A Campanha de Ódio contra The Last of Us Part II
Philipe Melo1 , Clara Pimentel2
Departamento de Ciência da Computação – Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
2
Departamento de Comunicação Social – Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Belo Horizonte – MG – Brasil
philipe@dcc.ufmg.br, clarapimentel@ufmg.br
Abstract. Hate speech is a problem on social media and many platforms look for means to fight this type of toxic behaviour, with automatic mechanisms or user feedback.
However, users find ways to bypass these moderation systems and attack communities
and people online. In this work, we explore one of the tactics used by online groups
to spread hatred against marginalized groups while boycotting products and services:
“review bombing”. For this, we collect user ratings and comments on Metacritic for
the game The Last of Us Part II, as well as comments about the game on Youtube and
Twitter, in order to measure the toxicity in them and understand how people coordinate
campaigns guided by hate and what are the implications of this type of activism.
Keywords: hate speech, Last of Us, toxicity, metacritic, social networks, game reviews
Resumo. O discurso do ódio é um problema nas redes sociais e muitas plataformas
procuram meios de combater este tipo de comportamento tóxico, com mecanismos automáticos ou com feedbacks do usuário. No entanto, usuários encontram formas de
contornar esses sistemas de moderação para atacar comunidades e pessoas online.
Neste trabalho, exploramos uma das táticas usadas por grupos online para espalhar o
ódio contra grupos marginalizados enquanto boicotam produtos e serviços: o “review
bombing”. Para isso, coletamos avaliações e comentários de usuários no Metacritic
para o jogo The Last of Us Part II, assim como comentários sobre o jogo no Youtube
e Twitter, a fim de mensurar a toxicidade neles e entender como são coordenadas as
campanhas pautadas pelo ódio e quais são as implicações desse tipo de ativismo.
Palavras-chave: discurso de ódio, Last of Us, toxicidade, metacritic, redes sociais,
review de jogos
1. Introdução
The Last of Us Part II (TLoU2) (2020), da Naughty Dog, é o segundo jogo de uma série
aclamada pelo público e foi um dos lançamentos mais aguardados pelos jogadores em
2020. Poucas horas após sua estreia, em 19 de junho de 2020, já contava com mais de 10
mil avaliações no site Metacritic1 , o que parece corroborar com a grande expectativa em
torno do game. Contudo, o que se viu no lançamento foi uma avalanche de comentários
negativos, carregados de discurso de ódio contra o jogo, suas personagens e sua equipe de
produção [Croft 2020]. Ainda que tenha recebido vários prêmios em 2020, como melhor
jogo do ano, muitos jogadores não parecem ter compartilhado dessa opinião, descarregando uma série de notas baixas e comentários tóxicos nas redes sociais para TLoU2.
Embora TLoU2 não esteja isento de crı́ticas, a obra é marcada pela rica experiência
narrativa que entrega, aprofundando-se no universo previamente estabelecido pelo primeiro jogo e o expandindo, enquanto explora as diferentes visões das personagens, suas
1
Disponı́vel em: https://www.metacritic.com/.
vidas, e suas relações [Park 2020]. São estes os pontos que deixaram uma parcela do
público descontente: a insatisfação com a morte de Joel, junto ao deslocamento do protagonismo para Ellie e Abby, além das representações dos corpos femininos e relações
LGBTQIA+, os quais consideram inadequados [Rocha and Fantini 2020]. Como forma
de protesto, reclamaram veementemente nas redes sociais. As postagens crı́ticas à TLoU2
foram acompanhadas – ou consistiam apenas – de comentários tóxicos dos mais diversos
tipos. Discursos de ódio de cunho misógino, homofóbico e transfóbico alvejaram o jogo,
seu diretor e a atriz que interpretou Abby, Laura Bailey. Essas mensagens inundaram
plataformas como o Twitter e, principalmente, o Metacritic e YouTube, que contam com
sistemas de avaliação de conteúdos [Nunneley 2020] [Tassi 2020].
