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COXAS DE ROBERTO PIVA: ARS EROTICA & SOLIDAO ROBERTO PIVA'S THIGHS: ARS EROTICA & SOLITUDE Fabrício Carlos Clemente1 Cristyane Batista Leal2 RESUMO: Este texto realiza uma leitura do livro Coxas: sex fiction & Delírios, de Roberto Piva, publicado primeiramente em 1979 e depois em 2006, em Obras reunidas, organizadas por Alcir Pécora. Partindo dos conceitos de “Ars erotica”, de Michel Foucault (2012), “política dos anormais”, de Beatriz Preciado (2011) e de performatividade, de Judith Butller (2008), percorremos a linguagem transgressora da poética de Piva. Em Coxas, o homoerotismo ou a sexualidade transgressiva assume as feições do fazer poético, o que se equivale à busca pelo conhecimento e erudição como maneira de empreender, como diz o poeta, a “destruição maravilhosa do Caráter”. Nesse sentido, o anárquico sincretismo brasileiro de Piva radicaliza as visões de Oswald de Andrade, redefinindo a antropofagia em sexualidade transgressiva . Essa abordagem traz novas possibilidades de pensar relações entre literatura e vida, em que um esforço existencial luta e se debate para não ser sufocado pela normalidade triunfante. PALAVRAS-CHAVE: Roberto Piva; ars erotica; transgressão; literatura; vida. REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2021 – v.1, nº.28 – abril de 2021 LES CUISSES DE ROBERTO PIVA: ARS EROTICA & SOLITUDE ABSTRACT: This text reads the book Coxas: sex fiction & Delírios, by Roberto Piva, first published in 1979 and then in 2006, in Obras reunidas, organized by Alcir Pécora. Starting from the concepts of "Ars erotica" by Michel Foucault (2012), "politics of the abnormals", Beatriz Preciado (2011) and performance by Judith Butller (2008), we went through the transgressive language of Piva's poetics. In Coxas, homoeroticism or transgressive sexuality assumes the features of poetic doing, which is equivalent to the search for knowledge and scholarship as a way of undertaking, as the poet says, the "wonderful destruction of character". In this sense, Piva's Anarchic Brazilian sincretism radicalizes Oswald de Andrade's views, redefining anthropophagy in transgressive sexuality This approach brings new possibilities of thinking Mestre em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo – Brasil. Doutorando em Letras e Linguística na Universidade Federal de Goiás – Brasil. Bolsista CAPES – Brasil. ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-3161-6604. E-mail: fclemente1@hotmail.com. 2Doutora em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás – Brasil, com período sanduíche na Universidade de Lisboa – Portugal. Professora da Faculdade de Inhaúmas – Brasil. ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-6120-1127. E-mail: cristyaneimagem@gmail.com. 1 81 about relations between literature and life, in which an existential effort figth and struggle not to be stifled by triumphant normality. REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2021 – v.1, nº.28 – abril de 2021 KEYWORDS: Roberto Piva; ars erotica; transgression; literature; life. RESUME: Ce texte lit le livre Coxas: sex fiction & Delírios, de Roberto Piva, publié pour la première fois en 1979, puis en 2006, dans Obras reunidas, organisé par Alcir Pécora. Partant des concepts d'"Ars erotica » de Michel Foucault (2012), de « politique des anormaux », de Beatriz Preciado (2011) et de performance de Judith Butller (2008), nous sommes passés par le langage transgressif de la poétique de Piva. Dans Coxas, l’homoéroticisme ou la sexualité transgressive assume les caractéristiques du fait poétique, ce qui équivaut à la recherche de connaissances et d’éruditions comme moyen d’entreprendre, comme le dit le poète, la « merveilleuse destruction du caractère ». En ce sens, le sincrétisme brésilien anarchique de Piva radicalise les vues d’Oswald de Andrade, redéfinissant l’anthropophagie dans la sexualité transgressive. Cette approche apporte de nouvelles possibilités de réflexion sur les relations entre la littérature et la vie, dans lesquelles un effort existentiel lutte et se débat pour ne pas être étouffé par la normalité triomphante. MOTS-CLES: Roberto Piva; ars erotica; transgression; littérature; vie. 1. INTRODUÇÃO Estranhos, provocativos, enigmáticos; infensos a categorizações e normas – indóceis, em suma: assim são os corpos que transitam pelo livro Coxas: sex fiction & delírios, de 1979, do poeta Roberto Piva. Estes “adolescentes vindos da Penha, Vila Diva & Jardim Japão” (PIVA, 2006, p.60), meninosmetonímias da irredutibilidade do desejo, “vestidos de veludo negro & rosa”, deixam-se, debochados índios urbanos, nomear pela performatividade 3 sedutora, indômita e transgressiva de seu desejo homoerótico: Lindo Olhar, Coxas Ardentes, Rabo Louco, Lábios de Cereja, Entrega Em Profundidade. As feições andróginas que os compõem confundem-se, assim (um-nooutro, outro-no-outro, em troca-troca perpétuo), nas performances orgiásticas Servimo-nos aqui da noção de performance de gênero de Judith Butler. A partir das ideias de Butler, passamos a compreender a performatividade como uma forma de inscrição que se dá teatralmente sobre o corpo, moldando-o de acordo com a mentalidade heteronormativa. Consideramos, como se pretende mostrar adiante, que os personagens de Coxas levam à hipérbole essas possibilidades performativas, transgredindo-as e criando novas possibilidades de expressão e experiência sexuais. Cf. