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Aletria, Belo Horizonte, v. 29, n. 2, p. 63-78, 2019 A escravidão presente na literatura afro-americana: três séculos observados Slavery in African American Literature: Three Centuries Observed Débora Spacini Nakanishi Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), São José do Rio Preto, São Paulo / Brasil debora.nakanishi@gmail.com Cláudia Maria Ceneviva Nigro Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), São José do Rio Preto, São Paulo / Brasil cmcnigro@gmail.com Resumo: Este trabalho pretende acompanhar o desenvolvimento das narrativas e neonarrativas de escravos, contemplando três obras desses gêneros, uma de cada século: Doze anos de escravidão (1853) de Solomon Northup; Amada (1987) de Toni Morrison; e The Underground Railroad: os caminhos para a liberdade (2017) de Colson Whitehead. Essas narrativas têm como pano de fundo a vida e a jornada de escravos em busca de liberdade e humanidade, sendo produzidas na época ou posteriormente à vigência do sistema escravagista. Para realizar o trabalho, apoiamo-nos em autores como Gates Jr. e McKay (2004), Dubey (2010), em ensaios da própria Morrison (1988) e em entrevista com Whitehead para o The Guardian (2017). Palavras-chave: narrativa de escravos; neonarrativas de escravos; Doze anos de escravidão; Amada; The Underground Railroad. Abstract: This work intends to follow the development of the slave narratives and neoslave narratives, contemplating three works of these genres, one of each century, being 12 Years of Slavery (1853), by Solomon Northup; Beloved (1987), by Toni Morrison; eISSN: 2317-2096 DOI: 10.17851/2317-2096.29.2.63-78 64 Aletria, Belo Horizonte, v. 29, n. 2, p. 63-78, 2019 and The Underground Railroad, by Colson Whitehead (2017). These narratives have, as background, the lives of slaves and their journeys in search of freedom and humanity, been produced in the time of the slave system or later. We are based on authors such as Gates Jr. and McKay (2004) and Dubey (2010), as well as in Morrison’s own essay (1988) and na interview with Whitehead for The Guardian (2017). Keywords: slave narrative; neo-slave narrative; 12 Years a Slave; Beloved; The Underground Railroad. Introdução Ainda na época da escravidão estadunidense, surgem textos conhecidos como narrativas de escravos. São, em sua maioria, biografias de escravos que, de alguma forma, conseguem chegar ao norte do país e à liberdade. Essas narrativas tornam-se um instrumento usado pelo movimento abolicionista para sensibilizar as pessoas alienadas aos horrores cometidos nas plantações sulistas. Ao contarem suas histórias, os escravos têm a chance e o poder de mostrarem-se humanos em uma sociedade que os desumaniza constantemente. A circulação das narrativas de escravos era considerável e, apesar de os Estados Unidos possuírem um extenso acervo dessas obras, ainda há muito a ser estudado. De acordo com Roy, “as narrativas de escravos, como pensamos hoje, são essencialmente uma construção moderna. A frase ‘narrativa de escravos’ em si tinha pouco valor na América anterior à Guerra Civil”1. Ou seja, a narrativa de escravo é uma categorização recente nos estudos sobre literatura afro-americana. No fim da Guerra Civil, as narrativas de escravos “desaparecem”. Isso porque, durante os anos da Reconstrução, os ex-escravos são vistos como excedente humano na sociedade estadunidense, que procura restaurar-se enquanto país e povo. Somente nas décadas de 1950 e 1960 esses textos passam a ser objeto de estudos nas universidades e alguns ganham novas edições. Por outro lado, não é possível a escrita de novos textos, uma vez que as narrativas de escravos são obras produzidas na vigência do sistema 1 “The slave narrative as we think of it today is essentially a modern construct; the phrase ‘slave narrative’ itself had little currency in antebellum America.” (ROY. Cheap Editions, Little Books, and Handsome Duodecimos: A Book History Approach to Antebellum Slave Narratives, p. 70, tradução nossa). Aletria, Belo Horizonte, v. 29, n. 2, p. 63-78, 2019 65 escravagista. Durante os anos do Movimento dos Direitos Civis, há uma grande produção artística dos afro-americanos, incluindo as “Neo-slave Narratives”. Esses romances são ambientados