Os usuários se organizaram em “campanhas de dislike”, dando notas baixas para o
jogo no Metacritic e Youtube. Essa ação coordenada, promovida por um grande grupo de
usuários que avalia negativamente produtos e obras em plataformas online através de votos e comentários, é conhecida como Review Bombing. TLoU2 foi alvo de tal campanha
em 2020, mas isso é prática frequente contra outros jogos. Em 2012, no Metacritic, o jogo
Mass Effect 3 (2012) foi atacado por usuários; a situação foi identificada pela plataforma
como um esforço unificado e levou à eliminação de vários comentários2 . Já no Youtube,
em 2018, o trailer oficial de Diablo Immortal (2022) foi objeto de uma das maiores campanhas de dislikes na internet, chegando ao terceiro lugar no ranking de vı́deos mais negativados do site3 . Enquanto alguns consideram o review bombing como uma forma legı́tima
de ativismo gamer que demonstra insatisfação com os jogos ou com a companhia, grande
parte dessas campanhas é acompanhada de controvérsias e carregam conteúdos tóxicos
que afetam a comunidade e as pessoas envolvidas. Durante o lançamento e recepção do
jogo, parte da equipe de TLoU2 recebeu ameaças online e foi assediada nas redes sociais,
em meio às supostas “crı́ticas” ao jogo4 .
Embora a toxicidade e ódio não sejam problemas inéditos no universo gamer, suas
manifestações em plataformas online afetam imensamente os jogos digitais e jogadores, e
os esforços para impedir isso não tem sido suficientes. Dito isso, neste trabalho realizamos
um levantamento quantitativo da repercussão do jogo TLoU2 na web durante sua primeira
semana de lançamento e examinamos o discurso de ódio visto nos reviews e comentários.
Levantamos os tópicos, notas e toxicidade dos enunciados e, usando a lente dos game
studies, delineamos alguns comportamentos dos usuários. Por fim, evidenciamos como
as táticas adotadas pelos ativistas para atingir os jogos e o modo como lidam com as
plataformas são adjacentes à lógica do jogar, demonstrando uma gamificação das redes
sociais investigadas por parte dos usuários. Esperamos que, com isso, sejamos capazes de
compreender melhor as dinâmicas desses espaços e pensar em estratégias para evitar tais
comportamentos.
2. Discurso de Ódio em Jogos
Discurso de ódio em jogos é um tema recorrente que levanta a preocupação de vários
pesquisadores, tanto em relação a sua manifestação interna nos jogos [Pimentel and Melo
2
Metacritic Says It Has Removed Rule-Violating Mass Effect 3 User Reviews. Disponı́vel em:
¡https://kotaku.com/metacritic-says-it-has-removed-rule-violating-mass-effe-5891060¿. Acesso em 4 de
julho de 2022.
3
Disponı́vel em: http://disq.us/t/48lsw5k
4
The Last of Us 2 dev Naughty Dog condemns harassment, death threats Disponı́vel em: ¡https:
//bit.ly/3HL365u¿
2020] e na comunicação entre jogadores [Flores and Real 2018], quanto suas repercussões
fora dos games, como no caso do #GamerGate (GG). Os participantes do #GamerGate
tem a tendência de apoiar conteúdo sexual e objetificado de personagens femininas, projetando uma visão machista sobre os jogos. Comentários racistas também eram comumente publicados em 4chans e Reddits GG. Outra caracterı́stica marcante do grupo é a
auto-vitimização, em que os jogadores se portam como mártires e discutem teorias sobre
o fim da “cultura gamer” [Mortensen 2018].
Encaixando-se nesse cenário, o jogo The Last of Us Part II foi alvo de ataques
transfóbicos e misóginos, com ênfase na personagem Abby e sua corporeidade fora da
norma [Rocha and Fantini 2020]. A sexualidade da personagem foi fortemente questionada, além de seu lugar na narrativa do game, julgada como inverossı́mil pelos usuários.
A morte de Joel foi encarada por muitos jogadores como uma ameaça à hegemonia masculina na franquia. Apontando para a relação entre os jogadores que atacaram TLoU2
e apoiadores do #GamerGate, [Tomaselli et al. 2021] exploraram também os reviews
do jogo, percebendo uma grande polarização ideológica causada pelo review bombing,
marcado por posicionamentos negativos contrários a pessoas LGBTQIA+.