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade (BUTLER, 2008) 3 82 que eles empreendem (qual novos piratas num mar fora do tempo) em seu clube Osso & Liberdade, “cuja bandeira era um osso branco num campo negro” e que exigia dos novos possíveis ingressantes que soubessem “de cor 2 ou 3 capítulos de Macunaíma (PIVA, 2006, p.60). de Andrade, Dante & vícios requintados” (PIVA, 2006, p.60). Cada um desses jovens parecendo (perverso polimorfo4) sinalizar a presença-ausência do fantasmático e utópico personagem que, à maneira do novo mito de André Breton 5, entrecruza vacilante o escasso enredo: o Andrógino Antropocósmico. A obra (entre o mero relato delirante, a lírica e a narrativa) centra-se (contando-as de forma fragmentária, descontínua, ziguezagueante e inconclusa, entremeadas e sucedidas pela fala de um eu poético) nas aventuras de um protagonista (sorte de alter-ego de Piva): Pólen. Dão-se, assim, elementos de uma trama de fios soltos, como o assassinato de seu amor Luizinho (metralhado, no início da narrativa, enquanto transavam, em plena luz do dia, no topo do edifício Copan em SP). Vemos também o relato em terceira pessoa da convivência de Pólen com os garotos do Osso e Liberdade. Este personagem, segundo o companheiro de REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2021 – v.1, nº.28 – abril de 2021 Eis a espécie de sociedade secreta que tinha por objetivo “divulgar Mário geração de Piva, o poeta e ensaísta Claudio Willer (2005), performatizaria o próprio comportamento de seu criador, quando “uivava pelas ruas com duas panteras pintadas em seu peito falando com os amigos sobre as poesias de Em Life Against Death: the psychoanalytical meaning of History, o filósofo Norman Oliver Brown (1985), considera a atitude do perverso polimorfo infantil (capaz de gozar com todas as partes do corpo) tal com entendido por Freud, a atitude adequada para que haja uma “ressurreição do corpo”. Uma vez empreendida essa ressurreição, passaríamos, como perversos polimorfos, a nos utilizar do corpo como uma fonte completa e total de prazer e desbravamento erótico, deixando de concentrar tais prazeres apenas nos órgãos sexuais. 5 Breton, mentor do surrealismo francês, nos “Prolegômenos ao terceiro manifesto surrealista ou não”, propõe, como estratégia de resistência político-poética, a criação de um novo mito, “Os Grandes Transparentes” (BRETON, 2001, p.350); 4 83 Maquiavel, César Borgia, Castruccio Castracani o herói das galáxias medievais no início da era burguesa dos chinelos & pincenê” (PIVA, 2006, p.59). Sucedem-se, pois, as orgias compartilhadas, a paixão de Pólen por Lindo REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2021 – v.1, nº.28 – abril de 2021 Olhar, chefe do clube, as menções à “política cósmica” e ao aspecto subversivo do grupo, às relações sexuais (fruídas como “Crueldades Cristalinas”), aos manifestos que escrevem e distribuem, a outras perdas dos amores queridos, como o amante Mário, de Lindo Olhar, “fuzilado por rebelião” (PIVA, 2006, p.62); mais os diálogos sexuais diversos, de alto teor poético e anti-discursivo. Tudo mesclado às várias referências literárias, psicanalíticas, musicais, mitológicas e filosóficas, lançadas na perspectiva de uma vivência-vidência, regida pelo princípio do prazer. Prazer que, por sua vez, funde-se ao saber no peculiar, teatral e malfadado interesse desses jovens pelo Andrógino Antropocósmico – símbolo, talvez, de uma sexualização anárquica do universo. É possível entrever outros personagens ao longo da trama, como a secretária dessa curiosa tertúlia, Onça Humana, com quem Pólen também transa, a despeito de seu desejo eminentemente homoerótico e da política de seus coevos nesse Osso & Liberdade. Ora, a proposta da confraria pirata era “reviver o ideal grego da Pólis. O Eros grego com seus cabelos cacheados e seus relâmpagos sexuais”; por isso esses garotos “não transavam com Onça Humana”, “Transavam entre si, com Pólen & alguns convidados especiais” (PIVA, 2006, p.62). Há esse Oscar Amsterdam, lembrado por Onça Humana como alguém “que tinha vícios requintados & que gostava de ser comido por mulheres aparelhadas com falos de borracha” (PIVA, 2006, p.61). Há aquele Agente 84 Cartesiano, símbolo da razão instrumental, que “tentou ganhar Coxas Ardentes no papo”, que “tremia ao ouvir palavras como: carga de espinafre, gavião berolina, fundo da flor, polvo nômade, saci prancheta, colarinho de gorila, nascido no mato, ovo de turco” e que “foi morto por Coxas Ardentes no melhor estilo renascentista com anel de veneno e tudo” (PIVA, 2006, p.70). Há também o Trombadinha, que “gosta de ser cintado e chamado de Arlete” (PIVA, 2006, p.59) e o Economista Sádico que com ele faz sexo para o reapropriação da injúria 6, em diálogo extático com o protagonista: “Você é minha putinha, disse Pólen. Isso, gritou Luizinho, gosto de ser chamado de putinha, puto, viado, bichinha, viadinho ah acho que vou gozar todo esperma do Universo!” (PIVA, 2006, p.51). 