no período escravagista, com algumas influências das narrativas de escravos, mas distanciando-se delas em diversos aspectos. Essas obras inspiram-se naquelas, mas partem de uma perspectiva mais moderna. Muitos romances, por exemplo, possuem elementos sobrenaturais e podem ser comparados ao realismo fantástico. As neonarrativas, diferentes das narrativas de escravos, requerem interpretação por parte do leitor. Os textos do século XIX tentam ser um relato preciso e sóbrio da vida escrava, sendo mais informativos, pois têm como função convencer o leitor a juntar-se à causa abolicionista. Já os textos do século XX em diante procuram trazer elementos como fantasmas, exigindo reflexão, interpretação e, finalmente, uma participação maior do leitor enquanto leitor e não necessariamente como ativista. Propomos, para este trabalho, refletir sobre a literatura ambientada no período escravagista, partindo das narrativas de escravos, com a autobiografia de Solomon Northup, Doze anos de escravidão (1853), passando pelo nascimento das neonarrativas de escravos, com Amada (1978) de Toni Morrison e encerrando no status atual das neonarrativas de escravos, com The Underground Railroad: os caminhos para a liberdade (2015) de Colson Whitehead. Procuramos fazer um trabalho de contextualização de cada uma dessas obras, a fim de explicitar como mudanças na sociedade norte-americana contribuíram para a transformação e a evolução do gênero, que, ao nosso parecer, ainda tem um importante trabalho de conscientização, pois: Enquanto alguns desses textos já inspiraram um corpo rico e esclarecedor de escritos críticos, muito pouco foi escrito sobre a maioria deles. Além disso, há todos os indícios de que os escritores negros continuarão a lutar com o legado da escravidão na cultura contemporânea.2 2 “While some of these texts have already inspired a rich and illuminating body of critical writing, very little has been written about most of them. Moreover, there is every indication that black writers will continue to wrestle with the legacy of slavery in contemporary culture”. (SMITH. Neo-slave Narratives, p. 183, tradução nossa). 66 Aletria, Belo Horizonte, v. 29, n. 2, p. 63-78, 2019 Doze anos de escravidão: uma narrativa de escravo do século XIX Solomon Northup é um ex-escravo que, nascido livre em Nova York, aos 33 anos é sequestrado e vendido para o sul dos Estados Unidos, uma das regiões onde a escravidão é mais sombria. Quando resgatado, Solomon volta a Nova York e logo é convidado pela editora comercial Derby & Miller a contar sua história. Vale ressaltar que a editora não possui nenhum vínculo com o círculo abolicionista, mas demonstra interesse pelas narrativas de escravos após o sucesso de A Cabana do Pai Tomás (1852), de Harriet Beecher Stowe. Apesar de ser editado e distribuído de forma um pouco diferente da maior parte das narrativas de escravos, Doze anos de escravidão ainda segue o padrão das demais obras do gênero. Começamos apontando a existência de editores brancos que, muitas vezes, são os responsáveis por colocar a história do ex-escravo no papel: Tipicamente, a narrativa de escravos antes da Guerra Civil carregava uma mensagem preta dentro de um envelope branco. Prefácios (e às vezes apêndices) escritos pelos brancos atestavam a confiabilidade e o bom caráter do narrador e chamavam atenção para o que a narrativa revelaria sobre as abominações morais da escravidão. A contribuição do ex-escravo ao texto centrava-se no rito de passagem da escravidão no sul para a liberdade no norte. Normalmente, o escravo narrador retratava a escravidão como uma condição de extrema privação física, intelectual, emocional e espiritual, um tipo de inferno na terra. Precipitando a decisão do narrador de escapar acontece algum tipo de crise pessoal, como a venda de um ente querido ou uma noite escura da alma em que a esperança compete com desespero pelo espírito do escravo. Impulsionado pela fé em Deus e um compromisso com a liberdade e a dignidade humana comparável (a narrativa de escravos frequentemente enfatiza) à dos fundadores da América, o escravo empreendeu uma árdua busca pela liberdade que culminou em sua chegada ao norte. Em muitas narrativas anteriores à Guerra Civil, a conquista da liberdade foi sinalizada não apenas