Museu: Hero e Leandro
Andreza Caetano
RESUMO: Este artigo aborda alguns pontos acerca da biografia de Museu, o
Gramático, além de discutir sobre o gênero literário de sua obra, a redescoberta de Hero
e Leandro após a Idade Média com o surgimento da prensa, suas edições e, finalmente,
traz alguns detalhes de estilo e observações sobre o desenvolvimento da narrativa.
Palavras-Chave: Museu, Hero e Leandro, Gênero literário.
Sobre o autor
A biografia e a nacionalidade de Museu1 são amplamente discutidas2. Albin
Lesky defende o fato de que Museu tenha sido discípulo de Nono, e pertencente à escola
de Alexandria, especialmente pelo tratamento do verso e alguns aspectos linguísticos;
“ainda que o estilo narrativo seja decididamente mais simples”. Ele comenta que “no
tocante à métrica e a alguns aspectos linguísticos, Museu é discípulo de Nono, mas não
1
No artigo intitulado Hero e Leandro, de Museu: Uma lenda e uma arte que ultrapassam o tempo,
publicado pela Revista de Estudos Clássicos e Tradutórios Rónai (2013 V1. N2 pp. 18 – 34), pontuamos:
“A maioria dos estudiosos concorda em situar historicamente Museu entre Nono de Panópolis e Paulo
Silenciario, ou entre o primeiro e Agatías. De modo geral, aceita-se que sua morte teria ocorrido até o
século VI d. C. Para muitos parece ser indiscutível que ele viveu na época de Justiniano I (527-565);
contudo, para o especialista David Hernández de La Fuente, Museu floresceu no reinado de Anastácio I,
imperador bizantino de 491 a 518. Gelzer pondera que se pode ter alguma certeza acerca da datação de
Museu baseando-se na comparação de seu texto com outras obras que sobreviveram, e, especialmente,
pelo uso que faz de paráfrases das Dionisíacas e do Evangelho de São João, de Nono de Panópolis. Ele
conclui dizendo que a paráfrase de Nono pode ser datada, em fundamento teológico, certamente após o
ano de 428 d.C.” (2013, p. 21)
2
No prefácio de sua edição, traduzida por Cedric Whitman, T. Gelzer louva o trabalho de Karlheinz Kost,
publicado em 1971. Desafortunadamente não tivemos acesso a essa obra, fruto de estudo e dedicação de
Kost por dez anos. Gelzer diz que “Kost deals comprehensively with all questions concerning the poet’s
identity and date, his material, his means of expression, his style, his source, and associated topics, as well
the history and interpretation of his text in modern times, and his influence through the Middle Ages up to
the present day.” Kost parece ter elaborado o maior trabalho que se tem a respeito de Museu.
Musaeus, Hero and Leander. Harvard University press. Cambridge, Massachusetts. London, England.
Edited by Thomas Gelzer. Translated by Cedric Whitman. 1975
RÓNAI: REVISTA DE ESTUDOS CLÁSSICOS E TRADUTÓRIOS – 2014 V.2 N.1 pp. 55-72 – UFJF – JUIZ DE FORA
55
se pode dizer o mesmo da sua maneira de narrar”.
Lesky também acredita que
Trifiodoro e Coluto sejam seguidores de Nono e de Museu (1995, p. 854).3
Para Gelzer, assim como para outros estudiosos do poeta4, Museu poderia ser
um pseudônimo do próprio Nono tomado do cantor e poeta eleusino. K. Kost crê que
Museu é um nome real, segundo explica Antonio Villarrubia (2000, p. 366)5. Também
se questiona que tenha sido contemporâneo de Coluto e Trifiodoro, e os três tenham
sido seguidores de Nono. Na realidade, a relação existente entre os quatro poetas –
Museu, Nono, Coluto e Trifiodoro – é bastante complexa e tem levantado diversos
questionamentos. A datação de papiros de Trifiodoro o situaria, por outro lado, em um
momento anterior a Nono, o que não parece verossímil para Gelzer 6, quem afirma que
“a datação de um papiro puramente baseado na paleografia já provou em vários casos
ser um critério incerto para estabelecer uma cronologia relativa ou absoluta” (1975, p.
301).
Baseado no conceito da comparação das alusões e cópias, Kost, na opinião de
Gelzer, com alguma certeza, provou que Coluto usou os versos de Museu, e não o
contrário7. Além disso, Trifiodoro também apresenta partes de versos em comum com
Museu.
Os estudiosos coincidem em que Museu não pertence à literatura clássica
propriamente dita, já que se considera que Nono foi o último autor Alexandrino, questão
3
LESKY, Albin. História da literatura grega. Trad. Manuel Losa. Fundação Calouste Gulbenkian.
Lisboa: 1995.
4
O próprio Gelzer cita C. Von Barth, G. Canter, U. Von Wilamowitz-Moellendorff, E. Sittig, F. Norwood
e P. von der Mühil.
5
VILLARRUBIA, Antonio. Notas sobre El poema Hero y Leandro de Museo. Universidad de Sevilla.
Habis 31. 2000. pp. 365-401.
6
Gelzer, em notas, diz que Wernicke (1819), considerando frequentes coincidências de paráfrases em
Trifiodoro e Nono, assumiu, apesar das muitas divergências métricas, que o primeiro era um seguidor do
segundo e objeto de cópia de Coluto. Logo, Allan Cameron chamou a atenção de Gelzer para um
manuscrito de Trifiodoro que não havia ainda sido publicado e que na datação paleográfica poderia ser
datado no terceiro ou quarto séculos. Não fosse pelos muitos versos tomados das Dionisíacas, poderíamos
facilmente localizá-los em época anterior a Nono (1975, p. 300).