2. COXAS Em Coxas, o homoerotismo, assim como tudo o que possa ser entendido como sexualidade transgressiva, assume as feições mesmas do fazer poético: equivale à busca pelo conhecimento e erudição como maneira de empreender a “destruição maravilhosa do Caráter” (PIVA, 2006, p.61). Trata-se de intensificar o discurso da sexualidade e do desejo exacerbando-o até a livre associação, gerando combinações capazes de considerável plasticidade imagética: REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2021 – v.1, nº.28 – abril de 2021 deleite do expectador Pólen. Há o já referido Luizinho, com esta interessante Pólen folheia um tratado sobre esquizofrenia nas costas nuas de Lindo Olhar que se vira às vezes para beijá-lo longamente & mordiscar suas coxas & tomar um gole de Chianti & imitar um pequeno leopardo cheio de mel lambendo com doçura suas longas mãos de mármore brando. (PIVA, 2006, p.65). 6 O conceito de injúria como algo que marca a sensibilidade gay com a dor e ameaça de exclusão é trabalhado pelo pensador Didier Eribon (2008) em Reflexões sobre a questão gay. Estratégias de reapropriação da injúria, como forma de ressignificação e resistência, são marcantes na filosofia Queer, que toma para si o termo ofensivo (bicha, estranho, etc) e transforma-o numa política dos “anormais”, problematizando os frágeis preceitos da normalidade e heteronormatividade. Cf. “Multidões queer: notas para uma política dos ‘anormais’” (PRECIADO; 2011); 85 O mesmo contínuo verbal, o mesmo fluxo, fala também da perda e da falta. Como se dá com o lamento de Pólen a respeito de Luizinho, morto, como um corpo estranho, abjeto, por um helicóptero do City Bank: “Hemafrodita morto no musgo mais alto. Suas baleias de ternura, suas tranças do mais puro ouro, suas sardas em torno do narizinho meio arrebitado e insolente” (PIVA, REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2021 – v.1, nº.28 – abril de 2021 2006, p.51). É nesse sentido que se dilata a fala do fascínio pederasta de Pólen pelos meninos do clube. “Messalinas adolescentes”. Tal élan se identifica muito com o universo que se desenha ao longo de toda a obra de Piva, e que nos oferece a medida de sua sensibilidade. É o que esclarece a ensaísta Eliane Robert de Moraes, dizendo que “ao lado da celebração do homoerotismo a obsessão pelo garoto deixa transparecer também uma utopia temporal, traduzida na idealização da adolescência como idade de ouro”. Salienta, pois, Eliane, a presença do “sonho de permanência no tempo juvenil” (MORAES, 2006, p. 156) por parte do sujeito. Há, dessa forma, uma vontade de fixar tal fase arquetípica, andrógina da vida humana, esse entrelugar que é devir e que é passagem. Pressurosa, a empresa dessa poesia intenta “capturar” o que é “por definição passageiro” (MORAES, 2006, p. 156) e que não se deixa delimitar pela mutilação da experiência, do amor e do convívio, que, como nos mostra Octavio Paz, em O Labirinto da solidão (2014), caracteriza a relação do homem moderno com o tempo. Ora, o adulto, movido pela necessidade do trabalho, da realização pessoal, do corre-corre das metrópoles, do fixar-se e situar-se no mundo estabelecido, acaba por elidir a si mesmo no tempo cronológico: vira sombra de 86 horas que desconhece, pois, ao mesmo tempo em que se preocupa em garantir a sobrevivência no futuro e em rememorar o passado perdido, desintegra-se para a vivência real do presente. Medido pelos ponteiros com os quais mede sua falsa presença no mundo, cinde-se e torna impossível ou vazia a própria participação na existência. Mas o tempo de Piva é aquele que só se capta de viés, na velocidade de um beijo, de um salto, de uma paixão à primeira vista. “Seja como for”, afirma Eliane, “tudo acontece como se o contato carnal com os ‘pequenos deuses’ impostas pela passagem do tempo” (MORAES, 2006, p. 156). Daí adviria a “erotização do mundo” própria da escrita piviana, como aponta a pesquisadora. Seu tempo estaria, pois, nessa dimensão arquetípica: fora da História. Há, então, posicionamento diante do contínuo temporal político-histórico apenas na medida em que isso é feito para cavar no terreno minado de tal experiência a Idade de Ouro da utopia. Podemos ver que há o esforço de manter-se no movimento mesmo do devir. Sempre. No gesto mesmo do encontro. Na inauguração mesma que se faz no florescimento de algo ainda não compreendido e não conhecido. Empresa impossível. Mas, à escrita, sob tal olhar, caberia registrar a maravilha da descoberta e mantê-la acesa, viva e emocionante, jamais grafando-a em um saber codificável, e sim dotando-a