alcançando os estados Aletria, Belo Horizonte, v. 29, n. 2, p. 63-78, 2019 67 livres, mas renomeando a si mesmo e dedicando o futuro ao ativismo antiescravista.3 Além de asseverar os acontecimentos contados, o editor branco tem a função de manter a estrutura narrativa do gênero. Podemos citar como exemplo a predominância do pensamento iluminista da época. O raciocínio lógico é diretamente associado à humanidade. Dessa forma, o escravo mostra-se humano ao demonstrar sua capacidade de raciocínio. Além disso, mesmo contando com a ajuda do editor, muitos dos ex-escravos, cujas histórias são contadas nestas narrativas, afirmam a importância de terem sido alfabetizados em algum momento, justamente por essa associação criada pelo pensamento iluminista entre saber ler e escrever e o raciocínio lógico. Ter acesso à leitura e à escrita funciona como uma espécie de empoderamento, permitindo ao ex-escravo contar sua história: No entanto, é difícil compreender a profunda importância que o domínio da alfabetização tinha para o escravo. Quase todas as narrativas referem-se à alfabetização de três maneiras: relatam vividamente cenas de instrução, nas quais o narrador aprendeu a ler e depois a escrever; enfatizam admoestações polêmicas contra estatutos que proíbem a alfabetização entre escravos negros; e são prefaciados com uma apologia irônica, na qual o autor 3 “Typically the antebellum slave narrative carried a black message inside a white envelope. Prefatory (and sometimes appended) matter by whites attested to the reliability and good character of the narrator and called attention to what the narrative would reveal about the moral abominations of slavery. The former slave’s contribution to the text centered on his or her rite of passage from slavery in the South to freedom in the North. Usually the antebellum slave narrator portrayed slavery as a condition of extreme physical, intellectual, emotional, and spiritual deprivation, a kind of hell on earth. Precipitating the narrator’s decision to escape was some sort of personal crisis, such as the sale of a loved one or a dark night of the soul in which hope contends with despair for the spirit of the slave. Impelled by faith in God and a commitment to liberty and human dignity comparable (the slave narrative often stressed) to that of America’s Founding Fathers, the slave undertook an arduous quest for freedom that climaxed in his or her arrival in the North. In many antebellum narratives, the attainment of freedom was signaled not simply by reaching the free states but by renaming oneself and dedicating one’s future to antislavery activism”. (GATES Jr.; McKAY. The Norton Anthology of African American Literature, p. 158, tradução nossa). 68 Aletria, Belo Horizonte, v. 29, n. 2, p. 63-78, 2019 negro transforma a convenção da confissão do autor pelas faltas de seu conto, ao entrelaçar nessa declaração uma denúncia estridente daquele sistema que limitava o desenvolvimento de suas capacidades.4 Os relatos são sóbrios, sem floreios, pois mostrar vestígios de imaginação comprometeria a credibilidade dos fatos. Os temas abordados também são recorrentes, visando sempre sensibilizar o leitor com episódios retratados como fatos universais no sistema escravagista: Muitas das preocupações temáticas do trabalho (e, na verdade, do gênero) estão implícitas, mas ousadamente aparentes na entrega lacônica do narrador: o egoísmo dos proprietários de escravos, a perda da agência afroamericana (sentimentalizada na figura da criança) e a imoralidade de um sistema capitalista que mercantiliza os valores de inteligência e lealdade desta forma.5 Tomemos como exemplo uma passagem de Doze anos de escravidão, em que Solomon descreve um episódio ocorrido na casa de leilão, onde os escravos são examinados como gado e os interesses monetários sobrepujam a vida do negro: O homem observou que não precisava de alguém tão jovem – que não lhe daria lucro, mas, já que a mãe era tão apegada a ela, preferia pagar um preço razoável pelas duas a vê-las separadas. No entanto Freeman não deu ouvidos “Nevertheless, it is difficult for us to understand the profound importance that the mastery of literacy had for the slave. Almost all of the narratives refer to literacy in three ways: they recount vividly scenes of instruction in which the narrator learned to read and then to write; they underscore polemical admonishments against statutes forbidding literacy training among black slaves; and they are prefaced by ironic apologia, in which the black author transforms the convention of the author’s confession of the faults of his tale, by interweaving into this statement strident denunciation of that system that limited the development of his capacities”. (GATES Jr.; McKAY. The Norton Anthology of African American Literature, p.xxviii, tradução nossa). 