7
T. Gelzer apresenta um longo comentário a respeito da comprovação de Karlheinz Kost. Ele entende
que o que está escrito em Coluto, nos versos 254-5, podemos observar em versos soltos de Museu (260,
263, 257) (78, 265-6) (171,173); também a partir do verso 293 de Coluto, temos de Museu vários versos
(83, 295) (203, 296) (142, 297) (157); e ainda, de Coluto 303-5, espelham-se os versos 160-172 de
Museu; então “é pouco provável que Museu tenha escolhido estas poucas linhas de Coluto, a fim de citálo em vários lugares em seu poema inteiro.” Para Gelzer, é como se Coluto trivializasse o que foi
apresentado por Museu. (1975, p. 300)
RÓNAI: REVISTA DE ESTUDOS CLÁSSICOS E TRADUTÓRIOS – 2014 V.2 N.1 pp. 55-72 – UFJF – JUIZ DE FORA
56
que poderia ser também amplamente discutida, se considerarmos, por exemplo, que
estes quatro autores já mencionados tenham vivido no mesmo século. De fato, é
praticamente impossível situar cada um deles exatamente no tempo, uma vez que a
datação e algumas características comuns de forma e estilo deixam margens a
suposições intermináveis. Poderia ser razoável que tivessem tido contato em alguma
época de suas vidas, especialmente porque parece que todos eles viveram no Egito, na
região do Vale do Nilo. O nome de Museu também foi levantado ao lado do historiador
Procópio, que viveu entre 465 e 528, como se tivessem estabelecido alguma relação de
amizade, o que o situaria nessa época. Procópio e seus seguidores da Escola de Gaza
apresentam bastantes similaridades com a obra de Museu (GELZER, 1975, p. 300).
Diante da descoberta de dois manuscritos – duas cartas – que teriam sido enviadas a
Museu por Procópio, segundo as palavras de Gelzer (1975, p. 302), poderíamos supor,
pelo teor que têm, que Museu era já uma reconhecida autoridade no círculo dos
estudiosos e oradores do tempo de Anastácio I, além de ser um tanto mais velho que
Procópio. Gelzer afirma que o mais provável é que Museu tenha vivido em Alexandria,
atribuindo a relação entre Procópio e Museu ao fato de que Procópio tenha estudado em
tal cidade, tendo sido, então, aluno do Gramático. Ele diz que (1975, p. 301):
É muito provável que ele seja o destinatário de duas cartas que
possuímos, escritas por Procópio de Gaza (n. º s 147 e 165 ed. GarzyaLoenertz). Procópio em outra carta (No. 1) cita o poema sobre Alfeu e
Aretusa (AP 9,326), que é modelado por sua vez, no epílio de Museu. Ele
trata Museu como um mestre honrado e lhe agradece (n º 147) por um
livro que este tinha transformado em uma obra "inspirada pelas musas",
no sentido neoplatônico.
Não obstante, como sustentou Neil Hopkinson8 (1994, p. 137), o nome Museu
era bastante comum no Egito durante esse período; então, se por um lado,
geograficamente o situaríamos conclusivamente em Alexandria, por outro, podemos
inclusive questionar as cartas enviadas por Procópio, que bem poderiam ter sido
enviadas a qualquer outro Museu, uma vez que também em tal época era normal
denominar gramáticos os professores que tratavam literatura e retórica.
8
HOPKINSON, Neil. Greek poetry: of the imperial period. An anthology. Cambridge University Press.
1994.
RÓNAI: REVISTA DE ESTUDOS CLÁSSICOS E TRADUTÓRIOS – 2014 V.2 N.1 pp. 55-72 – UFJF – JUIZ DE FORA
57
O que poderíamos dizer é que Museu está situado entre 420 e aproximadamente
510, ou até o Império de Anastácio – considerando que, de fato, tenha sido mestre de
Procópio, e sabendo que este último viveu entre 465 e 528. Embora alguns acreditem
que sua literatura tenha despontado no tempo de Justiniano I, não há nenhuma razão
sólida, a nosso ver, para situar o fim de sua vida em meados do século VI. O certo é que
seria necessário um estudo mais apurado nas obras de Nono, Trifiodoro e Coluto –
autores geralmente envolvidos na polêmica quanto à datação de Museu – e outros
autores de épocas posteriores, estabelecendo comparações filológicas.
Sobre o Gênero Literário
Discutir detalhes de Hero e Leandro9 seria impossível sem antes percorrer, ainda
que brevemente, alguns pontos polêmicos acerca dos gêneros literários; que, a partir de
René Wellek, passaram a “ser considerados categorias imprescindíveis na reflexão
sobre o fenômeno literário”, segundo David Viñas10.
A polêmica principal da definição de gêneros está radicada na tensão entre o que
um determinado gênero exige e o que o engenho do poeta/autor é capaz de elaborar, ou
seja, a norma e a criação, ou vice-versa. Mas, além disso, devemos pensar também no
estilo, não somente da ‘fabricação’ da obra, como também no estilo da recepção. Se
partirmos de um estilo expressivo, estaremos buscando, unicamente, na obra, a
manifestação do mundo íntimo – consciente ou inconsciente – do autor, do seu sentir,
tendendo à individualização, segundo Michal Glowinski11. É preciso, pois, ainda
segundo este autor, entender que os estilos de criação não são paralelos aos estilos de
recepção de uma determinada época e que o terreno da leitura é muito mais amplo que o
“Hero e Leandro, única obra que nos chegou de Museu, conta a história de um jovem casal que se
apaixonou durante uma festa em honra de Afrodite, como os dois amantes sentiram a mesma flecha,
lançada por Eros, abrasar seus corações e tecer em torno a eles um mundo de segredos. A donzela Hero se
mantinha reclusa em uma torre na cidade de Sesto, constrangida por um voto funesto de seus pais, mas
nem assim pôde evitar o dardo que respira o fogo do desejo (aléeine pyripneíontas oistoýs); e o infausto
Leandro, que vivia na cidade vizinha de Abido, do outro lado do Helesponto, embora não desejasse
perder-se nos espinhos secretos do amor, assim que viu a nobre moça, não desejou mais viver longe dela
(86-88). A sacerdotisa de Afrodite, não instruída para as bodas, se vê enamorada do jovem valente
Leandro, que atravessa o mar a nado, a fim de tê-la em seus braços durante as noites num matrimônio
secreto que não conhecia a luz do dia (ouk íden aphthitos ṓs).” (CAETANO, 2013, p. 21-22)
10
LLOVET, Jordi; CANER, Robert; CATELLI, Nora; MARTÍ, Antoni; VIÑAS, David. Teoría Literaria
y Literatura Comparada. Ed. Ariel. Barcelona: 2005 (pg. 263-329)
11
GLOWINSKI, Michal. Los estilos de recepción. Criterios, La Habana, nº 5-12, enero-diciembre 1984,
pg. 47-56 (Trad. de Desiderio Navarro)
9
RÓNAI: REVISTA DE ESTUDOS CLÁSSICOS E TRADUTÓRIOS – 2014 V.2 N.1 pp. 55-72 – UFJF – JUIZ DE FORA
58
terreno da criação literária. Francisco Rodríguez Adrados diz que “na Grécia estão
representados a maior parte dos gêneros das literaturas posteriores, ainda que haja,
certamente, diferenças notáveis”12; e que:
o que parece claro é que a literatura grega apresenta, historicamente, um
desenvolvimento de gêneros literários que, de um lado, nascem uns de
outros, se polarizam e se definem uns por oposição a outros; mas, de
outro lado, prescindindo do plano temporal, oferecem um mostruário de
possibilidades existentes com caráter geral. (1978, p. 160)
Ele comenta que os gêneros arquetípicos com que a literatura grega começa são
transmitidos aos gêneros posteriores que deles se derivam. A épica e a lírica têm em sua
raiz todos os gêneros literários gregos da época clássica, mediante um cruzamento de
derivações. Há uma série de gêneros abertos, como são fundamentalmente a história e o
romance, e uma série de gêneros fechados, como é o caso do teatro e da oratória (1978,
p. 160).