da temperatura capaz de iluminar (como no encontro dos corpos arfantes de desejo), entusiasmar e excitar inefavelmente o REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2021 – v.1, nº.28 – abril de 2021 garantisse ao sujeito lírico uma juventude eterna, libertando-o das agruras outro. Corpo-letra de penetrar e deixar-se penetrar na pureza da volúpia. A escrita de Piva é eminentemente erótica. Se o método desta arte, que se deixa galvanizar pela potência do sexo, escandaliza, abolindo distinções, a testemunhar o inefável dos sentidos, como nos “Reinos de Pã” da Dupla Chama de Octavio Paz (1995); se, explodindo dicotomias entre o alto e o baixo, diz de um modo que não convém dizer, talvez seja porque o gozo de nomear serve-se, aqui, indiscriminadamente, daquilo que, em outra ocasião, Eliane Robert de Moraes (2003) chama de “termos técnicos” do sexo: as palavras que rasgam a cortina da moral e provocam no leitor o 87 “efeito obsceno”. Podemos dizer, no que concerne a Piva, que, rasgada essa cortina, as palavras aparecem transando e arrastam o leitor para a orgia. Despojam-se do que é inútil. REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2021 – v.1, nº.28 – abril de 2021 3. ARS EROTICA 7 Recorrendo à formulação de Michel Foucault (2012) em História da sexualidade I: a vontade de saber, podemos, de fato, apontar em Coxas uma forma de retomada e intensificação do que o filósofo francês denomina ars erotica. Esta seria diferente daquela Scientia sexualis, que se identificaria mais, por exemplo, ao arsenal do discurso médico, psicanalítico, pedagógico, o qual incitaria a fala a respeito do sexo para retê-la e codificá-la em termos de domesticação e utilidade (a sexualidade voltada para a reprodução, o elenco de perversões e anormalidades, a captura do biopoder para fins de trabalho e consumo). Em Coxas o erótico jamais se deixa adestrar. Brinca com o podersaber do sexo, conecta-se e desconecta-se de suas máquinas. Fala-se, portanto, uma língua inominável, que não se quer planificada, que escorrega quando se lhe tentamos rotular, delimitar. Piva parece, nesta curiosa sex fiction, reduzir seu verbo às energias do tesão. Sua língua orgiástica parece, assim, provocar o leitor em cada aliteração, em cada imagem insólita, em cada labirinto verbal no logos das longas e ritmadas frases, que se entrelaçam (como os seres que dão a conhecer) lúbricas e trêmulas: “Na arte erótica, a verdade é extraída do próprio prazer, encarado como prática e recolhido como experiência; não é por referência a uma lei absoluta do permitido e do proibido, nem a um critério de utilidade, que o prazer é levado em consideração, mas, ao contrário, em relação a si mesmo: ele deve ser conhecido como prazer, e, portanto, segundo sua intensidade, sua qualidade específica, suas reverberações no corpo e na alma” (FOUCAULT, 2012, p.65-66) “A relação entre erotismo e poesia é tal que se pode dizer, sem afetação, que o primeiro é uma poética corporal e a segunda uma erótica verbal. (...) O erotismo é sexualidade transfigurada: metáfora. A imaginação é o agente que move o erótico e o poético” (PAZ, 1994, p.12). 7 88 Manadas de relâmpagos na taça mais alta seus olhos choram orquídeas carcarás & cochilos mastigando o galeto na brasa do crepúsculo entre as novas constelações assobiando nos jardins Pólen deitava seu corpo num único sono com Lindo Olhar samambaias protegiam esse doce par de deuses egípcios. (PIVA, 2006, p.80). se identificam como superação da dicotomia amor e morte, como afirma Bataille (2013). O fundamento de ambas as atividades, nesse caso, é a transgressão. Fronteiras partidas, cuja extinção momentânea nos deixaria vislumbrar, num átimo, a eternidade dentro do tempo. Trata-se de experimentar os limites da liberdade de narrar, desdobrando associações que excitam os sentidos. Eclode, assim, a visada utópica que se manifesta fortemente em momentos como o do delírio apocalíptico de Pólen. Tal delírio, que ocorre como contrapartida à perda sinistra de Luizinho, traria à tona o sincretismo brasileiro de Piva na mais anárquica e libertária das visões, radicalizando aquelas de Oswald de Andrade do Manifesto Antropofágico e Serafim Ponte Grande. Revelam-se, assim, aos olhos videntes de Pólen: REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2021 – v.1, nº.28 – abril de 2021 Corrente contínua. A experiência do erotismo e a experiência da poesia office-boys armados com estilingues & bolinhas de gude & partilhavam da turbulência do Grande Terror com máscaras feitas de folhas de bananeiras & bermudas justíssimas onde podia-se ver magníficas coxas & lindos pés descalços com tornozelos rodeados com florzinhas amarelas & muitos traziam a palavra COMA-ME costurada na bermuda na altura do cu. Naquela tarde todo mundo estava com vontade de nadar em sangue. anjos da verdade pensou Pólen em sua calma estranguladora de babuínos agora devem começar as quermesses com leitões coloridos purê de maçã & delicados 89 tutús à mineira ostras de Cananéia