5 “Much of the work’s (and, indeed, the genre’s) thematic concerns are implicitly yet boldly apparent in the narrator’s laconic delivery: the selfishness of slave owners, the loss of African American agency (sentimentalized in the figure of the child), and the immorality of a capitalist system that commodifies the values of intelligence and loyalty in this way”. (GOULD. The Economics of the Slave Narrative, p. 94, tradução nossa). 4 Aletria, Belo Horizonte, v. 29, n. 2, p. 63-78, 2019 69 a essa proposta bastante humana. Por nada no mundo a venderia naquele momento. Lucraria montes e mais montes de dinheiro com ela, disse, quando crescesse alguns anos mais. Havia muitos homens em New Orleans que dariam milhares de dólares para ter o espécime incomum, belo e agradável que Emily se tornaria. Não, não, ele não a venderia naquele momento. Ela era uma beleza – uma pintura – uma boneca – um puro-sangue – não um de seus crioulos de lábios grossos e cabeças pequenas, colhedores de algodão – nem por cima de seu cadáver.6 Como podemos perceber, há uma clara tentativa de sensibilizar o leitor ao retratar uma criança sendo separada da mãe com o intuito de ser vendida posteriormente para algum homem branco rico. Entretanto, a passagem continua sendo essencialmente descritiva. O leitor não precisa acionar nenhuma ferramenta de interpretação para compreender o significado. De forma direta, explicita que a escravidão é um horror a ser abolido. Como veremos a seguir, com as neonarrativas de escravos, essa é a maior mudança pela qual o gênero passa. A escravidão, oficialmente, já faz parte do passado. Não é preciso mais lutar contra ela, mas sim contra o seu legado. As neonarrativas de escravos, portanto, precisam desafiar o fantasma que ainda assombra a sociedade estadunidense. Amada: a consolidação da neonarrativa de escravos no século XX Durante os anos do Movimento dos Direitos Civis, muito se debate sobre a voz negra: como o negro deve ser retratado em uma sociedade que não o aceita como um cidadão, no significado pleno do termo. Muito, até então, tem sido escrito sobre a história e vida dos afro-americanos, mas quase sempre partindo da perspectiva da hegemonia branca. Foi-se construída uma História não contemplando a perspectiva da comunidade negra. Artistas e escritores negros tentam desconstruir essa História por meio da literatura e de outros movimentos artísticos. Ao fazê-lo, eles também usam um caminho inverso do empregado nas narrativas de escravos, em que, como já discutimos, o pensamento iluminista foi vital: “Além de minar a racionalidade iluminista, muitos romancistas da escravidão do final do século XX desenvolvem uma contracultura da 6 NORTHUP. Doze anos de escravidão, p. 72-3. 70 Aletria, Belo Horizonte, v. 29, n. 2, p. 63-78, 2019 modernidade ao reivindicar formas alternativas de crença suprimidas pelo legado moderno”7. Em 1987, Toni Morrison lança Amada, um romance ambientado na época do sistema escravagista. É importante mencionar que esta não é a primeira neonarrativa de escravos, visto que algumas obras anteriores abrem o caminho para Morrison. No entanto, Amada é um marco: sucesso de vendas e de boas críticas, consolidando o gênero na literatura afroamericana. A escritora afirma ser uma das motivações para desenvolver esta história o desejo de não permitir que a escravidão fosse contada pela História, como algo pertencente apenas ao passado: A convicção de que a escravidão ainda não é uma questão de história está por trás dos vários dispositivos de ruptura de tempo encontrados nos romances de escravidão pós-1970, incluindo rememoração, viagem no tempo, flashbacks, flash-forwards e possessão.8 Para combater a ideia de que a escravidão foi superada, as neonarrativas