Segundo Tomas Hägg13, a antiguidade nunca criou um termo especial para
designar o romance. Nos tempos de Aristóteles, tal gênero não existia. Somente em
meados ou no final do período helenístico, nos últimos séculos a.C. é que presenciamos,
ou ao menos inferimos alguma evidência de um tipo de prosa literária que começava a
ser produzida e distribuída nos países onde a língua grega era difundida (1983, p.3).
Para o estudioso, o ‘romance’ tardou em encontrar seu próprio rumo, devido muito mais
às questões sociais e religiosas da época que à sua capacidade literária natural. “Parece
que os primeiros romances, como primeiros escritos cristãos, não foram consideradas
como verdadeira literatura por teóricos e críticos literários” e em época Imperial, parece
que este tipo de composição era somente discutido em círculos intelectuais, mas não era
muito conhecido e seriamente discutido (1983, p.4).
Alsina14 mostra que os grandes gêneros mais cultivados em época imperial são:
a poesia didática; a épica narrativa (na qual se encaixam Nono, Coluto, Trifiodoro e
12
ADRADOS, Francisco R. Sobre los géneros literarios en la literatura griega. 1616 [Publicaciones
periódicas]: Anuario de la Sociedad Española de Literatura General y Comparada. Anuario I, 1978. pp.
159-172.
13
HÄGG, Tomas. The Novel in Antiquity. University of California Press, Berkeley and Los Angeles:
1983
14
ALSINA, José Clota. Panorama de la épica griega tardía. En Estudios Clásicos, nº 65, tomo 16, 1972.
(pg. 139-167)
RÓNAI: REVISTA DE ESTUDOS CLÁSSICOS E TRADUTÓRIOS – 2014 V.2 N.1 pp. 55-72 – UFJF – JUIZ DE FORA
59
Museu); a épica histórica e encomiológica (que inclui Paulo Silenciário); a poesia
hímnica; a epigramática (na qual Agatías está inserido); a jâmbica; e a lírica (1972, p.
143-4).
Classificar Hero e Leandro como romance pode parecer exagerado, mas
devemos primeiramente considerar que tal gênero implica, necessariamente, uma
narrativa ficcional que visa especialmente o divertimento, segundo Jacyntho Lins
Brandão (2005, p. 25)15. O helenista mineiro afirma que o conceito medieval de
romance, definido como narrativa de ficção em língua vulgar, abrange composições
tanto em prosa, quanto em verso; e lembra-nos que “em português, somente no século
XIX a palavra romance se imporá com o sentido atual” (2005, p. 25).
Tratando das definições do romance grego antigo, Brandão diz que
Essa é uma expressão nebulosa mesmo para muitos daqueles que
dominam a história da literatura clássica. Em geral, provoca surpresa e
estranhamento, pois parece que o substantivo é incompatível com os
adjetivos. Afinal, o romance é o gênero que melhor expressa o que a
modernidade tem de mais característico e, porque tão bem se amolda a
ela, parece completamente moldado por ela. De acordo com Schüler, ele
é a ‘epopeia da modernidade’ e ‘nasce como testemunha do declínio de
um período, a Idade Média’ (2005, p.23).
O estudioso afirma que ao propor-se estudar os processos de representação
presentes no romance grego, estava também em busca do que de mais grego ele possui –
e que é, afinal, aquilo que provoca a própria invenção do gênero (2005, p.18). Na
sequência acrescenta que no contexto da literatura antiga – no contexto dos estudos
literários – podemos perceber que se trata de um gênero
totalmente imprevisto, ao somar, de modo inequívoco, a ficção à prosa.
Bem se entende como, até a idade moderna, seja um gênero sem teoria,
na medida em que tanto as poéticas medievais quanto as neoclássicas
são, como a de Aristóteles, dedicadas à poesia. Assim, o romance foi
muitas vezes enquadrado à força, na teoria dos 3 gêneros, supostamente
aristotélica, como uma modalidade do épico, o que tem evidentes
inconvenientes (2005, p. 30).
15
BRANDÃO, Jacyntho Lins. A invenção do romance. Brasília. Editora Universidade de Brasília: 2005
RÓNAI: REVISTA DE ESTUDOS CLÁSSICOS E TRADUTÓRIOS – 2014 V.2 N.1 pp. 55-72 – UFJF – JUIZ DE FORA
60
Tomas Hägg postula que "o romance pode ser usado para narrativas medievais
em verso, e mais tarde, também em prosa," e faz uma separação que nos convém,
quando diz que "o termo romance foi aplicado a histórias curtas das quais Boccaccio se
tornou o novo modelo com seu Decameron" (1983, p. 2).
Mesmo tratando-se de um poema, compostos em versos, a obra Hero e Leandro,
apresenta forte influência do Romance grego que se desenvolveu no período helenístico,
mas floresceu especialmente no século II d.C. Consideramos que estabelecer uma
classificação restrita do gênero literário, neste caso ao menos, influencia o leitor a uma
determinada leitura da obra, assumindo-a como representante exclusiva para tal gênero,
estabelecendo um vínculo que pode se tornar prejudicial.
Não pretendemos, assim, privilegiar a estrutura física da obra, adotando um
estilo de recepção alegórico, segundo a classificação de Glowinski 16, mas pensamos o
texto muito mais dentro de um estilo simbólico, que respeita as possibilidades de
múltiplas significações, sem assumir uma leitura autotélica, admitindo que os estilos de
recepção podem, em princípio, ter um caráter universal, e assim, o romance pode ser
recebido de acordo com todos os estilos de recepção expostos pelo polonês teórico da
literatura17.