É sabido que os indivı́duos engajados no #GamerGate utilizaram de várias redes
sociais para “demonstrar sua insatisfação” a respeito da indústria dos jogos. Sobre isso,
[Chatzakou et al. 2017a] demonstram que, diferente do esperado, os usuários no Twitter
afiliados ao #GamerGate não são muito mais raivosos que o usuário padrão, entretanto
demonstram menos felicidade que os demais. Além disso, os usuários GG são mais ativos
e são menos penalizados por seu comportamento abusivo. Os pesquisadores atribuem
essa falta de responsabilização à dificuldade da plataforma em detectar e combater as
atividades. Aprofundando-se no modo como jogadores interagem com as plataformas de
avaliação e explorar o gênero de resenhas produzidas, [Thominet 2016] coletou e analisou
reviews postados em sites de venda de jogos e de divulgação, como Steam e Metacritic.
Alguns resultados são interessantes para nosso trabalho: no Metacritic, a maioria das
resenhas tem foco na qualidade geral do jogo e menos no enredo e narrativa.
3. Metodologia
Neste trabalho, desenvolvemos uma extensa coleta de comentários sobre o jogo The Last
of Us Part II de três diferentes fontes: o Metacritic, Twitter e Youtube. A seguir, detalharemos o processo de construção do corpus de dados de cada uma destas plataformas.
Metacritic: O Metacritic é um dos principais agregadores de notas disponı́veis online que
reúne crı́ticas de jogos, filmes, músicas, programas de televisão e livros. Para cada obra
listada, o site mantém separadas as crı́ticas especializadas e as crı́ticas da comunidade, e
um valor numérico que representa a nota média é computado através das avaliações recebidas. Dada a importância do Metacritic, não é surpresa ele ser utilizado como alvo para
ataques. Na semana de lançamento, TLoU2 possuı́a uma nota da comunidade de 2.8 (de 0
a 10) comparado a 95 de mestascore da crı́tica especializada (de 0 a 100). Para investigar
a movimentação no Metacritic, coletamos todas as crı́ticas do jogo TLoU2 postadas na
plataforma, seguindo as seguintes etapas: (1) Listagem de todas as avaliações postadas
na página do TLoU2 no Metacritic; (2) Coleta do conteúdo de cada uma, salvando suas
informações, com texto, nota e likes; (3) Coleta da página do autor de cada avaliação, com
os metadados daquele usuário. Essa coleta foi realizada 30 de Junho de 2020, com um
total de 20156 avaliações.
Tabela 1. Sumário dos dados coletados sobre Last of Us Part II.
Fonte
Metacritic
Twitter
Youtube
Mensagens
Usuários
20 156
1 006 040
17 098
19 018
421 712
12 026
Média
Toxicidade
0.36
0.19
0.20
Média
Likes
2.92
2.07
19.40
Perı́odo
18/06/2020 – 22/06/2020
13/06/2020 – 30/06/2020
12/06/2020 – 21/06/2020
Twitter Para construir o “dataset” de tweets sobre TLoU2, foi feito uma coleta utilizando
a Stream API do Twitter5 . Com essa ferramenta, é possı́vel coletar e salvar os tweets a
medida que eles são postados na plataforma, considerando um filtro a partir de uma lista
de palavras-chaves que são buscadas no Twitter. Para coletar publicações relacionadas
ao jogo, foram utilizados alguns termos relacionados como thelastofus, ellie e joel entre
outros: Com isso, o Twitter retorna as postagens que filtradas que contenham esses termos, junto de outros metadados do tweet, como ID, data, autor, dados do autor, retweets,
“replies”, “likes”, URLs, entre outros. Coletamos um total de mais de 1 milhão de tweets
sobre TLoU2 foram coletados, feitos por mais de 400 mil usuários em junho de 2020.