de escravos apresentam ferramentas que colaboram para a renovação do tema, nem de longe esgotado pelas narrativas de escravos. Elementos sobrenaturais, viagens no tempo, entre outros, são usados em diversas obras do gênero. Além disso, a estrutura do texto não precisa ser mais rigidamente cronológica, permitindo uma manipulação do tempo e do ritmo da narrativa. No caso de Amada temos, no começo da história, a presença de uma bebê fantasma assombrando a casa de Sethe, uma exescrava. Os elementos sobrenaturais são tratados com certa normalidade nas neonarrativas de escravos. A família de Sethe incomoda-se com a bebê fantasma, mas sua existência jamais é contestada. O começo do romance de Morrison pode parecer difícil de entender: tempos narrativos misturam-se e acontecimentos não são explicados. Há um desafio consciente da escritora ao leitor: 7 “In addition to undermining Enlightment rationality, many late twentieth-century novelists of slavery develop a counter-culture modernity by reclaiming alternative forms of belief suppressed by the modern legacy”. (DUBEY. Neo-slave Narratives, p. 342, tradução nossa). 8 “The conviction that slavery is not yet a matter of history lies behind the various time-rupturing devices found in post-1970s novels of slavery, including rememory, time travel, flashbacks, flash-forwards, and possession”. (DUBEY. Neo-slave Narratives, p. 344, tradução nossa). Aletria, Belo Horizonte, v. 29, n. 2, p. 63-78, 2019 71 Resolvi aceitar qualquer que seja o risco de confrontar o leitor com o que deve ser imediatamente incompreensível naquela sentença simples, declarativa e autoritária: o risco de perturbá-lo ou perturbá-la. Porque a abertura in-mediares com a qual estou tão comprometida é excessivamente exigente. É abrupta e deveria ser assim. Nenhum informante nativo aqui. O leitor é arrebatado, arrancado, jogado em um ambiente completamente estranho, e eu o quero como o primeiro golpe da experiência compartilhada que pode ser possível entre o leitor e a população do romance. Arrancado assim como os escravos estavam de um lugar para outro, de qualquer lugar para outro, sem preparação e sem defesa.9 Morrison deseja colocar o leitor em uma posição desconfortável, causando-lhe estranhamento. Não conseguimos compreender o que ou quem é a bebê fantasma. Aos poucos, o narrador vai revelando a história de Sethe e o leitor é informado do acontecimento central da narrativa, em que ela corta a garganta de sua bebê quando, em um momento de desespero, se vê encurralada por caçadores de escravos fugidos. Sethe prefere ver os filhos mortos a voltarem para a escravidão. Finalmente, o leitor pode começar a fazer associações entre os fatos e assume ser a bebê fantasma a filha assassinada de Sethe. Mais adiante, a bebê fantasma é expulsa da casa por Paul D, e logo uma estranha moça aparece. Com comportamentos de bebê, o leitor entende que Amada, como é chamada, é a encarnação do fantasma. Sethe rapidamente é seduzida por essa segunda chance: 9 “Whatever the risk of confronting the reader with what must be immediately incomprehensible in that simple, declarative, authoritative sentence, the risk of unsettling him or her, I determined to take it. Because the in-media-res opening that I am so committed to is here excessively demanding. It is abrupt, and should pear so. No native informant here. The reader is snatched, yanked, thrown into na environment completely foreign, and I want it as the first stroke of the shared experience that might be possible between the reader and the novel’s population. Snatched just as the slaves were from one place to another, from any place to another, without preparation and without defense”. (MORRISON. Unspeakable Things Unspoken: The Afro-American Presence in American Literature, p. 160-161, tradução nossa). 