Embora tais questionamentos acerca da categoria gênero sejam pertinentes aqui,
não podemos desprezar a nomenclatura antiga que define a obra como um epílio, breve
16
GLOWINSKI, Michal. Los estilos de recepción. Tradução Desiderio Navarro. Criterios. La Habana, nº
5-12, enero-diciembre 1984, pp. 47-56.
17
Glowinski crê que as diretivas para o estabelecimento de uma teoria acerca da recepção literária podem
entrar em conflito com as normas de leitura de determinada época. Para ele, podem-se definir sete estilos
de recepção da obra literária: 1 – Estilo mítico (quando a obra é recebida como um comunicado religioso
que proclama uma verdade, assumindo um aspecto ‘cosmovisivo’). 2 – Estilo alegórico (se organiza
fundamentalmente em torno a uma tese que concerne precisamente à estrutura da obra). 3 – Estilo
simbólico (atribui um papel mais ativo ao leitor, deixando mais liberdade para a iniciativa deste. Também
pode ter um caráter universal; é um estilo aberto que respeita as possibilidades de vários significados). 4 –
Estilo Instrumental (a obra literária perde, em certo ponto, sua autonomia. Estamos diante da leitura
concebida como uma atividade utilitária que apela para a visão corrente do mundo, uma visão não tanto
moralista como moralizadora. Serve como elemento didático). 5 – Estilo Mimético (Constitui sua base na
convicção de que se apresenta uma relação de semelhança, de imitação e de reflexo entre os objetos e
situações apresentados na obra literária e os objetos e situações pertencentes ao mundo real). 6 – Estilo
Expressivo (é imprescindível a localização da obra lida em relação com seu emissor. Supõe a presença
incessante do autor. Pode interpretar cada elemento da obra como uma manifestação de seu mundo
íntimo). 7 – Estilo Estilizante (entende a obra literária como arte, meramente. É a arte pela arte. Exclui
toda classe de compreensão instrumental da obra. É essencialmente lúdica). (1984, p. 49)
RÓNAI: REVISTA DE ESTUDOS CLÁSSICOS E TRADUTÓRIOS – 2014 V.2 N.1 pp. 55-72 – UFJF – JUIZ DE FORA
61
composição de estilo épico que envolve temas mitológicos, como está sugerido pela
palavra epýllion – “short epic poem”18 – escrito, portanto, em hexâmetros. Tal estilo foi
bastante difundido no período Alexandrino ou helenístico, e se popularizou bastante no
período Imperial. Hopkinson diz que o epílio é um “gênero pioneiro dos poetas
helenísticos”, e que “continuou popular em todo o período imperial” (1994, p. 136).
Também Leski afirma que além de um epílio, Hero e Leandro é um romance:
[...] acrescentamos agora, antes de mais, Museo, cujo epílio Hero e
Leandro conservamos. O Helenismo, como agora sabemos por um papiro
(nº 1783 P., v. supra pag. 762), já tinha dado forma poética a este
romance erótico com desenlace trágico (1995, p. 854).
Adrados postula que “desde o século III temos outro gênero mais: o romance,
caracterizado pela narração ficcional e por alguns outros traços: tema erótico e de
viagens, cultivo do suspense, final feliz” (1978, p. 165). De acordo com esta declaração,
poderíamos identificar um traço característico de Museu, o final infeliz, embora a
mitologia e a literatura antiga também conhecessem o fim trágico – como está
demonstrado em Teseu e Ariadne, por exemplo. Podemos relacionar tais características
da obra à cultura própria do período helenístico e pós-helenístico. Ainda segundo
Adrados, a partir do helenismo “a literatura deixa de ser nacional, para dirigir-se a todos
os gregos: seja para um público culto, seja para uma nova massa de leitores à que se
dedicavam gêneros como o romance, a biografia realista, a fábula, a paródia cínica, etc.”
(1978, p. 169)Poderíamos então, deixar de considerar Hero e Leandro um romance;
uma vez que o caracterizamos como poesia (epílio)? M. Glowinski19 acredita que
quanto mais diversificado é um gênero interiormente (ou seja, quanto maior a variedade
que abarca), mais ele é complexo em suas realizações textuais, já que supõe o
surgimento de estruturas diferentes. Para ele, o gênero não é algo puramente concreto,
nem puramente ficção intelectual ou idealismo do investigador; mas seria, na realidade,
um tipo de combinação de tudo isto, que determinaria um caráter sistemático. Ele
comenta que “a teoria dos gêneros se transforma então em uma teoria do discurso
literário”, onde os gêneros são os arquétipos do discurso, fixados pela tradição, e
18
LIDDELL, Henry George; SCOTT, Robert. A Greek English Lexicon. Claridon Press. Oxford: 1996
GLOWINSKI, Michael, “Los géneros literarios” en: ANGENOT, Marc; BESSÈRE, Jean; et al. Teoría
literaria, S. XXI, México, 1993.
19
RÓNAI: REVISTA DE ESTUDOS CLÁSSICOS E TRADUTÓRIOS – 2014 V.2 N.1 pp. 55-72 – UFJF – JUIZ DE FORA
62
dotados de características claramente identificáveis (1993, p. 96). Viñas cita David
Duff20 e consoante a ele define o fenômeno da hibridização como o processo pelo qual
dois ou mais gêneros se combinam para formar um novo, ou simplesmente aparecem
combinados em uma obra concreta. Observando o que dizem grandes estudiosos,
incluindo Immanuel Kant e Friedrich Schiller, ele acrescenta que “o gênio prescinde por
completo de qualquer orientação normativa para seguir unicamente o ditado de seu
próprio instinto e alcançar uma obra completamente original” (2005, p. 308). Tal
opinião é também compartilhada por Adrados, que explica que “quando falamos de
derivação, fazemo-lo em um sentido especial. A existência de alguns gêneros favorece a
criação de outros a partir de raízes populares e tradicionais” (1978, p. 163); já que “a
existência de desformalizações já anulam as diferenças entre antigos gêneros.” (1978, p.
171). Se houvéssemos, portanto, de classificar Hero e Leandro dentro de um gênero
literário específico, usaríamos as palavras de Viñas:
Não convém generalizar, pois o certo é que a teoria romântica – e
especialmente no caso concreto dos gêneros literários – apresenta várias
formulações, às vezes contraditórias entre si, de modo que a tentativa de
oferecer uma proposta unitária pecaria por excessivo simplismo (2005, p.