YouTube: O YouTube é outra plataforma muito utilizada para divulgação de jogos. As
desenvolvedoras geralmente lançam o trailer em seu canal e os jogadores discutem a respeito na seção de comentários, podendo curtir ou descurtir o conteúdo. Dadas essas funcionalidades, o YouTube é outro alvo frequente de campanhas de negativação. O próprio
TLoU2 teve seu vı́deo oficial atacado no lançamento e, por conta disto, os desenvolvedores preferiram desativar os comentários e ocultar as curtidas do seu trailer. Outros
jogos da Sony ainda mantem os comentários e curtidas aberto, o que nos leva a crer que
essa decisão de fecha-lo no vı́deo do TLoU2 foi devido aos ataques sofridos. Por essa
razão, escolhemos outro video de lançamento de The Last of Us Part 2 para coletar suas
informações. No momento de coleta desta pesquisa, o video selecionado (“The Last of Us
2 Review” postado pela IGN6 ) era um dos vı́deos sobre TLoU2 com maior número de comentários e, por isso, foi escolhido para avaliar a recepção do jogo no Youtube. Para a coleta, foi utilizada uma biblioteca para extrair dados do video7 , para baixar os comentários
do video diretamente do Youtube. Com isso armazenamos todos os comentários daquele
vı́deo com o autor, texto do comentário, votos (likes) que o comentário teve e a data de
publicação. O video escolhido foi, então, processado por esse código em 22 de Junho
de 2020, coletando um total de 17098 comentários. O vı́deo, na data de coleta possuia
1.756.451 visualizações, 44 mil curtidas e 48 mil “dislikes”. O que mostra também que
era um possı́vel alvo do ativismo de ódio.
A Tabela 1 apresenta um resumo dos conjuntos de dados coletados para nossa
análise nas plataformas do Metacritic (20 mil avaliações), Twitter (1 milhão de tweets) e
YouTube (17 mil comentários).
Levantamento de Toxicidade: Recentemente, tem havido vários esforços para identificar o discurso de ódio online, uma vez que o problema se manifesta em diferentes sistemas
e sob diferentes formas. Uma API chamada Perspective8 , criada para o combate ao comportamento tóxico online, usa modelos de aprendizado de máquina para identificar se os
comentários são tóxicos ou não, fornecendo valores de toxicidade de 0 a 1. Dado que detectar adequadamente a toxicidade presente em todas as mensagens coletadas representa
5
Disponı́vel em: https://developer.twitter.com/
Disponı́vel em https://www.youtube.com/watch?v=QwreMeXlFoY
7
Disponı́vel em: github.com/egbertbouman/youtube-comment-downloader
8
Disponı́vel em: https://www.perspectiveapi.com/
6
70%
Comunidade
Especializada
60%
70%
60%
Usuários (%)
50%
%Total
50%
40%
40%
30%
30%
20%
20%
10%
0%
10%
0
1
2
3
4
5
6
Nota de Avaliação
7
8
9
10
0%
0
5
10
15
Total Avaliações
20
25
(a) Distribuição das notas recebidas pelo TLoU2
(b) Quantidade de jogos avaliados por perfil
Figura 1. Nota de avaliação dada ao jogo TLoU II pelos usuários do Metacritic.
um desafio metodológico, devido ao volume e desafios da tarega, analisamos evidências
de discurso de ódio nas narrativas sobre TLoU2 online por meio das pontuações tóxicas
dadas pela Perspective, considerada o estado-da-arte das técnicas de detecção de ódio online e utilizadas em estudos da área [Lima et al. 2018], como, por exemplo [Chatzakou
et al. 2017b] que utilizou o Perspective pra mensurar o ódio, sexismo e bullying presentes
no movimento do #GamerGate. Pontuações de toxicidade inferiores a 0,4 indicam postagens improváveis de serem percebidas como tóxicas, enquanto pontuações superiores a
0,75 indicam postagens com maior probabilidade de serem tóxicas. Além disso, a ferramenta retorna também o idioma do texto analisado e outros aspectos de toxicidade, como
insultos, ataques a identidade, ameaças, entre outros.