72 Aletria, Belo Horizonte, v. 29, n. 2, p. 63-78, 2019 Amada, ela minha filha. Ela minha. Veja. Ela veio para mim por sua livre vontade e não tenho de explicar coisa nenhuma. Não tive tempo de explicar antes porque tinha de fazer depressa. Depressa. Ela precisava estar segura e eu a coloquei onde tinha de estar. Mas meu amor era forte e está de volta agora. Eu sabia que ela voltaria. Paul D a expulsou de forma que ela não teve escolha a não ser voltar para mim em carne e osso. Aposto que você, Baby Suggs, do outro lado, ajudou. Não vou nunca deixá-la ir embora. Vou explicar para ela, mesmo que não precise. Por que eu fiz aquilo. Como, se eu não a tivesse matado, ela teria morrido. Isso é uma coisa que eu não ia aguentar que acontecesse com ela. Quando eu explicar, ela vai entender, porque já entende tudo. Vou cuidar dela como nenhuma mãe nunca cuidou de uma filha, uma menina. Ninguém nunca mais vai receber o meu leite a não ser meus próprios filhos. Nunca tive de dar meu leite para ninguém mais – e da única vez que dei foi tirado de mim, eles me seguraram e tiraram. Leite que era da minha bebê.10 O trecho acima acompanha o fluxo de pensamento de Sethe, algo impensável nas narrativas de escravos. Além disso, achamos pertinente comparar esse reencontro sobrenatural de mãe e filha com um semelhante descrito em Doze anos de escravidão, em que uma filha é separada da mãe: Eliza nunca mais viu ou teve notícias de Emily ou de Randall. Mas não se passou um só dia nem uma só noite que eles estivessem ausentes de sua memória. No campo de algodão, na cabana, sempre e em todo lugar, ela falava neles – algumas vezes falava com eles, como se estivessem de fato presentes. Apenas quando absorvida por tal ilusão, ou dormindo, tinha algum momento de conforto.11 Podemos, assim, notar a diferença clara entre as narrativas e as neonarrativas de escravos. Enquanto os textos do século XIX descrevem os acontecimentos, ou mesmo os sentimentos, os do fim do século XX não falam de emoções indiretamente, eles são emoção, são narrativas para serem interpretadas e sentidas. 10 11 MORRISON. Amada, p. 268. NORTHUP. Doze anos de escravidão, p. 73-74. Aletria, Belo Horizonte, v. 29, n. 2, p. 63-78, 2019 73 A respeito das neonarrativas de escravos dessa época, mencionamos também o esforço dos escritores de preencherem as lacunas deixadas pelas narrativas de escravos. Por pertencerem a outro período, não é difícil imaginarmos como as narrativas de escravos passavam por uma espécie de limpeza, permitindo a circulação das obras sem causar alarme aos bons costumes. Não temos episódios tratando, por exemplo, do estupro de escravas. Em Doze anos de escravidão o assunto é abordado superficialmente quando Solomon afirma ser a escrava Patsey alvo da cobiça do senhor Epps. As neonarrativas de escravos, por outro lado, querem contemplar esses aspectos, querem colocá-los onde todos possam ver: Silêncios estão sendo quebrados, coisas perdidas foram encontradas, e pelo menos duas gerações de intelectuais estão desemaranhando o conhecimento recebido do aparato de controle, mais notavelmente aqueles que estão envolvidos em investigações da literatura colonialista francesa e britânica, narrativas americanas de escravos e o delineamento da tradição literária afro-americana.12 Apesar da dificuldade inicial do leitor dos anos 80 (ou mesmo os de hoje) pode sentir no início da leitura que Amada alcança os objetivos de Toni Morrison e também de outros artistas da época. Uma nova perspectiva da escravidão é fornecida para o público e é preciso reflexão para compreendê-la efetivamente. The Underground Railroad: os caminhos para a liberdade: a neonarrativa de escravos no século XXI Em 2017, Colson Whitehead lança The Underground Railroad: os caminhos para a liberdade. O livro é elogiado pela crítica e por figuras afro-americanas importantes, como Oprah Winfrey e o então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, que inclui o romance em sua lista 12 “Silences are being broken, lost things have been found, and at least two generations of scholar are disentangling received knowledge from the apparatus of control, most notably those who are engaged in investigations of French and British colonialist literature, American slave narratives, and the delineation of the Afro-American literary tradition”. (MORRISON. Unspeakable Things Unspoken: The Afro-American Presence in American Literature, p. 132-133, tradução nossa) 74 Aletria, Belo Horizonte, v. 29, n. 2, p. 63-78, 2019 de leituras. De acordo com ele, a obra é “[…] um lembrete da forma como a dor da escravidão é transmitida através das gerações, não somente de maneira direta, mas como transforma mentes e corações”13. Dessa forma, semelhante ao desejo dos