300).
O reencontro com a obra
Foi no Renascimento que a obra de Museu ressurgiu. Demétrius Dukas
inaugurou a imprensa grega de Alcalá com Hero e Leandro em 1514. O poema se
divulgou rapidamente por sua brevidade, facilidade e correção gramatical. Segundo
Gelzer, “ele foi muitas vezes utilizado como uma introdução à literatura grega” (1975,
p. 323). Há algumas divergências quanto às edições. K. Kost e Gelzer discordam quanto
à quantidade. De acordo com o segundo, temos 72 edições antes da Edição de C.
Dilthey (1975, p. 331)21. Há duas edições ‘princeps’:
20
Segundo citação de Viñas: DUFF, David, Modern Genre Theory. Londres. Longman: 2000, p. 14.
Em notas (1975, p. 331), Gelzer diz que Kost considera 52 edições e mais 81 impressões antes de
Dilthey.
21
RÓNAI: REVISTA DE ESTUDOS CLÁSSICOS E TRADUTÓRIOS – 2014 V.2 N.1 pp. 55-72 – UFJF – JUIZ DE FORA
63
Aldina (Ald.): impressa por Aldus Manutius, em Veneza, antes de 1º de
novembro de 1495 (com tradução latina feita por ele mesmo em cópias
posteriores, e adição de notas antes de 1497).
Laskarina (Lask.): impressa por Francesco de Alopa, em Florença, entre 1494 e
1496; provavelmente preparada por Janus Lascaris.
É certo afirmar que ambas as edições foram preparadas separadamente, ainda que
tenham surgido na mesma época. Aldina partiu do manuscrito B22 e Laskariana
apresenta características muito semelhantes aos manuscritos P23 e N24. Destes
manuscritos mais antigos, temos ainda F1
25
e V26. Todos eles apresentam algumas
notas. Há ainda os manuscritos preparados já no período humanístico, anônimos, dos
séculos XV e XVI: H, E, T27, A, G, I, J, L, Q, R, X28, C, F2 e F329. Contamos também
com alguns manuscritos compreendidos entre os séculos XV e XVIII: U, V0 (de V); K
(de F, F1, F2, F3); D, S, W (de Aldine); O, Y (da edição impressa de Dukas – 1514); Z
(XVIII, provavelmente da edição impressa de Portus – 1629).30
A base da classificação dos editores modernos das obras traduzidas e editadas de
Museu se dá a partir da citada edição de Dilthey. Enumeramos somente a partir desta
edição:
Carl Dilthey, Bonn 1874, com índex completo.
Ludwig v. Schwabe, Tübingen 1874, baseado na edição de Dilthey, com
algumas alterações apresentadas pelo próprio Dilthey em um artigo após a
publicação de sua edição. “De Musaeo Nonni imitatore líber”.
Arthur Ludwich, Bonn 1912, reimpresso em Berlim 1929. Apresenta introdução,
texto com variações e escólios.
22
Barroc. 50, Bodleian., Oxford, primeira metade do séc. X; com escólios.
Palatino. Gr. 43, Heidelberg, séc. XIV.
24
Neapolitan. II-D-4, bibl. Naz. Napoli, séc. XIV.
25
Estensis II-C-12, Modena, principio do séc. XIV (contém somente dos versos 250 ao 343 e
provavelmente é originado de B).
26
Vatican. Gr. 915, Roma, principio do século XIV.
27
H e E são do séc. XV e T, do séc XVI. São muito parecidos, mas não idênticos a Aldina.
28
A,G,I,J,L,Q,R,X (codices mutili) contêm apenas até o verso 245, com a omissão do verso 101. Todos
pertencem ao séc. XV, apresentando semelhanças com V.
29
(codices mutili) apresentam dos versos 1 ao 245, conectados com V. F 3 fragmento, somente os versos
246-249. Séc. XVI.
30
Todas as informações a respeito dos manuscritos foram extraídas de Gelzer. (pg. 340-3)
23
RÓNAI: REVISTA DE ESTUDOS CLÁSSICOS E TRADUTÓRIOS – 2014 V.2 N.1 pp. 55-72 – UFJF – JUIZ DE FORA
64
Enrica Malcovati, Milan 1947, com introdução, tradução italiana e notas.
Hans Färber, Munich 1961, com tradução alemã e breves notas críticas baseadas
em Ludwich e Malcovati.
Pierre Orsini, Paris 1968, com introdução, tradução francesa e notas.
Karlheinz Kost, Bonn 1971, com introdução, tradução alemã, comentários,
apêndice com biografia e lista de edições anteriores.
Thomas Gelzer, Londres 1975, com introdução, tradução inglesa e comentários a
partir das edições acima citadas.
E. Livrea (com a colaboração de P. Eleuteri), Leipzig 1982, biblioteca
Tauberiana. 31 32
Neil Hopkinson, Cambridge University Press, 1994.
Alguns detalhes do autor e da obra
Na obra de Museu, Hero e Leandro, está demonstrada a imitação de outros
autores, como por exemplo, Pseudo-Apolinario – o qual pode levá-lo, dentro do terreno
teológico, ao período de 460 a 470 d.C.33 –; Platão, os Hinos de Proclus, Homero,
Apolônio de Rodes, Licofron, Eurípides, Calímaco, Aristêneto, Ésquilo, Aquiles Tacio,
e outros. Entende-se, ademais, que ele faça claras alusões ao novo testamento.
Argumentos para isto são as comparações dos versos 138-9 (kaì olbí , hḕ téke mḗt r,
gastḗr, hḕ se lókheuse, makartát – Feliz aquele que te plantou, e feliz aquela que
concebeu, o bendito ventre que te carregou) com o texto de Lucas 11:2734; ou 183-4 (en
dè siōpễi érgon hó per teléei tis, enì triódoisin akoúei – E toda obra que em silêncio
alguém pratica, pelas encruzilhadas se ouve.) com Mateus 10:2635, Marcos 4:2236 e
31
Todas as edições acima, com exceção de Livrea e a do próprio Gelzer, foram citadas por ele em seu
trabalho, e todas elas serviram de referência para o autor, embora tenha se detido mais em Kost.
32
Além da edição de Livrea, Guido Paduano menciona outras duas que não constam no estudo de Gelzer:
E.H. Blankeney, Oxford 1935; e H. Ronge, München 1939. (1994, p. 69)
Museu. Ero e Leandro. Traduzione di Guido Paduano. Marsilio Editori. Venezia: 1994.