4. Identificando o Ativismo de Ódio
Geralmente, em trabalhos sobre discurso de ódio, o maior foco é no conteúdo do texto
compartilhado. Entretanto, esse comportamento tóxico tem acontecido cada vez mais de
forma coordenada nas plataformas online, muitas vezes camuflado em campanhas de boicote que visam invalidar visões alternativas de mundo propostas por alguns jogos. Desta
forma, é preciso atentar a outras dinâmicas que esta forma de ativismo de ódio utiliza
para atacar e prejudicar seus alvos. Com a guerra cultural que vivemos hoje, uma das
preocupações mais relevantes é como esse tipo de movimento antagoniza mulheres, pessoas LGBTQI+ e não-brancas no meio gamer. Esses grupos online abusam de mecânicas
das plataformas (como o botão de dislike do Youtube, ou as notas do Metacritic) para
validar seu ponto de vista. Ao traduzir suas convicções em métricas algorı́tmicas, os significados que estes números trazem refletem diretamente no “discurso vencedor” nesta
disputa narrativa e, os resultados disto podem ser tão ou piores que o próprio teor dos textos de ódio. Ao incentivar usuários a clicar num botão e fazer comentários, cria-se uma
espécie de competição online, ou mesmo uma e “gamificação” das redes sociais, uma vez
que comentários com maior visibilidade são aqueles com mais curtidas e a nota no site
vira um veredito sobre a qualidade do jogo em questão.
Com nosso dados coletados sobre TLoU2, podemos claramente observar essa
mobilização. No momento da coleta, o video no Youtube contava com 44mil likes e
48mil dislikes, exemplificando essa disputa de narrativas, que, no caso, a negativação está
“ganhando”. Na Figura 1, temos a distribuição das notas do jogo recebidas pelos usuários
comuns comparada com a crı́tica especializada. Note que aqui normalizamos ambas em
valores de 1 a 10 para fim de comparação. Vemos uma discrepância muito grande entre os
valores atribuı́dos pela crı́tica especializada (a metascore é de 9,4) e a da comunidade (3,4
no momento da coleta). Embora exista um longo campo de estudo que busque entender
1.0
800
0.8
600
0.6
CDF
Curtidas recebidas (likes)
1000
400
0.4
200
0
Metacritic
Youtube
Twitter
0.2
0
2
4
6
Nota da Avaliação
8
10
0.0
0
100
101
102
#Likes
103
104
105
(a) Relação entre Likes e a nota de avaliação
(b) CDF Likes por plataforma
Figura 2. Número de curtidas por comentários em cada plataforma.
essa relação entre a recepção dos jogos por crı́ticos profissionais versus pela comunidade
gamer [Johnson et al. 2014], que diz que nem sempre os crı́ticos conseguem refletir muito
bem a real experiência do jogador, acreditamos que não seja aqui o caso do jogo Last of
Us Part II. Devido aos ataques coordenados de negativação sofrido pelos jogos vemos
que valores quase que inversos entre as notas no Metacritic dada por usuários e dados por
crı́ticos. Enquanto 40% e 15% dos usuários deram as notas mı́nimas de 0 e 1 para o jogo,
55% e 40% da crı́tica especializada deram notas máximas de 10 e 9, respectivamente.
Além disso, quando olhamos apenas para as notas da comunidade, não vemos uma
distribuição normal, e sim uma espécie de distribuição bimodal, com maiores concentrações
nos valores extremos: na nota 0 e na nota 10. Esse tipo de distribuição de notas revela
uma forte polarização de opiniões, evidenciando a antagonização das narrativas. Enquanto uma parcela votou positivamente dando notas altas ao jogo, outra votou de forma
bem negativa, dando um zero absoluto para o jogo. Embora isso possa ocorrer em diversas situações, é um padrão muito comum em alvos de ataques online. Portanto, embora
possa haver uma dissonância entre essas duas visões de jogo, principalmente entre crı́ticos
e comunidade, a oposição levantada entre as notas aqui no Last of Us revela o esforço coletivo em que uma quantidade expressiva de usuários negativaram o jogo como resultado
de uma forte campanha coordenada de review bombing para interferir na nota do jogo
na plataforma. Outra indicação desse comportamento não natural dos usuários é quando
observamos quantos jogos cada perfil avaliou no Metacritic na Figura 1. Mais de 70%
dos perfis analisados possui apenas uma única avaliação na plataforma, ou seja, apenas
avaliaram o jogo TLoU2. Isso indica a presença de muitas contas novas criadas somente
para dar a nota baixa ao jogo. Isso é ainda mais evidente em alguns exemplos de nomes
de usuários (e.g. lastofus2isass, Lastofus2sucks1, ihatelastofus2, abbythetrans).