apimentadas servidas com retumbantes batidas de Maracujá (a fruta da paixão) codorninhas recheadas com uvas passas & torresminhos com queijo ralado o verão bem poderia chegar com seu perfume de acarajé invadindo os colégios fazendo os adolescentes terem ereções & as garotas desmaiarem de desejo com seus REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2021 – v.1, nº.28 – abril de 2021 pequeninos seios latejantes. (PIVA, 2006, p.52). Pelo intenso desejo homoerótico desencadeia-se, como podemos ver, uma exploração do sensorial que funde a fome de sexo, de cultura, de liberdade em uma mesma perspectiva. Passeiam pelo leitor palavras que evocam prazeres gastronômicos e eróticos a habitarem em um mesmo plano, que dá água na boca. Para Piva, trata-se de redefinir a antropofagia em sexualidade transgressiva. De rasgar o véu heterossexual do modernismo brasileiro. De olhar e ver Mário de Andrade dançando dionisíaco em seu armário de vidro e estilhaços luminosos: é nesse sentido que Roberto Piva, como é possível verificar numa de suas entrevistas, expropria o caráter mais institucional e bem-pensante do célebre modernista, enfatizando nele, mais que qualquer outro elemento, a latência homoerótica: Aliás, já da primeira vez que li o Mário, percebi que era um poeta com forte sensibilidade homossexual. Repare bem: “Tudo o que há de melhor e de mais raro / Vive em teu corpo nu de adolescente / A perna assim jogada e o braço, o claro / Olhar preso no meu, perdidamente”. No “Girassol da Madrugada”, isso aparece de modo muito nítido. O que não quer dizer que eu desconsidere os outros modernistas, mas o Mário foi uma descoberta que me interessou pelo lado homoerótico8. 90 “Roberto Piva: Os artistas são os xamãs da sociedade contemporânea”. Entrevista com Fábio Weintraub. Revista Cult, 4 de agosto de 2000. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/entrevista-roberto-piva/ (consultado em 12/06/2021). 8 Entre tempo e eternidade, onde habitam esses adolescentes pivianos, esses leitores do Macunaíma de Mário, esses Trabalhadores do Cu (PRECIADO) a engendrar, com abraços de fanopeia, logopeia e melopeia, paus, braços, pelos, uma brecha eriçada na história? Corrente contínua. Há pathos em tal empresa. No andar de baixo Pólen & Onça Humana viam um filme sobre sociedades secretas & se beijavam. Lindo Olhar juntou-se aos dois & começou a lamentar seu grande amor perdido Mário que fora fuzilado por rebelião & destilou sua amargura com a cabeça no peito de Pólen que passava a mão em seus cabelos & Onça Humana chorou & Lindo Olhar queria que Mário renascesse na forma de um pássaro etrusco voando para fora do túmulo & acumulando ninhos amorosos na Lua ou num planeta solitário onde ele Lindo Olhar iria encontrá-lo & beijar suas mãos novamente & ser sua escrava enlouquecida & se vestir de cardeal adolescente renascentista & aparecer diante de uma imensa fogueira na praia com uma tanga de pele de leopardo enquanto as gaivotas botariam ovos de veludo nos rochedos do amor. (PIVA, 2006, p.62). Narrativa, pseudonarrativa, poesia em prosa, texto metalinguístico: qualquer desses atributos poderia associar-se a Coxas. No entanto, é como se os aspectos híbridos, estranhos e provocadores do texto funcionassem menos como artifício literário que como cópula incessante de palavras, de termos REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2021 – v.1, nº.28 – abril de 2021 Assim, equidistantes, de elementos movidos pelo prazer da enunciação e da performance: tudo isso visando, incessantemente no leitor, o “efeito obsceno”. Radicalizando, nesse sentido, certas noções de ruptura das convenções de gênero literário; transitando, ainda, entre o lírico e o épico-narrativo, Coxas investe na desorientação centrífuga de um possível enredo montado por imagens poéticas. Assim é que ao longo das onze peças (poemas? Episódios?) que o compõem, o livro em questão lida constantemente com a estranheza, com o êxtase e com os limites da liberdade narrativa e da expressão do desejo. 91 A partir daí é possível entender o hibridismo anárquico como algo que passa a questionar, por sua vez, a noção de gênero, relacionada, inclusive, à sexualidade. Lembremos que, segundo é possível depreender de Judith Butler (2008), também à sociedade heteronormativa é comum a divisão dos papéis e a naturalização, via reiteração do discurso, exclusões e apagamentos, dessa REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2021 – v.1, nº.28 – abril de 2021 mesma divisão: que é isso, pergunta o crítico desavisado: poema? Conto? Romance? Prosa? Poesia? Pornografia? O que é aquilo, pergunta a mente heteronormativa: é homem? É mulher? É gay? É lésbica? Em ambos, crítico e straight, se afeta o mesmo riso de superioridade obtusa. Mas como poderíamos avaliar um livro como Coxas senão pelo sexo multívoco que ele faz florescer em nossa língua? A possibilidade de classificação se agrava ainda mais quando percebemos que o que parecia uma narrativa se interrompe de forma brusca, se