33
Cf. Thomas Gelzer em: MUSAEUS, Hero and Leander. (1975, p. 299)
34
“Bem-aventurada aquela que te concebeu e os seios que te amamentaram.” (Egéneto dè en t i légein
autòn taũta epárasá tis phōnḕ ek toũ ókhlou eĩpen aut i Makaría h koilía h bastásasá se kaì mastoì
hoùs ethḗlasas) (Bíblia. Português. Traduzida por João Ferreira de Almeida. Sociedade Bíblica do Brasil.
São Paulo:1993).
Obs.: As demais citações da Bíblia serão extraídas deste mesmo volume.
35
“Nada há encoberto que não venha a ser revelado; nem oculto que não venha a ser conhecido.” (oudèn
gár estin kekalymménon hò ouk apolalyphthḗsetai, kaì kryptòn hò ou gnōsthḗsetai.)
36
“Pois nada está oculto, senão para ser manifesto, nada se faz escondido, senão para ser revelado.” (ou
gàr éstin kryptòn eàn mḕ hína phanerōthễi, oudè egéneto apókryphon all’hína élth i eis phanerón.)
RÓNAI: REVISTA DE ESTUDOS CLÁSSICOS E TRADUTÓRIOS – 2014 V.2 N.1 pp. 55-72 – UFJF – JUIZ DE FORA
65
Lucas 8:1737. Por tais alusões, a grande maioria dos pesquisadores crê que Museu era
cristão; assunto que não abordaremos aqui por não vermos, na realidade, a relevância
desse dado, uma vez que a menção de algumas palavras em situações semelhantes às
citadas não traz obviedade alguma quanto a sua fé, e nem o conhecimento desse fato
seria relevante dentro de uma análise literária de sua obra. As peculiaridades do estilo
de Museu deixam clara a influência de Homero e de Platão. Para Gelzer (1975, p. 291):
Era fácil prever que ele estava familiarizado com as interpretações de
Homero e Platão, e de como foram compreendidas e empregadas no
neoplatonismo tardio; e, portanto, que suas alusões e que sua mistura
significativa deste par de autoridades, acumulou mais do que um
empréstimo literário meramente externo.
Apesar de se considerar o epílio como uma mera imitação da poesia épica de
Homero, e apesar de se admitir que Museu tenha extraído inúmeras palavras e versos de
outros autores, Sink38 aponta que as diferenças de sua obra são bastante significativas,
inclusive na estrutura do hexâmetro e nas sílabas tônicas, algo que começa a ser sentido
com o surgimento de um novo espírito na literatura grega.
Além de mudanças na linguagem e estrutura do hexâmetro - por
exemplo, a influência de um novo sotaque está começando a ser sentida um novo espírito se infiltrou na literatura grega. A simplicidade ingênua
do antigo épico foi perdida. (1920, p. 5)
Sobre o tratamento do verso, parece indiscutível que Museu tenha representado
significativamente a escola de Nono, cuja reforma está especialmente vinculada a uma
tendência poética que impõe ao hexâmetro um novo rigor e novas leis. Quinto de
Esmirna já havia avançado nessas modificações, mas Nono, indiscutivelmente, fez com
que a aura que já se manifestava entre os poetas, alcançasse o ápice, com seus retoques
que não se limitavam à métrica, mas também embarcavam o poeta em novos ideais39 e
na modificação do sentido de palavras e expressões homéricas, além de lhe impor
“Nada há oculto, que não haja de manifestar-se, nem escondido, que não venha a ser conhecido e
revelado.” (ou gàr éstin kryptòn hò ou phanerón genḗsetai, oudè apókruphon hò ou mḕ gnōsthễi kaì eis
phaneròn élth i.)
38
Musaeus. Hero £ Leander. Translated by E. E. Sink. Methuen & CO. Ltd. 36 Essex Street W. C.
London: 1920
39
Como por exemplo, a valorização de Dionísio frente à onda cristã, qualificando-o como o salvador.
Sobre a questão religiosa, se diz que nono tenha se convertido ao cristianismo no final de sua vida.
37
RÓNAI: REVISTA DE ESTUDOS CLÁSSICOS E TRADUTÓRIOS – 2014 V.2 N.1 pp. 55-72 – UFJF – JUIZ DE FORA
66
algumas restrições, como por exemplo, a restrição da elisão, ou o uso noniano do artigo
determinado, contra o uso homérico40. Alsina diz que
Efetivamente, o poema Hero e Leandro, a pesar de seus defeitos, contém
acertos irrefutáveis. E isso, sobretudo, por que seu autor soube evitar com
braço forte os principais defeitos da escola, coisa que conseguiu não
seguindo suas rédeas de modo cego. (…) A obra tem muitos defeitos de
composição, o que indica que talvez seja um exercício retórico. Mas
esses defeitos são compensados em muito pelos indiscutíveis ganhos do
pequeno poema, que pode qualificar-se, como fez Kochly, de a última
rosa do jardim da poesia grega. (1972, p. 162-3)
No metro, Museu era o mais devotado seguidor de Nono, embora, ainda assim,
não houvesse nenhum absolutismo quanto a Homero, especialmente pela evolução da
língua grega. Como diz A. Cameron41
Como é sabido, o caráter da língua grega mudou durante os primeiros
séculos da era cristã, e no século IV já não era pronunciada de acordo
com o sotaque camponês, mas com um acento tão pesado que as
quantidades silábicas foram totalmente obscurecidas. Quando um
bizantino lê versos hexâmetros, portanto, (um metro puramente
quantitativo) eles não soam totalmente como verso. (1961, p. 482)
A respeito do uso lexical, apenas ressaltamos o fato de que se trata de uma
língua completamente artificial que corresponde à literatura da época e que mescla, a
partir de Nono, outros poetas.
As figuras estilísticas e retóricas que marcam o estilo de Museu são
principalmente as aliterações, assonâncias, anáforas e hipérbatos. Os quiasmas também
são bem explorados, assim como as antíteses, assíndetos e o encavalamento. Em alguns
trechos o poema apresenta rima, e alguns parênteses em frases bastante longas. Gelzer
diz que “A construção e inteligibilidade de uma frase muitas vezes são sacrificadas para
a decoração e os detalhes.” (1975, p. 315)
Além do que foi dito, cabe acrescentar que o poema está dividido de forma
transparente e lógica, segundo Gelzer (1975, p. 308), em um elaborado proêmio de duas
40
Sobre as características da escola de nono J. Alsina faz uma concisa, mas esclarecedora elucidação. Cf.