No Metacritic, cerca de 30% das resenhas possuem uma ou mais curtidas. Observando a relação entre nota dos comentários e curtidas na Figura 2a, vemos que comentários que dão baixa para o jogo receberam mais curtidas, inclusive alguns dentre os
mais curtidos possuem palavrões e xingamentos. Essa funcionalidade do sistema é crucial
no entendimento da atuação do review bombing. As curtidas dentro da plataformas são
apontadas com os dizeres “Tantos usuários acharam isso útil”Como a nota mostrada pelo
Metacritic não é uma simples média de todos comentários, e sim, uma nota ponderada
que dá mais valor para usuários mais relevantes, o ranqueamento das resenhas proporciona maior peso para as notas em que a comunidade achou mais útil, portanto quando um
grupo coordenado busca atacar e negativar um produto, eles não só o fazem dando a nota
2
1
3
2
1
0.0
0.2
0.4
0.6
Toxicidade
(a) Toxicidade
0.8
1.0
4
3
2
Metacritic
Youtube
Twitter
1
0
0
0
5
Limiar de Discurso de Ódio
4
Limiar de Discurso de Ódio
3
Metacritic
Youtube
Twitter
5
Limiar de Discurso de Ódio
Função de Densidade
4
6
Função de Densidade
Metacritic
Youtube
Twitter
5
Função de Densidade
6
0.0
0.2
0.4
0.6
Insultos
(b) Insultos
0.8
1.0
0.0
0.2
0.4
0.6
Discursoa Inflamatórios
0.8
(c) Discurso Inflamatório
Figura 3. Distribuição de densidade de conteúdo ofensivo de acordo com cada
modelo da Perspective API.
baixa, eles também “curtem” outros comentários negativos, para tentar “enganar” o sistema e dar notoriedade aos autores da campanha de negativação em relações aos demais
usuários. Com isso vemos que o ativismo de ódio não se resume a textos individuais isolados, mas pode também estar inserido em outras dinâmicas das redes sociais, exigindo
um cuidado ainda maior destas plataformas na moderação de seu conteúdo.
5. Análise do conteúdo de ódio contra The Last of Us II
Como nosso corpus de texto é composto de mais de um milhão de mensagens, não é
possı́vel fazer uma análise manual individual de cada comentário. Porém, com o auxı́lio
da ferramenta Perspective, da Google, podemos classificar cada comentário, associando
a cada um, uma probabilidade de ser tóxico ou não. A ferramenta, além de notas sobre toxicidade, possui outros modelos de classificação como comentários muito ofensivos, inflamados, insultos, ameaças e ataques pessoais e de identidade. A Figura 3 mostra a distribuição de resultados de toxicidade dos comentários através da densidade de
quão tóxico são os comentários em cada modelo e plataforma. É possı́vel observar que,
mesmo que exista uma maior concentração com menos de 0,4 de toxicidade, existe uma
quantidade não desprezı́vel de mensagens que ultrapassam o limiar de discurso de ódio,
principalmente no Metacritic, que cerca de 10% dos textos coletados possuem alto valor de toxicidade. Vale lembrar que as 3 plataformas possuem formas de moderação de
conteúdo e deletam, teoricamente, aquilo que atenta contra a sua polı́tica de uso. Desta
forma, os dados coletados já passaram por um filtro de cada sistema e provavelmente o
conteúdo mais severos já foram removidos do acesso ao público. Os resultados reportados
aqui, portanto, apontam para o conteúdo que ficou disponı́vel ao público. A presença de
conteúdo ofensivo nos conjuntos de dados revela, então, uma ineficiência destes sistemas
para remover propriamente o discurso de ódio nocivo às pessoas da comunidade.
Dado o grande volume de conteúdo presente em cada plataforma, essa análise
quantitativa é de extrema importância, pois torna-se um desafio lidar com os comentários.
O ódio e toxicidade diluem-se na rede e permeiam mais de um ambiente digital, como
podemos ver. Assim, a abordagem automatizada permite trazer à tona como o discurso de
ódio aparece de forma mais ampla. Há um contexto de ódio a ataques mais generalizado
contra o TLoU2 que atravessa o Metacritic, YouTube e Twitter, cujo conteúdo é articulado
e postado por vários usuários.