esfacela. Isso, após um poema sobre o Andrógino Antropocósmico, que “era como um menino na beira de um lago. Atira pedra faz xixi & pede peixinho. Ele atravessa as florestas durante a noite & ronda as cidades brasileiras fazendo os adolescentes se contorcer em seus morenos travesseiros” (PIVA, 2006, p.73). Aí é como se percebêssemos o esforço de construção do mito sincrético e belicista de Piva, a trazer sonhos tribais para garotos exilados nas cidades técnico-industriais. Porém, após a retomada esparsa e fragmentária dos diálogos sexuais entre os personagens, o que temos é uma abrupta provocação, depois da qual tudo se quebra e a narrativa se interrompe. Nem o apocalipse dos anjos-officeboys, nem o novo mito se instalam no real. O poeta, em ímpeto derrisório, morde o leitor, brinca de demiurgo e parece escarnecer da relação entre poético e mítico, bastante exaltada em sua escrita: 92 momento algum você terá o momento eu alimento os deuses com pedras & queijadinhas antes de mim o dilúvio depois de mim a vidraça e a pedra-pomes você mordisca meu pescoço exposto você me ama neste chão agreste antes & depois dos clubes fechados onde Hegel entrou farejou plantou & saiu com novos cometas dementes & fluídicos o leitor é um puto o leitor quer dar & tem medo o leitor é um hipócrita irmão de Baudelaire (PIVA, 2006, p.74, 75). REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2021 – v.1, nº.28 – abril de 2021 no mato espesso Será a referência aos “clubes fechados”, uma menção velada ao possível fim do clube Osso & Liberdade? Será a alusão a Hegel uma declaração de impossibilidade do pensamento dialético? Será que a comunidade tribal revivida por aqueles adolescentes estilhaçou-se ante a impossibilidade éticaestética-ideológica de retraçar o caminho de sua potência nas tribos urbanas? E o Baudelaire da célebre dedicatória ao leitor nas Flores do Mal (verdadeira declaração de repulsa ao mundo como um lugar de horror e queda) o que faz aí? Segundo Claudio Willer, Piva “Dá um recado através dessa citação: o prólogo de Baudelaire diz que estamos no inferno, sob o domínio do tédio; portanto, é 93 de onde o poeta escreve, e não no seio da tribo iniciática” (WILLER, 2005, p.167). Willer também aponta para uma espécie de perda de entusiasmo, que se refletiria na feitura da obra. REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2021 – v.1, nº.28 – abril de 2021 Restam, portanto, apenas o desejo insatisfeito, o exílio e a errância: minha mão alcança minha dor presente & me preparo para um dia duro amargo & pegajoso a tarde desaba seu azul sobre os telhados do mundo você não veio ao nosso encontro & eu morro um pouco & me encontro só numa cidade de muros você talvez não saiba do ritual do amor como uma fonte a água que corre não correrá jamais a mesma até o poente minha dor é um anjo ferido de morte você é um pequeno deus verde & rigoroso horários de morte cidades cemitérios a morte é a ordem do dia a noite vem raptar o que sobra de um soluço (PIVA, 2006, p.88). Estão evidentes nesses versos a dor pungente e a latência de um desejo 94 insatisfeito. Na delicadeza soturna das imagens, no lamento inerente ao seu ritmo, com frequentes aliterações em M e N, com significativa recorrência das assonâncias em O e U, no sibilar ferido que se deixa transparecer, reiterando o tom melancólico, qual o moaning do blues dos negros norte-americanos? Murmúrio da solidão, movimentos de um corpo estranho pelas ruas da metrópole. Esvaneceram o Andrógino e os outros personagens, com exceção do casal Pólen e Lindo Olhar, que ainda aparecerá de forma deslocada. A comunidade tribal não foi recomposta num mundo poético e autônomo. O poeta Há, no entanto, a celebração do amor perdido. Agora, festa elegíaca conduzida pela leitura e idealização (que se sabe mera fantasia) dos amores da Roma Antiga. De uma era e uma civilização remotas emana, assim, o contraponto ao presente hostil: outro tempo acolhe o exilado da urbe. Sabe-se, pois, que “os anjos estão mortos” (PIVA, 2006, p.76). Mas nada impede que se constate, num jogo de belas imagens poéticas (num simultaneísmo que brinca com plasticidade e erudição) que: Esta é a zona batida pelos afogados Esta é a velocidade máxima de quem submerge aqui as romãs romanas não crescerão mais & duas águias de névoa orvalhando sandálias adolescentes na grama de primavera escrevem REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2021 – v.1, nº.28 – abril de 2021 está sozinho. a palavra remember o doce Antínoo com seu arco carregando corações maduros na aljava da fenda-essência da história os semáforos do tempo acendem seu sinal verde por cima de sua longa cabeleira este doce garoto partiu o coração do imperador o Império adorando um deus adolescente afogado no nilo sem esperar a Manhã egípcia chegar Adriano chorou o resto de sua 95 vida na vila ao sul de Roma as paredes rachavam pelas tardes deixando entrar as lembranças houve um tempo nas montanhas da Bitínia quando as caçadas se prolongavam até a hora do