primeiros escritores de neonarrativas de escravos, Whitehead parece ainda sentir a necessidade de manter a relevância do tema escravidão na literatura e na sociedade. O autor também procura desconstruir imagens romantizadas sobre o sistema escravagista, incluindo A Cabana do Pai Tomás. Em entrevista à Emma Brockes, do The Guardian, afirma: […] Escrevendo agora, a questão é: “Como posso fazer uma plantação psicologicamente crível?” E isso significa pensar em pessoas traumatizadas, brutalizadas e desumanizadas durante toda a vida. Não vai ser a plantação de cultura pop onde há um Pai Tomás e todo mundo é muito útil um para o outro. Todo mundo vai lutar pela única mordida extra de comida pela manhã, lutar por um pedaço de terra. Para mim, isso faz sentido. Se você juntar pessoas que foram estupradas e torturadas, é assim que agiriam.14 Assim como em Amada, Whitehead trabalha com o realismo mágico em seu romance. A ferrovia subterrânea, na vida real uma rede de rotas clandestinas organizadas por pessoas contrárias ao sistema escravagista com o intuito de resgatar escravos e levá-los para o norte dos Estados Unidos, em The Underground Railroad: os caminhos para a liberdade torna-se uma ferrovia subterrânea literal. Cora é uma escrava encorajada a fugir com um colega. Eles tomam a ferrovia subterrânea, levando-os a diferentes estados durante a jornada. 13 “[…] reminder of the ways in which the pain of slavery transmits itself across generations, not just in overt ways, but how it changes minds and hearts.” (PRESIDENT Obama’s Reading List, tradução nossa). 14 “[…] Writing it now, the question was: ‘How can I make a psychologically credible plantation?’ And that means thinking about people who’ve been traumatised, brutalised and dehumanised their whole lives. It’s not going to be the pop culture plantation where there’s one Uncle Tom and everyone is just really helpful to each other. Everyone is going to be fighting for the one extra bite of food in the morning, fighting for the small piece of property. To me, that makes sense; if you put people together who’ve been raped and tortured, that’s how they would act.” (BROCKES. Colson Whitehead: “To deal with this subject with gravity it deserved was scary”, tradução nossa). Aletria, Belo Horizonte, v. 29, n. 2, p. 63-78, 2019 75 A própria ferrovia é apresentada como um elemento fantástico, quase como um tapete mágico, que a cada estação é reconfigurada. Na primeira viagem na ferrovia, Cora mostra-se impressionada com a possibilidade de algo assim existir: Cora não conseguia prestar atenção. O túnel a desconcertava. Quantas mãos haviam sido necessárias para construir aquele lugar? Pensou na colheita do algodão, como percorria os sulcos na colheita, os corpos africanos trabalhando como um só, tão rápido quanto suas forças permitiam. […] O túnel, os trilhos, as almas desesperadas que encontravam salvação coordenando as estações e as grades de horários – aquilo sim era uma maravilha da qual devia se orgulhar. Ela se perguntou se as pessoas que construíram aquilo tinham sido devidamente recompensadas.15 O comentário tecido a respeito da organização interna nos Estados Unidos nos chama atenção no livro de Whitehead. Na ferrovia subterrânea literal, cada estado tem um poder e leis individuais, o famoso “it depends on the state”. À vista disto, a cada parada do trem, Cora é levada para um estado diferente, sendo eles Geórgia, Carolina do Sul, Carolina do Norte, Tennessee, Indiana, até chegar ao norte do país: “‘Cada estado é diferente’ dizia Lumbly. ‘Cada estado é uma possibilidade, com seus próprios costumes e maneira de fazer as coisas. Passando por eles, vocês verão a extensão do país, antes de chegar a seu destino final’”.16 Cora, portanto, vive uma experiência que, de alguma forma, lembra o leitor das aventuras de Alice no país das maravilhas (1865), de Lewis Caroll. A cada estado, a escrava fugida encontra um diferente posicionamento à questão da escravidão. Então a locomotiva desacelerou. Caesar se pôs de pé num pulo. Eles mal podiam acreditar, embora a animação dos fugitivos fosse parcimoniosa. A cada vez que terminavam um trecho da viagem, começava um novo e inesperado trajeto. O depósito de correntes, o buraco no chão, aquele 15 16 WHITEHEAD. The Underground Railroad: os caminhos para a liberdade, p. 76. WHITEHEAD. The Underground Railroad: os caminhos para a liberdade, p. 77. 