A seguir, filtramos apenas aqueles conteúdos com altos valores de toxicidades para
fazer uma análise mais profunda do discurso de ódio que acompanhou a campanha de review bombing contra o jogo TLoU2 na Web. Após explorarmos algumas formas como
este ataque coordenado atuou nas plataformas, criando um grande peso para as notas ne-
(a) Metacritic
(b) Twitter
(c) Youtube
Figura 4. Nuvem de termo gerada a partir dos textos classificados como discurso
de ódio presente em TLoU2
gativas do jogo na Web, agora vamos analisar um pouco mais do conteúdo ofensivo que
essa campanha de ódio trouxe nas plataformas estudadas. A Figura 4 mostra a nuvem
de termos considerando somente o conteúdo que recebem uma alta nota de toxicidade.
Entre os termos mais recorrentes, vemos uma série de xingamentos no meio na nuvem,
como disgusting, idiot, garbage, trash dumbass, shitty, o que corrobora com a ideia que
estes textos são de fato permeados por um conteúdo de maior toxicidade, possuindo palavrões, xingamentos, carregadas de um sentimento negativo e ofensivo. Aqui, ressaltamos também a ocorrência dos termos SJW, feminist, lesbian, gay, LGBT entre os mais
frequentes nos discursos de ódio. Isso, infelizmente, sugere como e quais são os alvos e
grupos atacados por estas mensagens, mesmo não sendo eles mesmo que levantem estes
temas nos comentários, pois vemos que esses temas referentes a grupos marginalizados
são levantados justamente por aqueles que comentam e criam o discurso de ódio online.
Também presenciamos um discurso de ódio ainda mais evidente em alguns comentários. Termos lésbicas (lesbians), judeu (jewish), gay, acompanhados de vários xingamentos demonstram alguns dos alvos do ódio presente nos comentários. Além disso,
temos tópicos com SJW (acrônimo para guerreiro da justiça social), agenda, propaganda,
lacração, mostrando o desconforto destes usuários com as pautas sociais inseridas no jogo.
Ellie é uma protagonista mulher e lésbica. Sua namorada é judia. Mesmo a antagonista
do jogo, Abby, uma personagem mulher, foi vista por muitos como uma mulher trans
pelo seu corpo musculoso e sua força fı́sica fora do comum. Portanto, o conteúdo do jogo
possui diversas pautas que divergem do tradicional personagem masculino heteronormativo tão comum nos games, o que foi visto como agenda social inadequada ao jogo pelos
comentários tóxicos. Vale ainda ressaltar a existência de comentários com referências a
Anita Sarkeesian, uma das principais pessoas alvo de vários ataques de ódio e até ameaças
de morte durante o movimento do #GamerGate.
Reunimos na Tabela 2 alguns conteúdos que, através de uma análise qualitativa
textual, categorizamos como formas de violências especı́ficas. Com isso, exemplificamos alguns casos de discurso de ódio que esses textos trazem para os desenvolvedores
e público de TLoU2, além de mostrarmos manifestações de assédio e ameaça contra os
desenvolvedores e pessoas envolvidas na crı́tica de jogos. Os comentários 1 e 2, da tabela,
são fortes exemplos de antissemitismo, além de atacar o diretor e roteirista do jogo, Neil
Druckmann. O comentário 3 traz mais ataques contra ele, enquanto o 4 compara o jogo
a outro que não havia nem sido lançado ainda (Cyberpunk 2077), mas que simbolizava
Tabela 2. Exemplos de comentários com discurso de ódio do Metacritic.
#
Categoria
1
Antissemitismo
2
Antissemitismo
3
Transfobia, ameaça
4
Homofobia, transfobia
5
Homofobia, transfobia
6
Homofobia, misoginia
Texto Original do Comentário
Absolutely disgusting trash. Parents DO NOT allow your children to have this twisted,
demented Jewish porno propaganda
Neil Druckmann you filthy jew ruined everything, ofc the evil cis white male had to die
in hands of powerful and independent tranny
Cuckman could hang himself! Hope he will drown in goat semen! You get what you deserve, hope
that the sqad of transgenders will rape neel!