amor o vinho de Falerno aderindo aos estômagos REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2021 – v.1, nº.28 – abril de 2021 vazios enquanto os olhares se cruzavam sobre o javali assado e rodeado de frutas este amor construiu seu império na memória & as escamas de meu cérebro caem ao contato de seus dedos os poetas latinos ouviram provaram entenderam este tesouro afundado nas tripas do tempo resta o vento de verão nos caminhos onde eles andaram (PIVA, 2006, p.85). É o rastro das sandálias do imperador Adriano e de seu amante Antínoo que, farejado em seu lastro de energia simbólica, oferece a inspiração do amor para além da sociedade moderna, que está cercada pelas performances da heterossexualidade compulsória. Na fenda-essência da história, nas brechas do tempo, encontram-se uniões cuja lei é a severidade da inominável fome de amor. Para semelhante desejo, entretanto, ainda são relegados os lugares constitutivos da abjeção. Nos relógios da sociedade atual, as romãs romanas só 96 crescerão quando caírem as escamas de seu cérebro-maquinaria, imerso numa percepção limitada das coisas, da vida, da sexualidade, da natureza. Por tais fendas, Pólen, Lindo Olhar, Coxas Ardentes, Rabo Louco, Lábios de Cereja, Entrega Em Profundidade parecem emaranhar-se e perder os contornos (que já eram flébeis), desaparecendo. Por fim, o poeta despede-se com este Porno-samba para o Marquês de Sade. Celebrando, numa festa solitária, o paroxismo do desejo – talvez o mesmo esta homenagem coincide com a deterioração do Gulag Sul-Americano minado pela crise de corações & balangandãs econômicos onde se mata de tédio o poeta & de fome o camponês & sobre os pés femininos se calça a bota de chumbo de várias cores gamadas com Hitlers de plantão em cada esquina recoberta de saúvas & amores escancarados como túmulos onde tuas coxas Marquês, servem de amparo delicado para o garoto que chupa teu pau enquanto uma mulher ruiva te cavalga Assim, anotemos o nome da vítima-orgasmo-blasfêmia antes que as araras entrem na orgia com seus estimulantes bicos recurvos & um estratagema de cipós afague os sóis da desolação quotidiana em nível de Paraíso A noite é nossa Cidadão Marquês, com esporas de gelatina e pastéis de esperma REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2021 – v.1, nº.28 – abril de 2021 desejo daqueles seus “anjos” que, agora, “estão mortos”: & vinhos raros onde saberemos localizar o tremor a sarabanda de cometas o suspiro da carne (PIVA, 2006, p.91). No fluxo violento dos versos (ou prosa) com esquisitos enjambements, espécie de arranjo dodecafônico, com quebras de ritmo (apesar da sequência sintática), vemos mais do teor político da arte erótica piviana. A solidão transfigura-se em resistência, em leitura-escrita, em erotismo do verbo. “Nada mais desesperado que um herói de Sade”, diria Octavio Paz, para quem a obra do Marquês possui uma “revelação explosiva da condição humana” (2014, 97 p.194). É, porém, esse desespero da consciência que, na sua solidão polifônica, Piva transforma em potência. Recorrendo uma vez mais a O Labirinto da solidão, devemos lembrar que Paz vê na figura da androginia adolescente (esta pedra alquímica de Piva), não REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2021 – v.1, nº.28 – abril de 2021 apenas o esplendor aventureiro que dela se espera irradiar. O ensaísta mexicano considera o adolescente o mais solitário dos seres. Aceita essa perspectiva, podemos ver na força do devir andrógino, do entrelugar neófito/sábio evocado por Piva, também um desafio tortuoso que, em seu turno solitário, punge – em insuspeita dimensão humana. E que, por isso, busca e necessita de uma dialética própria. Nem tudo aí é potência. E a corrente do Êxtase literário-poético-erótico é cortada ao lidar com muros de inadequação e preconceitos: há estilhaços a montar – paliçadas de carne. É uma resistência difícil. No imprescindível ensaio “A cintilação da noite”, de Eliane Robert de Moraes (2006), a autora nos elucida que a poesia de Piva jamais se confundiria com a solidão. De fato, há um vozerio constante e um brilho intenso no trato de nosso poeta com elementos da noite e da melancolia, que em nada se confunde com o isolamento. Consideremos ainda que, segundo Maria Rita Kehl “sua excentricidade não se alinhava, como seria de se esperar, a nenhuma veia melancólica. Exuberante, sensual, prolixo, Roberto Piva só foi solitário nos momentos em que realmente não encontrou quem quisesse acompanhá-lo até o limite de suas extravagâncias místico-sensualistas” 9. Como poderíamos, no entanto, deixar de reconhecer a dimensão de dor (e, por sua vez, de denúncia das dores impostas pela heterossexualidade normativa) a reverberar na escrita piviana? Para a leitura que aqui propomos, 98 essa esfera é fundamental, à medida que tensiona realidade e utopia. Dá-se, 9 Em “Há método em sua loucura”: texto publicado no jornal Estadão, por ocasião do falecimento de Piva, em 2010. dessa forma, aquela “ruptura com um mundo e tentativa