazes de, compreendendo o momento em
que viviam, modiicar-se e incorporar novas práticas para defender o
que eram, o que tinham e o que queriam. Ainal, se em 1805 ainda
se pode encontrar a categoria “índio” nos censos coloniais, é porque
mesmo modiicando-se culturalmente ainda eram índios para si e para a
colonização e, portanto, a sua estratégia de ação percebida neste tempo
inicial das Vilas surtiu algum resultado positivo para a sua sobrevivência
durante o período da vigência do Diretório.
AHU, cód. 1822, l. 54v.-60, Carta do Diretor de Estremoz ao Governador de Pernambuco,
02/03/1760.
58
393
Políticas e estratégias administrativas no mundo atlântico
Suely Creusa Cordeiro de Almeida, Gian Carlo de Melo Silva,
Kalina Vanderlei Silva, George Felix Cabral de Souza (Organizadores).
INFORMAÇÕES GRÁFICAS
FORMATO 15,5 x 22,5 cm
TIPLOGIA Times New Roman
PAPEL MIOLO: Off-set 75g/m2
CAPA: Triplex 250g/m2
Montado e impresso na oicina gráica da
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