Final de mierda . Que bueno que yo no lo compré sino mi amigo. Prefiero ver dos weyes
agarrándose a chingazos a muerte que una mujer transexual y una lesbiana ajajaj que al
final se perdonan que es esa mamada , deberı́an de aprender de los de cyberpunk.
So youre telling me the most beloved character gets killed off by a f***** transwoman
and at the end i dont even get my revenge???? Dafuq!!!??? And waayyy too much lesbian sh*t
in this game and not enough relief in the story to feel good about the game. Visuals and sounds
and whatever are amazing but which game doesnt nowadays
Worst game of 2020. Lesbians sicks. Anita sucks Naughty dog sucks. Lesbians shoud know their place.
um ideal valoroso no imaginário gamer. Anita Sarkeesian também é atacada no texto 6
(e em outros de nosso banco de dados), reforçando a relação entre o review bombing e o
#GamerGate, além do ódio persistente contra mulheres. A transfobia e a homofobia são
constantes em vários comentários, atingindo Ellie e sobretudo Abby, cuja cisgeneridade
é questionada pelo público devido sua corporeidade não-padrão.
6. Considerações Finais
Em The Last of Us Part II, Ellie precisa enfrentar hordas de inimigos que a odeiam e
a perseguem. Não apenas ela, mas as outras personagens também. Dina relata a difı́cil
história de sua famı́lia que sobreviveu ao Holocausto e também ao apocalipse zumbi;
Lev é perseguido por ser um garoto trans; Abby perde os amigos e familiares assassinados. De forma semelhante ao sofrimento e violência que essas personagens vivenciam
no mundo virtual do jogo, há também o ódio do qual são vı́timas na vida real por representarem situações que desagradam o público gamer. O ódio atravessa as plataformas e
é multilı́ngua. Tenta se disfarçar como crı́ticas técnicas à narrativa do jogo, decisões de
enredo ou às mecânicas e visuais. Contudo, através de nosso levantamento e das análises
quantitativas e qualitativas vemos quanto as mecânicas das plataformas são exploradas
por campanhas de negativação e de ódio para tentar manipular a opinião pública. O review bombing contra The Last of Us Part II foi premeditado, articulado e transparece a
misoginia, homofobia e transfobia que permeiam a comunidade gamer internacional. As
resenhas sobre o jogo são como um lastro do #GamerGate, demonstrando que o assunto
está longe de ter acabado.
As plataformas são abusadas pelos usuários em uma demonstração do que há de
pior sobre a cultura participativa de fãs, quando se articulam para negativar o produto
com o objetivo de boicotá-lo comercialmente em prol de um ideal reacionário permeado
de ódio. O jogo TLoU2 foi um sucesso de vendas, apesar deste ativismo; porém o mesmo
pode não ocorrer com tı́tulos independentes que ficam vulneráveis a ataques articulados
nas plataformas. Há uma impressão generalizada de que os jogos devem ser feitos sob
medida para o público masculino, e este responde com agressividade caso não tenham
suas expectativas atendidas. Isso também resulta em agressões contra as pessoas desenvolvedoras, o que frequentemente transforma-se em assédio e ameaça. Com o trabalho,
percebemos que plataformas atuais carecem de confiança devido os abusos aos quais estão
suscetı́veis. Não apenas isso, como também propiciam cenários de polarização ideológica
onde uma parcela de fãs tende a antagonizar e responder aos ataques feitos pelo outro
grupo. A articulação multi-plataforma dos fãs contra o jogo em vários sites e validação
dos comentários que lhe dão notas baixas, podem criar a ilusão de consenso quanto ao
jogo e homogeneidade do público. Contudo, vemos que isso não é necessariamente verdade, um vez que campanhas de ódio distorcem significativamente a percepção do jogo
através das plataformas online.
Há um longo caminho a ser percorrido pelas plataformas para evitar esse tipo
de comportamento, pensando não apenas em suas consequências individualizadas, mas
também quando feitas em grupos e de maneira planejada. Quanto as empresas e desenvolvedores de jogos, é fundamental pensar o peso que essas plataformas têm sobre a
recepção do produto e, principalmente, sobre a definição de público-alvo e criação. Apesar do comportamento tóxico recebido, não podemos deixar que isso afete os processos
de criação de modo negativo, a prejudicar e excluir públicos marginalizados dos jogos.
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