de criar outro”, que, segundo Paz (2014, p.198), constitui o duplo significado da solidão. Não seria possível ver aí o cerne de uma problemática existencial e política? Colocamos isso, tendo em vista a abordagem recorrente de Piva por vias de leitura demasiado solares, enfatizando, mesmo em suas imagens Não há, por outro lado, na sensibilidade piviana um paroxismo desejante seguido de um esfacelamento, que se traduz também como experiência-limite de sujeitos gays, queer, de minorias cujas performances atravessam e ressignificam as urbes modernas? Não há em Coxas um lamento de dor análoga àquela vivida por tais experiências empurradas, não raro, para os locais que a sociedade definiu como abjetos? No que tange a sua própria poesia, Piva parece não ter se interessado por esse tipo de abordagem. No documentário “assombração Urbana com Roberto Piva”, de Valesca Dios, o poeta se nega assumir qualquer posição no que diz respeito a gênero e sexualidade, o que considera “rótulos”, criados por uma sociedade de “gerentes”. No entanto, sua escrita convida o leitor a seguir tais questões, como quem segue os rastros esquivos de um verbo insurreto. REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2021 – v.1, nº.28 – abril de 2021 possivelmente mais sinistras, um aparente estado de invulnerabilidade. Qual é, assim, o sexo de um texto como Coxas? Texto feito de cacos advindos dos choques do desejo, ars erotica que vislumbra, pela via da imaginação, insólitas rotas de prazer. Essa escritura tudo devora. Acaba, desse modo, por encarnar os aspectos prostéticos da vida. Acopla-se às máquinas simbólicas do ocidente que detesta e cujo jogo de saber/poder busca desapropriar e redefinir a todo tempo. O poeta, indecifrável, é vivo o bastante para sangrar uma bile medonha e ridente. 99 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS: UM PERCURSO A SEGUIR – INQUIETAÇÃO EPISTEMOLÓGICA A arte erótica de Piva pode ser considerada, a partir das abordagens REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2021 – v.1, nº.28 – abril de 2021 queer de Beatriz Preciado, em textos como Manifesto Contrassexual (2014) e “Multidões Queer” (2011), como uma expressão extrema da “política dos anormais”. É escrita que não se furta a usar todos os objetos do discurso corrente e do discurso literário como se fossem dildos, sexos prostéticos reapropriados em seu vocabulário de prazer. Como vimos no “Porno-samba” acima citado: papagaios, pastéis, botas, ditadores: tudo serve – tudo se devora numa antropofagia queer. Trata-se de exacerbar e hiper-significar, libertandoo, o status de abjeção que o discurso médico-científico-político-pedagógico relega aos que não se enquadram na heteronormatividade. É queer a solidão de um corpo estranho exilado na metrópole tacanha e preconceituosa do capitalismo periférico, eterna reprodutora dos subdesenvolvimentos mentais do Velho Mundo e de alguma América Inexistente. Mas o Piva de Coxas é realmente Queer? Não sabemos. Não seríamos capazes de responder aqui sem que nos alongássemos por infinitas páginas. Não podemos ainda dizer se Piva é Queer, porém, sabemos que, como os sujeitos que flertam com essa categoria, tal como definidos por Guacira Lopes Louro, Piva é “o excêntrico que não deseja ser integrado e muito menos tolerado”. Piva, como os Queer “não aspira o centro nem o quer como referência”; ele assume “o desconforto da ambiguidade, do entre lugares, do indecidível”. E é por isso que também “incomoda, perturba, provoca, fascina” (LOURO, 2004, p.08). 100 A arte erótica de Piva, pensada pelo ponto de vista das teorias de gênero, talvez contribua para a reflexão produtiva sobre ambos os saberes: erótico e poético. E, de quebra, para o saber-poder político. Este é um projeto para ensaio futuro. Apreender tais teorias, no entanto, é, para nós, urgente. Vivemos numa época em que os ditos “anormais” traduzem, cada vez mais, um signo de resistência. Consideramos, assim, que o conhecimento proveniente das teorias conhecimento é capaz de ampliar valores, redefinir a consciência e promover a experimentação e criação de novas formas de vida. Ora, isso é imprescindível em tempos nos quais ainda vigoram normas desgastadas e caducas que ameaçam o desenvolvimento das artes, da vida e do pensamento. Abordar Piva com o referido instrumental teórico possibilitou repensar relações entre literatura e vida. Possibilitou, também, a reflexão sobre princípios de ruptura no que concerne às inúmeras formas de interação entre Logos e Práxis: como a poesia de Piva, os textos Gay e Queer nascem de um esforço existencial que luta e se debate para não ser sufocado pela normalidade triunfante. REFERÊNCIAS REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2021 – v.1, nº.28 – abril de 2021 de gênero evoca uma problematização de todo o saber humano. Esse ANDRADE, Mário. Poesias completas. 3. Ed. São Paulo: Martins; Brasília, INL, 1972. ANDRADE, Oswald. A Utopia Antropofágica. 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