ALSINA, José. La épica griega tardía. (1972, pp. 155-61)
41
CAMERON, Alan. Wandering poets: A literary Movement in Byzantine Egypt, Historia 14. [S.L]
1965. p. 470-509.
RÓNAI: REVISTA DE ESTUDOS CLÁSSICOS E TRADUTÓRIOS – 2014 V.2 N.1 pp. 55-72 – UFJF – JUIZ DE FORA
67
partes (1-15, 16-27), seguido pelo desenvolvimento da história, dividido em três partes,
das quais, mesmo sem apresentar uma marca bastante clara ou uma fórmula, cada uma
apresenta sua introdução e conclusão:
28-132 = com introdução até 54 e conclusão a partir de 109;
133-290 = sem introdução delimitada e conclusão a partir de 221;
289-344 = com introdução de 291 a 299 e conclusão a partir de 342.
Na primeira parte do proêmio, é retomado o tema do lýkhnos, que ocupou muito a
imaginação dos poetas antigos, com o qual se estabelecia paralelismos com os astros e
os deuses, sendo todos, testemunhas dos amores ocultos42; temos a invocação à Musa43
e a explanação do tema da tocha que se presta de testemunha dos amores, além da
invocação a Zeus, o que traz, ainda, a relação de paternidade e marca a autoridade do
epílio44. Na segunda parte, são apresentados as personagens principais – Hero e
Leandro, a sacerdotisa e o nadador valente – e as cidades onde vivem. A partir do verso
23, há um apelo, no qual, segundo Hopkinson (1994, p. 144), o poeta convida o leitor a
incluir-se no cenário da história. Guido Paduano (1994, p. 54) considera que estes
versos são um aval documental proposto pelo poeta que encontra na realidade
geográfica um bom material ficcional para criar o cenário essencial do epílio.
Acreditamos que isso confirmaria a veracidade do canto narrado, conferindo autoridade
ao poeta, uma vez que sua atividade é vista como intelectual e individual. Este verso se
relaciona com o primeiro, com a invocação à Musa, agora, convidando o leitor a
certificar-se de que o que é narrado é também verídico.
Paduano diz que “Il proemio coglie felicemente – anche se com la ricca e affannosa ridondanza che è
caratteristica di Museo – la centralità della tematica della luce” (1994, p. 53). Também Thomas Gelzer diz
que “the lamp as witness of secret Love is a long-standing motif in Love-stories” (1975, p. 344). Nos
versos 1-2 de A revolução das mulheres, Aristófanes exalta a lâmpada, a luz noturna que é cúmplice dos
segredos humanos ( lampòn ómma toũ trokh látou lýkhnou kállist’ en eustókhoisin ez t ménon:). Os
epigramas gregos estão repletos de alusões à lâmpada, à luz que guia na escuridão noturna, num claro
paralelismo à própria lua e aos astros, que dirigem os navegantes. Seguindo a tradição épica, Museu
invoca a Musa tal qual se vê nos poemas homéricos: ándra moi énnepe, moũsa, (Odisseia); mễnin áeide
Theá (Ilíada).
43
Para Guido Paduano (1994, p. 53) é injustificável a possibilidade de que a palavra Theá esteja se
referindo à deusa e não às musas, embora Hero seja sacerdotisa de Afrodite.
44
Whitman (1975, p. 346) lembra a abordagem do tema helenístico do katast rismós, no qual alguém ou
algo poderia se tornar uma estrela. A tocha se torna uma estrela, e Zeus é responsável pela transformação.
42
RÓNAI: REVISTA DE ESTUDOS CLÁSSICOS E TRADUTÓRIOS – 2014 V.2 N.1 pp. 55-72 – UFJF – JUIZ DE FORA
68
No desenvolvimento da narrativa, temos, como foi dito, três partes divididas e cada
qual com sua conclusão. Na primeira delas, o início se dá com uma pergunta a respeito
de como ambos se apaixonaram (Mas a Leandro, que palácios em Abido ocupou, donde
veio por Hero o anelo, que também a ela co’anelo atou?). Segue-se uma descrição dos
costumes de Hero; da festa em honra de Afrodite, na qual se conheceram; do delicado
aspecto físico da jovem; dos elogios que recebia dos rapazes que acorriam à celebração;
do momento em que Leandro a viu pela primeira vez e suas emoções; da percepção de
Hero do sentimento que invadiu o jovem; e do anoitecer (a Aurora baixava a luz
alçando ao poente – v. 110), que dá passo à conclusão do percurso com a abordagem e o
contato físico, e o posterior reconhecimento, por parte de Leandro, de sua persuasão
sobre a moça (reconheceu os traços das donzelas convencidas – v. 130). A segunda
parte do desenvolvimento da narrativa é iniciada com a exposição dos argumentos de
Leandro e de sua súplica; com a demonstração do pudor de Hero e sua impossibilidade
de recuo diante do herói e diante do ‘espigão doce-amargo dos Amores’ (v. 166).
Segue-se uma apresentação formal de ambos de dos lugares onde vivem; a declaração
amorosa de Leandro e sua disposição em enfrentar o mar para tê-la em seus braços e,
finalmente, temos a conclusão desta etapa, a partir do verso 221, com o consentimento
dos apaixonados na boda clandestina e a descrição da ansiedade pela presença do outro
e descrição das noites que passaram juntos. A terceira parte se inicia com a declaração
de que ‘vigoraram por pouco tempo, não foi por muito que desfrutaram-se acordados os
errantes himeneus’ (v. 291-292). Já é anunciado o fim do enlace, o inverno e a ausência
dos deuses que até então socorriam os amantes. O desejo e o destino compeliram Hero,
que enfeitiçada pelas Moiras fez brilhar a tocha em plena tormenta invernal45. A morte
de Leandro é amplamente narrada e encontra eco na aflição de Hero, na espera
interminável da jovem. Os dois últimos versos dão o desfecho da narrativa: ‘E assim
Hero faleceu com o marido morto. E desfrutaram-se um do outro mesmo na derradeira
ruína’46. A partir do verso 308, quando fica indicado que a tocha acesa, não era a tocha
45
Gelzer (1975, p. 384) comenta que as três Moiras, Cloto, Láquesis e Átropos, de acordo com Platão
(República 617B), são filhas de Ananque. A tocha do casamento se torna a tocha da morte, um motivo
recorrente na literatura erótica. As Moiras são as deusas que apontam a hora da morte. Na Teogonia, de
Hesíodo, elas são descritas como filhas da Noite. Há outra versão que diz que são filhas de Zeus e Têmis.