76 Aletria, Belo Horizonte, v. 29, n. 2, p. 63-78, 2019 vagão decadente – a ferrovia subterrânea avançava na direção do bizarro.17 Na Geórgia, ponto de partida de Cora, ela vive a sombria vida de escravo em uma plantação de algodão. Na Carolina do Sul, apesar da aparente aceitação de pessoas negras livres, descobrimos um plano de esterilização das mulheres negras. Na Carolina do Sul, não há negros, pois todos haviam sido executados em um processo de limpeza do estado. No Tennessee, encontra-se uma grave estiagem que incendia as cidades (o que Cora entende como castigo pelo que seus habitantes haviam feito com os cherokees). Em Indiana, Cora encontra a fazenda Valentine, uma espécie de quilombo de escravos fugidos. No Norte, a liberdade. The Underground Railroad: os caminhos para a liberdade ainda faz uma homenagem referencial às narrativas de escravos quando Cora depara-se com tais textos e seus sentimentos corroboram nossas afirmações do começo deste trabalho: Cora leu relatos de escravos que haviam nascido acorrentados e aprendido a ler. De africanos que haviam sido roubados, arrancados de seus lares e de suas famílias, e que descreviam as misérias da servidão e então suas fugas espetaculares. Reconhecia essas histórias como suas. Eram as histórias de todas as pessoas de cor que conhecera, histórias de pessoas de cor que ainda nem sequer haviam nascido, as fundações de seus triunfos.18 Portanto, o romance de Whitehead reafirma a relevância das neonarrativas de escravos na contemporaneidade, refletindo sobre o passado, mas olhando para o presente da sociedade norte-americana. Considerações finais A relação dos norte-americanos com a população negra sempre foi controversa: durante a vigência do sistema escravagista, são mercadoria; após a abolição, tratados como excedente humano; ainda hoje, alvo do racismo. Em todos os períodos, a hegemonia branca os coloca como o inimigo, por meio de discursos de ódio, como pela Ku Klux Klan e as 17 18 WHITEHEAD. The Underground Railroad: os caminhos para a liberdade, p. 100. WHITEHEAD. The Underground Railroad: os caminhos para a liberdade, p. 281. Aletria, Belo Horizonte, v. 29, n. 2, p. 63-78, 2019 77 Leis Jim Crow. Somente após muitos embates e demandas, os negros conseguiram, por lei, os direitos humanos e sociais inegáveis pela constituição do país. No entanto, muito pouco mudou no tocante ao modo como alguns habitantes do país, agora espalhados de norte a sul, procedem contra os afro-americanos. Estatisticamente, os jovens negros são os que mais morrem; as mulheres negras têm menos oportunidades. A cor da pele continua segregando. Por isso, há ainda premente a necessidade de discutir-se o racismo. As narrativas de escravos e as neonarrativas de escravos constituem-se na oportunidade de retomar assuntos importantes. O gênero evolui e adapta-se para que a sociedade pense e repense continuamente sobre essa humanidade destituída no racismo. Procuramos, então, neste artigo, desenhar um panorama dessas obras ambientadas no período da escravidão, desde a vigência do sistema até os dias atuais, contemplando, portanto, três séculos. As narrativas e as neonarrativas de escravos, assim, são produções literárias que acompanham o desenrolar dos acontecimentos na sociedade estadunidense, levando os leitores a enfrentarem a presença inerte do fantasma da escravidão no país. Referências BROCKES, E. Colson Whitehead: “To deal with this subject with the gravity it deserved was scary”. The Guardian, London, 7 jul. 2017a. Disponível em: https://www.theguardian.com/books/2017/jul/07/colsonwhitehead-underground-railroad. Acesso em: 07 nov. 2018. DUBEY, M. Neo-slave Narratives. In: JARRETT, G. A. (ed.). A Companion to African American Literature. Hoboken: Wiley Blackwell, 2010, p. 333-346. Doi: https://doi.org/10.1002/9781444323474.ch22. GATES JR., H. L.; MCKAY, N. Y. The Norton Anthology of African American Literature. New York: W. W. Norton & Company, 2004. GOULD, P. The Economics of the Slave Narrative. In: JARRETT, G. A. (ed.). A Companion to African American Literature. Hoboken: Wiley Blackwell, 2010, p. 90-102. 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