Cloto entrega o fio de vida ao homem; Láquesis decide a extensão do fio; e Átropos o corta quando chega
a hora da morte. (Cf. MARCH, Jenny. Cassel’s Dictionary of Classical Mythology, p. 320). Elas estão
relacionadas ao destino, à hora fatal.
RÓNAI: REVISTA DE ESTUDOS CLÁSSICOS E TRADUTÓRIOS – 2014 V.2 N.1 pp. 55-72 – UFJF – JUIZ DE FORA
69
de Eros, mas a das Moiras, o Amor perde completamente a força dentro do poema.
Ficamos presos somente à inconsequência dos amantes – de Hero por acender a tocha,
de Leandro por enfrentar o mar – e à tragédia que resulta dessa loucura. Parece-nos mais
espetacular, a forma como o poeta manipulou toda a cena sem deixar-nos perceber a
morte de Hero. No proêmio temos declarado que o amor é desafortunado, que o fim é
trágico, e podemos já nas primeiras linhas alumbrar a morte de Leandro. Contudo, não
percebemos o destino de Hero. Quando nos versos 340-1 acontece o suicídio de Hero, é
inevitável certo choque no leitor, especialmente porque, sabendo de antemão o
desenlace da história, acabamos esperando uma descrição mais pormenorizada, tal como
acontece com Leandro. A pouca informação é tão precisa que dispensa mais palavras, e,
certamente, mais informações diminuiriam o impacto causado por apenas dois versos.
É somente, então, no último verso que o Amor reassume a primazia do desenrolar do
romance.
ABSTRACT: This article addresses some points about the biography of Musaeus, the
Grammarian, and discusses the literary genre of his work, the rediscovery of Hero and
Leander after the Middle Ages with the emergence of the printing press, their editions
and, finally, brings some style details and observations about the development of the
narrative.
Keywords: Museum, Hero and Leander, Literary Genre
46
Segundo Guido Paduano (1994, p.23), a associação do amor à morte se apresenta como um paradoxal
prolongamento da felicidade existencial. Hopkinson (1994, p. 185) comenta que a idéia do ‘morreram
juntos’ parece comum nos epigramas funerais.
RÓNAI: REVISTA DE ESTUDOS CLÁSSICOS E TRADUTÓRIOS – 2014 V.2 N.1 pp. 55-72 – UFJF – JUIZ DE FORA
70
Referências Bibliográficas:
ADRADOS, Francisco R. Sobre los géneros literarios en la literatura griega. Anuario
de la Sociedad Española de Literatura General y Comparada. Anuario I,
1978 / Sociedad Española de Literatura General y Comparada (Madrid) Reproducción
digital de la edición de Madrid, 1978 – Edição digital: Alicante
ALSINA, José Clota. Panorama de la épica griega tardía. En Estudios Clásicos, nº 65,
tomo 16, 1972. (pp. 139-167)
Bíblia. Português. Traduzida por João Ferreira de Almeida. Sociedade Bíblica do Brasil.
São Paulo:1993
BRANDÃO, Jacyntho Lins. A invenção do romance. Brasilia. Editora Universidade de
Brasilia: 2005.
CAETANO, Andreza. Hero e Leandro, de Museu: Uma lenda e uma arte que
ultrapassam o tempo. Rónai: Revista de Estudos Clássicos e Tradutórios. v. 1, n. 2.
UFJF: Juiz de Fora, 2013. (pp. 18 – 34)
CAMERON, Alan. Wandering poets: A literary Movement in Byzantine Egypt,
Historia 14. [S.L] 1965. (pp. 470-509).
GLOWINSKI, Michal. Los estilos de recepción. Criterios, La Habana, nº 5-12, enerodiciembre 1984, (Trad. de Desiderio Navarro).
__________________. “Los géneros literarios” en: ANGENOT, Marc, BESSÈRE,
Jean, et al., Teoría literaria, S. XXI, México, 1993
HÄGG, Tomas. The Novel in Antiquity. University of California Press, Berkeley and
Los Angeles: 1983
HESÍODO, Teogonia: A origem dos deuses. Trad. JAA Torrano. Editora Iluminuras.
São Paulo: 1995
HOMERO. Odisseia. Trad. Manuel Odorico Mendes. Martin Claret. São Paulo: 2002.
________. Ilíada. Trad. Emilio Crespo. Editorial Gredos. Madri:1982.
HOPKINSON, Neil. Greek poetry: of the imperial period. An anthology. Cambridge
University Press. 1994.
LESKY, Albin. História da literatura grega. Trad. Manuel Losa. Fundação Calouste
Gulbenkian. Lisboa: 1995.
LIDDELL, Henry George; SCOTT, Robert. A Greek English Lexicon. Claridon Press.
Oxford: 1996
LLOVET, Jordi; CANER, Robert; CATELLI, Nora; MARTÍ, Antoni; VIÑAS, David.
Teoría Literaria y Literatura Comparada. Ed. Ariel. Barcelona:2005 (pp. 263-329)
RÓNAI: REVISTA DE ESTUDOS CLÁSSICOS E TRADUTÓRIOS – 2014 V.2 N.1 pp. 55-72 – UFJF – JUIZ DE FORA
71
MARCH, Jenny. Cassel’s Dictionary of Classical Mythology, Cassell & Co. London:
2001
MUSAEUS, Hero and Leander (1975). Harvard University press. Cambridge,
Massachusetts. London, England. Edited by Thomas Gelzer. Translated by Cedric
Whitman. 1975
___________. Hero £ Leander. Translated by E. E. Sink. Methuen & CO. Ltd. 36 Essex
Street W. C. London: 1920
___________. Ero e Leandro. Traduzione di Guido Paduano. Marsilio Editori. Venezia:
1994.
VILLARRUBIA, Antonio. Notas sobre El poema Hero y Leandro de Museo. Habis 31.
Universidad de Sevilla. 200 (pp. 365-401)
Data de envio: 31 de agosto de 2014
Data de aprovação: 7 de setembro de 2014
Data de publicação: 15 de setembro de 2014
RÓNAI: REVISTA DE ESTUDOS CLÁSSICOS E TRADUTÓRIOS – 2014 V.2 N.1 pp. 55-72 – UFJF – JUIZ DE FORA
72